Escrítica Pop

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Terça-feira 3 Março 2015

escrítica pop

Nº 1

Reedição da obra de Miguel Esteves Cardoso

OUVIR, ESCREVER, VESTIR E FAZER

CRÍTICA POP: NEM CRÍTICA NEM POP

Tudo isto levou, em Portugal, a um ponto de absurdo empolamento da música Pop. Há música Pop a mais nas telefonias, música Pop a mais na televisão, música Pop a mais nos jornais, música Pop a mais nos recintos de recreação, música Pop

a mais no pequeno espaço cultural português. E estão a fazer à música Pop o pior que alguma vez lhe podiam fazer: estão a levá-la a sério, a ler-lhe, no encanto instantâneo, laivos terroristas de eternidade, e a analisá-la até à agonia. p.3

O LIVRO NEGRO DA MÚSICA POP: OS PIORES DE ‘70 COMO SER UM CRÍTICO DE ROCK UM GUIA PRÁTICO UM ROCK-TESTE CIENTÍFICO:

GUIA DA FAUNA MUSICAL LUSITANA

As obras intensamente horríveis elevam o meu gosto ao nível de uma arte e merecem uma certa consideração. Uma canção entranhadamente má é sempre preferível a uma canção simplesmente media-

espécimes da fauna musical lusitana, podemos hoje oferecer-vos, leitor, mais uns valiosos subsídios para o Guia de Identificação. p.14

Com o honroso e abnegado intuito de fomentar o aparecimento de novos valores na crítica da música rock, pediu-me o Chefe da Redacção que alinhasse alguns bons conselhos dirigidos à mocidade potencialmente crítica e descrevesse prudentemente em que consiste a profissão citada. Sendo o modesto autor destas linhas a maior su-

midade neste campo, autoriza-se assim o leitor a tomar à letra todas as indicações aqui fornecidas, cumprindo-as rigorosamente, sob pena de fracassar aviltantemente nas suas ambições. A plebe tem por hábito pensar que a primeira coisa a fazer na crítica de uma disco é ouvi-lo. Nada podia estar mais longe da verdade. p.4

na ou menos má. Porque provoca, tal como fará uma canção excelente, uma reacção –um súbito desejo de emigrar, uma vontade repentina de vomitar ou de atirar um objecto pesado na direcção dela. p.8

QUE ESPÉCIE DE ESPÉCIE FAZ VOCÊ? O prof. Karinha aperfeiçoou um teste que permite, sem margem de erro estatisticamente saudável, determinar o fundo do melómano. É preciso uma certa coragem da

Saudações da Milícia de Pesquisa Musical. Depois de ter passado o País a pente de pulgas à procura dos mais belos e representativos

parte do leitor, pois que os resultados podem abalar os preconceitos, destruir a imagem que tem de si próprio, reduzi-lo a um patético traste rondando as ruas... p.18



ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1  3

CRÍTICA POP: NEM CRÍTICA NEM POP

A música Pop é apenas música Pop

E para aclarar o ar, e desocupar o espaço, algumas palavras pensadas acerca do que impensadamente eu e outros fazemos, ao escrever recados destes, com este tamanho e esta regularidade, sobre a música Pop. De pantufas, para abrir o debate, sugiro que a crítica Pop é um exercício parasitário, trivial, inteiramente subjectivo, narcisista, volúvel, incoerente e efémero. Ou antes: é esse o máximo que a crítica Pop pode, e deve, se for bem feita, aspirar. E não que isto dizer que apoie os músicos portugueses Pop, que não se cansam de chorar a crítica Pop que temos, empapando jornais e revistas com ácidas lágrimas de não serem reconhecidos como os génios fabricantes de obras-primas que obstinadamente crêem ser. Pelo contrário: também eles, na sua maior e mais comovente parte, não possuem a noção grandiosa da sua própria trivialidade. Sabem que devem ser “cultura”, mas não sabem que a cultura devem ser. Tudo isto levou, em Portugal, a um ponto de absurdo empolamento da música Pop. Há música Pop a mais nas telefonias, música Pop

a mais na televisão, música Pop a mais nos jornais, música Pop a mais nos recintos de recreação, música Pop a mais no pequeno espaço cultural português. E estão a fazer à música Pop o pior que alguma vez lhe podiam fazer: estão a levá-la a sério, a ler-lhe, no encanto instantâneo, laivos terroristas de eternidade, e a analisá-la até à agonia. Estão a roubar-lhe o seu pequeno mas delicioso prazer: a sua futilidade cintilante, a sua natureza descartável – estão a amplificar a sua importância até rebentar o balãozinho que é o Pop. A crítica Pop jornalística (como esta) deveria espelhar essa pequenez: ser divertida, traiçoeira, bombástica, incoerente e fingidora, viver o seu escasso segundo de vida, embriagada nos alcoóis gasosos da sua suprema, e apetecível, irresponsabilidade. O inverso, a seriedade, não se justifica, senão nos pouquíssimos casos onde excepcionalmente alguma contribuição mais duradoura se fez (e se dissermos que, nos últimos cinco anos, só houve duas – os Talking Heads e os Joy Division –, a proporção ficará bem definida). São apenas discos – e não há

estão a levá-la [à música Pop] a sério, a ler-lhe, no encanto instantâneo, laivos terroristas de eternidade, e analisá-la até à agonia. melhor encarnação do Pop do que o single – e é apenas música Pop, e os músicos Pop são apenas músicos Pop. Daqui a seis meses nada restará. Nada restará senão outros discos, outra música, outros músicos... Pop! Já se deveria saber que, quando se diz, na crítica Pop, que determinado disco é “indispensável”, o prazo de validade dessa “indispensabilidade” raramente chega ao fim do mês. O Pop tem uma memória curta, uma esperança gigantesca e uma capacidade inusitada para o exagero: a crítica deveria reflecti-la, deveria ter a

coragem e o desplante de acompanhar-lhe as modas. Não deveria ser aquilo que, em Portugal, inglória e maioritariamente tenta ser: doutoral, pedagógica, tecnicista, informada, séria, isenta, objectiva, desprendida. Sobretudo não deveria ser aquilo que os músicos portugueses desejam que ela seja. A crítica é sempre uma criação menor e, sendo a música Pop uma arte popular das menos importantes, a crítica deveria ser, ela também, ínfima. Nem criada de servir dos músicos ou das editoras, nem tão pouco sua professora de religião e moral. Em Pop uma opinião vale tanto como outra. O mais que se pode pedir é que esteja bem expressa, e se divirta um pouco, exaspere um pouco, estimule um pouco quem a lê e – porque não confessá-lo – quem a escreve. Custa a admitir a banalidade do trabalho do crítico – acaba por ser humano tentar valorizar o nosso esforço, mas isso não quer dizer que não comece por ser errado. Só reduzidos à nossa insignificância absoluta poderemos alcançar a nossa significância relativa. É poucachinho? É o que há... O Jornal, 2-4-82


4  ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1

COMO SER UM CRÍTICO DE ROCK UM GUIA PRÁTICO Ao Jorge Fallorca Alguma coisa se aprende, afinal, com o exercício da crítica Pop em Portugal — isto embora nada tenha a ver com crítica, nem Pop, e muito a ver com Portugal.

Com o honroso e abnegado intuito de fomentar o aparecimento de novos valores na crítica da música rock (e, logicamente, o desaparecimento dos velhos) pediu-me o Chefe da Redacção que alinhasse alguns bons conselhos dirigidos à mocidade potencialmente crítica e descrevesse prudentemente em que consiste a profissão citada. Sendo o modesto autor destas linhas a maior sumidade neste campo desde a morte de Nero, autoriza-se assim o leitor a tomar à letra todas as indicações aqui fornecidas, cumprindo-as rigorosamente, sob pena de fracassar aviltantemente nas suas ambições.

Primeiro bom conselho: Como criticar um disco A plebe tem por hábito pensar que a primeira coisa a fazer na crítica de uma disco é ouvi-lo. Nada podia estar mais longe da verdade. De facto, ouvir o disco que se pretende criticar quase sempre dificulta a tarefa entre mãos, pelo que deve ser deixado aos veteranos. E porquê? Em primeiro lugar, 89,6 por cento de todos os discos editados no mundo, isto segundo um apurado estudo levado a cabo pela Norma (Shearer), são inteiramente hediondos e, como a palavra aponta com toda a correcção e justiça, não têm ponta por onde se lhes pegue, nem pegar neles traz a mínima ponta. A crítica a discos inteiramente hediondos é difícil dada a absoluta falta de adjectivos qualitativos que sirvam de instrumentos de redacção. “Execrável”, “hediondo”, “péssimo”, “merdoso”, “sinistro”

e “medonho” são as palavras geralmente utilizadas, mas de tanto serem repetidas perderam toda a força.

Instrumentos Críticos do Bota-Abaixo Se persistir, aqui vão algumas sugestões seguidas de ilustrações exemplificativas de conhecimento geral: Ávol: Excelente adjectivo, adaptando-se perfeitamente às características dum single do Barry Manilow; Vicioso: Ideal para os discos dum artista renitente e aviltosa e repetitivamente reles (estarão todos a pensar, naturalmente, no Fausto Papetti); Desabrido: Destina-se exclusivamente a caracterizar as obras de músicos que exibem insolentemente as suas trágicas limitações, como se fossem qualidades; Imprestável, infausto, indecoroso, inútil, improbo: Estas cinco palavras terão levado os leitores a pensar, automaticamente, nos Whitesnake, mas a sua utilidade é mais extensiva; Iníquo: Guarde este para os terrores, e junte-lhe, quando for caso para isso (ex. Marco Paulo), estas preciosidades: obnóxio, protervo, rixoso e pérfido; Macareno, malino, marfuz e molesto: Estes adjectivos foram expressamente introduzidos no vocabulário português para lidar com os registos de Neil Diamond e de Engelbert Humperdinck; reprima-se portanto a utilizá-los em casos de menor gravidade; Metuendo, insano, diro e daninho: Aplicam-se com exactidão àqueles detritos apavorantes que,

coitadinhos, surgem com a mais comovente das modéstias lutando pateticamente por um lugar ao sol, mas baixando, com uma só cantilena, o nível cultural da nação a que pertencem. E, se reflectirem um pouco, verão que existem outras aplicações fora o caso óbvio de Júlio Iglésias.

