UMA CIDADE EM ESCAVAÇÃO Teatro Aberto 26, 27 e 28 Nov de 2015
UMA CIDADE EM ESCAVAÇÃO Teatro Aberto 26, 27 e 28 Nov. de 2015
Lisboa, 2017
Título:
I Encontro de Arqueologia de Lisboa: Uma Cidade em Escavação (Teatro Aberto, 26, 27 e 28 de Nov. de 2015) Coordenação editorial:
Ana Caessa Cristina Nozes Isabel Cameira Rodrigo Banha da Silva Design gráfico do Encontro:
João Rodrigues, Ana Filipa Leite Design gráfico e composição do Livro de Resumos e das Atas:
Rui Roberto de Almeida Edição:
CAL/DPC/DMC/CML
Centro de Arqueologia de Lisboa / Departamento de Património Cultural / Direção Municipal de Cultura / Câmara Municipal de Lisboa Impressão:
Livro de Resumos - Imprensa Municipal / Câmara Municipal de Lisboa CD Atas - MPO (Portugal) Tiragem: 450 exemplares ISBN: Livro de Resumos - 978-972-8543-45-7 / Atas - 978-972-8543-46-4 Depósito Legal: 433151/17
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Arqueologia de Lisboa
índice
Prefácio ......................................................................................... 9 Introdução ................................................................................... 11 Comissão ........................................................................................ 13 1. A ocupação do território do município de Lisboa .........................
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1. A Arqueologia do sítio de Lisboa: um (novo) balanço crítico, vinte e um anos depois Carlos Fabião ................................................................................... 16 2. O sítio neo-calcolítico da Travessa das Dores (Ajuda-Lisboa) Nuno Neto, Paulo Rebelo, João Luís Cardoso ......................................... 24 3. Um sítio da Pré-História Recente em Pedrouços (Belém, Lisboa) Anabela Castro, Victor Filipe, João Paulo Barbosa ............................... 38 4. Resultados preliminares da Presença Pré-Romana no Pátio José Pedreira (Rua do Recolhimento/Beco do Leão, Lisboa) Anabela Joaquinito ............................................................................. 48 5. Louça “de fora” em Carnide (1550-1650). Estudo do consumo de cerâmica importada Tânia Manuel Casimiro, Carlos Boavida, Ana Margarida Moço ................... 56
2. A cidade manufatureira e industrial ............................................ 68 2. Rua de Santiago, Lisboa: tanques romanos na requalificação do edifício sito no Nº 10-14 João Miguez, Alexandre Sarrazola .............................................................. 70 3. Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa Mário Varela Gomes, Rosa Varela Gomes, Joana Gonçalves ................................. 84 4. Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho ........................................................ 106 5. Evidências de produção oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa) Guilherme Cardoso, Luísa Batalha ............................................................. 146 6. Uma intervenção em pleno Bairro das Olarias: novos dados sobre a produção oleira no século XVII Inês Mendes da Silva, Marina Pinto .......................................................... 146
Uma cidade em escavação
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I Encontro
3. A arqueologia dos espaços, a identidade e a fisionomia da cidade ....................................... 190 1. Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade Lídia Fernandes .................................................................................... 192 2. A cerâmica de engobe vermelho de Lisboa Elisa de Sousa ...................................................................................... 212 3. Dados preliminares de uma intervenção arqueológica nos antigos Armazéns Sommer, Lisboa (2014-2015) - Três mil anos de História da cidade de lisboa Ricardo Ávila Ribeiro, Nuno Neto, Paulo Rebelo, Miguel Rocha ....................... 222 4. As termas romanas às portas de Alfama Vanessa Filipe, Raquel Santos ................................................................. 246 5. A cerâmica comum de produção local e regional do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa. Os contextos fabris Carolina Grilo ...................................................................................... 254 6. Presença da ocupação romana no Aljube de Lisboa Clementino Amaro, Eurico de Sepúlveda ...................................................... 272 7. A Cerca Fernandina: das Portas de Sta. Catarina ao Postigo do Duque – Lisboa Nuno Neto, Paulo Rebelo, Vanessa Mata ...................................................... 286 8. Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa: o lanço oriental entre a Alcáçova do Castelo e o Miradouro de Santa Luzia Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda ............................................ 298 9. Perspectivas arqueo-biológicas sobre a Necrópole Islâmica de Alfama Vanessa Filipe, Alice Toso, Joana Inocêncio .............................................. 338 10. A Intervenção Arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras” (Lisboa) Sofia de Melo Gomes, Mónica Ponce, Victor Filipe ....................................... 348 11. Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos: a cultura material de uma lixeira da primeira metade do século XVIII Inês Pinto Coelho, Tiago Silva, André Teixeira ......................................... 366 12. Casa da Severa, Memórias arqueológicas de um espaço (Largo da Severa n.º 2, Mouraria, Lisboa) Ana Caessa, António Marques, Nuno Mota ................................................... 386 13. Rua do Comércio nº 1 a 13, Lisboa: metamorfose espacial Alexandra Krus, Isabel Cameira, Márcio Martingil ...................................... 414 14. Testemunhos Arqueológicos na Rua do Jardim do Regedor nº 10 a 32, Lisboa Márcio Martingil .................................................................................. 426 15. Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos Carlos Boavida .................................................................................... 440
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Arqueologia de Lisboa
16. Fragmentos da mesa nobre de uma cidade em transformação: porcelana Chinesa num contexto de terramoto da Praça do Comércio (Lisboa) Sara Ferreira, César Neves, Andrea Martins, André Teixeira ........................ 458 17. Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação José Bettencourt, Cristóvão Fonseca, Tiago Silva, Patrícia Carvalho, Inês Coelho, Gonçalo Lopes .................................................................... 478 18. Identificação e caracterização de uma estrutura seiscentista: O Baluarte do Terreiro do Paço César Neves, Andrea Martins, Gonçalo Lopes .............................................. 496 19. A rampa dos escaleres reais da Cordoaria Nacional: primeiros sinais do fim do Império Mónica Ponce, Marta Lacasta Macedo, Alexandre Sarrazola, Teresa Alves de Freitas ........................................................................ 510
Lista de Abreviaturas .................................................................... 516 Autores ......................................................................................... 517 Participantes ............................................................................... 518
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Prefácio
Arqueologia de Lisboa
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isboa é uma cidade construída a partir das muitas identidades e práticas dos povos que a habitaram, tendo sido ao longo dos tempos um ponto de encontro de diferentes culturas, fruto de uma localização geoestratégica privilegiada, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, onde se abre um vasto e fértil estuário que confere a este território caraterísticas únicas, propícias à existência humana e à sua evolução nas mais diversas dimensões, de identidade vincadamente marítima e comercial. É através da atividade arqueológica, hoje plenamente integrada nos procedimentos urbanísticos municipais, que se vai conhecendo e tornando acessível a todos nós esse passado rico e ancestral. A cidade vive atualmente um extraordinário momento de renovação que dá diariamente origem às dezenas de trabalhos em curso. Em 2014, foi registado o valor mais elevado de autorizações para trabalhos arqueológicos desde a constituição do Plano Diretor Municipal, em 1994: 245 pedidos. Toda esta dinâmica traduz-se, natural e desejavelmente, num acentuado acréscimo de informações acerca do espaço geográfico que a cidade ocupa, acompanhado por um cada vez maior número de vestígios materiais, estruturais e artefactuais, que vão enriquecendo o conhecimento e o património de Lisboa. A aceleração da atividade arqueológica que testemunhamos em Lisboa, acompanhada e apoiada de perto pelo CAL – Centro de Arqueologia de Lisboa, tal como a entusiasmante, e quase diária, descoberta de novas informações, de novos espólios e de outros vestígios do passado, constitui um permanente desafio para as entidades, para os cidadãos e em particular para os diferentes agentes profissionais, arqueólogos, urbanistas, arquitetos, entre outros. Torna-se, por isso, cada vez mais importante e necessária a criação de espaços como este Encontro de Arqueologia de Lisboa, entendido como meio de divulgação, debate e de partilha deste notável conhecimento adquirido sobre a cidade. Agradeço a todos quantos nele participaram, fazendo votos para que prossigam com entusiasmo o seu trabalho e nos proporcionem novos Encontros como este.
Catarina Vaz Pinto Vereadora do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa
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Introdução
Arqueologia de Lisboa
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o Primeiro Encontro de Arqueologia de Lisboa, uma iniciativa do CAL – Centro de Arqueologia de Lisboa (Direção Municipal de Cultura/Câmara Municipal de Lisboa), resultaram as atas aqui publicadas e que, espera-se, sejam um primeiro passo no trabalho de reflexão, diálogo e partilha face à atividade arqueológica desenvolvida na cidade. O CAL foi inaugurado em 2013, tendo surgido em 2004 como ideia-modelo para uma resposta contemporânea do município à importância que o património assume hoje no território de Lisboa. Com a sua criação pretendia-se constituir um centro de recursos que, por um lado, procurasse soluções e, por outro, potenciasse valências, dirigidas não só à estrutura administrativa interna da Câmara Municipal de Lisboa mas sobretudo à restante comunidade, com particular ênfase nos arqueólogos. Pretendeu-se também que o CAL fosse o espaço de encontro que hoje é. As profundas transformações que a praxis arqueológica sofreu em Lisboa nas duas últimas décadas ampliaram de maneira significativa o número de agentes, promotores e arqueólogos que intervêm na cidade, como intensificaram altamente o número de acções (entre 1994, data da primeira versão do Plano Diretor Municipal, e 2014 foram registadas 1903 intervenções arqueológicas no subsolo de Lisboa). Esta multiplicação da atividade, necessariamente fragmentária, requereu, também ela, respostas congregadoras condicentes da parte do CAL. Os presentes Encontros de Arqueologia de Lisboa foram entendidos como instrumentais neste sentido, constituindo um veículo comunicacional de partilha e de reunião, dirigido a um público diversificado. Mas, se a praxis em Lisboa se modificou nos seus atores, também se alargou quanto às suas áreas temáticas. O esforço colocado pela equipa de técnicos municipais envolvidos na revisão do Plano Diretor Municipal, desenvolvido com o envolvimento de outros colegas com diversos enquadramentos e competências, procurou consagrar no texto atual aspetos da riqueza patrimonial e científica de Lisboa não considerados antes, como os domínios da Arqueologia Industrial, Náutica, Militar ou Viária, entendidos como componentes fundamentais para as leituras arqueológicas da cidade e do seu território atual, recursos a valorizar. Foi por esta razão que nos presentes Encontros se sugeriram três áreas temáticas, indo à procura dos resultados científicos e patrimoniais da aplicação do Plano: «A Ocupação do Território no Município de Lisboa», «A Cidade Manufatureira e Industrial» e «A Arqueologia dos Espaços, a Identidade e Fisionomia da Cidade».
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I Encontro
A resposta por parte dos arqueólogos superou francamente as expetativas. O número de propostas forçou o alargamento do tempo disponível para as apresentações e o esforço inclusivo da organização refletiu-se quer no curto painel de palestrantes convidados, e na diversidade dos seus enquadramentos institucionais, quer na franca liberdade concedida às matérias e conteúdos a trazer a público. Por esta razão, a organização das comunicações que aqui se transcrevem foi uma tarefa complicada para a Comissão Executiva desta primeira edição dos Encontros. Apesar disso, ou porventura por isso mesmo, conseguiu-se reunir um conjunto de informações sobre Lisboa, na sua maioria inéditas, divulgando desconhecidas ocupações do passado do território, disponibilizando elementos de culturas materiais pretéritas e leituras de síntese inovadoras, resultantes dos projetos em curso ou do labor dos investigadores que trabalham a cidade. Com a publicação destas atas pretende-se dar início a uma nova rotina de divulgação arqueológica, que irá promover a partilha e a divulgação dessa imensa e preciosa informação que é exumada do chão da cidade. Publicá-las é colocar esta nova informação à disposição da cidade, permitindo que os profissionais, mas também os cidadãos satisfaçam a sua insaciável curiosidade. Esta publicação possibilitará, acredita-se, que os profissionais das áreas patrimoniais e educativas criem novos discursos de promoção e divulgação do vasto património que a cidade disponibiliza, sustentados nos resultados que se publicam de forma científica e credível. A cidade contemporânea, alicerçada nas práticas de milhares e milhares de anos, renovando-se permanentemente, reconstruindo-se sempre que necessário, em torno da sua identidade e da sua integridade. São as memórias que permanecem no subsolo de Lisboa que se pretendem recuperar e homenagear, devolvendo-as ao tempo presente.
A Comissão Executiva
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Arqueologia de Lisboa
Comissão
Câmara Municipal de Lisboa Pelouro da Cultura \ Catarina Vaz Pinto Direção Municipal de Cultura \ Manuel Veiga Departamento de Património Cultural \ Jorge Ramos de Carvalho Centro de Arqueologia de Cultura \ António Marques
Comissão Científica Ana Isabel de Sá Caessa Ana Margarida Arruda André Teixeira Carlos Fabião Catarina Coelho Guilherme Cardoso Helena Catarino João Luís Cardoso Jorge Custódio Rodrigo Banha da Silva Comissão Executiva Jorge Ramos de Carvalho António Marques Cristina Nozes Isabel Cameira Rodrigo Banha da Silva Sandra Marques
Agradecimentos Centro de Arqueologia de Lisboa Ana Sofia Antunes Anabela Caetano Carlos Vasques Eva Leitão Marina Carvalhinhos Nuno Mota Gabinete de Estudos Olisiponenses Anabela Valente Ana Filipa Leite João Rodrigues Departamento de Desenvolvimento e Formação Amélia Augusto Isabel Caetano Luísa Dornellas Teatro Aberto Célia Caeiro
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1.
A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE LISBOA
1. A Arqueologia do sítio de Lisboa: um (novo) balanço crítico, vinte e um anos depois Carlos Fabião
2. O sítio neo-calcolítico da Travessa das Dores (Ajuda-Lisboa) Nuno Neto, Paulo Rebelo, João Luís Cardoso
3. Um sítio da Pré-História Recente em Pedrouços (Belém, Lisboa) Anabela Castro, Victor Filipe, João Paulo Barbosa
4. Resultados preliminares da Presença Pré-Romana no Pátio José Pedreira (Rua do Recolhimento/Beco do Leão, Lisboa) Anabela Joaquinito
5. Louça “de fora” em Carnide (1550-1650). Estudo do consumo de cerâmica importada Tânia Manuel Casimiro, Carlos Boavida, Ana Margarida Moço
A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE LISBOA
Resumo:
Em 1994, no âmbito da Capital Europeia da Cultura, ensaiei uma abordagem à história da Arqueologia do sítio de Lisboa, identificando então o que me pareciam ser as principais etapas da história da atividade e os principais constrangimentos e bloqueios. Vinte e um anos passados, a atividade arqueológica mudou muito, bem como o seu quadro legal e institucional. A Arqueologia do sítio de Lisboa cresceu exponencialmente, como cresceu também a sua visibilidade pública e os desafios que a dinâmica da cidade lhe impôs. Ensaia-se agora um novo balanço crítico da Arqueologia do sítio de Lisboa nos últimos vinte e um anos, identificando o que me parecem ser os seus principais problemas: uma ação mais reativa do que preditiva, com evidentes consequências / danos patrimoniais; uma excessiva fragmentação dos agentes de intervenção, sem uma efetiva coordenação e centralização da informação; uma evidente dificuldade em inscrever os seus resultados na renovação do conhecimento histórico da urbe; uma notória incapacidade para potenciar os bens patrimoniais gerados pelas distintas intervenções. A cidade multicultural e trimilenária, ponto de cruzamento entre Mediterrâneo e Atlântico, porta de saída da Europa para o mundo e de entrada do mundo na Europa, que a atividade arqueológica reiteradamente identifica, não se inscreve de todo no “bilhete-postal” de Lisboa. PALAVRAS-CHAVE:
Lisboa, Arqueologia, História, Herança Cultural.
ABSTRACT:
In 1994 I published a critical survey on the history of Lisbon’s archaeology, in the context of Lisbon’s European Cultural Capital. In that essay I have commented on the major historic landmarks on Lisbon’s archaeology but also in its major present constrains. Twenty one years after, the archaeological activity has change a lot as its legal and institutional framework. Lisbon’s archaeology has grown exponentially but also has grown its public visibility and the challenges posed by the urban dynamics. The present communication essays a new critical survey on the last twenty one years of Lisbon’s archaeology, commenting on its main problems: more reaction than predictive action, with heritage damages and losses; too much agents acting but no central coordination and information control; a clear difficulty on passing the fresh new data for the general historical discourse on Lisbon; a notorious incapacity to deal with the archaeological remains and use them as actual historical heritage. The multicultural town with its three thousand years of existence, cross path between Atlantic and Mediterranean, gate of Europe to the rest of the world and entrance of the world into Europe that archaeological activity constantly shows is not part of Lisbon’s postcard. Key words:
Lisbon, Archaeology, History, Cultural Heritage.
Lisboa. Vista da zona ribeirinha
1.1 A Arqueologia do sítio de Lisboa: um (novo) balanço crítico, vinte e um anos depois
Carlos Fabião
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / Centro de Arqueologia (Uniarq) cfabiao@campus.ul.pt
1. Prólogo Em 1994, no âmbito da Capital Europeia da Cultura, ensaiei uma abordagem à história da Arqueologia do sítio de Lisboa, identificando então o que me pareciam ser as principais etapas da história da atividade e os principais constrangimentos e bloqueios (Fabião, 1994) - para não sobrecarregar de referências o presente texto, remeto o autor interessado para as notas do artigo citado. Na ocasião, assinalei como principais etapas identificáveis, aquilo a que se poderá chamar uma “pré-história” da investigação, associada às observações de Humanistas, desde o século XVI, que valorizaram quase sempre epígrafes, com a assinalável novidade de, com Francisco de Holanda, se reconhecer e documentar uma importante estrutura de época romana, a barragem de Belas e o cano de condução de água até à cidade (Hollanda, [1571, 1984]). Este panorama não se alterou substancialmente até ao século XVIII. O desconhecimento de estruturas monumentais da cidade romana explica-se pelo seu efetivo ocultamento, resultante da combinação entre a significativa atividade sísmica da cidade, que contribuiu sem dúvida para substanciais destruições do edificado, associado à continuidade da ocupação humana no local, sempre com funções urbanas, reciclando e ocultando o que poderiam ser os vestígios materiais dessas realidades. Nos inícios do século XVIII, com a publicação do Alvará Régio de 13 de Agosto de 1721, a primeira legislação genérica de proteção daquilo a que hoje chamaríamos o património arqueológico, podemos identificar uma outra constante: a existência de quadros legais de proteção que simplesmente não são aplicados, nem protegem, de facto, o dito património. Recorde-se que se garantia na letra do Alvará que: “(…) nenhuma pessoa (…) desfaça, ou destrua em todo, nem em parte qualquer edifício, que mostre ser daquelles tempos [dos romanos, godos, e
arabios] ainda que em parte esteja arruinado (…) que mostrem ser daquelles tempos, nem dos inferiores até ao reinado do Senhor Rey D. Sebastião”. E se explicava também por que razão deveria esse património ser protegido: “por incuria e ignorancia do vulgo se tinhão consumido perdendo-se por este modo hum meyo muy proprio, e adequado para verificar muitas noticias da veneravel antiguidade, assim sagrada como politica, e que seria muy conveniente a luz da verdade, e conhecimento dos seculos passados, que no que restava de semelhantes memorias, e das que o tempo descobrisse, se evitasse esse damno”; mas também por: “(…) em que pode ser muito interessada a gloria da Nação Portuguesa (…) desejando eu contribuir com o meu poder para impedir hum prejuizo tão sensível e tão damnoso à reputação, e gloria da antiga Lusitania, cujo dominio e sobreania foy Deus servido darme”. Por outras palavras, foi por se pretender travar um acelerado processo de destruição e por se considerar que era do interesse nacional a sua conservação, particularmente no que diz respeito à defesa da memória de uma sociedade (e não deixa de ser interessante verificar o conceito de continuidade histórica, desde a antiga Lusitânia ao reino de Portugal), que foi produzido o documento legal. Hoje, não faltaria o clamor contra o “fundamentalismo patrimonialista” do espírito e letra do Alvará. Identifiquei uma nova etapa associada à reconstrução da cidade de Lisboa, depois do terramoto de 1755, onde, apesar da legislação existente, não se verificou qualquer iniciativa real de protecção dos vestígios estruturais observados e mesmo os elementos móveis somente a duras penas puderam ser parcialmente resgatados, quase sempre com escasso êxito, e em plano a que chamaríamos hoje de “conservação pelo registo”. Recorde-se as limitações impostas ao registo dos vestígios das chamadas “termas dos Cássios”, evocada
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Carlos Fabião
pela carta de Manoel Royz Maya (Maya, 1776) ou as frustradas iniciativas de Frei Manoel do Cenáculo Villas Boas de salvaguarda das epígrafes latinas que foram sendo identificadas nas obras de reconstrução da cidade ou ainda a tentativa de conservação in situ do teatro romano, por iniciativa de Francisco Fabri, que evocou justamente o Alvará de 1721 para a sua promoção. Dir-se-á que os tempos não estavam favoráveis à conservação da memória histórica, visto que havia toda uma cidade para reconstruir e os tempos não corriam de feição para memorialismos, numa sociedade sedenta de “renascer das cinzas” da grande catástrofe. Mas recorde-se que já antes, quando não estava em causa o resgate de uma cidade destruída, aquela legislação foi aplicada somente de um modo muito peculiar à “fabrica romana grande e majestosa”, identificada no lado norte do largo da Madalena, a fazer fé na carta de Thomaz Caetano de Bem (Bem, 1755). O edifício construiu-se, ocultando no todo o complexo romano, ficando somente embutidas em uma parede externa algumas epígrafes latinas encontradas. Refira-se que as ditas ainda ali se conservam, sem qualquer proteção ou sinalética, apesar de estarem classificadas como Monumento Nacional, desde 1910. Ainda sobre a legislação, recorde-se que, no essencial, o conteúdo do Alvará da Real Academia da Historia Portugueza, de 1721, foi de novo vertido no Alvará de 4 de Fevereiro de 1802, somente passando para o Bibliotecário da Real Biblioteca o que anteriormente era competência da Academia, entretanto extinta, sem que se verificasse um efetivo ganho de eficácia. Recorde-se que foi já sob a égide desta legislação que se realizou o reconhecimento/registo do criptopórtico da Rua da Prata/Rua da Conceição, em 1856, pelo bibliotecário Francisco Martins de Andrade, coadjuvado pelo desenhador José Valentim de Freitas. Mas não se pode de modo algum dizer que esta fosse uma entre outras intervenções de acompanhamento e registo dos vestígios arqueológicos do subsolo de Lisboa. A natural conclusão que podemos extrair das práticas de relacionamento entre os diversos agentes que intervinham na cidade e a preservação ou valorização do seu património histórico é relativamente simples e clara, ainda que lastimável: apesar de existir legislação adequada, garantindo a salvaguarda de patrimónios móveis e imóveis a real proteção / conservação não se verificou. Os tempos que se seguiram, não foram melhores. Identifiquei, seguidamente, uma nova etapa, a do crescimento urbano da cidade, entre o século XIX e o XX, que terá implicado perdas significativas para o estudo das áreas suburbanas e periurbanas das cidades de Lisboa. Quando o crescimento da cidade se fez para fora dos perímetros urbanos históricos, afetando toda a malha do povoamento secundário envolvente. Assinale-se que, no chamado centro histórico as coisas não melhoraram, embora seja de registar dentro deste período dois marcos essenciais: a obra de Augusto Vieira da Silva, referência incontornável e ainda não superada dos estudos da cidade de Lisboa, particularmente o reconhecimento da topografia urbana da cidade ao longo do tempo; e, sublinhe-se, a primeira grande intervenção de arqueologia urbana em Portugal: a escavação e salvaguarda dos
18 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
vestígios arqueológicos da Praça da Figueira, por Irisalva Moita (Moita, 1964-1966) e, depois, Bandeira Ferreira. Tratou-se, contudo, uma vez mais, de ação pontual, sem paralelo ou continuidade. No subsolo da Praça da Figueira conservavam-se os vestígios do Real Hospital de Todos-os-Santos, que Damião de Góis, no seu tempo, classificou como uma das sete maravilhas da cidade (Góis, [1554, 1988]). Contudo, o que restava do edifício, substancialmente destruído pela catástrofe de 1755, mereceu da Junta Nacional de Educação o seguinte parecer de 9/9/1960: “nem as ruínas nem os móveis nelas encontrados merecem classificação (…) convirá á Câmara Municipal recolher, não só os móveis, mas todos os fragmentos de valor arqueológico integrados nas ruínas; à Junta Nacional de Educação, documentar convenientemente o processo relativo às mesmas ruínas”. Naturalmente, a Câmara Municipal agiu em conformidade e recolheu um abundante acervo de cantarias, elementos arquitetónicos e artefactos e a obra prosseguiu. Quando mais tarde se identificou a necrópole romana sob as ruínas do antigo Hospital as coisas não correram melhor, valendo o esforço e dedicação de Irisalva Moita para minorar os estragos, para melhor se perceber o que se passou, remeto para a publicação que a própria realizou, em tempo útil, pouco depois de ser afastada do acompanhamento (Moita, 1968). Ironicamente, a notícia das recolhas da ilustre olisipógrafa constituiu a única publicação realizada sobre a necrópole na época da sua primeira escavação, tendo permanecido inédito o registo da intervenção “programada” que se seguiu. De registar ainda, no final da década de 30 do século XX, a grande intervenção na alcáçova medieval da cidade, com a recuperação do chamado castelo de S. Jorge. A intervenção propriamente dita, brutal no seu impacte, e sem acompanhamento arqueológico digno desse nome, como hoje diríamos, (apesar da colaboração de Vieira da Silva e de G. Matos Sequeira, em moldes que se não conseguem perceber com clareza) decorreu entre 1935 e 1940. Foram demolidos os edifícios e removidos cerca de 120 000 metros cúbicos de entulho (assim definido), acções que a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais orgulhosamente enumerou nas páginas do seu Boletim (DGEMN,1941). Esta intervenção acabou por ter duas grandes virtudes. Por um lado, dotou a cidade de um espaço histórico da maior relevância, basta pensar o que seria de Lisboa se tivesse prevalecido alguma das outras soluções urbanísticas que foram sendo propostas para a colina (a febre hoteleira não é só de hoje). Por outro, criou um importante espaço de “reserva arqueológica” de enorme potencialidade para o estudo das ocupações humanas da maior e mais antiga colina com ocupação humana da atual área urbana, como os mais recentes trabalhos vieram demonstrar. Foi este o balanço realizado nas vésperas da grande exposição Lisboa Subterrânea, cientificamente comissariada por Ana Margarida Arruda, no Museu Nacional de Arqueologia, que constituiu um bom momento de síntese, infelizmente sem continuidade, nas práticas de relacionamento entre os arqueólogos e a cidade (VV AA, 1994). Faltava a grande viragem da Arqueologia portuguesa, que só chegou com a descoberta da Arte do Côa.
A Arqueologia do sítio de Lisboa: um (novo) balanço crítico, vinte e um anos depois
2. Dificuldades que tem um reino velho para emendar-se, com a devida vénia a António Ribeiro Sanches. Vinte e um anos passados, a atividade arqueológica mudou muito, bem como o seu quadro legal e institucional. Pode dizer-se que, como frequentemente tem sucedido nos últimos anos, a mudança resultou menos de iniciativa própria (entenda-se, nacional) que de pressão exercida pela aprovação de diretivas internacionais, o que para o caso não será de todo irrelevante, conhecidas que são as inércias próprias da sociedade portuguesa. Creio que boa parte do novo quadro legal e do seu impacte nas práticas arqueológicas decorreu da Resolução da Assembleia da República nº 71/97, que aprovou, para ratificação, a Convenção Europeia para a Proteção do Património Arqueológico (revista), que fora aberta à assinatura em La Valetta, Malta, em 16 de Janeiro de 1992 - Diário da República, I Série A, Nº 289, de 1612-1997. Assim, com cinco anos de atraso, o consenso internacional sobre proteção e salvaguarda do património arqueológico foi vertida para o quadro legal nacional e principiou a ter consequências nas práticas correntes dos diferentes agentes que intervêm no subsolo. Importante será ter presente (ou nunca esquecer) o valor do património arqueológico e o que justifica a sua proteção, definida no Artigo 1º da Convenção: A presente Convenção (revista) tem por objetivo a proteção do património arqueológico enquanto fonte da memória coletiva europeia e instrumento de estudo histórico e científico. Sublinho dois aspetos que me parecem particularmente relevantes: a noção de que o património é europeu e não nacional, o que é para todos os efeitos importante, por permitir ultrapassar uma ideia excessivamente nacional/local anteriormente prevalecente, limitando e responsabilizando as autoridades locais e nacionais por aquilo que poderá ser considerado um dano maior para a memória coletiva europeia. Importante é sublinhar também a noção de que esse património é instrumento de estudo histórico e científico, ou seja, que o seu valor se consubstancia na criação de conhecimento sobre as sociedades do passado, o que me parece igualmente relevante e, em si mesmo, algo contraditório com a prática de realizar escavações arqueológicas que terminam na produção de um relatório preliminar que só com excessiva tolerância se poderá considerar uma peça de estudo histórico e científico – pessoalmente, diria que estes (estudo histórico e científico) começarão justamente depois da produção do relatório. É importante, porém, não perder de vista a essencial tónica colocada na produção de conhecimento histórico, uma vez que as dimensões patrimoniais ou a utilização dos vestígios materiais como elementos de promoção de turismo cultural podem fazer perder de vista aquilo que verdadeiramente importa em qualquer intervenção arqueológica. Infelizmente, são várias as evidentes discrepâncias entre o espírito e letra da Convenção e as práticas correntes na arqueologia portuguesa e Lisboa não constitui exceção. Tome-se o exemplo do enunciado no Artigo 5º [Conservação integrada do património arqueológico]. No número 1, define-se o compromisso de “procurar conciliar e articular as necessidades respetivamente da arqueologia
e do ordenamento do território, garantindo, assim, aos arqueólogos a possibilidade de participarem: i) Nas políticas de planeamento que visem estabelecer estratégias equilibradas de proteção, de conservação e valorização dos locais que apresentem interesse arqueológico; ii) No desenvolvimento das diferentes fases dos programas de ordenamento. Logo reforçado no número 2 assumindose a intenção de “assegurar uma consulta sistemática entre arqueólogos, urbanistas e técnicos do ordenamento do território, de modo a permitir: i) A modificação dos planos de ordenamento suscetíveis de alterarem o património arqueológico; ii) A atribuição de tempo e de meios suficientes para efetuar um estudo científico conveniente do sítio arqueológico, com publicação dos resultados”. Creio que não será necessário sublinhar o quanto as práticas de intervenção em obras de reabilitação urbana ou de novos empreendimentos andam longe do enunciado. Não consta que aqui em Lisboa os arqueólogos sejam chamados a participar nas políticas de planeamento ou nas distintas fases dos programas de ordenamento urbano. Creio faltar essa fundamental interação de arqueólogos com quem se encarrega de planear e executar as intervenções na cidade, com evidente prejuízo para o património arqueológico, quase sempre somente considerado na fase de execução, em plano de minimização de impactes. Quanto à atribuição do tempo e meios necessários para um estudo conveniente dos locais e publicação de resultados, creio que será unânime a opinião de que simplesmente não se cumpre ou se cumpre em registo de serviços mínimos, as tais intervenções de escavação que terminam na produção de um relatório que, devendo ser público, se conserva sob incompreensíveis limitações e reservas de acesso. Não deixa de ser também irónico, em face das práticas correntes, o enunciado do Artigo 4), que visa “Prever, se exequível, a conservação in situ de elementos do património arqueológico que tenham sido encontrados na sequência de obras”. Naturalmente, não é aceitável pensar na constante e sistemática conservação in situ de todos os vestígios arqueológicos do subsolo lisboeta. Se tal acontecesse, tornar-se-ia impossível viver na cidade, com a absurda situação de termos o peso do passado esmagando literalmente as vivências presentes; e a própria Convenção introduz o princípio da conservação pelo registo, um conceito em absoluta coerência com o enunciado no artigo primeiro. De facto, a relevância histórica do património arqueológico justifica sempre o seu estudo, independentemente do destino final dos elementos imóveis que se venham a encontrar. Contudo, parece manifestamente exagerado que não se equacione sempre à partida a possibilidade de salvaguarda de testemunhos materiais do passado, principalmente quando se trata de uma cidade trimilenária como Lisboa e já com um suficiente conhecimento acumulado das realidades de subsolo que possibilitem alguns comportamentos preditivos e não somente reativos. Como popularmente se diria, nem tanto ao mar, nem tanto à terra: nem supor que tudo se pode ou deve conservar, nem partir da premissa de que tudo o que venha a aparecer se deverá somente conservar pelo registo. Há valores e referências, a memória de certos lugares, que devem ser consideradas em fase de projeto de
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intervenção e não somente quando o dito já se encontra desenhado. No fundo, trata-se somente de respeitar, com um mínimo de critério e bom senso, o espírito e letra do Artigo 5 da Convenção. Um outro ponto mais que me parece relevante é o enunciado no Artigo 9º [Promoção da consciência pública]. Na Convenção, “as Partes comprometem-se: a empreender ações educativas com o objetivo de despertar e desenvolver junto da opinião pública a consciência do valor do património arqueológico para uma melhor compreensão do passado e dos perigos que ameaçam este património; 2) A promover o acesso do público a testemunhos importantes do seu património arqueológico, nomeadamente dos sítios, e a encorajar a exposição pública de objetos arqueológicos selecionados”. Neste domínio, diria, quase nada se tem feito e quase nada se faz. A população em geral desconhece em absoluto o que se passa por detrás dos tapumes de obras onde trabalham os arqueólogos e não existe uma política sistemática de informação e sensibilização dos habitantes da cidade no sentido de lhes demonstrar que o património arqueológico local é coisa sua. Simplesmente, a Arqueologia não se inscreve na vida da cidade e, pior ainda, não se inscreve no conhecimento da cidade. É lamentável que após décadas de boa investigação arqueológica e histórica sobre Lisboa se tenha autorizado a produção desse aberrante equipamento que dá pelo nome de Lisbon Story Centre, supostamente dedicado à memória da cidade, onde nem o uso do termo story em lugar de history justifica o rol de dislates narrados, tudo enroupado em uma museografia deplorável. Com estes breves apontamentos quero salientar que não é seguramente por falta de um quadro legal adequado que a arqueologia da cidade de Lisboa não deu ainda o seu “salto qualitativo”. Sem dúvida que cresceram significativamente os recursos humanos e se multiplicaram os agentes que intervêm na arqueologia urbana e que esse crescimento tem sido contínuo e regular, como bem se demonstra no trabalho realizado por Jacinta Bugalhão (Bugalhão, 2014), mas se a maioria dos trabalhos realizados são acompanhamentos de obras, como se pode esperar que esta arqueologia resulte da conciliação e articulação das suas necessidades com o ordenamento urbano? Ou da participação nas políticas de planeamento que visem estabelecer estratégias equilibradas de proteção, de conservação e valorização do património arqueológico? O carácter minimal que por norma assumem estas ações de acompanhamento dificilmente se poderá enquadrar na noção de tempo e meios suficientes para efetuar um estudo científico conveniente do sítio arqueológico, com publicação dos resultados. De igual modo, não se vislumbra como possam compaginar-se com a previsão de alguma conservação in situ de elementos do património arqueológico que tenham sido ou venham a ser encontrados na sequência de obras. Conclusão: hoje como nos tempos da Real Academia Joanina não falta um quadro legal sólido e coerente para a salvaguarda do património arqueológico, o que de facto falta é que a letra e espírito da lei se inscrevam nas práticas correntes de intervenção urbana. Verifica-se um aumento exponencial de intervenções arqueológicas, mas que não tem sido acompanhado pelas respetivas
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publicações detalhadas de resultados que enriqueçam o conhecimento sobre as ocupações humanas do sítio de Lisboa. Por outro lado, mantêm-se o desconhecimento dos cidadãos sobre o contributo que estas intervenções arqueológicas podem trazer para um melhor conhecimento do passado da sua cidade. Reconheça-se que, ainda assim, há boas iniciativas de investigação, divulgação e conservação, como é o caso do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC); do Castelo de S. Jorge, a mostrar que Lisboa não é somente a cidade romana/medieval/moderna, mas também aglomerado pré-romano ou cidade islâmica, com restos do urbanismo islâmico conservados na área da Alcáçova/Praça Nova, do novo arranjo da Casa dos Bicos ou ainda do circuito da Cerca Velha, infelizmente “afogado” no ruído visual de sinalética urbana. Há outros interessantes apontamentos como o da conservação de vestígios anteriores ao terramoto de 1755 na casa de banho pública do Largo Augusto Rosa, ou o caso do parque de estacionamento da Praça D. Luís, onde haverá a lamentar que se exponham somente réplicas de artefactos arqueológicos… Será isso: promover o acesso do público a testemunhos importantes do seu património arqueológico e um encorajar da exposição pública de objetos arqueológicos selecionados, como prevê a Convenção no nº 2 do seu Artigo 9º? Contudo, ao lado dos bons exemplos, subsistem verdadeiras “nódoas”, incompreensíveis sob todos os pontos de vista: como o que resta das chamadas “termas dos Cássios”; as epígrafes do edifico do Largo da Madalena/ Pedras Negras, classificadas como Monumento Nacional desde 1910, sem qualquer medida de conservação/ proteção e sem sinalética ou informação; ou ainda o claustro da Sé, porventura o mais lamentável exemplo de que se não cumpre a “garantia de que: os testemunhos do património arqueológico não (…) permaneçam abandonados durante ou depois das escavações sem que se tomem medidas que visem a sua preservação, conservação e gestão adequadas (Artigo 3º da Convenção). A atávica persistência de práticas tão incorretas quanto antigas e a não inscrição do património arqueológico na paisagem urbana constituem as principais razões pelas quais o título de uma conhecida obra do “estrangeirado” Ribeiro Sanches me pareceu adequado para servir de epígrafe a estas considerações. Foi também por esta razão que abracei a proposta que o Gabinete de Estudos Olisiponenses me fez de organizar e coordenar um caderno sobre a arqueologia urbana de Lisboa, na sua revista digital, a propósito do primeiro aniversário do Centro de Arqueologia de Lisboa (CAL) (Fabião, 2015). Não tenho dúvidas de que esta instituição poderá ser o organismo que faltava à arqueologia de Lisboa. Assim tenha meios e possibilidades de cumprir as suas funções. 3. Ensaio de uma História do Futuro, com a devida vénia ao Padre António Vieira Em plano prospetivo e espero que não tão utópico como o do jesuíta que escolho para epígrafe do epílogo deste texto, julgo que se impõe proceder a um conjunto de modificações nas práticas da arqueologia urbana de
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Lisboa, que não são particularmente difíceis ou sequer complexas. A vantagem é que não será necessário criar ou legislar nada de novo. Já tudo existe, falta somente aplicar, ou seja, tornar prática corrente os Artigos 5º e 9º da convenção de Malta, acima referidos, tanto no domínio da conservação integrada do património arqueológico, como na promoção da consciência pública para a riqueza e valor desse mesmo património. Naturalmente, em correta articulação com as múltiplas intervenções arqueológicas que constantemente acontecem no espaço urbano. Para que tal se possa fazer de um modo articulado, deixo aqui um par de sugestões, já apresentadas em anterior sessão pública promovida pelo CAL. Uniformizar critérios de registo de terreno, para potenciar a comparabilidade dos dados resultantes de diferentes intervenções e empreender a boa gestão da informação, devidamente articulada e publicamente disponível. Se há vestígios arqueológicos relevantes identificados em determinada parcela urbana, é justo que operadores imobiliários, serviços públicos ou simplesmente arqueólogos saibam com o que podem contar se forem chamados ou decidirem intervir em outra parcela contígua ou próxima. Em face da informação acumulada, realizar um ensaio de síntese de topografia urbana histórica, que permita orientar cadernos de encargos e prever a dimensão e magnitude dos impactes sobre o património arqueológico. Com todas as sondagens geotécnicas realizadas pela cidade nos últimos anos, será possível compilar essa informação e produzir cartografia sobre o subsolo urbano, para juntar ao conjunto de utilíssimos instrumentos cartográficos disponibilizados em linha e em acesso livre pela Câmara Municipal de Lisboa: http://dadosabertos.cm-lisboa.pt/en/dataset/cartografia-historica-de-lisboa http://lxi.cm-lisboa.pt/ Sendo Lisboa historicamente uma cidade marítima, que foi crescendo sobre as antigas frentes ribeirinhas aterradas, previsivelmente haverá grandes acumulações de lixos portuários, do maior interesse para o conhecimento das dinâmicas de interação da cidade com outros espaços e territórios. Seria importante ter em especial atenção essas áreas sensíveis. Por exemplo, vamos tendo já uma ideia sobre a frente ribeirinha de época romana e os seus lixos de porto e de fundeadouros, pelas intervenções realizadas na Praça do Município, na Avenida da Ribeira das Naus, no Largo de D. Luís I ou no edifício do Museu do Dinheiro, do Banco de Portugal. Sabemos que são expectáveis os depósitos romanos entre as cotas de -3.50/4 m (Marques, Sabrosa, Santos,1997; Parreira, Macedo, 2013). Seriam estas ações preditivas que deveriam orientar futuros cadernos de encargos de obras a realizar nas antigas áreas ribeirinhas da cidade. Neste momento, naturalmente, uma pergunta se colocará: onde encontrar os recursos financeiros para operar o “salto qualitativo” da arqueologia do sítio de Lisboa que aqui proponho? A resposta parece-me óbvia. Sendo o Turismo a principal atividade económica da cidade e sendo o seu património cultural um relevante recurso endóge-
no, há que estabelecer as necessárias pontes para juntar estas duas dimensões e envolver diretamente os operadores turísticos no financiamento às intervenções arqueológicas. Por outro lado, sabe-se que em boa medida a exploração turística dessa riqueza patrimonial é autossustentável e mesmo rendível, veja-se o caso do Castelo de S. Jorge ou a afluência anual ao criptopórtico da Baixa onde, incompreensivelmente, nem sequer um bilhete, de custo simbólico que fosse, se cobra. Diria mesmo que, quanto mais crescer o turismo mais se impõe a boa construção e preservação da memória histórica da cidade, que constitui uma importante mais-valia identitária, contra a tradicional massificação dita de gosto internacional que os grandes centros turísticos tendem a promover. Em uma palavra, inscrever nitidamente na História de Lisboa toda a nova informação relevante decorrente das intervenções arqueológicas, porque estamos a lidar com uma cidade multicultural e trimilenária, ponto de cruzamento entre Mediterrâneo e Atlântico, porta de saída da Europa para o mundo e de entrada do mundo na Europa, que a atividade arqueológica identifica e expõe, mas que o visitante tem dificuldade em identificar e menos ainda em encontrar um lugar que lhe apresente esta essencial dimensão da identidade lisboeta. Informação, equipas e meios financeiros não faltam, só falta mesmo fazer. Termino com uma ideia: realizar anualmente um Encontro de Arqueologia de Lisboa onde se possam expor e debater os progressos anuais da investigação, como durante vários anos se promoveu em Silves sobre a arqueologia do Algarve, com assinalável êxito.
Bibliografia BEM, T. C. (1755): Carta do Padre D. Thomaz Caetano de Bem, Clerigo Regular, a hum seu amigo Ácerca de huns monumentos romanos descobertos no sitio das Pedras Negras. Apêndice à obra de OLIVEIRA, Christovam Rodrigues de, Summario, em que brevemente se contem algumas cousas assim Ecclesiasticas, como Seculares, que há na Cidade de Lisboa, 2ª edição, Lisboa, Oficina de Manuel Rodrigues, pp. 153-177. DGEMN (1941): Castelo de S. Jorge. In Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 25 / 26, Lisboa, Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. FABIÃO, C. (1994): Ler as Cidades Antigas: Arqueologia Urbana de Lisboa. Penélope – fazer e desfazer a história, 13, Lisboa, pp. 147-162. GÓIS, D. [1554, 1988]: Descrição da Cidade de Lisboa, tradução de Urbis Olisiponis Descriptio (Évora, 1554). Edição de Felicidade Alves, J., Lisboa, Livros Horizonte. D’HOLLANDA, F. [1571, 1984]: Da Fabrica Que Falece á Cidade de Lisboa (manuscrito de 1571, que permaneceu inédito até 1879). Edição de Felicidade Alves, J., Lisboa, Livros Horizonte. MARQUES, J. A.; SABROSA, V.; SANTOS, V. (1997): Estrato romano da avenida Ribeira das Naus (Lisboa). Al-madan, II série, 6, Almada, Centro de Arqueologia de Almada, pp. 166-167.
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MOITA, I. (1964-1966): Hospital Real de Todos-os-Santos. Relatório das escavações a que mandou proceder a Câmara Municipal de Lisboa de 22 de Agosto a 24 de Setembro de 1960. Revista Municipal, 101-111, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa. MOITA, I. (1968): Achados de época romana no subsolo de Lisboa. Revista Municipal, 116-117, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, pp. 33-71. PARREIRA, J.; MACEDO, M. (2013): O fundeadouro romano da praça D. Luís I. In ARNAUD, J. M.; MARTINS, A.; NEVES, C. (eds.), Arqueologia em Portugal 150 anos, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, pp. 747-754. Resolução da Assembleia da República 71/97, de 16 de Dezembro, Diário da República n.º 289/1997, Série I-A de 1997-12-16. SANCHES, R. (1980): “Dificuldades que tem um Reino Velho para emendar-se” e outros textos. Selecção, apresentação e notas de Victor de Sá. 2ª Ed., Lisboa, Livros Horizonte. VVAA (1994): Lisboa Subterrânea, Museu Nacional de Arqueologia (Catálogo de Exposição). Lisboa, Sociedade Lisboa 94, Milão, Electa. VIEIRA, Pe. A. (1718): Historia do Futuro. Livro anteprimeyro. Lisboa, Officina de Antonio Pedrozo Galram.
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A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE LISBOA
Resumo:
O sítio pré-histórico da Travessa das Dores localiza-se na Ajuda, junto à Calçada da Boa Hora, sensivelmente a meia encosta entre o Palácio Nacional da Ajuda e o rio Tejo. Foi intervencionado na sequência de trabalhos de acompanhamento arqueológico, tendo-se registado diversos contextos enquadráveis entre o Neolítico Final e a Época Romana. Destaca-se, na primeira fase de escavação, a identificação de diversas estruturas negativas, do tipo fossas/silo, onde se recolheu um vasto conjunto artefactual inserido cronologicamente no Neolítico Final/Calcolítico. A continuação dos trabalhos, já a cargo da Neoépica Lda., permitiu não só o reconhecimento de contextos idênticos aos da fase anterior, mas também identificar uma estrutura de tipo fosso associada a elementos estruturais em positivo, estes últimos enquadráveis no Calcolítico. O sítio da Travessa das Dores reveste-se assim de grande importância para o conhecimento da sequência ocupacional da cidade de Lisboa, revelando vestígios que poderão indicar estarmos na presença de um povoado munido de estruturas defensivas de grande interesse patrimonial. PALAVRAS-CHAVE:
Neolítico Final, Calcolítico, fosso, fossas/silo, povoado.
ABSTRACT:
The prehistoric site of Travessa das Dores is located in Ajuda, near Calçada da Boa Hora, on the hillside between Palácio Nacional da Ajuda and Tagus river. As a result of archaeological watching briefs, this site was excavated, having registered several contexts from the Late Neolithic to the Roman Period. We highlight, as the first stage of the intervention, the identification of several negative structures of pit/silo type, where was recovered a vast number of artefacts from the Late Neolithic/Chalcolithic. The continuation of the archaeological works, now led by Neoépica Lda., allowed not only the identification of identical historical contexts, relating the first stage, but also the identification of a pitch/ditch type structure associated with some chalcolithic positive structures. The Late Neolithic site of Travessa das Dores is therefore of great importance for the knowledge and understanding when it comes to the occupational sequence of Lisbon, revealing several elements that might indicate the presence of a defensive settlement of great patrimony interest. Key words:
Neolithic, Chalcolithic, pit, pit/silos, settlement.
Travessa das Dores. Pormenor da plataforma onde se registou a maioria das estruturas em negativo tipo fossa/silo
1.2 O sítio neo-calcolítico
da Travessa das Dores (Ajuda-Lisboa)
Nuno Neto Paulo Rebelo
Neoépica, Lda. neoepica@gmail.com
João Luís Cardoso
Universidade Aberta / Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras / Câmara Municipal de Oeiras cardoso18@netvisao.pt
1. Introdução O sítio da Travessa das Dores foi descoberto na sequência de trabalhos de acompanhamento arqueológico realizados por arqueólogos da empresa Archbiz Lda., aquando da construção de um conjunto de edifícios pela Sociedade de Reabilitação Urbana de Lisboa Ocidental (SRU). Dada a descoberta de contextos preservados deu-se início à escavação arqueológica da área, no seu limite Norte, de forma a conseguir uma melhor caracterização do sítio. Por razões contratuais, os trabalhos da Archbiz Lda. foram entretanto suspensos, tendo a equipa da Neoépica retomado os trabalhos posteriormente, já numa segunda fase da intervenção, procedendo à continuação da escavação na área já iniciada, bem como ao seu alargamento. O presente artigo apresenta apenas os dados preliminares referentes a esta segunda fase da intervenção, da responsabilidade científica de Nuno Neto e Paulo Rebelo, apresentando o faseamento das sucessivas ocupações identificadas no local, e a sua integração cronológico-cultural, correspondendo à comunicação feita ao I Encontro de Arqueologia de Lisboa, realizado entre 26 e 28 de Novembro de 2015 pelos autores. Uma simples referência à existência do sítio foi entretanto publicada (NETO, REBELO, SANTOS, 2015).
para Sul, em linha recta. A observação do perfil topográfico mostra que o sítio pré-histórico da Travessa das Dores se implanta na parte inferior de uma encosta de pendor assinalável, desde o Parque de Monsanto, até ao rio Tejo, o qual era então bordejado pela actual Rua da Junqueira (Figs. 1 e 2). Do ponto de vista geológico o sítio encontra-se implantado sobre a denominada Formação da Bica, do Cenomaniano superior, constituída por Calcários com Rudistas, os quais no topo da assentada se apresentam mais margosos, alternando entre margas amarelas e rosadas esbranquiçadas, bem patentes na área de intervenção (PAIS et alii, 2006, p. 9). 3. Fases de ocupação A segunda fase da intervenção no sítio da Travessa das Dores, conduzida pela Neoépica, veio evidenciar a existência de cinco fases principais da presença humana no local, as quais para além de marcarem tempos distintos, ilustram diferentes objectivos e estratégias de ocupação da estação arqueológica, desde a Pré-história até à Época Contemporânea. Fase 5: Época Moderna/Contemporânea
2. Implantação geográfica, condições geológicas e geomorfológicas O sítio da Travessa das Dores localiza-se na freguesia da Ajuda, concelho de Lisboa, a uma altitude entre os 20 e os 30 metros. Encontra-se limitado a Oeste pela Calçada da Boa Hora, a Norte pela Rua Aliança Operária e a Este pela Rua Diogo Cão. A margem direita do rio Tejo fica actualmente a apenas cerca de 700 metros
Actualmente a área em estudo apresenta-se intensamente urbanizada. Contudo, a observação de cartografia antiga permitiu verificar que pelo menos até ao início do século XX a Freguesia da Ajuda seria uma região essencialmente de cariz rural onde se implantavam diversas quintas e terrenos de cultivo. Especificamente para a área da Travessa das Dores, a cartografia de 1858 denuncia já a base do urbanismo actualmente existente, organizado pela Calçada da Boa Hora e a Rua de Santa Anna (actual Rua da Aliança Operária). A Travessa das Dores
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Figura 1 – Travessa das Dores. Vista geral dos sectores intervencionados, observando-se a plataforma onde foram abertas diversas estruturas em negativo de tipo fossa/silo.
Figura 2 – Implantação da área onde se enquadra o povoado da Travessa das Dores (fonte: Carta Militar de Portugal, escala 1/25.000. O lado de cada quadrado possui 1 km).
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O sítio neo-calcolítico da Travessa das Dores (Ajuda - Lisboa)
encontra-se registada na sua forma actual, sendo rodeada por pomares e terrenos agrícolas livres de construção. Na cartografia de 1909, a Travessa das Dores apresenta um crescente urbanismo, observando-se na área em análise um espaço subdivido por muros, composto por pequenas casas, logradouros e anexos. Esta organização ter-se-á mantido até 2009 altura em que se procedeu à sua demolição tendo em vista o projecto de construção de blocos de apartamentos. A intervenção arqueológica permitiu identificar ainda alguns alicerces relacionados com este antigo urbanismo, que viria em alguns locais a afectar a ocupação pré-histórica do local. Fase 4: Época Romana
Os vestígios associados à Época Romana correspondem a contextos em deposição secundária, encontrando-se muitas vezes misturados com materiais modernos, da Idade do Ferro e pré-históricos. Não se registou qualquer elemento estrutural enquadrável nesta época. Tais espólios exibem larga diacronia, desde a Época Republicana à Imperial, encontrando-se associados a níveis coluvionares superficiais, depositados ao longo da encosta, provenientes de cotas superiores, a Norte, onde possivelmente se poderão encontrar contextos mais fidedignos. Fase 3: Idade do Ferro
Apesar dos níveis associados a esta fase terem sido quase na sua totalidade intervencionados aquando da primeira fase dos trabalhos, executada por outrem, foi ainda possível proceder, nesta segunda fase, à escavação de uma pequena banqueta, que nos permitiu registar a sua presença. Tais vestígios observaram-se essencialmente no sector oriental da intervenção, nomeadamente cerâmicas de pastas cinzentas finas e cerâmica pintada, recolhidas nas unidades superficiais e sobretudo nos níveis inferiores, mais fidedignos. No topo da camada in situ [102], registou-se uma estrutura de combustão de planta subcircular, constituída por argila cozida, fragmentos de cerâmica a torno e alguns carvões. Foi possível observar que esta terá sido sucessivamente reutilizada, o que se reflecte nas sucessivas camadas de argila, utilizadas para forrar o fundo da estrutura de combustão de modo a permitir uma melhor capacidade refractária. Todas estas camadas de argila enchem por sua vez uma pequena fossa de contorno circular, escavada no topo da unidade que serve de base à estrutura de combustão. Não se identificou nenhum outro elemento estrutural que possa ser seguramente atribuído à Idade do Ferro. É ainda de destacar a recolha, na primeira fase dos trabalhos, de um fragmento de uma peça etrusca de bucchero nero (VIEIRA, 2013, pp. 220-223). Fase 2: Bronze Final
Nesta segunda fase dos trabalhos, os vestígios de ocupação do Bronze Final correspondem apenas a alguns fragmentos cerâmicos, claramente descontextualizados, recolhidos nas unidades superficiais, entre os quais se destaca um pequeno fragmento com decoração de ornatos brunidos.
Destaque ainda para um nível de piso em terra batida no limite oriental da intervenção, associado a uma série de buracos de poste, vestígios de antigos elementos estruturais (que infelizmente não foi possível observar em toda a sua abrangência), cuja cronologia é igualmente pouco clara, advindo do facto de a área ter sido decapada mecanicamente em trabalhos de obra anteriormente executados. Fase 1: Neolítico Final/Calcolítico Pleno
Os contextos pré-históricos são os mais antigos e também os mais importantes dos registados. A sua diversidade, particularidades e estado de conservação, conferem ao sítio maior interesse em termos patrimoniais e científicos. Com efeito, a intervenção conduzida pela Neoépica veio a revelar uma complexa sequência ocupacional que se pode dividir em cinco momentos, representativos de uma forte presença humana entre o Neolítico Final e o Calcolítico Pleno, ainda que pontuada por prováveis períodos de abandono. O momento mais antigo registado da ocupação pré-histórica do local corresponde à abertura de diversas estruturas negativas de tipo fossa/silo no substrato geológico margoso (Fig. 3). Estas estruturas encontramse melhor representadas no patamar elevado situado do lado oriental. No lado ocidental este momento apresenta-se pior representado devido à posterior abertura do grande fosso, adiante referido. Não obstante, no limite ocidental da plataforma foi ainda possível registar, no patamar superior, algumas estruturas em negativo. Estes dados vêm demonstrar que o conjunto destas estruturas ocuparia toda a plataforma intervencionada e para além desta, ao longo da encosta, na direcção do rio Tejo. Estas fossas/silos encontravam-se cheias por depósitos heterogéneos, associados a um conjunto artefactual típico do Neolítico Final da Estremadura, caracterizado pelas taças carenadas e recipientes com bordos denteados, com paralelos em vários povoados, entre os quais se destaca o de Leceia, em Oeiras (CARDOSO, 2007). Ao nível formal, as estruturas em negativo do tipo fossa/silo apresentam características diversas: a boca é por norma semicircular, apresentando secção vertical entre o tipo “saco” e o troncocónico, com o fundo plano a côncavo e as paredes verticais a introvertidas. Não se registaram quaisquer vestígios de revestimento e as suas dimensões e capacidades são muito variáveis. Foi ainda possível observar a existência de uma fossa/ silo cuja configuração parece apontar para uma fase de elaboração ainda muito inicial, indicando tratar-se de um esboço de fossa cuja construção não terá sido concluída. A análise de outras fossas parece indiciar que algumas destas estruturas negativas se encontravam marcadas por clastos de pequenas e médias dimensões, que se elevavam acima da sua boca, aspecto que poderá estar relacionado com a sua sinalização tendo em vista uma futura reabertura e consequente reutilização. Os níveis que cobriam estas estruturas negativas continham espólios diversificados integráveis entre o Neolítico Final e o Calcolítico Pleno. Identificam-se algumas estruturas associadas a tais depósitos de provável carácter habitacional. Entre elas destaca-se uma, constituída por um conjunto de blocos de calcário de médias e pequenas dimensões, de desenvolvimento tendencialmente
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Figura 3 – Pormenor da plataforma onde se registou a maioria das estruturas em negativo tipo fossa/silo.
circular. Uma outra é composta de blocos calcários, de planta rectilínea, que se desenvolve com uma orientação Este-Oeste, podendo corresponder a um muro. Ao mesmo nível, surge um conjunto de componentes pétreos em calcário de médias e grandes dimensões que definem um outro elemento estrutural de planta circular, constituído por uma única fiada de blocos. Esta estrutura desenvolver-se-ia para sul, em direcção à área escavada antes da intervenção da Neoépica, pelo que se desconhece o seu prolongamento e aspectos funcionais. As estruturas mencionadas poderiam integrar-se em contextos de carácter habitacional, mas a sua caracterização foi dificultada pela exígua área que houve oportunidade de intervencionar, pois tais estruturas encontravam-se, aquando da intervenção da Neoépica, já parcialmente incompletas, quer pela obra em si, quer pelos trabalhos arqueológicos anteriormente realizados. Assim, com base nos dados arqueológicos recolhidos podemos concluir que este primeiro momento de ocupação pré-histórica do local incidiu sobre a plataforma margosa, na qual se abriram as fossas/silos, abarcando a totalidade da área intervencionada. Num segundo momento, ainda do Neolítico Final, procedeu-se à escavação de um fosso, apenas registado no sector Oeste, afectando desta forma parte da plataforma onde se implantaram as fossas/silos. Com efeito, algumas destas estruturas foram seccionadas pela abertura do fosso, como se observa no patamar mais elevado deste (Fig. 4).
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Trata-se de uma estrutura negativa de grandes dimensões, escavada no substrato geológico margoso e de orientação geral Norte-Sul, só parcialmente intervencionada no sector Oeste, onde os trabalhos incidiram apenas nas áreas de afectação inerentes à implantação do projecto de construção previsto. Ao contrário dos trabalhos no sector Este, que levaram à escavação integral dos contextos, os trabalhos no sector Oeste foram mais pontuais e menos intrusivos, tendo-se registado toda a potência da estratigrafia que colmata o fosso apenas em áreas restritas. A intervenção arqueológica identificou cerca de 10 m de comprimento do fosso, que continuaria a desenvolverse quer para Norte (subindo a encosta), quer para Sul (na direcção da margem do rio Tejo). Na secção registada foi possível perceber que o fosso apresenta uma planta irregular de tendência rectilínea, organizando-se no seu lado Este em dois patamares, com uma profundidade máxima registada de cerca de 2,90 m e uma largura que pode variar entre os 3,70 m e os 8,00 m. Posteriormente à abertura do fosso, e no interior do mesmo, procedeu-se à construção de várias estruturas constituídas por blocos calcários, ao longo das paredes este e oeste (Fig. 5). É difícil perceber se estes elementos estruturais estão associados à própria construção do fosso, ou já a eventuais remodelações deste. As observações efectuadas permitem concluir que tais estruturas se encontram directamente encostadas ao fundo e às paredes do fosso, encontrando-se seladas por depósitos que colmataram aquela estrutura negativa, cujos espó-
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Figura 4 – Fossas/silo cortadas aquando da abertura do fosso.
lios pertencem ao Calcolítico Pleno, o que pode indiciar que as referidas estruturas terão sido efectuadas num momento relativamente próximo à construção do fosso. Estes elementos estruturais encontram-se construídos com recurso a blocos pétreos de dimensões variadas, essencialmente de médias e grandes dimensões, rudemente afeiçoados, em pedra solta ou por vezes com recurso a ligantes (argila/margas), apresentando-se em fiadas simples irregulares, encostadas directamente à parede do fosso ou por fiadas duplas, com o seu interior preenchido, formando desta forma um aparelho robusto e consistente. Destaca-se um troço de muro “amuralhado” identificado no limite noroeste da área intervencionada, com uma altura máxima preservada de cerca de 1,70 m e largura observável de cerca de 0,80 m, encostado directamente à parede do fosso, formado por aparelho robusto composto por blocos rudemente afeiçoados de médias e grandes dimensões, unidos por argila e dispostos em fiadas irregulares (Fig. 6). A fundação deste muro assenta no substrato-geológico, pelo que é lícito admitir que a sua construção possa remontar à época da abertura do próprio fosso. No entanto, no mesmo plano de fundação desta estrutura, identificaram-se contextos de ocupação associados a estruturas de combustão do Calcolítico Pleno, de acordo com a tipologia dos espólios recolhidos. É de notar que tais contextos de ocupação se encontravam cobertos pelos derrubes do próprio muro, o que leva à conclusão de que, pelo menos durante um determinado período de tempo, aquela estrutura terá sido coeva da
ocupação efectuada junto à sua base, podendo a sua época de construção ser porém mais antiga, remontando ao Neolítico Final. A sequência estratigráfica que colmata o fosso corresponde a depósitos diversos que se encontram directamente assentes sobre o fundo desta estrutura, desenvolvendo-se depois em altura, depositados sobre ambas as paredes do fosso e/ou nos elementos estruturais que a este se encontram adossados. Sobre os depósitos de colmatação mais profundos registou-se a presença de uma série de contextos que evidenciam uma ocupação habitacional no interior do fosso: pisos em terra batida, estruturas em positivo, estruturas de combustão. Estes contextos parecem corresponder, em linhas gerais, a dois momentos temporais, ambos pertencentes ao Calcolítico Pleno, embora a colmatação do fosso integre, ao longo da sequência, diversos espólios pertencentes ao Neolítico Final, com destaque para fragmentos de vasos de bordo denteado, que devem provir da erosão, no decurso do Calcolítico, da área da estação ocupada no Neolítico Final situada a montante do fosso. A finalização da colmatação do fosso, com a consequente ocupação do seu topo verificou-se ainda no Calcolítico Pleno e deve ter sido bastante rápida, pois da base ao topo a tipologia dos espólios cerâmicos mais característicos indica tal período cronológico-cultural. De facto, a última fase registada é caracterizada por uma série de depósitos de características diversas, alguns
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Figura 5 – Imagem geral das estruturas associadas às paredes do fosso.
Figura 6 – Porção de estrutura amuralhada encostada à parede oeste do fosso; nível de ocupação do Calcolítico Pleno, com estruturas de combustão associadas à base da estrutura amuralhada.
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apresentando uma grande concentração de elementos pétreos. Ilustrativos deste momento são os níveis de derrube associados ao muro “amuralhado” adossado à parede Este do fosso, já descrito, relacionados com o abandono geral do sítio, cobrindo o último nível de ocupação então registado. 4. Espólios arqueológicos Nesta notícia preliminar serão caracterizados de forma genérica apenas os materiais correlativos das estruturas neolíticas e calcolíticas identificadas, já que são estas que justificam a maior importância arqueológica desta ocorrência. Assim, no que respeita aos espólios de pedra polida, destaca-se a existência de artefactos de rochas anfibolíticas, cuja origem alentejana é segura, configurando o comércio a longa distância deste recurso geológico, estratégico para as necessidades quotidianas destas populações. Com efeito, em estudo anterior dedicado às indústrias de pedra polida do povoado pré-histórico de Leceia, Oeiras, situado a menos de 10 km de distância, verificou-se um acréscimo crescente da presença deste tipo de rochas, desde o Neolítico Final ao Calcolítico Pleno/Final, o que reflecte a intensificação económica verificada ao longo de todo o 3.º milénio cal BC (CARDOSO, 2004). Os afloramentos mais próximos de onde poderia provir esta matéria-prima, provavelmente sob a forma de
lingotes, situam-se na bordadura ocidental do Maciço Hercínico, entre Montemor-o-Novo, Avis, Ponte de Sor e Abrantes (CARDOSO, CARVALHOSA, 1995). Em contrapartida, os recursos geológicos locais assumiam importância económica decisiva, sustentando a obtenção, por permuta, daquelas rochas, entre outros bens não directamente acessíveis. Com efeito as largas centenas de blocos nucleares e núcleos de sílex, com origem nos nódulos de sílex existentes nos calcários cretácicos recifais existentes no local e na sua envolvência próxima (Alto da Ajuda, Alcântara), atestam a exploração sistemática do sílex, como recurso de extrema importância económica que era, ultrapassando largamente tal exploração as necessidades locais, sem prejuízo de estas serem também assim asseguradas. Na Fig. 7 representam-se diversos artefactos, como furadores (n.ºs 1, 9), recolhidos em contextos do Calcolítico Pleno, embora contendo materiais mais antigos; raspadeiras (n.º 2), igualmente de contexto do Calcolítico Pleno relacionado com a fase de abandono definitivo do sítio; lâmina (n.º 3), oriunda do primeiro nível de enchimento do silo [198], de cronologia calcolítica; a par de lascas retocadas (n.º 4) e lamelas (n.ºs 5 e 6), oriundas de coluvião superficial com espólios de várias épocas. As folhas bifaciais de sílex (n.ºs 7, 8 e 10), cuja utilização como elementos de foice ou de processamento de cereais se encontra comprovada pelo brilho que algumas delas exibem (CLEMENTE-CONTE, MAZZUCO, SOARES, 2014), bastariam, por si só, para ilustrar tal actividade económica no espaço geográfico envolvente.
Figura 7 – Espólios líticos recolhidos em contextos estratigrafados calcolíticos, e em contextos com materiais de várias épocas. Desenhos do Dr. Bernardo Ferreira.
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A caça encontra-se documentada por pontas de seta, de sílex local, mas também de xisto jaspóide, de origem alentejana, cuja presença só se poderá compreender se se admitir que acompanhariam os lingotes de anfibolito, por razões estéticas, relacionadas com a sua coloração vermelha, já que, do ponto de vista estritamente funcional, seriam artefactos de pior qualidade que os seus congéneres de produção local. Esta realidade foi observada também em outros povoados calcolíticos da região, com estreitas relações com o mundo alentejano, como é o caso de Moita da Ladra, Vila Franca de Xira (CARDOSO, 2014). Aliás, a metalurgia do cobre, cuja matéria-prima seria sobretudo de origem alentejana, nomeadamente a partir da exploração dos filões quartzosos disseminados pela Zona de Ossa Morena, conforme mostram os resultados obtidos em Leceia (CARDOSO, MÜLLER, 2008), associada à exploração das rochas anfibolíticas, encontra-se representada na Travessa das Dores por fragmento de cadinho com restos de metal aderente na face interna, para além de alguns artefactos metálicos. A pesca, por seu turno, está documentada por um peso de rede, executado sobre um seixo rolado basáltico de origem local, com sulco diametral executado a picotado, semelhante a muitos outros distribuídos por estações ribeirinhas dos estuários do Tejo e do Sado (CARDOSO, 1996), a par da importante recolecção de moluscos, especialmente de Ostrea edulis, no estuário do Tejo, tal qual se observou na Tapada da Ajuda, cerca de mil anos depois (CARDOSO et alii, 1986). Mas são os espólios cerâmicos que assumem o principal papel no faseamento cronológico-cultural da estação, de acordo com a sequência acima apresentada. Os materiais tipologicamente característicos do Neolítico Final da Estremadura e que ocorrem de forma significativa na Travessa das Dores são os vasos de bordo denteado e os recipientes lisos carenados; especialmente os primeiros, que estão representados por elevado número de exemplares, exibindo assinalável variabilidade, a ponto de dificilmente se encontrarem dois exemplares iguais, embora respeitem um cânone comum. Os fragmentos representados na Fig. 8 provêm na íntegra de contextos estratigráficos do Neolítico Final, exceptuando-se o n.º 5, recolhido no primeiro nível de enchimento da fossa/silo [198], correspondendo pois ao início da fase de abandono daquela estrutura, a qual, contudo, se poderia ter verificado ainda no Neolítico Final. Já as produções cerâmicas características do Calcolítico, das quais uma selecção se representa na Fig. 9 provêm de contextos habitacionais estratigrafados, ou de enchimentos e depósitos superficiais com espólios de diversas épocas. Estão no primeiro caso os exemplares n.ºs 1 e 6, oriundos do depósito com estruturas de combustão identificado na base do enchimento do fosso e correlativo da fundação da muralha nele existente, provindo os restantes exemplares de contextos remexidos. No conjunto, estão presentes produções do Calcolítico Inicial e Pleno da Estremadura, como as taças decoradas no interior (n.º 1), ou exclusivamente do Calcolítico Pleno, como as decorações do grupo “folha de acácia”, presentes em recipientes de dimensões e tipologias diversas, associadas a grandes vasos globulares com decorações
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em “dentes de lobo” ou de caneluras simples em torno da abertura (n.ºs. 2, 3, 4, 5). Um vaso globular com goteira em torno da abertura é forma mais rara, com paralelos em diversos povoados calcolíticos da região de Lisboa, como Leceia, Penha Verde e Moita da Ladra, bem como da região a sul do Tejo, como o Outeiro Redondo, Sesimbra, todos intervencionados ou publicados por um dos signatários (J.L.C.). No capítulo das produções cerâmicas industriais inscreve-se o fragmento de suporte de lareira (Fig. 9, n.º 6), incompleto na base, com distribuição geográfica alargada à Estremadura e ao sul do território português, cujas ocorrências mais antigas remontam ao Neolítico Final (CARDOSO, 2003), bem como o fragmento de recipiente de paredes perfuradas, atribuível a cincho para produções lácteas (Fig. 10, n.º 8). É interessante observar que este tipo de peças, pelo menos na Estremadura, é conhecido em estratigrafia apenas em contextos habitacionais do Calcolítico Pleno (CARDOSO, 2007; 2014), o que significa que se trata de uma expressão tardia da chamada “Revolução dos Produtos Secundários”, neste caso relacionada com a especialização do aproveitamento dos produtos lácteos. O facto de um exemplar deste tipo estar presente no conjunto em apreço remete para a prática de uma economia agro-pastoril, onde a presença de rebanhos de caprinos (ovelhas e cabras) poderia conjugar-se com a de bovinos, aliás comprovados pelos restos osteológicos recolhidos. 5. Integração cultural O povoado neo-calcolítico da Travessa das Dores é o primeiro sítio reconhecido no espaço urbano de Lisboa com estruturas pré-históricas de armazenamento e de defesa. As primeiras remontam ao Neolítico Final e só foram possíveis pela existência de um substrato geológico margoso facilmente escavável. Tais estruturas negativas, cuja integração no Neolítico Final da Estremadura é indubitável, destinavam-se usualmente ao armazenamento, e a quantidade das identificadas na estação, com múltiplos paralelos em sítios da mesma época do sul peninsular, parece condizer com tal finalidade. Usualmente tais estruturas eram reaproveitadas como lixeiras domésticas, conclusão que é corroborada no caso em apreço pela existência de materiais arqueológicos fora de uso, de Época Calcolítica. Importa sublinhar a extrema raridade deste tipo de estruturas negativas nos sítios da mesma época conhecidos na região da Península de Lisboa. Tal deve-se, em boa parte, ao facto de os substratos geológicos desta região serem pouco propícios, embora se conheçam ocorrências de estruturas negativas de dimensões idênticas, com outras finalidades, em épocas mais antigas, na estação do Neolítico Antigo Cova da Baleia, Mafra (SOUSA, GONÇALVES, 2015), ou mais modernas, como é o caso do povoado do Bronze Final do Cabeço do Mouro (CARDOSO, 2006). No entanto, à ocupação calcolítica do povoado aberto do Carrascal, Oeiras, pertencem duas estruturas do mesmo tipo, escavadas nas margas cretácicas, as quais terão sido reutilizadas como lixeiras. Uma delas teve utilização ritual: sobre o
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Figura 8 – Fragmentos de recipientes de bordo denteado, recolhidos em contextos estratigrafados do Neolítico Final exceptuado um caso (o n.º 5). Desenhos do Dr. Filipe Martins.
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Figura 9 – Espólios cerâmicos do Calcolítico Pleno, recolhidos em contextos estratigrafados (n.ºs. 1 e 6), e em contextos com espólios neolíticos e calcolíticos. Desenhos do Dr. Filipe Martins.
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fundo da mesma foi efectuada a deposição intencional de duas hemimandíbulas cruzadas de Bos taurus, uma delas datada do Calcolítico Pleno/Final, sublinhando a importância económica da espécie e, ao mesmo tempo, a importância da acumulação de excedentes para as comunidades calcolíticas ali sediadas (CARDOSO, 2009). No respeitante à ocorrência de estruturas em fosso, cuja cronologia se insere igualmente no Neolítico Final da Estremadura, sucedendo-se a sua construção à das fossas acima referidas, a região em apreço, pelas razões geológicas atrás apontadas, é ainda mais parca de vestígios comparáveis. Com efeito, tanto os fossos identificados no povoado calcolítico de Santa Sofia, Vila Franca de Xira (PIMENTA, SOARES, MENDES, 2013), como no sítio de Gonçalvinhos, Mafra (SOUSA, 2008), são de pequeníssimas dimensões, não servindo a quaisquer intuitos defensivos, tratando-se, numa perspectiva funcionalista, de dispositivos compatíveis com a drenagem de águas, hipótese que, no primeiro caso bem se adapta às características da implantação do sítio, numa encosta declivosa. Mais interesse detém o fosso identificado no povoado pré-histórico de Leceia de clara finalidade defensiva. Com efeito, esta estrutura negativa integra-se na primeira linha defensiva, correspondendo ao prolongamento da muralha curvilínea reforçada do lado externo por vários bastiões semicirculares a ela adossados. Situando-se na extremidade da referida linha defensiva, antes de a mesma atingir a escarpa natural que delimita do lado nascente a plataforma natural onde se implantou o povoado pré-histórico, a sua cronologia foi atribuída ao Calcolítico Inicial, altura em que todo o dispositivo defensivo foi delineado e construído de uma só vez, embora tenha depois conhecido sucessivas remodelações. A sua existência explica-se pelo aproveitamento de uma descontinuidade natural existente nos calcários duros recifais do Cenomaniano superior, longa e relativamente larga, delimitada por diáclases. Para tal efeito, o investimento humano foi limitado, já que correspondeu apenas à regularização de uma das paredes longitudinais do fosso natural, constituindo um exemplo único, no respeitante ao território português, de integração de estruturas negativas e positivas, neste caso de natureza pétrea, numa única concepção defensiva, neste caso uma primeira linha de um dispositivo constituído por três linhas de defesa. Na área da estação arqueológica destaca-se o sítio de Montes Claros, com importante ocupação do Neolítico Final, sobreposta por uma ainda mais notável ocupação campaniforme (CARDOSO, CARREIRA, 1995). A implantação desta estação no topo de uma colina contrasta com a do povoado da Travessa das Dores, evidenciando a diversidade de condições geomorfológicas que os habitantes neolíticos da região elegeram, por certo em função de finalidades específicas de cada sítio. No caso da Travessa das Dores, é provável que a mesma se relacionasse com a prioridade atribuída à relação com o Tejo, explicando-se a sua implantação na parte inferior de uma colina coroada pela serra de Monsanto, onde se localiza o povoado de Montes Claros. Com efeito, os sítios de carácter habitacional da Cerca dos Jerónimos (CORREIA, 1913) e da Junqueira (VAULTIER, ZBYSZEWSKI, 1947), com ocupações neo-calcolíticas, tal como a Travessa das Dores, e ainda mais próximos da margem do Tejo, relacionam-se
por certo com a actividade ali desenvolvida. Neste âmbito, são igualmente de destacar os vestígios do Calcolítico recentemente registados em Pedrouços junto à margem direita do rio Tejo (CASTRO, FILIPE, BARBOSA, 2017). Quanto aos vestígios arqueológicos mais modernos, correspondem não a ocupações efectivamente comprovadas do espaço em causa, mas, na melhor das hipóteses, a testemunhos pontuais da presença humana: é o caso das escassas estruturas de carácter habitacional susceptíveis de serem integradas no Bronze Final e na Idade do Ferro. Na verdade, a presença de materiais de várias cronologias que atingem a Época Romana, deve imputar-se sobretudo à formação de coluviões, onde os mesmos foram embalados, oriundos de áreas situadas na parte mais alta da encosta. A estação da Tapada da Ajuda corresponde ao local mais próximo onde se documentou importante ocupação do Bronze Final, igualmente implantada na encosta voltada para o estuário do Tejo. Correspondia a pequeno povoado, com cabanas de planta elipsoidal com embasamento constituído por pedra seca – blocos basálticos heterométricos (CARDOSO et alii, 1986; CARDOSO, 1995). A grande quantidade de elementos de foice sobre lascas de sílex, também presentes na Travessa das Dores, explica-se pela grande aptidão dos terrenos basálticos para a prática da cerealicultura. É também essa explicação que justifica a ocorrência esparsa de materiais da Idade do Ferro, relacionados com pequenos núcleos agrícolas semelhantes aos de Outurela I e II, Oeiras (CARDOSO et alii, 2014), onde também se recolheram produções de cerâmicas negras e de pastas finas, como as identificadas na Travessa das Dores, a que acresce um raro fragmento de provável bucchero nero, de origem etrusca (VIEIRA, 2013). 6. Conclusões É possível desde já apresentar algumas conclusões preliminares resultantes das escavações e dos estudos comparativos agora realizados: 1 – O sítio da Travessa da Dores, para além de ter fornecido escassos testemunhos do Bronze Final, Idade do Ferro e de Época Romana, é caracterizado por dois relevantes contextos pré-históricos que lhe conferem importância única no âmbito da Pré-História de Lisboa e mesmo no quadro geográfico mais alargado da região da Baixa Estremadura, sendo o mais antigo do Neolítico Final, sucedido por outro do Calcolítico Pleno. 2 – Avulta a existência de um numeroso conjunto de fossas/silos, abertas no substrato geológico margoso, facilmente escavável, no decurso do Neolítico Final, às quais se sucedeu a execução de um amplo fosso, que em parte as corta, igualmente executado naquela época, constituindo o único exemplo com tais dimensões em toda a região estremenha, a par de um seu congénere identificado no povoado pré-histórico de Leceia. Está-se, por conseguinte, perante um vasto povoado de fossas, como outros da mesma época conhecidos no sul peninsular, o qual foi delimitado, em determinada época da sua existência, por um fosso de assinaláveis dimensões, mas do qual só pequeno troço foi escavado.
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3 – O interior do fosso foi sendo paulatinamente colmatado no decurso do Calcolítico Pleno, quer através de restos de ocupações de carácter habitacional, incluindo estruturas de combustão, quer por via de depósitos de enchimento com espólios de várias épocas, que também se observam no interior das fossas/silos de armazenamento. Importa referir que as paredes do fosso foram reconfiguradas, ainda no decurso do Neolítico Final ou já no Calcolítico Pleno, por muros pétreos, que àquelas se adossaram, conferindo-lhes assim, porventura, maior monumentalidade. O facto de estas estruturas, feitas de blocos calcários de origem local, terem as suas fundações no fundo do fosso, permite, com efeito, admitir que tenham sido construídas logo após a abertura deste. Estamos assim perante uma estrutura de carácter funcional provavelmente defensivo – como a sua congénere de Leceia – sem que esta finalidade deixasse de assumir uma certa monumentalidade, conferida pela adição de construções de alvenaria. 4 – É excepcional a presença de espólios do Calcolítico Inicial da Estremadura, o que configura um período em que o local estaria desabitado ou seria pouco frequentado. 5 – Os espólios pertencentes ao Neolítico Final e ao Calcolítico Pleno configuram a existência de uma intensiva exploração dos nódulos de sílex existentes nas camadas de calcários recifais cretácicos que afloram nas proximidades, cujos produtos, evidenciados por abundantes blocos e núcleos de sílex, se destinariam a integrar comércio transregional, propiciado pela implantação ribeirinha do sítio. Assim sendo, tais materiais constituiriam a base das permutas que permitiam abastecer o povoado de matérias-primas oriundas do Alentejo, como os anfibolitos, que proporcionaram a confecção de artefactos de pedra polida e, no Calcolítico Pleno, a metalurgia do cobre, representada por cadinho de fundição. 6 – Enfim, as actividades do quotidiano encontramse denunciadas pela ocorrência de diversos artefactos, como: pesos de rede; elementos de foice relacionados com as culturas cerealíferas existentes nos férteis terrenos adjacentes; furadores de sílex para os trabalhos em pele; pontas de seta utilizadas na actividade cinegética; a par do aproveitamento secundário do leite, conforme é indicado pela presença de cinchos de cerâmica. Tais informações são, aliás, confirmadas pelo registo faunístico recolhido, que evidencia, outrossim, a intensa recolecção de moluscos no estuário do Tejo, cuja margem norte bordejava então o sopé da colina onde se implantou esta notável estação pré-histórica da área urbana de Lisboa. 7 – O povoado Neo-Calcolítico da Travessa das Dores destaca-se pelo seu carácter único no âmbito dos limites do concelho de Lisboa, bem como a nível regional. Para isto contribui a integração de aspectos particulares como a sua implantação no sopé da colina que sobe para Monsanto, junto à margem direita do rio Tejo, com a sua associação a uma complexa sequência de ocupações onde se destaca, pela sua raridade e grau de preservação, um grande fosso, criando-se assim uma destacada estrutura de carácter defensivo.
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Uma cidade em escavação
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A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE LISBOA
Resumo:
O presente trabalho pretende dar a conhecer os resultados preliminares da intervenção arqueológica realizada no edifício n.º 27-29 da Rua de Pedrouços, freguesia de Santa Maria de Belém, Lisboa, em 2014. A escavação foi levada a cabo no interior e jardim tardoz de um edifício de habitação datado da primeira metade do século XX, para o qual se havia inicialmente projectado um piso de cave, entretanto abandonado devido à presença de vestígios arqueológicos. A execução de quatro sondagens de diagnóstico permitiu documentar, em três delas, materiais cerâmicos enquadráveis na Pré-História Recente. A descoberta do sítio reveste-se de particular importância, tanto no que se refere ao conhecimento da rede de povoamento desta região durante a Pré-História Recente, como no que à gestão do património arqueológico e processos de obra diz respeito, uma vez que, até então, não eram conhecidos quaisquer vestígios daquele período nesta zona da cidade. PALAVRAS-CHAVE:
Pré-História Recente, povoamento, Pedrouços.
ABSTRACT:
The purpose of this presentation is to make known the results of the preliminary archaeological intervention carried out in the building no. 27-29, Rua de Pedrouços, Santa Maria de Belém, Lisbon, in 2014. The excavation was carried out in the interior and back garden of a residential building dating back to the first half of the twentieth century, for which it is planned the construction of one floor of basement for parking, which, possibly, will not be built due to the archaeological findings. The implementation of four test pits allowed to document Prehistoric ceramic materials in three of the pits. The discovery of the site is of particular importance because of the knowledge of the prehistoric site distribution in this region, as well as in the management of the archaeological heritage, since, until then, there were no known traces of that period in this part of town. Key words:
Recent Prehistory, settlement, Pedrouços.
Pedrouços. Sondagem 1, Perfil Este
1.3 Um sítio da Pré-História
Recente em Pedrouços (Belém, Lisboa)
Anabela Castro
Arqueóloga anabela.nc@gmail.com
Victor Filipe
Bolseiro de Doutoramento. UNIARQ/FLUL; FCT victor.filipe7@gmail.com
João Paulo Barbosa
Logiark-Serviços Arqueológicos Unipessoal, Ldª. geral@logiark.com
1. Introdução Os trabalhos arqueológicos, realizados em Agosto de 2014, enquadraram-se numa perspectiva de salvaguarda dos vestígios arqueológicos que pudessem vir a ser afectados negativamente pela execução do projecto de remodelação e ampliação de um imóvel datável da primeira metade do século XX, destinado a habitação plurifamiliar. Neste sentido, foi preconizado como medida de minimização a realização de 4 sondagens de diagnóstico implantadas no interior de edifício e no jardim tardoz. Com isto, pretendeu-se perceber a viabilidade da construção de um piso de cave, que ocuparia toda a área do imóvel. No decurso da intervenção arqueológica vir-se-iam a documentar vestígios materiais de uma ocupação enquadrável no Calcolítico, constituídos por cerâmica manual, indústria lítica e fauna malacológica e mamalógica. Embora não se tenham identificado quaisquer estruturas arqueológicas ou níveis de ocupação humana preservados, o registo destes materiais nesta zona da cidade assume particular importância tanto na percepção da ocupação pré-histórica da região de Lisboa e sua distribuição espacial nesse território, como ao nível da monitorização do território por parte da tutela. Efectivamente, na literatura arqueológica não eram, até aqui, conhecidos vestígios da Pré-História Recente naquele local e nas imediações, tendo, aliás, sido esse o principal motivo que nos levou a apresentar e publicar esta notícia preliminar. O conjunto de materiais é reduzido e apresenta poucos elementos caracterizadores para a determinação do tipo e cronologia da ocupação. Como tal, mais do que fazer um estudo exaustivo dos vestígios arqueológicos colocados a descoberto, pretende-se aqui sobretudo dar a conhecer a existência de uma ocupação atribuível ao Calcolítico naquela área da cidade.
2. Localização e enquadramento geológico O imóvel localiza-se da Rua de Pedrouços, n.º 29, na freguesia de Santa Maria de Belém, distrito, concelho e cidade de Lisboa, na zona de especial protecção conjunta aos imóveis Capela de São Jerónimo (classificado como Monumento Nacional pelo Decreto nº 30762 de 26/9/1940 e Decreto nº 32973 de 18/8/1943) / Capela de Santo Cristo (classificado como I.I.P. pelo Decreto nº 47508 de 24/1/1967) / Palacete da R. de Pedrouços nº 97-99 (classificado como I.I.P. pelo Decreto nº 95/78 de 12/9) / Edifício do séc. XVIII na R. de Pedrouços nº 84-88A (classificado como I.I.P. pelo Decreto nº 28/82 de 26/2), conforme Portaria nº 46/96 de 30 de Maio, publicada no D.R., II Série, nº 126. Geologicamente a área em estudo situa-se na fronteira entre a “Formação de Bica”, caracterizada pela presença de calcários cristalizados com rudistas, integrável no Cenomaniano Superior, e o “Complexo vulcânico de Lisboa” com intercalações vulcano-sedimentares do Neocretácico, pertencendo ambas as realidades geológicas ao período Cretácico. Não muito longe do local sondado, a sul, onde se encontra o rio Tejo, os terrenos são maioritariamente compostos por aluviões. 3. A Intervenção Arqueológica Pretendeu-se localizar as sondagens em zonas equidistantes entre si uma vez que se previa, aquando do início da intervenção, que a área total do imóvel fosse afectada pelas obras de remodelação e escavação de uma cave que ocuparia todo o lote disponível. A estratigrafia enquadrável na Pré-História Recente foi documentada apenas nas sondagens 1, 2 e 4, sendo que na sondagem 3 apenas foram registados contextos de Época Contemporânea e alguns materiais calcolíticos.
Uma cidade em escavação
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Figura 1 - Planta de localização e geológica.
Figura 2 - Implantação das sondagens no edifício.
40 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Um Sítio da Pré-História Recente em Pedrouços (Belém, Lisboa)
3.1. Sondagem 1
Tal como as restantes, possui 2 m x 2 m e foi aberta no canto SO do lote, anteriormente ocupado por um jardim e actualmente pavimentado por cimento. Num primeiro momento removeram-se manualmente as realidades relacionadas com a última ocupação do espaço, cronologicamente enquadrável no século XX, que se reportavam quer a estruturas que integravam o jardim e os muros que dividiam os lotes, quer a níveis de aterro. Após a remoção destas realidades verificaram-se níveis, balizados entre os séculos XVIII/XIX, que documentavam a dinâmica deste local em momento anterior à construção do actual edifício. A cerca de 1 metro de profundidade a partir da cota actual do jardim registou-se uma camada castanha [108], homogénea, medianamente compacta e de grão fino, de onde foram exumados materiais de cronologia moderna e pré-histórica. Este depósito colmata uma vala realizada em Época Moderna, no sentido N-S, cuja interface corta depósitos de cor castanho-escuro, siltosos, muito compactos, de grão médio e homogéneos, com muitos carbonatos e escassos materiais cerâmicos manuais, líticos e abundante fauna malacológica que nos reportam ao Calcolítico Pleno, identificados a cerca de 8,60 m (cota absoluta). Figura 3 - Sondagem 1: Perfil Este.
Figura 4 - Sondagem 1: Plano final.
Uma cidade em escavação
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Anabela Castro, Victor Filipe, João Paulo Barbosa
Figura 5 - Sondagem 1: Perfil Este.
3.2. Sondagem 2
A Sondagem 2 foi aberta no mesmo alinhamento da primeira, dentro de casa, sendo delimitada, a sul, por uma parede interior e a poente pela parede divisória entre a casa e o imóvel vizinho. As realidades aqui registadas, numa primeira fase, vão de encontro ao momento construtivo do edificado observado actualmente. À semelhança do verificado na sondagem 1, documentaram-se estratos que confirmam a ocupação do local em época anterior à construção do edifício, onde se recolheu um numisma de D. José I cunhado em 1752. A cerca de 1,40 m de profundidade documentou-se uma camada uniforme de areia castanha [UE207], de grão fino, densa, à qual se sobrepunha a [UE206]. Esta camada é idêntica à [UE108] identificada na sondagem 1, sendo o espólio exumado constituído por pequenos fragmentos de cerâmica pré-histórica e materiais modernos. Aquele último estrato cobre um depósito, [208], de onde se exumaram materiais cerâmicos manuais enquadráveis no Calcolítico Pleno. Trata-se de um depósito castanho-escuro, siltoso, muito compacto, grão médio, homogéneo e com muitos carbonatos. 3.3. Sondagem 4
Realizada no canto SO do logradouro nascente do imóvel, esta sondagem não revelou resultados muito díspares dos verificados nas sondagens 1 e 2. Num primeiro momento, os níveis de aterro e estruturas associadas à última ocupação do espaço, sob estes os
42 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 6 - Sondagem 2: Corte Norte.
Um Sítio da Pré-História Recente em Pedrouços (Belém, Lisboa)
Figura 7- Sondagem 2: Plano final e perfil Sul.
depósitos de aterro que atestam uma ocupação Moderna/ Contemporânea anterior ao que se vislumbra actualmente. Este último momento cobre o nível [405] de areia castanha, homogéneo, de grão médio, medianamente compacto, de onde se exumaram materiais cerâmicos de cronologia moderna e pré-histórica, já registado nas anteriores sondagens 1 e 2, que por sua vez enche uma vala no sentido O-E.
A interface [410] corta o depósito [409], castanhoescuro, siltoso, muito compacto, grão médio e homogéneo, com muitos carbonatos de onde se recolheu fauna malacológica e escassos fragmentos de materiais cerâmicos manuais enquadráveis no Calcolítico Pleno. Este nível registou-se à cota absoluta de 8,80 m.
Figura 8 - Sondagem 4: Plano final.
Figura 9 - Sondagem 4: Perfil Sul.
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Figura 10 - Sondagem 4: Plano final.
Figura 11 - Sondagem 4: Perfil Sul.
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Um Sítio da Pré-História Recente em Pedrouços (Belém, Lisboa)
4. Comentário final
Nas sondagens arqueológicas realizadas no n.º 29 da Rua de Pedrouços foram identificados, até uma profundidade média de 1,10 m, estratos relacionáveis com a construção do imóvel, datável do início do século XX, bem como depósitos de terra vegetal outrora pertencentes a terrenos de cultivo com alguns vestígios residuais atribuíveis às Épocas Moderna e Contemporânea. A partir da profundidade referida (cota absoluta média de 8,70 m), observa-se, nas sondagens 1, 2 e 4, um depósito uniforme de areia castanha, solta, homogénea, de calibre fino, incorporando nódulos de terra argilosa castanha escura, onde se encontravam associadas cerâmica da Idade Moderna e cerâmica manual pré-histórica. Na estratigrafia preservada sob este estrato arenoso foram exumados vários fragmentos de cerâmica manual associados a indústria lítica efectuada sobre sílex e fauna malacológica e mamalógica.
Figura 12 - Cerâmica manual exumada.
Embora o conjunto de materiais seja genericamente reduzido e apresente poucos elementos caracterizadores, a cronologia da ocupação do sítio dever-se-á atribuir ao Calcolítico Pleno. Estes materiais encontravam-se dispersos pelo referido estrato, cuja formação é atribuível ao III milénio a.C., não se tendo identificado qualquer nível de ocupação preservado. O facto de uma grande percentagem das cerâmicas apresentar um índice de rolamento muito reduzido parece indiciar que o sítio de onde provêm se implantaria nas proximidades. Refira-se, a este propósito, a importante informação inédita fornecida pelo Dr. António Carlos de Valera1 aquando da discussão no I Encontro de Arqueologia de Lisboa, aludindo à identificação de algumas cerâmicas manuais em local 1 A quem se agradece pela importante informação, bem como pelos demais comentários. Agradece-se igualmente ao Dr. João Luís Cardoso as oportunas e construtivas observações.
Figura 13 - Taças e pratos de cerâmica manual.
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bem próximo, quando se procedeu à abertura de uma vala no passeio que delimita a Oeste a Casa do Governador de Belém (FILIPE, FABIÃO, 2006-2007). Um outro indício dessa proximidade poder-se-á ver na presença, ainda que escassa, de alguns fragmentos de cerâmica de revestimento no actual conjunto.
Resumidamente, os vestígios arqueológicos documentados no n.º 29 da Rua de Pedrouços testemunham uma ocupação nas imediações do local durante o Calcolítico pleno, tratando-se de uma ocupação ribeirinha que, muito provavelmente, teria no rio a sua principal base de subsistência, facto a que não será alheia a presença em quantidades razoáveis de fauna malacológica.
Figura 15 - Cerâmica manual decorada.
Figura 14 - Cerâmica manual com e sem decoração.
Figura 16 - Raspador (?) de sílex.
46 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 17 - Lasca de sílex com entalhe.
Um Sítio da Pré-História Recente em Pedrouços (Belém, Lisboa)
Figura 18 - Planta com a dispersão de sítios do neolítico e calcolítico (a partir de Muralha, 1988)
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Uma cidade em escavação
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A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE LISBOA
Resumo:
Apresentação da análise da indústria lítica em sílex identificada no Pátio José Pedreira durante a escavação arqueológica, no âmbito da instalação de infraestruturas. Os materiais líticos foram recolhidos num contexto de aterro, provenientes de entulhos dos séculos XVII e XVIII. Porém, apesar da deposição secundária, os materiais apareceram concentrados numa bolsa de somente 3 m² por 40 cm de profundidade, de uma área total de 12 m², por 150 cm de profundidade. Um conjunto de utensílios constituído por lascas retocadas, lamelas, buris, micro-raspadeiras e furadores, com uma estratégia de suporte baseada em lascas e com predominância pela produção microlítica. Avaliação da relação entre os dados tecno-tipológicos e a difícil caracterização cronológica. A Idade do Ferro está representada por um conjunto cerâmico de 716 fragmentos e uma estrutura constituída por uma pequena plataforma e uma rampa formadas por argamassa compacta e pedra calcária e separadas por um canal escavado no substrato, nas quais assentam. PALAVRAS-CHAVE:
Utensílios líticos, sílex, produção microlítica, cerâmica, estrutura Idade Ferro.
ABSTRACT:
A presentation of the lithic industry in Flint analysis identified in the Jose Pedreira courtyard during the archaeological excavation for the installation of infrastructure. The lithic materials were collected in a landfill environment, spoils from the seventeenth and eighteenth centuries, but despite the secondary position the materials are concentrated on a stock only 3 m² by 40 cm deep, of a total area of 12 m by 150 cm deep. Tools composed of retouched flakes, awls, scrapers, with a strategy that regards the production of flakes with predominance by microlithic production. And evaluation of the relationship between techno-typological data and the difficult chronological characterization. The Iron Age is represented by a ceramic set of 716 fragments and a structure constituted by a small platform and a ramp formed by compact mortar and limestone and separated by a channel excavated in the substrate, on which they settle. Key words:
Stone tools, flint, microlithic production, pottery, Iron Age structure.
Pátio José Pedreira. Vista geral das estruturas
1.4 RESultados preliminares
da Presença Pré-Romana no Pátio José Pedreira (Rua do Recolhimento/ Beco do Leão, Lisboa)
Anabela Joaquinito
Doutoranda em Pré-história e Arqueologia FGHUS Arqueóloga em Constragraço Construções Civis Lda. ajoaquinito@hotmail.com
1. Introdução A cidade de Lisboa, personificada na Freguesia do Castelo, atual Santa Maria Maior, é local de inúmeras e sucessivas intervenções e a ocupação humana tem transformado progressivamente a face física desta zona. Nesse trajeto, incluem-se as intervenções arqueológicas e arquitetónicas realizadas nesta área através do projeto PIPARU, Programa de Intervenção Prioritária em Ações de Reabilitação Urbana, da Câmara Municipal de Lisboa, e que permitiu beneficiar um conjunto de edifícios, denominado Pátio José Pedreira, alvo do presente trabalho, e cuja obra foi adjudicada à empresa Constragraço.
Figura 1- Localização do Pátio José Pedreira (Planta de João Nunes Tinoco -1650).
As escavações arqueológicas abrangeram o interior de 3 edifícios, designados edifícios A, B e C, e o exterior, denominado Pátio José Pedreira (Rua do Recolhimento) e o Pátio Norte, de acesso pelo Beco do Leão. A intervenção decorreu entre Março e Outubro de 2015, dirigida pela signatária deste artigo e a equipa incluiu os arqueólogos José Pedro Henriques e Tânia Costa. A intervenção permitiu identificar uma contínua ocupação do espaço, que inclui cronologias da Idade do Ferro, Romana, de Período Islâmico, Medieval Cristão e Moderno, e recolher um espólio com mais de 28.000 fragmentos inventariados, que ainda se encontra em fase de estudo.
Figura 2 - Planta geral do Pátio José Pedreira.
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2. A presença de indústria lítica no Pátio José Pedreira. A presença de materiais de cronologia pré-histórica no Castelo não é inédita, líticos paleolíticos, neolíticos e calcolíticos recolhidos testemunham uma ocupação antiga, porém sem um contexto arqueológico definido, “…identificado de fracos vestígios reduzidos a um machado polido e alguns sílex de cronologia indefinida.” (MOITA, 1994). A intervenção arqueológica na encosta de Sant´Ana permitiu a identificação de ocupações neolíticas in situ, com conjuntos artefactuais constituídos por uma utensilagem sobre lasca, de densidade reduzida em relação ao material de debitagem e proveniente de núcleos esgotados (ANGELUCCI, COSTA, MURALHA, 2004), assim como a importante indústria lítica recolhida no palácio dos Lumiares (VARELA, 2006). A coleção de líticos, em sílex, foi identificada no lado sudeste do Pátio José Pedreira, com acesso pela Rua do Recolhimento. No pátio procedeu-se à escavação de uma vala de 12 m de comprimento por 2 m de largura e de profundidade para implantação de tubagem de saneamento. Na sondagem 1B/C, na unidade estratigráfica [05], a cerca de 1,40 m de profundidade, foi identificada um significativo conjunto de material de debitagem e utensílios em sílex. Os materiais não foram recolhidos in situ, mas num contexto de aterro de cronologia moderna, porém numa deposição secundária dispersa por uma área limitada (3 m²) e num nível com cerca de 40 cm. A partir da análise disponível da cultura material foi possível defini-la entre o Paleolítico Superior e o Neolítico Antigo, e todo o conjunto artefactual apresenta um elemento em comum, a microlitização. Esta deposição “intrusiva”, não foi a única identificada na mesma área de escavação, a U.E.[20], localizada a sul, é constituída por um sedimento de areias e argilas siltosas amarelas com fósseis de ostras completos, uma formação aparentemente proveniente dos calcários da Quinta das Conchas (MQC) e intercalada por unidades de cronologia moderna e medieval. A indústria lítica é constituída por um conjunto de 92 peças, que inclui 61% de material de debitagem, 20,6% de utensílios e 18,4% de peças indeterminadas, classificação atribuída devido ao rolamento acentuado que apresentam.
Figura 3- Análise percentual tipológica do material de debitagem.
50 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
No grupo de debitagem predominam as lascas residuais, parcialmente corticais e corticais, com 37%, seguido pelo material lamelar com 3,6% e os subprodutos de talhe, que representam 42,5%. Predominam os núcleos prismáticos e os subprodutos e os produtos de debitagem com córtex representam 41%. Os núcleos estão bem representados com cerca de 16% do material de debitagem, predominam os núcleos prismáticos e sub-prismáticos, sendo os restantes subpiramidais, informe e sobre lasca. Predominam as lascas corticais, parcialmente corticais e residuais, com 37% do material de debitagem, porém nos levantamentos dos núcleos predominam o de material lamelar, fracamente representado no espólio recolhido, por somente uma lâmina, uma lamela não retocada e uma lâmina com encoche. Os núcleos apresentam por norma dois planos de percussão paralelos, em geral facetados e as dimensões média dos negativos é de 23 mm de altura por 15 mm de largura, indicador da exploração intensa a que foram sujeitos. À exceção de um, todos atingiram o estado de esgotamento, que se traduz em núcleos com um peso médio de 55 gramas. Os resultados das sucessivas sequências de extrações são visíveis através do reavivamento de plataformas e cornijas. As lascas continuam a seguir esta tendência, e cerca de 78% possuem talões facetados ou lisos e verifica-se uma baixa densidade de talões corticais, e com os bolbos geralmente reduzidos com esquirolamento. Na utensilagem predominam as raspadeiras, apresentam um retoque direto (26,3%), bifacial (42%) e raramente inverso, os utensílios sobre lasca representam 42,1% e os sobre lamela 10,5%. Predomina uma produção de tendência microlítica, definida pelos parâmetros métricos dos utensílios e os negativos nucleiformes, os padrões tipométricos da utensilagem são de 31 mm de comprimento médio, 32 mm de largura média e 11 mm de espessura média e 42% medem menos de 30 mm e somente 21% apresentam córtex parcial. O sílex é homogéneo e de boa qualidade, dominam as cores cinza (N4, N5), negro com e sem manchas cinzentas (N3) e vários tons de amarelo, matéria-prima obtida nas imediações (afloramentos cretáceos), e o sílex negro é proveniente de seixos rolados (30%).
Figura 4 - Análise percentual tipológica da utensilagem.
Resultados preliminares da presença pré-Romana no pátio José Pedreira
Figura 5 - U.E.[1]: unidade de decapagem, com sedimento castanho-escuro com entulho, constituído por materiais de construção, fragmentos de cerâmica contemporânea de reduzida dimensão, elementos plásticos e vidro; U.E.[2]: unidade constituída por aterro, possivelmente correspondente a uma única deposição, com sedimento castanho-escuro, com elevada densidade de fragmentos de cerâmica comum moderna e menor quantidade de faiança, material de construção e fauna terrestre e reduzida de vidro e metal; U.E.[3]: sedimento castanho-escuro, com picos frequentes de argamassa e carvão. Elevada quantidade de fragmentos de cerâmica de cronologia moderna e fauna terrestre; U.E.[4]: base de muro, identificado na sondagem 1A, constituído por pedras de média e grande dimensão e argamassa fina e solta de cor amarelada e com presença, embora pouco significativa, de elementos de cerâmica e de materiais de construção; U.E.[5]: sedimento vermelho argiloso, unidade de aterro, idêntica à unidade 2, porém com uma densidade menor de cerâmica e concentração do material lítico em análise.
Figura 6 - Levantamento da sondagem 1- A/B/C, com a localização da área onde foi recolhido o conjunto de líticos. Fossa 1 e 2, materiais de cronologia moderna, Fossa 5, materiais de cronologia medieval.
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Figura 8 - Lâminas retocadas e fragmento distal de lâmina (centro).
Figura 7 - Pormenor da área de concentração do conjunto de líticos.
Figura 9 - Microutensilios: microraspadeiras e peça compósita.
Figura 10 - Microraspadeiras e microfuradores.
Figura 12 -Núcleos.
Figura 11 -Raspadeira denticulada e furador.
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Resultados preliminares da presença pré-Romana no pátio José Pedreira
A presença de materiais líticos pré-históricos não é inédito no Castelo, geralmente em deposições secundárias ou associados a contextos posteriores, que destruíram o depósito original. Os materiais sofreram a ação de agentes naturais e de transporte e esses fatores de perturbação limitam a interpretação, e as características morfológicas do conjunto lítico e a sua localização não são suficientes para estabelecer uma relação com outras indústrias identificadas. Todavia, no seu conjunto, apresentam uma tipologia que indica uma integração cultural entre o Paleolítico Superior e o Neolítico Antigo e apesar das limitações na análise referidas, apresenta um sistema tecnológico definido.
3. Análise preliminar sobre a ocupação da Idade do Ferro no edifício B1. O conjunto cerâmio da Idade do Ferro está representada por 716 fragmentos, todavia a mais importante concentração está associada a uma estrutura localizada no edifício B, compartimento 1. A intervenção neste compartimento possibilitou recolher um espólio de 4981 fragmentos de material arqueológico, dos quais 298 da Idade do Ferro, e identificar estruturas com uma diacronia ocupacional entre a Idade do Ferro e a Idade Moderna. Os contextos da Idade do Ferro, romanos e islâmicos
Figura 13 - Levantamento do edifício B1: [24] fossa islâmica escavada na rampa; [28] parede de cronologia medieval; [26] murete; [30] estrutura (rampa).
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Anabela Joaquinito
(fossa) encontravam-se sob os níveis de pavimento e embasamento do edifício do século XVII, selado, parcialmente, por um pavimento de calçada pós-terramoto. Os resultados da escavação revelaram na sondagem 1-B1, no sector noroeste, um importante contexto romano, representado por uma unidade estratigráfica (U.E. [12]), composta por sedimento homogéneo compacto de textura argilosa de coloração amarela escura, e com abundantes fragmentos de ânfora, de tipo Dressel, T-7, greco-itálica, lusitana e tripolitana antiga, num total de 475 fragmentos e de cerâmica comum (429 fragmentos); o grupo inclui também densidade média de cerâmica de construção (imbrice e tegulae), dolia e brunida e densidade reduzida de terra sigillata (sudgálica, itálica, hispânica) e campaniense. Uma ocupação Romana Republicana persistente, incluindo 2 fossas e um derrube em 3 fases, constituído maioritariamente por cerâmica de armazenamento e material de construção. O conjunto de cerâmica romana foi recuperado numa estratigrafia afetada pelo remeximento provocado pela construção do edifício, porém correspondem, na sua maioria, a produções contemporâneas. A importância desta unidade reside no facto de estar imediatamente adjacente (sector noroeste) sobre parte de uma estrutura de função não identificada provavelmente uma parcela de uma estrutura de acesso a outra, constituída por uma pequena plataforma e uma rampa formada por argamassa compacta e pedra calcária e assente no substrato e separadas por um canal escavado no substrato. A estrutura possui cerca de 3,81 m de comprimento por 1,20 m de largura máxima e um ângulo de 45º, a análise do conjunto cerâmico que fazia parte de uma parcela de um murete identificado sobre a área central da estrutura (U.E. [26]) e do depósito subjacente (U.E. [25]), permitiu atribuir-lhe uma cronologia da Idade do Ferro. Os materiais arqueológicos associados a esta estrutura são significativos, recolhidos em duas unidades seguramente atribuídas à Idade do Ferro. A U.E. [25] é composta por um sedimento argiloso, compacto, laranja escuro, a 1,20-1,40 m de profundidade e totaliza 90 fragmentos cerâmicos. Registam-se 39 fragmentos de cerâmica cinzenta (ARRUDA, FREITAS, VALLEJO SÁNCHEZ, 2000), dos quais foi possível identificar cinco taças, de colo troncocónico, e seis potes/panela. Nos exemplares de cerâmica fina, o engobe vermelho apresenta-se na superfície interna e o exterior é reservado a um polimento cuidado, e recolheu-se um bordo em aba com canelura de um pequeno pote. A maioria da restante cerâmica comum apresenta paredes retas com pasta vermelha e o acabamento final consiste somente em alisamento bifacial ou engobe laranja e polimento, de referir a decoração em dois fragmentos de parede, um composto por bandas horizontais vermelhas pintadas e o segundo com uma banda negra. A U.E. [26], consiste em parte de murete, junto à parede norte do edifício, com cerca de 25 cm de altura, constituído por sedimento argiloso de tonalidade alaranjada, clastos de pequena e média dimensão e composto por um grupo de 29 fragmentos, quase exclusivo de cerâmica comum da Idade do Ferro. Os fragmentos apresentam pastas laranja e mista (cerne cinza e vermelha), e o acabamento final consiste em engobe exterior e polimento. Destacam-se somente dois fragmentos com engobe branco.
54 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 14 - Pormenor da área de concentração do conjunto de líticos.
Figura 15 - Pormenor da estrutura e murete.
Figura 16 - Pormenor da estrutura (nordeste).
Resultados preliminares da presença pré-Romana no pátio José Pedreira
De referir na U.E. [12], de contexto definitivamente romano, com uma produção de mais de 1100 fragmentos, a presença neste depósito de cerâmica associada à Idade do Ferro, destacando um prato de peixe brunido, com bordo em aba, tipologia identificada em intervenção anterior (SOUSA, PINTO, 2016) e três fragmentos com decoração pintada, um bordo com banda castanha e dois de parede com banda negra e bandas vermelhas horizontais paralelas. A produção cerâmica enquadra-se entre os séculos VIII a V a.C., de origem provavelmente regional, com uma tipologia diversificada, todavia o presente trabalho pretende somente dar conhecimento de um contexto especifico, constituído pela estrutura identificada e uma sumária descrição do espólio cerâmico associado, cuja análise ainda se encontra nos seus primórdios.
Figura 17 - Pormenor do canal escavado.
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Uma cidade em escavação
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A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE LISBOA
Resumo:
A escavação do Largo do Coreto em Carnide (2012) identificou diversos silos no interior dos quais foram recuperados diversos elementos de cultura material, datados entre os finais do século XVI e meados do século XVII. O maior número de evidências é constituído, como expectável, por recipientes cerâmicos, entre os quais se contam diversas importações não apenas de outras regiões portuguesas, tais como Montemor-o-Novo e Estremoz, mas igualmente de outros países. As produções europeias tendem a ser as mais abundantes. Oriundos de Espanha foram identificados reflexos metálicos valencianos e de Itália importaram-se objectos das oficinas Lígures, de Montelupo e Deruta. A par destes dois países surgem ainda possíveis produções holandesas. De fora da Europa abunda a porcelana chinesa. Importa compreender esta cerâmica no contexto global da cerâmica consumida em Carnide naquela cronologia, atribuindolhe um contexto económico, social e cultural, atendendo às populações e edifícios que ali existiam. Tentaremos compreender os seus padrões de consumo e a forma como aqueles podem reflectir des(igualdades) sociais e económicas. PALAVRAS-CHAVE:
Cerâmica, importações, cultura material, consumo.
ABSTRACT:
The archaeological excavation of the Largo do Coreto in Carnide (2012) identified several storage pits inside of which a high number of material culture elements were recovered. The context can be generally dated from mid-16th to mid-17th century. As expected, the larger number of finds is pottery objects. The majority being from local production, there are some examples of imported ceramics. Within Portugal pottery has been imported from Montemor-o-Novo and Estremoz. From outside Portugal the number of finds increases and these were produced in places such as Valencia (Spain), Liguria, Montelupo and Deruta (Italy) and even in the Low Countries. From outside Europe Chinese porcelain was recovered in considerable amounts. The purpose is to understand these ceramics in the context of ceramic consumption in Carnide for such chronology connecting the items to an economic, social and cultural framework attending to the population and constructions in the nearby areas. We will try to discuss patterns in its consume and the way those patterns can reflect social and economic differences. Key words:
Pottery, imports, material culture, consumption.
Carnide. Cerâmica italiana
1.5 Louça “de fora” em Carnide
(1550-1650). Estudo do consumo de cerâmica importada
Tânia Manuel Casimiro
IAP-IHC/FCSH/UNL; AAP; Pós-doc FCT tmcasimiro@fcsh.unl.pt
Carlos Boavida
IAP/FCSH/UNL; AAP cmpboavida@gmail.com
Ana Margarida Moço
Arqueóloga estagiária no CAL/DPC/DMC/CML anamargarida94@hotmail.com
1. Introdução A escavação do Largo do Coreto em Carnide (20122013), coordenada por Ana Caessa e Nuno Mota, arqueólogos do Centro de Arqueologia de Lisboa - CML, inseriu-se no âmbito do projecto de Requalificação Urbanística e Paisagística do Largo do Coreto e Ruas Adjacentes. Embora tenham sido identificadas diversas estruturas, as mais notáveis e numerosas foram os cento e trinta e seis silos, espalhados pela zona intervencionada dos quais foram apenas escavados, total ou parcialmente, setenta e um (CAESSA, MOTA, 2014). Outras intervenções arqueológicas anteriores já tinham identificado outros silos no local (DIOGO, 1995; DIOGO, VITAL, 1998, p. 52; MONTEIRO, ANTÓNIO, 2013; ROSA, 2014). São vários os documentos que “referem as ‘covas’ e o ‘pam encovado’ de Carnide. De acordo com esses documentos, os silos seriam muitos e de grande qualidade porque teriam a capacidade de preservar os cereais por vários anos” (CAESSA, MOTA, 2016, p. 50). O sítio de Carnide era, nos séculos XVI e XVII, uma zona periférica e rural de grande importância produtiva, justificando-se a existência de centenas de silos. Estas covas, segundo a documentação, teriam múltiplos proprietários, desde particulares a instituições religiosas (CAESSA, MOTA, 2016). Ainda que o povoamento medieval não se encontre bem documentado, a partir do século XV começaram a ser construídas no local diversas casas conventuais, em consequência do milagre da Luz, o que, a par das romarias e da feira anual, terá atraído diversos habitantes, levando a que a comunidade residente fosse relativamente grande no início do século XVII (REIS, 2014, pp. 16-17). Que tipo de comunidade seria esta e qual a sua capacidade económica é algo que a cultura material recuperada dentro destes silos poderá ajudar a compreender.
Em inícios de 2014 iniciou-se o estudo da colecção cerâmica identificada. A enorme quantidade daqueles materiais tornou necessária a divisão do estudo em fases, tendo-se principiado pela análise das cerâmicas importadas. Nesse sentido, o presente artigo dá a conhecer a cerâmica importada do Oriente e Europa, nomeadamente da China, Espanha, Itália, Alemanha e Países Baixos. Inicialmente ainda foi ponderado incluir a louça produzida em Portugal, fora de Lisboa, igualmente considerada “louça de fora”, nomeadamente as louças de Estremoz e Montemor, todavia, condicionantes temporaris levaram-nos a abandonar essa ideia.. Aquela encontra-se representada sobretudo através de recipientes destinados a conter água. Ainda que aqui tenha sido considerada a totalidade dos conjuntos cerâmicos de importação esta é uma aproximação preliminar à colecção. A compreensão de quaisquer conjuntos cerâmicos só faz sentido quando analisada a totalidade dos artefactos. Os 467 objectos em porcelana chinesa parecem um número muito elevado, mas será que o é quando comparado com os milhares de objectos em cerâmica comum, cerâmica vidrada e faiança ali recuperados? Numa primeira abordagem, ainda a carecer de confirmação mais detalhada, parece-nos que a cerâmica importada, apesar de se traduzir em 692 objectos, não ultrapassará os 2 a 3% do total da colecção. Será isto o reflexo de uma comunidade abastada? A título de exemplo o silo VI da sondagem 24 ofereceu cerca de 300 peças no seu interior, mas apenas 9 delas importadas (seis porcelanas chinesas, duas majólicas italianas e uma espanhola). Esta parece ser efectivamente, com pequenas variações, a média das importações. O conjunto cerâmico, composto por elevado número de objectos, encontra-se em processamento e publicações dedicadas a outros materiais serão em breve apresentadas. A cronologia de deposição para estes recipientes foi balizada entre 1550 e 1625. Concorreram para esta in-
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Tânia Manuel Casimiro, Carlos Boavida, Ana Margarida Moço
terpretação a análise não apenas das peças importadas, de atribuição cronológica mais precisa, mas igualmente das cerâmicas de produção nacional, nomeadamente faiança e cerâmica comum. Ainda que esta datação se estenda até 1625 grande parte do conjunto parece ter sido descartada antes de 1610. Na verdade o alargamento do espectro cronológico até 1625 prende-se com a presença de uma medida onde surgem os numerais 621 e 622, no interior do silo VI da sondagem 24, o ano da sua aferição (Viana, 2015). Apesar da cerâmica ser a única categoria material aqui abordada, foram igualmente recuperadas grandes quantidades de restos faunísticos e objectos em vidro, osso e em diversas ligas metálicas (Casimiro, Boavida, Detry, 2017; Boavida, 2017). Não é propósito deste trabalho uma catalogação exaustiva dos objectos encontrados. Metodologicamente a separação foi feita por origem ou zona de produção. A cerâmica oriental enquadra não apenas a porcelana, mas igualmente outros objectos em grés designados como potes martabã. Relativamente às produções europeias a divisão foi feita em primeiro lugar por país e em segundo por centro produtor, quando possível de reconhecer. A classificação permitiu contabilizar o número total de objectos que, como se esperava, é inferior ao número de fragmentos. Desta forma, através desta hercúlea tarefa, foi possível reconhecer as peças e contabiliza-las como unidades. Quase todos os silos ofereceram louça “de fora” destacando-se os silos IX, X, XV da sondagem 24 com elevado número de importações. A título de exemplo, o último daqueles ofereceu 41 objectos em porcelana, 15 em majólica e apenas 6 objectos em cerâmica espanhola, um deles em corda-seca, o único exemplar até ao momento identificado na escavação. 2. Produções Orientais Enumerar todos os sítios arqueológicos onde foi encontrada porcelana em Lisboa e arredores é uma tarefa árdua e desnecessária. É bem sabido que a porcelana seria objecto recorrente nas casas portuguesas a partir das primeiras décadas do século XVI, sobretudo nas cidades portuárias. Estas eram efectivamente um novo produto, exótico, limpo, mas sobretudo acessível e que contrastava na perfeição com a monotonia polícroma das cerâmicas vermelhas lisboetas e uma alternativa mais económica à louça italiana e espanhola de reflexos metálicos. O número destes recipientes orientais varia nos contextos arqueológicos de acordo com a riqueza dos seus habitantes. Conventos femininos e palácios parecem ser onde estes objectos são recuperados em maior quantidade (GOMES, GOMES, CASIMIRO, 2015; GOMES et alii, 2013), apesar de elas serem uma realidade até nos contextos menos abastados (CASIMIRO, 2011; BARGÃO, FERREIRA, 2013). Em boa verdade é comummente admitido que em Portugal a porcelana teria mais do que um uso decorativo e ostentativo e seria utilizada no consumo diário de alimentos, pelo menos no seio das comunidades mais endinheiradas. Tal afirmação é confirmada em episódio ocorrido em 1573 (contemporâneo
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da deposição desta colecção) quando o Arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires se senta à mesa com o Papa Pio IV, e perante a abundância de ouro e prata refere: “Temos em Portugal um género de baixela que, com ser barro, se avantaja tanto à prata em graça e limpeza, que aconselhara eu a todos os príncipes (…) que não usaram outro serviço e deterraram de suas mesas a prata. Chamamos-lhe em Portugal procelanas, vêm da Índia, fazem-se na China. É o barro tão fino e transparente que as brancas deixam atrás os cristais e alabastros, e as que são variadas de azul enleam os olhos representando uma composição de alabastro e safiras. O que têm de quebradiço compensam de barateza (…)” (DUARTE, 2011, p. 229). Um total de 467 recipientes foram identificados dentro dos silos de Carnide. Pratos e taças são os objectos mais numerosos seguidos por garrafas e gomis, duas tampas de caixa, um bule e um castiçal. Numa ampla cronologia as peças deste arqueossítio correspondem sobretudo a produções dos reinados Zhengde (15051521) e Jiajing (1522-1567), apenas com dois pratos datáveis do século XVII. As mais antigas são peças de excelente qualidade, na maioria dos casos com decorações vegetalistas sobretudo nas abas dos pratos e paredes externas das taças (Fig. 1-D). Crisântemos e outras flores partilham o ambiente com pequenas ramagens e espirais e no centro dos pratos surgem algumas representações zoomórficas. Este seria um primeiro momento da aquisição destes bens onde a porcelana, embora frequente, ainda não era a importação mais relevante sendo superada, naquela cronologia, pela majólica italiana. Este ratio vai mudar a partir da década de 1520, quando as peças Jiajing são efectivamente mais frequentes que todas as produções europeias. Continuam a predominar as formas abertas tais como os pratos e taças ainda que tenham sido reconhecidas outras formas fechadas (Figs. 2 e 3). As decorações e formas que apresentam são sobejamente conhecidas e semelhantes ao que tem aparecido noutros contextos lisboetas (HENRIQUES, 2012; GOMES et alii, 2013) mostrando motivos vegetalistas associados a representações zoomórficas e antropomórficas, sendo as abas decoradas com pêssegos e rolos (Fig. 1) (CRICK, 2010). Destacam-se algumas peças que devido ao seu estado de conservação permitem reconhecer forma e decoração, como um grande prato com uma representação de Fénix no interior do fundo, animal que era símbolo do Sol, Boa Fortuna e Longevidade (MATOS, 1996, p. 275). Um outro prato, igualmente muito completo apresenta, no interior do fundo, dois leões a brincar com uma bola de brocados, símbolo de Sabedoria (Fig. 1-B). Outros, de semelhante produção, apresentam as abas decoradas com pinheiros, crisântemos, pêssegos, rolos, jóias e contas, entre outros motivos menos frequentes (Fig. 1-I, J). Com uma cronologia afim, o fundo de um prato apresenta um grou com as asas expandidas em pleno voo. Este animal é igualmente recorrente nas porcelanas identificadas em Portugal, com exemplos semelhantes na colecção da Casa-Museu Dr. Anastásio Gonçalves (MATOS, 1996, p. 70).
Louça “de fora” em Carnide (1550-1625). Estudo do consumo de cerâmica importada
Da totalidade de objectos recuperados apenas três apresentam particularidades que podem ser associadas ao que normalmente se reconhece como porcelana kinrande, duas delas ainda com vestígios de pintura a ouro, similares a outras identificadas em contextos arqueológicos europeus e coloniais (POMPER, 2015). Exceptuando doze peças completamente brancas (Fig. 1-E) e outra com decoração a negro, o remanescente das peças apresenta a característica decoração azul sobre branco. Foram recuperados pelo menos cinco taças com representações antropomórficas, com traços orientais, em diferentes silos. Quatro destas taças, ainda que recupe-
radas em distintas unidades, apresentam características muito semelhantes, tanto na forma, como na decoração, pelo que a data da sua aquisição pode ter sido muito próxima (Fig. 1-L). Um único fragmento de castiçal mostra decoração vegetalista. Não se conhecem muitos exemplares, mas formas afins foram recuperadas no naufrágio do São Bento (naufragado em 1552) na África do Sul (AURET, MAGGS, 1982, p. 23). Algumas peças foram reconhecidas como produções Sawtow, oriundas do sul da China (CRICK, 2010, p. 319). O fundo de um prato deste tipo revela um fabri-
Figura 1 – Porcelanas.
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Figura 2 – Formas das porcelanas.
Figura 3 – Formas das porcelanas.
co menos cuidado, com um vidrado acinzentado e muito espesso. Parece ser uma produção da segunda metade do século XVI, perfeitamente enquadrável em deposições anteriores a 1610. Uma das peças recuperadas apresenta decoração a negro e vestígios de verde no interior do fundo. As paredes externas mostram vestígios de um bovídeo delineado com traço fino acompanhando outro animal do qual só conseguimos reconhecer o dorso. No interior do fundo são visíveis os vestígios do que parece ter sido um Qilin, ou animal fantástico, do qual só sobreviveram vestígios da cabeça e da cauda (Fig. 2). Algumas produções mais tardias foram recuperadas no exterior dos silos aquando o acompanhamento das valas. É o caso de dois fragmentos de porcelana kraak, com decoração em cartelas, característicos de contextos mais tardios tais como o naufrágio da presumível Nossa Senhora dos
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Mártires, naufragada no Tejo em 1606 (COELHO, 2008). O único fragmento de martabã identificado até ao momento na presente colecção mostra a característica pasta cinzenta e o vidrado verde acastanhado. Ainda que surjam ocasionalmente nos contextos arqueológicos, não são achados frequentes e desconhecemos qual o tipo de ambiente a que estariam associados. Não existem relatos sobre a sua utilização em ambientes domésticos, servindo apenas, ao que tudo indica, como contentores de armazenamento a bordo das naus da carreira da Índia. Deviam ser objectos valiosos quando vendidos em Portugal, sobretudo devido ao exotismo de tais contentores. Conhecem-se exemplos destes contentores recolhidos em diversos locais de Lisboa, nomeadamente no Mandarim Chinês ou no Largo do Chafariz de Dentro, mas igualmente em cidades próximas tais como Almada ou Cascais (SIMÕES, 2012, p. 911).
Louça “de fora” em Carnide (1550-1625). Estudo do consumo de cerâmica importada
3. Itália Tal como acontece com a porcelana chinesa, enumerar todos os locais onde majólica italiana surgiu em Lisboa ou arredores não é de todo produtivo. Este tipo de cerâmica foi uma das importações mais frequentes entre 1450 e 1520 e pode ser encontrada em diversos locais da cidade tais como o Aljube ou o Largo do Corpo Santo (AMARO et alii, 2013; SEQUEIRA, 2015), mas igualmente em Cascais (RODRIGUES et alii, 2012) ou Almada (CASIMIRO, BARROS, 2013) só para mencionar alguns locais. De entre os locais de produção conhecidos, a majólica italiana descoberta dentro dos silos de Carnide tem origem sobretudo em Montelupo, algo que de resto é recorrente nos contextos arqueológicos nacionais onde as produções
deste centro oleiro são sempre mais numerosas. Todavia, esta louça seria conhecida em Portugal como louça de Pisa (CALADO, 2003, p. 8), visto que era a partir do porto daquela cidade na foz do rio Arno que era comercializada a cerâmica de Montelupo. Um total de 88 peças entre pratos e taças foram reconhecidas como produzidas naqueles fornos italianos. A maior parte das pastas apresenta coloração bege clara, ainda que dois exemplares ofereçam pastas vermelhas, produções que chegaram a Portugal em menor número. Até ao momento foram recuperados apenas pratos e taças de diferentes dimensões, na decoração dos quais são recorrentes, sobre fundo branco, cores como o laranja, o amarelo, o verde e o azul.
Figura 4 – Cerâmica italiana.
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Algumas das formas e decorações mais recuadas podem efectivamente remontar aos finais do século XV, nomeadamente o Contorno a ghiralda patente em dois exemplares de pratos (BERTI, 1998, p. 116). Outros pratos apresentam a decoração conhecidas como a ovali e rombi com uma datação normalmente balizada entre 1510 e 1520 (BERTI, 1998, p. 121) (Fig. 4-F). Dos inícios do século XVI surgem pratos com a aba decorada com a fáscia com bleau graffito (Fig. 4-M). Um fragmento de prato apresenta motivi vegetali della famiglia bleu na aba. Normalmente o interior do fundo destes pratos apresenta representações zoomórficas (foram identificadas as patas de um javali e a cabeça de uma lebre), antropomórficas (a cabeleira de uma senhora aparece no fundo de um prato), ou outros motivos, tais como a vela de um barco. Ainda que instrumentos musicais, tais como os tambores, sejam objectos frequentes nas abas dos pratos, em Carnide um exemplar mostra um destes instrumentos no interior do fundo (Fig. 4-H, I, J, K). A decoração foglia bleu, constituída por motivos vegetalistas azuis de grande dimensão, está igualmente presente, ocupando normalmente a totalidade da aba dos pratos, mas por vezes também no interior do fundo. Dois fragmentos com pastas mais avermelhadas apresentam decoração dita spirali arancio (BERTI, 1998, p. 191). Este tipo de decoração surge igualmente em peças produzidas com barro branco (Fig. 4-A). O maior fragmento recuperado corresponde a um prato que apresenta uma decoração recorrente, na qual se conjugam o azul, o verde e o laranja, denominada nastri (BERTI, 1998, p. 196) (Fig. 4-E), igualmente atribuível aos inícios do século XVI. Apenas um fragmento de aba decorado com armi e scudi foi recuperado, uma produção de finais do século XV ou inícios da centúria seguinte (BERTI, 1998, p. 124). Tradicionalmente as peças decoradas com azul sobre azul (berettino) são atribuídas às oficinas lígures de Albisola e Génova sendo, por norma, a segunda produção de origem italiana mais frequente. No entanto, descobertas recentes na região de Lisboa têm vindo a levantar dúvidas sobre se estas produções serão exclusivamente italianas, ou se também o poderão ser espanholas ou portuguesas (CASIMIRO, 2013; CARDOSO, BATALHA, neste volume). O que pode ser afirmado é que estas peças têm pastas, vidrados e decorações distintas, podendo efectivamente reconhecer-se diferentes fabricos, muito possivelmente oriundos de vários centros produtores do Sul da Europa; excluindo-se por ora os Países Baixos. Foram recuperadas 58 peças com estas características correspondendo a pratos ou taças. Seis exemplares de taças apresentam as paredes onduladas (Fig. 4-P,Q,R). Foram recolhidos ainda dois fragmentos de cerâmica oriundos das oficinas de Deruta. É o caso de um prato que mostra a decoração denominada petal back (RACKHAM, 1915) e de um jarro onde predomina a cor laranja. Por uma questão de gosto ou facilidade de aquisição, as cerâmicas provenientes de Montelupo são mais frequentes nos contextos arqueológicos portugueses do que as produções de Deruta, cuja presença é escassa. Apenas um fragmento de taça apresenta em ambas as superfícies decoração esgrafitada ‘grafita rinascimen-
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Figura 5 – Formas da cerâmica italiana.
tale’. De difícil atribuição geográfica é normalmente apontada como sendo produzida na zona de Veneza (FERRARI, 1990), ainda que outros centros de produção tenha igualmente apostada nesta decoração. O fragmento em questão, decorado com reticulados esgrafitados no vidrado branco apresenta manchas de vidrado verde. Este tipo de produção é igualmente pouco comum em Portugal tendo no entanto sido recuperada em diversos pontos de Lisboa, sobretudo na frente ribeirinha em contextos da primeira metade do século XVI, correspondendo à cronologia de produção que se situa entre meados do século XV e finais do século XVI. 4. Espanha Se não é clara a origem das cerâmicas ditas ‘azul sobre azul’, mais complicado ainda será atribuir uma proveniência concreta às cerâmicas revestidas a vidrado estanífero branco, identificadas no interior dos silos. Ta-
Louça “de fora” em Carnide (1550-1625). Estudo do consumo de cerâmica importada
Figura 6 – Cerâmica espanhola.
ças carenadas, escudelas e pratos com fundo em ônfalo são as formas mais recorrentes (Fig. 6-A). Durante anos a bibliografia portuguesa atribuiu o fabrico destas peças às oficinas andaluzas e apenas recentemente se reconheceu puderem resultar de produções de centros oleiros portugueses (GOMES, GOMES, 1996; BARBOSA, CASIMIRO, MANAIA, 2009). À data em que os silos de Carnide foram abandonados, a produção de louça branca em Portugal era já uma realidade, algo que provavelmente aconteceu antes de 1520, pelo que é muito provável que a maior parte daquelas peças sejam de produção lisboeta (CASIMIRO, 2013, p. 354). A comparação entre pastas de Sevilha e Lisboa leva-nos a crer que em Carnide existem objectos produzidos tanto na capital portuguesa como naquela cidade andaluza, mas ainda não foi possível quantificá-las, pelo que optámos por abordá-las em outro trabalho que nos encontramos a preparar sobre a Faiança Portuguesa. Não obstante as dúvidas que se colocam sobre a origem da louça branca, as que apresentam decoração em
reflexo metálico não permitem quaisquer dúvidas, visto que não existem, até ao momento, evidências documentais ou arqueológicas da sua produção em solo português (Figs. 6 e 7). Relativamente à colecção de Carnide foram identificadas 22 vasilhas decoradas com recurso a esta técnica. A maior parte dos objectos são pratos e taças, ainda que surja uma vasilha de grandes dimensões, com forma troncocónica. Esta parece-nos corresponder ao que normalmente é designado como ‘albahaquero’, ou seja, um pote onde se planta albahaca (majericão), cuja pasta e vidrado sugere tratar-se de uma produção valenciana (MARTINEZ CAVIRÓ, 1991, p. 243; 1983). Uma inscrição na base, com os caracteres (…) V.ERBV.E (…) pode sugerir uma simplificação do termo ERBUM sugerindo essa funcionalidade (Fig. 6-H). Ainda que a legenda esteja invertida não é algo inédito em cerâmicas medievais e modernas. Parece tratar-se de uma produção ainda de finais do século XV ou inícios do século XVI. Não descartamos, no entanto, a probabilidade de se tratar de uma tampa, possivelmente de tágine.
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Com uma cronologia afim surgiu um pequeno fragmento de fundo de prato no qual foi utilizada a técnica da corda seca, o único exemplar com esta decoração identificado no interior dos silos. Quanto aos pratos e taças com decoração em reflexo metálico reconhecem-se produções de três locais distintos. A maior parte será oriunda de oficinas valencianas, onde a decoração corresponde sobretudo a arabescos e motivos vegetalistas como a folha de salsa (MARTINEZ CAVIRÓ, 1991, p. 190). Os pratos oferecem grandes dimensões e alguns deles perfurações que associamos a peças destinadas a ser penduradas. Foi recolhida pequena escudela com asas recortadas em forma de flor, cujo tom avermelhando do seu vidrado sugere tratar-se de uma produção de Muel de meados do século XVI. Outro exemplar de prato, atendendo à sua decoração vegetalista e tardoz preenchido com linhas concêntricas, poderá ter origem sevilhana (PLEGUEZUELO, 2014). As peças decoradas a reflexo metálico surgem em diversos contextos arqueológicos portugueses, sendo mais frequentes durante os séculos XIV, XV e inícios do XVI (GOMES, GOMES, 1996). A fraca incidência destes fragmentos quando comparados com o elevado número de importações italianas e chinesas leva-nos a crer que quando esta louça foi descartada, durante a segunda metade do século XVI, seriam objectos que, já estariam na posse das famílias de Carnide há, pelo menos, uma ou duas gerações. São peças de elevada qualidade, pelo que eram mantidas e bem guardadas. Esta conclusão baseia-se não apenas na sua quantidade, mas igualmente no facto de as podermos colocar cronologicamente, ao exemplo de algumas majólicas de Montelupo, ainda nos finais do século XV ou inícios do século XVI. Até ao momento acredita-se que a louça comummente designada de Isabella Polycroma nunca foi produzida em Portugal, tratando-se de pratos e taças decorados com azul e manganês (Fig. 6-D), ainda que alguns fragmentos tenham sido identificados, nos inícios do anos 80, no caqueiro do forno da Mata da Machada (TORRES, 1990). Foram reconhecidos 22 exemplares desta tipologia no interior dos silos de Carnide que, face a sua grande previvência ao longo do século XVI, não é possível atribuir uma cronologia precisa. Cerca de 20 objectos com vidrado castanho amarelado, decorados com traços de manganês, foram identificados neste contexto arqueológico (Fig. 6-C). São achados frequentes na cidade de Lisboa, sobretudo em contextos da primeira metade do século XVI (TORRES, TEIXEIRA, 2015, p. 204). Entre os alguidares identificados destaca-se elevado número daqueles produzidos em pastas claras e vidrados a verde plumbífero. Embora apresentem pastas cerâmicas muito semelhantes às de fabricos andaluzes, não foi possível concluir se são provenientes daqueles centros produtores ou de outros em território nacional, incluindo Lisboa. 5. Países Baixos Como seria expectável, não foram identificadas cerâmicas revestidas a esmalte estanífero produzidas nos Países Baixos. Este é o momento em que naquela região se estavam a produzir imitações italianas pelo que
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Figura 7 – Formas da cerâmica espanhola.
não faria sentido qualquer importação. As peças identificadas tratam-se de algo que ocasionalmente surge nos contextos arqueológicos dos finais do século XVI ou inícios do XVII. Pequenos objectos produzidos com o mesmo caulino com o qual se produziam os cachimbos. Estas peças, devido à sua reduzida dimensão, não nos parecem ter servido outra funcionalidade para além da decorativa, destacando-se pequenos cestos, potes ou queimadores (Fig. 8). Deste último formato, mas de maior dimensão e também em caulino, foi colectado um
Louça “de fora” em Carnide (1550-1625). Estudo do consumo de cerâmica importada
colónias, tendo chegado em grandes quantidades a Inglaterra, Irlanda e ao Novo Mundo (GAIMSTER, 1997). Em Portugal, nomeadamente em Lisboa, são de achados ocasionais nos contextos arqueológicos, mostrando quase sempre elevada qualidade, mas raramente em grandes quantidades (SOUSA, 2011, p. 329; COELHO, 2015). 7. Conclusão
Figura 8 – Cerâmica holandesa.
exemplar na Rua da Judiaria, em Almada, em contexto atribuído à primeira metade do século XVII. Por ora não é possível avançar com um centro produtor concreto para estes objectos, até porque a bibliografia sobre aqueles é escassa, sendo referidos em publicações que abordam sobretudo cachimbos e pequenas figuras de caulino (GRIM, 2011). 6. Alemanha No interior dos silos de Carnide foram identificados três recipientes em grés, frequentemente designados como ‘vidrados de sal’. Estes objectos, produzidos em larga escala e destinados sobretudo ao consumo de cerveja, eram comercializados por toda a Europa e nas suas
Analisar a “louça de fora” em qualquer contexto arqueológico é extremamente relevante pelos dados que dessa análise poderão resultar, no entanto trata-se de uma tarefa que poderá criar mais dúvidas do que as que esclarece. Os estudos mais recentes têm demonstrado que várias tipologias cerâmicas até aqui classificadas como importadas, eram, afinal, de produção portuguesa. Neste sentido apenas temos a certeza que as porcelanas, as peças de Montelupo, os reflexos metálicos e as produções em grés e caulino são exógenas. Quanto às restantes apenas as podemos apresentar e reflectir sobre a sua produção e consumo. A maior parte das importações é oriunda da China. No momento em que esta louça foi descartada (1550-1610), a porcelana não só era mais fácil de adquirir que a louça europeia, como era igualmente a mais apetecível. É difícil concluir se neste contexto a porcelana da China seria apenas louça de aparato ou utilizada à mesa quotidianamente visto que não foram reconhecidas marcas de uso, difíceis de reconhecer neste tipo de produções. Seja como for, esta comunidade possuía estas peças em contextos domésticos, não se limitando aos pratos e taças, mas igualmente a outro tipo de objectos, tais como um castiçal. É importante ter presente que, no momento da sua aquisição, exemplares mais antigos como os decorados a reflexos metálicos e alguns de origem italiana, seriam objectos bastante dispendiosos, o que lhes conferiria o estatuto de objectos de prestígio. Por esse motivo eram guardadas e estimadas como bens familiares (eventualmente até sentimentais), permanecendo na posse de uma família por mais do que uma ou duas gerações. Na contabilização geral foram recolhidas 692 peças importadas que não deverão corresponder a mais do que 3% do total dos objectos recuperados. Poderemos afirmar, face a estes números, estarmos perante um contexto abastado? É ainda cedo para o afirmar. Será necessária a comparação com outros contextos associados a desperdícios domésticos, de igual cronologia, oriundos de outras partes da cidade de Lisboa, centrais ou periféricos, mais dedicadas ao comércio e administração pública. O predomínio da porcelana chinesa é algo expectável nesta cronologia. A partir de 1510 a porcelana Zhengde torna-se uma presença assídua nas casas portuguesas, mas ainda não em quantidade suficiente para substituir as importações italianas e espanholas, algo que só ocorreu a partir de 1530, quando a louça Jiajing chegou em número suficiente para colocar a cerâmica europeia em segundo plano. A partir de então a presença de importações espanholas e italianas diminuiu e a cerâmica oriental ocupou o seu espaço nos armários e mesas do Portugal Moderno. A segunda metade do século XVI foi o grande momento do consumo de porcelana em território nacional, situação
Uma cidade em escavação
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que se esbateu nos inícios de 1600, quando o comércio no oceano Índico deixou de ter exclusividade portuguesa. Assistiu-se a partir de 1520 a uma mudança de gosto não apenas no estilo, mas igualmente na paleta de cores e temas decorativos, o que marcou quase todo o século XVII. Carnide no século XVI e XVII era, efectivamente, tal como ainda hoje, uma área periférica à cidade de Lisboa. Marcadamente rural, a produção cerealífera estava na base da economia. Sendo ainda cedo para afirmar que estamos perante uma comunidade rica, o certo é que o tipo de cultura material encontrada é muito semelhante ao que se identifica em cronologias afins não apenas na zona ribeirinha de Lisboa, mas igualmente nas cidades próximas, tais como Cascais ou Almada. Se por um lado, tendo em conta o seu contexto económico, social e cultural, os estudos comparativos vão permitir compreender o poder de compra desta comunidade; por outro, os padrões de consumo destes bens vão também reflectir as (des)igualdades sociais e económicas daquelas populações e dos espaços que habitavam. Agradecimentos Os autores gostariam de agradecer em primeiro lugar a Ana Caessa e Nuno Mota por terem tornado a colecção acessível ao estudo, tal como a todos aqueles que diariamente nos acompanham e apoiam no Centro de Arqueologia de Lisboa. Os agradecimentos são extensíveis a José Pedro Henriques, pelas entusiasmantes discussões sobre os conjuntos cerâmicos lisboetas, assim como aos voluntários do Centro de Arqueologia de Lisboa, Conceição Nabais, Albino Marques e José Mendonça. Finalmente à Paula Caetano que connosco começou este estudo, mas que infelizmente não o pôde continuar.
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Uma cidade em escavação
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2.
A CIDADE MANUFATUREIRA E INDUSTRIAL
2. Rua de Santiago, Lisboa: tanques romanos na requalificação do edifício sito no Nº 10-14 João Miguez, Alexandre Sarrazola
3. Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa Mário Varela Gomes, Rosa Varela Gomes, Joana Gonçalves
4. Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
5. Evidências de produção oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa) Guilherme Cardoso, Luísa Batalha
6. Uma intervenção em pleno Bairro das Olarias: novos dados sobre a produção oleira no século XVII Inês Mendes da Silva, Marina Pinto
A cidade manufatureira e industrial
Resumo:
A detecção de dois tanques romanos geminados no interior do futuro Hotel de Santiago confrontou a equipa da ERA com um quadro de múltiplas dúvidas e nenhuma certeza. I.e., estamos face a uma realidade arquitectónica em tudo semelhante a uma cetaria (não o sendo), atulhada com aterros modernos/ contemporâneos, parcialmente destruída por uma edificação medieval/moderna. A fórmula jornalística de abordagem à realidade (3Q+OPC) é uma blague que nos confronta com as nossas saudáveis limitações face ao registo arqueológico. Porém, esta salubridade intelectual depende de uma prerrogativa basilar: não deixar nunca de perguntar. Neste caso concreto, assume particular relevância o questionário relativo à localização do fórum de Olisipo, à malha urbana da cidade e à contínua construção do estado actual dos nossos conhecimentos sobre Lisboa romana - e todos os equívocos, escolhas e problemas interpretativos que (felizmente) caracterizam tal investigação. PALAVRAS-CHAVE:
Olisipo, Arqueologia Urbana, forum, unidades industriais, malha urbana, período romano.
ABSTRACT:
The detection of two twin Roman tanks into the future Hotel Santiago confronted the ERA team with a multiple doubt framework and no certainty. Id est we are faced with an architectural reality at all like a Cetaria (not being), crammed with modern/ contemporary landfills, partially destroyed by a medieval/modern building. The journalistic formula approach to reality (5W) is a blague that confronts us with our healthy limitations against the archaeological record. But this intellectual health depends on a fundamental prerogative: never stop asking. In this case it is particularly relevant in the questionnaire on the location of Olisipo forum, the urban fabric of the city and continued construction of the present state of our knowledge of Roman Lisbon - and all the mistakes, pitfalls and interpretative problems that (thankfully) characterize such research. Key words:
Olisipo, Urban Archaeology, forum, industrial units, urban mesh in the Roman period.
Rua de Santiago. Escadas em tijoleira
2.2 Rua de Santiago, Lisboa:
tanques romanos na requalificação do edifício sito no Nº10-14
João Miguez Alexandre Sarrazola ERA-Arqueologia, SA geral@era-arqueologia.pt
1. Introdução O nº 10-14 da Rua de Santiago localiza-se na antiga freguesia de Santiago, agora Santa Maria Maior, em Lisboa. Tratava-se de um edifício de construção setecentista, muito alterado ao longo dos tempos e em bastante mau estado de conservação, tendo-se degradado muito ao longo do último século de ocupação. A Rua de Santiago sofreu ela própria algumas alterações ao longo do tempo. Observando a cartografia antiga de Lisboa, nomeadamente na planta de Braunio (Fig. 2), verificamos que o arruamento tinha uma morfologia diferente da actual, sendo que anteriormente se encontrava aqui um largo. Em época posterior, com o avanço de fachadas este largo tornou-se um espaço exíguo dando origem à rua que hoje encontramos. No entanto, é também possível observar que, mesmo com o terramoto de 1755, este arruamento não sofreu alterações significativas, mantendo praticamente a mesma traça desde Época Moderna até agora (Figs. 3 e 4). A descrição que Norberto de Araújo faz desta zona na sua obra Peregrinações em Lisboa aponta para a existência de diferentes palácios, nomeadamente o dos Condes de Ferreira e de Tentúgal (nº 9) e o edifício que ocupa os n. 10-14, que pertenceu aos Castros Condes de Basto e em 1820 era dos Perry de Linde. Durante os séculos XVI-XVIII muitos fidalgos e gente de qualidade esqueceram ou recompuseram os seus palácios, todavia, após o terramoto de 1755 essas propriedades “[...] foram reedificadas, transformadas ou descaracterizadas [...] perdendo a feição grave palaciana, e algumas, mesmo, do seu primitivo não deixaram visível sinal.” (ARAÚJO, 1992, p. 62). Faz ainda referência à morada dos Priores de Santiago, que teve sempre lugar no nº 10 desta rua. Este imóvel é referido por Ferreira de Andrade, na sua obra sobre a Freguesia de Santiago, onde faz referência
ao edifício sito nos n. 10-12 da Rua de Santiago dizendo que “[...] apesar da sua deturpação arquitectónica, da sua fachada de múltiplos e incríveis enxertos, de vulgaríssimos arranjos de mestres de obras, da amálgama de escadas, saguões, pátios interiores, cubículos improvisados, um edifício com largas características das construções solarengas da Lisboa quinhentista”. Refere ainda que durante pelo menos cem anos, de meados do século XVI a meados do século XVII, este imóvel pertenceu aos Castros Condes de Basto, sendo que em 1755 era propriedade de António Pery de Linde (ANDRADE, 1948). 2. Trabalhos realizados Os trabalhos realizados pela ERA-Arqueologia compreenderam diferentes etapas. Em 2012 foram realizadas 7 sondagens de diagnóstico, cinco no piso térreo e duas no piso 2. Estas sondagens permitiram caracterizar os distintos espaços intervencionados, onde se observou uma divisão clara entre o piso térreo e o piso 2. No piso térreo realizaram-se 5 sondagens, e apenas nas sondagens 4 e 5 foi identificado um espaço diferenciado do actual. Na sondagem 4, localizada num compartimento interior, registou-se uma superfície de circulação que remete para um espaço exterior, possivelmente de estábulo. Na sondagem 5, para além de uma canalização, identificou-se uma calçada, parcialmente destruída, que representa um nível de circulação anterior ao actual. Nas restantes sondagens, após a remoção dos pavimentos actuais registaram-se depósitos de aterro e infra-estruturas ou o substrato geológico local, rocha, imediatamente à superfície (sondagem 2). As realidades observadas nas sondagens efectuadas no piso 2, (sondagem 3 e 6), apresentam estratigrafias distintas. O espaço da sondagem 3 terá correspondido
Uma cidade em escavação
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João Miguez, Alexandre Sarrazola
Figura 1 - Localização do edifício sito nos n. 10-14 da Rua de Santiago na CMP, Folha 431.
a uma área de despejos domésticos num período compreendido entre o século XVIII e o século XX, que se caracteriza pela acumulação de depósitos com presença muito frequente de cerâmica, fauna, metal e vidro. As realidades identificadas na sondagem 6 indiciam uma área construída, não sendo possível com os dados disponíveis caracterizar funcionalmente este espaço. Os depósitos escavados reportam-se a momentos de abandono das diferentes estruturas (contextos secundários), que terão ocorrido em Época Moderna/Contemporânea. Os contextos arqueológicos identificados durante esta fase de diagnóstico remetiam para uma ocupação deste espaço que recuava ao século XVIII. Em fase posterior procedeu-se ao acompanhamento arqueológico de um conjunto de sondagens geotécnicas, 8, realizadas no interior do edificado. Assim, no pátio do piso 2 foram realizadas 4 sondagens/poço que permitiram verificar uma continuidade no tipo de contextos já observados no local, surgindo uma sucessão linear de depósitos, interpretados como aterros/lixeiras, cuja formação pode ser datada do Período Moderno. No local não se verificou a presença de outros contextos arqueológicos preservados, continuando a remeter-se para este sítio uma ocupação que recua ao século XVIII. No piso térreo foram abertas 4 sondagens que permitiram observar a presença de níveis contemporâneos de entulho/aterro sobrepondo o substrato geológico, não se tendo registado contextos arqueológicos preservados. Foi também feito o levantamento de todo o edificado presente previamente à fase de obra, o que em muito ajudou as fases subsequentes do trabalho.
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3. Acompanhamento arqueológico Como ponto de partida, merecem destaque os moldes em que este trabalho foi efectuado. Tratou-se de um acompanhamento arqueológico permanente, que envolveu quer a escavação do subsolo quer as picagens e demolições de paredes, permitindo uma leitura espaço-temporal do edifício. De notar também a vontade por parte do dono de obra e equipa de arquitectura em integrar desde início alguns dos achados, quer móveis quer arquitectónicos, mantendo-se sempre um diálogo entre todas as partes envolvidas, o que não é muito comum neste tipo de trabalhos. Assim, procedeu-se ao acompanhamento permanente, presencial e directo dos trabalhos de escavação em toda a área do edifício, nomeadamente no piso térreo e no pátio interior localizado no piso 2. Foram também acompanhados os trabalhos de picagem de paredes e abertura de vãos de modo a permitir uma leitura de préexistências no que toca à arqueologia parietal. 4. Faseamento da ocupação Os trabalhos de escavação permitiram dividir a ocupação deste espaço genericamente em três fases. Dizemos genericamente pois, como veremos, verificou-se uma ausência de espólio arqueológico que fosse passível de fornecer datações. Como tal este faseamento teve em conta mais a evolução estrutural do edificado do que propriamente contextos arqueológicos.
Rua de Santiago, Lisboa: tanques romanos na requalificação do edifício sito no Nº 10-14
Figura 2 - Igreja de Santiago na cartografia de final do século XVI (BRAUN, HOGENEBERG,1593).
Figura 3 - Localização do Imóvel situado nos nºs 10-14 da Rua de Santiago na Planta de Vieira da Silva, 1899.
