Imersão. Durante um, mês nossa equipe, formada por mais de 60 estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Positivo, vestiu a camisa voluntariamente para produzir a edição que a leitora ou o leitor carrega em mãos. O convite para a confecção de uma Entrelinha especial para I Jornada Nacional Mulher – Viver sem violência – evento fruto de uma parceria entre a Universidade Positivo, a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Prefeitura de Curitiba e o Instituto Pró-Cidadania (IPCC ) e que conta com patrocínio dos Correios e da Itaipu Binacional – mobilizou dos ingressantes aos concluintes. No entanto, a gênese do material não deve ser avaliada como inerente às estratégias de comunicação do evento, embora boa parte das pautas tenha sido inspirada a partir da discussões temáticas promovidas na Jornada. O objetivo central foi o de criar uma publicação que problematizasse a temática de gênero no país. Buscamos trazer relatos e histórias humanizadas, números, políticas públicas e opiniões diversas acerca dos principais eixos que envolvem a questão de gênero no Brasil para contribuir, pelo prisma do jornalismo, com os próprios debates promovidos durante o evento. Além das dificuldades costumeiras que o exercício do jornalismo impõe, encontramos durante a produção desta Entrelinha alguns desafios que, por questão de transparência, a leitora ou o leitor merece ter conhecimento: por se tratar de um veículo laboratorial, houve uma extensa reflexão sobre como abordar histórias de vida de pessoas que foram abusadas sexualmente, expostas na internet, ou ainda, que sofreram ou sofrem com atos de violência. Optamos, em casos particulares, por manter em sigilo o nome e a própria cidade de algumas fontes, mesmo quando havia autorização prévia para
Reitor José Pio Martins Pró-reitor Administrativo Arno Antonio Gnoatto Pró-reitor Acadêmico Carlos Longo Diretor da Escola de Comunicação e Negócios Rogério Mainardes Coordenadora do curso de Jornalismo Maria Zaclis Veiga Ferreira Professores-orientadores Hendryo André e Ana Paula Mira Coordenação do projeto gráfico Hendryo André Editores Ana Justi, Bruna Teixeira e Fernando Fogaça Equipe de revisão Alessandra Becker, Ana Justi, Ana Santos, Brisa Möllmann, Bruna Teixeira, Isabelle Martins, Isadora Nicastro, Laura Torres, Phaenna Assumpção e Rafaella Silva Equipe de reportagem Alana Thais, Amanda Cordeiro, Ana Clara Faria, Ana Justi, Ana Santos, Ana Paula Severino, Bruna Teixeira, Camila Abrão, Camila França, Camilla de Oliveira, Dayane Ferreira, Douglas Partica, Elizabet Letielas, Fernanda Umlauf, Gabriel Krambeck, Gabrielly Domingues, Giovana Canova, Guilherme Coimbra, Julia Bianchini, Karinne Lourenço, Karla Mirela, Laura Torres, Letícia Neco, Leonardo Mion, Lucas Capanema, Markus Kalebe, Marina Ortiz, Millena Müller, Murilo Prestes, Nicole Smicelato, Paulinne Giffhorn, Patrícia Sankari, Raul Daniel, Sabrina Miranda, Sarah Elisa Graçano, Tayná Soares, Taline Moreira, Talita Brasileiro e Vinicius Severiano. Colaboradores Alessandra Becker, Ana Colemonts, Carlos Marciano, Davi Carvalho, Erica Costa, Gabriela Menta, Heloisa Batistel, Heloisa Negrão, Izabella Moreira, Jorge de Sousa, Kérley Winques, Manoela Militão, Otávio Lucca, Priscila Fontes, Roberty Souza, Rodrigo Botura, Roiter Ferreira e Sacha Sanches. ENTRELINHA é a revista-laboratório do curso de jornalismo da Universidade Positivo e integra a Rede Teia de Jornalismo. Contatos jornalismo@up.edu.br | (41) 3317-2530 www.facebook.com/RedeTeia Tiragem: 2 mil exemplares
Patrocínio
Realização