Instrumentos Críticos do Bota-Acima Nunca é demais recomendar, contudo, que os iniciados e aspirantes se cinjam estritamente à prática louvaminheira, que é muito mais fácil. Há, porém, grandes confusões no uso dos superlativos que convém, desde já, clarificar. Há duas coisas que nunca deveria escrever: a primeira é “a não perder” e a segunda é “indispensável”. Sabe-se que “indispensável” quer dizer algo sem o qual não se pode absolutamente passar e, à parte a excepção que constitui Songs of Love and Hate, de Leonard Cohen, não há disco algum que corresponda a essa exigência. É logo evidente que todos os discos Rock são dispensáveis, uns mais que outros. Outra palavra excessivamente abusada é “excelente”. Atendendo à etimologia, significa algo que é superior, no seu género, a tudo o resto. Não quer dizer “porreiro”. Não quer dizer “até se ouve bem, o raio do disco”. Evite-a sempre que a tentação for avassaladora, reservando-a justamente para gravações discográficas de um destes quatro conjuntos: os Velvet Underground, os Doors, os Talking Heads ou os Joy Division. Caso lhe apareça à frente o Songs of Love and Hate, recorra então, sem peias, ao seguinte superlativo, único nas línguas românicas, mas que não pode ser usado em qualquer outra eventualidade, sob pena de prisão, e que revelo aqui com a maior trepidação, desconhecida desde que Einstein se pôs a pensar nas consequências nefastas que adviriam da divulgação da sua Teoria Especial da Relatividade: “sobreexcelente”.

De resto, abusem liberalmente dos sinónimos que de seguida se relatam: Avantajado, balístico e pindárico: Destinando-se especificamente à avaliação equânime de obras dos A Certain Ratio, podem contudo ser extensivas ao jazz mais efusivo e ao Rock mais sublime; Cutuba, egrégio, superno e mirífico: Esta quadrilha emprega-se, geralmente após um oásis no deserto da adjectivação, cada vez que surgem discos novos dos Durutti Column ou da Joni Mitchell; Opimo, ilustre e excelso: A aplicar em vez do vulgarizado “óptimo”, com especial realce para o Reggae mais gloriosamente místico, i.e., UB40, Black Uhuru ou Wailing Souls.

Métodos de Agigantamento Sucessivo O problema que se verifica com os superlativos é, tal o drogado que precisa de uma dose cada vez maior da sua pomadinha injectável predilecta, ir arranjando maneiras de exaltar e agigantar um bom disco recente em relação aos anteriores. É corrente, por exemplo, dizer-se que o disco X é “a produção cultural mais importante que o Homem na sua Infinita Glória já alguma vez realizou desde a aurora de Atenas“. Passada uma semana, aparece um outro disco, bastante mais porreiraço que o anterior. E agora? Como se descalça esta galocha de chumbo reforçado? Há dois métodos. O primeiro é o método Kobard-Olas que consiste no seguinte: “O disco Y é, juntamente com o disco X, que aqui tivemos oportunidade de pôr nos píncaros da lua da semana passada, a produção cultural mais importante que o Homem, na sua Infinita... etc., etc.” O segundo é o método Desenfiate-Onecas. Faz-se de duas maneiras: por Nota da Redacção e por pura bravata.


ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1  5 Por Nota de Redacção, inserese antes do começo da prosa a seguinte tanga: “Por motivos de todo alheios ao nosso já de si implacável controlo, um depravado incógnito conseguiu fazer passar pelas malhas até aqui invioláveis da nossa Segurança um texto que consistia em hábil fraude das colaborações do nosso habitual, distinto articulista, e no qual tecia considerações hiperbólicas acerca de um vilíssimo disco, das quais tanto a Redacção como o nosso crítico desde já se demarcam completamente. De seguida, passamos a publicar uma crítica, esta sim genuína e de origem garantida, do nosso colunista autêntico, pedindo desculpa aos nossos leitores por quaisquer equívocos por nossa incúria motivados.” Depois, arranca-se com a crítica: “O disco Y, dizemo-lo sem qualquer laivo de forçado encarecimento, é indubitavelmente a obra da qual a Humanidade, na sua memória de centenas de séculos, mais se deve orgulhar. Ao pé deste segundo álbum dos Rancids, conjunto Pop originário do Baixo Tennessee, a epopeia de Camões e a Capela Sistina de Michelangelo parecem folhetins do Corin Tellado, etc., etc...” Por pura bravata, dispensando a necessidade da Nota de Redacção, afirma-se muito simplesmente que, depois do assombro causado pelo disco X da semana passada, até este disco Y, que não é nada mau, parece uma retinta bosta, pelo que se escusa de analisá-lo, passando doravante a dedicar-se a outras actividades culturais afins, como o windsurfing.

A Crítica de Rock sem Audição Ensinada a manipulação do bota – acima e do bota – abaixo, é importante agora frisar como é que se deve evitar ouvir um disco, sabido que é isso que dificulta sempre as coisas. Nesse sentido, dão-se as seguintes proveitosas indicações: A capa – A capa, dum modo geral, revela aproximadamente 75 por cento do conteúdo. Se for muito fininha e se se descolar só de olhá-la de perto, o disco é de edição nacional. Se for mais grossa que um maço de cigarrilhas Edward VII e não se conseguir dobrar num torno, o disco é de edição americana. Os que

A plebe tem por hábito pensar que a primeira coisa a fazer na crítica de um disco é ouvi-lo. Nada podia estar mais longe da verdade. restam, são de edição britânica. Se por acaso lhe calhar algum com caracteres franceses ou por ventura finlandeses, ponha-se a milhas, que de lá não lhe advirá com certeza bem algum. Se tiver uma mulher, nua, ou é das Selecções do Readers Digest (geralmente de lenta combustão e por isso ideais para fogões de lenha) ou da orquestra de James Last. Em qualquer das hipóteses, não tem de perder tempo. Se for um desenho abstracto, é música de vanguarda e deve dizer-se bem; embora, valha Deus, não se peça a ninguém, nem a um cão, que a ouça. E por aí a fora, segundo o princípio válido de que quem fez a capa tentou captar lá o raio de mensagem que a obra discográfica estava a tentar transmitir. As notas – se tiver longas notas no reverso, sobretudo se estiverem escritas numa língua estrangeira, é porque é daqueles discos cuja apreciação está sujeita a um curso intensivo num workshop de semiótica aplicada em Gdansk. Se as notas forem curtas, é quase certo que não há nada a dizer sobre o estupor incluso – se os indivíduos que fizeram o disco não arranjam paleio para o desculpar como é que você, um reles escriba, irá conseguir? Se incluir uma folha com as letras, passe uma vista de olhos por elas e construa um texto à volta dos “temas” focados. Todos os temas reduzem-se, com proveito, aos dois maiores do Sexo e da Morte e, portanto, com alguma habilidade, evita-se até a trabalheira de aturar os esforços líricos da pancalhada que foi incumbida de parir essa dúzia de cantigas.

O disco – Se, sendo iniciado, ainda se vir forçado a retirar o disco do invólucro, examine-o de perto. Se a faixas forem muito curtas, é Pop. Se forem muito longas, é Pompa. Se o vinil for colorido, é Punk. Se houver um grande espaço entre o fim da última faixa e a etiqueta central é porque o disco é curto e logo pode escrever que é banhada, barrete, atentado ao consumidor. Se o espaço for pequeno, pode dizer que se trata dum trabalho excessivamente ambicioso, que tenta ser mais do que é.

A Crítica de Rock com Audição Mas vamos supor que o leitor, não tendo dominado estes princípios basilares, se obriga a escutar o conteúdo. Neste caso, precisa de um pick-up. Aliás, nós, os profissionais da crítica, conseguimos sempre descortinar os amadores: são os que têm gira-discos em casa. Existem dois métodos abreviados de ouvir um disco: o primeiro é conhecido pela técnica da “primeira e quarta” e o segundo é chamado processo “pica-montinhos”. O primeiro baseia-se no princípio sólido segundo o qual os álbuns arrancam sempre com a melhor canção, colocando a pior de todas entre a segunda e quinta do segundo lado. Como tal basta ouvir os dois extremos, graduando-se assim o termómetro crítico em 100 e 0 graus, concluindo legitimamente que o que está no meio é comprovadamente mediano. O segundo requer um maior esforço físico mas, bem aplicado, poupa tempo ao crítico. Basta deixar cair a agulha, durante breves segundos, no princípio e fim de cada faixa, apanhar o gosto ao som e decidir se vai causticar ou elogiar. Se conseguir ir ao picamontinhos até ao fim do disco, é de causticar, dado que nenhuma faixa o motivou no sentido de, ao menos, ouvir mais um bocadinho. Se não conseguir, é porque o disco não é mau de todo, e aí é que a porca torce o rabo. De qualquer modo, frise no seu texto que, apesar de ter tido o cuidado de escutar atentamente o disco em questão, não lhe consegue descobrir defeitos/ virtudes. Dá assim a imagem

de uma paciente e abnegada labuta, provavelmente arrancada da carne à luz da vela, com um paladar intenso a Dostoiévski: o pobre crítico, generosamente procurando novos valores entra as milhares de estrias religiosamente ouvidas, defendendo-se do frio das suas águas-furtadas com várias capas de duplos-álbuns, cosidas em jeito de samarra de cartolina, o mais juntas possível ao pêlo e ao coração.

A Fase de Redacção E chega a altura de redigir a sua crítica. Aqui tem três saídas possíveis: se for um crítico razoável terá umas noções de inglês e poderá traduzir directamente do Melody Maker ou do New Musical Express. Sendo um pouco mais para o rasco, resta-lhe fotocopiar o Rock and Folk e pedir a um amigo que faça a tradução. Finalmente reconhecendo-se abertamente como sendo de todo abaixo de cão, terá de cingir-se, miserável mas conscientemente, a copiar do Musicalíssimo. Não se esqueça de juntar umas frasezitas portugas para despistar: “dá para curtir”, “homessa, mas que rica obra!” ou “Yah meu, este vinil está uma naice”. Caso esteja a copiar do Musicalíssimo, não é preciso, porque já lá vêm.

Como Arranjar um Jornal Qualquer Já proficiente na crítica Rock, quererá com toda a urgência arranjar um poleiro onde possa palrar à vontade, ou seja, um meio de comunicação social que o acolha e publique. Ao contrário do que se costuma dizer, não é absolutamente necessário começar na Voz do Gaiato ou no Informador de Cinfães. E, não se esqueça, mesmo que a Voz do Gaiato e os restantes periódicos lhe fechem todas as portas, há sempre a hipótese do Musicalíssimo. De qualquer forma, nunca olvide que o poleiro não é o fim em si, antes parte integrante do meio. Interessa-lhe um jornal por duas fundamentais razões: 1 Os discos à borla; 2 Os beberetes. Mas não é tão fácil como isso tudo. Nada lhe garante que, chegando à Valentim de Carvalho com a saudação “Bom


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Mostrar o seu apreço pelas editoras é um elemento chave para obter sucesso garantido

dia, sou o crítico de Rock do Boletim Episcopal da Madorna e agradecia que me fornecessem dois exemplares de cada um dos vossos lançamentos mais recentes”, nada lhe garante que saia de lá com os cobiçados pratos vinílicos sob o braço. Por todas estas razões, é sempre mais seguro dizer-se correspondente em Portugal do Rock and Folk, ou estafeta ibérico do Billboard. Caso não pegue, então terá de bulir verdadeiramente para arranjar poiso num dos jornais reconhecidos.