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Assim, a fase mais remota, anterior ao edificado agora presente, encontra-se plasmada em duas estruturas geminadas do tipo tanque, no átrio de entrada do nº 12, das quais só foi possível conhecer o perímetro integral de uma, medindo cerca de 2,30m por 1,20m. Estas estruturas foram desactivadas e parcialmente destruídas aquando da construção do edifício, tendo uma delas sido utilizada como base do alicerce do edifício moderno (Fig. 4). Para a sua construção foi feito um corte no substrato calcário local, tendo as paredes recebido uma moldura constituída por elementos de calcário de médio tamanho, ligados por argamassa cinzenta-esverdeada A base destas estruturas foi feita com recurso a elementos de calcário e basalto, disposto horizontalmente, ligados por uma argamassa semelhante à verificada nas paredes. O revestimento é constituído por um opus signinum que utiliza como inerte brita calcária em vez de cerâmica moída como é mais usual. Este revestimento cobre as superfícies internas dos tanques, apresentando estes os cantos arredondados e a presença de um rodapé em meia cana. No centro apresentava uma ligeira depressão circular que deverá ter servido para limpeza das estruturas (Fig. 5). A cronologia destas estruturas, só nos poderá ser dada pelo seu modo construtivo, não se tendo registado a presença de materiais arqueológicos passíveis de fornecer datações, encontrando-se cobertas por depósitos de cronologia contemporânea, século XX. Ainda que o material que reveste estas estruturas não se assemelhe ao tradicional opus signinum, o seu modo construtivo, muito semelhante ao utilizado em estruturas romanas deste tipo, poderá indicar tratar-se de uma estrutura que remontará a esta época. Como anteriormente mencionado, em trabalhos realizados na cidade de Lisboa, tem-se registado em algumas estruturas de cronologia romana a utilização de opus signinum que usa brita moída como inerte ao invés de cerâmica, como por exemplo na unidade de preparados de peixe da Casa do Governador em Belém (FILIPE, FABIÃO, 2006/2007), nas cetárias da Casa dos Bicos, nas cetárias da Rua dos Bacalhoeiros e no próprio Teatro (informação pessoal da Dra. Lídia Fernandes, que muito agradecemos). Aparentemente trata-se de um regionalismo que usa a matéria-prima local em paralelo com fragmentos de cerâmica, encontrando-se estes últimos em menor quantidade. Torna-se difícil atribuir uma funcionalidade a estas estruturas, apesar da sua morfologia ter algumas semelhanças com cetárias. No entanto, estruturas deste tipo não fariam sentido a cotas altimétricas como as que se encontram neste local, cerca de 60 m. A proximidade com a zona nobre da cidade, com o teatro e o possível fórum localizado no antigo Convento dos Loios (FABIÃO, 2009) poderá indicar a pertença destas estruturas a uma possível domus. No entanto a já referida ausência de materiais que possam atribuir uma cronologia concreta a estas estruturas não nos permite tecer mais considerações sobre as mesmas. Dado o seu estado de conservação e a impossibilidade de manter as estruturas no local, o que inviabilizaria o projecto, e após o acordo de todas as entidades envolvidas no processo, nomeadamente a Direcção Geral do
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Património Cultural (DGPC), procedeu-se ao desmonte arqueológico das mesmas. Este desmonte permitiu uma leitura do modo como as estruturas foram construídas, tendo sido escolhido ¼ da que se encontrava em melhor estado de conservação para ser posteriormente musealizada no local onde se deu o seu achado. Seguiram amostras para o LNEC, cujos resultados aguardamos, tendo também o empreiteiro, Teixeira Duarte S.A., procedido a análises da resistência das argamassas. Os resultados obtidos neste teste deram uma resistência à compressão entre os 18,9 e os 21. Este teste, usado por norma para testar a resistência dos betões usados em obra, sendo “...a característica mecânica mais importante do betão...resistir às tensões de compressão enquanto as armaduras têm a função de resistir às tensões de tracção” (APPLETON, 2002). Se considerarmos que os betões mais usados vão desde o C12/15 ao C50/60, cujos nomes apresentam o intervalo de resistência à compressão (CARMINHO, 2012), verificamos que as amostras de opus destas estruturas se encontram em níveis ainda hoje considerados normais, o que vem demonstrar, mais uma vez, a grande durabilidade e resistência das construções e argamassas romanas. Posteriormente verifica-se um hiato na ocupação do espaço, constituindo a seguinte ocupação a construção do actual edifício em Época Moderna, séculos XVI/XVII. Como elementos testemunhos desta época, merece realce um grande arco em cantaria de calcário, com um comprimento total de cerca de 8 metros no seu interior, apresentando cada bloco um perfil hexagonal, e medindo cada um entre os 0,42m e os 0,46m. Dado o tamanho monumental deste arco, este espaço teria uma configuração diferente, podendo a parede Sul do edifício não existir ou ter uma abertura para um espaço exterior, por exemplo uma rua, no local onde hoje se situa o pátio interior (Figs. 6 e 7). Verificamos que onde agora se localiza o átrio do edifício se situou uma zona de espaço exterior que terá sido desactivada aquando do avanço da fachada. Este avanço da fachada situar-se-ia no alinhamento deste grande arco. À entrada do compartimento situado a Norte do pátio de acesso no nº 12, após se terem retirado as ombreiras em cantaria localizadas na entrada, verificou-se que a esquina Oeste da mesma tinha presente grandes blocos calcários que se destacavam do resto do aparelho construtivo (Fig. 8). Estes encontram-se no mesmo enfiamento do grande arco situado na zona do saguão/cisterna, o que poderá indicar que aqui se poderia localizar a fachada original do edifício ou que teria uma configuração diferente da actual, sendo o pátio de acesso um acrescento posterior, possivelmente de época pombalina devido aos arcos aqui presentes. Este dado parece ser comprovado pela configuração dos edifícios na Rua de Santiago. Através de fotografia aérea é possível verificar aquela que seria a antiga fachada dos edifícios neste local da rua, formando uma linha recta, que passa pelo local onde se situam os elementos atrás descritos. Será depois a esta fachada a que serão adossados os novos edifícios que incorporam os antigos e formando os espaços que agora se encontram no local (Figs. 9 e 10).
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Figura 4 – Estruturas do tipo tanque. Figura 5 – Corte feito nas estruturas.
Figura 6 – Grande arco em pedra. Figura 7 – Grande arco em pedra.
Figura 8 – Blocos de cantaria.
Figura 9 – Vista área onde é visível a antiga linha de fachada.
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Figura 10 – Planta do actual edificado.
Ainda na actual entrada do nº 12, verificou-se a presença de uma série de caneluras gravadas no substrato geológico, formando linhas paralelas entre si, não sendo descabido assumir esta zona como uma zona exterior de circulação, antes de ser a antiga fachada/zona de entrada. Estes vestígios são então testemunha de uma época em que esta rua teria uma configuração diferente da actual, quando seria um largo, bem como da evolução estrutural de que o edifício foi sendo alvo ao longo dos tempos. Contemporânea da construção do edifício será também a cisterna que aqui se encontrava, de planta oval e com uma altura máxima de cerca de 6,80m. Composta por uma cúpula semi-circular, feita com recurso a blocos de calcário local de pequeno e médio tamanho, dispostos em fiadas irregulares, ligados por argamassa de cal e areia de coloração cinzenta-esbranquiçada com uma espessura que variava entre os 30 e os 60 cm. Tal cúpu-
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la sobrepunha-se à parede da cisterna, cujo aparelho era semelhante, encontrando-se a face exterior rebocada. A parede interior encontrava-se revestida por um reboco, com uma espessura entre 1 e 3 cm e com uma coloração avermelhada/rosa (Figs. 12 e 13). Após a limpeza do seu interior verificou-se que o seu fundo era composto por um piso em tijolo de burro, um pouco à semelhança de outros já mencionados. A sua altura máxima, desde a boca até ao fundo, era cerca de 6,87 m, verificando-se também que apresentava uma secção oval, sendo a sua largura interior máxima cerca de 3,60 m e mínima 3,10 m. A esta época pertencerá também o conjunto de realidades parietais detectadas no piso 1 que serão as mais antigas do edifício. Destaca-se uma porta em cantaria do estilo gótico, com blocos de perfil hexagonal e com um característico arco ogival (Fig. 14).
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Figura 11 – Caneluras no substrato geológico na entrada do actual nº 12.
Figura 13 – Interior da cisterna.
Figura 12 – Cúpula da cisterna.
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Figura 15 – Parede com porta entaipada.
Figura 17 – Escadas em tijoleira.
Figura 16 – Escadas em tijoleira.
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No compartimento adjacente uma das paredes apresentava uma porta que estava virada para o interior de um arco, tendo o negativo da porta em madeira ficado gravado no enchimento que preenchia o topo do arco até ao piso 2 (Fig. 15). Aquando dos trabalhos de demolição desta parede e do respectivo enchimento que se encontrava sobre o arco, verificou-se que este cobria umas escadas em caracol, feitas em tijoleira e para as quais dava a porta. Estas escadas terminam abruptamente numa parede, fazendo crer que poderiam continuar, possivelmente para a zona de saguão/cisterna (Figs. 16 e 17). A propósito destas escadas e também da cisterna, importa referir uma passagem da já mencionada obra de Ferreira de Andrade, “A Freguesia de Santiago”, onde acerca deste edifício menciona “[...]um portão[...] dá entrada para um pateo[...] onde tem uma coelheira, cavalariça e palheiro, e outro pateo ao lado esquerdo, com a sua cisterna e ao lado direito uma escada para os dois andares, pertencendo ao segundo andar um pequeno quintal de sequeiro com as suas arcadas de cantaria[...]”(ANDRADE, 1948). Esta descrição deve corresponder à actual entrada com o nº 12, onde a cavalariça corresponderá aos sulcos gravados no chão, o pátio e a cisterna do lado esquerdo com as escadas que corresponderão a estas que agora se apresentam. Entre o Período Moderno e Contemporâneo o edifício sofre toda uma série de alterações que vão alterando a sua morfologia, sendo difícil atribuí-las a um período especifico, com a construção de infraestruturas como por exemplo a desactivação de portas, janelas e escadas que foram aterradas e tapadas pela construção de uma parede. Algumas destas alterações terão envolvido uma grande mudança ao nível arquitetónico e estrutural do edifício, nomeadamente o já referido avanço da fachada. Este avanço faz também com que as funcionalidades de algumas divisões se alterem, como por exemplo no compartimento situado mais a Norte no Nº 12, onde até agora se situaria a fachada, apresentando uma série de caneluras, que formavam um padrão reticulado, que imitava uma calçada, correspondendo a uma superfície de circulação, provavelmente uma cavalariça (Fig. 18). Nos pisos superiores verificou-se a presença de portas e janelas entaipadas e outros elementos que demonstram a alteração do espaço, com a anexação de novos espaços e mudança nos hábitos de ocupação dos diversos compartimentos do edifício. A última fase de ocupação do sítio pertencerá genericamente já à Época Contemporânea, genericamente no século XX, demonstrando como estas alterações foram graduais até aos dias de hoje, tratando-se de um processo contínuo de alteração da morfologia do espaço. Aqui perde-se a função palaciana, passando a funcionar quase como uma vila urbana onde passam a morar várias dezenas de pessoas e famílias. Esta necessidade de ocupação maior do espaço faz com que o edifício sofra inúmeras alterações, com a construção de várias paredes de tabique, abertura de roços para colocação de infraestruturas de saneamento, etc (efeito de cortiço). Este modus operandi parece ser quase uma norma nestas casas senhoriais de Época Moderna, que foram sendo nos últimos anos adaptadas para um tipo de ocu-
Figura 18 – Padrão reticulado gravado no substrato geológico.
pação muito densa, que se por um lado praticamente “apaga” os antigos vestígios ocupacionais, por outro faz parte da evolução do edificado criando novos vestígios. Anteriores paredes são agora pintadas de novo, fechamse portas e janelas, o que antigamente funcionava como átrio de entrada de um palácio passa agora a funcionar como átrio de entrada de um prédio, o pátio interior é também ele ocupado para a construção de novas divisões. 5. Materiais No que toca aos materiais arqueológicos verificou-se serem residuais, tendo em conta o volume da escavação. Como já se referiu não se verificou a presença de espólio anterior ao séc. XVI, sendo todos contemporâneos da construção do edifício ou posteriores à mesma. Esta construção terá eliminado vestígios de épocas anteriores com a excepção dos tanques que terão servido como suporte para um dos alicerces. O facto do edifício se encontrar construído directamente sobre o substrato geológico, aqui calcários locais, fez com que a cada remodelação os níveis anteriores fossem eliminados, sendo a potência estratigráfica em todo o edifício muito reduzida. A excepção será o pátio interior no segundo piso. Aqui verificou-se a presença de aterros com uma altura de cerca de 6 metros, assentando os mesmos sobre o substrato geológico. No entanto, e mais uma vez, estes não apresentavam materiais anteriores à construção do edifício. A explicação para estes aterros poderá ter a ver com o já referido avanço da fachada, e altura em que este espaço poderá ter subido de cota. Poderá em tempos este pátio ter funcionado a uma cota perto da do piso 0, tendo sido posteriormente alteada em função da anexação de outros espaços e alteração das necessidades actuais. 6. Hotel Santiago A construção do hotel veio, mais uma vez, introduzir novos espaços, fechar outros e introduzir todo um novo paradigma na ocupação do edificado. A principal diferença nesta transformação e ocupação prende-se com a preocupação em preservar os vestígios da anterior construção, apesar de o alterar. Quer com o acompanhamen-
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to arqueológico, que através do princípio da preservação pelo registo permite conservar a memória do edifício, quer com a vontade demonstrada por parte do dono de obra e do arquitecto em preservar alguns vestígios encontrados, tendo os mesmos contribuído com ideias para essa mesma integração, estes ficaram a fazer parte do hotel de modo a torná-los numa mais-valia, preservando a memória dos mesmos. Esta vontade por parte de todas as partes intervenientes neste projecto é aqui de realçar por se tratar de uma excepção. Na maior parte destes casos assiste-se ao desmonte sistemático de estruturas arqueológicas, à grande alteração da traça dos edifícios, onde fica incólume praticamente só a fachada dos mesmos. As escadas em caracol feitas em tijoleira, serão porventura o melhor exemplo de integração. Estas encontram-se agora num dos corredores de acesso aos quartos do 2º piso do hotel, devidamente preservadas e tapadas por um vidro, encontrando-se visíveis para os hóspedes (Fig. 19). A cisterna foi parcialmente desmontada, tendo sido aberta uma porta na mesma, funcionando agora como adega do hotel. O pátio interior manteve a sua configuração antiga, tendo sido preservados os capiteis que aqui se encontravam, tendo os mesmos sido alvo de restauro (Figs. 20 a 22). Também os “tanques romanos”, apesar de desmontados, irão fazer parte do Hotel. ¼ de uma das estruturas foi integralmente retirada do local e será posteriormente colocada de novo no edifício, de modo a demonstrar as estruturas que aqui se encontravam.
Figura 20 – Cisterna adaptada a adega do hotel.
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Figura 19 – Escadas em tijoleira incorporadas no hotel.
Figura 21 – Vista do pátio interior antes das obras de remodelação.
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Figuras 22 – Vista do pátio interior depois das obras de remodelação.
Figura 23 – Integração do grande arco em cantaria na zona de restaurante do hotel.
7. Considerações finais O edifício sito na Rua de Santiago nº 10-14 apresenta-se como um caso paradigmático quer na análise ocupacional deste tipo de edificado na cidade de Lisboa, quer também como de exemplo do tipo de trabalhos que se têm vindo a realizar na cidade. Quando se verifica um manifesto incremento deste tipo de obras de “reabilitação”, casos como o do Hotel Santiago são exemplos pela positiva. A vertente arqueológica, começando em sondagens de diagnóstico e terminando num acompanhamento arqueológico permanente, permitiram reunir um conjunto de informações sobre a evolução do edifício.
Figuras 24 – Átrio de entrada no hotel com vários elementos reaproveitados.
A escavação do subsolo permitiu o registo de estruturas de aparente cronologia romana, cronologia essa que nos é dada pelo seu modo construtivo, numa zona da cidade onde até agora não havia registo das mesmas. Estas estruturas, do tipo tanque, poderão introduzir novos dados na discussão dos limites da cidade romana e da localização do fórum da mesma (FABIÃO, 2009; SILVA, 2005). Esta escavação aliada ao registo das picagens de paredes e abertura de vãos permitiu observar a evolução do edificado desde a sua construção. Evolução que se encontra plasmada no avanço de fachadas, na constante alteração da fisionomia do edificado, onde os vários compartimentos vão sendo alterados consoante as necessidades, alteação de cotas, com a subida do pátio interior, etc.
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Figura 25 – Vista geral dos trabalhos no pátio interior.
Estas alterações vão sendo feitas consoante novos espaços vão sendo adquiridos e anexados, consoante os ritmos de ocupação vão mudando e os compartimentos adaptados a novas necessidades. As recentes intervenções e a nova funcionalidade que lhe foi atribuída, servindo agora como hotel, são apenas um novo capítulo na história do edifício. Um capítulo que tem como principal diferença o cuidado em respeitar e manter as principais características da sua estrutura mas ao mesmo tempo alterando-a e adaptando-a ao século XXI.
Bibliografia APPLETON, A. (2002): Estruturas de Betão I – Parte II Materiais. Lisboa, Instituto Superior Técnico. ANDRADE, F. (1948): A Freguesia de Santiago: subsídios para a história das ruas, edifícios e igreja paroquial, 2 volumes. Lisboa [s.n.]. ARAÚJO, N. (1992): Peregrinações de Lisboa, II vol.. Lisboa, Vega. BRAUN, G.; HOGENEBERG, F. (1593): “OLISSIPO quae nunc Lisboa, civitas amplissima Lusitaniae ad Tagum, totius Orientis et multarum Insularum et Aphricaeque et Americae emporium nobilissimum”, Damião de Góis, Elogio da Cidade de Lisboa, Apresentação, Edição Crítica, Tradução e Comentário por Aires A. Nascimento, Apêndice, Lisboa, Guimarães Editores.
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CARMINHO, F. (2012): Resistência do betão à compressão em cubos VS cilindricos. Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Engenharia Civil – Perfil de Estruturas. Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Disponível em: http:// hdl.handle.net/10362/7853 FABIÃO, C. (2009): Modelos forenses nas cidades da Lusitania: Balanço e perspectiva. In NOGALES BASARRATE, Trinidad (ed.), Cidade e foro na Lusitânia Romana (Studia Lusitana 4), Mérida, Museo Nacional de Arte Romano, pp. 343-359. FILIPE, I. (2005): PPF20 – Sondagens de Diagnóstico no Largo dos Lóios e Rua de Santiago, Lisboa, Relatório dos Trabalhos Arqueológicos. Lisboa, Era, Arqueologia SA (policopiado). FILIPE, I. (2012): Rua de Santiago, nºs 10-14, Lisboa. Sondagens de Diagnóstico. Relatório Final dos Trabalhos Arqueológicos. Lisboa, Era, Arqueologia SA (policopiado). FILIPE, I.; FABIÃO, C. (2007): Uma unidade de produção de preparados de peixe de época romana na Casa do Governador da Torre de Belém (Lisboa): uma primeira apresentação. Arqueologia & História, nº 58/59, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, pp. 103-118. SILVA, A. (1899): A cerca moura de Lisboa : estudo historico-descriptivo. Lisboa, Typographia do Comércio. SILVA, R. B. (2005): Marcas de oleiro em terra sigillata da Praça da Figueira (Lisboa): contribuição para o conhecimento da economia de Olisipo (séc. I a.C. - séc. II d.C.). Braga, Universidade do Minho (policopiado). Disponível em: http:// repositorium.sdum.umin- ho.pt/handle/1822/8130.
A cidade manufatureira e industrial
Resumo:
O Convento de Santana de Lisboa, cuja construção se iniciou no século XVI, localizava-se onde actualmente se erguem instalações da Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa. Intervenções arqueológicas no local permitiram identificar estruturas, tal como abundante e variado espólio, produzido a partir de distintas matérias-primas duras, de origem animal, nomeadamente osso, marfim, carapaça de tartaruga, madrepérola e coral, pertencentes a objectos utilitários, de adorno ou devoção. Este acervo apresenta cronologia situada entre os finais do século XVI e o século XVIII. Entre os artefactos identificados contam-se os ligados à devoção (contas de terços, pendentes e crucifixo), à higiene pessoal (pentes, escovas de cabelo e de dentes, seringas de clisteres), de adorno (contas, bandolete, travessas de cabelo), mas também utilitários (varetas de leques, cabos de faca e de sombrinhas, botões, …) e até raríssima prótese dentária, o que indica a presença de elite, com elevado estatuto social, capaz de deter e consumir bens de prestígio, possuindo gosto requintado. PALAVRAS-CHAVE:
Convento, osso, marfim, tartaruga, madrepérola, coral.
ABSTRACT:
The Convento de Santana in Lisboa, whose construction began in the 16th century, was located where today are the facilities of the Faculdade de Ciências Medicas, of the Universidade Nova de Lisboa. Archaeological interventions on the area allowed the recognition of structures as well as numerous and varied artefacts, produced in distinct hard raw materials of animal origin, specifically bone, ivory, turtle shell, mother of pearl and coral, belonging to utilitarian objects, of adornment or devotion. This can be dated in a range between the end of the 16th and the 18th centuries. Among the identified artefacts are those connected to devotion (Rosary beads, pendants, crucifix); personal hygiene (combs, hair and tooth brushes, clyster syringes); adornment (beads, hairband, hair-slides), but also utilitarian (hand fans, knife handles, parasol cable, buttons, …) and even a very rare denture prosthesis, which indicates the presence of an elite with a high social status, able to own and purchase prestigious goods, having a refined taste. Key words:
Convent, bone, ivory, turtle, mother of pearl, coral.
Convento de Santana. Catálogo das formas das contas de coral e de osso
2.3 Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa
Mário Varela Gomes
Departamento de História, Instituto de Arqueologia e Paleociências, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa / Academia Portuguesa da História / Academia Nacional de Belas-Artes mv.gomes@fcsh.unl.pt
Rosa Varela Gomes
Departamento de História, Instituto de Arqueologia e Paleociências, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa rv.gomes@fcsh.unl.pt
Joana Gonçalves
Instituto de Arqueologia e Paleociências, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa joanafrgoncalves@fcsh.unl.pt
1. Introdução O Convento de Santana, de Lisboa, cuja construção se iniciou no século XVI (1562) e chegou a ser um dos maiores da cidade, foi extinto em 1884 e demolido em parte em 1897, localizava-se onde actualmente se erguem instalações da Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa e onde foi o Real Instituto Bacteriológico (1900), depois Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana (GOMES, GOMES, 2007, pp. 75, 76). Trabalhos arqueológicos ali realizados em 2002-2003 e 2009-2010, sob direcção de dois dos signatários (R.V.G. e M.V.G.), tendo em vista salvaguardar testemunhos daquela casa religiosa, conduziram à identificação de diversas estruturas, nomeadamente de alicerces das antigas edificações conventuais, uma cisterna, três poços, restos de aqueduto, necrópole (trinta e quatro sepulturas e seis ossários) e de onze fossas de detritos, tendo-se exumado milhares de artefactos, ou os seus fragmentos. Estes incluem desde elementos arquitectónicos, a fragmentos de lápides, copiosa colecção de azulejos e de outras cerâmicas, classificadas entre os finais do século XVI e o século XIX, integrando as denominadas cerâmicas comuns, as vidradas ou esmaltadas, faianças, porcelanas, etc., mas também, vidros, objectos metálicos, de pedra e, mais raros, os que utilizaram matérias-primas duras de origem animal. Também se recolheram grandes quantidades de restos osteológicos e de valvas de espécies ali consumidas. Textos anteriores referem a história do Convento de Santana (GOMES, GOMES, 2007) e começaram por dar a conhecer as porcelanas ali encontradas (GOMES, GOMES, CASIMIRO, 2015). O presente trabalho tal como outros no prelo ou em construção, pretendem estudar e divulgar conjuntos artefactuais ou núcleos de estruturas daquele convento, tendo em vista a realização de monografia do sítio.
Os artefactos produzidos em matérias duras de origem animal, nomeadamente de osso ou concha, remontam a tempos muito remotos da Humanidade, quando o Homo erectus utilizou como ferramentas ossos de grandes mamíferos a par de artefactos líticos. Todavia, é com o Homo sapiens neanderthalensis que as indústrias de osso se consolidaram e, em parte, se tipificaram, a par da utilização de conchas, com carácter ornamental e simbólico, aspecto que muito se desenvolveu com os primeiros homens modernos (Homo sapiens sapiens). Os pequenos objectos exumados nas ruínas do antigo Convento de Santana, de Lisboa, produzidos em matérias duras de origem animal, podem ser classificados em grandes grupos, de acordo com a origem daquelas. Assim, os mais frequentes utilizam o osso como matériaprima, tanto de mamíferos terrestres como de peixes, sendo mais raros os produzidos em marfim, madrepérola, carapaça de tartaruga ou coral. A forma daqueles foi, quase sempre, esclarecedora das suas funções primárias, mas nem sempre os contextos permitiram a análise paleoetnológica e atribuição cronológica precisa. De facto, muitos deles são procedentes de fossas detríticas, contendo espólio heterogéneo, outros foram encontrados em níveis formados por terras muito revolvidas, possuindo materiais dispersos, não raro com longa diacronia. Apenas uma pequena parte provém de sepulturas, mesmo assim nem sempre constituindo contextos fechados, dado a reutilização que, por vezes, se detecta daqueles espaços. Apesar dos constrangimentos indicados, procuraremos oferecer a integração sócio-cultural dos artefactos apresentados e, designadamente, abordar o seu desempenho funcional e a sua importância ligada aos aspectos cognitivos, designadamente ao mundo religioso e seu pensamento simbólico. Este é o principal elemento caracterizador do Homem Moderno e que permite ainda o funcionamento das sociedades contemporâneas.
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Figura 1 – Localização do Convento de Santana, de Lisboa, em planta do século XVIII e em foto do Google.
Figura 2 – Planta das estruturas do Convento de Santana, de 1871, e do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, de 1910 (Colecção A. Vieira de Silva do Gabinete de Estudos Olisiponenses, C.M.L.).
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Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa
2. Artefactos de osso O osso foi a matéria-prima mais utilizada na produção de artefactos que, chegados até nós, usaram produtos de origem animal, dando também lugar às formas mais diversificadas. Na realização de tais artefactos, desde botões, a agulhas e agulheiros, pentes, contas, cabos de sombrinhas, cabos de escovas ou objectos mais complexos, como seringas, foram usadas sobretudo peças osteológi-
cas de grandes mamíferos, capazes de fornecerem tanto melhor como mais matéria-prima, mas de igual modo de peixes, cujas vértebras foram transformadas em contas de terços ou rosários. As contas constituem os artefactos de osso mais numerosos, apresentando acentuado polimorfismo, já conhecido em outros contextos, nomeadamente monásticos e funerários. Elas acompanhavam os vivos e os mortos, sob a forma de terços ou rosários, mas também organizadas em colares e pulseiras, ou até em brincos.
Figura 3 – Catálogo das formas das contas de coral e de osso (Convento de Santana) (des. J. Gonçalves).
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No Convento de Santana de Lisboa, exumaram-se contas de osso, na cor natural, com forma esférica, esférica achatada, ovóide, de diferentes dimensões, desde as muito pequenas, medindo 0,003 m de diâmetro até exemplares com 0,010 m de diâmetro. Algumas, mais raras, apresentam caneluras incisas. Constitui outro tipo de contas, embora com formas muito diversificadas, as que se têm vindo a considerar como contas-balaústre. Elas também variam nas dimensões e oferecem molduras, cordões e incisões e, até, perfurações transversais. Estas contas obtidas ao torno, tal como as restantes de osso, eram igualmente utilizadas em terços e rosários, onde algumas podiam formar cruzes, conforme se vê em reconstituição de terço, do século XVII, exumado na Igreja do Convento do Carmo de Lisboa e ali exposto (FERREIRA, NEVES, 2005, p. 609, nº 1668). São comuns em outros contextos religiosos, nomeadamente sepulcrais, as contas de rosários e terços, onde acompanhavam os defuntos. Elas surgiram, em abundância, na Igreja de Santa Maria do Castelo, de Torres Novas (escavações dirigidas por M. V. G.), em contextos datados do século XVI ao XIX. Contas esféricas de osso, do século XVI, foram também recuperadas em Puerto Real (Florida) e dos séculos XVI a XVIII na missão de Ste. Augustine, Florida (DEAGAN, 2002, p. 67). Os botões, de contorno circular, constituem o tipo de peças de osso mais numerosas, a seguir às contas, procedentes do Convento de Santana. Embora conhecidos na Europa, desde o Paleolítico Superior, usados por Romanos e outros povos, a utilização de botões só se difundiu no Velho Continente, a partir do século XIII, aspecto que, para alguns autores, se deve a alterações no modo de vestir, com influência oriental, trazida para a Europa pelos cruzados (DEAGAN, 2002, p. 157). Todavia, nos séculos XIV e XV, os botões, nomeadamente metálicos, constituíram importantes elementos decorativos e simbólicos, usados por congregações religiosas e militares, de modo emblemático, para além de funcionarem para apertar a roupa e peças ligadas a algum armamento. Só no século XVIII a Europa terá produção estandardizada de botões, então manufacturados tanto em ligas metálicas, como em matérias duras de origem animal, como o osso, o chifre, o marfim, carapaça de tartaruga ou madrepérola. A produção de botões de osso parece não ter requerido grande especialização e espaços específicos, dado que os seus testemunhos são abundantes e, não raro, dispersos. De facto, também as escavações no Convento de Santana proporcionaram restos de diáfises de ossos longos de quadrúpedes, de onde se cortaram botões, alguns deles evidenciando acidentes de trabalho que conduziam à fractura dos botões que se pretendia obter. Tanto na cidade do Funchal como em Silves, em ambientes urbanos do século XVII, exumámos (M.V.G. e R.V.G.) testemunhos idênticos àqueles que, conforme referimos, não são raros para a cronologia assinalada. Quatro botões constituem exemplares, pouco comuns, pois apresentam o pé móvel, três com sistema de encaixe com peça metálica, do tipo mola, e outro com rosca. Este mostra apreciáveis dimensões, dado medir 0,024 m de diâmetro. Estes botões, raros na literatura que consultámos,
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tinham sobretudo funções decorativas. Retrato de D. José, quando ainda príncipe, mostra-o envergando vistosa casaca de veludo de cor vermelha, ornamentada com séries de grandes botões, daquela mesma cor, laboriosamente talhados por certo que em marfim. Botão com pé móvel foi encontrado em contexto funerário, do século XVIII, na Igreja de Santa Cruz, Madeira (NUNES, 2012, p. 576, fig. 9). Discos ou segmentos esféricos com perfuração central, do Convento de Santana, correspondem a botões primitivamente forrados de tecido ou outro material, possuindo pé de arame de liga de cobre, podendo ser atribuídos aos séculos XVII e XVIII. Exemplares semelhantes têm sido encontrados nas colónias europeias da América do Norte (DEAGAN, 2002, p. 165). Cinco botões de osso com larga perfuração central foram descobertos no poço situado junto ao edifício dos Paços do Concelho de Torres Vedras, tendo sido atribuídos ao século XVI (CARDOSO, LUNA, 2012, p. 168). Botões de osso com o bordo espessado e disco central destacado por moldura, onde se inscreveram três ou cinco furos, constituem exemplares que podemos atribuir ainda ao século XVII, mas também usados na centúria seguinte. Botões com forma semelhante, exumados em St. Augustine (Florida), puderam ser datados entre 1780 e 1800 (DEAGAN, 2002, p. 167). Foi talhado em osso o único dado surgido no Convento de Santana, ao que parece inacabado, pois apenas uma das faces mostra gravações, constituindo cinco pequenas covinhas. Trata-se de peça ligada ao entretenimento, com abundantes paralelos em outras, muitas vezes executadas pelos próprios utilizadores, nomeadamente quando enclausurados. Assim acontecia em antigos estabelecimentos prisionais, de que constitui excelente exemplo a antiga cadeia do Limoeiro, em Lisboa, onde se exumou grande quantidade de pequenos objectos de osso, entre os quais dados, ou as escavações realizadas junto à alcaidaria e prisão do Castelo de Silves, conduzidas por um dos autores (R.V.G.), onde surgiu apreciável quantidade de dados, tal como o do Convento de Santana, ainda em processo de produção. O osso foi usado na manufactura de agulhas, curtas e espessas, bem torneadas, com a extremidade proximal decorada, destinadas a tricotar, mas também nos pequenos recipientes agulheiros, com tampa móvel, igualmente produzidos ao torno e de que ainda vimos alguns semelhantes a serem usados em meados do século XX. Os agulheiros, peças indispensáveis nos apetrechos de costura, surgiram na Idade Média e conhecem-se exemplares construídos em metal, osso, marfim e madeira, apresentando todos forma tubular e dimensões variáveis, desde 0,05 m a 0,12 m, ou mais, de comprimento. No naufrágio do galeão Nuestra Señora de Guadalupe, ocorrido nos mares de Santo Domingo em 1724, encontrou-se pequeno agulheiro, de marfim (DEAGAN, 2002, pp. 196, 197). Fragmentos de pentes de osso, possuindo dentes em dois lados opostos, ou pentes duplos, correspondem a forma conhecida desde a Idade Média. Normalmente os dentes de um lado eram mais largos e, por vezes, mais compridos do que os do lado oposto, servindo não só para pentearem o cabelo e a barba, como para limparem e desparasitarem aqueles. Fragmento de pente duplo, de osso, foi encontrado em nível contendo materiais do século XV ao XX, do pátio fronteiriço à igreja do Convento de Santiago, em Palmela (FERNANDES, 2012, pp. 513-515, fig. 28).
Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa
Figura 4 – Contas que utilizam vértebras de peixe (Convento de Santana) (foto J. Gonçalves).
Figura 5 – Botões de osso, com diferentes formatos e cronologias. Restos de extracção de botões (Convento de Santana) (foto J. Gonçalves)
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Figura 6 – Catálogo das formas dos botões de osso (Convento de Santana) (des. J. Gonçalves).
Figura 7 – Agulheiro completo (aberto e fechado) e tampas de outros, de osso (Convento de Santana) (foto J. Gonçalves).
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Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa
Figura 8 – Pentes de osso, marfim e um de tartaruga (Convento de Santana) (foto J. Gonçalves).
Figura 9 – Escovas, algumas para dentes e prótese dentária, de osso (Convento de Santana) (foto J. Gonçalves).
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Cabos e corpos de escovas de osso, algumas para dentes, onde se fixaram cerdas, crinas e pelos, de origem diversa, através de pequenas perfurações circulares alinhadas e finos arames, foram igualmente encontrados no Convento de Santana. A sua atribuição cronológica é difícil de obter, dado o pouco que se conhece sobre o assunto, embora os mais antigos possam remontar ao século XVIII, nomeadamente aos seus finais, quando o processo da sua manufactura foi inventado e tais objectos de conforto se divulgaram. Primeiramente as escovas terão servido para a aplicação de cosméticos e depois como artefactos ligados à higiene, como as escovas de dentes com cabo de osso, tidas como inventadas por William Addis de Clerkenwell em 1770, e a outras actividades. As cronologias mais recuadas para contextos contendo escovas de dentes, encontram-se no Hospital de Minden, na Alemanha, e em dois naufrágios ocorridos nas costas da actual República Dominicana, respectivamente do galeão San José de las Animas, de 1733 e do galeão Scipión, de 1782. Aqueles artefactos que se crê terem sido produzidos industrialmente em Inglaterra, a partir de 1780, foram também fabricados em França e, depois, em outros países. Naquele primeiro país passam a mostrar o nome do fabricante, depois de 1840, conforme acontece com um dos exemplares do Convento de Santana, onde se lê “W. GALE 2 VERE 5T” (DEAGAN, 2002, pp. 229, 231, 232; MATTICK, 2010, p. 13). Um espelho circular de fechadura, talvez de escritório ou contador, foi produzido em osso, e seria embutido na porta do móvel a que pertenceu.
Cânula ou chupeta e partes de seringa para clisteres foram também construídos em osso. Trata-se de dispositivos referidos, pelo menos, desde o século X, mas usados na Europa principalmente a partir do século XV. Podiam ser de estanho, ou de outros metais, madeira, vidro, osso e, até, de marfim, sendo manuseados pelos cristeleiros ou cristeleiras (de cristel = clister / klyster em grego), com informação farmacológica, sabendo-se da sua existência em Portugal a partir do século XV. Conhecem-se os nomes de alguns de tais profissionais que actuaram, junto da Corte, durante o século XVI. O posto de cristeleira ainda existia, em 1838, no Hospital de São José, em Lisboa e, por certo, em outros (SALGADO, 2015, p. 177). Alguns fragmentos de varetas, interiores e exteriores, de leques articulados, de osso, com recorte e decoração diversa, pintada ou calada, foram recuperados durante as escavações do Convento de Santana. Conhecidos desde meados do século XVI, principalmente em Portugal e Espanha, mas tendo origem oriental, os leques daquele tipo eram utilizados, no Japão, desde o século V (DEAGAN, 2002, pp. 216-219). O seu uso divulgou-se extraordinariamente na Europa durante as duas centúrias seguintes, chegando a caracterizar comportamentos e estatutos sociais, sendo utilizados tanto por homens como por mulheres. Na segunda metade do século XVIII foram famosos os leques das casas comerciais lisboetas de João Espiter e de António Maltês (CHANTAL, 2005, pp. 124, 125). Os leques serviram à comunicação muda, através de código conhecido sobretudo nos ambientes galantes do século XVIII.
Figura 10 – Peças de seringas de clisteres, de osso (Convento de Santana) e seringas completas (diferentes proveniências), de osso ou marfim (des. J. Gonçalves).
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Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa
Figura 11 – Agulhas de costura e agulhas de roca, espelho de fechadura e cabo de colher, de osso (Convento de Santana) (foto J. Gonçalves)
Figura 12 – Varetas de leques articulados, de osso, e cabo de leque não articulado (uchiwa), de osso e ferro (Convento de Santana)(foto J. Gonçalves).
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São de meados do século XVI seis retratos a óleo onde surgem personagens reais com leques articulados, demonstrando o seu uso pristino introduzido por damas portuguesas, na corte, e entre a aristocracia. Dois deles, da autoria de Antonio Moro, retratam D. Maria de Portugal (1550-1555) e Dona Catarina de Áustria (1552-1553), mulher de D. João III e irmã de Carlos V, actualmente no Museu do Prado, em Madrid. O mesmo museu guarda retrato da Infanta Dona Maria Manuela de Portugal, filha de D. João III e de Dona Catarina de Áustria e que viria a casar com Felipe II de Espanha, que é cópia anónima, do século XVI, do retrato realizado em 1542 por Antoine Trouvéon, actualmente perdido. Um quarto retrato, da autoria de Cristóbal de Morales, de 1552, figura Dona Joana de Portugal,
encontrando-se actualmente nas colecções dos Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique (Bruxelas). Representando a mesma personagem, dois outros quadros, um de Sofonista Aguissola, pintado em 1561, faz parte do acervo do Isabella Stewart Gardner Museum (Boston) e o último, obra de Alonso Sánchez Coello (ca 1570-1573), é mesmo intitulado La dama del abanico e integra, igualmente, as colecções do Museu do Prado (Madrid). Dona Catarina de Áustria foi grande coleccionadora e admiradora da arte oriental, de que ofereceu importantes peças a diversos membros das cortes europeias. Sabe-se que comprou cento e setenta leques orientais que ofereceu às damas da sua corte, assim introduzindo moda que teve grande sucesso (GSCHWEND, 1998, pp. 133, 134, 138, 139).
Figura 13 – Damas quinhentistas com leque. A. Dona Maria Manuela de Portugal, 1542, cópia anónima de obra de A. Trauvéon, Museu do Prado; B. Dona Maria Duquesa de Viseu, pintada por António Moro, entre 1550 e 1555; C. Dona Catarina de Áustria, mulher de D. João III, por Antonio Moro, 1552-1553, Museo do Prado; D. Retrato de Dona Joana de Áustria, mãe de D. Sebastião, por Cristóvão de Morais, 1553, Bruxelas, Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique; E. La dama del abanico, por Afonso Sánchez Coello, 1570-1573, Museu do Prado; F. Dona Joana de Áustria e jovem, por Sofonisba Anguissola,1561, Isabella Stewart Gardner Museum.
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Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa
Conjunto de varetas de leque articulado, de marfim, foi recuperado do naufrágio do galeão El Conde de Tolosá, ocorrido na costa da actual República Dominicana, em 1724 (DEAGAN, 2002, p. 219). São de osso três agulhas de roca ou espichas, com corpo triangular e o volume proximal perfurado, rodeado por denteado recortado. Trata-se de artefactos com ascendentes que recuam, pelo menos, ao mundo islâmico peninsular, conforme paralelos, também de osso, alguns dos quais têm sido exumados no Sul de Portugal, designadamente em Silves, na alcáçova e área urbana, ou no Ribāt da Arrifana (GOMES, GOMES, 2001, p. 128, figs. 197, 198; 2007, p. 97, nº 19). Igualmente no mosteiro de Santa Clara-a-Velha foram recolhidas três espichas, uma de madeira (IU 723) e duas de osso (IU 751 e IU 752), com forma e decorações afins às agora apresentadas e que se encontram na exposição ali patente. Fiar, talvez tecer, certamente bordar e costurar, fizeram parte dos quotidianos de muitas das freiras, servindo de ocupação ou entretenimento, mas também tendo grande utilidade prática, na vida quotidiana dos conventos e mosteiros. Dois fragmentos de cabos de sombrinhas, contendo singelas decorações incisas, de carácter geométrico, denunciam o uso de artefacto, para cuja origem se tem colocado no Médio ou no Extremo Oriente, não só útil, sobretudo em climas temperados como o nosso, onde geralmente as Primaveras e os Verões são muito solarengos e quentes, e onde não raro, as estiagens se prolongam pelo Outono. Além deste aspecto, de importante protector solar, as sombrinhas relacionavam-se com os estatutos sociais de quem as utilizava e com a moda feminina a
partir do século XVII, embora fossem conhecidas dos europeus já no século XVI. Rara prótese dentária, correspondendo a dois incisivos humanos, possivelmente da mandíbula, foi talhada em osso, desconhecendo-se paralelos. Ela mostra encaixe e o arranque dos dentes anexos àqueles. A fragilidade desta peça e do que seria a sua fixação, faz com que a consideremos como de aparato, procurando colmatar falta inestética. Conhecemos outra prótese, do século XVII, em liga de prata, correspondendo a dedo polegar direito, encontrada em sepultura (nº 17), da primeira capela do lado da Epístola da Igreja do Convento do Carmo, que pertenceu a adulto jovem (ca 25 anos) cujos restos osteológicos mostravam diversas lesões, embora cicatrizadas, credivelmente adquiridas em combate (FERREIRA, NEVES, 2005, pp. 588, 608, nº 1665). Não são comuns os artefactos que utilizaram peças osteológicas de peixes, conhecendo-se marcas de jogo e, sobretudo, contas elaboradas a partir de vértebras, de dimensões variadas. O Convento de Santana proporcionou interessante conjunto de contas, correspondendo a vértebras de peixes, de dimensões médias, a que foram cortadas as apófises, de modo a conferir-lhes contorno circular. Por vezes o orifício central das vértebras foi alargado. Em alguns casos chegaram a apresentar forma de ampulheta. Peças de jogo ou contas, que utilizam vértebras de peixe foram encontradas em Palmela, no adro da igreja do Convento da Ordem de Santiago, embora em nível contendo espólios do século XV ao século XX (FERNANDES, 2012, pp. 513, 515, fig. 29).
Figura 14 – Cabos de sombrinhas, de osso (Convento de Santana) (foto J. Gonçalves).
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3. Artefactos de marfim Trata-se de matéria-prima importada de África ou da Ásia, quando de elefante, muito apreciada desde tempos remotos da Humanidade, conforme ilustra o que parece ter sido o primeiro artefacto votivo, encontrado em sepultura neanderthal de Tata, na Húngria. O marfim continuou a ser muito requerido, talvez devido à sua origem, cor e aspecto brilhante, quando polido, devendo-se aos portugueses a sua grande divulgação na Europa a partir de finais do século XV. Em 1487, Nzinga Kuwu, rei do Congo, a quando da embaixada por ele enviada a Portugal, obsequiou D. João II com peças de marfim, em bruto ou trabalhadas (VANSINA, 1965, p. 37). Sabe-se pouco sobre o tráfico de marfim, principalmente de elefante, que os portugueses fomentaram entre África, a Índia, o Ceilão, a China e a Europa. Caninos de hipopótamo e presas, com diversas dimensões, de elefantes, sobretudo africanos, têm sido encontrados, nomeadamente em naufrágios de barcos portugueses, os mais antigos, mas também de outras nações, nas rotas comerciais que ligavam o Oriente e África à Europa (TRIPATI, GODFREY, 2007, p. 338). Entre a carga do naufrágio da caravela Bom Jesus, ocorrido em 1533 na costa da actual Namíbia, contamse numerosas presas de elefantes africanos, muito possivelmente vindas de Angola e com destino à Índia (KNABE, NOLI, 2012, pp. 209, 210). Presa de elefante, constante no espólio da DGPC, encontrada em 1978 a cerca de 300 m de profundidade, frente ao Cabo Sardão e certamente procedente de naufrágio, foi datada radiometricamente (AMS), indicando intervalo situado
entre a segunda metade do século XV e os inícios do século XVII (CARDOSO, 2016). Apesar da incerteza cronológica, trata-se certamente de matéria-prima tendo em vista ser utilizada na Europa, ou, até, com destino ao Oriente, depois de passar pela alfândega de Lisboa. Tais itens provinham do Congo, Angola, Moçambique e Zanzibar, sendo considerado de melhor qualidade o marfim de elefante da Costa Oriental africana, calculando-se que dali chegava cerca de 50% do que foi consumido na Índia. Utilizado primeiramente em objectos sacros, tanto no mundo muçulmano como cristão, ou em imagens e artefactos de diferentes civilizações asiáticas, a relativa abundância do marfim chegado à Europa levou a que fosse também empregue em utensílios e adereços que emprestavam prestígio aos seus proprietários e às instituições a que pertenciam. Assim, surgiram, nos séculos XVI a XVIII, cabos de facas e garfos de marfim, de que se exumou possível fragmento no Convento de Santana, como peças de jogo, nomeadamente de xadrez e de gamão. Estas últimas encontram-se representadas no espólio do Convento de Santana por dois exemplares, um deles fracturado. As peças de gamão, de marfim, na cor natural ou tingidas de vermelho, eram muito comuns nos séculos XVII e XVIII, constituindo jogo de sala, das casas tanto aristocráticas, como burguesas ou religiosas. Bonito e raro tabuleiro para o jogo de gamão, de pedra, ornamentado com motivos fitomórficos e atribuível ao século XVIII, encontrava-se no jardim de antigo convento feminino de Pêra (Silves), estando hoje exposto no Museu Municipal de Arqueologia de Silves.
Figura 15 – Contas de coral, dado de osso, braço de Cristo crucificado e marcas do jogo do gamão, de marfim (Convento de Santana)(foto J. Gonçalves).
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Três marcas de jogo semelhantes às do Convento de Santana foram recuperadas entre o espólio do naufrágio da nau Nossa Senhora dos Mártires, ocorrido em 1606, frente ao forte de São Julião da Barra de Lisboa (D’INTINO, 1998, p. 226). O jogo do gamão parece ter tido origens na Antiguidade, sabendo-se que era conhecido na Europa durante a Idade Média, sendo mencionado no Tratado de Ajedrez Dados y Tablas, escrito pelo rei de Castela Afonso X, o Sábio, em cerca de 1283. Pequeno braço com mão, bem esculpido, mostrando aquela perfuração ao centro para fixação através de cravo, pertenceu a crucifixo de pousar, de oratório, ou de dependurar, esculpido em marfim. Todas as celas dos conventos e demais espaços fechados possuíam imagens do Cristo crucificado, de modo a que nunca se esquecesse o seu sacrifício para o bem dos Homens. As figuras de marfim, como a que pertenceu o fragmento mencionado foram produzidas em grandes quantidades nas oficinas goesas, durante os séculos XVII e XVIII. No espólio do Convento de Santana identificámos fragmentos de pentes duplos de marfim, cujas formas são idênticas às dos pentes de osso. Conhece-se parte de pente duplo, de marfim, procedente da lixeira do Paço dos Lobos da Gama, de Évora, datado do século XVIII (LOPES, ROQUE, 2012, p. 206, fig. 13).
4. Artefactos de madrepérola O nácar (da palavra persa nakar), ou madrepérola, é um carbonato de cálcio cristalizado, existente nas superfícies internas das valvas de diversas espécies de moluscos, sobretudo lamelibrânquios, fluvio-marinhos. O seu aspecto translúcido e iridescente, as superfícies brilhantes, não raro irisadas, chamou, desde cedo, a atenção do Homem, utilizando-o como elemento ornamental e simbólico, associado às conchas onde se encontrava ou isolando-o daquelas, para nele executar diferentes objectos ou valorizar, através de incrustações ou aplicações, peças de mobiliário, instrumentos musicais, armas, jóias, etc. Luís de Camões refere a madrepérola no Canto VI, 10, de Os Lusíadas, no contexto da sua chegada a Melinde, nos seguintes termos: “As portas de ouro fino, e marchetadas, Do rico aljôfar que nas conchas nace, De escultura fermosa estão lavradas, Na qual do irado Baco a vista pace.” Nos séculos XVI e XVII os portugueses chamavam à madrepérola chamco ou chamquo, mas também aljofre ou aljôfar, denominação que também era dada às pérolas.
Figura 16 – Catálogo das formas dos botões de madrepérola (Convento de Santana) (des. J. Gonçalves).
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O nácar de melhor qualidade provém das águas do Índico e do Pacífico, em especial da espécie Pinctada margaritífera Linnaeus 1758, ou nácar do Ceilão, pescado nas águas do Subcontinente Indiano, no Golfo de Bengala, mas ainda nos mares da China (nácar de Nanquim) e do Japão, embora também fosse muito apreciado o existente no Nautillus Lin. No século XVI chegam a Portugal, e depois à Europa, colheres, garfos, mas sobretudo, taças, pratos, jarros, polvorinhos e cofres, construídos principalmente no Gujarat, com peças de madrepérola ou com elas revestidas, material até então quase desconhecido dos europeus, constituindo itens altamente dispendiosos que muito vão prestigiar os acervos das casas reais, aristocráticas e eclesiásticas, dada a raridade da principal matéria-prima usada, a sua origem longínqua, o exotismo e as inegáveis qualidades estéticas que possuíam (CARVALHO, 2008, pp. 6, 7). Mais tarde surgirão os terços, ou rosários, os pequenos crucifixos, as medalhas e variados adereços de madrepérola, nomeadamente os botões, alguns deles minuciosamente decorados. Três de tais exemplares, certamente com origem exógena, provêm do Convento de Santana, encontrados no interior do Poço 1. Um deles, mais ornamentado, possuí pé metálico, enquanto os dois restantes se encontram reduzidos ao corpo, tendo desaparecido o suporte metálico. Aquele primeiro, dada a complexa decoração que mostra, pode ter origem indo-portuguesa, enquanto um dos dois restantes, apresenta cruz equilátera e quatro pequenas cruzes páteas, em cada um dos quadrantes daquela, correspondendo ao emblema da Ordem do Santo Sepulcro de Jerusalém, que teve sede em Portugal no Convento de São Francisco, de Lisboa. Trata-se, pois, de possível produção da Terra Santa, onde também tiveram origem grandes quantidades de artefactos religiosos de madrepérola, nomeadamente durante os séculos XVII a XIX. O Museu da Associação dos Arqueólogos Portugueses, em Lisboa, conserva verga de porta, de calcário branco, do século XVIII, contendo, ao centro, bonito brasão de armas da Ordem do Santo Sepulcro de Jerusalém, procedente do antigo Convento de São Francisco da Cidade, casa religiosa cujos membros deveriam velar pelos lugares Santos (PINTO, OLIVEIRA, 2005, p. 405, nº 1384). O terceiro botão, com decoração mais singela, formada por reticulado pode ter procedência idêntica à do que antes referimos. Dois pendentes mostram formas distintas. Um deles é cordiforme, mostrando coração coroado e flamejante. Contém perfuração para ser dependurado e exibe, em uma das faces, três cartelas horizontais onde se inscreveu a frase V(IV)A QVE/M ∙ AM/A, alusão clara ao Sagrado Coração de Jesus ou ao “Divino Esposo”. O segundo pendente, reduzido a fragmento subcircular, contém duas linhas de letras: SOV/CCAL, talvez as três últimas correspondendo à palavra Calvário. Houve diversas confrarias dedicadas ao Sagrado Coração de Jesus, pelo que são bem conhecidos os corações flamejantes e coroados ou não, tanto em pinturas vasculares da faiança portuguesa, como em peças de ourivesaria e em elementos arquitectónicos. Anel de
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prata encontrado em sepultura da igreja do convento da missão de Santa Catarina de Guale (Savannah, Georgia), do século XVII, mostra coração com aquelas características, denunciando a difusão da devoção e do culto do Sagrado Coração de Jesus, no Novo Mundo (DEAGAN, 2002, pp. 15, 83, fig. 4.51). Aquele expandiu-se, na segunda metade do século XVII, devido sobretudo à acção de Santa Margarida de Alacoque (1673), passando o coração a representar, entre os católicos, o amor por Cristo. Duas pequenas placas podem ter pertencido a guarnições de móveis ou de caixas, encontrando-se uma delas com singela decoração incisa e mostrando a outra duas pequeníssimas perfurações para a sua fixação, através de pinos metálicos. Fragmento sub-paralelepipédico, com pequenas incisões em bordos opostos, procedente da Fossa 6, pode corresponder a porção de cabo de garfo ou colher. As restantes peças de madrepérola correspondem a botões, que sabemos serem conhecidos na Ásia e Norte de África, usados na Europa possivelmente a partir do século XV, oferecendo cronologias que podem alcançar o século XX, mostrando formas distintas, desde o disco simples, à de disco com bordo destacado, mais ou menos largo, mas quase todas elas apresentando duas perfurações para fixação. Botões de madrepérola, com dois furos centrais são mais antigos que exemplares possuindo quatro furos. Aqueles primeiros foram datados em Ste Augustine (Florida) no século XVIII (DEAGAN, 2002, p. 173). Os botões possuindo quatro perfurações, dispostas em quadrado, devem ser atribuídos aos séculos XIX-XX. Os botões tiveram, e têm, muitas vezes, duas funções, a fixação ou fecho de roupa sobre o corpo ou de ornamento. Os botões, de concha ou madrepérola, só surgem nas colónias espanholas do Novo Mundo na segunda metade do século XVI, tendo principalmente aplicação militar, embora o seu uso tenha crescido muito depois de 1760 (DEAGAN, 2002, p. 157). 5. Artefactos de carapaça de tartaruga Pelo menos três fragmentos de travessas, outros de bandolete e um de pente, exumados no Convento de Santana foram feitos em carapaça de tartaruga, desconhecendo-se se de origem atlântica, onde tal quelónio é abundante nas águas tropicais, se do Índico ou do Pacífico. As travessas, possuem dentes longos e afastados uns dos outros, sendo o corpo estreito, mostrando claramente que a sua utilização não provocava esforço que levasse à sua quebra fácil, pois elas, embora prendendo o cabelo, serviam, sobretudo, como elemento decorativo, próprio do mundo feminino. A bandolete servia, tal como as travessas, para prender o cabelo. A origem deste artefacto pode remontar à Pré-História, conhecendo-se restos de bandoletes em metais preciosos, como o ouro. Foi usada no Antigo Egipto e nos mundos grego e romano. Na Europa alcançou grande moda durante o Império, como adereço feminino. Pequeno fragmento de pente simples, com o arranque de treze dentes, foi igualmente recolhido. Os pentes simples são aqueles que possuem apenas uma fiada de
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Figura 17 – Pendentes e botões de madrepérola (Convento de Santana) (foto J. Gonçalves).
Figura 18 – Fragmentos de bandolete e de travessas, de carapaça de tartaruga (Convento de Santana)(foto J. Gonçalves).
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dentes. A sua produção especializada surgiu na Idade Média, conhecendo-se exemplares, com ascendentes na Pré e Proto-História, manufacturados, não só em osso, como em marfim, carapaça de tartaruga, chifre, madeira e metal, designadamente de prata e de ouro. Material considerado semi-precioso na Europa medieval e moderna, devido às suas origens exógenas, a carapaça de tartaruga foi também apreciada devido ao seu aspecto, com manchas de tons diferentes, da cor amarela à castanha, sendo translúcida. Trabalhada facilmente quando aquecida, serviu para produzir caixas, de diferentes formas e dimensões, tal como utensílios e adornos, ou, ainda, foi aplicada em embutidos de mobiliário. Entre a utilização mais comum, nos países ibéricos, encontrava-se a produção de pentes, travessas, peinetas e bandoletes. Varetas de leque, de carapaça de tartaruga, foram encontradas no naufrágio do San José de las Animas, na costa da Florida, ocorrido em 1733 (DEAGAN, 2002, p. 219). A exploração económica da tartaruga, durante o século XVII, nas ilhas do arquipélago de Cabo Verde, encontra-se documentada através da literatura e dos resultados decorrentes de trabalhos arqueológicos efectuados em dois concheiros identificados na ilha de São Vicente, nos sítios de Salamansa e João d’Évora, onde foram encontrados abundantes restos osteológicos daquele animal (RODRIGUES, 2000-2001; CARDOSO et alii, 2002; CARDOSO, SOARES, 2010; GOMES, CASIMIRO, GONÇALVES, 2012, p. 101). Não obstante, durante a Idade Moderna, a qualidade mais apreciada de carapaça de tartaruga correspondia à pescada nas Maldivas e Filipinas. Parte de travessa, medindo 0,09 m de comprimento, foi recuperada, em nível atribuído ao século XVIII, do poço existente a área do edifício dos Paços do Concelho de Torres Vedras, constituindo excelente paralelo para as peças do Convento de Santana (CARDOSO, LUNA, 2012, pp. 169, 171, fig. 32). Dos artefactos elaborados a partir de carapaça de tartaruga, recolhidos nas escavações do Convento de Santana, as travessas e o pente apresentam aspecto escamado, algo decomposto e dúctil, enquanto a bandolete se mantém bastante densa e rígida. Tal facto poderá advir, não só de aspectos tafonómicos mas de a matéria-prima utilizada na execução daqueles artefactos ter origem em diferentes espécies de tartaruga, possuindo características físicas e formais distintas. Por exemplo, a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriaces, Vandelli, 1761), é a maior das tartarugas e a sua carapaça é constituída por matéria semelhante ao couro, não servindo para produzir artefactos rígidos. Ao invés, a tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata, Linnaeus,1766) ganhou esta nomeação precisamente por ser a mais comummente utilizada na execução de artefactos. Possui quatro pares de placas laterais imbricadas e cinco placas centrais, espessas e rígidas. 6. Artefactos de coral Identificaram-se, apenas duas pequenas contas, produzidas com coral, de cor vermelha rosada, uma
100 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
delas, de forma esférica, é procedente da Fossa 3 e a outra, com forma cilíndrica, provém de nível arqueológico contendo abundantes restos orgânicos (Q219). As pequenas dimensões destes adornos, o primeiramente mencionado medindo 0,004 m de diâmetro e o segundo 0,008 m de comprimento, parece afastar a hipótese de se tratar de elementos de rosários ou de terços e terem feito parte de brincos ou de outros adereços, podendo, nomeadamente, terem sido fixados a vestidos. O coral vermelho, tido na Grécia Antiga como oriundo do sangue da Medusa, caído ao mar, a quando da sua decapitação pelo herói Teseu, mas também, por certo, devido à sua origem nas profundezas das águas oceânicas, como sendo procedente de paragens longínquas, oferecendo aspecto arboriforme e cor vermelha, embora se conheça de outras cores, foi, desde muito cedo, tido como possuindo propriedades apotropaicas. Já Plínio (N.H. XXXII, 24) recomendava o seu uso em amuletos de crianças, nomeadamente de leite, tendo em vista preservar das cólicas, dos cálculos e de outras doenças vesiculares. O uso de contas de coral vermelho na Península Ibérica ascende, pelo menos, à Idade do Bronze, dado ter-se encontrado um de tais adornos, com forma bitroncocónica, em cista (13) da necrópole de La Traviesa (Huelva) (GARCÍA SANJUÁN, 1998, pp. 154, 155). O retrato da infanta Ana Maurícia de Áustria, mostra-a protegida por diversos amuletos e segurando ramo de coral vermelho na mão direita. Tido como possuindo propriedades apotropaicas, capazes de protegerem dos trovões, relâmpagos e tempestades, do mau-olhado, do demónio, dos feitiços, da loucura e demais doenças, mas igualmente de restaurar forças e o sangue, usando-se contra hemorragias, os males das gengivas e dos dentes, a gota, problemas do fígado e intestinos, designadamente lombrigas, a epilepsia, em feridas diversas ou, ainda, para o sucesso dos partos, o coral era tomado moído e sobretudo a sua variedade branca. Gaspar de Morales (1598, pp. 330352) refere: “son las cuentas, q cõ el artificio hazem los curiosos torneros, q sirve de ornato para los cuellos y muñecas de las damas”. Ainda em Espanha era chamado “La Buena Sombra”, pelas propriedades benéficas que se julgava possuir (HILDBURGH, 1906, p. 460; MORRIS, 2001, p. 43). Francisco T. Valdez (1864, p. 234) chamou-lhe “a mais preciosa substância do mar, logo depois das pérolas”. A apanha de coral, na costa portuguesa, encontra-se documentada, em termos literários, para a Idade Média, designadamente a partir de, pelo menos, meados do século IX. De facto, Ibn Jurdadbih, em 844, mas baseado em informações anteriores, refere, entre outros produtos peninsulares exportados para o Norte de África e o Oriente, o coral obtido nas costas hoje portuguesas (GOZALBES CRAVIOTO, 1991, p. 31). Bem mais tarde, carta de privilégio, datada de 1443, conferiu a exclusividade da pesca do coral a Bartolomeu Florentim e a João Forbim, de Marselha. Todavia, este mesmo privilégio haveria de ser concedido, em 1450, ao Infante D. Henrique (MARQUES, 1988, pp. 523, 537). O coral do Algarve era considerado como de melhor qualidade, mesmo em relação ao proveniente da zona do Cabo de São Vicente. No entanto, muito do coral vermelho (Corallium rubrum) existente na
Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa
Península Ibérica era oriundo do Mediterrâneo, onde era tido como sendo melhor o da Sicília (Siracusa) e, mais tarde, da América do Sul e Oriente (VITERBO, 1903). Também se pescou coral na costa sul da ilha de São Tiago, no arquipélago de Cabo Verde (VALDEZ, 1864, p. 232). Gaspar Correa (1858, p. 101) relata que Vasco da Gama terá oferecido, em reconhecimento pelas dádivas com que foi obsequiado por dignatário indiano “(…) huma peça de cetim cremesim, e dez ramaes de coral grandes (…)”. Mas “(…) ramal de coral com quatorze estremos (…)” integrava a carga da nau Nossa Senhora da Luz, naufragada em 1615, na costa de Porto Pim, na Ilha do Faial, Açores (VIANA, 1999, p. 111). É possível que pequenas contas de coral, de cor rosada, exumadas nas ruínas da Igreja de Santa Maria do Castelo (Torres Novas) por um de nós (M.V.G.), pertencessem a rosário, as mais dispendiosas para além das produzidas em metais preciosos e das de cristal, conforme documentam róis de embarque para as Caraíbas de 1526 a 1618 (DEAGAN, 2002, pp. 67, 68). Colar constituído por 121 pequenas contas de coral vermelho, atribuído aos séculos XVI-XVII, foi exumado na Igreja do Convento do Carmo, de Lisboa (FERREIRA, NEVES, 2005, p. 608, nº 1659). Também rosário, formado por contas de coral e de ouro, foi recuperado nos restos do naufrágio, ocorrido em 1622, do galeão Nuestra Señora de Atocha (DEAGAN, 2002, pp. 63, 68, fig. 4.24).
7. Conclusões O acervo que sucintamente descrevemos e tentámos integrar, em termos funcionais e culturais, corresponde a período em que a história se tem escrito bem mais baseada na informação literária e iconográfica do que na arqueológica que, de facto, muito escasseia. A Arqueologia das Idades Moderna e Contemporânea iniciou há pouco os seus primeiros passos, pelo que os conhecimentos disponíveis, muito diversificados, dado o desenvolvimento e a complexidade das sociedades de então, não constituem corpo de dados sistematicamente organizados que nos permitam, de modo seguro e fácil, classificar artefactos, atribuir cronologias e funções, sobretudo no que respeita aos muito pequenos objectos, como os produzidos em matérias duras de origem animal. Importa relevar o esforço de Kathlean Deagan (1987; 2002) em reunir e sistematizar os testemunhos materiais conhecidos, acumulados durante três séculos, das colónias espanholas da Florida e Caraíbas, trabalho que muito importa ao estudo da produção, difusão, utilização e da cronologia daqueles, tendo como principal objectivo o conhecimento das sociedades que os manipulavam. Para a colecção agora dada a conhecer foi fácil chegar à conclusão de que o osso de grandes mamíferos, por certo domésticos, constituiu a matéria-prima mais utilizada, presença que quase faz recordar os tempos pré-históricos, apesar da acção nefasta dos processos tafonómicos que sobre eles actuaram, conduzindo em muitas situações a alterações importantes e, até, ao seu desaparecimento.
Gráfico I - Convento de Santana. Quantidades e percentagens de artefactos, de acordo com as matérias-primas duras, de origem animal, em que foram produzidos.
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Mário Varela Gomes, Rosa Varela Gomes, Joana Gonçalves
Gráfico 2 - Convento de Santana. Quantidades e percentagens dos diferentes artefactos produzidos em matérias-primas duras, de origem animal.
Os artefactos em matérias duras de origem animal do Convento de Santana provêm, a maior parte, de contextos algo heterogéneos, em termos funcionais e, até, cronológicos, correspondendo ao enchimento com lixos, de origem diversa, de poços e de fossas de carácter séptico. Constituem excepção as contas de osso, procedentes das sepulturas 1, 3B, 6, 7 e 9 e a travessa, de carapaça de tartaruga, exumada na sepultura 5, onde acompanhava defunta. Os diversos artefactos de osso exumados no Convento de Santana mostram elevada percentagem, onde a cadeia operatória da sua produção se iniciou com o corte e desbaste da peça osteológica, normalmente diáfises de ossos longos, dado serem os que proporcionam mais matéria-prima e de melhor qualidade, por serem mais espessos e densos. Depois obtinham-se os objectos desejados através de novos cortes ou com o auxílio de serras, do torno ou de arcos de pua. Em seguida, as peças eram submetidas ao acabamento, usando-se decorações incisas e a acção de abrasivos, para melhor regularizarem e polirem superfícies e volumes. Em casos particulares, pequenos cinzéis, goivas e puas ajudaram a esculpir pormenores e acabamentos. As contas de osso constituem, conforme referimos, não só o tipo de artefacto mais abundante, como aquele que mostra maior polimorfismo. Estes aspectos ficaramse a dever, sem dúvida, ao seu uso em rosários e terços, como em colares, pulseiras e, até, em brincos. Os rosários, que serviam para orientar as rezas e promover a meditação religiosa, eram normalmente do
102 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
tipo chamado dominicano, sendo constituídos por quinze conjuntos de dez contas, tantos quantos os mistérios da Igreja, e que representavam Ave-Marias, sendo cada um precedido por um Padre-Nosso e seguido pela recitação da Glória ao Pai. No final recitava-se o Credo dos Apóstolos, dois Padre-Nossos, três Avé-Marias e uma Glória. Na extremidade existia cruz, que podia ser constituída por contas do tipo balaústre, crucifixo ou medalha, consoante as devoções. Os terços eram formados por três conjuntos de dez contas, que representavam Avé-Marias e eram rezados em honra da Santíssima Trindade. Além dos artefactos de devoção que constituem parte do acervo agora apresentado, constituem núcleo muito significativo aqueles ligados à higiene pessoal e ao trajar. Em bem menor quantidade encontram-se os artefactos ligados com actividades económicas ou lúdicas. O acervo de objectos em matérias duras de origem animal do Convento de Santana, de Lisboa, pouco reflecte o contexto de “luxo e devoção” em que viviam as suas freiras e acólitas, durante os séculos XVII e XVIII, cronologia a que pertence a grande parte do espólio ali exumado. Quanto a nós, melhor caracteriza o ambiente económico e social que ali se viveu, o copioso conjunto de porcelana chinesa, a elevada quantidade de faiança portuguesa, a par de algumas lígures e sevilhanas, os vidros nacionais e importados, algumas jóias e maciços revestimentos azulejares, denunciando a presença de ordem religiosa abastada e de freiras com poder económico, estatuto social elevado, habituadas a vida requintada. Aliás, ser-se
Objectos produzidos em matérias duras de origem animal, do Convento de Santana, de Lisboa
Gráfico 3 - Convento de Santana. Quantidades e percentagens dos grandes tipos de utilização atribuível aos artefactos produzidos em diferentes matérias-primas duras, de origem animal.
freira constituía importante estatuto e dependia então de diversos factores de carácter social e/ou pessoal, muitas vezes alheados da devoção e espiritualidade religiosas. Por isso, os votos de castidade, clausura, obediência e pobreza, nem sempre eram observados, conforme permitem deduzir, não só os espólios arqueológicos, onde se incluem itens luxuosos, como os escritos de diversos moralistas coevos (TRINDADE, 2011; 2014), como os padres António Vieira (2001) (1608-1697), Manuel Bernardes (1728) (1644-1710) e outros que criticaram o luxuoso e, por vezes, permissivo ambiente vivido em alguns conventos, onde os caminhos da devoção e a austeridade material foram, não raro, esquecidos. Recordem-se as palavras do padre Manuel Velho (1730, pp. 46, 313) ao referir tais ambientes de luxo e ostentação, onde a cela muito longe de ser austera mais seria “hum gabinete, ou escaparate secular dos mais preciozos” pelo que “Génova, e a Índia estão e devem estar muito longe de uma Freyra”, referindo-se às baixelas de mesa e a outros artefactos muito dispendiosos e com origem exógena que denunciam elites sociais abastadas, com elegância de costumes e de gostos. E, no século XVII, “o Convento substituía, no caso português, o espaço de convívio social que oferecia o salão nas cortes europeias” conforme reconheceu J. A. Troni (2008, p. 215). Os artefactos de devoção, em matérias duras de origem animal são escassos, se excluirmos as contas de rosário e terços, aspecto que encontra explicação em terem utilizado, para os mesmos fins, outras matériasprimas, devido a não se conservarem sob acção dos agentes tafonómicos. O Convento de Santana foi um dos maiores de Lisboa, dos cerca de noventa que se contavam em 1755. Ali se albergavam, em 1702, cerca de três centenas de pessoas, entre as quais centro e trinta religiosas e em 1777, era habitado por mais de quatro centenas de
almas, muitas delas provindas de conventos arruinados pelo megassismo de 1755, embora em Santana também tivesse em parte ruido, nomeadamente a sua igreja e sector dos dormitórios (VIEGAS, 1893, p. 65; PIRES de LIMA, 1972, pp. 360, 361; MONTEIRO, 2005, p. 51; GOMES, GOMES, 2007, p. 76). Recordemos que em 1750 existiam, em Portugal, 1129 conventos e mosteiros femininos (CHANTAL, 2005, p. 151).
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A cidade manufatureira e industrial
Resumo:
A actividade arqueológica na cidade de Lisboa tem registado nas últimas décadas uma grande dinâmica, quer em relação ao grande número de intervenções realizadas, quer em relação à sua dispersão espacial no espaço urbano. Paralelamente, os contextos arqueológicos de Época Moderna têm suscitado um interesse crescente entre os investigadores. Esta conjuntura justifica a publicação, nos últimos anos, de numerosas referências bibliográficas sobre contextos arqueológicos de Época Moderna na cidade, e consequentemente, o estudo de um número considerável de conjuntos cerâmicos com esta cronologia. Lisboa, capital portuguesa e sede económica e comercial do vasto território envolvido no fenómeno da expansão marítima, assume, neste período histórico, o papel de centro oleiro, produzindo, redistribuindo e comercializando recipientes cerâmicos a nível global. Considera-se por isso, estarem reunidas condições para ensaiar uma primeira proposta de sistematização tipológica e cronológica para as produções cerâmicas de Lisboa entre os séculos XV e XVIII. Serão considerados os aspectos tecnológicos, morfológicos, funcionais, com especial atenção à terminologia. PALAVRAS-CHAVE:
Lisboa, produções cerâmicas, cerâmica moderna, sistematização tipológica.
ABSTRACT:
The archaeological activity in Lisbon has experienced in the recent decades a large dynamic, both in relation to the large number of interventions, or to its spatial dispersion in the urban space. Simultaneously the archaeological contexts of the earlymodern period have raised a growing interest among the researchers. This justifies the publication in recent years, of several references on early-modern archaeological contexts in the city, and consequently, the study of a number of ceramic assemblages of this period. Lisbon, the Portuguese capital of the vast territory involved in the maritime expansion, assumes in this historical period the role of a pottery center, producing, redistributing and trading ceramics at a global level. Therefore we believe that it is time to rehearse a first proposal of typological and chronological systematization of Lisbon ceramic productions between the 15th-18th centuries. Technological, morphological and functional aspects will be considered with special attention to terminology. Key words:
Lisbon, pottery productions, early-modern ceramic, typological systematization.
Lisboa. Tipologia geral da cerâmica moderna
2.4
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Jacinta Bugalhão
DGPC; investigadora UNIARQ/FLUL e CEAACP jacintabugalhao@gmail.com
Inês Pinto Coelho
Bolseira de doutoramento FCT; CHAM-FCSH/NOVA|UAc inesalexandrapinto@gmail.com
1. Objectivos O objectivo do presente estudo é a definição de uma Tipologia para os objectos cerâmicos produzidos e utilizados em Lisboa, no período moderno (entre os séculos XV e XVIII), integráveis nas produções de cerâmica comum (incluindo cerâmica pintada, manual e brunida), de cerâmica vidrada (excluindo as produções de cerâmica vidrada/esmaltada a branco, faiança, grés e porcelana) e de cerâmica fina (incluindo cerâmica com decoração modelada, incisa e pedrada). As produções consideradas de exportação foram excluídas do presente estudo. Nos últimos anos tem-se vindo a assistir a um interesse crescente pela arqueologia de Época Moderna, traduzido num aumento de estudos e referências bibliográficas (TEIXEIRA, BETTENCOURT, 2012; GOMES, 2014). Para este processo contribuíram decisivamente as Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval promovidas em Tondela (1992, 1995, 1997 e 2000; publicadas em 1995, 1998, 2004 e 2008), bem como a orientação curricular e prática da licenciatura em Arqueologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e a extraordinária intensificação da actividade arqueológica urbana. Expressão desta realidade pode constatar-se no programa do I Congresso da Associação dos Arqueólogos Portugueses realizado no final de 2013, no qual cerca de 15% das comunicações e posters incidiram sobre contextos de Época Moderna (ARNAUD, MARTINS, NEVES, 2013), mas, principalmente, no programa do I Encontro de Arqueologia de Lisboa que agora se publica, no qual quase 50% das comunicações incidiram sobre o mesmo período histórico. Assim sendo, pensa-se ser o momento de promover alguma reflexão de síntese sobre um volume já significativo de informação científica e arqueológica produzida. Neste âmbito, a cerâmica, como espólio mais abundante
e informativo no registo arqueológico de período moderno, adquire especial relevância. Assim, considerou-se adequado promover uma proposta de normalização terminológica para os objectos cerâmicos de Época Moderna, recolhidos na cidade de Lisboa. Atendendo ao carácter recente dos estudos arqueológicos desta cronologia entre nós, não estão disponíveis propostas tipológicas para cerâmica deste período histórico existentes e, por vezes, até abundantes, para outros. A importância da normalização em ciência é evidente, mas neste caso concreto visa essencialmente disponibilizar um instrumento básico para a classificação de objectos, promovendo a clareza de conceitos aplicados e facilitando a comunicação científica e a divulgação pública. Salienta-se que a Tipologia aqui reproduzida é uma primeira proposta para as produções cerâmicas referidas, considerando-se por isso apenas um momento inicial de um trabalho mais vasto, que seguramente prosseguirá em futuro próximo. Embora não exista qualquer proposta tipológica para a cerâmica moderna da cidade de Lisboa, estão publicados alguns estudos que constituem referências incontornáveis para este propósito. É o caso dos estudos das cerâmicas exumadas na Rua do Benformoso, 168-186 (MARQUES, LEITÃO, BOTELHO, 2012) e das cerâmicas exumadas na Casa do Governador, Castelo de São Jorge (GASPAR et alii, 2009), conjuntos datados dos séculos XV-XVI. De igual forma, cumpre referir que são conhecidas colecções cerâmicas que, pela extraordinária dimensão, diversidade e estado de conservação, contêm potencial para fornecer elementos fundamentais para o conhecimento da cerâmica de Época Moderna da cidade de Lisboa, mas que permanecem em grande parte por estudar e publicar. É o caso do conjunto cerâmico recolhido em 1996, no Largo do Corpo Santo (CNS 16681), datado entre o final do XV e meados do século XVI; e do conjunto
Uma cidade em escavação
107
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
cerâmico recolhido em 2012 e 2013, no âmbito do projecto de Requalificação Paisagística do Largo do Coreto de Carnide e ruas adjacentes (CNS 34879), datado entre os séculos XVI e XVII. 2. Metodologia A abordagem metodológica seguida baseou-se nos pressupostos utilizados para estudo idêntico realizado para cerâmica islâmica pelo Grupo CIGA - Projecto para o estudo da Cerâmica Islâmica do Garb al-Andalus (BUGALHÃO et alii, 2010). A recolha de informação iniciou-se com o levantamento exaustivo das referências sobre contextos arqueológicos da cidade de Lisboa em Época Moderna, tendo-se reunido um total de 147 títulos. Destes, um total de 49 trabalhos forneceram informação útil para o estudo em curso, sendo que se referem a um conjunto de 45 sítios arqueológicos distintos. A informação relativa a cerâmica de Época Moderna recolhida nestes 45 sítios encontra-se sistematizada na Tabela 2. Destes 45 sítios, apenas 36 facultaram informação útil para a constituição da Tipologia: estampa (Figura 31), pois apenas destes estão publicados desenhos de peças íntegras ou quase. Os restantes nove sítios arqueológicos apresentam referências bibliográficas com informação sobre as colecções cerâmicas de Época Moderna, mas não forneceram peças completas ou quase, figurando os objectos sem ilustração ou ilustração apenas fotográfica. Resta referir que, na maioria dos casos, os estudos referidos são publicação parcial das colecções cerâmicas, não incidindo sobre a sua totalidade. Neste contexto, foi constituído um corpus que reúne todos os objectos cerâmicos íntegros (ou quase) publicados, com referência ao sítio de recolha, produção, tipologia, função e cronologia atribuídas e referências bibliográficas. O corpus integrou quase exclusivamente recipientes cerâmicos de uso doméstico (mesa, cozinha, armazenamento e transporte, iluminação, higiene e outros), a que se juntam alguns objectos de uso lúdico e outros relacionados com a actividade comercial, estando ausentes nos conjuntos cerâmicos publicados, a cerâmica de construção e a cerâmica de uso agrícola ou artesanal. Numa segunda fase, agruparam-se os recipientes cerâmicos constantes no corpus nas três grandes produções inicialmente consideradas e já referidas: cerâmica comum (inclui pintada, manual, brunida), cerâmica vidrada (excluindo as produções de cerâmica vidrada/esmaltada a branco, faiança, grés, porcelana) e cerâmica fina (incluindo cerâmica com decoração modelada, incisa e pedrada). Deve referir-se que na definição destas produções não foi considerada qualquer abordagem técnica ou tecnológica. Assim, não foram estabelecidos grupos de produção a partir de pastas cerâmicas ou de variantes tecnológicas de produção oleira. Numa terceira fase, procedeu-se ao agrupamento dos recipientes cerâmicos constantes no corpus em “tipos” coerentes, consideradas as suas forma, morfologia e função. Para cada tipo, sempre que possível, foi ilustrada a evolução entre os séculos XV e XVIII, em função das cronologias atribuídas pelos respectivos autores. Foram assim elaboradas estampas tipológicas para cada tipo, por
108 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
produção e cronologia. De referir que as estampas utilizaram os desenhos publicados mas que estes foram objecto de vectorização, uniformizando critérios gráficos. Na legendagem das estampas tipológicas constam a informação contextual de cada peça e os créditos bibliográficos, com excepção do candeeiro e das pedras de jogo (peças inéditas), cujas ilustrações foram elaboradas pelas autoras e agora se publicam. Finalmente, ponderou-se a questão da nomenclatura/terminologia a atribuir a cada tipo. Para este efeito recorreu-se à recolha bibliográfica e documental (não foi efectuada consulta primária de fontes) relativa à terminologia histórica respeitante a objectos cerâmicos, com base em alguns estudos e colectâneas de referência (BRAGA, 2011; FERNANDES, 2012; FREIRE, 2001; GOMES, 1996; RIBEIRO, 1987; TORRES, GÓMEZ, FERREIRA, 2003). Foi igualmente considerada a prática arqueológica, ou seja, foram considerados os termos utilizados pelos arqueólogos/autores nos textos publicados para referenciar os diversos recipientes cerâmicos. A este respeito refira-se que, nos 49 títulos bibliográficos que constituíram a fonte de informação para o presente trabalho, não é proposta ou fundamentada uma terminologia específica e que, consequentemente, são utilizados termos distintos para designar o mesmo tipo de recipiente e o mesmo termo para designar recipientes distintos, quer a nível morfológico, quer a nível funcional. Assim, foram recolhidos todos os termos: a) presentes na já mencionada bibliografia de referência relativa a terminologia aplicada a objectos cerâmicos, com base em fontes escritas e b) utilizados pelos arqueólogos/autores das 54 referências bibliográficas que constituíram a fonte de informação para o presente trabalho. Para estes termos foi efectuada pesquisa de significação (com recurso a diversos dicionários de referência da língua portuguesa: BLUTEAU, 1712-1728; SILVA, 1949-59; Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências, 2001) e pesquisa etimológica, com recurso a dicionário etimológico (MACHADO, 1987). Desta forma procurou-se determinar o significado, tanto quanto possível, original dos termos, bem como a sua origem e antiguidade linguística. Relativamente à determinação da antiguidade dos termos, recorreu-se igualmente aos estudos e colectâneas de referência já mencionados (BRAGA, 2011; FERNANDES, 2012; FREIRE, 2001; GOMES, 1996; RIBEIRO, 1987; TORRES, GÓMEZ, FERREIRA, 2003), uma vez que estes também contêm abundantes referências documentais. Salienta-se o estudo de Isabel Fernandes (2012) que referencia terminologia cerâmica num conjunto muito alargado de documentos, determinando a sua utilização em épocas concretas (num total de dezassete documentos, posturas, taxas e regimentos de oleiros, datados entre os séculos XII e XVIII) (FERNANDES, 2012, Parte I, Tabela 44, p. 281). Assumem particular relevância os regulamentos municipais relacionados com a olaria, nas suas vertentes de produção e comercialização. Na selecção da terminologia a utilizar nesta Tipologia, privilegiaram-se os termos que nos vários dicionários remetiam para um recipiente cerâmico com uma determinada morfologia e funcionalidade e cuja utilização remonta, pelo menos, ao século XV.
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Do conjunto de termos recolhidos, várias questões se levantam, como por exemplo a existência de regionalismos, ou seja, termos utilizados apenas numa região específica. Em algumas fontes, relativos a grupos socioeconómicos elevados (como os livros de receitas ou os inventários de herança, por exemplo), são referidos objectos de luxo ou de consumo restrito que poderão ter uma ocorrência muito residual em contexto arqueológico. Verificou-se também que estão referenciados muitos termos cujo “objecto-significante” se desconhece. Noutros casos, consideraram-se alguns termos sinónimos.
Grupo Funcional/Produção
3. Tipologia: proposta Apesar destas dificuldades, da pesquisa efectuada, resultou um conjunto de 37 termos que designam 37 “tipos” cerâmicos, das três produções referidas, de Época Moderna, utilizados na cidade de Lisboa que constituem a Tipologia: tabela (Tabela 1). Esta tabela integra objectos cerâmicos, distribuídos pelas funcionalidades de cerâmica de cozinha, cerâmica de mesa, cerâmica de armazenamento e transporte, cerâmica de uso higiénico, cerâmica de iluminação, cerâmica utilizada em actividades lúdicas e cerâmica para outros usos de âmbito doméstico.
Cerâmica Comum
Cerâmica Vidrada
Alguidar
Alguidar
Cerâmica fina
Almofariz Panela
Cozinha
Panela
Fogareiro Frigideira
Frigideira
Tacho
Tacho
Testo Trempe Açucareiro Bilha
Bilha
Bilha
Caneca
Mesa
Escudela
Escudela
Infusa
Infusa
Jarrinha Prato
Prato
Púcaro
Prato Púcaro
Salseira/Saleiro Tigela
Tigela
Taça de Pé Alto
Taça de Pé Alto Tampa Boião
Cântaro
Armazenamento e Transporte
Cântaro
Cantil Pote Talha
Talha
Botija Barril
Higiene Iluminação
Servidor
Servidor
Servidor
Candeeiro
Candeeiro
Candeeiro
Candeia Brinco
Lúdica
Apito
Brinco Apito
Pedra de Jogo Recipiente de Medida
Outros
Sino
Sino
Mealheiro Jarra
Tabela 1 - Cerâmica Moderna de Lisboa | Tipologia: tabela.
Uma cidade em escavação
109
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Após o estabelecimento da Tipologia: tabela (Tabela 1) com os termos seleccionados, revisitaram-se as fontes bibliográficas que forneceram objectos cerâmicos, íntegros ou quase, de Época Moderna. Estes foram reclassificados de acordo com a terminologia agora proposta. Sempre que adequado, foram propostas novas balizas cronológicas para as peças. Considerou-se o sítio arqueológico (entre os 45 sítios com acervos cerâmicos de Época Moderna publicados) onde foi recolhida cada peça, de forma a aferir a dispersão e a frequência de representação de cada tipo/produção. Salienta-se que não se pode considerar esta uma abordagem estatística sobre a frequência de cada tipo. Ponderou-se apenas a presença/ausência nos 45 sítios arqueológicos abrangidos pelo presente estudo, para avaliar, muito genericamente, quais os tipos/produções mais ou menos comuns no registo arqueológico estudado e publicado da cidade de Lisboa. Uma análise estatística só seria possível se as colecções cerâmicas tivessem sido estudadas e contabilizadas
Designação Função Forma
Morfologia
uniformemente, o que não se verifica. Aliás, em muito poucos casos são fornecidos quaisquer elementos sobre as frequências relativas de cada produção/tipo. Por fim, foi elaborada uma ficha tipológica para cada um dos 37 “tipos” cerâmicos definidos, contemplando: designação, função, forma, morfologia (variantes morfológicas), produções (em que o tipo surge representado; sempre que existe informação disponível, é também referida a existência do mesmo objecto em materiais não cerâmicos), etimologia e referências escritas (procurando referir a indicação cronológica mais antiga de que se dispõe), outras designações (termos considerados sinónimos, referidos na documentação coeva e/ou utilizados na bibliografia arqueológica) e ocorrência (percentagem de sítios, dos 45 representados no estudo, em que o tipo ocorre). Fichas tipológicas (ordenadas alfabeticamente por tipo)
Açucareiro Usado para servir à mesa e armazenar doces, compotas, mel e açúcar. Utilizado colectivamente. Poderia igualmente ter função decorativa. Recipiente de pequena dimensão, envasado ou de tendência bojuda e, por vezes, com pequeno colo e ligeiramente fechado; geralmente com duas asas. Apresenta bordos boleados ou rectos, alguns dos quais com aba exterior. Mostra paredes rectas, por vezes hemisféricas, geralmente com duas asas verticais, existindo algumas variantes que oferecem asas horizontais, e assentam em base plana. Do ponto de vista decorativo apresentam motivos efectuados através de estampilhagem e de digitação simples, tanto pelo interior como pelo exterior, formando frisos com linhas de ônfalos no corpo da peça, ou ainda, através da combinação de ambos, originando uma deformação na peça através da pressão dos dedos contra a parede. Por vezes, apresenta também uma banda com incisões oblíquas efectuada através do mesmo processo de pressão de um instrumento pelo exterior, assim como, bandas com incisões horizontais, com recurso a instrumento por incisão/pressão.
Produções
Cerâmica comum, modelada e vidrada.
Etimologia e referências documentais
O termo provém do árabe; surge na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Boião, potinho e taça.
Ocorrência
Referido em 11% dos sítios.
Observações
Para a descrição da decoração consultou-se principalmente SANTOS, 2008, pp. 325-345.
Figura 1
Referências: Cerâmica vidrada: 1.1. – 1.6. (Convento de São Francisco) (Torres, 2011) | Cerâmica modelada: 1.7. – 1.14. (Edifício do Aljube/Rua Augusto Rosa) (Santos, 2008) e 1.15. (Convento de Santana) (Gomes et alii, 2013). Cerâmica vidrada
Cerâmica modelada e fina
Séc. XV
Séc. XVI
8
7
9
10
11 15
12
Séc. XVII
1
2
3 13
4
5
6
14 10 cm
110 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação
Alguidar
Função
Usado na cozinha, na lavagem e preparação dos alimentos. Utilizado igualmente na higiene pessoal. Recipiente de pequena, média ou grande dimensão, de forma troncocónica aberta (diâmetro de bordo muito superior ao diâmetro de fundo e à altura); fundo plano. Apresenta bordo extrovertido, demarcado exteriormente, com lábio em voluta, de secção semicircular; paredes mais ou menos oblíquas; assenta em base plana, por vezes, demarcada na superfície externa. Cerâmica comum, por vezes, com decoração incisa na superfície externa, nomeadamente, com motivos ondulantes, ou com engobes e motivos decorativos compostos por linhas concêntricas. Cerâmica vidrada em tons de verde e melado. O vidrado surge em ambas as superfícies ou apenas na superfície interna, mostrando vestígios deste tratamento na superfície externa, por vezes apenas na zona do bordo.
Forma Morfologia Produções Etimologia e referências documentais
O termo provém do árabe e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Almofia e bacia.
Ocorrência
Referido em 60% dos sítios.
Figura 2
Referências: Cerâmica comum: 2.1. – 2.2. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 2.3. (Rua dos Correeiros, n.º 69-71/Sondagem 25 (Diogo, Trindade, 2000a) e 2.4. (Rua dos Correeiros, 70C-92 / Sondagem 14) (Trindade, Diogo, 2003b) | Cerâmica vidrada: 2.5. (Convento de São Francisco) (Torres, 2011) e 2.6. (Travessa da Madalena, 18) (Trindade, Diogo, 1997). Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Séc. XV 1
Séc. XVI 3
2
Séc. XVII 5
Séc. XVIII
Cerâmica comum 4
Cerâmica vidrada
6 10 cm
Séc. XV 1
Séc. XVI 2
3
Séc. XVII 5
Séc. XVIII
4
6 10 cm
Uma cidade em escavação
111
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação Função Forma Morfologia
Almofariz Usado na cozinha para pisar ou triturar alimentos sólidos/duros com um pilão. Recipiente de botica para pisar ou triturar substâncias medicinais. Recipiente de tamanho pequeno ou médio, de forma aberta, base plana, espessa e maciça; por vezes apresenta duas asas. Apresenta bordo triangular ou rectilíneo, na maior parte dos casos, extrovertido, demarcado exterior e, por vezes, interiormente, com lábio de perfil semicircular ou triangular. Assenta em base plana e espessa, nalguns casos demarcada na superfície externa. Alguns exemplares mostram estrias na parede interna e ainda bico para verter o preparo, assim como pegas/asas ao nível do bordo e parte superior do corpo.
Produções
Cerâmica comum, madeira, metal, pedra e vidro.
Etimologia e referências documentais
O termo provém do árabe, por via do castelhano e surge na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Alguidar de pedra (?) e gral.
Ocorrência
Referido em 9% dos sítios.
Figura 3
Referências: Cerâmica comum: 3.1. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 3.2. (Largo do Chafariz de Dentro) (Silva et alii, 2012); 3.3. (Quarteirão dos Lagares) (Nunes, Filipe, 2012) e 3.4. (Rua José António Serrano) (Silva, Guinote, 1998).
Cerâmica comum
Séc. XV
1
Séc. XVI 4
Séc. XVII 2
3
Séc. XVIII
10 cm
Designação
Apito
Função
Utilizado em actividades lúdicas ou artísticas (musicais); para assinalar sonoramente um chamamento.
Morfologia
Pequeno objecto de forma fechada, oval, por vezes adquirindo forma figurativa (de pássaro ou cavalo, por exemplo); possui orifícios e bico tubular, funcionais. Mostra feição oval ou globular, de iconografia zoomórfica. Normalmente a parte superior dos exemplares mostra a forma figurativa de um animal (pássaro, cavalo, etc.), assente em pé de bolacha ou anel.
Produções
Cerâmica comum e vidrada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem onomatopaica e surge na documentação pelo menos desde o século XV.
Outras designações
Assobio, buzina e ocarina.
Ocorrência
Referido em 4% dos sítios.
Observações
Não foi possível relacionar este termo (nem as outras designações) com a forma. O exemplar incluído na Tipologia: estampa (figura 31) resulta da montagem livre entre duas peças fragmentadas recolhidas no Largo do Chafariz de Dentro, em Lisboa (SILVA et alii, 2012).
Figura
Figura 31.
Forma
112 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação
Barril
Função
Usado para armazenar alimentos líquidos.
Forma
Recipiente de tamanho médio ou grande de forma fechada. Corpo oval ou piriforme e base plana.
Morfologia
Apresenta bordos curtos, extrovertidos, espessados e demarcados exteriormente, com lábios de secção semicircular; o corpo apresenta feição piriforme ou tulipiforme; ostenta duas asas simétricas muito elevadas e assenta em base plana.
Produções
Cerâmica comum e madeira.
Etimologia e referências documentais
Termo de origem obscura; terá origem medieval e surge na documentação desde o século XVI.
Outras designações
Pote e bilha.
Ocorrência
Referido em 4% dos sítios.
Observações
Este “tipo” não se encontra morfologicamente definido ou estabilizado na produção bibliográfica arqueológica. Na bibliografia sobre cerâmica moderna de Lisboa, não se encontra ilustrado qualquer barril, completo ou quase. Assim, o exemplar incluído na Tipologia: estampa (figura 31) foi recolhido em Ria de Aveiro B (ALVES et alii, 1998).
Figura
Figura 31.
Designação
Bilha
Função
Usado para servir à mesa e armazenar alimentos líquidos. Na mesa, de uso colectivo.
Forma Morfologia
Recipiente de tamanho pequeno ou médio, de forma fechada, corpo globular, colo, boca ou gargalo estreito, com uma ou duas asas. Apresenta, nalguns casos, bordo ligeiramente extrovertido, demarcado exteriormente e lábio de secção semicircular. Ostenta bordo de feição acampanada sobre colo estreito e alto. O corpo tem feição globular ou piriforme. Assenta em base plana, nalguns casos com fundo em pé de bolacha ou anel.
Produções
Cerâmica comum, modelada e vidrada.
Etimologia e referências documentais
O termo provém do árabe, por via do castelhano (eventualmente do franco); surge na documentação escrita desde o século XII.
Outras designações
Alcarraza, garrafa, gorgoleta e redoma.
Ocorrência
Referido em 36% dos sítios.
Figura 4
Referências: Cerâmica comum: 4.1. (Martim Moniz) – 4.2. (Casa dos Bicos) (Silva, Guinote, 1998) | Cerâmica vidrada: 4.3. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar, Gomes, 2012) | Cerâmica modelada: 4.4. – 4.5. (Convento de São Francisco) (Ramalho, Folgado, 2002).
Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Cerâmica modelada e fina
Séc. XV 3
Séc. XVI 1 2
Séc. XVII 4
5 10 cm
Uma cidade em escavação
113
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação Função
Boião Usado para armazenar e servir à mesa alimentos semi-sólidos (conservas, doces, compotas, molhos). Utilizado à mesa colectivamente. Recipiente de botica (para conter pomadas).
Forma
Recipiente de pequena dimensão, de forma fechada, corpo globular; assenta em base plana ou pé anelar.
Morfologia
Apresenta bordo extrovertido, demarcado exteriormente, boca larga, com corpo de feição hemisférica; assenta em pé anelar e destacado.
Produções
Cerâmica vidrada, faiança, porcelana e vidro.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem eventualmente asiática; surge na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Potinho.
Ocorrência
Referido em 4% dos sítios.
Observações
Parece ser uma forma de Época Moderna sem antecedentes formais conhecidos.
Figura 5
Referências: Cerâmica vidrada: 5.1. – 5.2. (Convento de São Francisco) (Torres, 2011).
Cerâmica vidrada
Séc. XVI
1
Séc. XVII 2
Séc. XVIII
10 cm
114 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação Função
Botija Usado para armazenar e transportar alimentos líquidos ou conservados em ambiente líquido. Tratar-se-ia de um recipiente destinado ao transporte marítimo de longo curso, logo, relacionado com a comercialização do seu conteúdo.
Forma
Recipiente fechado de tamanho médio. Boca estreita, colo curto, corpo bojudo e fundo indiferenciado.
Morfologia
Os bordos apresentam secções triangulares ou ovais, com ou sem lábio extrovertido pendente, demarcado exteriormente; a feição do corpo também varia entre formas ovóides alongadas, globulares/arredondadas terminando em base redonda ou, por vezes, formas oblongas terminado em base pontiaguda. Ao longo das peças é possível visualizarmos carenas ligeiramente pronunciadas. A tipologia dos bordos, conjugada com a forma das paredes, permite classificar cronologicamente os exemplares (GOGGIN, 1960; MARKEN, 1994; AVERY, 1997).
Produções
Cerâmica comum.
Etimologia e referências documentais
O termo provém do latim e surge na documentação pelo menos desde o século XVII (SOUSA, 2011).
Outras designações
Anforeta, botijuela, olive jar e peruleira.
Ocorrência
Referido em 4% dos sítios.
Observações
Não está documentada a produção local desta forma, mas esta considera-se provável. Poderia designar uma medida. Na bibliografia sobre cerâmica moderna de Lisboa, não se encontra ilustrada qualquer botija, completa ou quase. Assim, o exemplar incluído na Tipologia: estampa (figura 31) foi recolhido em Ria de Aveiro B (ALVES et alii, 1998; COELHO, 2012). Trata-se de um exemplar importado, possivelmente proveniente das oficinas do sul de Espanha (ALVES et alii, 1998, p. 200; COELHO, 2012, p. 763; LOUREIRO, MARTINHO, 2009).
Figura
Figura 31.
Designação
Brinco Miniaturas de recipientes cerâmicos utilizadas em actividades lúdicas pelas crianças. Miniaturas de recipientes cerâmicos (e outros objectos) utilizados como adorno pessoal (pendentes por meio de fita) ou com função decorativa doméstica (VASCONCELOS, 1921, p. 29).
Função Forma
Diversas, reproduzindo recipientes cerâmicos de utilização doméstica.
Morfologia
Replica os objectos em tamanho real.
Produções
Cerâmica comum e vidrada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no germânico e surge na documentação escrita desde o século XVI. O termo – “púcaros brinquinhos” – é usado com este significado até ao século XX (VASCONCELOS, 1921, p. 16).
Outras designações
Boneco, brinquedo, figura e miniatura.
Ocorrência
Referido em 11% dos sítios.
Observações
Não foi possível determinar de forma inequívoca a terminologia de época para estes objectos. Existe referência à produção de louça de pequena dimensão para brincar, no século XIV, em Évora (apud VASCONCELOS, 1921; LIBERATO, 2012, p. 26; SOUSA, 2011, p. 522). Os exemplares incluídos na Tipologia: estampa (figura 31) foram recolhidos na Rua de São Pedro Mártir/ Calçada de São Lourenço, em Lisboa (DIOGO, TRINDADE, 1999).
Figura
Figura 31.
Uma cidade em escavação
115
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Candeeiro
Função
Utilizado na iluminação dos espaços domésticos.
Forma
Objecto de pequena/média dimensão, com depósito assente em haste e base plana.
Morfologia
Apresenta depósito para combustível com pequeno bico para pavio (em forma de candeia); haste cilíndrica estreita e alta com caneluras; asa que se desenvolve entre o depósito e zona mesial da haste; assenta em base troncocónica, oca e plana, decorada com sulcos e caneluras pronunciadas.
Produções
Cerâmica comum, fina, vidrada e metal.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Candeia de pé, candelabro, castiçal, palmatória e tigela de iluminação.
Ocorrência
Presente em 4% dos sítios.
Observações
O exemplar incluído na Tipologia: estampa (figura 31) foi recolhido na Casa dos Bicos, em Lisboa.
Figura 6
Referências: Cerâmica vidrada 6.3. (Casa dos Bicos).
Designação
Candeia
Função
Iluminação (com recurso a azeite ou outro óleo combustível).
Forma Morfologia Produções
Recipiente de pequena dimensão, de forma aberta; pequeno bico (por onde sai o pavio) e base plana. Recipiente baixo, assente em fundo circular. As paredes são côncavas e encimadas por um lábio extrovertido. O bordo apresenta-se lobado num dos lados, formando um bico de formato triangular. Cerâmica comum, nalguns casos, com decoração interna composta por motivos de círculos concêntricos e em metal.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XII.
Outras designações
Lamparina e lucerna.
Ocorrência
Presente em 20% dos sítios.
Observações
Na documentação, surge a referência a “candeia de gravato”, que possuía um pequeno cabo para suspensão na parede ou tecto.
Figura 6
Referências: Cerâmica comum: 6.1. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009) e 6.2. (Quarteirão dos Lagares) (Nunes, Filipe, 2012).
Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Séc. XV
1
Séc. XVI
Séc. XVII 3 2
Séc. XVIII
10 cm
116 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação
Caneca
Função
Usada para servir à mesa/beber alimentos líquidos; de utilização individual.
Forma Morfologia
Recipiente de pequena dimensão, de forma cilíndrica, por vezes de tendência bojuda, ou troncocónica (ligeiramente aberta), com uma asa e base plana. Apresenta bordo demarcado exterior e interiormente, com lábio de secção semicircular, corpo de tendência cilíndrica, que assenta em base plana e tem uma asa que se desenvolve entre o bordo e o início da base. Do ponto de vista decorativo pode apresentar caneluras na zona do bordo, parede e base.
Produções
Cerâmica comum e madeira.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e só surge na documentação escrita no século XIX.
Outras designações
Copo e púcaro.
Ocorrência
Presente em 22% dos sítios.
Observações
O termo que identifica este tipo não tem suporte nas fontes escritas. É possível que este objecto fosse designado como “copo” ou “púcaro”.
Figura 7
Referências: Cerâmica comum: 7.1. (Socorro) (Silva, Guinote, 1998) e 7.2. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gomes et alii, 2009).
Cerâmica comum
Séc. XV 1
2
Séc. XVI
10 cm
Uma cidade em escavação
117
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Cântaro
Função
Usado para armazenar alimentos líquidos.
Forma Morfologia
Produções
Recipiente de médias e grandes dimensões, forma fechada de tendência bojuda ou ovóide, colo estreito e bordo extrovertido, com duas asas e base plana. Apresenta bordo introvertido, demarcado interior e/ou exteriormente, canelado, com lábio de secção semicircular. Por vezes apresenta bordo ligeiramente extrovertido, estrangulado no colo. Colo estreito; corpo ovóide ou bojudo; tem geralmente duas asas (mas pode apresentar apenas uma) que, normalmente parte/m do bordo até ao ombro/meio do corpo e assenta em base plana. Cerâmica comum e vidrada. Alguns exemplares (Fig. 8.6) quando vidrados podem apresentar-se totalmente revestidos na superfície interna apresentando na superfície externa uma faixa branca pintada na zona do corpo.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no grego e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Bilha e pote.
Ocorrência
Presente em 24% dos sítios.
Observações
Com frequência é referido que o cântaro era coberto com testo ou prato pequeno, sobre o qual se depositava o púcaro (FERNANDES, 2012, p. 346).
Figura 8
Referências: Cerâmica comum: 8.1. (Praça da Figueira) e 8.5. (Largo de Santo António) (Silva, Guinote, 1998); 8.2. – 8.4. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009) | Cerâmica vidrada: 8.6. (Praça da Figueira) (Silva, Guinote, 1998).
Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Séc. XV 3 2 1
Séc. XVI 4
Séc. XVII 5
Séc. XVIII 6 10 cm
118 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação
Cantil
Função
Usado para armazenar/transportar água e outros líquidos durante deslocações. Utilização individual. Recipiente de pequena ou média dimensão, de forma fechada, redonda e achatada, colo/gargalo curto e estreito, com duas asas. Apresenta bordo extrovertido, demarcado exteriormente, com lábio de secção semicircular; o corpo apresenta feição circular e achatada, dispondo de duas asas simétricas que se posicionam imediatamente abaixo do bordo.
Forma Morfologia Produções
Cerâmica comum.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no grego (?) e surge na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Cantimplora, bilha e gorgoleta.
Ocorrência
Presente em 7% dos sítios.
Observações
Recipiente portátil. “… às vezes ao sair o ar na estreiteza do cano se formam uns zunidos altos e baixos, com tons alegres e tristes de que se originou a palavra, como se dissera em latim: cantat et plorat (canta e chora)” (BLUTEAU, 1712-1728). Referências: Cerâmica comum: 9.1. (Praça da Figueira / Hospital Real de Todos-os-Santos) (Silva, Guinote, 1998). Cerâmica comum
Figura 9
Séc. XVI 1 10 cm
Designação
Escudela
Função
Usado para servir à mesa/comer alimentos sólidos ou semi-sólidos, de utilização individual. Recipiente de pequena dimensão, de forma aberta e carenada, nalguns casos com duas pegas; fundo em ônfalo, por vezes sugerindo um anel. Apresenta bordo recto, por vezes introvertido, demarcado interior e exteriormente, com lábio de secção rectangular. Apresenta corpo carenado e fundo demarcado em ônfalo ou em anel. Pode apresentar-se sem pegas ou duas pegas horizontais recortadas em forma de trevo.
Forma Morfologia Produções
Cerâmica comum e vidrada, faiança e madeira.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XIII.
Outras designações
Malga, taça, tigela e tigela carenada.
Ocorrência
Presente em 9% dos sítios.
Observações Figura 10
Aparentemente, este termo referia-se originalmente a recipientes em madeira. É uma forma aparentemente inspirada na loiça dita “malegueira”. Referências: Cerâmica comum: 10.1. e 10.3. (Rua de São Marçal) (Gaspar, Amaro, 1997); 10.2. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012) | Cerâmica vidrada: 10.4. (Largo do Terreiro do Trigo) (González, 2012); 10.5. (Quarteirão dos Lagares) (Nunes, Filipe, 2012) e 10.6. (Casa dos Bicos) (Silva, Guinote, 1998).
Cerâmica comum
Séc. XV
Séc. XVI
Cerâmica vidrada
1 2 3
4 6
Séc. XVII 5
Séc. XVIII 10 cm
Uma cidade em escavação
119
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Fogareiro
Função
Usado para cozinhar. Utilizado também como recipiente de aquecimento ambiental. Recipiente de média dimensão, de forma aberta; constituído por um corpo superior (aberto para conter as brasas que pode apresentar no bordo apêndices para sustentar a panela, tacho ou frigideira), separado por grelha de um corpo inferior (onde se depositam as cinzas). O corpo superior apresenta bordo espessado e introvertido, demarcado interior e exteriormente com lábio de secção semicircular, paredes convexas e angulosas, até à grelha; corpo inferior alto, de formato troncocónico que ostenta abertura de forma trapezoidal para limpeza de cinzas.
Forma Morfologia Produções
Cerâmica comum.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XVI.
Ocorrência
Presente em 18% dos sítios.
Observações
É considerado um recipiente portátil, conservando-se sem grandes variedades em termos formais até à actualidade.
Figura 11
Referências: Cerâmica comum: 11.1. (Rua dos Correeiros, 70C-92 / Sondagem 14) (Trindade, Diogo, 2003b). Cerâmica comum
Séc. XVIII 1 10 cm
Designação
Frigideira
Função
Usado para cozinhar (fritar) alimentos, em azeite ou banha. Recipiente de média dimensão, de forma aberta, pouco funda; fundo convexo; apresenta asa comprida ou, por vezes duas ou quatro asas/pegas. Apresenta bordo ligeiramente espessado, demarcado exteriormente, lábio curto e de secção semicircular, corpo baixo, paredes ligeiramente extrovertidas e fundo côncavo. Pode ostentar uma única asa, comprida, com orifício semicircular na extremidade (para suspensão) ou duas ou quatro asas/pegas triangulares simétricas que se desenvolvem na zona do bordo.
Forma Morfologia Produções
Cerâmica comum, vidrada e metal.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Caçarola, caçoila e sertã.
Ocorrência
Presente em 44% dos sítios.
Observações
Segundo FERNANDES, 2012, tratava-se de um recipiente metálico com asa comprida. O recipiente correspondente em cerâmica e com duas asas/pegas seria designado “sertã”.
Figura 12
Referências: Cerâmica comum: 12.1. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 12.2. – 12.3. (Rua dos Correeiros, 70C-92/Sondagem 14) (Trindade, Diogo, 2003b) | Cerâmica vidrada: 12.4. (Quinta de Vila Pouca/Vale de Alcântara) (Batalha, Cardoso, 2013). Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Séc. XVI
Séc. XVII
1 4
Séc. XVIII
2
3
10 cm
120 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação
Infusa
Função
Usado para servir à mesa alimentos líquidos; de utilização colectiva. Recipiente de média dimensão, de forma fechada de tendência bojuda ou ovóide; base plana; colo estreito e alongado, bordo de tendência extrovertida; pode ou não apresentar bico vertedor. Apresenta bordo ligeiramente introvertido, lábio de secção semicircular, boca larga, moldurada na zona inferior; apresenta uma asa que se posiciona no ombro e que se desenvolve até meio do corpo. Outras variantes mostram o colo alto e cilíndrico com caneluras, providas de uma asa que se desenvolve entre o colo e o meio da peça. Noutros casos, pode ainda apresentar o colo curto e com caneluras, bordo estrangulado formando um bico vertedor, asa que se desenvolve do gargalo em direcção ao meio do corpo; assente em base plana. As variantes descritas assentam em base plana.
Forma
Morfologia
Produções
Cerâmica comum, vidrada, metal e vidro.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Albarrada, bilha, cabaça, canjirão, cântaro e jarro.
Ocorrência
Presente em 33% dos sítios.
Observações
Para a descrição da morfologia consultou-se principalmente Silva, GUINOTE, 1998, pp. 136 e 150.
Figura 13
Referências: Cerâmica comum: 13.1. – 13.3. e 13.6. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 13.4. – 13.5. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012); 13.7. (Martim Moniz) – 13.8. (Casa dos Bicos) (Silva, Guinote, 1998) | Cerâmica vidrada: 13.9. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar, Gomes, 2012) e 13.10. (Martim Moniz) (Silva, Guinote, 1998). Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Séc. XV 3
2
1
9
Séc. XVI 7 4
5
10
6
Séc. XVII 8 10 cm
Designação
Jarra
Função
Usado para conter flores, com funções decorativas e ornamentais.
Forma
Recipiente de dimensão média, de forma aberta e bordo introvertido; pé alto e destacado.
Morfologia
Apresenta bordo introvertido, demarcado exteriormente, de secção semicircular, corpo troncocónico de feição piriforme; assente em pé destacado, troncocónico e oco com base demarcada exteriormente.
Produções
Cerâmica comum.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no árabe e surge na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Vaso para plantas.
Ocorrência
Presente em 2% dos sítios.
Observações
Este termo, que é aplicado pelos medievalistas para recipientes de beber, ao longo da Época Moderna, aparentemente, vai adquirindo o sentido de recipiente de função decorativa e ornamental. Documentou-se apenas um exemplar recolhido na Rua dos Correeiros (TRINDADE, DIOGO, 2003b).
Figura 14
Referências: Cerâmica comum: 14.1. (Rua dos Correeiros, 70C-92 / Sondagem 14) (Trindade, Diogo, 2003b).
Cerâmica comum
Séc. XVIII 1 10 cm
Uma cidade em escavação
121
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Jarrinha
Função
Usado para servir à mesa/beber alimentos líquidos; de utilização individual.
Forma Morfologia
Recipiente de pequena ou média dimensão, de forma fechada, bojuda ou ovóide; com colo alto e vertical, duas asas e pé destacado de tipo “mealheiro”. Apresenta bordo ligeiramente extrovertido, demarcado exteriormente, com lábio de secção triangular ou rectilínea, colo alto, demarcado do corpo de feição globular por caneluras e assenta em pé em bolacha. Ostenta ainda duas asas simétricas que se desenvolvem entre meio do colo e o corpo.
Produções
Cerâmica comum.
Etimologia e referências documentais
O termo “jarra” tem origem no árabe e surge na documentação escrita desde o século XIV. A utilização no diminutivo relaciona-se com a pequena dimensão da peça.
Outras designações
Púcaro.
Ocorrência
Presente em 4% dos sítios.
Observações
Esta forma surge em período tardo-medieval, representando uma evolução da forma “jarrinha” (assim referenciada na bibliografia; GÓMEZ MARTINEZ, 2014, p. 131 e ss.) de cronologia medievalislâmica. Aparentemente desaparece precocemente (século XVI), tendo sido substituída na função pelas formas de púcaro e de caneca. No que diz respeito ao termo, não foi encontrado suporte documental que o referencie a este objecto. O único termo que surge com segurança associado a recipiente para consumo individual de alimentos líquidos é o “púcaro”.
Figura 15
Referências: Cerâmica comum: 15.1. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009) e 15.2. (Rua dos Correeiros, 79-85/Sondagem 24) (Diogo, Trindade, 2000a).
Cerâmica comum
Séc. XV
1
Séc. XVI 2
10 cm
Designação Função Forma Morfologia
Mealheiro Utilizado para armazenar (acumular pouco a pouco, reservar) moedas; utilizado com o objectivo do entesouramento. Recipiente fechado, de pequena/média dimensão, de forma oval ou piriforme, com pé em bolacha destacado, contendo um pequeno e estreito orifício para introdução de moedas. Por vezes, possui pega em botão superior. Apresenta botão de preensão de formato cónico a partir do qual se desenvolve o corpo de feição alongada e piriforme e assenta em pé alto. Ostenta ainda na parte superior do corpo um corte irregular de formato oblíquo.
Produções
Cerâmica comum.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Alcancia.
Ocorrência
Presente em 7% dos sítios.
Observações
Não se encontra ilustrado qualquer mealheiro, completo ou quase, na bibliografia sobre cerâmica moderna de Lisboa. Assim, o exemplar incluído na Tipologia: estampa (figura 31) foi recolhido na Ria de Aveiro A (CARVALHO, BETTENCOURT, 2012).
Figura
Figura 31.
122 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação
Panela
Função
Usado para cozinhar alimentos ao lume. Recipiente de pequena, média e grande dimensão, de forma fechada, bojuda ou ovóide, colo ligeiramente estreitado, mais ou menos diferenciado; apresenta uma ou duas asas, fundo plano, convexo ou, por vezes côncavo. Apresenta bordo recto, por vezes, biselado, demarcado na superfície externa, aplanado superiormente, com lábio de perfil subquadrangular ou semicircular; assenta em base plana, por vezes, convexa e angulosa, na sua ligação com o bojo. Pode ostentar apenas uma asa que liga o bordo à zona mesial do corpo, e nalguns casos quase até à base. Geralmente apresenta duas asas torças que se desenvolvem na zona do colo, no sentido horizontal. Cerâmica comum, vidrada em tons de melado e metal. Quando vidrada, pode apresentar vestígios deste tratamento na superfície externa e revestimento total na superfície interna.
Forma Morfologia Produções Etimologia e referências documentais
O termo provém do latim surgindo abundantemente na documentação escrita desde o século XI.
Outras designações
Asado, caldeirão e púcara.
Ocorrência
Presente em 71% dos sítios.
Observações
Com frequência é referido que a panela era coberta com testo (FERNANDES, 2012, p. 346).
Figura 16
Referências: Cerâmica comum: 16.1. – 16.2. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 16.3 – 16.6. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012); 16.7. (Praça da Figueira / Hospital Real de Todos-os-Santos) (Silva, Guinote, 1998); 16.8. – 16.10. (Rua de São Nicolau, 107-111) (Diogo, Trindade, 2000b); 16.11. (Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (Coelho, Bugalhão, 2015); 16.12. (Rua dos Correeiros/Rua de Santa Justa / Sondagem 1) (Diogo, Trindade, 1995); 16.13. (Travessa da Madalena, 18) (Trindade, Diogo, 1998a) e 16.14. (Rua dos Correeiros, 70C-92 / Sondagem 14) (Trindade, Diogo, 2003b) | Cerâmica vidrada: 16.15. (Rua de São Julião, 47-57/Rua do Comércio, 32-38) (Silva, Guinote, 1998). Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
1
Séc. XV 2
3
8 4
9
Séc. XVI
5
10 6
15
Séc. XVII
7
Séc. XVIII 11
12
13
14
10 cm
Uma cidade em escavação
123
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação Função
Pedra de Jogo Objecto utilizado em actividades lúdicas (jogos) sobre uma mesa, tabuleiro ou no chão (sendo neste caso arremessada).
Forma
Objecto de pequena ou muito pequena dimensão, plano e de forma geralmente circular.
Morfologia
Apresenta forma circular, espessa e plana ostentando por vezes decoração brunida ou linha de tonalidade branca.
Produções
Cerâmica comum, brunida, vidrada e pintada, faiança, porcelana, metal, osso e pedra.
Etimologia e referências documentais
O termo provém do latim e surge na documentação escrita desde o século XI.
Outras designações
Disco, ficha, malha, marca de jogo e peça de jogo. Para estas designações consultou-se principalmente SOUSA, 2011, pp. 518-519.
Ocorrência
Frequente mas indeterminada.
Observações
Não foi determinada relação inequívoca entre o objecto e o termo. São peças produzidas a partir de fragmentos cerâmicos, ou seja, trata-se de um aproveitamento secundário de cerâmica fragmentada Existem em dimensões muito variadas, destinando-se provavelmente a jogos distintos. Os exemplares incluídos na Tipologia: estampa (figura 31) foram recolhidos no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, em Lisboa.
Figura
Figura 31.
Designação
Pote
Função
Usado para armazenar alimentos. Recipiente de botica. Utilizado em actividades industrio-artesanais (lagar).
Morfologia
Recipiente de média e grande dimensão, de forma fechada, bojuda, assente em base plana; por vezes apresenta duas asas. Apresenta o bordo introvertido, por vezes com duas asas simétricas que se desenvolvem entre o ombro e a zona mesial do corpo da peça de feição globular no topo, tornando-se mais recta até à base plana.
Produções
Cerâmica comum e vidrada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no francês, alemão e holandês e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Asado, atanor, barril, porrão, púcaro e talha.
Ocorrência
Presente em 44% dos sítios.
Observações
Com frequência é referido que o pote era coberto com testo (FERNANDES, 2012, p. 331). A morfologia deste tipo não está fixada, sendo apresentadas três peças muito diferenciadas.
Figura 17
Referências: Cerâmica comum: 17.1. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 17.2. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012) e 17.3. (Praça da Figueira / Hospital Real de Todos-os-Santos) (Silva, Guinote, 1998).
Forma
Cerâmica comum
Séc. XV
Séc. XVI
1
2
Séc. XVII
Séc. XVIII
3 10 cm
124 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação Função
Prato Usado para servir à mesa/comer alimentos sólidos. Na mesa, de uso geralmente individual (podendo ser colectivo, sobretudo os exemplares de maiores dimensões).
Forma
Recipiente de pequena e média dimensão, de forma aberta, em que a altura é significativamente inferior à largura.
Morfologia
Apresenta o bordo boleado e aba larga e extrovertida, paredes troncocónicas que assentam em pé em anel. Por vezes exibe ainda na superfície externa estrias/caneluras ao longo de toda a peça, inclusive no bordo. Algumas peças em cerâmica modelada mostram bordos extrovertidos, com abas descaídas, por vezes, onduladas e, nalguns casos, com a aplicação de decoração simples através da digitação.
Produções
Cerâmica comum, modelada, vidrada, faiança e metal.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XV.
Outras designações
Pratel, testo e trincho.
Ocorrência
Presente em 51% dos sítios.
Observações
Com dimensão mais pequena surge na documentação a designação de “pratel”. Por vezes, numa das suas variantes, esta forma confunde-se com a forma “testo”: “prato pequeno que se colocava sobre os cântaros de água e sobre o qual se depositava o púcaro” (Fernandes, 2012). Existe uma variante aparentemente inspirada na loiça dita “malegueira”.
Figura 18
Referências: Cerâmica comum: 18.1. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 18.2. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar, Gomes, 2012); 18.3. (Convento de Santana) (Gomes et alii, 2013); 18.4. – 18.5. (Rua dos Correeiros, 79-85/Sondagem 24) (Diogo, Trindade, 2000a) e 18.6. (Rua José António Serrano) (Silva, Guinote, 1998) | Cerâmica vidrada: 18.7. (Quarteirão dos Lagares) (Nunes, Filipe, 2012); 18.8. (Convento de Santana) (Gomes et alii, 2013); 18.9. (Convento de São Francisco) (Torres, 2011) e 18.10. (Edifício do Aljube / Rua Augusto Rosa) (Santos, 2008). Cerâmica comum
Cerâmica v
Séc. XV
2
1
4
Séc. XVI
5 6
3
Séc. XVII 7
Cerâmica comum Cerâmica vidrada
Cerâmica comum
Cerâmica v
Cerâmica modelada e fina
Séc. XVIII Séc. XV
2
2
1 4
4
Séc. XVI
10 5
5 8
6
3
Séc. XVII 7
6
3
9
7
Séc. XVIII
10 cm
Uma cidade em escavação
125
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Morfologia
Púcaro Usado para servir à mesa/beber alimentos líquidos; de utilização individual. Usado para apoio à função de armazenamento, para tirar líquido de outros recipientes de maiores dimensões (cântaros, potes e talhas). Pode ainda ser utilizado como recipiente de cozinha (confeccionar ou aquecer alimentos). Recipiente de pequena dimensão, forma fechada, de tendência cilíndrica ou ovóide, colo diferenciado de tendência vertical, mais ou menos alto e uma única asa. Apresenta bordo extrovertido, demarcado exteriormente, a partir do qual se desenvolve a asa prolongando-se até ao corpo de feição globular; assenta em base plana ligeiramente destacada.
Produções
Cerâmica comum e modelada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem em dialecto moçarábico (?) e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Quarta, potinho e púcara.
Ocorrência
Presente em 53% dos sítios.
Observações
Esta forma, embora com claros antecedentes medievais, substitui funcionalmente a “jarrinha” de cronologia medievalislâmica e tardo-medieval. Com frequência é referido que o púcaro era coberto com testo (FERNANDES, 2012, p. 336).
Figura 19
Referências: Cerâmica comum: 19.1. (Martim Moniz) – 19.2. (Praça da Figueira/Hospital Rela de Todos-os-Santos) e 19.4. (Praça D. Pedro IV/ Rossio) (Silva, Guinote, 1998); 19.3. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009) e 19.5. (Rua de São Pedro Mártir, 22-24/Calçada de São Lourenço, 17-19) (Trindade, Diogo, 2003a) | Cerâmica modelada e fina: 19.6. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012); 19.7. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar, Gomes, 2012) e 19.8. (Edifício do Aljube/ Rua Augusto Rosa) (Santos, 2008).
Função Forma
Cerâmica comum
Cerâmica modelada e fina
Séc. XV 7 3
Séc. XVI
6
8
4
1
Séc. XVII 5 2
Séc. XVIII
10 cm
126 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação
Morfologia
Recipiente de Medida Usado na actividade comercial (venda de alimentos líquidos e secos). Usado na cozinha (na confecção das receitas). Recipientes de dimensão variada, forma fechada e ligeiramente troncocónica, com base plana e asa única, posicionada junto ao fundo. A variante de dimensão mais pequena apresenta por vezes pé destacado. Apresenta bordo plano, rectilíneo e, por vezes, extrovertido, demarcado interior e exteriormente, com lábio de perfil semicircular.
Produções
Cerâmica comum, madeira e metal.
Etimologia e referências documentais
Origem variável (depende de cada medida); surgem abundantes referências na documentação escrita desde o período medieval.
Outras designações
Alqueire, almude, arrátel, arroba, maquia, medida de cereais púcaro, quarta, etc.
Ocorrência
Presente em 18% dos sítios.
Observações
O termo não surge na documentação, sendo estes recipientes referidos pela sua medida de capacidade. A classificação neste tipo depende da localização da asa junto ao fundo, do bordo que se apresenta cortado no topo e da existência de marcas/inscrições de medida ou de aferição de medida gravadas após cozedura. A necessidade de aferição da capacidade destes recipientes existiria apenas para os que eram utilizados no comércio (VIANA, 2015, p. 58).
Figura 20
Referências: Cerâmica comum: 20.1. – 20.2. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009).
Função Forma
Cerâmica comum
Séc. XV 1
Séc. XVI
2
10 cm
Designação
Salseira/Saleiro
Função
Usado para servir à mesa molhos, sal, especiarias, temperos, ervas, etc.; de utilização colectiva.
Forma
Recipiente de pequena dimensão, de forma aberta, por vezes carenada, de paredes envasadas ou verticais e base plana.
Morfologia
Apresenta bordo rectilíneo, corpo hemisférico baixo e assenta em base plana, geralmente espessa e maciça.
Produções
Cerâmica comum e vidrada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Especieiro, salsinha e taça.
Ocorrência
Presente em 9% dos sítios.
Figura 21
Referências: Cerâmica comum: 21.1. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012); 21.2. – 21.3. (Rua de São Pedro Mártir, 22-24/Calçada de São Lourenço, 17-19) (Trindade, Diogo, 2003a) | Cerâmica vidrada: 21.4. – 21.7. (Quarteirão dos Lagares) (Nunes, Filipe, 2012). Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Séc. XV
Séc. XVI
Séc. XVII
Séc. XVIII
4
5
6
7
1
2
3
10 cm
Uma cidade em escavação
127
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Servidor
Função
Usado na higiene pessoal, para conter dejectos humanos.
Forma
Recipiente de dimensão média, forma de tendência cilíndrica; bordo extrovertido, largo e plano; base plana e duas asas.
Morfologia
Apresenta bordo largo, extrovertido em forma de aba, demarcado interior e exteriormente, onde se desenvolvem duas asas simétricas até à zona mesial do corpo e assenta em base plana. Do ponto de vista decorativo, poderá apresentar na aba motivos ondulantes e linhas concêntricas incisas e abaixo do bordo incisões oblíquas efectuadas através da pressão de um instrumento pelo exterior.
Produções
Cerâmica comum, vidrada, modelada e fina.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Bacia, bacio, bacio de quarto, bacio servidor, bispote, calhandro, camareira, camareiro, vaso de águas, vaso de quarto, vaso de noite e penico.
Ocorrência
Presente em 22% dos sítios.
Observações
Há uma forma baixa, mais pequena e decorada, a que alguns autores chamam “bacia”. A partir do século XVIII, a forma evolui para recipientes de menor dimensão, de corpo bojudo e uma asa (bacio ou penico). Para a descrição da decoração consultou-se principalmente SANTOS, 2008, pp. 325-345.
Figura 22
Referências: Cerâmica comum: 22.1. – 22.3. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012) e 22.4. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009) | Cerâmica vidrada: 22.5. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar, Gomes, 2012) e 22.6. (Quinta de Vila Pouca/Vale de Alcântara) (Batalha, Cardoso, 2013) | Cerâmica modelada e fina: 22.7. (Edifício do Aljube/Rua Augusto Rosa) (Santos, 2008). Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Cerâmica modelada e fina
Séc. XV 2
1
5
Séc. XVI 3
7
4
Séc. XVII 6
Séc. XVIII 10 cm
128 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação Função
Sino Objecto destinado a sinalizar sonoramente um chamamento, em espaço doméstico. Utilizado também em funções religiosas/rituais.
Forma
Objecto de pequena dimensão, de forma cónica oca; sem fundo e com pêndulo.
Morfologia
Apresenta forma cónica, assente em base larga que vai estreitando até ao topo, onde ostenta uma pequena pega de formato circular para o sino ser manobrado.
Produções
Cerâmica comum, modelada e metal.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XII).
Outras designações
Badalo e campainha.
Ocorrência
Referido em 4% dos sítios.
Observações
O exemplar incluído na Tipologia: estampa (figura 31) foi recolhido no Pátio Linheiro/Largo dos Trigueiros, em Lisboa (BARGÃO, FERREIRA, 2013).
Figura
Figura 31.
Designação
Taça de pé alto
Função
Usado para servir à mesa/beber alimentos líquidos; de utilização individual.
Forma
Recipiente de pequena dimensão, de forma aberta com pé alto.
Morfologia
Apresenta bordos boleados ou rectos; paredes rectas com duas asas verticais; corpo de forma hemisférica. Do ponto de vista decorativo surgem motivos digitados ou estampilhados, de feição ovóide, frisos ou linhas de ônfalos nas paredes das peças, por vezes, combinando ambas originando uma deformação na peça provocada pela pressão dos dedos contra a parede. Surgem ainda exemplares com bordo extrovertido, com carena no centro do corpo. Pé alto, troncocónico e oco.
Produções
Cerâmica modelada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no árabe e surge na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Cálice.
Ocorrência
Presente em 4% dos sítios.
Observações
Este tipo não aparece na documentação municipal (posturas, taxas e regimentos de oleiros), parecendo tratar-se de um recipiente usado em exclusivo pelos grupos sociais mais elevados. Para a descrição da decoração consultou-se principalmente SANTOS, 2008, pp. 325-345.
Figura 23
Referências: Cerâmica modelada e fina: 23.1. – 23.2. (Edifício do Aljube / Rua Augusto Rosa) (Santos, 2008).
Cerâmica modelada e fina
Séc. XVI
1 2 10 cm
Uma cidade em escavação
129
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Tacho Usado para cozinhar, ao lume ou no forno. Eventualmente utilizado também para servir à mesa (terrina?), neste caso de utilização colectiva. Recipiente de média dimensão, de forma aberta e corpo baixo; fundo convexo; duas asas ou pegas; apresenta geralmente no bordo ressalto para encaixe de testo. Aparentemente, no século XVII, surge um segundo tipo, de corpo alto e envasado com duas ou quatro asas/pegas. Apresenta bordo bipartido, com lábio de perfil semicircular, com uma pequena lingueta, por vezes muito introvertida que permite o encaixe da tampa/testo. Na passagem do bordo para o corpo, a peça sofre uma inflexão; as paredes são baixas, ligeiramente extrovertidas e, por vezes, de tendência hemisférica, e assentam em base convexa. Ostentam ainda duas asas simétricas, torças, que se desenvolvem no sentido horizontal na zona do bordo ou, por vezes, partem da inflexão até à zona da base. Do ponto de vista decorativo, as paredes encontram-se normalmente adornadas com caneluras no seu topo ou incisão ondulada contínua, e, por vezes, na pequena lingueta onde encaixa a tampa/testo, surge também incisão ondulada contínua. Em alguns exemplares vemos ainda o bordo profusamente decorado por dedadas. Cerâmica comum e (raramente) vidrada. Vulgarmente era em metal – liga de cobre e ferro –, sendo o tacho de barro, uma imitação dos tachos de metal, referidos no regimento lisbonense (FERNANDES, 2012).
Função Forma
Morfologia
Produções Etimologia e referências documentais
O termo tem origem obscura e surge na documentação escrita desde o século XV.
Outras designações
Assadeira (?), caçarola, caçoila, pingadeira (?), talhador (?) e terrina.
Ocorrência
Presente em 49% dos sítios.
Observações
Na documentação estudada por FERNANDES, 2012, não surge a associação do tacho ao testo.
Figura 24
Referências: Cerâmica comum: 24.1. (Rua de São Marçal) (Gaspar, Amaro, 1997); 24.2. e 24.10. (Rua dos Correeiros/ Sondagem 27) (Diogo, Trindade, 2001); 24.3. – 24.4. (Rua de São Nicolau, 107-111) (Diogo, Trindade, 2000b); 24.5. (Castelo de São Jorge – Beco do Forno (Gomes et alii, 2009); 24.6. e 24.8. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 24.7. e 24.9. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012); 24.11. e 24.14. (Rua dos Correeiros, 70C-92/Sondagem 14) (Trindade, Diogo, 2003b) e 24.12. (Casa dos Bicos) – 24.13. (Praça da Figueira/Hospital Real de Todos-os-Santos) (Silva, Guinote, 1998).
Cerâmica comum
1
5
Séc. XV
6
2
7
3 9
Séc. XVI
10 8 4
Séc. XVII
14
13
12
Séc. XVIII 11
10 cm
130 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação
Talha
Função
Usado para armazenar alimentos líquidos ou cereais.
Forma Morfologia
Recipiente de grande dimensão, geralmente de forma bojuda, colo curto, bordo de tendência introvertida; base plana. Por vezes, apresenta duas asas. Alguns exemplares apresentam decoração incisa, modelada ou com aplicações plásticas. Apresenta bordo curto, demarcado exterior e interiormente, de secção quadrangular; o corpo mostra feição piriforme e assenta em base plana. As asas, quando existentes, situam-se na parte superior do corpo da peça. Do ponto de vista decorativo, poderá apresentar aplicações plásticas, incisões e impressões.
Produções
Cerâmica comum e vidrada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim, via castelhano, e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Barril e pote.
Ocorrência
Presente em 16% dos sítios.
Observações
Com frequência é referido que a talha era coberta com testo (FERNANDES, 2012, p. 343). Na bibliografia sobre cerâmica moderna de Lisboa, não se encontra ilustrada qualquer talha, completa ou quase. Assim, o exemplar incluído na Tipologia: estampa (figura 31) foi recolhido em Silves e é apresentado com a escala alterada (GOMES, 1996, p. 169).
Figura
Figura 31.
Designação
Tampa
Função
Usado para servir à mesa, cobrindo recipientes (açucareiros, bilhas e cântaros).
Forma
Recipiente de forma cónica, com pega central.
Morfologia
Apresenta forma troncocónica, com uma pega superior em botão de forma triangular. Mostra uma aba exterior de feição triangular própria para assentar/cobrir os recipientes. Por vezes, pode apresentar decoração composta por uma banda na parte central da parede com incisões.
Produções
Cerâmica modelada e pedrada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no gótico e surge na documentação escrita desde o século XVI.
Ocorrência
Presente em 13% dos sítios.
Observações
Não há evidências de que este objecto fosse designado através deste termo. Parece tratar-se de um recipiente de uso restrito, limitado aos grupos sociais mais elevados.
Figura 25
Referências: Cerâmica modelada e pedrada: 25.1. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012); 25.2. (Escadinhas da Saúde) (Trindade, Diogo, 1998b); 25.3. (Edifício do Aljube/Rua Augusto Rosa) (Santos, 2008) e 25.4. (Rua dos Correeiros, 70C-92/Sondagem 14) (Trindade, Diogo, 2003b).
Cerâmica modelada e pedrada
Séc. XV
Séc. XVI 1
Séc. XVII
3
4 2
Séc. XVIII 10 cm
Uma cidade em escavação
131
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Morfologia
Testo Usado nas funções de cozinha e armazenamento, para cobrir recipientes (cântaros, panelas, potes, púcaros, tachos e talhas), para resguardar o seu conteúdo, preservar a temperatura ou auxiliar na cozedura dos alimentos. Recipiente de pequena ou média dimensão, de forma aberta, troncocónica, por vezes de tendência plana; apresenta pega central; base plana, ligeiramente côncava ou convexa. Apresenta bordo com lábio de perfil semicircular, espessado; paredes extrovertidas; uma pega em botão e assenta em base plana.
Produções
Cerâmica comum e vidrada.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita no século XIV e, muito frequentemente, desde o século XVI.
Outras designações
Cobertura, sapadeiro, tampa, telhador e trincho.
Ocorrência
Presente em 53% dos sítios.
Observações
Esta forma, principalmente enquanto fragmento, confunde-se com a forma prato.
Figura 26
Referências: Cerâmica comum: 26.1. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 26.2. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012); 26.3. (Rua João do Outeiro, 36-44) (Diogo, Trindade, 1998); 26.4. (Rua de São Nicolau, 107-111) (Diogo, Trindade, 2000b); 26.5. – 26.6. (Rua dos Correeiros, 70C-92/Sondagem 14) (Trindade, Diogo, 2003b); 26.7. (Convento de Santana) (Gomes et alii, 2013) e 26.8. (Rua dos Correeiros/Rua de Santa Justa/Sondagem 1) (Diogo, Trindade, 1995).
Função Forma
Cerâmica comum
Séc. XV 1 3
2
Séc. XVI
4
7
Séc. XVII
5 6
Séc. XVIII
8
10 cm
132 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Designação Função
Forma
Morfologia
Tigela Usado para servir à mesa alimentos sólidos, semi-sólidos, sopas ou caldo; de utilização individual ou colectiva, em função da dimensão. Os exemplares mais pequenos podiam ser usados no serviço de mesa para consumo individual de líquidos. Também poderia ser usado na cozinha na preparação e até cozedura (no fogo ou no forno) dos alimentos, ou na lavagem de outros recipientes (como pequeno alguidar). Recipiente de pequena ou média dimensão, de forma aberta, troncocónica, por vezes carenada; fundo plano, destacado ou em anel. Apresenta bordo extrovertido, com ressalto, com lábio de secção semicircular; ou bordo por vezes simples; assenta em pé em bolacha, por vezes ligeiramente convexo. Nalguns casos, o corpo mostra carena ao centro, caneluras na zona do bordo, assentando em pé anelar, ligeiramente destacado. Surgem ainda peças que mostram bordo aplanado superiormente e corpo de forma hemisférica. Alguns exemplares mostram um bordo introvertido de secção semicircular, com pequena asa de feição triangular, corpo de forma troncocónica assente em base plana.
Produções
Cerâmica comum, vidrada e faiança.
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge, muito frequentemente, na documentação escrita desde o século XIV.
Outras designações
Ataifor, bacia, caçoila, escudela, gamela, malga, saladeira, taça, taça carenada e talhador.
Ocorrência
Presente em 69% dos sítios.
Observações
Trata-se de um recipiente multifuncional e morfologicamente muito diferenciado. Surge em dimensões muito variadas.
Figura 27
Referências: Cerâmica comum: 27.1., 27.8. e 27.10. (Praça da Figueira/Hospital Real de Todos-os-Santos) (Silva. Guinote, 1998); 27.2. (Travessa da Madalena, 18) (Trindade, Diogo, 1997); 27.3. – 27.4. e 27.6. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009); 27.5. (Rua do Benformoso, 168-186) (Marques, Leitão, Botelho, 2012); 27.7. (Quinta Vila Pouca/Vale de Alcântara) (Batalha, Cardoso, 2013) | Cerâmica vidrada: 27.11 (Quarteirão dos Lagares) (Nunes, Filipe, 2012) e 27.12. – 27.13. (Convento de São Francisco) (Torres, 2011).
Cerâmica comum
Séc. XV
Cerâmica vidrada
3 4 11 5
Séc. XVI 6
8
Séc. XVII
12 1 7
Séc. XVIII
9
10
13
2
10 cm
Uma cidade em escavação
133
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Designação
Trempe
Função
Usado para cozinhar, sobre o lume ou brasas, como suporte para os recipientes de cozinha (frigideira, panela ou tacho).
Forma
Peça em forma de triângulo ou arco, que assenta sobre três pés macios.
Morfologia
Apresenta base plana e vazada que assenta em três pés salientes e destacados de secção triangular.
Produções
Cerâmica comum e metal (ferro).
Etimologia e referências documentais
O termo tem origem no latim e surge na documentação escrita desde o século XVI.
Outras designações
Tripeça e tripé.
Ocorrência
Presente em 4% dos sítios.
Observações
As trempes surgem referenciadas na documentação mas sempre em metal (não se conhecem referências escritas a trempes em cerâmica). É considerado um utensílio portátil.
Figura 26
Referências: Cerâmica comum: 28.1. (Castelo de São Jorge – Palácio do Governador) (Gaspar et alii, 2009).
Cerâmica comum
Séc. XV
1
Séc. XVI
10 cm
4. Distribuição, frequência e cronologia Os 45 sítios arqueológicos com espólio cerâmico publicado e que, portanto, forneceram informação útil para o presente estudo, foram cartografados sobre a Planta de Lisboa, posterior a 1780 (Colecção de Augusto Vieira da Silva, nº 43, Planta 4; GEO/CML), na qual se sobrepõem as cartografias pré e pós terramoto. Verifica-se que grande parte dos sítios (31) se encontra no perímetro muralhado do final da Idade Média (ou seja, no interior da Cerca Fernandina), ou na sua envolvente próxima. Considerase, por isso, que na amostra utilizada poderá verificar-se algum défice de representatividade relativamente ao território urbano de Época Moderna, principalmente no que se refere às cronologias mais recentes (séculos XVII e XVIII) e às zonas de frente ribeirinha e de expansão urbana para Oeste e Leste da cidade medieval. Relativamente ao tipo de contextos que forneceram os objectos cerâmicos que estão na base desta Tipologia, pode referir-se numa abordagem genérica que se registaram: convento (3), contexto habitacional (23), contexto de armazenamento (1), depósito fluvial (2), hospital (1), olaria
134 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
(3), palácio (6), quinta (1) e indeterminado (8). Tentou-se estabelecer uma correlação entre o tipo de contexto e a ocorrência de determinados tipos cerâmicos, nomeadamente os menos abundantes, mas sem sucesso, provavelmente devido à pequena dimensão da amostra e à natureza pouco sistemática da informação de base. Dos 45 sítios representados, apenas três não têm cerâmica comum publicada; 24 sítios não têm cerâmica vidrada publicada; apenas 15 sítios têm exemplares de cerâmica fina (modelada, incisa e pedrada) publicada. Relativamente aos grupos funcionais, 89% dos sítios forneceram cerâmica de cozinha; 80% dos sítios facultaram loiça de mesa; 58% forneceram loiça de armazenamento e transporte; e 56% dos sítios proporcionaram objectos integráveis em outras funcionalidades (nomeadamente, higiene, iluminação e lúdica). Foi ponderada a frequência relativa dos “tipos” cerâmicos nos 45 sítios arqueológicos que constituem a amostra deste estudo. As frequências numéricas apresentadas contêm, certamente, uma margem de erro, pois na maioria dos casos os “tipos” referenciados pelos autores surgem na forma de fragmentos; por outro lado,
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Figura 29 - Planta de Lisboa, posterior a 1780 (Colecção de Augusto Vieira da Silva, nº 43, Planta 4; GEO/CML) com a representação dos sítios arqueológicos com espólio cerâmico publicado.
muitas vezes, os “tipos” são referidos mas não ilustrados. A “reclassificação” dos objectos de acordo com a presente Tipologia também comporta alguma possibilidade de erro, pelas mesmas razões. Como já foi mencionado, o carácter e abrangência muito diferenciados das publicações que constituem a fonte para esta ponderação de frequência (em relação à totalidade dos objectos cerâmicos efectivamente recolhidos) impossibilitam conclusões definitivas, permitindo apenas uma apreciação de presença/ausência nas referências bibliográficas (e não nas colecções arqueológicas). Contudo, considera-se, que as frequências apresentadas para cada tipo constituem, ainda assim, um indicador fiá-vel, para além do único para já possível, relativamente à sua maior ou menor representatividade nos conjuntos cerâmicos da cidade de Lisboa. Relativamente à loiça de cozinha e à frequência dos tipos cerâmicos definidos, verifica-se, que o tipo mais abundante é a panela (presente em 71% dos sítios), seguido do alguidar (60%), do testo (53%), do tacho (49%) e da frigideira (44%). Com ocorrência mais rara, registam-se o fogareiro, o almofariz e a trempe. No que respeita à loiça de mesa, os tipos mais frequentes nos sítios em apreço são a tigela (presente em 69% dos sítios), o púcaro (53%), o prato (51%), a bilha (36%) e a infusa (33%). Com ocorrência mais rara registam-se o açucareiro, a escudela, a caneca, a salseira/ saleiro, a tampa, a taça de pé alto e a jarrinha. Quanto aos recipientes de armazenamento e transporte, estão representados o pote (presente em 44% dos sítios), o cântaro (24%) e a talha (16%). Com fre-
quência mais reduzida, há a referir o cantil, o barril, a botija e o boião. Na função de higiene pessoal, destaca-se o servidor (presente em 22% dos sítios). Na iluminação, registase a candeia (em 20% dos sítios) e o candeeiro (4%). Noutras funções, registam ocorrência muito reduzida: o recipiente de medida, o brinco, o mealheiro, o sino, o apito e a jarra decorativa. Relativamente à cronologia dos conjuntos cerâmicos verifica-se algum equilíbrio em relação aos quatro séculos abrangidos neste estudo (XV, XVI, XVII e XVIII). O século XVI é o melhor representado (presente em 32% dos 45 sítios arqueológicos da amostra), seguindo-se os séculos XVII e XVIII (em 25% dos sítios) e, por fim, o século XV, apenas representado em 18% dos sítios. Na conclusão do trabalho foi possível elaborar a Tipologia: estampa (Figura 31) da cerâmica de Época Moderna na cidade de Lisboa, ou seja, a expressão gráfica sintética dos 37 “tipos” cerâmicos definidos. Na elaboração desta estampa final, utilizaram-se essencialmente peças publicadas seleccionadas (que integram as estampas tipológicas de cada “tipo”), com o objectivo de ilustrar as principais variantes em presença. Os desenhos das peças, na sua maioria já previamente vectorizados, foram por vezes sujeitos a manipulação, no sentido da sua simplificação, clarificação morfológica, ou montagem (com recurso a vários fragmentos). Neste procedimento não foram consideradas diferenças entre as três produções em análise (cerâmica comum, vidrada e fina), privilegiando-se as características morfológicas distintivas.
Uma cidade em escavação
135
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Figura 30 – Cerâmica Moderna de Lisboa | Ocorrência de tipos / função / produção, em sítios.
136 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Tabela 2 - Cerâmica Moderna de Lisboa | Síntese e referências
CNS 3996
Sítios (de Lisboa)
Convento e Igreja do Carmo
16837 Convento de São Francisco
Tipo de contexto
(em séculos)
Convento
XVI-XVII
Convento
Cronologia
Cerâmica comum
Cerâmica vidrada
Cerâmica modelada e fina
Ferreira, Neves, 2005
púcaro
XVI-XVII alguidar, barril, botija, cântaro, cantil, fogareiro, frigideira, infusa, marca de jogo, panela, pote, prato, púcaro, servidor, tacho, talha, testo, tigela, trempe
Bibliografia
alguidar, escudela, infusa, panela, pote, prato, servidor, tigela
açucareiro, bilha, pote
Ramalho, Folgado, 2002; Torres, 2011
alguidar, frigideira, pote, prato, servidor, talha, tigela
açucareiro, bilha, candeia, cântaro, infusa, panela, pote, púcaro, salseira/saleiro, tampa, tigela
Gomes et alii, 2013
19397
Convento de Santana
Convento
XVI-XVII
35897
Largo Vitorino Damásio
Depósito fluvial
XVIII
30148
Largo do Chafariz de Dentro
Depósito fluvial
Final XV XVII
sino, prato/testo, almofariz
15801
Rua dos Correeiros/Santa Justa – Sondagem 1
Habitacional
Meados XVIII
panela, testo
Diogo, Trindade, 1995
15807
Rua dos Correeiros, 69-71 / Sondagem 25
Habitacional
XVI
púcaro
Diogo, Trindade, 2000a
21930
Rua de São Julião, 47-57 / Rua do Comércio, 32-38
Habitacional
Final XVI meados XVII
Sem CNS
Rua Rafael Andrade
Habitacional
Final XVII início XVIII
4790
Martim Moniz
Habitacional
16919
Rua dos Correeiros – Sondagem 27
Habitacional
12918
Rua João do Outeiro, 36-44
Habitacional
16912
Rua dos Correeiros – Sondagem 3
Habitacional
12916
Rua São Pedro Mártir, 26-34
Habitacional
Meados XVIII brinco, púcaro
Diogo, Trindade, 1998a
21688
Rua da Saudade, 2
Habitacional
Época moderna
Prata, Dias, Cuesta-Gómez, 2013
15803 Rua dos Correeiros – Sondagem 8
Habitacional
Rua dos Correeiros, 79-85 / Sondagem 24
Habitacional
15808
bilha, cântaro, fogareiro, prato, talha, tigela
alguidar, panela, púcaro
bilha, infusa, testo, púcaro, tigela alguidar, frigideira, panela, Meados XVI infusa, púcaro, tacho, testo, tigela alguidar, barril, infusa, panela, Final XV pote, prato, tacho, testo, tigela caneca, frigideira, panela, XV pote, prato/testo, tacho, testo, tigela XV início XVIII
candeia, panela
alguidar, bilha, candeia, caneca, Meados XVI frigideira, infusa, panela, tacho, testo, tigela alguidar, bilha, candeia, caneca, Séc. XVI frigideira, infusa, panela, tacho, testo, tigela
alguidar, frigideira, infusa, pote, tacho alguidar, pote, tigela, servidor
Santos, 2006a
candeeiro, pote
Silva et alii, 2012
panela
Silva, Guinote, 1998
alguidar
Brito, Barbosa, 2012
bilha
Silva, Guinote, 1998
prato
Diogo, Trindade, 2001 Diogo, Trindade, 1998 Diogo, Trindade, 2001
Diogo, Trindade, 2008
Diogo, Trindade, 2000a
Uma cidade em escavação
137
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
CNS
Sítios (de Lisboa)
Tipo de contexto
Cronologia
Cerâmica Cerâmica comum vidrada alguidar, brinco, frigideira, mealheiro, Final XVI - panela, prato, apito início XVII púcaro, recipiente de medida, salseira/ saleiro, tacho, tigela alguidar, brinco, frigideira, recipiente brinco, frigideira, panela, púcaro, Meados XVIII de medida, panela, pote, prato, púcaro, testo, tigela tacho, testo, tigela alguidar, bilha, candeia, cântaro, panela, Final XV - infusa, púcaro, início XVI prato, recipiente de medida, tacho, testo, tigela alguidar, bilha, brinco, caneca, cântaro, fogareiro, XVI - XVIII frigideira, mealheiro, panela, pote, prato, púcaro, tacho, talha, testo, tigela alguidar, bilha, botija, frigideira, Meados XVIII fogareiro, jarra, panela, tacho, testo, tigela candeia, cântaro, fogareiro, frigideira, Meados XVIII infusa, jarrinha, paalguidar nela, prato, púcaro, servidor, testo, tigela XVI caneca, infusa, talha, 2.ª metade púcaro, recipiente de alguidar, tigela XVII medida, tigela (em séculos)
Cerâmica modelada e fina
Bibliografia
açucareiro, apito, prato, salseira/ saleiro, tigela
Caessa, Mota, 2013
tigela
Coelho, Bugalhão, 2015
34879
Carnide Largo do Coreto / Rua Neves Costa
Habitacional
1950
Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros
Habitacional
12410
Rua de São Nicolau, 107-111
Habitacional
13737
Rua de São Pedro Mártir, 22-24 / Calçada de São Lourenço, 17-19
Habitacional
15806
Rua dos Correeiros, 70C-92 / Sondagem 14
Habitacional
16617
Encosta de Santana (Martim Moniz)
Habitacional
22713
Largo do Terreiro do Trigo
Habitacional
35910
Beco das Barrelas
Habitacional
Final XVI 2.ª metade XVIII
apito, fogareiro, frigideira, infusa, panela, pote, prato, púcaro, testo, tigela
16222
Castelo de São Jorge – Beco do Forno
Habitacional/ Armazenamento
XV - XVI
alguidar, bilha, caneca, jarrinha, panela, prato, tacho, testo, tigela
Gomes et alii, 2009; Oliveira, 2009
35896
Rua de São Marçal
Habitacional/ Olaria
XV
cântaro, panela, tacho, tigela
Gaspar, Amaro, 1997
13683 Quarteirão dos Lagares
Habitacional/ olaria
XV - XVIII
Hospital
XV – XVIII
alguidar, almofariz, candeia, escudela, frigideira, panela, púcaro, tacho, tigela, testo alguidar, bilha, boião, cântaro, cantil, escudela, frigideira, panela, pote, prato, púcaro, salseira/saleiro, tacho, talha, testo, tigela
1925
Praça da Figueira/ Hospital Real de Todos-os-Santos
Sem CNS
Rua São Filipe Neri
Indeterminado Meados XVIII panela
Sem CNS
Socorro
Indeterminado
13099
Escadinhas da Saúde
panela, Indeterminado Meados XVIII alguidar, tacho, tigela
138 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
XV início XVI
Diogo, Trindade, 2000b
púcaro, tampa
Trindade, Diogo, 2003a
Trindade, Diogo, 2003b
Casimiro, 2011
González, 2012
alguidar, frigideira, panela, pote, prato, tigela, servidor
alguidar, escudela, prato, tigela
Diogo, Trindade, 1999;
Oliveira, 2012
tigela
alguidar, bilha, cântaro, frigideira, açucareiro, prato, tigela tampa
Nunes, Filipe, 2012
Silva, Guinote, 1998
Trindade, Diogo, 1998a Silva, Guinote, 1998
caneca púcaro, tampa
Trindade, Diogo, 1998b
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
CNS
Sítios (de Lisboa)
Tipo de contexto
Cronologia
Cerâmica comum
(em séculos)
Meados XVI - meados prato, almofariz XVII
Cerâmica vidrada
Cerâmica modelada e fina
Bibliografia
Sem CNS
Rua José António Serrano
Indeterminado
16704
Praça Dom Pedro IV (Rossio)
Indeterminado
XVI
pote
Silva, Guinote, 1998
10632
Largo de Santo António
Indeterminado
XVII
bilha
Silva, Guinote, 1998
12276
Travessa da Madalena, 18
alguidar, mealheiro, Indeterminado Meados XVIII panela, pote, prato, tacho, testo, tigela
Pátio Linheiro, 35894 Largo dos Trigueiros
Rua do 35904 Benformoso, 168-186
21948
Edifício do Aljube/ Rua Augusto Rosa
Palácio do Poço Novo/ Palácio Mesquitela Castelo de São 13306 Jorge - Palácio das Cozinhas 15737
274
Casa dos Bicos
2.ª metade XVII
Olaria
XV - XVI
alguidar, bilha, cântaro, escudela, frigideira, infusa, panela, pote/talha, prato/testo, servidor, testo, tigela
Palácio
XVI
Palácio
XVII - XVIII
alguidar, frigideira, panela, púcaro, tigela
Palácio
XVII
frigideira, pote, púcaro, testo
Palácio
XV - XVIII
Castelo de São 13324 Jorge - Palácio do Governador
Palácio
XV - XVI
13836
Praça Luís de Camões
Palácio
XVIII
32150
Quinta de Vila Pouca - Vale de Alcântara (ETAR de Alcântara)
Quinta
XVII início XVIII
brinco, púcaro, pote, sino
Bargão, Ferreira, 2013
bilha, cântaro, escudela, infusa, boião, caneca, pote/talha, prato/ salseira/saleiro, púcaro, tampa testo, servidor, tigela
Marques, Leitão, Botelho, 2012
açucareiro, pote, prato, servidor, taça, tampa
Santos, 2008 Simão, 2010
candeia, caneca, cântaro, bilha, candeeiro, frigideira, infusa, pote, tigela panela, púcaro, tacho, testo alguidar, almofariz, bilha, candeia, caneca, cântaro, fogareiro, frigideira, alguidar, bilha, panela, servidor, infusa, panela, pote, prato, púcaro, testo, tigela recipiente de medida, servidor, tacho, talha, testo, tigela, trempe panela, pote, prato, recipiente de medida alguidar, frigideira, panela, pote, púcaro, alguidar, pote, recipiente de medida, servidor, tigela tacho
Na Tipologia: estampa (Figura 31) estão ainda incluídas: ilustrações de exemplares publicados para os quais não foi elaborada estampa tipológica específica (apito, brinco, jarra e sino); ilustrações de “tipos” ausentes (em forma completa ou quase) na bibliografia sobre cerâmica moderna de Lisboa, tendo-se recorrido a objectos publicados de outra proveniência (barril, botija, mealheiro e talha); e ilustrações de objectos inéditos da responsabilidade das autoras (candeeiro e pedra de jogo). Para estes casos, a informação contextual e os créditos bibliográficos estão incluídos nas Fichas tipológicas.