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a divulgação. Por outro lado, procuramos – e isso não é mérito, e sim apanágio de quem busca uma formação sólida em jornalismo – apurar de forma essencialmente criteriosa: após as entrevistas e redação dos textos, entramos em contato com boa parte das fontes, especialmente as que não identificamos, para confrontar versões, confirmar dados e ratificar opiniões. A leitora ou o leitor encontrará no material desde a perspectiva histórica dos direitos conquistados pelas mulheres no Brasil até benefícios das novas tecnologias, como aplicativos, sites e plataformas que possibilitam denunciar, a partir de uma perspectiva colaborativa, os mais variados casos de violência contra a mulher. Terá acesso ainda a textos que discutem problemas oriundos do mau uso dessas ferramentas, como reportagens ligadas, por exemplo, à pornografia de vingança. Infelizmente, embora haja avanços, ser mulher no Brasil significa ter a liberdade limitada. Há abusos em espaços privados e públicos, que geram receios, como caminhar pelas ruas ou até mesmo aceitar uma carona, mesmo que ela seja oferecida por alguém conhecido. Duramente, os dados apurados na revista revelam: as denúncias aumentaram, mas a sensação de violência não diminuiu. Mais do que mudar as estatísticas, buscamos produzir uma revista que fomente a lógica de que o respeito entre mulheres e homens deva ser recíproco. A liberdade de ninguém pode ser diminuída apenas pela justificativa de gênero. Acreditamos que o jornalismo é central no exercício de transformação social. Que o leitor ou a leitora possa entrar no clima de imersão que contagiou a equipe da Entrelinha durante a leitura das reportagens. E que o material possa auxiliar nas discussões do evento!
ESPECIAL | Viver sem violência
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“Marca de amor, a ferro e flor, na minha pele”
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Longe dos olhos, perto da liberdade “Enfrentar a violência de gênero exige mudança cultural”, afirma especialista
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O preço do corpo perfeito
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A volta dos seios pequenos e da pequenez da mídia
Você pode acompanhar tudo o que acontece na I Jornada Nacional Mulher – Viver sem violência pelo Facebook e pelo Instagram. Confira os endereços.
facebook.com/jornadamulher
@viversemviolencia
Estão disponíveis alguns complementos da produção da revista pelo sistema QR Code. Há vários aplicativos de leitura para download nos sistemas IOS e Android. Toda vez que você encontrar um símbolo similar a este à direita, você pode acessar vídeos, fotos, sites ou redes sociais. O QR Code ao lado leva você ao site do evento. Leia a Entrelinha com o celular em mãos.
Entrelinha | JORNALISMO UP
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PROGRAMAÇÃO
15h00 - 19h00 Credenciamento
De 23 a 25 de novembro, Curitiba recebe a I Jornada Nacional Mulher Viver sem violência. A jornada conta com uma série de eventos paralelos, nos dias 24 e 25 de novembro, no campus Ecoville da Universidade Positivo e na UFPR. Confira.
19h00 | APRESENTAÇÃO CULTURAL | Centro de Eventos Quinteto de violinos
19h15 | SOLENIDADE DE ABERTURA | Centro de Eventos Carta de Curitiba para o Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
Roseli Isidoro, secretária da Mulher de Curitiba e presidente do Conselho Mun. dos Direitos da Mulher de Curitiba.
20h00 | PALESTRA DE ABERTURA | Centro de Eventos Maria da Penha Fernandes
08h30 às 12h00 Credenciamento
09h00 | PALESTRA 01 | AUDITÓRIO DO BLOCO AZUL
09h00 | PALESTRA 02 | AUDITÓRIO DO BLOCO BEGE
O PAPEL DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NO COMBATE à CULTURA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
VIOLÊNCIA, DESIGUALDADES DE GÊNERO, SEXUALIDADE E RAÇA
09h55 |PAINEL 01 | AUDITÓRIO DO BLOCO AZUL
09h55 |PAINEL 02 | AUDITÓRIO DO BLOCO BEGE
Beatriz Accioly, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.