Como Arranjar um Jornal Legítimo Eis as maneiras de proceder mais aconselhadas: 1 Arranje um novo estilo de escrita (i.e., descubra uma revista estrangeira que ninguém conheça e traduza-a afanosamente); 2 Ofereça uma avultada soma em dinheiro e uma passe de acesso permanente ao Banana Power ao colaborador habitual de um jornal, pedindo-lhe que dê à sola num ponto crítico na fase final de elaboração da respectiva publicação. Apareça então lá na Redacção com um texto previamente preparado, se possível com uma frase de Barthes em epígrafe, dizendo que o ex-colaborador Rock deles está em tribunal por ter aceite quarenta escudos e uma bica no Nicola para dizer bem do último single do Vítor Espadinha. Surgindo como salvador do

espaço destinado à prosa do colaborador corrupto, tem a hipótese de lhe poder saltar para o poleiro; 3 Fabrique uma entrevista com uma das seguintes pessoas: Mick Jagger, Paul McCartney ou qualquer artista falecido dias antes. Envia uma carta ao jornal dizendo-se agente literário e oferecendo, para publicação, a cobiçada entrevista. Passados escassos dias após a publicação da entrevista sensacionalista (“Mick Jagger: Nunca mais farei outro disco”, “Paul McCartney: Fui eu que paguei a Hinckley para disparar sobre Lennon” ou, no caso do artista recentemente falecido: ”A única alternativa que me resta é o suicídio”), aparece, galhardo, lá na Redacção, dizendo que o seu agente agira contra as instruções que lhe deu. Você nunca se aproveitaria duma desgraça alheia, etcetera, etcetera, sente-se responsável para com o jornal e, como paga, decidiu oferecer a sua colaboração na secção de Rock durante período ilimitado. 4 Vá para um país estrangeiro ou peça a um amigo aí residente que lhe envie um texto para a Redacção. Não há quem resista a um correspondente em Nassau, Buckingham Palace, no Kremlin ou na Casa Branca. Títulos sugeridos: “Eu dancei o Samba-Funk com a Princesa Diana enquanto Carlos servia as bebidas”; ou “Kossiguine tem a colecção de discos de Ska mais afamada da Cortina de Ferro”; ou “Reagan nomeia os Ramones para a pasta

dos Negócios Estrangeiros”.

Como ter Boas Relações com as Editoras E pronto, já tem sítio onde publicar as suas apreciações. O passo seguinte diz respeito às relações com as editoras. O objectivo, como sempre, é sair delas com a maior quantidade possível de álbuns e ir direitinho ao Martim Moniz discutir o seu preço de revenda com os feirantes do disco. (E lembremos que novinhos em folha valem muito mais, e eis mais um argumento a favor de não os ouvir.) Munido da massa, dirige-se a uma discoteca reputada, compra um disco importado e, na semana seguinte, faz figura a falar dele no seu jornal. Eis, portanto, as regras elementares que deverão presidir às suas relações com as editoras: 1 Mostre-se sempre interessado. Dado que lhe interessa sacar o maior número de discos, seja qual foi a sua qualidade, é conveniente apresentar-se sempre extremamente curioso e zeloso em relação aos lançamentos. Por exemplo, espiando uma capa do último álbum de Art Sullivan colada à parede do departamento de promoção, diz, numa voz de grande espanto e alvoroço: “É pá! Vocês não me digam que já editaram o Art Sullivan! Até que enfim que alguém faz alguma coisa pela música em Portugal.” Os promotores, deliciados ou julgando-o sobremaneira estúpido

(conforme a editora), entregarlhe-ão o disco com o maior dos prazeres. 2 Dê a ideia de ser uma espécie de subchefe de Redacção. Convém sempre adoptar inicialmente uma imagem de intenso poderio e de irrefutável mando lá no seu jornal. Por exemplo, querendo abarbatar em LP que os promotores não lhe querem dar, diz: “Isto era para as páginas centrais, com chamada na primeira e fotografia a todo o tamanho”. 3 Concorde sempre com os promotores. Se um deles lhe disser, por exemplo, “este novo grupo de Rock português já teve um número 1 em Londres e é patrocinado exclusivamente por uma empresa especialmente constituída para o efeito por Bob Dylan e Ramalho Eanes”, acredite. Diga sempre que sim, sob pena de levar menos material para o alfarrabista. 4 Diga-se eclético. O pior que pode fazer é dar a entender que é um especialista que só gosta de certa música, pois assim restringirão cruelmente o número de discos que lhe oferecerão. Crie a impressão de ser um indivíduo que tanto gosta de Marco Paulo como dos Cabaret Voltaire, como de Lutoslavski, como de Paulo de Carvalho, como de Anthony Braxton e acrescente as quatro palavrinhas mágicas: “Desde que tenha qualidade”. Um dos ossos do ofício de promotor é racionalizar as suas tarefas mediante uma filosofia segundo a qual o


ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1  7 mau também pode ser bom desde que esteja bem feito. Por isso, diga imediatamente: “Eu gosto de tudo, desde que esteja editado”. Depois desta primeira impressão, a estratégia muda. Entretanto os discos que você levou, ou nem sequer foram mencionados no seu jornal ou foram muito leve e ignorantemente referidos. Os promotores estão furiosos e é altura de você passar à fase seguinte. 5 Passe por vítima do seu Chefe de Redacção. Apareça inconsolável na editora, segurando um feixe de uns papéis quaisquer gritando: “Entreguei um texto de 24 linguados e os gajos só me publicam três linhas, ainda por cima aquelas em que eu dizia mal do disco...”. O seu papel agora é o do mártir, sempre sacrificado aos duvidosos interesses ideológicos do seu jornal. Censurado e cortado, lutando árdua e dignamente por dar aquela primeira página ao recente registo daquela banda de Rock português da Reboleira, mesmo assim você permanece inabalável na sua batalha de resistência e consente a levar mais um quarteirão de discos para se empenhar em nova investida contra os fascistas lá do seu jornal.

coisas mais importantes enquanto eles vão captando sons. E, feito o paleio, fica também o disco, altamente revendável ou trocável pelo menos bastante mais do que meio bilhete de cinema. Por ser a crítica mais rápida e lucrativa, os directores dos jornais acham mal pagá-la ao preço das outras. Mas a venda dos discos sacados, mesmo com licença de vendedor ambulante, não é a única maneira de criar um suplemento ao seu rendimento profissional. Há também o recurso ao chamado “payola”.

Como Auferir um Bom Vencimento

Uma vez implantado como convidado obrigatório em tudo o que meta pastéis de bacalhau à descrição, já ninguém removerá o seu nome daquelas cruciais listas de convidados.

Estará enfim estabelecido com as editoras e terá já negociado com o seu marchante de discos um razoável preço para a compra a peso dos álbuns sacados. Este aspecto é importante porque, ao contrário do que se julga, um crítica de Rock não é bem remunerado. Talvez por ser uma criatura privilegiada entre a classe crítica, apenas abaixo dos críticos gastronómicos na hierarquia da profissão. Isto porque para fazer uma crítica de cinema, há toda a maçada de ter de ir para o cinema, estar lá encafuado duas horas, e depois vir para casa, já depois do último autocarro, tentar fingir que se compreendeu o filme. E não se fica com nada de palpável, salvo o bilhete, e mesmo assim rasgadote. Para fazer uma crítica a um disco, basta colocá-lo no prato, começar a escrever e tentar fazer com que a crítica acabe ao mesmo tempo que o disco. Isto porque os ouvidos são excelentes, na medida em que facilitam ao proprietário deles fazer outras

Como Tirar Partido do “Payola” “Payola” é, numa frase, o dinheiro que se recebe como suborno para dizer maravilhas dum disco. Ora orientar a actividade profissional em torno do payola não é tão simples quanto parece. Sendo sistemático o recebimento dele, arrisca-se que a sua cotação payolesca vá descendo. Suponhamos: você escreveu um artigo a incitar a nação a comprar o álbum do Andy Williams sob a pena de serem destruídos por uma bomba nuclear. A nação comprou e verificou o gorro de

cano alto que você lhe enfiou. Para a próxima vez, quando você vier sublinhar a urgente indispensabilidade de possuir a Obra Completa, recentemente editada, dos Boney M, a população já está prevenida. E por aí fora, até

Uma das famosas selecções do Readers Digest

perder todo o seu valor payolar, e ninguém estar disposto a suborná-lo. É uma das tragédias da profissão o não oferecer-se payola para a promoção de discos bons, os quais, logicamente, não precisam que você, pobre diabo agarrado a uma máquina de escrever, venha dizer que são uma maravilha, para se venderem. Por isso, resigne-se desde já ao triste facto de ir apenas receber payola para louvaminhar obras totalmente destituídas de qualquer valor. Como proceder, então? O melhor método é o chamado “direito que nem um fuso / torto que nem um garfo”. Consiste em adoptar uma proporção próxima dos 12/1 e faz-se assim: diz-se “a verdade” durante doze álbuns, apontando condignamente as jóias e as bostas, instilando confiança nos leitores e, depois – zás, dá cá o meu! – entra-se em coma adulatório, abençoado o dia em que (a bodeguice sebenta pela qual entrou em caixa o payola) veio ao mundo para transformar a nossa vida num permanente paraíso sensorial. E, como manda o lema, depois de torto que nem um garfo, direitinho que nem um fuso durante mais doze álbuns. Este método também é conhecido pelo processo BBC, no qual foi inspirado. Sabe-se que durante a guerra, enquanto a rádio alemã propagandeava mentira após mentira, a BBC ia dizendo sempre a verdade, até que chegasse uma altura em que fosse mesmo preciso

divulgar uma falsidade. Resultado: ninguém acreditava em nada (nem mesmo as verdades) do que dizia a propaganda alemã, e toda a gente acreditava em tudo (mesmo as mentiras) o que dizia a propaganda britânica.

Depois: A Escalada Final E finalmente, estabelecido como crítico Rock de renome, começará a ser convidado para os beberetes pelas editoras discográficas. Até pode, nesta altura, deixar de escrever nos jornais, porque a sua reputação arrasta-se sempre uns bons anos atrás da sua realidade. Uma vez implantado como convidado obrigatório em tudo o que meta pastéis de bacalhau à descrição, já ninguém removerá o seu nome daquelas cruciais listas de convidados. Chegará enfim o dia em que, consumado o barrete de crítico de Rock até às últimas junto das editoras discográficas, você poderá iniciar os primeiros passos em direcção ao barrete maior que se segue. Esse sim, trará chorudas remunerações, amplas oportunidades de assumir e praticar as trapaças aqui ensinadas numa escala muito mais magnífica, e, para mais, mais discos e mais beberetes. Não se esqueça por isso de ler o próximo artigo desta série: “Como ser um editor discográfico”. Música e Som, Nov./Dez. 1981


8  ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1

O LIVRO NEGRO DA MÚSICA POP: OS PIORES DE ‘70 Ao Nuno Rodrigues Antes de mergulhar para uma década nova, convém sempre uma lavagem ao depósito onde se acumularam os esgotos da década anterior.