Trindade, Diogo, 1998a; Trindade, Diogo, 1997
alguidar
bilha, cântaro, cantil, fogareiro, panela, prato, púcaro, recipiente de medida, alguidar, pote servidor, tacho, testo, tigela
Indeterminado
Silva, Guinote, 1998
prato
tigela
Filipe et alii, 2013
taça
Silva, Guinote, 1998
púcaro
Gaspar et alii, 2009; Oliveira, 2009; Gaspar, Gomes, 2012
Santos, 1996b Batalha, Cardoso, 2013
5. Nota Final Os objectos cerâmicos são uma componente essencial da cultura material de Época Moderna, nomeadamente no que respeita ao ambiente doméstico. Desde a pré-história, a cerâmica adquire este papel preponderante e predominante, pois provém de matéria-prima geralmente acessível e abundante, tem tecnologia de transformação bem dominada e é de reposição rápida, o que permite o consumo generalizado e socialmente transversal deste material.
Uma cidade em escavação
139
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
Cozinha
Bilha
Alguidar
Almofariz
Mesa Infusa
Frigideira
Açucareiro
Tampa
Testo
Taça de pé alto Tacho
Panela
Jarrinha
Caneca
Escudela Fogareiro
Trempe
Púcaro
Tigela
Salseira / Saleiro Prato
10 cm
10 cm
10 cm
Armazenamento / Transporte
Higiene
Talha
Servidor Pote
10 cm
Outras Recipiente de medida
Barril
Iluminação Mealheiro
Candeia
Cântaro Candeeiro
10 cm
Brinco
Jarra
10 cm
Botija
10 cm
Cantil
Apito Boião
10 cm
Figura 31 – Cerâmica Moderna de Lisboa | Tipologia: estampa.
140 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
10 cm
Sino
Pedra de jogo
10 cm
10 cm
10 cm
Cerâmica Moderna de Lisboa: proposta tipológica
Entre os séculos XV e XVIII, a olaria europeia, e de forma particular, a portuguesa e a lisboeta, sofrem transformações acentuadas, não tanto a nível tecnológico (as aquisições de conhecimento e inovações técnicas são quase sempre anteriores), mas essencialmente ao nível da transmissão e reprodução de modelos que geram fenómenos de padronização morfo-tipo-tecnológica, possibilitada e acentuada pela progressiva globalização do comércio e do consumo. Outro elemento distintivo relevante da cerâmica europeia deste período é a forte influência exercida pelos elementos ornamentais, iconográficos e temáticos das cerâmicas orientais, nomeadamente, da porcelana (VITERBO, 1922). Verificam-se também nesta fase outros factores, designadamente, a complexificação da estrutura económica; a generalização do transporte marítimo transoceânico de cerâmica e de produtos envasados em recipientes cerâmicos; o crescimento acentuado das cidades, abarcando antigos arrabaldes oleiros e obrigando à criação de novos e descentrados centros de produção oleira de características eminentemente industriais; a alteração e multiplicação de usos dos objectos cerâmicos. Estas características traduzem bem, por um lado, a complexidade do tema e, por outro, o interesse em prosseguir e aprofundar a investigação sobre a cerâmica de Época Moderna. Acresce que Lisboa, como centro produtor e consumidor, é uma cidade situada no âmago das problemáticas históricas enunciadas, daí o elevado interesse no estudo da sua cerâmica. A presente Tipologia para a cerâmica de Época Moderna, produzida e consumida na cidade de Lisboa, representa a síntese possível, considerada a produção científica relevante para o tema, produzida nos últimos 50 anos. É de salientar que a esmagadora maioria das referências bibliográficas utilizadas (mais de ¾) foram publicadas nos últimos 15 anos. Por esta razão deve sublinhar-se que esta proposta decorre de um esforço colectivo recente de um conjunto muito alargado de investigadores (64) que estudaram e publicaram cerâmicas desta época recolhidas em intervenções arqueológicas na cidade de Lisboa. Não apenas porque publicaram os objectos que estão na base desta proposta, mas porque estes objectos foram integrados cronologicamente e também numa tipologia, ainda que informal e não previamente estabelecida. Os trabalhos publicados apresentam objectos cerâmicos normalmente integrados num “tipo”, ou seja, numa categoria morfológica e funcional. Esta interpretação de base, que recorre frequentemente a dados arqueológicos contextuais é fundamental para a abordagem agora proposta, que sistematiza e sintetiza um volume considerável de informação. Esta Tipologia representa assim também um esforço de revisão crítica de diferentes categorizações morfológicas e funcionais, partindo de pressupostos mais abstractos, pois lida com informação científica secundária, já trabalhada com recurso a métodos e perspectivas necessariamente diferenciados, proveniente de contextos diversificados. A segunda componente fundamental desta Tipologia relaciona-se com a terminologia, ou seja, com a designação atribuída a cada “tipo” cerâmico. Na senda de anteriores trabalhos com objectivos análogos, correlacionando os dados arqueológicos, com a informação
proveniente da documentação escrita e até de fontes iconográficas e etnográficas, procurou-se determinar uma relação entre os objectos e a sua denominação. Apesar de aparentemente prosaico, este propósito reveste-se de grande complexidade. Por um lado, persistem numerosos termos cujo objecto significante não está determinado; por outro, registam-se abundantes achados arqueológicos em cerâmica cuja designação coeva se desconhece. Nunca é demais recuperar um pressuposto expresso nas palavras introdutórias do presente artigo: a Tipologia aqui preconizada é uma primeira proposta e não um trabalho acabado. Existe não apenas a convicção, mas mesmo a certeza, que os 37 “tipos” que integram esta proposta não esgotam o repertório cerâmico efectivamente produzido e utilizado em Época Moderna na cidade de Lisboa. Ou seja, a Tipologia será necessariamente alargada, em função da evolução da investigação sobre este tema. Mais e diferentes objectos cerâmicos serão publicados com informação suficiente que permita a sua categorização e a orientação da pesquisa sobre a sua denominação. Por fim, fazem-se votos que esta Tipologia cumpra a sua função de normalização no discurso científico e de uniformização de critérios metodológicos no estudo de colecções cerâmicas. Pretende-se assim facilitar a leitura e interpretação dos trabalhos científicos, assim como a transmissão de informação entre quem trabalha sobre o objecto comum que é a cidade de Lisboa, em Época Moderna. Espera-se também que possa constituir um instrumento de trabalho válido e útil para quem escolha utilizá-lo, mas que igualmente seja sujeito à necessária discussão científica sobre os seus pressupostos e conteúdo, com vista a uma permanente revisão e implementação futura. Agradecimentos As autoras agradecem a: João Coelho (pelo apoio ao nível do desenho), Ana Sofia Gomes, Ana Vale, Filipa Bragança (pelo apoio no tratamento de informação geográfica e produção de mapa), Susana Martínez Goméz, Marco Liberato, Isabel Inácio, Ricardo Costeira da Silva (pelas indicações bibliográficas e cedência de bibliografia), Ana Nunes (na revisão de texto), Guilherme Cardoso e Grupo CIGA (pelo apoio e inspiração).
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Uma cidade em escavação
141
Jacinta Bugalhão, Inês Pinto Coelho
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Uma cidade em escavação
145
A cidade manufatureira e industrial
Resumo:
Ao estudar os materiais depositados no Centro de Arqueologia de Lisboa, provenientes da escavação arqueológica realizada em 2005, no Largo de Jesus, confirmou-se a existência de uma série de fragmentos de apetrechos que foram usados nas produções lisboetas de faiança, acompanhados por rejeitados de produção, referidos em 2007 por Maria João Santos. A nossa atenção inicial prendeu-se com as possibilidades de no sítio do largo de Jesus ter existido uma olaria, mas tal não conseguimos verificar, embora tivessem sido recolhidos no local fragmentos de uma estrutura de combustão, certamente de um forno de cerâmica. As novidades provêm da existência de alguns rejeitados que atestam produções lisboetas de faiança quinhentista e setecentistas, onde se destacam formas cobertas unicamente com esmalte branco ou azul sobre azul, ao estilo “Berettino”, que antecederam as tradicionais produções nacionais de azul sobre branco. PALAVRAS-CHAVE:
Olaria, chacota, faiança, Berettino, tipos.
ABSTRACT:
The present paper concerns the study of a set of fragments of pottery uncovered during the 2005 excavation that took place in Largo de Jesus, Lisbon that was kept in the reserves of Centro de Arqueologia of Lisbon. We analysed some fragments of potter’s equipment used in the production of faience in Lisbon, as well as, a set of rejected fragments that had been referred in the archaeological report and in a paper written by Maria João Santos in 2007. We took in analysis the possibility of the existence of a pottery in Largo de Jesus but, although some archaeological findings of combustion structure belonging to a ceramic kiln, were not feasible to confirm the existence of the pottery. However, some conclusions can be put forward due to the study of some rejected fragments that confirmed the production of Lisbon faience during the 16th century and the 17th century, with special emphasis to glazed forms with white or blue over blue, majolic Berettino style, that were prior to the traditional Portuguese production of blue over blue. Key words:
Pottery, portuguese faience, Berettino, forms.
Convento de Jesus. Vista de Lisboa c. 1700. Museu Nacional do azulejo
2.5
Evidências de produção
oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa)
Guilherme Cardoso
Centro de Arqueologia de Lisboa – CAL, Câmara Municipal de Lisboa guilherme.cardoso@cm-lisboa.pt
Luísa Batalha
Arqueóloga batalhaluisa5@gmail.com
1. Introdução O trabalho que apresentamos tem como objectivo principal o estudo dos materiais em faiança, provenientes da escavação que decorreu no início de 2005, no Largo de Jesus. Tal como na intervenção ocorrida na Rua de Buenos Aires (BATALHA et alii, 2012), pretendemos com base neste conjunto de materiais, reconstituir a história local ligada à produção de cerâmica, as diversas fases produtivas e evolutivas deste centro produtor e ainda estabelecer analogias, caso se justifique, uma vez que ao que tudo indica, estamos em presença de vestígios de montureiras. Estas, para além de lixos domésticos diversificados, apresentavam rejeitados de produções oleiras, dado que durante a intervenção foram recolhidos fragmentos de parede e grelha de um forno cerâmico, associados a número considerável de trempes e cassetes, possivelmente relacionados com desactivação de uma olaria (SANTOS, 2007, p. 389). Desejamos ainda entender a evolução destas produções do ponto de vista cronológico, tendo em conta as diacronias das U.E.s, através da observação dos materiais arqueológicos ali recolhidos, analisar os tipos de pasta, bem como a qualidade do vidrado aplicado. 1.1. A Intervenção Arqueológica no Largo de Jesus
No ano de 2005, entre 3 de Janeiro e 30 de Maio, a empresa de arqueologia Geoarque, procedeu a escavações de salvaguarda no largo de Jesus – Freguesia das Mercês – local onde estava prevista a construção de um parque de estacionamento subterrâneo. No decorrer desta intervenção foi possível reconstituir parcialmente, algumas das estruturas primitivas da frente da igreja, do antigo largo, onde no séc. XIX existiu
um adro desactivado no séc. XX, para dar lugar a uma passagem viária. Sequencialmente, os indícios demostram que antes da criação da escadaria fronteira à igreja, aquele local servira de cemitério e onde anteriormente, durante o século XVI e os inícios do XVII, existira um grande edifício particular. Para além destas estruturas, a escavação ofereceu também variadíssimo material: faiança, porcelana, cerâmica fosca, material de construção, vidro, metais, carvões, fauna, ossos humanos desarticulados, chacota de faiança e de azulejos, e ainda, utensílios relacionados com produções de cerâmica, trempes, cravilhos, separadores e cassetes. Misturados com estes lixos, surgiram abundantes elementos provenientes do revestimento interno de um forno e fragmentos da respectiva grelha. Perante tais evidências, tudo leva a crer na possibilidade de na área do actual largo ou bem próximo, ter funcionado uma olaria. Para além da história do sítio, a arqueóloga Maria João Santos, responsável pelos trabalhos de acompanhamento arqueológico, divulgou alguns dados, quer através do relatório final, quer através de um artigo publicado na Revista Portuguesa de Arqueologia (Santos, 2007, pp. 381-389). Inventariando os materiais e fazendo corresponder a sua ligação às U.E.s, observa-se que na prática todas estas apresentam faianças dos séculos XVII/XVIII, o que demonstra que houve grande revolvimento ao nível estratigráfico, sendo raras as unidades mais antigas que aparentam não oferecer contaminações com materiais daquelas datações. O nosso estudo baseia-se assim nas cerâmicas recolhidas no Largo de Jesus durante a escavação de 2005, dando especial relevância às produções lisboetas dos séculos XVI a XVIII.
Uma cidade em escavação
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Guilherme Cardoso, Luísa Batalha
2. As cerâmicas No conjunto de peças provenientes das escavações arqueológicas do Largo de Jesus, existem materiais que podemos datar do século XVI até ao século XIX, algumas dessas peças, de importação, se atendermos aos achados das chamadas cerâmicas sevilhanas e italianas, as quais mais tarde passaram a ser imitadas pelas oficinas de Lisboa. Dividimos assim as peças em grupos tipológicos, caracterizando-os pela sua forma, a sua pasta e pelo vidrado aplicado o que irá permitir marcar três períodos de ocupação/ produção do sítio arqueológico aos quais corresponderão, numa primeira fase a cópia dos produtos importados, especialmente oriundos do sul da Espanha, a que se seguirá uma profícua produção local que culminará com a produção/ cópia de louça chinesa. 2.1. 1ª Fase
As cerâmicas mais antigas recolhidas durante a escavação do largo de Jesus, apresentam tipos que remontam aos inícios do século XVI. Trata-se de recipientes de uso doméstico que foram utilizados no dia-a-dia pelos habitantes que moravam naquele ponto da cidade e que quando inutilizados foram lançadas para o lixo. São faianças com origem nas olarias do sul da Espanha, supra e que em determinada época passaram a ser produzidas em Lisboa até finais do século XVI, e noutras zonas do país sob o título de louça “malagueira”,1 cozida em fornos do tipo de Piza, como em Coimbra e Vila Nova de Gaia (SEBASTIAN, 2012, p. 941). Apresentam paredes espessas com um revestimento vidrado (esmalte), ao qual foi adicionada grande percentagem de óxido de estanho, o que lhe confere um brilho mais acetinado. As pastas são maioritariamente beges, mas também se verifica a existência de rosadas, ou até mesmo amarelas. São bem depuradas, daí os poucos desengordurantes: óxido de ferro, quartzo fumado e quartzo leitoso, sendo que a moscovite se apresenta residual e muito fina. São constituídas essencialmente por pratos e malgas. As malgas apresentam forma carenada com pé anelar bem pronunciado (Est. 1, n.os 1-4), fenómeno de longa duração, uma vez que esta tipologia se encontra registada ao longo de todo o séc. XV, prolongando-se por todo o séc. XVI, havendo as que apresentam filetes azuis e manganês junto ao bordo interno ou mais raramente com fundo decorado (Est. 1, nos 3 e 4). Nalguns casos as paredes da galba são em calote (Est. 1, n.º 5). Os pratos apresentam parede oblíqua, base côncava, em ônfalo, cobertos por esmalte branco (Est. 1, n.os 6-8), alguns exemplares podem apresentar decoração com filetes a azul no seu interior, junto ao bordo (Est. 1, n.º 7), bem como outros filetes paralelos circundando o fundo (Est. 1, n.º 8).
1 O termo malagueira era designado para identificar as primitivas faianças lisboetas e manteve-se até ao século XVII. Mais tarde, por via erudita, passou a designar-se faiança, proveniente do francês faïence.
148 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
2.2. 2ª Fase
Num segundo momento que podemos situar entre o reinado de D. Sebastião até aos inícios do reinado de Filipe II de Portugal, altera-se o fabrico da faiança lisboeta, com novas formas e a diminuição da espessura das paredes das peças, o que se torna característico. Os vidrados apresentam mais brilho que é obtido pela introdução de uma mistura de óxidos plumbíferos com estaníferos na composição do esmalte. Conjuntamente com os recipientes de consumo local, temos a salientar nestes contextos, a presença ainda de algumas peças de faiança de importação. Referimos principalmente as produções de Sevilha e também italianas, cujas pastas apresentam características muito diferenciadas das produções de Lisboa, tais como: grão fino, mais homogéneas e se atendermos à gramática decorativa, algumas destas peças apresentam decoração polícroma, com apurada técnica de execução. São deste período as evidências da existência de uma antiga olaria de produção de faiança no Largo de Jesus. Até ao momento da intervenção arqueológica tinham surgido apenas em vários pontos de Lisboa vestígios de rejeitados de produção e de ferramentas para a confecção da faiança, mas não restos ou estruturas de um forno. Tratava-se unicamente de um amontoado de tijolos que sobraram do desmonte de um antigo forno de cerâmica que ali teria existido e onde se observaram restos do revestimento das paredes internas e da grelha, confirmando-se a existência de uma antiga olaria naquele local, desconhecendo-se no entanto o modelo do forno (SANTOS, 2007, pp. 387, 389, Fig. 9-11). Conjuntamente com os vestígios daquela estrutura foram recolhidos fragmentos de chacota de pratos, malgas, trempes e cassetes (U.E. 208). A razão da localização deste forno neste espaço da cidade prendia-se com a existência de estratos geológicos onde abundavam as dominadas argilas dos Prazeres, de cor branca amarelada com a qual era produzida a chacota para a produção da faiança. A lenha para a laboração destes fornos provinha das matas da margem sul e era desembarcada no Cais do Tojo, em Santos (Est. 19 A, n.º 4). As pastas apresentam uma variação cromática desde amarelas, beges e rosadas, enquanto o vidrado por vezes adquiria tons verdes claros. Assim, a confirmar a produção local, várias U.E.s apresentam trempes, caixas, separadores, fragmentos de chacota de pasta branca ou rosada e rejeitados de produção. 2.2.1. Faiança branca de Lisboa
Nesta produção continuam a prevalecer as malgas e os pratos. As primeiras possuem corpo em calote, de lábio vertical ou ligeiramente extrovertido, enquanto os pratos covos, com a característica aba horizontal côncava e as bases côncavas por fretagem. De realçar que as variações cromáticas registadas nas pastas são as características das produções de Lisboa, facto observado por nós, no estudo das peças provenientes das entulheiras da rua de Buenos Aires (BATALHA et alii, 2016), ou ainda nas faianças do poço setecentista da ETAR de Alcântara (BATALHA, CARDOSO, 2013).
Evidências de produção oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa)
Estampa 1 – 1-2, malgas carenadas; 5, malga em calote; 6-8, pratos.
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Guilherme Cardoso, Luísa Batalha
Também se observa que o grau de dureza das pastas é variável. Assim, verifica-se que as pastas brancas, rosadas ou vermelhas, são mais duras, enquanto as amarelas são mais friáveis, tornando as peças menos resistentes e provocando menor aderência do vidrado à chacota. Trata-se das primeiras produções de faiança de paredes delgadas, contrapondo os anteriores modelos de paredes grossas, datáveis da segunda metade do século XVI (Sebastian, 2012, p. 939), anteriores à produção de faiança azul e branca de Lisboa que passou a copiar modelos de porcelana chinesa nos inícios do século XVII. 2.2.1.1. Pratos As peças mais comuns das produções do Largo de Jesus em esmalte branco, são os pratos de aba côncava e fundo côncavo. Existe uma notória variação nas dimensões das abas, cuja largura varia entre os 2,5 cm, 2,7cm, 3cm e 3,5cm (Est. 2, n.os 9-18). São produções que seguem modelos italianos e espanhóis que até então dominavam o mercado. A simples aplicação do esmalte branco vai perdurar longo tempo nas faianças portuguesas. Sem qualquer decoração ou com siglas e monogramas que identificam determinada congregação religiosa, pelo que habitualmente aparecem em contextos conventuais, perdurando até finais da centúria de oitocentos. O modelo de aba, variando apenas com uma inclinação ligeiramente obliqua da mesma e base que perde o fundo côncavo, ganhando pé anelar, vai prevalecer até finais ao século XVIII, como no caso do espólio do convento dominicano de Nossa Senhora das Neves, Montejunto, Cadaval (CARDOSO, 2009, p. 53, Fig. 70, n.os 2 e 3). Ainda dentro deste grupo temos um pequeno conjunto de pratos que apresentam carena alta, ligeiramente evidenciada (Est. 3, n.os 26-30). Das raras peças com pintura temos um bordo de aba com um arabesco (n.º 16) e um fundo que internamente, está decorado com um motivo fitomórfico azul (Est. 3, n.º 31). 2.2.1.2. Tigelas Peças há em que as formas são mais raras, como é o caso de dois fragmentos de tigelas (Est. 3, n.º 24) ligadas entre si por falha de produção durante a cozedura do vidrado e que apresentam um tipo semelhante às produções italianas, datáveis do último terço do século XVI (RICCI, VENDITTELLI, 2013, p.173, III.1.92.7), enquanto outra (Est. 3, n.º 25) apresenta uma forma que se pode datar dos meados do século XVI (idem, p. 173, III.1.92.5). Existe um fragmento de tigela vidrada a branco que pelas suas dimensões e raridade se destaca do conjunto. Falta-lhe o bordo, mas o corpo em calote assenta em pé anelar, fretado (Est. 4, n.º 49). 2.2.1.3. Especieiros Um outro conjunto diz respeito a fragmentos de especieiros, peças comuns entre a 2ª metade do século XVI e os finais do século XVII (Est. 3, n.os 34-36). Incluímos pelo menos um dos fragmentos no contexto de rejeitados de produção oleira, pelo facto de se encontrar na fase de produção de chacota.
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2.2.1.4. Malgas No caso das malgas observa-se uma mudança da forma em relação às da primeira fase. Para além de serem mais esbeltas, adquirindo menor espessura das paredes, apresentam formas em calote, com pequeno pé anelar obtido por fretagem e bordo ligeiramente extrovertido, o que lhe confere maior graciosidade (Est. 4, n.os 37-48). 2.2.2. Faianças italianas
Recolheram-se vários fragmentos de peças de cerâmica esmaltada italiana. Entre estas, temos um prato (Est. 5, n.º 50) que, pelo tipo de decoração se pode incluir nas produções das oficinas de Monte Lupo, do 3º quartel o século XVI (idem, p. 248, III.3.19.59). Um outro (Est. 5, n.º 52) apresenta uma decoração datável da 2ª metade do século XVI (idem, p. 226, III.3.6.4a), o mesmo acontecendo com o motivo raiado do fundo de uma malga, podendo incluir-se também na cronologia anterior. (idem, p. 318, III.4.7.1). Entre as peças de esmalte branco sem qualquer decoração, temos um fragmento de uma copa do 3º quartel o século XVI (idem: 174 e 176, III.1.92.14), e o fundo de um pote de farmácia (Est. 5, n.º 59) do mesmo período (idem, p. 97, III.1.38.6) 2.2.3. Produção local de faiança azul sobre azul ou tipo “Berettino” e azul sobre branco
Foi identificado um fragmento, constituído por quatro abas de pratos coladas entre si na U.E. 56 (Est. 23, D), fazendo deslocar a nossa atenção para este tipo de faianças, dado que até muito recentemente, sempre que surgiam em contexto de escavação, eram de imediato atribuídas às produções de majólica da Ligúria, tipo “Berittino”. Assim, no terceiro quartel do séc. XVI, tendo em conta o contexto de escavação, a par da loiça de vidrado branco, surgem as produções de faiança “azul sobre azul”, numa evidente imitação das produções italianas que partilham a mesma cronologia e as mesmas formas. Quanto ao vidrado, as produções italianas tipo “Berittino”, apresentam pigmentação azul mais clara, com vidrados menos brilhantes e gramática decorativa em que predominam os temas campestres, bucólicos e representações áulicas, embora, convivendo com motivos vegetalistas e fitomórficos, em que sobressai a delicadeza e precisão do traço. Por sua vez, nas produções de Lisboa do Largo de Jesus, verificam-se significativas diferenças. Numa primeira análise ressalta de imediato o tipo de vidrado, quer na sua textura, quer na pigmentação. Estamos a falar de vidrados mais espessos, com azuis mais fortes e brilhantes, devido certamente à adição de maior percentagem de óxido de chumbo. Também a gramática decorativa difere das produções italianas. Nas produções de Lisboa, do Largo de Jesus, predominam os motivos vegetalistas, alguns estilizados ou ainda linhas e pequenas estrelas pintadas a branco sobre fundo azul. Ressalvamos o caso de um prato gomado, com bordo digitado (Est. 7, nº 78), cuja decoração vegetalista encontra paralelos num modelo tipo “Berettino”. As análises entretanto efectuadas pelo Laboratório HERCULES da Universidade de Évora, a cinco fragmentos de azul sobre azul, concluem que pelo menos foram utilizados dois tipos de vidrado nas produções lisboetas, o que pressupõe, segundo o relatório, a
Evidências de produção oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa)
Estampa 2 – Faiança branca. 9-23, pratos.
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Guilherme Cardoso, Luísa Batalha
Estampa 3 – Faiança branca. 24 e 25, tigela; 26-30, pratos; 31-33, fundos indeterminados; 34-36, especieiros.
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Evidências de produção oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa)
Estampa 4 – Faiança branca. 37-48, malgas em calote; 49, tijela.
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Guilherme Cardoso, Luísa Batalha
Estampa 5 – Majólica/ faiança importada. 50-53, 55 e 56, pratos; 54, malga; 56, potinho; 57, copa; 58, bilha; 59, pode de farmácia.
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Evidências de produção oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa)
existência de duas oficinas diferentes.2 Por vezes acontece que o pigmento utilizado na decoração não foi bem conseguido, gerando-se uma alteração química dos componentes ao entrar em contacto com o vidrado azul base, atribuindo-lhe uma cor acinzentada, o que resulta numa composição disforme e de difícil interpretação (Est. 26, C). O tardoz das peças apresenta arcos secantes, característica comum aos centros produtores italianos e sevilhanos. A análise formal mostra-nos que este conjunto de rejeitados é constituído unicamente por pratos covos e taças em calote. Os primeiros apresentam bordos em voluta, corpo de paredes curvas assentando em pé anelar. Um único exemplar apresenta ressalto interno entre a aba e o corpo da peça (Est. 6, n.º 75). As malgas estão representadas por dois exemplares com paredes de linhas rectas e divergentes (figs. 60 e 61). Quanto aos tipos, tratando-se de rejeitados, não é possível avaliar uma provável diversidade formal, uma vez que o espólio é composto somente por pratos e taças, em contraponto, por exemplo, com as produções sevilhanas – abundantes e bem documentadas na região do Algarve – onde para além dos pratos e das taças, também surgem jarras com corpo de forma globular (BOTELHO, 2012, p. 860), ou ainda com as produções de majólica italiana tipo “Berettino” recolhidas no poço cisterna de Silves (GOMES, GOMES, 1991, p. 480). A intervenção arqueológica realizada no Largo do Terreiro do Trigo também ofereceu materiais de esmalte “Berettino” (GONZALEZ, 2012, p. 88). Do mesmo modo, as escavações no Castelo de S. Jorge apresentam materiais provenientes da Ligúria, embora, segundo as arqueólogas responsáveis, de forma residual e muito fragmentados, não permitindo uma análise formal e decorativa (GASPAR, GOMES, 2012, p. 720). 2.2.3.1. Malgas São peças menos comuns que apresentam formas em calote e pé anelar. A decoração interna apresenta composição geométrica ou fitomórfica, enquanto no exterior apresenta os habituais arcos secantes (Est. 6, n.os 60, 61, 74 e 77). 2.2.3.2. Taça Tipo saladeira de corpo alto, em calote, com bordo em voluta (Est. 6, nº 62). Tem a particularidade de na parede interna se encontrar decorada a azul e branco sobre azul, com linhas horizontais e pequenas estrelas brancas (Fig. 13, B). Este motivo raiado a branco aparece noutros fragmentos de um fundo interno (Est. 6, nº 72). 2 Massimo Beltrame; Pedro Barrulas; José Mirão; Antonio Candeias: The analysis carried out on the blue over blue ceramic fragments indicate that samples 57, 110.11, 110.12, 110.13 have very strong affinity in term of absolute concentration of light/ heavy rare earth elements and uranium and thorium if compared with sample 110.14. This suggest a similar provenance for the first group of samples. Nevertheless differences are evident in terms of glaze and ceramics paste preparation indicating the production of blue over blue probably in different workshops. Ongoing investigation of the remaining samples will surelly clarify the provenance and technological characteristics of the samples.
2.2.3.3. Pratos de bordo em voluta Os pratos covos de bordo em voluta são a forma mais comum nas produções do Largo de Jesus, em faiança em azul sobre azul. Existem em vários tamanhos, sempre com a base em anel, fretado (Est. 6, n.os 64-70). 2.2.3.4. Pratos de bordo em voluta decorados a azul sobre branco É na 2ª fase que se observa o início do emprego na faiança de Lisboa, da decoração de azul sobre branco. Continuam a seguir a gramática decorativa utilizada no azul sobre azul, em que os pratos apresentam o lábio em voluta. No interior apresentam pinturas fitomórficas e no exterior, arcos secantes (Est. 7, n.º 78). Esta peça é um caso paradigmático. Trata-se de um prato cujo perfil se insere nas tipologias já referidas, embora com paredes gomadas e bordo em voluta, recortada. De salientar, curiosamente, o facto de constituir o único exemplar cuja gramática decorativa obedece a um modelo italiano tipo “Berettino”. O tardoz oferece o esquema de arcos secantes característicos dos modelos “azul sobre azul”, verificando-se no entanto a quase total ausência do pigmento azul no esmalte. 2.2.3.5. Pratos de aba plana Mais raros nas produções esmaltadas a azul são os pratos de aba direita (Est. 6, n.os 71 e 75). De composição simples com filetes horizontais na parede interna, no primeiro, ou com decoração fitomórfica e vegetalista estilizada no bordo, no último exemplar. 2.2.3.6. Taça branca Nesta fase continuaram a utilizar-se as peças de esmalte branco sem qualquer decoração, apresentando no entanto uma evolução estilística, como é o caso do bordo de taça, em voluta (Est. 7, n.º 79). 2.2.3.7. Saladeira Um pequeno fragmento de saladeira de bordo em aba triangular estreita, e galba carenada, encontra-se decorado com singelos traços a azul sobre branco, mostram uma produção local à procura de novos gostos (Est. 7, n.º 81). 2.2.3.8. Tigela branca Fragmento de bordo de tigela, de paredes espessas e esmalte branco sem qualquer decoração (Est. 7, n.º 82). 2.3. 3ª Fase
Entre os inícios do século XVII e meados do século XVIII, ocorre a terceira fase, momento em que as olarias de Lisboa iniciam a produção de faiança “azul sobre branco”, copiando modelos da porcelana chinesa (Ests. 8-10). Não localizámos grandes evidências de rejeitados de produção nesta época, excepto um pequeno fragmento de bordo de chacota de prato gomado que incluímos nas primeiras produções da terceira fase (Est. 8, n.º 91).
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Estampa 6 – Faiança azul sobre azul. 60, 61, 74 e 77, malga; 62, taça; 63-72, 75 e 76, pratos.
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Estampa 7 – Faiança azul sobre branco. 78, prato; 79 e 80, taças; 81, saladeira; 82, tigela.
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Estampa 8 – Faiança azul sobre branco e chacota. 80-90 e 92, pratos; 91, chacota de prato gomado.
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Estampa 9 – Faiança azul sobre branco e chacota. 93e 94, malgas; 95, tigela; 96-99, saladeiras; 100,bacia.
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Estampa 10 – Faiança azul sobre branco e só branca. 101 e 102, jarros de medida; 103, pote; 104, pega de tampa; 105, marca de jogo; 106, jarra; 107 e 108 fundos e bilhas.
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Tudo leva a supor que terá sido durante as modificações efectuadas pelos Padres Descalços da Ordem Terceira de São Francisco, entre 1595 e 1618 que foram extintas naquele ponto da cidade de Lisboa as olarias de produção de faiança ali presentes anteriormente. A ausência de evidências arqueológicas, bem como as grandes alterações observadas na malha urbana – verificável entre a comparação da “Planta da cidade de Lisboa, na margem do rio Tejo: desde o Bairro Alto até Santo Amaro”, dos finais do século XVI ou inícios do seguinte, existente na Biblioteca Nacional do Brasil (Est. 19, A) com uma qualquer planta mais recente (Est. 19, B) – demonstra a reestruturação do sítio dos Cardais, com a construção do Hospital e do Convento de Jesus. Os fragmentos de faiança azul e branco, atribuídos às produções de Lisboa, recolhidos durante as escavações arqueológicas do Largo de Jesus, fariam certamente parte dos utensílios dos moradores da freguesia das Mercês, entre os quais os Padres Descalços da Ordem Terceira de São Francisco, com o seu hospício e convento, facto que se confirma através de uma tigela que apresenta o emblema da referida Ordem (Est. 9, n.º 95). De entre a louça utilitária escolhemos uma amostragem representativa dos tipos recolhidos durante a escavação que para uma mais fácil observação dividimos por grupos funcionais de louça de barro vermelho. 2.4.1. Louça modelada
São vários os exemplares de púcaros (Est. 11, n.os 109-114), bilhas (Est. 11, n.os 115-117) e taças (Est. 11, n.os 118-120). Para o púcaro, n.º 110, temos paralelos no convento de Santa Clara, Moura, para o século XVII (MACIAS, REGO, 2007, p. 45, nº 29), no entanto este tipo de peças são habitualmente recolhidas em contextos datáveis entre o 3º quartel do século XVI e os inícios do século XIX. 2.4.2. Brinquedos
Existem fragmentos de três peças que pelo seu tamanho atribuímos uma função lúdica. Um dos fragmentos corresponde a uma ponta de forma de pão de açúcar em miniatura (Est. 11, n.º 122), recolhido na U.E. 108.26. Até há poucos anos conheciam-se três exemplares recolhidos na Ilha da Madeira. A este tipo de peça, Élvio de Sousa atribui uma função lúdica, datando-as com uma cronologia do século XVII (2012, pp. 524 e 525). Os outros dois exemplares de brinquedos são: uma panela decorada com pintura a branco (Est. 11, n.º 123) e a base de um fogareiro, com a mesma decoração (Est. 11, n.º 124). Este tipo de peças foi fabricado nas olarias lisboetas a partir dos finais do século XVI e durante todo o século XVII.
sendo que para o n.º 128, temos paralelos em Cascais (CARDOSO, RODRIGUES, 1991, p. 582, n.º 25) e para o n.º 129, existem igualmente paralelos em Cascais para o século XVI, (CARDOSO, RODRIGUES, 1999, p. 205, nº 47; CABRAL, CARDOSO, ENCARNAÇÃO, 2009, n.º 4); no Cadaval, para o séc. XVIII (CARDOSO, 2009, Fig. 73, n.º 36). Três fragmentos de bojos de bilhas apresentam decoração, um a pente (Est. 12, n.º 131), outro com incisões (Est. 12, n.º 132) e um terceiro com decoração modelada (Est. 12, n.º 133). 2.4.4. Potes
Dentro deste grupo formal incluímos dois exemplares (Est. 13, n.os 134 e 135). Para o pote n.º 135, encontrámos paralelos em Cascais (CABRAL, CARDOSO, ENCARNAÇÃO, 2009, n.º 15)3. 2.4.5. Panelas
São recipientes de colo curto, troco-cónico, que podem apresentar um lábio em pequena aba rectangular ou triangular (Est. 13, n.os 136-144). Para as panelas, n.os 137 e 144, temos paralelos em Lisboa, para contextos do terramoto de 1531 (TRINDADE, DIOGO, 2003, p. 291, n.º 1 e 2) e para a peça n.º 142, existem paralelos em Cascais, datados da 2ª metade do século XVI (CABRAL, CARDOSO, ENCARNAÇÃO, 2009, n.º 29). 2.4.6. Tigela
Apresentamos unicamente um exemplar com três caneluras junto ao bordo exterior (Est. 14, n.º 145). 2.4.7. Frigideiras
Estão presentes dois exemplares, um de pega triangular com arranque a partir do bordo e outro com vestígios de arranque de asa na parede lateral (Est. 14, n.os 146 e 147). Para o primeiro temos paralelos no convento de S. Francisco de Alferrara, Palmela, e na Rua dos Correeiros, Lisboa, datáveis do século XVII (FERNANDES, CARVALHO, 2003, p. 243, n.º 18; TRINDADE, DIOGO, 2003, p. 291, n.os 9 e 29). Para o n.º 147, existe um paralelo no Convento de Montejunto, Cadaval, datável da 1ª metade do século XVIII (CARDOSO, 2009, p. 243, n.º 18). 2.4.8. Tachos ou caçoulas
São peças baixas em relação ao diâmetro de boca. Dos quatro exemplares (Est. 14, n.os 148-151), dois apresentam pegas triangulares arrancando do lábio. Para o n.º 149, temos paralelos no Convento de S. Francisco de Alferrara, Palmela, datável do século XVII (FERNANDES, CARVALHO, 2003, p. 243, n.º 19). Por sua vez, para o tacho nº 150, existem paralelos em Almada e Vila franca de Xira para o século XVI (SABROSA, ESPIRITO SANTO, 1992, n.º 9; MENDES, PIMENTA, 2008, p. 36, n.º 23).
2.4.3. Bilhas
Dentro do grupo de recipientes para água, existe um barril (Est. 12, n.º 125) datável do século XVI (TORRES, 1990, nº 11; DIOGO, TRINDADE, 2003, p. 292, n.º 16; BARROS, CARDOSO, GONZALEZ, 2003, p. 302, n.º 1; MENDES, PIMENTA, 2008, p. 48, n.º 39), duas bocas de infusa do século XVII (Est. 12, n.os 126 e 127), duas bocas de cântaro e uma asa (Est. 12, n.os 128-130)
3 No respeitante ao bordo n.º 134 tivemos dúvidas em classifica-lo como pote pois nos deu a sensação que podemos estar perante um fragmento de púcara.
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Estampa 11 – Louça vermelha modelada e fosca. 109-114, púcaros; 115-117, bilhas; 118-120, taças; 121, caneca; 122, pequena forma de açúcar; 123, panela de brinquedo; 124, fogareiro de brinquedo.
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Estampa 12 – Louça vermelha fosca e modelada. 125, barril; 126 e 127, infusas; 128 e 129, cântaros; 130, asa de pote; 131, parede de bilha esgrafitada a pente; 132, parede de bilha esgrafitada; 133, parede de bilhas modelada.
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Estampa 13 – Louça fosca. 134 e 135, potes; 136-144, panelas.
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Estampa 14 – Louça fosca. 145, tigela; 146 e 147, frigideiras; 148-151, tachos ou caçoulas.
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2.4.9. Testos
São de diversos tipos, com ou sem pega (Est. 15, n.os 152-157). Para o n.º 154, existem paralelos em Almada e Cascais para o século XVI (SABROSA, ESPIRITO SANTO, 1992, n.º 4; CARDOSO, RODRIGUES, 1999, p. 199, n.º 4), a peça n.º 155, com paralelos em Vila Franca de Xira; em contexto do século XVI (MENDES, PIMENTA, 2008, p. 33, nº 16). Para a peça 156, existe um paralelo em Cascais, datado do século XVI (CARDOSO, RODRIGUES, 1999, p. 202, n.º 20), enquanto para o n.º 157, existe paralelo no Convento de S. Francisco de Alferrara, século XVII (FERNANDES, CARVALHO, 2003, p. 242, n.º 11). 2.4.10. Alguidares
Os dois exemplares que apresentamos têm o bordo em voluta (Est. 15, n.os 158 e 159). São formas bastante divulgadas dentro da olaria de barro vermelho. Para a peça n.º 159, encontramos paralelos em Almada, Cascais e Lisboa, para os séculos XVI-XVII (SABROSA, 1994, n.º 15; CARDOSO, RODRIGUES, 1999, p. 200, n.os 9 e 14; BATALHA, CARDOSO, 2013, p. 137, n.º 86). 2.4.11. Fogareiros
Apresentam lábios espessados, reentrantes (Est. 16, n.os 160-163), o primeiro com asa horizontal (Est. 15, n.º 160) e o último com asa vertical (Est. 16, n.º 163). Um fogareiro apresenta um lábio com suporte triangular para apoio do fundo dos recipientes que eram levados ao lume (Est. 16, n.º 162). Os nos 160, 161 e 163 têm paralelos em Lisboa para o século XVI (DIOGO, TRINDADE, 2003, p. 292, fig. 5, n.os 12, 13 e18). 2.4.12. Bispotes
São peças para higiene pessoal, de corpo sub-cilíndrico (Est. 15, n.º 164), e cilíndrico, alto (idem, n.os 165-167). Para o exemplar com bordo em aba, nº 166, temos paralelos em Cascais, datados do século XVI (CARDOSO, RODRIGUES, 1999, p. 206, n.º 52). 2.5. Instrumentos de olaria para vidragem 2.5.1. Cassetes
Para levar as peças a vidrar ao forno, eram usadas caixas de cerâmica, onde as peças eram empilhadas umas sobre as outras (Est. 17, n.os 169-179). Tinham forma cilíndrica com abertura circular na base e vários orifícios laterais para circular o ar quente e outros de secção triangular para introduzir os cravilhos. Alguns exemplares não apresentam aberturas laterais. Assim, a separação das peças seria feita com trempes, o que justifica as três marcas que por vezes observamos no interior das peças. 2.5.2. Trempes
Recolheram-se vários trempes para separar as peças a vidrar no interior dos fornos. Existem dois modelos: os trempes de garra e os de hélice. Os primeiros são os mais comuns e foram utilizados para a produção de faiança (Est. 18, n.os 180 e 181) enquanto os de hélice (Est. 18, n.º 182) serviam para separar a louça a vidrar com óxido de chumbo. Um fragmento de trempe em hélice com vestígios de vidrado melado, é um indicador, de que para além da
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produção de faiança, tenha existido também fabrico de louça de barro vermelho vidrada a chumbo. A corroborar esta evidência, existe um conjunto de trempes recolhido numa escavação arqueológica efectuada no antigo Palácio Mesquitela, na Calçada do Combro, a cerca de 200 m para sul, entre os quais existem dois de tipo hélice com vestígios de pingos de vidro corado a verde (SIMÃO, 2010, p. 89, Fig. n.º 10). 2.5.3. Cravilho
Em todo o espólio só existe um cravilho de secção triangular. Era usado para introduzir na parede das cassetes de modo a servir de apoio para separar as peças que iam ao forno a vidrar (Est. 18, n.º 183). 2.5.4. Separadores
Existem vários fragmentes de pequenos rolos ou hastes de cerâmica, com ranhuras rectangulares que terão servido para separar a louça ou os azulejos a vidrar (Est. 18, n.os 184-186). 3. Moedas Foram recolhidos onze numismas em muito mau estado de conservação, mas alguns exemplares, após tratamento em laboratório, ofereceram leitura (GOMES, 2007). Exceptuando um ceitil de D. João III, na U.E. 59, cinco dos outros numismas são do reinado de D. Sebastião, datáveis entre Julho de 1560 e Agosto de 1578 (U.E.s 56, 66, 86, 110, e 200) que nos dão uma data post quem. 4. Conclusões As inúmeras intervenções arqueológicas que têm vindo a ser realizadas nas últimas décadas na cidade de Lisboa, têm possibilitado aos investigadores uma nova perspectiva da evolução histórica da cidade. Os trabalhos arqueológicos no Largo de Jesus ofereceram elementos de estudo que nos permitiram analisar um período muito específico, no qual temos vindo a desenvolver trabalho e que se prende essencialmente com a produção de faiança. Apesar dos inúmeros vestígios de restos de produção cerâmica, recolhidos pela primeira vez naquela zona da cidade, é possível estabelecer a analogia entre uma oficina de produção de cerâmica e todo o processo de fabrico. Para além da cerâmica fosca, dos inúmeros fragmentos de faiança azul sobre branco, foi fundamentalmente a evolução formal da produção de faiança e muito especificamente o tipo “azul sobre azul”, o objectivo do nosso estudo. Até muito recentemente, esta produção vinha sendo atribuída às produções italianas. Contudo, um significativo conjunto de fragmentos veio comprovar a produção deste tipo de faiança, com cronologia paralela às produções italianas e sevilhanas, facto que traduz não só um fenómeno de imitação, mas simultaneamente uma diversidade estética, uma vez que nas produções de Lisboa não existe uma correspondência evidente no que concerne, por exemplo, à gramática decorativa, bem como ao tipo de vidrado e caraterísticas cromáticas.
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Estampa 15 – Louça fosca. 152-157, tampas; 158 e 1159, alguidares.
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Estampa 16 – Louça fosca. 160-163, fogareiros; 164-168, bispotes.
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Estampa 17 – Cassetes. 169-174, bordos; 175, cassete com perfil completo; 176-179, fundos.
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Confirma-se no entanto que algumas peças da produção da 1ª fase, dita majólica, apresentam pastas que poderão ter sido produzidas com barros da região de Lisboa. O fabrico de faiança dita “malagueira” – 2ª fase – é coevo com a produção de “azul sobre azul”, ou seja, terceiro quartel do séc. XVI e primeiro do XVII, sendo que no início deste último se registam as primeiras produções de “azul sobre branco”. Na 3ª fase, com a criação do hospital e do Convento de Jesus, é extinta a olaria que produzia faiança naquele
sítio, continuando a sua produção a fazer-se noutras olarias implantadas na cidade de Lisboa. Contribuíram para estas conclusões as análises das pastas, uma vez que os rejeitados de produção demonstraram, dentro da variedade de barros utilizados, a preponderância das pastas amarelas tão características em cerâmicas finas de produção local e dispersas por diversos contextos de escavação na cidade de Lisboa.
Estampa 18 – Suportes de cozedura. 180-182, trempes; 183, cravilho; 184-186, separadores.
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Estampa 19 – A: planta dos finais do século XVI, inícios do seguinte. 1; local aproximado das sondagens realizadas em 2015, no Largo de Jesus; 2, Calçada do Combro; 3, Bairro do Mocambo; 4, Cais do Tojo; B: planta actual da área do largo de Jesus e sua envolvência.
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Estampa 20 – Vista de Lisboa c. 1700, Museu Nacional do azulejo. A: entre o Bairro do Mocambo e Santa Catarina do Monte Sinai, 1, Bairro do Mocambo, 2 Convento de Jesus; 3 Santa Catarina do Monte Sinai; B: Bairro do Mocambo; C, Convento de Jesus; D, embarcações a descarregarem lenha no Cais do Tojo; E Igreja de Santa Catarina do Monte Sinai, vendo-se o combro que dá o nome à Calçada do Combro, ao longo da qual os oleiros extraiam argila.
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Estampa 21 – Pratos e malgas, em chacota, rejeitadas.
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Estampa 22 – Várias fotos de pastas de faiança do Largo de Jesus. A e B, esmalte azul; C-E, esmalte branco.
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Estampa 23 – Rejeitados por falhas na produção. A, B; D e E, por fusão entre vários recipientes; C, por vidrado incompatível com a chacota; F, marca de trempe; G, falhas no esmalte devido à existência de pó sobre chacota antes da aplicação do banho do vidrado.
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Estampa 24 – 2ª fase de ocupação: 1-3, rejeitados de faiança branca; 4, majólicas “berettino” italianas; 5-9, rejeitados de faiança azul sobre azul; 10 e 11, rejeitados de faiança azul sobre branco.
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Evidências de produção oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa)
5. Catálogo 1 – U.E.1. Fragmento de malga carenada, esmaltada a branco. Diâmetro do bordo: 140mm. 2 – U.E.209. Fragmento de malga carenada, esmaltada a branco. Diâmetro do bordo: 140mm. 3 – U.E.209. Fragmento de malga carenada, esmaltada a branco com decoração a azul. Diâmetro do bordo: 160mm. 4 – S/U.E. Fragmento de malga carenada, esmaltada a branco com decoração a azul. Diâmetro do bordo: 170mm. 5 – U.E.209. Fragmento de malga em calote, esmaltada a branco. Diâmetro do bordo: 130mm. 6 – U.E.209. Fragmento de prato côncavo de base côncava, esmaltada a branco. Diâmetro do bordo: 180mm. 7 – U.E.1 Fragmento de prato côncavo de base côncava, esmaltada a branco. Diâmetro do bordo: 140mm. 8 – U.E.59. Fragmento de prato côncavo de base côncava, esmaltada a branco com decoração a azul. Diâmetro do bordo: 190mm. 9 – U.E.59. Prato covo, de aba recurvada e base côncava, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 200mm. 10 – U.E.59. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 190mm. 11 – U.E.59. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, de faiança branca esverdeada. Diâmetro do bordo: 210mm. 12 – S/U.E. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 170mm. 13 – U.E.59. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, de faiança branca esverdeada. Diâmetro do bordo: 220mm. 14 – U.E.208. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, de faiança branca com monograma a manganês na aba. Diâmetro do bordo: 220mm. 15 – U.E.59. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 200mm. 16 – U.E.73. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 180mm. 17 – U.E.56. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, em chacota. Diâmetro do bordo: 210mm. 18 – U.E.56. Fragmento de prato covo, de aba arqueada e base côncava, em chacota. Diâmetro do bordo: 210mm. 19 – U.E.208. Fragmento de fundo prato de base côncava, de faiança branca. Diâmetro da base: 48mm. 20 – U.E.59. Fragmento de fundo prato de base côncava, de faiança branca. Diâmetro da base: 60mm. 21 – U.E.22/24. Fragmento de fundo prato de base côncava, de faiança branca. Diâmetro da base: 50mm. 22 – U.E.22/24. Fragmento de fundo prato de base côncava, de faiança branca. Diâmetro da base: 68mm. 23 – U.E.22/24. Fragmento de fundo prato de base côncava. Chacota. Diâmetro da base: 50mm. 24 – U.E.59. Dois fragmentos de bordos de taça, colados durante a cozedura, de faiança branca. Diâmetros dos bordos: 170mm e 150mm. 25 – U.E.110. Fragmento de bordo de taça, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 140mm. 26 – U.E.59. Fragmento de bordo e parede de taça carenada, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 180mm. 27 – U.E.110. Fragmento de bordo e parede de taça carenada, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 200mm. 28 – U.E.59. Fragmento de bordo e parede de taça carenada, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 200mm. 29 – U.E.59. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 290 mm. 30 – U.E.110. Fragmento de bordo de prato carenado, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 230 mm.
31 – U.E.114. Fragmento de fundo de prato, de faiança branca com arabesco a manganês. Diâmetro da base: 50mm. 32 – U.E.27.25. Fragmento de fundo de taça, de faiança branca. Diâmetro da base: 56mm. 33 – U.E.69.35. Fragmento de fundo de prato, de faiança branca. Diâmetro da base: 60mm. 34 – S/U.E. Fragmento de bordo, parede e base de especieiro, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 78mm. 35 – U.E.59. Fragmento de bordo, parede e base de especieiro, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 60mm. 36 – U.E.59. Fragmento de bordo, parede e base de especieiro, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 90mm. 37 – U.E.59. Fragmento de bordo e parede de malga em calote e pé anelar, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 145mm. 38 – U.E.56. Fragmento de bordo e parede de malga em calote, chacota. Diâmetro do bordo: 130mm. 39– U.E.59. Fragmento de bordo e parede de malga em calote, em chacota. Diâmetro do bordo: 150mm. 40 – U.E.94. Fragmento de bordo e parede de malga em calote, em chacota. Diâmetro do bordo: 130mm. 41 – U.E.94. Fragmento de parede e base de malga em calote e pé anelar, chacota. Diâmetro da base: 40mm. 42 – U.E.56. Fragmento de bordo e parede de malga, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 90mm. 43 – U.E.200. Fragmentos de bordo e parede de bordo e parede de malgas em calote, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 170mm. 44 – U.E.59. Fragmento de bordo e parede de malga em calote e pé anelar, de faiança branca. Diâmetro da base: 50mm. 45 – U.E.59. Fragmento de parede e base de malga em calote com pé anelar, em faiança branca esverdeada. Diâmetro da base: 48mm. 46 – U.E.94. Fragmento de base de malga com pé anelar, em chacota. Diâmetro da base: 50mm. 47 – U.E.110. Fragmento de base de malga com pé anelar, em chacota. Diâmetro da base: 60mm. 48 – U.E.22.24. Fragmento de parede e base de malga com pé anelar, em chacota. Diâmetro da base: 42mm. 49 – U.E.57. Fragmento parede e base de tigela em calote com pé anelar, de faiança branca. Diâmetro da base: 120mm. 50 – U.E.25. Fragmento de bordo de prato, de majólica italiana. Diâmetro do bordo: 280mm. 51 – S/U.E. Fragmento de fundo de prato, de majólica italiana. Diâmetro da base: 100mm. 52 – S/U.E. Fragmento de parede de prato, de majólica italiana. Dimensão máxima: 43mm. 53 – S/U.E. Fragmento parede de prato, de majólica italiana. Dimensão máxima: 74mm. 54 – U.E.59. Fragmento de fundo de malga, de majólica italiana. Diâmetro da base: 60mm. 55 – U.E.59. Fragmento de fundo de prato, de majólica italiana. Diâmetro da base: 90mm. 56 – U.E. 209. Fragmento de potinho, de faiança branca. Altura máxima: 45mm. 57 – U.E. 27. Fragmento de copa, de faiança branca. Diâmetro: 110mm. 58 – U.E.114. Fragmento de bordo de bilha, de majólica italiana. Diâmetro do bordo: 142mm. 59 – U.E. 27. Fragmento de parede e fundo de pote de farmácia, de faiança branca. Diâmetro da base: 60mm. 60 – U.E. 91. Fragmento de bordo e parede de malga, de faiança de Lisboa, decorada a azul e branco sobre azul. Diâmetro do bordo: 130mm. 61 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de malga, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 100mm. 62 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de taça, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 170mm.
Uma cidade em escavação
177
Guilherme Cardoso, Luísa Batalha
63 – U.E. 63. Fragmento de parede, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Dimensão máxima: 49mm. 64 – U.E. 235. Fragmento de bordo e parede de taça, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 62mm. 65 – U.E. 69. Fragmento de parede e base de taça, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro da base: 60mm. 66 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 140mm. 67 – U.E. 59. Fragmento de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 210mm. 68 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 200mm. 69 – U.E. 235. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 210mm. 70 – U.E. 91. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 280mm. 71 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 140mm. 72 – U.E. 235. Fragmento de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul e branco sobre azul. Diâmetro da base: 70mm. 73 – U.E. 59. Fragmento de base de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro da base: 50mm. 74 – U.E. 235. Fragmento de parede e base de taça, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro da base: 54mm. 75 – U.E. 66. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro do bordo: 210mm. 76 – U.E. 235. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre azul. Diâmetro da base: 120mm. 77 – U.E.235. Fragmento de parede de taça, faiança portuguesa de azul e branco sobre azul. Dimensão máxima: 34mm. 78 – U.E. 209. Fragmento de bordo, parede e fundo de prato, de faiança de Lisboa, decorada a azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 200mm. 79 – U.E. 110. Fragmento de bordo e parede de taça, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 130mm. 80 – U.E. 110. Quatro fragmentos de paredes de taças, falha de produção, de faiança azul sobre branco. Dimensão máxima: 52mm. 81 – U.E. 110. Fragmento de bordo e parede de taça, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 156mm. 82 – U.E. 110. Fragmento de bordo e parede de taça, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 180mm. 83 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 455mm. 84 – U.E. 209. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 260mm. 85 – U.E. 23. Fragmento de bordo e parede e prato, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 210mm. 86 – U.E. 209. Fragmento de bordo e parede de prato, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 190mm. 87 – S/U.E. Fragmento de fundo de prato, de faiança azul sobre branco. Dimensão máxima: 130mm. 88 – U.E.59. marca de jogo sobre fragmento de fundo de prato, de faiança azul sobre branco. Dimensão máxima: 31mm. 89 – U.E. 209. Fragmento de bordo de prato, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 120mm. 90 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede e prato, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 194mm. 91 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de prato gomado, em chacota. Dimensão máxima: 36mm.
178 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
92 – U.E. 2. Fragmento de bordo, parede e fundo de prato, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 130mm. 93 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de malga, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 100mm. 94 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de malga, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 140mm. 95 – U.E. 202. Fragmento de bordo e parede de tigela, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 195mm. 96 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de saladeira, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 210mm. 97 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de saladeira, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 160mm. 98 – U.E. 56. Fragmento de bordo e parede de saladeira, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 270mm. 99 – U.E. 27. Fragmento de bordo e parede de saladeira, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 300mm. 100 – U.E. 27. Fragmento de bordo e parede de bordo e parede de bacia, de faiança branca. Diâmetro do bordo: 280mm. 101 – U.E. 63. Fragmento de bordo, parede e bico de jarro de medida, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 80mm. 102 – U.E. 56. Fragmento de parede e base de jarro de medida, de faiança azul sobre branco. Diâmetro da base: 80mm. 103 – U.E. 91. Fragmento de bordo e parede de pote, de faiança azul sobre branco. Diâmetro do bordo: 90mm. 104 – S/U.E. Fragmento de pega esférica de tampa, de faiança azul sobre branco. Altura: 21mm. 105 – U.E. 285. Fragmento de prato que serviu de marca de jogo, de faiança azul sobre branco. Diâmetro máximo: 23mm. 106 – U.E. 2. Fragmento de parede e base de jarra, de faiança vidrado branco e apresenta dois filetes a manganês e um amarelo, no meio. Diâmetro da base: 103mm. 107 – U.E. 91. Fragmento de parede e fundo de pote, de faiança branca. Diâmetro da base: 110mm. 108 – U.E. 91. Fragmento de parede e fundo de bilha, de faiança branca. Diâmetro da base: 80mm. 109 – U.E. 108. Fragmento e bordo e parede de púcaro, modelado. Diâmetro do bordo: 70mm. 110 – U.E. 59. Fragmento de parede e asa de púcaro, modelado. Altura máxima: 58mm. 111 – U.E. 59. Fragmento de parede de púcaro, modelado. Altura máxima: 40mm. 112 – U.E. 59. Fragmento de parede e base de púcaro, modelado. Diâmetro da base: 50mm. 113 – U.E. 59. Fragmento de parede e base de púcaro, louça fosca. Diâmetro da base: 36mm. 114 – U.E. 114. Fragmento de parede e fundo púcara, louça fosca. Diâmetro da base: 57mm. 115 – U.E. 59. Fragmento de bordo de púcaro, modelado. Diâmetro do bordo: 100mm. 116 – U.E. 59. Fragmento de bordo púcaro, modelado. Diâmetro do bordo: 100mm. 117 – U.E. 59. Fragmento de púcaro, modelado. Diâmetro do bordo: 100mm. 118 – U.E. 91. Fragmento de bordo, parede e fundo taça, modelada. Diâmetro do bordo: 130mm. 119 – U.E. 209. Fragmento de bordo e parede de taça, modelada e pedrada. Diâmetro do bordo: 170mm. 120 – U.E. 108. Fragmento de bordo e parede de taça, louça fosca. Diâmetro do bordo: 100mm. 121 – U.E. 91. Fragmento de bordo e parede de copo, louça fosca. Diâmetro do bordo: 52mm. 122 – U.E. 108.26. Fragmento de ponta de forma de pão de açúcar em miniatura, louça fosca. Altura máxima: 20mm. 123 – U.E. 59. Fragmento de parede e fundo de brinquedo (panela), louça fosca com pintura a branco. Altura máxima: 28mm.
Evidências de produção oleira dos finais do século XVI a meados do século XVII no Largo de Jesus (Lisboa)
124 – U.E. 124. Fragmento de parede e fundo brinquedo (fogareiro), louça fosca com pintura a branco. Diâmetro da base: 50mm. 125 – U.E. 59. Fragmento de bordo, colo, parede e asa de barril, louça fosca vermelha. Altura máxima: 80mm. 126 – U.E. 59. Fragmento de boca de infusa, louça fosca vermelha. Diâmetro de bordo: 80mm. 127 – U.E. 235. Fragmento de boca e colo de infusa, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 90mm. 128 – U.E. 108. Fragmento de bordo de cântaro, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 120mm. 129 – U.E. 114. Fragmento de boca e colo de cântaro, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 138mm. 130 – U.E. 114. Fragmento de bojo e asa de pote, louça fosca vermelha. Dimensão máxima: 139mm. 131 – U.E. 94. Fragmento de bojo de bilha, decorado a pente, louça fosca vermelha. Altura máxima: 45mm. 132 – S/U.E. Fragmento de bojo de bilha, decoração incisa, louça fosca vermelha. Altura máxima: 57mm. 133 – U.E. 114. Fragmento de bojo de bilha, modelada, louça fosca vermelha. Altura máxima: 132mm. 134 – U.E. 114. Fragmento de bordo e parede de púcara, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 115mm. 135 – U.E. 1025. Fragmento de boca e colo de pote, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 150mm. 136 – U.E. 108. Fragmento de boca de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 180mm. 137 – U.E. 119. Fragmento de boca e parede de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 120mm. 138 – U.E. 1025. Fragmento de boca de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 180mm. 139 – U.E. 59. Fragmento de boca e parede de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 142mm. 140 – U.E. 108. Fragmento de boca de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 180mm. 141 – U.E. 119. Fragmento de boca e parede de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 150mm. 142 – U.E. 119. Fragmento de boca e parede de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 150mm. 143 – U.E. 59. Fragmento de boca e parede de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 200mm. 144 – U.E. 59. Fragmento de boca e parede de panela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 220mm. 145 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de tigela, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 150mm. 146 – U.E. 1025. Fragmento de bordo, parede, fundo e asa de frigideira, louça fosca vermelha. Diâmetro da base: 205mm. 147 – U.E. 209. Fragmento de bordo, parede, fundo e asa de frigideira, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 234mm. 148 – U.E.59. Fragmento de bordo e parede de tacho, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 220mm. 149 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de tacho, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 230mm. 150 – U.E. 59. Fragmento de bordo, parede e asa de tacho, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 314mm. 151 – U.E. 59. Fragmento de bordo e parede de tacho, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 320mm. 152 – U.E. 114. Fragmento de aba, base e pega de testo, louça fosca vermelha. Diâmetro da base: 55mm. 153 – U.E. 114. Fragmento de testo, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 180mm. 154 – U.E. 114. Fragmento de aba e base de testo, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 180mm. 155 – U.E. 59. Fragmento de bordo e aba de testo, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 140mm. 156 – U.E. 108. Fragmento de bordo e aba de testo, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 300mm.
157 – U.E. 59. Fragmento de aba e base anelar de prato/ tampa, louça fosca vermelha. Diâmetro da base: 64mm. 158 – U.E. 114. Fragmento de bordo e parede de alguidar, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 280mm. 159 – U.E. 1025. Fragmento de bordo e parede de alguidar, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 340mm. 160 – U.E. 108. Fragmento de boca e asa de fogareiro, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 200mm. 161 – U.E. 114. Fragmento de boca e parede de fogareiro, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 260mm. 162 – U.E. 59. Fragmento de boca, parede e suporte de fogareiro, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 255mm. 163 – U.E. 108. Fragmento de bordo e asa de fogareiro, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 260mm. 164 – U.E. 1114. Fragmento de bispote, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 180mm. 165 – U.E. 108. Fragmento de aba, parede e asa de bispote, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 290mm. 166 – U.E. 1025. Fragmento de aba de bispote, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 280mm. 167 – U.E. 114. Fragmento de aba, parede e asa de bispote, louça fosca vermelha. Diâmetro do bordo: 280mm. 168 – U.E. 114. Fragmento de asa de bispote, louça fosca vermelha. Altura: 140mm. 169 – U.E. 60. Fragmento de bordo e parede de cassete, de pasta branca. Diâmetro do bordo: 220mm. 170 – U.E. 22.24. Fragmento de bordo e parede de cassete, de pasta branca. Diâmetro do bordo: 180mm. 171 – U.E. 22.24. Fragmento de bordo e parede de cassete, de pasta branca. Diâmetro do bordo: 170mm. 172 – U.E. 22.24. Fragmento de bordo de cassete, de pasta branca. Diâmetro do bordo: 174mm. 173 – U.E. 44. Fragmento de bordo e parede de cassete, de pasta branca. Diâmetro do bordo: 180mm. 174 – S/U.E. Fragmento de bordo e parede de cassete, de pasta branca. Diâmetro do bordo: 210mm. 175 – S/U.E. Fragmento de cassete, de pasta branca. Diâmetro do bordo: 180mm. 176 – S/U.E. Fragmento de parede e fundo de cassete, de pasta branca. Diâmetro da base: 189mm. 177 – S/U.E. Fragmento de parede e fundo de cassete, de pasta branca. Diâmetro da base: 200mm. 178 – S/U.E. Fragmento de parede e fundo de cassete, de pasta branca. Diâmetro da base: 220mm. 179 – U.E.44. Fragmento de parede e fundo de cassete, de pasta branca. Diâmetro da base: 210mm. 180 – U.E.44. Fragmento de trempe, de pasta rosada. Comprimento máximo: 60mm. 181 – U.E.44. Fragmento de trempe, de pasta branca. Comprimento máximo: 78mm. 182 – U.E.44. Fragmento de trempe, de pasta vermelha. Comprimento máximo: 94mm. 183 – U.E.56. Fragmento de cravilho, de pasta branca. Comprimento: 37mm. 184 – S/U.E. Fragmento de separador, de pasta branca. Comprimento: 68mm. 185 – S/U.E. Fragmento de separador, de pasta branca. Comprimento: 45mm. 186 – U.E.119. Fragmento de separador, de pasta rosada. Comprimento: 26mm.
Uma cidade em escavação
179
Guilherme Cardoso, Luísa Batalha
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Uma cidade em escavação
181
A cidade manufatureira e industrial
Resumo:
No âmbito do projecto de reabilitação de um edifício na Mouraria (Lisboa) foram identificados vários contextos claramente associados com a actividade oleira, tais como fornos, estruturas negativas que continham quantidades muito significativas de materiais arqueológicos (principalmente exemplares de cerâmica comum), cinzas e vários níveis de argilas. Todos estes contextos encontravam-se diretamente implantados sobre um nível de características geológicas argilosas e parecem ser enquadráveis em Época Moderna. PALAVRAS-CHAVE:
Olaria, Época Moderna, cerâmica comum, fornos de cerâmica comum.
ABSTRACT:
Within the building rehabilitation project in Mouraria (Lisboa) a number of contexts clearly associated with the pottery activity were identified, such as a furnace structure, holes containing very significant amounts of archaeological materials (mainly specimens of common pottery), ashes and various levels of clays. Also a combustion chamber wall associated with a second furnace was found in that archaeological context. All these contexts were directly implanted on a level of clayey geological features and can be related with the Modern Age. Key words:
Pottery, Modern Age, common pottery, common pottery furnaces.
Bairro das Olarias. Vista geral das estruturas no edifício intervencionado
2.6 Uma intervenção em pleno
Bairro das Olarias: novos dados sobre a produção oleira no século XVII
Inês Mendes da Silva Marina Pinto ERA-Arqueologia, SA geral@era-arqueologia.pt
1. Nota Introdutória O presente texto reveste-se de um carácter genérico porquanto os trabalhos ainda decorrem no terreno e os dados ainda não começaram a ser tratados de forma sistemática. Independentemente desta situação, e considerando a relevância do sítio, apresentam-se aqui os resultados preliminares dos trabalhos realizados até ao momento. 2. Mouraria A comunidade muçulmana de Lisboa recebeu o foral em 1170, de D. Afonso Henriques, facto que permitiu o seu estabelecimento num espaço pré-determinado, fora do perímetro urbano. O núcleo central seria constituído por um espaço amuralhado, com duas portas, sensivelmente nos dois extremos da antiga Rua Grande Direita, actual Rua dos Cavaleiros. Esta informação não permite, contudo, determinar qual a superfície exacta que corresponderia à Mouraria (Bonifácio, 1994, p. 592). A partir de finais do século XIV o conceito de mouraria para os cristãos torna-se mais abrangente, considerando estes a Rua de Benfica como parte integrante deste bairro, ainda que se localize no prolongamento exterior do mesmo. Nesta rua regista-se um povoamento de muçulmanos e cristãos, que se materializa nas lojas de olaria. O alargamento das zonas de habitação processa-se ainda entre o bairro e o cemitério muçulmano (encosta de Santa Maria da Graça), que dará no século XV origem à designação “Mouraria Nova” (BARROS, 1994, p. 592). A organização espacial dos locais públicos era realizada em função da comunidade muçulmana, existindo a Mesquita Grande, a Mesquita pequena, a escola e os banhos. A fisionomia das ruas traduz igualmente influên-
cias urbanísticas muçulmanas, nomeadamente as ruas sem saída e os diversos becos. Relativamente à organização do bairro, o seu núcleo central seria constituído pela mencionada Mesquita Grande e pela escola, onde existiriam igualmente algumas habitações, sobretudo de personalidades de destaque entre a comunidade. O outro núcleo, que incluía as actividades artesanais e comerciais, localizava-se na extremidade oposta do bairro, junto da mesquita pequena, dos banhos e da porta que dava acesso à Rua de Benfica, com entrada pela Rua Grande Direita. Em finais do século XV as minorias são expulsas por D. Manuel, ficando a mouraria a cargo do monarca, que expropriou o cemitério muçulmano, utilizando as pedras tumulares para a construção do Real Hospital de Todos os Santos (ARAÚJO, 1992, p. 61). 3. Mouraria e a Produção Oleira em época Medieval/ Moderna São inúmeras as evidências (históricas, arqueológicas, toponímicas, geológicas) que associam esta região de Lisboa à produção oleira desde o início da presença mulçulmana até ao período moderno/contemporâneo. Se apenas se considerar a envolvente directa do imóvel (Largo das Olarias, 35-42) em análise, destacam-se três sítios com claras evidências de produção oleira: Rua dos Lagares 74 (trabalhos em curso – Era Arqueologia SA) onde foram identificados diversos níveis de despejo com restos de produção associados, assim como trempes e restos de paredes de fornos com sinais de vitrificação (os materiais apontam para cronologias enquadráveis do período moderno); Quarteirão dos Lagares, onde no decurso de três fases distintas de trabalhos arqueológicos foram identificados contextos (depósitos) relaciona-
Uma cidade em escavação
183
Inês Mendes da Silva, Marina Pinto
dos com a actividade oleira, que cronologicamente pode ser enquadrada entre o século XV e a primeira metade do século XVI, assim como o forno do qual apenas se conhece o topo considerando que o mesmo não chegou a ser intervencionado por se encontrar abaixo da cota de afectação; Travessa do Jordão (trabalhos em curso sob direcção de Anabela Castro) foram identificados fornos de produção cerâmica associados a contextos de despejo de restos de produção. A presença desta actividade económica nesta área da cidade pode ser igualmente comprovada arqueologicamente em trabalhos realizados na Rua da Amendoeira (trabalhos sob a direcção de António Marques), situada a Sul da Rua dos Lagares, onde se destaca a presença de um forno de cerâmica comum e telha, datado do século XV. De acordo com os autores, identificou-se ainda uma estrutura de funcionalidade indeterminada, com materiais associados dos séculos XIII-XIV. Importa ainda destacar nas Escadinhas do Monte, em trabalhos de acompanhamento arqueológico realizados no âmbito do Plano de Renovação da Rede da Epal (realizados pela Era Arqueologia SA), a presença, ainda que descontextualizadas, de trempes em associação com contentores cerâmicos e cerâmica de construção. No entanto, importa salientar que estes trabalhos incidem em valas estreitas, condicionando a interpretação das estruturas e dos depósitos registados. As fontes históricas indicam a presença na Rua das Tendas, actual Rua Marquês de Ponte de Lima, do primeiro mercado de louças e olarias de Lisboa, datado do século XV (ARAÚJO, 1992, p. 68). Para além das evidências arqueológicas e das fontes escritas, a própria toponímia das ruas, associada ao facto de se estar em plena zona de barreiros, são aspectos que corroboram a natureza das actividades que ali se desenvolviam desde o período em que este espaço foi ocupado pelas comunidades islâmicas. 4. Largo das Olarias: intervenção arqueológica No âmbito dos trabalhos de reabilitação do edifício sito no Largo das Olarias 35 procedeu-se à realização de uma série de trabalhos arqueológicos, tanto numa fase prévia à empreitada como no decurso da implementação do projecto de reabilitação. Assim, numa fase inicial, foram implantadas, de forma a abranger toda a área do imóvel, oito sondagens de diagnóstico cujos resultados permitiram aferir a presença de contextos arqueológicos preservados, nomeadamente, estruturas em alvenaria, estruturas negativas de funcionalidade indeterminada (fossas), manchas de carvões com materiais associados, uma caleira, um pavimento e, por fim, o que indiciava constituir parte de uma estrutura de combustão (eventual forno) ao qual estavam associados dois conjuntos de tijolos dispostos em duas linhas paralelas. Dado o carácter parcial deste diagnóstico, muito condicionado pelos inúmeros obstáculos físicos existentes (as paredes interiores do edifício ainda não haviam sido demolidas), foram propostos trabalhos de caracterização/ minimização adicionais, a serem executados após a con-
184 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
clusão da fase de demolição. Assim, numa segunda fase, foram implantadas as áreas de escavação arqueológica de acordo com as futuras de afectação, conforme projecto em execução: quatro sapatas, uma caixa de elevador e uma caixa de visita (saneamento). Parte destas áreas acabaram por se unir numa zona única, em torno onde havia sido inicialmente identificado o contexto relacionado com um eventual forno. Assim, foi possível confirmar a existência de fornos, assim como de estruturas negativas repletas de restos de produção de cerâmica (quantidades muito significativas de cerâmica comum, trempes, cinzas e níveis de argilas), evidências materiais que confirmam uma franca actividade de produção oleira neste espaço, fazendo jus à toponímia onde se insere. Para além das realidades supra mencionadas, foi ainda registada uma série de estruturas em alvenaria (préexistências e, outras, mais recentes, relacionadas com o actual edifício), manchas de carvões associadas a materiais cerâmicos dispersas pela área, antigos pavimentos onde se observou o reaproveitamento de antigas mós e uma caleira. 5. Cultura material Por ainda não se ter procedido à análise sistemática do significativo conjunto artefactual recolhido até ao momento, apresentam-se aqui, de forma genérica, os materiais arqueológicos, divididos em artefactos de apoio à produção oleira e em produtos para comercialização. Assim, no que respeita ao primeiro conjunto, destaca-se um conjunto de “pélas” (finda a amassadura eram retiradas porções de barro correspondentes às diferentes peças a modelar, dispostas junto ao torno em forma de bolas, a que designavam por “pélas” (BERNARDA, 2001). Para além destes componentes de matéria-prima, foram ainda registados: um moinho manual associado a uma manivela com uma mó movente, almofarizes, trempes (alguns com vestígios de vidrado) e um fundo de um grande contentor com vestígios de caulino/argila branca no seu interior. Também foram recolhidos dois exemplares de recipientes que ficaram coladas aos respectivos trempes aquando do processo de vidragem. Relativamente ao segundo grupo, maioritariamente composto por cerâmicas comuns, este corresponde à parte mais significativa de todo o conjunto. Tratam-se de exemplares de tigelas, frigideiras, potes, púcaros, bilhas, fogareiros, testos, entre outros. Formas que, genericamente, poderão ser enquadradas no séc. XVII. Foram também recolhidos alguns fragmentos de faianças (no total corresponderão a cerca de 0,5% do conjunto), dos quais se destaca uma taça de faiança (pasta de textura compacta), com bordo direito e lábio convexo, decorada na parede externa com meios círculos a azul-cobalto e, no interior, com uma espiral na base e uma linha circundante junto ao bordo. Também foi registado meio prato em faiança, decorado a azul-cobalto na superfície interna com semicírculos concêntricos no bordo e motivos vegetalistas no fundo.
Uma intervenção em pleno Bairro das Olarias (Mouraria, Lisboa): novos dados sobre a produção oleira no séc. XVII
Figura 1 – Vista geral das estruturas na área do edifício.
Uma cidade em escavação
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Inês Mendes da Silva, Marina Pinto
Figuras 2 e 3 – Recipientes colados pelo vidrado aos respectivos trempes; almofarizes.
Figura 4 – Trempes.
Figura 5 – “Pélas”.
Figura 6 – Tigelas/tachos.
Figura 7 – Testos.
Figura 8 – – Púcaros.
186 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Uma intervenção em pleno Bairro das Olarias (Mouraria, Lisboa): novos dados sobre a produção oleira no séc. XVII
Para além dos poucos exemplares de faianças, destaca-se um exemplar quase completo de uma jarrinha decorada com incrustações de quartzo e círculos concêntricos incisos, também enquadrável no séc. XVII. 6. Considerações finais Da análise dos contextos intervencionados e do conjunto artefactual recolhido, depreende-se que este espaço, na sua origem, seria uma olaria vocacionada para a produção de cerâmica comum e, eventualmente, de cerâmica de construção (telhas), se considerarmos os contextos associados a um dos fornos. A actividade também incluiria, pela existência de uma elevada quantidade de trempes “pingados” de vidrado, a aplicação de vidrado nas peças. Por outro lado, também foram inúmeros os fragmentos recolhidos que apresentavam sinais de defeito no vidrado que, por essa razão, terão sido exemplares descartados por não poderem ser comercializados. Se forem tidas em consideração todas as referências toponímicas, documentais e arqueológicas (ainda que destas apenas resultem dados esparsos decorrentes de acções específicas de minimização – como a presente - e de acompanhamentos arqueológicos), seria expectável que, mais cedo ou mais tarde, surgissem evidências materiais da produção oleira nesta zona da cidade de Lisboa. Os trabalhos arqueológicos realizados no Quarteirão dos Lagares, localizado a curta distância do edifício agora objecto de reabilitação, permitiram identificar contextos arqueológicos preservados, de época moderna, na sua maioria interpretados como áreas de lixeira ou de despejos de produção cerâmica. Numa das sondagens a identificação de uma fossa, preenchida por depósitos nos quais se destaca a presença de cinzas e as características dos materiais que foram recolhidos, nomeadamente defeitos no vidrado e trempes, sustenta a interpretação desta área se relacionar com os despejos resultantes da produção de cerâmica (FILIPE et alli, 2010). Por outro lado, no âmbito deste projecto, foi também identificada uma estrutura que corresponderia ao topo de um forno mas que, por estar já abaixo da cota de afectação, foi protegido por manta geotêxtil e não chegou a ser intervencionado arqueologicamente (MENDES DA SILVA, 2013).
Figura 9 – Bilha.
Figura 10 – Taça em faiança.
Figura 11 – Prato em faiança.
Figura 12 – Jarrinha com decoração incrustada a quartzo.
Uma cidade em escavação
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Inês Mendes da Silva, Marina Pinto
Em suma, estas evidências apenas concretizam o que as fontes documentais há muito referem: os rols dos confessados (séc. XVII) indicam que foi precisamente nesta época e nesta área limítrofe da cidade de Lisboa que se estabeleceu a grande maioria dos oleiros lisboetas. Note-se que, desde o séc. XV, e até em períodos mais recuados, surgem referências constantes a esta actividade económica que, neste bairro em particular, terá sido iniciada pela comunidade islâmica sendo que, gradativamente, foi sendo adoptada – e monopolizada – pelos artesãos cristãos que se foram instalando na zona. Aos poucos, com o avanço do conhecimento produzido pelas diversas intervenções arqueológicas realizadas nesta área, vai-se desenhando o Bairro das Olarias.
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3.
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
1. Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade Lídia Fernandes
2. A cerâmica de engobe vermelho de Lisboa Elisa de Sousa
3. Dados preliminares de uma intervenção arqueológica nos antigos Armazéns Sommer, Lisboa (2014-2015) - Três mil anos de História da cidade de lisboa Ricardo Ávila Ribeiro, Nuno Neto, Paulo Rebelo, Miguel Rocha
4. As termas romanas às portas de Alfama Vanessa Filipe, Raquel Santos
5. A cerâmica comum de produção local e regional do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa. Os contextos fabris Carolina Grilo
6. Presença da ocupação romana no Aljube de Lisboa Clementino Amaro, Eurico de Sepúlveda
7. A Cerca Fernandina: das Portas de Sta. Catarina ao Postigo do Duque – Lisboa Nuno Neto, Paulo Rebelo, Vanessa Mata
8. Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa: o lanço oriental entre a Alcáçova do Castelo e o Miradouro de Santa Luzia Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
9. Perspectivas arqueo-biológicas sobre a Necrópole Islâmica de Alfama Vanessa Filipe, Alice Toso, Joana Inocêncio
10. A Intervenção Arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras” (Lisboa) Sofia de Melo Gomes, Mónica Ponce, Victor Filipe
11. Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos: a cultura material de uma lixeira da primeira metade do século XVIII Inês Pinto Coelho, Tiago Silva, André Teixeira
12. Casa da Severa, Memórias arqueológicas de um espaço (Largo da Severa n.º 2, Mouraria, Lisboa) Ana Caessa, António Marques, Nuno Mota
13. Rua do Comércio nº 1 a 13, Lisboa: metamorfose espacial Alexandra Krus, Isabel Cameira, Márcio Martingil
14. Testemunhos Arqueológicos na Rua do Jardim do Regedor nº 10 a 32, Lisboa Márcio Martingil
15. Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos Carlos Boavida
16. Fragmentos da mesa nobre de uma cidade em transformação: porcelana Chinesa num contexto de terramoto da Praça do Comércio (Lisboa) Sara Ferreira, César Neves, Andrea Martins, André Teixeira
17. Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
José Bettencourt, Cristóvão Fonseca, Tiago Silva, Patrícia Carvalho, Inês Coelho, Gonçalo Lopes
18. Identificação e caracterização de uma estrutura seiscentista: O Baluarte do Terreiro do Paço César Neves, Andrea Martins, Gonçalo Lopes
19. A rampa dos escaleres reais da Cordoaria Nacional: primeiros sinais do fim do Império
Mónica Ponce, Marta Lacasta Macedo, Alexandre Sarrazola, Teresa Alves de Freitas
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
A reabertura do Museu de Lisboa – Teatro Romano em Setembro de 2015, ocorreu após dois anos de encerramento. As obras realizadas no local foram suscitadas pela finalização dos trabalhos arqueológicos implementados no interior do espaço museológico. As áreas intervencionadas situaram-se no pátio da habitação oitocentista e na zona subjacente a esta onde, em 2001, foi instalado o museu. As intervenções arqueológicas permitiram a descoberta de importantes vestígios que abarcam uma longa diacronia que se estende desde o séc. IV a.C. à actualidade. O novo projecto de museografia pretendeu reflectir esta intensa ocupação humana, ilustrando os períodos mais marcantes da história do local. A perspectiva didáctica que se pretendeu promover sublinha a complexidade arqueológica detectada e as particularidades da actividade arqueológica urbana mas tornando-a perceptível ao visitante. No entanto, o mote desta exposição e, afinal, a missão do próprio Museu de Lisboa – Teatro Romano, é a investigação do monumento romano e, naturalmente, da cidade romana onde foi edificado. O conhecimento que hoje se tem sobre as características técnicas, construtivas e decorativas empregues na sua edificação e o engenhoso sistema de muros de contenção realizados com vista à sua implantação a meia encosta, permitem novas considerações sobre este monumento construído nos inícios do séc. I d.C. O objectivo deste museu é, assim, um maior e mais aprofundado conhecimento do teatro, do seu estabelecimento e da sua história, que se confunde com a própria evolução da cidade de Lisboa. O objectivo propagandístico subjacente a este edifício faz do teatro romano de Felicitas Iulia Olisipo um verdadeiro emblema da cidade romana e o qual se poderá transformar num ícone da cidade actual. PALAVRAS-CHAVE:
Museu, teatro romano, arqueologia, arquitectura, Lisboa.
ABSTRACT:
The Museu de Lisboa – Teatro Romano reopens in September 2015 after a two-year renovation. The works carried out were raised by the accomplishment of the archaeological works implemented within the museum space. The interposed areas stood in the nineteenth century housing patio and in its underlying area where, in 2001, the museum was raised. The archaeological excavations led to the discovery of important remains covering a long diachronic line, from the 4th century BC to the present. The new museological concept aims to reflect the intense human occupation by illustrating the most significant periods in History. The didactic perspective was created to make the archaeological complexity and the features of urban archaeological activity more reachable to the visitors. Ultimately, the final goal of this exhibition, just as the mission of Lisbon’s Museum - Roman Theater itself, is the discovery and understanding of the Roman Theater, thereby the old Roman city walls, whereas the ancient amphitheater was located. The knowledge of the technical and decorative techniques employed in this construction, as well as the ingenious system of retaining walls created to build up the hillside, provided a new vision on roman archaeology, through this monument built in the early1st century A.D. Finally, this Museum aims to create a larger and deeper knowledge of the Theater, its foundation and history, which, at some point, corresponds to the evolution of Lisbon city itself. The Roman Theater Felicitas Iulia Olisipo, as a true emblem of the Roman city, also aims to become an icon and a propaganda symbol of Lisbon heritage. Key words:
Museum, roman-theater, archaeology, architecture, Lisbon.
Museu de Lisboa – Teatro Romano. Nave central do espaço museográfico
3.1 Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade
Lídia Fernandes
Arqueóloga. Coordenadora do Museu de Lisboa - Teatro Romano, EGEAC lidiafernandes@egeac.pt
Introdução A reabertura do agora denominado Museu de Lisboa – Teatro Romano, inaugura um novo período na vida deste monumento e finaliza, igualmente, um longo percurso de descoberta, investigação e interpretação que teve início há mais de dois séculos. O presente texto tem como objectivo o de rever a história da descoberta deste monumento, focando algumas das múltiplas vicissitudes pelas quais passou mas, especialmente, apresentar o que de mais relevante agora se pode ver no museu, após dois anos de encerramento. As várias escavações arqueológicas que tiveram lugar no interior do museu e no interior do edifício cénico, trouxeram novos dados sobre o teatro e sobre a riquíssima história desta zona da cidade, que nos permite reconstituir a narrativa histórica do monumento cénico, de como se implantou na topografia natural desta zona e, afinal, como foi construído. Paralelamente, conseguimos agora perceber o que existia nesta área antes da sua construção e, igualmente, como ele desapareceu quando deixou de estar em funcionamento. Sublinha-se neste “novo museu”, a existência de novas áreas arqueológicas as quais são agora consideradas, também elas, como um objecto, espólio de um local, sendo que a sua conservação foi o factor primordial a assegurar, mas sem que fosse esquecido, no restauro implementado, as marcas da sua história, os testemunhos da renovação, alteração e, em simultâneo da sua devastação e abandono. Este museu integra um misto de espaços exteriores e interiores, o que possibilita uma sucessiva descoberta das áreas escavadas e do modo como as estruturas conservadas se vão sucedendo no espaço (Fig. 1). É esta multiplicidade de estruturas arqueológicas mas também de horizontes cronológicos que suscita um maior interesse na visita
no interior do museu. Estas ruínas, agora visitáveis, podem ser olhadas, admiradas e revistas em várias perspectivas. 1. A descoberta do teatro 1.1. Do longínquo ano de 1798 até à década de 1990
A descoberta das ruínas do teatro romano deu-se em Abril de 1798, na sequência das obras de reconstrução da cidade de Lisboa depois do grave cataclismo que a assolou no dia 1 de Novembro de 1755. A descoberta terá sido então protagonizada por Manuel Caetano de Sousa (FABIÃO, 2013, p. 389-409), mas terá sido Francisco Xavier Fabri, o arquitecto da escola de Bolonha que veio para Portugal a pedido do Bispo do Algarve (CARVALHO, 1979), a realizar o primeiro levantamento gráfico das ruínas então colocadas a descoberto. Após várias tentativas por parte deste arquitecto, com vista à preservação das ruínas in situ - conceito absolutamente estranho aos arquitectos nacionais cuja noção de salvaguarda do património se resumia à guarda de objectos - o contexto social e político de então não foi favorável a tal intento. A fuga da família real para o Brasil e as invasões napoleónicas, conjuntura que se delineia precisamente em 1807, fazem com que as ruínas do teatro se apaguem da memória e desapareçam, por muito tempo, por baixo de um novo edifício que então se constrói no local (Fig. 2). Apenas na década de 1960 se reinicia um longo processo de redescoberta do monumento através de intervenções arqueológicas, inicialmente levadas a cabo por D. Fernando de Almeida em 1964 (1965, p. 561-
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Figura 1 - Planta de localização do Museu de Lisboa – Teatro Romano, encontrando-se assinaladas as várias campanhas arqueológicas.
571) e depois, entre 1965 e 1967, por Irisalva Moita (1970, p. 7-37). É na pessoa desta investigadora que se consegue então uma das principais vitórias da arqueologia portuguesa. Através das escavações realizadas consegue-se delinear a área originalmente abrangida pelo teatro romano. Este dado é fundamental pois será Irisalva Moita que intercederá junto do então presidente da edilidade, General França Borges, de forma a justificar a compra dos edifícios que então se sobrepunham ao monumento romano.
Figura 2 - Edifícios que se sobrepunham ao teatro romano e onde se realizaram as primeiras campanhas de escavação na década de 1960 (Arquivo Municipal de Lisboa - nº inv.PT-AMLSB-CMLSBAH-PCSP-004-EDP-000935).
Se pensarmos que sete edifícios são então comprados, sendo quatro imediatamente demolidos para permitir a escavação arqueológica e se associarmos a este cômputo também um terreno, sem edificações, igualmente adquirido com o mesmo objectivo, é impossível não concluir pela grandeza e importância deste projecto de criação de uma reserva arqueológica. Este contexto ganha contornos de ineditismo se pensarmos que, ainda que tal processo se tenha iniciado durante o Estado Novo, apenas foi finalizado no mesmo ano da Revolução do 25 de
Figura 3 - Perspectiva de nascente para poente das estruturas arqueológicas do teatro romano após a escavação da década de 1960 (Museu de Lisboa).
194 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade
Abril de 1974, altura em que se procede à expropriação dos imóveis e ao realojamento da população (FERNANDES, 2007, pp. 28-29). É curioso sublinhar, aliás, o eclodir de alguns protestos da população que aqui habitava, agora com maior consciência reivindicativa propiciada pela recente “luta dos cravos”. Por esta e outras razões, o ímpeto de aquisição de imóveis interrompe-se, ainda que Irisalva Moita tivesse continuado a insistir na compra de outros quatro edifícios. Não teve, no entanto, apoio da Câmara Municipal de Lisboa agora que os ventos da revolução apontavam para outros caminhos mais urgentes que os da salvaguarda do património arqueológico (Fig. 3). Apenas em 1989 nova parte do teatro é colocada a descoberto (FERNANDES, 2007, p. 30), concretamente a zona das bancadas, coincidente com a parte superior da imma cavea, tendo então sido igualmente descoberto um dos vomitoria do teatro e o corredor de circulação intermédio (praecintio) que separaria a imma da media cavea. São então igualmente descobertas algumas das infra-estruturas artificiais das bancadas do teatro, concretamente, os grandes muros que suportariam os degraus de assento, ainda que muito destruídos e somente reconhecíveis pelo respectivo embasamento. No entanto, tais estruturas são absolutamente determinantes para a realização de uma planimetria do teatro e uma estimativa da dimensão total do monumento. Estes dados são reconhecidos também nos edifícios do lado norte da Rua da Saudade, dois dos que haviam sido comprados, e imediatamente demolidos, na década de 1960. Devido a estes trabalhos fica encerrada ao trânsito viário um troço da Rua da Saudade, que ainda hoje assim permanece, apenas se mantendo, através de passadiço metálico, o trânsito pedonal. A área do lado norte desta artéria fica vedada por um tapume, que ainda hoje permanece, uma vez que as estruturas colocadas a descoberto, são de difícil interpretação e visualização por quem passa no actual passadiço metálico (Fig. 4). 1.2. O primeiro museu dedicado ao teatro e a investigação realizada de 2001 a 2011
A decisão da criação de um museu dedicado ao monumento, a ser instalado num dos edifícios que haviam sido adquiridos na década de 1960, obrigava a uma intervenção arqueológica que possibilitasse a implementação do projecto de arquitectura. Um outro edifício, situado a sul do primeiro, foi igualmente aproveitado e adaptado a museu. O projecto de arquitectura foi da autoria da Arqtª Daniela Ermano e contemplou a criação de uma ligação provisória entre estes dois imóveis. As peças então em exposição foram, na sua grande maioria, elementos arquitectónicos recolhidos na década de 1960 por Fernando de Almeida e Irisalva Moita, assim como algumas cerâmicas que, então, também haviam sido exumadas por esta investigadora. Destacavam-se no museu, algumas das pedras do antigo muro do proscaenium, que ostentavam parte da inscrição que, numa única linha, corria na parte superior das mesmas (FERNANDES, 2005, pp. 29-40; FERNANDES, CAESSA, 20062007, pp. 83-102), assim como uma das duas estátuas de sileno que haviam sido recolhidas no séc. XVIII.
Em Fevereiro de 2001 iniciam-se novas escavações na área do museu motivadas por um objectivo técnico que pretendia saber da possibilidade de instalar um elevador no canto sudoeste do edifício da Rua de S. Mamede nº 3-a. Deste modo, as escavações são aqui realizadas, a sul da rua onde, em 1964, se haviam iniciado os primeiros trabalhos de escavação. A partir deste momento, as intervenções arqueológicas prolongaram-se, num total de quatro campanhas (2015, 2006, 2010 e 2011) e com uma duração total de oito meses. A iniciativa de constituir um museu monográfico, dedicado ao monumento cénico cedo se verificou não corresponder à verdadeira vocação deste equipamento. A riqueza arqueológica que se veio a constatar, quer pela escavação da área subjacente ao edifício acima mencionado quer pela intervenção do jardim anexo, numa área total com cerca de 400m², mostrou ser demasiado rico para se circunscrever a esta vocação museal. Teremos oportunamente de, ao longo do texto, explicitar os principais achados que aqui ocorreram e que permitem hoje, reescrever a história deste sítio. A realização de outras campanhas na envolvente do teatro, como aconteceu em 2009 com duas sondagens realizadas no Pátio do Aljube e junto à fachada sul do museu (Rua Augusto Rosa) possibilitaram também um conhecimento mais completo não apenas do monumento mas, de igual modo, da história desta parte da cidade, da envolvente do teatro antes e depois da vida deste monumento cénico. 1.3. O encerramento do museu em 2013 e os novos conteúdos para a criação de uma exposição de longa duração
O encerramento do museu em Maio de 2013 teve como objectivo a adequação do espaço às novas estruturas arqueológicas colocadas a descoberto. Após doze anos de escavações e igual período dedicado à investigação do monumento, assim como ao estudo do espólio resultante de tão grande conjunto de intervenções, o conhecimento sobre este local alterou-se por completo evidenciando um inesperado enriquecimento. Este fecho temporário do museu permitiu, igualmente, a concretização de um antigo projecto, a realização de sondagens na própria rua, o que apenas foi conseguido pelo encerramento temporário da mesma durante as obras de engenharia no interior do museu, em consequência da instalação de uma grua no leito da via. Por outro lado, quer o acompanhamento das obras quer a conclusão dos trabalhos de escavação no interior do teatro – implementados entre Fevereiro e Março de 2015 e que permitiram concluir a escavação arqueológica feita entre 1989 e 1993 – foram dois aspectos cruciais para o melhor conhecimento do teatro romano de Felicitas Iulia Olisipo. A reabertura do museu a 30 de Setembro de 2015 foi, deste modo, o fim de um longo corolário de trabalhos arqueológicos e, essencialmente, de investigação. A reabertura constituiu, simultaneamente, o início de um novo caminho, que se espera igualmente duradouro e prolixo, no sentido de enriquecer ainda mais o conhecimento histórico desta zona da cidade de Lisboa.
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Figura 4 - A mesma perspectiva da imagem anterior mas no final da década de 1990 após as intervenções arqueológicas realizadas entre 1989 e 1993. No lado direito, já se encontrava intervencionada a Rua da Saudade conservando-se múltiplas estruturas dos sécs. XVI-XVIII (José Avelar / Museu de Lisboa).
Figura 5 - Escavação arqueológica realizada no Pátio do Aljube em 2009 observando-se, no fundo, estruturas da Iª Idade do Ferro (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa - Teatro Romano).
196 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 6 - Forno de produção cerâmica, observando-se um dos pavimentos composto por fragmentos cerâmicos da IIª Idade do Ferro e argila. Do lado esquerdo da imagem uma estrutura em pedra vã, possivelmente de cronologia republicana, responsável pela desactivação da estrutura de combustão. Campanha arqueológica de 2010 (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa - Teatro Romano).
Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade
Com efeito, o que hoje se conhece do teatro ultrapassa em muito o edifício romano. Estruturas da IIª Idade do Ferro e de Época Republicana confirmam uma ocupação efectiva do local anterior à edificação do monumento cénico. As origens desta história ainda recuam mais. Com efeito, teremos que retroceder à Iª Idade do Ferro para iniciarmos a história desta parte precisa da cidade. Não que ela ainda não seja mais antiga, como o confirma a presença de um machado de pedra polida no local, mas para contextos mais fidedignos, será no séc. VIII a.C. que se inicia este enorme e longo périplo. Esta cronologia foi fornecida pela sondagem arqueológica realizada no Pátio do Aljube, um pequeno pátio por onde, até 2013, também se fazia a entrada para o então Museu do Teatro Romano (Fig. 5). A pequena escavação aqui realizada permitiu a detecção de estruturas em pedra vã, concretamente uma zona de lareira. “Aqui por motivos que, de momento, nos escapam, preservaram-se estruturas de pedra seca, possivelmente socos de muros em adobe de cariz habitacional, deixando antever fases mais antigas do povoado pré-romano aberto ao Mediterrâneo. É este aglomerado habitacional que, a partir de meados do século VIII a.C., irá interagir como interlocutor privilegiado na foz do Tejo, com os mercadores fenícios que, estabelecidos numa primeira fase na área de Cádis e Málaga, aportam a estas costas em busca de novas oportunidades comerciais e de expansão da sua política colonial. O resultado dessa interacção, de contornos ainda pouco claros, é a franca expansão e dinamismo comercial do seu porto a partir do século VII a.C., perceptível através dos produtos importados das mais diversas áreas do mediterrâneo, que chegam a Olisipo” (FERNANDES et alii, p. 164). Este tipo de ocupação, que aqui ficou preservada, é o oposto que se verifica no interior do museu, ou seja, na área imediatamente a sul do teatro, junto à estrutura do post scaenium, escavação apenas possível por se tratar do pátio/jardim pertencente ao nº 3B da Rua de S. Mamede. A ocupação que aqui se verifica, com a detecção de dois fornos de produção cerâmica da IIª Idade do Ferro (Fig. 6) permite concluir igualmente por uma ocupação efectiva no local, ainda que aqui se deparem dados contrastantes dos anteriormente citados (Pátio do Aljube) pelo facto de revelarem uma “… descontinuidade existente entre o urbanismo proto-histórico e o novo desenho da cidade clássica, assistindo-se a profundos desaterros e eliminação de preexistências (…). [Por outro lado,] “A análise do conjunto de cerâmicas de engobe vermelho pré-romanas provenientes das escavações do teatro romano de Lisboa, apesar de recolhidas em níveis de deposição secundária, datados na sua maioria de época romana, reportam-se a uma fase antiga dentro da Idade do Ferro, correspondendo, face aos paralelos estabelecidos, a uma cronologia que se situa entre os meados do século VIII e o séc. V a.C.” (CALADO et alii, 2013, p. 644). O aparecimento destes dois fornos, apesar de bastante residuais, localizados na parte mais a sul, e também mais baixa, do pátio do actual museu, levou à sua preservação. Implantam-se a cerca de 9 m de profundidade e foram escavados nas margas naturais do local, havendo--se preservado somente parte da câmara de
Figura 7 - Pequena estatueta de bronze encontrada na campanha arqueológica de 2005 na zona do pátio do museu (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa - Teatro Romano)..
combustão de um dos fornos (FERNANDES, COROADO, em publicação). Decerto que as zonas de colocação dos rejeitados de oleiro se situariam para sul, aproveitando a pendente do terreno ainda que tenha precisamente nesse local que, mais tarde se construíram os patamares de contenção do teatro. Voltando ainda à IIª Idade do Ferro, não podemos deixar de mencionar um achado assaz curioso que ocorreu na zona imediatamente adjacente ao muro do post scaenium do teatro onde foi recolhida uma interessante peça da torêutica antiga, um veado, cervus elaphus (Fig. 7). A produção desta peça obedece a um critério próprio, de tendências arcaicas, reconduzindo‑o ao denominado estilo geométrico zoomórfico da pequena plástica do mundo grego. A estatueta tem as pernas fracturadas, com excepção da anterior direita. É um bronze de fundição, pela técnica da cera perdida, num só molde, maciço e de qualidade razoável. A modelação reflecte as produções do mundo arcaico caracterizadas por um dualismo simplificado e abstracção geométrica, profundamente enraizado numa tradição figurativa da Ática ou Beócia. A sua similitude com a iconografia de algumas representações conhecidas ainda que se assinale algum diferenciamento do tratamento da cabeça e do corpo do cervídeo do teatro, autoriza a proposta de uma produção possivelmente abarcando os séculos IV-II a.C., respeitando, em parte, os protótipos da plástica grega dos séculos VII-VI a.C. Para a sua identificação não prescindimos, pois, da vertente religiosa, das práticas votivas e de todo o carácter simbólico adjacente que abarca, motivos pelos quais, o consideramos uma figura com função cultual, o frequente ex-voto. A sua presença no teatro romano poderá testemunhar a crença da elite olisiponense e por consequência, o sentimento religioso da época, caso se considere que esta peça se relacione com este espaço público. Segundo esta perspectiva interpretativa, é forçoso colocar a hipótese da estatueta bronzínea constituir uma oferenda, uma prece às difíceis obras que se iniciavam e, enfim, um acto de consagração do monumento. Convém referir que, os terrenos argilo-siltosos onde uma parte substancial do alicerce do post scaenium assentou, foram previamente nivelados e evidenciam queima localizada, podendo-se interpretar tal acção como um
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ritual de consagração. A queima de terrenos argilosos provoca fumos intensos e desconhecemos qual outra razão, que não a ritual, possa estar subjacente. Colocamos pois a hipótese de ter tido lugar, no preciso local onde se veio a edificar o post scaenium, uma cerimónia sagrada que quase poderíamos aproximar ao suffitio, ou seja, a purificação, pelo fogo e pela água. Ainda que este termo se empregue aos parentes de um defunto, após o enterramento do mesmo, poderá pensar-se numa acção idêntica, de sacralização e de limpeza do espaço onde iria nascer uma obra do Império. Outra hipótese, no entanto, é enquadrar esta peça em épocas anteriores relacionando‑se com uma ocupação efectiva que este local também teve antes da edificação do espaço cénico (FERNANDES, PINTO, pp. 178-180) o que, pelos dados que a seguir referimos, será igualmente plausível. Como acima mencionámos, estes dados sublinham a intensa ocupação desta zona, desde épocas recuadas, que se torna efectiva por parte de uma população que, mercê dos contactos estabelecidos desde há muito, com populações do Mediterrâneo Oriental, aqui reproduzem os modelos importados, introduzindo uma manufactura viva como o comprovam as cerâmicas exumadas. Aqueles fornos cerâmicos representam um centro produtivo a par de muitos outros que, muito provavelmente, terão existido neste centro populacional. Estes dados são, de igual modo, corroborados pelos achados de idêntica cronologia identificados na zona circundante (PIMENTA,
CALADO, LEITÃO, 2005, pp. 313-314; PIMENTA, CALADO, LEITÃO, 2013, pp. 712-723; PIMENTA, SILVA, CALADO, 2013, pp. 712-723). Os fornos de produção cerâmica que, com algum grau de segurança, podem ser integrados entre os meados e os finais da designada IIª Idade do Ferro, foram desactivados pela construção de estruturas em pedra vã, uma delas, construída no interior da câmara de combustão, reaproveitando parcialmente as argilas de base como pavimento (Fig. 6, muro do lado esquerdo). A presença de fragmentos de ânforas Dressel 1 e de cerâmicas cinzentas com decoração em retícula brunida nos primeiros depósitos de abandono indica cronologias facilmente associadas aos primeiros momentos da romanização. Tal situação é igualmente comprovado pelo aparecimento de uma outra estrutura de difícil interpretação, mas que pensamos ser de carácter habitacional, que inutilizou definitivamente as estruturas anteriormente descritas e na base da qual foram exumados fragmentos de cerâmica campaniense e ânforas do tipo Mana C2, subjacentes ao pavimento (Fig. 8). Estas estruturas foram as responsáveis pela total desactivação dos fornos anteriormente descritos (FERNANDES, 2011, p. 275). Esta ocupação de época republicana encontra-se imperfeitamente conhecida uma vez que estes níveis foram, por sua vez, destruídos pela construção dos muros paralelos que integravam o sistema de engenharia implementado no local para suster a enorme construção do teatro romano
Figura 8 - Vista superior das estruturas arqueológicas exumadas na campanha arqueológica de 2010 (pátio do museu) observando-se na parte inferior o forno da idade do ferro e, na restante área a possível estrutura habitacional de época romana republicana (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa - Teatro Romano).
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Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade
de Olisipo. Esta edificação, datável das primeiras décadas do século I d.C. - uma vez que terá sido levado a cabo por diversas fases - anulou a ocupação anterior desta vertente, modificando profundamente a paleotopografia local. Apesar destas pré-existências não terem condicionado as construções posteriores, observamos que a ocupação desta encosta onde se implantou o edifício cénico, era intensa, registando uma sucessão edificativa ate ao momento insuspeita. Com a ocupação romana, como vemos, a implantação de um urbanismo neste antigo aglomerado processou-se de forma abrupta, sendo condicionada mais pela topografia do que pelas construções pré-existentes. O caso do teatro, mais uma vez, é paradigmático. A transformação citadina que se vai operando neste local após a desactivação do teatro, enquanto espaço cénico, continua a ser condicionada por aquela grande construção de tal forma que o urbanismo actual, de algum modo, a sua herança. Estes aspectos fornecem um contributo importante sobre o conhecimento da cidade e sobre a questão da apropriação de tais espaços públicos em épocas posteriores. O fenómeno de abandono e reconversão de equipamentos lúdicos em finais do Império e na Antiguidade Tardia, apresenta-se comum às restantes províncias da Hispania ocorrendo, em alguns casos, em tempos muito recuados, logo a partir dos finais do séc. II d.C. A reconversão destes espaços em épocas tardias poderá encontrar no exemplo do teatro romano de Segobriga um padrão para a reocupação sistemática destes edifícios, onde, entre os séculos IV-VII d.C., as partes laterais do teatro e os corredores das bancadas documentam uma ocupação habitacional (ABASCAL PALAZÓN et alli, 2006, p. 319), ocorrendo situações semelhantes nos teatros de Bilbilis (MARTIN-BUENO et alli, 2006, p. 243), Itálica (RODRIGUEZ, 2006, p. 163) ou em Baelo Claudia (FINCKER, SILLIÈRES, 2006, p. 85). Na recente campanha arqueológica realizada na parte nascente do teatro – em zona coincidente com o antigo aditus maximus – ficou bem evidenciado que a zona havia sido totalmente desmontada / destruída antes da época islâmica. A presença de três silos, escavados nos sedimentos existentes no local mas que romperam o afloramento rochoso documenta, para além da própria destruição por eles causada, que a área, já então, se encontraria abandonada (Fig. 9). Os dados recolhidos na escavação do único vomitorium identificado até ao momento, confirma o facto de, já em período tardo-romano, possivelmente a partir do séc. V d.C., se ter dado o abandono do edifício público. O aparecimento, em 1990, de “… um bojo e fundo de ânfora, da forma Benghazi Late Roman Amphora 2/Keay 65/ Classe 43 de Peacock & Williams, com produções entre o século IV e inícios do século VII, com pico produtivo no século VI (PEACOCK, WILLIAMS, 1986) (…) atesta assim, uma ocupação efectiva do teatro neste período, anunciando uma reconversão funcional do antigo edifício cénico” (FERNANDES, FERNANDES, 2013, pp. 238 e 239). A finalização da escavação desta área, em 2015, confirmou a presença de uma unidade habitacional, concretamente uma pequena zona de lareira onde foram exumados alguns elementos cerâmicos a qual aproveitou
Figura 9 - Campanha arqueológica de 2015 quando se finalizou a escavação no interior do teatro. Zona sudeste da área das ruínas arqueológicas, observando-se, de norte para sul o afloramento rochoso aplanado para a colocação de silhares, já removidos, e a violação do afloramento devida à abertura de um silo do séc. XII (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa - Teatro Romano).
os grandes muros que delimitam uma das entradas das bancadas, para aí se instalar. Os espaços públicos abandonados foram, deste modo, reaproveitados por uma população de baixos recursos que deles se foi apropriando, alterando-os, destruindo-os, reutilizando a matéria-prima empregue na sua construção. Poucos séculos depois decerto que o casario já teria absorvido o monumento cénico, privatizando-o, alterando-o e fazendo-o desaparecer da estrutura urbana. Um facto é que nos finais do séc. XII nem mesmo a pedra estaria disponível para ser reutilizada em outra edificação uma vez que, quando na Sé de Lisboa, se procura pedraria para finalizar uma campanha de obras, a mesma terá de ser obtida em Sintra uma vez que a não havia nas proximidades (FERNANDES, 1994, pp. 239-242; FERNANDES, 2007, pp. 33). Ainda se poderia pensar que as grandes estruturas de contenção do teatro, situadas a sul do monumento cénico, tivessem permitido a utilização da sua pedra quando aquele monumento deixou de estar em funcionamento. No entanto, e apesar de tal também ter ocorrido, deu-se paralelamente um intenso reaproveitamento destas infraestruturas, como o comprova a instalação de uma unidade habitacional no interior da estrutura do post scaenium, que aproveitou estes grandes muros para a sua acomodação. A violação da área do pavimento do opus caementicium, em que se encontrava realizada a estrutura do teatro, destinou-se à abertura de um silo, em paralelo ao aproveitamento da área entre muros como área habitacio-
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nal, comprovando assim que, por todo o lado, o edifício público foi reaproveitado, desmontado e camuflado. Os conjuntos cerâmicos exumados atestam a continuidade de ocupação do antigo teatro romano, o que se verifica tanto no interior do monumento como na sua envolvente, não se registando quebras de ocupação. Assim, no dealbar do séc. XI e na seguinte centúria, esta área da cidade encontrar-se-ia totalmente ocupada, com núcleos familiares aqui instalados, aproveitando ao máximo as edificações romanas de boa e duradoura construção (FERNANDES et alii, em publicação). Igualmente, teremos que equacionar nesta evolução diacrónica, a presença no local e na sua envolvência, de vários elementos arquitectónicos de cronologias amplas que se estendem desde o período tardo-romano (séc. IV-V d.C.) a épocas altimedievais (FERNANDES, FERNANDES, 2013, pp. 225-243). Curioso sublinhar, em relação a este aspecto, o facto de a maioria dos exemplares que referimos corresponderem a impostas o que nos leva a relacionar tais peças, de imediato, com edifícios religiosos. 2. O significado do teatro na cidade de Felicitas Iulia Olisipo 2.1. O modelo cénico
Por diversas vezes analisámos estes aspectos pelo que seremos sintéticos em relação à sua explanação. É indiscutível a semelhança que este teatro estabelece quer com o de Mérida quer, especialmente, com o de Medellín. Quanto a este último os paralelos são por demais evidentes, sendo pertinente afirmar que, muito provavelmente, os responsáveis de uma obra o foram da outra.
O modelo seria, naturalmente, o da capital da província Augusta Emerita. Mandado construir por ordem directa de Agripa, o braço directo de Augusto e com o seu beneplácito, tratou-se de uma obra edificada nos primeiros anos da cidade, correspondendo a uma das muitas obras de de construção da capital conducente ao estabelecimento de edifícios lúdicos que acompanhassem o seu crescimento. Quando Emerita é fundada em 25 a. C., com pouco mais de 6.000 habitantes – correspondentes à primeira deductio levada a cabo pelo legado imperial Públio Carísio, o cômputo das legiões destinado a habitá-la (DE LA BARRERA, 2014, p. 57) – decerto que os edifícios públicos seriam bem mais necessários pelo que simbolicamente representavam do que o seriam em termos práticos de utilidade pública. O teatro, construído em 16-15 a. C. correspondeu, a par do anfiteatro, uns anos mais tardio, a um projecto estruturante que dignificasse a capital dotando-a dos monumentos que lhe garantiam o novo estatuto e lhe granjeavam dignidade. A capacidade de cerca de 5.500 espectadores que o teatro acolhia apenas foi atingida mais tardiamente uma vez que, originalmente, a cavea seria bem mais simples. Também mais singela seria a fachada cénica dos primeiros tempos. A este propósito é de mencionar que, recentemente, Nicole Röring apontou uma interpretação para a primeira frente cénica do teatro de Mérida uma vez que a que hoje se observa é claramente mais tardia e atribuível a tempos de Cláudio. A sua interpretação vai no sentido de a fachada original ter sido desmontada para uma actualização do reportório decorativo e escultórico em meados do séc. I d.C. tendo esses materiais sido reutilizados no pórtico post scaenium, onde hoje, aliás, se podem contemplar (RÖRING, 2009, pp. 163-410) (Fig. 10).
Figura 10 - Perspectiva de noroeste para sudeste da área do post scaenium do teatro romano de Augusta Emerita. Observa-se a colunata que rodearia o jardim central, que é composta, muito possivelmente, pelas colunas que ornamentariam a primeira fachada cénica do teatro (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa - Teatro Romano).
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Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade
A primeira fachada do teatro emeritense seria semelhante às dos teatros que ele próprio influenciou. Medellín e Olisipo apresentam, deste modo, fachadas feitas em pedra local com revestimento a estuque, tal como é ilustrado pelos belíssimos capitéis jónicos de Medellín que conservam o respectivo acabamento estucado ainda com vestígios de pintura (MATEOS, PICADO, 2011, pp. 374-420). A pertinência desta interpretação é evidente uma vez que o peristilo que aí se observa possui capitéis jónicos iguais aos das duas cidades mencionadas, Mettelinum e Olisipo, sendo que em ambos os casos não se verifica qualquer actualização da fachada cénica, antes se presencia uma renovação parcelar, pontual, referente à parte central do teatro, concretamente a estrutura do proscaenium e do revestimento da orchestra. Em ambos os locais é compreensível que a renovação implementada em épocas posteriores não seja tão ampla e profunda como na capital de província, o que equivale a afirmar que o custo de tais obras terá sido bem mais modesto que em Mérida. No caso de Medellín o destino fulgurante de Emerita ditou o progressivo marasmo daquela urbe, sendo natural que as acções de proselitismo não abundassem. Na verdade, passa a existir um progressivo mas definitivo distanciamento entre Mérida e Medellín, não tendo afluído o dinheiro necessário para a actualização e melhoramentos do teatro desta última cidade (DE LA BARRERA, 2014, p. 57). 2.2. As opções decorativas
Não obstante aquela disparidade, económica mas também social e cultural, entre Mérida e Medellín, registam-se neste último local algumas renovações, como parece ter acontecido em relação ao sacrarium construído na zona central da imma cavea, possivelmente da época de Trajano (MATEOS, PICADO, 2011, p. 393), ou ainda, em relação a elementos escultóricos que terão actualizado o reportório imagético do monumento, desta vez talhados em mármore e que “… indican la existencia de reformas y transformaciones en la fisonomía del edificio fechadas en época julio-claudia y a mediados del s. II” (idem, p. 401). No caso de Olisipo constata-se igualmente a existência de reformas ao longo da vida do edifício. Apesar de desconhecermos muitas delas, há algumas certezas cronológicas, pelo menos a referente à remodelação realizada na estrutura do proscaenium, como é comprovado pela inscrição que aí corre na sua parte superior e que nos indica o preciso ano de 57 d.C. para a sua realização, como teremos oportunidade de analisar com maior detalhe. Esta renovação abrangeu também o frons pulpitum, assim como o pavimento da orchestra. Esta actualização arquitectónica poderá ter sido maior do que inicialmente se supunha uma vez que também os aditi maximi terão por ela sido abrangidos, ainda que não em termos estruturais (FERNANDES, et alli, 2015, p. 208210). Um segundo momento é documentado nos finais da primeira centúria, traduzido pela presença de vários fragmentos de capitéis em calcário branco, homogéneo, que não seriam estucados afastando-se assim, dos modelos decorativos dos inícios do séc. I d.C. e apontando os finais dessa centúria ou inícios da seguinte para a sua realização (FERNANDES, 2011, pp. 274-275).
Decerto não terão ficado por aqui as remodelações implementadas no monumento cénico de Olisipo. Sabemos, por exemplo, que a zona inferior ao palco (hyposcaenium) sofreu acções de restauro ainda que seja impossível, por ora, precisar cronologicamente tal intervenção. Deste modo, assistimos nos teatros de Medellín e de Lisboa a renovações parciais da sua estrutura, plasmadas, maioritariamente, em aspectos mais decorativos que estruturais. Em ambos os casos, pensamos que - à semelhança do que acontece em Lisboa em 57 d. C. – terão sido personagens ilustres, beneméritos da cidade, que terão financiado tais obras. Em Mérida, tais renovações são muito mais amplas e assiste-se à completa transformação da fachada cénica e à substituição da ordem arquitectónica empregue que passa a ser a coríntia em vez da ordem jónica. Depara-se natural que o mesmo modelo de teatro seja seguido pelas cidades do territorium de Augusta Emerita, o mesmo acontecendo em relação a outras infra-estruturas básicas ou a edifícios religiosos e de representação. Se a renovação da fachada do teatro de Mérida é mandada fazer em época de Cláudio, como referido, possivelmente por ordem imperial, não assistimos a esta intervenção nos dois teatros da província. Se, por um lado, tal facto obriga a concluir que o poder central não estaria vocacionado para contribuições tão elevadas em cidades que não eram capitais de província ou sequer de conventus, permite, em simultâneo, concluir que as elites destas cidades seriam suficientemente fortes para garantir a actualização da imagética ornamental dos seus edifícios públicos. Outro aspecto relevante da obra de renovação da parte central do teatro de Olisipo é o facto de aí podermos documentar a primeira marca da marmorização da zona ocidental da Lusitania. A pedra de lioz, ou o mármore do Alentejo — que encontramos em alguns fragmentos de friso, cornijas, no revestimento do muro do proscaenium, nas placas róseas e cinzentas da orchestra e nas estátuas de silenos — enquadra-se na remodelação que este edifício sofreu em 57 d. C., o que é atestado pela inscrição do seviro augustal Caius Heius Primus (CIL II, 183, 196) gravada no proscaenium (SILVA, 1944, pp. 172-178; FERNANDES, 2005, pp. 29-40; FERNANDES, CAESSA, 2006-2007, pp. 83-102). Igualmente singular é o facto de tal obra corresponder a um acto de proselitismo, uma vez que se trata de uma remodelação mandada fazer e custeada por um particular endinheirado que tem a particularidade de ser um liberto (FERNANDES, CAESSA, 2006-2007, pp. 83-102). A renovação deste espaço público, certamente coevo de idênticos processos urbanísticos / decorativos de outros espaços similares na província — integra-se no que se designa por “política de marmorização”, em curso nas províncias ocidentais e, desde há longo tempo, iniciada no centro do Império. Os exemplos observados em várias construções da Hispânia, salientando-se o caso emeritense pela proximidade geográfica e influencia que a capital de província exercia sobre o território, atestam esse fenómeno sobretudo a partir da segunda metade do século I, processo que alguns autores designam como a passagem de uma “arquitectura militar”, num primeiro momento edificador, balizada cronologicamente entre o século I a.C. e a primeira metade do século I d.C., para o da “arquitectura do mármore” (ALVAREZ MARTÍNEZ, 1992, pp. 90-91).
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Posteriormente, o mesmo autor optou por distinta designação, substituindo a de “arquitectura militar” para “arquitectura em pedra”, termo igualmente adoptado pela escola alemã (ALVAREZ MARTÍNEZ, NOGALES BASARRATE, 2004, p. 304). Alheia a este projecto de remodelação e embelezamento terá ficado a frente cénica, já que não se verifica a substituição da antiga ordem jónica, permanecendo os antigos capitéis, continuando estas peças a desempenhar a sua função, apesar de se integrarem num modelo decorativo que, eventualmente, pode ser considerado como “arcaico”. Este fenómeno, o qual como referido supra tem paralelos hispanos, só poderá ser globalmente entendido pela intenção subjacente de uma reafirmação da antiguidade do próprio monumento, arcaísmo simbólico na manutenção de peças do primeiro momento urbanizador realizado na época do grande pacificador do Império, o Divus Augustus (FERNANDES, 2011, p. 302). 2.3. O teatro como símbolo de poder
Torna-se evidente, quando se olha para o teatro de Olisipo, que os postulados itálicos e os ordenados por Augusto foram aplicados. A presença da proedria, a sua dimensão e disposição em dois patamares, pressupunha a aplicação, decerto já perfeitamente interiorizada, da hierarquização social dos assentos no interior do teatro. Mesmo quando nos recordamos que o edifício, contrariando os preceitos vitruvianos, fora construído não num local plano, antes de grande declive e que, ao invés de proteger as bancadas do ímpeto do vento sul, as virava precisamente para esse lado (Vitrúvio, Livro V, Cap.
II, 2), não podemos deixar de concluir que as restantes recomendações de Vitrúvio foram respeitadas e que a legislação que controlaria o aparato do poder no seu interior seria, além de conhecida, aplicada e defendida. Estas regras foram implementadas aquando da edificação original, não podendo ser atribuídas à remodelação ocorrida em 57 d.C. Com efeito, os negativos que se podem observar in situ ilustram a original existência de silhares neste local (Fig. 11), o que terá levado a que o segundo nível da proedria ficasse mais alto que o menor, feito este em alvenaria, dada a sua pouca altura - ou seja, em opus caementicium, como ainda hoje se conserva, ainda que falte o capeamento final de revestimento o qual, naturalmente, deveria combinar com as pedras cinza e rosa da pavimentação da orchestra, assim como do frons pultitum do proscaenium ou, seguindo os modelos dos teatros da Lusitânia, em mármore branco no murete de separação, o balteus. Estes capeamentos, que não a estrutura construtiva, integram-se na fase de remodelação operada em meados do séc. I d.C. “De hecho, el modelo de edificio que llega a las provincias procede del teatro construido por Pompeyo en el Campo de Marte el año 55 a.C. y de los posteriores de Marcelo y Balbo, augusteos, estructuralmente basados en el primero. Todos ellos reflejan en su morfología las pautas marcadas por dos textos legales: la Lex Roscia Theatralis del año 67 a.C. y sus posteriores enmiendas y impliaciones en la Lex Iulia Theatralis, que puede ser entendida como parte del gran programa de renovación social llevado a cabo por Augusto, enmarcado en los cura morum del 19 a.C. (RODRIGUEZ GUTIÉRREZ, 2001, pp. 79-80).
Figura 11 - Perspectiva de norte para sul da zona central do teatro de Lisboa / Olisipo, observando-se a orchestra e a zona subjacente ao placo. As setas indicam os dois degraus da proedria que faria parte integrante da orchestra (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa - Teatro Romano)..
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Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade
Independentemente da data precisa da edificação do teatro de Olisipo, que infelizmente não possuímos, é clara a sua construção recuada. O projecto de engenharia que, sabemo-lo hoje, permitiu a edificação deste edifício monumental numa zona de grande declive, apenas tem cabimento, em termos construtivos, pela intervenção directa do poder de Augusto. Esta obra, como decerto outras, nas quais também incluímos a construção do criptopórtico entre a Rua da Prata e da Conceição, inscrevem-se num claro momento de monumentalização da cidade, próximo ao da instauração da Pax Romana e da nova administração instaurada por Augusto. O aparelho construtivo empregue em ambos os monumentos é precisamente o mesmo, podendo-se afirmar que inaugura o uso intenso e sistemático do opus caementicium na cidade de Lisboa. No caso do criptopórtico, o emprego deste técnica construtiva poderá adequar-se ao que era comum realizar nos portos romanos, ensinamentos que advêm naturalmente da mão-de-obra militar que, decerto, também aqui se terá presenciado. “La costruzione di un grande impianto há un potente impatto sulla morfologia locale e richiede la traslazione di enorme masse di material e forza lavoro: la logica che vi presiede è chiaramente strategica, anonária, militare o entrambe” (FELICI, 1998, p. 279). Os dados arqueológicos são igualmente claros a este respeito (SEPÚLVEDA, FERNANDES, 2013, pp. 507520; FERNANDES, FILIPE, 2007, pp. 229-253) e, embora seja evidente que a construção do teatro tenha decorrido durante um tempo longo, dada a dimensão da obra em causa, parece-nos evidente que a decisão da sua edificação tenha sido ordenada pelo poder central. Construído a meia encosta, as pequenas edificações existentes, como acima observamos, quer da Idade do Ferro quer da Época Republicana, não detiveram o plano delineado. Mas terá sido precisamente essa escolha do local, que deu origem a um dos planos mais ambiciosos de engenharia efectuado em Olisipo no início do Império, só igualável, provavelmente, pelo enorme esforço construtivo que terá representado a construção do criptopórtico na actual Rua da Prata. Os grandes muros, paralelos entre si, construídos na parte sul do teatro constituíam-se como estruturas de contenção, destinando-se a ficar soterradas (FERNANDES, 2007, pp. 27-39; FERNANDES, PINTO, 2009, pp. 169188; SEPÚLVEDA, FERNANDES, 2009, pp. 139-168). A área tardoz do teatro, com a enorme e altaneira estrutura do post scaenium a marcar a colina, constituiria um verdadeiro emblema da nova ordem política, social e administrativa romana. Esta estrutura subterrânea traduz-se assim, no que se entende por criptopórtico, interpretação a que já nos havíamos referido em publicações anteriores (FERNANDES, 2013, pp. 765-773). Com efeito, se analisarmos o actual edifício do museu é obrigatório correlacionar a sua actual organização interna com a evolução arquitectónica que este espaço sofreu ao longo dos tempos mas, também, com pré-existências determinantes que ditaram a planta que hoje possui (Fig. 12). Assim, pensamos ser bastante verosímil o facto de o pequeno corredor que ocupa longitudinalmente a parte norte do interior do museu poder corresponder a um dos troços desse criptopórtico que terá suportado o tardoz do teatro, e a sua área post scaenium, traduzida por grandes
patamares porticados. Estes patamares traduzem uma solução deveras invulgar quanto à obtenção de espaço na sua ausência, isto é, a criação de zonas planas, em socalcos, que transformavam uma superfície oblíqua como o era a colina de grande declive - em áreas de circulação e de deambulação, locais de excelência imprescindíveis para o convívio social antes e depois dos ludi scaenici. Esta solução foi igualmente propiciada pela topografia local, como se torna bem evidente na maqueta que actualmente se disponibiliza no museu (Fig. 13). Todo o edifício do teatro é, em si, um local por excelência de representação (Figs. 14 e 15). Este facto, que pensamos ter largamente documentado em trabalho recente, onde se reconstitui a paisagem urbana da zona nascente do monumento (FERNANDES et alli, 2015, pp. 203-224), decerto terá sido aplicado em toda a sua envolvente. Não é de estranhar, neste sentido, que a fachada sul tenha tido um tratamento ainda mais cuidado uma vez que, virado a sul, teria ampla visibilidade a todos quantos aportassem à cidade. Este aspecto, aliás, terá sido determinante na escolha da sua implantação. Quem entrava pelo rio Tagus decerto não deixaria de ficar impressionado por este imponente volume e pelos seus terraços. Este marco arquitectónico na cidade terá suscitado a maior atenção por parte da elite olisiponense a qual, como bem comprova a inscrição de Caius Heius Primus, cedo reconheceu o enorme poder de propaganda que este edifício terá constituído. 3. As novas opções do projecto de museologia e museografia Tendo como função dar a conhecer o teatro romano, estudá-lo e divulgá-lo, o actual Museu de Lisboa – Teatro Romano tem também como missão perceber o que está antes e para além dele, funcionando o monumento cénico como ponto de ancoragem da investigação realizada e a realizar. É pelas razões apresentadas que a missão do Museu de Lisboa - Teatro Romano se alicerça no estudo, investigação, salvaguarda e preservação das estruturas arqueológicas que integram o espaço museológico. É também missão deste museu a divulgação deste património, composto pelas ruínas do teatro de época romana, mas também pelas ocupações humanas reconhecidas no local, anteriores e posteriores à construção do monumento romano e respectivo espólio. O profundo conhecimento que se possui sobre esta zona da cidade transforma este equipamento num museu de sítio, possibilitando o usufruto do conhecimento diacrónico do local. Seguindo a noção de museu como espaço de preservação de objectos, protegendo dentro de si obras valiosas, testemunhos da actividade humana e da nossa compreensão / visão do mundo, o novo Museu de Lisboa - Teatro Romano enquadra‑se numa categoria ambígua que lhe confere um carisma distinto. Englobando múltiplos espaços arqueológicos e abrangendo diversos edifícios – originalmente de distintas funcionalidades e cronologias – este museu deve ser entendido como uma janela aberta ao passado e à história da cidade, muito mais que um repositório de testemunhos da acção humana (FERNANDES, 2012-2013, p. 121).
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Figura 12 - A planta do teatro romano sobreposta à planta actual. A encarnado encontram-se assinaladas as estruturas do teatro romano que se encontram a descoberto (Desenho Carlos Loureiro / Museu de Lisboa).
Figura 13 - Maqueta do teatro com a representação das curvas de nível. Estão assinaladas as duas ruas actuais abrangidas pelo monumento: Rua da Saudade e Rua de São Mamede, assim como a Rua Augusto Rosa, a sul, que constituiria, em época romana, o limite dos terraços edificados na parte sul do teatro (maqueta feita por Carlos Loureiro / Museu de Lisboa).
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Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade
Figura 14 - Reconstituição do teatro romano de Lisboa / Olisipo (Desenho Carlos Loureiro / Museu de Lisboa).
Figura 15 - Maqueta do teatro com a representação das curvas de nível. Estão assinaladas as duas ruas actuais abrangidas pelo monumento: Rua da Saudade e Rua de São Mamede, assim como a Rua Augusto Rosa, a sul, que constituiria, em época romana, o limite dos terraços edificados na parte sul do teatro (Desenho Carlos Loureiro / Museu de Lisboa).
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No entanto, este museu constitui-se hoje também como um ponto de partida. O conhecimento que hoje se possui sobre esta zona da cidade, sobre o teatro romano, mas também sobre a ocupação citadina deste local em épocas anteriores à construção do teatro e do que ocorreu depois da sua destruição, constitui um manancial de informação que poderá dificultar, até certo ponto, a sua transmissão. Este museu integra um misto de espaços exteriores e interiores, o que possibilita uma sucessiva descoberta das áreas escavadas e do modo como as estruturas conservadas se vão sucedendo no espaço (Figs. 16 e 17). É esta multiplicidade de estruturas arqueológicas mas também de horizontes cronológicos que suscita um maior interesse na visita ao interior do museu. Estas ruínas, agora visitáveis, podem ser olhadas, admiradas e revistas em várias perspectivas A principal sala do museu, situada no edifício sul, com fachada para a Rua Augusto Rosa (Figs. 18 e 19), congrega vários pontos de interesse e procura organizar cronologicamente a visita, tentando sintetizar as três grandes etapas ou os seus três “macro-momentos” mais marcantes: a ocupação desta área da cidade anterior à construção do teatro, o que abrange uma cronologia desde a IIª Idade do Ferro até à Época Republicana (ou seja, entre os séculos V-III a.C. – séc. I a. C.); a construção do teatro e a sua usufruição, período balizado entre os inícios do séc. I d.C. e o séc. V d.C. que abrange, como tal, a
remodelação implementada na parte central do edifício cénico, ocorrida no ano 57 d. C.; por fim, a história deste sítio após o abandono do teatro. Este último período estende-se até ao séc. XIX, altura em que os actuais edifícios da Rua de S. Mamede são construídos, aproveitando algumas das estruturas do teatro romano. Esta noção de sobreposição estratigráfica a qual define, aliás, a própria descoberta do teatro e a ciência arqueológica subjacente encontram-se também contempladas, de uma forma didáctica, através da colocação de uma “coluna estratigráfica” (Fig. 20) Este ´”novo” museu é maior pois disponibiliza as condições para acolher um público mais alargado. A instalação de uma plataforma elevatória no seu interior, permite unir mecanicamente os três pisos do museu e, deste modo, permitir o acesso a pessoas com mobilidade reduzida (Fig. 16). Mas também outros públicos foram contemplados. A disponibilização de uma bancada com réplicas de algumas peças que se encontram em exposição, as quais podem ser manuseadas livremente, facilitam uma maior proximidade entre o público e os objectos. A existência de legendas em Braille reforça, igualmente, esta possibilidade de maior proximidade entre a exposição e as pessoas com deficiência visual (Fig. 21). Neste processo de remodelação do museu pretendeu-se, especialmente, uma dignificação das ruínas arqueológicas e um melhor entendimento da sua razão de ser, da sua função de fragmentos que integram um todo
Figura 16 - Perspectiva de nascente para poente do interior do Museu de Lisboa – Teatro Romano. Área do pátio com um passadiço metálico do lado esquerdo e, ao fundo, a plataforma elevatória que permite o acesso a todos os pisos (José Avelar / Museu de Lisboa).
Figura 17 - Museu de Lisboa – Teatro Romano. Área subjacente à actual recepção do museu, onde podem ser observadas estruturas arqueológicas dos sécs. XVII/XVIII destruídas pelo terramoto de 1755 e, especialmente, pelo incêndio que se seguiu (José Avelar / Museu de Lisboa).
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Museu de Lisboa – Teatro Romano: um museu e um monumento romano na cidade
Figura 18 - Interior do Museu de Lisboa – Teatro Romano, nave central do espaço museográfico. Perspectiva de poente para nascente (José Avelar / Museu de Lisboa).
Figura 19 - Interior do Museu de Lisboa – Teatro Romano, nave central do espaço museográfico. Perspectiva de nascente para poente (José Avelar / Museu de Lisboa).
Figura 20 - Núcleo do museu dedicado aos contextos do séc. XVI/XVIII e onde se destaca o perfil estratigráfico recriado no local (José Avelar / Museu de Lisboa).
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que foi, e continua a ser, o teatro romano de Lisboa / Olisipo. A finalização da escavação no interior do monumento cénico e a disponibilização de informação no espaço, as imagens tridimensionais da reconstituição do teatro e a colocação de uma tela na parede poente com a reconstituição da parte central do edifício, são algumas da medidas a que se recorreu no sentido de aproximar
estas ruínas do cidadão, de as tornar mais compreensíveis e acessíveis (Figs. 22, 23 e 24). Como uma fatia da história, que reflecte a longa diacronia que a cidade de Lisboa possui, o actual Museu de Lisboa - Teatro Romano pretende igualmente reflectir a história desta cidade e não apenas um dos seus momentos.
Figura 21 - Bancada com réplicas de peças para manejamento. São acompanhadas de legendas bilingues e de tradução em braille (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa - Teatro Romano).
Figura 22 - Interior das ruínas do teatro romano de Lisboa / Olisipo (José Avelar / Museu de Lisboa).
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Figura 23 -
Interior das ruínas do teatro romano de Lisboa / Olisipo (José Avelar / Museu de Lisboa).
Figura 24 -
Interior das ruínas do teatro romano de Lisboa / Olisipo (José Avelar / Museu de Lisboa).
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Uma cidade em escavação
211
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
As escavações até ao momento realizadas na Colina do Castelo de São Jorge, em Lisboa, proporcionaram um conjunto muito apreciável de materiais arqueológicos da Idade do Ferro. Entre estes, as produções de engobe vermelho ganham um particular destaque pelo seu potencial cronológico e pela sua clara afiliação a aspectos culturais de matriz orientalizante. Neste trabalho procura-se sistematizar os dados relacionados com o fabrico, tipologia, decoração e evolução destes materiais que, na grande maioria dos casos até ao momento documentados, parecem corresponder a produções locais deste importante núcleo de povoamento. PALAVRAS-CHAVE:
Fenícios, costa Centro-Atlântica, produção, Idade do Ferro.
ABSTRACT:
Excavations carried out in Castelo de São Jorge´s Hill, in Lisbon, uncovered a very significant set of Iron Age archaeological materials. Among these, the production of red-slip ware is particularly important due to its chronological potential and by its clear affiliation to the Orientalizing cultural framework. In this work, we will try to systematize the available data attending to its manufacture, typology, decoration and general evolution of these materials, which, in the majority of the documented cases so far, seem to correspond to local productions of this important settlement. Key words:
Phoenicians, Central Atlantic coast, production, Iron Age.
Lisboa. Cerâmica de engobe vermelho da Rua dos Correeiros
3.2
A cerâmica de engobe vermelho de Lisboa
Elisa de Sousa
Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Uniarq - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa Fundação para a Ciência e a Tecnologia e.sousa@campus.ul.pt
1. Introdução No quadro da investigação sobre a Idade do Ferro no território peninsular a cerâmica de engobe vermelho ocupou, desde sempre, um papel de indiscutível importância. A sua clara relação com horizontes culturais de matriz orientalizante e o seu potencial na aferição de balizas cronológicas específicas foram apenas dois dos principais factores que transformaram estes elementos num objecto de estudo privilegiado face aos restantes componentes da cultura material. São já vários os ensaios tipológicos que procuraram sistematizar as características e a evolução destes materiais no Ocidente Peninsular, remontando às primeiras propostas de E. Cuadrado (1953, 1962, 1969), seguindo-se, entre outros, os trabalhos de M. Tarradel (1958, 1960), H. Schubart (1976), M. E. Aubet (1976), I. Neguerela (1979-1980), G. Maass-Lindenmann (1982, 1983, 1986, 1990, 1997), P. Rufete Tomico (19881989), J. Mancebo Dávalos (1996) e M. AlmagroGorbea, A. Mederos Martín e M. Torres Ortíz (2008). Os resultados destes múltiplos estudos têm permitido compreender que a cerâmica de engobe vermelho exibe características diferenciadas de acordo com as áreas culturais da sua produção, incorporando repertórios morfológicos e balizas cronológicas que variam de acordo com os respectivos horizontes geográficos. O incremento da investigação sobre o período sidérico no Ocidente Atlântico e, em concreto, na foz do estuário do Tejo, permitiu reconhecer que as cerâmicas de engobe vermelho desta região correspondem, na sua esmagadora maioria, a fabricos locais (ARRUDA, 19992000; CALADO et alii, 2013b; PIMENTA, SOUSA, AMARO, 2015; SOUSA, 2014). Como tal, e apesar da existência de alguns padrões evolutivos similares com os verificados em outras áreas da Península Ibérica, estes
materiais adquirem, aqui, certas particularidades tipológicas e técnicas que individualizam estas produções. Neste trabalho procura-se realizar uma primeira tentativa de sistematização das produções de engobe vermelho da foz do Estuário do Tejo, com particular ênfase para o repertório artefactual actualmente disponível para a cidade de Lisboa. Este destaque justifica-se, sobretudo, pelo facto de os dados recolhidos ao longo das várias escavações realizadas em área urbana, durante as últimas décadas, terem permitido reunir um acervo documental particularmente significativo para o estudo da evolução e caracterização desta categoria cerâmica ao longo da Idade do Ferro. 2. Fabricos As características de fabrico da cerâmica de engobe vermelho da zona de Lisboa mantêm-se relativamente constantes ao longo de toda a sua produção. As pastas, de tons castanhos ou castanho-alaranjados, são de natureza não calcária, cozidas em modo A, sendo geralmente compactas, de fractura regular e por norma bem depuradas (cerca de 5% de elementos não plásticos). A observação macroscópica, auxiliada pela utilização de uma lupa de 15 aumentos, permitiu a identificação de abundantes moscovites e calcites e raras biotites, partículas de quartzo, anfíbolas e nódulos ferruginosos, todos geralmente de pequena dimensão, para além de escassas piroxenas de tamanho um pouco superior1. Os engobes são, em geral, de boa qualidade, sendo relativamente espessos e aderentes. A sua coloração é, em grande parte dos casos, de tons avermelhados 1 Agradeço ao Dr. João Araújo-Gomes pelo auxílio na caracterização das pastas.
Uma cidade em escavação
213
Elisa de SOUSA
que podem, contudo, apresentar variações mais acastanhadas ou alaranjadas. Uma característica particular das produções da área de Lisboa, que se observa ainda durante o período orientalizante, é a aplicação de um engobe ou aguada esbranquiçada que reveste por vezes a área externa de alguns recipientes, nas zonas onde não é aplicada a pintura vermelha. A homogeneidade que se verifica ao nível do fabrico indica que os centros produtores destas cerâmicas, que provavelmente se dedicariam também a outras categorias, se abasteceram das mesmas matérias primas e partilharam técnicas muito similares (preparação das argilas, protótipos morfológicos, acabamentos, etc.), sendo muito provável a sua localização no interior ou nas imediações da antiga Olisipo. Infelizmente, não dispomos de dados mais específicos sobre este tema, à excepção de algumas informações sobre a existência de uma possível zona de produção localizada na área do Castelo de São Jorge, sendo actualmente visíveis, no respectivo Núcleo Museológico, alguns pratos deformados, que podem corroborar essa possibilidade. A sua morfologia indica, contudo, que se trata de uma produção relativamente tardia, talvez localizada em momentos avançados do século VI a.C. ou mesmo na centúria seguinte. Uma outra evidência que deve ser indicada é a existência, já na zona mais periférica da cidade, na actual Rua dos Correeiros, de uma estrutura que poderá ter sido utilizada para a produção de cerâmicas durante os meados do 1º milénio a.C., ainda que tal funcionalidade possa ser discutível (SOUSA, 2014, pp. 85-86).
3. As produções do período orientalizante A introdução da cerâmica de engobe vermelho no repertório artefactual da antiga cidade de Lisboa é um fenómeno que parece ocorrer apenas em momentos tardios do século VIII a.C. ou inícios da centúria seguinte, coincidindo com o momento inicial da presença de “agentes” fenícios ocidentais nesta área. Com efeito, é nos contextos mais antigos da Idade do Ferro de Lisboa, identificados nas escavações realizadas na Rua de São Mamede ao Caldas (PIMENTA, SILVA, CALADO, 2014), que se reconheceu a presença de formas relativamente antigas desta categoria cerâmica, em concreto pratos de lábio estreito, enquadráveis no tipo P1 de RUFETE TOMICO (1988-1989), e taças de bordo ligeiramente invertido, decoradas com caneluras, do tipo C1 (PIMENTA, SILVA, CALADO, 2014, p. 728). É ainda provável que algumas taças de perfil carenado, possivelmente aparentadas com o tipo C3a de Rufete Tomico, possam também estar presentes durante este primeiro momento (PIMENTA, SILVA, CALADO, 2014, fig. 6 - n.º 9). Este repertório inicial irá perdurar durante a fase posterior, pelo que o seu valor cronológico depende sempre de uma rigorosa análise contextual. Com efeito, e tal como ocorre na zona de Huelva (RUFETE TOMICO, 1988-89, pp. 376-378), formas idênticas surgem em contextos mais tardios, datados em momentos mais avançados do século VII e VI a.C., estando, nestes casos, já associadas a outras morfologias.
Figura 1 – Indicação dos vários locais citados no texto: 1. Castelo de São Jorge; 2. Rua do Recolhimento; 3. Pátio do Aljube/Teatro Romano; 4. Rua da Madalena; 5. Rua dos Correeiros; 6. Rua de São João da Praça; 7. Travessa do Chafariz d´El Rei; 8. Casa dos Bicos; 9. Sé de Lisboa; 10. Rua de São João da Praça; 11. Rua da Judiaria).
214 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
A cerâmica de engobe vermelho de Lisboa
Ao nível dos pratos de cerâmica de engobe vermelho, é a partir deste momento que se verifica a presença de diâmetros mais amplos, associados geralmente a um lábio de maior dimensão, que podem ser equiparados aos tipos P2 e P3 de Rufete Tomico, apesar de poderem surgir ainda alguns exemplares do tipo P1. São já múltiplas as peças integráveis nestas morfologias, que surgem no “contexto 2” da Rua de São Mamede ao Caldas (PIMENTA, SILVA, CALADO, 2014, fig. 8 – n.º 27), na Travessa do Chafariz d´El Rei, (FILIPE, CALADO, LEITÃO, 2014, fig. 7 – n.º 5 e 6), no Pátio do Aljube (FERNANDES et alii, 2013 - fig. 14 - n.º 14 a 18), na Sé de Lisboa (ARRUDA, 1999-2000, fig. 69 a 71), na Rua da Madalena (SOUSA, SARRAZOLA, SIMÃO, 2016), na Rua do Recolhimento (SOUSA, PINTO, 2016), na Casa dos Bicos (PIMENTA, SOUSA, AMARO, 2015 – fig. 8) e no Teatro Romano (CALADO et alii, 2013b) ainda que, nestes últimos dois casos, os exemplares não provenham de contextos arqueológicos primários. É ainda importante destacar a existência, entre os conjuntos recolhidos no Pátio do Aljube (FERNANDES et alii, 2013, fig. 14 - n.º 19) e na Casa dos Bicos (PIMENTA, SOUSA, AMARO, 2015, fig. 8 - n.º 19), de pratos que exibem um sulco bem marcado na área externa do bordo, uma característica muito típica das zonas mais meridionais da Península Ibérica durante os momentos finais do século VII a.C. e na centúria seguinte (FERNANDEZ FLORES, RODRIGUEZ, 2007; ROUILLARD, GALLEIDRAT, SALA, 2007; TORRES ORTÍZ et alii, 2014). É também no século VII a.C., provavelmente a partir dos seus meados, que observamos uma maior variedade morfológica no grupo das taças. Surgem recipientes de perfil carenado e bordo côncavo ou de tendência vertical, equiparáveis, respectivamente, aos tipos C3b e C3c de RUFETE TOMICO (1988-1989). Este tipo está presente na fase mais recente da Rua de São Mamede ao Caldas (PIMENTA, SILVA, CALADO, 2014, fig. 8 – n.º 25 e 26), no Pátio do Aljube (FERNANDES et alii, 2013, fig. 15 - n.º 25 a 27), na Sé de Lisboa (ARRUDA, 19992000, fig. 66 e 67) e na Rua da Judiaria (CALADO et alii, 2013a - fig. 4 - n.º 166), apesar de, neste caso, o engobe apresentar uma tonalidade alaranjada. Materiais de idênticas morfologias surgem ainda em contextos secundários escavados na Casa dos Bicos (PIMENTA, SOUSA, AMARO, 2015 - fig. 9 - n.º 22 a 25), no Teatro Romano (CALADO et alii, 2013b) e na Travessa do Chafariz d´El Rei (FILIPE, CALADO, LEITÃO, 2014, fig. 9 - n.º 6 e fig. 10 - n.º 4). Deve ainda assinalar-se o desenvolvimento pronunciado das carenas no quadro destas produções de engobe vermelho da área de Lisboa, como se observa em alguns exemplares da Sé de Lisboa (ARRUDA, 1999-2000, fig. 67 - n.º 10; fig. 72 - n.º 6), do Pátio do Aljube (FERNANDES et alii, 2013, fig. 15 - n.º 27), do Teatro de Lisboa (CALADO et alii, 2013b, fig. 5 - n.º 31 e 32) e da Casa dos Bicos (PIMENTA, SOUSA, AMARO, 2015, fig. 9 - n.º 22 e 24). Um outro tipo formal, que integra as tigelas de perfil hemisférico, que dominam o repertório de outras categorias cerâmicas, como é o caso das produções comuns e das cinzentas, é relativamente mais raro em Lisboa. Em cerâmica de engobe vermelho, esta forma, equiparável ao tipo C4 de Rufete Tomico, foi reconhecida apenas na
Rua da Judiaria (CALADO et alii, 2013a, fig. 6 - n.º 348), ainda que, mais uma vez, o engobe seja de tonalidade alaranjada. Apesar de desprovidas de contexto primário, estes recipientes surgem também na Casa dos Bicos (PIMENTA, SOUSA, AMARO, 2015, fig. 9 - n.º 21). Outras morfologias são menos recorrentes nos contextos sidéricos da cidade de Lisboa, merecendo, ainda assim, algum destaque. É o caso de alguns pratos que exibem bordos mais aplanados e uma maior sinalização da depressão central, que surgem nos conjuntos recuperados na Sé de Lisboa (Arruda, 1999-2000, fig. 70 - n.º 10) e no Pátio do Aljube (FERNANDES et alii, 2013, fig. 14 - n.º 22), características que poderão associar-se a momentos tardios da produção, possivelmente em torno à segunda metade do século VI a.C., e passíveis de serem interpretadas no quadro de uma evolução regional. Outros exemplares semelhantes, que se distinguem pela presença de uma carena muito bem marcada na área externa, bordo aplanado e lábio ligeiramente pendente surgem também com alguma frequência, como ocorre nos contextos mais inferiores da Rua da Judiaria (CALADO et alii, 2013a, fig. 7 - n.º 145; fig. 8 - n.º 189), no Teatro Romano (CALADO et alii, 2013b, fig. 3 - n.º 9 e 10) e na Sé de Lisboa (ARRUDA, 1999-2000, fig. 66 - n.º 9; fig. 72 - n.º 5). Dada a ausência de perfis completos, é difícil determinar se estes recipientes se integram no grupo de taças ou se correspondem a uma evolução específica de pratos, ainda que a sua escassa profundidade possa ser considerada como um indicador da segunda hipótese. De qualquer forma, parece tratar-se também de um desenvolvimento característico das produções da área de Lisboa, que surge ainda durante o período orientalizante, e que possivelmente irá dar origem às páteras de pé alto características dos meados do 1º milénio a.C. As formas fechadas são consideravelmente mais raras no repertório da cerâmica de engobe vermelho de Lisboa, e a sua identificação está condicionada pela dificuldade na sua distinção face a outros recipientes com decoração pintada. Com efeito, os mesmos tipos de engobes que são aplicados no repertório do serviço de mesa surgem também como elemento decorativo em várias outras formas, em concreto em contentores anfóricos e vasos de armazenamento. Com frequência, quando se analisam conjuntos fragmentados, que são uma constante em escavações de áreas de habitat, torna-se difícil de determinar a categoria a que pertenceram muitos dos fragmentos de formas fechadas com decoração pintada. Por outro lado, esta mesma distinção, cujo uso facilita a divisão de diferentes categorias no quadro da investigação arqueológica, não faria, provavelmente, qualquer sentido na perspectiva dos oleiros que produziram estas peças. Ainda assim, a presença, em algumas morfologias, de vastas áreas revestidas com engobe vermelho, permite a inclusão de mais algumas formas no repertório da cidade de Lisboa. É o caso de dois pequenos potes que exibem um corpo globular e bordo esvertido, exumados no decurso das escavações da Sé de Lisboa (ARRUDA, 1999-2000, fig. 68 - n.º 1 e 2). O engobe é aplicado externamente em ambos os exemplares, estando apenas em um dos casos na zona interior. Trata-se de uma morfologia bem conhecida no quadro das produções locais de
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Figura 2 – Pratos de cerâmica de engobe vermelho de Lisboa.Tipo P1, n.º 1 a 4; P2, n.º 5 a 7; P3, n.º 8 e 9; prato de bordo bífido, n.º 10; pratos com decoração de linhas negras sobre o bordo, n.º 11 a 13)(segundo Arruda, 1999-2000; Fernandes et alii, 2013; Filipe, Calado, Leitão, 2014; Pimenta, Silva, Calado, 2014; Pimenta, Sousa, Amaro, 2015; modificado).