Campanha Chega de Fiu Fiu, Juliana de Faria, jornalista e blogueira feminista. Interseção entre Mídia e Gênero, Mariana Franco Ramos, jornalista do Coletivo de Jornalistas Feministas Nísia Floresta. Rede Livres de Abuso, Bruna de Lara, uma das criadoras da Rede Livres de Abuso. Moderador: Marcos V. Giovanella
Você pode chegar até a Universidade Positivo usando o sistema coletivo de transporte. Faça o download do aplicativo BUSÃO CURITIBANO, disponível nos sistemas Android e IOS). Você pode usar a Linha Expresso Centenário - Campo Comprido (pontos centrais na
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ESPECIAL | Viver sem violência
Melina Fachin, pesquisadora do PPGD - UFPR e membro do Conselho Permanente de Direitos Humanos do Estado do Paraná e da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PR.
Rede Mulheres Negras, Heliana Hemetério, Rede Mulheres Negras. Homens que matam mulheres: fatos e versões. Departamento de Sociologia (UFPR), Rafaela Westphal. O Corpo Perturbador, Rafaelly Wiest, conselheira nacional de direitos humanos Moderador: Igo Martini
avenida Sete de Setembro, praças Rui Barbosa e Osório e terminal Campina do Siqueira), a linha Ligeirinho Pinhais - Campo Comprido (estações atrás da Catedral de Curitiba, praça 29 de Março e terminal Campina do Siqueira). No terminal Campo Comprido, pegar o alimentador Universidade Positivo (829). Desça no ponto próximo ao bloco vermelho.
PROGRAMAÇÃO
13h30 - 16h00 Credenciamento
14h00 | PALESTRA 03 | AUDITÓRIO DO BLOCO BEGE A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NA PERSPECTIVA DA SAÚDE
Ana Flávia D’Oliveira, pesquisadora da violência contra as mulheres, coordenou no Brasil o estudo multipaíses da Organização Mundial de Saúde sobre a violência doméstica contra as mulheres na perspectiva da saúde.
14h55 |PAINEL 03 | AUDITÓRIO DO BLOCO BEGE
Parto Humanizado, Tereza Kindra, enfermeira e diretora executiva da Maternidade do Bairro Novo de Curitiba. Médicos peritos do IML x atendimento humanizado nos hospitais de referência, Maria Leticia Fagundes, ginecologista perita do IML e coordenadora da ONG Mais Marias. Atendimento psicológico a mulheres em situação de violência, Rosângela Lopes Camargo Cardoso, professora do curso de Psicologia da Universidade Positivo. Movimento Bem Nascer em Curitiba, Xênia de Melo, advogada e integrante do Movimento Bem Nascer. Moderadora: Luci Belão
14h00 | PALESTRA 04 | AUDITÓRIO DO BLOCO AZUL
SAÚDE MENTAL E FATORES PSICOSSOCIAIS NO TRABALHO E AÇÕES PARA IMPLANTAÇÃO DA DIVERSIDADE Lis Soboll, professora e pesquisadora no Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná.
14h55 |PAINEL 04 | AUDITÓRIO DO BLOCO AZUL
Ideologia de Gênero e Educação, Cláudia Cobalchini,
Psicóloga e professora da Universidade Positivo. A questão de gênero nos Planos de Educação: polêmicas e preconceitos/tabus, Dayana Brunetto, pesquisadora do LABIN/UFPR Prevenir a violência contra mulher: minimizando as consequências, Gabriela Isabel Reyes Ormeno, psicóloga e professora no mestrado em Psicologia da Universidade Tuiuti. Moderadora: Terezinha Mafioletti
TÁXI
Outra opção para chegar à Universidade Positivo é via táxi. Além do pedido por aplicativo (99 Táxis, por exemplo), você pode solicitar táxi pelos telefones 0800 600-7676 ou (41) 3333-3333. Há carros que aceitam cartões (débito ou crédito). Uma corrida do Centro até
14h00 - 17h00
| OFICINA | BLOCO AZUL | SALA 206
SEXUALIDADE E CULTURA DO ESTUPRO
Fernanda Azeredo de Moraes, professora do Departamento de Antropologia da UFPR Mariana Corrêa de Azevedo, pesquisadora do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR.