E a música popular verdadeiramente vil e execrável, quem se lembra dela num mundo tragicamente obcecado pela qualidade? As obras intensamente horríveis elevam o meu gosto ao nível de uma arte e, como kitsch de calibre, merecem uma certa consideração. Uma canção entranhadamente má, daquelas irredimíveis, é sempre preferível a uma canção simplesmente mediana ou menos má. Porque provoca, tal como fará uma canção excelente, uma reacção – um súbito desejo de emigrar, uma vontade repentina de vomitar ou de atirar um objecto pesado na direcção dela. A canção mediana, deixando-nos indiferentes, não faz nada disto, é uma obra manifestamente inferior. E porquê? Porque a música má (e não estou a falar da mazita, ou da medíocre – mas daquela absoluta e integralmente hedionda sob todos os possíveis prismas) é uma invasão perfeita de todos os padrões estéticos que nos são queridos. Como tal, tem um valor crítico e epistemológico inegável. Daqui a trezentos anos uma boa charanga execravelmente mas parida dirá mais aos sociólogos do que mil canções jeitosas. Se o ser humano também se conhece através da sua patologia, o mesmo aplicase à arte, ou não? Da década de 70, felizmente, foi prolífera em bostas – será sem dúvida o período mais apaixonante para o patologista do Pop. Porque há duas categorias de vileza: aquela que é voluntária e aquela que é involuntariamente produzida. A primeira está muito escassamente representada (Seeds, Bonzo Dog, Ramones) e é na segunda categoria – onde os artistas, convencidos que estavam levar a cabo um trabalho de quali-

dade, excederam todas as expectativas lançando obras medonhas e impensavelmente terríveis – que vamos descobrir o filão mais rico para efeitos de investigação. Urge, por isso, organizar uma eleição dos Piores Momentos da Música Popular. Seria mais rigorosa do que um exercício relativo às melhores canções (como esses que geralmente se fazem), porque existe uma maior unanimidade em discriminar o merdoso do que em determinar o sublime. Aqueles que são adversários nos louvores são muitas vezes colegas no bota -abaixo. Como primeira contribuição para esse urgente estudo do Pop infalivelmente nauseabundo, apresento a minha lista para a década de 70. Para efeitos de criteriosa selecção, escolhi discriminar da seguinte maneira as obras referidas:

Uma bosta Duas bostas Três bostas Um balde Embora os trabalhos assinalados com uma, duas ou três bostas (conforme o grau de vileza) mereçam um lugar de honra em qualquer volume dedicado ao Pop incontestavelmente abjecto, são as canções cotadas com Um balde que devem ser consideradas os verdadeiros clássicos do género.

1970

1970 foi um ano relativamente fraco, salvo o épico sentimental do notoriamente Rei do Rasca que é o australiano Rolf Harris. “Two Little Boys” tem todos os ingredientes dum clássico – o autor não descurou um único aspecto na realização do objectivo, desde a letra (tão lamecha que faz com que o António Calvário pareça um Bruce Springsteen) até à magnífica orquestração (onde murcham umas flautas). Os esforços dos Mungo Jerry (que a História entretanto engoliu num acesso de compaixão) e dos famosos Christie foram ainda consideráveis, faltando-lhes pouco para o merecimento da glória máxima. É pena porque até no próprio aspecto pessoal (um factor importante) os Mungo Jerry aspiram ao balde (quem não se lembra das acintosamente repulsivas suíças do vocalista com sentida nostalgia?). Mas a história não se pode compadecer dos artistas que foram apenas muito maus e não conseguiram ir além desse importante limiar de náuseas que Rolf Harris transpõe com tão aparente facilidade.

1971

Uma notável melhoria em relação ao ano anterior, tanto em termos quantitativos como qualitativos. 71 foi indubitavelmente o ano dos Middle of The Road, candidato sério ao estatuto de pior conjunto de toda a história da música popular. A etiqueta do ano foi a RCA Victor, aliás com boas tradições no género, que além das obras citadas, também publicou em 71 a versão de “It’s Impossible” do notório Perry Como. Em segundo, mas honroso lugar, está o cantor e compositor Tony Christie, que além de integrar os Dawn (que em 71 também ofereceram a cantiga “What Are You Doing Sunday”), soube perseguir uma atroz carreira a solo, sempre produzindo resultados coerentes de foleirice incontinente. Realce-se ainda o aparecimento do famigerado Waldo de los Rios, responsável pelo

sistemático aviltamento da música erudita, e logo digno de menção em qualquer lista que se preze.

1972

Embora 72 só visse o aparecimento de dois autênticos clássicos, pode dizer-se, com autoridade indisputável, que foi o ano mais nauseabundo da década. Riqueza que se explica, sobretudo, pela abundância de famílias cantantes – só os Osmonds encheriam três ou quatro tomos da História. Não se menospreze a sua representação na lista acima delineada – em 72 também prendaram o mundo com obras (a todos os títulos dignas de serem consideradas asquerosas) da estirpe dum “Crazy Horses”, dum “Why” ou dum “Too Young”. Nenhuma delas, porém, se aproxima do total terror da canção filosófica “Desiderata”, enunciada pelo já lendário Les Crane com uma solenidade ressonante jamais vista, e trabalhada por coros angélicos verdadeiramente insuportáveis. O pavor dos Chicory Tip, ficando um pouco atrás de nível de Crane, é também um marco da música popular – talvez a canção mais universalmente detestada de sempre. A etiqueta do ano é evidentemente a Bell, responsável por sumidades do Pop patológico como a família Partridge, os Dawn e o já referido Tony Christie. A RCA Victor, abaixo de forma em 72, apoia-se somente na perfeição anti-estética dos grotescos Sweet, os primeiros genuínos flausinos do Pop.

1973

Não houve um único clássico em 73, embora as listas de vendas estejam minadas de pequenas monstruosidades (aproximadamente 78,9% da autoria dos diversos petizes do clã Osmond). Há o reaparecimento das suíças desmesuradas no notável Alvin Stardust, nome que não é de esquecer nos anais do mau gosto, e a proliferação de inestéticos palermas extremamente mal vestidos que seguem os passos pioneiros dos Slade e dos Sweet. A banda Mud,


ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1  9 será, dentre todos os candidatos, a mais desprezível, assinando composições duma falta de qualidade crónica. Note-se ainda o duo Peters and Lee em que aparece o primeiro cego completamente destalentoso da história da música.

1974

Portentoso ano, o de 1974, com um grau de clássicos (nada menos

do que três) que faz inveja aos anos anteriores. A etiqueta Bell mantém a sua posição de líder com a assinatura dos Bay City Rollers, saturando o mercado com produtos completamente maculados, dos quais o mais nitidamente mau é “Shang-a-Lang” embora sejam de considerar outros pitéus como “Summerlove Sensation” ou “Remember”. Note-se que a Bell

consolidava ainda a sua reputação com os purgantes dos célebres Showaddywaddy. Mas o clássicodos-clássicos só pode ser o hino “Y Viva España” na voz aflitiva de Sylvia, canção que ainda hoje se ouve em recintos como o Texas Bar quando desembarcam marinheiros do país vizinho. Mas não se pode esquecer o heroísmo musical das Paper Lace, felizmente malogra-

CLASSIFICAÇÃO POR ANO DOS PIORES DE 70 INTÉRPRETE

MÚSICA EDITORA

Mungo Jerry Christie Dana Rolf Harris Cliff Richard

In the Summertime Dawn Yellow River CBS All Kinds of Everything Rex Two Little Boys Columbia Goodbye Sam, Hello Samantha Columbia

Middle of the Road Clive Dunn Lynn Anderson The Sweet Middle of The Road Tony Christie Orquestra “Manuel de Falla”. Maestro: Wlado de los Rios Dawn Piglets

Chirpy Chirpy Cheep Cheep RCA Victor Grandad Columbia Rose Garden CBS Co-co RCA Victor Tweedle Dee Tweedle Dum RCA Victor I Did What I Did For Maria MCA Adaptação do 1º Movimento da Sinfonia nª 40 de Mozart A&M Knock Three Times Bell Johnny Reggae Bell

Donny Osmond Chicory Tip Slade Partridge Family David Cassidy Hot Butter The Sweet Les Crane Vicky Leandros

Puppy Love MGM Son of My Father CBS Mama Weer All Crazee Now Polydor Breaking Up is Hard to Do Bell How Can I Be Sure Bell Popcorn Pye Wig Wam Bam RCA Victor Desiderata Warner Come What May Philips

Dawn Peters and Lee Gary Glitter Cliff Richard Marie Osmond Alvin Stardust Mud

Tie a Yellow Ribbon Bell Welcome Home Philips I Love You Love Me Love Bell Power To All Our Friends EMI Paper Roses MGM My Coo-Ca-Choo Magnet Dyna-Mite Rak

1970

1971

1972

1973

das, e a patética obra “Billy, Don’t Be A Hero”, ao pé da qual Corin Tellado passa por Ernest Hemingway. E repare-se no regresso sorrateiro da etiqueta RCA Victor, através do desperdício dum John Denver já irredimivelmente abandalhado…




12  ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1 INTÉRPRETE

MÚSICA EDITORA

Paper Lace Charles Aznavour John Denver Sylvia Andy Williams Bay City Rollers Carpenters

Billy, Don’t Be A Hero Bus Stop She Barclay Annie’s Song RCA Victor Y Viva España Sonet Solitaire CBS Shang-a-Lang Bell Jambalaya A&M

Tammy Wynette Telly Savalas Glen Campbell Bee Gees Jonathan King

Stand By Your Man Epic If MCA Rhinestone Cowboy Capitol Jive Talkin’ RSO Una Paloma Blanca UK

Pussycat Tina Charles Demis Roussos J. J. Barrie Rod Stewart Sutherland Bros. & Quiver

Mississipi Sonet I Love To Love CBS The Roussos Phenomenon Philips No Charge Power Exchange The Killing of Georgie Riva Arms of Mary CBS

David Soul Brotherhood of Man Baccara Boney M Kenny Rogers Boney M

Don’t Give Up On Us Private Stock Angelo Pye Yes Sire, I Can Boogie RCA Victor Ma Baker Atlantic Lucille United Artists Belfast Atlantic

Boney M Olivia Newton-John & John Travolta Father Abraham John Travolta Rod Stewart Dean Friedman Village People Boney M Boney M

Rivers of Babylon Atlantic You’re The One I Want RSO Smurf Song Decca Sandy Polydor Da Ya Think I’m Sexy Riva Lucky Stars Life-Song YMCA Mercury Mary’s Boy Child Atlantic Rasputin Atlantic

Bee Gees Anita Ward Bellamy Bros Leif Garrett Dollar Gary Moore Patrick Hernandez Gary Numan Boney M

Tragedy RSO Ring My Bell TK If I Said You Had a Beautiful Body Warner I Was Made For Dancing Atlantic Love’s Gotta Hold On Me Carrere Parisienne Walkways MCA Born To Be Alive Gem Cars Beggars Banquet Hooray Hooray It’s a Holi Holiday Atlantic