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A cerâmica de engobe vermelho de Lisboa
cerâmica cinzenta (ARRUDA, 1999-2000, fig. 81 - n.º 4; ARRUDA, FREITAS, VALLEJO SANCHÉZ, 2000, p. 41), e que provavelmente seria utilizada para o consumo de líquidos. Idêntica forma, mas de dimensões superiores, surge também no mesmo sítio (ARRUDA, 1999-2000, fig. 68 - n.º 4 e 5), assim como um recipiente de tendência esférica (ARRUDA, 1999-2000, fig. 68 - n.º 3),
integrando vasos utilizados para o armazenamento. Por último, resta referir a identificação, no conjunto do Teatro Romano de Lisboa, de um pequeno fragmento possivelmente pertencente a um jarro (CALADO et alii, 2013b, fig. 5 - n.º 26), não sendo possível, dado o seu estado de fragmentação, tecer outras aproximações morfológicas.
Figura 3 – Taças de cerâmica de engobe vermelho de Lisboa.Tipo C3, n.º 1 a 6; taças com carena muito pronunciada, n.º 7 e 8; tipo C1, n.º 9 e 10; tipo C4, n.º 11)(segundo Arruda, 1999-2000; Calado et alii, 2013b; Fernandes et alii, 2013; Pimenta, Silva, Calado, 2014; modificado).
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Um pormenor ao qual deve ser dada particular importância diz respeito a certos aspectos decorativos destas produções. Durante esta fase mais antiga, observa-se uma relativa complexidade na aplicação de motivos pintados em algumas destas formas. Em alguns pratos, na zona interna do lábio, ao engobe vermelho sobrepõemse linhas pintadas a negro, como se verifica em alguns exemplares da Sé de Lisboa (ARRUDA, 1999-2000, fig. 69 - n.º 1 e 2) e da Casa dos Bicos (PIMENTA, SOUSA, AMARO, 2015, fig. 8 - n.º 20). Num outro caso, uma taça decorada com caneluras do tipo C1 de Rufete Tomico do Teatro Romano de Lisboa (CALADO et alii, 2013b, fig. 5 - n.º 27), verifica-se o mesmo padrão, que, neste exemplar, forma um motivo reticulado na superfície externa do vaso. Uma outra particularidade do revestimento destas produções de engobe vermelho de Lisboa incide, como já foi referido, na inclusão, em vários exemplares, de aguadas ou engobes de tonalidade esbranquiçada que cobrem geralmente a zona exterior, na área deixada em reserva pela pintura vermelha.
4. As produções dos meados do 1º milénio a.C. É sobretudo a partir dos finais do século VI a.C. que se observa um desenvolvimento de cariz acentuadamente regional no quadro destas produções. Os primeiros sinais destas alterações remontam, como anteriormente foi referido, ao período precedente, tornando-se, contudo, mais expressivos a partir deste momento. Para a caracterização desta fase contamos, sobretudo, com os dados recolhidos nas escavações da Rua dos Correeiros, por terem proporcionado os conjuntos mais expressivos e variados das diferentes categorias cerâmicas conhecidas nesta fase (Sousa, 2014). Os vasos de cerâmica de engobe vermelho são quantitativamente reduzidos (93 NMI - 3,17% do conjunto), mas o seu repertório é bastante variado. Entre as formas abertas surgem, mais uma vez, as tigelas de perfil hemisférico ou parede ligeiramente convexa (Grupo 1A da Rua dos Correeiros), de bordo simples e por vezes espessado, que perduram desde a fase
Figura 4 – Pratos e recipientes fechados de cerâmica de engobe vermelho de Lisboa. Prato de bordo aplanado, n.º 1; taças (?) de carena muito acentuada, n.º 2 a 3; pequenos potes, n.º 4 a 5; pote, n.º 6; vaso esférico, n.º 7 (segundo Arruda, 1999-2000; Calado et alii, 2013a; modificado).
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A cerâmica de engobe vermelho de Lisboa
anterior (tipo C4 de Rufete Tomico), enquanto que outras apresentam já um perfil marcadamente carenado e bordo esvertido (Grupo 1B), de marcado cariz regional. Outros recipientes, um pouco mais profundos, foram incluídos no grupo das taças, podendo exibir, uma vez mais, perfis simples (Grupo 2A), carenados (Grupo 2B) e ainda bordos esvertidos (Grupo 2C).
Alguns pratos encontram-se também em clara linha de continuidade com as tendências da fase anterior, mantendo os bordos aplanados ou, em alguns casos, ligeiramente esvertidos (Grupo 3A). No entanto é neste momento que se intensifica a produção de outros com paredes mais horizontais que se desenvolvem numa carena, à qual se segue um bordo esvertido (Grupo 3B).
Figura 5 – Cerâmica de engobe vermelho da Rua dos Correeiros. Grupo 1A, n.º 1; grupo 1B, n.º 2; grupo 2A, n.º 3; grupo 2B, n.º 4; 2C, n.º 5; grupo 3A, n.º 6; grupo 3B, n.º 7 e 8; grupo 4A, n.º 9 e 10; grupo 5A, n.º 11; grupo 6, n.º 12 e 13; grupo 7A, n.º 14; funil ou queimador, n.º 15) (segundo Calado et alii, 2013b; Sousa, 2014; modificado).
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Esta última é, contudo, uma forma que apresenta algumas dificuldades na sua sistematização. Entre os materiais actualmente expostos no Núcleo Arqueológico do Castelo de São Jorge são visíveis elementos idênticos a estes que apresentam um perfil completo, e que terminam num fundo aplanado e rectilíneo, sem qualquer desenvolvimento da base. No entanto, os mesmos bordos podem corresponder também a páteras de pé alto e moldurado (Grupo 4A), como se observa pela existência de um destes recipientes na Quinta do Almaraz, em Almada (BARROS, CARDOSO, SABROSA, 1993, p. 180). Como tal, torna-se muito difícil a correcta classificação destes elementos na ausência de perfis completos. Não obstante, trata-se de formas que refletem, em qualquer das suas variantes, o cariz claramente regional das produções de engobe vermelho da área de Lisboa durante os meados do 1º milénio a.C. Sobre as páteras de pé moldurado cabe ainda referir que, para além da Rua dos Correeiros, esta morfologia foi identificada no conjunto da Casa dos Bicos (PIMENTA, SOUSA, AMARO, 2015, fig. 10 - n.º 26 e 27), no Pátio do Aljube (FERNANDES et alii, 2013, fig. 15 - n.º 24) e na Rua de São João da Praça (PIMENTA, CALADO, LEITÃO, 2014, fig. 4 n.º 20). As formas fechadas são, tal como na fase anterior, menos frequentes. Documentam-se pequenos recipientes de tipo pote (Grupo 5A), que provavelmente evoluem de formas semelhantes documentadas, no período precedente, na Sé de Lisboa (ARRUDA, 1999-2000, fig. 68 - n.º 1 e 2), e também vasos de maior dimensão, utilizados eventualmente para funções de armazenagem (Grupo 6). Os jarros estão também presentes (Grupo 7A), exibindo uma boca circular, bordo esvertido e simples, e uma pequena saliência na zona central do colo. Por último, deve-se registar, entre o conjunto da Rua dos Correeiros, a existência de uma peça de possível cariz sumptuário, que poderá corresponder a um tipo de funil ou ainda a um queimador (Sousa, 2104). 5. Conclusão A cerâmica de engobe vermelho de Lisboa terá sido, paralelamente às produções cinzentas, um elemento crucial no repertório do serviço de mesa. A aplicação dos revestimentos, polidos ao torno, que garantiam alguma impermeabilidade e menor aspereza, foram elementos que favoreceram esta utilização e que justificaram a sua preferência por parte dos antigos habitantes deste núcleo urbano. Os dados disponíveis parecem indicar que o momento mais pujante desta produção ocorreu durante a fase orientalizante (final do século VIII/inícios do século VII até ao século VI a.C.), e que a sua importância diminuiu durante os meados do 1º milénio. O desaparecimento destes vasos parece ocorrer em momentos tardios da Idade do Ferro, possivelmente entre os finais do século IV a.C. e a centúria seguinte, sendo claro que esta produção cessa num momento anterior à chegada dos primeiros agentes romanos à região. A alteração do repertório tipológico da cerâmica de engobe vermelho ao longo dos séculos proporciona dados interessantes no quadro da relações inter-regionais. Apesar de se tratar, na sua esmagadora maioria, de pro-
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duções locais, é interessante verificar que as alterações morfológicas dos vasos de Lisboa seguem, em linhas gerais, uma evolução similar à que se observa em zonas mais meridionais, como é, por exemplo, o caso de Huelva (RUFETE TOMICO, 1988-1989). Nos pratos, observamos uma idêntica tendência no aumento dos diâmetros e da largura dos lábios, destacando-se ainda a introdução, em momentos mais avançados do século VII e também durante o século VI a.C., de novas morfologias que aparecem no sul andaluz, como é o caso das taças carenadas de bordo vertical, tigelas de perfil hemisférico, ou dos pratos com ranhura na zona externa do bordo, estes típicos da área de Cádis. Todos estes indícios sugerem que as ligações entre o centro do litoral atlântico português e as zonas mais meridionais do território peninsular terão sido relativamente constantes durante o período orientalizante, permitindo uma absorção de novos protótipos, ideias e influências que se refletem no quadro da cultura material e, em particular, na cerâmica de engobe vermelho. É, sobretudo, a partir de finais do século VI a.C. que se verificam algumas tendências de carácter acentuadamente regional, que se irão acentuar no decurso da fase seguinte. Estas tendências observam-se particularmente na preferência e desenvolvimento de perfis carenados, que se tornam progressivamente mais acentuados, e também no aparecimento de pequenas formas fechadas, inspiradas nas produções locais de cerâmica cinzenta, possivelmente utilizadas no consumo de líquidos. A inovação mais interessante é, sem dúvida, a aparição das páteras de perfil carenado e pé alto e moldurado, recorrentes não só na cidade de Lisboa, mas também na área envolvente a partir dos meados do 1º milénio a.C. Apesar de se tratar de uma morfologia claramente regional deve, contudo, assinalar-se algumas semelhanças que apresenta com os pratos de pé alto da forma 2B da necrópole de Medellín (ALMAGRO-GORBEA, MEDEROS MARTÍN, TORRES ORTÍZ, 2008, pp. 600-603), que poderão refletir a existência de contactos inter-regionais com a área da Extremadura espanhola que, aliás, estão comprovados por outros elementos da cultura material (SOUSA, 2014, p. 308). É curioso notar que entre o repertório até ao momento conhecido para a cerâmica de engobe vermelho de Lisboa se encontram ausentes elementos ligados à iluminação (lucernas). Apesar de se tratar de uma forma pouco frequente, esta surge com alguma regularidade em áreas mais meridionais. Tal ausência poderá, contudo, relacionar-se com o completo desconhecimento das áreas funerárias que terão servido a antiga Olisipo, uma vez que é sobretudo neste tipo de contextos que estes elementos são mais recorrentes.
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Uma cidade em escavação
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
No âmbito da construção de um futuro Hotel, localizado na área dos antigos Armazéns Sommer, na Rua Cais de Santarém, foram colocados a descoberto diversos contextos que retratam de forma única a estratificação da cidade entre a Idade do Ferro e a primeira metade do século XX. Em 2004/5 o espaço foi alvo de trabalhos arqueológicos, sob responsabilidade da Dra. Ana Gomes, revelando importantes vestígios da ocupação romana e islâmica. Entre estes destaca-se a identificação da muralha da cidade de Lisboa, datada do século I d.C., e algumas estruturas de cariz habitacional de época romana, nomeadamente um compartimento com paredes de estuque pintado e piso em mosaico. Com a aprovação de um projecto para o local, todo o espaço viria a ser alvo de intensos trabalhos arqueológicos entre 2014 e 2015, materializados em mais de 2700 m³ de escavação manual e diversos trabalhos no âmbito da arqueologia da arquitectura, possibilitando o registo de uma sequência ocupacional da cidade com mais de três mil anos de História. PALAVRAS-CHAVE:
Urbanismo, Idade do Ferro, muralhas romanas, mosaico romano, Lisboa romana, Medieval Islâmico/Cristão, Palácio Coculim, Armazéns Sommer.
ABSTRACT:
Within the construction of a future Hotel Cais de Santarém, in the area of the former Sommer Warehouses, located at Rua Cais de Santarém, several historical contexts were discovered, showing a unique stratigraphy of the city from the Iron Age until the first half of the 20th-century. In 2004 and 2005, the area was the target of archaeological interventions, under the supervision of Dr. Ana Gomes, revealing important traces from the Roman and Islamic occupation. Among these there is the identification of the wall of Lisbon, dated from 1st century AD, as well as some Roman domestic structures, namely a compartment with walls made of painted stucco and a mosaic floor. With the approval of a hotel project for this area, all the space would be the target of intense archaeological investigations in 2014 and 2015, having over 2700 m³ of excavation, as well as diverse works relating Archaeology of Architecture, having the possibility to register the occupational historical sequence of more than three million years of the city of Lisbon. Key words:
Urbanism, Iron Age, Roman walls, Roman mosaic, Roman Lisbon, Islamic/Christian medieval, Coculim Palace, Sommer warehouse.
Armazéns Sommer. Estruturas da Idade do Ferro
3.3 Dados preliminares de uma
Intervenção arqueológica nos antigos Armazéns Sommer (2014-2015). Três mil anos de História da cidade de lisboa
Ricardo Ávila Ribeiro Nuno Neto Paulo Rebelo Miguel Rocha Neoépica Lda. neoepica@gmail.com
1. Introdução O presente artigo procura apresentar os resultados preliminares da intervenção arqueológica realizada nos antigos Armazéns Sommer ao longo dos anos 2014 e 2015. Tendo em vista o processo de licenciamento e construção no local de um hotel, a Neoépica Lda. desenvolveu, com uma vasta equipa1, uma série de intensos trabalhos arqueológicos, que consistiram, genericamente, na escavação de todas as áreas que foram sujeitas a mobilização de solos, bem como na caracterização do edificado existente, materializada na execução de trabalhos de picagem parietal, na vertente da denominada Arqueologia da Arquitetura. A intervenção permitiu confirmar dados já conhecidos, recolhidos em 2004 e 2005 em intervenções arqueológicas decorridas sob a responsabilidade da Dra. Ana Gomes. Possibilitou igualmente colocar a descoberto toda uma série de contextos desconhecidos e de inegável importância para a caracterização da ocupação humana naquela área, com o registo de uma sequência ocupacional contínua desde, pelo menos, a Idade do Ferro até à época Contemporânea. Os trabalhos arqueológicos nos antigos Armazéns Sommer vêm ilustrar de forma única a história da cidade de Lisboa desde a sua fundação aos dias de hoje. A consciência da importância desta sequência leva-nos a estabelecer uma estratégia de estudo e publicações, procurando-se assim que a informação recolhida tenha 1 A quem gostaríamos de agradecer todo o esforço, saber e dedicação: André Manique, Helena Pinheiro, Hugo Fraga, Ivo Ferín, José Pedro Henriques, Nelson Antunes, Pedro Peça, Pedro Serra, Raquel Santos, Rui Couto, Sara Brito, Vanessa Filipe, Vanessa Mata, Vasco Vieira, Alfa Cande, Amadu Balde, Aquino Barbosa, Braima Sambu, Genilson Tavares, José Pereira, Luizinho Utage, Mussa Fofana, José Lemos Paulo, Pedro Simões, Rubem Timoteo, Ussumane Cande, Wiliam Pereira.
como fim a formulação efectiva de conhecimento e que este tenha um verdadeiro retorno social: fim último de quem trabalha em património. Assim, pretende-se que este artigo seja o primeiro de uma série de estudos a realizar em colaboração com outros investigadores, numa estratégia que se quer estreita e frutífera tendo em vista um bem comum. 2. Enquadramento Os antigos Armazéns Sommer encontram-se situados na Rua Cais de Santarém, nºs 40 a 64, freguesia de Santa Maria Maior em Lisboa. Corresponde a um quarteirão localizado no Bairro de Alfama, que possui a sua base no antigo complexo palaciano construído em época moderna, encontrando-se limitado a Norte pela Rua de São João da Praça e a Travessa dos Armazéns do Linho; a Este pela Travessa de São João da Praça que desce para o Chafariz d’ el rei; a Sul pela Rua Cais de Santarém, virada ao Tejo; e a Oeste, pelo Arco de Jesus. Topograficamente, a área em análise encontra-se junto à base Sul da encosta onde o casario de Alfama se vai encaixando até ao Castelo de São Jorge, desenvolvendo-se ao longo da margem direita do Rio Tejo que actualmente corre a cerca de 90m para Sul. A ocupação distribui-se por vários patamares de natureza antrópica, que se procuram adaptar ao declive natural do terreno, de pendente norte-sul. Os trabalhos arqueológicos permitiram verificar a recorrência, desde os níveis mais antigos, deste tipo de estratégia que se vai modelando ao terreno, surgindo logo na ocupação da Idade do Ferro, passando para época romana, medieval, moderna e chegando bem marcado aos nossos dias. O próprio hotel em construção irá seguir, em certa medida, o mesmo tipo de adaptação ao terreno (Fig. 1).
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Figura 1 – Enquadramento do edificado intervencionado na cidade de Lisboa (Google Earth).
A primeira fase de diagnóstico arqueológico iniciouse em 1997, sendo então suspensa devido a razões técnicas. Os trabalhos acabaram por ser retomados entre 2004 e 2005, com a direção científica da Dra. Ana Gomes (GOMES, 2004, 2005), revelando desde logo a presença de um importante conjunto patrimonial onde se destacam os vestígios de época romana compostos por estruturas de carácter defensivo: parte da muralha altoimperial e muralha tardo-romana, enquadráveis respetivamente nos séculos I e IV/V d.C. (GASPAR, GOMES, 2007, pp. 693-694). Identificou-se ainda, num patamar superior, um conjunto urbanístico em excelente estado de conservação, onde se destaca um lajeado que daria acesso a um fontanário e a um poço-cisterna, sendo ainda de realçar os contextos de época medieval islâmica e também de época moderna, relacionados com os antigos palácios que caem em ruína e abandono com o terramoto de 1755. A presente intervenção ocorreu ao longo dos anos de 2014 e 2015, já sob responsabilidade de arqueólogos da Neoépica, desenvolvendo-se paralelamente em duas vertentes: trabalhos de arqueologia vertical e de escavação arqueológica em área. Em conjunto, permitiram uma frutuosa complementaridade que levou a um recorrente cruzamento de informação, possibilitando
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uma leitura abrangente e caracterizadora de uma longa e complexa sequência ocupacional, que se desenvolve numa extensa área, em contextos de diferentes naturezas e graus de preservação. Assim, os trabalhos de arqueologia vertical, seguiram os métodos da denominada Arqueologia da Arquitectura (SANTOS, 2010), procurando conhecer e caracterizar os diferentes elementos arquitetónicos que constituíam o edificado existente. Já os trabalhos de escavação desenvolveram-se ao longo de quase toda a área do quarteirão, distribuindo-se por 11 sectores. De forma a facilitar a leitura e compreensão da vasta informação recolhida, optou-se por apresentar os dados preliminares de acordo com os períodos cronológicos, da Época Contemporânea à Idade do Ferro, dando-se especial atenção aos contextos identificados e menor ênfase à cultura material recolhida, que ascende a vários milhares de peças, as quais, à data da redacção deste artigo, se encontram ainda em fase embrionária de estudo. Como tal, as cronologias indicadas neste texto, tal como o seu título indica, são fruto de uma observação superficial dos materiais arqueológicos durante o decurso dos trabalhos, sujeitas, portanto, a um ajuste mais fino, que se pretende publicar em artigos futuros.
Dados preliminares de uma Intervenção arqueológica nos antigos Armazéns Sommer (2014-2015)
3. Época Contemporânea Logo ao iniciar os trabalhos foi possível observar que estávamos perante um intrincado conjunto de edifícios, com funcionalidades distintas e em diferentes estados de ruína e abandono, no geral ligados a uma actividade industrial associada aos antigos armazéns de ferro e cimento geridos pela família Sommer ao longo de mais de 100 anos (1858 a 1975). No patamar mais elevado, virado a Norte para a Rua de São João da Praça e descendo a Este pela Travessa de São João da Praça, encontrava-se uma série de corpos edificados que se desenvolviam em altura. Virado a Norte e Este observava-se um grande salão que abria para uma série de pequenos compartimentos, onde até há poucos anos funcionou uma tipografia, abandonada em finais do século XX. A análise de cartografia antiga mostra que entre finais do século XIX e início do século XX procedeu-se à cobertura de um pátio de raiz antiga que se observa no levantamento cartográfico da cidade de Lisboa de 1858 (direção de Filipe Folque). A cartografia do início do século XX mostra que em 1909 este pátio já se encontrava coberto por um telhado, onde viria mais tarde a funcionar a tipografia. A observação de fotografias do início do século XX vem igualmente comprovar a presença deste corpo edificado elevado e coberto por um largo telheiro. Ainda neste patamar virado a Norte, encontravase um edifício de habitação e loja que se desenvolvia ao longo de dois pisos mais águas furtadas. No início dos trabalhos este espaço já se encontrava em avançado estado de ruína. Uma fotografia antiga mostra que, pelo menos desde o princípio do século XX, este edifício
não terá sofrido grandes alterações, devendo ter a sua provável fundação em meados do século XVIII com as remodelações pós-terramoto de 1755 (Fig.2). Ao nível do patamar inferior, com acesso principal pela Rua Cais de Santarém, encontramos um espaço aberto que se desenvolve ao longo da fachada principal. Na parte central encontra-se uma larga rampa de descarga: cais de embarque, que terá por base um traçado antigo, remontando à época Moderna, e que permite chegar ao nível do patamar intermédio onde se encontra uma série de adaptações que tiveram por base elementos estruturais mais antigos pertencentes aos antigos palácios. No lado Oeste, encontramos uma remodelação profunda já do século XX abrindo-se espaço para uma série de gabinetes, anexos, escritórios e uma caixa forte (Fig. 2). Esta adaptação geral do espaço procura dar resposta a uma importante vertente industrial que se desenvolve entre meados do século XIX e a década de 1970. Assim, o espaço é primeiramente ocupado a partir de 1858, e até à década de 40 do século XX, pelos Armazéns de Ferro Sommer & Cª. Posteriormente, a partir de 1919, passa a servir como escritórios dos Cimentos de Leiria, até 1975, altura em que ficará devoluto. Tendo por base um edificado antigo em todo o espaço, o momento em que se começa a adaptar a uma funcionalidade industrial vai levar necessariamente a intensas campanhas de remodelação e adaptação. Contudo, os trabalhos de demolição dos elementos associados a esta fase mais recente permitiram perceber que ainda permanecia preservado um importante conjunto de contextos ilustrativos do complexo palaciano fundado em época moderna.
Figura 2 – vista Norte-Sul de parte do edificado de cronologia contemporânea.
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4. Época Moderna Os trabalhos de abertura de sondagens parietais e escavação arqueológica em área permitiram perceber que a adaptação geral do edificado, a partir de meados do século XIX, a uma função de carácter industrial, terá em larga medida afectado e incorporado parcialmente pré-existências. Em meados do século XIX ainda estaríamos perante uma base palaciana de época moderna, que todavia terá sido fortemente abalada aquando do grande terramoto de 1755. Este momento de destruição vai levar ao abandono do palácio pelo então proprietário Conde de Coculim, que passa a residir nas Fontainhas, freguesia dos Anjos. A documentação passa então a referir-se ao palácio de Coculim como o Palácio Incendiado, o que é bem ilustrativo do estado de abandono e ruína a que o mesmo foi sujeito. A partir deste momento o edificado nunca mais volta a ganhar a sua dimensão palaciana. Procedendo-se a obras em que se adapta a estrutura existente à função de arrendamento para fins comerciais e de armazenamento. As picagens parietais ao nível do piso 0 e 1 permitiram atestar que ainda ali se encontravam paredes originais dos palácios de época moderna. Assim, no 1º piso registou-se no limite Oeste do edificado existente, entre o palimpsesto de paredes de cronologia contemporânea, uma série de paredes e elementos arquitectónicos originários da estrutura palaciana de época moderna ainda preservados. No essencial, estas paredes possuem uma maior espessura e robustez, sendo compostas por um aparelho arbitrário em fiadas irregulares, de blocos de médias dimensões, unidos por argamassa de cal de cor branca/cinzenta clara. Numa destas paredes foram ainda identificadas in situ duas portas quinhentistas, uma delas constituída por cantaria chanfrada em pedra calcária. Outra porta em cantaria calcária, muito afectada aquando da colocação de um lambrim em madeira, que fragmentou praticamente todos os elementos pétreos (Fig.3), foi também identificada. Foi ainda registado um cunhal em cantaria, de aparelho tipo silhar, que se desenvolvia pelo menos entre o piso 0 e piso 2. Ao nível do piso 0 os trabalhos parietais permitiram perceber que muitas das paredes existentes remontam
Figura 3 – Piso 1: portas quinhentistas.
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ainda à época Moderna, sendo ainda possível observar numa delas um arco ogival em bom estado de conservação. Os trabalhos de escavação arqueológica vieram mostrar que esta parede fazia parte de um contexto mais alargado, que se replicava para Este ao longo de todo o piso 0, criando-se uma área ampla de galeria (Fig.4). Os trabalhos de escavação ao nível do piso 0 permitiram comprovar que o espaço se organizava segundo uma série de lojas estruturadas de forma paralela e viradas para a margem direita do rio Tejo, contextos relacionados com a reorganização espacial ocorrida após o terramoto 1755. Ainda no piso 0 registou-se no sector 6 um nível de piso constituído por elementos diversos, como tijoleira e restos de mós reaproveitadas, bem como “remendos” em argamassa de cal. Este nível apresentava claros vestígios de um grande incêndio, encontrando-se em determinadas áreas o piso fissurado e abatido. A relação destes contextos com os materiais em associação permite nesta fase avançar com a hipótese de estarmos perante vestígios do terramoto de 1755 que levou à ruína geral do espaço (Fig.5). Ao nível do piso 1 os trabalhos nos sectores 2 e 3 vieram revelar a presença de um conjunto estrutural associado ao complexo palaciano, em bom estado de conservação, o que permitiu uma leitura segura para os contextos colocados a descoberto. Assim, registou-se uma rua que fazia o acesso à zona de serviço do palácio através de uma entrada a Norte efectuada pela actual Rua de São João da Praça. A entrada seria feita por um acesso que descia de um nível superior, composto por calçada de seixos brancos e negros, sendo possível registar nalgumas zonas a utilização de tijoleiras colocada na vertical. A entrada no palácio far-se-ia através de um portal, em cantaria calcária aparelhada com bom acabamento, lisa, sem vestígios de decoração. É d notar ao nível do solo em cada lado da entrada, junto às ombreiras do portal, a existência de monólitos calcários de perfil circular que protegiam as laterais de embates dos carros (Fig.6). Esta entrada abria para um grande pátio de serviço, com um piso semelhante, em calçada composta por seixos de cor branca e negra. Este nível de calçada da-
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Figura 4 – Piso 0: identificação de arco ogival entaipado, observado após remoção da fase contemporânea da parede.
Figura 5 – Piso 0: contextos associados ao terramoto de 1755.
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ria acesso, através de um patamar elevado em cantaria, a uma escadaria que subia para o piso superior, onde possivelmente se encontraria a zona mais reservada do palácio. Este patamar em cantaria, no lado Sul, seria coberto por um alpendre, testemunhado pela presença dos encaixes dos postes que suportavam a cobertura, de secção quadrangular e espaçados regularmente, sendo possível ainda registar um dos plintos in situ (Figs. 8 e 10). A partir deste pátio ter-se-ia acesso, através de uma escadaria interna, aos pisos superiores do palácio, localizados a Norte, mas também a outras dependências para Sul, para uma espécie de “claustro” organizado com robustas colunas de desenho quadrangular. Sobre o patamar alteado descansa, no lado Oeste, um lanço de escadas do qual subsistiam nove degraus igualmente em calcário e semelhantes aos degraus de acesso ao patamar, conduzindo a um piso superior e direccionando-se para poente. Esta estrutura evidencia uma aproximação ao perfil das escadarias de aparato que a arquitectura portuguesa barroca irá aplicar com alguma regularidade, tornando-se um elemento distintivo e caracterizador da arquitectura da casa nobre e uma unidade espacial com forte significado simbólico associado à dimensão de representação social dos proprietários. Nesta consideração pesa a dimensão da escadaria – sobretudo a largura dos degraus (cerca de 3 metros) – e o perfil cuidado do aparelhamento dos elementos pétreos (Figs. 8 e 10). Outro pormenor diferenciador do alçado sul deste pátio, denunciando o cuidado estético investido neste espaço, certamente com função de recepção, é o remanescente silhar de azulejos de padronagem seiscentista, o qual,
ainda que muito fragmentado, permite perceber a área ocupada nas superfícies murárias, sobretudo pelas unidades que permanecem in situ e vestígios da argamassa de assentamento. O silhar ocupava o perímetro do patamar alteado do pátio e subia a escadaria, sendo formado por oito unidades de altura, apresentando uma composição de padronagem, de pintura a azul sobre branco estanífero, aspecto que o faz situar no último quartel do século XVII (Fig. 7, 9 e 10). Os dados materiais contidos nos depósitos de aterro imediatamente por baixo do patamar e das escadas indicam uma cronologia de meados do séc. XVII, corroborando a datação azulejar de que a configuração espacial do pátio terá ocorrido nos finais do século XVII. Por último, no sector 4A, identificou-se uma caixa de escadas, contemporânea do pátio e relacionada com a dinâmica circulatória desta área do palácio seiscentista. Este elemento estrutural fazia a ligação do pátio com a Rua de S. João da Praça a norte, conseguia-se atingir este patamar subindo doze degraus calcários que se encontravam ladeados a este e oeste por silhares de azulejos, os quais, embora apresentando padronagem distinta dos azulejos do pátio, são também datáveis do último quartel do século XVII (Fig.11). Com o grande abalo dá-se o abandono geral do sítio, sendo posteriormente o pátio fechado e aterrado com entulhos do próprio palácio. Este aterro ter-se-á efectuado já no século XIX, como ficou comprovado pelos materiais contemporâneos recolhidos ao longo de toda a sequência de aterro identificada. Neste aterro foram ainda recolhidas inúmeras cantarias e elementos arquitectónicos pertencentes provavelmente ao palácio e a outros edifícios vizinhos que terão derrocado com o sismo de 1755.
Figura 6 – Arruamento N-S e alçado Este do muro, cunhal e entrada entaipada do palácio.
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Figura 7 – Vista Norte do conjunto do pátio do palácio.
Figura 8 – Patamar elevado e escadaria de acesso ao piso superior.
Figura 9 – Pátio – Parede Sul, silhares de azulejo in situ e porta entaipada.
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Figura 10 – Pátio: vista Este do patamar alteado com escadaria e silhar de azulejo.
Figura 11 – Escadaria de acesso a São João da Praça.
Nesta fase de reconstrução do espaço, recorre-se à lógica do reaproveitamento de elementos arquitectónicos nas reformulações pós-terramoto, ficando estas evidentes aquando dos trabalhos de acompanhamento de demolições, que levararm à recolha de um grande conjunto de elementos arquitetónicos. No essencial, estamos a falar de cantarias que fariam parte das estruturas relacionadas com os antigos palácios ou edifícios monumentais existentes nas imediações, surgindo descontextualizados,
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no meio de paredes de âmbitos e épocas distintas. Entre estes, destaca-se a presença de diversos módulos que fariam parte de, pelo menos, dois portais. A natureza descontextualizada deste conjunto de cantarias dificulta quer a sua origem, quer a melhor associação aos elementos arquitectónicos de que fariam parte. São contudo reveladores da riqueza e monumentalidade que possuíam as estruturas que existiam na frente ribeirinha da cidade de Lisboa em época moderna (Fig.12).
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Figura 12 – Cantarias provenientes do processo de escavação de aterros e desmonte de paredes de cronologia contemporânea.
5. Época Medieval Ao longo da intervenção nos diversos sectores, a ocupação do período medieval cristão foi a que se revelou menos veemente. Este facto poderá dever-se a afectações aquando da intensa campanha de obras que levou à construção do complexo palaciano já no período moderno. Enquadráveis neste período registaram-se, no sector 3 e 4, uma série de estruturas em negativo de tipologia fossa/silo. Estas apresentam características diversas, perfil em “saco”, escavadas no substrato geológico arenoso, com profundidades que podem variar entre 1 a 2 metros. A abertura destas estruturas em negativo veio afectar contextos mais antigos, de época islâmica e romana. Entre estas afectações conta-se a do compartimento de época romana onde se registaram paredes com estuque pintado e piso em mosaico (sector 9). É igualmente ilustrativo o silo assinalado na caixa de escada (sector 4A) acabando por afectar a esquina de um compartimento murário de época romana com uma orientação Norte-Sul, tendo a estrutura negativa sido colmatada com depósitos diversos onde foi possível recolher algumas peças cerâmicas enquadráveis nos séculos XIII-XIV, essencialmente louça utilitária em cerâmica comum (Fig.13). Já os contextos relacionados com a ocupação medieval islâmica registaram-se essencialmente ao nível dos sectores enquadráveis no patamar elevado (sectores 2, 3, 5 e 11). Não obstante, a ocupação encontrar-se-ia
um pouco espalhada por toda a plataforma, sendo essencialmente composta por contextos diversos de elementos estruturais em positivo por vezes associados a estruturas em negativo, apresentando-se geralmente em razoável estado de conservação. Entre os diversos vestígios destacam-se os registados no sector 3 e 11. A área do sector 3 acaba por corresponder em larga medida à dimensão deixada aquando do desmonte do pátio de época moderna, registando-se aqui uma intensa ocupação que por si só já teria, em larga medida, afectado os vestígios pré-existentes de época romana. No sector 3, foi possível registar uma sequência urbana de compartimentos com pisos e infraestruturas hidráulicas (de condução e escoamento de águas), associadas e conectadas com a consequente abertura e aterro de silos, sujeitas a reformulações espaciais desde o período islâmico ao século XV. Nas imediações dos compartimentos, foram registadas estruturas em negativo de construção cuidada: uma com as paredes e fundo cuidadosamente revestidos por argamassa; a outra de planta circular e fundo concavo com as paredes forradas a pedra solta, que ocupava uma posição central num compartimento islâmico, sendo sequentemente aterrada no século XIV no processo da colocação de um lajeado (Fig.14). Posteriormente procede-se à abertura de uma série de fossas, mais ou menos irregulares, que acabam por destruir parte destes contextos.
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É ainda de destacar a presença de um conjunto metálico em bronze, encontrado em depósitos que serviam de colmatação a uma fossa pouco profunda, algo irregular, de desenho elíptico. Este conjunto é composto por diversas peças em bronze como um candil, um almofariz e respectivo pilão e um fragmento de suporte de braseiro, apresentando um prótomo de leão com as patas dianteiras unidas. Numa análise preliminar, este último elemento tem paralelos com dois fragmentos similares, de factura oriental e datados do séc. X, provenientes de Madinat Ilbira (ZOZAYA, 2010, pp. 12-13). A antiguidade, raridade, qualidade e natureza deste conjunto leva-nos a levantar a hipótese de podermos estar perante um entesouramento associado a uma fase mais antiga da ocupação medieval islâmica. Junto a este conjunto foi ainda recuperado um artefacto em pedra polida típico da Pré-história recente (Fig.15).
Figura 13 – Silo de cronologia Medieval Cristã sobre compartimento de época romana.
Figura 14 – Sector 3: vista geral, compartimentos, infraestruturas hidráulicas e fossas.
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São igualmente de destacar os vestígios do período islâmico registados no sector 11. Nesta área, logo desde a escavação dos níveis associados a elementos estruturais dos contextos superiores do sector 1, foi possível perceber a presença de uma ocupação em época islâmica, que se terá desenvolvido para o sector 1. Contudo, a implantação dos palácios de época moderna levou à destruição destes níveis, assentando os pisos modernos em estruturas negativas islâmicas e, nalguns casos, diretamente sobre os vestígios de época romana. Já para a área do sector 11, a presença de contextos de época islâmica foi logo atestada aquando da intervenção de 2004 (GOMES, 2004), registando-se por baixo dos alicerces dos palácios várias estruturas em positivo, entre aas quais se destaca um compartimento de desenho quadrangular estruturando, segundo a equipa responsável pelos tra-
balhos então realizados, um pátio com um piso em empedrado, encontrando-se para Este a boca de um poço/ cisterna, organizada com grandes lajes, o qual estaria associado a um nível de piso irregular composto por lajes e tijoleiras. A intervenção em 2004 revelou desde logo que este nível islâmico estava estreitamente relacionado com a estrutura do poço que tinha a sua base em época romana, o que se veio confirmar com os trabalhos realizados em 2014/2015. O processo de escavação e desmontagem do complexo da cisterna de cronologia islâmica, até à fase da ocupação tardia romana, revelou-nos uma canalização islâmica que contorna a cisterna convergindo para Sul, recorrendo, na muralha, a uma preexistência arquitetónica hidráulica de cronologia romana tardia (Fig.11). Esta estrutura de época romana de que falamos localiza-se na própria muralha tardia, atravessando-a e
Figura 15 – Escavação e alguns materiais de fossa islâmica.
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permitindo deste modo o escoamento das águas que circulavam nesta zona para o exterior, já fora do perímetro amuralhado da cidade e em direcção ao rio Tejo. A estrutura apresenta-se revestida a opus signinum e construída logo de raíz, aquando da construção da muralha tardia, sendo posteriormente aproveitada em época islâmica para desembocar as águas que seriam conduzidas pelo caneiro acima mencionado (Figs. 16 e 21). A boca do poço islâmico apresentava-se estruturada por grandes blocos paralelepipédicos. Mostra um corpo cilíndrico até atingir o topo da fase romana tardia. Encontrava-se estruturado (compartimentada) por muros a Norte, Sul e Oeste, construídos com recurso a materiais pétreos de pequeno e médio calibre ligados por terra. A sua vala de fundação corta depósitos romanos tardios. 6. Antiguidade Tardia Os níveis associados à antiguidade tardia encontramse relacionados com a reorganização existente entre época romana e medieval islâmica. Nesta fase de transição vai-se registar um abandono geral de espaços onde outrora se encontrava um urbanismo bem desenhado, como é o caso da zona da futura área museológica (sector 11). Isto foi evidente quer na intervenção de 2004 (GOMES,
Figura 16 – Sector 11: complexo da cisterna islâmica.
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2004) quer nos trabalhos de 2014/2015, quando se alargou a área de escavação para Este, tendo-se então colocado a descoberto um antigo pátio, completamente colmatado com uma série de depósitos heterogéneos associados a uma reformulação do espaço na Antiguidade Tardia. No processo da escavação arqueológica do Sector 5 foram identificados dois compartimentos de planta retilínea. A sua construção caracteriza-se pelo uso de pedras calcárias e calcarenitos, aparelhadas em fiadas regulares, apresentando juntas irregulares ligadas por argamassa pouco compacta, o revestimento é executado recorrendo a argamassa. O compartimento 1 contém o piso em opus signinum, que apresenta algumas irregularidades altimétricas decorrentes de abatimentos do solo que lhe está subjacente. No encontro com os muros, nota-se um prolongamento vertical da argamassa que acaba por impermeabilizar as juntas. O compartimento 2 apresenta-se colmatado por aterros que servem de base a um piso rampeado em opus signinum que se desenvolve ascendendo de Oeste para Este. Ambos os compartimentos foram desativados em período tardio. O compartimento 1 foi encerrado com a construção de um muro de contenção2, que sustentou os despejos de aterros de cronologia tardia (IV-VI) que preencheram a totalidade do compartimento. A escavação destes contextos permitiu-nos a
2 Muro de contenção com orientação N-S, de planta retilínea na face Oeste, cuja construção se caracteriza pelo uso de pedras calcárias e calcarenitos, aparelhadas em fiadas regulares. A face Este é irregular e os elementos pétreos são ligados por terra.
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Figura 17 – Sector 5: trabalhos de escavação de aterros romanos tardios.
Figura 18 – Sector 5 – Compartimentos 1 e 2 e relação com a muralha.
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compreensão de que seguidamente ao encerramento deste compartimento, foi colocado o lajeado (posto a descoberto em 2004) que se desenvolve com orientação N-S. Este encosta ao muro de contenção e cobre o pavimento de opus signinum do compartimento 1. O Compartimento 2, à semelhança do 1, sofreu também um processo de aterro (não escavado) ao qual foi sobreposto um piso rampeado. Esta reformulação permitia que a circulação que se faria no sentido N-S, junto ao tanque fontanário, tivesse continuidade na orientação O-E junto à muralha (Fig.18). A escavação no sector 11 dos contextos de abandono que cobriam o lajeado e parte do poço romano permitiu confirmar a interpretação referida no sector 5: reformulação do espaço resultante da construção da muralha tardia. O pavimento com orientação N-S, que ladeia a Este o tanque fontanário é também uma solução para encaminhamento de águas, escoando-as para a abertura de secção rectangular criada no processo de construção da muralha e estruturada em opus signinum. A estruturação da boca do poço de fase romana tardia foi feita recorrendo a elementos arquitetónicos reaproveitados. Neste processo foram colocados quatro elementos sobre uma abertura no topo da abóbada do edificado preexistente. Destaca-se de entre os quatro o elemento Norte, friso decorado, provavelmente proveniente de um edifício de grandes dimensões (Figs.19 e 21). No sector 9, no espaço do compartimento romano com piso em mosaico, os trabalhos realizados vieram a confirmar a leitura prévia efetuada aquando da descoberta destes vestígios em 2004 (GOMES, 2004). Assim, registou-se o abandono do espaço, encontrando-se o mesmo preenchido por uma série de depósitos com materiais associados à Antiguidade Tardia, tendo-se mesmo registado uma parede que revelava uma técnica construtiva sem a qualidade das restantes e que procurava subdividir o espaço, seguindo uma orientação grosso modo Este-Oeste. Ou seja, numa leitura genérica, dá-se a reorganização e ocupação deste espaço na Antiguidade Tardia, tendo-se posteriormente dado o seu abandono, ainda neste mesmo período.
Figura 19 – Sector 11: complexo hidráulico romano tardio.
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7. Época Romana A ocupação do espaço em época romana veio a revelar-se intensa e complexa, desenrolando-se ao longo de vários séculos, entre o período republicano e o imperial. Esta sequência de ocupação encontra-se melhor representada no lado Oeste, entre os sectores 1, 5, 9 e 11. Para Este percebe-se que a distribuição se deveria organizar segundo diversos patamares, registando-se vestígios estruturais de época romana entre os sectores 2, 3 e 4, que se encontravam bastantes afectados por acções construtivas de época medieval/moderna e contemporânea. Já num patamar inferior, encostado ao limite Este da área em análise, no sector 9, foi possível identificar em bom estado de conservação o compartimento romano que ostenta paredes estucadas pintadas e piso em mosaico. No sector 5/11 parte dos vestígios de época romana imperial já tinham sido anteriormente reconhecidos nas intervenções de 2004/2005 (GOMES, 2004 e 2005). A continuação dos trabalhos em 2014/2015 veio permitir uma leitura mais abrangente dos vestígios. Assim, o alargamento da escavação para Este da rua anteriormente intervencionada, permitiu observar a presença de um pátio cujo piso em opus signinum se desenvolveria para Oeste na direcção da rua e do fontanário. Posteriormente, dá-se uma reorganização geral do espaço, sendo este piso limitado por um muro composto por elementos pétreos de grande dimensão, bem aparelhados na sua face exterior (pelo menos no seu lado Oeste). Esta reorganização parece ter tido como principal objectivo a criação do arruamento e lajeado que desce de Norte para Sul na direção da muralha romana tardia, encontrandose no seu lado Este limitado pelo muro aparelhado e no lado Oeste pelo conjunto de carácter hídrico tanque/ fontanário e poço/cisterna. A rua irá terminar na face interna da muralha tardia, a partir da qual se cria uma rampa para Este, em opus signinum, que daria acesso aos níveis de ocupação existentes no patamar superior, nomeadamente ao longo dos sectores 2, 3 e 4. O conjunto de carácter hídrico é composto pelo poço/ cisterna que se deveria abastecer no nível freático; e pelo
Dados preliminares de uma Intervenção arqueológica nos antigos Armazéns Sommer (2014-2015)
Figura 20 – Sector 9: escavação de derrubes no interior do compartimento do mosaico romano.
o tanque/fontanário que seria alimentado através de um canal de circulação de água que desce de Norte, provindo de uma nascente que se desenvolve nessa área. Criase assim uma rede de gestão e circulação de água cujo excesso era encaminhado para a muralha romana tardia sendo escoada, através de um orifício na muralha, para a praia associada à margem direita do rio Tejo (Fig. 21). Para Oeste desta área, que será musealizada, a intervenção no sector 1 revelou que os vestígios associados ao patamar anteriormente descrito foram fortemente afectados em época moderna aquando da construção do conjunto palaciano. Assim, a intervenção neste sector acabou por revelar contextos romanos mais antigos associados a um importante conjunto de contextos do período romano imperial e republicano, patentes numa série de estruturas que se organizam segundo um urbanismo ortogonal. Os contextos que importa destacar no sector 1, referem-se a compartimentos, sucessivos pisos e infraestruturas hidráulicas datáveis do séc. III d.C. Os muros apresentam-se construídos essencialmente com pedra calcária e arenito de médias dimensões, dispostas em fiadas regulares e ligadas com argamassa. Apresentam em vários casos vestígios de revestimento de estuque (Fig. 22).
Figura 21 – Sector 11: orifício integrado na muralha romana tardia destinado ao escoamento de águas.
Ficaram bem patentes no registo arqueológico as sucessivas reformulações arquitetónicas sobre estas estruturas. É disso exemplo, um muro que tem a particularidade de ter tido uma porta que, em determinado momento, entrou em desuso e foi selada. Ainda que seja igualmente revestido com estuque, o respetivo entaipamento apresenta uma técnica construtiva mais tosca, tendo sido usada areia e argila como materiais de união (Fig.23). Com o avanço da escavação, foram atingidos contextos enquadráveis nos séculos I/II d.C., notando-se uma continuidade na planimetria das estruturas, embora se mostrem com um cariz menos robusto, passando a construção dos pisos dos compartimentos a recorrer à aplicação de argilas. É também notório o surgimento de estruturas negativas, materializadas em fossas e buracos de poste. As estruturas de época republicana, mantendo a mesma ortogonalidade e muros que medeiam os 40cm de largura, apresentam blocos pétreos mais pequenos, apenas afeiçoados nos alçados e ligados por argila, elemento a que se recorreu também para a constituição de pisos (Fig. 24).
Figura 22 – Sector 1: compartimentos de época romana imperial.
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7.1. Compartimento com pavimento musivo
No limite Este da área em análise encontra-se o sector 9 que procura enquadrar o designado compartimento da casa romana. Esta área revelou em 2004 a existência de um compartimento de época romana cheio por depósitos associados à Antiguidade Tardia, tendo-se então realizado uma pequena sondagem de diagnóstico que veio a revelar que as paredes apresentavam uma altura preservada de cerca de 2,75 m, encontrando-se revestidas a estuque decorado e tendo por piso um mosaico com motivos decorativos cordiformes e peltas composto por tesselas brancas e pretas (GOMES, 2004).
Figura 23 – Sector 1: pormenor de porta entaipada.
Figura 24 – Sector 1: estruturas de época romana republicana.
Figura 25 – Sector 9: compartimento de casa romana com estuques pintados e pavimento musivo.
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Dados preliminares de uma Intervenção arqueológica nos antigos Armazéns Sommer (2014-2015)
A continuação dos trabalhos entre 2014 e 2015 veio confirmar a relevância e o bom estado de conservação destes contextos. Todo o compartimento estava selado/ cheio por depósitos associados à Antiguidade Tardia, altura em que o compartimento deverá ter sido abandonado em resultado de uma reorganização geral do espaço. Os depósitos inferiores revelaram vestígios do derrube de uma estrutura em tijolo, que se verificou posteriormente fazer parte de uma parede que subdividia o espaço do compartimento em duas salas. Surgem igualmente abundantes fragmentos de estuques pintados, sobretudo de cor vermelho vivo, que eram parte integrante do revestimento das paredes. Depois de removidos estes depósitos de abandono foi possível verificar que se estava perante um compartimento que possui uma planta de desenho quadrangular (39 m²) com duas portas de acesso a Sul e a Este. No lado Sul foi implantada uma janela ao lado de duas colunas quadrangulares maciças. Nas paredes Norte, Este e Sul é possível observar o revestimento a estuque polícromo em razoável estado de conservação. Na parede Norte, observam-se dois programas decorativos relacionados com a separação do compartimento em duas salas. A decoração do revestimento parietal da sala do mosaico é constituída por painéis retangulares desenhados por linhas negras sobre fundo branco, emoldurados por bandas vermelhas. Na zona do rodapé a mesma temática é empregue, recorrendo-se a uma contracção dos motivos obteve-se uma duplicação do ritmo, passando as linhas negras sobre fundo branco a desenhar cruciformes (Fig. 26). A decoração do revestimento da segunda sala (Este) caracteriza-se pela pintura de painéis rectangulares desenhados por linhas brancas sobre fundo cor laranja com
emolduramento vermelho. Em baixo, o remate é conseguido através do desenho de painéis horizontais que procuram mimetizar a aplicação de almofadados marmóreos. É de notar que, sob a camada superficial de estuque, se observa a existência de níveis de estuque mais antigos. Sensivelmente a meio do espaço e ao longo da parede Norte, encontram-se os negativos de uma divisória que compartimentou a sala em dois espaços, um a Este e o outro a Oeste, cujo derrube foi ainda observado durante a escavação, conforme mencionado (Fig. 26). O piso em mosaico respeita essa divisória encontrando-se em bom grau de preservação na sala que se desenvolve no patamar ligeiramente superior, a Oeste. Para Este o piso é composto por argamassa branca, sendo o mosaico quase inexistente, mas reconhecendo-se contudo vestígios da sua presença ao longo dos limites laterais. O pavimento musivo ocupa toda a extensão da sala apresentando uma geometria rectangular com maior extensão no sentido N-S, sendo o perímetro cercado por uma sucessão de folhas de hera. O terço norte do opus é preenchido pela multiplicação de uma coluna de oito peltas (E-O) por quatro vezes (N-S), obtendo-se o efeito giratório ininterrupto dos moinhos que têm como decoração central o nó de Salomão O motivo central encontra-se virado a sul, emoldurado por guilhoché largo, dois filetes de cor branca e preta enquadram uma grande circunferência subdividida por uma corrente de entrançado de cordões que cria o espaço para sete hexágonos, apresentando-se o central com motivo figurativo e os restantes seis, que o orbitam, ornamentados com medalhões que inscrevem em quatro casos florões com diferentes tipos de folhas, sendo que em dois a conjugação da disposição das folhas configura
Figura 26 – Sector 9: estuques pintados da parede Norte.
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uma estrela de seis pontas. Os restantes dois medalhões inserem estrelas de seis pontas obtidas pela oposição geométrica de dois triângulos equiláteros que alternam a tonalidade dos filetes vermelhos com os azuis. Destaca-se no conjunto o hexágono posicionado no centro do grande círculo, representando a figura de Vénus que se apresenta nua, apoiando o braço esquerdo num objeto (aqui interpretado como remo) enquanto com a mão direita descalça a sandália do pé esquerdo. A cena inscreve-se num ambiente proporcionado por uma grande concha. Sem nos alongarmos muito mais acerca deste conjunto musivo, que será alvo de um foco a si inteiramente dedicado, não queríamos deixar de apontar algumas pistas para o programa temático com que nos deparámos: em primeiro lugar, olhando o mapa cingido pela grande circunferência, facilmente percebemos que seis pontos orbitam um sétimo que neste caso assume a figuração de vénus. Ora, sendo este também uma das sete referências astrais
da Antiguidade, facilmente chegamos à conclusão de que estamos perante a representação do mapa astronómico que dá também o nome latino aos dias da semana. Uma visita a Terraconensis à Casa del planetário dissipa qualquer dúvida. Ali, à semelhança do mosaico dos antigos Armazéns Sommer, um grande círculo alberga sete círculos emoldurados por hexágonos, sendo que em cada um dos círculos encontra-se representado o busto de uma divindade romana correspondente aos astros observáveis a olho nu e correspondentes aos dias da semana, ocupando Vénus o medalhão central (ROMERO, 2009, pp. 191-194). O artífice que executou o mosaico dos armazéns Sommer, apesar de optar por um programa comum ao da Casa del planetário, acabou por dar um rumo estético diferente daquele. Ao invés de uma representação à mesma escala dos sete astros/divindades, são preteridas as representações periféricas de seis, substituídas por uma mais fácil composição de medalhões vegetalistas e geo-
Figura 27 – Sector 9: processo de escavação do mosaico romano.
Figura 28 – Sector 9: Motivo central do mosaico.
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métricos. Permanece, contudo, a representação da Vénus que adquire aqui uma outra dinâmica. A figura é representada de corpo inteiro, recorrendo-se a uma iconografia com raízes antigas, remontando ao período helenístico e percorrendo toda a época Clássica, onde a representação da deusa a descalçar a sandália é recorrente em diversas formas, sendo a escultórica a mais comum. Nesta primeira análise, conjectura-se que esta figura configure uma representação de um dos mais antigos epítetos da deusa, o de Afrodite Euploia, da boa viagem (ROSENZWEIG, 2004, p. 90), protectora dos navegantes. Baseia-se esta teoria no facto de nesta representação a deusa apoiar o braço esquerdo num elemento de cor castanho com direcção oblíqua, divergindo do cotovelo esquerdo para o centro da composição, que se crê ser um remo (atributo que acompanha a deusa nalgumas representações de estatuária). Solidifica esta interpretação o simbolismo sugerido da torrente de água que corre aos pés da deusa encaminhando-se em direção ao Tejo, sacralizando a di-
vindade com a sua presença as águas desta grande via. O mosaico existente nesta área é de facto um elemento que se apresenta uma composição que testemunha o vincado valor do elemento água e dos recursos por ele proporcionados na imagética, cultura e presença romana da antiga Olisipo. 8. Muralhas Romanas O conjunto defensivo de época romana é outro dos importantes elementos registados nas intervenções dos Armazéns Sommer. Vestígios de extrema relevância, encontram-se classificados como Monumento Nacional desde 1910, estando enquadrados no conjunto do Castelo de São Jorge e Muralhas de Lisboa. O conjunto foi identificado na campanha arqueológica de 2005 (GOMES, 2005), tendo as estruturas defensivas sido registadas sob os alicerces dos palácios de épo-
Figura 29 – Piso 0: Vista aérea da área Este das muralhas romanas.
Figura 30 – Sectores 1 e 5: vista interna da muralha romana tardia.
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ca moderna, ao longo do patamar inferior do edificado, desenvolvendo-se segundo uma orientação Este-Oeste, paralelamente à margem direita do rio Tejo (Fig. 29). Logo nesta primeira campanha de escavação, no lado Sul do sector mais a Este, registou-se a presença da base da muralha romana de época imperial, datada do século I d. C. Logo a Norte encontra-se adossada a base da muralha tardia: enquadrada entre os séculos IV/V d. C. (GASPAR, GOMES, 2007, p. 694). A intervenção de 2014/2015 no sector Oeste permitiu perceber que no que diz respeito à muralha imperial se perde o seu traçado na zona central, junto à rampa que serve de cais de embarque dos antigos armazéns de ferro. Contudo, regista-se a continuação da muralha tardia para Oeste. Assim, junto ao cais de embarque, o seu seguimento acaba por servir de base a uma torre construída no local onde a muralha romana tardia faz uma inflexão para SE, vinda de Oeste. A torre que hoje vemos, com provável construção relacionada com a fundação da muralha romana tardia, resulta de uma reformulação de época medieval. Situação que não causa estranheza, observando-se similares adaptaçães de pré-existências romanas em período islâmico3 (ver Fig. 21). Estas previvências materiais mostram uma clara continuidade do pano amuralhado tardo-romano, sujeito a reajustamentos arquitectónicos ao longo dos séculos e utilizado ao longo da época islâmica.
Para Oeste a muralha tardia encontra-se preservada ao nível do seu paramento externo pela base, tendo esta face sido recuada/capeada provavelmente aquando da adaptação do espaço a armazéns de ferro. Já no que diz respeito ao paramento interno, ainda não conhecido, os trabalhos vieram a revelar que se encontra em bom estado de conservação, sendo possível observar o seu escalonamento em associação a posteriores remodelações ainda dentro da fase final do período romano. No limite Oeste a muralha tardia, apesar de algo afectada pelas adaptações palacianas de época moderna, conserva ainda uma altura de cerca de 8 metros, por uma largura preservada de cerca de 5,5m, sendo visível o seu escalonamento na face interna desde a sua base desenvolvendo-se em toda a sua altura. No sector 5, apresenta a continuidade do escalonamento registado no Sector 1. Regista-se, no entanto, contrariamente a este, o recurso ao enrocamento com pedras e argamassa do alicerce da muralha. Neste processo, um muro foi interrompido no seu desenvolvimento sul, servindo o seu topo para descarga de blocos aparelhados da muralha. Lateralmente, os espaços a Este e Oeste foram cheios pelo enrocamento composto por pedras de médio e grande calibre ligadas por argamassa cinzenta muito compacta (Fig. 30). Outro muro foi também incluído neste complexo, uma vez que a sua face Sul foi usada para apoio da muralha. Outro exemplo deste processo do recuo urbano
Figura 31 - Sector 1: Testemunho de muro com estuques pintados, integrado no miolo da muralha romana tardia.
3 Como se refere no ponto “7” deste texto onde se expõe o uso em época islâmica de uma preexistência romana tardia construída na muralha para o escoamento de águas.
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preconizado pelo amuralhamento tardio, comum a muitas cidade da Hispânia nos séculos IV/V, é o testemunho de um muro que corre com orientação E-O apresentando estuques pintados em ambas as faces que foi completamente envolvido no miolo da muralha (Fig. 31). 9. Idade do Ferro Os contextos associados à ocupação da Idade do Ferro surgem essencialmente no sector 1, 4 e 11. Contudo é no designado sector 1 que os vestígios se apresentam em todo o seu vigor, complexidade e importância. Logo por baixo dos contextos relacionados com o período romano republicano regista-se um primeiro nível associado à 2ª Idade do Ferro. Apresentava-se num excelente estado de conservação, sendo composto por uma série de elementos estruturais de planta rectilínea, formado por robustos muros em pedra ligada e revestida por argila, pisos em terra batida e lajeados (Fig. 32). Subsequentemente, numa segunda fase e associado aos alinhamentos iniciais da 1ª fase, regista-se o início do apertar da malha urbana que se desenvolveu sobre os testemunhos mais antigos da ocupação, com arranque enquadrável nos séculos VI/V a.C. O espaço caracterizase por um conjunto robusto composto por uma série de elementos estruturais de planta rectilínea, que se orga-
nizam paralelamente à margem direita do rio Tejo. Esta reformulação poderá estar ligada com o «dinamismo da malha de povoamento que se verifica na foz do Estuário em meados do 1º milénio» (SOUSA, 2013, p. 107), de que são testemunhos os contextos escavados na Rua dos Correeiros. Atingindo-se os níveis freáticos, os indícios de ocupação mais antigos da Idade do Ferro fundam sobre depósitos aluvionares. Configura-se neles um forte paredão com cerca de 1,2 m de espessura e 3 m de comprimento (prolongando-se para Oeste em direção ao Arco de Jesus), que serviria como estrutura amuralhada que protegia e limitava a área urbana da margem do rio. De forma a se obter o acesso entre a margem e o interior do recinto, criou-se uma rampa de acesso ao rio. Contornando estas estruturas registou-se um grande aglomerado de blocos pétreos distribuídos por forma a proporcionarem uma zona de ensecadeira que em alturas de maré baixa poderia ampliar a extensão da rampa (Fig.33). Podemos propor o enquadramento deste momento inicial na denominada I Idade do Ferro Orientalizante (ARRUDA, 2008, p. 15). Há ainda a salientar as semelhanças arquitectónicas que esta fase inicial apresenta com as estruturas mais antigas do sítio de Abul, interpretado como colónia fenícia, localizado na margem direita do rio Sado, na Herdade do Manto Novo de Palma, em Alcácer do Sal (SILVA, 2001, pp. 80, 91).
Figura 32 - Sector 1: Estruturas da Idade do Ferro.
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Figura 33 - Sector 1: Estruturas da Idade do Ferro.
10. Estela Fenícia No sector 11 recolheu-se, em contexto secundário, uma epígrafe fenícia. Este elemento de indubitável importância foi descoberto como componente pétreo reaproveitado na construção de um muro utilizado pelo menos até ao século II d.C. O suporte epigráfico encontra-se sobre um bloco talhado, de calcarenito fino, mais comprido que largo e de pouca espessura (as suas dimensões são
Figura 34 - Sector 11: processo de escavação e surgimento da estela funerária.
244 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
72 x 54 x 10 cm), adquirindo a aparência de uma laje de forma sub-rectangular. Foi encontrada incompleta quer por ter sido cortada para ser encaixada no muro, quer por uma ou várias fracturas anteriores. Com segurança, notase a falta da sua parte inferior; podendo ou não ter sido cortada numa das outras faces (regista-se por exemplo marcas de deterioração na sua face esquerda) (Fig. 34).
Figura 35 - Imagem da epígrafe.
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O seu estudo indica que este elemento corresponde a uma estela funerária, vestígio que indicia a presença na zona de uma necrópole associada à I Idade do Ferro e que vem retratar o ritual de sepultamento de um indivíduo, possivelmente de nome/origem autóctone, sendo possível situar a sua datação paleográfica por volta do séc. VII a. C. A recolha deste artefacto na cidade de Lisboa, junto à fachada Atlântica, vem atestar a presença na antiga Olisipo de uma cultura consolidada, onde personalidades locais já assumiam a escrita fenícia, fazendo-se enterrar segundo rituais de influência orientalizante. A análise e estudo deste importante elemento permite afirmar o papel central que a cidade de Olisipo já teria no século VII a. C. estando assim não só perante o mais antigo testemunho de epigrafia lapidar na zona, como também um dos mais arcaicos em todo o Ocidente (NETO et alii, 2016, pp. 123-128). 11. Conclusão As intervenções nos Antigos Armazéns permitiram registar a presença na frente ribeirinha da cidade de Lisboa de uma longa e continuada sequência ocupacional. Os trabalhos arqueológicos vieram revelar uma série de contextos que são testemunhos únicos das transformações e adaptações de que a cidade é alvo pelo menos desde o período sidérico até aos nossos dias. Mais que elementos em separado, permitem observar o papel evolutivo da cidade, como esta se adapta a diferentes fenómenos culturais de raiz interna e externa, cataclismas (como o terramoto de 1755), períodos de crise e crescimento. Os trabalhos arqueológicos nos antigos Armazéns Sommer representam o imergir no profundo passado da cidade, testemunhando-se diretamente toda a sua sequência temporal e verificando de imediato a sua imensa capacidade de adaptação. Não obstante, encontra-se em toda esta linha de tempo um elemento recorrente: desde a sua origem, na Idade do Ferro, a cidade apresenta-se continuamente aberta para fora, para o mundo que lhe chega vindo mar, que a alimenta e lhe dá força. É este o antigo sentido de Lisboa, uma cidade virada para aquele que chega de fora com uma nova cultura.
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
Propomo-nos a apresentar as evidências arqueológicas registadas no decorrer da intervenção arqueológica realizada em Lisboa, na Rua da Adiça nº 3-3A e 1, Rua São João da Praça, nº 2-4 e 6-8 e Beco do Guedes, nº 2. O conjunto edificado em análise ocupa uma área cujos primeiros vestígios de ocupação humana remontam à Época Romana Imperial, período em que a cidade romana se estendia a oriente até à “Regueira” (atual Rua da Regueira) – limite físico imposto pelo curso de água. Usufruindo também da proximidade de uma porta de entrada na cidade de Olisipo e por consequência de um importante eixo de circulação, as termas identificadas demonstram uma concepção complexa integrada na malha urbana da cidade. Além de uma reflexão sobre a fisionomia da cidade romana de Lisboa, destacando os espaços periurbanos, pretendemos ilustrar, através da cultura material exumada e técnicas construtivas observáveis, o ritual do banho no quotidiano olisiponense. PALAVRAS-CHAVE:
Termas, Alfama, época romana.
ABSTRACT:
This work presents the results of the archaeological intervention in Lisbon at Rua da Adiça n. 3-3A e 1, Rua São João da Praça, n. 2-4 e 6-8 e Beco do Guedes, n. 2. The group of analysed buildings lie on an area of known human occupation since the Roman Imperial period, when the roman city of Lisbon extended Eastward until the Regueira (nowadays Rua da Regueira) - a natural limit imposed by the watercourse. In addition, the buildings are in great proximity to one of the main routes and gates of the city of Olisipo. The thermae here identified show great structural complexity integrated in the urban area. This communication will focus on the shape and development of the roman city of Lisbon by highlighting the layout of the periurban area, in order to contextualise the material culture found during the intervention as well as the construction techniques, with the main aim of understanding the importance of the thermae in the Roman daily life of Olisipo. Key words:
Thermae, Alfama, Roman period.
Às portas de Alfama. Inumação de um jovem indivíduo
3.4
As termas romanas às portas de Alfama
Vanessa Filipe
Arqueóloga vanessagfilipe@gmail.com
Raquel Santos
Neoépica Lda. neoepica@gmail.com
1. Localização As evidências termais identificadas situam-se no conjunto de edifícios compreendidos entre a Rua da Adiça, nº 3-3A e 1; a Rua São João da Praça, nº2-4 e 6-8 e o Beco do Guedes, nº2, antiga Freguesia de São Miguel, atual Freguesia de Santa Maria Maior, Concelho de Lisboa. A sua localização é determinada pela proximidade de nascentes de “águas mineromedicinais”, cuja temperatura rondaria os 20ºC. (RAMALHO, LOURENÇO, 2006, p. 1). O aproveitamento das nascentes termais de Alfama encontra-se documentado arqueologicamente desde a época romana imperial com a descoberta de estruturas balneares, nomeadamente de um possível frigidarium, no sítio do Beco do Marquês de Angeja (FILIPE, CALADO, 2007). No entanto, a maioria das referências históricas sobre ambientes termais reportam-se ao período de dominação islâmica. Numa estreita ligação com os recursos hídricos
surge o nome Alfama - al-Hamma- palavra árabe que significa “termas, fonte de água quente” (SILVA, 2010, p. 85). Na obra de al-Mutamid (séculos XI-XII) observa-se outra alusão à presença de estabelecimentos termais no arrabalde oriental de Alfama – “A leste uma porta, dita Porta de Alfama, que fica próxima da fonte termal situada junto ao mar. São termas abobadadas nas quais brota água quente e água fria (...)” (COELHO, 2008, p. 47). Com a conquista cristã da cidade de Lisboa, no ano de 1147, o testemunho escrito de um cruzado inglês revela, uma vez mais, a existência de elementos hidráulicos urbanos “(...) e há na cidade banhos quentes.” (BRANCO, 2001, p. 34) A integração da urbe lisboeta no Reino de Portugal contempla, posteriormente, uma mudança social e cultural perante a prática do banho. A importância e o valor dado à higiene e o carácter social e recreativo dado aos banhos termais enfrentam uma certa oposição pela Igreja Católi-
Figura 1 – Localização do arqueossítio em mapa da cidade de Lisboa (http://lxi.cm-lisboa.pt/) e em planta segundo Vieira da Silva (Vieira da Silva, 1987).
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Vanessa Filipe, Raquel Santos
ca, na medida em que considera profano tais “intimidades” numa época em que o conservadorismo nos costumes imperava (CANTISTA, 2008-10, p. 82). Contudo, no ano de 1392, uma contenda entre o Abade de Alcobaça e a Câmara Municipal de Lisboa sobre a Cerca Fernandina “em direito de umas casas suas (do Mosteiro) e que são alcaçarias situadas apar da fonte dos cavalos (...)” (RAMALHO, LOURENÇO, 2006, p. 4; apud SILVA, 1987) reflecte a contínua existência de estabelecimentos balneares controlados pelo Clero em período medieval cristão. Os denominados Banhos do Mosteiro de Alcobaça localizavam-se na Rua do Trigo 14-18, Alfama (RAMALHO e LOURENÇO, 2006, p. 4; apud SILVA, 1987) Consideramos assim que a utilização de tais águas benéficas à saúde previve ao longo do tempo mas na centúria de setecentos assiste-se ao revitalizar do termalismo em Alfama com o chamado Grupo das Alcaçarias (LOURENÇO, RAMALHO, 2006, p.1). Nas imediações do arqueossítio em questão, especificamente na Rua da Judiaria, situavam-se as Alcaçarias do Conde de Penela com água tépida a cerca de 23ºC (LOURENÇO, RAMALHO, 2006, pp. 6-7). A sua proximidade alertanos uma vez mais, para a implantação preferencial das evidências termais romanas numa área prolífera em nascentes de água quente. A desactivação dos espaços termais ao longo do século XX e sucessiva massificação urbana ditaram ao esquecimento a importância sobre o aproveitamento termal de Alfama. 2. Análise da intervenção arqueológica 2.1. Idade Contemporânea
Relativamente às estruturas identificadas para este período histórico foi possível verificar a existência de várias fases construtivas, com diferentes concepções do espaço doméstico nomeadamente áreas de índole privada e um espaço ao ar livre de usufruto privado e sua gradual desafectação através da modificação em espaço privado doméstico (descoberta de um piso em madeira que afecta diretamente a calçada novecentista). 2.2. Idade Moderna
Com a remoção das estruturas e depósitos contemporâneos observaram-se níveis de aterro de naturezas distintas, heterogéneos, que cobriam em cerca de 1 a 2m as estruturas romanas relacionando-se possivelmente com a construção do presente edifício no século XVI. Estes depósitos de enchimento demonstram o revolvimento de níveis medievais e romanos já que a par de cerâmica quinhentista se registou cerâmica esmaltada espanhola (século XIV), fragmentos de ânforas (tipo Almagro 50), fragmentos de terra sigillata clara C e terra sigillata sudgálica e hispânica. Numa época de crescimento urbano associado a uma densificação demográfica proporcionada pela riquezas advindas do comércio ultramarino, o Bairro de Alfama assistiria a uma transformação considerável provocada pela crescente importância portuária da Ribeira e pela
248 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
expulsão manuelina dos judeus da “Judiaria Pequena” (PEREIRA, 2006, p. 3). Nesta conjuntura socioeconómica motivada pela expansão portuguesa enquadra-se a construção do presente conjunto de edifícios nos finais do século XVI, com a substituição das casas térreas pelas sobradadas tendo em conta o aumento populacional (CUNHA, 2006; TRINDADE, 2002). O esquema tipológico e elementos arquitectónicos atribuíveis à época de quinhentos são os seguintes: • a presença de típicas cantarias quinhentistas ainda hoje visíveis no primeiro e segundo andar; • os elementos decorativos enquadrados sobre o chanfro que emoldura as portas dos presentes edifícios; • no interior os bancos de pedra junto à janela – as “namoradeiras”; • como vãos exteriores, além das duas janelas dos dois pisos superiores, as casas possuíam duas portas no piso térreo, uma de acesso à loja e outra de acesso à habitação; • as portas não possuem qualquer pormenor decorativo ou recorte correspondendo assim a uma aproximação ao gosto clássico, • tradição construtiva através da partilha das paredes-mestras entre o conjunto edificado. No século XVII, precisamente no ano de 1650, o edifício encontra-se cartografado no mapa de Lisboa de João Nunes Tinoco. Arqueologicamente relacionado com este século, constamos a execução de fossas detríticas que, ao destruírem um pavimento em tijoleira quinhentista também rompem, sob este, estratos de ocupação romana. Deste modo, no seu interior exumou-se panelas completas de asas horizontais torcidas, coevas do século XVII, a par de material cerâmico romano revolvido. Com o terramoto de 1755, sabemos que a Igreja de São Pedro caiu em ruína mas no caso do conjunto edificado em análise a preservação dos dois primeiros andares respeitantes ao século XVI, implica que, pelo menos, as fundações exteriores permaneceram intactas até ao segundo andar. Salientamos que as evidências termais romanas foram “preservadas” pela necessidade de fundar as paredes quinhentistas em algo tão sólido como as estruturas romanas. A anulação e revolvimento de níveis de ocupação medieval são documentados pela busca incessante por solo competente no século XVI – utilizando, sempre que possível, as estruturas romanas como suporte das fundações e quando estas não aparecem é visível o alcance de certas profundidades de diagnóstico geológico e consecutivamente o alargamento das sapatas das fundações. 2.3. Idade Medieval
Apesar do revolvimento dos depósitos medievais produzido pela construção do edificado na centúria de quinhentos foi possível a seguinte leitura arqueológica. A conquista cristã da cidade de Lisboa e sua incorporação no Reino de Portugal contempla a reorganização administrativa e urbana segundo preceitos cristãos. Nesse sentido, assiste-se à origem da Freguesia de São Pedro em 1175, organizada em redor da respectiva Igreja Paroquial (SILVA, 2010, p. 248). A área em estudo encontrase, portanto, dentro dos limites desta freguesia, reconhe-
As Termas Romanas às Portas de Alfama
cida pelo seu carácter mais urbano pois fazia a transição entre a cidade e a periferia (SILVA, 2010, p. 248). Durante o Período Medieval Cristão, a área em estudo por estar localizada defronte para a Igreja de São Pedro, num lugar de sociabilidade e trocas comerciais para os moradores do bairro oriental, não seria ainda urbanizada (SILVA, 2010, p. 243). Salientamos, no entanto, que já se encontrava protegida pela Cerca Fernandina desde finais do século XIV. Relativamente à Época Medieval Muçulmana, o espólio cerâmico exumado no canto sudoeste do edifício apresentava características ligadas ao consumo doméstico e à iluminação, associadas à produção local nas olarias da cidade islâmica de Lisboa, entre os séculos XI e XII (BUGALHÃO, FOLGADO, 2001). Contrariamente aos dados que documentam a adaptação e reutilização dos edifícios termais romanos pelas comunidades islâmicas no Garb alAndalus, como por exemplo as termas de Milreu (SIDARUS, TEICHNER, 1996), neste caso não só as termas foram abandonadas pela sociedade antecessora como também não se observou a urbanização deste espaço durante o período de ocupação muçulmana (Séculos VIII-XII). 2.4. Antiguidade Tardia
Sob os níveis quinhentistas de revolvimento foi identificado um contexto funerário, mais precisamente um indivíduo jovem entre os 12 e os 17 anos, coberto por imbrices e depositado sobre uma estrutura bastante barroca constituída por materiais de construção romanos e pedras de média a pequena dimensão (Fig. 2). Nos depósitos que o cobriam como também na estrutura onde se encontrava depositado exumaram-se fragmentos cerâmicos atribuíveis à Antiguidade Tardia. Note-se que a estrutura funerária parece ter aproveitado a ruína do conjunto termal, não só em termos construtivos como também em termos abstractos e semióticos utiliza a ruína como marco simbólico na paisagem, georreferenciando-a. Estes factos indicam, à partida, uma preocupação com a deposição do indivíduo implícita na escolha do sítio, certamente devido à proximidade da Porta de Alfama. À semelhança do que se verifica em outros estabelecimentos termais romanos, o fenómeno de apropriação do anterior espaço termal e alteração de função social é algo natural neste período histórico. Deste modo, através de concessão pública, e por isso legal, as antigas termas poderiam albergar necrópoles e/ou sítios de extracção de cantarias (FUENTE DOMINGUEZ, 2000, p. 142). Neste sentido, a paisagem periurbana e o paradigma de utilização do complexo termal viria a ser profundamente alterado, nos séculos V a VII, período em que a anulação funcional do sítio converge na sua ruína. E é neste cenário que é inumado o jovem individuo, (séculos V-VII), depositado segundo o ritual funerário cristão, simbolicamente fora do circuito amuralhado e junto a uma das portas de saída da muralha tardo-romana. 2.5. Evidências Termais Romanas
Sob os níveis de enchimento quinhentistas observouse o desenvolvimento da estrutura romana termal, com
Figura 2 – Inumação de um jovem indivíduo.
orientação norte-sul, constituída por elementos laterícios unidos com argamassa oscilando entre uma tonalidade rosada a alaranjada (Fig. 3). Simultaneamente no decorrer da escavação arqueológica compreendemos que tal estrutura se desenvolvia para Nordeste e para Sudoeste formalizando três compartimentos, conservando provável planta semicircular e outro de planta desconhecida. Este complexo demonstra todavia técnicas construtivas diversas, desde a utilização de lateres, opus caementicium, a um sistema construtivo constituído por pedra pequena unida pela mesma argamassa de cor rosada. Centrando-nos no compartimento 1 (Fig. 4) observouse um nível de abandono, constituído por argamassas de tom rosado, material de construção e pedras, que rompe uma camada bastante homogénea de cor negra sem quaisquer vestígios arqueológicos - evidências de combustão. Sob esta camada observou-se a existência de um pavimento constituído por lateres e o arranque de pilae (Fig. 5), cerca de três, além de vestígios de tijolos utilizados nas suspensurae. Os elementos estruturais e estratigráficos acima descritos caracterizam assim um hipocausto, “câmara aquecida pelos gases procedentes de um praefurnium”, ou seja, “uma zona propositadamente construída para favorecer a circulação de ar quente” (REIS, 2004, p. 55). Como tal, a utilização de lateres (material refractário) no pavimento do hypocaustum reflecte um certo cuidado na construção e ajuda-nos a compreender a funcionalidade deste compartimento. Sobre o pavimento surgem os pilae, constituídos por tijolos quadrangulares unidos por argamassa com bastante cal, daí a sua tonalidade branca, onde se apoiariam os arcos para suporte do solo de um caldarium ou tepidarium, por exemplo.
Uma cidade em escavação
249
Vanessa Filipe, Raquel Santos
Figura 3 – Vista Geral sobre as evidências termais romanas.
Figura 5 – Pillae. Figura 4 – Perspectiva sobre o Compartimento 1.
250 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
As Termas Romanas às Portas de Alfama
Figura 6 – Perspectiva sobre o Compartimento 2.
Figura 7 – Outra perspectiva sobre o Compartimento 2.
Figura 8 – Perspectiva sobre o Compartimento 3.
O segundo compartimento encontrava-se preenchido por um depósito de argilas esverdeadas, cujo material cerâmico (por exemplo: panelas produzidas manualmente com forma em “S”) se enquadra na Antiguidade Tardia. Sob esta camada identificou-se substrato rochoso, aproveitado e afeiçoado pela estrutura romana, visualizando-se também o arranque de três pilaretes (Fig. 6 -7). Um dos pilaretes foi recortado na rocha, identificando-se ainda vestígios de argamassa branca e restos de tijolo, os outros dois adossam à estrutura termal romana. A detecção de materiais cerâmicos correspondentes à Antiguidade Tardia no estrato que preenche o compartimento 2 sugere a destruição dos elementos termais até à base, que se interligavam através de arcos de forma a suspenderem os pisos superiores e aquecerem um possível um sudarium, durante este Período Histórico. Associado à estrutura romana e ao substrato rochoso observámos um nível de preparação de pavimento formado por opus caementicium, onde provavelmente assentaria um piso em lateres. O presente espaço de morfologia semicircular e funcionalidade distinta poderá corresponder a um outro hipocausto. Esta possibilidade é apontada pelas características acima mencionadas (pavimento feito com possíveis materiais refractários e vestígios de três pilaretes) além de se observar no substrato rochoso vestígios de exposição ao fogo ou gases quentes. Apesar das dificuldades inerentes a uma interpretação deste conjunto, devido aos condicionalismos da intervenção em causa, pensamos que a alimentação dos hipocaustos realizar-se-ia através de um sistema de tubo externo presente no forno, do qual guarda memória a existência de dois lateres sobre a estrutura, colocados de forma transversal aos dois compartimentos descritos. No prolongamento do compartimento 2 em direcção a sul detectamos o compartimento 3, oferecendo possível planta semicircular (Fig. 8). O facto de as estruturas que delimitam este espaço terem sido aproveitadas para a construção da Fachada Norte e, de igual modo, a construção da parede este afectar em profundidade as evidências termais, impede a obtenção das dimensões e funcionalidade deste compartimento. No contexto temporal a que atribuímos fases de remodelações do complexo termal (neste caso uma fase anterior), integra-se a estrutura murária (Fig. 9) realizada em blocos de calcário, unidos por argamassa de coloração alaranjada e de forte consistência, aproveitando e modificando o substrato rochoso às suas necessidades. Prolongando-se em ambos os sentidos, nascente e poente, estrutura murária apresenta-se bastante robusta com cerca de 0,90 m de largura, cujo topo surge a cerca 1,62 m de profundidade da cota actual da soleira de porta do edifício. Relacionada possivelmente com o edifício romano original, a estrutura em questão serviu posteriormente como embasamento ao complexo termal reconhecido, obrigando à elevação de cota de toda a área termal. Este último argumento também poderá ser comprovado pela construção do compartimento 1, executado de encontro e aproveitando a compacidade dada pelos depósitos de argilas esverdeadas e pela edificação do presente muro sobre as compactas argilas alaranjadas, identificadas, apenas, a cerca de 1m acima do substrato rochoso reconhecido
Uma cidade em escavação
251
Vanessa Filipe, Raquel Santos
nesta área particular. Infelizmente, não foram detectados quaisquer materiais arqueológicos associados, facto que impossibilita a sua aferição cronológica. A posterior ocupação romana invalida assim uma leitura funcional e espacial acerca desta imponente estrutura. 3. As Termas Romanas às Portas de Alfama O local de implantação do complexo termal, intimamente ligado a uma linha de encosta, denuncia a sua proximidade a águas termais (pelas quais Alfama é historicamente conhecida) e a facilidade no acesso a madeira, necessária ao processo de aquecimento das águas no edifício termal. Usufruindo também da proximidade de uma porta de entrada na cidade de Olisipo e por consequência de um importante eixo de circulação, o local onde as termas foram identificadas demonstra uma concepção complexa integrada na malha urbana da cidade. No entanto, a área na qual foram descobertas as evidências de estruturas termais corresponde a um espaço extramuros a partir dos séculos III-IV, de acordo com a intervenção arqueológica dirigida pela arqueológa camarária Manuela Leitão no sito Pátio de Senhora de Murça e Rua de São João da Praça (PIMENTA et alii, 2005; SILVA, 2015, p. 42). Apesar das sucessivas ocupações humanas e afectações de que o estabelecimento termal foi alvo podemos indicar algumas cronologias de utilização e amortização do espaço balnear. 1. As estruturas são construídas no decorrer do século I d.C, sobre uma estrutura de origem romana de função desconhecida; e encontram-se integradas na organização interna da malha urbana de Olisipo (identificação de fragmentos de terra sigillata itálica, entre outros fácies cerâmicos atribuíveis ao século I d.C.); 2. Posteriormente com a construção da muralha nos finais do século III-IV o edifício termal é anulado funcionalmente, possivelmente por uma questão de proximidade do lanço defensivo. 3. A inumação de um jovem indivíduo, segundo ritual funerário cristão, durante a Antiguidade Tardia, revela a total ruína a que o sítio se encontrava dotado neste período histórico. Muito embora seja necessário sistematizar e aprofundar o estudo dos materiais arqueológicos exumados, as datações contextuais sobre os fragmentos cerâmicos analisados até ao momento, indicam-nos tais balizas temporais. Enquanto símbolo físico da mentalidade romana, o complexo termal identificado apresentaria um esquema funcional caracterizado pela alternância entre ambientes quentes (caldarium), tépidos (tepidarium) e frios (frigidarium). A existência de uma área de laconicum e/ou sudatio também poderia configurar a planta do presente estabelecimento balnear. Não obstante, a exiguidade da área colocada a descoberto e sua correspondência com a base dos complexos balneares permite-nos apenas compreender que a existência de dois sistemas de hipocausto compõem um bloco para facilitar a concentração de calor e sucessivamente aquecer os ambientes quentes, tépidos ou de sauna implantados num piso
252 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 9 – Detalhe da estrutura murária sob as evidências termais.
superior. A ausência de outros elementos estruturantes termais (frigidarium, por exemplo) traduz-se em informações sobre o provável prolongamento do edifício termal para sul (para norte e oeste foi alvo de escavação arqueológica), além dos sucessivos reaproveitamentos das estruturas romanas por posterior ocupação humana no século XVI. Segundo Vitrúvio, as salas quentes deverão ser orientadas para poente ou para sul (MACIEL, 2006, p. 248), solução para manter as temperaturas ideais para a prática do banho verificada na orientação sudoeste dos compartimentos 1 e 2. Relativamente aos pisos superiores, onde o utente usufruía dos diferentes ambientes termais, numa lógica de purificação e relaxamento do corpo proporcionada pela alternância dos espaços com suas distintas temperaturas, a descoberta nos níveis de revolvimento quinhentista de elementos decorativos parietais, tais como estuque pintado numa tonalidade vermelha e identificação de fragmentos de mosaico polícromo decorado com elementos geométricos sugere um certo cuidado com a apresentação estética do espaço balnear. A constante originalidade na concepção de umas termas no mundo civilizacional romano resulta na dificuldade de adscrição tipológica e cronológica impedindo, neste caso, o desenho hipotético da sua planta. Por sua vez,
As Termas Romanas às Portas de Alfama
dificulta também o conhecimento sobre a sua área e por conseguinte dados sobre seu carácter público ou privado. No entanto, os espaços intervencionados sugerem uma tipologia formal similar à planta do caldarium e sudatio evidentes nas termas privadas de Conímbriga - a Casa de Cantaber (REIS, 2004, p. 68). Por último, nesta abordagem preliminar às evidências termais identificadas na Rua da Adiça com a Rua de São João da Praça pretendemos dar a conhecer a existência de um complexo termal de origem romana situado numa área sensível da cidade de Olisipo fundamental para o ensaio de novas hipóteses de investigação sobre a evolução da malha urbana.
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Uma cidade em escavação
253
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
Pretende-se elaborar uma síntese dos conjuntos de cerâmica comum, exumados nos níveis de abandono do complexo industrial de preparados piscícolas do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC), Lisboa, datados da primeira metade do século V d.C. Neste local foi recuperado abundante espólio cerâmico que pode ser rastreado, do ponto de vista tecnológico e formal, a alguns centros oleiros da região, produtores de ânforas e de cerâmica comum. As formas identificadas no NARC indiciam uma utilização no contexto industrial de preparação de molhos e conservas de peixe, revelando vestígios compatíveis com essa função, com especial destaque para as formas de cozinha e de preparação. Procura-se efetuar uma leitura integrada do conjunto e discutir o significado arqueológico da problemática da sua produção, consumo e distribuição no contexto regional. PALAVRAS-CHAVE:
Cerâmica comum local e regional, cozinha, armazenamento, preparação, unidades industriais, preparados piscícolas.
ABSTRACT:
The following paper offers a brief synthesis on the common coarse ware from the industrial salted fish sauce complex of Rua dos Correeiros (NARC) in Lisbon. A large significant amount of coarse ware was recovered from the site’s abandonment levels dated from the 1st half of the 5th century AD and its forms and fabrics can be mainly related to the industrial amphorae and common ware kilns located in the lower Tejo region. The typological series identified at NARC seem to have been used in the transformation process of fish salted sauces, mostly represented by “kitchen” and preparation ware with usage marks. The archeological meaning of those contexts in the regional context is discussed from the production, consumption and distribution point of view. Key words:
Local and regional common ware, “kitchen” ware, preparation ware, industrial complexes, salted fish sauces.
Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros. Tabela síntese das formase variantes tipológicas identificadas no NARC, na fase IV
3.5
A cerâmica comum de
produção local e regional do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa. Os contextos fabris
Carolina Grilo
UNIARQ/FLUL, FCT ramosgrilo.carolina@gmail.com
1. Introdução O presente artigo pretende apresentar uma breve síntese sobre a cerâmica comum romana exumada nos contextos de abandono da fábrica de salga do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC) em Lisboa1. Situado na zona ribeirinha na antiga margem do esteiro do Tejo, onde se reconhece uma intensa atividade de transformação e produção de preparados de peixe, o complexo industrial romano identificado no NARC terá laborado entre os meados do século I d.C. e a primeira metade do século V d.C. e faria parte da rede de indústrias de preparados haliêuticos da região, testemunhando a importância dos recursos marinhos na economia de Felicitas Iulia Olisipo (FABIÃO, 2011). Além do conhecimento sobre os modelos produtivos e dinâmicas comerciais da cidade romana, os trabalhos arqueológicos aí desenvolvidos permitiram a recuperação de um acervo material que tem vindo a ser publicado ao longo dos anos e na lógica do qual o presente trabalho se insere. 2. O complexo industrial Sobre o complexo industrial romano do NARC foi já dado à estampa um trabalho monográfico (BUGALHÃO, 2001) e um vasto manancial de artigos científicos (AAVV, 1995; BUGALHÃO, SABROSA, 1995; AMARO, BUGALHÃO, SABROSA, 1996). Contudo, a fim de con1 Este trabalho insere-se no âmbito de um projeto de doutoramento financiado pela FCT que comporta a análise das produções de cerâmica comum romana de produção local e regional e de importação deste e de outros espaços da cidade de Olisipo e a sua contribuição para o estudo da economia local da cidade romana.
textualizar o presente trabalho, importa reter que foram aí escavadas 31 estruturas relacionadas com a produção de preparados piscícolas, de dimensões e funcionalidades diferentes, organizadas em seis unidades compostas por conjuntos de tanques com pátios e zonas de acesso implantadas ao longo da margem (BUGALHÃO, 2001). Estas estruturas eram revestidas a opus signinum e cobertas por telhados dos quais foram identificados os derrubes no interior após o seu abandono. A presença de restos de salga nas camadas de revestimento do fundo de alguns destes tanques indica com alguma segurança que a maioria destas estruturas destinar-se-ia à produção de conserva de peixe salgado, embora a presença de tanques mais pequenos sugira também a produção de molhos como garum, liquem ou muria, entre outros (Idem, 2001). A caracterização crono-estratigráfica dos conjuntos artefactuais do local permitiu estabelecer cinco fases ou momentos de ocupação relacionados com as ocupações romanas2: um primeiro horizonte de ocupação pré-fabril, relacionado com a presença de uma necrópole de cronologia centrada entre os reinados de Augusto e Cláudio (BUGALHÃO et alii, 2013); o horizonte de construção de um eixo viário sudoeste de Olisipo e do complexo industrial, que terá decorrido entre a época Flávia e um momento indeterminado dos finais do século I, do qual se conservam poucos vestígios (BUGALHÃO, 2001); a remodelação de algumas estruturas fabris e a construção de estruturas habitacionais anexas entre os finais do século II e os inícios do século III (Idem, 2001); o abandono do complexo industrial num momento indeterminado na 2 Cronologia estabelecida no âmbito do estudo em curso do espólio anfórico e das cerâmicas finas do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC) por uma equipa constituída por: Jacinta Bugalhão, Carlos Fabião, Rui Roberto de Almeida, Catarina Viegas, Sofia Gomes e Carolina Grilo.
Uma cidade em escavação
255
Carolina Grilo
Figura 1 - Planta do complexo industrial e estruturas romanas do NARC.
primeira metade do século V, e, um enterramento aparentemente isolado, atribuído genericamente a cronologias tardo-antigas, (DUARTE, 2001) momento em que o local deverá ter sido frequentado em moldes ainda desconhecidos (GRILO, FABIÃO, BUGALHÃO, 2013). Embora todas as fases de ocupação do local contenham avultado espólio arqueológico com cerâmica comum romana, são os contextos arqueológicos relacionados com o abandono do complexo industrial que serão alvo de apresentação no presente artigo, por se relacionarem, ainda que de forma indireta, com a desativação das estruturas e com o fim da produção de preparados piscícolas. Correspondem maioritariamente a contextos confinados no interior das cetárias sobre os níveis de salga e a camadas de abandono depositadas diretamente sobre os pátios das unidades fabris (BUGALHÃO, 2001). Entre os materiais datantes, integram a fase de abandono ânforas de produção lusitana dos tipos Almagro 50, 51c, 51 a-b, Lusitana 1, 3 e 9, TSAfr C e D dos tipos Hayes 50, 61, 61B, 67 e 913 (BUGALHÃO, 2001) e cerâmicas comuns de produção local/regional e importadas (Figs. 2 e 3). 3 O restante espólio do NARC encontra-se igualmente em estudo e a sua revisão crono-estratigráfica permitirá certamente estabelecer com maior precisão o momento do abandono destas unidades.
256 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Categoria
Origem
Ânforas
Terra sigillata
Par. Finas
Lucernas
Cerâmica comum
Total
NMI
NMI
% Categ.
147
147
12,65%
76
6,54%
1
0,09%
5
0,43%
7
0,69%
TSI
2
TSS
3
TSH
3
TSAfr A
17
TSAfr C
8
TSAfr D
39
TSHt
4
Bética
1
Itálica
1
Africana
2
Loc./Reg.
2
Bética
3
Culin.Afric.
3
Oriental
1
Loc./Reg. (vale do Tejo)
925
925
79,60%
1162
1162
100,00%
Figura 2 – Categorias cerâmicas da fase IV do NARC.
A cerâmica comum de produção local e regional do Núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa
Origem
Cat. Funcional
Cozinha
Preparação Local/Regional (Vale do Tejo) Armazenamento
Serviço
NMI
Freq. NMI Total
Freq. NMI % Produção
Prato covo
94
10,16%
10,01%
52
5,62%
Tacho
49
5,30%
5,22%
23
2,49%
Pote/Panela
353
38,16%
37,59%
101
10,92%
Tampa
51
5,51%
5,43%
26
2,81%
Total Coz.
547
59,14%
202
21,84%
Formas
Bacia
7
0,76%
0,75%
1
0,11%
39
4,22%
4,15%
6
0,65%
Alguidar
77
8,32%
8,20%
13
1,41%
Cântaro
36
3,89%
3,83%
4
0,43%
Funil
4
0,43%
0,43%
0
0,00%
Total Prep.
163
17,62%
24
2,59%
Talha
12
1,30%
1,28%
2
0,22%
Potinho
30
3,24%
3,19%
5
0,54%
Jarro
61
6,59%
6,50%
8
0,86%
Bilha
12
1,30%
1,28%
2
0,22%
Tigela
57
6,16%
6,07%
11
1,19%
Prato
43
4,65%
4,58%
10
1,08%
Total Serv.
203
21,95%
36
3,89%
925
100,00%
98,51%
264
28,54%
Bética (Costa Ocidental)
Bilha
2
28,57%
0,21%
Bética (Vale do Guadalquivir)
Almofariz
1
14,29%
0,11%
Total Bet.
3
42,86%
0,32%
H23
1
14,29%
0,11%
H195
1
14,29%
0,11%
H196B
1
14,29%
0,11%
Total CCA
3
42,86%
0,32%
Almofariz
1
14,29%
0,11%
Total Importações
7
100,00%
0,75%
Indeterminada
7
100%
0,75%
Total NMI
939
Mediterrâneo Oriental (N. Síria)
Freq. % uso
Almofariz
Total
Norte de Africa (CCAfr.)
Vest. Uso (NMI)
100,00%
Figura 3 – Tabela síntese da cerâmica comum da fase IV.
3. A cerâmica comum dos contextos fabris do NARC 3.1. Composição da amostra: caracterização e critérios metodológicos
A maioria da cerâmica comum dos momentos de abandono do complexo industrial é oriunda das cetárias das fábricas 3,4 e 6, com especial destaque para os tanques 12 e 23 da fábrica 3 que forneceram os conjuntos mais substanciais (Fig. 1). Algumas das restantes estruturas continham deposições similares, profundamente alteradas por reutilizações de época islâmica e pela
construção do edifício pombalino4. A amostra desta fase é composta por cerca de 925 indivíduos (NMI) de produção local/regional que foi possível enquadrar num modelo tipológico particular, observando-se de forma quase residual a presença de importações da província da Bética, cerâmicas culinárias norte africanas e do Mediterrâneo Oriental (Fig. 3). O princípio metodológico seguido para a análise do conjunto teve por base o estabelecimento de grupos 4 Cabe registar que estas continham materiais de cronologias posteriores, embora com elevada percentagem de formas de cerâmica comum romana de características formais e tecnológicas semelhantes aos conjuntos das cetárias 12 e 23.
Uma cidade em escavação
257
Carolina Grilo
de fabrico e a sua caraterização morfológico funcional. A base tipológica assentou no estudo desenvolvido pelos investigadores do Museu do Homem que agrega os recipientes em categorias formais (abertas e fechadas) em função do grau de abertura máximo dos recipientes (BALFET, FAUVET-BERTHELOT, MONZON, 1983). Este foi igualmente o principio que norteou o estudo da cerâmica de produção local da olaria romana da Quinta do Rouxinol, um dos principais centros oleiros conhecidos do Baixo Tejo cujas produções de cerâmica comum foram alvo de estudo detalhado (SANTOS, 2011). Nesse sentido, considerámos que a utilização da mesma metodologia se revelou mais eficaz para determinar o enquadramento crono-morfológico das formas cerâmicas dentro do mesmo espaço geográfico, contribuindo progressivamente para o conhecimento destas produções numa região onde os dados são ainda escassos e pouco estruturados. Com efeito, com exceção do estudo das produções daquele centro oleiro, contamos unicamente com notícias preliminares para os outros centros produtores da região: Porto dos Cacos, Alcochete (RAPOSO, DUARTE, 1996), Garrocheira, Benavente (AMARO, 1990), Porto Sabugueiro, Muge (CARDOSO, RODRIGUES, 1996) e com dados de alguns locais de consumo da região de Lisboa e do Baixo Tejo (NOLEN, 1988; SILVA, 2015; SILVA, NOZES, MIRANDA, 2015; QUARESMA, no prelo; GRILO, no prelo; GRILO, SANTOS, 2016/2017). Embora este panorama esteja progressivamente a mudar com o desenvolvimento da pratica arqueológica e com o destaque que estas produções têm conhecido nos últimos anos, os estudos sobre a cerâmica comum continuam a estar centrados na caracterização morfo-tipológica destas produções e menos na problemática da sua produção, consumo e distribuição no contexto regional. A importância de estudos integrados e de análises cumulativas é, portanto, fundamental para entender as lógicas de produção e distribuição das cerâmicas comuns a nível local e regional. 3.2
Produções regionais
No quadro dos fabricos locais identificaram-se quatro matrizes cerâmicas maioritárias5 (1, 2 ,3 e 4) pertencentes ao grupo regional do Baixo Tejo, três compostas por pastas não calcárias e uma de eventual pasta caulinítica. As três primeiras inscrevem-se nas descrições conhecidas para as pastas do vale do Tejo elaboradas a partir dos estudos anfóricos (RAPOSO et alii, 2005) e mais recentemente pelo já citado estudo das produções de cerâmica comum local e regional do centro oleiro da Quinta do Rouxinol (SANTOS, 2011). O grupo 4 e os grupos minoritários 5 e 6 têm vindo a ser individualizados no curso das investigações a decorrer sobre a cerâmica comum romana na região (Grilo, no prelo; Grilo, Santos, , 2016/2017) e devem estar relacionados com processos tecnológicos diferenciados e menos com diferenças de cotejo mineralógico. Por último, o grupo 7 não fornece elementos suficientemente característicos para validar uma origem sem recurso a outros critérios. 5 O processo de definição de grupos de fabrico foi efetuado com base numa análise macroscópica das pastas cerâmicas, necessitando da devida comprovação arqueométrica.
258 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Grupo 1 – Pastas de matriz não-calcária de cor castanho alaranjado com textura variável, de conformação a torno, podendo ir do grosseiro (1), médio (2), ao fino (3), por vezes com vacúolos. A dureza é frequentemente branda, com uma presença assinalável de pastas duras. Entre os elementos não plásticos destacam-se: quartzos subarredondados de dimensão variável e de frequência média a elevada; palhetas de moscovite de dimensão fina a média com presença significativa; pequenos picos ou nódulos maiores avermelhados que podem corresponder a minerais ferruginosos ou cerâmica triturada com uma frequência geralmente reduzida. Grupo 2 – Pastas de eventual matriz caulinítica de cor bege ou branca, de conformação a torno, com uma textura média (2) a fina (3), por vezes com vacúolos. A dureza é geralmente branda, porém em peças bem cozidas pode ser bastante dura. Entre os elementos não plásticos destacam-se quartzos subarredondados de dimensão variável e de frequência média a reduzida; palhetas de moscovite pequenas com presença média; elementos rochosos angulosos ou subarredondados de coloração avermelhada de dimensão muito pequena, com frequência reduzida; alguns minerais negros de dimensão muito reduzida e frequência rara. Grupo 3 – Pastas de matriz não-calcária com coloração bege rosado a rosa avermelhado, de conformação a torno. A textura varia entre média (2) a fina (3) e dureza entre branda e muito dura. Os elementos não plásticos visíveis são: quartzos subarredondados de dimensão variável e de frequência média a elevada; palhetas de moscovite pequenas e com uma presença média; nódulos avermelhados que podem corresponder a minerais ferruginosos ou cerâmica triturada, com uma frequência geralmente reduzida. A dimensão pode variar entre o fino e o muito grosseiro. Grupo 4 - Pastas de matriz não-calcária de cor castanha, de conformação a torno, com textura variável, podendo ir do grosseiro (1), médio (2) ao fino (3), por vezes com vacúolo. A dureza é frequentemente branda e friável com alguma presença de pastas duras, sendo as muito duras praticamente inexistentes. Os elementos não plásticos são: quartzos subarredondados de dimensão variável e de frequência média a elevada; feldspatos subarredondados de dimensão variável e frequência média a elevada; palhetas de moscovite com um tamanho que varia entre o fino e o médio e uma presença muito significativa; nódulos avermelhados que podem corresponder a minerais ferruginosos ou cerâmica triturada, com uma frequência geralmente reduzida. Grupo 5 - Pasta de matriz não-calcária cor de laranja rosada a castanha, de cozedura oxidante com tendência heterogénea, de conformação a torno, com textura variável entre o grosseiro (1), e o médio (2). A compactação é reduzida e a dureza é frequentemente dura com vacúolos. Os elementos não plásticos são abundantes: quartzos subarredondados ou por vezes tendencialmente angulosos de dimensão variada com inclusões arenosas de frequência elevada; moscovites de média e pequena dimensão; nódulos de óxidos ferruginosos de grande dimensão de frequência média a reduzida. Grupo 6 - Pasta de matriz não-calcária cor laranja avermelhada de cozedura heterogénea a irregular, de
A cerâmica comum de produção local e regional do Núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa
conformação a torno, com textura variável entre o grosseiro (1) e o médio (2). A compactação é reduzida e a dureza é branda. Os elementos não plásticos são abundantes: quartzos subarredondados de dimensão variada com inclusões arenosas de frequência elevada; moscovites de média e grande dimensão; nódulos de óxidos ferruginosos de com frequência geralmente reduzida. Grupo 7 - Pastas de matriz não-calcária de cor castanho alaranjado, de conformação a torno, com textura variável, podendo ir do grosseiro (1) ao médio (2), por vezes com vacúolos. A dureza é frequentemente branda, com presença de algumas pastas duras. Entre os elementos não plásticos destacam-se: quartzos subarredondados de dimensão variável e de frequência média a elevada; palhetas de moscovite com um tamanho que varia entre o fino e o médio e uma presença significativa; inclusões negras de forma angulosa com uma frequência baixa a média e raros minerais ferruginosos. 3.2.1 Formas
As formas representadas nos níveis de abandono do complexo industrial do NARC correspondem a um conjunto de produções relativamente homogéneo que terá sido utilizado no quotidiano daquele polo de transformação. Por ser impossível tratar detalhadamente o universo da amostra efetuamos uma breve síntese das formas presentes que refletem genericamente as tipologias existentes nos centros produtores da região do Tejo (RAPOSO, DUARTE, 1996;CARDOSO, RODRIGUES, 1996; SANTOS, 2011), com maior expressão nas formas de cozinha e de preparação/transformação de alimentos a frio, coadunadas ao contexto de transformação de preparados piscícolas, assim como de algumas formas de serviço como as tigelas, os jarros, os pratos ou os potinhos.
3.2.1.1. Cerâmica de cozinha A cerâmica de cozinha é a categoria mais representada integrando pratos covos, tachos, potes/panelas e tampas (Figs. 6 e 7). As variantes identificadas destacam perfis simples e pouco elaborados, de acentuada homogeneidade tecnológica quer ao nível das matrizes cerâmicas e da conformação, como dos acabamentos, por norma simples, sem engobes e sem decoração. Observa-se uma tendência para a estandardização da capacidade volumétrica dos recipientes, mais frequente nas formas fechadas. Os pratos covos totalizam 10,16% do conjunto, com diâmetros centrados entre os 26cm e os 36cm. Esta padronização é também evidente ao nível da conformação, dominada pelos grupos 1 e 4. Em termos formais, estão presentes variantes de bordo direito arredondado ou horizontal (Fig. 6, nº1) ostentando em alguns casos a presença de caneluras para colocação da tampa, variantes de bordo triangular (nº3) e variantes de bordo voltado para o interior (nºs 2, 4 e 5). Estas últimas estão tipificadas nas séries produzidas na Quinta do Rouxinol (SANTOS, 2011) de bordo simples (variante 1.2.3.1) e de bordo amendoado (1.2.3.3). As formas de bordo voltado para o interior simples são as mais representadas, com alguma variedade de perfis e bordos (nº 4) destacando-se a presença de uma forma elíptica (nº 5). Embora seja plausível admitir a sua utilização como loiça de serviço, a produção e disseminação destas formas na região olisiponense parece confirmar que se tratam de recipientes preferenciais no repertório oleiro da região em momentos baixo-imperiais, ideais para a confeção de alimentos a quente (SANTOS, 2011, p. 58; GRILO, no prelo). Com efeito, 5,62% dos pratos covos desta fase possuem vestígios de utilização (Fig. 4) como presença de fuligem e resíduos carbonizados, subsistindo igualmente recipientes com vestígios de marcas de objetos cortantes que deverão estar relacionados com a preparação alimentar.
Figura 4 –
Formas e vestígios de uso da cerâmica comum do NARC.
Uma cidade em escavação
259
Carolina Grilo
Figura 5 – Distribuição percentual dos grupos de fabrico pelas formas e categorias funcionais.
O grupo formal dos tachos soma 5,30% da cerâmica de cozinha (Fig. 6, nºs 6 a 9), observando uma constância volumétrica e tecnológica (Fig. 5), que, à semelhança da forma anterior, poderá indicar uma especialização funcional. Cerca de 2,49% dos recipientes possuem vestígios de exposição a fogo (Figs. 3 e 4). As variantes presentes nesta fase destacam perfis ovoides simples, com diferenças ao nível do bordo: dobrado sobre o ombro (Fig. 6, nºs 7 e 8), direito (nº 6) e oblíquo (nº 9). São os tachos de bordo dobrado sobre o ombro e perfil tendencialmente ovoide que auferem maior representação, com bordos mais ou menos espessados ou prismáticos e caneluras para colocação de tampas. Embora se trate de uma variante documentada em diversos contextos urbanos de Olisipo desde o século I e II (QUARESMA, 2014, fig. 6, nº15; SILVA, 2015) exemplares semelhantes aos do NARC vigoram entre os conjuntos do centro oleiro da Quinta do Rouxinol na variante 2.1.7.2 (SANTOS, 2011) em contextos de produção tardios. É também neste local que encontramos paralelos para os tachos de bordo direito com perfis tendencialmente carenados e para os tachos de bordo oblíquo, nas variantes 2.1.4.2 e 2.1.4.2 respetivamente (Idem, 2011). No NARC, os primeiros apresentam lábios mais curtos e espessados, por vezes com caneluras para assentamento de tampas e perfis direitos ou ligeiramente carenados. O grupo formal mais representado na categoria de cerâmica de cozinha são os potes/panelas, com cerca de 38, 16% da amostra e um índice de utilização igualmente alto, situado nos 10,63% (Fig. 4). Apesar de uma maior
260 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
diversidade de grupos de fabrico, (Fig.5) continua a ser expressivo o peso dos grupos 1 e 4 face aos demais. Formalmente, o destaque vai para a variante de bordo voltado para o exterior com perfil ovoide que representa mais de metade dos recipientes desta fase (Fig. 6, nºs 12 e 13). Trata-se de uma variante de largo espectro cronológico documentada nos contextos produtores do vale do Tejo desde o Alto-império (CARDOSO, RODRIGUES, 1996, fig. 2, nº 13; RAPOSO, DUARTE, 1996, fig. 9, nºs 3 a 7), cuja produção se mantém até meados dos séculos IV-V, conforme atestam os dados do forno 2 do Porto dos Cacos, Alcochete (RAPOSO, DUARTE, 1996, p. 252) e da olaria romana do Rouxinol, onde está tipificada na variante 2.2.4.1. (SANTOS, 2011). A sua presença está também registada em locais de consumo de cronologias baixo imperiais da região (NOLEN, 1988; SANTOS, SABROSA, GOUVEIA, 1996, fig. 3 nº21). A segunda variante mais representada no NARC são os potes/panelas de bordo direito com asas verticais (Fig. 6, nº 10 e 11). Os exemplares documentados apresentam perfis ovoides e globulares, com bordo e colo direito, por vezes ligeiramente infletido, à semelhança das formas identificadas no repertório do centro produtor da Quinta do Rouxinol designadas como 2.2.2.1 (SANTOS, 2011, p. 80). A expressão desta variante entre os conjuntos do NARC deve ser enfatizada uma vez que, tal como os pratos covos, corresponde a um modelo formal tipicamente baixo-imperial de acentuado cariz regional já identificado em outros contextos urbanos (DIOGO, TRINDADE, 2000), que tem vindo a adquirir maior expressão na região (NOLEN, 1987; GRILO, SANTOS, 2016/2017).
A cerâmica comum de produção local e regional do Núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa
Figura 6 – Formas de cerâmica comum representadas no NARC. Cerâmica de cozinha (1 a 13).
Uma cidade em escavação
261
Carolina Grilo
Figura 7 – Formas de cerâmica comum representadas no NARC. Tampas (14 a 16). Cerâmica de preparação e armazenamento (17 a 29).
262 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
A cerâmica comum de produção local e regional do Núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa
Figura 8 –
Formas de cerâmica comum representadas no NARC. Cerâmica de mesa/serviço (30 a 53).
Uma cidade em escavação
263
Carolina Grilo
Por último, na loiça de cozinha incluímos também as tampas, um objeto acessório que permite fechar recipientes com funções muito diversificadas, mas cujas dimensões, na sua maioria, se coadunam à utilização com os pratos covos, os tachos e os potes/panelas (Fig. 7, nºs 14, 15 e 16). 2,81% dos exemplares apresentam sinais de utilização em ambiente culinário, destacandose as formas de bordo simples com pega discoide. 3.2.1.2. Cerâmica de preparação e de armazenamento Esta categoria funcional corresponde a 18,92% do conjunto e inclui um conjunto de recipientes que deverão estar relacionados com as tarefas de preparação e transformação dos preparados de peixe e a maceração de molhos e salgas: alguidares, almofarizes, cântaros e funis (Fig. 7). Por se tratarem de formas relacionadas com o contexto artesanal dos produtos e subprodutos haliêuticos, optámos por agrupar as talhas que correspondem a recipientes de armazenamento sob esta categoria única. Conforme sublinhado a propósito da cerâmica destinada à cozinha, também este grupo apresenta uma coerência formal e tecnológica realçando o cariz utilitário destas produções. Os alguidares possuem a maior percentagem 8,32% do conjunto de loiça de preparação. Correspondiam até há relativamente pouco tempo a uma forma mal caracterizada na região,6 por oposição ao geograficamente próximo vale do Sado (MAYET, SILVA, 2000; DIOGO et. alii, 1987, estampa V, nº 85 e 88; PINTO, 2003, p. 286). O estudo da cerâmica comum do centro oleiro da Quinta do Rouxinol veio confirmar a sua presença entre as formas produzidas na região do vale do Tejo, pelo menos desde o século III (SANTOS, 2011, p. 75) e concretamente nas versões em aba com perímetros elípticos, que terão desempenhado uma função de tarefas auxiliares de diversos âmbitos7. Como expectável, são precisamente essas as variantes mais representadas nesta fase no NARC, com bordo em aba oblíquo, (Fig. 7, nº 18) bordo em aba reentrante (nº 20), variantes 1.6.4.2 e 1.6.4.4. daquele centro produtor (SANTOS, 2011, p. 72-73) e bordo em aba horizontal (Fig. 7, nº 19 e 21). Esta última ocorre em maior cômputo, apresentando bordos em aba horizontal curta, alongada ou amendoada. Alguidares circulares de bordo simples (Fig. 7, nº 17) e de bordo triangular, tipificados na variante 1.6.5.1 (Idem, 2011, p. 74) contamse ainda entre as formas destes contextos, embora com uma presença quase residual. A concordância das dimensões possibilita destacar versões modulares nestes recipientes, explicada em parte pela sua versatilidade, indicando uma produção estandardizada, reforçada pelos dados da conformação, onde o grupo 1 é largamente dominante (Fig. 4). A utilização em funções de preparação alimentar explica a inexistência de engobes ou polimentos nestas peças e a presença 6 Podemos hoje assinalar a presença destas formas em diferentes contextos, entre os quais o próprio NARC, desde níveis Júlio-Cláudios (GRILO, no prelo) assim como noutras intervenções urbanas de Olisipo (SILVA, 2015) e no espaço rural, na villa romana de Povos, Vila Franca de Xira, entre outros (GRILO, SANTOS, 2016/2017), igualmente em níveis alto-imperiais. 7 Como frisa o autor, “no conjunto das peças de grande dimensão, os alguidares são a forma mais comum e uma das mais abundantes no reportório do Rouxinol” (SANTOS, 2011, p,75).
264 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
de vestígios de utilização (resíduos orgânicos no interior e desgaste por ação mecânica sobre as paredes internas) em cerca de 1,41% dos recipientes, provavelmente relacionados com a maceração e a limpeza ou extração de produtos espessos ou semilíquidos do seu interior. A larga expressão que possuem no contexto poderá ter estado relacionada com os processos de decantação sucessiva dos produtos piscícolas ou eventualmente com uma utilização como contentores para a execução e fermentação de molhos mais finos a partir da conserva efetuada nos tanques de salga. Recorde-se a este propósito, que foram identificados no complexo do NARC dois tanques de pequenas dimensões e formato circular que sugerem a produção de derivados líquidos das conservas de peixe (BUGALHÃO, 2001). Registando cerca de 4,22% do vasilhame desta fase, os almofarizes possuem atributos reconhecidos nas produções regionais, como a ausência de estrias internas e de bico vertedor (SANTOS, 2011) na maioria dos exemplares. Tal como os demais recipientes observam uma constância volumétrica que poderá estar relacionada com uma função particular, correspondendo, contudo, a uma das formas com maior diversidade tecnológica, registando produções dos grupos 1, 4, 3, 5 e 6 (Fig. 5). 15, 38% dos recipientes possuem marcas de utilização com presença de resíduos orgânicos e indícios de abrasão mecânica nos fundos e nas superfícies internas, o que se traduz no âmbito da sua função especializada na transformação de alimentos. Não obstante, alguns autores têm vindo a chamar a atenção para a utilização diversificada que estas formas podem ter assumido em época romana (EVAN, MILLS, 2009; 2014), particularmente nos contextos de consumo onde evidenciam muitas vezes vestígios de exposição a fogo (PINTO, 2003, p. 631). Em termos formais, enquadram-se nas variantes de almofarizes tipificadas no estudo das cerâmicas comuns da Quinta do Rouxinol (Santos, 2011) de bordo triangular (Fig. 7, nº 23), bordo direito em aba (nº 24 e 25), bordo em aba amendoada ou oblíqua ligeiramente voltada para interior (nº 26), séries 1.5.5, 1.5.10 e 1.5.11, respetivamente, estando também representadas variantes de bordo em aba horizontal (nº 22). A maior expressão vai para os almofarizes de bordo direito com aba e de aba amendoada ou oblíqua, ausentes das fases anteriores do local, corroborando assim as cronologias dos centros de produção que indicam a produção destas formas somente a partir do século III (Idem, 2011). São também presença documentada em contextos tardios da região olisiponense, como a villa romana da Quinta da Bolacha, Amadora, num contexto datado de 425-475 (QUARESMA, no prelo, Fig. 7, nº 8) ou em Freiria, Cascais (CARDOSO, 2015, fig. 262, nº10). Entre as formas para conter líquidos utilizadas nas tarefas auxiliares de preparação, destacam-se os cântaros de bordo voltado para o exterior e colo direito monoasado, observando por vezes presença de faixas verticais brunidas. Subsistem exemplares de colo estreito (Fig. 7, nº 27) e mais alargado, com perfil ligeiramente achatado (nº 28) de morfologias muito semelhantes aos conjuntos recolhidos no interior do forno 2 no Porto dos Cacos Alcochete (RAPOSO, DUARTE, 1996, p. 264, fig. 8 nºs 1 a 4) e à variante 2.6.4.1 da Quinta do Rouxinol (SANTOS, 2011, p. 95).
A cerâmica comum de produção local e regional do Núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa
Representam 3,39% do conjunto e registam uma aparente especialização tecnológica, com produção exclusiva nos grupos 1 e 4. O mesmo pode ser contatado nos jarros, que observam perfis semelhantes, embora de menores dimensões. Contudo, a presença de acabamentos cuidados parece indiciar uma utilização no âmbito da loiça de mesa e serviço, ainda que essa não seja uma característica de exclusão funcional da categoria de serviço. Incluímos igualmente neste grupo as talhas, recipientes destinados à armazenagem de bens alimentares, cujo peso no conjunto (cerca de 1,30%), contrasta com outros locais semelhantes ao NARC onde esta forma se encontra bem representada (FILIPE, 2011, p. 85). Os exemplares desta fase correspondem a formas de bordo direito (Fig. 7, nº29) de produção igualmente atestada na região (SANTOS, 2011, p. 101) e também identificados em contextos análogos, na Casa do Governador da Torre de Belém (FILIPE, 2011, p. 85). Por último, na categoria de preparação e laboração estão também representados os funis, que assumem especial importância no envase dos preparados piscícolas. Formas idênticas estão também presentes nos contextos oleiros da região onde seriam produzidos os contentores anfóricos utilizados para a exportação dos preparados piscícolas (SANTOS, 2011, p.75-76) e em outros ambientes haliêuticos de Olisipo como a cetária da Rua dos Fanqueiros (DIOGO, TRINDADE, 2000, fig. 10, nºs 23 e 24). 3.2.1.3. Cerâmica de mesa/serviço O conjunto completa-se com a cerâmica de mesa e de serviço, os pratos, as tigelas, potinhos, jarros e bilhas, que totalizam cerca de 21,94% da amostra total (Fig 4). Uma maior diversificação formal e tecnológica é predicado desta categoria funcional, registando produções de acabamentos simples, na linha dos restantes conjuntos de cerâmica comum do local e produções mais cuidadas de cerâmica comum, algumas das quais que correspondem a imitações de series de sigillata, designadas como CIS (TOVAR, 2012). A par com os jarros, as tigelas são as formas com maior peso no serviço de mesa, onde se evidencia a presença de variantes inscritas nos repertórios regionais. Pertencem a este grupo as tigelas de perfil carenado de influencia da TSAfr A Hayes 9, (Fig. 8, nºs 36 e 37) as tigelas de perfis hemisféricos com bordos simples ou espessados (nº 35), identificadas nos repertórios dos centros produtores do vale do Tejo (RAPOSO, DUARTE, 1996, fig. 9, nº 2; SANTOS, 2011, p. 60 e 61; SANTOS et alii, 2015, fig. 24) e as formas de bordo voltado para o interior em aba oblíqua (nº38) com acabamentos simples, sem engobes ou elementos decorativos, de conformação maioritária no grupo 1, sendo de sublinhar a presença de exemplares de pasta branca calcária ou caulinítica (grupo 2) semelhantes ás produções identificadas na Quinta do Rouxinol (SANTOS, 2011). Um segundo grupo que se destaca pela natureza dos seus acabamentos cuidados corresponde a produções de cerâmica de boa qualidade e de vocação para o serviço de mesa que imitam series de cerâmicas finas de sigillata dos tipos Ritt. 8 e Drag. 37t da TSHT (Fig. 8, nº 50 e 51) (GRILO, 2014, p. 87). Uma das suas
características é a decoração através de punções ou estampilhas, que estilisticamente parecem corresponder a reinterpretações locais dos motivos decorativos das series de TSAfr D, DSP e TSHT (Idem, 2014, p. 88 e 91), de conformação nos grupos regionais 1 e 3. O mesmo padrão está identificado nos pratos que totalizam 4,65% do conjunto, onde se registam formas de imitação de sigillata do tipo Hayes 61em TSAfr D, com esquemas decorativos estampados nos fundos e acabamentos cuidados, reproduzindo as produções finas africanas (Fig. 8, nº 52 e 53) e formas de bordo em aba, também estes recordando as formas de TSAfr D Hayes 59 (Idem, 2014, p. 89). Não obstante, as variantes mais representadas são os pratos de bordo direito simples (nº 30 e 34) e de bordo voltado para interior curvo (nº 34) e amendoado (nº 31), bem documentados entre as produções das olarias do vale do Tejo (SANTOS, 2011) e em locais de consumo como a Casa dos Bicos (FILIPE et alii, 2016) ou o Alto do Cidreira (NOLEN, 1988). No NARC estas formas auferem um índice de utilização de 1,08%, correspondendo em exclusivo a vestígios de fogo, pelo que estes recipientes poderão ter cumprido também uma função culinária. No grupo dos potinhos cabem exemplares de morfologias diversas, destacando-se com maior expressão as formas de produção regional de bordo voltado para o exterior (nºs 39 e 40), variante 2.3.4.2 do centro oleiro da Quinta do Rouxinol, (SANTOS, 2011) também identificados na área urbana de Olisipo (MARQUES, SABROSA, SANTOS, 1997, p.167, nº 13). Tratam de formas que, à semelhança dos cântaros e dos jarros, podem apresentar faixas verticais brunidas na zona do colo ou polimento das superfícies, evidenciando a sua condição de loiça de mesa. Um segundo grupo, de bordo direito ou voltado para o exterior com perfil troncocónico (nºs 41 e 42) e ovoide (nº43) apresenta diâmetros inferiores a 10cm, o que poderá estar relacionado com o consumo de líquidos. As bilhas correspondem a exemplares de pequena dimensão pouco representadas no conjunto, preteridas em largo número pelos jarros. Apesar do elevado índice de fragmentação, seguem o padrão formal de grande variabilidade morfológica (PINTO, 2003, p. 637) observado em outros locais de consumo, com variantes de bordo voltado para o exterior (nº44), bordo contracurvado (46) e bordo com dobra (nº 45), esta última rastreada entre os exemplares produzidos na região (SANTOS, 2011). No tocante aos jarros destacam-se variantes simples: bordo trilobado (nº 49) e bordo voltado para o exterior (nº 47 e 48) com diâmetros constantes, como é condição nesta forma. Os primeiros caracterizam-se pelo bocal trilobado, com diferentes versões ao nível do colo, documentadas em locais de produção na variante 2.4.4.14 (SANTOS, 2011, p. 89) e os segundos por um bordo com ligeira aba e colo troncocónico com asa vertical, podendo ostentar ligeiro brunimento no colo em linhas verticais, semelhantes aos cântaros, embora numa versão de menores dimensões, tipificada na variante 2.4.4.2 (Idem, 2011, p. 89). Como referido, a expressão destas formas no conjunto, cerca de 6,59%, particularmente a segunda variante, que se trata de uma forma reconhecida em outros ambientes haliêuticos da região, na Casa dos Bicos, (QUARESMA et alii, 2014), na Casa do Governa-
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dor (FILIPE, 2011, p. 85) e em Cascais em contextos datados da segunda metade do século I e do século II (CARDOSO, 2002, p. 202, estampa XXIX, nºs 2 e 3) permite também questionar a sua utilização no âmbito da loiça de preparação. 3.2.1.4. Outros conjuntos Entre o conjunto de cerâmica comum há igualmente a registar a presença de reutilizações de recipientes para diferentes funções. Cabe, por isso, destacar um conjunto de formas fechadas com os fundos perfurados (Fig. 9) cuja função parece estar relacionada com os processos de filtragem e transvaze dos produtos piscícolas entre recipientes, recordando formas de funções similares identificadas em contextos análogos na baía Gaditana (BERNAL CASASOLA, SÁEZ ROMERO, 2006). Ao contrário daqueles objetos, produzidos com um fim específico de auxiliar nas tarefas haliêuticas, (Idem, 2006, p.180) as peças do NARC não correspondem a um modelo formal particular, mas antes à adaptação de uma forma existente com um outro propósito que parece resultar das necessidades imediatas do quotidiano daquele espaço industrial8. Um caso singular destaca não um orifício central, mas a execução de diversos orifícios de menor dimensão, sugerindo uma função como recipiente coador.
Figura 9 – Cerâmica comum. Formas reutilizadas.
8 Registe-se a ocorrência de situações semelhantes no forno 2 do Porto dos Cacos, onde foram identificados recipientes inutilizados através da execução dos orifícios no fundo e da quebra dos bordos e das asas (RAPOSO, DUARTE, 1996, p. 254, fig. 8 nº 2 a 5).
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Foram também identificadas cerca de 42 tampas efetuadas mediante o recorte de fundos de recipientes cerâmicos, com dimensões centradas entre os 8 e os 12cm, que poderão ter sido utilizadas para tapar algumas formas de cozinha ou de armazenamento de líquidos (Fig. 10), situação também constatada em outros ambientes conserveiros como Baelo Claudia (BERNAL CASASOLA et alii, 2010, p.167), embora com algumas características distintas. Neste mesmo local, é sugerida a hipótese da sua utilização no contexto da comercialização de preparados piscícolas, tamponando materiais perecíveis que poderiam ter sido utilizados como envases destes produtos (Idem, p. 172). 4. O significado da cerâmica comum do NARC Na análise geral do conjunto de cerâmica comum importa salientar alguns aspetos gerais sobre a natureza dos contextos de recolha destes materiais, que se revestem de extrema importância na análise dos fenómenos de abandono daquele espaço urbano. Em primeiro lugar, devemos indicar que os contextos cerâmicos procedem do ambiente haliêutico e têm vindo a ser interpretados como amortizações intencionais destas unidades, vinculadas com o abandono da atividade de produção e trans-
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Figura 10 – Cerâmica comum. Formas reutilizadas.
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formação dos preparados piscícolas. A estratigrafia do local, semelhante no interior dos tanques, com camadas de restos malacológicos é contundente, indiciando que sobre a última produção foram depositadas camadas contendo uma abundante componente artefactual com recipientes inteiros fragmentados no processo de descarte. Embora a natureza deste processo possa resultar de diferentes ações de natureza urbana (SILVA, 2015), resultantes quer da localização privilegiada desta faixa ribeirinha e industrial da cidade, como da proximidade das estruturas habitacionais ao complexo industrial, parece certo que a cerâmica comum aí recolhida, oriunda de camadas específicas, e largamente superior aos conjuntos anfóricos e de cerâmicas finas, deverá estar maioritariamente relacionada com os processos de transformação industrial de preparados piscícolas, observando uma coerência de formas e produções harmonizada a contextos desta natureza, sendo também significativa a presença de objetos vinculados com a indústria pesqueira e conserveira como os funis ou os pesos de rede registados no local, indicando uma estreita relação entre estas atividades. Por outro lado, é igualmente importante sublinhar que o desconhecimento da lógica espacial do recinto industrial do NARC e das suas respetivas áreas funcionais impede o reconhecimento de boa parte das atividades de processamento aí desenvolvidas, bem como a sua articulação com os respetivos contextos artefactuais, tanto mais que nem todos os processos de abandono das estruturas correspondem ao modelo acima descrito (BUGALHÃO, 2001). Por essa razão, válida para muitos outros conjuntos com a mesma natureza identificados no espaço urbano de Olisipo, o registo arqueológico do NARC deve ser entendido não como um processo de formação linear, mas como uma realidade complexa e dinâmica de natureza e significados diversos. Situações análogas têm vindo a ser identificadas como padrões de abandono de outros complexos industriais na zona da Baixa, embora poucas tenham sido objeto de estudo e publicação. Os casos documentados, como a cetária da Rua dos Fanqueiros (DIOGO, TRINDADE, 2000a) demonstram claras analogias quer no perfil de desativação das estruturas como no espólio aí recolhido (Idem, 2000, fig.10, nºs 25 a 29 e 43 a 45) e testemunham as profundas transformações operadas nesta zona da cidade durante o século V d.C. Com respeito ao conjunto de cerâmica comum exumada no NARC, há a registar a presença esmagadora das produções locais/regionais face aos conjuntos de importação, o que reforça o cariz artesanal destes contextos, com 98,51% de produções que podem ser integradas nos circuitos de abastecimento local e regional. Apenas 0,75% do conjunto corresponde a materiais de importação, onde se registam produções de pasta calcária com origem provável na Bética, cerâmicas culinárias africanas e um almofariz que foi já objeto de publicação (AAVV, 1993, p. 34, nº 30) com uma marca em caracteres gregos, correspondendo a uma produção de larga distribuição no Mediterrâneo oriental e central oriunda de Ras-el-Basit, no Norte da Síria (HAYES, 1967, p. 342). Entre as produções locais e regionais o repertório é dominado pelas formas de cozinha e em menor proporção pela loiça de mesa e de preparação. Conforme
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Figura 11 – Tabela síntese das formas e variantes tipológicas identificadas no NARC, na fase IV.
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referido, tanto a cerâmica de cozinha como a cerâmica de preparação correspondem a grupos onde primam as formas simples com volumetrias relativamente homogéneas, sugerindo uma estandardização formal compatível com uma função essencialmente utilitária, por oposição à loiça de mesa, de maior diversidade, compatível com um perfil de consumo de natureza urbana. Na loiça de cozinha devemos sublinhar a elevada presença das formas do grupo potes/panelas destinadas à cozinha, cuja expressão pode estar associada a uma utilização intensiva nas práticas culinárias, assim como ao elevado nível de desgaste elevado experimentado por estes recipientes, sujeitos a maiores variações térmicas ou a choques mecânicos. Seria tentador relacionar a elevada presença de vestígios de fogo nestes conjuntos com os processos de aquecimento artificial do garum enquanto agentes aceleradores do processo de fermentação (PONSICH, 1988, p. 61, fig. 20). Todavia, como foi já referido, a inexistência de estruturas relacionadas com áreas ou salas de aquecimento na área escavada, aliadas ao desconhecimento sobre os diferentes espaços de organização e trabalho das unidades fabris do NARC impedem a valoração e o desenvolvimento desta hipótese. No mesmo sentido, a expressão destas formas no conjunto, particularmente os recipientes fechados (tachos e potes/panelas) obriga a considerar a possibilidade da sua utilização na comercialização a curta distância das conservas efetuadas nestes espaços, numa eventual esfera de proximidade, assim como a considerar a hipótese da existência de outras gamas de recipientes para a comercialização destes produtos e subprodutos, valorizando hipóteses que têm vindo a ser defendidas para outros contextos haliêuticos (BERNAL CASASOLA et alii, 2007). A diversidade da loiça de mesa retrata diferentes realidades e gostos e espelha um conjunto de influencias que se faziam sentir na produção oleira local e regional, nomeadamente de influencia norte-africana, onde, além das formas enquadradas na panóplia oleira da região, com paralelos em contextos de consumo e de produção, estão igualmente representadas produções que têm vindo a adquirir um estatuto singular no quadro das cerâmicas finas regionais, com um perfil de consumo cada vez mais reconhecido no território olisiponense (GRILO, 2014). A nível tecnológico, a presença maioritária das matrizes dos grupos regionais testemunha o peso e a expressão que estes desempenhavam na esfera económica da cidade e da sua plena integração nos circuitos de distribuição cerâmica, sendo de salientar a produção maioritária do grupo 1 em todas as categorias funcionais, seguido do grupo 4, numa aparente relação entre determinadas formas e grupos de conformação, nomeadamente nos recipientes para contenção de líquidos. A diferenciação nas matrizes cerâmicas destes dois grupos aponta pistas para origens diversificadas no abastecimento de algumas formas cerâmicas ao local, que carecem, contudo, da devida confrontação arqueométrica. É também sintomática a maior presença do grupo 3 na produção da cerâmica de mesa e serviço, traduzida em recipientes com acabamentos e texturas mais finas, coadunadas à loiça de servir nos pratos, potinhos e tigelas, assim como a já referida presença de exemplares conformados nos grupos 2 com prováveis argilas cauliníticas também
reconhecidas na região (SANTOS, 2011), denunciando uma aparente especialização produtiva destas series. No que respeita ao quadro produtivo e à distribuição das produções cerâmicas a nível regional, devemos sublinhar que o conjunto do NARC demonstra claras similitudes com o paradigma formal e tecnológico observado nos centros produtores do Baixo Tejo, parecendo hoje inquestionável a relação entre os centros oleiros e os locais de produção não apenas ao nível dos contentores anfóricos como tem vindo a ser sublinhado, (FABIÃO, 2004; 2008; RAPOSO et alii, 2005; DIAS et alii, 2012) mas também ao nível da cerâmica comum. Porém, a leitura destes dados deve ser encarada com alguma cautela, uma vez que a informação sobre as produções destes centros oleiros e a sua organização geoeconómica é praticamente nula ou de natureza muito preliminar, inibindo a obtenção de conclusões devidamente fundamentadas (FABIÃO, 2004, p. 402). Tão-pouco os centros conhecidos refletem o panorama oleiro de época romana em termos de modelos e lógicas produtivas, particularmente nos momentos correspondentes ao abandono dos complexos industriais da região, como a informação de que dispomos para a maioria destes é escassa e quase inexistente, no que à cerâmica comum diz respeito. Apenas a olaria da Quinta do Rouxinol (SANTOS, 2011, p. 125 e fig. 399) foi objeto de estudo e de caracterização crono-estratigráfica intensiva, permitindo uma comparação funcional com o NARC e outros locais de consumo da região. Uma análise ao repertório daquele centro oleiro revela a presença maioritária das formas destinadas à cozinha seguidas das formas de serviço, (SANTOS, 2011, fig. 398) refletindo um perfil constatado na maioria dos locais de consumo, onde a loiça de fogo, face ao acusado desgaste, assume quase sempre um papel preponderante. Observa-se, contudo, uma imagem distinta quando verificamos o peso de cada forma no seio da sua categoria funcional, onde, ao contrario do que se verifica no NARC, são os tachos as formas mais representadas no conjunto da loiça de fogo, com um peso de 76% face às panelas, representadas por 24%, um dado que pode estar relacionado com o contexto particular do NARC e a produção dos seus produtos e derivados. Constata-se igualmente uma correspondência entre as variantes mais representadas naquela olaria e as series identificadas no NARC. Algumas parecem mesmo corresponder a formas de uso destacado no repertório oleiro regional, como os pratos covos e os potes/panelas de bordo direito com asas verticais, com horizontes máximos de distribuição hoje alargados à região do Baixo Tejo, esboçando as primeiras pistas para a configuração dos circuitos comerciais existentes e para a caracterização de um repertorio regional com atributos e uma identidade formal próprios. Esta correspondência também observada a nível da loiça de preparação é um dado significativo, particularmente nas variantes dos alguidares, cujas formas, frequências e grupos de conformação tanto no contexto produtivo como de consumo parecem indicar uma provável produção com o intuito específico de utilização no quadro da industria conserveira que acompanharia as produções anfóricas. E a este propósito, sublinhe-se o peso significativo que as produções anfóricas da Quinta do Rouxinol possuem na
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fase final de funcionamento do NARC (DIAS et alii, 2013, p.68), numa relação direta entre ambos os locais no contexto da produção e consumo de produtos anfóricos. É na loiça de serviço que se registam-se algumas discrepâncias, já que, apesar de estarem representadas algumas formas de serviço, constata-se a ausência de algumas das variantes típicas daquela olaria nas tigelas, nos jarros ou nas bilhas, e, a já mencionada presença no contexto de consumo de formas que não se revêm nas tipologias deste e dos restantes centros produtores, demonstrando a existência de diferentes padrões e modelos de produção e consumo das cerâmicas a nível local e regional. Com efeito, se por um lado podemos observar uma relação de mercado fortemente vinculada com um grupo de ateliers especializados, entre os centros produtores e os locais de transformação haliêutica, observada nos contentores anfóricos e na produção de cerâmica comum com estes relacionada, mais evidente nas séries de preparação e de cozinha, traduzindo um conjunto artefactual que seria adquirido em função das necessidades produtivas e das especificidade destas indústrias, por outro lado, a existência de outras lógicas de consumo, testemunhadas na presença de produções com diferentes graus de especialização, evidencia a existência de outros modelos produtivos de escala e organização diferenciadas. Por ora, resulta complexo transcender este plano de análise abrangente, sendo necessário o estudo continuado de locais de consumo e um conhecimento mais aprofundado sobre os centros oleiros regionais e as suas series tipológicas para aferir como se articulava esta realidade cada vez mais complexa da produção oleira da região de Olisipo no cenário socioeconómico da cidade romana.
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Uma cidade em escavação
271
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
No decurso da intervenção arqueológica realizada em 2004 e 2005 no piso térreo e na cave do edifício da antiga prisão do Aljube identificaram-se dois locais de ocupação romana. Correspondem ambos a áreas de compartimentos, um deles onde ainda subsistem duas paredes e um segundo com vestígios de um muro e de pavimento associado. O local em análise fica imediatamente a sudoeste do Teatro Romano, numa plataforma intermédia entre aquele edifício e a área residencial e respectiva calçada romana, identificados no claustro da Sé de Lisboa. Do significativo espólio associado, destaca-se a presença de cerâmica de cozinha africana (exemplar completo), conjunto de objectos em osso e uma placa em marfim trabalhado, bem como um conjunto de fragmentos cerâmicos de terra sigillata representativos de diferentes produções. Pela sua importância, no âmbito cronológico, realce para três moedas em bronze de meados do século IV, guardadas num material perecível (presumível bolsa). Tendo como base de análise os materiais exumados, bem como o enquadramento do sítio do Aljube nesta área da colina, com destaque para a evolução urbanística sofrida pelo Teatro Romano, bem como no Claustro da Sé, até à Casa dos Bicos - onde aqui pontua a unidade fabril de preparados piscícolas, desactivada pela presença da muralha do período tardio, leva-nos a desenvolver uma reflexão mais alargada quanto ao momento de remodelação urbanística operada na cidade ao nível do lazer, do comércio e das características sociais dos seus habitantes. PALAVRAS-CHAVE:
Urbanismo, período tardio, comércio, cerâmicas.
ABSTRACT:
In 2004 and 2005 excavations, in the ground floor and the basement of the ancient prison of Aljube were unearthed part of two Roman settlements. Both were identified as rooms, as long as some walls were found in one, while in the other only a wall associated to a pavement was discovered. The archaeological site is located in a platform contiguous to the Roman Theatre towards the southwest, and among the theatre and the residential area and the sidewalks identified in the excavations of the Lisbon’s Cathedral cloisters. During the excavation were unearthed several fragments of North African kitchen wear (a full casserole), a set of bone artefacts and a carved ivory plaque, as well as a set of terra sigillata with different origins. It is worth to mention three bronze coins found in a possible pouch, minted during the 4th century AD, which helped to ascertain a chronology to the site. The study of the Roman fragments uncovered, as well as the environment that surround the archaeological site on the mentioned hillside, particularly the urban evolution of the Roman Theatre, as well as the Cathedral’s cloisters, and Casa dos Bicos – a Roman processing fish preserves unit, decommissioned by the Late Antiquity wall – allow us to put forward a question about the reshaping of the urban planning concerning recreation, commerce and changes in the social characteristics of its population. Key words:
Urbanism, Late Antiquity, commerce, ceramics.
Aljube. Implantação da área escavada na planta do rés-do chão
3.6
A Presença da ocupação
romana no Aljube de Lisboa
Clementino Amaro
Olisipo Forum – Associação de Desenvolvimento e Educação Intergeracional clementinoamaro@gmail.com
Eurico Sepúlveda
Associação Cultural de Cascais euricosepulveda@gmail.com
1. Introdução Tendo a então Direcção Regional de Lisboa do Instituto de Reinserção Social desenvolvido um projecto de remodelação do rés-do-chão e cave do edifício da antiga prisão do Aljube, para a criação de um auditório, uma renovada portaria e novas acessibilidades, procedemos, num primeiro momento, a um conjunto de seis sondagens distribuídas por três salas. Perante os dados arqueológicos que desde logo se revelaram, tanto na potência arqueológica em presença como na ampla cronologia que se percepcionava, optámos por abrir em área praticamente todo piso térreo, bem como da cave. Dos objectivos inicialmente traçados, também fez parte a pretensão de percebermos a implantação do edifício na colina e qual a função de dois espaços entaipados em data desconhecida e omissos no levantamento arquitectónico do edifício, para o que foram programadas duas sondagens nas paredes de acesso (a primeira ao nível do rés-do-chão e a segunda da cave). O projeto inicial previa ainda a instalação de um elevador no edifício, na ala poente do mesmo, (obra concretizada em Abril de 2015), para o que procedemos à abertura da caixa de implantação, na cave do edifício. A abertura realizou-se em plena formação geológica designada por “Banco Real”, com afloramento de calcário margoso, registado de imediato sob o pavimento. Com a reestruturação dos serviços judiciais, entretanto ocorrida, e por iniciativa do então Ministro da Justiça, Alberto Costa, é salvaguardo o edifício do Aljube como local de preservação da memória da resistência e da luta pela liberdade. O edifício é entregue à Câmara Municipal de Lisboa no dia 25 de Abril de 2009 e aí se realiza em 2011 a primeira exposição temporária intitulada A Voz das Vítimas, inserida no Centenário da República.
Após aquele evento, o edifício entra num segundo momento de obras de recuperação integral para instalação definitiva do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, inaugurado a 25 de Abril de 2015 (Caldeira et alii, 2015). Na sequência de reuniões, no âmbito museográfico, com um dos signatários (C.A.), constituiu-se um espaço expositivo, ao nível da cave e no átrio do elevador, no piso 1, alusivo à história do edifício e à realidade arqueológica do sítio, e que inclui a apresentação de um conjunto de peças arqueológicas representativas dos momentos mais significativos. Os trabalhos de escavação decorrem, desta forma, no decurso da primeira fase de obras, entre Outubro de 2004 e Maio de 2005 no interior do edifício situado no nº 42 da Rua Augusto Rosa (coordenados pelo primeiro signatário e Patrícia Augusto dos Santos). A presença de uma complexa rede de esgotos em pleno funcionamento e respectivas caixas de derivação, condicionou, de certa forma, a intervenção, embora com um impacto pouco significativo nas estruturas arqueológicas. Os espaços com intervenção arqueológica aconteceram - no sentido poente nascente -, na cave do edifício e sala entretanto desentaipada (designada por compartimento 1), e ao nível do piso térreo, na antiga sala do parlatório (actual sala de exposições temporárias) e na portaria (actual acesso ao museu do Aljube). O local em análise fica imediatamente a sudoeste do Teatro Romano, numa plataforma intermédia entre aquele edifício e a área residencial identificada no claustro da Sé de Lisboa. 2. Descrição: história do sítio Após a tomada de Lisboa em 1147, com o apoio dos cruzados, o Aljube foi utilizado como prisão, função
Uma cidade em escavação
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Clementino Amaro, Eurico Sepúlveda
herdada, presume-se, da época islâmica. A partir de certa altura, ainda não determinada, passou a funcionar como cadeia episcopal. A designação “Aljube” deriva da palavra árabe “aljubb”, que significa “poço” associado (ou não) a “cisterna”. O termo surge igualmente na Península Ibérica, por evolução semântica, com o sentido de “masmorra”. Daqui se fixa a designação de «Aljube», idêntica à aplicada a outros cárceres eclesiásticos do país e, posteriormente, das colónias (Caldeira, p.12). O Aljube encontrava-se separado da Sé por uma rua estreita, inserida no traçado labiríntico da Lisboa medieval, designada Rua Direita da Porta Travessa da Sé. Esta terminava no Largo do Aljube, hoje reduzido a um pequeno recanto frente ao nº 40 da Rua Augusto Rosa. A norte era contornado pelo então Beco do Aljube com Saída. Está integrado, como tal, num vasto território do Patriarcado que inclui, para além da Sé Catedral, o Celeiro da Mitra e as cavalariças, estas funcionando presumivelmente após o Terramoto de 1755 (Fernandes, 2013) (Figs. 1 e 2). Ao fazermos agora uma breve abordagem aos diferentes momentos que nos foi viável registar e interpretar no espaço actualmente ocupado pelo edifício do Aljube, infere-se de imediato que neste sítio persiste um conjunto de vestígios arqueológicos que se encontram em perfeita sintonia com a evolução urbana já identificada na sua envolvente, embora se registe especificidades próprias ao ter uma longa existência como cárcere. Assim, no decurso da intervenção arqueológica, no piso térreo da antiga prisão, identificaram-se dois locais com ocupação romana. Correspondem ambos a espaços de compartimentos (Fig. 3). O primeiro apresenta vestígios de um troço de parede e de um pavimento associado (Fig. 4). Registámos a presença de um afloramento calcário (em parte afeiçoado) e de argilas. O segundo caracteriza-se por duas paredes em conexão. A implantação do compartimento acontece num substrato constituído por margas e argilas associadas a areias de grão fino amarelado, estas com maior predominância na área exterior do compartimento, e marcado pela ausência de espólio na zona externa, (Fig. 5).
Foi ainda identificado um terceiro local, ao nível da cave, constituído por pequenos fragmentos de cerâmica fina romana, em deposição secundária, no extradorso da conduta localizada no canto noroeste do edifício do Aljube (compartimento 1) (Fig. 3, supra). A função deste enchimento, que incluía a deposição de elementos pétreos e de tijoleiras, consistiu no travamento lateral do extradorso da abóbada da conduta. Este facto limitou a intervenção a uma escavação superficial do contexto. A identificação deste compartimento foi viável após a abertura de um acesso, ao nível do rés-do-chão já que se encontrava entaipado. Este apresenta uma cobertura em abobadilha e tem uma área de 2.40 m por 1.90 m. Um segundo acesso aberto na parede norte, igualmente a noroeste do edifício mas agora ao nível da cave, revelou a existência do que se interpreta como uma coluna vertical de descarga de água, de secção quadrangular, com cerca de 10 m de altura, em cuja base se inicia um troço de conduta, com ligação para o exterior do edifício, e com uma altura média de 1.00 m e de largo 0.90 m. Esta estrutura terá funcionado de forma autónoma e mantevese integralmente camuflada até 2004. É presumível que pertença a uma rede pluvial já em uso no período medieval ou mesmo anterior, dada a presença, a montante, de um vasto recinto aberto - o Teatro Romano. Estes dois “novos” espaços foram integrados no edifício, na sequência das obras concluídas em 2015, de forma a permitir a sua visita, a partir de iluminação e acesso adequados. Um “armário de parede”, desentaipado na fase de acompanhamento de picagem de paredes, encontra-se igualmente integrado no actual espaço de exposições temporárias. Tal como noutros espaços de ocupação islâmica conhecidos em Lisboa, o espólio deste período está muitas vezes associado a silos/fossas. No interior do compartimento romano, identificado junto à entrada nascente do Aljube, foi aberto um silo ovalado que terá funcionado como fossa detrítica na sua fase de abandono. Foram aqui exumadas cerâmicas islâmicas, como uma panela, copo e candil, com cronologia da 2ª metade do século XI/1ª metade do século XII (Figuras 3 e 6 U.E. [17]).
Figura 1 – Planta parcial, segundo A. Vieira da Silva, com o sítio do Aljube.
Figura 2 – Aljube na fase de prisão de mulheres, cerca de 1900.
274 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Presença da ocupação romana no Aljube de Lisboa
Numa sondagem realizada sob as lajes do pátio ou saguão (entulhado em finais do século XVI) identificámos uma segunda fossa, aberta no substrato rochoso, e destruída na sua parte superior pela construção do referido pátio. Nesta segunda fossa recolheu-se objectos atribuídos aos séculos XIII/1ª metade do XIV, já de época cristã, com destaque para loiça de cozinha, de mesa e para líquidos, como panelas, copo de duas asas, taça carenada, bilhas, para além de restos alimentares. Na parede sul do pátio foi reutilizado um bloco aparelhado com sigla de canteiro, de tipologia medieval. Nos finais do século XVI registaram-se acontecimentos que alteram o quotidiano no interior da prisão, bem como na própria organização espacial do edifício. As obras levadas a cabo pelo arcebispo D. Miguel de Castro (por volta de 1590) poderão estar associadas, num primeiro momento, a um surto de peste que tenha atingido a cidade e o cárcere do Aljube. Assim, o recheio móvel das celas, cozinha e outros serviços de apoio, como objectos em osso em fase de manufactura ou concluídos, são lançados no interior de um pátio, existente na zona central do edifício, sendo este selado, um dos métodos usados, na altura, no combate à pestilência. Na abordagem feita por Teresa Ferreira Rodrigues às pestes e epidemias que atingiram o país, e em particular Lisboa, na época quinhentista, refere a dado momento: “Com as tropas inglesas vem a «modorra», epidemia que alguns identificam como tendo origem pestífera e que faz alguns estragos nos primeiros meses de 1589, não só a bordo das galés, como nos cárceres da cidade.” (Rodrigues, p. 220). As condições de higiene no interior das prisões são cronicamente precárias, estão superlotadas, facto que também contribui para a propagação da peste e da doença. Parece-nos, como tal, pertinente a hipótese interpretativa do arcebispo de Lisboa ter aproveitado a situação de excepção para a transferência temporária dos presos sobreviventes (presume-se para a vizinha prisão do Limoeiro) e proceder a obras de adaptação do paço episcopal, num curto espaço de tempo. Assim sugere uma nota com o seguinte teor: “Aos 13 que foi terça feira pella manhã [Novembro de 1590] mandou o Ill. mº sôr Arcebispo prender metade do cabido no Aljube.” (Macedo, p. 57). Outro indício que reforça a tese de reestruturação e adaptação a novas valências, é a menção do edifício do Aljube como «Palácio dos Arcebispos» no painel de azulejos que representa a capital vista do rio, produzido entre 1700 e 17251. O exclusivo de prisão do foro episcopal está posto em causa no século XVI, atendendo, presume-se, à falta de espaço resultante da criminalidade e delinquência crescentes no seio da cidade, mas também na sequência da instituição do Tribunal do Santo Ofício. Com base nas Constituições do Arcebispado de Lisboa, publicadas em 1588, os cárceres do Aljube são mencionados já em 1536 como sendo usados igualmente para delinquentes de delito comum, coincidindo esta data com a instalação da Inquisição em Portugal (Saraiva, p. 65). 1 Atualmente exposto no Museu Nacional do Azulejo (origem: palácio dos condes de Tentúgal a Santiago).
