Reportagem - Maria Clara Moreira

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O LADO

OCULTO

DO CISNE Por Maria Clara Moreira

O

s cinéfilos de plantão possuem motivos de sobra para comemorar em 2011: verdade seja dita, esta nova safra de filmes na temporada do Oscar é bem superior aos títulos oferecidos em 2010. Inverno da alma, Reencontrando a Felicidade, Blue Valetine, O Vencedor e A Origem são algumas das produções que nos servem como exemplificação. Cisne Negro, de DarrenAronofsky também não poderia ficar de fora. Talvez seja o melhor no que tange os prêmios de Melhor atriz principal e diretor, além do roteiro (que infelizmente não foi indicado). O diretor, que já havia nos impressionado anteriormente com os delirantes Réquiem para um sonho e O Lutador adentra na seara dos filmes de suspense psicológico e consegue sair ileso, rendendo as melhores críticas especializadas possíveis. Em Cisne Negro, Natalie Portman é Nina. Dedicada e bastante atenta a sua técnica, Nina leva a sua profissão de forma bastante cautelosa. Disposta a dar tudo pela carreira, se vê imersa numa rede de intrigas e tormentos quando é cogitada para interpretar um papel duplo na montagem contemporânea do clássico russo O lago dos Cisnes, de Tchaikovsky. Seu mentor, o professor Thomas Leroy(VincenteCassel, em excelente performance) exige que a bailarina selecionada interprete os dois papéis. Nina, obcecada em conseguir

destaque e a aprovação do seu mestre, inicia uma jornada árdua consigo mesma, buscando dentro de si o seu lado sensual e tórrido, tentando provar a todos, inclusive a si mesma, a sua capacidade de segurar com firmeza a tarefa concedida. Outros problemas acometem a personagem: a chegada da bailarina Lily (a sensual e competente Mila Kunnis), esbanjando espontaneidade e competência. Lily se torna a rivalde Nina na companhia de dança, que enfrenta ainda um outro problema nesta sua fase de busca pela transcendência: sua mãe, Erica (interpretada com maestria por Barbara Herhey), com tratamento ainda infantil em relação a sua filha, sufocando-a com a falta de privacidade diária. Erica também representa o lado adulto da situação, em contraste com a filha ainda tratada como uma criança. Essa jogada do roteiro fica bem clara na concepção do quarto e figurino de Nina, mantendo uma espécie de relação de oposição com a sua mãe, sempre usando preto. Nina é tão protegida pela mãe que nunca conseguiu desenvolver uma vida adulta própria. Nina se consome por dentro diariamente, sustentando o aspecto externo para que ninguém perceba que não anda bem. As marcas que surgem vez ou outra em seu corpo assustam a sua mãe, que começa a perceber algo de estranho na vida da filha após a sua busca pelo papel na adaptação de O

Lago dos Cisnes. Outro aspecto importante é a tatuagem nas costas da personagem Lily: asas de uma ave negra. Se a presença de Lily e da sua mãe são grandes problemas, o que dizer da substituição de Beth Macintyre (interpretada por Winona Ryder, em performance acima da média). Aposentada a força por Thomas Leroy, Beth entra num colapso, servindo como uma espécie de espelho do futuro dentro deste mundo de cobiça e inveja, afinal, muitas bailarinas estão dispostas a se tornarem autodestrutivas em prol do status de protagonista de um show deste quilate. No rol de todos estes problemas está a busca da dualidade latente entre inocência e graça do Cisne branco, em troca da busca pela perfídia e sensualidade do Cisne negro. Desta maneira, a trama de Cisne Negro gira em torno da busca de Nina pela libertação, uma espécie de redenção alcançada apenas no final do filme, proporcionando ao espectador uma catarse de primeira linha. Natalie Portman prova que é uma das melhores atrizes da sua geração, portanto, não podemos remeter o mérito do filme apenas à sua estonteante performance. Talvez pelo fato de ter tido acesso a dança durante boa parte da sua vida, Natalie consegue se entregar com mais veemência ao papel. Curioso também é o fato da atriz ter cursado Psicologia em Havard, o que já ajuda bastante do entendimento sobre os aspectos