1974

1975

1976

1977

1978

1979


ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1  13 1975

Embora não faltasse estrume nos tops de 75, foram poucas as verdadeiras bostas de proporções épicas. Tammy Wynette, todavia, consegue sobressair com um clássico que bem merece o Balde acima assinalado. Nunca a música Country desceu tão baixo como nesta instância, e assume uma importância particular o facto de ser uma mulher a cantar a cantiga mais machista de sempre. O caso de “Una Paloma Blanca” é diferente, pois trata-se duma bosta voluntária e conscientemente defecada por Jonathan King (a versão de George Baker, que também teve sucesso, já não) e logo representa uma produção – dada de um sub-subproduto

1976

Seria preciso esperar mais um ano para que aparecesse algo que se comparasse às terríveis Pussycat, pioneiras do Pop de pronúncia castelhana (e logo a trágica incapacidade de dizer a letra “s” sem ajavardá-la automaticamente para “ch”) e autoras dum dos piores singles de sempre. Em 77 viriam as conhecidas Baccara, mas em 76 o monopólio do piorque-mau-gosto era inconfundivelmente detido pelas moças dos Pussycat. Mas o ano distingue-se também pela incidência invulgar de cançonetistas gordos a oferecer canções obesas de kitsch. É impossível denegrir excessivamente o reportório de Tina Charles, talvez a mulher menos atraente desde a padeira de Aljubarrota, que conseguiu marcar com fatalidade o ano sob discussão com “I Love To Love” e “Dance Little Lady Dance”, ambas de uma vileza ímpar. As banhas triunfam ainda no porte magnânimo do célebre artista grego que os amigos conhecem simplesmente por Demis, e cuja obra gravada não necessita de comentários.

1977

O trono (daqueles com um autoclismo em cima) das Pussycat é usurpado pelas conterrâneas Baccara com um dos épicos basilares do som de efeito vomitório. Quem não se recorda com viva náusea daquelas vozes a cantar “yecch chirsl can boogie”? E o triunfo das espanholas desprendadas é também o regresso da RCA Victor, cruelmente lançada para a obscuridade na Liga dos Péssimos nos

anos anteriores, depois de ter conhecido tanta notoriedade com nomes como os Middle of the Road no princípio da década. Mas o ano pertence aos Brotherhood of Man, grupo de imitadores dos Abba, que já no ano anterior haviam desgostado milhões de telespectadores com “Save Your Kisses For Me”. “Angelo” é, objectivamente, muito pior. Os Abba haviam começado com “Fernando” e seguiu-se uma série de odes semelhantes a amásios latinos (ao intratável “Angelo” sucederia o pior ainda “Figaro”). Mas 77 foi ainda o ano dos Boney M, responsáveis mais do que qualquer outros por atrasar o progresso da música popular e infligindo sobre a música negra aquilo que Waldo de los Rios infligiu sobre a clássica. Confundindo, porém, todas as expectativas (mesmo as mais implacavelmente pessimistas) o pior dos Boney M ainda estava para vir…

1978

Em 78 a retrete está praticamente perpetuamente ocupada pelos cagueiros numerosos dos Boney M, mas há ainda três artistas, aproveitando uma aberta, que se instalam momentaneamente para depositar bostas de uma envergadura tremenda. Não contente com os prejuízos causados em parceria com Olivia Newton-John, Travolta consegue obstinadamente oferecer ao mundo a sua voz (e hesitamos em empregar este substantivo, mas entenda-se “voz” no seu sentido lato de emissão sonora produzida pela vibração das cordas vocais de um primata) com uma canção que até teria sobrevivido a encomenda menos magnífica. Mas até Travolta é um Caruso quando comparado com Dean Friedman, talvez o pior canto-compositor (ou seja o pior cantor e, independentemente, o pior compositor) de sempre. “Lucky Stars” figura no Livro Negro do Pop graças à combinação até aqui inédita de inépcia e de pretensiosismo. E não poderíamos abarcar o ano de 78 sem guardar um lugar à popa para os Village People, mestres já lendários do kitsch de cariz “ai lula!”.

1979

Num ano pobre de paupérrimos, cabe a Patrick Hernandez a mais deslumbrante inglória, através do retumbante “Born To Be Alive”, que feriu mais sensibilidades do

que todas as outras bostas aglutinadas e tem por isso garantido o lugar na galeria de desonra. Só por um esforço sobrehumano é possível pensar em pior, tais são as dimensões da obra aqui galardoada com um bem merecido Balde. Os Bee Gees, cujos notáveis dotes vocais devem sem dúvida à remoção cirúrgica de órgãos masculinos vitais, parecem falar dessa operação em “Tragedy” – canção que ainda está presente, com saudável nojo, na nossa memória e que nos deve merecer o máximo desrespeito, por muito que não nos custe.

Conclusão

Evidentemente que cada cabeça, cada sentença – e que a bosta está nas narinas de quem a cheira – mas creio que a maior parte dos títulos apontados se encontra acima da discussão. Repare-se ainda que me cingi às listas dos cem singles mais vendidos (na Grã-Bretanha) de cada ano. Quantas jóias falta ainda desenterrar! Mas só faz sentido falar na história inestética

Travolta consegue obstinadamente oferecer ao mundo a sua voz (e hesitamos em empregar este substantivo, mas entenda-se “voz” no seu sentido lato de emissão sonora produzida pela vibração das cordas vocais de um primata). do Pop em relação a trabalhos que ganharam aceitação junto do público – ou seja, para efeitos sociológicos, importa sobretudo estudar as bostas populares. As bostas impopulares não surpreendem ninguém. Quando alguém descobrir a relação entre a música

boa que não é popular e a música má que não é impopular é porque se enganou. Finalmente, embora a escolha seja difícil, tal a abundância de candidatos amplamente habilitados, acho que o Balde de Plástico para pior obra da década cabe, com justiça, à canção “Y Viva España” na interpretação de Sylvia. Perfeitamente construída, ela é uma cantiga integralmente crassa, preenchendo todos os possíveis critérios de boçalidade e atingindo um nível de vileza (de música, de texto e de interpretação) extremamente raro no domínio da criatividade humana. Abomina-se o disco com facilidade logo ao primeiro acorde, não suscitando assim qualquer hesitação ou incerteza da parte do ouvinte. E, como todas as canções verdadeiramente horríveis e debilitantes, nunca se esquece. Influirá negativamente sobre a vida inteira de quem a escutou na forma de teimosas recaídas memoriais – tal como uma reacção Pavloviana. É isto que faz um clássico. Mas repare-se, em conclusão, como a música intransigentemente péssima tem uma função benéfica. Sendo a inversão perfeita de um padrão subjectivo de qualidade, vem confirmar com agradável precisão os nossos preconceitos. Ou seja: ao estarmos convictos da miséria qualitativa de dada obra ganhamos confiança em nós próprios, sentimo-nos superiores. E, para além disso, a música má ajuda-nos a apreciar aquela que temos por boa. A música boa, ouvida depois da má, é enriquecida pelo factor alívio. Ou seja, serve de termo extremo de comparação e pode assim reforçar o amor por aquilo que vemos ser o oposto. E, finalmente, a música pavorosa é também um factor de unidade entre melómanos. O ditado diz que “gostos não se discutem” – mas também é verdade dizer que, no que diz respeito aos desgostos, eles podem-se discutir livremente. Neste aspecto, a editora que mais maus serviços tem prestado à causa do Pop, aquela que mais consistentemente tem lançado obras desprovidas de qualquer valor, é sem dúvida a Bell. Creio aliás que nunca editou um único disco de qualidade, pelo que merece plenamente a Sanita de Barro Mole. Música e Som, Maio/Junho 1981


14  ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1

GUIA DA FAUNA MUSICAL LUSITANA PARTE I Coque o Roca, identifique o Frique Ao Paulo Morais De repente, em Portugal, havia tribos musicais, cada uma com as suas práticas e roupagens. Assim reflectia-se o papel cada vez mais importante que a música Rock desempenhava na (boa ou má) vida da juventude portuguesa. Daí ter sido necessário fazer um levantamento estritamente científico dessas novas espécies aparecidas entre a ex-conservadora fauna musical lusitana.

Leitor, tem dificuldade em distinguir um punque dum frique, ou um nanuque dum roca? Nestes tempos de eclético tudo-vale, confunde pintas com vis, ou friques com nueives? Pois acabe duma vez para sempre com a sua preocupante ignorância lendo este valioso Guia de Identificação da Fauna Musical. Recorte-o e traga -o sempre pronto na sua carteira e nunca mais cismará para com os seus botões: será um travolta ou um tutónio? Que disco devo oferecer a um amigo ipe? Que quererá dizer ela com essa de eu mandar pinta de careta? Para sua conveniência, o task-force de investigadores que elaborou o presente estudo organizou-o segundo este modelo: 1 Nome corrente; 2 Etimologia; 3 Outras denominações variantes; 4 Tipo de música predilecta; 5 Identificação rápida; 6 Habitat natural; 7 Heróis emulados. O leitor poderá assim passar por “boa onda” nos círculos privilegiados da Rockofilia Lusitana.

Punques (Vomitus Vulgaris) 2 Do inglês “punk”, significando rufia. 3 Punkrácio, Pancão (segundo o Dic. Cândido de Figueiredo: “homem maníaco, telhudo”). Substantivos colectivos: Puncalhada, Pancaria. O feminino é Punquette. 4 Música Punk, antimúsica regida pelas técnicas da surdez e da inaptidão, com vocais tipo ardina rouco e letras sobre a destruição absoluta da sociedade através da apatia. Exemplos: Sex Pistols, Damned, Clash, Fado de Alcântara. 5 Narinas infectadas devido ao uso prolongado de alfinete-de-ama, cabelo sobre o roxo e tinhoso. Veste roupas rotas (uma camisa Punk rasgada custa à volta de 20 libras) ligadas por correntes de autoclismo. No dorso uma mensagem socialmente relevante: Fuzilem as baleias, Não vale a pena livrar o pai da forca, Viva o União de Leiria, etc. Cospe e vomita por dá cá aquela palhinha, devido à imoderada ingestão das suas bebidas favoritas: Lavax líquido, vinho tinto japonês, terebintina. 6 Frequenta tabernas e drogarias. Trabalha em demolição de edifícios por conta própria

e pode ser visto entre as três e quatro da manhã em cabines telefónicas de machado em punho. 7 Johnny Rotten (Joãozinho Podre), Sid Vicious (El Cid Vil), Átila o Huno, Tony de Matos no filme Derrapagem, a hiena de Sete Rios.