O olisipógrafo Luíz Pastor de Macedo destaca a ocorrência de que “aos 15 dias deste janr.º de 1586 faleçeo no Aliube stando presa por culpas de feitiçarya Isabel João molher velha…” (Macedo, p. 257). Saíam igualmente do Aljube, para a cadeia da cidade, os condenados a degredo para o Brasil, África ou para as galés, a fim de serem depois embarcados. D. Miguel de Castro tem um longo governo do arcebispado de Lisboa (1586-1625), pertencendo-lhe a pedra de armas sobreposta à actual entrada principal do Aljube. Anteriormente tinha sido nomeado inquisidor (18 de Junho de 1566) e, entretanto, membro do Conselho Geral do Santo Ofício (03 de Setembro de 1577), como tal, figura conhecedora do papel dos tribunais do Santo Ofício e do eclesiástico (Giebels, 2011). Esta proposta de interpretação quanto à reestruturação e adaptação do edifício a paço e a prisão do foro eclesiástico é ainda problemática, mas a intervenção arqueológica realizada aponta nesse sentido, pelo registo de eliminação do saguão e a variedade e qualidade do espólio aí depositado. Para além da loiça comum, e modelada e da vasta faiança usadas na cozinha e nas celas, dos objectos em osso talhados pelos prisioneiros, surgem peças requintadas, como porcelana chinesa, cálices, garrafas e solitários em vidro, ou ainda cerâmicas esmaltadas de produção espanhola, italiana e (ou) holandesa (Amaro et alii, 2013, pp. 1019-1024). Destaquemos ainda a produção desenvolvida no atelier ocupacional dos presos do Aljube – donde se poderá inferir a formação eclesiástica de parte dos seus membros. Do vasto conjunto de objectos delicadamente talhados, muitos deles de grande beleza, destacam-se três grupos: de carácter mágico-religioso, lúdico e funcional. Estamos perante um conjunto único já que a existência de uma oficina de talhe de material ósseo facultou a presença de todo o processo de fabrico das peças, desde a escolha do osso, seu aproveitamento, fases de manufactura, até ao produto final (Ferreira, 2007). O momento cronológico da remoção e enterramento integral do acervo da prisão do Aljube é ainda sustentado nas cronologias do espólio já divulgado ou em fase de estudo. São os casos da cerâmica modelada (Santos, 2008) e da porcelana, neste caso com datações que vão de inícios do século XVI até cerca de 1570 (imperadores Zhengde, Jiajing e Longqing) (Henriques, 2012). Os exemplares de majólica exumados enquadram-se na 1ª metade a meados do século XVI, tal como a vasta colecção de vidros, que sugerem uma tradição ainda renascentista (Amaro et alii, 2013). A colecção de numismas, a aguardar tratamento, permite, apesar de tudo, a atribuição de alguns exemplares aos reinados de D. João III e D. Sebastião. Revela-se, assim, de particular interesse a eliminação do pátio, e seu compactamento, para uma abordagem ao quotidiano num cárcere, à época, como uma referência e contributo para o conhecimento da cerâmica transaccionada em Lisboa ao longo de toda a centúria de quinhentos, com especial representação dos exemplares da segunda metade desse século (Amaro et alii, 2016). No que concerne ao trabalho de reconstituição e inventariação do espólio depositado no pátio, o Terramoto de 1755 teve um papel decisivo. Este não causou
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Clementino Amaro, Eurico Sepúlveda
grandes danos na prisão do Aljube, tal como no vizinho Celeiro da Mitra. No entanto o aspecto austero que apresenta actualmente advém do recuo da respectiva fachada - e ainda reestruturação das paredes exteriores -, dentro da política pombalina de realinhamento de fachadas e alargamento de arruamentos, como é o caso da actual Rua Augusto Rosa, que veio substituir duas ruas, ligadas entre si pelo largo do Aljube, existentes à altura do Terramoto. É no decurso daquele realinhamento, através do recuo da fachada, que é cortado parte do saguão/pátio. Este facto, apesar das centenas de peças inteiras ou completas exumadas, não tem permitido, no decurso do trabalho de montagem, a reconstituição de considerável número de exemplares. Das obras pós-Terramoto subsistiram pavimentos lajeados ao nível da cave e na portaria. Ainda no piso térreo, a sala central (antigo parlatório) apresentava uma estrutura de encaixe de barrotes, que nos remete para a presença de um pavimento em madeira datável da segunda metade do século XIX, e onde se exumou um numisma do reinado de D. Luís I (1861-1889) num dos encaixes. Com a implantação do Liberalismo, o Aljube termina as funções de presídio eclesiástico com a abolição deste foro em 1833 e é destinado a cadeia de mulheres em 1845. O edifício mantém apenas dois pisos acima do rés-do-chão (Figura 2). Com a I República recebe obras de beneficiação e é acrescentado um terceiro piso, a fim de melhorar as condições de segurança, de convívio, de higiene de mulheres e menores. A partir de 1925 as presas passam gradualmente para a Cadeia das Mónicas (antigo convento) já que o Aljube está sobrelotado. Com a Ditadura Militar a cadeia é destinada a presos políticos e sociais logo a partir de 1928. O quarto piso que o edifício actualmente apresenta é acrescentado em 1936 para aí ser instalada uma enfermaria. Na sequência da picagem das paredes, identificouse o óculo de vigilância usado pela polícia política, no decurso da visita dos familiares aos presos políticos e que se localiza na parede que limitava a portaria do parlatório. Foi reabilitado e reintegrado no actual espaço museológico para memória futura. 3. Descrição dos vestígios arqueológicos do período romano Na sequência do alargamento da sondagem, no sentido norte, após a conclusão do desentulhamento do pátio, foi identificado vestígios de um pavimento U.E. [39] e um troço de muro U.E. [42] de época romana (Figura 4, plano 2). Verificámos que na fase de construção do pátio, em período tardo-medieval, este foi edificado em pleno contexto romano e o seu pavimento, em lajes calcárias, situa-se à cota média de 1.30m abaixo da cota dos vestígios romanos (Figura 4, plano 2). A área preservada do compartimento romano apresentava ainda vestígios da camada superficial do pavimento, feito à base de tijolo moído, constituindo-se num
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revestimento impermeável designado por “cocciopesto” U.E. [39]. A base de assentamento é em argamassa espessa (cerca de 13cm). O troço de muro encontra-se no prolongamento de um afloramento de calcário com evidências de ter sido afeiçoado U.E. [43]. Sobre o pavimento e restante área identificámos a presença de um derrube com manifesta presença de tijolos, lateres, tegulae, fragmento de mármore, associados a fragmentos de estuque pintado (realce para o vermelho, amarelo e azul), conjunto de tesselae soltas, e alguma loiça fina. Ao nível da base do pavimento e sob o mesmo, registou-se um estrato ocupacional U.E. [40], à frente analisada, e onde, dentro de uma notória diversidade de loiça fina, se destaca uma marca de oleiro (Estampa 1, 4), dois fragmentos de lucerna (Estampa 3, 1), e o perfil completo de uma bilha em cerâmica comum (Estampa 5, 2). Para além do espólio cerâmico, foi exumado um numisma em bronze, tesselae, estuque pintado (bandas a vermelho, azul e verde), um dado em marfim, um corno com orifício circular (pendente), dois alfinetes de cabelo em osso e uma placa de marfim, com decoração incisa, sugerindo uma torre ameada. No canto sudeste do contexto romano, foram exumados três numismas em bronze, empilhados, sugerindo estarem acondicionados no interior de uma bolsa feita de matéria perecível. Trata-se de três AE2; dois de Magnêncio (350-353) e um de Constâncio II ou Constante (348-350) 2. Entretanto, na base interna do muro foi localizado um conjunto de minúsculos ossos, inseridos num torrão, que se interpretou como uma deposição de um recém-nascido, atendendo à dimensão e fragmentação dos ossos - a coluna vertebral com cerca de 12 cm -, configurando uma posição fetal de um nado-morto. Não apresentava qualquer evidência de estruturas funerárias, mas sim uma simples deposição junto ao embasamento do troço de parede. Quanto ao segundo contexto romano, foi localizado a nascente do edifício, junto à actual porta de acesso à portaria. Identificado após o levantamento do pavimento em lajes calcárias, integradas no edificado na fase de obras pós-Terramoto, este encontrava-se recoberto por mosaicos rectangulares de cariz contemporâneo. Apenas subsistem duas paredes na área escavada (com cerca de 3.00 m e 1.50 m de comprimento e 0.72 m de espessura), com três fiadas de silhares, um deles “almofadado”. Quanto à parede sul, esta, supostamente, está sob o actual edificado e a parede nascente, a existir, encontra-se, em parte, na zona externa do edifício. Como oportunamente Lídia Fernandes referiu, o prolongamento da parede noroeste do compartimento (Figura 5, U.E.9b) estará, tudo o sugere, sob o edifício vizinho com o actual nº 40 (Fernandes et alii, 2012, pp. 46 e 51). No interior do compartimento coexistem dois períodos cronológicos já que, em época islâmica, é aberto um silo de recorte oval que, foi posteriormente entulhado com materiais de construção e um conjunto de loiça cerâmica, supra. O silo/fossa, aberto junto à parede poente 2 Estudo gentilmente efetuado por José Ruivo.
Presença da ocupação romana no Aljube de Lisboa
Figura 3 – Implantação da área escavada na planta do rés-do-chão.
Figura 4 – Contexto romano no antigo parlatório (actual sala de exposições temporárias).
Uma cidade em escavação
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Clementino Amaro, Eurico Sepúlveda
Figura 5 – Alçados do compartimento na área da actual portaria (lado nascente do edifício).
Figura 6 – Corte este do compartimento (9b) e do silo/fossa (17).
do compartimento romano, foi, em parte, usado na construção da parede sul da portaria (Figura 6, U.E. [17]). Embora o compartimento siga a mesma característica que o contexto anterior, com a presença de um derrube que inclui materiais de construção, estuque pintado, opus caementicium e tesselae, para além de loiça fina, dois numismas e um dado em marfim, no entanto este contexto revelou duas situações novas. A invulgar presença de largas dezenas de fragmentos de uma panela produzida nas olarias norte africanas que, após trabalho de montagem e restauro, se encontra completa (Estampa 5, 1) e de um fundo com parede e fragmento de colo de uma ânfora Dressel 20 (Estampa 6, 1 e 2).
278 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Esta encontrava-se intencionalmente encaixada no substrato rochoso, imediatamente a norte da fossa atrás referida, e o fundo da fossa e da ânfora estavam sensivelmente à mesma cota. Leva a propormos uma reutilização tardia do contentor romano, embora os escassos materiais recolhidos no seu interior não sejam elucidativos. Foi ainda exumado uma das faces de um molde para o qual propomos a hipótese de se destinar ao fabrico de asa de lucerna em cerâmica comum (Estampa 3, 2 e Estampa 4).
Presença da ocupação romana no Aljube de Lisboa
4. Análise dos materiais cerâmicos 4.1. O espólio de cerâmicas de importação e lucernas
Terra sigillata da Gália do Sul (TSG) O espólio de terra sigillata oriundo da Gália do Sul é constituído por um pequeno grupo de NMI num total de 4, que nos mereceram as seguintes considerações: A primeira taça (Est. 1, nº 1) tem um perfil hemisférico quase completo, faltando-lhe, no entanto, a parte da base e do pé, a qual foi classificada como pertencente à forma Rit. 8A. Estas taças têm uma cronologia compreendida pelo período que medeia entre 30/40-100/110 (Gennin, 2007, pp. 327, 328). Apresenta, no entanto, a
particularidade de ter a parede externa estriada, o que é uma característica pouco vulgar neste tipo de vasos. A segunda taça (Est. 1, nº 2) tem, por sua vez, um bordo oblíquo e enquadra-se na forma Drag. 33C, com cronologia entre 80 e 170, a qual corresponde aos espólios da Fosse Gallicanvs e Remblays du Grand Four de La Graufesenque (Idem, pp. 328, 329). No que diz respeito às peças decoradas encontradas nas escavações levadas a cabo no Aljube, foi exumado apenas um fragmento de bordo (Est. 1, nº 3) de taça que apresenta uma foliácea, como início da decoração, a qual está sobreposta, a pouca distância, por uma fina ranhura que a separa de um friso de óvulos com dardos. Depois de uma procura na obra de Geoff Darnnell (1998), para tentar identificar a que oleiro poderia pertencer este tipo
Estampa 1 – 1,2,3 e 4,Terra Sigillata da Gália do Sul; 5, 6, 7e 8,Terra Sigillata Hispânica.
Uma cidade em escavação
279
Clementino Amaro, Eurico Sepúlveda
de friso, não conseguimos encontrar paralelo que se coadunasse com o que descrevemos. Para além deste pequeno fragmento decorado, foi também encontrada uma marca incompleta (Est. 1, nº 4) de um oleiro que se encontra aplicada numa cartela de forma retangular. Da sua leitura chegámos à conclusão que pertence ao oleiro MELVS que laborou em La Graufesenque, durante um período de tempo compreendido entre 35-55 d.C.. Esta cronologia provem da datação proposta por Polak (2000) para as marcas de Vechten ou, de 1-70 d.C., para o mesmo tipo de marcas encontradas por Gennin (2007) nas fossas de rejeitados deste centro oleiro. Em 1978, Françoise Mayet também já tinha encontrado, em Mérida, uma marca deste mesmo oleiro à qual tinha preconizado uma outra cronologia entre os principados de Tibério e Nero.
Estampa 2 – Terra Sigillata Africana A.
280 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Terra sigillata Hispânica (TSH) Com o mesmo número de NMI da TSG foram encontradas peças de produção hispânica com origem nas olarias do complexo oleiro da região do vale do Ebro. Foram estudadas a partir dos perfis obtidos duas formas, pratos e taças, com dois NMI cada. Os pratos (Est. 1, nºs 5 e 6) devem ser incluídos na forma Drag. 15/17, pratos com paredes esvasadas e com um ressalto, tipo quarto de círculo, que as separam do fundo. O segundo exemplar, de que apenas se possui uma parte da parede, tem lábio de tipo amendoado pelo que nos parece ser atribuível à variante d, desta forma. Possuem cronologias muito latas que se estendem desde década de 70 d.C. até finais do séc. VI, na produção da TSHT (Bustamante Álvarez, 2015, p. 215).
Presença da ocupação romana no Aljube de Lisboa
As taças (Est. 1, nºs 7 e 8) pertencem à forma Drag. 27, a qual é facilmente reconhecível pelo seu perfil formado por dois quartos de círculo. Ambas pertencerão a produções com cronologias do segundo quartel do séc. III (Idem, p. 67 e fig. 55). Terra sigillata Africana (TSA) As importações de cerâmica fina de mesa com origem nas olarias norte africanas, localizadas no norte da Tunísia, estão também presentes no espólio da intervenção arqueológica no Aljube de Lisboa com 5 NMI – 4 taças e um prato, todos eles pertencentes à produção A. Três exemplares das taças são carenadas (Est. 2, nºs, 1, 2, e 3) pertencendo à forma Hayes 8 nas suas duas variantes A e B. A primeira taça pertence à variante A, pois está decorada por fino guilhoché com cronologia da segunda metade do séc. II d.C., enquanto as outras duas não apresentam qualquer tipo de decoração (Hayes 8B), logo, características do séc. III. Por fim a taça da qual se obteve o perfil completo (Est. 2, nº 4) insere-se na forma Hayes 14A. Esta forma tem paredes verticais e é ligeiramente carenada. Possui diacronias de finais do séc. II que podem, no entanto, prolongar-se pelo séc. III. Estas diacronias foram obtidas em exemplares exumados na necrópole tunisina de Pupput (Bonifay, 2004).
Quanto ao prato do qual só possuímos uma porção do bordo (Est. 2, nº, 5) está decorado pela parede interna por uma canelura o que nos leva a classificá-lo como pertencente à forma Hayes 27. Esta foi comercializada em períodos cronológicos correspondentes a meados do séc. II tendo previvências por toda centúria seguinte (Quaresma, 2012). Lucernas A lucerna fragmentada (Est. 3, nº 1) da qual se possui a asa que está completa – tipo asa perfurada – assim como parte do infundibulum e do disco, que é, por sua vez, decorado com um crescente sobreposto por uma estrela de cinco ou seis pontas, podemos inseri-la na forma de lucernas de bico redondo, tipo D-L 20=Deneauve VII variante A, subtipo 1, com cronologia da primeira metade/ meados do séc. II d.C. (Bonifay, 2004, p. 322). Esta atribuição foi feita na base de paralelos que obtivemos para esta decoração da qual encontrámos bastantes exemplares na bibliografia consultada. Os temas, ligados à Astronomia, parecem ter sido muito utilizados nas olarias romanas localizadas no norte de África especialmente na Argélia onde Bussière (2000) contabilizou cerca de 77 exemplares com o tema do crescente lunar. Por sua vez temos conhecimento de lucernas com esta decoração em Cartago apresentadas por Deneauve
Estampa 3 – 1, Lucerna; 2, Molde.
Uma cidade em escavação
281
Clementino Amaro, Eurico Sepúlveda
(1974) e mais tarde por Bonifay (2004) de lucernas com este motivo decorativo, assim como na Mauritânia Tingitânia (Ponsich, 1961). Na província da Lusitânia, encontramos em Mérida uma lucerna com este motivo, porém aplicado em lucerna de tipo Deneauve VA, sem asa (Rodríguez Martín, 2002), já para o atual território português este tema encontra-se referenciado em Santa Bárbara (Maia, Maia, 1997), Tróia (Costa, 1973) e em Conímbriga (Belchior, 1969). Para além deste disco de lucerna, consta também do espólio, um outro fragmento de infundibulum, que não se encontra apresentado visto não ter sido possível identificar qual o motivo decorativo aplicado, na medida em que se encontrava bastante erodido. O mesmo aconteceu com a parede externa da base de um reservatório de uma outra lucerna, que deveria ter a marca do oleiro envolvido na sua produção.
Não terminaremos, e tendo em vista uma melhor compreensão das cronologias, sem apresentar um conjunto de quadros, do tipo resumo, que elaborámos com o fim de se poder, de uma forma expedita, verificar o espólio romano respeitante às cerâmicas de importação de um sítio arqueológico, localizado muito próximo de um monumento tão impar de Olisipo como era o seu teatro.
Cerâmica de cozinha Africana Durante a intervenção arqueológica foi encontrada uma miríade de fragmentos de uma panela de cozinha de produção tunisina, que depois de ter sido restaurada, ficou completa (Est. 5, nº 1). A partir do seu perfil foi classificada como pertencente ao tipo Hayes 197 com cronologias dos sécs. II/III d.C. Estampa 4 – Molde.
Formas
Polak
Génin
NMI
Ritt.8A
? a 70 d.C.
30/40 -a 100/110 d.C.
1
Drag. 33C
Pré Flávios
80-170 d.C.
1
Ind.
35-55 d.C.
Marca do oleiro MELVS 1-70 d.C.
1
Quadro I - Formas e cronologias da TS do sul da Gália (La Graufesenque).
Formas
Bustamante Álvarez
NMI
Drag. 15/17
1ª metade do séc. I d.C. ao séc. III/IV
2
Drag. 27
Meados do séc. I d.C. ao séc. III/IV
2
Quadro II- Formas e cronologias da TSH.
Formas
Estampa 5 – 1 Cerâmica de Cozinha Africana; 2 Bilha de uma asa.
282 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Bonifay
(cemitério de Pupput)
Hayes
NMI
Hayes 8A
2ª metade do séc. II d.C.
2ª metade do séc. II d.C.
1
Hayes 8B
Séc. III d.C.
Finais séc. II d.C. / séc. III
2
Hayes 14A
Finais séc. II / séc. III d.C.
Meados do séc. II d.C.
1
Hayes 27
meados do séc. II e séc. III d.C.
160-220 d.C.
1
Quadro III- Formas e cronologias da TSA A.
Presença da ocupação romana no Aljube de Lisboa
Estampa 6 – Ânforas: 1 e 2 Dressel 20; 3 e 4, Dressel 14; 5, Almagro 51 C.
5. Notas finais Tendo como base de análise os materiais exumados, bem como o enquadramento do sítio do Aljube nesta área da colina, com destaque para a evolução urbanística sofrida pelo Teatro Romano, bem como no Claustro da Sé, até à Casa dos Bicos - onde aqui pontua a unidade fabril de preparados piscícolas, desactivada pela presença da muralha do período tardio -, leva-nos a desenvolver uma reflexão mais alargada quanto ao momento de remodelação urbanística operada na cidade ao nível do lazer, do comércio e da +++sua população. Respigando alguns momentos essenciais na evolução espacial do Aljube de Lisboa, o sítio acompanha o plano de renovação urbanística de Olisipo encetada na época de Augusto, com a construção do vizinho Teatro, e de uma zona residencial (ínsula) ladeando uma via e respectiva cloaca, identificadas no claustro da Sé. No Aljube subsiste um compartimento, de construção enquadrável
no século I d.C., vestígios de pavimento e materiais com um arco cronológico compreendido entre a 1ª metade do século I d.C. e 2ª metade do século IV. Os dois núcleos romanos do Aljube foram entulhados na 2ª metade do século IV ou mesmo inícios do V, momento de significativas transformações urbanas, em resultado até da construção da muralha da cidade. A edificação desta estrutura defensiva do período tardio acontece, à semelhança de outras cidades da Hispânia, por finais do século IV/inícios do V (Gaspar, Gomes, 2007). Na muralha de Lisboa são reutilizados, entre outros, elementos arquitectónicos na sua construção, o que reforça a tese de grande remodelação urbana, como o encerramento do Teatro, por esta altura, bem como da unidade fabril de preparados de peixe integrada na Casa dos Bicos (Amaro, Miranda, 2002), ou ainda a construção de pequenos compartimentos sobre a desactivada via pedonal do claustro da Sé (Amaro, 2001).
Uma cidade em escavação
283
Clementino Amaro, Eurico Sepúlveda
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
A Cerca Fernandina foi mandada erguer por D. Fernando em 1373, no mesmo ano em que Lisboa foi atacada pelas tropas de Henrique de Castela. Segundo a placa comemorativa da construção, a muralha teria sido construída em apenas 2 anos, possuindo 5,35 quilómetros de comprimento, rodeando um total de 103 hectares. No entanto, documentação existente dá conta de que em 1378 a muralha ainda não estaria concluída. Segundo Vieira da Silva a muralha teria 77 torres e 38 portas, desdobradas em dois pólos, um a Este e outro a Oeste da Cerca Moura. Nos últimos anos a Neoépica Lda. tem realizado diversas intervenções arqueológicas na zona compreendida entre as Portas de Sta. Catarina e o Postigo do Duque, tendo registado em diversos pontos a Cerca Fernandina. Procuramos traçar a evolução deste espaço desde a construção desta estrutura militar à actualidade. PALAVRAS-CHAVE:
Cerca Fernandina, Duques de Bragança, Marquês de Valença, Casa do Tesouro, Chiado.
ABSTRACT:
The Fernandine wall was ordered to be built by D. Fernando in 1373, in the same year when Lisbon is assaulted by the troops of Henrique of Castela. According to the plaque commemorating the building construction, the wall would have been built in just 2 years, possessing 5.35 km of length, surrounding a total of 103 hectares. However, the existing documentation tells us that in 1378 the wall was not yet complete. According to Vieira da Silva, the wall would have had 77 towers and 38 doors, positioned in two sides, one on the East and another at the West of the Moorish wall. In the last years, Neoépica Lda. has been conducting several archaeological interventions in the area comprised between Portas de Sta. Catarina and Postigo do Duque, having registered, in several areas, evidences of the Fernandine wall. We seek to trace the evolution within this area since the construction of this military structure until the present day. Key words:
Fernandine Walls, Dukes of Bragança, Marquis of Valença, Treasure House, Chiado.
Muralha Fernandina. Vestígios da muralha ao longo da fachada tardoz do edifício analisado
3.7 A Cerca Fernandina: das Portas de Sta. Catarina ao Postigo do Duque Lisboa
Nuno Neto Paulo Rebelo Vanessa Mata
Neoépica, Lda. neoepica@gmail.com
A cidade de Lisboa tem como seu núcleo original a colina de Alfama e Mouraria, uma zona ocupada desde a Idade do Ferro e ao longo da época Romana e Islâmica. Ainda em período romano, a cidade começa a crescer para poente na direção do vale aberto que se desenvolveria para Norte desde o actual Terreiro do Paço até à zona do Rossio. A zona do Chiado deve começar a ser ocupada mais intensamente nesta época, havendo, para a área em estudo, a referência de Júlio Castilho do achado de uma epígrafe romana nas paredes do palácio do Duque de Bragança. Refere este autor que o palácio teria ocupado o mesmo sítio da antiga villa dos pretores romanos. Esta epígrafe embutida nas paredes do palácio terá desaparecido aquando de uma campanha de obras no tempo de D. João V (CASTILHO, 1937, p. 71; SILVA, 1960, p. 107). Trabalhos recentes efectuados nesta zona, mais precisamente na Rua do Ferragial, revelaram contextos romanos, que atestam a ocupação desta zona em época romana. Já no século XVI, a gravura de Georgio Braunio (1593) vem revelar para o Chiado um urbanismo completamente desenvolvido sobre uma traça de raiz medieval onde se terá fundado a freguesia dos Mártires por volta de 1148. Estamos assim numa zona da cidade onde se fundam importantes instituições religiosas como o mosteiro de Santa Clara e o mosteiro de São Francisco; a Igreja de Nossa Senhora do Loreto ou a Igreja dos Mártires; ou entidades de carácter civil/palaciano como o Palácio dos Duques de Bragança e o Palácio do Marquês de Valença. A gravura de Georgio Braunio mostra como a Cerca Fernandina1 se desenvolve para Sul desde as Portas de
Santa Catarina até ao chamado Postigo do Duque. Verifica-se que, apesar de bem visível e marcada, já começa a sofrer uma intensa pressão do urbanismo crescente, notando-se a sua afectação/destruição no lado Sul a partir da Porta do Corpo Santo. O Palácio dos Duques de Bragança encontra-se bem marcado na gravura do século XVI, ao lado do Mosteiro de São Francisco, como quem desce na direcção do rio pela Rua da Cordoaria Nova, limitada a poente pelo alçado interno da Muralha Fernandina. O troço alvo de análise esta inserido no traçado poente da Cerca Fernandina, que tem início a NO do Castelo do S. Jorge. A sua passagem pela zona do Chiado faz-se pelo Largo do Chiado, onde estavam localizadas as Portas de Santa Catarina. Continua para Sul ao longo do quarteirão situado entre as Ruas do Alecrim e a António Maria Cardoso, passando exactamente nas traseiras dos números 9 a 13 e 25 a 29, locais alvo de intervenção por parte da Neoépica. No final da Rua António Maria Cardoso, na área ocupada pela Esplanada de Bragança, encontrava-se a Torre do Conde de Vimioso, registada aquando da intervenção arqueológica aqui realizada na década de 90 do século XX, pela arqueóloga Ana Gomes. Esta torre flanqueava o Postigo do Duque de Bragança. A muralha seguia depois para Nascente, passando junto à fachada Sul do Hotel Bragança, seguindo novamente para Sul e cortando pela Rua do Ferregial de Baixo e a Travessa do Cotovelo, seguindo em direcção ao Arsenal da Marinha. O pormenor da vista de Lisboa da autoria de George Braunio, datada de finais do Séc. XVI (SILVA, 1987), mostra que a Muralha Fernandina na zona em estudo se encontra bem marcada, sem edifícios adossados, apre-
1 Mandada fundar por D. Fernando, é construída pelo povo da cidade de Lisboa entre 1373 e 1375. No entanto, documen-
tação existente dá conta de que em 1378 a muralha ainda não estaria concluída.
1. Introdução
Uma cidade em escavação
287
Nuno Neto, Paulo Rebelo, Vanessa Mata
sentando no seu lado Este (actual Rua António Maria Cardoso) uma rua larga que segue ao longo da muralha entre o Postigo do Duque e as Portas de Stª. Catarina. É ainda possível visualizar o que nos parecem ser as torres entre estes dois acessos (estas torres deverão corresponder aos redentes da muralha, assinalados por Vieira da Silva). A imagem de Braunio mostra que, apesar da cidade se ter ampliado ao longo do Rio Tejo e para Norte, estando a muralha cercada por edifícios, a estrutura destaca-se dos restantes corpos edificados, que não confinam ou adossam nela. Este facto é demonstrativo de como em finais do século XVI a Muralha Fernandina ainda manteria possivelmente a sua função de carácter defensivo. É contudo de notar, tal como sublinha Vieira da Silva (SILVA, 1987, p.11), que estamos perante uma ilustração “esquemática e fantasiosa”, devendo ser analisada com as devidas ressalvas, embora se realce a sua importância para o estudo da cidade de Lisboa. Com o passar do tempo a Muralha Fernandina vai perdendo a sua função defensiva. Na planta de 1650 da autoria de João Nunes Tinoco nota-se que a muralha já se encontra aglomerada por diversas construções, ou seja, teria já perdido o seu aspecto funcional como elemento defensivo da cidade Lisboa. A rua que liga as Portas de Stª. Catarina ao Postigo do Duque é designada de Rua Nova da Cordoaria: uma rua larga que teria em 1755 uma dimensão aproximada de cerca de 11x121m. Entre a Rua Nova da Cordoaria e o troço da Muralha Fernandina desenvolviam-se uma série de edifícios que encostariam na face da muralha (SILVA, 1987, p. 11). Com o
terramoto de 1755 esta rua acaba por desaparecer “[…] afogada no interior dos prédios construídos entre a Igreja da Encarnação e as casas que se lhe seguem para o sul na Rua do Alecrim, e os prédios da Rua António Maria Cardoso. O seu chão, assim como o das cavalariças e o das outras casas que nela existiam, foram vendidos a diversos. […]” (SILVA, 1987, pp.12-13). A observação entre a planta de Tinoco de meados do século XVII, onde se desenha uma rua direita, larga e desimpedida e a cartografia apresentada por Vieira da Silva, tendo por base os dados do Tombo de 1755, permite ainda observar parte da Rua Nova da Cordoaria a poucos metros para Oeste da actual Rua António Maria Cardoso, antiga Rua do Picadeiro. Parece que nesta altura a Rua da Cordoaria Nova, aglutinada em parte por diversas construções, já teria perdido todo o seu comprimento transformandose numa espécie de beco sem saída. As intervenções arqueológicas realizadas pela Neoépica Lda. entre a Rua António Maria Cardoso e a Rua Victor Cordon podem, dada a sua proximidade, ser vistas como representativas das realidades outrora existentes nesta zona do Chiado. Aliás, os dados obtidos permitem uma leitura complementar onde se registaram paralelismos vários, funcionando como elementos homogéneos e coerentes para a leitura e estudo desta zona específica da cidade, não só no que se refere ao traçado da Cerca Fernandina, como também na sua vivência pré e pós-terramoto de 1755, os impactos que este causou e as estratégias de reordenamento que deram origem ao traçado urbanístico actual.
Figura 1 - Pormenor da vista de Lisboa de George Braunio, datada de meados do séc. XVI, marcandose a área entre as Portas de Sta. Catarina e o Postigo do Duque (VIEIRA, 1987- 2ª Edição).
288 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
A Cerca Fernandina: das Portas de Sta. Catarina ao Postigo do Duque – Lisboa.
Figura 2 - Pormenor da planta de João Nunes Tinoco (1650) destacando-se a área entre as Portas de Sta. Catarina e o Postigo do Duque (Fonte: lxi.cm-lisboa.pt). A laranja marca-se a área em análise.
2. Rua Victor Cordon / Hotel Bragança A intervenção na Rua Victor Cordon, n.º 41 a 45, efectuou-se no edificado conhecido por ter sido o antigo Hotel Bragança. Construído em meados do século XIX, foi um dos primeiros hotéis da cidade de Lisboa a ser construído de raiz para esse efeito, tendo hospedado figuras de relevo como membros das famílias reais europeias e até mesmo da japonesa. Serviu igualmente de lugar às tertúlias do grupo de intelectuais conhecido como Vencidos da Vida, do qual participavam importantes personalidades como Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão ou Eça de Queiroz. Entre 1915 e 1966 passam a funcionar neste espaço as Companhias Reunidas de Gás e Electricidade. Nos anos 70 adapta-se ao ensino com a presença da Universidade Livre: primeira universidade privada de Portugal. Após o seu encerramento, o edifício terá ficado parcialmente devoluto. Apesar das diversas campanhas de obras e readaptações realizadas entre o século XIX e XX, os pisos superiores do edificado apresentam-se relativamente coerentes. Os aparelhos revelam, nas paredes internas, o recurso ao sistema construtivo em gaiola, tipicamente pombalino. As leituras obtidas permitem afirmar que os pisos intermédios se encontram em larga medida relacionados com as obras de adaptação do espaço a hotel. Já no que diz respeito ao último piso, águas furtadas e cobertura, encontram-se relacionados com um momento datado de 1923 onde se procedeu a diversas remodela-
ções ao nível destes pisos. Não obstante, note-se que os pisos superiores surgem já bem marcados em fotografia datada de 1856 (CASTILHO, 1937, p. 116). É no entanto ao nível dos pisos inferiores que é possível perceber a existência de contextos mais recuados, relacionados com existências anteriores ao terramoto de 1755. Como vimos, esta zona do Chiado estaria já no século XVI ocupada pelas cercas de diversos conventos como o da Trindade, do Carmo e de São Francisco. Existiriam também diversos palácios, como o palácio do Marquês de Valença, dos Peçanhas e o mais sumptuoso, o Palácio dos Duques de Bragança. É difícil de perceber exactamente como terá ocorrido a fundação do Palácio dos Duques de Bragança. Não obstante, existem referências de que teria vindo ocupar um espaço já pertencente a D. Nuno Álvares Pereira, que por sua vez doa estas propriedades, em 1422, ao seu neto D. Afonso, Conde de Ourém. As primeiras referências ao palácio surgem com D. Jaime, 4º Duque de Bragança, sabendo-se que em 1532 possuía “umas casas na freguesia dos Martes” (SILVA, 1960, p. 108). Em 1500 e 1502, querendo expandir o palácio, acaba por comprar terrenos aos frades do Convento de S. Francisco, que se localizaria a Sudeste (VIEIRA, 1960, p. 108). É assim perceptível que o actual n.º 41 a 45 da Rua Victor Cordon estaria integrado no complexo do antigo Paço dos Duques de Bragança, encontrando-se neste local o chamado Edifício do Tesouro Velho, dando origem aos topónimos antigos do local como a Rua do Tesouro ou Arco do Tesouro (SILVA, 1987).
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Nuno Neto, Paulo Rebelo, Vanessa Mata
Figura 3 – Edificado em análise onde funcionou o antigo Hotel Bragança.
Figura 4 – Diferentes momentos construtivos do edificado em análise.
290 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
A Cerca Fernandina: das Portas de Sta. Catarina ao Postigo do Duque – Lisboa.
Com o terramoto de 1755 o conjunto que corresponde ao Paço dos Duques de Bragança, onde se integraria o Edifício do Tesouro, sofre um forte impacto ficando praticamente destruído, o que levará ao seu abandono geral. Desta forma, o espaço acaba por perder o seu carácter nobre passando a ser ocupado por gente pobre e indigentes nos anos a seguir ao grande terramoto. Júlio de Castilho ilustra este ambiente nos seus Bairros Orientais: “Tornou-se todo o edifício um cáos indiscritível, pelo meio do qual se anicharam barracas e baiucas de pobrissima aparência, que deram ao sítio a feição de uma cour de miracles, das de peor fama.” (CASTILHO, 1937, cap. VIII). Os dados recolhidos ao longo da intervenção arqueológica, permitiram registar, nos níveis inferiores do actual edificado, um aparelho robusto, encontrando-se as fachadas organizadas num aparelho regular, tipo silhar, composto por cantaria aparelhada. Um outro aspecto que revela a diferença entre os diversos momentos construtivos é a análise de vãos de portas e janelas, mostrando um evidente desfasamento do alinhamento dos vãos abertos ao nível do piso 0 em comparação com os pisos superiores. Destaca-se ainda a análise das divisórias interiores: ao nível do piso 0 são constituídas por paredes de grande robustez e espessura (algumas com cerca de 2,5 m), de aparelho distinto do observado nos pisos superiores. Já os tectos são coerentes em todo o piso inferior, sendo executados com recurso a abóbodas de aresta. As sondagens arqueológicas, parietais e de solo, vieram mostrar que o edificado se encontra implantado directamente sobre o substrato geológico, compacto (biocalcarenitos), tendo-se para o efeito escavado o próprio
substrato rochoso, criando-se uma plataforma regular em parte enterrada. No limite Este do edifício, observa-se a existência de um piso -1, onde se constatou que parte das paredes do edifício recorrem ao próprio substrato rochoso que se estende verticalmente em alguns locais em cerca de 2 m de altura, a partir do qual arrancam as paredes em alvenaria que constituem o edifício. Um outro elemento de grande interesse refere-se à presença de uma estrutura enterrada, existente no limite NO do edifício, ao nível do piso -1. A sua real função não é de todo clara, podendo tratar-se de uma provável cisterna, à qual se tem acesso por uma escadaria a partir do piso 0, encontrando-se encaixada no substrato geológico, que terá sido escavado tendo em vista a sua implantação. Apresenta-se em bom estado de conservação, sendo este espaço readaptado a diversas funções até à actualidade. As paredes são compostas por um robusto aparelho em silhar calcário, apresentando-se a cobertura em abóboda de berço, suportada por quatro robustos pilares quadrangulares, sendo o piso em lajes calcárias. A planta é algo irregular de tendência rectangular. As sondagens de solo realizadas no patamar superior do lado Oeste (no interior do edificado e no pátio) vieram reforçar a ideia de que tanto a possível cisterna como o edificado que se desenvolve ao nível do piso -1 e 0, correspondem a vestígios associados a elementos anteriores ao terramoto de 1755, muito provavelmente relacionados com o Edifício do Tesouro, enquadrado no complexo palaciano dos Duques de Bragança, que terão subsistido ao grande terramoto, sendo reutilizados no edificado no século XIX.
Figura 5 – Edificado ao nível do piso 0 onde ainda se podem registar as grossas paredes que suportam abóbodas em aresta.
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Figura 6 – Vista lateral do levantamento ortofogramétrico da cisterna no piso -1.
A intervenção arqueológica de 2010 neste sector Oeste do edifício, ao nível do 1º piso (onde se encontra um corpo avançado em relação ao piso 0), permitiu perceber que estamos perante uma série de depósitos que colmatam a área, elevando-a ao nível actual. Estes níveis
encontram-se associados a alicerces de estruturas que se desenvolveriam em positivo segundo uma planta de desenho circular. Estes alicerces encontram-se associados a depósitos onde se recolheu um conjunto artefactual balizado entre o século XVII e a 1ª metade do século XVIII.
Figura 7 – Implantação do traçado da muralha fernandina (a azul troço identificado) sobre imagem de satélite (Google Earth).
292 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
A Cerca Fernandina: das Portas de Sta. Catarina ao Postigo do Duque – Lisboa.
Já os trabalhos arqueológicos realizados na zona do pátio em 2015, vieram a confirmar as leituras tidas anteriormente na intervenção de 2010. Assim, percebeu-se a presença de níveis associados à ocupação deste espaço logo após a ruína e o abandono geral causado pelo terramoto de 1755. Surgiram níveis de piso associados a buracos de poste que fariam muito provavelmente parte das chamadas barracas onde habitavam e procuravam refúgio “criminosos, indivíduos de péssima conduta sem que tenham domicilio certo” (Arquivo Casa de Bragança, NNG 2328). Registaram-se também os alicerces e o arranque das paredes que fariam o limite Oeste do antigo Edifício do Tesouro, vindo estas na continuidade das estruturas já conhecidas e ainda hoje visíveis no interior do actual edifício. No que diz respeito à Muralha Fernandina, esta zona do Chiado corresponde ao troço que se desenvolve desde as Portas de Santa Catrina, seguindo para Sul entre a Rua António Maria Cardoso e a Rua do Alecrim e inflectindo para Este no Postigo do Duque, onde parte da estrutura encosta à Linha de Festo do Monte Fragoso. Apesar de marcado como hipotético por Vieira da Silva, sabe-se hoje que o traçado segue pelo limite Sul do antigo Hotel Bragança (SILVA, 1945, p. 195). Tendo em conta estes dados, os trabalhos de 2010 procuraram perceber se a Muralha Fernandina passava efectivamente nas costas do antigo Hotel Bragança. Procedeu-se então à abertura de uma sondagem no interior da galeria que se implanta no limite Sul do edificado. Os trabalhos vieram
a revelar a presença do miolo da Muralha Fernandina, construída num aparelho consistente composto por taipa militar, desenvolvendo-se no sentido Este-Oeste, correndo provavelmente a Sul da fachada do actual edifício. Os trabalhos desenvolvidos em 2015 no logradouro do edifício não permitiram a identificação da Muralha Fernandina. Acreditamos contudo que ela se desenvolverá nesta zona, devendo corresponder em parte à espessa parede de contenção da escarpa que se observa a acompanhar o enorme desnível entre a plataforma onde se localiza o edifício em análise e a Rua do Ferragial. 3. Rua António Maria Cardoso 9 a 13 A intervenção decorreu em 2010 e 2013, no edificado localizado entre os n.ºs 9 a 13, da Rua António Maria Cardoso, encontrando-se numa zona onde terão existido diversos edifícios de carácter palaciano como o referido Palácio dos Duques de Bragança. Na área em estudo existiria as cavalariças daquele palácio, as Casas do Conde de Vimioso, ou no limite Sul do edificado, o Palácio do Marquês de Valença. Com a ruína causada pelo terramoto de 1755 dá-se o abandono geral destes palácios, sendo a zona ocupada, como vimos, por barracas onde procuravam refúgio marginais e indigentes. Em 1 de Agosto de 1841, deflagrou um incêndio na área ocupada pelas barracas, que acabou por destruir a maior parte destas habitações precárias, o que levaria ao reor-
Figura 8 – Fachada principal do edificado na Rua António Maria Cardoso – Chiado.
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denamento urbanístico de toda esta zona de que resulta a actual configuração do edificado e das ruas anexas. Em meados do século XIX logo após o violento incêndio, dáse a construção neste local da Fábrica de Cerveja Michael Gerards & Companhia, que posteriormente é adquirida por Henry Jansen passando a denominar-se Fábrica de Cerveja Jansen, acabando a sua fachada tardoz por encostar na face interior da Muralha Fernandina. A análise do edificado permitiu perceber que, no geral, estamos perante um edificado de método construtivo e raiz pós- pombalina. Isto é bem visível nos pisos superiores onde se encontram dependências e grandes salões com serventia de um terraço com vista para o Rio Tejo. O acesso principal faz-se por uma porta central que abre para um átrio de grandes dimensões com o chão revestido a lajes quadrangulares de lioz branco e calcário negro de onde parte uma escadaria em lioz branco. Os trabalhos de sondagens parietais e de solo permitiram registar uma série contextos de época moderna, que ilustram as diversas ocupações do local antes e após o terramoto de 1755. Um dos elementos que mais se destaca foi o registo da Muralha Fernandina, cujos trabalhos vieram confirmar que se encontra ao longo da fachada tardoz do edificado existente. Assim, a Muralha Fernandina é usada como base para a elevação das estruturas de época Moderna, em parte ainda visíveis, sendo esta “desbastada” e moldada consoante a necessidade e os critérios construtivos a adoptar em diferentes momentos, procurando adaptar-se a diversas funcionalidades. Relativamente à técnica construtiva destes troços da Muralha Fernandina, as diversas sondagens efectuadas, mostraram uma técnica coerente, em tudo semelhante ao observado aquando dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos nos Terraços Bragança (GOMES, FOLGADO, 1996). Estamos assim perante uma estrutura de taipa,
designada por taipa militar, com cerca de 2,10m de largura, constituída por argamassa de cal de forte consistência com inclusão de pedra calcária que contêm fósseis de pequenas dimensões. Trata-se de uma construção de forte consistência que recorreu a taipais com uma altura média de 85cm, sendo visíveis os orifícios de agulheiro utilizados para suporte destes e também dos andaimes. Em alguns troços foi possível observar que o cerne da muralha apresenta uma constituição menos robusta que as faces externa e interna, recorrendo-se essencialmente a um sedimento siltoso de cor castanho alaranjado. 4. Rua António Maria Cardoso 25 a 29 Na intervenção que decorreu em 2013 no edificado localizado entre o n.º 25 a 29 da Rua António Maria Cardoso, próximo do edifício mencionado anteriormente, foram abertas duas sondagens de solo implantadas no logradouro do edifício e efectuada a análise parietal de uma estrutura do tipo terraço implantada sobre o troço da Cerca Fernandina. Vieira da Silva apresenta uma descrição objectiva para o espaço em análise (SILVA, 1987, pp. 21-22). Para os prédios nº 15 a 29 da Rua António Maria Cardoso, onde se insere o edifício em questão, este autor realça o facto de estarem construídos onde estariam as antigas cavalariças de El-Rei e o Palácio do Marquês de Valença, como anteriormente já observado. Ainda faz referência ao jardim, área onde se realizaram os trabalhos: “[…] No primeiro dos mencionados prédios n.º 29, uma antiga cisterna, servindo hoje de garrafeira, cujo bocal está situando no jardim do 1º andar do prédio. Sobre o adarve da muralha, ao fundo do jardim, estão construídas umas capoeiras e arrecadações.[…]” (SILVA, 1987, pp. 21-22).
Figura 9 – Vestígios da muralha fernandina ao longo da fachada tardoz do edifício em observação.
294 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
A Cerca Fernandina: das Portas de Sta. Catarina ao Postigo do Duque – Lisboa.
Figura 10 – Interior do edifício onde a muralha fernandina serviu como elemento estrutural ao longo da fachada tardoz.
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Nuno Neto, Paulo Rebelo, Vanessa Mata
Esta descrição é em tudo consentânea com os elementos observados na actualidade. Confirma-se a presença do designado bocal da cisterna que terá servido de garrafeira, bem como as referidas capoeiras e arrecadações, que a intervenção arqueológica permitiu verificar que terão usado a muralha como elemento de suporte à sua estruturação. Vieira da Silva ainda se refere à existência no jardim de “[…] um passadiço ou galeria que termina numa estufa ou mirante envidraçado construído sobre a própria muralha da cerca. […]” (SILVA, 1987, p. 22). Os trabalhos permitiram registar vestígios da designada estufa ou mirante implantado sobre o 3º redente da Cerca Fernandina, ou seja, encostando ao limite Sul do espaço do logradouro/jardim alvo da intervenção. A intervenção arqueológica possibilitou o registo e a confirmação de que os elementos existentes no logradouro do edifício terão utilizado a Cerca Fernandina como base para a sua implantação, que neste local apresenta a mesma técnica construtiva já descrita para os troços observados anteriormente. Ao longo do século XX, e até aos dias de hoje, vãose dando algumas remodelações do espaço enquadrado pela Rua António Maria Cardoso. Contudo, em linhas gerais, não se registam grandes alterações. Actualmente ainda é possível observar o jardim do antigo palácio dos Condes de Farrobo, mas a zona mais a sul foi intensamente alterada aquando da construção de um empreen-
dimento na zona da Fábrica da Cerveja e do Palácio do Marquês de Valença. No que diz respeito ao logradouro do nº 25 e edifício vizinho (nºs 15 a 21) ainda é possível registar vestígios da estufa/mirante referida por Vieira da Silva, bem como da cisterna, capoeiras e arrecadações que se implantam na área em análise e que afectaram de forma directa a Muralha Fernandina.
5. Conclusões Os trabalhos arqueológicos realizados permitiram registar toda uma sequência que ilustra uma série de momentos marcantes na história da cidade de Lisboa, mais especificamente desta zona do Chiado. A ciência arqueológica permite uma aproximação directa sobre o nosso património que permanece escondido ao nível do subsolo e dentro de paredes. A memória da cidade vai assim surgindo, formando-se a partir do crescimento e na evolução da própria cidade. Como entidade em constante mutação, transforma-se e adapta-se para dar resposta a novos tempos e novas funcionalidades. Apesar de diferentes vontades e circunstâncias, o tempo não fica suspenso e a cidade mais que instante de passado é espaço de presente e futuro que se vai continuamente transformando em História.
Figura 11 - Pormenor do pequeno logradouro intervencionado sobre levantamento cartográfico da Cidade de Lisboa de Filipe Folque, datado de 1856-1858 (Fonte: lxi.cm-lisboa.pt).
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A Cerca Fernandina: das Portas de Sta. Catarina ao Postigo do Duque – Lisboa.
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Figura 12 – Traçado da Muralha Fernandina ao longo da Rua António Maria Cardoso.
Bibliografia
Arquivos
ARAÚJO, N. (1993): Peregrinações de Lisboa, Livro XIII, Lisboa: Editora Vega, 1993.
GOMES, A.; FOLGADO, D. (1996): Relatório dos Trabalhos Arqueológicos nos Terraços de Bragança – Lisboa, Lisboa (policopiado).
Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa. Arquivo Municipal de Lisboa. Processo de Obra dos n.º 41 – 45 da Rua Victor Cordon. Processo de Obra dos n.º 9-13 da Rua António Maria Cardoso. Cópia de 1894 do fundo da cidade de Lisboa em 1755 (original Arquivo Nacional Torre do Tombo). Arquivo Histórico da Casa de Bragança (Vila Viçosa). AF, NNG.815, III-8. AF, NNG.815, III-16, fl.38. AF, NNG.1085, MS-609. AF, (1646-1848) NNG (815) MS.IG.609. NNG 2328.
SILVA, A. V. da (1960): O Palácio dos Duques de Bragança em Lisboa, Dispersos, Vol. 3, Lisboa: Biblioteca de Estudos Olisiponenses.
Sites de internet
SILVA, A. V. da (1987): A Cerca Fernandina de Lisboa, Lisboa, 2ª Edição, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa.
http://lxi.cm-lisboa.pt/
CASTILHO, J. (1937): Lisboa Antiga – Segunda Parte, Bairros Orientais, Vol. VIII, 2ª Edição, Lisboa: Câmara Municipal. CARITA, H. (1999): Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época Moderna (1495-1521), Lisboa, Livros Horizonte. FRANÇA, J. A. (2005): Lisboa: Urbanismo e Arquitectura, Lisboa: Livros Horizonte.
Uma cidade em escavação
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
As escavações arqueológicas dirigidas pelos signatários nos edifícios da Rua Norberto de Araújo, 9, 21-29, Largo do Contador-Mor, 17-22 e no Pátio de Dom Fradique, enquadradas em projectos de reabilitação urbana municipais e particulares, permitiram descobrir uma série de novas informações sobre a evolução da estrutura defensiva. Obra plúrima e estruturante da cidade antiga, a muralha da antiga medina encontra aqui o seu mais extenso trajecto conservado na cidade e encerra ainda nos seus vestígios evidências estratigráficas e artefactuais de episódios que nos remetem para o sistema defensivo de Época Romana Republicana ou anterior. O troço de muralha patenteia vestígios construtivos de Época Romana Imperial, da Antiguidade Tardia, de Época Medieval Islâmica e Cristã, possibilitando simultaneamente uma leitura diacrónica do maior interesse patrimonial e museográfico. A descoberta singular de estruturas de natureza hidráulica, construídas no século I, associadas à muralha na Rua Norberto de Araújo, traz cumulativamente à discussão a questão das redes de drenagem e do abastecimento de água à parte baixa da cidade romana. PALAVRAS-CHAVE:
Muralhas, torres, fossos, águas.
ABSTRACT:
The archaeological digs were led by the subscribing authors and took place inside the buildings at number 9 and numbers 21-29 at Rua Norberto de Araújo , numbers 17-22 at Largo do Contador-Mor and at an outdoor area at Pátio de Dom Fradique, withinin the framework of private and municipal urban rehabilitation projects, allowed us to discover a series of new information about the evolution of the defensive wall. Multiple and structuring enterprise of the ancient city, the medina wall reveals at these points its longest well preserved stretch and bears within its remains stratigraphic and artifactual traces that carry us back as far as to the Republican Roman Period defensive system or even earlier. This section of the wall documents traces from Imperial Roman Period, Late Antiquity, Islamic and Christian Medieval Period, simultaneously allowing a diachronic understanding of great patrimonial interest. The peculiar discovery of hydraulic structures built in the 1st century, intimately associated to the wall at Rua Norberto de Araújo , brings simultaneously to debate the theme of drainage networks and water supply to the downtown roman city. Key words:
Wall, tower, moat, water.
Muralha antiga de Lisboa. Tramo existente na Rua Norberto de Araújo
3.8 Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa: o lanço oriental entre a Alcáçova do Castelo e o Miradouro de Santa Luzia
Marina Carvalhinhos
Arqueóloga, Centro de Arqueologia de Lisboa/CML/DMC/DPC marina.carvalhinhos@cm-lisboa.pt
Nuno Mota
Arqueólogo, Centro de Arqueologia de Lisboa/CML/DMC/DPC nuno.miguel.mota@cm-lisboa.pt
Pedro Miranda
Arqueólogo, Unidade de Intervenção Territorial Centro Histórico-Baixa/CML/UCT pedro.miranda@cm-lisboa.pt
1. Preâmbulo O artigo que se apresenta pretende dar a conhecer os resultados de quatro intervenções arqueológicas realizadas, entre 2005 e 2013, ao longo de um troço da cerca urbana medieval, a muralha antiga que definia a medina, também vulgarmente conhecida como “Cerca Velha” ou “Moura”, no percurso compreendido entre a esquina Sudeste da Alcáçova do Castelo de São Jorge e o Miradouro de Santa Luzia (Fig. 1). As escavações arqueológicas dirigidas pelos signatários nos edifícios sitos na Rua Norberto de Araújo, 9 e 2129 (antiga Rua da Adiça), Largo do Contador-Mor, 17-22 e no espaço exterior do Pátio de Dom Fradique (Fig. 1) permitiram descobrir uma série de novas evidências sobre a evolução da estrutura defensiva e articular informações contextuais dispersas que interessava revisitar e analisar de uma forma integrada1. Estas diferentes intervenções enquadraram-se em projetos de reabilitação urbana particulares e municipais, neste último caso desenvolvidos pela Unidade de Projeto de Alfama (UPA), atualmente Unidade de Intervenção Territorial do Centro Histórico (UITCH), e em consonância com um projeto municipal de estudo e valorização das muralhas, desenvolvido pelo Serviço de Arqueologia do Museu da Cidade e posteriormente pelo Centro de Arqueologia de Lisboa. Estes quatro locais intervencionados em torno da antiga muralha urbana, a que se juntam outras escavações 1 Este trabalho é uma síntese das novas informações recolhidas no âmbito das intervenções arqueológicas referidas, apresentando-se como uma divulgação preliminar ao estudo geral de maior fôlego sobre a muralha antiga de Lisboa, em preparação pelo CAL.
arqueológicas realizadas na área por diversos intervenientes ao longo das últimas décadas, revelaram diferentes materialidades e contextos, por vezes escassos, mas que quando analisados no seu conjunto permitem avançar com uma proposta de leitura contínua, embora irremediavelmente fragmentada, da evolução da estrutura defensiva. A intervenção arqueológica na Rua Norberto de Araújo, nºs 21 a 29, no edificado parcialmente adossado ao paredão do Miradouro de Santa Luzia, na zona da sua esquina Nordeste, possibilitou a construção de um discurso interpretativo sobre as realidades arqueológicas ali encontradas e forneceu a chave para abordar e decifrar algumas das materialidades registadas nas restantes escavações que se apresentam neste trabalho. 2. A Cerca Velha: considerações históricas Este conjunto edificado lisboeta, onde decorreu a intervenção arqueológica, situa-se no bairro de Alfama e integra-se na recém-criada freguesia de Santa Maria Maior. Antiga Rua da Adiça e Calçada de S. João da Praça, a Rua Norberto de Araújo passou a ser assim denominada em 1950, homenagem da C.M.L. ao destacado olisipógrafo que muito contribuiu para a divulgação do património monumental, tradições, usos e costumes da capital. O conjunto urbano é composto por cinco edifícios e, em 2005, encontrava-se já em avançado estado de degradação. Tinha como particularidade de interesse histórico maior o facto de a parede oposta à sua fachada principal aparentemente confinar com o muro de suporte do miradouro de Santa Luzia, o qual não seria mais do que um trecho da Cerca Velha.
Uma cidade em escavação
299
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
O traçado da antiga Cerca, com cerca de 1250 metros de extensão, era irregular e em muitas zonas integrou os acidentes naturais da topografia do sítio, como neste caso da ravina de Santa Luzia. Norberto de Araújo nas suas peregrinações conta que “a muralha moura descia das Portas do Sol pela antiga Adiça, designação já do século XVI (Calçada de S. João da Praça), em cujo primeiro lanço alto de escadinhas lá estava ainda parte da veneranda muralha e torre, até à parte sul, em ângulo, do casarão do Limoeiro, onde, fazendo um pequeno desvio, descia até aqui, local, em que se abria a Porta de Alfama.” (ARAÚJO, 1992, p. 43). Também Vieira da Silva, em 1939, é peremptório quanto à permanência da estrutura defensiva no local: “O miradouro de Santa Luzia assenta duas das suas faces, Sul e Oriental, sobre duas quadrelas da cerca moura, que aí se podem ver perfeitamente características e bem conservadas (...). Estas quadrelas formam um ângulo sensivelmente recto e no seu vértice sobressai um pequeno cubelo.” (SILVA, 1987, p. 172). O cubelo que Vieira da Silva menciona é uma torre embebida no conjunto edificado agora em estudo que se destacava na paisagem urbana pela sua imponência construtiva, consubstanciada numa torre de grande dimensão instalada neste vértice da muralha, cuja situação é representada de forma elucidativa na iconografia da segunda metade do século XVI (Fig. 2). Ao dobrarmos o cunhal do edifício nº 29 da Rua Norberto de Araújo entramos nas Escadinhas com o mesmo nome que acompanham o pano de muralha, agora totalmente visível, até ao Largo das Portas do Sol. Na esquina deste largo com a escadaria, encontramos uma outra torre, que seria contígua a uma porta primitiva da Cerca Velha, conhecida por Porta ou Portas do Sol, ou Arco de Santa Luzia. O topónimo Portas do Sol perpetua a memória da antiga porta da cidade moura virada a Nascente, identificada nas fontes islâmicas como “Bab al Maqbara” - porta do Almocávar (cemitério) que possivelmente se encontrava na encosta da Graça e na zona de São Vicente (SIDARIUS, REIS, 2001, p. 71). O eixo viário que a atravessava, um dos mais antigos de Lisboa, saía para Norte possivelmente seguindo dois caminhos, um para o monte da Graça/São Gens e outro para a zona de São Vicente de Fora. Crê-se ainda que, em período islâmico, esta porta nascente fosse em cotovelo e que os seus vestígios possivelmente foram assimilados na construção do Palácio Azurara, no século XVII, devido a uma “grossa muralha” ao fundo do átrio de entrada do palácio (SILVA, 1987, p. 178). A Porta do Sol cristã situar-se-ia onde hoje se encontra a via pública. O troço entre os Palácios Azurara e Belmonte é dos mais bem preservados e visível, com uma extensão de cerca de 86 m, marcado por duas torres, uma das quais pentagonal, integradas na construção do Palácio Belmonte em finais do século XVI. É possível que, entre estas duas torres, a muralha tivesse sido rasgada para a abertura de uma porta primitiva da cerca. No entanto, não nos aparece qualquer referência nas fontes árabes sobre a existência de uma porta neste local. Só no século XVI é que temos uma menção a uma porta chamada de Dom Fradique. O arco que hoje em dia faz a ligação entre o Pátio de D. Fradique e o Chão da Feira, passando por baixo do Palácio Belmonte, fossiliza esse outro acesso da cidade para os arrabaldes orientais (SILVA, 1987, p.183).
300 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Aos danos causados nestes muros antigos por ação humana temos ainda de adicionar aqueles causados por ação natural, que tantas vezes conseguem ser mais devastadores. Há registo de sismos de forte intensidade ao longo dos séculos, sendo que na centúria de trezentos Lisboa viveu uma série de abalos, alguns deles rivalizando e igualando o terramoto de 1755, nomeadamente em 1344, 1356 e 1382. Como consequência destes sismos, deu-se o desabamento de algumas torres e muros da Cerca Velha - embora em nenhuma situação nos seja mencionado exatamente quais. É provável que também a parte do lanço oriental da antiga cerca que estamos aqui a abordar tenha sofrido mazelas nestes episódios, que se repetiram em força nos anos 1504, 1531 e 1536 (CASTILHO, 1935, p.162).
Figura 1 – Enquadramento da área correspondente ao troço do lanço Oriental da muralha de Lisboa abordada, na planta da “Cerca Velha” de Augusto Vieira da Silva, 1987 (em cima); Localização das intervenções arqueológicas no traçado da muralha (em baixo).
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
Figura 2 – Localização destacada da torre da Rua Norberto de Araújo na Panorâmica de Lisboa da 2ª metade do século XVI (Anónimo - Biblioteca da Universidade de Leiden, Holanda).
A Cerca Velha foi durante séculos a única estrutura defensiva da cidade, moldando e condicionando a malha urbana que chegou até aos nossos dias. Nos finais do século XIV, após a célere edificação da Cerca Fernandina, a sua função bélica deixa de fazer sentido (à exceção da zona ribeirinha) e o seu espaço envolvente irá paulatinamente sendo conquistado pela voracidade urbana. Foi classificada como Monumento Nacional por Decreto de 16 de Junho de 1910, com a designação de Castelo de S. Jorge e restos das cercas de Lisboa. 3. Muralhas e torres: Rua Norberto de Araújo, 21-29 Este troço de muralha de Época Medieval Islâmica, que patenteia no seu paramento silhares almofadados reaproveitados, cujo talhe parece remontar à Época Romana, é visível nas chamadas escadas da Rua Norberto de Araújo até ao Largo das Portas do Sol, estendendose ao longo de 36 m, integrando duas torres quadrangulares nos extremos (Fig. 3 – Foto 1). A torre edificada na parte superior (Estrutura I), sobre a qual se instalou parcialmente a Igreja de Santa Luzia, apresenta características divergentes do restante troço, sendo integrável numa fase construtiva de Época Medieval Cristã, a que também pertence todo o lanço que se desenvolve no interior da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva (FRESS), antigo Palácio Azurara, e no Palácio Belmonte, junto à alcáçova do castelo. Todavia, esta torre de cronologia pós reconquista assenta sobre os vestígios fundacionais de uma mais antiga pertencente ao restante conjunto, da qual apenas se observam duas fiadas de base (Fig. 4). A construção deste troço de cronologia pós reconquista poderá estar relacionada com o derrube da muralha, numa extensão de “quási 30 côvados”, provocado por uma mina construída por colonenses e flamengos, aquando do cerco da cidade em 1147 (OLIVEIRA, 1935, p. 66).
1
2 Figura 3 – Aspecto do paramento da muralha nas escadas da Rua Norberto de Araújo (Foto 1) e do troço existente no pátio da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva (Foto 2).
Uma cidade em escavação
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Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
NA21-29 Data Alçado da 30/08/2015 muralha (escadas) 0 1 2m - Periodização -
Época Medieval Cristã (Séc. XIII) Época Medieval Islâmica (Séc. XI/XII)
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E. I
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E. II 52
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Figura 4 – Levantamento gráfico e periodização da muralha nas escadas da Rua Norberto de Araújo.
Tal como noutros locais do seu percurso urbano, a área de implantação deste troço da muralha beneficia de aspetos determinantes inerentes à topografia e geomorfologia, erigindo-se preferencialmente sobre o afloramento rochoso existente no local, em calcário compacto e fossilífero na formação superior, integrável nas formações geológicas do Complexo Miocénico do Burdigaliano (PAIS et alii, 2006, p. 15). O conjunto homogéneo formado pelo pano de muralha e pela torre escalonada instalada no canto inferior do troço (Estrutura II) assentam na rocha, apresentando alguns ressaltos nas fiadas de base, seguramente assim dispostos para conferir maior estabilidade à construção. Esta torre quadrangular, com 16 m de altura conservados, distingue-se pela base de fundação escalonada até meia altura, visível na face NE e SE, já no interior do edificado. O aparelho construtivo apresenta fiadas regulares de silharia calco-arenítica de grande calibre, por vezes almofadada, como no pano de muralha visível na zona das escadas, com apontamentos em “testa e peito”, faces bem esquadriadas e adossamento das juntas. A torre e a muralha associada demonstraram ser a mais recente construção de todo o conjunto existente no interior do edificado. Isto deve-se às evidências existentes na sua relação com as restantes estruturas. No interior dos edifícios, a Estrutura III, com menor altimetria, traduz-se num pano de muralha e numa torre
302 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
quadrangular contíguos à Estrutura II (Fig. 5)2. Este troço construído na Antiguidade Tardia, como se verá adiante, apresenta um paramento vertical com dois ressaltos nivelados com os da torre de canto, um aparelho em fiadas irregulares, composto por blocos de médio e grande calibre de vários tipos de calcário, toscamente aparelhado com juntas preenchidas por pequenos calhaus angulosos, um cunhal bem marcado pelos blocos de maior calibre que contém elementos arquitetónicos de Época Romana reaproveitados (um capeamento de ara e fustes de coluna a fazer perpianho), visíveis sobretudo na parte superior do paramento. No seu lado SO apresenta um avanço de 40 cm em relação à muralha e no lado NO um cunhal muito bem marcado, o que remete a estrutura para uma fase de construção anterior. Soma-se a isto a identificação da sua face de paramento NO, com cerca de três metros de profundidade no interior da junta entre as duas estruturas, à qual foi adossada a torre escalonada. Também a relação desta torre com a estrutura IV e V parece ser de posteridade, uma vez que a sua implantação no substrato geológico deslocou o cunhal daquela. Pormenores como o “grampeamento” com silhares da Estrutura II à III apoiam a tese de acrescento da torre es2 O levantamento completo dos paramentos da muralha, através de “laser scan 3D”, encontra-se em fase de conclusão, pelo que as figuras apresentadas apresentam lacunas que serão em breve preenchidas.
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2
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
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NA21-29 Data Alçado da 30/08/2015 muralha (27-29) - Periodização -
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2m
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Paredão do Miradouro de Santa Luzia 52
52
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E. III
E. II
Época Islâmica (Séc. X/XII)
E. III 46
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Antiguidade Tardia (Séc. III-V)
Época Romana Alto Imperial (Séc. I-II) 44
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Época Romana Alto Imperial (Séc. I-II)
Época Romana Republicana (2ª met. Séc. II a.C.)
E. IV
E. VI
E. IV
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E. IV
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E. V parede tardoz do 27
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Figura 5 – Levantamento gráfico e periodização da muralha no interior dos edifícios da Rua Norberto de Araújo, 25-29.
calonada na última fase de construção, conferindo assim maior espessura ao conjunto (Fig. 5). Um dos factos mais evidentes foi a necessidade dos construtores realizarem um escalonamento em profundidade no paramento SE da torre, presumivelmente devido à inexistência de substrato rochoso na sua zona de implantação, uma vez que o substrato mais compacto estava a alicerçar e a contrafortar as estruturas mais antigas, nomeadamente a estrutura IV. A Estrutura IV, edificada em época Romana Alto Imperial, caracteriza-se por uma torre quadrangular, composta por silhares e blocos calcários de médio e grande calibre, com a inclusão pontual de lateres. Apresenta um aparelho irregular, com uma fiada de assentamento em ressalto, sendo a parte superior composta por calhaus facetados de pequeno e médio calibre com juntas preenchidas por calhaus mais pequenos e angulosos, e o seu miolo constituído por opus caementicium de coloração esbranquiçada. Com 5,12 m de largura por 2,10 m de comprimento em relação à muralha, esta torre foi assente sobre um alicerce (Estrutura V) construído também naquela argamassa romana, parcialmente entalhado no afloramento calcário, que aqui se encontrava à sua cota altimétrica mais elevada, e colmatando uma lacuna de substrato rochoso, na continuação para SO, atingindo uma profundidade de 1,05 m (Fig. 6, Foto 1). A Estrutura IV aparenta ter sido uma torre mais antiga, com um cunhal também bem marcado na face de junta com a Estrutura II, que terá sido anulada e posteriormente utilizada como embasamento para a Estrutura III, também ela uma torre. Na última fase ou episódio, após a construção da Estrutura II, a soma de todas estas edificações
no ângulo da muralha resultou num conjunto que deve ter funcionado como uma única torre de grandes dimensões. No interior do nº 27, o desenvolvimento parietal deste conjunto composto pelo embasamento e torre articula-se com um pano de muralha com as mesmas características construtivas, o qual apresentava 3 m de altura conservada, por debaixo da muralha tardia. A análise geotécnica permitiu constatar que o miolo desta muralha foi também feito em opus caementicium (Fig. 6, Foto 3). No que concerne à funcionalidade deste conjunto construtivo de base, uma vez que não parece tratar-se de um troço da muralha fundacional da cidade romana, teria esta construção um outro significado, sendo claro que na sua edificação se procurou a robustez, eventualmente devido à sua implantação numa zona de declive acentuado. Esta lógica distinta é corroborada por uma outra estrutura aqui adossada à muralha Alto Imperial: uma torre quadrangular de pequena dimensão (Estrutura VI), instalada sensivelmente a meio do atual lote, a 2,30 m da anterior. Alinhada no paramento frontal com a torre anterior, esta construção que tinha 3 metros de comprimento por 2,40 m de largura e 2,10 m de altura conservada, passara despercebida pelo seu volume se encontrar embebido na construção do século XIX (Fig. 7). Estava truncada no vértice SO e Este por ações de subtração realizadas em Época Moderna ou Contemporânea3, assim como superficialmente alterada nas faces laterais por “encasques” de argamassa da mesma fase. Inicialmente parecia tratar-se 3 No decorrer dos trabalhos arqueológicos verificou-se que dois dos silhares removidos do cunhal SO da torre estavam enterrados in situ no substrato geológico, provavelmente para ganho de compartimentação interna do edificado do século XIX.
Uma cidade em escavação
303
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
1
3
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Figura 6 – Sobreposição das estruturas III, IV e V, no interior do nº 29 da Rua Norberto de Araújo (Foto 1); Perspectiva Sul das estruturas II, III, IV e V, no interior do mesmo lote, observando-se o canal escavado no afloramento rochoso (Foto 2); Aspecto geral do interior do nº 27, com a torre Alto Imperial, integrando o dreno e a respectiva caleira exterior, adossada à muralha (Foto 3); Perspectiva SO da sequência dos paramentos das estruturas III, IV e V embebidas na empena dos lotes 27 e 29 (Foto 4).
304 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
NA 21-29 Alçados da muralha e do caput aquae
Data 30/08/2015
Empena do 27/29
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Embasamento ninho de ratos
encasque moderno (XVI - XVII)
alicerce
Parede tardoz do 27 [649]
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Encasque
Encasque
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enrocamento não desmontado
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2m
Figura 7 – Alçado da muralha, torres Alto Imperiais (caput aquae e torre original de canto) e perfil estratigráfico subjacente.
[200b]
[200b]
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E. II E. II
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[201b] = [300]
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E. II E. II
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40 m 40 m
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Limite de perfil NA21-29 Sond. 3 NA21-29 Perfil Norte e Sond. 3 Este Perfil Norte e
Des. 1 Des. 1
Este
Substrato geológico
Data 14/03/07
Limite de estrutura
Substrato geológico Limite de estrutura
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Limite de perfil Limite de perfil
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Substrato geológico Substrato geológico Limite de estrutura
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Limite de estrutura
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Limite de perfil Data 1/20 Esc. 14/03/07
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NA21-29 Sond. 1 NA21-29 Perfil Este Sond. 1 e Sul Perfil Este e Sul
Data 10/04/2006 Esc. 1/20 Data 10/04/2006
Figura 8 – Perfil estratigráfico da Sondagem 3, na base da torre escalonada de Época Islâmica (Des. 1); perfil estratigráfico da Sondagem 1, na base da Estrutura V (Des. 2).
Uma cidade em escavação
305
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
de um cubelo medieval, semelhante a outros tantos identificados ao longo do paredão do Limoeiro como contrafortes ao pano de muralha (SILVA, 1987, p. 167). Na realidade, trata-se de mais uma torre de Época Romana Alto Imperial constituída, no paramento frontal, por um aparelho em fiadas regulares de silharia calco-arenítica de grande calibre, com faces bem esquadriadas. O paramento lateral apresenta fiadas irregulares, com blocos facetados também irregulares de pequeno a grande calibre e juntas preenchidas por calhaus angulosos de pequeno calibre. O enchimento do miolo é em opus caemeticium de coloração esbranquiçada, muito semelhante nas suas características construtivas à Estrutura IV. Cumulativamente, esta torre tinha a particularidade de integrar um elemento de carácter hidráulico, imprimindo-lhe uma interpretação singular de que se falará adiante. Os aparelhos construtivos destas estruturas de Época Alto Imperial encontram paralelos em Lisboa, apresentando uma clara semelhança com os existentes nas paredes de arranque das galerias abobadadas do criptopórtico portuário e com o muro do postscaenium do teatro romano. 4. Contextos, espólios e outras estruturas A escavação arqueológica neste edificado cingiu-se aos lotes correspondentes aos nºs 27 e 29, uma vez que a sua construção tinha já subtraído os depósitos de formação antrópica na área dos nºs 21, 23 e 25. Se bem que com menos profundidade, o mesmo também ocorrera na área intervencionada pela arqueologia, somando-se a esta destruição contemporânea, uma ainda mais recente no âmbito da obra de reabilitação, devido à colocação de micro estacas em betão. Estas afetaram negativamente os contextos no subsolo, impossibilitando a escavação em algumas zonas e dificultando a análise das realidades antigas noutras tantas. Por isso, a potência estratigráfica do local resumia-se a parte do piso térreo, uma vez que as estruturas defensivas existentes ocupavam a outra parte da área disponível. Há ainda que ter em conta o facto de o interior do edificado entretanto desmontado estar encostado a estas realidades estruturais, tendo na época da sua construção (inícios/ meados do século XIX) destruído todos os contextos deposicionais que funcionassem a uma cota superior à do atual pavimento. Não obstante, após o desmonte da parede tardoz do edificado constatou-se a existência de uma muralha heterogénea que manifestamente remetia para vários episódios construtivos, sendo desde logo observável uma relação física e temporal entre as diferentes fases da sua evolução. A partir desta realidade foi produzida a leitura possível das evidências contextuais exumadas e a sua articulação com as realidades construtivas que compõem a estrutura defensiva presente no local, as quais iremos adiante examinar. No interior dos nºs 27 e 29, a escavação em área revelou uma sequência estratigráfica com contextos desde a Idade do Ferro até à Época Contemporânea. De uma forma geral, a estratigrafia era recente em relação às estruturas objeto de estudo. Isto deveu-se aos evidentes episódios intrusivos mais recentes, eventualmente com o objetivo de averiguar o alicerce com vista a obras de re-
306 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
forço da muralha, que terão ocorrido a partir de inícios da Época Moderna, no séc. XVI e ao longo do século XVII, identificadas na estratigrafia arqueológica pela presença de “masseiros” associados ao refechamento das juntas das primeiras fiadas da torre escalonada ou Estrutura II (Fig. 8 – Des. 1). Os episódios desta fase são também visíveis nos “elementos interfaciais” existentes nos paramentos da muralha, assim como nas pré-existências integradas no edificado contemporâneo, demonstrando a precedente instalação de casario quinhentista. 4.1. Época Medieval Islâmica
No interior do nº 29, os parcos materiais exumados no quadrante NE da escavação, especificamente nas UEs [307] e [525], junto às primeiras fiadas de base da torre escalonada, remetem para uma cronologia de Época Islâmica (Fig. 9). Em Lisboa, este tipo de escalonamento de base é observável noutras torres deste período, nomeadamente nas que foram intervencionadas no lanço Ocidental da muralha antiga, como a das Escadinhas de São Crispim, 26 (MANSO et alii, 2010) e no Largo de Santo António da Sé, 3-5 (MOTA, MIRANDA, 2013). Porém, a escassez de material datante, associada aos contextos de construção, inibe a afinação da cronologia. As torres da muralha Este da Alcáçova do Castelo de São Jorge apresentam também esta característica, não tendo havido até ao momento alguma intervenção arqueológica que aferisse a sua cronologia. No castelo de Palmela, a torre de ângulo a Nordeste, considerada a mais antiga do conjunto defensivo, apresenta um escalonamento de base, encarado como uma característica de Época Emiral, e o aparelho construtivo utiliza o sistema de “soga” e “tissão” (testa e peito), relacionando-se esta arrumação parietal com as soluções típicas da arquitetura de Época Califal ou anteriores, podendo a origem da construção remontar ao século IX (FERNANDES, 2004, p. 241). A leitura recente de uma epígrafe honorífica escrita em árabe, recolhida no Castelo de São Jorge, em 1939, e entretanto depositada no antigo Museu da Cidade (atual Museu de Lisboa), reaproveitando uma estela romana com inscrição funerária, trouxe uma nova luz sobre a história da estrutura defensiva medieval. O texto datado dos finais do século X, precisamente do ano de 985, atribui a Almansor a execução de obras na medina muralhada da cidade (BARCELÓ, 2013, p. 173). Esta informação documental, de natureza propagandística, quando confrontada com o espólio arqueológico em contexto, deixa em aberto a eventual remodelação, provavelmente parcial, da muralha urbana da cidade medieval na época documentada epigraficamente, embora ainda não detetada pela arqueologia. Não obstante, permanece a possibilidade de se ter procedido a uma averiguação intrusiva dos alicerces da torre de canto, numa fase final do domínio islâmico na cidade, que poderia não ter afetado esta estrutura concreta, sendo contextualmente aferível uma cronologia de construção mais recente que a Época Califal. No interior do nº 27, abaixo do interface de destruição causado pelas dinâmicas de Época Moderna, nos quadrantes SO e NE da área escavada, subsistia um nível de ocupação e abandono de Época Medieval Islâmica, tradu-
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
ras (UEs [666] e [682]), que provocaram uma profunda destruição do espaço, forneceram espólio cerâmico em abundância enquadrável entre os séculos XI e XII, traduzindo a desativação de uma ocupação estruturada deste local específico junto ao embasamento do conjunto muralhado, eventualmente relacionada com as ações de obras realizadas na estrutura defensiva. O conjunto cerâmico exumado nos depósitos de abandono é constituído por tigelas, grandes tigelas ou saladeiras, panelas, jarrinhas, cântaros, talhas, alguidares em cerâmica comum e por alguns exemplares vidrados a verde e verde/melado. As tigelas e as talhas são os grupos melhor representados (Fig. 10 e 11).
zido num “caos” de destruição das estruturas anteriores, cuja heterogeneidade deposicional se tinha agravado devido ao volume de cimento infiltrado através das micro-estacas, previamente colocadas nesta zona no âmbito dos trabalhos de contenção do edificado em reabilitação. Ainda assim, foi possível discernir a maioria dos contextos deposicionais presentes, assim como os escassos vestígios estruturais desta época. Os depósitos [678], [693] (“elementos interfaciais” - fossas?) correspondem a uma 1ª fase de ocupação sobre os vestígios romanos, igualmente consubstanciada num pavimento em terra batida (UE [673]) e num muro (UE [685]) construído com tijolos de adobe, embora estéreis a nível artefactual. Os depósitos de abandono que colmatavam estas estrutu-
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Miradouro de Santa Luzia
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Nº 27
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1
2m
NA21-29 Planta Final (Medieval)
Data 12/08/2015
Figura 9 – Planta das estruturas identificadas e plano com os vestígios deposicionais de Época Islâmica no interior dos lotes 27 e 29 da Rua Norberto de Araújo.
Uma cidade em escavação
307
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
As tigelas em cerâmica comum NA175 (Fig. 10) e NA 21-29-1 (Fig. 11) têm paralelos em Lisboa (GOMES et alii, 2001, p. 134, fig.15), em Palmela (FERNANDES, 2004, p.163, fig. 211, letra q) e em Santarém (VIEGAS, 1999, p. 142, fig. 9, nº 2), com cronologia atribuída ao séc. XI/XII. A tigela de bordo com lábio em secção triangular aplanado no topo, com parede convexa com uma ligeira carena NA 313 (Fig. 10), encontra um paralelo em Santarém (VIEGAS, 1999, p. 134, fig. 7, nº 4), com uma cronologia do século XII. O exemplar NA 308 (Fig. 10) apresenta as superfícies vidradas, sendo a interna a melado e externa esverdeada, sendo o paralelo de Santarém em cerâmica comum, com datação da primeira metade do século XII (VIEGAS, 1999, p. 134, fig. 7, nº 8). Também em Santarém (idem, 1999, p. 134, fig. 7, nº 15), encontramos paralelos muito semelhantes para a grande tigela vidrada com a superfície interna de coloração melada e a externa de coloração verde, com caneluras decoradas com pequenos traços a verde-escuro (Fig. 10 - NA183). Para o exemplar NA 178 (Fig. 10) não identificámos nenhuma correspondência, parecendo tratar-se de um fundo de grande tigela ou saladeira com decoração a almagre. Em termos cronológicos, a utilização deste tipo de pintura encontra-se presente nos níveis omíadas do Castelo de Palmela (FERNANDES, 2004, p. 176), prolongando-se até ao século XI/XII em Lisboa, no arrabalde ocidental (BUGALHÃO, 2001, p. 141) e na Alcáçova do Castelo de São Jorge, onde predominam, nas cerâmicas pintadas a almagre, as grandes malgas ou saladeiras (GOMES et alii, 2001, p. 161). Este conjunto tem duas peças, uma jarra ou bilha/ “aquamanil” (?) NA491 (Fig. 11) e a tigela NA 21-29-7 (Fig. 11), com a técnica decorativa da corda seca total. O aparecimento desta técnica na Península Ibérica será provavelmente do século IX/X, expandindo-se durante o século XI/XII (DÉLÉRY, 2003, p. 201). Esta tigela em corda seca total, exumada no contexto associado às primeiras fiadas da torre escalonada [UE 307], tem paralelos muito semelhantes em Lisboa (BUGALHÃO, 2004, p. 607, fig. 525), no entanto este exemplar é vidrado. Não encontrámos paralelos para a decoração. Apesar das diferenças de tratamento da superfície, a peça não têm cronologia atribuída, inserindo-se num contexto de produção, neste caso na área de laboração da olaria, integrado a sua fase inicial de produção (idem, 2004, p. 611), por isso datada indiretamente do século XI. No que concerne à bilha NA491 (Fig. 11) existem paralelos em Lisboa para a decoração, mas em corda seca parcial, onde aparecem umas “pinhas” muito semelhantes às desta peça (BUGALHÃO, 2001, p. 145, nº 72). O outro paralelo para esta decoração em “pinhas” encontra-se no artigo de Claire Déléry (2003, p. 204), mas infelizmente a fotografia não tem legenda, nem cronologia para a peça. A forma da caçoila NA186 (Fig. 10) encontra paralelos em Palmela (FERNANDES, 2004, p.150, fig.197h), com cronologia dos séculos X/XI e em Santarém (VIEGAS, 1999, p. 142, fig. 9, nº 3), para os séculos XI/XII. As panelas deste conjunto são muito semelhantes tipologicamente, existindo paralelos em Lisboa, identificadas como “panelas de perfil em saco, de bordo mais estreito que o bojo e quase ausência de colo” (BUGA-
308 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
LHÃO, SOUSA, GOMES, 2004, pp. 590-592, fig.19, nº 543 e 544), com cronologia do século XI/XII. As jarrinhas NA316 e NA253 (Fig. 10) decoradas com conjuntos de quatro traços ondulados têm paralelos em Lisboa (BUGALHÃO, 2001, p. 132, fig. 13) e (GOMES et alii, 2001, p. 130, fig. 9) datados do século XI/XII. O alguidar NA266 (Fig. 10), embora não apresente pintura, tem também paralelos em Lisboa para o século XI/XII (GOMES et alii, 2001, p. 142, fig. 30). O cântaro NA251 (Fig. 10) é decorado no bordo por um conjunto de quatro traços verticais lisos em pintura a branco, com paralelos em Lisboa (BUGALHÃO, 2003, p. 171, fig. 3040) e em Santarém (VIEGAS, 1999, p. 162, fig. 13, nº 1). As talhas encontram-se bem representadas neste conjunto de vinte e cinco peças, pelo que podemos aferir alguns dados interessantes. Dos cinco exemplares analisados, dois não têm decoração, enquanto os restantes são vidrados a verde e decorados com o recurso a estampilha. A temática decorativa inclui motivos geométricos, fitomórficos e epigráficos. As talhas decoradas com a técnica de estampilhagem começam a ser difundidas no al-Andalus a partir do século XI (KHAWLI, 1992, p. 8) e vão atingir o seu expoente máximo durante o período Almóada. Este facto poderá justificar a sua ausência nos contextos analisados de Santarém, Palmela e Lisboa, recorrendo-se, para este conjunto, aos paralelos de Mértola. A talha NA341 (Fig. 10) é composta por diversas caneluras com decoração de losangos e entrelaçados vegetalistas. O motivo em cúfico floral encontra-se separado com uma faixa de riscos oblíquos, existindo paralelos para ambos os motivos em Mértola. Para a parte fitomórfica apresenta uma cronologia do séc. XI (KHAWLI, 1992, p. 13, fig. 10), enquanto a secção epigrafada é datada do séc. XI/XII (KHAWLI, 1992, p. 20, fig. 38). Para a talha NA239 (Fig. 11) existem paralelos para a decoração, com linha ondulante separados por uma faixa de riscos oblíquos, datada do séc. XI (KHAWLI, 1992, p. 13, fig. 12). No caso da talha NA238 (Fig. 11), não encontrámos peças o motivo fitomórfico representado, mas poderá ser a estilização de uma flor com seis pétalas. As talhas sem decoração NA232 e NA220 (Fig. 10) têm paralelos em Lisboa, na Rua dos Correeiros e Mandarim Chinês (BUGALHÃO, 2007, p. 343, fig. 4130 e 4163), sendo a NA232 datada da primeira metade do séc. XII e a NA220 do séc. XI/XII. O conjunto das talhas aponta para uma cronologia do século XI/XII, antes da reconquista da cidade e para o período Almóada, em que se assiste a uma maior profusão da temática decorativa nas talhas. Em suma, os contextos e espólio analisados indicamnos que a área exterior à muralha teria provavelmente uma primeira fase de ocupação, detetada no interior do nº27, datada do século X/XI, relacionada com o pavimento em terra batida (UE [673]), o muro (UE [685]) e os depósitos [678] e [693]. No entanto, o material é muito escasso para afirmarmos com certeza a ocupação deste espaço anteriormente ao século XI/XII. A segunda fase corresponderá ao abandono das estruturas existentes no nº 27 e à construção da torre escalonada e muralha exterior (Estrutura II) visível no paramento das escadas da Rua Norberto de Araújo.
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
UE682
NA253
NA316
NA241
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NA300 NA183
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NA489 NA266
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Figura 10 – Materiais recolhidos nos contextos de Época Islâmica no interior do lote 27 da Rua Norberto de Araújo.
Uma cidade em escavação
309
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
UE693 UE307
NA21-29_7
NA491
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UE682
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Figura 11 – Materiais recolhidos nos contextos de Época Islâmica no interior dos lotes 27 e 29 da Rua Norberto de Araújo.
310 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
5
10 cm
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
4.2. Antiguidade Tardia
No decorrer da escavação arqueológica não foram detetados depósitos que permitissem isolar contextos integráveis neste longo período. Contudo, nos depósitos formados em Época Medieval Islâmica, foram exumados materiais cerâmicos residuais com cronologias mais antigas, estando escassamente representadas algumas peças que indiciam esta fase, nomeadamente os fragmentos de sigillata hispânica com marca (Fig. 11 - NA231), ânfora Almagro 51C (Fig. 10 - NA489) e, sobretudo, sigillata foceense tardia, Forma 3F de Hayes (Fig. 11 - NA275). A remoção de um dos elementos arquitetónicos integrados neste paramento da Estrutura III, devido à sua relevância enquanto peça museológica, proporcionou a apreciação de um contexto de datação direto sobre a muralha tardia (Fig. 12). A extração deste elemento, um capeamento de ara ou de cipo prismático, estilisticamente datável do século II4, permitiu recolher acessoriamente dois fragmentos cerâmicos agregados às argamassas constituintes do miolo da muralha que são do maior interesse para a datação desta fase da estrutura: um fragmento de colo e arranque de asa do que parece ser uma ânfora Dressel 20 (Fig. 13 – E. III, NA21-29_493), e uma tigela de cerâmica comum (Fig. 13 – E. III, NA2129_492) conhecida nas produções dos fornos da Quinta do Rouxinol, a subvariante QtR 77, que se assemelha à forma de sigillata foceense tardia 1 A de Hayes, com uma cronologia de 380 a 480 (SANTOS, 2011, p. 61). Esta peça fornece um terminus post quem para esta fase da construção da muralha na Antiguidade Tardia, integrando-a numa cronologia de finais do século IV-V. A datação contextual de 360 a 470, com base numa forma Hayes 67 em D1 e de uma terra sigillata africana, recolhidas sob o opus caementicium do enchimento da muralha, estava já atestada para o troço ribeirinho da estrutura defensiva tardia intervencionada nos antigos Armazéns Sommer (GASPAR, GOMES, 2007, p. 694)5. A tipologia do aparelho construtivo registada na intervenção arqueológica dos Armazéns Sommer é idêntica ao do troço da Rua Norberto de Araújo, assim como a outros troços intervencionados na Casa dos Bicos (AMARO, 1982), cuja eventual datação poderá juntar-se aos dados cronológicos já existentes, e no Pátio da Senhora de Murça, junto ao arranque de uma torre semicircular da muralha romana descoberta na Rua de São João da Praça (PIMENTA, CALADO, LEITÃO, 2005, p. 317), para a qual foi deduzida uma possível cronologia nas primeiras décadas do século IV, através de similitudes fundacionais, ao nível da argamassa de base, com a muralha tardia de Conimbriga (De Man, 2008, p. 287). As peças expostas ao público no Pátio da Senhora da Murça, nomeadamente fragmentos de sigillata cinzenta paleocristã e africana clara, exumadas numa lixeira que encostava ao paramento exterior da muralha, forneceram datas para o século V (SILVA, 2015, p. 42). Não sendo este o melhor contexto possível para uma datação direta da estrutura, estabelece, 4 Agradecemos à Lídia Fernandes a apreciação desta peça, entretanto incorporada no Museu de Lisboa. 5 A recente intervenção arqueológica nos Armazéns Sommer desenvolvida pela empresa de arqueologia Neoépica trará, com certeza, novas informações sobre este assunto.
1
2 Figura 12 – Aspecto do capeamento de ara integrado na muralha tardia (Foto 1); Aspecto do capeamento de ara após a sua extracção e restauro (Foto 2).
todavia, um terminus ante quem para a aferição da cronologia da sua edificação, embora bastante lata. A análise cronológica passa também pela apreciação da configuração semi-circular das torres, cujo modelo construtivo pode apontar para uma construção original ou inicial no período tetrárquico, enquanto os vestígios com contextos mais recentes se integrariam num período pós romano, do tipo emeritense (DE MAN, 2008, p. 291) A interpretação cronológica destes fenómenos de amuralhamento tardio não é completamente pacífica. Por um lado, existe uma perspectiva que defende a construção de recintos amuralhados, entre as décadas finais do século III e os inícios da centúria seguinte, numa lógica associada à estratégia imperial de arrecadação e transporte da annona militaris, nomeadamente nas cidades do Norte e Noroeste Peninsular (OCHOA, MORILLO, DOMINGUEZ, 2011, p. 266). Os mesmos autores identificam, numa diferente ordem de ideias, um período de actividade edilícia de carácter defensivo, nos finais do século IV/inícios do século V, visível na construção ou simples reforços de portas, relacionando este fenómeno com a ruptura da fronteira renana e as invasões iminentes (idem, 2011, p. 269). Esta visão generalista de duas gerações de muralhas defensivas não vinga em absoluto, uma vez que parece não ter existido uma estratégia global imperial no que concerne a estes fenómenos de amuralhamento para assegurar o transporte anonário nos finais do século III/ inícios do século IV,
Uma cidade em escavação
311
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
considerando a escassa importância que a Hispânia terá tido no sistema anonário e na manifesta ausência de documentação a isso referente na legislação de Diocleciano ou no Código de Teodósio (ARCE, 2011, p. 294). Por outro lado, uma das hipóteses lançadas por Javier Arce para o fenómeno inicial destaca a importância da iniciativa local, com base nas leis que continuamente exigem a necessidade de reparação e adorno das muralhas, por se traduzirem na dignitas da cidade, para que dessa forma recuperassem o splendor civitatis (idem, 2011, p. 295). No caso de Lisboa continua em aberto a afinação das cronologias para os diversos troços desta muralha sujeitos a remodelações ou adaptações ao longo da sua existên-
UE221
cia, assim como a clara percpeção das duas gerações de muralhas tardias e dos motivos subjacentes aos distintos fenómenos de amuralhamento. 4.3. Época Romana Alto Imperial
Os contextos correspondentes a este período estavam muito perturbados pelas intrusões recentes, fornecendo escasso espólio cerâmico classificável. No limite Oeste da escavação do nº 29, reconheceuse o arranque de uma estrutura muito destruída, assente nos níveis da Idade do Ferro, constituída por blocos pétreos irregulares de médio/grande calibre e calhaus
UE664
NA115 NA21-29-221-80/ TSSG
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NA 9 NA117 NA9-166-2/ CCinz
NA9-166-1/ TSSG
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10 cm NA124
E. III
NA21-29_492
NA116
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NA118
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Figura 13 – Espólio cerâmico exumado nos contextos romanos Alto Imperiais da Rua Norberto de Araújo, 9, 27 e 29.
312 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
0
5
10 cm
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
tamente um bordo de ânfora Maña Pascual A4 (Fig. 13 - NA116), um bordo e fundo de Dressel 1A (Fig. 13 NA115 e 118), sendo a cronologia mais alta fornecida pela presença de um bordo de ânfora do tipo Haltern 70 (Fig. 13 - NA117) de época Claúdio-neroniana ou Flávia, complementada por um bordo de caccabus de bordo de aba horizontal extrovertida (Fig. 13 - NA124), cuja tipologia se atesta em Lisboa nos contextos de meados do século I (SILVA, 2015, p. 57). Relacionados com a construção da torre e da estrutura envolvente, estes depósitos permitem aferir um enquadramento cronológico na Época Romana Alto Imperial, provavelmente na segunda metade do século I, para as Estruturas IV, V e VI.
de pequeno a grande calibre, ligados com o sedimento areno-argiloso local (Fig. 8 – Des. 2). A construção adossava à Estrutura V e desenvolvia-se para SO (UE [677]),ndesenhando, já no interior do nº 27, um recinto semi-circular, integrando um acesso estruturado por dois blocos pétreos de grande dimensão, que envolvia a torre romana adossada à muralha (Fig. 13). Do depósito associado à sua construção (UE [221]) foi exumado um fragmento de uma terra sigillata sudgálica, forma 35/36 (Fig. 13 – NA21-29-221-80), com uma cronologia flávia, ou pouco anterior, até meados do século II. No quadrante Oeste da área intervencionada no nº 27, foi escavado um outro depósito integrável nesta fase (UE [664]), associado à construção da torre adossada, que continha algum pouco material mais antigo, concre-
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2m
NA21-29 Planta Final
Data 12/08/2015
Figura 14 – Planta das estruturas identificadas e plano com os vestígios deposicionais de Época Romana no interior dos lotes 27 e 29 da Rua Norberto de Araújo.
Uma cidade em escavação
313
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
UE 623, 651, 656 e 660
NA106
NA043 NA045
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NA111 NA040
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NA036
NA488
NA113
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NA065
NA102
0
Figura 15 – Materiais recolhidos nos depósitos de Época Romana Republicana, no interior do nº 27 da Rua Norberto de Araújo.
314 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
5
10 cm
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
4.4. Época Romana Republicana e Idade do Ferro
Os contextos que apresentavam o maior volume de espólio arqueológico foram escavados nos quadrantes Norte e Este do nº 27, sob a área de implantação das estruturas de Época Alto Imperial (Fig. 7 e 14). O conjunto cerâmico de Época Republicana exumado destes depósitos areno-argilosos de coloração castanha (UEs [623], [651], [656] e [660]), inclui exemplares de ânforas greco-itálicas (Fig. 15 - NA016), Dressel 1A (Fig. 15 - NA045 a NA102), Tripolitana Antiga (Fig. 15 NA111, 043, 036, 040)), T9.1.1.1. (Fig. 15 - NA136, NA012), T4.2.2.5. (Fig. 16 - NA078), Mañá-Pascual A4 (Fig. 16 - NA079, NA054), ânfora ovoide itálica com marca (Fig. 15 - NA110)6, uma parede com asa do que pode ser uma variante do tipo Manã C2 (Fig. 16 - NA032), taças Campaniense A (Fig. 15 - NA092, NA095) e um fundo de copo de paredes finas itálico (Fig. 15 - NA094). A datação para este tipo de conjunto tem vindo a ser afinada na cidade de Lisboa através do estudo e publicação dos espólios provenientes de diversos contextos no castelo, encosta e área portuária (PIMENTA, 2005; PIMENTA, CALADO, LEITÃO, 2005; PIMENTA, 2006; 2014; MOTA, PIMENTA, SILVA, 2014). A descoberta de um contexto seguro, detetado na área no atual bairro do Castelo de São Jorge, associado ao abandono de um compartimento com um pavimento em opus signinum, com um conjunto material fechado na 2ª metade do século II a.C., evidencia a relação destas materialidades com o estabelecimento militar romano republicano (PIMENTA et alii, 2014), encontrando-se, para estes contextos mais antigos, correspondência com a “fortificação” de Olisipo na data histórica de 138 a. C., no âmbito das campanhas militares conduzidas por Décimo Júnio Bruto no Noroeste peninsular. No pacote contextual aparecem também misturados materiais da Idade do Ferro (Fig. 16). Esta mistura terá resultado da aparente ocupação intrusiva deste espaço, que se encontrava originalmente colmatado por um depósito areno-argiloso de coloração esverdeada (UEs [613], [696] e [226]), sobre o substrato rochoso (Fig. 7 e 14), formado ao longo da segunda metade do Iº milénio a.C., considerando as tipologias formais da cerâmica cinzenta fina, comum e anfórica identificadas (Fig. 18), enquadráveis no repertório recentemente sistematizado para os materiais sidéricos do território de Lisboa (SOUSA, 2014; PIMENTA, 2014). Porém, a evidência mais significativa para o contexto de Época Republicana consistia na configuração do depósito que indiciava uma eventual natureza estrutural (UE [651]), consubstanciado o fundo de uma vala relativamente bem delineada, com a orientação NE-SO, paralela à muralha, e um enrocamento pétreo bem encaixado (UE [618]), contíguo ao vestígio da vala, esboçando o arranque de um talude, que se desenvolvia sob as Estruturas IV, V e VI, as quais assentaram posteriormente sobre estes vestígios (Fig. 7 e 17 – Foto 1 e 2). A combinação deste repertório material, enquadrado no “pacote” do abastecimento institucional das legiões nesta fase de conquista, com os vestígios descritos, levanos a ponderar uma associação ao sistema defensivo do 6 Esta peça foi recentemente publicada em obra específica sobre as marcas de ânforas romanas na Lusitânia (Cf. FABIÃO et alii, 2016, p. 26).
estabelecimento militar republicano, cujas evidências são conhecidas noutro ponto das faldas do lanço Oriental da muralha medieval. 5. Fossos, taludes e barbacãs: Largo do Contador-Mor, 17-22, e Pátio de Dom Fradique A intervenção arqueológica desenvolvida no interior do edificado sito no Largo do Contador-Mor, 17-22 (Fig. 19 – Des. 1), revelou uma diacronia de ocupação que se estende desde a Época Romana Republicana até à Época Moderna (CARVALHINHOS, MOTA, MIRANDA, 2009). A parede tardoz do edificado integrou a muralha medieval, com 2,20 m de espessura, cujo troço preservado, incluindo quatro torres, é o mais extenso da antiga fortificação, sendo sobretudo visível o paramento exterior integrado no Palácio Belmonte e no pátio interno da FRESS, assente no afloramento rochoso. Aqui é ainda possível observar as ameias e abertas originais, atualmente entaipadas, que rematavam o topo do adarve, assim como algumas seteiras, na estrutura que conserva 16 m de altura (Fig. 3 – Foto 2). A escavação arqueológica na parte interna da muralha, que se encontrava desprovida do paramento interno (Fig. 20 – Foto 1), extraído em Época Moderna e ainda reutilizado na construção do edifício, colocou a descoberto os níveis fundacionais da estrutura defensiva. Entre outros achados, recolheu-se nas argamassas de assentamento da muralha uma estela funerária romana, com cronologia da 1ª metade do século I, que marcaria a sepultura de Caio Canídio Fundano (CAESSA, MOTA, 2011), não sendo este o único vestígio de uma possível necrópole romana nesta zona adjacente à porta nascente, atendendo a outros monumentos funerários epigráficos romanos recolhidos na zona das “Portas dos Sol” (SILVA, 1944, pp. 54-55 e 184-187) e a uma sepultura descoberta no lado exterior da muralha (GUERRA, 2006, p. 277). Contudo, os níveis de base pré-existentes traduziam-se num depósito estruturado com calhaus calcários irregulares de médio a grande calibre (UE [161]), incrustados no substrato geológico (Fig. 20 – Foto 2), do qual foi exumado um conjunto de espólio cerâmico de características sidéricas, mas com a presença de um fundo de paredes finas (Fig. 19 - LCM142-6-1) e formas de cerâmica comum itálicas (Fig. 21 - LCM154-68-1, 161-67-3, 132-15-1). A escassez de espólio útil para determinar uma cronologia e funcionalidade do contexto confrangia a interpretação dos vestígios. A recente publicação dos dados provenientes da escavação de Dias Diogo, em 1993, nas instalações da FRESS, do lado exterior da muralha, numa área próxima e de plataforma natural, providenciou evidências estruturais e contextos de Época Romana Republicana aparentemente associáveis aos vestígios identificados na parte interior do edificado em questão. Em síntese, nesta escavação foi identificada uma vala, cujos depósitos de preenchimento continham um conjunto homogéneo de material concordante com uma cronologia balizada no lapso 138-50 a.C. (SILVA, 2014, p. 187). A esta vala associava-se um talude que integrava a estrutura defensiva republicana, e que forneceu um conjunto de material de tradição e da Idade do Ferro (idem, p. 196).
Uma cidade em escavação
315
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
NA004 NA005
NA020 NA086
NA027
NA002 NA081
NA085 NA080
NA084 NA105
NA052
NA019
NA056
NA093
NA053
NA054
NA051
NA079 NA091 NA078
NA107
NA082
0
5
10 cm NA032
Figura 16 – Materiais da Idade do Ferro recolhidos nos depósitos de Época Romana Republicana, no interior do nº 27 da Rua Norberto de Araújo.
316 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
1
2 Figura 17 – Plano do possível vestígio de “fosso” de Época Romana Republicana, no interior do nº 27 da Rua Norberto de Araújo (Foto 1); Perfil estratigráfico do “fosso” de Época Romana Republicana após escavação (Foto 2).
Uma cidade em escavação
317
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
UE613 e 696
NA446
NA401
NA412
NA469
NA435
NA464
NA437
NA376 NA432
NA467 NA428 NA386
NA429 NA461 NA417 NA436 NA363 NA425 NA450 NA342
NA466
NA421
NA345
NA350
NA390 NA349
NA409
NA423
NA356
NA468
NA426
NA457
NA418
UE226
NA420
NA21-29_8
NA408
NA21-29_11
0
Figura 18 – Materiais recolhidos nos depósitos da Idade do Ferro, no interior do nº 27 da Rua Norberto de Araújo.
318 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
5
10 cm
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
Des. 1
Des. 1
Logradouro
Sond. 1
Sond. 3
Sond. 2
17
Sond. 1
Sond. 3
Sond. 2
Logradouro
17
18 18 1919
do Contador-Mor LargoLargo do Contador-Mor
20 20
LCM17-22
21
21
22
22
Esc. 1/20
LCM17-22Piso térreo Data Data Piso térreoLocalização 02/10/0802/10/08 das Sondagens Localização das Sondagens
63,50
63,50 [112]
63,00
[110]
[112] [111]
[113]
63,00 62,50 [110] [113]
62,50
[111]
62,22m 62,00 [101] [100] [102] [104]
62,00
61,50
[103]
[101]
[101]
[100] [104]
[102] [104]
61,00
61,50
[103] [101]
[101] [104]
60,50
[108]
61,00
[108]
[102]
[101] [121]
[113]
60,00
[109]
[115]
[114]
60,50
Substrato geológico
[161]
[108]
[108]
[102]
59,50
60,00
Des. 2
[113]
LCM17-22 Sond. 1 Alçado Norte Muralha
[121] [109]
[115]
Esc. 1/20 Data 23/03/09
[114]
Substrato geológico
[161]
59,50
Des. 2
LCM17-22 Sond. 1 Alçado Norte Muralha
Data 23/03/09
Figura 19 – Planta do edificado sito no Largo do Contador-Mor, 17-22, no qual decorreu a intervenção arqueológica (Des. 1); Alçado interno da muralha medieval e perfil estratigráfico subjacente (Des. 2).
Uma cidade em escavação
319
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
Estaríamos então perante a possível existência de um fosso com talude associado que na sua construção movimentou e integrou contextos mais antigos, configurando parte do sistema defensivo instalado em Época Romana Republicana, a que os vestígios nas restantes intervenções se podem somar, embora de forma bastante fragmentada. A análise destes dados proporciona uma leitura articulada com os vestígios presentes na Rua Norberto de Araújo, de um possível fundo de fosso com arranque de talude, e no Largo do Contador-Mor, o topo conservado de um talude que acabaria por servir de assentamento à muralha medieval, não apenas neste local, mas ao longo do troço considerado neste trabalho, fossilizando o traçado da mais antiga estrutura defensiva da cidade conhecida até ao momento. Continuando a discorrer sobre este tipo de estrutura negativa de natureza defensiva, torna-se relevante referir a intervenção arqueológica realizada no espaço exterior à muralha conhecido como Pátio de Dom Fradique, situado numa plataforma natural adjacente ao vértice SE da alcáçova do Castelo de São Jorge, onde, a partir da torre da alcáçova integrada no Palácio Belmonte, se inicia a cerca urbana medieval a que este troço de muralha pertence (Fig. 22 – Foto 1). A escavação de uma sondagem de diagnóstico com cerca de 6 m2, a pouca distância do postigo com o mesmo nome, logrou pôr a descoberto o vestígio do que parece ser um fosso com um precário muro de barbacã associado, apresentando uma implantação paralelamente alinhada com a muralha (Fig. 23 – Des. 1 e 2; Fig. 24 - Des. 3). A estrutura negativa escavada no substrato geológico, da qual se identificou o que seria o seu limite exterior, tinha 2 m de profundidade e exibia um fundo irregular, não se reconhecendo o seu limite interno, mais chegado à muralha, devido à exiguidade da área escavada (Fig. 22 – Fotos 2, 3 e 4). Esta estrutura estava rematada no topo exterior por uma outra construção linear, que se articulava com este limite, com uma espessura média de 55 cm, executada com várias camadas de calhau e sedimento bem compactados. No perfil Norte da sondagem, observa-se este aspeto construtivo e o derrube associado ao seu abandono, percetível na UE [142] (Fig. 23 – Des. 1). Os materiais com as cronologias mais altas recolhidos nesta estrutura térrea, nos depósitos de enchimento do fosso e na área exterior, aparentemente terraplanada no âmbito da construção do sistema defensivo, fornecem um quadro cronológico relativamente homogéneo. O conjunto cerâmico exumado nesta intervenção é composto essencialmente por formas presentes nos serviços de cozinha e mesa da população medieval cristã de Lisboa (Fig. 25). No contexto de aterro/ocupação do espaço e construção do muro, o repertório cerâmico é coerente, com materiais enquadráveis entre os séculos XII e inícios do XV. O copo 134-39 tem paralelos em Lisboa, no Castelo de São Jorge (GOMES et alii, 2005, p. 231, fig. 10, nº1) e terá sido produzido durante os séculos XII e XIII. A taça 134-38 encontra-se presente na área de Lisboa (GASPAR, AMARO, 1997, p. 344, est.7, fig.7), nas escavações realizadas em Palmela, (FERNANDES, 2004, p. 171, fig.5; FERNANDES, CARVALHO, 1995,
320 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
pág. 93, fig. 8), e Almada (LEAL, 2000, p. 203, fig. 10). Este tipo de taça, normalmente de pequenas dimensões e carenada, aponta-nos para uma cronologia entre os séculos XIII e XIV. Para o grande prato 150-25 existem paralelos na Sé de Lisboa (AMARO, 2001, p. 187, fig. 15-4), datados da primeira metade do século XII.
1
2 Figura 20 – Aspecto da parede tardoz do edificado sito no Largo do Contador-Mor, 17-22, desprovida de paramento e com reutilização parietal em Época Moderna, assente sobre os níveis estruturados de Época Romana Republicana (Foto 1); Aspecto do depósito estruturado em Época Romana Republicana, composto por calhaus fincados no substrato geológico (Foto 2).
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
LCM-118-52-1
LCM-161-43-2
LCM-142-48-1 LCM-132-100-1
LCM-132-100-2 LCM-161-67
LCM-132-100-3
LCM-161-67-2
LCM-142-94-1
LCM-154-68-1
LCM-161-67-3 LCM-161-43-3
LCM-154-68-2 LCM-132-15-1
LCM-154-69-1 LCM-142-6-1
0
5
10 cm
Figura 21 – Materiais recolhidos no depósito estruturado em Época Romana Republicana, sob a muralha medieval cristã.
As peças 142-4, 143-9 e 143-10 correspondem a panelas, tipologicamente comuns nos contextos medievais dos séculos XIII e XIV, mas de tipos diferentes. A panela 142-4 apresenta um bordo com uma pequena aba e uma incisão no colo, com paralelo em Lisboa (GASPAR, AMARO, 1997, p. 342, fig. 1). O exemplar 143-9 tem um lábio plano e duas caneluras no colo, com correspondência a uma peça exumada em Cascais (CARDOSO, RODRIGUES, 1991, p. 581, fig. 7). A panela 143-10 apresenta o lábio definido por uma canelura, tal como a ligação entre o colo/ombro. Tem paralelos em Cascais e Almada (idem, 1991, p. 581, fig. 6) e (LEAL, 2000, p. 203, fig. 23). As restantes formas atribuíveis a este período são dois alguidares e um testo (142-3, 143-8 e 143-11). Os alguidares (142-3 e 143-8) têm paralelos similares em Palmela (FERNANDES, CARVALHO, 1995, p. 93, fig. 3) e Almada, mas no entanto, este exemplar tem caneluras no bordo (LEAL, 2000, p. 203, fig. 27). O
testo tem paralelos em Santarém (TRINDADE, DIOGO, 2003, p. 150, fig. 35), mas os autores não apontam uma cronologia para esta forma. As peças com cronologias mais recentes deste contexto (século XIV/XV) são uma malga e dois fragmentos do que identificámos como possíveis potes, havendo, contudo, dúvidas em relação à sua forma e funcionalidade. A malga 142-1 tem um paralelo muito semelhante em Almada (SABROSA, SANTOS, 1993, p. 119, fig. 26), enquadrando-se cronologicamente no século XIV/inícios do XV. Em relação aos potes 143-7 e 143-12, observámos muitas semelhanças com os exemplares encontrados em Palmela (FERNANDES, CARVALHO, 1995, p. 95, fig. 41) onde surgem identificados como forma indeterminada. Em Almada reconhece-se um fragmento comparado descrito como pote, com cronologias que apontam para os séculos XIV/XV (SABROSA, SANTOS, 1993, p. 121, fig. 45).
Uma cidade em escavação
321
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
1
2
3
4 Figura 22 – Perspectiva Este do Pátio de Dom Fradique de Baixo no enfiamento do postigo existente entre a torre pentagonal e a torre de canto da Alcáçova, integradas no Palácio Belmonte (Foto 1); Aspecto do muro de barbacã durante os trabalhos de escavação na sondagem de diagnóstico no Pátio de Dom Fradique (Foto 2); Aspecto do fundo do fosso durante os trabalhos de escavação (Foto 3); Aspecto da estratigrafia da sondagem de diagnóstico, observando-se o fosso, o muro térreo da barbacã e os níveis de enchimento relacionados com o abandono - perfil Norte (Foto 4).
322 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
[165]
66,50 [167]
Substrato Geológico
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa [166] 66,00
[168]
65,50
Des. 1 PATFRAD08 Sondagem de diagnóstico Perfil Norte
69,00
Data 13/01/2009
68,01
65,81
66,21
68,50
[121] [124]
[122]
[169]
[125]
[142]
67,90
[130] [131]
[126] [132] [127]
[134]
68,00
[134]
[135]
[144] [142]
[141]
67,65
[148]
[140]
[143] [149]
67,50 [154]
[150]
66,30
[160] [163] 67,00
67,04
[162]
67,90
[164]
[165]
66,50 [167]
66,34
Substrato Geológico
[166] 66,00
0
1m
PATFRAD08 Sondagem de diagnóstico Planta do fosso
Esc. 1/20 Data 21/01/2009
Des. 2 [168]
65,50
Des. 1
Figura 23 – Perfil Norte da sondagem de diagnóstico no Pátio de Dom Fradique (Des. 1) e plano de escavação com o fosso e a barbacã (Des. 2).
68,01
65,81
66,21
[169]
[142]
67,90
CASTELO [134]
S. JORGE 67,65
66,30
67,04
67,90
66,34
0
PATFRAD08 Sondagem de diagnóstico Planta do fosso
1m
vData 21/01/2009
Des. 2
LARGO DAS PORTAS DO SOL
0
10
20m
PATFRAD08 Data Localização do 30/10/15 fosso e barbacã?
Figura 24 – Planta com o alinhamento paralelo do fosso e da barbacã à muralha da Alcáçova e cerca urbana.
Uma cidade em escavação
323
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
O presente conjunto engloba peças atribuíveis ao período islâmico, como é caso dos cântaros 163-18, 14317, panelas 142-2 e do grande prato 150-25 (Fig. 25). Para o cântaro 163-18 (Fig. 25) existe um paralelo em Lisboa (AMARO, 2001, p. 180, fig. 12-1), datado dos séculos XI/XII. O cântaro ou jarra 147-17 (Fig. 25) tem paralelos em duas intervenções realizadas em Santarém (VIEGAS, ARRUDA, 1999, p. 162, fig. 11) e (TRINDADE, DIOGO, 2003, p. 150, fig. 34), enquadrando-se ambos cronologicamente nos séculos XI/XII. Nos depósitos de enchimento do fosso, relacionados com a desativação da estrutura, surgem produções cerâmicas datadas entre os séculos XIII e XV. As panelas com o bordo extrovertido e lábio oblíquo (154-21) ou com bordo ligeiramente introvertido e lábio de secção semicircular (154-22). A panela 154-21 tem paralelos no Castelo de Palmela (FERNANDES, 2004, p.168, fig. 222), enquanto para o exemplar 154-22 encontramos paralelos em Lisboa, embora com o bordo recto (GASPAR, AMARO, 1997, p. 343, fig. 3) e Almada (LEAL, 2000, p. 203, fig.23). A panela 163-19 é uma produção mais recente, com um paralelo muito semelhante em Palmela (FERNANDES, CARVALHO, 1995, p. 95, fig. 57), à qual é atribuída uma cronologia entre o século XIV e inícios do século XV. Surge-nos neste contexto a taça 163-20, com paredes curvadas, para a qual se observa um paralelo em Lisboa (GOMES et alii, 2002, p. 231, fig. 10, nº9), com uma cronologia dos séculos XIII/XIV. Os materiais descritos permitiram aventar uma cronologia de construção e abandono para a 2ª metade do século XIV ou inícios do XV. A maioria destes depósitos tardo-medievais continha ainda uma percentagem elevada de material mais antigo descontextualizado, maioritariamente datáveis da Idade do Ferro e, como referimos anteriormente, de Época Islâmica, aqui considerados como residuais. Esta situação foi interpretada como consequência dos trabalhos de aterro e desaterro que, à data da sua construção, seguramente mobilizaram os terrenos na envolvente, transportando consigo os vestígios da provável ocupação sidérica neste espaço, assim como a medieval, não obstante o amplo hiato temporal. Escavações arqueológicas conduzidas no pátio da FRESS, para além dos vestígios de estruturas habitacionais datadas dos séculos XI/ XII e remodeladas logo após a conquista da cidade (GOMES, SEQUEIRA, 2001, p. 106), revelaram o estaleiro de obra associado à construção ou reparação deste troço de muralha, não anterior ao reinado de D. Sancho I (idem, p. 110). Nesta intervenção arqueológica, desenvolvida na plataforma exterior à muralha, não se confirmou a eventual existência de uma barbacã que anteriormente se havia alvitrado com base em parcos vestígios murários e na topografia do local (SILVA, 1987, p. 179). A construção de fossos e barbacãs no nosso território é considerada como um elemento mais tardio, característico da arquitetura gótica, introduzida a partir de finais do século XIV, embora se registem casos precoces (MONTEIRO, 1999, p. 87). No caso de Lisboa, a documentação disponível refere, a partir de 1366, medidas a implementar no sentido da reparação das muralhas, torres e barbacãs (MARTINS, 2001, p. 81). Efetivamente, parece ter sido empreendida a construção da barbacã
324 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
situada entre a Porta do Ferro e a Porta da Alfofa, no lanço Ocidental da muralha, entre os anos de 1370 e 1373, havendo a indicação de um plano, em 1369, para rodear Lisboa com um fosso, do qual se desconhece a construção total ou parcial (idem, p. 82). O único paralelo existente para uma barbacã, com as dimensões da que foi identificada no Pátio de Dom Fradique, encontra-se em Penha Garcia, onde existiam duas barbacãs, construídas em pedra ou pedra e barro (MONTEIRO, 1999, p. 89), apresentando a exterior uma espessura de 66 cm (idem, 1999, p. 91). Na maioria dos casos em Portugal onde existem barbacãs, observa-se o sistema de fosso ou cava, barbacã, liça e muralha. No caso de Lisboa, não estranharíamos um elemento defensivo composto por barbacã, fosso e outra barbacã ou muralha. Por conseguinte, parece-nos plausível que o troço de fosso e barbacã identificado no Pátio de Dom Fradique poderia estar associado a um acesso primitivo, do qual não se conhece referência documental anterior ao século XVI (SILVA, 1987, p. 183), constituindo uma defesa de porta, aparentemente realizado numa fase anterior ou coeva à construção da Muralha Fernandina, entre os anos de 1373 e 1375. Esta questão carece de confirmação em futuros trabalhos arqueológicos, estabelecendo-se de momento uma hipótese de trabalho que muito interessará averiguar no terreno. 6. A captação de água infiltrada na encosta: um caput aquae paludensis? A torre romana adossada à muralha Romana Alto Imperial apresenta características estruturais que remetem a sua interpretação para uma funcionalidade diferente da defensiva. Na base do seu paramento frontal, sensivelmente a meio, integra um dreno com paredes laterais feitas em lateres, assentes numa camada argilo-arenosa castanha muito endurecida, que apoiam um dos silhares como lintel, afeiçoado na sua parte inferior, delineando o topo arredondado do elemento de drenagem. O dreno de pequena dimensão apresenta 16 cm de largura por 26 cm de altura e tem uma profundidade interna de 5,35 m (Fig. 26 – Foto 1 e Fig. 7). Defronte da torre, na saída do dreno, encontrou-se uma caleira articulada, cronologicamente coeva, construída também em lateres, os quais constituíam o seu fundo e parede com duas fiadas, não se tendo detetado alguma argamassa que as unisse ou revestisse internamente (Fig. 26 – Foto 2). Esta estrutura, entalhada no substrato geológico, estava muito fragmentada, não se percebendo se teria sido originalmente tapada pelo mesmo tipo de material de construção ou outro afim. A parte conservada apresentava 2,20 m de comprimento, acompanhando a pendente do terreno numa inclinação de 6º, com uma orientação NO-SE, alinhada com o vestígio do vão de acesso que existia no muro que definia o recinto envolvente à torre, através do qual se encaminhava para o exterior. No contexto de desativação desta estrutura (UE [678]) foi exumado um exemplar de ânfora Almagro 51C (Fig. 10 – NA489) e o fragmento de um candil (Fig. 10
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
Aterro/ Ocupação
Muro/ Barbacã PATFRAD-134-39/ CComumMed
PATFRAD-142-1/ CComumMed
PATFRAD-143-15/ CCinz
PATFRAD-134-38/ CComumMed PATFRAD-143-16/ CComumIdFerro PATFRAD-142-2/ CComumMed
PATFRAD-143-26/ CComumFerro PATFRAD-150-25/ CComumMed
PATFRAD-142-3/ CComumMed
PATFRAD-160-34/ CComumFerro PATFRAD-142-4/ CComumMed PATFRAD-15o-23/AnfGuadalq
PATFRAD-160-35/ CComumFerro
PATFRAD-142-5/ CComumMed
PATFRAD-150-21/ CComumIdFerro
Desactivação
PATFRAD-160-20/ CComumFerro
PATFRAD-143-17/ CcomumMed
PATFRAD-160-30/ CComumFerro PATFRAD-154-21/CComumMed PATFRAD-143-7/ CComumMed
PATFRAD-160-31/ CComumFerro PATFRAD-154-22/ CComumMed
PATFRAD-143-9/ CComumMed
PATFRAD-160-32/ CComumFerro
PATFRAD-143-10/ CComumMed
PATFRAD-163-18/CComumMed
PATFRAD-143-11/ CComumMed
PATFRAD-163-19/ CComumMed
PATFRAD-160-33/ CComumFerro
PATFRAD-143-12/ CComumMed PATFRAD-163-20/ CComumMed PATFRAD-143-27/ CComum/ AnfFerro
PATFRAF-143-8/ CComumMed PATFRAD-163-40/ AnfFerro PATFRAD-143-27/ CComum/ AnfFerro
PATFRAD-143-13/ CComumMed
PATFRAD-165-41/ CComumFerro PATFRAD-143-14/ CComumMed
0
5
10 cm PATFRAD-160-36/ CComumFerro
Figura 25 – Materiais recolhidos nos contextos de construção, ocupação e abandono do fosso e barbacã identificados no Pátio de Dom Fradique.
Uma cidade em escavação
325
Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
1
2 Figura 26 – Aspecto da torre romana (caput aquae), adossada à muralha, com o dreno de captação interno (Foto 1); caleira em lateres implantada no exterior da torre romana (foto 2).
326 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
– NA335) que apresenta um depósito bitroncocónico de fundo plano, vidrado a melado e com uma decoração a manganês, com paralelo em Lisboa datado do século X/ XI (BUGALHÃO, 2001, p. 137, nº 38). No interior do nº 29, uma outra estrutura complementava este conjunto de carácter hidráulico. O afloramento rochoso, no qual a Estrutura V (alicerce da torre romana de canto mais antiga) se implantou, continha um canal escavado no seu topo, apresentando as medidas de cerca de 2,10 m de comprimento conservados, por 50 cm de largura interna, e uma orientação NE-SO com uma inclinação de 8º, exterior ao referido recinto e a uma cota altimétrica superior (41 m de altitude), o que revela um encaminhamento de água com origem num ponto ainda mais alto da encosta (Fig. 6 – Foto 2 e Fig. 14). Para o canal, devido ao elevado posicionamento estratigráfico e intrusões recentes, não foram identificados contextos que permitissem a sua datação7. Todavia, a morfologia da es-
trutura escavada, a sua pendente e localização, não sendo um aquae ductus convencional, indicam que poderíamos estar perante um possível vestígio de specus, parcialmente aberto na rocha de base. Não sabemos se a estrutura seria tapada ou revestida, o que era a norma, embora nos primeiros aquedutos este tipo de estrutura nem sempre tivesse cobertura (MALISSARD, 1994, p. 163). Contudo, são conhecidos exemplos deste tipo de canais para drenagem, como no caso de Tongobriga (DIAS, 1997, p. 136), ou para rega, conforme os vestígios identificados na Quintada da Abóbada e na Herdade da Almocreva, nos arredores de Beja (QUINTELA, CARDOSO, MASCARENHAS, 1987, p. 146). Não obstante, este canal é articulável com os restantes vestígios de natureza hidráulica de Época Romana, assumindo-se a contemporaneidade funcional do conjunto que, para todos os efeitos, se encontrou irremediavelmente mutilado.
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0
1
2m
NA21-29 Planta ƐƋƵĞŵĄƟĐĂ
Data 12/08/2015
Figura 27 – Esquema hipotético da articulação do conjunto de vestígios de carácter hidráulico, no interior dos nºs 27 e 29 da Rua Norberto de Araújo.
7 Os depósitos de enchimento deste canal continham exclusivamente materiais datáveis do século XX e nos seus limites superior e inferior os depósitos antigos tinham sido subtraídos por intrusões de Época Moderna.
Uma cidade em escavação
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Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
A conjugação dos vestígios destas estruturas hidráulicas, considerando os limites estabelecidos pelo recinto murado existente, a caleira em lateres associada ao dreno (canalis structilis) da torre e a orientação do canal escavado na rocha, traduz assim um sistema que aproveitaria a pendente do terreno para a captação e condução de águas nesta encosta, assemelhando-se a um sistema de “levada”, cuja tradição se encontrará atestada séculos mais tarde nas acéquias do período islâmico (Fig. 27). Na intervenção arqueológica realizada no nº 9 da Rua Norberto de Araújo, também junto à base deste troço da muralha, poucas dezenas de metros abaixo da localização destes vestígios, foi identificado um tanque de captação e aprovisionamento de Época Moderna8 e o fundo do que pareceu ser um tanque construído em opus signinum (Fig. 28 e 29). Esta última estrutura de natureza eminentemente hidráulica, foi construída sobre o substrato geológico, após preparação com uma camada de calhaus encaixados na base. Tinha associado ao seu contexto
de construção um fragmento de bordo de uma taça em cerâmica cinzenta e o fragmento de um fundo de terra sigillata sudgálica, forma Drag 27, o que timidamente lhe confere uma cronologia dentro do século I (Fig. 28). Não havendo uma ligação física entre esta estrutura e as demais descritas, fica a sugestão de uma funcionalidade agregada àquele conjunto9, ademais com cronologias relativamente compatíveis e alinhadas num patamar de meia encosta, onde a topografia histórica evidencia uma estreita rechã transitável. A morfologia e dimensão das estruturas identificadas levam a crer que não teriam uma função relacionada com a rede de esgotos da cidade (cloacae), infra-estruturas essenciais recentemente descritas e analisadas no âmbito da gestão dos resíduos urbanos de Olisipo (SILVA, 2011b), mas sim com a drenagem de águas infiltradas (aquae paludensis), cuja utilização apreciamos preliminarmente e com o devido pragmatismo10.
UE 166 35,37
[166]
NA9-166-2/ CCinz
35,48
35,28
9a
[165] NA9-166-1/ TSSG
0
5
[164]
10 cm
35,45
[156] 35,49
35,34
35,24
[158]
[159] 34,80
[167] 34,83
35,22 35,27
[161]
34,72
[162] 35,16
34,82
9
[173] [169]
[171]
35,34
35,07
34,98
[157]
NA9-9a Piso térreo Planta das estruturas
Data 11/05/06
0
1m
Figura 28 – Planta dos vestígios arqueológicos no interior do piso térreo do nº 9 da Rua Norberto de Araújo: tanque em cantaria de Época Moderna (quadrante SO), fundo de tanque em opus signinum (quadrante NE); espólio cerâmico exumado sob o tanque Época Romana (quadrante NO).
8 É possível observar outro tanque no interior do edifício sito na Rua Norberto de Araújo, 19 (sede do “Grupo Sportivo Adicense”), o qual ilustra a captação e aproveitamento destas águas da encosta ainda nos dias de hoje.
328 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
9 Os vestígios são demasiado escassos para se avançar com uma proposta de tanque relacionado com captação, decantação ou desarenador, não sendo as evidências suficientes para abordar se se trataria, no seu conjunto, de um sistema apenas drenante ou também filtrante. 10 Os autores estão a desenvolver um estudo mais aprofundado sobre a questão das águas em época antiga na cidade de Lisboa, no qual estas materialidades de Época Romana serão devidamente enquadradas.
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
A análise da geomorfologia da encosta nascente da colina do castelo, concretamente através do estudo geotécnico da área de implantação do edificado (BEIRÓ, CORREIA, 2005), permite esclarecer o posicionamento altimétrico da estrutura de captação e das estruturas hidráulicas associadas. A instalação da torre romana com o dreno foi realizada num local específico de charneira entre as formações miocénicas das “Areias da Quinta do Bacalhau” e as “Argilas do Forno do Tijolo” (Fig. 30). Colocado entre duas bancadas de grés calcário inclinadas a Nascente, o dreno capta as águas de escorrência interna que fluem na intercalação de areias finas siltosas, sobrepostas às argilas também siltosas de topo da bancada inferior, que por sua vez impermeabilizam o estrato da escorrência subterrânea11. Estaríamos assim perante algo que poderíamos denominar como “aquífero cársico”, cujo aproveitamento hidráulico em época antiga teria uma elevada probabilidade, considerando aliás a tradição do seu aproveitamento em épocas recentes (Fig. 31). Seguramente integraria a captação de água pluvial e a que, em regime sazonal, se poderia recolher e aprovisionar através das escorrências de superfície natural ou artificialmente conduzidas sobretudo pelos “talvegues” de encosta (Fig. 32). Não havendo em Lisboa indícios para o aproveitamento de técnicas ou infraestruturas mais antigas, importa salientar que as técnicas de construção de encanamentos escavados na rocha e de cisternas de aprovisionamento são conhecidas pelo menos desde a Idade do Bronze, encontrando-se no Levante espanhol exemplos de soluções que aproveitavam as águas pluviais e a captação das escorrências de barrancos próximos (ASENSIO, ROS-
11 De forma a despistar a possibilidade de serem águas provenientes das tubagens da EPAL (que, como se sabe, apresentam índices de perda na casa dos 30% devido a roturas), as águas infiltradas, que continuavam a emanar do dreno e da parede tardoz do edificado, foram analisadas pelo Laboratório de Bromatologia da CML, excluindo-se, através dos parâmetros utilizados, esta hipótese.
1
2 Figura 29 – Aspecto do fundo do tanque romano visto de plano (Foto 1); Secção do pavimento sobre o substrato geológico após o desmonte (Foto 2).
Figura 30 – Implantação do edificado da Rua Norberto de Araújo na litologia da encosta Nascente do castelo (secção).
Uma cidade em escavação
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Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
SALA, 2012, p. 81). Mais do que uma simples drenagem de águas subterrâneas de meia encosta, certamente necessária à salubridade da cidade, este conjunto de estruturas poderá indiciar um sistema subsidiário de captação e aproveitamento de águas remanescentes para uso, numa lógica de aquae caducae, e de aprovisionamento para um leque de consumos secundários. A título de exemplo, a escavação do quarteirão urbano a poente do Forum de Aeminium revelou estruturas de captação de água de meia encosta integradas no paredão do criptopórtico, consubstanciadas numa abertura quadrangular de drenagem de águas pluviais (CARVALHO et alii, 2010, p. 80), ficando a dúvida se seria apenas drenagem ou se teria outro aproveitamento, e uma estrutura abobadada (fontanário) que enquadrava uma galeria de maior dimensão que escoava, no ponto de talvegue de um veio ou curso de água, para um tanque e para o exterior através de
uma estreita tubagem, ligando-se de seguida a um canal escavado na rocha (idem, 2010, p. 80). O conjunto das estruturas escavadas neste sector na base do paredão do criptopórtico de Aeminium, nomeadamente os tanques revestidos a opus signinum, levaram a uma interpretação que poderá estar relacionada com a instalação de actividade artesanal ou industrial junto a um ponto de água, possivelmente uma fullonica (SILVA, 2011a, p. 88). Embora as cidades em Época Romana pudessem funcionar sem aquedutos, a existência destes não prescindia do recurso a outras fontes aquíferas para aumentar o caudal de uso urbano (NEILA, 1988, p. 223). Exemplos como o de Thamugadi (Timgad), uma cidade média com cerca de 15 a 20.000 habitantes, ilustram este tipo de procedimentos, uma vez que não dispunha de um aqueduto, sendo a água obtida exclusivamente através de poços, da captação de fontes aquíferas e da
Figura 30 – Planta com as estruturas hidráulicas de Época Romana e Moderna de captação e aprovisionamento conhecidas na encosta Nascente do castelo.
330 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
drenagem de águas de infiltração (idem, p. 224). Para paralelos hispânicos, somam-se cidades como Carmo (Carmona) ou Acinipo (Ronda), onde se recorreu aos sistemas tradicionais de captação (LÓPEZ, CRAVIOTO, 2012, p. 14). Na cidade de Carthago Nova (Cartagena), estes sistemas de captação foram utilizados num primeiro momento, durante os séculos II e I a. C., seguindo a tradição pré-romana, com reutilizações pontuais de cisternas (ASENSIO, ROS-SALA, 2012, p. 86). No caso de Olisipo, avançou-se com a possibilidade da existência de um aqueduto, nunca detetado no território do município, abastecido pela albufeira da barragem romana de Belas, nos arredores de Lisboa, e que terminaria na Porta de Santo André, na Costa do Castelo (ALMEIDA, 1969, p. 179). Esta tese, que remonta ao
século XVI, pela pena de Francisco de d´Holanda, foi retomada e assumida como uma obra do século III (idem, p. 181; QUINTELA, CARDOSO, MASCARENHAS, 1987, p. 123), tendo sido recentemente criado um modelo virtual rigoroso para o seu percurso até São Roque e à Porta de Santo André, excluindo-se, para o efeito, as situações de atravessamento de vales através de aquedutos em arcada, para os quais não existe memória histórica (MASCARENHAS, BILOU, NEVES, 2012, p. 258). A futura identificação arqueológica de um aqueduto que tivesse abastecido a cidade de Olisipo, que, a ser este, teria uma cronologia posterior às estruturas aqui focadas, não se estranharia no âmbito do desiderato da engenharia hidráulica romana pelas bonitas aquae, obtidas nas melhores fontes naturais disponíveis no território da
Figura 31 – Planta das estruturas hidráulicas de captação e aprovisionamento romanas na orohidrografia da encosta Nascente do castelo: 1. Largo de Santiago; 2. Rua Norberto de Araújo, 27; 3. Rua Norberto de Araújo, 9; 4. Rua da Regueira; 5. Alcaçarias; 6. Rua da Adiça; 7. Beco do Angeja; 8. Rua de São João da Praça; 9. Armazéns Sommer.
Uma cidade em escavação
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Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
cidade e que seriam preferencialmente consumidas pelos habitantes da urbs. Isto não significa que as águas dos rios, pluviais ou outros mananciais, não fossem utilizados para lavar ruas ou cloacas, dar de beber aos animais, existindo, cumulativamente, técnicas de filtração e purificação que permitiriam o seu consumo (NEILA, 1988, p. 247). Neste sentido, importa também considerar as necessidades deste recurso natural para as unidades de preparados piscícolas, cujos vestígios abundam na que seria a cintura portuária e industrial da cidade romana, e até mesmo para outros equipamentos públicos, como os de carácter lúdico. Esta situação de aproveitamento local de recursos hídricos pluviais limitados, mantidos como procedimentos fundamentais para cobrir todas as necessidades hídricas da cidade, encontra paralelos no sistema de águas sobrantes de Carthago Nova, que serviam as fontes públicas, estabelecimentos termais, instalações industriais, limpeza e saneamento (ASENSIO, ROS-SALA, 2012, p. 94). Porém, a existência de um aqueduto seria fulcral para um abastecimento contínuo e com volume suficiente para o funcionamento de certos equipamentos. No caso das “Termas dos Cássios”, constata-se que a implantação dos seus vestígios estruturais está a uma altitude inferior à da Porta de Santo André, indiciando a possibilidade de este equipamento balnear ter sido alimentado por um aqueduto que funcionasse àquele nível (MASCARENHAS, BILOU, NEVES, 2012, p. 255). Também o circo identificado no subsolo da Praça D. Pedro IV, consubstanciado nos vestígios da arena e spina, integrando um euripos (VALE, FERNANDES, 1997, p. 112), teria necessidades de abastecimento hidráulico que um hipotético ramal deste aqueduto na zona de São Roque poderia resolver (MASCARENHAS, BILOU, NEVES, 2012, p. 249). Mas a cidade de Olisipo não era completamente desprovida de recursos hídricos. A instalação deste edifício de carácter lúdico, para o qual se aponta uma data de 2ª metade do século III, após o desmonte da necrópole adjacente (VALE, SANTOS, 2003, p. 181 e SEPÚLVEDA et alii, 2002, p. 259), embora o século II surja como data mais provável (SILVA, 2011, p. 204), foi realizada na intersecção dos talvegues das ribeiras de Arroios e de São Sebastião. Parece-nos significativo que os vestígios, após a sua desactivação, se encontrassem cobertos por deposições argilosas aparentemente provocadas pelas enxurradas a que esta zona sempre esteve sujeita (SEPÚLVEDA et alii, 2002, p. 247). Esta localização em vale de cheia revela que terá havido uma premeditação, de acordo com as soluções disponíveis na engenharia hidráulica romana, para a condução controlada destes caudais, sua integração e aproveitamento no funcionamento dos diversos equipamentos e componentes do circo, e eventualmente na ampla rede de consumo urbano. Esta situação levaria seguramente a um programa prévio de obras a montante, que poderia passar por intervenções mais ou menos complexas de represamento, aterros ou de outras soluções afins, para controlo dos caudais, considerando-se a possível utilização de técnicas construtivas térreas típicas dos sistemas de regadio, por vezes impercetíveis no registo arqueológico (GIL, 1992, p. 16). Perspetivamos conjeturalmente que, após o abandono do equipamento público, ter-se-á também descurado o sistema que o
332 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
servia, retornando as linhas de água, antes domesticadas, aos níveis de débito naturais12. Também a jusante se teriam realizado obras de drenagem, conforme se constatou pela existência de um dreno cerâmico descoberto entre a atual Rua Augusta, Rua de Santa Justa e Rua dos Sapateiros. Esta estrutura, com uma secção em “˄”, era constituída por tegulae encaixadas que mantinham intervalos regulares abertos permitindo a drenagem do terreno (SILVA, 1922, p. 183), o que ainda se faz atualmente, mas com recurso a outros materiais. O dreno foi instalado sobre as areias da praia antiga, provavelmente em vale de cheia, reconhecendo-se, à época da sua descoberta, uma camada de argila compacta que a colmatava, com 8 m de profundidade (idem, 1922, p. 181). Voltando ao espaço em análise, na encosta Nascente da colina do castelo, importa referir as nascentes da zona baixa do que hoje é o bairro de Alfama, conhecidas como o “Grupo das Alcaçarias”. Estas emergências, estudadas desde os finais do século XIX13, caracterizam-se pelas suas águas bicarbonatadas cloretadas-sódicas ou cálcicas, com temperaturas entre 20º e 34º (RAMALHO, LOURENÇO, 2006, p. 8), o que, manifestamente, não é uma temperatura suficientemente elevada para algumas das componentes termais. Se o uso destas águas termo medicinais está documentalmente registado para as épocas mais recentes, nomeadamente no que diz respeito aos banhos termais, instalados a partir do século XVII (idem, p. 3), já para épocas mais antigas têm sido as diversas intervenções arqueológicas a detectar evidências estruturais do uso e aprovisionamento destes e de outros mananciais. Nesta zona foram identificados os vestígios de estabelecimentos termais de Época Romana, concretamente de um frigidarium, datado dos finais do século I ou inícios do II (FILIPE, CALADO, 2007, p. IX/5) e de um caldarium, com cronologia Alto Imperial (FILIPE, SANTOS, 2016, p. 224). Para esta época são também conhecidas estruturas de aprovisionamento que poderiam pertencer aos típicos sistemas habitacionais de impluvium, salientando-se, num patamar superior da encosta, os tanques revestidos a opus signinum na Rua de Santiago (MIGUEZ, 2014, p. 22), e, na zona baixa de Alfama, o tanque descoberto nas Alcaçarias (FERNANDES et alii, 2011, p. 260), duas prováveis cisternas fechadas em abóbada, uma no Palácio Angeja (FILIPE, LEITÃO, 2011, p. 13) e outra na Rua da Regueira14, e um tanque fontanário, associado a um poço sobreposto a um possível pequeno criptopórtico, nos Armazéns Sommer (GASPAR, GOMES, 2007, p. 689). A hipotética existência de um anfiteatro, na área do Largo de São Miguel (MARTINS, 2014, p. 167), comportaria também certamente necessidades específicas 12 A área da Baixa é historicamente reconhecida como alagadiça devido às águas das marés, mas também pelas torrentes que vinham das encostas e dos vales da Avenida e do Areeiro, havendo registo de violentas inundações em Época Medieval e Moderna, cuja resolução se intentou através de uma série de pontes e encanamentos, sendo o mais antigo referido documentalmente em 1181 para o regueirão de Arroios (AZEVEDO, 1899/1900, p. 221). 13 Cf. RAMALHO e LOURENÇO (2006) para a já extensa bibliografia dedicada ao assunto. 14 Agradecemos ao Rodrigo Banha da Silva a informação prestada.
Indagações arqueológicas na muralha antiga de Lisboa
de abastecimento hidráulico para o seu funcionamento. Esta hipótese, anteriormente veiculada para a zona abaixo das Portas do Sol (SALVADO, 1994, p. 506) continua, todavia, a não ter sustentação arqueológica15. Em suma, face ao conhecimento existente da geomorfologia e dos recursos hidráulicos nesta área da encosta oriental da colina do castelo, e à sua utilização em Época Romana, e considerando a natureza e funcionalidade dos ainda escassos vestígios arqueológicos identificados até ao momento, propomos, como hipótese de trabalho, o aproveitamento dos aquíferos locais integrados numa rede seguramente mais ampla de captação e distribuição deste bem primordial e essencial à vida da cidade, no qual os vestígios descobertos na Rua Norberto de Araújo16 poderiam participar enquanto sistema de drenagens subsidiário ao uso corrente dos diversos equipamentos, infraestruturas e ao aprovisionamento urbano. Considerações finais A cerca urbana medieval de Lisboa encerra nos seus vestígios os episódios construtivos de uma muralha antiga que evoluiu ao longo de dois milénios, tornando-se uma obra plural nas suas características, funções e cronologias. O troço que aqui se apresentou forneceu evidências estruturais e deposicionais que permitiram examinar a estrutura defensiva, mas também outras componentes que agregou na sua edificação geral. Para além da função primordial de protecção do aglomerado populacional antigo, para o qual contribuiu a nível urbano na estruturação e definição de limites ainda hoje reconhecíveis, revelou inesperadas funcionalidades específicas intrinsecamente ligadas à sua implantação topográfica e geomorfológica, nomeadamente a questão das águas e do seu aproveitamento. Ao longo do trajecto aqui focado, a muralha fossilizou na sua história material episódios da obra defensiva de Época Romana Republicana, concretamente da 2ª metade do século II a. C., de Época Romana Alto Imperial, provavelmente do século I, da Antiguidade Tardia, com uma possível cronologia de edificação nos séculos IV-V, de Época Medieval Islâmica, presumivelmente de cronologia pós califal, e de Época Medieval Cristã pós reconquista, reconhecendo-se neste período um aparente reforço defensivo de porta em vésperas da sua desactivação enquanto defesa perimetral da cidade antiga que entretanto se expandira, passando a necessitar de uma defesa mais abrangente. Associada a uma das torres romanas alto imperiais, a componente hidráulica trouxe à discussão a questão do abastecimento e aprovisionamento de água à cidade antiga, ressurgindo a pertinência de um aqueduto, nunca 15 Nesta ordem de ideias, surge a questão da possível persistência, no urbanismo antigo de Alfama, de um edifício de Época Romana (anfiteatro??) com silharia disponível e em quantidade para a construção de um troço de muralha homogéneo em Época Islâmica, como o que se encontra na Rua Norberto de Araújo. 16 A título de curiosidade, o sistema de captação romano continua a funcionar com um caudal sazonal, tendo sido integrado na rede de drenagens do novo edificado reabilitado.
identificado no território do actual município, mas também a da captação local deste bem primário enquanto complemento de uma rede subsidiária cuja amplitude se desconhece. Os resultados obtidos nas quatro intervenções arqueológicas aqui abordadas, traduzem a esperada heterogeneidade de uma estrutura desta natureza, desencadeando inevitavelmente um discurso interpretativo sobre as várias peças de um “puzzle” parcialmente remontável, em que a divagação pelas temáticas específicas que lhe são associadas se torna essencial na articulação das premissas que compõe a retórica arqueológica, estabelecendo-se hipóteses e linhas de investigação futuras para a compreensão geral de um monumento que a cidade persistentemente alojou no seu edificado. Por fim, não poderíamos deixar de referir que as intervenções arqueológicas conduzidas entre 2005 e 2013 contaram com uma série de colaboradores dedicados, mas também acidentais, a quem se deve a boa prossecução dos trabalhos realizados no âmbito das indagações direccionadas que caracterizam a investigação arqueológica municipal17.
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17 Os autores agradecem a colaboração de Eva Leitão, Moisés Campos Costa, Ana Margarida Moço, José Mendonça, Alexandra Krus, Isabel Cameira, Jessica Reprezas, Cláudia Manso, António Valongo, Pedro Galrito, Pedro Augusto Lopes, Luís Ruivo, Isabel Maciel, António Carvalho, Vítor Figueiredo, Sr. Fernando, Paulo Rodrigues, Ana Freitas, Joaquim Louro e Alexei.
Uma cidade em escavação
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Marina Carvalhinhos, Nuno Mota, Pedro Miranda
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
São numerosas as fontes históricas que nos informam sobre o valor simbólico da comida nas sociedades medievais islâmicas. Este envolve a sua preparação, processo e a continuidade do uso de determinados alimentos na dieta alimentar. A proibição de alguns alimentos revela dados sobre o género e a idade, que permitem compreender a classe social e a comunidade religiosa em que estavam inseridos. As análises dos isótopos de C (δ13C) e N (δ15N) foram aplicadas às presentes necrópoles islâmicas de Lisboa. Os resultados do presente ensaio perspectivam-se como uma via para o estudo histórico e social-económico da cidade islâmica de Lisboa, providenciando uma análise directa sobre a dieta alimentar e consumo de alimentos pelas comunidades medievais islâmicas que habitavam a cidade. PALAVRAS-CHAVE:
Arqueobiologia, necrópoles islâmicas, alimentação, análise de isótopos.
ABSTRACT:
There are numerous historical sources that give us information relating the symbolic value of food in the Islamic medieval societies. It involves the preparation, process and continuous use of certain foods in their diet. The prohibition of certain foods reveals data concerning gender and age, allowing to explore social and religious dynamics of the community they live in. Stable isotope analysis of C (δ13C) and of N (δ15N) were applied to the present Islamic necropolis of Lisbon. The results of the present investigation are leading us into the historical and social-economical information to study the Islamic city of Lisbon, providing a direct evidence of diet and food consumption within the Islamic medieval communities that lived in the city. Key words:
Archaeobiology, islamic necropolis, diet, isotope analysis.
Necrópole de Alfama. Individuo em decúbito dorsal
3.9 Perspectivas arqueobioló-
gicas sobre a necrópole islâmica de Alfama
Vanessa Filipe
Arqueóloga, Cota 80.86 Lda vanessagfilipe@gmail.com
Alice Toso
Doutoranda, DAB/UY alice.toso@york.ac.uk
Joana Inocêncio
Arqueóloga e Antropóloga inocencio.joana@gmail.com
1. Introdução À imagem de outras cidades medievais islâmicas, a Lisboa Muçulmana (séculos VIII-XII) segue o modelo de implantação tipificada dos campos mortuários num espaço extramuros junto a um eixo viário de acesso preferencial à medina. Nesta perspectiva, a identificação de um conjunto de cinco inumações (formalmente consonante com o ritual funerário prescrito pela religião do Corão) durante os trabalhos arqueológicos desenvolvidos no imóvel sito Calçadinha do Tijolo 37-43, Alfama, contribuí para o conhecimento da paisagem urbana de Lisboa. A sua localização topográfica numa plataforma natural a meio caminho entre o Mosteiro de São Vicente de Fora e uma das portas de entrada na urbe medieval islâmica – as Portas do Sol – vai de encontro ao modelo de cidade privilegiado pela civilização muçulmana. Numa abordagem preliminar, a análise das dietas alimentares através do método de Isótopos permite-nos ensaiar uma proposta socioeconómica e cultural sobre os indivíduos depositados no necrotério oriental. 2. Síntese Histórica Durante o período de dominação medieval islâmica, a cidade de Lisboa adapta a anterior cenografia romano imperial de tradição mediterrânica ao novo modelo operativo de urbe islâmica medieval. Neste sentido, o processo de urbanização islâmico definia um espaço de poder político e religioso – a alcáçova; e um espaço urbano habitacional – a medina. Unificados dentro da muralha que os envolvia, a denominada “Cerca Moura”, são vários os relatos narrativos muçulmanos sobre o périplo amuralhado muçulmano.
Al-Himari, um autor do século XIII, na sua descrição sobre a cidade islâmica de Lisboa relata: “A sua porta ocidental está sobrepujada por arcadas duplas sobre colunas de mármore, fixas em pedras (também) de mármore. É a maior das suas portas. Lisboa tem uma outra porta que se abre a Oeste: chamam-na Porta do Postigo; ela domina uma vasta pradaria, atravessada por dois cursos de água que se lançam no mar. No sul, encontrase outra porta, a Porta do Mar , na qual penetram as ondas, ao subir e descer da maré, subindo na muralha a uma altura de três braças (sic). A leste, a chamada Porta das Termas, As termas estão perto dela e do mar e nelas [correm] duas águas: água quente e água fria; e quando a maré sobe encobre-as. E uma outra porta oriental, conhecida como a Porta do Cemitério” (SIDARUS, REI, 2001, p. 58). Analisando a anterior descrição, o autor muçulmano ao descrever as portas de entrada e saída da urbe lisboeta informa o leitor sobre os limites físicos e geográficos do traçado fortificado islâmico e os nomes comummente usados pela população na designação das portas, relacionadas intimamente com o que se encontrava nas suas proximidades. Por conseguinte, o estudo das fontes escritas medievais permite-nos identificar a Porta do Cemitério com a atual Porta do Sol, localizada no extremo setentrional do percurso oriental da “Cerca Moura”. Sendo que a Porta do Sol, abria-se para o almocavar muçulmano (cemitério) que se estendia pelas encostas de São Vicente. É precisamente neste local de encosta que o presente arqueossítio se situa, num espaço extramuros portanto. No ano de 1147, a cidade de Lisboa é conquistada aos muçulmanos pelo rei D. Afonso Henriques com a ajuda de cruzados cristãos. É precisamente um cruzado inglês, que participa no domínio de Lisboa, que realiza uma das melhores descrições da urbe em período medieval e, uma
Uma cidade em escavação
339
Vanessa Filipe, Alice Toso, Joana Inocêncio
vez mais, relata a existência de cemitérios junto à porta setentrional do circuito defensivo (BRANCO, 2001). O olhar cristão sobre o “sarraceno”, signo de uma vertente missionária, destaca a sacralização dos espaços anteriormente devotos ao Islão e a fundação de edifícios religiosos movidos pela propaganda da supremacia política cristã. Neste último caso enquadra-se a construção da Igreja e Convento de São Vicente de Fora, precisamente no local onde el-rei assentou o acampamento militar e junto da capela onde os cruzados flamengos enterraram os seus mortos (FERREIRA, 1995, p. 8-13). A desativação da necrópole terá ocorrido muito possivelmente após a conquista cristã de Lisboa. A sua confirmação é-nos dada no século XIII quando nas proximidades do Mosteiro de São Vicente, se instalou a cinco de Agosto de 1290, o Estudo Geral, estabelecendo-se aí o bairro habitacional de estudantes e professores, criado pelo rei D. Diniz – “tudo o que ficava entre a porta do sol, e Santo Estevão de Alfama, que por respeito chamarão o bairro dos escholares” (apud CASTILHO, 1936, p. 202). De acordo com a supracito, estas residências estudantis instalar-se-iam possivelmente no local da intervenção espraiando-se sucessivamente pela freguesia de Santo Estevão. Todavia, passados poucos anos, as Escolas Gerais são transferidas para Coimbra, e as casas principais são ocupadas pela Casa da Moeda motivando a construção de edifícios nobres e palacianos nas suas adjacências (SILVA, ALMEIDA, 1987, p. 525; Idem, 1994, p. 250). A construção da Cerca Fernandina, entre 1373 e 1375, provedora de defesa e proteção a estes espaços, anteriormente arrabaldes, beneficiou também a instalação das elites lisboetas nesta parte da cidade (SILVA, 1987, vol. I, p. 15). Este movimento de urbanização aristocrata percorre transversalmente a Idade Moderna até ao terramoto de 1755. 3. Intervenção Arqueológica A análise prévia das fontes cartográficas, precisamente do Atlas da Carta Topográfica de Lisboa (FOLQUE, 1856-58), possibilitou a percepção de que a área intervencionada correspondia a um espaço ajardinado desde, pelo menos, a segunda metade do século XIX, algo que também se refletiu no registo arqueológico. Consideramos assim, a “longa” previvência da zona de jardim como factor de importância na preservação do contexto arqueológico funerário. A escavação arqueológica incidiu sobre toda a área ajardinada, cerca de 60 m2, e permitiu confirmar uma das premissas relativas à cidade islâmica de Lisboa: a localização do campo mortuário, a oriente, inúmeras vezes referido nas crónicas históricas. Estratigraficamente, com a remoção de um depósito de aterro contemporâneo, foi possível observar o nível de geológico [411], consistindo num solo pouco coerente e pouco compacto, de coloração amarelada. Curioso foi notar numa leve diferença de natureza sedimentar, ao nível da coloração e da textura, o que nos alertou para a possibilidade de sepulturas escavadas diretamente no substrato geológico. Este facto confirmou-se quando, após delimitação do sepulcro [408] e remoção do se-
340 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 1 – Localização do arqueossítio a vermelho no mapa de Lisboa de Filipe Folque realizado em 1856-58 (FOLQUE, 1856-58).
dimento de enchimento [409a], se identificou o primeiro esqueleto de um indivíduo depositado em decúbito lateral direito [409], e deposição de pequeno ossário [415], junto ao local onde se encontraria o crânio [409]. Imediatamente a sudeste da inumação [409], definiu-se a sepultura [413] e posteriormente o que restava do esqueleto [410]. Sequencialmente, identificaram-se mais duas sepulturas escavadas diretamente no substrato geológico, a [416] e [419] observando-se a presença de vestígios osteológicos humanos, [418] e [421] respectivamente. Relativamente a este conjunto de quatro sepulturas verificamos a sua afectação a norte pela vala de fundação [404] da empena setentrional do edifício atual. No que concerne à vala de fundação [404] o seu enchimento [405] foi depositado aí após a construção da fachada sul do edifício, nomeadamente durante o século XVII, de acordo com as materialidades arqueológicas exumadas e analisadas. Numa fase posterior da intervenção arqueológica colocou-se à vista uma outra inumação islâmica, designada pela unidade estratigráfica [425] localizada a noroeste da primeira sepultura descoberta [408]. No que diz respeito ao seu estado de conservação, a presente sepultura é, de facto, no conjunto de inumações identificadas, a mais completa pois a sua localização afastada da empena norte permitiu a sua preservação. A sua dispersão espacial confina-se a uma área restrita impedindo a formulação de hipóteses sobre a extensão do campo funerário. No entanto, a importância da sua descoberta fornece mais uma peça do puzzle para o conhecimento dos espaços extramuros lisboetas, especificamente sobre o lado oriental.