Heinz, Mark Heyman e John Mclaughlinhá 10 anos, o diretor DarrenAronofsky se reuniu com os mesmos e decidiu colocar algumas das suas ideias, complementando o material original já qualificado, acrescentando mais emoção e algumas peculiaridades, principalmente pelo fato de ter tido uma irmã dançarina. Resumindo, assistiu de perto todos os aspectos relacionados à dedicação e cobranças em torno do treinamento e da preparação dos profissionais desta área. O Lutador, vencedor do Oscar de melhor ator na última edição do Oscar. Desta vez, DarrenAronofsky consegue alcançar o Natalie Portman em cena de O Cisne Negro. No espelho, os dois lados de Nina. outro polo da abordagem antede construção de um person- de assassinos em série ou casas rior: se em O Lutador a trama agemtão complexo. Cisne Ne- mal-assombradas. O obscuro foca o mundo das lutas, forma gro é um delírio no que tange a da vez é situado na psique da de arte considerada baixa, em direção, o design de som e prat- personagem principal, propor- Cisne Negro, apresenta com icamente todo o elenco coadju- cionando ao público uma tra- detalhes e clareza o mundo do vante. ma interessante realizada por balé, arte considerada como erA cena de sexo entre Natalie profissionais que sabem muito udita, de alto nível. Portman e Mila Kunnis com- bem o que estão fazendo. Com Se a atuação de Natalie Portpleta tensão da trama mas é ap- roteiro concebido por Andrés man e a direção de DarrenAroenas a ponta do iceberg de um filme que tem muito a oferecer. Darren Arofonsky cria belas imagens para os espectadores cansados da dieta dos arrasaquarteirões e produções baseadas em best-sellers de segunda categoria como Crepúsculo e coisas do tipo. O diretor constrói a obra como quem rege uma sinfonia, alternando silêncios e arroubos performáticos. Desta maneira, a história ganha uma dimensão especial que nenhum efeito especial supera.

Cisne Negro se mostra um suspense psicológico de luxo. Nada

O ator Vincent Cassel, que interpreta Thomas, dirigindo as bailarinas.

nofsky são grandes destaques do filme, o que dizer da música de Clint Monsell (que já havia trabalhado com o diretor no pouco conhecido Fonte da Vida)? E o design de som? Vale ressaltar que alguns aspectos peculiares deste setor de produção do filme são fundamentais para o

Darren trabalha com os atores é outro aspecto a parte, mostrando bastante competência do diretor na arte de gerir pessoas. Então Thomas dá lição de casa a Nina: “tocar a si mesma”. Pronto para fazer de tudo para se tornar a melhor dançarina, Nina tenta se masturbar, mas a

devido a abusos de seus pais, são entregues para “instâncias superiores”, que continuam o processo de programação. Nina é entregue ao mundo do entretenimento (conhecido por usar programação monarca em celebridades) para criar em sua personalidade um alter-ego des-

impacto do público em relação ao que é visto na tela, seja nos risos de escárnio escutados pela protagonista ou na sensação estranha de batidas de asas vez ou outra durante as cenas mais excitantes de Cisne Negro. O filme busca realismo em todos os seus aspectos: seja na proximidade da câmera nos números de dança ou no balanço da câmera em diversos bons momentos. A forma como

mãe faz um bloqueio. Visto que o Cisne Negro cresce em poder, Nina começa a alucinar mutações físicas no seu corpo. Ela está consciente da transformação gradual de Nina e tenta reprimi-la, sabendo que causará a perda de sua “menininha”. Essa situação reflete a verdade nua e crua por trás da vida real do abuso ritualístico. As crianças, que já estão dissociadas

tinado a ser uma estrela. Na estreia do show, Nina dá uma performance estelar. Ela joga fora a doce e tímida Cisne Branco, e, quando chegou a hora, ela foi superada pela “força” para se tornar a perturbada, mas emocionante, Cisne Negro. Ao casar-se com o branco e o preto, o bem e o mal, a luz e a escuridão, Nina realizou a Grande Obra alquímica, o caminho para a iluminação oculta.


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