Tutónios (Skassata Skalabitanus) 2 Do inglês “2-tone”, significando dois-tons, preto e branco. 3 Skazeiro ou Bicolor. 4 Música Ska, simbiose entre ritmos Reggae e melodias do Rock’n’Roll. Vocais à desgarrada, com alternância entre dialectos regionais ingleses e crioulo da Jamaica, com letras acerca do antirracismo, da marginalidade e da monotonia da vida doméstica familiar. Inserção fundadora no movimento “Rock against Thatcher”. 5 Cabelo muito curto, gravata branca fininha, camisa preta, chancas de pisar uvas, chapéu empada-de-galinha, calças à palhaço. Duas cores apenas: preto e branco, tolerando-se o vermelho em tutónias principiantes. Dança como quem corre os 100 metros sem sair do mesmo lugar, agitando os braços à locomotiva. Bebe tudo com gasosa, às vezes em conjunção com uma ou outra anfetamina para manter o andamento. 6 Frequenta bares caboverdianos no Bairro Alto e festas musicais africanas, e dá o seu pezinho no Jamaica. 7 Idoliza Laurel Aitken, Desmond Dekker (avozinhos do Ska), a Miranda das “Bodysnatchers”, o Boavista F.C. (cujas camisolas, assim como as bandeiras municipais de Lisboa, são puro Ska), Nuno Tutónio Pereira, Skálidas Barreto, Amílcar Cabral, aBanda da GNR (Skazíssima!).

Nanuques (Gelidus Electronicus) 2 Supõe-se que do nome do esquimó Nanook do filme de Flaherty, dada a frieza glacial da música. 3 Electricista, Pólo Norte, Robot. 4 Cold Wave, caracterizado pelo uso quase exclusivo de

instrumentos electrónicos, com primazia para o sintetizador. Batida regular com vocais filtrados ou ecoados. Exemplos: Kraftwerk, Gary Numan, John Foxx. 5 Rosto coberto de pó-de-arroz e em geral aspecto fúnebre, como um cadáver caído num tanque de lixívia. Roupa ao estilo de Neil Armstrong, com etiquetas IBM ou NASA. Porte de quem engoliu um ancinho, passa a vida cultivando uma imobilidade cativante. 6 Encontram-se nos centros de electrocardiografia, certificandose que não faleceram; e ainda em centrais termonucleares, sessões da meia-noite do 2001 e onde quer que existam tomadas. 7 Veneram osciloscópios, John Foxx e Gary Numan, o computador do I.N.E., H.A.L. do Odisseia no Espaço, Ramalho Eanes, e Werner Von Braun.


ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1  15

O trevoltante corista sorridente e a sua não menos sorridente companheira, Olivia Newton-John

Folqueiros (Hirsutus Sandalius) 2 De “Folk Music”. 3 Conforme as predilecções Friques, Incohenados, Baezoqueiros ou Ipes. 4 Música tradicional donde quer que seja, desde que tenha viola acústica e flauta, fale de montanhas e riachos, seja a favor da legalização da marijuana e da ilegalização da guerra, contenha referências veladas a Woody Guthrie e à greve dos ferroviários de 1876 do Dakota, e saiba equiparar metaforicamente o amor a ameixas ou pêssegos selvagens. Ou seja: na prática, a música Folk norte-americana (os outros povos também poderão protestar, mas não entra tão bem no ouvido). 5 Cabeludos com grinaldas murchas, sandálias à Jesus de Nazaré, togas marroquinas incorruptas por Omo, colares de pequenos nabos tibetanos, sacolas ao ombro feitas de lã de lama, contendo semente de alpista e carcaças com presunto macrobiótico. 6 Fora os estaminés mais obscuros de Katmandu, vêem-se com mochilas à beira da Estrada Marginal, pedindo boleias para Katmandu, na Serra do Gerês cuidando das hortas de erva, ou ainda no metropolitano, armados em artesãos Katmanduianos. 7 Todos os gurus excepto os que não exercem em Katmandu, Joe Hill, John McLaughlin quando veste fato branco, os poetas Beat antes de enriquecerem, Bob Dylan quando tinha a voz fanhosa.

Que quererá dizer ela com essa de eu mandar pinta de careta? Travoltas (Feverus Sabatus Noitus) 2 De John Travolta, o trevoltante corista sorridente. 3 Careta, Burguesónio, Foleiro, Febril. 4 A música Disco, batida mínima de 120 pancadas por minuto, vozes de melaço morno, jingles, sininhos, enfim. Letras de grande complexidade poética, com um grau elevado de análise sociopolítica, tipo reverso de embalagem de cornflakes. 5 Notam-se à distância: o macho tem a camisa aberta, expondo o medalhão astrológico que traz ao peito bronzeado, calças incompreensivelmente à boca de sino, sapatinho de cúria. A fêmea veste invariavelmente ceroulas de mousse por baixo duma saiette com rachinha erótica, com um cai-cai que nunca cai. Têm personalidades duplas: de dia são o Silva lá do contencioso ou da Mafalda das relações públicas; à noite são Day-dancers alfacinhas, fotonovela a cores, whisky com uma “sugestão” de ginger ale, Niu Iorqui Siti. 6 Exercem uma declarada hegemonia sobre as boîtes de Lisboa e Cascais que não permitem sapatos de ténis

(ou seja, quase todas). Não é possível indicar um modo seguro de os evitar. 7 À parte o dito (Ele!), emulam-se uns aos outros, colhendo sorrateiramente ideias das fotonovelas, assim como quem não vê a coisa.

Nueives (Neovagabundus Domesticus) 2 De “New Wave”, o Rock pós punque. 3 Ramona (dado o amor aos Police e Ramones), formando-se o feminino com sufixo ette. 4 A música New Wave, um Rock’n’Roll acelerado, temperado com especiarias exóticas (o Reggae, música electrónica, punque), com letras mais empenhadas, por vezes originais, embora lacónicas e ambíguas. Exemplos lídimos: Police, Pretenders, Dire Straits, Ramones. 5 Jeans coçados com menos de 16cm de bainha, sapatos de ténis brancos, T-shirt ou camisa sobre o largo com a fralda de fora. Cabelo curto, o rosto desejando-se imberbe permitindo-se borbulhas. Afectam um ar de profundo e existencial fastio para com a vida, fazendo para que esta lhes pese. Cultivam o silêncio e a reflexão introspectiva como ideal, abominando a exuberância desgostante dos travoltas ou o pula-pula contagioso dos tutónios. Dançam com os pés firmemente plantados no terreno, pernas abertas como quem está num cacilheiro instável, acompanhando a música com um movimento estudado e pendular dos braços,

ao modo dum limpa-pára-brisas acometido de fadiga metálica. Falam com preguiçosos monossílabos, arrastando os yahhs com o ar sisudo de quem já tudo viu e ouviu e não ficou impressionado. 6 Frequentam locais mais musicalmente esclarecidos, como a sua própria sala de estar, onde podem ouvir rádio. Quando saem gostam de recintos espaçosos onde possam dançar à limpa-pára-brisas e desdenham muita gente ao mesmo tempo. 7 Não têm heróis, dado o mau gosto que representa tê-los.

Rocas (Badaladus Sempiternus) 2 Do inglês “rocker” (que por sua vez, vem do local onde tudo começou, quando um jovem português, António Santos, do Cabo da Roca, mostrou umas composições suas a Bill Haley). 3 Ele há pintas (aqueles que cabeceiam nuvens imaginárias quando dançam) e vis (os que batem com a cabeça em paredes reais). 4 Já os peso-pluma preferem o Rock’n’Roll clássico, colheita Gene Vincent, os meio-pesados que vivem do Rock revisionista na versão Status Quo, enquanto que os pesadões apenas aguentam com a decibelagem titânica duns Motorhead. 5 O uniforme é rígido: blusão de cabedal preto com o maior número de fechos-éclair possível, jeans profusamente apertados e botas da tropa. O Jornal, 20-6-80


16  ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1

GUIA DA FAUNA MUSICAL LUSITANA PARTE II Dar azo a um Jazo ou ares de Muzaque ou Mozart Saudações da Milícia de Pesquisa Musical. Depois de ter passado o País a pente de pulgas à procura dos mais belos e representativos espécimes da fauna musical lusitana, podemos hoje oferecer-vos, leitor, mais uns valiosos subsídios para o Guia de Identificação aqui iniciado há semanas. Respeitando o modelo hermenêutico elaborado pelo Grupo de Lanhoso em meados de 1932, com as alterações propostas por Zlaty Amaral e Jean-Luc Godard em carta dirigida ao Telégrafo do Vouga, seguiremos assim: 1 Nome corrente; 2 Etimologia; 3 Outras denominações e variantes; 4 Tipo de música predilecta; 5 Identificação rápida; 6 Habitat natural; 7 Heróis emulados.

Jazos (Bluenotius Biliosus) 2 Da inscrição do túmulo de Charlie Parker (“Aqui jaz Bird”). 3 Brigada do Anoraque, Pracistas Alegres. As variantes são muitas. Fundamentalmente, há os Otes e os Culos. São mais raros os Diquecis e os Trapos, apreciadores do Dixieland e do Rag respectivamente. 4 Sendo o termo “Jazz” muito lato, é difícil defini-lo. Das composições de Cole Porter às de Anthony Braxton vai um bocadinho e daí recomendar-se que se olhe para a etiqueta do disco, visto não ser possível saber só de ouvido. 5 Tendência para a calvície precoce, considerada desejável nos

círculos entendidos. O uniforme é rigoroso: impera o anoraque. Os bolsos querem-se suficientemente grandes para albergar um ou dois exemplares do Downbeat, uma fotografia autografada de Luís Vilas-Boas em corpo inteiro, uma bobina clandestinamente gravada num concerto de Modern Jazz Quartet em Paris, várias tabletes de Holiday (um chocolate dedicado à memória de Lady Day), e bilhetes velhos. Da camisola e da barriga, a maior que houver – se possível até aos joelhos. Sapato de carneira, meias de basebol e calças axadrezadas completam o trajo. Em geral, quanto mais magrizela é o jazo, mais vai à bola com vanguarda, e mais considera os gordos reaccionários. Os reaccionários identificam-se facilmente: ouvem Glenn Miller às escondidas e passam a vida a assobiar o “Misty”, isto porque são uns obcecados por melodia e não compreendem que uma música inaudível e insuportável pode ter uma grande beleza teórica. Último factor: conhecem-se todos uns aos outros, bebem whisky mas dizem que é bourbon escocês, fumam cachimbo ou Lucky Strike na rua ou no Hot (em casa não vale a pena e deliciam-se com fumílios nacionais) e alegam ter tios-avós nascidos em Nova Orleães. 6 Habitam sobretudo o Hot Clube – alguns levam para lá um termo e um saco-cama para não perder tempo com deslocações. Os culos (vanguardistas) sentam-se cá fora, virando as costas à corja anafada de amantes de Ella Fitzgerald, discutindo o último Weather Report em termos abusivos e falando das melhores

maneiras de se evitar a tropa. Há também o Louisiana, em Cascais, onde se abundam os jazos menos assíduos e dedicados – aqueles que se recusam a apor o nome em abaixo-assinados à Banda da GNR, intimando-a a “Paly Dixie or Else...!”. Vivem no Bairro Alto, o equivalente alfacinha ao Latin Quarter em Nova Orleães, ouvindo gravações históricas (reconhecíveis pela abundância de ruídos extramusicais) e tirando cursos de correspondência do tipo “Você também pode ser um Boris Vian!”. Têm cães chamados Dizzy ou Duke e reproduções de Modiglianis nas paredes. 7 Os pin-ups são Billie Holiday, Bessie Smith e Claudia Cardinale (esta última para dar uma aura mística à anos 50).