Perspectivas arqueobiológicas sobre a necrópole islâmica de Alfama
Figura 2 – Plano Final da Intervenção Arqueológica.
4. Ritual Funerário Como em todas as culturas é a religião que dita os hábitos fúnebres, de acordo com as crenças próprias da mesma. A população islâmica apresenta hábitos muito específicos no que toca ao processo de tratamento e enterramento dos mortos. Os corpos são limpos e levados para ser enterrados - al-Dafin. São colocados em fossas simples escavadas no solo, sem a presença de caixão, deitados sobre o lado direito (decúbito lateral direito). A sepultura deve ser perpendicular à linha recta do local para a Qiblah – Meca, e a face deve sempre estar voltada na direcção da mesma. Existem dois tipos de sepulturas tradicionais – Al-Shaqq e Al-Lahed – a primeira é a vala simples e a segunda implica uma bancada lateral inferior, onde é colocado o corpo de modo a ficar protegido sob uma área não escavada. A propositada não colocação de qualquer tipo de espólio - adorno ou outro – baseia-se na ideia de um enterramento humilde e simples, desprovido de pretensões. Este facto também dificulta a aferição cronológica e diacronia ocupacional da presente necrópole. A necrópole da Calçadinha do Tijolo é caracterizada pela tipologia simples das sepulturas escavadas na rocha,
sem espólio associado, estando os indivíduos em deposição primária em decúbito lateral direito com orientação SO-NE e face virada a Este (apenas com exceção do indivíduo [425] que se encontrava em decúbito dorsal). O repovoamento natural de uma área urbana visível na reestruturação posterior do espaço levou a que vários vestígios de esqueletos tenham sido parcialmente removidos ou destruídos para construção de novas estruturas. Uma consequência deste reaproveitamento é o facto dos enterramentos sepultados estarem bastante incompletos. Apenas uma das sepulturas apresentava reutilização funerária, com um pequeno ossário junto ao crânio. Tafonomicamente o substrato geológico onde foram escavadas as sepulturas é de características bastante porosas pelo que o elevado grau de humidade é visível nos ossos, formando alterações que mimetizam os processos osteóliticos. A constante presença de raízes terá também influenciado o estado dos ossos, assim como apoia a presença de água no substrato. Os ossos apresentam-se assim frágeis, quebradiços e porosos e com extensão das manchas de cor devidas à presença de metais. As raízes, por sua vez, provocam quebras postmortem e fragilidades.
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Vanessa Filipe, Alice Toso, Joana Inocêncio
Figura 3 – Individuo [425] em decúbito dorsal.
5. Material e métodos O material osteológico foi avaliado em campo, posteriormente recolhido, limpo com o auxílio de escovas moles e ensacado em sacos de plástico furado. Foi efectuado o perfil biológico para cada indivíduo, sendo a diagnose sexual dos adultos definida com base na morfologia dos ossos coxal (W.E.A, 1980; BUIKSTRA, UBELAKER, 1994; BRUZEK, 2002) e do crânio (FEREMBACH et alii,1980; W.E.A, 1980; BUIKSTRA, UBELAKER, 1994; BRUZEK, 2002), na osteometria dos ossos longos (WASTERLAIN, 2000) e dos ossos do pé (SILVA, 1995). A idade à morte em adultos foi conseguida apenas num caso, com a aplicação do método morfológico da extremidade esternal da 4ª costela (Iscan,1984) e para o único não-adulto com base no comprimento das diáfises (MARESH, 1970). A análise dentária foi baseada no esquema dentário FDI e a patologia determinada pelos parâmetros de WASTERLAIN (2000). As únicas evidências patológicas possíveis de determinar foram degenerativas – osteoartrite (AO) e entesopatias. Nos casos das primeiras utilizámos a escala de 3 graus de CRUBÉZY, MORLOCK e ZAMMIT (1985), sendo as lesões entesiais classificadas em graus de 0 a 5 segundo CRUBÉZY (1988; apud CUNHA, UMBELINO, 1995). No caso do ossário foi efectuado o NMI (número mínimo de indivíduos) com base em HERRMANN e colegas (1990, apud SILVA, 1998).
342 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 4 – Ossário [415] junto a crânio de [409].
5.1. Análise
O conjunto estudado é composto por quatro (4) indivíduos adultos, um (1) não-adulto e um pequeno ossário. Dos quatro elementos adultos temos dois esqueletos femininos jovens, um indivíduo masculino e um adulto muito incompleto. U.E (unidade estratigráfica)
Sexo
Idade
Patologias
409
Feminino
Adulto jovem
-
410
-
Adulto
-
415
Ossário
Adulto
-
418
-
9 a 10 anos
-
421
Masculino
54 a 64 anos
Patologia degenerativa
425
Feminino
-
Patologia oral
Tabela 1 – Listagem de elementos funerários.
No conjunto adulto apenas conseguimos apurar a idade à morte no indivíduo masculino, com base na epífise da 4ºa costela – 54 a 64 anos (Iscan, 1984). Dada a sua idade é natural a existência de patologia degenerativa. Apresenta inícios de artroses - Grau 1 de CRUBÉZY, MORLOCK e ZAMMIT (1985) nas omopla-
Perspectivas arqueobiológicas sobre a necrópole islâmica de Alfama
Figura 5 – Indivíduo [421].
tas – cavidade glenóide, cúbito direito – epífise proximal, clavícula esquerda, úmeros – epífises distais; e artrose de grau 2 no esterno, na ligação do manúbrio com o corpo. Revelou também uma entesopatia de grau 3 de Crubézy (1988, apud CUNHA e UMBELINO, 1995) na tuberosidade radial, da inserção do músculo bíceps brachii. Quanto à dentição foi recuperada apenas parte do crânio, e com ela um pequeno fragmento do lado direito
Figura 6 – Esterno com artrose de grau 2 e entesopatia de grau 3 na tuberosidade radial d indivíduo [421].
da mandibula. Dele podemos apenas mencionar a perda ante-mortem do 3º molar inferior direito (nº48 FDI). No entanto um dos indivíduos jovens femininos [425] apresenta grande parte da dentição, como podemos observar na tabela 1. Podemos verificar que mesmo jovem o indivíduo apresenta já graus de desgaste em toda a dentição, sendo alguns bastante elevados, assim como perda de dentes ante-mortem.
11 12
Perda PM Desgaste grau 4
Desgaste grau 4 Desgaste grau 3
21 22
13
Desgaste grau 8
Desgaste grau 5
23
14
Perda PM
Zona não recuperada
24
15
Desgaste grau 9 – desaparecimento da coroa
Zona não recuperada
25
16
Perda AM
Zona não recuperada
26
17
Desgaste grau 8
Zona não recuperada
27
18
Perda PM
Zona não recuperada
28
48
Zona não recuperada
Zona não recuperada
38
47
Desgaste grau 6
Zona não recuperada
37
46
Desgaste grau 6, tártaro grau 1
Zona não recuperada
36
45
Perda AM
Zona não recuperada
35
44
Desgaste grau 7
Zona não recuperada
34
43
Perda PM
Zona não recuperada
33
42 41
Perda AM Perda AM
Perda AM Perda AM
32 31
Tabela 2 – Esquema dentário FDI – análise Wasterlein, 2000. (Legenda: AM – ante mortem; PM – post mortem)
Uma cidade em escavação
343
Vanessa Filipe, Alice Toso, Joana Inocêncio
O indivíduo não-adulto encontrava-se bastante incompleto sendo possível o cálculo da idade apenas com base no comprimento da clavícula. O pequeno ossário encontrava-se à cabeceira do indivíduo [409], e é composto por um úmero, omoplata e pedaço de osso longo (pode ou não ser parte do úmero). O NMI determinado é de um (1) indivíduo adulto ou sub-adulto. 5.2. Os Isótopos estáveis no estudo da dieta das comunidades islâmicas de Lisboa
A alimentação, longe de ser apenas uma componente biológica necessária à vida humana, assume uma forte conotação simbólica nas sociedades do passado. Todos os aspectos relativo à dieta, entre os quais a escolha dos produtos, a preparação e o consumo ou não-consumo de determinados alimentos têm um papel importante na construção das identidades, sendo influenciados por numerosos aspectos socioculturais entre os quais a posição social, a faixa etária, o sexo e a crença religiosa. Dado que a dieta não pode dissociar-se das expressões comportamentais de uma população, com a sua investigação procura-se então aportar uma nova perspectiva sobre as comunidades muçulmanas que viviam em Lisboa sob o poder islâmico. As análises de isótopos estáveis de carbono (δ13C) e nitrogénio (δ15N) no colagénio de ossos humanos é um método amplamente usado nos estudos arqueológicos e antropológicos, vivenciando uma grande expansão nas últimas duas décadas, graças também a uma sempre maior interdisciplinaridade das investigações bioarqueológicas. O princípio subjacente a esta técnica biomolecular baseia-se na fisiologia dos ossos, que ao longo da vida de um individuo, vão fixando os sinais relativos à composição isotópica dos alimentos ingeridos (AMBROSE, 1993). Os sinais isotópicos da dieta são portanto incorporados nos tecidos corporais, como o osso e mais especificadamente o colagénio, através do metabolismo e preservados depois da morte. As quantidades de isótopos de carbono e nitrogénio variam de forma previsível entre específicas categorias de alimentos que formam as cadeias alimentares em ambientes terrestres e aquáticos. Além disso, os isótopos estáveis de carbono variam entre famílias de plantas com diferentes estratégias fotossintéticas, permitindo assim distinguir, por exemplo, o consumo de trigo (planta C3) do milho (planta C4) (SMITHSS, EPSTEIN, 1971). Os
isótopos de nitrogénio reflectem a posição de um individuo na cadeia alimentar, com valores mais altos para os organismos ao topo da cadeia alimentar e mais baixos para os organismos que se alimentam na base da mesma. Portanto através das análises das variações dos isótopos de carbono e nitrogénio entre categorias alimentares é possível identificar a origem das fontes dos nutrientes alimentares (proteínas, carbohidratos, lípidos) e reconstruir a dieta das populações do passado (KATZENBERGK et alii, 2007). Este é o objectivo do presente trabalho, tendo-se recorrido para o efeito de análises dos isótopos estáveis de carbono (δ13C) e nitrogénio (δ15N) dos restos ósseos provenientes da escavação da Calçadinha do Tijolo. Os dados dos restos humanos são comparados com os valores da fauna de contexto islâmico proveniente da Praça da Figueira em Lisboa. Os dados provenientes dos indivíduos do Castelo de São Jorge e do Largo das Olarias, apresentados durante a comunicação, não são incluídos neste trabalho porém são objecto dum trabalho de próxima publicação. 5.3. Metodologia
A análise dos isótopos estáveis de carbono e de azoto no colagénio dos restos humanos foi realizada em cinco amostras (Tabela 1) nos laboratórios de arqueologia biomolecular (BioArCh) do Departamento de Arqueologia, da Universidade de York, na Inglaterra, sob a coordenação da Doutora Michelle Alexander. A análise desenvolveu-se em acordo com o protocolo de extracção de colagénio actualmente utilizado na Universidade de York, baseado no método de Longin (1971) com a adição de uma ultrafiltração, como sugerido por BROWN et alii (1988). Os espécimes foram tratados pela extracção de colagénio e as amostras analisadas com o auxílio de um espectrómetro de massa Sercon 20-22 Isotope Ratio mass spectometer (IRMS). 5.4. Resultados e discussão das análises da paleodieta Os resultados da análise dos isótopos estáveis esta representada nas figuras 7 e 8, enquanto os valores numéricos estão incluídos na Tabela 3.
%C
%N
C:N
δ13C ‰
δ15N ‰
Adulto
44.86
16.48
3.18
-18.62
9.55
F
Adulto
39.84
14.26
3.25
-18.68
9.98
Costela
M
Adulto
41.28
15.03
3.22
-18.66
9.30
CDT410
Costela
I
Adulto
38.62
14.014
3.21
-18.89
9.59
CDT418
Costela
I
Não-adulto
37.79
13.56
3.24
-18.58
9.33
Esq.
Osso
Sexo
CDT409
Costela
F
CDT425
Fíbula
CDT421
Idade
M – individuo masculino; F – individuo feminino; I – individuo de sexo indeterminado Os erros associados aos valores de δ13C e de δ15N são respectivamente ±0.04 ‰ e ±0.10 ‰. Tabela 3 – Tabela 1. Resultados isotópicos de indivíduos humanos da Calçadinha do Tijolo (valores de δ13C e de δ15N (‰)).
344 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Perspectivas arqueobiológicas sobre a necrópole islâmica de Alfama
Figura 7 – Dieta da população islâmica da Calçadinha do Tijolo, representada em relação aos dados da fauna proveniente dos contextos islâmicos da Praça da Figueira. Os valores médios das populações mesolíticas de Muge estão aqui representados para fins comparativos como exemplo de uma dieta marinha em Portugal (in Umbelino, 2007).
Figura 8 – Valores médios dos isótopos de carbono e azoto para os indivíduos humanos e a fauna com os relativos valores do desvio padrão.
Uma cidade em escavação
345
Vanessa Filipe, Alice Toso, Joana Inocêncio
Os resultados das análises isotópicas mostram uma alimentação muito similar entre os indivíduos incluídos neste trabalho. Ambos os reduzidos valores do desvio padrão de carbono (δ13C) e azoto (δ15N ) indicam o alto nível de homogeneidade da dieta, incluindo também a única criança presente nesta amostra. Este individuo não-adulto tem uma idade estimada de 9.5 anos e mostra uma dieta similar àquela dos indivíduos adultos, sugerindo que nesta idade as crianças tivessem já abandonado a dieta infantil e beneficiassem da mesma alimentação dos adultos. Não existem diferenças apreciáveis entre categorias de sexo ou idade. A dieta deste grupo aparenta ser de origem terrestre com consumo de proteínas animais e plantas C3. O ligeiro incremento dos valores de carbono (δ13C) em relação à fauna local, pode sugerir a inclusão na dieta de recursos de origem marinha ou plantas C4, que apresentam valores mais positivos de carbono. Contudo, os valores isotópicos do nitrogénio (δ15N) resultam demasiado baixos para apoiar a tese de uma dieta à base de peixe, mesmo considerando o consumo de espécies muito pequenas situadas na primeira parte da cadeia alimentar, como a sardinha. Outra opção pode ser o consumo de moluscos, que não afectariam os níveis de nitrogénio. De qualquer das maneiras, as fontes históricas informam sobre os alimentos mais consumidos e apreciados na cozinha islâmica e animais como cabra, carneiro e ovelha aparecem com grande frequência tanto nas receitas quanto nos conjuntos de fauna destes períodos (FLADRIN et alii, 1999; PEREIRA, 2014). Colocando de lado esta primeira opção, o aumento dos valores de carbono (δ13C) pode ser o resultado da integração na alimentação destes indivíduos de plantas C4 ,como o milho-painço e o sorgo. Ainda assim, quando os dados são comparados com os recentes estudos de ALEXANDER et alii (2015) sobre as comunidades mudéjares na Espanha medieval, as quais mostram um consumo de plantas C4, os valores aqui apresentados parecem mais adequados a uma dieta terrestre que inclui herbívoros e plantas C3. Os únicos dados publicados sobre a paleodieta em Portugal, pertencem ao trabalho de UMBELINO et alii (2007) sobre as populações mesolíticas dos concheiros de Muge e são incluídos nos diagramas para fins comparativos. Não obstante a dificuldade de comparar indivíduos de cronologias tão diferentes, sendo os indivíduos de Muge caracterizados por uma dieta de origem marinha, fornecem um imediato auxílio visual na análise da contribuição de recursos marinho na dieta do grupo de muçulmanos, proveniente da Calçadinha do Tijolo. Ao comparar as amostras de Lisboa com os indivíduos de Muge parece mais claro ainda que estes indivíduos islâmicos mantivessem uma alimentação composta principalmente de recursos terrestres.
que concerne à data de enterramento dos indivíduos e consequente formação e amortização desta necrópole. Contudo, as alusões literárias analisadas sugerem a existência de cemitérios nas encostas de São Vicente de Fora desde o século XI (SIDARUS, REI, 2001, p.71), apesar de a ausência de indícios documentais para os séculos antecessores não invalidarem a formação prévia do campo mortuário. A anulação funcional do espaço funerário terá como limite cronológico máximo os finais do século XIII com a implantação das Escolas Gerais nesta zona. Nesta linha de pensamento, a necrópole da Calçadinha do Tijolo permite-nos ensaiar uma cronologia apontada para o período de dominação muçulmana. Em termos antropológicos parece tratar-se claramente de uma realidade que retrata os costumes funerários islâmicos. Tal análise da antropologia funerária é apoiada pela análise à alimentação destes indivíduos. O conjunto é, infelizmente, demasiado pequeno e demasiado fragmentado e incompleto para podermos tirar elações populacionais. Sem grandes evidências patológicas podemos apenas dar como nota para futuras investigações a ligação entre o indivíduo jovem de elevada patologia de desgaste dentário como o elemento onde a análise isotópica demonstrou ser o que apresenta um maior consumo de proteínas animais. Ainda que a carne em si não seja comummente vista como um elemento que provoque elevados graus de desgaste, é ainda assim um alimento ácido (tal como o queijo, farinha branca e fruta cítrica) passível de causar desgaste (COX, MAYS, 2000, p. 232). Esta ligação, ainda que ténue, pode manifestar-se significativa, uma vez que para populações medievais e anteriores é possível analisar o desgaste como uma função da idade (HILLSON, 2005). Importa salientar que as interpretações apresentadas são relativas aos indivíduos aqui analisados e não refletem necessariamente o comportamento alimentar de toda a população. Dada a falta de dados isotópicos do colagénio de indivíduos humanos do mesmo período histórico em Portugal, resulta difícil contextualizar estes primeiros resultados no padrão do domínio islâmico no país, e particularmente em Lisboa. De qualquer maneira, os trabalhos que estão actualmente em desenvolvimento, e o crescente interesse no quadro socioeconómico desta fase na Península Ibérica, ajudarão a preencher as lacunas do actual conhecimento sobre a vida e morte das comunidades muçulmanas em Portugal.
Bibliografia 6. Conclusões O fenómeno de instalação do cemitério extramuros, em estreita ligação com as Portas do Sol e numa área a oriente da cidade medieval islâmica de Lisboa, reproduz a organização e identidade do tecido urbano de matriz medieval muçulmana. O facto de a prática religiosa de inumação islâmica desprover os indivíduos de espólio cultual contribui para uma difícil aferição cronológica no
346 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
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Cartografia [Atlas da Carta Topográfica de Lisboa], [Direcção de Filipe Folque. Levantamento por Carlos Pezerat, francisco Goullard e César Goullard], [1: 1000], [Lisboa], 1858.
Uma cidade em escavação
347
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
A intervenção realizada em dois edifícios da Travessa do Almada, entre a Rua das Pedras Negras e a Travessa das Pedras Negras permitiu identificar duas realidades históricas: a mais recente do período moderno pré-terramoto; e uma outra de época romana. Apesar do grau de destruição dos contextos, foi possível interpretar algumas realidades, tendo-se revelado novos dados para uma leitura mais abrangente associada às Termas dos Cássios. PALAVRAS-CHAVE:
Termas dos Cássios, arruamento moderno.
ABSTRACT:
The archaeological intervention in two buildings at Tv. do Almada, Lisbon, allow us to identify two historical moments of occupation: the most recent reports to modern period, before earthquake, having been discovered an old street; and the oldest archaeological contexts reports to the roman period. Despite the high level of destruction with this intervention it was possible to obtain more information related with the Cassios Baths. Key words:
Cássios Roman Baths; Modern street.
“Apartamentos Pedras Negras”. Sistema de esgoto do período moderno
3.10 A Intervenção Arqueológica
no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras”
Sofia de Melo Gomes
Nemus – Gestão e Requalificação Ambiental Ldª. sofia.gomes@nemus.pt
Mónica Ponce
Arqueóloga monicalvesponce@gmail.com
Victor Filipe
Bolseiro de doutoramento, UNIARQ/FLUL; FCT victor.filipe7@gmail.com
1. Apresentação A intervenção arqueológica realizada no decorrer do “Projeto de Arquitetura Apartamentos Pedras Negras” teve como objetivo dar continuidade a um processo de intervenção arqueológica iniciado por outra equipa, ao abrigo da informação emitida pela Direção Geral do Património Cultural (DGPC) n.º1423/DSPAA/2013 (31/05/2013). Numa primeira intervenção já se havia descoberto algumas estruturas e troço de calçada, ambos associados ao período moderno.
Como objetivo genérico assumiu-se a escavação integral dos dois edifícios até à cota de obra definida em projeto. Como objetivos específicos foram considerados a identificação e registo de pré-existências de época moderna e, na possibilidade de ocorrerem vestígios mais antigos proceder ao seu registo, interpretação e análise de modo a se proceder a uma tomada de decisão consciente nas opções a adotar no processo em curso.
Figura 1- Localização (lat 38.710673º, long 9.134959- sistema WGS84) Fonte: GoogleEarth.2016.
Uma cidade em escavação
349
Sofia de Melo Gomes, Mónica Ponce, Victor Filipe
A intervenção decorreu de forma faseada em função da logística e da segurança da equipa. Assim, os trabalhos iniciaram-se no edifício 2 (virado à Travessa. das Pedras Negras) e só quando este espaço foi liberto se iniciou a intervenção no edifício 1 (situado na Rua das Pedras Negras). A escavação permitiu a identificação de treze fases distintas de ocupação do espaço, os quais se podem distribuir da seguinte forma: • Fases XIII-XII: período pós-terramoto de 1755; • Fases VI-XI: período moderno pré-terramoto de 1755; • Fases I-V: período romano. Seguidamente são apresentados de forma sucinta os contextos e materiais que permitiram uma leitura do espaço. 2. Leitura cronológica dos dados obtidos em escavação: 2.1. Período moderno 2.1.1. Contextos
Na fase mais antiga associada ao período moderno, identificada como fase VI, inclui-se um conjunto de realidades que estruturam todo o espaço intervencionado. Do lado leste foram identificados dois compartimentos, identificados com a letra A e C. O compartimento A faz a esquina com a Rua do Arco de D. Tereza. De
Figura 2 - Falta legenda
350 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
planta trapezoidal (4 m parede norte x 4,90 m parede sul x 5,90 m paredes leste e oeste), possui uma subdivisão a norte com 1m de largura. A parede que faz a divisão tem um sistema construtivo mais frágil, apenas com um alinhamento de pedras (a sul) que encosta a um sistema de construção de terra. A parede ainda se encontrava estucada no momento da escavação. Adossado a esta parede e sobre o pavimento de terra identificou-se uma estrutura de função indeterminada mas que parece ter funcionado como degrau. A estrutura era composta por um primeiro nível de grandes lajes que delimitavam um espaço retangular, de 1,2 m x 1,5 m, ao qual se sobrepunha um conjunto de tijolos, tipo ladrilho, colocados em cutelo, por uma área de 0,80 m x 0,50 m. Esta estrutura assentava sobre um pavimento em terra. A entrada principal seria de duas portas (1,80 m aproximadamente), apresentado uma soleira em pedra com buraco de gonzo e goteira central. Mais a norte, junto à esquina, havia uma segunda entrada mais discreta, que não ultrapassava os 0,70 m de largura e que dava acesso à subdivisão. Neste caso a soleira era marcada por tijolos tipo ladrilho colocados em cutelo. A parede leste faz atualmente de alicerce ao edifício existente e mantém-se estucada. A sul o compartimento seria parcialmente aberto para o compartimento C, existindo uma passagem com cerca de 2,30 m. Aqui o acesso à rua fazia se por uma passagem com cerca de 2,20 m. Nesta divisão não se identificou qualquer nível de utilização do espaço.
A intervenção arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras”
Os edifícios do lado oeste apresentam um maior número de reestruturações e alterações. Nesta fachada apenas se associou a este primeiro momento o muro [101] (edifício 2) e o muro [192] (edifício 1) que correspondem, respetivamente, às paredes exteriores dos compartimentos D e F. É de referir que o muro [192] se encontrava em bom estado de conservação, revelando dois níveis de estuque de parede e três aberturas de janelas de rampa para iluminação. A este foi adossado o muro [177], limitando a norte o compartimento F. A esta fase construtiva estão ainda associados os muros [204] e [181]. Do [204] apenas se registou uma linha de pedras de cantaria reutilizada, onde se destaca uma pedra de calcário que teve como função primordial o fecho de um arco. O limite deste muro a norte interceta com o [181] que em paralelo com o [177] parece fazer um pequeno corredor de acesso ao interior do compartimento. Num segundo momento (fase VI) construiu-se o muro [25] adossado a sul ao muro [101], e ao qual se encostou o murete [102] (o limite sul mais antigo deste compartimento só foi identificado na fase VIII com a construção do muro [28] sobre o [102]). A calçada da Rua Arco do Caranguejo (fase VII) foi colocada posteriormente à construção destes muros já que se lhes encosta. Os depósitos utilizados para assentamento da pedra basáltica apresentam materiais datáveis do séc. XVII, como a faiança de aranhões e a porcelana chinesa. Por baixo da calçada foi construído um sistema de escoamento de águas residuais com ligação aos edifícios da rua.
À fase VIII pertencem ainda dois muros de fachada: o [76] (edifício 2) e o [203] (edifício 1). Ambos se destacam dos demais pela excelente qualidade do aparelho utilizado. O sistema construtivo é em aparelho misto com fachada exterior em cantaria trabalhada e miolo em argamassa amarela granulosa reforçada com pedra não tratada e tijolo tipo ladrilho. É de realçar o fragmento de telha moderna argamassada ao paramento do muro [76]. Neste, a fachada interior deveria ser rebocada mas não se identificou qualquer tipo de vestígio. A datação destes muros numa fase posterior aos restantes deve-se ao facto da vala de fundação do muro [76], onde se recolheram fragmentos de faiança moderna com decoração pintada à mão em azulcobalto e vinado (séc. XVII), cortar a calçada moderna. O período pré-pombalino é ainda marcado pelo fechar dos acessos ao compartimento C, tanto pelo compartimento A como pela rua (fase IX). O fecho é feito por paredes bastante robustas, com uma argamassa muito dura reforçada por grandes pedras em estado bruto. Na fase XI é construído o compartimento B e é fechada a rua do Arco do Caranguejo. A construção do compartimento B fez-se com um alteamento do espaço com a colocação de um areão a servir base ao chão e com a construção dos muros [77] e [80] (ambos sem vala de fundação). O muro [77] era construído por uma linha simples de pedra aparelhada de dimensões regulares, enquanto que o [80] apresentava dois paramentos com o interior em argamassa amarela. O fecho da Rua do Arco do Caranguejo fez-se com a construção de um espaço delimitado pelo muro [46] a leste, pelos muros [38] e [39] a sul e sobrepondo-se ao
Figura 3 – Sistema de esgoto.
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muro [101] a oeste (não se identificou o limite a norte por se prolongar por baixo da atual fachada. O muro [46] fecha o acesso à Rua do Arco de D. Tereza enquanto que os muros [38] e [39] fazem a ligação entre os muros [73] e [25]. O espaço interior tem um pavimento em argamassa amarela muito dura que se sobrepõe à calçada. A partir deste momento a Rua do Arco do Caranguejo passa a ser um beco. O terramoto de 1755 arrasou com o edificado existente (fase XII). Os vestígios identificados resumem-se a um amontoado de escombros onde se conseguiu diferenciar as derrocadas de paredes, as quedas de telhados e os níveis de combustão resultantes do incêndio. Com o plano de reconstrução da cidade de Lisboa estes níveis foram aplanados e os muros que resistiram passaram a ter a função de alicerce dos novos edifícios. 2.1.2. Materiais
Os materiais passíveis de datação prendem-se basicamente com as porcelanas chinesas com paisagens, as faianças portuguesas e os azulejos de padrão geométricos e vegetalistas policromáticos (azul e amarelo sobre branco), que remetem para a primeira metade séc. XVII. As faianças identificadas são datáveis genericamente do séc. XVII e apresentam temas decorativos diversos, a saber: • Aranhões (motivos vegetalistas) executados com azul-cobalto e vinado; • Aranhões (motivos geométricos) com apontamentos decorativos de azul-cobalto;
• Decoração do tipo contas. Foram identificados dois tipos de azulejos: • Azulejo em barro vermelho com vidrado verde: 1ª metade do séc. XVII • Azulejos de padrão geométricos e vegetalistas policromáticos (azul e amarelo sobre branco): 1ª metade do séc. XVII. É ainda de salientar a presença de uma peça de jogo criada a partir de um fragmento de porcelana, e a presença de alguns objetos de adorno como botões de punho, um colchete e um alfinete de lenço de homem. Da cerâmica comum não há nada a destacar a não ser a presença de uma panela associada ao nível de utilização do compartimento A. A panela está praticamente inteira tendo-se conservado o seu conteúdo. 2.1.3. Análise interpretativa
A escavação revelou um arruamento calcetado com pedra basáltica com orientação NNE-SSW que cruza os edifícios 1 e 2. No limite norte do edifício 2 haveria uma outra rua para leste, identificada em intervenção anterior e parcialmente identificada nesta campanha apenas por baixo da fachada leste do edifício. Praticamente no limite sul da área de intervenção identificou-se um corte de pendente a ultrapassar por um degrau dando lugar a um espaço mais aberto, igualmente calcetado por pedras basálticas mas aqui de maiores dimensões.
Figura 4 – Peça de jogo.
Figura 5 – Panela recolhida no compartimento A.
352 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 6 - Arruamento.
A intervenção arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras”
Figura 7 - Localização da área de intervenção planta de João Nunes Tinoco (1650) (OLIVEIRA, 2012).
Figura 8 - Extrato da planta topográfica de Lisboa posterior a 1780 (OLIVEIRA, 2012).
Uma cidade em escavação
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Sofia de Melo Gomes, Mónica Ponce, Victor Filipe
Confrontando o registo arqueológico com a cartografia de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel (VIEIRA DA SILVA, 1900) que reconstitui o tecido urbano prépombalino e com a planta de Tinoco é possível perceber que os edifícios intervencionados se sobrepõem à antiga rua Arco do Caranguejo e que o edifício 2 se deverá sobrepor no seu limite norte à antiga Rua do Arco de D. Tereza (DGPC: Processo S-33825). A grande maioria das construções integra um primeiro momento construtivo (fase VI). Desta fase é possível perceber o alinhamento da Rua Arco do Caranguejo com alinhamento a oeste e a leste, fazendo esquina para leste, para a rua do Arco de D. Tereza. A análise integrada dos dois edifícios revela que a realidade identificada no edifício 1 está mais conservada, devendo-se estar perante os vestígios arqueológicos do que terá sido o primeiro piso destes edifícios enquanto que no edifício 2 já só se observa o piso térreo. Esta interpretação surge não só devido à diferença altimétrica existente entre os dois espaços mas também pela leitura da planta das estruturas, observando-se claramente uma continuidade (cf. Figura 1- planta) entre ambas. 2.2. Ocupação romana 2.2.1. Contextos
A fase I de ocupação identificada nas Pedras Negras está associada ao pavimento [134], do qual apenas se verificou um nível de argamassa muito fino. Este pavimento, cujas dimensões observadas são aproximadamente 8,5m
Figura 9 – Planta da Fase I.
354 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
(N-S) por 7m (E W), está destruído no limite sul e entra por debaixo da fachada leste do atual edifício. À mesma cota mas separado fisicamente por construções do período moderno, identificou-se o muro [150]. Com uma orientação NNW-SSE, apresenta um sistema de construção bastante sólido onde se destacam os monólitos facetados que ocupam toda a largura do muro. Por possuir uma orientação e sistema de construção completamente distintos das demais construções identificadas de época romana, considerou-se tratar de uma fase antiga, integrando a fase I. Os materiais que permitem datar esta fase foram recolhidos na [172], unidade removida parcialmente a sul. Do conjunto destacam-se dois fragmentos de drag.27, um de produção Andújar e outro de La Grafesenque, e ainda um fundo e uma asa de ânfora de tipo Lusitana Antiga. Estes materiais sugerem uma datação da primeira metade do século I d.C. Na fase II de utilização deste espaço o muro [150] e o pavimento [134] foram cortados para a construção do muro [53]. O tipo de aparelho deste muro sugere tratar-se de um muro com alguma relevância construtiva. Adossado a este identificou-se uma cloaca de grandes dimensões cujo sistema construtivo sugere pertencer ao mesmo momento de construção. Não se chegou a escavar a totalidade da cloaca por se ter atingido primeiro a cota de obra. O muro [53] e a cloaca prolongam-se para a Travessa do Almada, encontrando-se quase à superfície. Estas duas estruturas, com uma orientação NWWSEE, pelas suas características deverão estar associa-
A intervenção arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras”
Figura 10 – Planta da Fase II.
Figura 11 – Muro [53] e cloaca.
das ao limite sul das “Termas dos Cássios”. Atualmente considera-se poder tratar-se de um muro de contenção a quebrar o declive do terreno e cuja transposição daria acesso às termas. A escavação não forneceu dados que permitissem datar o momento de construção destas estruturas, devendo ser assumida uma cronologia anterior à fase III. Apesar de se avançar com a proposta de poderem estar associadas às termas, os contextos escavados e que adossam ao muro apresentam cronologias anteriores à renovação das Termas no século IV d.C. O muro [150] apesar de ter sido cortado foi reutilizado como limite de um espaço interior, do qual não se conhecem os limites. Na sua reutilização o muro é usado como base de parede em terra [156], estucada na face oeste [149]. Com a escavação foi possível observar restos do estuque in situ e de argamassa com negativos de materiais perecíveis. Os materiais provenientes da [156] sugerem uma datação post quem de meados do século I d. C. A fase III caracteriza-se por um abandono e degradação deste espaço. Este momento não pode ter tido uma longa duração visto se encontrar numa zona nobre da cidade. O derrube de parede [149] está documentado pela [143], unidade esta que ficou selada pela deposição da [132]. O abandono deste espaço está igualmente documentado pela presença do depósito [146/148] no espaço que se interpreta como interior sobre as [143], [157] e [149/156]. Os materiais datáveis da [132] apontam para um post quem Augusto-Tibério. Na mesma linha surgem os materiais recolhidos na [146/148]. Nesta unidade as
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terra sigillata são sobretudo itálicas datadas deste período. Os fragmentos de ânfora são provenientes da Baetica e são uma asa de Haltern e um arranque de asa de Dressel 20. É possível perceber que os materiais datantes das fases I, II e III são cronologicamente semelhantes, sendo maioritariamente terra sigillata itálica (Augusto-Tibério) e terra sigillata hispânica de Andujar (séculos I-II d.C.), surgindo de forma muito ocasional terra sigillata clara A, o que revela processos de remodelação num espaço temporal próximo. Um novo momento de utilização deste espaço (fase IVa) é marcado pela construção de vários muros de sistema ensonso, e cujo espólio sugere estar-se na presença de compartimentos utilitários. Estes muros surgiram parcialmente conservados junto à fachada oeste do edifício 2 e são limitados a leste pelo muro [125] (que se sobrepõe ao pavimento [134]) e encosta ao muro [53], apresentando uma orientação grosso modo NNE-SSW. O interior é dividido pelos muros [120], [121] e [128]. Para este momento de ocupação identificou-se o pavimento [145] que surge associado a um compartimento que existiria para sul do muro [128]. Os materiais cerâmicos recolhidos da estrutura do muro [125] possuem um hiato bastante vasto, entre a 2ª metade do século I a.C. a finais século I d.C./ III d.C. (terra sigillata clara A de forma indeterminada e ânfora Dressel 20). O capitel jónico recolhido do aparelho do muro [125] tem paralelo no elemento arquitetónico apresentado por
Figura 12 – Planta da Fase IVa.
356 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Lídia Fernandes (FERNANDES, 2009) e datado dos séculos III-IV d.C. Contudo, considera-se que no caso do elemento recolhido nas Pedras Negras a cronologia se aproxime mais do séc. III d.C. se considerarmos os restantes materiais. A determinado momento (fase IVb) o muro [128] foi removido e o espaço foi alteado com a deposição da [137] e que serviu de base ao pavimento [138]. Neste caso optou-se por um pavimento em lajes de pedra e em tijoleira. Nesta fase os materiais datantes são 4 fragmentos de ânfora provenientes da [137] e genericamente enquadráveis entre as últimas décadas do século I a.C. e o século III d.C.: 2 asas de Dressel 14 da Lusitânia, 1 bordo de Oberaden 83 e 1 arranque de asa de uma Dressel 20, ambas provenientes de Guadalquivir. À mesma cota do pavimento, mas separado deste pela destruição do piso, identificou-se um pequeno tanque em opus signinum de função indeterminada. Este tanque assenta sobre o alicerce do muro [128] e sobre a [142] que corresponde a uma bolsa. Imediatamente a norte do tanque o chão deveria ser em opus signinum [116] visto ter-se identificado a cotas muito próximas o resto de um pavimento e respetivo rodapé adossado ao muro [125]. Este pavimento também assentaria sobre a [142]. O tanque e o pavimento de opus signinum [116] podem ser datados a partir dos materiais obtidos na [142] que se destacam pela presença de t.s.c. D, apontando uma data mais tardia, já para finais do séc. IV d.C.
A intervenção arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras”
Figura 13 – Tanque.
Figura 12 – Planta da Fase IVb.
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O espaço confinado entre os muros [53], [120], [121] e [125] revelou um contexto em terra [119] que deverá ter funcionado como chão. Junto ao muro [121], mas já em claro contexto de destruição, foram identificados alguns nódulos de opus signinum, o que sugere que a dado momento este espaço teve um pavimento neste sistema construtivo. Este nível ocupacional é datável a partir das ânforas fraturadas in situ, junto ao muro [53], correspondendo estas às formas Keay LXXVIII e Almagro 51A-B, apontando assim para uma cronologia já entre os séculos III e V d.C. Durante o processo de construção (fase IVa), utilização e reconstrução (fase IVb) do espaço interior dos compartimentos, foi-se formando sobre o pavimento [134] um depósito, o [124], que se encostou aos muros [53] e [125]. A determinado momento da formação da [124] foi construído encostado ao muro [53] o embasamento [88]. Este embasamento à data da escavação apresentava-se como uma massa amorfa, surgindo apenas do lado oeste o que parecia ser o negativo de umas escadas, mas muito ténue. Correspondendo hipoteticamente à base de uma escadaria, esta teria como função transpor o muro [53] e a cloaca, e aceder ao espaço dedicado às termas. Dos materiais obtidos por baixo da [88] é a reter 1 fragmento de t.s.sg., Drag. 27 e um fragmento de ânfora lusitana Dressel 14. Após a construção deste embasamento a [124] continuou a formar-se. Os materiais datantes obtidos nesta unidade são sobretudo t.s.h. e t.s.i., que apontam para uma cronologia do séc. I-II d.C., sendo caso excecional 1 fragmento de t.s.c.C e outro de t.s.c.D que remetem para cronologias mais tardias. Dos 3 fragmentos de ânfora classificados, a Dressel 14 e a Dressel 20 apontam para o séc. I-III d.C. enquanto que a Almagro 51C (Lusitânia) se estende do séc. III d.C. ao séc. V. d.C. Os materiais obtidos na [124] remetem para uma cronologia mais antiga do que os recolhidos em contextos de construção e utilização de espaços interiores. À fase IV segue-se o abandono, a fase V, registada nas várias unidades estratigráficas em deposição secundária, quer dentro dos compartimentos como no espaço exterior de pátio. Estes depósitos revelaram uma grande quantidade de material não só romano mas também de cronologia islâmica.
Figura 15 – Coluna.
2.2.2. Materiais
Os materiais de cronologia romana são bastante diversificados, tendo-se recolhido elementos construtivos diversos (colunas, um capitel, mármore de revestimento e tesselas) e cerâmica vária (lucernas, paredes finas, terra sigillata, ânforas, peças de jogo, etc.). Do conjunto destacam-se os elementos arquitetónicos, a terra sigillata e o conjunto anfórico. Elementos arquitetónicos Dos elementos arquitetónicos identificados destacam-se duas peças específicas recolhidas de em contextos secundários: uma coluna e um capitel. A coluna foi reutilizada na base de um dos muros de cronologia moderna. Encontra-se inteira, apresentando como medidas 140 cm de altura por 60 cm / 64 cm de diâmetro máximo. Possui de forma octogonal. Uma das faces
358 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 16 – Capitel jónico.
Altura total
20 cm
Scanillus
34.5cm x 34.5cm
Altura scanillus
6cm
Largura visível Pulvinus
10,5 cm
Largura frontal Pulvinus
49cm
Largura lateral Pulvinus
52 cm
Diâmetro volutas
14 cm
Quadro 1 – Características do capitel. Dimensões.
A intervenção arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras”
laterais apresenta na base uma reentrância de encaixe com 10cm de largura por 22cm de altura. Este tipo de colunas era utilizado em hipocaustos termais de grandes espaços públicos (DEGBOMONT, 1984), pelo que se considera que esta peça pertenceria às Termas dos Cássios. O capitel jónico de coluna foi recolhido do miolo do muro [125], encontrando-se num excelente estado de
Figura 17 – Terra Sigillata Itálica.
Figura 18– Terra Sigillata Hispânica.
Figura 19 – Marca de oleiro, peça nº 96.
conservação. A parte superior da peça é ocupada por um scanillus. O balteus frontal é decorado por volutas simples. O equino possui um kyma decorado com três óvulos bastante acentuados e emoldurados, destacando-se o óvulo central por ser de dimensões superiores aos óvulos laterais. Esta peça apresenta na parte inferior um pequeno colarinho de ligação ao fuste. A lateral do pulvinus é decorada por folhas contrapostas que se dispõem a partir do centro. A matéria-prima é um calcário branco de tonalidade bege. Em Lisboa são conhecidos vários capitéis jónicos, sendo o elemento mais próximo o capitel recolhido na Rua de S. Mamede, diferenciando-se este pela ausência de roseta e de semipalmeta que decoram a voluta. O exemplar recolhido na Rua de S. Mamede é datado pela autora de uma cronologia tardia, apontando para os séculos III-IV d.C.
Terra Sigillata A terra sigillata identificada é maioritariamente de produção hispânica, havendo um número muito próximo de registos de terra sigillata itálica, de terra sigillata sudgálica e de terra sigillata clara. A análise às pastas apresentada baseia-se numa observação a olho nu, tendo-se recorrido à lupa binocular (Leica ZX6), com um aumento de 10x 1, apenas em alguns casos que suscitaram dúvidas. Os fragmentos de terra sigillata itálica foram recolhidos em 9 unidades estratigráficas, 6 das identificadas como contextos romanos. Destes contextos é de destacar a recolha de 20 fragmentos da [124] e 8 da [148], correspondendo a 50% do total identificado. Do total de 56 registos foi atribuído forma a 16 fragmentos e a 14 foi possível distinguir entre prato e taça. Os fragmentos de terra sigillata sudgálica totalizam 55 registos, dos quais apenas se identificaram forma a 18 e a 12 foi possível distinguir entre prato e taça. Os fragmentos foram recolhidos sobretudo em contextos pós-romanos. Nas unidades associadas ao período romano os fragmentos escasseiam, nunca ultrapassando os 2 exemplares por unidade. A produção é de fabrico La Grafessenque, tendo-se identificado unicamente um fragmento originário de Montans (nº318, [132]). Foram recolhidas 2 marcas de oleiro: uma em fundo de taça e outra em fundo prato. A marca de oleiro identificada no fundo do fragmento de taça nº96, e recolhida na [90], pertence a BASSVS, considerado o principal exportador ruteno pré-flaviano (SILVA,2012, p. 291). A marca recolhida está completa podendo-se ler OF BASSI. Em Lisboa é conhecido um segundo exemplar na Sé. Esta olaria terá iniciado a produção em 45 d.C., com uma produção predominantemente Cláudio-Nero e terminando a 70 d.C. A segunda marca de oleiro, com o registo nº206, foi recolhida na [118]. A marca está incompleta, sendo possível ler (..)SENT. A terra sigillata hispânica é de todos os grupos o mais representativo com 86 fragmentos, dos quais 33 com forma atribuída. Do conjunto apenas 28% provém de contextos romanos. Em relação aos centros produtores, estão representados os dois principais centros: Andújar e Tritium Magallum, com claro predomínio do segundo com 62%.
Uma cidade em escavação
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Sofia de Melo Gomes, Mónica Ponce, Victor Filipe
A diferenciação entre os dois centros produtores suscitou dúvidas em vários fragmentos, sobretudo naqueles com uma pasta mais depurada, tendo-se considerado, nestes casos, a identificação pela forma dos vácuos da pasta, atribuindo-se a Andújar as pastas que apresentavam os vácuos alongados. Em alguns fragmentos não foi possível distinguir as produções ficando classificado como indeterminado. As cerâmicas de terra sigillata clara estão bem representadas nas Pedras Negras, com um claro predomínio do fabrico da terra sigillata clara A com mais de 50% das ocorrências. Quanto à sua distribuição pelas unidades estratigráficas nota-se um claro predomínio de presenças na [142], integrada na fase ocupacional IVb. Ânforas A amostra que aqui se analisa é composta por todos os fragmentos de bordo, asa e fundo de ânfora recuperados na intervenção de 2013 na Rua das Pedras Negras, incluindo aqueles que provêm de contextos estratigráficos
Figura 20 – Terra Sigillata Clara.
Quadro 2 – Quantificação global das ânforas da Rua das Pedras Negras.
360 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
A intervenção arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras”
de Época Moderna. Trata-se de um conjunto relativamente pequeno e de reduzida fiabilidade estatística, composto por um total de 54 fragmentos que corresponde a um Número Mínimo de 35 Indivíduos (NMI): 9 bordos, 14 fundos e 31 asas. Contudo, é um conjunto relativamente diversificado no que se refere às tipologias e às regiões de proveniência, com algumas particularidades quantitativas pouco habituais, que testemunha um arco cronológico que se estende do séc. II a.C. até ao séc. V-VI d.C.. As ânforas atribuíveis ao Alto-Império correspondem a 63% da amostra, sendo a fase cronológica melhor representada. Estratigraficamente, esse espaço temporal está cristalizado nas fases I, II e III, definidas com base nas evidências arqueológicas documentadas durante a escavação (cf. ponto 2.2.1 deste artigo). À Antiguidade Tardia correspondem 23% (fases IVa e IVb) e à fase republicana apenas 6%, sendo que 9% dos contentores anfóricos são de tipo e de cronologia indeterminados. As ânforas republicanas, meramente residuais, resumem-se a um bordo de Greco-Itálica proveniente da costa tirrénica da Península Itálica e a uma asa de T-7.4.3.3., produzida na costa meridional da Ulterior. Estas formas, frequentes nos pacotes artefatuais republicanos do último terço do século II a.C. em Olisipo, testemunham a importação do vinho itálico e dos preparados de peixe da Baía Gaditana nas fases mais precoces da presença romana no extremo ocidental peninsular. Já no que diz respeito ao Alto-Império, e como anteriormente se referiu, a amostra é bem mais expressiva, ainda que quantitativamente pouco representativa. Particularmente intrigante é a presença maioritária das ânforas
béticas (47,6%) face às produções lusitanas (38,1%), tão inusual quanto difícil de explicar, uma vez que o que habitualmente se observa na cidade de Olisipo, aproximadamente a partir de meados do século I d.C., é uma constante supremacia das produções lusitanas, normalmente com valores acima dos 50% (BUGALHÃO, 2001; SABROSA e BUGALHÃO, 2004; FILIPE, 2008; DIAS et al., 2012; ALMEIDA e FILIPE, 2013; FILIPE, 2015; SILVA, 2015; FILIPE et al., no prelo). A residualidade de grande parte destes materiais, no que se refere à sua proveniência estratigráfica, não explica totalmente esta estranha preponderância das ânforas béticas, sendo particularmente de sublinhar a fraca expressão da Dressel 14 e da Lusitana 3 que correspondem às duas tipologias lusitanas mais difundidas entre a segunda metade do século I e o II d.C. e recorrentemente maioritárias nos conjuntos anfóricos. As produções da Gália, Península Itálica e Mediterrâneo Oriental (todas com 4,8%) são minoritárias, sendo relativamente expectáveis os valores percentuais que apresentam. Sublinhe-se a ausência de produções do Norte de África e da província hispânica da Tarraconense. Quanto ao conteúdo das ânforas alto-imperiais da Rua das Pedras Negras, verifica-se uma maior representatividade dos contentores piscícolas (42,9%), seguido dos vinícolas (33,3%) e dos oleícolas (23,8%). O consumo dos preparados de peixe lusitanos, representado pelos modelos anfóricos mais precoces e pela Dressel 14, apresenta valores significativamente mais altos (67%) que os da Bética (33%), aqui testemunhados pelas Dressel 7-11 e pelas Beltrán IIB. A hegemonia dos preparados de peixe lusitanos encontra explicação
Figura 21 – Regiões produtoras, conteúdos e proveniência das ânforas vinárias alto-imperiais.
Uma cidade em escavação
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Sofia de Melo Gomes, Mónica Ponce, Victor Filipe
Quadro 3 – Quantificação das ânforas do Alto-Império.
na vigorosa indústria piscícola existente nesta província, sendo as importações, neste conjunto, exclusivamente representadas pelos produtos da costa bética. O quadro da geografia de proveniência das ânforas destinadas a transportar vinho é bem mais diversificado e equilibrado, observando-se cinco regiões produtoras distintas. O vinho consumido era maioritariamente proveniente da Lusitânia (28,6%) e da Bética (28,6%), respetivamente transportado em ânforas de tipo Lusitana 3 e Haltern 70. Em proporções similares, com 14,3% cada, temos o vinho da Gália, de Itália e do Mediterrâneo Oriental, envasado nas típicas Gauloise 4 e Dressel 2-4 itálicas e orientais. Apesar da relativa expressividade dos valores percentuais, convém manter bem presente que se trata de quantidades muito pouco expressivas, correspondendo os 28,6% da Lusitana 3 e Haltern 70 apenas a dois indivíduos de cada.
À semelhança do que se havia já observado em idêntico período na Praça da Figueira (Almeida, Filipe, 2013), o azeite consumido era exclusivamente importado da província Bética em ânforas de tipo Oberaden 83/Ovóide 7 e Dressel 20, produzidas no Vale do Guadalquivir. Sublinhe-se a presença de uma marca de oleiro sobre a asa de uma Dressel 20 Júlio-Cláudia, para a qual não encontrámos paralelo. Trata-se de uma marca de difícil leitura com as primeiras letras mal conservadas, aparentemente inédita, apresentando diversos nexos: Q.S^E.EV^P^SH^E^I (palma?) (entretanto publicada em Fabião et alii, 2016). Quanto às ânforas atribuíveis à Antiguidade Tardia, com escasso valor estatístico, foram reconhecidos apenas oito indivíduos, provenientes da Lusitânia (62,5%) e da Bética (costa oriental bética 12,5% e vale do Guadalquivir 25%). As produções lusitanas, exclusivamente piscícolas,
Quadro 4 – Quantificação das ânforas da Antiguidade Tardia.
362 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
A intervenção arqueológica no âmbito do Projecto de Arquitectura “Apartamentos Pedras Negras”
Figura 22 – Lusitânia, vales do Tejo/Sado: Lusitana Antiga (20), Dressel 14 (24); Bética, Vale do Guadalquivir: Haltern 70 (19 e 52), Oberaden 83/Ovóide 7 (26), Dressel 20 Júlio-Cláudia (45 e 54, com marca), Dressel 20 Flávio-Trajana (6), Dressel 20 Antoninina (1); Bética, costa ocidental: Dressel 7-11 (50), Beltrán IIB (34 e 36) ) e imitação de modelo norte-africano (?) (3);; Gália, Narbonense: Gauloise 4 (18) e tipo indeterminado (53); Península Itálica, costa tirrénica: Greco-Itálica (7), Dressel 2-4 (17); tipo e procedência indeterminados (22 e 53); indeterminado (3).
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são representadas por dois exemplares de Almagro 51C e dois de Keay LXXVIII (25% cada) e um de Almagro 51A-B (12,5%), notando-se a ausência das Almagro 50, Keay XVI e Lusitana 9. Relativamente às béticas, observase a presença da Keay XIX (12,5%), piscícola, da Dressel 20 do século III (12,5%) e da Dressel 23 (12,5%), oleícolas. No global, as ânforas piscícolas representam 75% e as oleícolas 25%, sendo estas últimas exclusivamente importadas da Bética. É particularmente destacável o facto de estarem ausentes as produções norte africanas (que, eventualmente, poderão estar representadas de forma minoritária por um fragmento de asa de tipo e cronologia indeterminados), tão comuns nesta fase mais tardia, bem como as do Mediterrâneo Oriental. A total ausência de ânforas vinárias nesta amostra poderá não ser totalmente imputável a fatores casuísticos, uma vez que no conjunto de ânforas tardias da intervenção de Irisalva Moita na Praça da Figueira se verificou uma diminuição no consumo de vinho relativamente à fase Alto-Imperial (ALMEIDA, FILIPE, 2013). 3. Leitura interpretativa dos contextos romanos Os dados obtidos com a presente intervenção sugerem que se intervencionou a área de acesso às termas. A fase I (muro [150] e pavimento [134]) será anterior à renovação das termas, no entanto o tipo de construção presente no muro [150] não tem paralelo com nenhuma das estruturas identificadas na intervenção das termas (SILVA, 2012, pp. 210-211), sendo assim atribuída a um período mais antigo. O muro [53] (fase II) deverá corresponder ao limite sul das termas, cortando a pendente que daria para um espaço amplo e aberto. Adossado ao muro corre a cloaca que apresenta uma direção transversal à identificada nas termas dos Cássios (que terá uma orientação NE-SW), pelo que as duas cloacas deverão intercetar onde hoje se ergue o nº43 da Rua das Pedras Negras. A cloaca acompanha a pendente do terreno para leste, possivelmente direcionando-se para a grande cloaca existente no largo de Santo António (ALARCÃO, 1994, p. 58). A construção do muro de contenção e da cloaca realizou-se num momento anterior ao reaproveitamento do muro [150], onde os materiais recolhidos das [156] e [149] apontam para uma datação dos séculos I-II d.C. Neste sentido, a presença destas estruturas sugerem a existência de um outro espaço público anterior às Termas dos Cássios. No limite oeste deste espaço aberto, que se estende para sul (grosso modo) do muro [53], foram identificados segmentos de espaços cujos materiais sugerem uma cronologia do séc. I-II d.C. Contudo, com as remodelações posteriores não é possível proceder a uma leitura precisa quanto à sua funcionalidade. A remodelação deste espaço compartimentado deverá ter acontecido entre finais do séc. I e o séc. III d.C. O hiato cronológico resulta do facto dos materiais recolhidos do sistema construtivo dos muros apontarem para os séculos I-II (abundância de terra sigillata hispânica) e séculos I-III (terra sigillata clara A), no entanto no muro limítrofe a leste ([125]) foi recolhido um capitel cujo paralelo surge datado de finais do século III, inícios do IV.
364 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Numa leitura muito linear dos dados formulam-se duas hipóteses: ou os materiais cerâmicos utilizados remontam a um período já no limite da sua produção (t.s.c.A) e a um período pós-produção (no caso da t.s.h.) ou o capitel deverá remontar a um período mais antigo do que atualmente proposto. Da mesma época será o embasamento adossado ao muro [53] e que deverá corresponder a uma escadaria de acesso ao espaço termal. A análise conjunta dos materiais recolhidos sob a [88] sugerem uma cronologia do séc. I-II d. C. A última remodelação deste espaço terá ocorrido já num período mais tardio, a partir do séc. V, datação esta obtida a partir de um conjunto de terra sigillata clara D recolhida numa bolsa sob um tanque de opus signinum. Concluindo, a realidade intervencionada corresponde a diferentes momentos construtivos mas que remetem, grosso modo, para os séc. I-II d.C. Ou seja, os materiais identificados nas várias fases são muito homogéneos sendo possível perceber uma evolução cronológica ao longo das várias fases mas muito concentradas no séc. I-II d.C. O grande salto cronológico dá-se no último momento de remodelação (fase IVb) onde há um predomínio de terra sigillata clara D, remetendo já para finais do séc. IV e o momento de abandono (fase V) cujos materiais tardios remontam a uma época tardo-romana/ alto-medieval.
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Uma cidade em escavação
365
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
O século XVI foi uma época de reforma do espaço urbano lisboeta, através da construção de edifícios de grandes dimensões, aptos a apoiar as mais variadas actividades do comércio ultramarino e a enobrecer o poder real. Estas obras espelharam a importância da ligação da cidade ao rio, deslocando o centro político e económico da capital para o espaço ribeirinho. Ao mesmo tempo assistiu-se a um importante aumento da construção de espaços habitacionais aristocráticos, nesta nova área de poder, entre os quais a Casa dos Bicos. Entre 1981/1982, a Casa dos Bicos foi alvo de intervenções arqueológicas com o objectivo de adaptar o edifício a um dos cinco núcleos da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura. Neste âmbito foi recuperado um número significativo de artefactos colocando-se a descoberto uma parcela do piso original da sala central da loja da casa quinhentista, vestígios do alçado traseiro, para além das demais fachadas da loja e sobreloja, que haviam resistido ao terramoto de 1755. Estas escavações foram aprofundadas em 2010, numa nova fase de trabalhos arqueológicos para albergar a Fundação José Saramago. Com a presente comunicação e através da revisão dos dados da escavação, da análise de fontes escritas e do estudo dos materiais, procuraremos dar um primeiro contributo ao estudo da organização funcional e espacial da Casa, integrando a cultura material no seu espaço vivencial. PALAVRAS-CHAVE:
Lisboa, Casa dos Bicos, arquitectura, cultura material, Idade Moderna.
ABSTRACT:
The 16th century was a period of reforms in Lisbon’s urban space which materialized in the construction of buildings of great dimensions, able to support the different activities associated with the overseas trade and value the royal power. These buildings reflected the importance of connecting the city to the river, relocating the political and economic Lisbon centre to the riverfront area. At the same time there was a significant increase in the construction of aristocratic residences, including the Casa dos Bicos. Between 1981/1982, the Casa dos Bicos was excavated to adapt the building into one of the five exhibition centres of the XVII European Exhibition of Art Science and Culture. An important number of artefacts were recovered, and a portion of the original floor of the central room of the store of the 16th century house was uncovered as were other fronts of the store and mezzanine floor, which survived the 1755 earthquake. Once again, in 2010, new excavations were made in order to house the José Saramago Foundation. With this paper, and through the review of the excavation data, the analysis of written sources and the study of the artefacts, we intent to make a preliminary contribution to the study of the house functional and spatial organization, integrating the material culture in its living space. Key words:
Lisbon, Casa dos Bicos, architecture, material culture, early-modern period.
Casa dos Bicos. Aspecto do compartimento estudado (Fotografia de Clementino Amaro)
3.11 Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos: a cultura material de uma lixeira da primeira metade do século XVIII
Inês Pinto Coelho
Bolseira de doutoramento FCT, CHAM-FCSH/NOVA|UAc inesalexandrapinto@gmail.com
Tiago Silva
CHAM-FCSH/NOVA|UAc toiago@gmail.com
André Teixeira
DH/FCSH/NOVA, CHAM-FCSH/NOVA|UAc texa@fcsh.unl.pt
1. Introdução O presente trabalho integra-se no âmbito de um projecto de doutoramento (IPC), intitulado “A Casa dos Bicos: estudo arqueológico de um espaço palaciano e quotidiano na Lisboa ribeirinha (séculos XVI–XVIII)”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Através do estudo dos contextos da Idade Moderna provenientes de intervenções arqueológicas realizadas na Casa dos Bicos (CNS 274) procurar-se-á compreender o quotidiano dos que ali residiram naquela época, através da análise dos espaços e hábitos de consumo, comparando-os com outros contextos coevos. Pretende-se integrar a Casa no urbanismo de Lisboa, de então, interpretar a sua arquitectura e espaço social, assim como compreender de que forma a cultura material poderá expressar o modo de vida dos seus habitantes. No século XVI Lisboa tornou-se uma das mais movimentadas cidades da Europa, devido ao aumento do volume de mercadorias que aí aportavam provenientes de todo o mundo através das novas rotas oceânicas. Aquela época foi marcada pela reforma do espaço urbano, construindo-se igualmente edifícios de grandes dimensões e esplendor arquitectónico, destinados a controlar as mais variadas actividades do comércio e a enobrecer o poder real. As transformações implicaram uma maior aproximação da cidade face ao rio, deslocando o centro político e económico da capital para o espaço ribeirinho, onde foi construído o Paço da Ribeira. Paralelamente, assistiu-se a um importante surto de edificação de espaços habitacionais aristocráticos, nomeadamente na frente ribeirinha (CARITA, 1999, p. 193), destacando-se a Casa dos Bicos, um edifício ímpar no contexto urbano português, mandado construir pela linhagem Albuquerque no início do século XVI (CARITA, 2015, p. 89). Ainda hoje a Casa se destaca na paisagem da antiga frente ribeirinha de Lis-
boa (Fig. 1), sendo um dos escassos vestígios de edifícios habitacionais que permaneceram da cidade quinhentista. Desde sempre a Casa dos Bicos foi citada por inúmeros autores, surgindo nas mais antigas representações da cidade (Fig. 2). Em todas é visível a originalidade da sua fachada voltada para o rio Tejo, completamente distinta do restante casario da época. A originalidade provirá de influência italiana, apreendida durante a viagem que Brás de Albuquerque efectuou em 1521, quando integrou a armada que acompanhou a Infanta D. Beatriz (1504-1538), filha de D. Manuel I e de D. Maria (1428-1571), aquando do seu casamento com Carlos III, duque da Sabóia (Miranda, 2002, p. 29). Assinale-se a necessidade de compensar a exiguidade do espaço onde se encontrava implantada, no declive da colina, face à sua função de residência aristocrática (CARITA, CONCEIÇÃO, PIMENTEL, 1983, p. 9). Apesar do mau estado de preservação, o edifício foi classificado como Monumento Nacional em Junho de 1910 e, por volta de 1955, foi adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa. Entre 1981-1982 foi alvo de um programa de recuperação, com o objectivo de adaptação a um dos cinco núcleos da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura, dedicado à temática “A Dinastia de Avis e as suas Relações com a Europa”. Neste âmbito foram realizadas intervenções arqueológicas, sob a direcção de Clementino Amaro, recuperando-se um conjunto significativo de artefactos, colocando-se a descoberto estruturas de época romana, parte da Cerca Moura (cerca de 9 metros da muralha) e, sobretudo, uma parcela do piso original da sala central da Casa quinhentista, vestígios da fachada traseira, da loja e sobreloja (AMARO, 2002, pp. 11; 19-26). Mais tarde, a Casa dos Bicos passou a ser a sede da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, vindo os dois pisos superiores a albergar a Fundação José Saramago a partir de 2008, ficando o piso térreo dedicado a um núcleo arqueológico
Uma cidade em escavação
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Inês Pinto Coelho, Tiago Silva, André Teixeira
Figura 1 – Localização da Casa dos Bicos. Pormenor da Planta Topográfica de Lisboa que inclui a área abrangida pela Cerca Moura (o traçado a preto corresponde à actualidade e a vermelho à época do Terramoto de 1755) (Silva, 1987, estampa III).
Figura 2 – 1: Detalhe da Vista panorâmica da cidade de Lisboa (c. 1540-1550), atribuída a Duarte D’Armas, Biblioteca da Universidade de Leiden; 2: Pormenor da Vista de Lisboa do Castelo de Weilburg, Alemanha (autor desconhecido; representa a recepção a Felipe II, III de Espanha, na sua primeira visita a Portugal, em 1619); 3: Pormenor do Ex-Voto Nossa Senhora de Porto Seguro Roga a seu Precioso Filho por esta Cidade e sua Navegação de Lisboa (da autoria de Domingos Vieira Serrão, 1570-1632 e Simão Rodrigues, c. 1560-1629), Igreja de São Luís dos Franceses (c. 1620); 4: Detalhe do painel de azulejos (séculos XVII-XVIII, antes do Terramoto de 1755) com a representação do Mercado da Ribeira Velha, Museu da Cidade (actual Museu de Lisboa); 5: Pormenor da Grande vista de Lisboa (da autoria de Gabriel del Barco, c.1700), Museu Nacional do Azulejo.
368 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos
integrado no Centro Interpretativo das Muralhas da Cidade. Este inclui os vestígios colocados a descoberto na década de 1980, mas também aqueles que foram revelados por uma nova fase de trabalhos arqueológicos, que decorreu em 2010, sob a direcção de Manuela Leitão e Vítor Filipe. No presente artigo damos a conhecer o conjunto de materiais arqueológicos recuperados numa das estruturas identificadas aquando das escavações arqueológicas de 1981-82, a denominada Sala E/Compartimento, um dos contextos que revelou maior diversidade de materiais, procurando assim uma primeira aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos na Idade Moderna. 2. O contexto arqueológico
Figura 3 – Planta da Casa dos Bicos com um pormenor do contexto em análise assinalado (Sala E/Compartimento), adaptada de Amaro, 2002, p. 22.
Figura 4 – Aspecto do compartimento estudado (Fotografia cedida por Clementino Amaro).
Na década de 1980, o programa de recuperação do edifício originou uma profunda alteração do espaço interior e exterior da Casa, através da reposição dos dois andares superiores, que ruíram com o Terramoto de 1755, e da desmontagem de grande parte das estruturas arqueológicas, assim como da escadaria central (AMARO, 2002, p. 12). As intervenções arqueológicas desta época deram a conhecer várias fases de ocupação e transformação desta área da frente ribeirinha. Ao nível da fachada sul (loja, piso térreo), portanto virada ao rio, foram intervencionados três grandes espaços (denominados na documentação de campo como Salas A, B e C); ao nível da fachada norte, por onde seria a entrada nobre do edifício (sobreloja, piso superior), com acesso pela Rua Afonso de Albuquerque (CARITA, CONCEIÇÃO, PIMENTEL, 1983, p. 27), foram escavadas duas outras áreas (denominadas na mesma documentação por Salas D e E) (Fig. 3). Junto a um destes espaços superiores – Sala E, que corresponderia à área do pátio quinhentista – foi identificado um compartimento de feição rectangular, com cerca de 1,25 metros de largura por 2 metros de comprimento (Fig. 4) (denominada aquando da sua descoberta em 1982 como Sala E/Compartimento) (Fig. 3). Esta estrutura estava coberta por uma laje trabalhada e, no interior dela, encontrava-se um conjunto significativo de materiais dispostos de forma desordenada – cerâmica comum, faiança, porcelana, vidros, assim como restos alimentares, nomeadamente escamas de peixe (AMARO, 2002, p. 26). De acordo com a análise da documentação de campo, este compartimento terá sido desactivado antes do Terramoto de 1755. A reconstituição, definição e interpretação da estratigrafia deste contexto Sala E/Compartimento foi procurada através das datas de escavação e respectiva recolha de materiais, inscritas na documentação de campo e na referenciação do espólio. Deste modo, apresentam-se aqui todos os materiais recolhidos em Abril de 1982, mês em que decorreu a intervenção naquele contexto, nomeadamente uma vasta colecção de cálices1, garrafas e outros objectos em vidro, cerâmica comum, faiança e porcelana. O conjunto estudado é constituído pela totalidade dos fragmen1 Os cálices de vidro foram já estudados no âmbito da dissertação de mestrado da autoria de Maria Francisca Pulido Valente, apresentada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (VALENTE, 2013).
Uma cidade em escavação
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Inês Pinto Coelho, Tiago Silva, André Teixeira
visto que uma boa parte do espólio não era passível de classificação tipológica e funcional. Assume particular importância a loiça de cozinha, com 62 % dos exemplares, seguindo-se a loiça de mesa com 21% e a loiça de transporte e armazenamento com 13%, considerandose uma categoria de outros recipientes (onde se incluem servidores e candeias), com 4% (Fig. 6). Do ponto de vista tipológico foram identificados 14 tipos distintos, de acordo com os fabricos/produções identificados. A cerâmica comum inclui recipientes como panelas, frigideiras, testos, tachos, pratos, tigelas, púcaros, cântaros, infusas, prováveis cantis, servidores e candeias, abarcando portanto um vasto leque funcional. A cerâmica brunida apresenta recipientes como panelas, pratos, púcaros e alguidares. Já a cerâmica vidrada surge apenas sob a forma de alguidares. A faiança compreende essencialmente louça de mesa, pratos e tigelas, mas também servidores. Por fim, a porcelana está apenas representada por uma tigela.
tos exumados nas camadas que preenchiam o interior da estrutura. Para a classificação dos materiais tivemos em consideração critérios morfológicos, tipológicos e decorativos, bem como a contagem do número de fragmentos e o cálculo do Número Mínimo de Indivíduos (NMI). 3. O espólio cerâmico O estudo compreendeu um total de 1846 fragmentos cerâmicos (tabela 1), verificando-se que o conjunto é maioritariamente composto por exemplares de cerâmica comum (onde também se inserem a cerâmica brunida e incisa) (84%), destacando-se também um conjunto significativo de faiança (15%). Menos expressivas são os grupos da cerâmica vidrada (1%), sendo residual a presença de porcelana (Fig. 5). De entre os fragmentos acima referidos foi apenas possível reconhecer um número mínimo de 53 objectos,
Comum
Brunida
Bordos
226
27
Fundos
51
1
Asas
50
Paredes
1171
Perfil completo
1
TOTAL
1499
Incisa
Vidrada
Cerâmica esmaltada a branco
2
Faiança branca
Faiança azul
Faiança azul e manganês
Porcelana
Total
3
1
297
6
32
15
7
83
110
8
1416
2
1
5
9
106
150
16
74 50
19
47
5
5
16
18
4
4
1
Tabela 1 – Tabela de distribuição tipológica do conjunto cerâmico em estudo.
Figura 5 – Análise estatística por produções.
Figura 6 – Análise estatística por funcionalidade.
370 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
1846
Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos
3.1. Cerâmica comum
Nesta categoria encontram-se incluídas a cerâmica comum, sem maior tratamento das superfícies que o engobe ou o simples alisamento, a cerâmica brunida, a cerâmica incisa e a cerâmica vidrada – estas três últimas categorias identificadas em materiais que se encontram muito degradados e, nalguns casos, em fragmentos muito rolados. Todas estas cerâmicas foram fabricadas com pastas idênticas, onde predominam as tonalidades de vermelho-alaranjado e acastanhado. Normalmente a superfície externa é da cor da pasta e a superfície interna de algumas formas – nomeadamente pratos e alguidares – apresenta um engobe com a mesma tonalidade vermelha-alaranjada ou acastanhada. Nalguns casos as pastas têm uma dupla tonalidade, apresentando o núcleo cinzento, denunciando cozedura em ambiente redutor e pós-cozedura oxidante. Surgem também algumas peças com manchas de tom negro, sobretudo na superfície externa, possivelmente pelo contacto com o fogo em contexto de utilização, ou decorrente de fenómenos pósdeposicionais. Ao nível da composição das pastas observa-se macroscopicamente o quartzo, a mica e, por vezes, feldspatos que variam entre o grão fino e médio. No que respeita à funcionalidade da cerâmica comum – onde se incluem os escassos exemplares de cerâmica brunida e vidrada –, a loiça de cozinha (panelas, frigideiras, testos, tachos e alguidares) representa cerca de 62% dos exemplares. Entre todas destaquem-se as panelas (Fig. 7.2-3), que por si só correspondem a 30% dos exemplares. São recipientes com bordos extrovertidos, demarcados no exterior, aplanados superiormente e com lábios de perfil subquadrangular, subrectangular ou semicircular, ostentando por vezes caneluras, tanto na face interior como na exterior. Os exemplares mais completos mostram corpo de feição globular e duas asas simétricas, que se desenvolvem a partir do bordo até à zona mesial das peças. Os diâmetros dos bordos variam entre 100-200 mm. Estes recipientes destinar-se-iam à confecção dos alimentos e surgem, com notáveis afinidades formais, em inúmeros contextos datados dos séculos XV-XVI em Lisboa (MARQUES, LEITÃO, BOTELHO, 2012, p. 127), previvendo porém mais de dois séculos. As frigideiras (Fig. 7.4) representam 13% dos exemplares e, à semelhança das panelas, eram utilizadas ao lume para a confecção dos alimentos. Os exemplares em estudo apresentam bordos extrovertidos, por vezes demarcados exteriormente, com lábios de perfil semicircular e duas asas de feição triangular. Os diâmetros dos bordos variam entre 138-170 mm. Encontram-se peças semelhantes na área urbana de Lisboa, em contextos dos séculos XV-XVI, nomeadamente na Rua do Benformoso (MARQUES, LEITÃO, BOTELHO, 2012, p. 127) e de meados do século XVIII, em particular na Rua dos Correeiros (Trindade, Diogo, 2003b, pp. 291,293), mostrando mais uma vez ampla diacronia de utilização com um mesmo perfil formal. Na região envolvente de Lisboa destaquem-se os contextos de Palmela dos séculos XVIIXVIII (FERNANDES, CARVALHO, 1998, pp. 238-239; FERNANDES, CARVALHO, 2003, p. 243). Surgem ainda testos (Fig. 7.1), com 9% dos exemplares. Estes serviriam para cobrir os recipientes que iam
ao lume, proporcionando uma melhor confecção dos alimentos (situação comprovada pelos vestígios de contacto com o fogo exibidos por parte das peças), mas também para tapar vasilhas que armazenavam líquidos e sólidos. De um modo geral, os testos têm forma tendencialmente plana, ostentando pegas em botão. Os diâmetros dos bordos rondam os 130 mm e os da base os 45 mm. Podem encontrar-se exemplares semelhantes em inúmeros contextos dos séculos XVII-XVIII em Lisboa e arredores, nomeadamente no Martim Moniz e Hospital Real de Todos-os-Santos (SILVA, GUINOTE, 1998, pp. 138-139) e em Palmela (FERNANDES, CARVALHO, 1998, p. 250; FERNANDES, CARVALHO, 2003, p. 248). Os tachos (Fig. 7.5) representam 6% dos exemplares. São recipientes com bordos introvertidos demarcados interior e exteriormente, por vezes de lábios com ressalto eventualmente adaptáveis a tampa. Têm duas pegas triangulares simétricas, que se desenvolvem no sentido horizontal na zona do colo. Alguns exemplares têm a superfície externa brunida, assim como vestígios de enegrecimento pelo contacto com o fogo. Os diâmetros dos bordos variam entre 168-187 mm e os da base rondam os 90 mm. Peças semelhantes encontram-se em contextos de Lisboa datados desde o século XVI a meados do século XVIII, nomeadamente no Hospital Real de Todos-os-Santos (SILVA, GUINOTE, 1998, pp. 168169) na Calçada de S. Lourenço (TRINDADE, DIOGO, 2003, p. 213) e na Rua dos Correeiros (TRINDADE, DIOGO, 2003b, p. 293). Entre o conjunto surgem ainda alguns fragmentos de alguidares (Fig. 7.6), com cerca de 4 % do total, recipientes utilizados sobretudo na preparação de alimentos. Apresentam bordos extrovertidos pendentes, com lábios de perfil semicircular, paredes troncocónicas e bases planas. Os diâmetros dos bordos rondam os 380 mm. Estes exemplares encontram paralelo em sítios datados dos séculos XV-XVI, como a Rua do Benformoso (MARQUES, LEITÃO, BOTELHO, 2012, p. 127), mas também do século XVIII, como a Rua dos Correeiros (TRINDADE, DIOGO, 2003b, p. 293). Um dos exemplares, em muito mau estado de conservação, apresenta o interior vidrado a verde, seguindo uma tipologia bem representada em contextos da Idade Moderna. Entre a cerâmica comum surgem ainda alguns exemplares de loiça de mesa (21% do total), destinada à apresentação e consumo de alimentos. Deste grupo destacamse os pratos (7%), as tigelas (7%) e os púcaros (7%). Os pratos (Fig. 8.1) teriam uma função de consumo individualizado dos alimentos sólidos e de preparação de ingredientes destinados à confecção de refeições. Têm bordos extrovertidos demarcados exteriormente, com lábios de secção semicircular. Algumas peças apresentam notória diferença, sobretudo em relação ao tratamento das superfícies, que são brunidas; alguns exemplares têm vestígios de enegrecimento, decorrente da eventual utilização como testos, ou do contacto pós-deposicional com o fogo. Os diâmetros dos bordos rondam os 220 mm. Estes materiais remetem-nos para contextos urbanos de Lisboa, como o Castelo de S. Jorge e a Rua do Benformoso, ambos com uma cronologia de finais do século XVI e inícios do século XVII (GASPAR, GOMES, 2012, p. 721; MARQUES, LEITÃO, BOTELHO, 2012, p. 127), a Rua dos
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Inês Pinto Coelho, Tiago Silva, André Teixeira
Correeiros, em contextos dos séculos XVI-XVIII (DIOGO, TRINDADE, 2000, p. 211), ou um contexto habitacional do século XVIII do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, NARC (COELHO, BUGALHÃO, 2015, p. 40). Seguem um protótipo fabricado na olaria da Mata da Machada, no Barreiro (TORRES, 2005, p. 16), sendo idênticos também a exemplares de Palmela (FERNANDES, CARVALHO, 1998, p. 244). À loiça de mesa terão ainda pertencido as tigelas (Fig. 8.2), destinadas a uso individual à mesa, que apresentam bordos ligeiramente introvertidos ou extroverti-
dos, demarcados interior e exteriormente e com lábio de secção semicircular. Os diâmetros dos bordos rondam os 140 mm. Peças semelhantes foram recuperadas em Lisboa, em particular na Rua dos Correeiros, num contexto de entulho posterior ao terramoto de 1755 (TRINDADE, DIOGO, 2003b, p. 292), na Calçada de São Lourenço (DIOGO, TRINDADE, 2003a, p. 212) e no NARC, numa habitação do século XVIII (COELHO, BUGALHÃO, 2015, p. 40). Formas idênticas foram também recolhidas nos já referidos contextos de Palmela (FERNANDES, CARVALHO, 2003, p. 246).
Figura 7 – Loiça de cozinha; cerâmica comum: 1. Testo; 2-3. Panela; 4. Frigideira; 5. Tacho; 6. Alguidar.
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Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos
Já os púcaros (Fig. 8.3), destinados ao consumo individual de líquidos, podiam também ser utilizados na confecção de alimentos. Eram tendencialmente de pequenas dimensões e alguns exemplares apresentam superfícies brunidas. Os diâmetros dos bordos rondam os 80 mm. Estas formas prolongam-se no tempo, desde finais do século XVI até ao século XVIII (CARREIRA, 2005, pp. 38-39). Reconhecem-se paralelos para os materiais estudados em Torres Novas, datados de entre meados do século XVI e o século XVII (CARREIRA, 2005, pp. 30-31) e em vários contextos lisboetas do século XVI aos inícios do século XVIII (SILVA, GUINOTE, 1998, pp. 166-167).
Os depósitos da estrutura em estudo continham ainda loiça de armazenamento e transporte, onde se inclui um provável bordo de cantil (que aqui não ilustramos por se encontrar bastante fragmentado) e as infusas (Fig. 9), com cerca de 6% dos exemplares, destinadas a armazenar líquidos. Apresentam bordos ligeiramente introvertidos, lábios de secção semicircular, colo alto e cilíndrico com caneluras, normalmente providas de uma asa, que se desenvolve entre o colo e o meio da peça. Os diâmetros dos bordos rondam os 90 mm. Exemplares semelhantes surgem em inúmeros sítios de Lisboa, sobretudo entre os materiais datados dos séculos XV-XVI na Praça da Figueira (SILVA, GUINOTE, 1998, pp. 116-117), no Palácio do
Figura 9 – Loiça de armazenamento e transporte; cerâmica comum: 1. Infusa.
Figura 8 – Loiça de mesa; cerâmica comum: 1. Prato; 2. Tigela; 3. Púcaro.
Figura 10 – Outros recipientes. Loiça de iluminação; cerâmica comum: 1. Candeia. Loiça de higiene; cerâmica comum: 2. Servidor.
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Governador no Castelo de S. Jorge (GOMES et alii, 2009, pp. 653-672), na Rua do Benformoso (MARQUES, LEITÃO, BOTELHO, 2012, p. 127) e na Rua João do Outeiro (DIOGO, TRINDADE, 1998, p. 265). O conjunto integra ainda outras categorias de materiais, nomeadamente os destinados à iluminação das casas, entre os quais se destacam as candeias (Fig. 10.1), com cerca de 2% dos exemplares. São recipientes baixos, de paredes côncavas, que assentam em base plana. O bordo apresenta-se estrangulado num dos lados, formando um bico triangular. O diâmetro da base ronda os 44 mm. Exemplares idênticos surgem em contextos dos séculos XV-XVIII de Lisboa, nomeadamente no Palácio do Governador do Castelo de S. Jorge (GASPAR et alii, 2009, pp. 653-672), na Rua dos Correeiros (DIOGO, TRINDADE, 2000, pp. 201-235) e no Quarteirão dos Lagares (NUNES, FILIPE, 2012, p. 146). Por fim, refira-se um bordo de servidor (Fig. 10.2), objecto destinado à higiene das casas, que se apresenta largo e extrovertido, em aba, demarcado interior e exteriormente, com lábio de perfil semicircular. O diâmetro do bordo é 260 mm. São inúmeros os paralelos que encontramos em materiais dos séculos XV-XVI na área urbana de Lisboa, nomeadamente na Rua do Benformoso (MARQUES, LEITÃO, Botelho, 2012, p. 127) ou no Palácio do Governador do Castelo de S. Jorge (Gaspar et alii, 2009, pp. 653-672).
número mínimo de 12 indivíduos: dois pratos fundos em faiança branca; três pratos, uma tigela e um servidor em faiança com decoração pintada a azul; e cinco servidores em faiança com decoração pintada a azul e manganês.
Figura 11 – Análise estatística dos materiais de faiança em estudo.
3.2.1. Faiança branca
3.2. Cerâmica esmaltada
Entre o espólio cerâmico revestido com vidrado de estanho surgem dois grupos claramente distintos. O primeiro, com uma expressão residual, diz respeito a cerâmica de finais do século XV a inícios do século XVII, muitas vezes denominada como louça malegueira, mas também Blanca Lisa ou Plain White (Gutiérrez, 2000, p. 15-73), originalmente produzida na Andaluzia e com ampla difusão mundial. Na Casa dos Bicos recuperaram-se apenas quatro fragmentos de parede de pratos, com pastas em tudo semelhantes às destas produções, a comum tonalidade branca amarelada, com pequenos vacúolos e, por vezes, fissuras, registando-se escassos elementos não plásticos visíveis. As superfícies são revestidas por esmalte branco amarelado, em mau estado de conservação, sem qualquer pintura. Discute-se a sua produção em território nacional, seguramente atestada documentalmente a partir de meados de Quinhentos (Torres, 2011, p. 541), menos claramente no registo arqueológico (Sebastian, 2010, p. 79). Em todo o caso, a sua presença em contextos lisboetas está largamente documentada naquela cronologia (Coelho, Bugalhão, 2015, p. 47). Um segundo grupo, com muito maior expressão, reporta-se a faiança portuguesa da segunda metade do século XVII e da centúria seguinte. É possível individualizar três conjuntos distintos: a faiança branca (39%), a faiança com decoração pintada a azul (55%) e a faiança com decoração pintada a azul e manganês (6%) (Fig. 11). Os três conjuntos apresentam pastas semelhantes, de tonalidade branca rosada ou amarelada, compactas e com elementos não plásticos de grão fino e médio, entre os quais se identificam a mica e o quartzo. Foi estudado um total de 272 fragmentos, tendo-se identificado um
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Os exemplares de faiança branca correspondem a exemplares de pratos fundos (também designados como covilhetes), com ambas superfícies vidradas brilhantes (Fig. pp. 1-2). Os diâmetros dos bordos varia entre 120130 mm, medem de altura aproximadamente 33 mm e os diâmetros da base rondam os 105 mm. Encontramos paralelos em contextos de Lisboa do século XVIII, num contexto habitacional do NARC (COELHO, BUGALHÃO, 2015, p. 42) e no Convento de São Francisco (TORRES, 2011, p. 338).
Figura 12 – Faiança branca: 1-2. Pratos fundos.
3.2.2. Faiança com decoração pintada a azul
Destaca-se um fragmento de um prato com bordo de 220 mm de diâmetro, cuja superfície interna apresenta decoração composta por motivos vegetalistas (Fig. 13.1). Ambas as superfícies apresentam-se enegrecidas pelo contacto com fogo. Exemplares com temática decorativa
Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos
semelhante são identificados em contextos de meados do século XVII, nomeadamente a Casa João Esmeraldo, no Funchal (GOMES, GOMES, 1998), a Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, em Cascais (RODRIGUES et alii, 2012, p. 869), ou em contextos de produção, de que é exemplo o Largo de Jesus (SANTOS, 2007). Este grupo inclui um servidor (Fig. 13.2) de bordo largo extrovertido demarcado exterior e interiormente, com lábio de perfil semicircular, paredes baixas de feição globular, uma asa que se desenvolve do bordo até à zona mesial do corpo, assentando em base plana. O diâmetro do bordo é de 174 mm, a peça mede de altura 132 mm e o diâmetro da base é de 130 mm. As peças mais antigas, que remontam aos séculos XVI-XVII, teriam uma dimensão média de tendência cilíndrica. Contudo, a partir do século XVIII esta forma evolui para recipientes de menor dimensão, sendo decorados, tendo corpo de feição bojuda e uma asa (BUGALHÃO, COELHO, neste volume), portanto com um formato muito semelhante aos exemplares em estudo. Destaquem-se os paralelos com o espólio recolhido no Poço do Vale de Alcântara, atribuído aos séculos XVII ou inícios da centúria seguinte (BATALHA, CARDOSO, 2013, p. 132). A colecção em estudo inclui um exemplar com a asa decorada com várias linhas espessas em tons de azul e o corpo delimitado por duas séries de linhas azuis
imediatamente abaixo do bordo e quase junto à base, no interior das quais se desenvolvem motivos de folhas de acanto ou volutas barrocas em tons de branco e azul, tema que se enquadra no último quartel do século XVII (QUEIRÓS, 1907, p. 60; CASIMIRO, 2010, p. 605). 3.2.3. Faiança com decoração pintada a azul e manganês
Este grupo integra cinco servidores em tudo semelhantes do ponto de vista formal aos anteriormente descritos, com um diâmetro dos bordos de 190-200 mm, altura que varia entre 140-150 mm e base com diâmetro entre 140 e 170 mm. Um dos exemplares tem decoração com duas séries de linhas azuis no corpo, tanto abaixo do bordo, como junto à base, no interior das quais se desenvolvem motivos de folhas de acanto ou volutas barrocas em tons de azul e branco com contornos a manganês (Fig. 14.1), temática que, como referimos, se terá generalizado a partir do último quartel do século XVII. Um outro exemplar (Fig. 14.2) ostenta na zona do corpo desenho de uma aparente manopla, cujos contornos se apresentam em tons de manganês e o interior com preenchimento em tons de azul. Por sua vez, este é envolto por elementos florais que têm por base o mesmo esquema de cores.
Figura 13 – Faiança com decoração pintada a azul: 1. Prato; 2. Servidor.
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Figura 14 – Faiança com decoração pintada a azul e manganês: 1-5. Servidores.
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Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos
Dois servidores (Fig. 14.3-14.4) mostram a asa com a mesma gramática decorativa, pinceladas executadas no sentido horizontal em tons de azul, e o corpo com motivos florais de contornos e com a parte mais esquemática da decoração a manganês, sendo o interior em tons de azul. Nos materiais recolhidos no Convento de São Francisco, em Lisboa, estes motivos surgem representados em outras formas – nomeadamente em bacias – e são característicos dos contextos atribuídos ao século XVIII (TORRES, 2011, pp. 68, 76, 300 e 429). Um outro exemplar (Fig. 14.5) tem a asa decorada com linhas horizontais em tons de azul e o corpo com decoração de desenho miúdo, uma figura humana nua de feição oriental envolta em flores. Até ao momento ainda não se encontraram paralelos para esta temática decorativa, no entanto são inúmeras as peças produzidas na segunda metade do século XVII em Lisboa, que apresentam este tipo de desenho (SEBASTIAN, 2010, p. 615). 3.3. Porcelana
A porcelana tem uma expressão residual neste contexto, registando-se exemplares de pasta muito fina. Reconheceu-se um provável exemplar de tigela (Fig. 15), com 140 mm de diâmetro do bordo. Ambas as superfícies foram revestidas com vidrado muito brilhante, destacando-se a decoração com uma banda de motivos geometrizantes na zona do bordo em ambas as superfícies e os motivos vegetalistas em tons de azul no corpo. Este exemplar terá sido fabricado nas oficinas de Jingdezhen, por finais do século XV ou inícios do século XVI. Exemplares semelhantes foram recuperados nas colecções de porcelana Ming, na escavação de Maojiawan, em Beijing (XIONG, 2006, pp. 113-122).
4. O espólio vítreo Foi estudado um total de 8373 fragmentos, entre perfis completos e fragmentos, podendo estas ser distribuídas pelos seguintes grupos: vidraça, com 1685 dos exemplares; garrafas de tonalidade verde, com 5017 fragmentos, distribuídas por quatro tipos, com respectivamente 2, 5, 68 e 317 exemplares, a par de 4624 fragmentos de tipologia indeterminada; garrafas mais escuras de formato cilíndrico, com 354 fragmentos; garrafas quadradas, com 191; copos de tonalidade verde/castanha, com apenas 8 exemplares; garrafas de vidro fino de tonalidade verde com 65 fragmentos; jarras de tonalidade branca, com 2 peças; galheta, com um exemplar; frascos de vidro fino de tonalidade verde, com 35 fragmentos e de tonalidade azul com 265; frascos de perfume, com 7 fragmentos e urinóis, com 53 fragmentos. Registaram-se ainda 56 fragmentos de vidro fino indeterminados de tonalidade azul e 617 de tonalidade branca (tabela 2). O conjunto estudado inclui artefactos em vidro com vasta diacronia cronológica ao longo da Idade Moderna, assim como uma grande variedade tipológica de recipientes. No seu fabrico foi utilizado sobretudo o vidro transparente, com uma paleta de cores na qual predominam os verdes, em tons que variam entre o verde-escuro e o verde profundo, à semelhança de outros materiais recolhidos em contextos da área urbana de Lisboa e região envolvente) (CUSTÓDIO, 2002, p. 117; MEDICI, 2011, p. 332), surgindo ainda a tonalidade verde clara e azul, sobretudo nos frascos. Neste mesmo contexto, associados aos materiais vítreos estudados, foram estudados dois grupos de cálices de vidro, o mais antigo datado entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade da centúria seguinte e o mais recente datado dos séculos XVII-XVIII (VALENTE, 2013). 4.1. Garrafas verdes globulares
De um total de 5371 fragmentos, distinguimos 50 perfis completos, 536 fragmentos de bordo contendo porção de gargalo, 4005 paredes e 780 bases. Entre as garrafas de tonalidade verde foi possível identificar quatro tipos distintos (HUME, 1961; colecção do Museu de Londres) (Fig. 16). O Tipo 1, com cronologia de fabrico de 1601-18002, inclui objectos de tonalidade verde-escura, corpo achatado oval, gargalo não muito alongado, bordo com 4549 mm de diâmetro, ônfalo ligeiramente pronunciado e uma polida marca de pontel. O Tipo 2, produzido em 1675-1690, engloba fragmentos de bordo saliente com 27-30 mm de diâmetro, paredes de feição globular de tonalidade verde azeitona e bases com diâmetros a rondar os 120 mm. Quanto ao Tipo 3, balizado entre 1690 e 1710, inclui peças de tonalidade verde azeitona com rebordo mais perto do bordo, tendo este 25-29 mm de diâmetro, gargalo estreito e alongado, corpo de feição angular, base com 105-120 mm, ônfalo pronunciado e marcas de pontel por vezes pouco polidas.
Figura 15 – Porcelana: tigela.
2 Fonte: http://archive.museumoflondon.org.uk/ceramics/ pages/object.asp?obj_id=527328;http://archive.museumoflondon.org.uk/ceramics/pages/object.asp?obj_id=440641, consulta a 15 Abril de 2016.
Uma cidade em escavação
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Inês Pinto Coelho, Tiago Silva, André Teixeira
Nome
Nº de fragmentos 2
% de fragmentos 0.02
2
5
0.06
3
68
0.81
4
317
3.78
Tipo 1
Garrafas verdes globulares Garrafas escuras cilíndricas
354
4.23
Garrafas verde globulares de tipo indeterminado
4625
55.03
Garrafas quadradas
191
2.48
Copos
8
0.10
Garrafas
65
0.78
Jarros
2
0.02
Galheta
1
0.03
Frascos verdes
53
0.68
Frascos azuis
265
3.16
Frascos de perfume
7
0.08
Urinóis
53
0.63
Indeterminados (transparentes)
617
7.36
Indeterminados (de tonalidade azul)
56
0.67
Vidraça
1685
20.08
8374
100
TOTAL
Tabela 2 – Tabela de distribuição tipológica do conjunto vítreo em estudo.
Por último, o Tipo 4, com cronologia de 1685-1715, inclui exemplares de tonalidade verde-escura, bordo a rondar os 20 mm, gargalo mais largo e curto, curvas da base e do corpo mais equilibradas, ônfalo muito pronunciado, base com cerca de 80 mm e marcas de pontel por vezes pouco polidas. Estas garrafas, também conhecidas como onion bottles, surgiram pela primeira vez em Inglaterra em meados do século XVII (JONES, SULLIVAN, 1989, p. 73), difundindo-se posteriormente por toda a Europa. Nos inícios do século XVIII começam a ser fabricadas em Portugal, na Fábrica Real dos Vidros de Coina, generalizando-se a produção a várias manufacturas nos finais de Oitocentos (MEDICI, 2011, p. 336). A par das fontes escritas, todos os contextos referenciados indicam que estas garrafas se destinavam sobretudo ao transporte de vinho, embora se verifique em diversos sítios a sua reutilização para outros líquidos, tais como produtos farmacêuticos e medicinais (SILVA, 2015, pp. 472-476). As garrafas em estudo apresentam marcas de pontel (Fig. 17) e não apresentam qualquer selo que permita identificar fabricante ou proprietário, à excepção de um exemplar que ostenta abaixo do gargalo as letras “RxF” (Fig. 18). Os perfis triangulares destas garrafas criavam, em conjunto com os bordos, um encaixe (marisa) para a aplicação de um fio metálico, o que reforçava a selagem por meio de uma rolha, permitindo que garrafas fossem transportadas ou armazenadas com segurança (MEDICI, 2011, p. 342; FERREIRA, 2012, p. 82). Em alguns exemplares da Casa dos Bicos é possível observar vestígios da existência do referido fio metálico (Fig. 19.1), assim como de uma rolha (Fig. 19.2). Materiais idênticos a estes têm surgido em inúmeros contextos terrestres de Lisboa, como um dos quarteirões
378 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 16 – Tipologia das garrafas verdes globulares.
Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos
Figura 18 – Pormenor de marca com as iniciais “RxF”.
Figura 19 – 1. Pormenor do fio metálico; 2. Detalhe de rolha ainda embutida no gargalo.
Figura 17 – Pormenor de marca de pontel.
da Baixa Pombalina na Rua do Comércio (FERNANDES, FERREIRA, 2004, p. 487), no poço seiscentista do Vale de Alcântara (Batalha, Cardoso, 2013, p. 123). Destaque também para o paralelo em Almada, na Rua da Judiaria, em contextos dos séculos XVII-XVIII (MEDICI, 2005, p. 558). Estas garrafas surgem também em contextos de fundeadouro de Lisboa, associados ao momento de selagem – depósitos fluviais assoreados – do contexto do navio Boavista 1, datado dos séculos XVII-XVIII (Fonseca et alii, 2016, p. 962.). Refira-se a fragata portuguesa Santo António de Taná, naufragada em Mombaça em 1697 (SILVA, 2015, pp. 472-476), bem como a cultura material associada ao naufrágio do marfim da baía da Horta, nos Açores, datado do primeiro quartel do século XVIII (BETTENCOURT, CARVALHO, 2011, pp. 139-152). 4.2. Garrafas cilíndricas de tonalidade escura
De um total de 354 fragmentos foram identificados 19 bordos, 219 porções de parede e 116 fundos de garrafas cilíndricas de tonalidade escura. Este grupo inclui apenas uma tipologia de objectos, sendo a sua produção balizada entre 1770 e 1820 (Hume, 1961, p. 101, 105). É caracterizado pela sua tonalidade âmbar/preta, rebordo muito pouco pronunciado, gargalo alongado (Fig. 20.1), corpo de feição cilíndrica e base com ônfalo cónico
Figura 20 – Garrafas cilíndricas de tonalidade escura: 1. Gargalo; 2. Base.
Uma cidade em escavação
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Inês Pinto Coelho, Tiago Silva, André Teixeira
muito pronunciado (Fig. 20.2), sendo visíveis marcas de pontel, por vezes pouco polidas. Uma vez que não existe nenhum exemplar com perfil completo, não podemos indicar qual a altura média destas garrafas, no entanto o diâmetro dos bordos varia entre 20-23 mm e os da base entre 80-88 mm. A forma destas garrafas evoluiu de um colo de feição mais curta e corpo globular, típico da segunda metade do século XVII, até alcançar os exemplares cilíndricos e de colo alongado, que começaram a aparecer no século XVIII, chegando até aos nossos dias (Hume, 1961, p. 105). São associadas ao consumo e ao transporte de vinho, licores e outras bebidas alcoólicas (MEDICI, 2011, p. 336). Exemplares idênticos surgem em contextos nacionais, em Lisboa (FERREIRA, 1997, pp. 186-187; FERNANDES, FERREIRA, 2004, p. 487; MEDICI, 2011, p. 337), assim como em contextos de naufrágio, nomeadamente no Queen Anne’s Revenge (1718) e no naufrágio do marfim da Baía da Horta (BETTENCOURT, CARVALHO, 2011, p. 139-152). 4.3. Garrafas quadradas
O grupo das garrafas quadradas inclui 209 fragmentos, divididos em três bordos, 179 paredes e 27 fundos; apura-se um número mínimo de três indivíduos. Caracterizam-se pelo seu formato quadrangular, tonalidade verde azeitona, bordo estreito (Fig. 21.1), ombro ligeiramente mais amplo e base mais estreita quadrada (Fig. 21.2), com marcas de pontel por vezes grosseiras (Fig. 21.3). O único bordo que dispomos mede 22 mm de diâmetro. Geralmente atribui-se o início da produção destas Dutch gin bottle à Holanda, visto serem recorrentemente retratadas na pintura desta região nos séculos XVI e XVII. Nestes casos, a técnica de fabrico era o sopro em molde. As garrafas de fundo quadrado eram normalmente utilizadas para armazenamento de bebidas alcoólicas, embora apareçam nalguns contextos arqueológicos com resíduos de outros materiais, tais como mercúrio, produtos químicos ou de boticário (HUME, 1691, p. 106; MCNULTY, 1971, p. 106). Estas garrafas têm surgido em contextos modernos de Lisboa, como o NARC (MEDICI, 2011, pp. 340-342), o Hospital Real de Todos-os-Santos (BOAVIDA, 2012, pp. 135-139) e um quarteirão na Rua do Comércio (FERNANDES, FERREIRA, 2004, p. 486). São ainda bastante comuns em contextos naufrágio, de que é exemplo a referida fragata Santo António de Taná, (SILVA, 2015, pp. 472-476), ou La Natiére (França), datado de inícios do século XVIII (L’ HOUR, VEURAT, 2000, pp. 32-33 e 84). 4.4. Vidros finos
Os depósitos em estudo revelaram um conjunto numeroso de fragmentos pertencentes a garrafas de vidro muito fino de tonalidade verde – quatro gargalos, 58 paredes e três fundos com ressalto. Pela sua feição poderiam pertencer a garrafas utilizadas para conter licores (Fig. 22.1-4) e, portanto, utilizadas à mesa. Encontraram-se paralelos para estas peças em apenas um exemplar recolhido no Nonsuch Palace, contexto britânico da segunda metade do século XVII (CHARLESTON, 2005, pp. 253, 256).
380 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 21 – Garrafas quadradas: 1. Bordo; 2. Base; 3. Pormenor de marca de pontel.
À mesa terá ainda sido utilizada uma galheta (Fig. 22.5), recipiente para servir azeite ou vinagre. Apresenta gargalo estreito, bico vertedor, corpo globular, ostenta uma asa e assenta em pé anelar destacado. O diâmetro da base é de 46 mm e mede de altura 143 mm. Surgem em várias colecções e contextos dos séculos XVI-XVII (MEDICI, 2014, pp. 364-367). Entre os objectos utilizados à mesa, para conter/servir líquidos, foi ainda identificado um perfil completo de um jarro/caneca de vidro, bordo rectilíneo, colo cilíndrico e corpo de feição globular, asa aplicada entre o colo e o corpo e assente em pé destacado, com decoração composta por motivos florais gravada em tons de branco opaco ao longo de toda a peça (Fig. 22.6). Tem um diâmetro do bordo de 75 mm, uma altura de 165 mm e diâmetro do fundo de 67 mm. Dois fragmentos de asas deverão pertencer a exemplares idênticos. Já relacionado com a higiene e tratamento corporal destacam-se frasquinhos de perfume – um de tom verde-claro (Fig. 22.7), outro de tonalidade transparente –, surgindo ainda um fragmento de bordo e seis porções de fundos. Estes frascos, fabricados através da técnica do vidro soprado, são de pequena dimensão, mostram um gargalo alto e estreito, o corpo é circular achatado e o fundo tem ligeiro ressalto. O diâmetro do bordo dos exemplares completos ronda os 10 mm, a altura é de cerca de 100 mm e o diâmetro do corpo cerca de 40 mm. O uso de perfumes era comum na sociedade portuguesa do século XVII (MEDICI, 2014, p. 554). Surgem exemplares semelhantes em contextos britânicos da segunda metade do século XVII (WILLMOTT, 2002, p. 90; MEDICI, 2014, pp. 304-305), assim como em exemplares datados do século do século XVIII (Museu de Londres3). 3 http://archive.museumoflondon.org.uk/ceramics/pages/ object.asp?obj_id=472977.
Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos
Figura 22 – Vidros finos: 1-4. Garrafas; 5. Galheta; 6. Jarro (desenho adaptado de Amaro – Abril 1983 – e com base em fotografias cedidas pelo Museu de Lisboa); 7. Frasco de perfume; 8-10. Frascos; 11. Frasco/Garrafa; 12-13: Frascos; 14. Tinteiro; 15. Urinol.
Entre o conjunto estudado foram identificados alguns fragmentos de frascos de vidro de tonalidade verde (Fig. 22.8-10) – sete fragmentos de bordo, 25 de paredes e três de base com ligeiro ressalto. Poderiam ser utilizados em casa para medicamentos (MEDICI, 2014, p. 162). Têm bordo espesso, por vezes com ligeiro bico vertedor, colo curto ou ligeiramente alongado e corpo globular ou piriforme, assentando em base com ligeiro ressalto. Surgem com alguma frequência a partir do século XVI (MEDICI, 2011, p. 334; BATALHA, CARDOSO, 2013, p. 123). Foram ainda identificados alguns fragmentos de frascos vidro de tonalidade azul – cinco exemplares com perfil completo, quatro bordos, 253 paredes e três fragmentos de base com ressalto. Um dos exemplares de perfil completo é de grande dimensão, o diâmetro do bordo é de 142 mm, a altura é de 436 mm e o diâmetro da base é de 228 mm. Apresenta gargalo alto e espesso, corpo de feição piriforme e assenta em base
com ressalto (Fig. 22.11). Peças semelhantes a estas foram classificadas como garrafas (tipo 3.3), em uso no século XVII (MEDICI, 2014, p. 543), podendo referir-se um paralelo britânico no mencionado Nonsuch Palace (CHARLESTON, 2005, pp. 247-248). Dois outros exemplares mostram gargalo alto e estreito, corpo alongado e assentam em base com ressalto; o diâmetro dos bordos ronda os 40 mm, e uma das paredes, possivelmente pertencente à mesma peça, mede de altura de 200 mm e o diâmetro da base ronda os 68 mm (Fig. 22.12). Peças semelhantes encontram-se entre o espólio do Museu de Londres, atribuível a 160118004. Um outro exemplar (Fig. 22.13) mostra o bordo mais largo, espesso, com lábio de secção quadrangular, 4 Fonte: http://archive.museumoflondon.org.uk/ceramics/ pages/object.asp?obj_id=480511, consultada a 15 de Abril de 2016.
Uma cidade em escavação
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Inês Pinto Coelho, Tiago Silva, André Teixeira
de perfil ligeiramente troncocónico cujo diâmetro ronda os 104 mm. Frascos desde tipo poderiam ser utilizados em casa para conter líquidos, ou medicamentos. Refirase para este último o paralelo em materiais provenientes do citado sítio arqueológico da Rua do Comércio, em Lisboa (FERNANDES, FERREIRA, 2004, p. 486). Surgem ainda exemplares de pequenas dimensões, apresentando aba extrovertida, corpo de feição cilíndrica e assentes em base com ligeiro ressalto. O diâmetro do bordo ronda os 40 mm, mede de altura 43 mm e o diâmetro da base ronda os 20 mm (Fig. 22.14). Exemplares semelhantes têm sido classificados como tinteiros, e datados de 1601-18005. Por fim, foram identificados 53 fragmentos pertencentes a urinóis (10 bordos, 37 paredes e 6 fundos). São recipientes muito finos, de tonalidade amarela muito clara, quase transparente, apresentando bordo completamente revirado e corpo de feição cilíndrica (Fig. 22.15). Utilizados nos cuidados do corpo e higiene são muito comuns na Europa desde a Idade Média, devido à prática da análise de urina para o diagnóstico médico. A sua forma não mudou muito entre os séculos XIV e XVIII (FERREIRA, 2012, p. 85), surgindo em contextos dos séculos XV-XVII de Lisboa (MEDICI, 2005, p. 545). Não obstante, sem o recipiente inteiro, os fragmentos da Casa dos Bicos poderão pertencer a outro tipo de formas, como copos ou até mesmo frascos. 4.5. Vidraça
Recuperaram-se 1685 fragmentos de vidraça, de que se ilustra apenas um (Fig. 23.1-2). Em Portugal, o uso da vidraça aparece documentado já no século XV (CUSTÓDIO, 2002, p. 201). São vários os contextos nacionais dos séculos XVII-XIX onde surgem, podendo citar-se o NARC (MEDICI, 2011, pp. 348-349). 5. Considerações finais Os materiais provenientes da Sala E/Compartimento da Casa dos Bicos apresentam uma cronologia de meados do século XVII a meados da centúria seguinte, correspondendo aos materiais em uso num determinado momento do edifício durante a primeira metade de Setecentos, seguramente antes do terramoto de 1755. Detectam-se marginalmente peças do século XVI, como um fragmento de porcelana chinesa, seguramente elementos de prestígio de duradoura utilização. Relativamente ao conjunto cerâmico, e se tivermos em conta a maioria dos paralelos referenciados, verificamos que estes apontam, em muitos casos, para os séculos XVI-XVIII, indicando a perduração de muitas formas e produções de Lisboa ao longo da Idade Moderna. Podemos ainda salientar o predomínio da loiça doméstica, de que se destacam panelas, tachos, frigideiras e alguidares. Foram também identificados recipientes de mesa, nomeadamente pratos, tigelas e púcaros, bem 5 Fonte: http://archive.museumoflondon.org.uk/ceramics/ pages/object.asp?obj_id=465250; http://archive.museumoflondon.org.uk/ceramics/pages/object.asp?obj_id=440760, consultada a 15 de Abril de 2016.z
382 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 23 – Fragmento de vidraça; 2. Pormenor de vidraça aplicada em janela (Livro de Horas de D. Manuel).
como loiça de armazenamento e transporte, onde se destacam cântaros e infusas, e outros objectos destinados à higiene das casas (os servidores), à sua iluminação (candeias) ou ao entesouramento de moedas. O vidro foi encontrado de forma abundante no interior da estrutura. A par da vidraça, destaca-se sobretudo o avultado número de garrafas, cronologicamente situadas entre meados do século XVII e finais da centúria seguinte, algumas delas preservando ainda resíduos do conteúdo no seu interior. Estas deverão ter origem britânica, sobretudo as que apresentam uma cronologia mais recuada, já que a indústria de vidro em Portugal começou em inícios do século XVIII, na Real Fábrica de Vidros de Coina. Aos cálices encontrados neste contexto foi atribuída idêntica procedência. Relativamente aos outros objectos – os exemplares de jarros e o de galheta – terão estado relacionados com o quotidiano dos habitantes na Casa, nomeadamente com a ingestão de alimentos líquidos à mesa, relacionando-se frascos de perfume e urinóis com a higiene, ao passo que outro tipo de frascos se poderá relacionar com a utilização de medicamentos em casa. Surgem ainda exemplares que poderão ser classificados como tinteiros e como tal relacionados com actividades de escrita. Quanto à origem destes objectos, podemos também apontar para produções inglesas, sobretudo se considerarmos os paralelos estabelecidos. Durante a Idade Moderna, e até ao terramoto de 1755, a Casa dos Bicos era composta por loja, sobreloja e dois andares superiores. Esta organizar-se-ia em torno de um pátio interior orientado a norte (Rua Afonso de Albuquerque), onde seria a entrada nobre do edifício. Desde o século XV surgiram palácios deste tipo em inúmeras cidades da Europa – sendo possível encontrar exemplares desde Moscovo a Segóvia, em Bolonha, Ferrara, Marselha e Narbonne (MARLK, 1986, p. 25). Brás de Albuquerque terá ido buscar influências a um dos monumentos mais célebres do Renascimento Italiano, o Palazzo dei Diamanti, em Ferrara, desenhado pelo arquitecto e urbanista Biagio Rossetti, por ordem de Sigismodo d’Este (1433-1507) (PAOLLETI, RADKE, 2005, p. 343). Se tivermos em consideração a arquitectura destes palácios italianos do Renascimento, as ca-
Uma aproximação ao espaço vivencial da Casa dos Bicos
ves/adegas, a cozinha e outros serviços localizavam-se geralmente no piso térreo, com escadas que conduziam para a extremidade baixa de um grande salão ou piso (PHILIPS, 2005, pp. 143-162). Essa distinção entre alto e baixo, ou seja, entre os pisos térreos e os pisos superiores, funcionava como um princípio de organização espacial. Os pisos superiores seriam destinados à intimidade e vida social dos proprietários, enquanto os inferiores, abertos para um dos lados exterior, eram as divisões destinadas à logística, ao armazenamento e à cozinha (SENOS, 2002, pp. 118, 191). O avultado número de garrafas de vidro encontrados neste contexto, associado às suas características estruturais e ao seu posicionamento no edifício, permitem, pois, levantar a hipótese de estarmos face a uma componente da organização logística deste palácio, porventura uma área de armazém, dispensa ou até de adega, eventualmente constituída em parte por vidraça, onde os proprietários guardavam os seus recipientes em vidro, de mesa, cozinha e, talvez também, de higiene. A variedade tipológica de materiais recuperados, bem como a proporção entre a loiça de cozinha, mesa e armazenamento, permite levantar a hipótese de aqui se arrumarem também outro tipo de objectos, face a uma eventual proximidade da cozinha. De qualquer modo, não podemos deixar de referir que os depósitos conservados no interior desta estrutura, com uma cultura material tão diversificada, podem também estar relacionados com um contexto de despejo doméstico. Isto é, a estrutura pode ter sido utilizada como lixeira (AMARO, 2002, p. 27), produzida no momento da construção do pavimento que se lhe sobrepõe. A verdade é que, nalgum momento de ocupação do edifício anterior ao Terramoto de 1755, aquele compartimento terá sido selado e inutilizado pelos habitantes da Casa dos Bicos. As suas motivações só poderão ser perscrutadas quando tivermos uma visão mais vasta do todo do edifício, tarefa que levaremos a efeito nos tempos vindouros mais próximos. Agradecimentos Os autores agradecem aos colegas do Centro de Arqueologia de Lisboa e do Museu de Lisboa a disponibilidade prestada desde sempre; a Clementino Amaro, arqueólogo responsável pela escavação da década de 1980, e a Manuela Leitão e Vítor Filipe, arqueólogos responsáveis pela escavação de 2010, a disponibilização de informação e documentação das intervenções; a Alejandra Gutiérrez e Ran Zhang, ambos da Universidade de Durham, o apoio prestado no âmbito da identificação de alguns materiais. Finalmente, a João Coelho, Jacinta Bugalhão, José Bettencourt, Cristóvão Fonseca, Patrícia Carvalho, Guilherme Cardoso e Luísa Batalha, a todos, pelas sugestões e partilhas.
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Uma cidade em escavação
385
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
No âmbito da empreitada municipal “Obra de reabilitação e adaptação do edifício sito no Largo da Severa, 2 - 2B para instalação do sítio do Fado”, foram realizadas duas intervenções arqueológicas. Em 2010, com carácter prévio, foram efectuadas quatro sondagens de diagnóstico e já em fase de obra, entre 2012 e 2013, procedeu-se aos trabalhos arqueológicos decorrentes da implementação do projecto. Constatou-se que o local foi ocupado por estruturas habitacionais, desde o século XII (época em que foi criada a Mouraria de Lisboa) ininterruptamente até ao século XVI, com bastantes sinais de sucessivas alterações e reconstruções, em especial entre os séculos XIV e XV. A quase inexistência de vestígios dos séculos XVII / XVIII, incluindo do Terramoto de 1755, parece indicar que o actual edifício foi alvo de construção entre finais do século XVIII e o início do século XIX, reintegrando algumas paredes preexistentes. PALAVRAS-CHAVE:
Mouraria, Islâmico, Medieval.
ABSTRACT:
Within the municipal project “Rehabilitation work and Adaptation of the building in the Largo da Severa, 2 - 2B for Fado Site” two archaeological excavations were undertaken. In 2010, there was a preliminary archaeological survey, and between 2012 and 2013 during the construction phase, it proceeded to archaeological work arising from the implementation of the project. It was found that the place was occupied by residential structures, since the twelfth century (when Lisbon’s Mouraria was founded) continuously, until the sixteenth century, with many signs of several alterations and reconstructions, especially between the fourteenth and fifteenth centuries. There are almost no traces of the XVII / XVIII, including 1755 earthquake archaeological levels, which seems to indicate that the current building was established between late eighteenth century and early nineteenth century, reintegrating some existing walls. Key words:
Mouraria, Islamic, Medieval.
Casa da Severa. Vista geral da Sondagem 2. Em primeiro plano o pavimento em tijoleira
3.12 Casa da Severa, Memórias
arqueológicas de um espaço (Largo da Severa n.º 2, Mouraria, Lisboa)
Ana Caessa
CAL/DPC/DMC/CML ana.caessa@cm-lisboa.pt
António Marques
CAL/DPC/DMC/CML antonio.a.marques@cm-lisboa.pt
Nuno Mota
CAL/DPC/DMC/CML nuno.miguel.mota@cm-lisboa.pt
1. Notas Prévias O edifício conhecido por “Casa da Severa”, Largo da Severa 2, 2A e 2B (ou, antes de 1990, Rua do Capelão 36, 38 e 40), freguesia de Santa Maria Maior, em 2010 ainda na extinta freguesia do Socorro, é um imóvel de propriedade municipal, com uma área de cerca de 50m2 por piso, que estava, na altura, subdividido em 8 exíguos apartamentos de habitação social, distribuídos por três pisos e umas águas furtadas. Situada em pleno bairro histórico da Mouraria (Fig. 1), a “Casa da Severa” encontra-se localizada em zona de Nível 2 de Potencial Valor Arqueológico do Plano Director Municipal de Lisboa (PDML) actualmente em vigor e insere-se ainda nas áreas de servidão administrativa dos imóveis de interesse público conhecidos por Colégio da Irmandade dos Meninos Órfãos (decreto de 01/86 de 3 de Janeiro) e Capela de Nossa Senhora da Saúde (decreto 02/96 de 6 de Março). Neste contexto patrimonial e normativo, a implementação de um projecto de requalificação do edifício com vista a transformá-lo num equipamento turístico-cultural ligado ao fado, por iniciativa da extinta Unidade de Projecto da Mouraria (Câmara Municipal de Lisboa), despoletou a realização de trabalhos arqueológicos prévios e de acompanhamento, levados a cabo pelo então Serviço de Arqueologia do Museu da Cidade. Os resultados obtidos, de que se pretende dar conta, vieram confirmar claramente a longa diacronia do espaço e contribuem para o conhecimento da história da Mouraria desde pelo menos o século XII. 2. A Mouraria e a Casa da Severa Qualquer intervenção arqueológica na chamada “Casa da Severa” deve ser enquadrada na história da
Mouraria. O actual bairro teve as suas origens na segunda metade do século XII, quando D. Afonso Henriques, depois da conquista de Lisboa, através de foral datado de 1170, reconheceu a existência de uma comunidade muçulmana na cidade então cristã, estabelecendo as condições da sua permanência e garantindo a segurança de pessoas e bens mouros. Este documento, instituindo a Comuna Moura de Lisboa (ou seja o conjunto de órgãos administrativos e legais que permitiam, por mercê régia, uma identidade própria à comunidade muçulmana) fez surgir a norte da cidade (numa zona bem irrigada e eminentemente rural, entre as colinas do Castelo, da Graça e de São Gens) um arrabalde mouro, ou Mouraria, destinado à instalação dos membros da comuna. Embora em 1215, o 4º Concílio de Latrão tenha estipulado a separação física nas cidades entre as comunidades das três religiões do Livro e o Concílio de Viena, em 1311, tenha ditado a proibição da chamada à oração dos muezins, no reino de Portugal essas medidas só foram aplicadas com maior rigor no tempo de D. Pedro I, depois das Cortes de Elvas em 1361 e das Cortes de Coimbra em 1390 (BARROS, 1998, pp. 13-20). A Mouraria de Lisboa terá nascido precocemente no panorama nacional como um espaço fechado, com limites legal e fisicamente estabelecidos, definidos pela existência de portas, constituindo-se provavelmente como uma área de forma vagamente triangular. Referências documentais informam que duas dessas portas ficavam na “Rua Direita Grande”, ao que tudo indica mais ou menos correspondente à actual Rua dos Cavaleiros; outra situava-se na Rua da Amendoeira (que toda ou em parte ainda existe actualmente); e finalmente uma outra encontrava-se na “Rua Direita”, normalmente associada à actual Rua do Capelão. Fora destes limites, na encosta da Senhora da Graça, situava-se o almocávar, ou cemitério dos mouros
Uma cidade em escavação
387
Ana Isabel Caessa, António Marques, Nuno Mota
Figura 1 – Planta. Localização.
(OLIVEIRA VIANA, 1993, pp.192-193; BARROS, 1994, pp. 590-591; BARROS, 1998, pp. 20-22, 141-144), junto ao Caminho de St.º André a St.ª Bárbara. Há informação arquivística que sustenta a ideia de que o arrabalde prosperou rapidamente e ultrapassou os limites físicos originais, logo a partir do século XIII, estendendo-se até ao almocávar e em direcção ao que é hoje a Rua do Benformoso, dando origem a um novo bairro conhecido, nos inícios do século XV, como “Arrabalde Novo”. Apesar das restrições legais à convivência entre cristãos e muçulmanos que justificavam a existência de uma Mouraria, a documentação deixa transparecer a presença cristã nestes novos espaços conquistados pela população muçulmana para habitação e ofícios, mas que incluíam também parcelas agrícolas cercadas, olivais e monturos (OLIVEIRA, VIANA, 1993, pp. 199200; BARROS, 1994, pp. 590-591; BARROS, 1998, pp. 141-144). Há contudo, também, documentação que parece reflectir um declínio demográfico na população muçulmana portuguesa, incluindo na de Lisboa, sempre que refere a emigração clandestina de mouros para Castela, para o emirado de Granada, ou mesmo para o Norte de África, deixando património abandonado que revertia a favor do Reino ao longo dos séculos XIV e XV, ou quando entre 1463 e 1487 demonstra como as comunas mouras de Loulé, Tavira, Beja, Moura, Elvas, Lisboa e Santarém solicitaram, com êxito, à Coroa que lhes concedesse o
388 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
direito de comprar escravos muçulmanos de ambos os sexos para depois os alforriar e com eles casar (SOYER, 2013, p. 67). Nos finais do século XV, o édito de expulsão de D. Manuel I de 1496, determinando o fim das comunas judias e mouras do Reino e estabelecendo o prazo de Outubro de 1497, obrigou ao desaparecimento dos vestígios visíveis dessas comunidades. Assim, a extinção da comuna moura de Lisboa levou à desmontagem dos lugares que materializavam a sua existência (nomeadamente os mais emblemáticos como as duas mesquitas, a escola corânica e o almocávar) e à transformação gradual dos restantes espaços, dando origem a um novo bairro cristão, inicialmente integrado na freguesia de Santa Justa, a que sem sucesso se tentou dar o nome de “Vila Nova” (OLIVEIRA, VIANA, 1993, pp. 191-192). A Mouraria e o seu arrabalde sofreram então transformações impulsionadas pelas expropriações dos espaços e edifícios comunais que foram doados pela Coroa e depois aforados e emprazados a privados cristãos e pelas vendas e doações efectuadas pelos próprios mouros, nas vésperas de partirem, a particulares e institutos cristãos. O espaço do almocávar foi legalmente doado por Carta Régia de 9 de Maio de 1497 ao concelho de Lisboa, enquanto as cantarias dos monumentos fúnebres foram, pelo mesmo documento, destinadas a material de construção do Hospital Real de Todos os Santos (BARROS, 1998, p. 152).
Casa da Severa, memórias arqueológicas de um espaço (Lg. da Severa n.º 2, Lisboa, Mouraria)
O local onde se julga ter sido situada a Mesquita Grande, por exemplo, foi palco de inúmeras transformações. Primeiramente cedido ao Hospital Real de Todos os Santos que o aforou a particulares, foi em 1511 entregue à Ordem Terceira de São Francisco para recolhimento de mulheres e instalação do Santuário de Nossa Senhora da Anunciada. Em 1519 já estava transformado em convento dominicano feminino, com a mesma invocação, para pouco depois, uma vez transferidas as freiras, para o actual Largo da Anunciada, aí se instalarem os frades agostinhos, recebendo o convento a invocação de Santo Antão. D. João III cedeu o edifício à Companhia de Jesus que, em 1553, abriu um colégio que o tornou conhecido como “Coleginho” até ao presente. Em 1594 o edifício foi vendido aos agostinhos eremitas do Convento da Graça que aí instalam o seu colégio de Santo Agostinho em 1764, depois de grandes obras de reconstrução na sequência do terramoto de 1755. Em 1830, o edifício foi doado por D. Miguel à Missão Portuguesa da Companhia de Jesus, até albergar funções militares após a expulsão das ordens religiosas em 1834 (LOPES, 1994, pp. 859-860). Se o Tombo de 1506 reflecte claramente as transformações ao indicar antigos e novos proprietários, também transparecem outras situações, em princípio inesperadas pois denuncia, por vezes, através dos nomes muçulmanos registados, a ainda (e legal) permanência de população moura na zona, levantando a hipótese de apesar da extinção da comuna e do fim da Mouraria, alguns muçulmanos terem continuado, com o estatuto de estrangeiros, a ter autorização de residência em Lisboa, de forma permanente ou temporária (BARROS, 1998, pp.152157). Aliás a este respeito, refira-se o caso de Muhammad Láparo, possivelmente o último religioso (faqih) da comuna, e de sua esposa (Zuhayra), que em 1507 ainda mantinham a posse de uma vinha em Azambujeiro, ou de Ali Azuleiro, azulejador, protegido da rainha D. Leonor, cuja presença está documentada em inícios do séc. XVI (SOYER, 2013, pp. 279-280). A “Casa da Severa” situa-se, portanto, na Mouraria original, na então denominada Rua Direita, bem perto de uma das suas portas de acesso, aquela que provavelmente se situaria na confluência da Rua do Capelão com a Rua da Mouraria. Em local próximo estaria também a Mesquita Pequena que os investigadores costumam situar no local do Colégio dos Meninos Órfãos, hipótese a que o aparecimento de uma pia de abluções reaproveitada como material de construção numa parede da Rua João Outeiro nº 67 (SILVA, 2015, p. 191) parece dar força. O edifício até 1990 correspondia aos nºs 36, 38 e 40 da Rua do Capelão. Esta designação é detectável documentalmente desde pelo menos 1551 tendo sido associada à residência nessa rua de Mafamede Láparo (atrás mencionado como Mufammad), um dos últimos clérigos muçulmanos da comuna (AZEVEDO, 1899-1900, p. 274), vincando bem como as raízes muçulmanas do local, não foram esquecidas no imaginário popular. A Rua do Capelão consta da “Noticia dos canos antigos d’esta cidade” de 1685, que sob esse arruamento regista a passagem de um cano privado vindo de Santo Antão-o-Velho, que os frades tinham a obrigação de manter e limpar, para ligar ao geral e público que passava
sob a Rua da Mouraria (OLIVEIRA, 1887, p. 556-559). A passagem dessa canalização e a maior ou menor incúria dos frades, associadas à existência de linhas de água, mais ou menos dominadas por acção humana, hão-de explicar, em muito, a outra designação, não oficial, que o arruamento tem também desde os fins do século XVI, a de Rua Suja (AZEVEDO, 1899-1900, pp. 212-224). Há ainda notícia de chuvas torrenciais no início do século XVIII (1706) que fizeram cair muros provocando mortes na rua (ALMEIDA, 1948, p. 61). Para o século XIX, existe documentação que dá conta da sujidade da rua e do mau estado de muitos dos seus edifícios, que num processo longo, nalguns casos, foi preciso expropriar, demolir ou reconstruir (vejam-se por exemplo, os “Autos de arrecadação de uma propriedade de casas na Rua Suja”, ANTT, Feitos Findos, Inventários Post Mortem, Letra C, mç. 80, nº12). De facto, a cartografia de Lisboa onde esta área da cidade foi representada, permite seguir vagamente a evolução do arruamento desde o século XVI. O sítio da “Casa da Severa” está sempre ocupado com construção e até aos inícios do século XIX, a casa, actualmente isolada na ponta de um Largo, estava adossada a outros edifícios, perfeitamente integrada numa estreita Rua do Capelão (em cujas traseiras das casas que a definiam ainda era possível descortinar pátios ou pequenos quintais privados) que se prolongava até atingir a Rua da Guia (consultar a este respeito as várias plantas da cidade de Lisboa em SILVA, 1950). A cartografia do século XIX e início do século XX vai já dando conta do resultado das demolições de muros e casario que resultaram na criação do Beco do Forno junto à fachada sul da casa, que na altura tinha entrada por essa artéria e no desaparecimento da parte norte da Rua do Capelão deixando a casa isolada num largo (consultem-se por exemplo a folha nº 36 do “Atlas da Carta Topográfica de Lisboa”, sob a direcção de Filipe Folque de 1858 e a folha nº 11G da “Planta Topográfica de Lisboa”, sob a direcção J. A. V. Silva Pinto, de 1911). Vincando a designação de Suja para a Rua do Capelão contribuiria também, pelo menos desde o século XIX, a má fama da zona, associada à boémia, ao fado, ao crime e à prostituição (TINOP, 1908, pp. 45-78, 5355, 60, 195-196). O largo que resultou das graduais remodelações da Rua do Capelão, durante muito tempo não reconhecido toponimicamente, confundindo-se com a Rua da Guia, recebeu a designação de Largo da Severa em 1990, como forma de homenagear Maria Severa Onofriana, fadista afamada e mulher de má vida que faleceu em Novembro de 1846, aos 26 anos, no nº 36 da Rua do Capelão (SUCENA, 1994, p. 879), ou seja no edifício hoje conhecido como “Casa da Severa”. É esse edifício, que por vicissitudes várias acabou por transitar para propriedade municipal e nesse estatuto merecer obras de beneficiação que o tornaram num prédio de rendimento de habitação social, que a Câmara Municipal de Lisboa, em homenagem à Severa e à tradição do fado na Mouraria transformou num novo equipamento cultural, ao mesmo tempo que requalificou o Largo da Severa tornado mais atractivo aos residentes e visitantes.
Uma cidade em escavação
389
Ana Isabel Caessa, António Marques, Nuno Mota
3. As Intervenções Arqueológicas 3.1. Os Trabalhos Arqueológicos de 2010
A implementação do projecto municipal da “Obra de Reabilitação e Adaptação do Edifício sito no Largo da Severa nº 2 À Instalação do Sítio do Fado” exigiu previamente um estudo geológico e geotécnico que permitisse a identificação do tipo de solo, a análise das fundações e a avaliação do estado de conservação da construção, de modo a garantir a estabilidade futura do edifício e a exequibilidade do projecto.
Figura 2 – Planta. Sondagens Arqueológicas de 2010.
390 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Os trabalhos de prospecção geológica e geotécnica, a cargo da empresa Geoplano Aherne, consistiram na realização de oito sondagens: quatro mecânicas com ensaio de SPT (standart penetration test) no exterior do edificado e quatro poços com as dimensões de 1X1m, atingindo também 1m de profundidade, no interior. Uma vez que estes trabalhos implicavam o remeximento de solo, a abertura dos quatro poços (Poços A, B, C e D) foi realizada manualmente, em Julho de 2010, de acordo com metodologia arqueológica, funcionando os poços como sondagens arqueológicas de diagnóstico (Fig. 2).
Casa da Severa, memórias arqueológicas de um espaço (Lg. da Severa n.º 2, Lisboa, Mouraria)
A estratigrafia e as estruturas identificadas durante a escavação dos Poços/Sondagens A, B, C e D demonstraram a existência de realidades anteriores em todos os espaços intervencionados que, nalguns casos, pareciam estar relacionadas entre si. Nos Poços/Sondagens A e B, os depósitos pareceram idênticos, podendo verificarse essa correspondência tanto na sua constituição, como através da quantidade e tipo de espólio recolhido. Situação semelhante pareceu ocorrer em relação a grande parte das estruturas aí identificadas. Já a estratigrafia registada no Poço/Sondagem C, assim como a verificada no Poço/Sondagem D apresentaram características diferentes no que concerne à sua constituição sedimentológica, sem correspondência ou com pouca correspondência entre si, apesar da presença em ambos de espólio maioritariamente medieval. A cerâmica recolhida (que constitui grande parte do espólio arqueológico registado à excepção de alguns elementos faunísticos), não apresentou grandes diferenças entre os quatro poços/ sondagens, em termos qualitativos, morfológicos ou decorativos. Em todos foi possível, por exemplo, reconhecer a presença, ainda que modesta, de panelas, frigideiras, púcaros, cântaros, alguidares, caçoilas e tijelas, todas peças ligadas a um quotidiano doméstico. Fragmentos de cerâmica pintada, cujas características mais claramente apontam para uma cronologia medieval, foram recolhidos em todos os poços/sondagens, excepto no A onde o espólio foi muito escasso. Estes resultados, embora limitados pelas dimensões e profundidades das escavações, eram um indicador a levar em consideração sobre a realidade oculta no subsolo da área em que está implantado o edifício da “Casa da Severa”, logo a pequena profundidade, reflectindo a longa diacronia do espaço, de que já se suspeitava antes da intervenção, confirmando a pertinência da exigência legal de trabalhos arqueológicos prévios a qualquer remeximento de solo nesta área da cidade. 3.2. Os Trabalhos Arqueológicos de 2012/2013 3.2.1. Questões metodológicas
Não tendo sido possível executar estes trabalhos de arqueologia previamente à obra, ocorreram nesse contexto, com os habituais constrangimentos que a ocorrência de demolições simultâneas provoca no andamento e na estratégia dos trabalhos de arqueologia. Deste modo, a intervenção arqueológica iniciou-se no momento em que ainda se mantinha a parede divisória entre as duas habitações existentes no rés-do-chão, tendo-se programado a abertura de uma sondagem em cada uma delas, junto à respectiva fachada tardoz, no lado interno, a partir das quais se faria um alargamento à restante área, após a demolição da parede divisória existente. Contudo, logo após a conclusão da Sondagem 1, na habitação com o n.º 2, com as demolições em curso nos pisos superiores, verificou-se a existência de uma fenda no cunhal formado entre as paredes das fachadas Sul e Oeste, que obrigou à suspensão da obra e à redefinição de toda a estratégia arqueológica e de construção civil, considerando-se o eminente risco de derrocada do edifício. Consequentemente, já não foi possível proceder-se à abertura da sondagem prevista para a habitação com o
n.º 2A, tendo-se então procedido à cintagem com malha sol de todas as fachadas do imóvel, no exterior e no interior e ao seu reforço estrutural. Foi pois necessário alterar-se a estratégia arqueológica, tendo os trabalhos assumido carácter de acompanhamento. Todavia, uma vez que já existiam informações de natureza estratigráfica, recolhidas na campanha de 2010 e nos trabalhos da Sondagem 1, tentou-se extrapolar a estratigrafia entretanto registada, procurando-se considerar outros contextos ainda não identificados, designadamente pavimentos e alicerces/paredes, mas também alguns contextos estratigráficos, apesar das forçadas lacunas do registo arqueológico. No exterior, o projecto de arquitectura implicava a construção de uma estrutura nova, adossada à fachada Este, formando uma espécie de balcão beirão, de onde se faria o acesso ao futuro restaurante, no segundo piso. Neste espaço marcou-se a Sondagem 2, a qual foi posteriormente alargada, de acordo com as dimensões previstas para a futura construção, escavando-se até à cota de afectação da obra. As ligações de infra-estruturas, designadamente as de esgoto e de telecomunicações, implicaram a abertura de valas no exterior envolvente ao edifício também acompanhadas arqueologicamente – Vala 1 (esgoto) e Vala 2 (telecomunicações). 3.2.2. Sondagem 1
Marcada no interior a partir da parede tardoz, no lado Sul, a Sondagem 1 tinha inicialmente uma extensão de 5.00m e uma largura variável de 2.00 m/2.20 m, de acordo com a morfologia irregular das paredes Oeste e Este (Fig. 3). Como perfil estratigráfico considerou-se o corte Norte, assim como o perfil que se definiu no lado Este, sob a parede que então ainda se mantinha, dividindo as duas habitações existentes no piso térreo. Após a remoção do pavimento em ladrilho moderno e respectiva placa de assentamento em cimento (Estrutura 1), assim como de infra-estruturas modernas (esgotos – Estrutura 2), e ainda das camadas com materiais contemporâneos (Camadas 1, 2, 3, 4 e 5), decorrentes das várias obras/reparações a que o imóvel foi sujeito durante o séc. XX, incluindo uma primeira grande alteração tipológica, possivelmente na década de 20/30 (infelizmente o Processo de Obra é omisso), começaram a surgir algumas pré-existências. Registaram-se também níveis relacionados com a construção deste edifício, em finais do séc. XVIII – Camadas 6, 7 e 14. Com efeito, colocou-se à vista um alicerce medianamente largo (45cm/63cm), irregular e relativamente superficial, com orientação Este/Oeste - Estrutura 5 (Fot. 1), integrando alguns escassos elementos arquitectónicos reaproveitados, correspondente à primitiva parede divisória das habitações do piso térreo, que originalmente teriam uma disposição (Este/Oeste), diferente da que existia aquando do início da presente intervenção (Norte/Sul). Sob a realidade descrita, no canto SE da Sondagem, colocou-se a descoberto o remanescente de um pavimento em tijoleira (10.5cmX25cm) – Estrutura 4 (Fot. 2), que se encontrou confinado a Sul pela fachada tardoz, a Este pela parede divisória da habitação, a Oeste interrompido pelo embasamento da antiga lareira/carvo-
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eira (Estrutura 3) e a Norte pelo rompimento provocado pela construção do alicerce da Estrutura 5. Entretanto na restante área da Sondagem foram registados outros alicerces, associados a materialidades e depósitos que apontavam para o período medieval, tal como sugerido pelo diagnóstico de 2010. Uma vez removido o pavimento em tijoleira, verificouse que estava estruturado sobre um nível de argamassa medianamente compacta, branca amarelada – Camada 10a; ao que se seguia a Camada 10 - silto-argilosa, esverdeada com laivos amarelados, com pequenos nódulos de argamassa, com raros pequenos fragmentos cerâmi-
cos, pouco esclarecedores, mas que sugerem tratar-se de um contexto do séc. XVI/XVII (Fig. 4). Seguia-se um estrato de terra castanha, silto-argiloso, com poucos fragmentos cerâmicos (sobretudo de construção), carvões soltos, pedra miúda e argamassas soltas e em pequenos conglomerados – Camada 11. Na realidade, apenas na Camada 14, cuja formação parece resultar da destruição do contexto descrito, surge um fragmento da tradicional faiança azul e branca, bastante pequeno, que parece corresponder ao bordo de uma saladeira decorada com círculos.
Figura 3 – Planta geral da intervenção realizada entre 2012 e 2013.
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Foto 1 – Estrutura 5 – alicerce da primitiva divisória habitacional do actual edifício, composto por material diverso reaproveitado.
Foto 2 – Pavimento em tijoleira (Estrutura 4), claramente afectado pela construção do actual edificado.
Ainda nesta zona, sob os contextos mencionados, colocou-se a descoberto uma estrutura/alicerce – Estrutura 9, com orientação Este/Oeste, com uma ligeira flexão para Sul, de pedra calcária informe com ligante em argamassa, medianamente compacta de cor cinzenta rosada escura (Fot. 3). Este provável alicerce mantinha-se parcialmente conservado, ou apenas marcado em negativo no sedimento base – Camada 19, que corresponde ao que parece ser um nível sedimentar, aparentemente em deposição secundária, compacto, argilo-siltoso, com carapaças de gastrópodes de espiral alta e baixa, raros elementos de calcário e raríssimos fragmentos cerâmicos (8, sobretudo de construção, muito rolados). Não se escavou abaixo deste nível. Não foi possível registar qualquer camada associada à sua construção, todavia, a sua desmontagem parece ter ocorrido com a construção de uma outra estrutura que entretanto se identificou e limpou, já em fase de
Acompanhamento, após a demolição da parede divisória, com o alargamento simultâneo da escavação a todo o perímetro interno do edifício, a Estrutura 14, a qual por seu lado terá sido desmontada com a construção da Estrutura 5 (Fig. 4), ou seja do actual edificado. Porém, com a Estrutura 14 parece relacionar-se a Camada 16, na qual se recolheram alguns materiais cerâmicos, cuja cronologia aponta para uma construção já em meados do séc. XIV, pelo que propomos para a Estrutura 9 uma cronologia anterior. No lado Norte da Estrutura 5, sob os níveis mais recentes, junto ao perfil Este, limpou-se um nível de pavimento, inicialmente identificado como uma camada/bolsa de cal – Camada 9 – dada a pouca extensão conservada e então observada. Constatou-se depois ser solidário com o revestimento da face Este da parede/ Estrutura 8 (Fig. 4), que entretanto se havia começado a expor. Com efeito, nesta zona adjacente a ambas as
Figura 4 – Sondagem 1. Perfil Este.
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faces da Estrutura 8, foram detectados vestígios de quatro pavimentos em cal, sobrepostos, dois de cada lado, o que, considerando o espólio associado, indicia que em períodos não muito afastados entre si, ocorreram obras de renovação dos pavimentos e do edificado existente, como se veio a verificar nas alterações registadas na parede/alicerce identificado como Estrutura 8, melhor caracterizada já em fase de Acompanhamento, em especial aquando da sua desmontagem. Sob os níveis mais recentes limpou-se, como já se referiu, uma primeira película de cal (Camada 9 – Fot. 4), seguindo-se um pequeno nível de aterro – Camada 12, sob o qual surgiu uma outra película de cal – Camada 12a, formando um segundo piso que, tal como o primeiro se prolongava como revestimento da parede da Estrutura 8, assentando nas Camadas 15 e 19. Junto à face Sul da Estrutura 8 identificou-se uma vala – Camada 18, relacionada com a sua construção. Estes contextos foram removidos em maior extensão, já em fase de Acompanhamento, no seu desenvolvimento para Nascente da parede divisória das habitações então existente. No lado Norte da mesma Estrutura 8, também se identificou o remanescente de uma primeira película/pavimento de cal – Camada 9a, a que se seguia um nível de aterro – Camada 12c, que se sobrepunha a um outro esverdeado, pouco expressivo, arqueologicamente estéril – Camada 12b. Todos assentavam num segundo nível de pavimento, mais espesso, em argamassa – Estrutura 11 (Fot. 4). De referir que a implantação do alicerce da parede Este, divisória deste piso, afectou esta sobreposição de pavimentos, dificultando a sua leitura, constatando-se que ao nível do espólio não haveria grandes amplitudes cronológicas, uma vez que o mesmo não permite avançar com cronologias posteriores ao século XIV (Fig. 9, n.º 1). Na área NO da sondagem, registava-se uma realidade arqueológica distinta. Além da remoção do sedimento resultante do aterro do Poço D aberto em 2010 (Camada 1), expôs-se o possível embasamento de um lanço de escadas de acesso ao piso superior, desactivado por ocasião das obras de remodelação em inícios do séc. XX – Estrutura 7, (compacta, em alvenaria de pedra com ligante de argamassa amarelo claro) a que se associavam as Camadas 4 e 17 (Fot. 5). Esta acção construtiva rompeu e eliminou parcialmente os pavimentos acima referidos, assim como os contextos que lhe estavam associados, dificultando a sua compreensão. Provocou igualmente a desmontagem da parede/alicerce entretanto identificado como Estrutura 8, cujas características construtivas (em pedra calcária miúda com ligante de argila, com inclusão de fragmentos cerâmicos e carvões, com reboco em argamassa) eram substancialmente diferentes (Fot. 6). Entretanto por toda a área em escavação para Sul da Estrutura 8, foi-se expondo um nível base, geral, Camada 19, onde se ia definindo o que parecia ser uma grande estrutura em negativo, aparentemente circular, sobre a qual haviam sido erigidas as estruturas 5 e 14 (Fot. 7). Infelizmente a estratégia de acompanhamento adoptada, assim como as cotas de afectação da obra, não permitiram uma caracterização abrangente desta estrutura, que todavia ficou preservada para posterior estudo e observação. Pode presumir-se que se relacione com a Estrutura 9 e/ou uma primeira fase de ocupação deste espaço.
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Foto 3 – Remanescente da Estrutura 9 e negativo da sua implantação.
Foto 4 – Aspecto do pavimento em cal (Camada 9), observando-se do lado esquerdo o pavimento em argamassa correspondente à Estrutura 11; entre estas duas realidades encontra-se o muro correspondente à Estrutura 8.
Foto 5 – Estrutura 7, com a respectiva vala de fundação (Camada 17).
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Contrariamente ao que se previra inicialmente não foi possível proceder ao alargamento desta sondagem até ao limite Norte do imóvel, devido a questões de segurança. Contudo, atendeu-se à complexidade da realidade arqueológica detectada na área NE da sondagem e foi possível escavar neste local até se expor a película de cal e argamassa identificada e que então se relacionara com o pavimento da Camada 9. Verificou-se, tal como já se esperava, que se tratava de um pavimento, bem preservado – Estrutura 11. Após o seu registo procedeu-se ao acompanhamento do seu desmonte, conforme adiante trataremos (Fot. 8).
Foto 6 – Perspectiva da sobreposição parcial da Estrutura 7 (no canto inferior direito; coeva do actual edificado) sobre o muro préexistente – Estrutura 8, com um aparelho construtivo distinto.
A remoção das Camadas 4 e 7, no canto formado pelas paredes de fachada Norte e Oeste, colocou a descoberto uma estrutura quadrangular - Estrutura 10 (Fot. 9), definida por um pequeno murete, com enchimento em alvenaria de pedra e argamassa e revestida com reboco de argamassa e cal, solidária com o pavimento/Estrutura 11, cuja funcionalidade se desconhece. A exposição deste pavimento permitiu balizar cabalmente uma fase de ocupação que corresponde à remodelação de um espaço pré-existente, pois simultaneamente constatou-se que também na parede correspondente à Estrutura 8, eram perceptíveis soluções construtivas distintas, indiciando de
Foto 7 – Panorama final da Sondagem 1, observando-se ao centro a Estrutura 5, assim como o interface superior da Camada 19, que parece definir uma estrutura circular negativa.
Foto 8 – Vista geral do pavimento em argamassa – Estrutura 11, visualizando-se igualmente do lado esquerdo sob a porta, o patamar correspondente à Estrutura 10.
Foto 9 – Estrutura 10, na qual se constata a existência de uma delimitação definida por tijoleiras e pequenas lajetas, com enchimento em alvenaria de argamassa e pedra. É possível que sinalize uma antiga porta da anterior construção.
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igual modo a ocorrência de obras de alteração/reparação (Fot. 10 e 11) que, em função do espólio recolhido, terão ocorrido durante o séc. XIV. No pavimento limpou-se ainda o negativo de um possível buraco de poste, associado a um pequeno encaixe rectangular. De referir que durante a remoção do sedimento Camada 7, se registou a ocorrência de uma bolsa composta essencialmente por fragmentos osteológicos animais, com claros sinais de terem sido intencionalmente afeiçoados, o que poderá constituir indício da presença de uma pequena indústria de processamento de osso (Fot. 12). Este contexto foi considerado em fase de acompanhamento como Camada 7a, parecendo-nos viável associá-lo à cronologia do demais espólio arqueológico recolhido neste contexto, ainda que deposição secundária, apontando-nos os sécs. XIV/XV. A escavação desta Sondagem, de acordo com a metodologia inicialmente prevista terminou nesta altura. Doravante a restante escavação foi feita de acordo com a metodologia utilizada em acompanhamento arqueológico, com o habitual prejuízo para a leitura, compreensão e registo das diferentes realidades afectadas. Relativamente a esta fase da intervenção, convém referir que num primeiro momento a equipa de arqueologia foi praticamente impedida de aceder ao espaço interno do edifício (com excepção para o registo da Estrutura 11 acima referida), por razões de segurança e igualmente para que a equipa de engenharia tivesse a garantia de que a urgente cintagem do imóvel ocorreria com toda a celeridade. Posteriormente, uma vez consolidadas as paredes de fachada com malha-sol e colocados os prumos de suporte dos pisos superiores, foi-nos permitido aceder às estruturas que entretanto haviam sido parcial e anarquicamente colocadas a descoberto. No que respeita à estratigrafia, tal como referimos, procurou-se extrapolar os contextos anteriormente definidos na Sondagem 1, o que, como é óbvio, nem sempre foi possível, havendo claramente contextos diferentes que infelizmente não puderam ser registados convenientemente, tendo-se todavia considerado nova estratigrafia sempre que tal era viável e se nos afigurava justificável. Por conseguinte procedeu-se a uma primeira identificação das estruturas em presença, tendo-se, entre outras situações constatado a continuação das Estruturas 5, 8, 9 e 17 (Fig. 3) e colocado à vista outras novas estruturas, das quais algumas se articulavam com as anteriormente descritas, designadamente as Estruturas 15 e 16, os pavimentos correspondentes às Camadas 9 e 12a, o Poço (Estrutura 18 – Fot. 13) já identificado em 2010, e ainda uma nova Estrutura – 14 (Fot. 14) que, todavia havia sido identificada no acerto do perfil Este da Sondagem 1 (Fig. 4), parecendo não se articular com as demais, pese embora esteja implantada paralelamente à Estrutura 9. Contudo, parece-nos que será contemporânea de uma das reconstruções a que a Estrutura 8 foi sujeita, devendo definir um compartimento, em articulação com a Estrutura 15, havendo porém uma afectação decorrente da construção da Estrutura 5 que obliterou esta leitura/ligação. Tal como já referimos, foi possível definir parcialmente um compartimento que se desenvolvia entre as Estruturas 8 a Norte, 15 a Este e, possivelmente, a Estrutura 14, no lado Sul, desconhecendo-se o seu limite Oeste,
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Foto 10 – Vista do miolo da Estrutura 8, em que se observa por um lado uma composição de pedra miúda e argila e do outro em argamassa e pedra miúda, que corresponderão a momentos distintos de (re)construção. Na face direita observa-se o respectivo reboco branco de cal.
Foto 11 – Face Norte da Estrutura 8, na qual são bem evidentes as cicatrizes dos sucessivos arranjos a que a mesma foi sujeita.
Foto 12 – Pequenas peças em osso talhado (Cabos ?? Travessas??).
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Foto 13 – Aspecto do poço integrado na fachada tardoz do actual edifício.
articulava-se com o pavimento em cal, considerado como Camada 9 (Fot. 15). Constatou-se também que a respectiva face da Estrutura 8 estava rebocada a cal, sendo solidária com o mencionado pavimento, ostentando um rodapé pintado com pigmento vermelho; verificou-se ainda que a parede correspondente à Estrutura 15, consistia apenas num estreito capeamento rebocado, também com vestígios de pintura do rodapé, de argamassa branca com escassa pedra pequena que encostava directamente ao sedimento de base – Camada 19 (Fot. 16). Imediatamente a Norte daquele compartimento foi possível definir-se outro, balizado pelas Estruturas 8, 16 e 17, ignorando-se igualmente o seu limite a Oeste. Neste compartimento foi possível constatar a ocorrência de algumas obras de reparação que, considerando
Foto 14 – Perspectiva das Estruturas 9 (à direita), 14 (ao centro) e 5 (à esquerda).
o espólio recolhido, terão ocorrido num curto espaço de tempo, possivelmente nos 3 primeiros quartéis do séc. XIV. Com efeito, tal como referimos a propósito da Sondagem 1, neste espaço foi identificado o pavimento em argamassa – Estrutura 11 (Fot. 8), coevo do pequeno patamar correspondente à Estrutura 10 (em cuja composição foram empregues tijoleiras e pedra informe argamassados – Fot. 9 e 17), o qual nos parece marcar o local onde existiria uma porta, aberta na Estrutura 17, sobre a qual assenta a actual fachada. Este contexto sobrepôs-se a um grande aterro que cobriu uma realidade ocupacional anterior, na qual este compartimento seria substancialmente rebaixado, relativamente ao nível base (Camada 19) já exposto no lado Sul da Estrutura 8.
Foto 15 – Canto NE de um compartimento de habitação, com pavimento em cal (Camada 9), observando-se o arranque inferior das respectivas paredes (estruturas 8 e 15) rebocadas igualmente a cal, com rodapé pintado a vermelho.
Foto 16 – Pormenor da parede/Estrutura 15, constituída apenas por um reboco mais espesso de cal com um emboço em argamassa branca aposto directamente no sedimento silto argiloso local.
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Sob o pavimento/Estrutura 11, apesar dos constrangimentos referidos, foi possível registar a ocorrência de pelo menos outros dois eventuais pavimentos, desactivados pela sobreposição de aterros cujo espólio foi recolhido com a indicação de pertença às Camadas 20, 21 (que ocorreu apenas junto à Estrutura 10), 22 (que nos pareceu tratar-se ou de um nível de compactação, ou de um eventual pavimento em terra batida, com reaproveitamento de algumas tijoleiras e lajetas em calcário – Fot. 18), 23 (em cuja composição se destaca a quantidade de material de construção – fragmentos de telha e de arga-
massa, entre outros), 24 (apenas sobre e para Este da Estrutura 19 – possível pavimento em argamassa, em que se registou a existência de bastantes carvões e elementos rubefactos), 25 e 26 (ambas também com a inclusão de material de construção variado). As condições do acompanhamento não foram favoráveis ao eficaz registo arqueológico tornando impossível a confirmação destas ocorrências que, indubitavelmente estarão associadas a diferentes episódios construtivos, apesar do espólio recolhido permitir situá-los no século XIV (Fig. 5).
Foto 17 – Vista lateral da Estrutura 17 e respectivo embasamento
Figura 5 – Sondagem 1. Perfil Cumulativo, sobre a parede / Estrutura 17.
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Foto 18 – Perspectiva geral da área de trabalho e possível pavimento em terra batida (Camada 22).