Klássicos (Stradivarius Supinae) 2 De música clássica, que significa aquela que era contemporânea há mais de cem anos e futurista há cento e cinquenta. 3 Há os Erus, os da música erudita (música erudita é aquela que a plebe não alcança); os Flamencos, os apreciadores de De Falla, Sor, Rodrigo e outros compositores bem adaptados ao bacalhau; os Ilhas, que privam duma concepção Purcelliana e britânica; os Serras ou Cabreiros, partidários do bucolismo; os Tigres, aficionados do triângulo, também chamado “ferrinho”; e os Rock-fortes, cujas predilecções vão para a música sinfónica. Há ainda os Rock-em-Stockhausens (e não se sabe porque é que não têm, como os outros, o nome dum queijo célebre) que são aqueles que sabem assobiar a composição “4:33” de John Cage de cor. Esta composição, para um número infinito de executantes, consiste em 4 minutos e 33 segundos de absoluto silêncio, e ouve-se com proveito. 4 Preferem aquela música clássica que ainda não foi, ou editada pelas Selecções ou utilizada para vender champôs. Ou seja: dos compositores cujos nomes a ralé conhece, só o mais

obscuro (a sonatina de Brahms para inauguração do café Vienense que não chegou a ser construído, por exemplo). De qualquer modo, preferem discutir os oratórios de António Caldara (1670– 1736), os ballets de Werner Josten (1885–1963) ou as óperas cómicas de André Ernest Modeste Grétry (1741–1813). Claro, à socapa lá se vão deliciar com a colectânea das Selecções que a tia lhes ofereceu no aniversário, encharcando-se em Tchaikovsky, por ser o fruto mais proibido. 5 Identificam-se

As gravatas são obrigatórias, estampadas com magnólias multicoloridas e com a largura dum bacalhau adulto. facilmente. A pêra no estilo de cabrito montanhês, óculos pequenos e a calça de bombazina são os sinais fundamentais. Quanto mais Eru, mais se nota a predominância de hirsutismo facial e a preferência pela camisinha de manga curta. Trazem sempre uma pasta pela mão, às vezes repleta de velhos exemplares de A Bola para dar aquela pinta de abarrotanço documentativo. A cana de mão é estritamente reservada para as aparições televisivas e, aliás, já vai sendo considerada sobre o outré. Quanto a batutas coça-costas não há consenso, embora os Erus não as consintam senão no convívio familiar. Há ainda outros adereços protocolares: metrónomos de bolso para verificar se os limpa-pára-brisas de Dyane estão a funcionar, diapasões e pautas de compositores menores gregos do século XVI – estes últimos para abrir e estudar enquanto se toma chá de limão na


ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1  17 me a época, estando-se agora a sair da longa noite Mahleriana para emergir na madrugada do revivalismo Mozartiano. A idolatria deve ser totalmente interior, o que de todo proíbe bustos de Beethoven.

Muzaques (Labregus Parolus)

Brasileira, se possível com um ar contemplativo e sempre fazendo notas nas margens com um lápis afiadíssimo. Ambiciona-se uma distracção de génio torturado (é portanto “bem” entornar capilés pelas calças de bombazina ou gritar “Jean-Baptiste Lully!!!” em plena baixa) e um ar a atirar para o tísico, o que exige grande concentração e sacrifício. 6 Param na Gulbenkian, onde semicerram os olhos e fazem concha com a mão sobre o ouvido, tentando destrinçar o pizzicato e fingindo efectuar uma análise estruturalista in loco, isto em esboço ou em traço grosso. O que lhes é vedado é mostrar que experimentam o mais exíguo prazer, bater o pé, dança nas coxias com as companheiras ou gritar “Ganda merda!” a meio do segundo andamento. Podem, sim, mas só no intervalo, opinar que a interpretação “presta serviços” ou “se escuta não sem proveito”, conforme tenham gostado ou não. Escondem-se na cave da Livraria Buchholz, olhando para as capas e desprezando em silêncio o maralhal barulhento que bate com os penantes lá em cima. Compram um disco de Xenakis e depois vão comprar o livro que lhes explica o que compraram. 7 O herói principal muda confor-

2 De “Muzak”, deturpação da palavra “música”, e significando isso mesmo. 3 São variamente denominados de Valdovinos (de Waldo de los Rios), Papetanas (de Fausto Papetti), ou, com maior clareza, Foleiros, Parolos, Labregos, Bronzes ou Surdos. 4 Gostam de música de elevador ou de consultório de dentista. Gostam dos clássicos desde que embalados em LPs intitulados As Suas Cento e Cinquenta Melodias Preferidas Num Só Disco e interpretados em órgão Hammond e/ou acordeão. Gostam do Pop tocado por orquestras sinfónicas do Minnesota, por filarmónicas francesas de província ou por qualquer banda que não seja a original. 5 Como só compram discos pelo correio, nunca se podem identificar numa discoteca. Não vão a concertos porque afinal têm lá um ai-fai até bastante jeitoso em casa, embora seja mono, e porquê andar a gastar dinheiro se pode ouvir música em casa enquanto cola cromos da História Universal da Música desde a Pré-História até 1976 (30 cromos coloridos profusamente anotados)? Sendo um bicho caseiro, apenas se podem dar alguns pormenores acerca da sua apresentação. Vestem-se ao jeito de mestre-escola, usando uma camisola roxa de ora em ora, quando se sentem mais jovens, mais “no vento”. As gravatas são obrigatórias, estampadas com magnólias multicoloridas e com a largura dum bacalhau adulto. 6 Gravitam entre casa e escritório, escritório e casa, pelo que são difíceis de observar. Há alguns, no entanto, em Viena (Quatro Dias No Berço Da Música Clássica) a espiolhar a casa onde nasceu Johann Strauss, grande músico e percursor de Waldo de los Rios e Paul Mauriat. 7 Exprimem a sua idolatria através de bustos de plástico, cinzeiros de fórmica com a efígie de James Last, travessas para ir ao forno com títulos dos maiores êxitos dos filmes de Nelson Eddy e Jeanette McDonald e fotografias do Ray Conniff Choir.

Emepêbês (Bossanovus Veracruzae) 2 De “M.P.B.” (Música Popular Brasileira). 3 Brazucas, Caipiras, etc. 4 Gostam obstinadamente de música brasileira, ou seja, todos aqueles nomes que nunca foram capa dum Capricho ou duma Ilusão. Wanderlei Cardoso, Nelson Ned e Roberto Carlos são tabu, mas Ivan Lins, Gal Costa, Maria Bethânia, Simone e a pandilha são obrigatórios. 5 Não é difícil identificar um emepêbê. O palhinhas da Madeira que diz ter pertencido ao Jorge Ben, os jeans com uma etiqueta que reza “Não são Staroup”, o cabelo deixado secar ao vento, a camisa tropical e os sapatos brancos não deixam escapar nenhum. Andam dum modo que lhes é único, que consiste num jingão balouçante, mãos nos bolsos da calcinha colonial com cotovelos em pseudo-crawl, assobiando uma melodia de Chico Buarque. Falam um interessante dialecto, que é a língua de Camões a vergar lentamente sob a força remota do acto de Álvaro Cabral. Afectam a musicalidade brasileira, o que não raro passa por efeminação

A despensa de qualquer emepêbê está cheia de latas de goiabada e de sumo de caju, que apenas ingere quando há visitas, fingindo ter nascido a mamar leite de coco do seio materno. ou apatriotismo acintoso. Só se permitem aceitar as lusitanidades aprovadas por músicos brasileiros (o Fado, por exemplo), que, por sua vez, apenas dizem gostar porque pensam que é uma forma agradável de retribuir o interesse. A despensa de qualquer emepêbê está cheia de latas de goiabada e de sumo de caju, que apenas ingere quando há visitas, fingindo ter nascido a mamar leite de coco do seio materno. As salas de estar querem-se sobre a Estufa Fria, o mais Dias Dançarinos possível, com objectos Tupi oriundos, de facto, de S. Tomé e Príncipe. O emepêbê faz tudo para esconder o mais pequeno indício de soturno portuguesismo e é fatal que vista uma camisa estampada com ananases quando a alma se inclina para a lusitana lamechice. 6 Frequentam os bares brasileiros, onde músicos baianos de Vila Nova de Mil-fontes dedilham o violão distraidamente enquanto os clientes caem e piram-se depois de dez caipiras em cima duma autêntica feijoada à brasileira sem carne seca. Falam alto, dizendo que já admiram Milton Nascimento há vários lustros, “ainda era ele gaiato, já eu o conhecia”, ou comentando as transas da telenovela, que só vêem quando calha estar em casa àquela hora e que, prova cabal disso, é que ainda há dois meses perderam os primeiros três minutos do episódio 34. 7 Idolizam a população brasileira na sua totalidade, descontando Roberto Carlos (e mesmo assim, com certo custo). O Jornal, 29-8-80


18  ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1

UM ROCK-TESTE CIENTÍFICO: QUE ESPÉCIE DE ESPÉCIE FAZ VOCÊ? Mas havia sempre aqueles que não sabiam a que tribo pertenciam, pelo que se lhes facilitou a identificação através de um teste...