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A simples observação do aspecto exterior das paredes confinantes (Fot. 11, 19 e 20; Figs. 5 e 6), permite-nos desde logo verificar que foram sujeitas a sucessivas alterações e reparações. A existência de ressalto em alvenaria, saliente, visível na face Sul da Estrutura 17 (identificado como E17.2), apenas no seu troço Nascente, coincide com o nível em que foi detectado o possível pavimento correspondente à Camada 22, parece precisamente assinalar uma fase intermédia da ocupação deste espaço, cuja reconstrução provocou uma subida de cota do anterior pavimento, em argamassa – Estrutura 19, que foi limpo sob a Camada 24 (Foto 21), e de seguida parcialmente levantado. De referir que neste espaço, nunca foi atingido o nível base do edifício, nem exposto o limite inferior das Estruturas 8, 18 e 15, que serve de embasamento à actual fachada. Com efeito, a exposição da face Sul da Estrutura 17 permitiu registar a existência de marcas relacionadas com pelo menos dois grandes momentos construtivos, balizados pela “cicatriz” identificada na Figura 6, com a referência E17.A, em que o troço E17.1 parece corresponder ao preenchimento de uma destruição da estrutura primitiva (E17). Nesta reconstrução foi estruturado um novo alicerce, saliente (E17.2), com ligante em argamassa, que rompeu o pavimento E19, e assentou sob um cabouco em pedra argamassada (E17.3), que assentava sobre uma realidade construtiva coeva, mas tecnicamente distinta, constituída por pedras de calibre pequeno e médio, com ligante de argila (E17.4). Também no lado oposto, na Estrutura 8, eram bem visíveis os sinais da ocorrência de sucessivas reconstruções (Fot. 11), observando-se na sua face Norte marcas correspondentes a eventuais pavimentos, e a sucessivos rebocos, por vezes colmatados com fragmentos cerâmicos. Quando se realizou o desmonte parcial necessário, essas diferenças foram bem evidentes, o que obrigou ao desdobramento desta Estrutura (Fot. 22) em Estrutura 8.1 (no lado Norte, com ligante em argamassa) e 8.2 (em argila compacta esverdeada, com algum material cerâmico, ossos e carvões). No espaço tardoz do imóvel não foi possível fazer mais do que um simples acompanhamento, constatando-se que a realidade estrutural identificada no exterior (Estruturas 3 e 5 da Sondagem 2) nem sempre encontrou continuidade, tendo certamente sido anulada pela construção da actual fachada Este. Contudo, no lado interno da porta com o n.º 2A, foi possível realizar a escavação necessária à substituição do antigo esgoto, com ligação ao colector da Rua do Capelão. Aí uma vez removido o sedimento coevo desta infra-estrutura – Camada 27, identificou-se um nível de aterro mais compacto – Camada 28, com diverso espólio arqueológico idêntico ao que havia sido recolhido do lado Oeste da Estrutura 16, que cobria um pavimento misto de tijoleira, pequenas lajetas informes e terra batida - Estrutura 20 (Fot. 23), aparentemente coevo do eventual pavimento registado como Camada 22. Posteriormente removeu-se o pavimento misto (Estrutura 20) sob o qual se identificou uma nova Camada arqueológica – Camada 29, em cuja composição se registou a ocorrência de bastantes argamassas soltas e em conglomerados, carvões e espólio cerâmico (incluindo
Foto 19 – Aspecto da face Oeste da parede/Estrutura 15, onde também são visíveis as marcas de sucessivas reparações e alterações.
Foto 20 – Aspecto final da parede/Estrutura 17, correspondente ao alicerce da fachada principal do actual edifício, ondes são igualmente notórias as cicatrizes decorrentes dos sucessivos arranjos e alterações.
Foto 21 – Vista do pavimento em argamassa, correspondente à Estrutura 19.
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Figura 6 – Sondagem 1. Alçado Sul da Estrutura 17.
Foto 22 – Pormenor da utilização de duas soluções construtivas distintas registadas na Estrutura 8.
Foto 23 – Vista do pavimento misto de terra batida com reutilização de tijoleiras (Estrutura 20).
peças inteiras fragmentadas) que nos apontam para uma cronologia anterior a meados do séc. XIV. Neste espaço procedeu-se à desmontagem da Estrutura 16, solidária com as Estruturas 8 e 17, até à cota de afectação exigida pela obra, sem que os respectivos embasamentos tenham sido expostos. Durante este acompanhamento, tal como já aludimos, voltou a expor-se a boca de poço identificada em 2010 (Fot. 13) – Estrutura 18, integrada na face interna da fachada tardoz do edifício, talvez esta realidade hidráu-
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lica remonte ao período inicial da ocupação, em finais do séc. XII. Sobre esta estrutura não foi possível recolher qualquer informação, uma vez que a cota de afectação da obra era pouco intrusiva no local e não houve necessidade de a desmontar. Os trabalhos foram dados por concluídos após a remoção das estruturas 3, 5, 9, 14 e 15, expondo-se por todo o espaço a Camada 19, excepto entre a Estrutura 8 (desmontada/rebaixada parcialmente) e a fachada (Estrutura 17), onde a escavação terminou ainda num nível arqueológico claramente ocupacional.
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3.2.3. Sondagem 2
Marcada no exterior, junto à empena lateral Nascente do imóvel, no actual Largo da Severa, a escavação da Sondagem 2 decorreu da intenção de aqui se erigir uma espécie de balcão avançado, de acesso ao piso 2 que, na sua parte inferior permitisse a criação de um pequeno compartimento que se articularia com o futuro piso 1, onde seria colocada maquinaria/equipamento e um pequeno arrumo. Por conseguinte começou-se por marcar uma sondagem com 2.5 m (Este/Oeste) por 5.2 m (Norte/Sul), correspondente ao espaço necessário para a construção do mencionado compartimento/balcão, implicando um rebaixamento de cota de aproximadamente 1.5m. Posteriormente procedeu-se ao seu alargamento, mais superficial, para Norte, com vista à estruturação do arranque inferior da futura escada de acesso. Após a remoção da calçada de basalto constatou-se que existiam dois níveis de aterro distintos, um geral a toda a sondagem – Camada 1, e outro – Camada 2, correspondente à abertura de uma vala da EPAL, com orientação N/S, em finais da década de 90 do século passado que rasgou os contextos arqueológicos que entretanto foram sendo identificados. Ao escavar-se na Camada 1, foi-se colocando a descoberto o remanescente de um embasamento muito superficial, alinhado com a Estrutura 5 da Sondagem 1, que reaproveitava alguns elementos arquitectónicos e cerâmicos, ligados com argamassa pouco compacta, amarela alaranjada – Estrutura 2 (Fot. 24), ainda com reboco, que se poderá relacionar com o edificado existente e demolido ainda na primeira metade do séc. XIX. Associado a esta estrutura limpou-se um pavimento misto, igualmente com ligante laranja, que claramente resultou da reutilização de lajes e tijoleiras – Estrutura 1 (Fot. 25), pertencente à mesma fase de ocupação. Em mau estado de conservação, terminava junto às raízes da árvore existente no local, onde se começou a limpar o topo de um outro conjunto estrutural preexistente. Convém aliás referir que durante esta operação urbanística foi exposto o miolo do edificado actual, verificandose que a alvenaria de todo o prédio consistia em material sobretudo cerâmico (tijolos, tijoleiras e telhas), claramente reaproveitado, integrando alguns elementos pétreos (raramente cantarias) e por vezes mesmo blocos/fragmentos de alvenarias de tijolo e pedra, resultando numa construção notoriamente precária e de má qualidade, com particular destaque da empena Este. Entretanto, constatou-se que se havia definido um antigo compartimento pertencente ao edificado desmontado na primeira metade do séc. XIX, cujo nível de circulação seria inferior ao que se desenvolveria para Sul da Estrutura 2 que sendo superficial, vencia o vão definido pela estrutura subjacente, formando apenas um capeamento que revestiria e conteria o aterro existente – Camada 3 que corresponde a um sedimento de cor castanha esverdeada, silto argilosa solta, com algumas argamassas soltas, com abundante material cerâmico de uso doméstico e de construção, enquadráveis na segunda metade do séc. XIV, assim como a Camada 1 que, como já se referiu era geral a toda a sondagem. Durante a limpeza e definição da Estrutura 2, verificou-se que estava oportunisticamente implantada sob uma outra realidade construtiva distinta, claramente
Foto 24 – Pormenor do remanescente pertencente ao edificado coevo do actual, entretanto demolido em inícios do séc. XIX.
Foto 25 – Vista do pavimento pertencente ao edifício demolido, composto por elementos cerâmicos e pétreos reaproveitados (Estrutura 1).
preexistente, que parecia desenvolver-se para Sul. Uma vez removida a Estrutura 2, colocou-se a descoberto a aludida estrutura subjacente – Estrutura 3, cuja técnica construtiva e composição eram substancialmente diferentes das demais identificadas em toda a intervenção. Formada maioritariamente por pedras graníticas, semelhantes a grandes seixos, com escassas pedras calcárias informes e ligante em argila esverdeada e exteriormente (exceptuando a face Nascente, exposta com o posterior alargamento para Este) rebocada a branco, com um embuço homogéneo de cal e areia, definindo um compartimento a que se acedia através de um vão existente no lanço com orientação Este/Oeste, onde existiria uma porta, conforme se observou pela existência de um buraco de gonzo definido na tijoleira do pavimento (Fot. 26).
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Foto 26 – Vista geral da Sondagem 2. Em primeiro plano o pavimento em tijoleira (Estrutura 5); ao centro observa-se a vala que foi aberta pela EPAL.
Ao removerem-se as camadas de aterro existentes no interior do compartimento definido pela Estrutura 3, concretamente as Camadas 1, 2 e 3, limpou-se um pavimento constituído por tijoleiras cerâmicas com 18.5 cm X 20.5 cm - Estrutura 5 (Fot. 26), muito afectado pela vala da Camada 2 (EPAL), pela construção do actual edificado e pelo permanente remeximento a que o canto Sudoeste da Sondagem terá sido sujeito, uma vez que era neste espaço que se concentravam diversas ligações de infra-estruturas ao edifício (gás, comunicações, etc.). Na restante área da Sondagem, a Norte da Estrutura 3 e do remanescente da Estrutura 2, procedeu-se ao
Foto 27 – Aspecto do adossamento da Estrutura 6 à pré-existente Estrutura 3.
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desmonte do pavimento correspondente à Estrutura 1, que assentava numa camada de argamassa laranja com nódulos de cal e conchas, medianamente compacta, com argamassas soltas e em conglomerados, com carvões, fragmentos cerâmicos diversos (incluindo faiança) – Camada 6, consentânea com a edificação do actual edificado. Aliás, junto à face Norte da Estrutura 3, onde ainda persistia o capeamento da Estrutura 2 e se identificou a Estrutura 6 (Fot. 27), igualmente coeva deste contexto, registou-se uma bolsa de terra castanha solta com alguns materiais datáveis de finais do séc. XVIII (designadamente faiança, vidros, ossos animais e um ferro de engomar simples sem braseiro), a Camada 7 (Fot. 28), que se desenvolvia para debaixo destas últimas estruturas (Estruturas 2 e 6). No lado Norte deste pavimento, sob o que parecia tratar-se dos vestígios da sua afectação, desactivação e remeximento em período recente (Camada 1), limpouse o topo de um conjunto estrutural formado por duas estruturas adossadas uma à outra, coincidente com os respectivos perfis Norte e Este da sondagem. Por essa razão procedeu-se ao alargamento da Sondagem em 0.5m para Norte, para se tentar obter alguma leitura para estas estruturas que viriam a ser desmontadas. Estas realidades estavam também cortadas pela vala da EPAL (Fot. 26), constatando-se igualmente que se prolongavam para Oeste, por debaixo da fachada Este, parecendo alinhar-se com a Estrutura 8 da Sondagem 1. Identificaram-se então as Estruturas 4 e 7 (Fot. 29), bastante afectadas pelas raízes da árvore existente. No que respeita à Estrutura 4 constatou-se que esta era composta por pedra calcária informe, com ligante misto de argila e argamassa beige acinzentada, com a inclusão de fragmentos cerâmicos, apresentando-se rebocada na face Sul. A Estrutura 7 em nada se distinguia, observando-se contudo que a sua construção anulou parcialmente algumas particularidades da estrutura anterior, designadamente um nicho ou saliência que se desobstruiu ao proceder-se ao desmonte deste “conjunto” (Fot. 30). Na sequência desta acção, expôs-se o que parece ser um pavimento em argila compacta, aparentemente
Foto 28 – Pormenor da articulação entre as Estruturas 6 e 2, observando-se o desenvolvimento subjacente da Camada 7, correspondente à vala de fundação das mesmas.
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Foto 29 – Estruturas 4 e 7, antes do alargamento da Sondagem 2.
Foto 30 – Aspecto do nicho (?) da Estrutura 4, exposto após o desmonte da Estrutura 7.
com sinais de fogo, que apesar de ter sido afectado pela vala da EPAL, parece estender-se para Norte – Estrutura 14, não foi contudo possível caracterizá-lo, pois a obra não implicou a sua afectação. Este adossamento de estruturas parece resultar de alterações, ou novas construções que se foram adossando umas às outras, e/ou reconstruções que, cronologicamente parece terem ocorrido com proximidade cronológica, durante o séc. XIV, sinalizando uma maior pressão construtiva nesta parte da cidade, seja devido à sua dinâmica própria, seja em resultado de fenómenos naturais, ou políticos. Não podemos ignorar que nesse período Lisboa foi sitiada por tropas castelhanas, a Peste afligiu a sua população e ainda foi vítima de fortes abalos sísmicos em 1321, 1344, 1355 e 1356 (FERREIRA, 1994, pp. 904-905), sendo várias as circunstâncias que podem justificar os diferentes episódios construtivos registados, tanto nesta sondagem, como no interior do edifício. Também no lado Sul, sob a Camada 6, relacionada com a Estrutura 1, surgiu uma camada compacta, esverdeada, argilo-siltosa, micácea, com algumas argamassas soltas e em conglomerados, carvões, alguns fragmentos cerâmicos domésticos e de construção – Camada 9, sob a qual se limpou uma outra camada, por vezes muito fina composta sobretudo por carvões, com algumas argamassas soltas e em pequenos núcleos e alguns escassos fragmentos cerâmicos – Camada 9a. Sob estes dois níveis expôs-se um possível pavimento em argamassa, que se desenvolve por todo este espaço, confinado entre as Estruturas 4 e 3 – Estrutura 8 (Fot. 31). Esta última, não sendo geral a toda a área, assentava num substrato verde, argilo siltoso, com alguma cerâmica, carvões soltos, alguns ossos animais, compacta – Camada 14.
Foto 31 – Vista geral da Sondagem 2, na fase final dos trabalhos, anterior aos alargamentos N e E. Ao centro registou-se um eventual pavimento em argamassa (Estrutura 8).
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A continuação da escavação permitiu constatar que este pavimento havia sido afectado pela vala de fundação da Estrutura 4, exposta junto à sua face Sul, também com afectação do pavimento Estrutura 8 e das Camada 9, 9a e 14, preenchida por uma camada castanha esverdeada, argilo-siltosa, com algumas pedras miúdas, argamassas soltas e em conglomerados, raros carvões e alguns fragmentos cerâmicos variados (enquadráveis no séc. XIV) – Camada 13. A escavação desta vala permitiu expor o alicerce desta estrutura que, estava estruturado em dois ressaltos (Fot. 32). O desmonte da Estrutura 4 mostrou que a construção do edifício em que estava integrada, apresentaria alguns preceitos construtivos ainda pouco comuns para a época e para um ambiente popular, designadamente a inclusão de canalizações no interior das paredes, certamente para drenar águas pluviais (Fot. 33; Fig. 9, n.º 5). No lado Sul da sondagem, no compartimento definido pela Estrutura 3, parcialmente rompido pela Vala da EPAL no local onde a existência de um buraco de gonzo na respectiva tijoleira, parece assinalar a existência de uma porta (Fot. 34), procedeu-se ao levantamento do pavimento (Estrutura 5 – Fot. 26), constatando-se que o mesmo assentava num nível de terra bege esverdeada, muito arenosa, com alguns carvões, alguma pedra miúda e argamassas soltas em pequenos conglomerados, finas bolsas de cal, juntamente com alguns raros fragmentos cerâmicos – Camada 10. Neste mesmo contexto constatou-se que existiam 3 peças cerâmicas, que pareciam ter sido depositadas deliberadamente sob o pavimento (Fot. 35), designadamente uma panela praticamente inteira (Fig. 9, n.º 4), uma almotolia em excelente estado de conservação (Fig. 9, n.º 3), com tipologia comum para os ambientes islâmicos dos séculos XI/XII e ainda a metade inferior de uma bilha, colocadas ao contrário. Esta ocorrência poderá estar relacionada com a realização de algum ritual de preparação do terreno, com vista à construção do edifício, que pensamos terá ocorrido logo em finais do séc. XII, após a outorga do foral de D. Afonso Henriques em 1170. Sob a Camada 10 surgiram outros dois depósitos distintos. A Camada 11, arqueologicamente mais limpa, era constituída por terra castanha, mais compacta e argilosa, com raros elementos pétreos, raros carvões soltos e algum escasso material cerâmico (construção e comum). Ao mesmo nível identificou-se uma outra camada bege alaranjada, arenosa como a Camada 10, mas igualmente com raros elementos pétreos, poucos carvões e escassos fragmentos cerâmicos – Camada 12 (Fig. 7). Tudo aponta para que sejam níveis sedimentológicos em deposição secundária, à semelhança da Camada 19 da Sondagem 1. A escavação foi concluída nestes dois níveis. Com vista a uma melhor caracterização da Estrutura 3, em especial da sua parede/muro Este que, de acordo com o projecto teria que ser afectada, procedeu-se a um alargamento pontual da sondagem. Nesta acção constatou-se que este troço de parede, na face correspondente, sem reboco, servira de talude relativamente às cotas de circulação exteriores, coevas da sua construção, encontrando-se o pavimento do respectivo compartimento a uma cota inferior, relativamente ao exterior neste quadrante.
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Foto 32 – Pormenor da vala da fundação Sul da Estrutura 4.
Foto 33 – Detalhe da canalização cerâmica integrada no muro / Estrutura 4.
Foto 34 – Pormenor do buraco de gonzo realizado numa das tijoleiras do pavimento (Estrutura 5), assinalando a existência de uma porta neste espaço, entretanto afectado pela vala da EPAL. Atente-se também, no lado esquerdo, ao detalhe da sobreposição da Estrutura 2, sobre a Estrutura 3.
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Foto 35 – Aspecto da escavação após o levantamento do pavimento em tijoleira, observandose duas peças cerâmicas (uma panela quase completa e a metade inferior de uma bilha) colocadas em posição invertida.
Figura 7 – Sondagem 2. Perfil Sul.
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Este alargamento da Sondagem 2 permitiu constatar ainda que existiam outras estruturas que se desenvolvem para Nascente (Estruturas 10, 11, 12 e 13), mas que dada a exiguidade do espaço, não foi possível caracterizar. Ainda assim, de acordo com as respectivas técnicas construtivas, identificadas na intervenção, por analogia com as demais estruturas entretanto identificadas, pode colocar-se a hipótese de que a Estrutura 11 esteja relacionada com o edificado a que já aludimos e que foi demolido na primeira metade do séc. XIX, sendo contemporâneo do actual edifício; a Estrutura 12 parece articular-se com a Estrutura 14 da Sondagem 1, sendo, igualmente bastante idêntica à Estrutura 4 desta Sondagem (Fot. 36). Sob os níveis recentes (Camadas 1 e 1B) escavouse o que parece tratar-se de um eventual pavimento em argila compacta rosada, com alguns sinais de fogo – Estrutura 9, que terá sido bastante perturbado pelas raízes de uma árvore entretanto removida, aparentando algumas semelhanças com o pavimento da Estrutura 14. Expôsse ainda uma nova estrutura, com orientação Este/Oeste, que adossava à Estrutura 3 - Estrutura 10 (Fot. 36), à qual parece sido adossada a Estrutura 12, que já fora identificada na sequência do desmonte das Estruturas 2 e sobretudo da Estrutura 6 (também oportunisticamente implantada sobre esta pré-existência) distinguindo-se pela sua argamassa alaranjada e medianamente compacta. De referir de igual modo o que parece tratar-se do arranque do remanescente do embasamento de uma
parede com orientação Norte/Sul, que se desenvolverá para Nascente do perfil E, e que julgamos corresponderia ao respectivo limite do compartimento a que pertencia o pavimento identificado como Estrutura 1 – Estrutura 11. Uma vez removido o remanescente da Estrutura 11, escavou-se um depósito de terra castanha esverdeada, siltosa, com carvões soltos, material pétreo informe, algumas argamassas soltas e em conglomerados, assim como material cerâmico diverso (construção e doméstico) que parece apontar para uma cronologia de meados do séc. XIV – Camada 17, sob a qual se limpou a Camada 14 que parece tratar-se do nível sobre o qual foram implantadas as realidades registadas. Contudo, na face do perfil Este constatou-se que existia uma eventual fossa, ou buraco de poste – Estrutura 15, de que apenas se expôs a metade Oeste (Fot. 37 e Fig. 8). Na sua escavação considerou-se uma nova camada – Camada 17A, ainda que não se tenha detectado qualquer diferença relativamente ao nível sobrejacente. De entre o espólio exumado neste contexto, não podemos deixar de referir o aparecimento de um molde em argila para fundição1, no qual se reconheceu a parte frontal de uma figura demoníaca, possivelmente um incubus, personagem do imaginário medieval que perseguia mulheres indefesas (Fig. 9, n.º 6). Tal como já se referiu, esta sondagem terminou com a realização de um alargamento para Norte, de cerca de 2 mX2 m, que consistiu apenas na abertura de valas
Foto 37 – Alargamento E da Sondagem, observando-se a escavação parcial de uma eventual fossa (Estrutura 15).
Foto 36 – Vista das Estruturas 10 e 12, que se desenvolvem a partir da Estrutura 3, desenvolvendo-se para debaixo do perfil Este da Sondagem 2
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1 Agradecemos ao Sr. Eng.º Monge Soares, do Campus Tecnológico e Nuclear do Instituto Superior Técnico, aguardando para breve a publicação dos resultados dos estudos arqueométricos realizados, assim como de um estudo mais detalhado deste molde.
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Figura 8 – Sondagem 2 (Alargamento Este). Perfil Este.
periféricas, com cerca de 30/40 cm de largura e 40/50 cm de profundidade, nas quais se colocou o embasamento do arranque inferior da nova escada, apenas com a afectação dos níveis superiores. 3.2.4. Vala 1
A Vala 1 foi aberta no exterior para a renovação da ligação do esgoto do edifício ao colector no eixo da Rua do Capelão, em frente à porta com o n.º 2A, com uma profundidade máxima de 1.20 m em relação à cota do pavimento actual, com uma extensão maior do que a que efectivamente seria necessária. (Fot. 38) A abertura desta vala permitiu expor parcialmente a face externa da Estrutura 17 identificada no interior, igualmente rebocada, sugerindo tratar-se também da primitiva fachada do imóvel preexistente, registada nesta unidade de escavação como Estrutura 5 (Fot. 39). Com efeito, não foi identificada qualquer outra realidade estrutural, definida a partir dela, ao contrário do que sucedeu no interior, onde a Estrutura 16 se desenvolve, com orientação Norte / Sul. Uma vez removidos os níveis resultantes de intervenções urbanísticas recentes, verificou-se existir um nível geral de aterro, interceptado pelo colector existente, em cuja composição se recolheram materiais cerâmicos diversos, por vezes peças inteiras, apontando para a génese deste contexto em meados ou finais do séc. XIV – Camadas 3 e 4, bastante semelhante aos contextos (Camadas 20, 21, 22, etc.) registados no interior.
Foto 38 – Aspecto inicial da abertura da Vala 1 na Rua do Capelão.
3.2.5. Vala 2
A Vala 2, definida no exterior, próximo da fachada tardoz do edifício, destinou-se à colocação de uma infraestrutura / caixa de telecomunicações, com um diâmetro de 1.50 m. e respectiva ligação, assumiu contudo uma forma aproximadamente quadrangular. Em acompanhamento arqueológico, registou-se a remoção de um pavimento em tijoleira (Estrutura 4), outro em terra batida (com sinais de fogo - Estrutura 3) e alguns conglomerados de argamassa amarela, que certamente estarão ainda relacionados com o logradouro que aparece registado no levantamento de Filipe Folque de 1856/58. Ainda neste mesmo contexto recente, coevo
Foto 39 – Estrutura 5 – aspecto do exterior da parede pré-existente sobre a qual está implantada a actual fachada (cfr. Fot. 20).
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do actual edificado, afectou-se mais um troço de uma antiga canalização em alvenaria, entretanto desactivada, possivelmente oitocentista, no lado Sul desta Vala – Estrutura 1 (Fig. 3 e For. 40), cuja construção parece ter sido bastante intrusiva. Perante a perspectiva de uma realidade patrimonial complexa, o acompanhamento foi substituído pela escavação arqueológica, tendo-se procedido a uma regularização e a um alargamento da vala que permitiu registar as diferentes ocorrências. Ao removerem-se os níveis mais superficiais (Camadas 1, 1a, 1b e 2), foi possível registar um possível pavimento em terra batida - Estrutura 3 que, uma vez removido, deu lugar à Camada 3 que cobria um pavimento em tijoleira – Estrutura 4, delimitado a Oeste pelo remanescente de um muro em alvenaria de argamassa alaranjada, muito superficial – Estrutura 5 (Fot. 41). Aquelas realidades provavelmente relacionadas com o restante edificado, em que o actual prédio esteve inserido até meados da primeira metade do Séc. XIX, foram posteriormente afectadas pela construção da Estrutura 1, a Sul. Uma vez removidas constatou-se que existia uma nova camada argilosa verde, com material antrópico, em quase toda a área – Camada 5, juntamente com outra camada igualmente argilosa bege, quase sem material arqueológico – Camada 4. No lado Sul, registou-se a afectação resultante da implantação da Estrutura 1 e da Camada 2 que estava associada à sua vala de construção (Camada 3) e que resultou do remeximento das camadas 4 e 5, com bastante material cerâmico (por vezes inteiro), cuja cronologia aponta para a segunda metade do séc. XIV (Fig. 9, n.º 2). No lado Poente da Vala, a remoção da Estrutura 5, permitiu constatar que se sobreponha a outra mais antiga, a Estrutura 7, parede, com uma tipologia de construção em tijolo e argamassa, distinta das demais identificadas durante esta intervenção (Fot. 42), ocupando todo o perfil Oeste da Vala. As exíguas dimensões da vala e a localização desta estrutura, impediram a recuperação de qualquer contexto fiável associado, mas tudo parece indicar que esteja cronologicamente relacionada com a ocupação assinalada pela Estrutura 4 da Sondagem 1. Embora já tivesse sido detectada no acompanhamento inicial, com a remoção daqueles níveis foi possível expor no lado Este uma estrutura bastante idêntica às Estruturas 8 e 16 identificadas no interior, composta por pedra calcária informe de calibre médio e pequeno, com ligante de argila e escassos fragmentos cerâmicos – Estrutura 2 (Fot. 43 e Fig. 3). Parece pois tratar-se igualmente de uma das realidades construtivas mais antigas, que de acordo com o espólio recolhido deverá remontar aos inícios do séc. XIV, ou mesmo aos finais do séc. XIII. Sob as Camadas 4 e 5, para além da Estrutura 2, definiu-se ainda a Camada 7 – comum a toda a área, muito arenosa, ainda com escassos materiais antrópicos, sendo por isso bastante semelhante à Camada 19 da Sondagem 1. A escavação terminou com a detecção de um outro nível subjacente, muito siltoso, amarelo com laivos ocráceos, sem material antrópico – Camada 8. No acerto do perfil Norte foram identificadas outras realidades arqueológicas, que não foi possível caracterizar, pois deverão ter sido interceptadas pela construção da Estrutura 1. Concretamente verificou-se que existia
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um outro pavimento em tijoleira que foi registado como Estrutura 8 (Fot. 44), possivelmente relacionado com a Estrutura 7 e ainda o arranque de um novo muro com orientação Sul/Norte, paralelo à Estrutura 2, a Estrutura 9 (Fot. 45). De salientar que este novo muro parece ter uma técnica construtiva distinta, aliás numa situação idêntica à associação de muros que foi registada na Sondagem 2, entre as Estruturas 4 e 7 e as Estruturas 10 e 11, o que a nosso ver poderá corresponder ao adossamento de unidades habitacionais distintas, edificadas em períodos diferentes. Uma outra originalidade da Estrutura 9 consiste na reutilização de um elemento pétreo decorado (com uma espécie de cartela inscrita) logo no seu embasamento, encoberto pela Estrutura 2, que teve que ser desmontada (Fot. 46). É por isso possível que se trate de alguma construção relacionada com a ocupação que este espaço teve nos séculos XVI, XVII e XVIII, de que restaram poucos vestígios. 4. Considerações Finais Apesar das circunstâncias da obra e da escavação terem causado impactos negativos na intervenção arqueológica, os presentes trabalhos vieram demonstrar que, habitualmente não considerada prioritária no âmbito da realização de uma obra, a informação arqueológica recolhida constitui sempre uma mais-valia para o conhecimento da ocupação de um determinado espaço urbano. Neste caso, a realidade arqueológica imediatamente subjacente aos níveis de ocupação contemporâneos, parece remontar a meados ou finais do séc. XIV. De acordo com a estratigrafia analisada, o local da “Casa da Severa” foi ocupado por estruturas habitacionais desde o século XII (época em que foi criada a Mouraria da Lisboa cristã) interruptamente até aos finais do século XVII e novamente do século XIX até aos dias de hoje. A inexistência de vestígios estruturais e/ou contextuais do século XVIII no local, nomeadamente os expectáveis relacionados com o terramoto de 1755, parece indicar que o edifício foi alvo de reconstrução nos finais do século XVIII/ inícios do XIX de uma forma que fez desaparecer os vestígios do século XVIII. Contrariamente ao que sucede em outros locais da cidade não foi detectado qualquer contexto relacionado com o Terramoto de 1755, ainda que também tenha ficado bem claro que o actual edifício resultou do reaproveitamento do refugo dos escombros desse mesmo cataclismo. O terramoto de 1755 há-de ter provocado tamanho dano no edifício de então que a solução terá sido a construção de raiz de um novo edifício no local que, aproveitando elementos anteriores, deixou sob si, escondidas, algumas memórias de edifícios bem mais antigos, mas praticamente nenhuma da estrutura habitacional que existia no local na altura do sismo. Outro aspecto interessante decorre dessa sobreposição parcial e oportunista, do actual prédio sobre estruturas pré-existentes. É o caso, por exemplo, da actual fachada principal, que a nosso ver se relaciona com a consolidação de uma via urbana antiga, segundo alguns autores, a Rua Direita (OLIVEIRA, VIANA, 1993, p. 194). Esta parece ter-se implantado sobre, ou junto, a
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Foto 40 – Maciço em alvenaria (Estrutura 1), pertencente ao caneiro oitocentista entretanto desactivado e desmontado.
Foto 42 – Parede em tijoleira (Estrutura 7), interceptada no lado Sul pela Estrutura 1. No topo ainda é visível o remanescente da Estrutura 5.
Foto 41 – Aspecto do remanescente estrutural (Estruturas 4 e 5) pertencente ao antigo casario, coevo da actual construção, mas que terá sido demolido durante o Século XIX.
Foto 43 – Vista da Estrutura 2, em argila e pedra calcária de calibre médio e pequeno, desmontada para a construção da infra-estrutura pretendida.
Foto 44 – Aspecto final do perfil Norte da Vala, no qual se observam realidades arqueológicas diferentes das que forma registadas durante os trabalhos de escavação, designadamente um pavimento em tijoleira (Estrutura 8) que parece estar articulado com a parede / Estrutura 7.
Foto 45 – Aspecto final do perfil Norte da Vala, destacando-se um grande elemento pétreo que parece constituir o embasamento de uma nova parede/muro (Estrutura 9).
Foto 46 – Detalhe da face decorada do elemento pétreo pertencente à Estrutura 9.
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uma linha de água secundária, subsidiária da Ribeira de Arroios, num vale relativamente encaixado, que se prolonga para Norte em direcção à actual Calçada dos Cavaleiros, e que para Sul, possuindo uma inclinação mais suave, permitiu uma urbanização pautada por pequenos desníveis de pavimentos de circulação, no interior das construções primitivas, tal como identificámos em toda a área intervencionada. De acordo com os resultados desta intervenção, a cota de circulação desta via terá sido alteada em meados do séc. XIV. Aliás, conforme já se referiu esta rua até há relativamente pouco tempo, era conhecida pela imundície e pelas enxurradas que ciclicamente a afligiam. Com efeito, em 1685 os religiosos do Coleginho são obrigados a construir e a manter um cano que ligaria o mosteiro a uma canalização pública na Rua da Mouraria (OLIVEIRA, 1887, pp. 556-557), eventualmente sob o actual edificado no lado Norte da Rua do Capelão, em cujo documento se refere ainda o cano público da Rua dos Cavaleiros e outro privado dos Meninos Órfãos. Todavia, esta preocupação com o saneamento em Lisboa já consta na carta de D. João II de 1486, ao Senado da Câmara em que atribui a peste que grassa na cidade aos pecados dos lisboetas, mas também à imundice das esterqueiras e monturos que se formam continuamente e salienta a necessidade de se manter a cidade limpa, preconizando a instalação de uma rede de canalizações para esgoto em Lisboa, em que se conjugam canos públicos e privados, cuja manutenção e limpeza é obrigação da CML (OLIVEIRA, 1887, p. 463). A identificação de várias estruturas, com técnicas construtivas distintas, por vezes adossadas umas às outras, demonstra uma considerável vitalidade urbanística, neste espaço – a Mouraria, que se foi constituindo e acrescentando, paulatinamente ao longo dos séculos XII a XIV. Todavia, de acordo com o registo arqueológico da presente intervenção, o século XIV parece ter correspondido a um período especialmente fértil em construções, reparações, reconstruções e alterações, o que não deixa de ir ao encontro do registo histórico que, para esse período, assinala a ocorrência de pestes (RODRIGUES, 1994, p. 339), guerras (BESSA, 1994, pp. 264-265) e fenómenos sísmicos violentíssimos (FERREIRA, 1994, pp. 904). O espólio arqueológico recolhido é constituído maioritariamente por cerâmica de cozinha e mesa, reflectindo as vivências domésticas do sítio de um período de longa duração que vai dos fins do século XII ao XVII e depois do XIX em diante, verificando-se a quase inexistência de materiais do século XVIII. Ainda que nem sempre registado nas circunstâncias ideais, enquadra-se maioritariamente no âmbito cronológico medieval, com uma clara preponderância do século XIV. Sendo considerável em quantidade, também a qualidade merece um estudo próprio e integral a realizar brevemente, ainda que de momento se apresentem alguns exemplos (Fig. 9). Os restos faunísticos que foi possível recolher durante as intervenções arqueológicas oferecerão, em estudo a publicar proximamente, indicações sobre os hábitos alimentares das pessoas que residiram e frequentaram aquela zona, reflectindo ou não, aspectos religiosos a que a comunidade islâmica está sujeita. Igualmente, os vestígios de uma eventual oficina de talhe de osso, lem-
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bram-nos uma actividade entretanto desaparecida e que a par com outras contribuiu para a economia local. Já o molde de fundição representando uma figura demoníaca, peça destacável de entre o espólio recolhido, datável dos séculos XIV e XV, é um vestígio material directo de um ambiente cultural muito ligado à superstição e ao misticismo numa cidade onde conviviam comunidades de credos diferentes, segregadas legalmente por regulamentos que vincavam e promoviam as diferenças, mas que afinal tinham, aparentemente, muito em comum, no que respeita à forma como preenchiam e solucionavam incertezas e receios deixados por resolver, ou tratados ineficazmente, pelos cultos religiosos que praticavam. Comunidades afastadas pela religião, mas próximas nas superstições2.
Figura 9 – Amostragem de espólio cerâmico exumado (autoria: Luísa Batalha). 1: TAÇA produzida em cerâmica comum vermelha, com bordo extrovertido, bojo globular, quatro asas verticais arrancando do colo cilíndrico, fundo com pé anelar. A superfície exterior é brunida e decorada com duas linhas paralelas incisas ao longo da parte superior do bojo e duas fiadas de puncionamentos circulares (uma delas sobreposta às duas linhas incisas) e as quatro asas apresentam uma série de caneluras verticais. Produção lisboeta. Séculos XIII-XIV. Dimensões: altura 140mm, diâmetro de bordo 160mm, diâmetro de pé 60 mm. Nº de Inventário: LS2 2012/2013 CC313. 2: FUNDO DE TAÇA cujo bordo não foi conservado, de caldeira baixa e fundo plano com pé anelar. No interior, decoração esmaltada a branco com motivo heráldico a verde e manganês ao centro. Produção de Paterna (Valência, Espanha). Primeira metade do século XIV. Dimensões: diâmetro do pé 60mm, altura 50 mm. Nº de Inventário: LS2 2012/2013 CF3. 3: GARRAFA em cerâmica comum com bordo trilobado e bico vertedor, colo estreito marcado por um ressalto de onde arranca uma asa vertical, bojo piriforme e fundo plano. A superfície exterior, escurecida pelo processo de cozedura (arrefecimento redutor) é decorada com duas linhas paralelas incisas ao longo da parte superior do bojo. Produção lisboeta. Séculos XII-XIII. Dimensões: altura: 150mm, diâmetro de bordo 35mm, diâmetro de fundo 60mm. Nº de Inventário: LS2 2012/2013 CC317. 4: PANELA em cerâmica comum com engobe vermelho, bordo extrovertido plano decorado com uma linha incisa, bojo globular decorado com caneluras horizontais, duas asas verticais e fundo plano. Produção lisboeta. Séculos XII-XIII. Dimensões: altura 110mm, diâmetro de bordo 130mm, diâmetro de fundo: 80 mm. Nº de Inventário: LS2 2012/2013 CC316. 5: ELEMENTO DE CANALIZAÇÃO de forma cilíndrica com bocal de encaixe no extremo conservado, produzido em cerâmica comum com engobe vermelho. Produção lisboeta. Século XIV. Dimensões: diâmetro do bocal 130mm; altura conservada 310mm. Nº Inventário: LS2 2012/2013 CC365. 6: METADE DE MOLDE para fabrico de estatueta metálica, em cerâmica comum, de forma vagamente rectangular; na superfície exterior, arredondada, com marcas de fogo e uma linha incisa no extremo superior e outra no extremo inferior; na superfície interior, plana, o negativo frontal de figura demoníaca. Produção lisboeta. Séculos XIV / XV. Dimensões: altura 140mm, largura 65mm, espessura 20 mm. Nº Inventário: LS2 2012/2013 CC320.
2 Gostaríamos de agradecer, em primeiro lugar à colega Dr.ª Eva Leitão, geóloga do CAL, que acompanhou e apoiou os trabalhos no terreno e na limpeza e tratamento dos mesmos. Agradecemos também ao Dr. Tiago Curado que, nos seus tempos livres, nos apoiou igualmente no terreno e no trabalho de gabinete. Outro agradecimento para o topógrafo António Carvalho da UITCH/CML e para a Dr.ª Luisa Batalha pelo entusiasmo no registo gráfico do espólio, com quem aliás tencionamos publicálo. Finalmente não podemos também deixar de agradecer aos trabalhadores/serventes que partilharam connosco esta intervenção, aos colegas da Divisão de Construção de Equipamentos e ainda à população local que amiúde nos foi visitando e partilhando o evoluir dos trabalhos.
Casa da Severa, memórias arqueológicas de um espaço (Lg. da Severa n.º 2, Lisboa, Mouraria)
Uma cidade em escavação
411
Ana Isabel Caessa, António Marques, Nuno Mota
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
O presente artigo incide sobre os testemunhos arqueológicos encontrados durante os trabalhos de escavação na Rua do Comércio nº 1 a 13, em Lisboa, ocorridos entre os anos de 2013 e 2015. O edifício localiza-se na Baixa Pombalina, mandada construir após o terramoto de Lisboa de 1755. Durante o século XX teve como inquilinos diversas sociedades industriais, nomeadamente a loja/depósito das “Fábricas Triunfo”, cujo testemunho sobrevive através das suas placas publicitárias em mármore, ainda observável num dos cunhais do edifício. De acordo com A. Vieira da Silva, seria esta a localização do antigo largo do Pelourinho. Os testemunhos arqueológicos parecem confirmar esta informação, visto ter surgido uma grande área calcetada com seixo de rio de pequena e média dimensão, no interior do edifício. Foram ainda identificados os vestígios das estruturas que confinavam com o Largo do Pelourinho, sendo que uma delas poderá corresponder, de acordo com as plantas de Vieira da Silva, a remanescentes da antiga Alfândega Velha. Os materiais arqueológicos recolhidos durante a intervenção, corroboram com esta diacronia ocupacional do espaço e inserem-se essencialmente, no hiato temporal compreendido entre os séculos XIII a XVII. PALAVRAS-CHAVE:
Largo do Pelourinho, Lisboa, Medieval, Moderno.
ABSTRACT:
This article focuses on the archaeological remains found during excavations works in Rua do Comércio nº 1 a 13, Lisbon, between the years 2013 and 2015. This building is located at Baixa Pombalina, built after the Lisbon earthquake of 1755. During the twentieth century had as tenants several industrial societies, including the store/warehouse of Fábricas Triunfo whose testimony survives through its advertising boards made in marble, still present in one of the corners of the building itself. According to A. Vieira da Silva, this would be the location of the old Largo do Pelourinho. The archaeological evidences seem to confirm this information, a large area paved with small and medium size river pebble, was found inside the building. There were also identified the traces of the structures that bordered the Largo do Pelourinho, one of which may correspond, according to the plans of Vieira da Silva, to the remains of the former Alfândega Velha. The archaeological materials collected during the intervention, corroborate this occupational diachronic space and are essentially part of the time gap between the XIII and the XVII centuries. Key words:
Largo do Pelourinho, Lisbon, Medieval, Modern.
Rua do Comércio nº 1 a 13. Sociedade de Mercearias e Farinhas Limitadas, “Fábricas Triunfo”, foto dos anos 70
3.13 Rua do Comércio nº 1 a 13, Lisboa: metamorfose espacial
Alexandra Krus Arqueóloga, Atalaia Plural Lda. alexandra.krus@gmail.com Isabel Cameira Arqueóloga, CAL/DPC/DMC/CML isabel.cameira@cm-lisboa.pt Márcio Martingil Arqueólogo, Taipa Arqueologia; IAP/FCSH/UNL marcio.martingil@taipaarqueologia.com
1. Intervenção arqueológica O presente artigo respeita aos resultados obtidos durante a intervenção arqueológica na Rua do Comércio nº 1 a 13, Freguesia de Santa Maria Maior, concelho e distrito de Lisboa. Os trabalhos arqueológicos realizaram-se entre Outubro de 2013 e Setembro de 2015, com alguns interregnos. Tratou-se de uma intervenção arqueológica de emergência, que teve como objectivo, a escavação integral da área de afectação e registo das áreas já afectadas. A intervenção arqueológica realizouse por áreas de trabalho, sempre em articulação com o prosseguimento da obra e seguiu as propostas metodológicas de P. Barker (BARKER, 1989) e E. Harris (HARRIS, 1991). 2. Resenha Histórica Conquistada aos muçulmanos em 1147, pelo primeiro monarca português, D. Afonso Henriques, e suas tropas, Lisboa manteve muito para além dessa época um traçado urbano caracteristicamente islâmico, de ruas estreitas e sinuosas com um grande número de becos, com especial ênfase no interior do antigo núcleo muralhado islâmico (actuais zonas do Castelo, Sé e Alfama) e nos arrabaldes imediatamente, contíguos. É precisamente, nos arrabaldes da Cerca Moura, próximo ao rio, que se localiza o local intervencionado. Se outrora se acreditou, devido às descrições da conquista de Lisboa por parte de Osberno (CARITA, 1999, p. 21) que, no momento de conquista da actual capital portuguesa aos “mouros” a cidade se resumia apenas ao núcleo intramuros da dita “Cerca”, sabe-se hoje que tal não aconteceria e que o próprio vale da Baixa já seria local construído e algo habitado. Todavia, focar-nos-emos
no local escavado e no espaço e ruas que lhe seriam contíguos. Assim sendo, os trabalhos decorreram, atentando à obra de Vieira da Silva, no sítio onde outrora esteve instalado o Açougue do Pescado, posteriormente apelidado de Largo do Pelourinho Velho. De origens presumidamente islâmicas (SILVA, 1987, p. 134), a venda de peixe na ribeira da cidade e o seu local vão sendo referenciados documentalmente várias vezes ao longo dos tempos. Ainda no reinado de D. Sancho II surgem algumas das primeiras alusões ao local no momento em que seu irmão D. Afonso (futuro Afonso III de Portugal) compra vários prédios e lojas ali próximos (CARITA, 1999, p. 27) e acaba por doar um lugar na ribeira, à Câmara, destinado à venda do pescado (SILVA, 1987, p. 134). No local da intervenção, algum tempo antes do reinado de D. Dinis foi aberta uma nova rua, apelidada de Rua Nova e é sobretudo devido às alterações que este monarca empreende nessa mesma rua e também no dito largo que a delimitava a nascente que, na época de D. Dinis, as referências ao sítio são um pouco mais numerosas. Apesar da Rua Nova ser de criação recente, o monarca decide ordenar a sua reformulação, tal como do largo junto a si, aquando da construção da nova muralha que visava proteger a cidade que se expandia cada vez mais para os arrabaldes da velha Cerca Moura e que estaria assim à mercê de ataques e pilhagens vindos do Tejo. Desta forma aquela que será uma das primeiras expressões do novo modelo urbanístico europeu e cristão na urbe de Lisboa, devido ao seu carácter de abertura e continuidade de espaços, contrário ao modelo de rua/ bairro islâmico de enorme privacidade e quase que intimista, sofre alterações, tanto no que respeita à sua largura como comprimento. Por se realizarem praticamente em simultâneo, 1294/1295 (CARITA, 1999, p. 33), a construção da muralha Dionisina (1294) está então in-
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Alexandra Krus, Isabel Cameira, Márcio Martingil
trinsecamente ligada à reformulação da Rua Nova e do Largo dos Açougues, localizado no seu topo a oriente, sendo este o local e as alterações que a nós mais importam, visto coincidirem com o lugar dos nossos trabalhos, como várias vezes já mencionamos. Surgido nas margens do Tejo devido ao seu assoreamento relativamente rápido e constante, no momento em que sofre a referida reestruturação o Açougue do Pescado revestia-se já de forte cariz e importância comercial na urbe, podendo isso ter sido razão suficiente para que se destruíssem algumas estruturas para aumentar o seu tamanho, durante o empreendimento ordenado por D. Dinis, que desta forma, para além das demolições que ordenou para a passagem do novo muro protector de Lisboa, também as terá ordenado para a reestruturação da rua e largo que lhe eram “vizinhos”. Limitado a norte pela antiga Alfândega Real (posteriormente denominada de Alfândega Velha) e “tendas” e “casas” que a esta estariam encostadas, sabemos que foi prática ao longo dos tempos destruírem-se algumas boticas adossadas à dita construção para que o Largo pudesse ficar mais desafogado (SILVA, 1987, p. 138). É precisamente durante a centúria quatrocentista que, por oposição à abertura de outra rua, que o local vê a sua nomenclatura alterada. Surgida a Rua Nova de El-rei, a antiga Rua Nova começa a ser nomeada de Rua Nova dos Mercadores - encontramo-la assim referenciada em documentação desde 1481 (SILVA, 1987, p. 94). No entanto, já muito antes disso o largo era denominado de Largo do Pelourinho, de acordo com documentação de 1392 (SILVA, 1987, p. 149). A terminologia parece surgir devido à existência de um tavolado no topo ocidental do largo (junto à Rua Nova dos Ferros) que teria próxima de si, ou seja já no largo, uma picota. Embora sem evidências concretas, terá sido essa picota, que previveu para além do tavolado e onde se afixavam os editais, que originou a denominação de “Pelourinho” primeiramente em relação a si mesma, e posteriormente ao próprio largo, como Largo do Pelourinho (SILVA, 1987, p. 149). Após este período o largo terá sofrido novamente alterações, como por exemplo, o seu calcetamento, que terá ocorrido durante o reinado de D. Manuel, aquando do calcetamento da “Rua Nova (dos Mercadores)”, devido à sua importância comercial para a cidade de Lisboa, visível por documento de 1552 (ano seguinte à morte de D. Manuel) que descreve o largo como sendo um local onde se vendia tudo (móveis, escravos, tecidos de linho, ouro, prata, etc.). No século XV, século esse durante o qual a denominação do sitio volta a cambiar, agora para Largo do Pelourinho Velho (cerca de 1544), não havendo, todavia, certezas de que essa mudança se tenha devido ao erguimento de outro(s) pelourinho(s) na cidade naquela época, ou se o acréscimo da palavra “Velho” se deveu apenas ao facto de já não se conhecer a época de origem do local (SILVA, 1987, p. 151). Abandonando as questões de nomenclatura e possíveis razões para tal, o que sabemos ao certo é que o Largo do Pelourinho Velho continuou a funcionar de forma fulgurosa no que respeita ao comércio na cidade de Lisboa, assumindo por isso grande valor e importância económica para as gentes lisboetas até ao reinado de D. José I, mais especificamente até ao grande terramoto de 1755, altura em que com cerca de 27 m de comprimento
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e 26 m de largura (SILVA, 1987, p. 133) é arrasado e transformado, pelo plano de reedificação da urbe. À altura do grande cataclismo sabemos ainda que aí desembocariam a Rua Nova dos Ferros e a Rua da Confeitaria a Ocidente, a Rua dos Ourives da Prata e de D. Julianes a Norte, a nascente a Rua do Meimão/Fancaria e o Beco de Espera-me-Rapaz/Beco do Inferno. Em direcção ao rio Tejo, encontraríamos algumas construções e as muralhas de D. Dinis e D. Fernando (Fig. 1). É precisamente com este acontecimento de grande escala que o largo é desactivado. O terramoto de 1755 permitiu tornar as ruas da baixa lisboeta mais organizadas e de grandes dimensões, desaparecendo obviamente os becos e as ruelas estreitas e sinuosas, tal como o emaranhado de pequenas habituações descontínuas em forma e dimensão e desorganizadas no espaço. Empreendida a reconstrução quase imediatamente a seguir ao cataclismo, a área do largo é limpa ficando, ao que indica o contexto arqueológico, na cota da calçada, nascendo a partir daí a nova edificação pombalina, caracterizada interiormente por pés-direitos altos, pavimentos lajeados, grandes janelas e bem organizadas e exteriormente por fachadas contínuas, semelhantes de grande beleza e funcionalismo. O local que outrora fora um importante centro comercial,é completamente integrado neste novo modelo urbanístico, correspondendo quase que ao limite oriental da Baixa Pombalina. É precisamente esta organização “reticulada” do novo modelo urbanístico da baixa lisboeta que a torna única e impar na cidade (bastante aproximado da matriz do actual Bairro Alto, mas com ruas mais amplas e desafogadas).
Figura 1. Ruas que desembocariam no Largo do Pelourinho até 1755, a vermelho (SILVA, 1987, p.133).
Rua do Comércio nº 1 a 13, Lisboa: metamorfose espacial
No século XX, o edifício serviu de sede e filial de diversas sociedades e firmas industriais de renome. Nomeadamente, os industriais e comerciantes F. H de Oliveira & Cª (Irmão), o Grémio dos Armazenistas de vinhos e a Sociedade Portugueza de Seguros. Destaca-se a Sociedade de Mercearias e Farinhas Limitadas, “Fábricas Triunfo” (Fig. 2), fundada em 1921 com sede em Coimbra. Esta possuiu uma loja e depósito de venda na Rua do Comércio 1 a 5, Rua da Madalena 33 a 39, assinalada com placas publicitárias em mármore rovina e letras em ouro colocadas em 1932. Actualmente foram removidas após reabilitação e construção de unidade hoteleira, estando no seu lugar o nome do respectivo hotel. Nos finais dos anos 60 o edifício apresentava-se em muito mau estado de conservação, encontrando-se praticamente sem inquilinos. Esta situação agrava-se nos anos 90 com a derrocada parcial do edifício. O perigo eminente de colapso total da estrutura levou, em 2006, à decisão camarária de se proceder à demolição do seu interior, mantendo apenas as fachadas. Sendo esta a realidade presente aquando da entrada dos arqueólogos em obra.
3. Contexto Arqueológico A leitura estratigráfica da área de intervenção permitiu identificar seis fases distintas de ocupação, evolução e transformação do espaço. I Fase
À primeira fase corresponde a implantação de estruturas em alvenaria de argamassa de terra e cal, de coloração amarelada, que se desenvolvem no sentido SE-NO. A implantação destas estruturas – sapatas – cortaram depósitos dos inícios do século XIII, como testemunham os fragmentos cerâmicos exumados. Estes fragmentos são na sua maioria cerâmica comum, de uso doméstico. A nível formal e funcional incluem-se nos serviços de cozinha (panelas, caçoilas, testos), nos serviços de mesa (jarrinhas, jarros, taças) e de armazenamento (talhas e cântaros). No conjunto da louça de cozinha, o grupo predominante é o das panelas – apresentam bordo extrovertido, com lábio de secção sub-triângular, colo cilíndrico e corpo globular.
Figura 2 - Em cima foto datada dos anos 70 ( Obra 8839; Volume 3 ; Processo 51076/DAG/ PG/1985 - Tomo 1; Página 9); infra, lado esquerdo publicidade luminosa no Rossio anos 80 (http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2011/02/fabricas-triunfo.html, consultado em Setembro de 2015); infra, lado direito publicidade anos 60 das fábricas triunfo (http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2011/02/fabricas-triunfo.html - consultado em Setembro de 2015).
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Alexandra Krus, Isabel Cameira, Márcio Martingil
As taças apresentam bordo extrovertido, de secção sub-triângular e sub-quadrangular, aplanadas superiormente e carena a demarcar a secção mesial do corpo (estampa 1, figuras 1, 2 e 3). As jarras apresentam bordo boleado e colo cilíndrico (estampa 2, fig. 10) e os testos caracterizam-se por apresentarem corpo troncocónico, paredes esvasadas e bordos boleados e triangulares (GOMES, GASPAR, et al., 2005, figura 27, p. 223) ou sub-quadrangulares (estampa 2, figura 9). Do ponto de vista decorativo apresentam decoração composta por bandas pintadas, de traço grosseiro na horizontal e vertical de barbotina branca (estampa 1, figuras 1,2, 4, 5, 6), em conjuntos de três ou quatro, sendo a única excepção, um fundo de taça com motivo em espiral, igualmente pintado a barbotina branca sobre engobe cinzento (estampa 2, figura 8). Corresponde ao grupo decorativo T.3, T.4.A, T.4.B, T.4.C e T5 da tipologia de Marco Liberato para a cerâmica pintada de Santarém da 2ª metade do século XII ao século XIII (LIBERATO, 2011, p. 90). A decoração é aplicada sobre o bordo, colo, asa e superfície externa das formas fechadas e no bordo, parede interna e fundo das formas abertas. Enquadram-se no espólio recolhido durante as escavações arqueológicas da Fundação Ricardo Espírito Santo (GOMES, SEQUEIRA, 2001, p. 107) e de Santarém (LIBERATO, 2011). Identificou-se igualmente, um fragmento de jarrinha com decoração esgrafitada (estampa 1, figura 7). Trata-se de uma técnica que consiste na aplicação de óxido de manganês na superfície externa da peça, na qual é aplicada uma decoração incisa através de um buril ou estileto, de modo a permitir formar motivos decorativos e contraste com a própria cor do barro, neste caso amarelada (PALAZON, 1986, p. 6). A técnica de esgrafitar remonta ao século X em peças mesopotâmicas, sendo depois utilizada também em peças egípcias desde o século XI e iranianas desde o século XIII. Era utilizada para fazer sobressair determinadas características decorativas, como o cabelo de uma figura ou os bordados de um traje, mas aplicada a peças de reflexo dourado (AMIGUES et alii,1987, p. 307). Podemos encontrar um exemplar desta técnica em Mértola, datado do século XII (TORRES, 1987, pp. 75-76). A sua produção na Península Ibérica data de inícios do século XII, atingindo o seu auge durante a primeira metade do século XIII, e prolongando-se possivelmente até ao século XIV, como é o caso de Paterna, Valência (PALAZON, 1986, p.7). Em Portugal surgem exemplos da técnica do esgrafitado sobre pintura a óxido de manganés, nomeadamente em Alcácer do Sal (PAIXÃO et alii, 2002, p. 379), Tavira (AAVV, 2012, p. 107), Mértola (TORRES et alii, 1991, p.534) e Silves (GOMES, 2003, p. 288) dos finais do século XII e inícios do século XIII. O fragmento identificado na Rua do Comércio pertence a uma jarrinha, e é composto por porção de bordo boleado e colo cilíndrico, apresenta pasta clara, de tom amarelado (Munssel 2.5Y8/1), com 2 mm de espessura. A temática decorativa é composta por cartela ou moldura que delimita motivo decorativo zoomórfico a óxido de manganês, sendo esgrafitado interiormente (olho e contorno da asa), e rodeada por motivos espiralados esgrafitados (estampa 1, figura 7).
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II-Fase
Num segundo momento, são construídas estruturas em argamassa esbranquiçada, de areia e cal que assentam sobre grandes seixos basálticos, orientadas no sentido SE-NO. Tal como as anteriores, assentam e cortam depósitos do século XIII. Estas estruturas poderão ser contemporâneas das estruturas identificadas na primeira fase e, ao contrário das anteriores, encostam à calçada do largo. Surgem novamente fragmentos de cerâmica semelhantes em forma e decoração às referidas anteriormente, com a excepção de um acréscimo decorativo com o uso de linhas ondulantes em barbotina branca na superfície interna, no fundo de taça (estampa 2, figura 11). Esta área desenvolve-se a NE da área de afectação e poderá, segunda a planta de Vieira da Silva (SILVA, 1987, Estampa 1,2 e 3), corresponder à Alfândega Velha. A dita estrutura desenvolve-se paralelamente às estruturas identificadas a Norte, da 1ª fase, no sentido SE-NO e exibe vestígios de um compartimento em piso térreo abaixo da cota da calçada, com pavimento de argamassa esbranquiçada e parede estucada a branco, com 80 cm de espessura e parede interna ou “repartimento” (CONDE, 2011, p. 62), em tijolo e argamassa de coloração esbranquiçada, com 30cm de espessura. Adossadas à parede Norte e mantendo a orientação desta, surgem as fundações de uma estrutura de planta quadrangular, construída em alvenaria de argamassa branca, à qual encosta a Oeste, um pavimento em argamassa. Este pavimento vai igualmente encostar à parede Norte e exibe desnível de NO-SE. Poderá corresponder às tendas e casas, ocupadas por cardadeiras de algodão, marcieiras e enxerqueiras que se encontravam instaladas debaixo dos arcos, a que apelidavam de Arcos da Alfândega (SILVA, 1987, p. 137). “Os que ficavam na direcção Leste-Oeste encontravam-se na seguinte confrontação (...)tendas do dito senhor (o rei) sob os arcos da nossa alfândega, da parte descontra o (contra, do lado do mar), que partem de uma parte com arcos descontra onde estão as enxerqueiras, da outra com arco e escada de pedra por que sobem às escadas de cima os ditos arcos, e por detraz com casas do arcebispado de Braga, e por diante com rua publica (rua dos Fancaria, de 1755) (1470)” (SILVA, 1987, pp. 137-138). Cobrindo estas estruturas estavam depósitos com elementos cerâmicos do XIV- XV. De uma forma geral o conjunto de cerâmica é composto, na maioria, por peças de cerâmica comum de uso quotidiano, nomeadamente louça de cozinha (panelas), louça de mesa (taças, jarros e pucarinhos), e louça destinada ao armazenamento (talhas). Relativamente à cerâmica de cozinha, as panelas possuem corpo globular e base achatada, oferecem bordo de secção quadrangular e asa fina de secção oval (estampa 3, figura 17 e 18). Apresentam marcas de exposição ao fogo no fundo, parede externa, asa e bordo. Podemos encontrar paralelo na forma e, aparentemente, nas pastas ao espólio cerâmico das entulheiras de Santo António da Charneca, datáveis dos finais do XV e primeira metade do XVI (BARROS et alii, 2012, pp. 702-703). O fragmento de alguidar recolhido apresenta bordo extrovertido e de secção semi-circular.
Rua do Comércio nº 1 a 13, Lisboa: metamorfose espacial
1).EHL13[132]-1130
2). EHL13[132]-1201
4).EHL13[132]-1106
3).EHL13[132]-1242
6).EHL13[132]-1101
5).EHL13[132]-671
7).EHL13[132]-108
Estampa1 Estampa 1
Uma cidade em escavação
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Alexandra Krus, Isabel Cameira, Márcio Martingil
8).EHL13[132]-1111
10).EHL13[132]-543
9).EHL13[132]-1383;1303;638
11). EHL13[1810]-5159
Estampa 2 Estampa 2
420 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Rua do Comércio nº 1 a 13, Lisboa: metamorfose espacial
Os púcaros, representativos da louça de mesa, mostram reduzidas dimensões e apresentam corpo globular, base plana e bordo semi-circular (estampa 3, figura 12 e 16). Os fragmentos de cerâmica esmaltada são de pequena porção e quantidade, de coloração azul a verde e correspondem a fragmentos de taça, de tampa e a um pequeno fragmento de garrafa de reduzidas dimensões. Os vidrados apresentam coloração castanha, melada, amarelada e esverdeada e “banham” as superfícies de taças, tigelas, jarros e alguidares. Destaca-se um fragmento de prato de fundo em ônfalo, com ambas as superfícies vidradas a castanho melado, que poderá corresponder a produções do XIV (GASPAR, GOMES, 2012, pp. 723-724). Evidencia-se ainda um fragmento de pichel (estampa 3, figura 20), que poderá assemelhar-se na decoração às produções das oficinas de Bruges (2015, p. 180). Corresponde a um fragmento de parede de pasta com margens oxidantes de coloração avermelhada (Munsell 2.5YR6/8) e núcleo redutor (Munsell 2.5YR5/2), apresentando na sua superfície externa vidrado verde-escuro aplicado sobre engobe branco e exibe decoração modelada a fresco por pressão digital a partir da superfície interior, de duas vieiras com linha incisa que demarca o arranque do colo (2015, p.180). Foi encontrada uma peça idêntica durante os trabalhos arqueológicos de 2002 na Rua do Ouro, pelo Centro de Arqueologia de Lisboa, sendo datada do século XIV/XV (2015, p.180). Em Santarém foi igualmente exumado um fragmento similar em contexto arqueológico datado do século XIV (CASIMIRO et alii, 2013, p. 939). Destaca-se ainda outro fragmento de jarro ou pichel exumado, com características distintas. A pasta apresenta-se bastante depurada, de cozedura oxidante, com núcleo e margem exterior esbranquiçada (Munsell 7.5YR8/1) e margem interior rosada (Munsell 7.5YR8/3). A superfície externa exibe vidrado a verdeclaro, aplicado directamente na peça, translúcido e brilhante, apresentando decoração plástica cónica, aplicada à superfície externa (estampa3, figura 19). Poderá corresponder a uma produção francesa (Fosses – Vallée de l’Ysieux, atelier 10.30, B.1.) datável dos finais do século XIII, inícios do XIV (GUADAGNIN, 2007, pp. 287-288). III Fase
Em 1501 são mandados derrubar os arcos e “(...) as casas com sobrados que estavam sobre os arcos apar da alfandega (...)” (SILVA, 1987, pp.137-138). Dois anos antes teriam sido mandadas demolir “(...) duas casas de boticas nossas (do rei) que estavam encostadas às casas da nossa alfandega e casa dos contos da nossa cidade de Lisboa (...)” (SILVA, 1987, pp. 137-138). Estas casas poderão corresponder às estruturas mencionadas na Fase II. Ao terceiro momento corresponde igualmente a construção da calçada do largo e a demolição das estruturas da primeira fase. A dita calçada é constituída por pedra basáltica disforme, de pequena e média dimensão e vai encostar às estruturas identificadas na segunda fase.
O calcetamento do largo poderá ter ocorrido durante o reinado de D. Manuel (1469-1521), aquando do calcetamento da Rua Nova dos Mercadores. Este obriga à reformulação espacial do Largo e à demolição efectiva das estruturas da 1ª fase, tanto a Norte como a SE da área de afectação, ficando as suas reminiscências cobertas pela calçada. IV Fase
Em assente de vereação de 27 de Abril de 1633 a câmara “(...) diligencia que a cidade fosse abastecida de água potável, em harmonia com as exigências da população e ao mesmo tempo pensava em ornar com fontes alguns logares publicos, taes como o Terreiro do Paço, S. Paulo, Terreiro da Boa-Vita e a praça do Pelourinho Venho (...)” (OLIVEIRA, 1887, p. 553). Esta referência documental remete-nos para Oeste do Largo, onde surge uma estrutura negativa – poço – em pedra afeiçoada, disposta em fiadas regulares, e ligante de argamassa de coloração esbranquiçada, contendo fragmentos de cerâmica de construção. Não foi possível efectuar na totalidade a sua escavação, nem aferir a sua cronologia, devido ao depósito de “calda de betão” solidificada que preencheu o interior do poço, aquando da colocação das micro-estacas actuais do edificado, anteriores à intervenção arqueológica. V Fase
A quinta fase corresponde ao Terramoto de Lisboa de 1755. Esta secção do largo não aparenta ter sido afectada, com excepção das estruturas que contornam o largo. Foi possível verificar que algumas áreas da calçada foram remendadas com argamassa e preenchidas por um depósito composto de fragmentos de cerâmica de construção, faiança, elementos pétreos de média e grande dimensão e nódulos de argamassa branca e amarela. Destaca-se um fragmento de prato com decoração vegetalista fitomórfico e pasta de coloração esbranquiçada (Munsell 10YR8/1), de produção holandesa (17201780) (MARQUES, FERNANDES, 2006, p. 195). Foi igualmente identificado um fragmento de cachimbo em caulino composto por fornalha, pedúnculo e arranque de haste. Apresenta típica decoração quadrangular junto ao bordo, as armas da cidade de Gouda encimadas pela letra “S”, em ambos os lados do pedúnculo e, na base deste, o número 47 coroado. O “S” significa slegd (inferior) e determina a qualidade do produto. São conhecidos paralelos formais em Lisboa, em produções holandesas setecentistas (1700- 1755) (CALADO et alii, 2013, p. 388). VI Fase
O último momento corresponde à reconstrução pombalina da baixa lisboeta e nomeadamente, à construção do edifício dentro do qual teve lugar a intervenção. Os trabalhos permitiram-nos concluir que a construção do edificado afectou apenas parcialmente o local.
Uma cidade em escavação
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Alexandra Krus, Isabel Cameira, Márcio Martingil
13). EHL14[1814]-5170 12). EHL13[1814]-5800
14). EHL14[1810]-5171
15). EHL14[1810]-5160
16). EHL14[1810]-4822
17). EHL14[1810]-4922
19). EHL14[1812]-5618
18). EHL14[1810]-5157
20). EHL14[1812]-5619
Estampa 3 Estampa 3
422 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Rua do Comércio nº 1 a 13, Lisboa: metamorfose espacial
A área mais afectada corresponde essencialmente, à parte Oeste do terreno, através da construção de um sistema de esgoto constituído por elementos pétreos de pequena e média dimensão com ligante de argamassa de relativa qualidade, apresentando “incorporado” na fachada Norte interior do edifício, vestígios do seu topo, em arco de tijolo e argamassa esbranquiçada. Além deste local podemos mencionar que as restantes afectações pombalinas correspondem aos lintéis de travejamento, que se desenvolvem no sentido O-E e S-N, e às sapatas do edifício rompendo desta forma a calçada do largo e estruturas adjacentes. Verifica-se que a área, após o terramoto, terá sido completamente limpa antes da reconstrução, deixando por isso o nível da calçada como cota zero de construção, sendo colocada a argamassa de assentamento das lajes pombalinas directamente na dita calçada. Quanto às estruturas que encostam à calçada observou-se também que foram sobrepostas/incorporadas nas sapatas e lintéis de travejamento referidos, e não totalmente destruídas, permitindo ainda, de forma não intencional, a previvência parcial das estruturas mais antigas, até aos dias de hoje. As afectações posteriores pertencem ao século XX, aquando da instalação dos esgotos e saneamento no edifício, e rasgam os contextos arqueológicos maioritariamente, a Oeste da área de afectação. 4. Considerações finais Durante os trabalhos arqueológicos que decorreram na Rua do Comércio identificou-se o que julgamos ser uma porção do antigo largo do Pelourinho (Velho). Apesar das dificuldades inerentes a uma interpretação deste conjunto, devido aos condicionalismos da intervenção em causa, é possível verificar que o Largo é uma estrutura dinâmica que se reestrutura em função das necessidade e vicissitudes dos tempos. A cidade cresce em riqueza, do ponto de vista artesanal e comercial, atingindo o seu pico no último quartel do século XIII. Até meados desta centúria, as igrejas e o mercado estão intimamente associados na cidade de Lisboa, encontrando-se a zona comercial activa nas proximidades da Sé. Posteriormente, a função comercial desloca-se para a baixa e porto. Esta tendência cresce a partir do primeiro quartel do século XIV, aquando da chegada dos mercadores estrangeiros, afirmando-se como entreposto comercial entre o Mediterrâneo e o Atlântico (SILVA, 2010, p. 298). Assim surge o Largo do Pelourinho, como parte constituinte do centro económico, no qual se localizam as seguintes instituições: a Alfândega Velha, a Casa dos Contos e a Casa do Peso; mas igualmente camarária, com os Paços do Concelho, junto do largo e da Rua Nova. A estas transformações espaciais pertence uma linguagem material que retrata as continuidades e rupturas de uma época: “O mediterrâneo continuava nos homens, nas técnicas, nas culturas. Mas a ligação marítima àquele mar foi, no início, fortemente atingida. O Mediterrâneo cristão só começara a afirmar-se em Lisboa no tempo de D. Dinis e de D. Afonso IV com a fixação dos merca-
dores e banqueiros italianos e de outras nacionalidades. Nos primeiros anos após a conquista, as ligações tradicionais ao Mediterrâneo muçulmano não só se tornaram difíceis como ficava vedado o acesso às fontes do ouro africano, almorávida e almóada. Os laços tradicionais com esse mundo vão ser reabertos pelos mercadores árabes e judeus de Lisboa, associados aos mercadores cristãos que, já no tempo de D. Dinis, se ufanavam de navegar a fazer sua prol para Flandres, França ou Além Mar” (COELHO, 2001, p. 242). Nas centúrias seguintes, o largo vai perdendo notoriedade em função de outros espaços, como o Terreiro do Paço, sendo muitas das suas instituições, nomeadamente a antiga casa aduaneira, transferida em 1526 para “casas novas”. Esta e a Casa dos Contos, pertença do rei, são vendidas em 1562 a D. Gilyans da Costa (SILVA, 1987, p. 139). Em 1755, e apesar da calçada do Largo aparentar ter sobrevivida ao terramoto, este espaço perde o seu “lugar” dentro do novo projecto urbanístico da Baixa pombalina e passa a servir, neste caso, de base de assentamento do novo edifício pombalino.
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
O artigo que se segue respeita aos testemunhos arqueológicos encontrados durante a intervenção na Rua do Jardim do Regedor, nº 10 a 32, Lisboa. Localizado “fora dos muros” da Lisboa Medieval e Moderna, na antiga Rua da Mancebia, junto às Portas de Santo Antão, o local é mencionado pela historiografia como apenas uma zona de hortas ou de construção abarracada. Todavia, os trabalhos efectuados demonstram que terá existido “construção sólida” através da descoberta de estrutura constituída por elementos pétreos disformes com ligante em argila e de outra também com elementos pétreos, argila e argamassa. Ambas, no seu momento de abandono ou destruição parecem ter sido entulhadas com detritos cerâmicos de época medieval/moderna. O espaço revelou ainda uma possível área de jardins fundamentada por uma estrutura que aparenta corresponder a um tanque de armazenamento de água ou a um lago artificial, visto ter imediatamente a seu lado uma zona calcetada com seixo de rio de pequena dimensão, de coloração preta, delimitada por seixos de média dimensão de coloração branca, e com motivos geométricos decorativos no interior a branco. PALAVRAS-CHAVE:
Faiança, grés, pavimento, estruturas, jardim.
ABSTRACT:
The following study concerns the archaeological remains discovered during the works that took place in Rua do Jardom do Regedor, nº10-32, Lisboa. Located outside the Medieval and Modern city wall, in the old Rua da Mancebia, close to Portas de Santo Antão, the location is mentioned in documents as an area with fields and precarious wooden buildings. However, the archaeological work showed that the reality was a bit different, with the presence of solid buildings made of irregular stone and plaster. When they were destroyed, they were filled with rubble and ceramic debris from the medieval and modern age. The area showed also the existence of a garden, substantiated with de discovery of a tank or artificial lake, right next to a black and white pebble pavement, with geometric decorative designs. Key words:
Faiança, German stoneware, pavement, archaeological structures, garden.
Rua do Jardim do Regedor. Fragmento de jarro globular em grés renano,séculos XV-XVI
3.14 Testemunhos Arqueológicos na Rua do Jardim do Regedor nº 10 a 32, Lisboa
Márcio Martingil
Arqueólogo, Taipa Arqueologia; IAP/FCSH/UNL marciomartingil@taipaarqueologia.com
1. Introdução Actualmente o local intervencionado e ao qual respeita o presente artigo localiza-se na Rua do Jardim do Regedor, nºs 10 a 32, antiga freguesia de Santa Justa, actual freguesia de Santa Maria Maior, concelho e distrito de Lisboa, presente na Carta Militar de Portugal, folha nº 431, escala 1:25.000. Os trabalhos aqui realizados ocorreram no âmbito de uma intervenção de emergência e salvaguarda do património arqueológico tanto no interior do edifício como na área do seu pátio exterior. Nesta perspectiva realizou-se o acompanhamento da abertura de várias sapatas dentro do edificado e a abertura de uma sondagem arqueológica no local onde se situam neste momento os elevadores da nova unidade hoteleira. Já na zona do pátio exterior os trabalhos realizados restringiram-se ao acompanhamento da remoção de terras e também ao registo gráfico das estruturas remanescentes detectadas durante o mesmo. Deste modo a informação tratada respeita na sua totalidade à realidade presente na denominada sondagem 1 e também às estruturas postas a descoberto no pátio traseiro do edifício. 2. Enquadramento histórico de acordo com a cartografia de época O edifício intervencionado localiza-se na outrora denominada Rua ou Beco da Mancebia, junto precisamente às hortas da mancebia e também às antigas Portas de Santo Antão, que após o grande terramoto de 1755 mudou de nome para Rua Nova do Jardim/Rua do Jardim da Inquisição e Rua do Regedor (SILVA, 1987, p.109). Historicamente as referências directas a este local da urbe de Lisboa são muito escassas ou mesmo ine-
xistentes por se localizar extra-muros o que nos levou a utilizar apenas referências à zona envolvente e principalmente cartografia/gravuras históricas conhecidas (deixando sempre a possibilidade de a mesma não ser absolutamente fiável, como sabemos e veremos). Nas imediações do local foram já descobertas estruturas remanescentes do sistema defensivo da antiga cidade de Lisboa, Cerca Fernandina, (nomeadamente no interior de alguns edifícios que confinam com a Travessa do Forno), sendo provavelmente, em época Medieval, a construção de maior importância nas proximidades, tal como as Porta de Santo Antão (Fig. 1). Devido à referida escassez de informação escrita relativa ao local, conseguimos apenas apurar que a ali existir construção em época medieval ou inícios da modernidade, teria um carácter bastante pobre e/ou abarracado ou que seria somente uma zona de hortas/jardins, como podemos observar na representação da cidade de Lisboa, dos finais do século XVI, elaborada por G. Bráunio (Fig. 2, local assinalado a vermelho). De uma forma relativamente mais concreta sabe-se quase que exclusivamente, como se pode observar novamente na figura 1, que seria o provável local de passagem do “Rego de Água”, vindo de São Sebastião da Pedreira em direcção ao Tejo, apesar de na área afectada por esta empreitada o dito “Rego de Água” não ter o seu traçado definido, nem terem sido encontrados vestígios do mesmo. No que se refere ao edificado, João Nunes Tinoco, por exemplo, não representa esta parte da cidade no seu trabalho de 1650, o que nos impossibilita de observar se o local a essa data já teria ou não alguma construção, levando-nos a remeter para o registo de 1756, de Carlos Mardel e de 1761, de Guilherme de Menezes. De acordo com as plantas dos autores, à altura o local parece estar já ocupado com algumas construções, no entanto,
Uma cidade em escavação
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Márcio Martingil
a sua tipologia/forma é bastante inconclusiva, podendo mesmo apenas referir-se à representação de um muro que delimitava um grande jardim/área arborizada extramuralhas, como se observa na Figura 3. De acordo com a observação da cartografia disponível conclui-se também que se no ano de 1844 os terrenos hoje ocupados pelo edifício intervencionado ainda não teriam construção concreta, em 1855 isso já aconteceria.
Apesar de tudo, a planta de 1855 representa a ocupação do local de uma forma ainda muito rudimentar, sem representar quaisquer detalhes da construção – Figura 4 (sem autor). Através desta análise cartográfica podemos supor que o edifício intervencionado (ou seu antecessor) terá sido construído entre 1844 e 1855, todavia, sem certezas concretas visto não se ter encontrado documentação da época que o confirme.
Figura 1 – Pormenor do traçado da muralha Fernandina e sua relação/proximidade com o arqueossítio intervencionado, assinalado a verde (in SILVA, A. V. da, 1987).
Figura 2 – Excerto da vista de Lisboa no século XVI, de G. Bráunio (in SILVA, A. V. da, 1987).
428 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Testemunhos Arqueológicos na rua do Jardim do Regedor nº 10 a 32, Lisboa
Figura 3 – Excerto de Planta de Lisboa, da autoria de Guilherme de Menezes, 1756 (in http://lxi.cm-lisboa.pt/ [consultado a 26 de Novembro de 2015])
Figura 4 – Excerto de planta de Lisboa, 1855 (in http://lxi.cm-lisboa.pt/lxi/ [consultado a 26 de Novembro de 2015])
Uma cidade em escavação
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Márcio Martingil
Apenas no ano de 1856/58, Filipe Folque representa o edificado com “detalhe”, como visível na Figura 5 onde observamos de forma inequívoca a presença de “objecto construído”, com um nível de detalhe bastante fiável, sendo possível concluir que, tanto a fisionomia do edifício, como do próprio pátio adjacente permaneceram praticamente imutáveis desde a sua construção até à data da intervenção a ser tratada (Fig. 5). Finalizando, explane-se que o local no decorrer do século XX foi utilizado como oficina, com várias estruturas de apoio a esse ofício, construídas no pátio, nomeadamente alguns barracões onde seriam guardados os materiais e onde trabalhariam os funcionários. 3. Realidade arqueológica – sondagem 1 Apesar da parca informação escrita de época, relativa ao local, a realidade arqueológica apresenta-se bastante diferente. Os dados recolhidos na sondagem 1 com cerca de 3,5 m de comprimento por 3 m de largura e 2,20 m de profundidade a norte da estrutura que a divide praticamente a meio e 1,50 m a sul da mesma (Fig. 6), permitem-nos traçar uma realidade relativamente diferente àquela. Abaixo do pavimento do edifício, que cremos ser original, após alguns níveis arqueológicos bastante perturbados, os dados arqueológicos começaram a revelar uma ocupação bastante interessante do espaço tanto a nível material como estrutural. Denote-se que todas as altimetrias presentes serão respeitantes a profundidades relativas a contar da soleira da porta número 28 da Rua do Jardim do Regedor, Lisboa. Durante os trabalhos de escavação da sondagem 1 surgiram duas estruturas, a primeira a uma profundidade relativa de 30 cm, designada por U.E. [012] e a segunda a cerca de 90 cm, designada de U.E. [017].
A estrutura designada por U.E. [017], encontrada a maior profundidade, localiza-se encostada paralelamente ao designado perfil Este, com orientação Sul-Norte (Fig. 6) e parece-nos senão a mais antiga, a primeira a ser desactivada, não apenas por se encontrar a profundidade superior, mas também devido à sua constituição exclusivamente em pedra de pequena e média dimensão com ligante a argila. Ao surgir aos 90 cm, como já referido, apresenta uma altura de cerca de 86 cm (ou seja, a sua base localiza-se a cerca de 186 cm de profundidade) e uma espessura de 70 cm, aparentando ter apenas um momento construtivo. Este muro parece não ter sido afectado pela construção da unidade murária [012], mas sim encostar à mesma, existindo um intervalo entre as duas de cerca de 0,5 cm de espessura. Sem vestígios de vala fundacional tornou-se difícil atribuir uma cronologia à estrutura pois a unidade estratigráfica onde assenta não ofereceu quaisquer fragmentos cerâmicos, com excepção para um elemento em osso, correspondente a uma noz de besta, que se encontrava precisamente por baixo do muro e que será tratada mais adiante. A segunda estrutura de maiores dimensões foi identificada como U.E. [012], desenvolve-se com uma orientação Este-Oeste e atravessa toda a extensão da sondagem como que a dividindo a meio (Fig. 6). Esta construção surge a uma profundidade relativa de 30 cm no perfil Este e de 60/70 cm no perfil Oeste com as alturas máxima e mínima de 176 e 143 cm respectivamente, com uma largura constante de 60 cm. Se a U.E. [017] apresenta apenas um momento construtivo esta apresenta possivelmente três, e com certeza dois momentos. Se na sua base a cerca de 210 cm de profundidade o aparelho corresponde apenas a elementos pétreos de médio e grande calibre com ligante a argila (tal como a estrutura anterior), a cerca de 170/180 cm de profundidade ocorre uma mudança bem demarcada
Figura 5 – Excerto da planta de Lisboa de Filipe Folque, 1856/58 (in http://lxi.cm-lisboa.pt/lxi/ [consultado em 26 de Novembro de 2015]).
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Testemunhos Arqueológicos na rua do Jardim do Regedor nº 10 a 32, Lisboa
Figura 6 – Plano final da sondagem 1, R.J.R. 10-32, Lisboa.
onde os elementos pétreos passam a ser de pequeno e médio calibre e o ligante de argamassa de tonalidade amarelada. Próximo do topo ainda preservado volta a surgir uma ligeira mudança, devido à colocação de uma aparente fiada de pedra de grandes dimensões coberta por elementos pétreos mais pequenos ligadas entre sim por uma argamassa mais esbranquiçada. Assentando ambas as estruturas na mesma unidade estratigráfica e encostando uma à outra, aparentam ter a mesma cronologia fundacional, todavia a estrutura de maiores dimensões parece-nos ter sido utilizada até um momento mais tardio, pois se na metade da sondagem a Norte desta construção e confinada a Este pela [017] não surgiram vestígios de nenhum pavimento e os próprios fragmentos cerâmicos recolhidos nos extractos não perturbados apontam para cronologias dos séculos XV/XVI (como veremos adiante) o lado a Sul da estrutura [012] apresentou uma sequência estratigráfica onde figuravam ou restos de níveis de pavimento ora em argamassa ora em tijoleira, ou níveis de pavimento intactos em argila com fragmentos de cerâmica moídos, muito compactados. De referir ainda que a face sul da estrutura [012] apresentava também largos vestígios de reboco de argamassa branca. 3.1. Conjunto cerâmico recolhido
De imediato é necessário clarificar que a cerâmica apresentada respeita ao lado a Este da estrutura acima mencionada. O lado Oeste apresentava-se bastante perturbado até ao primeiro nível de pavimento.
Após os níveis claramente perturbados a estratigrafia local da metade Este começou a mostrar-se bastante linear no que respeita às suas possíveis cronologias existindo aqui duas possibilidades. A primeira respeita à possibilidade dos depósitos corresponderem ao momento de desactivação das estruturas encontradas através do seu entulhamento rápido, o que teria permitido que as cronologias dos materiais arqueológicos sejam todas elas bastante similares e coerentes. A segunda hipótese que podemos considerar consiste na desactivação de apenas uma das duas estruturas, a de topo ([017]), visível na figura 6, através do seu entulhamento num só momento (apesar de existirem diferenças no que concerne aos sedimentos não as existem em relação às cronologias dos materiais exumados), tendo sido a segunda, a que divide a sondagem a meio (Fig. 6), reaproveitada na sua base e aumentada em altura. Parecenos aqui a mais fiável a segunda hipótese. Na metade Este da sondagem 1, após os 60/70 cm de profundidade relativa (em relação ao topo da sondagem), as cronologias dos fragmentos cerâmicos mantêmse lineares até aos cerca de 140 cm de profundidade relativa a contar do ponto já mencionado. Após essa profundidade os depósitos apresentaram-se praticamente estéreis, salvo excepções mais adiante explanadas. No intervalo referido as unidades estratigráficas que forneceram maior número de fragmentos foram as unidades [013], [015] e [019], sendo especialmente esta realidade a analisar. O conjunto artefactual aqui recolhido que cremos respeitar a um único momento de entulhamento, como referido, está claramente balizado entre os finais do século XV (cronologias de produção) e inícios da centúria seguinte (cronologias de utilização/previvência). Integram os elementos em estudo, fragmentos de cerâmica pertencente às oficinas do sul de Espanha (séculos XV/ XVI), de grés germânico (séculos XV/XVI), de faiança verde e branca, vidro de proveniência veneziana (séculos XV/XVI) e de forma claramente predominante cerâmica Malagueira/faiança esmaltada a branco (produção portuguesa e/ou espanhola). A cerâmica esmaltada a branco (cerâmica Malagueira)
Sendo a cerâmica Malagueira amplamente conhecida tanto em território nacional como em territórios do país vizinho, desde há muito que se coloca a questão quanto aos seus locais de produção e em que cronologias. Se a região andaluza apresenta produção de cerâmica esmaltada a branco primeiramente às oficinas portuguesas (finais do século XV), é hoje claro que em cronologias mais tardias esta cerâmica começa igualmente a ser produzida ou imitada no nosso país, mais propriamente após cerca de 1520, embora ainda sem uma “produção em massa”, antes de cerca de 1540/1550 (CASIMIRO, 2013, p. 354). Não se apurando evidências claras, através da análise dos fragmentos recolhidos, quanto à cronologia exacta do contexto em estudo, tornou-se claramente difícil atribuir um local de produção à cerâmica Malagueira. Devido a tal aspecto esta cerâmica tanto pode corresponder a importações da zona andaluza espanhola (Sevilha, onde são produzidas desde finais do século XV), como a fabrico nacional (após 1520), como mencionado. As formas recolhidas respeitam essencialmente a cerâmica de mesa, nomea-
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damente a fragmentos de pratos com fundos em ônfalo e escudelas/taças de carenas acusadas exteriormente. Quanto aos pratos estão presentes fragmentos de pastas de cor rosada/bege e amarelada, claras, esmaltadas a branco (óxido de estanho), base de assentamento em “aresta”, com fundo em ônfalo relativamente pronunciado, (ou bem pronunciado em alguns casos) e base rodeada por filete relevado. O bordo apresenta-se pouco ou nada espessado de lábio afilado/pouco afilado (Figs. 7 e 8, canto superior direito). Surgem igualmente fragmentos de prato esmaltados a branco de pastas amareladas claras, de base côncava com filete ligeiramente relevado no interior e de bordo ligeiramente boleado (Fig. 7), tal como fragmentos de bordo de prato, uma vez mais, esmaltados a branco de bordo ou boleado (uns com aba outros sem), ou levemente afilado também eles de pastas em tons rosa claro ou amarelo claro. Ainda dentro das cerâmicas esmaltadas surgem vários fragmentos de escudelas/taças, com local de produção uma vez mais portuguesa ou andaluza. As pastas destes fragmentos são de coloração amarela clara e o seu esmalte obviamente branco, devido ao óxido de estanho. São escudelas com bordos direitos, em alguns casos boleados, ou ligeiramente extrovertidos e lábios afilados ou suavemente afilados, apresentam carena acusada a meio na superfície externa do seu corpo e pé em anel (Figs. 9 e 10). Para este conjunto cerâmico encontram-se vários paralelos em território nacional com cronologias iguais/semelhantes, como é o caso dos exemplares recolhidos no poço-cisterna de Silves dos finais do seculo XV e inícios do século XVI (GOMES, GOMES, 1996, pp.143-145) ou na prisão do Aljube em Lisboa com as mesmas cronologias (AMARO et alii, no prelo).
Figura 7 – Fragmento de prato esmaltado a branco, R.J.R. 10-32, Lisboa - século XV/XVI.
Espólio de importação
No que respeita à cerâmica claramente de importação surgem-nos um fragmento de cerâmica proveniente de Sevilha ou Málaga, majólica italiana (Montelupo), grés renano e vidro azul veneziano. De proveniência espanhola, mais propriamente andaluza (Sevilha ou Málaga), existem apenas três exemplares, o primeiro, pertencente às oficinas de Sevilha ou Málaga esmaltado a branco (azulado) com motivos decorativos vegetalistas de cor azul de cobalto algo diluído no seu interior (séculos XV/XVI) e esmalte esbranquiçado no exterior. O fragmento permite-nos apenas concluir que corresponderá a uma taça, pois não apresenta vestígios nem de bordo nem do pé. Todavia, poderá pertencer a uma taça de bordo direito ou ligeiramente extrovertido e de pé anelar. O segundo e terceiro fragmentos pertencentes às oficinas sevilhanas, tratando-se um de uma parede cerâmica, sem vestígios de bordo, esmaltada a verde-escuro no exterior, e sem qualquer tratamento de esmalte na parte interior, revelando por isso uma pasta de tonalidades esbranquiçada ou amarela clara, onde se denotam perfeitamente as estrias de oleiro (Fig. 12) e outro a uma parede de taça, sem vestígio de bordo nem de pé, de pasta esbranquiçada/amarelada, decorada com duas linhas concêntricas e paralelas juntos ao que seria o bordo e outras duas na base em tom azul-cobalto diluído sobre esmalte branco (Fig. 11).
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Figura 8 – Fragmentos de pratos esmaltados a branco, R.J.R.10-32, Lisboa - séculos XV/XVI.
Figura 9 – Fragmentos de taça/escudela esmaltada a branco, R.J.R.10-32, Lisboa - século XV/XVI
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Figura 10 – Fragmento de taça/escudela esmaltada a branco, R.J.R.10-32, Lisboa - século XV/XVI.
De importação surgiram também alguns fragmentos de majólica italiana que nos parecem pertencer às oficinas de Montelupo, igualmente dos séculos XV/XVI. As peças correspondem a fragmentos de bordo, ou de parede e aba do bordo, de pequena dimensão e apresentam pastas claras (esbranquiçadas). A decoração é exibida em tonalidades azul-cobalto bastante diluído, azul-cobalto intenso, amarelo e laranja escuro (Fig. 13, canto superior direito), azul-cobalto e amarelo (Fig. 13, canto superior esquerdo) ou azul-cobalto, verde-claro e vinoso (Fig.13, em baixo). Peças semelhantes surgiram no Largo do Chafariz de Dentro, como refere António Vicente no seu trabalho académico intitulado “O Conjunto de Fragmentos de Grés Germânico” apresentado no seminário de mestrado de Arqueologia Moderna, em 2009, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e (SILVA et alii, 2012, p. 77). De importação italiana, também dos séculos XV/XVI surgem também alguns fragmentos de vidro, de fraca expressão. Estão presentes em pequeníssima quantida-
Figura 11 – Fragmento de taça andaluza, R.J.R.10-32, Lisboa - século XV/XVI. Figura 13 – Fragmentos de majólica italiana, R.J.R.10-32, Lisboa - séculos XV/XVI.
Figura 12 – Fragmento cerâmico sevilhano, R.J.R.10-32, Lisboa - século XV/XVI.
Figura 14 – Vidro italiano, R.J.R.10-32, Lisboa, século XV/XVI.
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de, e correspondem a um bordo com parte de pare de uma provável taça de pequenas dimensões, e ainda um fragmento que parece pertencer ao corpo de uma garrafa apresentando um pequeno “cordão” decorativo. São fragmentos de boa qualidade e em tom azul (Fig. 14).
fundo de taça (carenada?) ou escudela, com pé em anel, esmaltada a branco e vidrado verde. O esmalte aparenta ser de boa qualidade e a pasta de coloração esbranquiçada. Em Lisboa são conhecidos paralelos para esta peça, em contextos do século XVI na prisão do Aljube (AMARO et alii, no prelo) – Fig. 17.
Grés Renano
Juntamente com o espólio acima explanado encontravam-se também vários fragmentos de grés oriundo da zona da Renânia de produção dos finais do século XV inícios do século XVI. Esta peças destinavam-se ao armazenamento e consumo de líquidos desde o início da sua produção europeia no século XIII. Se até aos finais do século XV não apresentavam decoração, após essa data passaram a ser ricamente ornamentados, através de aplicação de várias formas decorativas em relevo, que podiam variar entre rostos masculinos com barba até a folhas, flores, bolotas, etc. Estas peças assumem em parte um carácter especial devido à técnica de produção de vidrado de sal (final do século XV, inícios do XVI), que consistia basicamente na adição de cloreto de sódio nos formos durante o período de cozedura, para que este quando em contacto com a pasta das peças lhe desse uma superfície vítrea, resistente, impermeável e brilhante. Os vários fragmentos encontrados durante os trabalhos, permitiram a colagem entre si, formando o fundo e parte da parede/bojo de um pequeno jarro de forma globular, dos finais do século XV inícios do século XVI, (visto apresentar decoração aplicada em relevo) de produção renana (germânica) – Fig. 15. O interior da pasta desta peça apresenta-se em duas tonalidades, por um lado bege/laranja clara, por outro, cinzenta, o que pode denunciar a ocorrência de algumas situações, como por exemplo a maior proximidade de um dos lados da peça à boca do forno ou a má impermeabilização do próprio durante a cozedura da cerâmica. Devido a essa mesma razão a superfície interna apresenta também uma variação de cor entre o bege e o castanho. Nesta superfície são perfeitamente visíveis as estrias de fabrico e um alisamento da pasta sem qualquer aplicação vítrea. A superfície externa do jarro tem uma decoração aplicada em forma de folhas longas com nervuras e flores distribuídas por vários medalhões, e também no exterior dos mesmos no caso das folhas, apresenta-se vítrea, e tem uma tonalidade castanha melada, mais espessa e brilhante nos locais decorados e menos espessa e brilhante nas áreas sem decoração. Este pormenor da peça denuncia no nosso entendimento a utilização da dita técnica de vidrado de sal, que pode, todavia, não ter aderido à peça na sua totalidade, deixando visível assim apenas um tratamento preparatório por engobe na zona inferior. A peça apresenta ainda um pé em forma de disco, com ligeiro ônfalo, com lábio de secção biselada demarcado do corpo por canelura e friso (Figs. 15 e 16). Surgem em Lisboa paralelos para esta peça no Largo do Chafariz de Dentro (VICENTE, 2009; SILVA et alii, 2012, p. 79).
Noz/Carreto de besta
A única peça recuperada da unidade de assentamento das duas estruturas acima descritas corresponde a uma noz ou carreto de besta em osso, em excelente estado de conservação, surgida precisamente por baixo da estrutura [017]. Introduzida em território ibérico por volta do século XI, crê-se ter sido já no século seguinte que se deu a difusão do uso de bestas, provavelmente pela mão dos exércitos almóadas. (BARROCA, MONTEIRO, 2000, pp. 382-384). Sendo composta na sua base por um arco (em madeira ou osso), uma corda e um cabo, tornouse numa arma portátil bastante útil, tanto para guerrear, como para caça. A noz localizava-se na coronha da arma e servia tanto para prender a corda quando colocada em tensão, como para alojar e direcionar com maior precisão o projéctil arremessado após se apertar o “gatilho”. O exemplar recolhido (Figs. 18 e 19) tem uma espessura de 2,6 cm e um diâmetro de 3,5 cm com um orifício central destinado tanto à sua fixação à arma, como para permitir o seu movimento de rotação durante a acção armar/desarmar com 3 mm de largura e obviamente 2,6 cm de profundidade. A superfície externa tem ainda talhada uma ranhura para fixação da corda em tensão, paralela ao eixo central acima referido, com uma largura máxima de 1,1 cm e uma profundidade de 3 mm, tal como duas outras ranhuras, perpendiculares ao eixo central, com orifício no centro, uma destinada ao encaixe do projéctil a disparar, com 1,3 cm de largura máxima e 4 mm de profundidade e outra, oposta, destinada ao desarmador da besta com cerca de 8 mm de largura por 2,3 cm de comprimento (Fig. 19). O orifício que une interiormente estas duas ranhuras, tem do lado da colocação do projéctil 4 mm de largura e do lado oposto 3 mm, por uma profundidade de 1,8 cm. Toda a superfície da peça demonstra um tratamento por polimento, e várias das áreas da mesma apresentam marcas de uso e sinais de desgaste devido ao mesmo. São conhecidas poucos exemplares no nosso país, uma recolhida na alcáçova do Castelo de Mértola, datada dos finais do seculo XI inícios do século XII, outra proveniente da capela de Santa Ana do Convento de São Francisco de Santarém, datada dos séculos X-XI e uma outra dos séculos XV/XVI, recolhida no castelo de Castelo de Vide (BARROCA, MONTEIRO, 2000, pp. 382-384) e, por fim, um outro exemplar, aparentemente inacabado, proveniente de Silves (GONÇALVES, PEREIRA, PIRES, p. 199). 3.2. Contextos arqueológicos da área do pátio
Produção portuguesa
No que respeita a produções claramente portuguesas faremos apenas referência a um fragmento encontrado de faiança a verde e branco, devido à sua escassez em contextos arqueológicos. Trata-se provavelmente de um
434 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Se a realidade presente na sondagem 1 nos aponta para um contexto de cronologias dos finais do século XV, inícios do século XVI, a realidade detectada no pátio exterior do edifício parece remontar aos séculos XVII/XVIII.
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Figura 15 – Fragmento de jarro globular em grés renano, R.J.R.10-32, Lisboa - século XV/XVI.
Figura 16 – Fragmento de grés renano, R.J.R.10-32, Lisboa - século XV/XVI (desenho Dr.ª Joana Gonçalves).
Figura 18 – Noz de besta, R.J.R.10-32, Lisboa período islâmico(?)/cristão(?).
Figura 17 – Fragmento de faiança verde e branca, R.J.R.10-32, Lisboa - século XV/XVI.
Figura 19 – Noz de besta, R.J.R.10-32, Lisboa - período islâmico (?)/cristão(?).
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Na área supramencionada os trabalhos de Arqueologia consistiram apenas no acompanhamento arqueológico da remoção de terras e registo das estruturas encontradas. No pátio foram detectadas várias estruturas das quais se destacaram o resto das paredes de uma estrutura que tudo indica ter sido um lago ornamental ou um tanque de armazenamento de água e, encostada a si, uma grande área de calçada, em seixo rolado (Fig. 20).
O tanque de armazenamento de água/lago
Desta estrutura encontravam-se preservadas quase na sua totalidade as paredes Sul e Oeste, tal como grande parte do seu pavimento interior, que surgiram a uma profundidade relativa (a contar da soleira da porta número 20, da Travessa de Santo Antão, Lisboa) de 160 cm. O aparelho construtivo das paredes permitiu identificar duas fases construtivas. A primeira de qualidade significa-
Figura 20 – Vista das estruturas postas a descoberto no pátio (em cima) e planta da calçada no pátio exterior (em baixo), R.J.R.10-32.
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tiva, formava a base e tinha cerca de 40cm de altura, onde se misturavam elementos pétreos de média e grande dimensão com cerâmica de construção (tijoleira) com ligante a argamassa de coloração amarelada e branca. A segunda fase construtiva, que serviu para aumentar a altura da estrutura, apresentava um aparelho de fraca qualidade, constituído por elementos pétreos de pequena e média dimensão onde o ligante utilizado consistiu em argamassa de fraca qualidade misturada com argila, e encontrava-se já destruída quase na sua totalidade (Fig. 21). O interior desta estrutura encontrava-se revestido por tijoleira de média dimensão (20x10 cm) disposta em espinha assente numa base preparatória de argamassa, relativamente fina, que por sua vez assentava aparentemente num nível de argila bastante compactada. No canto criado pela junção da parede oeste com a parede sul, existia ainda um orifício circular, destinado ao escoamento da água armazenada, com várias lajes de pedra adossadas do lado exterior, possivelmente para facilitar a saída de água, permitir uma melhor limpeza do orifício em caso de entupimento e evitar ainda o crescimento de plantas junto à saída de água que assim dificultariam o seu escoamento (Fig. 22). Das paredes este e norte restavam apenas os seus negativos no solo. Apesar da inexistência da parede norte era perfeitamente visível em negativo que a estrutura de maior destaque deste ressinto, uma calçada de grandes dimensões extremamente bem preservada, em parte, chegava até ela, encostando assim uma à outra, articulando-se. A calçada mencionada com mais de 9 m de comprimento e 6 m de largura máxima, era constituída por seixos rolados de coloração branca de média e grande dimensão e de coloração preta de pequena dimensão. Encostados ao tanque de água, estavam os elementos pétreos de maiores dimensões, maioritariamente de coloração branca, demarcando desta forma o limite Sul, tal
como acontecia na parte do troço delimitador a Oeste posto a descoberto. Para além dos locais mencionados, os seixos de grandes dimensões não serão utilizados em grande número. A grande particularidade deste pavimento prende-se não apenas com o tamanho dos seixos utilizados por si só, mas no facto de cada cor que o compõe estar associado a um tamanho, e em especial ao facto de terem sido cuidadosamente dispostos de forma a formar um motivo decorativo central envolto em moldura.
Figura 22 – Orifício de escoamento de água, R.J.R.1032, Lisboa.
Figura 21 – Tanque de armazenamento de água/lago, R.J.R.10-32, Lisboa.
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No momento em que se colocou toda a área de calçada a descoberto foi de imediato visível sensivelmente ao centro a existência de um pequeno losângulo de seixos brancos de média dimensão, rodeado por um outro de maiores dimensões, feito em seixo de pequenas dimensões e de coloração preta, que por sua vez se encontrava ainda separado por um triângulo em cada canto, de seixos de tonalidade branca novamente de média dimensão, de uma moldura rectangular constituída por seixos pretos de pequena dimensão. Este motivo decorativo encontrava-se extremamente bem preservado quase na sua totalidade. Apenas no limite Este a calçada se encontrava parcialmente destruída. Todavia, era ainda perceptível que o motivo decorativo se repetiria, pois encontrava-se ainda in situ o arranque de um novo losângulo a preto separado a branco de uma nova moldura também a preto. Todavia devido ao facto de se encontrar perturbado não são perceptíveis as dimensões que teriam. De referir que a fachada externa dos antigos edifícios do pátio assenta/corta a calçada que se desenvolveria em tempos recuados para Norte em direcção ao exterior, para o local onde se localiza hoje em dia a Travessa de Santo Antão (ver planta). Aponta-se para cronologias de construção e utilização de ambas as estruturas os séculos XVII e XVIII devido ao facto de os materiais recolhidos tanto por cima do pavimento do tanque, como na unidade que cobria e preenchia a calçada corresponderem essencialmente a fragmentos de cerâmica dessas épocas. Apesar dos fragmentos recolhidos reportam maioritariamente a cerâmica comum, difícil de atribuir cronologia, foram também recolhidos alguns fragmentos de anéis em vidro, contas e fragmentos de faiança portuguesa. Alguns dos fragmentos de faiança recolhidos permitiram colagem e ofereceram-nos assim parte de uma taça de pequenas dimensões, de pasta esbranquiçada e de fraca qualidade, com decoração azul sobre esmalte branco, também de qualidade reduzida. A diminuição de qualidade da peça observa-se ainda nos seus motivos decorativos, menos cuidados/delicados. Corresponde essencialmente a uma decoração vegetalista com aranhões (Fig. 23). Nesta área surgiu ainda aquilo que aparenta ser um selo metálico de mercadorias (provavelmente pertencente a um fardo de tecidos), de pequenas dimensões, conservando parte de inscrição de um dos lados e alguma decoração no lado oposto. Como paralelos para esta peça podemos mencionar os selos comerciais surgidos durante os trabalhos arqueológicos na Casa do Infante - Porto. (Figs. 24 e 25).
Figura 23 – Fragmento de taça, R.J.R.10-32, Lisboa - século XVII.
Figura 24 – Selo metálico, R.J.R.10-32 – cronologia indefinida (XVII?).
4. Considerações finais Os trabalhos arqueológicos realizados permitiram a detecção de dois espaços com cronologias diferentes – um dos séculos XV/XVI e outro do século XVII/XVIII. O contexto da sondagem 1, surge-nos como sendo o mais antigo, onde as cronologias são obtidas essencialmente através da datação dos materiais recolhidos junto às estruturas, que mesmo podendo corresponder a contexto de entulhamento, não deixam de ser fiáveis, visto esse dito entulhamento do espaço, pelo menos da área delimitada por ambas as estruturas, ter ocorrido num es-
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Figura 25 – Selo metálico, R.J.R.10-32 – cronologia indefinida (XVII?).
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paço de tempo muito curto, algo demonstrado através da cronologia similar entre as peças das diferentes unidades estratigráficas. Essas peças permitem-nos uma certeza – o espaço foi utilizado/desactivado nos finais do século XV e inícios do século XVI. Podem as estruturas ser contemporâneas ou ligeiramente mais antigas, especialmente no caso do muro de menores dimensões (onde surgiu por baixo a noz de besta), aparentando a estrutura maior sinais de reutilização e utilização durante um hiato cronológico mais amplo, tanto devido ao facto de apresentar vários momentos construtivos, como devido a se apresentar em articulação com vários níveis de pavimento na sua face sul, pavimentos esses que em parte surgem já a cotas muito superiores ao topo do muro [017] a norte – podemos estar perante contextos habitacionais (?) extra-muros. A realidade do pátio apresenta-se como claramente um espaço de lazer, de cultivo ou de passagem. Acreditamos que corresponda a um espaço privado e não público, devido à presença reduzida de espólio cerâmico na unidade que preenchia a calçada, podendo tratar-se assim de uma horta ou mais provavelmente um jardim (ou ambos), onde o tanque de armazenamento de água teria tanto funções decorativas como de rega e onde a calçada, uma vez mais, serviria tanto para dar beleza ao espaço como para tornar a deslocação no mesmo, até ao tanque que a delimita, mais fácil e cómoda. É precisamente a calçada que nos permite inferir que as dimensões do local são hoje em dia diferentes de outrora, pois esta encontra-se ou por baixo ou cortada pela fachada dos edifícios virados à actual Travessa de Santo Antão.
ibliografia AMARO, C.; FILIPE, V.; HENRIQUES, J.P.; MANSO, C. (2013): Prisão do Aljube no século XVI – vidros, majólica italiana e cerâmica esmaltada espanhola. In ARNAUD, J.M., MARTINS, A., NEVES, C. (eds), Arqueologia em Portugal, 150 anos. Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, pp.1019-1024. AMARO, C.; FILIPE, V.; HENRIQUES, J.P.; MANSO, (no prelo): Faiança Quinhentista recuperada num compartimento da antiga prisão do Aljube, Lisboa. BARROCA, Mário Jorge; MONTEIRO, João Gouveia, coord. (2000): Pera Guerrejar: Armamento Medieval no Espaço Português. Catálogo da Exposição no Museu Nacional de Arqueologia; Palmela, Câmara Municipal de Palmela, pp. 382-384.
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Uma cidade em escavação
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
Durante a intervenção arqueológica urbana ocorrida da Praça da Figueira entre 1999 e 2001, entre outros achados, foi identificada uma parte significativa do Hospital Real de Todos-os-Santos, mandado construir em 1492 por D. João II. Este edifício emblemático da Lisboa Quinhentista tinha uma planta quadrangular organizada em torno de quatro pátios definidos por um corpo central cruciforme, nos braços do qual estavam a igreja do Hospital e as três enfermarias principais dedicadas a São Cosme, São Vicente e Santa Clara. Embora danificado por um incêndio em 1750 e pelo terramoto em 1755, o Hospital permaneceu em funcionamento até 1775, ano em que foi transferido para o Colégio de Santo Antão-o-Novo (actual Hospital de São José). O edifício do Hospital foi posteriormente demolido no âmbito reconstrução da Baixa Pombalina. No claustro sudoeste foi identificado um poço, no interior do qual foram recuperados diversos vestígios materiais. Além dos objectos em vidro (publicados anteriormente) e das cerâmicas foram recolhidos ainda artefactos pétreos, metálicos, em osso e em cabedal. O presente artigo analisa os quatro últimos. PALAVRAS-CHAVE:
Hospital Real de Todos-os-Santos, poço, objectos do quotidiano, metais.
ABSTRACT:
When the urban archaeological intervention at Praça da Figueira occurred between 1999 and 2001, a significant part of the Hospital Real de Todos-os-Santos was identified among other findings. The emblematic building of 16th century Lisbon had a square plan organized around four courtyards defined by a cruciform central body. Within the arms were the Hospital’s church and the three main infirmaries dedicated to São Cosme, São Vicente and Santa Clara. Although damaged by a fire in 1750 and the earthquake in 1755, the Hospital remained in operation until 1775, when it was transfered to Colégio de Santo Antão-o-Novo (Hospital de São José in these days). The Hospital building was later demolished as part of the Baixa reconstruction plan. Several archaeological remains have been recovered in a well discovered in the southwest courtyard. In addition to the glass objects (previously published) and the usual ceramics, artifacts made in stone, metal, animal bone and leather were also collected. This article analyzes the four latters. Key words:
Hospital Real de Todos-os-Santos, well, everyday objects, metals.
Hospital Real de Todos-os-Santos. Vista geral do poço (foto Museu da Cidade)
3.15 Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos
Carlos Boavida
IAP/FCSH/UNL; AAP cmpboavida@gmail.com
1. O Hospital Na Lisboa de finais do século XV, a assistência pública a doentes e enfermos era assegurada por diversos hospitais e albergarias, associadas a confrarias e casas religiosas, que tinham um âmbito territorial relativamente reduzido. A maioria destas instituições existia desde a Idade Média e não se conseguiram adaptar às alterações provocadas no quotidiano da cidade com o aumento das ligações comerciais despoletadas pelos Descobrimentos (SALGADO, 2015, pp. 57-59). O facto de Lisboa ser uma cidade servida por um porto marítimo, onde chegavam navios e pessoas das mais diversas proveniências, levou a que, do ponto de vista sanitário, fossem asseguradas várias medidas para garantir a segurança das populações. Assim, a partir de 1492 foi criada uma defesa preventiva na zona de Belém, que, entre outras funções, fiscalizava a entrada de navios e de pessoas. Foram igualmente implementadas diversas medidas profiláticas para garantir o bom estado sanitário da cidade (MAGALHÃES, 1993, p. 54). Uma vez que a maioria dos hospitais e albergarias existentes eram de pequena dimensão e sobreviviam à custa de esmolas e doacções, muitas acabavam por ser pouco eficientes para satisfazer as necessidades de uma cidade cuja população não parava de aumentar. Tal facto levou à reorganização da assistência pública, não só em Lisboa, como em todo o território nacional, com a agregação dos diversos estabelecimentos assistenciais (LEITE, 1993, p. 5). Reflexo desta política vai ser a fundação dos Hospitais Gerais de Lisboa, Évora, Coimbra, Santarém e Braga (SALGADO, 2015, pp. 105-106). Foi então criado, em 1492, por iniciativa de D. João II, na antiga horta do convento de São Domingos, o Hospital Real de Todos-os-Santos.. As obras foram dadas por terminadas no reinado de D. Manuel I, uma
vez que o seu antecessor faleceu em 1495. Os primeiros internamentos deram-se entre 1501-1502 e o regimento, inspirado no dos hospitais italianos de Siena e Florença, foi aprovado em 1504 (ESPINHEIRO, 1994, p. 449). Além das funções assistenciais, o regimento previa também a criação de uma escola cirúrgica, onde se destacaram diversos nomes da História da Medicina em Portugal (CARMONA, 1954; CARMONA, 1960, p. 136; ESPINHEIRO, 1994, pp. 450-451). Apontado por Damião de Góis como uma das sete maravilhas da Lisboa Moderna (GÓIS, 2001, pp. 48-49), o edifício tinha planta subquadrangular, no meio do qual existia um corpo cruciforme, onde se situavam as principais enfermarias (São Vicente, São Cosme e Santa Clara), estando na intersecção destas a capela-mor da monumental igreja. Esta organização espacial, com corredores de acessos múltiplos, rodeando os quatro pátios, foi provavelmente inspirada em hospitais italianos contemporâneos, como o de Milão e o de Roma (LEITE, 1993, p. 13). A fachada principal, virada para o Rossio, no meio da qual estava portal manuelino da igreja ao qual se acedia por uma grande escadaria, era sustentada por uma arcaria, que se prolongava pela fachada do dormitório do Convento de São Domingos, construído durante o reinado de D. Manuel I (GÓIS, 2001, p. 70; ROLO, 1994, p. 795; MOITA, 1994, p. 156). Além das enfermarias principais, o hospital dispunha de outras para mulheres e homens febris, para feridos, para doentes incuráveis e alienados e de uma enfermaria especial para pessoas nobres. Todos os doentes admitidos eram observados na “Casa das Águas”, sala onde existia um banco corrido onde se aguardava vez para se ser atendido. Era o “Banco das Águas” (urinas), designação que se manteve durante séculos para a urgência hospitalar em Lisboa (ESPINHEIRO, 1994, p. 451). Entre outras dependências encontravam-se ainda o refei-
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Carlos Boavida
tório, o forno de cozer pão, a cozinha, a botica, a horta e outros espaços de carácter administrativo, assim como os aposentos dos funcionários. Estas últimas eram localizadas na fachada virada para o Rossio e na parte inferior dos claustros (MOITA, 1993, pp. 41-45). Com o passar dos anos, devido à necessidade de servir uma população cada vez maior, o edifício sofreu sucessivas obras de ampliação, que acabaram por ser uma constante do quotidiano do mesmo durante a sua existência. O número reduzido de enfermarias ao tempo de fundação ascendeu às quase duas dezenas em meados do século XVIII (PEREIRA, 1993, pp. 76-77). Parte destas obras também se ficaram a dever aos diversos incidentes que atingiram o edifício, em particular os incêndios de 1601 e de 1750. Na sequência deste último, os doentes tiveram que ser realojados noutro local até o Hospital os poder novamente receber. Embora a sua reconstrução se tenha iniciado, a mesma nunca foi concluída dado que o Terramoto de 1755 veio danificar uma vez mais o edifício. Os doentes foram então evacuados e instalados em tendas na Praça do Rossio, local onde permaneceram apenas algumas semanas1, tendo sido transferidos depois para as cocheiras dos palácios Castelo Melhor e Almada (ESPINHEIRO, 1994, p. 451; MATOSO, 2012, p. 44) e posteriormente para os celeiros do Mosteiro de São Bento da Saúde, onde por ordem régia, após o cataclismo, foi criado um Hospital Real sob orientação do monteiro-mor Fernão Teles e Sousa (ALBERTO, 2016, p. 31). O Hospital Real de Todos-os-Santos foi parcialmente reconstruído, chegando a ter cerca de 20 enfermarias em funcionamento em 1769 (PEREIRA, 1993, p. 50). Naquela data, em consequência dos projectos de reconstrução da Baixa Pombalina, foi decretada a transferência daquela unidade Hospital para o Colégio de Santo Antão-o-Novo (da Companhia de Jesus), edifício onde alguns doentes haviam sido igualmente instalados em consequência do Terramoto e que se encontrava sem utilização desde a expulsão daquela Ordem em 1759. O Hospital foi então transferido para aquele local em Abril de 1775, passando a designar-se Hospital Real de São José (Salgado, 1987, pp. 5-6), tendo o edifício do Rossio sido posteriormente demolido. 2. O Hospital redescoberto: intervenções Arqueológicas Apesar dos primeiros vestígios do edifício terem surgido em 1953 no restaurante Irmãos Unidos (Pereira, 1993, p. 50), foi só em 1959, com o início das obras do Metropolitano de Lisboa, que tiveram lugar os primeiros trabalhos arqueológicos na Praça da Figueira, no âmbito 1 De acordo com carta datada de 23 de Dezembro de 1755, da autoria Núncio Apostólico em Lisboa, D. Filippo Acciaiuoli, destinada à Santa Sé, a permanência dos enfermos em tendas terminou devido ao facto de na semana anterior se ter registado intensa pluviosidade na cidade de Lisboa, o que levou a uma grande acumulação de águas no Rossio. A presença de entulhos em grande quantidade impediu o escoamento das águas, inundando o local, o que provocou o afogamento de cinco ou seis dos enfermos que se encontravam nas tendas e que não conseguiram fugir pelos seus próprios meios (CARDOSO, 1996, pp. 466-467).
442 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
dos quais foram expostas as ruínas do Hospital Real de Todos-os-Santos. A intervenção foi dirigida por Irisalva Moita, tendo sido identificadas as fundações de uma parte significativa do Hospital, no lado Noroeste da praça, além da Ermida de Nossa Senhora do Amparo e do limite Sul do Convento de São Domingos. Os resultados destes trabalhos foram então publicados em diversos números da Revista Municipal editada pela edilidade (MOITA, 1964; 1965a; 1965b; 1966a e 1966b). Foram recuperados os mais variados objectos, onde se inclui diversa cerâmica utilitária, vidros, peças de cobre e de bronze, imagens de santos em barro, azulejos e elementos arquitectónicos. A maioria destes materiais foi alvo de exposição em 1992, integrada nas comemorações dos 500 anos da fundação do Hospital (PEREIRA, 1993), estando alguns deles presentes na exposição permanente do Museu de Lisboa – Palácio Pimenta ao Campo Grande. Em 1971, durante a abertura das fundações para a construção do pedestal da estátua de D. João I foram descobertas duas lápides, uma delas com decoração em relevo e outra epigrafada. Ambas foram dadas como podendo ter integrado uma das capelas da igreja do Hospital (MOITA, 1972, pp. 92-93). No âmbito da construção de um parque de estacionamento subterrâneo na Praça da Figueira, dado o potencial arqueológico do local, teve lugar uma intervenção arqueológica urbana (I.A.U.), sob coordenação de Rodrigo Banha da Silva e Marina Carvalhinhos, dos Serviços de Arqueologia do Museu da Cidade. Os trabalhos decorreram entre 1999 e 2001. A intervenção iniciou-se com a realização de uma série de sondagens geotécnicas, a pedido do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), para avaliar o impacto da nova construção no regime hídrico do subsolo da Baixa. Teve também lugar uma peritagem arqueológica da execução das estruturas de contenção periféricas no limite Este da área intervencionada, uma vez que o proprietário da obra a iniciou à revelia da componente arqueológica2. A escavação integral do subsolo da Praça da Figueira ocorreu posteriormente, seguindo os princípios impostos pelo Instituto Português de Arqueologia (IPA).
Figura 1 – Hospital Real de Todos-os-Santos: A – Vista panorâmica de Lisboa (pormenor), anónimo, c. 1570, Biblioteca da Universidade de Leyden (Pereira, 1993: 55); B – Panorâmica de Lisboa (pormenor), António de Holanda, c. 1530, British Library ; C – Vista de Lisboa (pormenor), Georg Braun, c. 1597, Biblioteca Nacional de Lisboa ; D – Vista do Rossio anterior ao Terramoto de 1755 (pormenor), Zuzarte, 1787, colecção do Dr. Jaime Celestino Costa (Pereira, 1993: 58); E – Auto de fé no Rossio (pormenor), anónimo, 1.ª metade do século XVIII, Solar Monjope, Rio de Janeiro (Pereira, 1993: 57); F – O Rossio e o Hospital Real de Todos-os-Santos (pormenor), anónimo, 1.ª metade do século XVIII, Museu da Cidade (Pereira, 1993: 56 e 62-63); G – Maqueta de Lisboa antes do Terramoto de 1755 (pormenor), Gustavo Matos Sequeira e Ticiano Violante, 1955, Museu da Cidade (foto Mário Marzagão, 2012 ); H – Maqueta do Hospital Real de Todos-osSantos (pormenor), Carlos Loureiro, 1992, Hospitais Civis de Lisboa (Pereira, 1993: 60 e 63-64); I – Reconstituição do Hospital de Todos-os-Santos e do Convento de São Domingos (pormenor), 2005, Museu da Cidade.
2 Informação fornecida por Rodrigo Banha da Silva.
Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos
Figura 1
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O espaço foi repartido em diversos sectores devido à complexidade da área em apreço, sendo necessário realizar trabalhos mais pormenorizados de acordo com algumas estruturas arqueológicas específicas como sejam o Cano Real do reinado de D. Maria I, o Cano Real do reinado de D. Manuel I (e conduta subterrânea que a este ligava), o cemitério do Hospital (nas traseiras do mesmo) e os poços dos pátios Noroeste, Sudoeste e Nordeste3. O grau de destruição da maioria das estruturas no nível correspondente ao Hospital não permitiu uma leitura conclusiva daquelas, no entanto, o espólio encontrado veio contribuir de forma única para o conhecimento da história desta unidade hospitalar. Além do mais diversificado espólio e de elementos arquitectónicos avulsos, foi igualmente possível identificar vários compartimentos hospitalares. Os danos verificados em grande parte das ruínas deveram-se acima de tudo à demolição do Hospital, mas também a algumas intervenções urbanas contemporâneas ocorridas no local, sem o devido acompanhamento arqueológico, anteriores à campanha de 1999/2001. Entres essas destacam-se as construções do Mercado da Praça da Figueira, do pedestal da estátua equestre de D. João I e das subestações da EDP e Carris, assim como a instalação de estruturas de saneamento e demais condutas no subsolo da Praça da Figueira. Nos últimos anos têm sido apresentados alguns estudos sobre os vestígios do Hospital e o espólio associado, tanto ao nível académico (BARGÃO, 2015), como no âmbito de congressos (CARDOSO, CASIMIRO, ASSIS, 2013; OLIVEIRA, SILVA, 2016; BARGÃO, FERREIRA, 2016) e de outros projectos (SILVA, GUINOTE, 1998; LEITE, 2012; BUGALHÃO, TEIXEIRA, 2015, pp. 9395; SILVA, LEITE, 2015). 3. O pátio Sudoeste e o poço Como mencionado anteriormente, o pátio Sudoeste do Hospital Real de Todos-os-Santos foi identificado no âmbito dos trabalhos arqueológicos de 1999/2001. De planta trapezoidal, era limitado a Norte pela igreja, a Este pela enfermaria de São Cosme e a Oeste pela ala do Hospital virada para o Rossio. A face Sul encontrava-se fora da área intervencionada. Tal como no resto do Hospital, também aqui se verificou uma remoção em grande escala de diversos elementos arquitectónicos para serem reutilizados após a demolição do edifício. Por outro lado, a construção de infraestruturas nesta área em épocas posteriores danificou em grande medida o que restava dos pavimentos deste pátio, preservando-se apenas parte de um constituído por seixos rolados e de outro com lajes de calcário, junto ao muro Este do limite do deambulatório4. Uma vez que uma parte significativa da base dos alicerces fora retirada, foi possível verificar que na construção original do edifício foram utilizadas alvenarias muito compactas provavelmente sobre níveis de aterro dos séculos XII a XV5. 3 Idem. 4 Idem. 5 Idem.
444 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Em momento anterior à conclusão do Hospital Real de Todos-os-Santos, sob este pátio foi construído o Cano Real de São Domingos, para garantir a drenagem e manutenção da salubridade do espaço. O troço identificado tinha planta rectilínea, com paredes de alvenaria, que sustentavam uma abóbada com secção em arco abatido, cobrindo um pavimento de terra batida. Existia uma derivação para Este, de construção posterior, por baixo da igreja, junto do alicerce que separava esta do claustro6. O poço localizava-se próximo da face Norte do pátio, junto de um outro vestígio de pavimento lajeado, e apresentava forma cilíndrica, com 1,00 m de diâmetro interno e uma profundidade preservada de 2,80 m. Encontravase escavado em níveis mais antigos e era estruturado por silharia regular, não siglada, o que denuncia tratar-se de uma construção posterior à da edificação inicial do Hospital. Foi igualmente reconhecida a estrutura negativa escavada para permitir a construção do poço, que cortou depósitos atribuídos aos séculos XV-XVI (SILVA, RODRIGUES, 2015, p. 2). No interior do poço, que se encontrava totalmente entulhado, foi recolhida uma grande variedade e quantidade de espólio, atribuído na sua maioria ao século XVII. Apesar de terem sido identificadas cerca de uma dezena de unidades estratigráficas, aquelas mostravam uma grande homogeneidade sedimentar e material. O espólio é constituído por uma grande diversidade de objectos, onde se destaca a Faiança Portuguesa, a par com a cerâmica comum, a vidrada e a modelada, além de alguns artefactos metálicos, em vidro, em osso e em porcelana. Embora só uma pequena parte do espólio tenha sido até ao momento publicada (BOAVIDA, 2012a; SILVA, RODRIGUES, 2015), o mesmo encontra-se integralmente estudado em âmbito académico (BOTELHO, 2002; RODRIGUES, 2004; BARROSO, NASCIMENTO, MATA, 2005; POLICARPO, RIBEIRO, 2005; BOAVIDA, 2005). No que diz respeito às faianças foram colectados exemplares datados desde o final do século XVI até aos finais do século XVII, estando presentes maioritariamente produções portuguesas de Lisboa e, numa menor percentagem, das oficinas de Sevilha (Espanha) e de Savona (Itália). Além das peças de carácter utilitário, estão também presentes peças de âmbito hospitalar, como diversos recipientes para produtos farmacêuticos7. De igual modo, as cerâmicas modeladas recolhidas demonstram cronologias de finais do século XVII, inícios do século XVIII. Estas peças, de provável fabrico local/ regional, foram produzidas essencialmente com pastas bem depuradas, de tom avermelhado e bege amarelado, com elementos não plásticos de reduzida dimensão, estando a superfície externa das últimas revestida por engobe de cor vermelha, mal conservado. Estão também presentes, mas em número muito diminuto, cerâmicas provenientes do Noroeste de Portugal, em particular do Prado. Não foram encontrados vestígios de cerâmicas pedradas (SILVA, RODRIGUES, 2015, pp. 2-5).
6 Idem. 7 Informação fornecida por Paulo Botelho, autor do estudo deste espólio.
Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos
Figura 2 – Sítio arqueológico da Praça da Figueira: A – Planta das estruturas identificadas (1960 – laranja, 1999/2001 – verde) (Silva e Rodrigues, 2015: 7); B/C – Aspectos dos trabalhos arqueológicos de 1960 (Moita, 1965b: 27 e 51); D/E – Aspectos da intervenção arqueológica urbana de 1999/2001 (Silva e Leite, 2015: 50).
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4. Os Objectos não cerâmicos Entre os materiais recolhidos, além de objectos de carácter doméstico ou quotidiano, pertencentes a peças de mobiliário ou de vestuário, incluem-se ainda outros de âmbito hospitalar, religioso e lúdico. A maioria são constituídos em ligas metálicas (49) ou em vidro (214 fragmentos), embora também existam alguns em osso (4), em marfim (4 fragmentos), em cabedal (13 fragmentos), em azeviche (2) e em madeira (2). Em função da matériaprima que os constituí, o estado de conservação destes materiais foi condicionado pelo nível freático do contexto onde foram colectados. Se os materiais perecíveis, como a madeira e o cabedal, beneficiaram desse facto, o mesmo não se poderá afirmar em relação aos artefactos metálicos, cujo estado, em muitos casos deficitário, dificulta a sua correcta identificação. Embora a presença de fragmentos de vidro seja significativa, a mesma não se deve à existência de muitas peças produzidas nessa matéria, mas sim à sua fragilidade. 4.1. Os Vidros
Publicado anteriormente, o conjunto dos vidros corresponde essencialmente a contentores de líquidos, tanto
para armazenamento como para consumo (Boavida, 2012a). Existem três garrafas de diferentes formatos, podendo uma delas, da qual subsiste apenas o bordo, corresponder a um frasco. As duas primeiras foram produzidas em vidro transparente verde-água e a última em vidro transparente incolor (Fig. 4A). Em relação às peças usadas para consumo de líquidos foram recuperados cinco copos em vidro transparente verde, dos quais dois têm o perfil completo e os outros apenas o fundo, sendo possível que vários dos fragmentos de vidro do mesmo tipo recolhidos possam pertencer a estes últimos. Foi ainda encontrado um cálice de vidro transparente incolor, com uma copa de paredes muito finas, assente em pé em balaústre com base discoidal (Fig. 4B). Este último mostra muitas semelhanças com peças recuperadas noutros sítios arqueológicos de Lisboa, nomeadamente na Casa dos Bicos (AMARAL, MIRANDA, 2002, p. 66, n.º 57) e no Teatro Romano (FERREIRA, 1997, pl. 1, II.3-II.4). Foram também colectados restos de duas taças, uma em vidro opaco negro e outra em vidro transparente azul-água, sendo esta última decorada por caneluras obtidas por recurso a molde auxiliar. Além destas, foi ainda encontrado o bordo de uma possível tampa de vidro transparente azul-água e duas contas esféricas em vidro opaco azul (Fig. 4C).
Figura 3 - O Poço do claustro sudoeste: A – Vista geral da intervenção arqueológica urbana de 1999/2011, vendo-se na parte inferior o poço do claustro sudoeste (Silva e Rodrigues, 2015: 7); B – Vista geral do poço do claustro sudoeste (Museu da Cidade); C – Corte estratigráfico do poço do claustro sudoeste (original cedido por Paulo Botelho).
446 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos
Figura 4 - Os vidros: A – Garrafas; B – Cálice e copos; C – Taças, conta e tampa (?) (Boavida, 2012: 138).
Existem ainda diversos fragmentos de vidro transparente amarelo, dos quais não foi possível identificar a forma a que pertenciam, assim como outros de vidraça em vidro transparente verde-água. 4.2. Objectos em marfim e em osso
Foram encontrados três elementos de seringa de clister em marfim. Um deles estaria na extremidade proximal do êmbolo, enquanto os outros dois se encontravam junto da extremidade distal, pressupondo-se que seriam todos da mesma seringa (Figs. 5A-5D). No Hospital de São José existe seringa de clister, de idêntico formato, em estanho e madeira, que poderá ser proveniente do Hospital de Todos-os-Santos (PEREIRA, 1993, p. 87, n.º 82). Na colecção do Museu da Farmácia existem exemplares muito semelhantes ao caso agora estudado, tanto em marfim, como em estanho, atribuídos ao século XVIII (BASSO, NETO, 2000, p. 101). No Convento de Sant’Ana, em Lisboa, na mesma matéria, foram igualmente identificados alguns elementos de seringa de clister (GOMES, GOMES, GONÇALVES8). Também em marfim foi recuperado um pente de dupla fiada, mostrando em ambas os dentes muito apertados, o que denuncia o seu provável uso como pente de piolhos (Fig. 5E). Pentes em marfim, osso ou madeira são frequentes em contextos portugueses, sendo conhecidos em Lisboa (TEIXEIRA, VILLADA PAREDES, SILVA, 2015, p. 137; GOMES, GOMES, GONÇALVES9), Coimbra (LEAL, FERREIRA, 2006/2007, p. 115, Figs. 30a e 30b), Montemor-o-Novo (Morbase10), Torres Vedras (LUNA, AMARO, 2009, p. 94, fig. 148) e Angra do Heroísmo (GARCIA, MONTEIRO, PHANEUF, 1999, p. 230, fig. 19). 8 Neste mesmo volume. 9 Idem. 10 Pente MNCAST[5/07]0690 - http://montemorbase. com/basedados.php?Page=23#pagina687
Em osso foram recolhidos quatro dados, tendo dois deles 0,01m de lado e os restantes apenas 0,009 m de lado (Figs. 5F-5I). Este tipo de objecto lúdico é frequente desde Época Romana, mas tendo em conta o contexto não se poderá pôr de lado a sua possível produção na prisão do Aljube, em Lisboa, onde o fabrico destes objectos em osso, entre outros, foi identificada em contextos da segunda metade do século XVI (FERREIRA, 2005/2006, p. 34). Colectaram-se dados idênticos no convento de Sant’Ana (GOMES, GOMES, GONÇALVES11) e no castelo de Amieira do Tejo (SANTOS, FALCÃO, 2007, pp. 153-154, fig. 13). 4.3. Objectos metálicos
Os artefactos encontrados integram-se essencialmente em três conjuntos, os elementos de vestuário e de adorno, os objectos de carácter doméstico e os de função indeterminada. Foram identificados vários tipos de fivelas em bronze, uma em argola (1) e outras de dupla argola (2), que embora pudessem ser usadas como elemento de vestuário, não se pode excluir a sua utilização em arreios de algum animal de carga (Figs. 6A-6C). Peças de formato idêntico foram encontradas em contextos do século XVIII durante as escavações na Igreja do Carmo, em Lisboa (Ferreira e Neves, 2005, pp. 606-607, n.os 1621 e 1652). Existem ainda algumas peças de formato quadrangular em ferro (3) que poderão ter sido de fivelas, mas o seu estado de conservação não permite verificar evidências de qualquer tipo de fixação ou da presença de um fuzilhão (Figs. 6E-6F). Também em ferro foi encontrado eventual fecho de cinturão, constituído por argola e gancho com vestígios de fixação em outro elemento desaparecido (Fig. 6D). 11 Neste mesmo volume.
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Figura 5 - Objectos em marfim e osso: A – Reconstituição de seringa de clister (não se encontra à escala); B – Pormenor do interior da peça proximal da seringa; C/D/E – Fragmentos de partes de seringa de clister em marfim; F – Pente de piolhos em marfim; G/H/I/J – Dados em osso.
Figura 6 - Objectos metálicos I: A – Argola em bronze; B/C – Fivelas em bronze; D – Fecho de cinturão em ferro; E/F – Fivelas (?) em ferro.
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Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos
Figura 7 - Objectos metálicos II: A – Corrente em prata; B – Selo em chumbo; C – Medalha em cobre; D/E- Bolas em chumbo ou ferro fundido (?).
Ainda de possível uso no vestuário foram identificadas três pequenas bolas (Figs. 7D-7E), de chumbo ou ferro fundido, que podem ter sido usadas como pesos, como as que se encontram na exposição permanente de arqueologia do Núcleo Museológico do Mosteiro de São Vicente de Fora12. Recuperou-se selo duplo em chumbo (Fig. 7B), que apresenta numa das faces as armas de Portugal e na outra uma esfera armilar, como sucede com outros encontrados no Largo do Chafariz de Dentro (SILVA et alii, 2012: 8283, Fig. 11, n.º 25; Teixeira, VILLADA PAREDES, SILVA, 2015, p. 212) e no convento de Sant’Ana13, ambos em Lisboa, na Casa do Infante, no Porto (REAL et alii, 1993, p. 38), no castelo de Torres Vedras (LUNA, AMARO, 2009, pp. 102-103) e em diversos locais do Algarve (SOUSA, 2016). Designados como selos de têxteis (ou de panos) eram usados para fechar os sacos de transporte de tecidos quando estes eram comercializados de modo a garantir a qualidade do produto (LUNA, AMARO, 2009, p. 102). Os elementos de adorno limitam-se a uma corrente de prata (Fig. 7A) e a uma medalha de cobre, de cariz religioso. Esta última mostra nas faces as efígies de São Pedro e São Paulo, estando a legenda ilegível (Fig. 7C). Estas peças eram adquiridas nas igrejas, nos conventos e nos mosteiros, pois era nesses locais que se vendiam tais artigos religiosos (LOURENÇO, 2011, p. 53). Entre os elementos de mobiliário estão diversos tipos de cravos (bronze), pregos e cavilhas (ferro), alguns deles usados em cadeiras ou arcas, como o que mostra a cabeça gomada (Fig. 8G), ou em pequenos móveis ou mesmo em portas, como dois que mostram uma cabeça 12 Informação cedida por Fernando E. Rodrigues Ferreira. 13 Informação cedida por Rosa Varela Gomes e Mário Varela Gomes.
muito destacada, com claros efeitos decorativos (Fig. 8E8F). As cavilhas (Fig. 8D) podiam ter funções estruturais em tabiques usados para compartimentar espaços. Foram recuperados diversos objectos do quotidiano em ferro, como sejam duas candeias (Fig. 8B-8C) e as lâminas de uma tesoura (Fig. 8H) e de uma faca (Fig. 9E). Eventualmente também de faca, foram colectados elementos octogonais, do mesmo material, que podem ter constituído o espelho da extremidade proximal do cabo daquelas, permitindo a fixação do eixo da lâmina da faca no interior do cabo com o mesmo tipo de secção (Figs. 9B-9D). Peça idêntica, mas em cobre, foi identificada em Castelo Branco (Boavida, 2015, p. 14). Uma faca deste tipo surge representada em duas pinturas da autoria de Luis Meléndez (1716-1780), “Bodegón, chorizos, jamón y cacharros”, que integram a colecção do Museu do Prado, em Madrid. Foi possível igualmente reaver duas colheres. A primeira, em liga de cobre, preservar-se quase na totalidade, mostrando concha ligeiramente côncava, de formato periforme, do reverso da qual, em formato cauda de rato, arranca haste de secção circular, com 0,15 m de comprimento e um diâmetro médio de 0,07 m, que termina em quatro pequenas esferas pouco pronunciadas (Fig. 9F). É possível observar uma colher de formato idêntico, mas de madeira, no retábulo do antigo Mosteiro de Nossa Senhora da Estrela (Lisboa), nomeadamente no painel “Nascimento da Virgem”. Aquela obra da autoria de Gregório Lopes (1513-1550) encontra-se exposta no Museu Nacional de Arte Antiga. O mesmo modelo de colher é visível no painel “Natividade” do retábulo da capela-mor da igreja do Convento de Jesus de Setúbal, atribuído a Jorge Afonso (1470-1540). Da outra colher, provavelmente de estanho, resta apenas a extremidade proximal (Fig. 9G). Em bronze foi encontrada uma pequena campainha (Fig. 8A).
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Figura 8 - Objectos metálicos III: A – Campainha em bronze; B/C – Candeias em ferro; D – Cavilha em ferro; E/F – Pregos em ferro; G – Cravo em cobre; H – Tesoura em ferro.
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Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos
Figura 9 - Objetos metálicos IV: A – Reconstituição de faca com espelho metálico na extremidade proximal do cabo (não se encontra à escala) (Boavida, 2015: 15); B/C/D – Espelhos de cabo de faca em ferro; E – Faca em ferro; F – Colher em liga de cobre; G – Colher(?) em estanho.
Contam-se ainda no conjunto dos objectos do quotidiano, mas associadas à montaria, duas ferraduras em ferro, que podem ter sido usadas por cavalos ou por burros (Figs. 10A-10B). Entre os objectos indeterminados estão várias peças em ferro, como um gancho (de formato em S – Fig. 10C), uma haste espalmada que mostra orifício em ambas as extremidades (o que poderá evidenciar que se encontrava articulada com outros elementos desaparecidos – Fig. 10G), uma eventual lâmina de serra (com dentes curtos, mas bastante largos – Fig. 10H) e três argolas, encontradas em conjunto, tendo a maior grande espigão que provavelmente permitia a sua fixação em outro objecto ou estrutura. Aquela última mostra ainda decoração criada por diversas incisões (Figs. 10D-10F).
Foram ainda recolhidas mais oito peças de função ou formato indeterminado e seis pregos em ferro. 4.4. Objectos em cabedal
O nível de humidade do contexto permitiu a preservação de vários restos de sapatos, nomeadamente das solas ou apenas da parte correspondente aos calcanhares. Estas solas eram constituídas por várias camadas finas de cabedal, que seriam provavelmente cozidas entre si, mas essa união já não subsiste. Na zona do calcanhar era feito um reforço com recurso a pregos de ferro, que nalguns exemplares ainda se preservam (Fig. 11).
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Figura 10 - Objectos metálicos V: A/B – Ferraduras em ferro; C – Gancho em ferro; D – Argola em ferro com espigão; E/F – Argolas em ferro; G – Haste articulada (?) em ferro; H – Serra (?) em ferro.
Figura 11 - Objectos em cabedal Restos de Sapatos.
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Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos
Em Lisboa, igualmente em meio húmido ou anaeróbico, encontraram-se sapatos no Beco do Espírito Santo (Alfama) (NOZES, SILVA, MIRANDA, 2007, p. 23), na Frente Ribeirinha (NEVES et alii, 2012, p. 618; NEVES, 2014, p. 267) e nos conventos de Jesus (CARDOSO, 2008, pp. 280-281) e de Sant’Ana14. Outros exemplares foram identificados em Castelo Branco (BOAVIDA, 2012b, p. 210), na Amieira do Tejo (SANTOS, FALCÃO, 2007, p. 153) e em Angra do Heroísmo (BETTENCOURT, 2014, p. 195).
4.5. Elementos pétreos
Neste conjunto identificaram-se alguns objectos que seriam usados na botica para a produção de unguentos, como é o caso de um almofariz em mármore branco (Fig. 12A) e eventual pilão (ou mão de almofariz) em calcário (?) (Fig. 12C). Foi também recuperada uma possível pedra para amolar lâminas de faca ou bisturi (Fig. 12B), em calcário, de formato tronco-piramidal quadrangular. Nas faces maiores aquela mostra múltiplas marcas de
Figura 12 - Elementos pétreos I: A – Almofariz em mármore; B – Pedra de amolar em calcário; C – Pilão em calcário (?); D – Elemento indeterminado em calcário (?).
Figura 13 - Elementos pétreos II: Pederneiras: A – Núcleos em sílex; B – Lascas em sílex.
14 Informação cedida por Rosa Varela Gomes e Mário Varela Gomes.
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polimento por objecto metálico, assim como vários depósitos de ferro nas suas arestas, denunciando a posterior limpeza da lâmina. denunciando a limpeza da lâmina feita após o polimento da mesma. Igualmente de calcário existe fragmento de elemento arquitectónico e um fóssil afeiçoado (Fig. 12D), ambos de funções indeterminadas. Este conjunto inclui ainda, cerca de uma dezena de pederneiras (Figs. 13A-13B), obtidas a partir de núcleos e lascas de sílex, destinadas a produzir lume (SILVA, GUINOTE, 1998, pp. 86-87). 4.6. Outros
Entre os objectos não cerâmicos foram ainda recolhidos no poço dois restos de madeira indeterminados (Figs. 14B-14C), além de várias tábuas e barrotes, e um provável caroço de pêssego (Prunus persica) (Fig. 14A). Em contextos dos séculos XVI-XVII identificados em São Vicente de Fora foram colectadas várias dezenas caroços de pêssego, e de outros frutos, usados para produzir apitos, mostrando uma incisão em V (FERREIRA, 1983: 8-9, fig. 10), mas tal utilização não se verifica no exemplar aqui analisado. Também foram recuperadas duas contas de azeviche, provavelmente de pulseira. Tem formato subcircular achatado, mostrando a face superior facetada, criando
motivo estrelado (Figs. 14D-14E). Numa delas preserva-se o eixo metálico, talvez em cobre, que correspondia às cadeias da possível pulseira. 5. Considerações Finais O presente estudo é um contributo para o conhecimento da cultura material da Época Moderna, em especial do Hospital Real de Todos-os-Santos. Embora o espólio analisado seja proveniente de um contexto muito restrito do ponto de vista espacial, o mesmo é também muito bem definido do ponto vista cronológico, tendo sido recuperado espólio do século XVII e da 1.ª metade do século XVIII. Face a estas evidências, tendo em conta a localização do poço na área afectada pelo incêndio de 1750, é provável que o poço tenha sido desactivado no âmbito das obras de reconstrução em consequência daquele. Os objectos recolhidos são um reflexo dos quotidianos de uma área do Hospital onde se localizavam as residências dos funcionários do mesmo, daí que se tenham encontrado diversos elementos de vestuário, assim como de mobiliário, a par de outros de uso doméstico, que nalguns casos, pela sua qualidade, revelam a presença de indivíduos de diversos estratos sociais.
Figura 14 - Outros: A – Caroço de pêssego; B/C – Elementos indeterminados em madeira; D/E – Contas em azeviche.
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Objectos do quotidiano num poço do Hospital Real de Todos-os-Santos
É também relevante a presença, embora reduzida, de alguns objectos de carácter médico-cirúrgico, como sejam a seringa de clister, o almofariz e o pilão, a pedra de amolar e a possível serra. Agradecimentos Pelas informações, dados e esclarecimentos fornecidos: Rodrigo Banha da Silva, Marina Carvalhinhos, Cristina Nozes, Nuno Mota, Paulo Botelho, Rosa Varela Gomes, Mário Varela Gomes, Fernando E. Rodrigues Ferreira, César Neves, Guilherme Cardoso, António Marques, Mário Marzagão, Joana Gonçalves, João Boavida, João Pedro Boavida, Edgar Fernandes e Rima Prakash. Museu da Cidade / Depósito Bordalo Pinheiro (2004 / 2005) e Centro de Arqueologia de Lisboa (2015/2016).
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Uma cidade em escavação
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
No âmbito da Empreitada de Construção do Sistema de Intercepção e Câmara de Válvulas de Maré do Terreiro do Paço, obra a cargo da SIMTEJO, foram identificados diversos vestígios arqueológicos que nos permitem conhecer melhor o local que foi, desde o século XVI, o centro político e social de Portugal. Durante a escavação observaram-se níveis de aterro depositados para a construção da Praça do Comércio logo após o evento sísmico de 1755, sobrepostos a níveis de ocupação relacionados com o antigo Terreiro do Paço, com especial destaque para um depósito composto exclusivamente por fragmentos de porcelana chinesa. Apesar de ter sido uma recolha parcial, pois o nível ainda se conserva em zonas não afetadas pela obra, registou-se e recolheu-se um conjunto de porcelana chinesa bastante numeroso, espelho da dinâmica comercial e do consumo das elites portuguesas da primeira metade do século XVIII. PALAVRAS-CHAVE:
Arqueologia urbana, século XVIII, Lisboa, terramoto, porcelana, China.
ABSTRACT:
In 2009, the archaeological surveys developed in the Praça do Comércio (Lisbon) (SIMTEJO) uncovered a number of different archaeological realities that allow us to better understand this urban space evolution. One of the most significant archaeological remains identified was a post-earthquake (1755) landfill, exclusively filled with Chinese porcelain of the first half of the eighteenth century. Although only a part of the findings was recovered, there is still a large number of Chinese porcelain sherds to be studied, reflecting the Portuguese trade dynamics and the elite’s consumption during the first half of the eighteenth century. Key words:
Urban archaeology, 18th century, Lisbon, earthquake, porcelain, China.
Praça do Comércio. Observação da sequência estratigráfica e recolha de materiais arqueológicos
3.16 Fragmentos da mesa nobre
e de uma cidade em transformação: porcelana chinesa num contexto de terramoto na Praça do Comércio (Lisboa)
Sara Ferreira CHAM-FCSH/NOVA|UAc
sara.isabel91@hotmail.com
César Neves UNIARQ/FLUL, AAP
c.augustoneves@gmail.com
Andrea Martins UNIARQ/FLUL, AAP
andrea.arte@gmail.com
André Teixeira DH/FCSH/NOVA, CHAM-FCSH/NOVA|UAc
texa@fcsh.unl.pt
1. Introdução Em março de 2009, numa das ações de acompanhamento arqueológico da Empreitada de Construção do Sistema de Intercepção e Câmara de Válvulas de Maré do Terreiro do Paço (SIMTEJO), a equipa de arqueologia da CRIVARQUE identificou, num espaço bem delimitado, uma sequência estratigráfica contendo elementos importantes para a compreensão da dinâmica evolutiva da área do Terreiro do Paço e, posteriormente, da Praça do Comércio. Ao contrário de outros elementos arqueológicos registados no decorrer desta obra (NEVES, 2010, NEVES et alii, 2013), a identificação de um nível de aterro composto por 1673 fragmentos de porcelana chinesa, depositado logo após o Terramoto de 1755, só foi possível mediante o acompanhamento arqueológico, face à impossibilidade de realizar uma intervenção mais abrangente, condicionando assim as leituras interpretativas resultantes do seu estudo. Ainda assim, em 2015 foi retomada a investigação sobre este contexto, através da análise detalhada daquele relevante conjunto artefactual. 2. O sítio arqueológico 2.1. Localização
A área em análise situa-se na freguesia de São Nicolau, concelho e distrito de Lisboa. O espaço intervencionado localiza-se na folha nº 431 da Carta Militar de Portugal, na escala de 1:25.000 (Fig. 1). As coordenadas
correspondentes, no Datum Lisboa, para a realidade arqueológica aqui descrita são: M. -87 350; P. -106 189; Z. 0,28m. Geologicamente insere-se numa região constituída por argilas e calcários do Miocénico, a que se associam areolas da Estefânia com Chlamys pseudo-pandorae, de igual época geológica (ALMEIDA, 1986). Está inserida numa zona de aluviões e/ou aterros, cartografados ao longo das principais linhas de água. A zona compreendida entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço encontra-se em pleno “Esteiro da Baixa”, uma zona aplanada, aberta a Sul para o estuário do Tejo, na qual confluem duas ribeiras atualmente encanadas: a Ribeira de Valverde e a Ribeira de Arroios. Do ponto de vista histórico a zona de intervenção insere-se numa frente ribeirinha construída sobre aterros antrópicos, depositados na sequência da decisão de D. Manuel I de transferir a residência real para o Terreiro do Paço no início do século XVI, a que se seguiu a implantação de numerosas estruturas e equipamentos públicos relacionados com as atividades marítimas e comerciais do Reino, dinamizando assim uma área de Ribeira (CAETANO, 2000). O local conheceu ampla reformulação urbana em época pombalina, logo após o Terramoto 1755, sendo a Praça do Comércio a face mais visível dessas transformações. 2.2. Intervenção arqueológica
Os dados arqueológicos em análise neste texto provêm da zona de empreitada designada por P1. Aqui a obra consistia em intercetar o Caneiro da Rua do Ouro (em atividade) e mudar a condução do seu interior
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Sara Ferreira, César Neves, Andrea Martins, André Teixeira
Figura 1 – Localização da intervenção arqueológica (C.M.P. 1:25 000, Folha 431 – excerto e adaptado).
Figura 2 – Planta geral da empreitada SIMTEJO/CRIVARQUE (excerto e adaptado), com a localização exacta das realidades arqueológicas identificadas, com destaque para a área P1 (a laranja).
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Fragmentos da mesa nobre e de uma cidade em transformação
(águas pluviais e saneamento) para as zonas de tratamento existentes na CVM-RO e CVM-RA/RP. Assim sendo, qualquer que fosse a intervenção realizada nesta área (Fig. 2), era seguro que se iria observar a presença do Caneiro da Rua do Ouro, aqui colocado durante a requalificação pombalina da Baixa de Lisboa. O trabalho na P1 era simples em termos de planeamento de trabalhos da obra. Consistia em detetar o caneiro através de escavação mecânica a partir da superfície atual, realizar um corte na estrutura (com cerca de 5m), selar a zona que ficava a Sul (virada para o rio e que, hoje, é um troço de caneiro que está inutilizado mas que se mantém no sítio onde foi construído) e desviar a zona a Norte (direcionado com a Rua do Ouro e de onde corre as águas e esgoto) para a futura conduta/galeria. Todas estas ações foram feitas com recurso a meios mecânicos, sendo que o caneiro foi seccionado pela própria pá da máquina. Neste sentido, perante tamanha insensibilidade patrimonial, não foi fácil levar a cabo as ações de acompanhamento arqueológico nesta zona. Aliada a esta situação, estava-se perante uma estrutura em plena atividade e que, durante cinco dias, deixou correr a céu aberto as águas e esgoto de milhares de lisboetas, impedindo qualquer registo que não fosse o fotográfico, realizado do cimo da vala, o mais próximo possível dos achados arqueológicos. Ao contrário das restantes áreas da obra, nesta zona não foram adotadas medidas de segurança que permitissem um trabalho arqueológico mais completo. Num espaço com um solo muito instável, fruto da forte presença de aterros e níveis de rio, o empreiteiro não colocou cortinas de estacas em betão ao longo das duas extremidades das valas e escavações, a fim de assegurar a contenção lateral dos sedimentos pouco consolidados (maioritariamente aterros pombalinos) e expostos à forte subida da maré.
Face à ausência de contenção lateral, com o nível freático a subir constantemente e com a presença do esgoto que proviria do Caneiro da Rua do Ouro, qualquer intervenção arqueológica apresentaria dificuldades acrescidas, carecia de segurança, ficaria incompleta e promovia um registo arqueológico muito condicionado. Durante o acompanhamento arqueológico do espaço bem delimitado onde se iria intercetar o Caneiro da Rua do Ouro, observou-se uma sequência estratigráfica onde saltavam à vista dois níveis de aterro pós-pombalinos: um composto exclusivamente por fragmentos de porcelana; outro composto por cerâmica comum e restos de fundição (escória). De igual modo, abaixo desses níveis, identificou-se uma calçada pré-Terramoto e, nos níveis abaixo e claramente de rio, quatro projécteis de canhão em pedra (Fig. 3). Apesar da grande relutância do empreiteiro, em virtude da referida falta de segurança, foi possível recolher os projécteis e o maior número possível de materiais arqueológicos provenientes desses níveis de aterro, procedendo-se também ao registo do Perfil Estratigráfico (Fig. 4). Para a sequência estratigráfica observada foi possível desenvolver as seguintes ações de registo: fotográfico – com forte recurso a fotografia ortogonal para auxiliar no registo gráfico; gráfico – desenho à escala de 1:20 de todas as UE identificadas no perfil estratigráfico; topográfico – recurso a Estação Total para georreferenciar todos os níveis arqueológicos identificados em estratigrafia, gerando informação relativamente à sua altimetria e disponibilizando dados referentes à sua localização espacial concreta face ao seu contexto atual. A partir do momento em que se reconheceram estas realidades arqueológicas, de significativa importância para o conhecimento da evolução desta zona em períodos pré e pós Terramoto de 1755, o manobrador da
Figura 3 – Perfil Oeste observado na P1, com o nível composto por porcelanas destacado. Atente-se para a presença do nível freático.