O leitor é o tipo melómano que adora o Bob Dylan pré-cristão mas pós-protesto, bate as discotecas à procura de velhos discos do Fernando Farinha, gosta dos Madness e vai à bola com as bandas sonoras de Francis Lai? Não? Foi o que pensámos, mas o problema é este: enquanto as fronteiras, que outrora dividiam os diversos compartimentos estilísticos da música popular, se desmoronam num “burro-em-pé” constante de fusões e de misturas, os melómanos vêem-se cada vez mais aflitos para se definirem. Antigamente, tudo era simples: gostava-se de Folk, ou de Fado, ou de Soul, ou de Pop. Hoje, já se ouvem autodefinições como esta: “Gosto de Pop de fusão-Motown com batida industrial e violas semi-psicadélicas, irrompendo de ora em ora para um Reggae-de-raiz ligeiro, desde que haja uma utilização violenta de sintetizadores.” Não pode ser. Sem definições, não há Benfica-Sporting, discussão, defesas apaixonadas de fetiches subjectivos, ou ataques vitriólicos a músicos consagradíssimos. Até aqui, porém, nada havia a fazer. Mas... No Laboratório de Análises Rockómanas Ontologicamente Certas e Aptas (LAROCA) de Genebra, acaba de ser divulgado um estudo seminal sobre as preferências musicais do burguês típico, intitulado Estudo Seminal Sobre as Preferências Musicais do Burguês Típico, que revela existir um método científico para determinar as lealdades latentes do indivíduo, no que toca à música, e à música que toca. As conclusões do LAROCA, apresentadas pelo professor Karinha, de Lausanne, mostram que o cérebro médio não consegue comportar mais do que um verdadeiro amor. Logo, é possível que o sr. X goste dos

Specials, mas no fundo é fadista, às vezes sem o saber. O sr. Y pode pensar que é um devoto dos folclores beirões mas no fundo o que ele é, é um skazista tresloucado. E por aí a fora. O prof. Karinha (LAROCA) aperfeiçoou um teste que permite, sem margem de erro estatisticamente saudável, determinar o fundo do melómano. É preciso uma certa coragem da parte do leitor, pois que os resultados podem abalar os preconceitos, destruir a imagem que tem de si próprio, reduzi-lo a um patético traste rondando as ruas, incapaz de conciliar o seu fundo verdadeiro com superfície que até aqui tinha projectado. Depois de uma vida inteira armado em bom e vanguardista, fica cientificamente provado que é um devoto dos

Logo, é possível que o sr. X goste dos Specials, mas no fundo é fadista, às vezes sem o saber. Boney M. Como pode voltar a enfrentar a tertúlia do café, a brigada das gabardinas com que costuma ir às retrospectivas de Straub? O aviso aqui fica. E segue-se o questionário, culturalmente adaptado para a sensibilidade portuguesa por um assistente do prof. Karinha que preferiu permanecer anónimo, mas não pode: é o dr. Krasso e pode ser insultado postalmente para Av. Ajaussa, 34 – 3ème, Lausanna L36 7HJ.

O cérebro médio não consegue comportar mais do que um amor


ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1  19 1

4

a antigo dos Deep Purple, aquele com o solo de viola que dura seis horas e vinte minutos; b de sons de ribeiros de Tennessee a gorgolejar sobre pedrinhas e plantinhas, pessoalmente gravados pela filha mais nova de Judy Collins; c pirata do Lou Reed, gravado em 1967 por um agente da brigada antidroga de Nova Iorque, durante um motim; d com quarenta versões diferentes do tema do filme Um Homem e uma Mulher.

a “Smoke on the Water”, tenho a impressão que é assim que se chama, ou “Water on the Smoke”, só sei que é bem porreirinho, tenho a impressão que sim; b o coro das baleias choramingas em “Farewell to Tarwathie” de Judy Collins – especialmente o terceiro ronco; c o próximo disco dos Dire Straits; d “Nel Blu del Pinto de Blu” na versão Marino Marini;

A ideia que eu faço dum paraíso terrestre é estar em casa, com os pés por baixo do gato, a ouvir um disco...

2

Seu tivesse de passar o resto da minha vida numa ilha deserta com uma só pessoa, escolhia de caras... a o Ian Gillan, que me podia ensinar a criar uma boa colónia de caspa e a desenvolver uma barriga de cerveja aceitável nos círculos Hard-Rock; b a Joni Mitchell, aqui há uns anitos atrás; c traidora ou não, não interessa – a Debbie Harry dos Blondie; d a Catarina Valente, preferivelmente de tanga e com uma flor tropical nos cabelos.

3

Cá para mim, o único instrumento que me mexe nos cordelinhos, que verdadeiramente me afina é... a o amplificador; b o berimbau do Alto Volta; c a seringa; d o órgão eléctrico com efeitos orquestrais, palmas, vassourinhas, um adaptador para tirar bicas, berimbaus do Alto Volta e um engraxador de sapatos automático.

Estou preparado a defender até à carnificina que o grande clássico do Rock and Roll é indubitavelmente...

5

Na minha opinião, a ambição dum músico que se preze deve ser sempre... a morrer afogado num barril de cerveja, depois de um solo de viola de seis horas e vinte minutos para abrir a sede; b respeitar a natureza; c andar com o cabelo bem curto e bem cortado; d ser contratado pelas Selecções para fazer uma compilação de versões das 127 melhores sinfonias no órgão Hammond.

6

A função primordial da música é sobretudo... a abrir a sede; b dar a sensação de pés descalços numa pradaria de mimosas naturais, vacas ecológicas e lavradores sem corantes; com bostas verdadeiras e moscardos despoluídos; c fundamentalmente criar uma atmosfera semiologicamente neutra, e , curiosamente, não isenta de sedimentos tipológicos característicos ao discursos, e, enfim, porque não afirmá-lo, lúdica. Ou seja: que se possa dançar; d encher aqueles bocados dos filmes em que as pessoas não estão a falar.

7

À parte a música contemporânea, também aprecio alguma clássica, realçando... a uhh... a música mais antiga de que me lembro é aquela do anúncio da cerveja Sagres; b o barroco neandertal; c os Velvet Underground; d aquele disco que o João Strauss fez para o Clube Popular do Disco.

8

Os textos têm a sua importância na música popular. Os temas mais apropriados ao estilo são, no entanto... a a pornografia, desde que não tenha palavras compridas como “erótico”, desde que se cinja a temas a ver com cerveja, e desde que tenha porrada... mas, geralmente, acho que o que interessa é a qualidade da... uh... música; b elegias aos rouxinóis do Tibete ou, quando muito, aos tordos do Alto Douro, numa perspectiva maoísta; c descrições pormenorizadas de estações de metropolitano nova -iorquinas, com esboços breves dos entroncamentos; d os gritinhos de “Upa! Upa! Samba!” entre o frenesim do piano e a contida angústia do acordeão electrónico – de resto, toda a música deveria ser cantada com a letra pioneira do “Adios muchachos, compañeros de mi vida”.

9

Quando gosto duma música, a minha expressão favorita, aquela que penso melhor traduzir o meu estado de espírito enlevado é... a uh; b simplesmente ecológico, companheiro!; c yah... dá para ouvir...; d isto é que é música! Isto sim! O resto é conversa, vão àquela parte, isto é que é! Não venham lá com conversas, que eu não vou nessa história! Isto é que é o que é!

10

Quando vou a um concerto, vou sobretudo para... a andar à porrada, alternando com andar nas cervejadas, enquanto o solo de viola entra na quarta hora de duração; b participar numa manifestação comunitária de apego ao significado rural da música e reviver a atmosfera pura de Woodstock, tal como vi no filme; c mostrar o meu silencioso desprezo pelo acontecimento; d ver se corresponde ao disco.


20  ESCRÍTICA POP, CAPÍTULO 1 RESULTADOS CIENTÍFICOS DO TESTE Agora, escreva o número de As, Bs, Cs e Ds (num papel à parte, para o próximo leitor deste jornal não lhe descobrir a careca) e conte-os. De acordo com a letra predominante (ou A ou B ou C ou D), consulte a análise relevante:

A

Você é inveteradamente do Rock da Pesada ou (Heavy Metal ou Hard Rock), mesmo que tenha apenas um A nos seus resultados. Como tal, que dizer? Não tem salvação. Mesmo num teste que se quer isento de juízos de valor.

B

Miguel Esteves Cardoso

Acho que as autobiografias das pessoas deveriam começar pelo presente. Eu sou uma pessoa feliz, apaixonada pela Maria João, com quem vivo há quase 13 anos. Quis ser escritor desde que me

lembro de ler – muito depois de ter aprendido a querer – e sou feliz por escrever todos os dias para as pessoas que fazem e lêem o PÚBLICO. Não é fácil escrever todos os dias – mas a obrigação

de escrever é boa. Para quem nunca escreveu um diário, é estranha a quantidade de coisas que nos acontecem. E a tristeza e outras qualidades delas que, de resto, jamais mencionaríamos.

J P A L C L M K E N A T I U W I J H G D F E T U L I P V B A O B O N E L O P R S T T U V A L A M N O P L A D O T R Y U I V A D F E G U I J K L N M O P A R E S K U O T E R L A M E W R T E N M L M O N A P O T R A S R E Y U V I C A Z R E T L O A R U N A O S U V I R A L V E Q U A T R L O M A N I P O B A L D E A V I Z O L A M R M O P L O Q U E T R S A L P I T Z E V O Ç L A Z I O S S C I L O C O C I N U M J I O L Z A L E V T R I N I C A L E T A U M B I P Z P A O D E L A V A O T E Z U B I N N M J U M L O M E T U Q U A T R I V Q N I U M A L I B A B A T R U Q U I O H T R H I O M O N O M A P W R O T I L O H Y I U Z I U L I V A T R E L I M W A C F A U N A O N A P R E I I T R Y V E N S T R U W Q E Z E T R U M O L P A T V R E N U M A N V I A L I M N T O L P I F R S A G K L J D N S C A V S L I K U M N I O M A T R E V U I B K E A V U T I V U S A T R A V E F L A M N I H G Y U T P L O I Y E A T R U V I M N A V B E S R T I C V K G N R O M S R F G N J O F P N K E P Ç E A P E O T R I V A I A M U N I V A T R Q U I V O T R O B A W E U Ç I M V A R O N Ç A E A N T R A V E I J E B F O L P W E B M T U V N T P L O M N I H W U T I L O Ç P O B A N E R I U V P T A I V Q W I S T B V I U L I R I V U I U S A L A V A B E N U T E I V O L Q W R A T S U V I Z O V U O L A B D M O N I S P U L T I T R O F I L O V S K E K F H H E B T R U V I Q U O S S V R E A B I L I T R U M Y H A T R I L O P I M U N I T A P A L A J I L A T R O V T C A M U N I T O P L Q W R T U M A V E Z U V A Z T E S T U L I A B L E P A Y O L A U J V A T I M U N A T O L I M A U N E R T V A Z E S T R U P L U E J E N C O P R M N C O T I O L K A J Q E T Y R P O L U I V A T R I V E M N O P Sopa de Letras - Aconselhável o uso de marcador amarelo

Escrítica Pop Nº1 Ficha Técnica Direcção Ana Miguel Reis, Camila Nogueira, Mafalda Remoaldo Texto Miguel Esteves Cardoso 1982  Design Ana Miguel Reis, Camila Nogueira, Mafalda Remoaldo Ilustração Camila Nogueira, Mafalda Remoaldo

Um caso insuspeito de Folqueirice aguda. Você é o tipo de pessoa com tendências rurais, plácida, prosaica e todas as outras coisas que rimam com “monótono”. É agradável a sua companhia (digamos tão agradável como observar uma demão de tinta fresca a secar) e o andar sempre de sandálias significa que cheira menos a chulé do que o cidadão médio. Mas não tem salvação.

C

Olá todos vocês armados em bons, convencidos que vos estava destinada a parte de leão nos elogios científicos. Você é uma pessoa New Wave, tipicamente provido de escolaridade obrigatória, que julga que o Rock começou em 1977. E tem muita razão, mas isso não quer dizer que tenha salvação, porque não tem.

D

Olá avó! Logo à tarde eu vou aí com bolos. Não, não me esqueci de comprar o Steradent líquido, descanse! O Jornal, 31-10-80 Boney M Balde Payola Vomitus Karinha Fauna Bosta Emepebes Editoras Muzaques


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