Figura 4 – Aspecto geral dos trabalhos arqueológicos realizados na P1. Observação da sequência estratigráfica e recolha de materiais arqueológicos.
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máquina começou a remover e a espalhar os sedimentos escavados para que se pudesse recolher o maior número possível de elementos arqueológicos, obviando de alguma forma a impossibilidade da equipa de arqueologia trabalhar junto do perfil estratigráfico e proceder ao seu registo integral. A escavação mecânica diminuiu então de intensidade e começou a ser controlada por níveis, para assegurar que os artefactos mantivessem uma proveniência estratigráfica o mais segura possível. 2.3. Sequência e relação estratigráfica
A sequência estratigráfica observada e registada durante o acompanhamento arqueológico efetuado na zona da caixa P1 foi a seguinte (Fig. 5): - UE [1] - Piso. Piso em alcatrão, correspondendo à estrada que figurava na Praça do Comércio à data da intervenção. Sobre a [2]. - UE [2] - Calçada de basalto que correspondia ao piso que exista previamente à estrada de alcatrão. Sob a [1] e sobre a [3]. - UE [3] - Depósito. Camada de toutvenant que suportava a calçada da UE [2]. Envolvido num areão solto de cor amarelo, surgem muitas pedras de pequena dimensão. Apresentava uma potência máxima de 40cm. Sob a [2] e sobre a [4]. - UE [4] - Depósito. Camada de sedimento arenoso, de grão fino e com uma espessura que não excedia os 10cm. Não continha materiais arqueológicos nem elementos pétreos. Deverá fazer parte das camadas de preparação para a colocação do piso em calçada de basalto. Sob a [3] e sobre a [5] e [7]. - UE [5] - Depósito. Camada de colmatação do ramal de ferro [6]. Sedimento arenoso, castanho-avermelhado, com alguns elementos pétreos de pequena dimensão. Não continha qualquer material arqueológico. Sob a [4] e sobre a [6]. Cortou a [7]. - UE [6] - Infraestrutura. Tubo em ferro para transporte de água. Corresponderá a um antigo ramal que virá de um dos edifícios presentes na atual Praça do Comércio. Coberta pela [5]. - UE [7] - Depósito. Camada de sedimento arenoso de cor castanho-cinzento. Apresenta uma potência máxima de 1,4m e corresponderá a uma camada de aterro. Não continha materiais arqueológicos. Apresentava alguns elementos pétreos de média dimensão. Tinha presenças de oscilações de cor, devido à existência de micro-camadas mais negras. Sob a [4]. Sobre a [10] e [15]. Cortada por [5] e [8]. - UE [8] – Depósito. Camada de sedimento arenoso, de grão médio de coloração castanho-torrado. Apresenta algum cascalho na sua composição. Parece tratar-se de uma camada de colmatação de algum equipamento urbano contemporâneo, no entanto, na zona da P1, esse equipamento não foi identificado. Corta a [7] e cobre a [9]. - UE [9] – Depósito. Camada de sedimento arenoso, de grão fino e cor castanha. Apresenta escassos elementos pétreos de pequena dimensão. Parece tratar-se de uma camada de colmatação de algum equipamento urbano contemporâneo, tal como a [8], no entanto, na zona da P1, esse equipamento não foi identificado. Corta a [10] e a [12]. Sob a [8].
462 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
- UE [10] - Depósito. Camada de aterro com sedimento areno-argiloso de grão médio. Apresenta alguns fragmentos de cerâmica de construção. Sob a [7]. Sobre a [11] e [15]. Cortada por [9] e [8]. - UE [11] - Depósito. Camada de aterro. Sedimento arenoso, de coloração amarela com uma espessura máxima de 40cm, com raros elementos pétreos e com presença frequente de tijolo e telha. Sob a [10]. Sobre a [12], [14], [13] e [15]. - UE [12] - Depósito. Camada de aterro. De matriz areno-argilosa, de cor castanha. Sem qualquer artefacto que possibilite um enquadramento cronológico, apresentava, no entanto, alguma cerâmica de construção de cronologia Moderna e/ou Contemporânea. Sob a [10]. Sobre a [12], [14], [13] e [15]. - UE [13] - Depósito. Camada de aterro composta por sedimento areno-argiloso de cor castanho-esverdeado. Com uma elevada potência sedimentar (cerca de 1m de espessura máxima), este nível apresentava uma presença muito significativa de material de construção, como tijolo e telha. Nível de entulho que continha, igualmente, uma presença residual de elementos pétreos de pequena e média dimensão. Sob a [9], a [12] e [11]. Sobre a [14] e [15]. - UE [14] - Depósito. Camada de aterro que cobre níveis de Pós-Terramoto de 1755. Depósito pouco espesso, arenoso, apresentando alguns fragmentos de cerâmica de construção. Sob a [11] e [13]. Sobre a [15]. - UE [15] - Depósito. Nível de aterro Pós-Terramoto de 1755. Em conjunto com uma camada de sedimento arenoso, de cor castanho-claro, ocorre a elevada presença de fragmentos de cerâmica comum e de restos de fundição (escória). Apresenta uma espessura máxima de 30cm. Espaço bastante bem delimitado, embora não tenha sido possível definir a sua integral dimensão e a recolha artefactual está longe de corresponder à real dimensão do conjunto. Sob a [7], [10], [11] e [14]. Sobre a [16] e [17]. - UE [16] - Depósito. Nível de aterro Pós-Terramoto de 1755. Composto por centenas de fragmentos de porcelana chinesa, este nível não apresenta uma espessura superior a 20cm. Revela uma total ausência de materiais arqueológicos de outra categoria artefactual. Espaço bastante bem delimitado estratigraficamente, embora não tenha sido possível definir a sua integral dimensão, pois a empreitada não avançou para Oeste. Sob a [15]. Sobre a [17] e [18]. - UE [17] - Depósito. Camada areno-argilosa de cor cinzenta que colmata uma calçada de seixos [18]. Apresenta uma espessura máxima de 30cm, não apresentando qualquer material arqueológico associado, apesar de estar coberta pelo nível de aterro composto por porcelanas. Sob a [16] e [15]. Sobre a [18]. - UE [18] - Piso. Calçada de seixos de quartzito (seixos de dimensão média a grande). Só foi possível de observar em estratigrafia e nunca em plano. O seu grau de destruição deverá estar relacionado com a evolução urbanística deste local, pois parece ter sido cortada pelo Caneiro da Rua Augusta. Não tem materiais arqueológicos associados. Está colmatada por níveis de aterro Pós-Terramoto de 1755. Sobre a [19] e [20]. Sob a [16] e [17]. - UE [19] - Depósito. Camada areno-argilosa de coloração muito escura (cinzento-preta). Deverá ser equivalente à [20], mas como o nível freático ainda não tinha
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Figura 5 – Sequência estratigráfica identificada na P1. Registo gráfico.
subido até aqui na altura que foi registado, confere-lhe uma tonalidade mais clara. Não contem materiais arqueológicos. Sob a [18]. Sobre a [20], embora haja a dúvida de poder ser equivalente a esta. - UE [20] - Depósito. Camada areno-argilosa de coloração muito escura (preto). De difícil observação devido à subida do nível freático e da presença das águas provenientes do Caneiro. Continha 4 projécteis em pedra. Corresponderá a um nível de rio (aluvião). Não se observou o seu limite inferior. Sob a [18]. 3. A porcelana chinesa Na intervenção arqueológica da Praça do Comércio, mais especificamente na UE16, associada a um nível de aterro com uma datação posterior ao dia 1 de novembro de 1755, foi recolhido um conjunto de 1673 fragmentos de porcelana, tratados no âmbito do presente estudo. Após o processo de colagem e inventariação registou-se 660 Número Mínimo de Indivíduos (NMI), divisíveis em vários grupos. 3.1. “Azul e Branco” (2ª metade do século XVI e 1ª metade do século XVII)
Dentre os exemplares em estudo, composto grosso modo por peças características dos finais do século XVII e da centúria seguinte, identificaram-se duas tigelas com decorações integráveis nas produções do reinado de
Wanli (1572-1620) (MATOS, 2003, p. 17). Ambos os exemplares apresentam um medalhão central, delimitado por duplo círculo. Numa das peças figura um dragão ladeado por enrolamentos de nuvens e flores de lótus (PDC09-P1-[16]-001, estampa 1), enquanto que na segunda tigela é representada uma paisagem aquífera (PDC09-P1-[16]-002, estampa 1). Os exemplares enquadram-se nessa intensificação da afluência de porcelana chinesa à Europa após o estabelecimento português em Macau. Integram-se na popular decoração azul e branco, possibilitada pelos contactos da dinastia Ming (1368-1644) com a região persa de Kashan, de onde provinha o cobalto, e que conduziram à emergência de uma verdadeira metrópole oleira em Jingdezhen a partir dos inícios do século XV. O local beneficiou de uma posição privilegiada, com a proximidade dos montes Goaling (caulino), rodeado por densas florestas, e ainda, pela presença da ribeira de Chang, que permitiu o escoamento dos produtos até Pequim e aos portos da costa meridional (MATOS, 1996, pp. 23-24). Um único fragmento de um grande pote, com uma decoração estruturada em cartelas de formato prismático (PDC09-P1-[16]-003, estampa 1), pode ser integrável no grupo da Kraak porselein. Trata-se de um tipo de porcelana com um esquema decorativo muito próprio, compartimentado em painéis preenchidos por símbolos esperançosos, flores e faunas, a ladear um motivo central, fabricadas propositadamente com destino à exportação para a Europa.
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Em 1594, Portugal sob domínio filipino fechou o porto de Lisboa ao abastecimento dos Países-Baixos, com os quais estava em guerra. Tal facto estimulou os neerlandeses a abastecer-se de produtos asiáticos navegando diretamente para o Índico, através de diversas companhias comerciais surgidas logo em 1595. Em 1602 todas foram agrupadas na Vereenigde Oost-Indische Compagni. Poucos anos depois, a Inglaterra criou também a sua
Estampa 1
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companhia de comércio oriental, a East India Company, pondo em causa a supremacia portuguesa nos Mares da Ásia. Entre os produtos trazidos à Europa por estes empreendimentos britânico e neerlandês estavam as porcelanas, procura que motivou a produção em série deste tipo de Kraak porselein, a porcelana da carraca, batizada em consagração do tipo de embarcação comercial utilizada pelos Portugueses no Índico (MATOS, 2003, p. 21).
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3.2. “Família Verde” (1680-1720)
A decoração da porcelana chinesa seguia critérios próprios característicos do reinado de cada imperador, sendo a técnica e a iconografia decorativa importantes aferidores cronológicos. Regra geral, à morte de um imperador introduzindo-se rapidamente os símbolos e esmaltes do novo reinado. A Kangxi (1662-1722) são atribuídas as peças decoradas por esmaltes polícromos, sendo o verde a cor de maior destaque, acompanhado pelas tonalidades de vermelho alaranjado, azul, amarelo, preto e dourado, compondo a designada “Família Verde”. As porcelanas deste período ostentam decorações cuidadas, ricas em pormenores, com iconografias florais e zoomórficas de estilo oriental (CARVALHO, 1993, pp. 86-87). A sua riqueza e policromia chegaram à Europa a partir de 1680, atingindo uma enorme aceitação e popularidade nos quotidianos. Na Praça do Comércio foram contabilizados 31 (NMI) indivíduos pertencentes a este grupo e que, segundo o esquema decorativo e tipologias aferidas, se dividiriam em dois serviços de jantar. O primeiro reparte-se por 18 pratos rasos (PDC09-P1-[16]-004), uma terrina circular/ sopeira (PDC09-P1-[16]-005) e uma forma indeterminada (estampa 1). Apresenta uma decoração muito fina e cuidada, com motivos florais e libelinhas delimitados a finos traços negros, semelhantes às peças em porcelana japonesa decoradas sobre a técnica de Kaikemon (HENRIQUES, 2012, p. 926). O segundo serviço identificado é composto por 11 travessas hemisféricas côvas, com bordo recortado em chaveta delimitado por uma linha vermelha, preenchido por volutas e motivos florais. O fundo das formas é decorado ao centro por flores, delimitadas por uma cercadura dourada de losangos intercetados (PDC09-P1-[16]-006, estampa 2). Em meados do século XVII, a instabilidade política na China refletiu-se no setor da produção porcelânica, sendo perturbada a laboração dos fornos de Jingdezhen. Sem supervisão imperial, os artesões usufruíram de maior liberdade criativa, estimulada também pelos comerciantes neerlandeses e japoneses, que fizeram notar a sua influência no reportório tipológico e decorativo, diversificando-os (MATOS, 1996, pp. 31-32). Em 1683, sob o domínio de Kangxi, Jingdezhen foi reconstruída e a produção reorganizada, passando novamente a ser controlada ao nível imperial. Foi um período de profunda reformulação no fabrico de porcelana, elevando-a a uma perfeição técnica e decorativa até então inatingíveis. A descoberta de cobalto no território chinês permitiu obviar as importações persas (MATOS, 2003, pp. 21-23). A recetividade do imperador face às novidades levadas à China pelos Jesuítas, a par da crise dos metais na Europa, conduziu ao fabrico de serviços de jantar e de chá integralmente em porcelana, em a substituição de baixelas de prata. Deste modo, no reportório formal alusivo ao serviço de jantar surgiram peças como terrinas e travessas (inicialmente de formato hemisférico, também designadas por sopeiras), pratos de diversas dimensões, saladeiras, molheiras, saleiros, azeitoneiras e mostardeiras. Nos serviços de chá surgiram formas como bules, leiteiras, açucareiros e pequenas tigelas/copos, onde eram degustadas bebidas quentes segundo o modelo oriental (LEITE, 1986, pp. 74-80).
3.3. “Azul Soprado”/ Powder-Blue (1700-1725)
Nos primórdios do século XVIII, nos fornos de Jingdezhen, foi desenvolvido um novo tipo decorativo designado por Azul Soprado ou Powder Blue. As peças deste tipo apresentam uma superfície quase totalmente de cor azul safira, interrompida por cartelas brancas de formato prismático decoradas no interior pelos esmaltes da “Família Verde”. Nesta nova técnica o azul de cobalto era soprado por um bambu sobre a superfície ainda crua das peças. Durante o processo eram definidos e cobertos com papel de arroz os espaços a manter em branco. Após a primeira cozedura os espaços a branco eram decorados por motivos florais, delineados através dos esmaltes da “Família Verde” (MATOS, 2003, pp. 24-26). Dentre o conjunto lisboeta em estudo foram identificadas um total de 41 peças (NMI) de superfície azul lustrosa com cercaduras douradas de losangos intercetados. Apresentam espaços a branco, compostos por cartelas de formato prismático, decoradas no interior por motivos florias definidos através da “Família Verde”. No âmbito formal os exemplares encontram-se repartidos: um grande pote e a respetiva tampa; cinco mostardeiras (PDC09-P1-[16]-009) e uma tampa respetiva; duas travessas hemisféricas rasas; 14 travessas hemisféricas côvas; três terrinas hemisféricas/sopeiras (PDC09-P1[16]-008); nove pratos rasos (PDC09-P1-[16]-007) e nove formas indeterminadas (estampa 2). 3.4. “Família Rosa” (1720-1800)
Em meados da segunda metade do século XVII, Andreas de Cassius patenteia na Holanda o pigmento “corde-rosa”, elaborado à base de uma pequena quantidade de ouro em dispersão coloidal. A inovação policroma é levada a Kangxi pelos Jesuítas, sendo rapidamente assimilada na paleta de cores da porcelana chinesa (Leite, 1986, pp. 34-74). A aplicabilidade do cor-de-rosa à porcelana surge em conjunto com o branco opaco extraído do arsénico. A utilização deste último elemento como base dos esmaltes polícromos, aliado ao total controlo da sua cozedura, permite obter uma maior variação de tonalidades, incluindo decorações baças (CARVALHO, 1993, pp. 85-86). No início da utilização da nova cor, coincidentes com os últimos anos do reinado de Kangxi, a falta de domínio da técnica de cozedura fez surgir peças com decorações de rosas avermelhados, por vezes com contornos a vermelho alaranjado, idênticas às peças da “Família Verde”, que continuaram a ser produzidas até à morte de Kangxi (MATOS, 2003, pp. 29-35). Inseridos neste período de fabrico contabilizaram-se 19 peças (NMI) da Praça do Comércio, repartidas em 12 travessas hemisféricas e sete pratos rasos. Apresentam decorações florais na extremidade e ao centro das formas, delimitadas a vermelho com preenchimentos a cor-de-rosa opaco envolvidas por cercaduras douradas de losangos intercetados (PDC09-P1-[16]-010, estampa 2). No decorrer do reinado do imperador Yongzheng (1722-1735), o total domínio da conjugação do branco de arsénico e o controlo da cozedura dos esmaltes fez surgir decorações que caracterizam em pleno a desig-
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nada “Família Rosa”. As porcelanas decoradas a partir deste período representam normalmente motivos florais ricos em pormenores, com recurso a múltiplas cercaduras delineadas pelos esmaltes rosa, verde, azul, preto e dourado, conjugados com o branco de arsénico. As peças do período de Yongzheng caracterizam-se pela sua finura, sendo por vezes quase translúcidas, pelos seus revestimentos com vidrados de elevada qualidade e pelas suas bases, fundos ou pés alongados em forma de “V” (CARVALHO, 1993, pp. 85-86). A emergência do Rococó na Europa, em voga a partir dos inícios de setecentos, levou à preferência por decorações com motivos florais de tonalidades suaves, conduzindo ao fim das peças da “Família Verde”. Na verdade, as porcelanas da “Família Rosa” atingiriam uma enorme popularidade, não só no velho Continente, como também na Corte de Pequim (LEITE, 1986, p. 80). No conjunto em estudo podem integrar-se 49 peças (NMI) atribuíveis a este período de fabrico da “Família Rosa”, repartíveis por dois esquemas decorativos distintos. Primeiramente, num total de sete pratos rasos, encontram-se os exemplares com abas decoradas por motivos florais, separados do fundo por uma cercadura dourada de losangos intercetados, com a representação ao centro de um medalhão de motivos florais (PDC09-P1-[16]011, estampa 2). Em segundo lugar, registam-se 10 pratos rasos, 11 pratos côvos, seis pratos indeterminados e 15 travessas hemisféricas, com uma decoração em que a extremidade e o centro da forma são delimitados por uma cercadura dourada de losangos intercetados e a aba e fundo são preenchidos por motivos de arabescos e flores de lótus (PDC09-P1-[16]-012, estampa 3). 3.5. Tinta-da-China / Sépia / Grisaille / Encre-de-Chine (1725-1775)
Em meados de 1725 foi introduzida uma nova técnica no reportório decorativo da porcelana chinesa designada por “Tinta-da-China”. O novo método permitia copiar na perfeição as gravuras europeias enviadas à China, através de finas linhas negras preenchidas escassamente por rosas, verdes, azuis e dourados (SAPAGE, 1992). A ausência maioritária de cor não obteve uma aceitação positiva na Europa, findando esta técnica em meados de 1775. No conjunto do Terreiro do Paço foram identificados quatro indivíduos pertencentes a este tipo. Duas das peças apresentam decorações com motivos florais com pormenores e preenchimentos a dourado, sendo um deles uma terrina circular ou sopeira e o outro uma forma não identificada. Os restantes dois indivíduos, referentes a duas tigelas, apresentam o bordo delimitado por uma cercadura a azul de losangos intercetados, com o corpo das peças preenchido por uma paisagem vegetalista a negro com preenchimentos a dourado, verde e rosa esbatidos (PDC09-P1-[16]-013, estampa 3). 3.6. “Azul e Branco” (Qianlong, 1723-1795)
A chegada ao trono do imperador Qianlong não implicou a supressão da “Família Rosa” característica do reinado anterior, continuando esta a ser enviada para a Europa até meados de 1800. Contudo, a exportação em massa de
serviços levou à perda de qualidade e rigor decorativo deste tipo decorativo, distanciando-as das finas e delicadas peças dos inícios do século XVIII. Num período em que produção mergulhou em declínio, aliado ao volume das encomendas do mercado europeu, as peças a “Azul e Branco”, que continuaram a ser produzidas no decorrer da dinastia Qing a par das demais “Famílias” citadas, assumem-se como a opção mais rápida e económica (CARVALHO, 1993, p. 86). A produção de “Azul e Branco” mais frequente do reinado de Qianlong tem decoração com azul pálido de vidrados acinzentados, reintegrando decorações características da dinastia Ming no reportório iconográfico, sem lhes dar valor simbólico. Atribui-se-lhe também a evolução das grandes tipologias hemisféricas dos serviços de jantar (terrinas / sopeiras e travessas) para formas ovais ou semirretangulares de bordos recortados, assim como a introdução da chávena nos serviços de chá (LEITE, 1986, p. 80). Integrados nesta cronologia encontram-se 476 peças (NMI), que se repartem em cinco esquemas decorativos distintos. Em primeiro lugar, num total de 340 (NMI), encontram-se as peças decoradas na extremidade por festões e motivos florais (peónias, lírios, orquídeas e romãs), com cercaduras de losangos intercetados e lancetas (PDC09P1-[16]-014, estampa 3). As formas abertas deste subconjunto apresentam ao centro, medalhões com paisagens variáveis, com os seguintes elementos (ver estampas 3 a 7): delimitação em duplo círculo com peónias e bambus (PDC09-P1-[16]-015); cercadura de losangos intercetados interrompidos por reservas florais e geométricas, integrando representação de paisagem aquífera com dois patos e plantas aquáticas (nenúfares e flores de lótus) (PDC09-P1-[16]-016; PDC09-P1-[16]-017; PDC09P1-[16]-018); representação de uma paisagem vegetalista com peónias arborescentes, lírios, orquídeas e borboletas, limitada por um gradeamento de jardim (PDC09-P1-[16]019; PDC09-P1-[16]-020); delimitação em duplo círculo com a representação de motivos florais, como crisântemos e plantas aquáticas (PDC09-P1-[16]-021; PDC09-P1[16]-022); medalhão central demarcado em duplo círculo com a representação de uma paisagem vegetalista, da qual fazem parte duas graças, peónias arborescentes e um rochedo (PDC09-P1-[16]-0023; PDC09-P1-[16]-024; PDC09-P1-[16]-025); delimitação em duplo círculo preenchido por uma paisagem vegetalista composta por um rochedo com peónias arborescentes e borboletas esvoaçantes (PDC09-P1-[16]-026). Em termos formais todos exemplares pertencem a serviço de jantar, incluindo 118 pratos rasos (PDC09-P1-[16]-014; PDC09-P1-[16]016; PDC09-P1-[16]-019), 96 pratos côvos (PDC09P1-[16]-017; PDC09-P1-[16]-023; PDC09-P1-[16]026), 31 pratos indeterminados, 13 tigelas, 10 travessas semirretangulares de bordo recortado (PDC09-P1-[16]018; PDC09-P1-[16]-020; PDC09-P1-[16]-021), 11 terrinas hemisféricas / sopeiras (PDC09-P1-[16]-015), 16 terrinas semirretangulares de bordo recortado (PDC09P1-[16]-025; PDC09-P1-[16]-027) e nove tampas respetivas (PDC09-P1-[16]-028), 15 saladeiras de bordo em aba (PDC09-P1-[16]-023; PDC09-P1-[16]-024), seis saladeiras de bordo revirado (PDC09-P1-[16]-029), cinco azeitoneiras (PDC09-P1-[16]-030), cinco mostardeiras (PDC09-P1-[16]-031) e cinco formas indeterminadas.
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O segundo grupo associado à cronologia do reinado de Qianlong apresenta a extremidade da forma delimitada por uma cercadura de losangos intercetados, encontrando-se o restante corpo da peça preenchido por elementos florais. Formalmente restringe-se a 43 pratos rasos (PDC09-P1[16]-032, estampa 8) e 21 pratos côvos. Um terceiro conjunto de 45 peças (NMI), divididas em 44 pratos côvos e um prato raso, integra os exemplares decorados junto ao bordo por arabescos intercalados por motivos florais e símbolos taoistas e budistas. Ao centro das formas foram representados motivos florais delimitados por uma cercadura de lancetas (PDC09-P1-[16]033, estampa 8). Segue-se um grupo de peças com bordo delimitado por uma cercadura de losangos intercetados, decoradas por motivos florais (bambus, glicínias e peónias). O reportório tipológico restringe-se a seis pratos rasos, seis tigelas e oito pequenas tigelas integráveis num serviço de chá (PDC09-P1-[16]-034, estampa 8).
Por fim, destacam-se sete pratos (NMI) decorados por uma paisagem de inspiração oriental, delimitada por uma cercadura de losangos intercetados (PDC09-P1[16]-035, estampa 8). A temática decorativa representada é interpretada na bibliografia como uma alusão à cidade de Cantão no século XVIII (MOTA, 2000, p. 68). 4. A China na mesa lisboeta e a catástrofe de 1755 A análise global do conjunto de porcelana chinesa exumada no subsolo da Praça do Comércio, em Lisboa, composto por um total de 1673 fragmentos agrupáveis em 660 Número Mínimo de Indivíduos, apresenta na sua esmagadora maioria características das produções do século XVIII (Gráficos 1 e 2). Merecem especial destaque as porcelanas fabricadas sensivelmente a partir do segundo quartel desta centúria, que representam mais
Azul e Branco (XVI-XVII); 3 Família Verde; 31 Indeterminados; 37
Azul Soprado; 41
Família Rosa; 68
Tinta-da-china; 4
Azul e Branco (Qianlong); 476
Gráfico 1 – Frequência percentual dos tipos de porcelana chinesa.
Gráfico 2 – Dispersão e frequência crono-estilística do Número Mínimo de Indivíduos de porcelana chinesa.
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de 80% do conjunto. Introduzindo o conjunto no contexto estratigráfico, um dos níveis de aterro após o terramoto de 1 de novembro de 1755, é possível afirmar que estas cerâmicas eram de importação recente a partir da China, aquando da catástrofe e da sua deposição. Em termos dos tipos decorativos registados merecem especial menção as decorações a azul e branco, executadas no reinado do imperador Qianlong (17351796), que representam quase ¾ do conjunto. O segundo grupo mais expressivo diz respeito à “Família Rosa”, onde avultam os exemplares do imperador Yongzheng (1722-1735), portanto com uma cronologia também do segundo quartel de Setecentos, embora se registem
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fragmentos passíveis de produção nos derradeiros anos de Kangxi (1662-1722). A série coeva denominada “Tinta-da-China” é muito escassamente representada, sinal da já referida pouco expressão no gosto português, onde o azul e branco manteve grande expressão, como é possível discernir no conjunto estudado. As séries dos finais do século XVII ou do primeiro quartel de Setecentos representam apenas 10%, a “Família Verde” e a “Azul Soprado”. Finalmente, destaque para a aparição residual de porcelanas azul e branco do século XVI ou de inícios da centúria seguinte, sinal da relevância deste tipo de peças e da sua longa continuidade de uso.
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De facto, a diversidade decorativa e técnicas observadas no conjunto, aliada a curta datação de fabrico e uso, balizada entre 1725 e 1755, poderá assentar na massificação da produção nos finais do século XVII, que conduziu a sucessiva substituição dos serviços por novas técnicas e decorações em voga. Decerto um estudo elaborado aos contextos nobiliárquicos ingleses aponta que, no decorrer do século XVIII, os serviços de jantar e chá atingiriam, nos quotidianos, um máximo de 10 anos, sendo recorrentemente substituídos por um novo estilo ou padrão emergente (LEITE, 1986, p. 234). Paralelamente, calcula-se que as grandes famílias europeias poderiam ter na sua pose, no decorrer da centúria de setecentos, quatro ou cinco serviços de porcelana completos (Carneiro, 1989, p. 15). No caso dos achados da Praça do Comércio a diversidade técnica e decorativa do conjunto aponta a presença provável de dez serviços de jantar e um de chá, todos incompletos. Já os exemplares Ming atingem no registo arqueológico uma maior longevidade. Poderão corresponder a peças manuseados com maior cuidado, adquiridos num período de relações luso-chinesas mais instáveis, catapultando-os a objetos de luxo, raros, de ostentação e cerimonial (CORREIA, 2005, pp. 88-89). Este não é o primeiro exemplo lisboeta em que exemplares da dinastia Ming são identificados em níveis de aterro da segunda metade do século XVIII, podendo referir-se os casos das intervenções no Mercado da Ribeira (FERREIRA, 2015, pp. 60-63) e na Praça da Figueira, este último correspondente ao claustro Nordeste do Hospital Real de Todos-os-Santos, abandonado entre 1773 a 1775 (BARGÃO, 2015, p. 55). Retomando o contexto estratigráfico da Praça do Comércio, é-nos impossível determinar com exatidão o momento em que o conjunto integrou o registo arqueológico, uma vez que o processo de reconstrução da principal praça da cidade decorreu de forma morosa, sendo apenas concluído 120 anos depois, com a construção do Arco da Rua Augusta. No dia 2 de novembro de 1755, o Marquês de Pombal ordenou a nomeação de desembargadores para cada bairro da cidade. Neste processo foram retirados dos escombros os cadáveres das vítimas, mas também todos os objetos valiosos que compunham o recheio das casas arruinadas. Um mês depois, no dia 4 de dezembro de 1755, foi entregue na Corte a Dissertação de Manuel da Maia, que previa o arrasamento de parte baixa da cidade, permanecendo os escombros dos edifícios in situ para o alteamento e nivelamento da cota urbana em relação ao nível médio das águas do mar (“Plano Geral da Baixa”) (MONTEIRO, 2010, pp. 79-93). Estas diretrizes só foram postas em prática em 1759, quando se reuniram as condições logísticas e políticas para dar início à reconstrução da cidade. A par do “Plano Geral da Baixa” foram elaborados projetos individuais para o Terreiro do Paço, destacando-se o “Plano da Praça do Comércio” de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, aprovado em 16 de janeiro de 1758. A proposta previa a construção de uma ampla praça ao longo de uma área composta por 177m x 192,5m, delimitada a Oeste e a Este por dois torreões, segundo o modelo seiscentista de Terzi. Ao centro foi colocada a estátua equestre de D. José I, concebida por Joaquim Machado de Castro, sendo o conjunto rematado pelo arco triunfal da Rua Augusta, idealizado por Veríssimo da Costa (VALE, 2004, pp. 29-34). Atendendo a esta
dinâmica de reconstrução, consideramos que o conjunto de porcelanas deve ter integrado a sucessão estratigráfica da Praça do Comércio seguramente entre o ano de 1755 e o dia 6 de junho de 1775, data da inauguração da estátua de D. José I, quando o alteamento, nivelamento e definição da Praça já estava por certo concluído. Os dados expostos apontam, pois, para o contexto da catástrofe de 1755 como justificação para o descarte de um tão vasto e diversificado conjunto de porcelanas. Coloca-se a hipótese de que a realidade arqueológica analisada possa ser reflexo do processo de salvados, iniciado logo no dia 2 de novembro de 1755, visando obviar a pilhagem dos escombros proporcionada pelo caos das derrocadas. Nesse sentido, os exemplares estudados corresponderiam aos refugos deste processo de salvados de porcelana chinesa, rejeitados eventualmente pela sua fratura ou mau estado de conservação geral. Estes dejetos foram certamente recolhidos nas proximidades do Terreiro do Paço, pertencendo anteriormente a algum dos numerosos palácios aqui existentes, ou a uma das numerosas instituições de poder existentes em redor. Com efeito, no início do século XVI o local fora estruturado de forma a catalisar e organizar todo o tráfego ultramarino, estabelecendo-se a Corte régia, mas também uma série de espaços logísticos, instituições de controlo fiscal e casas de comércio, numa configuração que permaneceu em boa medida até à manhã de 1 de novembro de 1755 (CAETANO, 2000, pp. 89-90). As porcelanas chinesas analisadas poderiam corresponder a peças em uso nas casas mais abastadas, ou até tratarem-se de serviços em utilização no interior do próprio Paço da Ribeira. O conjunto de porcelana chinesa em análise é, por ora, um achado arqueológico singular, para o qual dificilmente se encontram paralelos publicados em termos quantitativos e técnicos para contextos lisboetas da primeira metade do século XVIII. Um estudo elaborado por um de nós noutro lugar, correspondente a um nível de aterro da frente ribeirinha junto do atual Mercado da Ribeira, com datação análoga, não apresenta simultaneidades numéricas e/ou técnicas com o conjunto da Praça do Comércio (FERREIRA, 2015, pp. 60-63). Certamente que esta era uma área da cidade onde, mau grado a concentração de riqueza pela proximidade com unidades logísticas relacionadas com a expansão Atlântica (SARROZOLA et alii, 2014), não existiam casas senhoriais em número tão numerosa como no epicentro do poder político português, o Terreiro do Paço. Em todo o caso, o que merece ser destacado é a ausência de estudos arqueológicos de pormenor sobre contextos lisboetas setecentistas, época de profunda metamorfose na estrutura urbana, seguramente traduzível em inúmeros contextos relacionados com os escombros de 1755. Sem a possibilidade de estabelecer esta dimensão comparativa é difícil que a arqueologia possa dar maior contributo para o conhecimento dos circuitos comerciais e padrões de consumo da população lisboeta nesta época. 5. Considerações finais A intervenção arqueológica levada a cabo em 2009, no âmbito da empreitada de construção do Sistema de Intercepção e Câmara de Válvulas de Maré do Terreiro
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do Paço, permitiu colocar a descoberto uma dinâmica estratigráfica importante para a interpretação da história de Lisboa na Idade Moderna. Com ela foram identificadas realidades arqueológicas que permitem reconstruir a principal praça da cidade anterior a 1755, mas também as dinâmicas posteriores à catástrofe. No subsolo da praça, idealizada por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, foi possível identificar inúmeros níveis de aterro após 1755, que possibilitaram nivelar e altear a sua cota, fazendo-a também avançar em direção ao Tejo, colmatando toneladas de destroços da catástrofe que permaneceram in situ, tal como sugerira Manuel da Maia. Esta foi uma intervenção arqueológica limitada aos constrangimentos da obra, que se consubstanciou no sector em estudo apenas por um acompanhamento arqueológico, em condições de registo extraordinariamente precárias e de uma recolha apenas parcial. Esta é a razão pela qual o conjunto apresentado não corresponde a uma amostra quantitativa totalmente fiável do universo da porcelana chinesa existente no subsolo da Praça do Comércio. A unidade estratigráfica a si associada, a UE16, não foi integralmente escavada, observando-se a sua continuidade em corte, registando-se uma baixa taxa de colagens entre fragmentos no decorrer do estudo. Ainda assim, a investigação permitiu abordar um conjunto de 1673 fragmentos de porcelana chinesa, referentes a 660 Número Mínimo de Indivíduos, integrado num daqueles níveis de terraplanagem, onde o sedimento era aliás escasso face à abundância deste material cerâmico. Neste âmbito foi possível reconhecer exemplares pertencentes a diversas categorias tipológicas e funcionais, agrupadas nas produções “Azul e Branco” do imperador Qianlong, “Tinta-da-China”, “Família Rosa” dos imperadores Yongzheng e Kangxi, “Azul Soprado”, “Família Verde” e escassos exemplares de produções dos séculos XVI e XVII. Neste contexto, a cronologia de fabrico da esmagadora maioria do acervo aponta para o segundo quartel do século XVIII. O contexto estratigráfico indica que tratarse-ia de exemplares inseridos nos quotidianos lisboetas até à manhã trágica de 1 de novembro de 1755, podendo o seu descarte resultar de um processo de rejeição de salvados iniciados logo após a catástrofe. A quantidade e a diversidade decorativa dos exemplares elucidam o poderio económico da cidade na primeira metade de Setecentos, além do gosto pelas decorações a azul e branco e a capacidade de renovação dos serviços de jantar e de chá neste contexto do século XVIII, já que a grande maioria das peças eram de importação recente aquando do terramoto. Era a área mais nobre da cidade, pelo que estes objetos deviam servir nas casas mais abastadas que contornavam o Terreiro do Paço, talvez até o próprio Paço da Ribeira. Provavelmente só quotidianos nobiliárquicos poderiam usufruir de baixelas de jantar e chá em porcelana com decorações tão diversificadas e objeto de aquisição tão recente. À conclusão exposta acresce a ausência de contextos arqueológicos semelhantes publicados, indicando-nos o caráter singular deste achado. Esta parece ser, contudo, uma realidade resultante acima de tudo do volume de investigação da arqueologia moderna lisboeta. O estabelecimento de paralelos arqueológicos com o conjunto proveniente da Praça do Comércio tornou-se, de facto, inexe-
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quível, obrigando ao estabelecimento de datações a partir de comparações com coleções museológicas e a uma abordagem no domínio da História de Arte, que há muito trabalha estas temáticas. O presente artigo visa, pois, não apenas dar contributo para a compreensão da dinâmica de reconstrução da Praça do Comércio após o nefasto dia 1 de novembro de 1755, mas também destacar o papel da arqueologia no estudo dos quotidianos e perfis de consumo de Lisboa na primeira metade do século XVIII, uma cronologia escassamente publicada. Enfim, é um caso que não nos pode deixar de suscitar reflexão sobre os caminhos da arqueologia urbana de Lisboa nas últimas décadas, ou até da própria prática arqueológica portuguesa recente, matéria que contudo não cabe no presente âmbito.
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
Desde a década de 1990 têm surgido frequentemente restos de navios mais ou menos estruturados na zona ribeirinha de Lisboa, no âmbito da realização de obras de requalificação urbana. Os primeiros foram identificados durante a expansão do metro no Corpo Santo e no túnel da estação do Cais do Sodré. Os últimos foram descobertos e registados no âmbito da construção da nova sede da EDP tendo os navios sido denominados Boa Vista 1 e Boa Vista 2. Para além dos navios foram encontradas várias madeiras de embarcações reaproveitadas na construção de estruturas náuticas ou em cofragens de contenção de aterros das margens do rio e ribeiras suas afluentes como são os casos da Praça D. Luís I e da Av. D. Carlos I. Neste artigo faz-se um balanço destas descobertas focando várias problemáticas que carecem de investigação entre as quais a origem dos contextos arqueológicos (naufrágio, abandono, etc.), a sua cronologia e a relação com o funcionamento do porto de Lisboa na época Moderna. Serão também focados aspectos relacionados com a construção naval e a contextualização dos vários navios. PALAVRAS-CHAVE:
Lisboa ribeirinha, porto, navios, construção naval, Época Moderna.
ABSTRACT:
Since the 1990s ship remains are being identified in Lisbon’s riverfront, in construction works related with urban renewal. The first ones were identified during the expansion of the subway in Corpo Santo and in the tunnel of Cais do Sodré subway station. The last ones were discovered and recorded during the construction of the new EDP Head Office and the ships called Boa Vista 1 and Boa Vista 2. Besides the ships several ship timbers reused in the construction of nautical structures or in revetments or waterfront structures as in the case of D. Luis I Square and D. Carlos I avenue were recovered. With this paper we intent to make an assessment regarding these findings focusing on several issues including the origin of the archaeological contexts (wreck, abandonment, among others), their chronology and the relationship with the operation of the port of Lisbon in the earlymodern period. Aspects related to the shipbuilding and the context of the several ships will also be focused. Key words:
Lisbon waterfront, port, ships, shipbuilding, early-modern period.
Navios de época Moderna em Lisboa. Vista da proa do navio Boa Vista 2, a partir de norte, durante a desmontagem
3.17 Navios de época Moderna
em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
José Bettencourt
Professor Auxiliar Convidado FCSH/NOVA, CHAM-FCSH/NOVA|UAc jbettencourt.cham@gmail.com
Cristóvão Fonseca
CHAM-FCSH/NOVA|UAc cristovaofonseca@gmail.com
Tiago Silva
CHAM-FCSH/NOVA|UAc toiago@gmail.com
Patrícia Carvalho
CHAM-FCSH/NOVA|UAc patriciasanchescarvalho@gmail.com
Inês Pinto Coelho
Bolseira de Doutoramento da FCT, CHAM-FCSH/NOVA|UAc inesalexandrapinto@gmail.com
Gonçalo Lopes
CHAM-FCSH/NOVA|UAc goncaloncsl@gmail.com
Introdução Cidade portuária milenar, Lisboa veio a afirmar-se durante a época Moderna como capital de um vasto Império marítimo, funcionando por isso como plataforma comercial, política e militar, o que mudou consideravelmente o desenho urbano da zona ribeirinha, onde se foram instalando estruturas produtivas, como estaleiros, logísticas, como os cais e os armazéns, ou de poder, como a alfândega (CAETANO, 2004). A base marítima da cidade assentava na utilização de diferentes navios e de vários ancoradouros no estuário, sobretudo entre a Ribeira das Portas do Mar (actual Campo das Cebolas), a Oriente, e São Paulo, a Ocidente, que alimentavam uma vasta actividade mercantil descrita em vários textos da época, que testemunham a dimensão portuária de Lisboa (STOLS et alii, 2014) ou a complexa manobra necessária à saída das Armadas que todos os anos iam até à Índia, pela Rota do Cabo (SILVA, FIGUEIROA, 1614/1624-2011, pp. 7-9). Com efeito, todas as fontes evidenciam uma grande diversidade no tipo de embarcações que frequentavam o porto de Lisboa, quer navios de alto bordo utilizados na navegação oceânica, quer embarcações fluviais, sendo possível identificar algumas tipologias na iconografia. Por exemplo, na gravura da Civitates Orbis Terrarum, publicada por Georgius Braunius em 1598, ou na vista de Lisboa
da Biblioteca da Universidade de Leiden (c. 1570), podemos observar navios de grande porte de três e quatro mastros, de aparelho redondo ou misto, provavelmente naus e galeões, e navios de menor porte com aparelho latino, de comércio ou de pesca, a par de pequenas embarcações de boca aberta, a remos, utilizadas na pesca ou no apoio a manobras portuárias (Fig. 1). Adivinham-se igualmente navios de outras nacionalidades, referidos em variada documentação como, por exemplo, na descrição do padre jesuíta Duarte de Sande na chegada ao porto de Lisboa, onde é referida não só a “multidão quase infinita de navios”, como também a diversidade de bandeiras europeias, salientando as italianas, em particular de Génova e Veneza, mas também espanholas, francesas, belgas e alemãs (SANDE, 2009, pp. 140, 312). Além desta diversidade importa também salientar o seu elevado número como indicador da importância marítima da cidade: vejase a referência a c. de 1490 embarcações fluviais que em 1552 navegavam o Tejo, servindo a cidade e os seus arredores (GASPAR, 1970, p. 159). As mesmas fontes dão igualmente conta da existência de numerosos desembarcadouros naturais, na praia, ou em cais em pedra (Fig. 1) e madeira, em zonas regularizadas, e estaleiros, destacando-se o extenso complexo da Ribeira das Naus, onde se construíam e reparavam as grandes naus da Carreira da Índia (COSTA, 1997).
Uma cidade em escavação
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José Bettencourt, Cristóvão Fonseca, Tiago Silva, Patrícia Carvalho, Inês Pinto Coelho, Gonçalo Lopes
Figura 1 – Pormenor do Terreiro do Paço Vista de Lisboa da Biblioteca da Universidade de Leiden (c. 1570) onde se podem observar navios de três mastros no primeiro plano, navios de médio porte, possivelmente caravelas junto ao cais, no centro da imagem, e pequenas embarcações de boca aberta, a remos, no lado direito da imagem. A costa era ocupada por cais em pedra, à esquerda, ou por praias fluviais que davam acesso à cidade por portas existentes na muralha.
Apesar da impossibilidade que temos em aceder aos numerosos vestígios que certamente jazem no fundo do rio, o registo destas estruturas e actividades marítimas é diverso, surgindo frequentemente na zona ribeirinha (BLOT, HENRIQUES, 2011), onde desde a década de 1990 têm surgido restos de navios mais ou menos estruturados no âmbito da realização de obras de requalificação urbana (RODRIGUES et alii, 2001; ALVES et alii, 2001b). Neste artigo pretende-se fazer um balanço destas descobertas focando várias problemáticas que carecem de investigação entre as quais a formação do registo arqueológico (naufrágio, abandono ou reutilização), a sua cronologia e a relação com o funcionamento do porto de Lisboa na época Moderna. Serão também focados aspectos relacionados com a construção naval, nomeadamente com as características construtivas que se podem assumir como “assinaturas arquitecturais”, que quando recorrentes em vários navios podem ser consideradas como indicadores da sua origem, constituindo, por isso, elementos que diferenciam diversas tradições construtivas (RIETH, 1998). 2. Os dados disponíveis Na Tabela 1 estão sumariados os dados disponíveis sobre os achados de navios, mais ou menos coerentes, descobertos até à data em Lisboa, localizados na Fig. 2. As evidências directas mais antigas de construção naval correspondem a madeiras para navios pré-trabalhadas, que se encontravam armazenadas na actual Praça do Município. Estas nunca chegaram a ser utilizadas, apresentando uma cronologia que poderá remontar nalguns casos à Idade Média, aos séculos XIII – XIV, de acordo com as datações por Carbono 14 (ALVES et alii, 2001b; ALVES, 2002), o que as poderia colocar na pista das Tercenas Medievais, hipótese que parece pouco
480 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
provável se considerarmos a grande dimensão de algumas peças, mais adequadas ao que se esperaria de uma construção de navios de grande porte, de época Moderna. Estas poderão por isso corresponder a um armazenamento de serviço à área da Ribeira das Naus, cuja fase oitocentista inclui a doca seca (Dique do Arsenal) e a Doca da Caldeirinha recentemente expostas no âmbito do projecto de requalificação da ribeira de Lisboa. Os outros restos de navios descobertos sob os aterros correspondem a quatro navios coerentes e a numerosas peças isoladas reaproveitadas em várias construções. O primeiro navio corresponde à extremidade de um casco escavado em 1996 no Largo do Corpo Santo, cuja datação por Carbono 14 aponta para o século XIV (ALVES et alii, 2001b). Esta cronologia é mais uma vez discutível, dado que o navio, provavelmente abandonado na praia, estava coberto por um aterro com mais de 2 m de espessura, contendo materiais do século XVI e óxidos de uma fundição existente na periferia, sobre o qual foi construído o palácio dos Côrte-Real, em 1585 (VALE, 2015, pp. 162-163). É por isso prudente apontar para uma cronologia mais recente, entre finais do século XV e a primeira metade do século XVI. Trata-se de um pequeno troço da popa de uma embarcação de pequeno porte, seccionado durante a construção de uma chaminé de arejamento, com cerca de 1,8 m de comprimento, compreendendo o couce de popa, o coral, picas e tábuas de forro exterior, em carvalho (ALVES et alii, 2001b). O segundo foi descoberto e escavado em 1995 no Cais do Sodré durante as obras do Metro. Conservado ao longo de 24 m, embora seccionado à popa e à proa pelas paredes do túnel, o navio foi datado por radiocarbono da segunda metade do século XV ou dos inícios do XVI, correspondendo ainda hoje ao vestígio deste tipo mais bem conservado documentado em Lisboa, incluindo grande parte do fundo do casco, com a quilha, o tabuado do forro exterior, cavernas, braços, escoas,
Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
Sítio
Descrição
Referência
Corpo Santo
Fragmento da popa de um navio descoberto e escavado em 1996. A calibração de uma datação por C14, a 2 sigma, aponta para uma cronologia entre 1292 e 1412 cal AD. Encontrava-se a uma cota entre 0,44 m/-1,02 ao Nível Médio do Mar - NMM (?)
ALVES et alii, 2001b
Cais do Sodré
Estrutura bem preservada de um navio seccionado nas extremidades durante a abertura do túnel do metro. Foi descoberto e escavado em 1995. A calibração de uma datação por C14, a 2 sigma, aponta para uma cronologia entre 1435 e 1635 cal AD. Encontrava-se a uma cota entre -5/-6,5 m ao NMM (?)
RODRIGUES et alii, 2001; RODRIGUES, 2002; CASTRO et alii, 2011
Boa Vista 1
Estrutura preservada desde a popa até sensivelmente meio navio, coerente mas profundamente afectada por processos pós-deposicionais. Foi descoberta e escavada entre 2012 e 2013. A análise dos materiais encontrados entre os sedimentos que a envolviam aponta para uma cronologia entre c. 1650 e c. 1750. Encontrava-se a uma cota entre -2,3/-2,8 m ao NMM.
BETTENCOURT et alii, 2013; SARRAZOLA et alii, 2014
Boa Vista 2
Estrutura preservada desde a proa até sensivelmente meio navio, coerente mas profundamente afectada por processos pós-deposicionais. Foi descoberta e escavada em 2012. A análise dos materiais encontrados entre os sedimentos que a envolviam aponta para uma cronologia entre c. 1650 e c. 1750. Encontrava-se a uma cota entre -1,7/-2,6 m ao NMM.
BETTENCOURT et alii, 2013; SARRAZOLA et alii.. 2014
Avenida D. Carlos I
Conjunto de peças reutilizadas na construção de uma cofragem de regularização das margens do rio, entre as quais se destaca uma madre de leme. Descoberto e escavado em 2004.
BLOT, HENRIQUES, 2011; FRAGA et alii, 2014
Praça D. Luís I
Conjunto de peças reutilizadas na construção de uma grade de maré, provavelmente de finais do século XVII, inícios do XVIII, tendo em conta os materiais arqueológicos dominantes entre os sedimentos que cobriam a estrutura. Escavado em 2012. Encontrava-se a uma cota entre -1,2/-2 m ao NMM.
SARRAZOLA et al.ii. 2014
Praça do Município
Depósito de 21 peças pré-cortadas para utilização na construção de navios, descoberto e escavado em 1997. A calibração de quatro datações por C14, a 2 sigma, aponta para uma cronologia limite entre 1020 e 1300 cal AD.
ALVES et alii, 2001b; ALVES, 2002
Tabela 1 – Achados arqueológicos de navios em Lisboa.
Figura 2 – Localização dos achados de navios em Lisboa referidos na Tabela 1 sobre levantamento topográfico actual, com a projecção aproximada da linha de costa no século XVI proposta por Carlos Caetano (2004).
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forro interior e parte da sobrequilha. Na sua construção foram utilizadas várias madeiras – carvalho-português ou carvalho-cerquinho (quercus faginea) no cavername, pinheiro manso (pinus pinea) e pinheiro silvestre (pinus sylvestris) nas tábuas de forro interior (Rodrigues et alii, 2001). O seu estudo, continuado por aquele arqueólogo como tema de mestrado (RODRIGUES, 2002), foi recentemente retomado (CASTRO et alii, 2011). Para épocas mais recentes, de finais do século XVII ou início do XVIII, há a referir os dois navios da Boa Vista, descobertos durante a construção na nova sede da EDP, na área onde no século XVII foi instalada a base logística do comércio brasileiro (SARRAZOLA et alii, 2014). Ambos os sítios foram intervencionados em contexto de emergência pela empresa ERA-Arqueologia, SA., que convidou o CHAM para assegurar a necessária especialidade de arqueologia náutica. Os navios Boa Vista 1 e Boa Vista 2 foram identificados soterrados na frente fluvial da antiga praia da Boavista, numa zona submersa até pelo menos ao século XVIII de acordo com a cartografia antiga (Fig. 3) e vários estudos (DURÃO, 2011). Nessa área localizava-se um fundeadouro e vários desembarcadouros utilizados pelas populações ribeirinhas, estando a partir de meados do século XVII o interface com a cidade ocupado por barracões, cais e armazéns da Junta de Comércio do Brasil, uma realidade portuária que se veio a consolidar na centúria seguinte. A dimensão marítima deste espaço e a sua posterior ocupação urbana foram registados no acompanhamento arqueológico por uma sequência arqueológica importante, que incluiu
a identificação de um provável fundeadouro situado entre os - 3 e - 6 m de profundidade ao nível médio do mar onde surgiram materiais, sobretudo cerâmicos, com cronologias que vão desde a época romana ao século XVIII, assim como várias âncoras em ferro de época Moderna, e onde se podem integrar os dois navios agora analisados. Esta função portuária foi apenas anulada quando os lodos do Tejo foram aterrados, criando a base para a construção da Fábrica do Gás (1846-1880-1923), primeira unidade de produção eléctrica de Lisboa, que viria a ser desactivada já no século XX (SARRAZOLA et alii, 2013; SARRAZOLA et alii, 2014). O navio Boa Vista 1 (Fig. 4; Tabela 2) foi intervencionado em duas fases distintas devido aos constrangimentos da obra. Apresentava-se preservado numa extensão de 12 metros orientada no sentido sul-norte, correspondendo à porção da popa. Na extremidade sul encontrava-se a popa, caída sobre estibordo, ainda com um troço terminal da quilha, o couce e o cadaste (Fig. 5a). Na extremidade norte, surgia uma secção central do navio, cortada durante fases anteriores de ocupação deste espaço. O contexto apresentava-se globalmente perturbado, devido à colocação de estacas do aterro, e contaminado por nafta, utilizada como combustível na Fábrica do Gás da Boavista. A organização original da estrutura resumia-se a parte da quilha, ao forro e a alguns fragmentos do cavername. O contexto estava selado por depósitos fluviais lodosos, contendo materiais enquadráveis na segunda metade do século XVII ou na primeira metade do século XVIII, de que são exemplo os cachimbos em caulino holandeses
Figura 3 – Localização dos navios da Boa Vista e das outras estruturas náuticas descobertas até à data na ribeira ocidental de Lisboa, sobre a Carta Topográfica de Lisboa de Duarte Fava de 1772/1826.
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Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
fabricados em Gouda ou ingleses, as garrafas de vinho (onion bottles), também provavelmente de fabrico inglês, fragmentos de potes em grés com decoração a azul de cobalto produzidos em oficinas do vale do Reno e de faiança portuguesa com decoração heráldica a azul e vinoso (Fig. 6). À excepção de várias peças de poleame em madeira,
a maior parte destes materiais estará relacionada com a utilização portuária deste espaço, constituindo no entanto um indicador cronológico para a época de naufrágio ou abandono do navio, que poderá ter ocorrido entre o último quartel do século XVII e meados do XVIII.
Figura 4 – Planta geral do navio Boa Vista 1 (CHAM/ ERA).
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Figura 5 – a) Vista geral, a partir de oeste, da secção de popa do navio Boa Vista 1. Notar as condições difíceis de trabalho e o caos de madeiras; b) cocos arrumados no fundo do navio Boa Vista 2; c) vista da proa do navio Boa Vista 2, a partir de norte, durante a desmontagem.
Figura 6 – Materiais localizados nos depósitos fluviais lodosos que selavam o navio Boa Vista 1, enquadráveis na segunda metade do século XVII ou na primeira metade do século XVIII: a) cachimbo em caulino de fabrico holandês de tipologia datada entre 1700 e 1750; b) Garrafa em vidro do tipo onion bottle (1680-1720); c) grés alemão (1740-1760); d) prato em faiança portuguesa (segunda metade do século XVII – primeiras décadas do século XVIII).
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Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
A estrutura do navio Boa Vista 2 (Fig. 7 e Fig. 5c; Tabela 3) era mais imponente, encontrando-se preservada numa extensão de 16 metros correspondente à porção da proa, também orientada no sentido sul-norte, conservada ao longo do bordo de bombordo, embora a quilha só subsistisse junto ao troço de proa. Tal como acontecia com o navio Boa Vista 1, as balizas encontravam-se em mau estado de conservação, surgindo apenas algumas picas em conexão sobre o maciço de proa e alguns fragmentos de braços e cavernas ao longo da estrutura. Entre os
materiais registados e associados a este navio contam-se vários cocos arrumados no seu fundo (Fig. 5b) e pedras de lastro entre o cavername. No entanto, tal como o navio Boa Vista 1, o navio Boa Vista 2 estava selado por sedimentos fluviais contendo materiais enquadráveis sobretudo na segunda metade do século XVII ou na primeira metade do século XVIII, de que são exemplos os cachimbos em caulino holandeses ou ingleses e vários fragmentos de faiança portuguesa, entre os quais pratos fundos com decoração estilizada ou em semicírculos (Fig. 8).
Figura 7 – Planta geral do navio Boa Vista 2 (CHAM/ ERA).
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Figura 8 – Materiais localizados nos depósitos que selavam o navio Boa Vista 2, enquadráveis na segunda metade do século XVII ou na primeira metade do século XVIII: a) prato em faiança portuguesa (primeira metade do século XVII a primeiras décadas do século XVIII); b) cachimbo em caulino de fabrico inglês (1730-1770); c) cachimbo em caulino de fabrico holandês (17191746); d) cachimbo em caulino de fabrico inglês (1680-1710).
3. “Assinaturas arquitecturais” Apesar da sua limitada extensão, o navio do Corpo Santo assume grande importância no estudo da construção naval portuguesa, partilhando várias características da designada tradição ibero-atlântica, nomeadamente com o navio Ria de Aveiro A (ALVES et alii, 2001a), sendo possivelmente ambos os casos com cronologia mais recuada. Entre estas características encontra-se a utilização de pregadura mista, pregos e cavilhas em ferro e cavilhas em madeira, nas fixações entre os vários elementos. Particularmente interessante é a transição entre a quilha e o cadaste com um couce de popa, indicando o uso de um leme central de cadaste, peça ilustrada em documentação do início do século XVII, que surge igualmente em quase todos os navios da tradição ibero-atlântica (ALVES et alii, 2001b). A mesma tradição foi reconhecida no navio do Cais Sodré. Entre as evidências que o filiam na tradição iberoatlântica, encontram-se a ligação entre as cavernas e os primeiros braços com escarvas em rabo de minhoto. Esta característica está relacionada com a utilização de um número pré-determinado de balizas desenhadas antes da sua colocação sobre a quilha, que definiam a forma da parte central do casco, tendo por isso um papel determinante na sua concepção. Esta função é confirmada pela presença de marcas incisas e numeração em algarismos romanos gravados nas cavernas, indicando a sua posi-
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ção sobre a quilha, o côvado ou a sequência, a partir da caverna-mestra, para a proa e para a popa. A investigação, iniciada por Paulo Jorge Rodrigues (RODRIGUES et alii, 2001; RODRIGUES, 2002) e actualmente continuada por Filipe Castro (CASTRO et alii, 2011), sugere um navio de grande porte, com uma quilha com mais de 24 m de comprimento, mas com características inusuais em navios para a navegação oceânica, como a escarva topo a topo entre troços da quilha, e a evolução da forma das cavernas de fundo (CASTRO et alii, 2011, pp. 241-242), que o tornam um caso único à escala internacional. Os dois navios descobertos na Boa Vista apresentam características nunca antes documentadas em Portugal, abrindo perspectivas de investigação novas, ausentes da produção historiográfica nacional, sendo difícil nesta fase a filiação em qualquer tradição de construção naval conhecida. A análise de ambas as estruturas, difícil devido ao seu estado de conservação, revelou porém vários pormenores construtivos interessantes. No caso do Boa Vista 1, a primeira característica a destacar corresponde à utilização de uma quilha compósita, constituída por três troços, ligados por encosto topo a topo, sem escarvas nem indícios de qualquer sistema de pregadura. Um dos troços corresponde a um couce, que fazia a transição com o cadaste (Fig. 9). Os encostos apresentam a toda a largura um entalhe horizontal de secção semicircular, que seria preenchido por uma cavilha com função de aquastop (Fig. 10).
Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
Esta morfologia constitui um caso raro à escala internacional, só encontrando paralelo, em Portugal, no navio do século XVI do Cais do Sodré, embora surja também descrita no Traité de la Construction des Galères, de 1691 (RODRIGUES et alii, 2001). Este é um pormenor interessante porque nos coloca na pista de uma tradição construtiva de origem mediterrânica que parece ser confirmada na análise do cavername, que se encontrava particularmente destroçado, correspondendo na sua maioria a um caos de peças em madeira, sobretudo na zona sudoeste, aparentemente colapsadas das obras mortas de estibordo do navio durante a formação do contexto. Apesar de se encontrarem poucas cavernas em conexão com a quilha, a observação da sua face superior indica que o navio foi construído em esqueleto primeiro. Com efeito, na zona dos negativos da base de assentamento das cavernas surgem os orifícios de ligação das cavernas, com pelo menos um prego em ferro de secção quadrangular. Surgem também de forma irregular cavilhas em ferro de secção circular, embutidas em cavidade circular, que poderão corresponder à ligação sobrequilha, caverna e quilha, como em vários navios de época Moderna, nomeadamente de tradição Ibero-Atlântica. A observação dos fragmentos do cavername, maioritariamente dispersos, confirma uma construção em esqueleto primeiro, uma vez que foi possível registar escarvas de dente, na ligação entre a caverna e os braços, reforçada com, pelo menos, dois
Elemento
Altura (cm)
Largura (cm)
Quilha
26 / 22
22
Cavernas
25 / 19
25 / 19
Braços
20 / 16
20 / 15
Elemento
Largura (cm)
Forro interior ou Apenas uma tábua escoas - >26
Espessura (cm) Apenas uma tábua 6 / 4,3
Forro exterior
43 / 5,4 (sobretudo 7,2 / 5 entre 27 e 19) (sobretudo entre 6,3)
Sobrecostado
Sobretudo entre 30 Sobretudo entre e 25 4e3
Tabela 2 – Boa Vista 1: dimensão dos principais elementos do navio.
pregos em ferro, um deles pregado do braço para a caverna. Esta característica é particularmente interessante nesta fase da investigação porque tem sido relacionada com a construção naval mediterrânica, aparecendo, por exemplo, em Culip VI (Catalunha, meados do século XIV), no navio Otomano de Yassi Ada (Turquia, séc. XVI), nos navios de Sardinaux (França, séc. XVII) ou de Kitten (Bulgaria, séc. XIX) (RIETH, 1998; JONCHERAY, 1998, p. 53; BATCHVAROV, 2009, pp. 85-86). Em Portugal, estas escarvas aparecem igualmente no naufrágio Ria de Aveiro F, do século XVI (LOPES, 2013, pp. 32-35, 47-48).
Figura 9 – A morfologia do couce do Boa Vista 1 é semelhante aos navios de tradição iberoatlântica, mas apresenta características distintas que o tornam um caso singular – incorpora uma parte muito importante da quilha, com 3,47 m de comprimento, e não apresenta coral a reforçar a zona de ligação do couce à quilha ou ao cadaste.
Figura 10 – Extremidade da quilha, com um entalhe de secção semicircular a toda a largura que seria preenchido por uma cavilha com função de aquastop.
Uma cidade em escavação
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Este cavername terá recebido depois um reforço interior com várias escoas, fixas com pregos em ferro de ponta perdida, e revestido por um forro exterior liso, melhor preservado do que o cavername. Na sua maioria, as tábuas do forro exterior encostavam topo a topo, tendo no entanto sido registadas escarvas lisas nalgumas ligações. Estas estavam pregadas às balizas com pregos em ferro com secção quadrangular, que tinham a cabeça embutida em cavidades circulares previamente abertas na face exterior. O padrão desta ligação varia entre cinco pregos nalgumas extremidades e dois ou três pregos ao longo da tábua. Não foi encontrada qualquer pregadura em madeira na fixação do forro. Algumas tábuas apresentam ainda um denteado para encaixe nas balizas, característica que tem paralelos, mais uma vez, em navios mediterrânicos, no Culip VI (séc. XIV) e Sorres X (séc. X), escavados na Catalunha, Mortella III (séc. XVI) e Sardinaux (séc. XVII), em França. É igualmente referida no Traité de la Construction des Galéres (ROCHE, 2011; PUJOL, 1992, p. 36). O forro exterior, a quilha e o couce do navio Boa Vista 1 têm ainda a particularidade de serem protegidos por um sobrecostado, com larguras e espessuras inferiores às do forro exterior. O sobrecostado estava ligado à quilha com pregos em ferro, de ponta perdida, de pequena dimensão, colocados junto às arestas das tábuas. Entre este forro e a estrutura do navio existia um revestimento com pêlo de animal ainda não identificado e, durante a desmontagem, foram registadas cavilhas/cunhas em madeira que poderão ter sido utilizadas para fixar provisoriamente as tábuas e que entravam pela face exterior. A estrutura do navio Boa Vista 2 é muito distinta do Boa Vista 1. A quilha era composta por dois troços justapostos, mas neste caso ligados por uma escarva lisa horizontal, reforçada em cada extremidade com dois pregos em ferro, de secção quadrangular e com duas cavilhas em madeira. Na extremidade norte, a quilha dá lugar ao lançamento da roda de proa, constituído pelo pé da roda (ou couce de roda) e por uma emenda na extremidade superior. Esta peça apresenta duas características muito relevantes: por um lado, a emenda mostra um duplo alefriz, acima da linha base da quilha. Por outro lado, apresenta várias marcas de construção, que deverão estar relacionadas: a primeira é uma linha incisa paralela à linha de base da quilha, que deverá corresponder à marca de início de um duplo alefriz; a segunda, parcialmente legível, poderá estar relacionada com o lançamento da roda de proa (Fig. 11).
Elemento
Altura (cm)
Largura (cm)
Quilha
20
16,5 / 15
Cavernas
13 / 10
14 / 11
Braços
14 / 6
14 / 7,5
Elemento
Largura (cm)
Espessura (cm)
Forro interior ou escoas
20
9/5
Forro exterior
39,7 / 4,8 (sobretudo 5,6 / 4,5 entre 29 e 20) (sobretudo c. 5)
Sobrecostado
27,5 / 23,8
Tal como acontecia com o navio Boa Vista 1, o cavername do navio Boa Vista 2 encontrava-se quase todo deslocado e destroçado, o que dificulta a sua análise e interpretação. No entanto, as cavernas mostram várias características interessantes. Por um lado, algumas cavernas exibem cavidade na base para encaixe sobre o sobressano superior, onde se notam concreções da ligação da caverna à quilha com pregos em ferro de secção quadrada. Por outro, os pares de braços da parte central do navio ligavam com escarvas lisas, reforçadas sobretudo com pregadura em ferro, constituída por pregos de secção quadrangular. Noutros dois braços, numa das ligações, aparece uma escarva com espessamento junto à aresta inferior e a ligação na zona da escarva era depois reforçada sobretudo com pregadura em ferro, embora num dos casos se tenha verificado a presença de uma cavilha em madeira. Trata-se, por isso, mais uma vez, de um navio construído em esqueleto primeiro, onde a estrutura foi reforçada com escoas na zona de ligação caverna/braço, que estavam muito fragmentadas. A presença de cavidades de secção quadrangular na face superior dos braços ou das cavernas deslocadas poderá ser ainda uma evidência da utilização de um forro interior no fundo do navio, que não se conservou. Este esqueleto terá sido depois forrado com um forro exterior, melhor preservado do que o cavername, essencialmente a bombordo. Na sua maioria, as tábuas encostavam topo a topo, embora surjam algumas escarvas lisas na ligação entre várias tábuas. Estas tábuas estavam fixas às balizas por pregadura com secção quadrangular na face inferior e na face exterior as cabeças estavam embutidas em cavidades circulares previamente abertas. A calafetagem entre as tábuas, mas também no alefriz, era constituída por estopa em fibras de origem vegetal ainda não identificadas, nalguns casos reforçadas por cordões de chumbo, solução técnica que se encontra documentada desde o século XVI, nomeadamente na calafetagem das juntas do tabuado dos navios Boudeuse Cay (BLAKE, GREEN, 1986, pp. 4-7) e Nossa Senhora dos Mártires (CASTRO, 2001, pp. 176-178), ambos da Carreira da Índia.
2,5 / 2
Tabela 3 – Boa Vista 2: dimensão dos principais elementos do navio.
488 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Figura 11 – Pormenor do pé da roda (ou couce de roda) do navio Boa Vista 2 com as marcas de construção.
Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
O forro exterior, a quilha e a roda de proa eram ainda protegidos por um sobrecostado, fixo com pregos em ferro, de ponta perdida, com secção quadrangular: dois pregos por ligação ao longo da peça e três ou quatro nos topos, embutidos em cavidade circular. Ao contrário do padrão de fixação do sobrecostado do navio Boa Vista 1, não se nota diferença significativa entre este e o sistema de fixação do tabuado do forro exterior, tendo sido utilizados pregos em ferro com dimensões semelhantes. Este sobrecostado sobrepunha-se a um revestimento de argamassa esbranquiçada indeterminado, que poderá corresponder a gala-gala (Fig. 12), uma mistura de óleo de peixe e cal em pó utilizada na protecção de cascos desde pelo menos o século XVI, quando surge referido na documentação técnica portuguesa, nomeadamente no O livro da Fabrica das Naos, de Fernando Oliveira (1580/1991, pp. 117-198), mas sem paralelos conhecidos até à data. Nalguns casos, este material terá sido também utilizado para pequenas reparações, surgindo no enchimento de zonas atacadas pelo taredo ou de pequenos remendos. Ao contrário dos navios do Corpo Santo e do Cais do Sodré, o estado de conservação dos navios da Boa Vista dificulta a sua filiação numa tradição de construção naval. De referir, todavia, que o navio Boa Vista 1, de pequeno porte, apresenta “assinaturas arquitecturais” comuns ao espaço mediterrânico, embora não se encontrem paralelos claros em nenhum vestígio publicado até ao presente. O navio Boa Vista 2, de maior porte, também não encontra muitas analogias na bibliografia disponível, embora a utilização de cordões de chumbo na
calafetagem e a possível gala-gala entre o forro exterior e o sobrecostado encontrem paralelos em navios portugueses. Ambos constituem, por isso, fontes essenciais e únicas para o estudo da construção naval pós-medieval. Assumindo a hipótese de corresponderem a navios construídos em território peninsular ou colonial, provavelmente português, constituem um importantíssimo ponto de partida para a revisão das fontes disponíveis sobre o tema, pouco estudado pela historiografia portuguesa. 4. Naufrágio, abandono, reutilização ou reciclagem A segunda problemática que importa analisar diz respeito à deposição inicial, que no caso dos navios pode ser o resultado de uma perda durante o naufrágio, o processo mais comum, devido a abandono ou ainda a reciclagem ou reutilização. Os três processos, que dão origem a contextos arqueológicos distintos, têm paralelos em Portugal, o primeiro em numerosas publicações que não importa aqui listar, o segundo em vários navios em fim de vida ainda visíveis abandonados em zonas estuarinas, no Sado ou no Seixal por exemplo, o terceiro em vários navios de época contemporânea reutilizados como base para aterros na Moita, estudados enquanto estrutura naval (RODRIGUES et alii, 2002). O navio do Cais do Sodré apresenta um estado de conservação e está a uma profundidade (entre os -5 e os -6 m1, logo sempre submerso (Fig. 13) e distância da linha de costa estimada para o século XVI (cerca de 140 m)
Figura 12 – Revestimento de argamassa esbranquiçada que poderá corresponder a gala-gala, colocado entre o forro exterior e o sobrecostado do navio Boa Vista 2.
1 Temos dúvidas sobre se esta profundidade, referida em todos os textos sobre o navio do Cais do Sodré, é em relação ao NMM ou à cota actual da zona do Cais do Sodré. No entanto, em qualquer dos casos, o navio estaria em zona sempre submersa.
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compatíveis com a hipótese de naufrágio. No entanto, a escassa presença de materiais relacionados com o navio não é comum em naufrágios localizados em zonas aterradas ou drenadas, como mostram vários casos à escala internacional. Vejam-se, como exemplos, o caso do navio mercante espanhol do século XVIII escavado em Buenos Aires nas mesmas condições, embora a uma profundidade de 10 m (VALENTINI, GARCIA CANO, 2011; GARCIA CANO, VALENTINI, 2014, p. 276) ou vários navios medievais e de época Moderna escavados nos polders holandeses (HOCKER, VLIERMAN, 1996; NEYLAND, SCHRODER, 1996), onde a par da estrutura do navio foram recuperadas colecções de materiais muito diversas (HOLK, 1997). Este é provavelmente o melhor exemplo, uma vez que a drenagem do Zuiderzee, enquanto estratégia de conquista de novos territórios, nomeadamente para fins agrícolas, resultou na descoberta e estudo de várias dezenas de navios perdidos durante séculos naquele mar interior (REINDERS, 1982). Os dados disponíveis sobre a escavação do navio do Cais do Sodré são escassos e o estudo dos materiais recuperados ainda não foi efectuado, mas não é de excluir a hipótese de depósitos relacionados com o navio terem sido removidos durante as obras, uma vez que a parte central da estrutura foi destruída antes da intervenção arqueológica, como se pode observar na planta publicada por Paulo Rodrigues (RODRIGUES et alii, 2001, p. 349). Também não se pode excluir a hipótese da existência de materiais na periferia, em zonas que não foram escavadas2. No caso do navio do Corpo Santo, a localização a uma profundidade que colocava o navio à superfície durante a baixa-mar (Fig. 13), directamente sobre a praia fluvial, sugere reutilização enquanto base para um terrapleno que terá sido realizado na primeira metade do século XVI, sendo desta cronologia os materiais dominantes nos níveis que cobriam a estrutura (VALE, 2015, pp. 162-163). Esta zona da ribeira, em frente às muralhas Fernandinas terá sido conquistada gradualmente ao rio a partir do século XIV, através de vários aterros onde foram instaladas, por exemplo, as Tercenas Reais e os estaleiros navais, ainda em época medieval, e novos espaços planos ribeirinhos, como em Cata-que-Farás (actual Cais do Sodré). Com efeito, foi nesta área que se construíram armazéns para as actividades comerciais e portuárias e se instalaram sítios de desembarque de mercadorias ainda no século XVI (DURÃO, 2012, pp. 23-24). Esta localização também sugere uma cronologia mais recente do que a apontada pelo C14, com grande probabilidade algures na primeira metade do século XVI, mas os dados disponíveis são muito escassos porque a estrutura foi apenas detectada nos limites da escavação, desenvolvendo-se sob edificado ali existente. A profundidade dos navios da Boa Vista sugere abandono, porque ambas as estruturas estavam acessíveis na baixa-mar – o topo do Boa Vista 1 ficava apenas 0,49 m abaixo da maré mais baixa, enquanto o topo do Boa Vista 2 estava 11 cm acima da maré mais baixa registada em 2015 (Fig. 13). Esta hipótese é compatível com a pouca 2 De acordo com informação oral de João Marques, foi efectuada uma sondagem na periferia da embarcação, mas ainda não tivemos acesso a dados sobre os materiais descobertos durante essa intervenção.
490 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
expressão dos materiais com certeza relacionados com os navios, que no caso do Boa Vista 1 correspondem a alguns fragmentos de peças de poleame e no Boa Vista 2 a vários cocos (BETTENCOURT et alii, 2013). Os navios encontravam-se no raso de maré, em zona conquistada ao rio apenas no século XIX (DURÃO, 2012, pp. 25-27), como vimos. Esta localização facilitava o acesso às estruturas, que mostram processos de destruição complexos, com várias orientações, muito condicionados por acção humana, com evidências claras de desmantelamento das estruturas do navio Boa Vista 2 com instrumento de gume (Fig. 14).
Figura 13 – Profundidades máximas e mínimas dos navios de Lisboa e na grade de maré da Praça D. Luís I em relação ao NMM e às marés máximas e mínimas registadas em Lisboa em 2015.
Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
Figura 14 – Evidências do desmantelamento da estrutura do navio Boa Vista 2 com instrumento de gume.
Estas evidências de reutilização, possível no caso do navio do Corpo Santo, e de desmantelamento, documentada em Boa Vista 2, remetem-nos para problemáticas de investigação relacionadas com o envelhecimento e fim de vida dos navios, tema trazido para o debate recentemente, nomeadamente no Báltico, e que diz respeito também à construção da paisagem e dos patrimónios marítimos. Nalguns casos, os navios eram afundados ou abandonados propositadamente, sendo integrados na base de pontes, molhes, quebra mares e aterros ou utilizados como obstáculo, como aconteceu com vários navios de época Moderna nas bases navais suecas de Karlskrona ou de Suomenlinna, a última em território actualmente finlandês (LEINO, 2013), ou no porto de Copenhaga (LEMÉE, 2006). Noutros casos, eram desmantelados, sendo os seus elementos reutilizados em novas construções, muitas vezes de carácter marítimo, com vários exemplos bem publicados em Londres (GOODBURN, 1991; GOODBURN et alii, 2011). Em Lisboa, a reciclagem de elementos de navios na construção de estruturas ribeirinhas está documentada em vários sítios (Tabela 1; Fig. 2), destacando-se a Praça D. Luís I e as estruturas da Avenida D. Carlos I, ambos na ribeira ocidental. O conjunto detectado na grade em plano inclinado da Praça D. Luís I (Fig. 15), com uma cronologia que deverá estar situada na segunda metade do século XVII ou inícios do XVIII (SARRAZOLA et alii, 2013; SARRAZOLA et alii, 2014), corresponde a madeiras colocadas directamente sobre os sedimentos da praia fluvial, primeira camada para regularizar a superfície. Este é um modelo comum em estruturas do mesmo género, documentado, por exemplo, nas quatro rampas do estaleiro de Hogendijk (20 Km a noroeste de Amsterdão) construídas com peças reutilizadas de navios utilizados entre 1575 e 1650 (GAWRONSKY, 2003).
Entre as madeiras reutilizadas na rampa ou grade da Praça D. Luís I destaca-se um conjunto de tábuas do forro exterior com as mesmas características (dimensionais e no padrão da pregadura), mas identificandose igualmente algumas peças curvas, possivelmente do cavername e/ou de estruturas de reforço, ou de secção maior, como parte da sobrequilha (Fig. 16). As características do forro exterior, com larguras e espessuras em torno dos 22 cm e 15 cm respectivamente, escarvas nos topos e pregadura em ferro, sugerem que estas madeiras poderão ter origem num mesmo navio, hipótese que embora rara encontraria paralelos em várias peças do navio de linha HMS Namur utilizadas no século XIX como base do piso da Wheelwright’s Shop, situada no estaleiro de Chatham, em Inglaterra (ATKINSON, 2015). No segundo, as peças de navios foram reutilizadas em cofragens relacionadas com o aterro da frente do rio na Avenida D. Carlos I, solução técnica que também encontra paralelo em numerosos casos na Europa, com cronologias muito distintas (BLOT, HENRIQUES, 2011, p. 138). Entre as peças deste conjunto, identifica-se a madre de um leme com 6,25 m de altura (Fig. 17), fabricada com várias madeiras fixas com cavilhas em ferro, e várias peças curvas do cavername (FRAGA et alii, 2014). Ambas as estruturas foram construídas em zona de interface até ao século XIX, quando foram anuladas por vários aterros (Fig. 3), documentando as profundas alterações na paisagem, evidentes através da análise de cartografia antiga, estudos históricos ou de sondagens geológicas (ver, por exemplo, DURÃO, 2012), constituindo assim marcadores importantes para o desenvolvimento da zona ribeirinha e elementos da paisagem cultural marítima cujo potencial está ainda pouco explorado.
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Figura 15 – Ortofotografia da grade ou rampa da Praça D. Luís I (CHAM-ERA).
Figura 16 – Pormenor, em mosaico, da primeira camada da estrutura da grade da Praça D. Luís I, onde se reconhecem várias madeiras recicladas de navios, nomeadamente várias tábuas com escarvas na base da imagem e um possível troço de sobrequilha no topo.
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Navios de época Moderna em Lisboa: balanço e perspectivas de investigação
que ganharam terra ao Tejo ou enquanto matéria-prima para a construção de estruturas náuticas, portuárias ou de construção naval, que passaram a elementos da paisagem cultural marítima da cidade de Lisboa. O seu estudo constitui, por isso, uma oportunidade para entender a estruturação da cidade portuária, necessariamente interdisciplinar, porque interessa a áreas como a história, a história da geografia, a geologia, a paleoecologia, entre outras.
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5. Considerações finais Os navios de Lisboa, estruturados ou em elementos isolados, constituem uma fonte importante para o estudo da construção naval de época Moderna, documentando a sua evolução desde o século XVI, com casos claramente filiados na tradição ibero-Atlântica, o Corpo Santo e o Cais do Sodré, e outros sem paralelos evidentes nos casos conhecidos à escala internacional, possivelmente os primeiros exemplos da construção naval para a navegação colonial na transição entre os séculos XVII e XVIII. Estes constituem marcadores da evolução da paisagem ribeirinha e a forma como entraram no registo arqueológico mostra estratégias diversas de reutilização de navios em fim de vida, enquanto base para os aterros
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A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
Em 2009, o acompanhamento arqueológico desenvolvido na Praça do Comércio (Lisboa, Portugal) (SIMTEJO/CRIVARQUE) permitiu observar um conjunto de realidades arqueológicas que ajudarão a compreender a evolução deste espaço urbanístico, centro político e social de Portugal desde do séc. XVI. O revolvimento profundo que a obra implicou no subsolo da actual Praça do Comércio permitiu a identificação de um vasto conjunto de realidades patrimoniais, que tiveram que ser alvo de distintas intervenções arqueológicas, visando a sua salvaguarda e registo integral. Apesar de todos os condicionalismos inerentes a uma intervenção arqueológica de emergência realizada em contexto urbano, numa das zonas mais emblemáticas do país, a caracterização das realidades identificadas permitirá uma leitura aproximada do ambiente urbano vivido na frente ribeirinha da cidade de Lisboa, bem como da definição da linha de costa existente na área do Terreiro do Paço em vésperas do Terramoto de 1755. As estruturas arqueológicas em análise, pela sua localização e arquitectura, parecem corresponder ao antigo forte existente no centro do Terreiro do Paço, designado por Baluarte, construído durante o reinado de Filipe II. Além do seu próprio significado funcional e histórico, a identificação e registo destas realidades constituem-se como um importante contributo na clarificação de algumas dúvidas de natureza histórica e iconográfica, nomeadamente em torno da sua efectiva localização, bem como da linha de costa desta zona da cidade de Lisboa, num período pré-Terramoto de 1755. PALAVRAS-CHAVE:
Lisboa, Terreiro do Paço, Época Moderna, Baluarte.
ABSTRACT:
In 2009, the archaeological work developed in the Praça do Comércio (Lisbon, Portugal) (SIMTEJO/ CRIVARQUE) allowed to observe a number of archaeological realities that will help to characterize the coast line of this part of Lisbon city and understand the evolution of this urban space, political and social center of Portugal since the 16th century. In this paper, we intend to present a set of archaeological structures, identified during the archaeological work, which, for their localization and architecture, seems to be part of the old fort located in the center of the Terreiro do Paço coastline, named Baluarte. Its characterization will allow a historical view of the urban environment in the riverfront, in the capital of the Portuguese Empire, before the reconstruction of Lisbon following the Earthquake of 1755. Key words:
Lisbon, Terreiro do Paço, Modern Age, Baluarte.
Terreiro do Paço. Posicionamento do Baluarte e Paredão face à actual Praça
3.18 Identificação e caracterização de uma estrutura seiscentista: O Baluarte do Terreiro do Paço
César Neves
UNIARQ/FLUL, AAP c.augustoneves@gmail.com
Andrea Martins UNIARQ/FLUL, FCT, AAP
c.augustoneves@gmail.com
Gonçalo Lopes Técnico de Arqueologia
g.simoeslopes@gmail.com
1. Introdução A cidade de Lisboa tem sido um palco de excelência para o desenvolvimento da actividade arqueológica. Dentro da área comummente reconhecida como “centro histórico”, serão poucos os espaços que ainda não foram alvo de alguma intervenção arqueológica (maioritariamente acompanhamento e, em menor escala, escavação), em resultado de uma acção de minimização de impactes ou emergência. Infelizmente, essa tendência crescente de trabalhos no terreno nem sempre tem sido acompanhada pela necessária (para não dizer obrigatória) produção de conhecimento científico, pela via da análise e publicação dos dados observados. A zona da Praça do Comércio inseria-se, até ao início de 2009, num dos poucos locais do centro da cidade de Lisboa sem qualquer tipo de intrusão no subsolo que tivesse permitido uma observação directa das realidades aí depositadas, desde da sua última grande obra: a requalificação pombalina, após o Terramoto de 1755, passando de Terreiro do Paço a Praça do Comércio. As intervenções realizadas durante o século XX na área da Praça (casas-de-banho e infra-estruturas de saneamento) não foram alvo de acompanhamento arqueológico, tendo sido as estruturas arqueológicas destruídas. Quando, em 2009, a SIMTEJO avança para uma empreitada que envolvia um profundo remeximento do subsolo em plena Praça do Comércio (e não na zona da praia, como nas obras do Metropolitano), finalmente uma equipa de arqueologia (CRIVARQUE) poderia observar e registar directamente o subsolo de um espaço de grande importância política e comercial desde da Idade Média, principalmente nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII. Por outro lado, esses períodos que foram de grande e constante mutação no aspecto do Terreiro do Paço e da linha de costa lisboeta contrastam com a preservação do tra-
çado pombalino, desde de meados do séc. XIX, quando a requalificação da Praça ficou totalmente concluída. Além dos aterros pombalinos que altearam e fizeram crescer a Praça do Comércio em direcção ao Tejo, sabiase, à partida, que iriamos identificar os caneiros Pombalinos que correm pela Rua Augusta, Rua da Prata e Rua do Ouro, desconhecendo se subsistiriam, ainda, testemunhos do Terreiro do Paço ou se estes tinham sido, definitivamente destruídos pelo Terramoto de 1755 ou removidos durante a Requalificação Pombalina (NEVES, 2012). Neste texto, além do destaque dado às realidades arqueológicas identificadas, ao seu contexto estratigráfico e histórico, bem como ao seu significado na compreensão da dinâmica evolutiva da cidade de Lisboa até à 1ª metade do séc. XVIII, optou-se por um discurso descritivo acerca do momento da sua identificação e, posterior, registo. Esta escolha resulta do facto do texto pertencer a uma publicação direccionada para a Arqueologia na cidade de Lisboa, permanecendo como mais um testemunho completo acerca da aplicação desta actividade profissional nesta área específica. Não pretendendo realizar qualquer juízo de valor acerca do contexto, forma e as condições em que, neste caso concreto, se identificaram e registaram as realidades arqueológicas em discussão, o seu relato e conhecimento afiguram-se como mais um dado para uma reflexão necessária, acerca das práticas arqueológicas desenvolvidas na cidade de Lisboa, nomeadamente em contexto de emergência, minimização de impactes e salvação pelo registo. 2. O sítio arqueológico 2.1. Localização Administrativa e Geográfica
A área em análise situa-se, administrativamente, em Portugal, na freguesia de São Nicolau, concelho e distrito
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de Lisboa. O espaço intervencionado localiza-se na folha nº 431 da Carta Militar de Portugal, na escala de 1:25.000. As coordenadas correspondentes, no Datum Lisboa, para as realidades arqueológicas aqui descritas são (Figs.1 e 2):
- Baluarte (vala 10a – 11a) M. - 87 288; P. - 106 198; Z. 2,45 m - Baluarte (sul da CVM RA/RP) M. - 87 274; P. -106 220; Z. 3,25 m 2.2. Geologia e Geomorfologia
Em termos geológicos enquadra-se numa região constituída por argilas e calcários do Miocénico a que se associam areolas da Estefânia com Chlamys pseudo-pandorae de igual época geológica (ALMEIDA, 1986). Inserese numa zona de aluviões e/ou aterros, cartografados ao longo das principais linhas de água. A zona compreendida entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço encontra-se em pleno “Esteiro da Baixa”. Trata-se de uma zona aplanada, aberta a Sul para o estuário do Tejo, na qual confluem duas ribeiras actualmente encanadas: a Ribeira de Valverde e a Ribeira de Arroios. O esteiro encontra-se delimitado, a Este, pelas Colina do Castelo e, a Oeste, pela Colina de São Francisco (Chiado). Na zona ribeirinha da Baixa, que está fortemente influenciada pelo ciclo de marés do Tejo, encontramos duas realidades geológicas distintas: a. Rochas de origem sedimentar, de idade miocénica, designadas por “Argilas do Forno do Tijolo” (M2Iva), nas quais o esteiro se foi entalhando; b. Aluviões areno-siltosos, que podem ir até cerca de 46m de profundidade. Sobrepostos aos aluviões encontram-se os aterros realizados ao longo do período medieval e moderno, que “conquistaram” terra ao rio, entre os quais o entulho das ruínas e demolições da cidade após o Terramoto de 1755. O resultado das sondagens geológicas realizadas pela Mota Engil para a SIMTEJO, na zona compreendida entre o Corpo Santo e a Avenida Ribeira das Naus, corrobora o que foi acima descrito, tendo-se identificado a seguinte sequência estratigráfica: • “Aterros: com possanças entre os 6 e os 7 m, são constituídos por materiais vários, nomeadamente entulho, com blocos de natureza diversa (calcários e basaltos) e, raramente, solos de natureza arenosa, de que resulta uma grande heterogeneidade relativamente às suas características de resistência e deformidade; • Aluviões actuais: identificadas por baixo dos aterros, as aluviões ocorrem até à profundidade da ordem dos 20 a 30 m e repousam directamente sobre o substrato Miocénico. À superfície são compostas por solos orgânicos areno – siltosos, com cerca de 2,5 m de espessura máxima, para depois, em profundidade, ocorrerem areias finas a grosseiras, com areão e lentículas de lodo dispersas; • Argilas azuis do Forno do Tijolo: são argilas do Miocénico que ocorrem, de acordo com a informação geológica consultada, entre o Terreiro do Trigo, a colina do Castelo de S. Jorge, a Av. Almirante Reis, o Areeiro, Alvalade, Cam-
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po Grande, Telheiras e Carnide. A totalidade do horizonte é constituída por argilas, margas e grés finos, argilosos e micáceos, de tons escuros.” (MOTA ENGIL, 2007). A partir da época romana, os limites das ribeiras de Arroios e de Valverde são difusos e a sua navegabilidade é mal conhecida, sabendo-se apenas que o esteiro foi sendo, progressivamente, assoreado, dando origem a um terreno alagadiço e inundável até ao século XV (ANGELLUCI, COSTA, MURALHA, 2004). Nos inícios do século XVI, com a mudança da residência oficial do Rei para o Terreiro do Paço, são efectuadas grandes remodelações na cidade implicando, necessariamente, alterações no esteiro ocorrendo grandes aterros na frente ribeirinha. Será, no entanto, com o Terramoto de 1755 que terão lugar as maiores transformações nesta área, sendo a Praça do Comércio a face mais visível dessa modificação. 3. Intervenção arqueológica 3.1. Identificação do Baluarte/ Forte do Terreiro do Paço 3.1.1. Primeira ocorrência (a vala 11a – 10a)
Com o objectivo de se unir a CVM-RO (Câmara de Válvula de Marés da Rua do Ouro) à CVM-RP (Câmara de Válvula de Marés da Rua Augusta/Rua da Prata), foi aberta uma vala designada por 11a-10a. A colocação desta tubagem obrigou à escavação de uma vala de grandes dimensões e que representava uma forte afectação do subsolo deste espaço, podendo colocar à vista um conjunto significativo de realidades arqueológicas. A vala teve o comprimento de cerca de 35 m, atingindo uma profundidade máxima de 6 m. Tal como ocorreu em outros espaços da empreitada, numa fase prévia, o empreiteiro injectou jet ao longo do traçado da futura vala, tentando impedir, desta forma, que o nível freático não subisse ao ponto de impossibilitar a colocação da conduta. A escavação desta vala ocorreu em circunstâncias diferentes das então verificadas na empreitada. Face à profundidade que se ia atingir e à conhecida presença de um subsolo pouco consolidado devido à existência de aterros, seria expectável que a vala tivesse uma entivação que oferecesse segurança na sua abertura e, também, na colocação e activação da tubagem. No entanto, ao contrário do verificado na CVM-RO, o empreiteiro abdicou da entivação e projectou uma escavação em V, em taludes. Desta forma, na base da vala atingia-se a profundidade máxima de 6m, alargando-se a largura da vala à medida que se subia de cota. No final, a largura da vala 10a-11a junto à superfície era de 18 m. Apesar de na zona de profundidade máxima a afectação ser reduzida (2 a 3 m de largura), o mesmo não se podia dizer nas cotas mais altas. Esta estratégia de abertura em talude num espaço de aterros dificultou o acompanhamento arqueológico. A observação da estratigrafia foi sempre condicionada pela largura da vala e, especialmente, pelo facto das camadas superiores estarem sempre a moverem-se para as zonas em escavação, misturando-se com outros níveis sedimentares e tapando qualquer perfil estratigráfico posto a descoberto. A abertura ocorreu 3 meses depois da escavação da CVM-RO. Assim, havia a consciência,
Identificação e caracterização de uma estrutura seiscentista: o baluarte do Terreiro do Paço
Figura 1 – Localização da intervenção arqueológica (C.M.P. 1:25.000, Folha 431 – excerto e adaptado).
Figura 2 – Planta geral da empreitada SIMTEJO/CRIVARQUE (excerto e adaptado), destacando as estruturas em análise neste texto.
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por parte de todos os intervenientes na obra, da possibilidade de se verificar novos vestígios arqueológicos relacionados com os que foram observados na CVM-RO (NEVES, 2012; NEVES et alii 2013). A vala 10a-11a ocorreu num espaço imediatamente adjacente à CVMRO, inserido numa trajectória que poderia integrar parte das estruturas identificadas, principalmente o Paredão. O acompanhamento arqueológico, desenvolvido durante a abertura desta vala, identificou um conjunto de realidades arqueológicas, sendo que o seu registo e salvaguarda ocorreram de maneiras distintas. Partindo na orientação CVM-RO – CVMRA/RP (Oeste-Este), as primeiras camadas de sedimento removido começaram a revelar a forte presença de aterros aqui colocados para a construção da Praça do Comércio, logo após o Terramoto de 1755, até ao período contemporâneo. Estes aterros vão ao encontro dos observados em outras zonas da actual praça, contendo um número significativo de cerâmica de construção, elementos pétreos e de restos faunísticos. Além da abertura/escavação da vala para a colocação da tubagem que une a CVM-RO à CVMRA/RP, esta acção da obra requeria a intercepção e destruição de uma antiga conduta que se encontra identificada na cartografia da empreitada como “Galeria em Arco de Betão”. O seu carácter contemporâneo, justificado pela presença de betão na sua constituição, indicava que algumas zonas do subsolo da Praça do Comércio já teriam sido revolvidas. Após a abertura da vala estar concluída, alargou-se o talude ligeiramente para Norte, para se identificar essa galeria. Esta acção específica teve lugar no final da vala 10a-11a, junto à CMVRA/RP, num espaço muito próximo da estátua de D. José. Durante a remoção de sedi-
mento nesta zona observou-se no talude Norte e Este a presença de uma estrutura amuralhada, composta por 3 fiadas de silhares rectangulares de lioz. Numa fase inicial da sua identificação, parecia tratar-se de duas estruturas, mas após observação mais detalhada comprovou-se que faziam esquina, estando os silhares imbricados uns nos outros. O topo desta estrutura encontrava-se a cerca de 1,8 m da superfície actual (Figs 3, 4 e 5). Alertados para a presença de uma estrutura arqueológica, os responsáveis da empreitada concluem o alargamento do talude Norte. Ao retomar a escavação em profundidade, identifica-se a “Galeria em Arco de Betão”. A observação desta galeria permitiu verificar que a sua construção e colocação, levou à afectação física da estrutura arqueológica amuralhada cortando-a, quer na zona a Norte, quer na zona Este (Fig. 6). Com os objectivos da empreitada já alcançados para esta área, somos informados que a estrutura amuralhada não seria alvo de qualquer afectação física, pois não haveria necessidade de se proceder a revolvimentos de terra nessa área específica. Desta forma, foi possível proceder ao registo integral das realidades arqueológicas mas, somente, no espaço afectado pela empreitada. Limpou-se e registou-se cerca de 6 m de comprimento da estrutura por 1,2 m de altura máxima. Apesar de não ter sido viável o registo da totalidade da estrutura, constatou-se que a mesma continua em profundidade. Após a sua limpeza, procedeu-se ao seu registo Gráfico (desenho à escala 1:20), Fotográfico e Topográfico (caracterização altimétrica e georreferenciação). Posteriormente, foi protegida com manta geo-têxtil, ficando preservada in situ.
Figura 3 – Estrutura arqueológica identificada no Acompanhamento Arqueológico. Repare-se na sua localização face à estátua de D. José.
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Identificação e caracterização de uma estrutura seiscentista: o baluarte do Terreiro do Paço
3.1.2. Sequência e relação estratigráfica
Figura 4 – Estrutura arqueológica. Registo fotográfico do alçado Norte.
Figura 5 – Estrutura arqueológica. Pormenor da união dos alçados Norte e Este e do seu estado de conservação.
Figura 6 – Estrutura arqueológica. Realce para a conduta em betão que cortou a estrutura arqueológica, levando à sua parcial destruição.
No geral, a sequência estratigráfica observada e registada no espaço onde foi identificada a estrutura arqueológica foi a seguinte (Fig. 7): - UE [501] - Piso. Piso de cimento que corresponde ao pavimento existente na Praça do Comércio à data da intervenção arqueológica. Sobre a [502]. - UE [502] - Depósito. Camada de toutvenant que suportava o piso da UE [501]. Sob a [501] e sobre a [503]. - UE [503] - Depósito. Camada arenosa, pouco compacta, castanha ou amarela, que apresenta algum cascalho e frequentes fragmentos de tijolo e telha de cronologia contemporânea. Claramente uma camada de entulho e de colmatação de equipamentos urbanos. Apresenta uma espessura máxima de 1m. Sob a [502] e sobre a [504], [506], [507] e [505]. - UE [504] - Depósito. Aterro composto por uma sequência de pequenas camadas de entulho que terão sido depositadas num único momento. Contém escassos materiais arqueológicos, com excepção de alguma cerâmica de construção. Terá servido para altear a cota da Praça. Apresenta um número reduzido de elementos pétreos de pequena e média dimensão. Sob [503] e sobre [505], [509] e [511]. - UE [505] - Depósito. Aterro composto por mais de uma dezena de micro-camadas de entulho. A diferença face à [504] é que parece deter materiais arqueológicos mais antigos (Moderno/Contemporâneo), podendo enquadrar a sua colocação numa fase da requalificação pombalina, após o Terramoto de 1755. Deste conjunto de níveis de aterro, abaixo dos 2,5 m de profundidade face à cota actual, provieram uma pia em calcário e uma mó. A sua localização indica que seriam para altear a cota do antigo Terreiro do Paço. Contém algumas intrusões de argilas negras que indicam a presença do nível freático. Sob a [503] e [504]. Sobre a [508], [511] e [512]. - UE [506] - Infra-estrutura. Colector de esgoto em cimento que atravessa a vala na perpendicular. Tem cerca de 2m de diâmetro e ainda estava em actividade. O seu topo foi registado a cerca de 2 m da superfície actual. Aparece registado na Cartografia da obra, logo a sua colocação tem um carácter recente. Terá afectado um conjunto significativo de níveis de aterro pós-Terramoto de Lisboa e cortado a estrutura registada como UE [511]. Sob a [503]. Corta a [511] e [512]. Equivalente a [507]. - UE [507] - Infra-estrutura. Galeria em betão armado que estaria desactivada. É perpendicular à [506] mas deverão ter ligação física, tal como é representado na cartografia da obra. Cortou a [511] a Norte e a Este. Sob a [503]. Corta a [511] e [512]. Equivalente a [506]. - UE [511] - Estrutura Arqueológica. Estrutura arqueológica amuralhada a Norte e a Este, fazendo uma esquina. Composta por silhares rectangulares em lioz, foram registadas 3 fiadas (1m de altura). Os silhares apresentam dimensões distintas, dos 60 cm a 1,2 m de comprimento, por 40 cm de altura. Apresenta-se bastante danificada devido à presença da galeria em betão [507], que a cortou, só permitindo o registo de 7 m de alçado. Corresponderá à estrutura militar construída no séc. XVIII, o Baluarte/Forte do Terreiro do Paço, que estaria localizada no centro do Terreiro do Paço, junto ao rio integrando, igualmente, a enorme estrutura que delimitava a
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Figura 7 – Registo gráfico de um segmento do Paredão e Baluarte [511], identificado na Vala 10a-11a e respectivo enquadramento estratigráfico. O tracejado indica que as realidades estão unidas, mas esta ilustração demonstra duas perspectivas distintas, a do alçado Norte (à esquerda da imagem) e do alçado Este (à direita).
linha de costa nesta área da cidade, o Paredão/Cortina. Encontrava-se colmatada por aterros Pós-Terramoto de 1755 e pela [503], estando a 1,8 m da superfície actual da Praça do Comércio. Não foi removido, encontrando-se protegido por manta geotêxtil. Sob a [504] [505]. Cortada pela [506] e [507]. - UE [512] - Depósito. Camada orgânica de sedimento arenoso e coloração preta. É constituída por fragmentos muito pequenos e bastante rolados de cerâmica de construção, cerâmica comum, vidrada, fauna mamalógica e malacológica. A sua principal característica é o elevado grau de fragmentação dos elementos que a constituem. Corresponderá a um nível de rio (aluvião). Encostava ao Baluarte [511] e foi, em parte, removida para a definição parcial desta estrutura. Não se observou o seu limite inferior. Encosta à [511]. - UE [513] - Depósito. Camada areno-argilosa de coloração muito escura. Apresenta bastante matéria orgânica, fauna mamalógica e malacológica. Caracteriza-se por uma presença densa de elementos pétreos de reduzidas dimensões. Da sua remoção foi registada um projéctil em pedra. Corresponderá a um nível de rio (aluvião). Não se observou o seu limite inferior. Sob [505]. - UE [514] - Depósito. Camada de jet que foi injectada no decorrer da obra a fim de colocar um estanque no nível freático, para que este não subisse no decorrer dos trabalhos da empreitada. Embora seja a última realidade a ser observada em estratigrafia, ela corresponde à mais recente. Terá envolvido sedimento correspondente aos aluviões aqui registados. Corta todas as UEs anteriormente identificadas. 3.1.3. Segunda ocorrência – vestígio do Baluarte
A sul da CVM RA/RP, sem aviso prévio e não constando no Plano de Trabalhos da empreitada,, foi aberta uma vala de grandes dimensões (20m de comprimento por 8 m de largura), com o objectivo de remover uma manilha de esgoto com cerca de 2 m de largura que se encontra registada na cartografia da obra. Além de ser uma acção
502 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
que não estava prevista no Plano de Trabalhos da obra, a abertura dessa vala realizou-se no dia 5 de Setembro, correspondendo a um sábado (o que reforça a necessidade de aviso atempado). A sua abertura seguiu o método preconizado para a Vala 10a-11a, ou seja, sem entivação lateral, substituída pela criação de taludes artificiais. Pela presença da manilha de esgoto (aqui colocada pela Câmara Municipal de Lisboa, segundo informação recolhida junto de fiscais dessa autarquia, e que não foi alvo de Acompanhamento Arqueológico), sabia-se que os sedimentos que a colmatavam não estariam no seu contexto primário. No entanto, pelo grau de afectação desta vala (e pela ausência de registo arqueológico aquando a sua colocação), esta seria uma boa oportunidade para se registar a estratificação desta zona, bem como para aferir o grau de afectação sobre eventuais níveis arqueológicos, atravessados por esta acção intrusiva. Quando se chegou à obra, no dia 7 de Setembro (segunda-feira), rapidamente se notou a presença da vala. Analisando os taludes, observou-se a existência de uma estrutura amuralhada. A sua limpeza permitiu registar 4 fiadas de silhares em lioz, de forma rectangular, e o seu enchimento em argamassa, cerâmica de construção e elementos pétreos de reduzida e média dimensão. A estrutura apresentava a parte afeiçoada (silhares) virada a Sul (para o rio) e o enchimento a Norte. A sua espessura é de 1,5 m e o comprimento de 3 m (Figs. 8 e 9). Apresentava-se bastante danificada, detendo uma “forma” bastante sugestiva, indiciando claramente o que se passou aquando a sua identificação, no decorrer da abertura da vala. A estrutura apresentava os silhares muitos destruídos e em forma de “escada”, acompanhando o talude da vala. As zonas fracturadas apresentavam-se frescas e muito limpas, denunciando um corte bastante recente. Desta forma, esta realidade arqueológica terá sido destruída no decorrer da abertura da vala, desconhecendo-se qual a dimensão que detinha aquando a sua identificação.
Identificação e caracterização de uma estrutura seiscentista: o baluarte do Terreiro do Paço
Figura 8 – Estrutura arqueológica. Registo fotográfico e gráfico do 2º segmento do Baluarte identificado no Acompanhamento Arqueológico.
A presença no talude indica que já não seria (mais) afectada por acções da obra. Assim, procedeu-se à sua limpeza até à cota do talude, sendo impossível escavar em profundidade devido a questões de segurança. Registouse graficamente e fotograficamente o alçado exterior e interior da estrutura, ficando o registo topográfico a cargo da equipa de topografia do empreiteiro. Após o registo, a realidade arqueológica foi protegida com manta geotêxtil. Face à superfície actual, a estrutura encontrava-se imediatamente abaixo do piso da Praça do Comércio, envolvida por sedimentos correspondentes aos últimos aterros aqui depositados (mas já removidos à data da nossa pequena acção de registo arqueológico). As Unidades Estratigráficas identificadas apresentam claras equivalências com as realidades descritas na identificação do primeiro segmento do Baluarte. Este segundo segmento encontra-se a cerca de 22 m do primeiro, registado a Norte. 3.2.4. Sequência e relação estratigráfica
Em termos genéricos, e apesar de não ter sido possível identificar com precisão o contexto estratigráfico relacionado com este vestígio arqueológico, a sequência observada a seguinte: - UE [801] - Piso. Piso de cimento que corresponde ao pavimento existente na Praça do Comércio à data da intervenção arqueológica. Sobre a [802]. - UE [802] - Depósito. Camada de tout venant que suportava o piso da UE [801]. Sob a [801] e sobre a [803]. - UE [803] - Depósito. Aterro composto por uma sequência camadas de entulho que terão sido deposi-
Figura 9 – Estrutura arqueológica. Espessura e preenchimento do seu interior.
tadas num mesmo período de tempo. Contém escassos materiais arqueológicos, com excepção de alguma cerâmica de construção. Terá servido para altear a Praça do Comércio. Apresenta um número muito reduzido de elementos pétreos de pequena e média dimensão. Não foi possível observar o seu limite inferior. Sob [802] e sobre [805]. - UE [804] - Infra-estrutura. Colector de esgoto em cimento que vem desde da caixa pré-existente na CVM RA/RP e que vai em direcção à “Galeria em Arco de Betão”, identificada na Vala 10a-11a como UE [506]. Tem cerca de 2 m de diâmetro. O seu topo foi registado a cerca de 2 m da superfície actual. Aparece registado na cartografia da obra, logo a sua colocação é bastante recente. Terá afectado um conjunto significativo de níveis de aterro pós-Terramoto de Lisboa e a sua colocação deverá ter danificado parte da estrutura do Baluarte, registada nesta intervenção como [511] e [805]. - UE [805] - Estrutura Arqueológica. Estrutura arqueológica amuralhada. Composta, no alçado externo (virado para o rio), por silhares rectangulares em lioz, foram registadas 4 fiadas. Encontrava-se danificada devido à presença da vala que a cortou. Ainda assim, foi possível registar 3 m de comprimento, por 1,1 m de altura, bem como a sua espessura (1,5 m). As dimensões dos silhares são idênticas às verificadas na UE [511]. O seu interior apresenta claras semelhanças com o verificado no Paredão escavado na CVM-RO (NEVES et alii, 2013), apresentando-se tosco e constituido por elementos pétreos em calcário de pequena e média dimensão, argamassa e tijolo. Por aquilo que foi possível observar, o alçado interno não estaria aparelhado,
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embora a realidade identificada seja de reduzida expressão que permita tanta clareza nesta leitura. Pela localização, tipo construtivo, deverá corresponder à estrutura militar construída no séc. XVIII, o Baluarte, que estaria localizada no centro do Terreiro do Paço, junto ao rio. Fará parte, desta forma, da realidade identifica na Vala 10a-11a, registada como UE [511], da qual dista 21,44 m. Encontrava-se colmatada por aterros Pós-Terramoto de 1755 [803] e pela [802]. Não foi removida, encontrando-se protegido por manta geotêxtil. A sua presença permite delinear parte da arquitectura do Baluarte, principalmente a zona a Oeste. Além da afectação física causada pela abertura desta vala, a estrutura já se deveria encontrar danificada, tendo essa acção ocorrido na altura em que foi colocada, pela CML, a “Galeria em Anéis de Betão”. Sob a [802] e [803]. Cortada pela [804]. 4. Enquadramento histórico-arqueológico das estruturas identificadas Nas acções de acompanhamento arqueológico aqui reportadas, foi possível observar um conjunto de realidades estruturais que terão estado em actividade até ao Terramoto de 1755. E, se as mesmas forem testemunhos do antigo Baluarte (mais o segmento de muro que lhe é contíguo e que já se insere na monumental estrutura Paredão/Cortina), então elas poderão ajudar a solucionar algumas das questões ainda por responder relativamente ao espaço concreto do Terreiro do Paço e à antiga linha de costa da Lisboa ribeirinha de época moderna. No início do séc. XVII, num projecto de requalificação do Paço da Ribeira desenvolvido em pleno reinado de Filipe II, é construído, nesta zona, um parapeito, muro ou cais. Correspondia a uma estrutura de grandes dimensões que fechou a frente fluvial em termos de contacto visual directo com o Tejo, transformando o Terreiro do Paço, até à requalificação pombalina, numa praça fechada por um muro, cuja parte central fora guarnecida de um baluarte – o Forte do Terreiro do Paço. Este muro teria, no entanto, áreas de acesso à zona da praia. Após a Restauração surge, em 1678, um pedido para demolição do Baluarte e da denominada “Cortina”, pois eram estruturas inúteis do ponto de vista defensivo e que tiravam a vista do rio. Porém, este pedido não terá sido satisfeito, a julgar pelos testemunhos registados nesta intervenção arqueológica.
Para a identificação e atribuição cronológica dos vestígios identificados, a utilização de fontes iconográficas pode deter um importante contributo, ainda mais para esta área da cidade e para o período cronológico em questão, tal é a abundância de panorâmicas existentes. No entanto, estes trabalhos de natureza artística foram, muitas vezes, realizados num momento posterior à imagem que retratam, correspondendo a cópias de outros autores. De igual modo, tendem a reflectir o gosto pessoal e o propósito com que a obra foi realizada, sendo notória a relevância dada a alguns temas, em contraste com a ausência de algumas estruturas, menos imponentes. A perspectiva da maioria das gravuras, de frente para a cidade, indica que poderão não corresponder a uma cópia fidedigna da realidade. Apesar destes condicionalismos, constituem-se com uma fonte histórica a que se deve recorrer mas tendo sempre presente as suas limitações. Assim, para esta área, observamos que na gravura de Georg Braunius, de cerca de 1598 mas baseada num desenho de 1565, o Terreiro do Paço surge sem o Paredão e apenas com um cais na área mais a Este1. Uma das iconografias mais detalhadas é de autoria de Dirck Stoop, em 1662, ilustrando o embarque da D. Catarina para Inglaterra. Na gravura, observa-se o Torreão, o Paredão e o Baluarte central (Fig. 10). São várias ilustrações da primeira metade do séc. XVIII onde surge representado o Baluarte e Paredão (Figs. 11 e 12). O terramoto de 1755 e posterior tsunami transformaram profunda e permanentemente toda esta zona. Por via dos relatos da época, sabemos que o Paço da Ribeira, bem como o Teatro da Ópera ficaram totalmente destruídos. No entanto, através desta intervenção arqueológica, constata-se que, ao contrário desses edifícios, as imponentes estruturas da frente ribeirinha como o Baluarte e Paredão 2 terão permanecido preservadas. 1. Imagem publicada em: CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA, 2009, p. 58. 2. A estrutura arqueológica em análise e central deste texto é o Baluarte. Estando integrado no Paredão que delimitava o Terreiro do Paço, torna-se obrigatório mencionar as duas realidades em conjunto, pois são partes de uma mesma estrutura. No entanto, na restante empreitada surgiram áreas onde o Paredão se encontra melhor preservado e, assim, com uma caracterização mais completa (NEVES et alii, 2013; NEVES, MARTINS, LOPES, 2014).
Figura 10 – Cortejo Náutico no embarque da D. Catarina para Inglaterra, por Dirck Stoop (1662). Em destaque o Baluarte, que deverá corresponder às realidades arqueológicas descritas neste texto (Museu da Cidade. GRA 1076 – retirado de: GEO, 2009, p. 34 – adaptado).
504 I Encontro de Arqueologia de Lisboa
Identificação e caracterização de uma estrutura seiscentista: o baluarte do Terreiro do Paço
Figura 11 – Grande Vista de Lisboa. Pormenor de painel de azulejos anterior ao sismo de 1755 (c.1700). Este troço da grande panorâmica de Lisboa corresponde ao Paço da Ribeira, sendo bem visível o Baluarte (à direita da imagem) e o Paredão (ao centro). (Museu Nacional do Azulejo).
Figura 12 – Vué de la place du Palais a Lisbonne. Gravura de Jacobus Baptist publicada a partir de 1707. Pode-se ver o Terreiro do Paço no início do séc. XVIII, com o Paredão e Baluarte. Gabinete de Estudos Olisiponenses, Col. Vieira da Silva, VS2274/E9 (retirado de: GEO, 2008, p.66).
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César NEVES, Andrea MARTINS, Gonçalo LOPES
A reconstrução pombalina não se efectuou de imediato na área do Terreiro do Paço devido, principalmente, à instabilidade do terreno, como se verificou com a conclusão do Torreão Poente, apenas em 1840, a cerca de 50 m do local onde existira o Torreão Filipino (ARAÚJO, 1993). Neste longo período de reconstrução, é possível que a estrutura do Baluarte e Paredão ainda possam ter sido utilizadas, uma vez que se encontravam em bom estado de conservação, tal como foi possível constatar do decorrer da sua intervenção e caracterização (com excepção das zonas onde, já no séc. XX, foram colocados equipamentos urbanos que levaram à sua destruição parcial). 5. Importância dos vestígios identificados e caminhos de análise futura A intervenção arqueológica permitiu observar que, a cerca de 2m abaixo da superfície da Praça do Comércio, encontram-se preservados testemunhos do antigo Terreiro do Paço. Tornou-se visível que pelo menos parte das estruturas, aqui descritas como pertencentes ao antigo Baluarte (e Paredão), terão resistido ao Terramoto de 1755 e tsunami, tendo sido desactivadas por questões de planificação urbanística decorrentes da reconstrução pombalina. De igual modo, comprova-se que durante a remodelação da Praça, as realidades não foram destruídas tendo sido, simplesmente, aterradas e colmatadas, ajudando na construção da Praça do Comércio.
A identificação destas realidades relacionadas com o Terreiro do Paço permitiu atestar algumas das propostas fundamentadas na iconografia e nos documentos de época. O Baluarte Filipino, face à actual Praça do Comércio, terá tido a sua localização ao centro desta, em frente à actual estátua de D. José, ficando, assim, definido o centro do Terreiro do Paço. A identificação da esquina que unia o Paredão ao Baluarte permite esta leitura o que, juntamente com o testemunho mais a sul, possibilitou uma primeira proposta de caracterização e cálculo da dimensão real desta imponente e central estrutura da cidade de Lisboa no séc. XVII e na 1ª metade do séc. XVIII (Fig. 13). Mesmo atendendo ao contexto em foi identificado o 2º segmento do Baluarte (o mais a Sul da actual Praça do Comércio), à sua reduzida dimensão e mau estado de conservação (recomendando alguma prudência na sua interpretação), é possível afirmar que deverá mesmo fazer parte desta estrutura defensiva. Numa das propostas para requalificação da Baixa de Lisboa apresentadas por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel ao Marquês de Pombal após o Terramoto de 1755, surgem dois planos: um, com maior relevo, para a futura Baixa Pombalina, sobreposto à antiga configuração de Lisboa, pré-Terramoto. No plano Pré-Pombalino surge, no Terreiro do Paço, o Paredão e o Baluarte, sendo igualmente visível o espaço que a nova Praça ganhava ao rio relativamente ao prévio Terreiro. Para a validação da nossa proposta de interpretação das realidades estruturais identificadas no Acompanhamento Arqueológico, recorremos a esta planta dupla do Terreiro do Paço e Praça do Comércio, e
Figura 14 – Vista dos dois segmentos do Baluarte identificados na Praça do Comércio. Foto orientada Sul-Norte, a partir do 2º segmento registado.
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Identificação e caracterização de uma estrutura seiscentista: o baluarte do Terreiro do Paço
Figura 15 – Posicionamento do alçado Norte da estrutura arqueológica. Se corresponder ao Paredão, a foto indica a sua orientação para Oeste, onde estaria localizado o Torreão Filipino.
Figura 14 – A. Planta da Praça do Comércio com os vestígios arqueológicos correctamente implantados (base cartográfica SIMTEJO/CRIVARQUE). B. Pormenor da sobreposição da futura Praça do Comércio (projecto de Eugénio Santos e Carlos Mardel) sobre o Terreiro do Paço. Em 2º plano surge o Terreiro do Paço, sendo visível a localização do Paredão e Baluarte, face ao novo figurino deste espaço (1758). Versão publicada por J. P. Ribeiro, em GEO (1949; retirado de GEO, 2009, p.86, adaptado). C. Localização do antigo Baluarte (a negro) face aos vestígios arqueológicos identificados (a azul). A tracejado, o traçado do Paredão/Cortina existente no Terreiro do Paço.
Figura 16 – Posicionamento do Baluarte e Paredão face à actual Praça (imagem orientada de OesteEste).
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transportámos, com a mesma escala, o Baluarte para a Cartografia da obra, onde estão implantadas as estruturas registadas na intervenção arqueológica. Para reduzir a margem de erro, utilizou-se como referências os edifícios que iriam constar na futura Praça do Comércio, como os Torreões Poente e Nascente. Como se pode observar na Figura 14, o resultado não podia ser mais elucidativo. O Baluarte da planta de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel enquadra-se inteiramente nos achados arqueológicos, desde da esquina identificada na vala 10a-11a, ao reduzido testemunho observado mais a sul (Fig. 14). Com a reprodução e validação deste cálculo, além do posicionamento e dimensão do antigo Baluarte, é possível começar a aferir a real localização de outras estruturas. O Paredão atravessaria longitudinalmente todo o Terreiro, terminando a Oeste, no Torreão Filipino e anterior torre do Paço Manuelino. Através da localização e referenciação dos segmentos do Baluarte e, também, Paredão identificados no decorrer da obra em espaços distintos (NEVES, 2012) consegue-se aferir, com rigor, a localização destas estruturas régias, traçando a antiga linha de costa e a zona de praia. No mesmo sentido, é possível calcular a significativa área que os aterros pombalinos conquistaram ao rio Tejo, ficando estas estruturas sensivelmente no último terço da Praça do Comércio. Se entendemos estas realidades como prévias ao terramoto, então a sua identificação torna possível a definição da antiga linha de costa, no momento anterior a essa catástrofe. A reconstrução Pombalina não terá alterado a morfologia do espaço correspondente ao Terreiro do Paço, ficando praticamente com as mesmas dimensões laterais e com a estátua de D. José implantada no espaço onde se situaria o Baluarte (Figs.15 e 16). Futuramente, voltar ao terreno para novos trabalhos arqueológicos será muito complicado, pois dificilmente este espaço da cidade tornará a ter uma empreitada desta dimensão e nem os lisboetas e quem, diariamente, a visita e utiliza estarão disponíveis, mais uma vez, para se privarem, por tempo indeterminado, deste lugar em detrimento de mais uma intervenção arqueológica. No entanto, tal como se observa na cartografia da empreitada da SIMTEJO, esta focou-se na parte mais Central e Oeste da Praça do Comércio. Toda a zona Este manteve-se inalterável, podendo ainda deter testemunhos do Baluarte e/ou de outras de distinta natureza histórica e funcional. Por outro lado, há um número significativo de dados produzidos nesta intervenção arqueológica passíveis de serem trabalhados e que, em conjunto com os elementos registados em outras intervenções nos espaços bem próximos deste local (Praça D. Luís, Terreiro do Trigo, Campo das Cebolas e Chafariz de Dentro), tornarão mais clara a História desta cidade. Deste modo, tornase essencial a elaboração de um projecto de investigação científica que, de forma estruturada e obedecendo a um questionário transdisciplinar, contemple o estudo integral das estruturas analisadas e de todos os elementos arqueológicos a si associados, nomeadamente os artefactos, permitindo novas leituras e reflexões sobre o quotidiano de Lisboa, uma cidade portuária e Capital do Império em Época Moderna.
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Bibliografia ARAÚJO, N. (1993) - Peregrinações em Lisboa, vol. XII, 2ª ed. Lisboa: Vega. ALMEIDA, F. M. de (1986) - Carta Geológica do Concelho de Lisboa. Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal. ANGELUCCI, D.; COSTA, C.; MURALHA, J. (2004) Ocupação neolítica e pedogénese médio-holocénica na Encosta de Sant’ Ana (Lisboa): considerações geoarqueológicas. Revista Portuguesa de Arqueologia.7:2. Lisboa: IPA, p. 27-42. CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA – Gabinete de Estudos Olisiponenses (2008) - Lisboa do século XVII. “A Mais Deliciosa Terra do Mundo”. Lisboa: Direcção Municipal de Cultura/ Câmara Municipal de Lisboa. CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA - Gabinete de Estudos Olisiponenses (2009) - História de Lisboa. Tempos Fortes. Lisboa: Direcção Municipal de Cultura. Câmara Municipal de Lisboa. MONTA ENGIL, GEOTECNIA (2007) - Estação Elevatória da Ribeira das Naus. Prospecção Geológico-Geotécnica. Lisboa: SIMTEJO, Sistema Multimunicipal de Saneamento de Água dos Municípios do Tejo e Trancão. NEVES, C. (2012) - Empreitada de Construção do Sistema de Intercepção e Câmara de Válvulas de Maré do Terreiro do Paço (Lisboa). Relatório Final. Torres Novas: Crivarque, Lda. NEVES, C.; MARTINS, A.; LOPES, G.; BLOT, M. L. (2013) - Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio (Lisboa): identificação de vestígios arqueológicos de natureza portuária num subsolo urbana. In TEIXEIRA, A. e BETTENCOURT, J. (eds.), Velhos e Novos Mundos. Estudos de Arqueologia Moderna. (ArqueoArte, 1) Lisboa: CHAM/ FCSH-UNL e UAç, pp. 613-626. NEVES, C.; MARTINS, A.; LOPES, G. (2014) - Lisboa pré-pombalina: vestígios do Terreiro do Paço no subsolo da Praça do Comércio. Rossio. Estudos de Lisboa, 3, Lisboa: GEO/CML, pp. 52-65. https://issuu.com/camara_municipal_lisboa/docs/rossio_3_ issuo
Material cartográfico: Carta Militar de Portugal. Folha 431, Instituto Cartográfico do Exército, escala 1/25 000, Lisboa, suporte digital.
A ARQUEOLOGIA DOS ESPAÇOS, A IDENTIDADE E A FISIONOMIA DA CIDADE
Resumo:
A rampa dos escaleres reais (último quartel do século XVIII) descoberta pela Era no espaço do futuro Museu de Arte Arquitectura e Tecnologia da Fundação EDP (Belém) constitui uma notável evidência material/ arquitectónica de um tempo de transição entre o equilíbrio da balança comercial portuguesa e o seu paulatino declínio a partir de 1799 até aos dias de hoje. Mandada construir pelo Marquês de Pombal e concluída no reinado de Dona Maria I (A Viradeira) esta estrutura náutica serviu os escaleres que faziam o trânsito entre navios de grande calado, fundeados no Tejo e a Cordoaria Nacional (fábrica de cabos, cordame e demais aprestos navais). A armada portuguesa constituída por cerca de sete dezenas de navios vai zarpar de Lisboa e morrer na costa brasileira aquando da transferência da Corte para o Brasil nos alvores do século XIX, no contexto das Invasões Francesas. Curiosamente, a rampa é mandada construir nesta conjuntura de pujança, para ir viver naqueloutra de crise económica social e política. PALAVRAS-CHAVE:
Arqueologia náutica, Lisboa Ribeirinha, alteração de ciclo político-económico, Cordoaria Nacional.
ABSTRACT:
The royal longboats ramp (last quarter of the 18th century) was discovered during the monitoring works for the construction of the Museum of Art, Architecture and Technology in Belém, Lisbon. The wooden structure is a remarkable material and cultural evidence of a transitional time in Portuguese trade before it began its decline around 1799. Built by the Marquis of Pombal and completed in the reign of Dona Maria I, it served as a pier for the connection between the ships anchored on the Tagus River and the Cordoaria Nacional, a cable and rope plant. Key words:
Nautical archeology, Lisbon riverfront, change politico-economic cycle, National Cordoaria.
Ribeira das Naus. Carreira em madeira, com embarcação no topo (gravura de Van Merle, cerca de 1682)
3.19
A rampa dos escaleres
reais da Cordoaria Nacional: primeiros sinais do fim do Império
Mónica Ponce
Arqueóloga monicalvesponce@gmail.com
Marta Lacasta Macedo Alexandre Sarrazola Teresa Alves de Freitas Era-Arqueologia, SA geral@era-arqueologia.pt
1. Lisboa Ribeirinha: o lugar de Belém/Junqueira Desde há muito que as baías das praias fluviais existentes ao longo das margens do Tejo eram usadas como locais de aportagem de embarcações para carga e descarga de pessoas e bens, providas ou não de elementos de acostagem, estruturadas ou não. A zona da Junqueira não é excepção, ela inclui-se entre os areais que integram, na margem direita do rio, uma larga enseada em angra que se abre desde o sítio do Bom Sucesso/Restelo até Alcântara. De facto, o perfil geológico obtido no local à cota da “carreira de estaleiro”, infra mencionada, confirma a existência de uma sequência lito estratigráfica de areias própria de uma dinâmica de praia fluvial/estuarina. O conjunto de alguns elementos edificados ainda presentes na paisagem e na iconografia (caso do Atlas Topográfico de Filipe Folque 1856/1858) e cristalizados
na toponímia documentam a utilização portuária deste local, nomeadamente nos nomes dos arruamentos que convergem para o rio, como a “Travessa das Galeotas”, a “Travessa dos Escaleres” e a “Travessa dos Algarves”. Refira-se que a Praia do Restelo, na proximidade, é conhecida como “lugar de ancoragem antiga” sendo utilizada desde época moderna como porto natural de acostagem (BLOT, 2003). Em 1750 é referida “a importância que tinha para a cidade portuária em crescimento, o estado de ocupação ribeirinha da margem do Tejo compreendida entre Pedrouços e o Cais de Santarém” (BLOT, 2003, p. 242).Uma listagem do século XVIII elenca, entre outros portos existentes nos arredores de Lisboa, o porto fluvial da Junqueira (BLOT, 2003, p. 245). Nos últimos anos os achados arqueológicos registados na faixa ribeirinha de Lisboa têm não só atestado como acrescentado este panorama.
Figura 1 - Vista da frente ribeirinha (painel de azulejos anterior ao terramoto de 1755) que compreende a praia do Restelo e a da Junqueira, com tráfego de embarcações que a elas se dirige, e onde são visíveis (da esquerda para a direita) na linha de costa, entre outros, o Mosteiro dos Jerónimos, a Quinta da Praia, o Forte da Estrela, o Forte de S. João da Junqueira e a Capela de Stº Amaro (In Flickr.com – foto SIMÕES, 1960/70 e SILVA, 1985b: 247-250, figuras II e III).
Uma cidade em escavação
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Mónica Ponce, Marta Lacasta Macedo, Alexandre Sarrazola, Teresa Alves de Freitas
Figura 2 - Detalhe no Atlas Topográfico de Filipe Folque (1856/1858), da zona onde se inserem alguns dos arruamentos e estruturas mencionados, com Frente de Obra assinalada.
No decurso do Acompanhamento Arqueológico realizado pela ERA Arqueologia, no âmbito da construção do Centro de Artes e Tecnologia na proximidade da Central Tejo à Junqueira (nos terrenos a Este deste Edifício), após levantados os aterros existentes sob a antiga Refinaria de Açúcar Sena Sugar States (1907/1911) foi detectado um conjunto de estruturas em madeira, a uma cota média de cerca de 0,30 m/0,70 m. Entre eles, e para além da Rampa dos Escaleres Reais, refira-se (a NO da área alvo de Acompanhamento) o achado de um elemento de planta rectangular, a uma cota média de 0,52 m/0,77 m, com cerca de 39 m2 e de orientação NO/SE, constituído por dois alinhamentos paralelos de tábuas horizontais e alguns perpendiculares, apresentando uma ligeira pendente, tendo sido interpretado como uma “Carreira de Estaleiro”, para varar embarcações. 2. A Rampa dos Escaleres Reais da Cordoaria Nacional Na segunda metade do século XVIII, instala-se na frente fluvial denominada “Junqueira”, o vasto edifício da Real Cordoaria (Cordoaria Nacional) para a indústria nacional de aprestos marítimos, como oficina de cordame, mas também de velas, tecidos e bandeiras (REIS, 1994, p. 309). Criada pelo Marquês de Pombal em Junho de 1771, segundo Norberto Araújo, instalou-se sobre os terrenos contíguos ao Forte de São João, sendo concluída no início do reinado de D. Maria I. Do final do século XVIII até o princípio do século seguinte, e desde que um documento oficial regulou o serviço da cordoaria, pinhais e matas, para o armamento dos navios de guerra, esteve o novo estabelecimento em actividade florescente, entrando entretanto em abrandamento de produção. Para o proteger foi necessário proibir a importação de cordoaria estrangeira, e um seu ins-
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pector, conselheiro Miguel Franzini, conseguiu em cerca de 1820, elevar de novo o nível produtivo da Cordoaria Nacional, em parte incendiada em 1826. Como já foi referido, nos trabalhos de Acompanhamento Arqueológicos no decurso da construção do Centro de Artes e Tecnologia EDP, Belém, foi posto a descoberto o segmento (da extremidade sul-oriental) de uma estrutura em madeira, de planta rectangular, com cerca de 20 m2, de orientação N/S, constituída por três camadas de tábuas de madeira, dispostas de forma alternada, em diferentes sentidos. 3. Registo, levantamento e acondicionamento De forma a não expor em demasia os elementos em madeira que integravam a Rampa dos Escaleres Reais, e de modo a dar celeridade ao processo, optou-se pelo recurso ao registo ortofotográfico de cada nível que a constituía. De igual modo se procedeu ao desmantelamento, camada a camada, manual e individual das peças, que foram retiradas do local por meios mecânicos. Estas foram depositadas nas imediações do sítio, sendo constantemente encharcadas, de forma a controlar os seus níveis de humidade, e envoltas em manga plástica de cor negra para minimizar a exposição solar e a criação de micro-organismos nocivos, até ao transporte para a área de depósito definitivo. No local foi efectuado um registo individual dos barrotes, com o preenchimento de fichas específicas para registo de elementos em madeira, onde foram anotadas dimensões e características das peças, como marcas, entalhes, e processos de ligação, etc. Concluído este processo, foi efectuada a recolha de amostras para dendrocronologia e identificação botânica por parte do Instituto Superior de Agronomia.
A Rampa dos Escaleres Reais da Cordoaria Nacional: primeiros sinais do fim do Império
Figura 3 e Figura 4 – Vista geral da ”Carreira de estaleiro” identificada na primeira fase de Acompanhamento Arqueológico no C.A.T. e Ribeira das Naus gravura de Van Merle, cerca de 1682, onde se encontra representada uma carreira em madeira, com embarcação no topo (In GEO, 2012, Construção Naval em Lisboa: séculos XV a XVII: Ciclo de Conferências).
Figura 5 – Aspecto da ortofotografia do plano de topo da Rampa dos Escaleres Reais da Cordoaria Nacional.
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uma provável assinatura de carpinteiro, estes depositados em reserva, nas instalações da DGPC, para eventual musealização. Estes primeiros elementos documentam a identificação desta estrutura com a Rampa dos Escaleres Reais da Cordoaria Nacional. 6. Espólio Associado Foram recolhidos alguns elementos artefactuais, associados a esta estrutura, como estacas em madeira, solas de couro, cerâmica comum muito rolada (incaracterística), cavilhas em ferro, fragmentos metálicos concrecionados e fibra de coco (usada no fabrico de cabos/cordame). 7. Considerações finais
Figura 6 - Aspecto do sistema de encaixe das camadas de barrotes (malhetes e entalhes).
4. Aspectos técnicos e construtivos da Rampa dos Escaleres Reais A presente intervenção permitiu documentar que os barrotes constituintes desta estrutura, e dispostos em três níveis perpendiculares, se encontravam talhados de modo encaixar entre si, ligando malhetes e entalhes na vertical, fixados por pregaduras em metal. O nível de base da Rampa dos Escaleres foi edificado directamente sobre as areias aluvionares através da deposição de uma camada de barrotes, paralelos entre si, de orientação N/S, imobilizados no solo pela cravagem de estacas verticais de madeira, de secção semi-rectangular. Aos entalhes das tábuas do primeiro nível desta estrutura, sobrepuseram-se os malhetes da segunda camada de barrotes, de orientação E/O, fixados entre si por cavilhas metálicas, e assim sucessivamente até uma quarta camada de tábuas, esta já não observável. Esta estrutura terá sido construída aproveitando a vertente natural N/S da zona de hinterland da praia. A sua função, marcadamente de cariz náutica, terá determinado quer a sua orientação, quer a percentagem de inclinação, quer os materiais utilizados. Corresponde efectivamente ao extremo SO da rampa cartografada por Filipe Folque no Atlas Topográfico de 1856/58. 5. Marcas e Monogramas De referir a recolha de três barrotes com o monograma da Real Cordoaria e de um quarto barrote com
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Assume-se que a Rampa dos Escaleres Reais da Cordoaria Nacional foi erigida no último quartel do século XVIII (finais dos anos setenta desse século) e que estaria operacional ainda em 1856/58, tendo sido coberta quando, no início do século XX (mas anteriormente a 1911), novos aterros redefinem e aumentam a orla costeira entre Xabregas e a Torre de Belém (BÁRTOLO, 2005, p. 46). O Tejo, a partir das suas praias fluviais funcionaria como uma plataforma entre dois tipos de tráfico fluvial: o de grande porte, ancorado ao largo, e o de pequeno porte, ancorado nas praias e servindo o primeiro, a partir de pequenas embarcações como as galeotas e os escaleres. A “Rampa dos Escaleres Reais” enquadra - se neste cenário. Tomando partido da morfologia da praia da Junqueira, que se insere numa angra natural, como já foi referido, oferecendo condições óptimas de acostagem, existiria um afluxo embarcações de menores dimensões, que neste caso, prestavam apoio logístico à Cordoaria Nacional, à semelhança de um limen, isto é, “(...) ambientes proporcionados pela situação geográfica de bom abrigo onde se torna possível ancorar, atracar e contactar demoradamente a terra (...)” (BLOT, 2003, p. 57). Resta dizer que a rampa dos escaleres reais (último quartel do século XVIII) constitui uma notável evidência material/arquitectónica de um tempo de transição entre o equilíbrio da balança comercial portuguesa e o seu paulatino declínio a partir de 1799 até aos dias de hoje. A armada portuguesa constituída por cerca de sete dezenas de navios vai zarpar de Lisboa e morrer na costa brasileira aquando da transferência da Corte para o Brasil nos alvores do século XIX, no contexto das Invasões Francesas. A rampa é mandada construir nesta conjuntura de pujança, para ir viver naqueloutra de crise económica social e política.
A Rampa dos Escaleres Reais da Cordoaria Nacional: primeiros sinais do fim do Império
Figura 7 – Marca presente na fachada de um dos torreões do edifício da Cordoaria Nacional, que se repete num barrote da estrutura da Rampa.
Figura 8 - Gravura de H. L’Eveque (século XVIII) que ilustra o movimento de gentes, embarcações e cargas na Praia da Junqueira, tendo como pano de fundo, muito provavelmente o Forte de S. João da Junqueira (In aps-ruasdelisboacomhistr.blogspot.pt).
Bibliografia ARAÚJO, N. (1992): Peregrinações em Lisboa, Livro IX, Lisboa: Ed. Vega, 2ª ed. BÁRTOLO, C. (2005): Breve história deste sítio entre o sólido, o líquido e o gasoso. In MONTEIRO, P.C. (dir.), Arlíquido: Revista de Design da Universidade Lusíada de Lisboa. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, pp. 31- 53. BLOT, M. L. (2003): Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a arqueologia das cidades marítimas e flúvio-marítimas em Portugal, (Trabalhos de Arqueologia 28), Lisboa: Instituto Português de Arqueologia.
MACEDO, M. L.; FREITAS T. A. (2014): CAT EDP Belém, Estruturas de madeira, Relatório Final de Trabalhos Arqueológicos, Lisboa: ERA Arqueologia S.A., (policopiado). PONCE, M.; SARRAZOLA, A.; FREITAS, T. A. (2014): CAT EDP Belém, Rampa da Cordoaria Nacional, Relatório Final de Trabalhos Arqueológicos, Lisboa: ERA Arqueologia S.A. (policopiado). REIS, A. E. (1994): Cordoaria (Fabrica Nacional da), In SANTANA, F,; SUCENA, E. (dir.), Dicionário da História de Lisboa. Lisboa, Carlos Quintas e associados – Consultores, Lda. p. 309.
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Lista de abreviaturas
AAP: Associação dos Arqueólogos Portugueses ACC: Associação Cultural de Cascais ANBA: Academia Nacional de Belas Artes APH: Academia Portuguesa de História CAL: Centro de Arqueologia de Lisboa CAM: Campo Arqueológico de Mértola CEAACP: Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património CEACO: Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras CHAM: Centro de História d’Aquém e d’Além Mar CML: Câmara Municipal de Lisboa CMO: Câmara Municipal de Oeiras DH: Departamento de História DPIMI: Divisão de Património Imóvel, Móvel e Imaterial DABA: Department of Archaeology and BioArchaeology DGPC: Direcção-Geral de Património Cultural FCSH: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas FLUC: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra FLUL: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa FGHUS: Faculdade de Geografia e História da Universidade de Salamanca IAP: Instituto de Arqueologia e Paleociências IHC: Instituto de História Contemporânea ISCSP: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas ML-MTR: Museu de Lisboa – Museu do Teatro Romano OF: Olisipo Forum – Associação de Desenvolvimento e Educação Intergeracional UAc: Universidade dos Açores UCT: Unidade de Coordenação Territorial UIT-CH: Unidade de Intervenção Territorial – Centro Histórico UNL: Universidade Nova de Lisboa US: University of Sheffield UY: University of York
Arqueologia de Lisboa
Autores
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Participantes A
Afonso Garradas Leão / afonsoleao@hotmail.com Ana Beatriz Lavres dos Reis / anabeatrizreis@gmail.com Ana Beatriz Pereira Amaral dos Santos Ana Catarina Alves Andrade Santos / anacat.santos@hotmail.com Ana Catarina Salgado Basílio / anacatarinabasilio@campus.ul.pt Ana Cristina Oliveira / ana.ccfboliveira@gmail.com Ana Cristina Soares Turrion Leite / cristina.leite@cm-lisboa.pt Ana Filipa de Brito Soares Costa Oliveira / afilipabrito@gmail.com Ana Isabel Antunes Barradas / ana_isabel.ab@hotmail.com Ana Margarida Nogueira Moço / anamargarida94@hotmail.com Ana Maria Brandão Esmeraldo Ana Paula da Silva Nunes Henriques Ana Paula Fernandes Correia Delgado / paula.f.delgado@cm-lisboa.pt Ana Paula Jerónimo Antunes / ana.paula.antunes@cm-lisboa.pt Ana Penisga / anasantospenisga@gmail.com Ana Pereira do Vale / anavvale@gmail.com Ana Raquel Mendes da Silva / raquel.silva.a@gmail.com Ana Sofia Gomes / agomes@dgpc.pt Ana Sofia Ribeiro Abrantes / ana.sofiabrantes@gmail.com Ana Sofia Simões Pereira / sofia.simoes03.97@gmail.com Ana Sofia Tamissa Ganhão Antunes / ana.sofia.antunes@cm-lisboa.pt Ana Teresa Matias da Silva Fizeire Henriques / anathenriques@hotmail.com Anabela Costa Caetano / anabela.caetano@cm-lisboa.pt Anabela Martins Ferreira da Silva Valente Pires / anabela.valente@cm-lisboa.pt André Bargão / andrebargao@gmail.com André Filipe Costa Gadanho / andre-gadanho@hotmail.com Andre Rocha Salvado Tudela Laranjeira / andre.t.laranjeira@gmail.com André Texugo Lopes / andrelopes@campus.ul.pt Andrea Cristina Rodrigues Martins / andrea.arte@gmail.com Andreia Filipa Moreira Rodrigues / andreia93rodrigues@hotmail.com António Ribeiro Telles Costa / antoniortcosta@hotmail.com Armando Melo de Lucena / murcielago46@gmail.com B
Barros Cristóvão António / bantonio@dgpc.pt Beatriz Correia Vicente Barata / beatriz.correia@outlook.com Beatriz Isabel Calapez dos Santos / beatrizcalapez@hotmail.com Bruno Alexandre Ferreira / brunoferreiralexandre@gmail.com Bruno Filipe Correia Bastardo Silva Ribeiro / bbribeiro1@gmail.com C
Carlos Manuel Brogueira Cabral Loureiro / cabral.loureiro@cm-lisboa.pt Carlos Miguel Oliveira Fernandes / carlos.fernandes@cm-lisboa.pt Carlos Paulo Azevedo Cuiça / paulo.cuica@cm-lisboa.pt Carlos Santos / cnj.santos@hotmail.com Carlos Vitor Didelet Durão Vasques / carlos.vasques@cm-lisboa.pt Catarina Alves / catarina4alves@gmail.com Catarina Anselmo Santana Simões / catarina.santana.simoes@hotmail.com Catarina da Conceição Vieira Santos Martins / catarina.martins@cm-lisboa.pt Catarina de Melo Carvalho e Silva / catarina_melo13@live.com.pt Catarina Isabel Sousa Gaspar / catarina.gaspar@gmail.com
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Arqueologia de Lisboa
Catarina Maria Felício Catarina Teixeira / cteixeira@museus.ulisboa.pt Cecília Inês Fagulha Pacheco Cézer Santos / cezer.santos@gmail.com Cíntia Maurício Clarisse Maria Gonçalves Simão Nunes / clarisse.nunes@lneg.pt Cleia Detry / cdetry@gmail.com Cristina Alexandra Coelho de Figueiredo / alexandra.figueiredo@cm-lisboa.pt Cristina Maria Gameiro Goncalves / gameiro.cristina@gmail.com Cristina Maria Pereira Gomes / cristgomes@gmail.com D
Daniel González Coelho / daniel_ariotos@hotmail.es Delminda Maria Miguens Rijo / delminda.rijo@cm-lisboa.pt Edmundo Afonso Rijo E
Eva Maria Folgado Leitão / eva.leitao@cm-lisboa.pt F
Fábio Rúbem Morgado Rodrigues Martinho / bfk1980@gmail.com Filipa Jorge de Sousa Mascarenhas Neto / fneto@dgpc.pt Filipa Bragança / fbraganca@dgpc.pt Filipe Santos Martins / pulsar_da_historia@hotmail.com Filipe Teodoro Albuquerque de Sousa Francisco João São Pedro Oliveira / f.j.oliveira@hotmail.com G
Gisela de Carvalho Encarnação / gisela.encarnacao@cm-amadora.pt Gonçalo Moreira Teixeira da Silva Jacinto / goncalojacinto@hotmail.com Gonçalo Morgado Ferreira / gmorgadof@gmail.com Guilherme Filipe Venâncio Dias / guilhermevenanciodias@gmail.com H
Helena Sofia Teixeira de Andrade / helena.andrade@cm-lisboa.pt Henrique Calé Mendes / henriquecale@sapo.pt Henrique José Gonçalves Carvalho / henrique.carvalho@cm-lisboa.pt Hugo Miguel Mourão Ferreira Núncio / hnuncio10@hotmail.com I
Ilda Maria Martins de Sousa Crugeira Farraia Alves / ilda.alves@cm-lisboa.pt Inês Baptista Carmo / ic2@campus.ul.pt Inês Catarina Domingos da Silva / inescatarina6@hotmail.com Inês Gata Monteiro Grilo / inesgatagrilo@hotmail.com Inês Morão Correia Matoso Ferreira / ines.matoso@cm-lisboa.pt Inês Pina Henriques / ineshenriques95@gmail.com Inês Sofia Gomes Figueira / ines.sofia.figueira@gmail.com Iola Margarida Brito Filipe / iolafilipe@gmail.com Iris da Costa Dias / iris.fcdias@gmail.com Isabel Maria Lopes Ribeiro da Cruz / isabelmlrcruz@sapo.pt Isménia de Oliveira Lopes da Silva Neves / ismenia.neves@cm-lisboa.pt J
Jéssica Alexandra Pinto Roque / jessicapintoroque@hotmail.com Joana Carolina Cardoso Nunes / joana.crds1@gmail.com Joana Cristina Raminhos dos Santos / joana.bfmv@gmail.com Joana Guilherme / joana44225@gmail.com
Uma cidade em escavação
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I Encontro
João António Ferreira Marques / jmarques64@gmail.com João Luís Álvares Veloso / joaoluisveloso@gmail.com João Pedro Galvão Diogo / jpgalvao.arq@gmail.com João Pedro Oliveira Silva João Pimenta / pimentamarques@lol.pt João Rafael Correia de Almeida Nunes / jrn1900@gmail.com José António Severino Rodrigues / severino.rodrigues@cm-cascais.pt José Carlos de Oliveira Carvalho / jose.o.carvalho@cm-lisboa.pt José Diogo Semanas Fidalgo Proença / josediogoproenca@hotmail.com José Guilherme Torgal de Castro Azevedo / jose.guilherme@cm-lisboa.pt José Pedro Vintém Henriques / jpedro.henriques@gmail.com Júlia Maria Duarte Leite de Almeida / julia.almeida@cm-lisboa.pt L
Liliana Felismino Teles Lucilia Maria Almeida Martins Guerra / lucilia.guerra@cm-lisboa.pt Luis Alberto das Neves Ribeiro / luis.ribeiro@cm-lisboa.pt Luis Alexandre Viera D`Avó Varanda / luis.varanda@campus.ul.pt Luis Branco Santiago / luisbsantiago@hotmail.com Luis Miguel Pignatelli Carvalho P. Ruivo / luis.ruivo@cm-lisboa.pt Luis Paulo Marques Gomes / lp_04@hotmail.com M
Manuel Fialho Silva / manuel.fialho@cm-lisboa.pt Manuela Ana de Oliveira Branco Synek / manuela.synek@cm-lisboa.pt Manuela da Conceicão Mesquita Leitão / manuela.lima@cm-lisboa.pt Margarida Moreira de Carvalho / maggie.carvalho@sapo.pt Maria Alexandra Pimenta Roque Estorninho / maestorninho@gmail.com Maria Bárbara M. Macedo Faria Silva Maria Clara Ramos Ferreira / clara.ferreira@cm-lisboa.pt Maria da Conceição Rodrigues / conceicaorodrigues@clix.pt Maria da Cruz Afonso Fernandes Maria de Fátima Fernandes Zegre Custodio / fatima.custodio@cm-lisboa.pt Maria Delfina Rubina Inocêncio Martinho / delfina.martinho@cm-lisboa.pt Maria do Rosário Pereira Dantas Alves / rosario.dantas@cm-lisboa.pt Maria Fátima Ferreira Alcobia / fatima.alcobia@cm-lisboa.pt Maria Jesus Montero Alvarez Ferreira Bastos / mjmabastos@gmail.com Maria Joana Pacheco Lameiras de Figueiredo Maria João Lopes Sequeira Marcelino / maria.joao.marcelino@cm-lisboa.pt Maria João Silva Araújo Ferreira de Sousa / maria.sousa@parquesdesintra.pt Maria Leonor Figueira Santos Maria Manuela Alves Dias V. Coelho / manuelalvesdias@gmail.com Maria Margarida Dias Costa Ribeiro Silva / maria.ribeiro.silva@cm-lisboa.pt Mariana Brito Almeida / mariana.brit.almeida@gmail.com Mariana Jerónimo Loureiro / jl.mariana@gmail.com Mariana Nunes Ferreira / mariananunesferreira@hotmail.com Marta Alexandra Nunes Abreu / martaabreu20@gmail.com Marta Capote / martacapote.pt@gmail.com Miguel Ingham Barros da Silveira / miguel.ingham@gmail.com Miguel Lago / miguellago@era-arqueologia.pt Moisés Lurdito Antonio F. da Costa Campos / moises.campos@cm-lisboa.pt N
Natalina Guerreiro / natalina48@gmail.com Nuno Costa Russo / arqueologia@russoarquitetos.com Nuno Gonçalo do Carmo Ferreira Fernandes / nuno_fernandes00@hotmail.com Nuno Manuel Costa Jorge Campos / nuno.campos@cm-lisboa.pt Nuno Miguel Amaral de Paula Nuno Miguel Silva Natal da Luz / nuno.luz@cm-lisboa.pt
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Arqueologia de Lisboa
P
Patrícia Amador Poeira dos Santos Jordão / pjordao73@gmail.com Patrícia de Jesus Crespim Botas Videira da Mata / patricia.mata@cm-lisboa. pt Paula Cristina Martins Santos Torres Silva / paula.cristina.silva@cm-lisboa.pt Pedro Alexandre da Cruz Oliveira Neves de Oliveira / pedrodeoliveira.pt@ gmail.com Pedro Alexandre dos Santos Beirão / pedrobeirao@campus.ul.pt Pedro Emanuel Angeja Abade / pedro.a24@hotmail.com Pedro Ferreira Nobre de Sousa e Costa / pedrofnscosta@gmail.com Pedro Nunes Martins Mendes / petrusmendes@gmail.com R
Rafael de Oliveira Monteiro de Sousa / rafa_sousa_17@hotmail.com Rafael Lima e Silva Raquel Guimarães / raquel-alexa@live.com Raquel Sofia Pereira da Cunha / rachcunha_@hotmail.com Regina Isabel Pereira Gonçalves / gina-isabel@hotmail.com Ricardo Ávila Ribeiro Ricardo Emanuel de Oliveira Russo / ricardorusso9052@hotmail.com Rita das Neves Silva / rita_nevesilva@hotmail.com Rui Manuel da Silva Matos / rui.matos@cm-lisboa.pt Rui Manuel Gusmão Monge Soares / ruigusmao@hotmail.com S
Sandra Maria Goncalves da Costa / sandra.costa@cm-lisboa.pt Sérgio Alexandre Duarte Faria / sergioadfaria@outlook.com Sérgio Manuel Peleja Rosa / sergio_rosa2000@yahoo.com.br Sílvia Ferreira / silvia.a.s.ferreira@gmail.com Sofia Maria dos Santos Tempero / sofia.tempero@cm-lisboa.pt Susana Estrela / estrela.susana@gmail.com Susana Nunes Duarte / susananunesduarte@yahoo.com Susana Raquel de Paula Silva Pombal / susana.pombal@cm-cascais.pt T
Tânia Helena Silveiro Costa Telma Filipa Santos Tavares / telmatavares1997@gmail.com Telmo Filipe Alves António / tantonio@cma.m-almada-pt Teresa Cristina Pereira Duarte / teresa.duarte@cm-lisboa.pt V
Vanessa Filipa Sitima Dias / vsitimadias@gmail.com Vasco Alexandre Correia Noronha Vieira / vav@sapo.pt Vasco Leitão dos Santos / vasco.leitao@cm-lisboa.pt Verónica Raquel Ferreira Mateus Pereira
Uma cidade em escavação
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A cidade [de Lisboa] vive atualmente um extraordinário
momento de renovação que dá diariamente origem às dezenas de trabalhos em curso. Em 2014, foi registado o valor mais elevado de autorizações para trabalhos arqueológicos desde a constituição do Plano Diretor Municipal, em 1994: 245 pedidos. Toda esta dinâmica traduz-se, natural e desejavelmente, num acentuado acréscimo de informações acerca do espaço geográfico que a cidade ocupa, acompanhado por um cada vez maior número de vestígios materiais, estruturais e artefactuais, que vão enriquecendo o conhecimento e o património de Lisboa. A aceleração da atividade arqueológica que testemunhamos em Lisboa, acompanhada e apoiada de perto pelo CAL – Centro de Arqueologia de Lisboa, tal como a entusiasmante, e quase diária, descoberta de novas informações, de novos espólios e de outros vestígios do passado, constitui um permanente desafio para as entidades, para os cidadãos e em particular para os diferentes agentes profissionais, arqueólogos, urbanistas, arquitetos, entre outros. Torna-se, por isso, cada vez mais importante e necessária a criação de espaços como este Encontro de Arqueologia de Lisboa, entendido como meio de divulgação, debate e de partilha deste notável conhecimento adquirido sobre a cidade.