14h00 - 17h00 | WORKSHOP 01 | BLOCO AZUL | SALA 207
DITADURA DA BELEZA E ESTÉTICA COMO FORMA DE VIOLÊNCIA CONTRA a MULHER
Viviane Lucci Busnardo, professora do curso de Fisioterapia da Universidade Positivo. Projeto A Pele da Flor, Flávia Carvalho.
14h00 - 17h00 | WORKSHOP 02 | BLOCO AZUL | SALA 208 DESCOLONIZANDO REPRESENTAÇÕES – IMAGEM, VIOLÊNCIA, GÊNEROS E SEXUALIDADES
Milena Costa de Souza, mestra em Sociologia pela UFPR. Carolina Ribeiro Pátaro, mestra em Sociologia pela UFPR. PROJETO Monólogo Dentro de Mim, Sonia Morena
14h00 - 17h00 | WORKSHOP 03 | BLOCO AZUL | SALA 209 CRÍTICA CULTURAL FEMINISTA
Lennita Oliveira Ruggi, setor de Educação da UFPR Amélia Siegel Corrêa, Programa de Pós-Graduação em Sociologia PROJETO À Luz do Parto, Marcia Kohatsu
14h00 - 17h00 | MESA-REDONDA | BLOCO AZUL | SALA 202 Ciclo da violência contra as mulheres: há esperança? Perspectivas dos profissionais junto à rede de enfrentamento da violência
Érika Cecconi B. M. Checan, musicoterapeuta, articuladora da Rede Mulheres que se Importam. Adriano da Levedove, padre, filósofo, teólogo e terapeuta. Ivete Contieri Ferraz, médica, psiquiatra. Patrick Reason, engenheiro, teólogo, gestor da ONG Encontro com Deus. Silvana Leoni Calixto, psicóloga, terapeuta clínica, participante do programa Consciência Rosa.
a Universidade Positivo custa entre R$ 30 e R$ 40. Quem optar por condução própria, seguir pela rua Padre Agostinho (via rápida Champagnat) até o final. Continuar pela rua Pedro Viriato Parigot de Souza. A Universidade Positivo encontra-se à direita, cerca de um quilômetro depois do terminal Campo Comprido. O estacionamento é terceirizado pela empresa Estapar. Entrelinha | JORNALISMO UP
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08h30 às 12h00 Credenciamento
09h00 | PALESTRA 05 | AUDITÓRIO DO BLOCO AZUL POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
Aline Yamamoto, secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria da Mulher, Igualdade Racial e Direitos Humanos.
09h55 | PAINEL 05 | AUDITÓRIO DO BLOCO AZUL
Convenção Interamericana e Convenção de Belém do Pará (MESECVI), Leila Linhares Barsted, representante no MESECVI. Patrulha Maria da Penha de Curitiba, Cleusa Pereira, inspetora da Guarda Municipal de Curitiba e coordenadora da Patrulha Maria da Penha. Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, Eloisa Casto Berro, coordenadora da Casa da Mulher Brasileira. Fundação de Ação Social (FAS) de Curitiba, Márcia Fruet, presidente da FAS. Moderadora: Roseli Isidoro
09h00 | PALESTRA 06 | AUDITÓRIO DO BLOCO BEGE
CRIMINALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
Clara Maria Roman Borges, professora de Direito da Universidade Positivo e da Universidade Federal do Paraná.
09h55 | PAINEL 06 | AUDITÓRIO DO BLOCO BEGE
COMISSÃO DE ESTUDOS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO OAB-PR, Sandra Lia Bazzo Barwinski, presidente da CEVIGE. Assessoria jurídica popular a mulheres em situação de violência, Guilherme Brenner Lucchesi, professor do Núcleo de Práticas Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Lei do Feminicídio, Lenice Bodstein, desembargadora do Tribunal de Justiça do PR (TJ-PR). Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero do MP-PR, Mariana Seifert Bazzo, promotora e coordenadora do NUPIGE. Moderadora: Diana Carolina Valência Tello.
Localize-se Via Padre Agostinho 9 km TERMINAL CAMPO COMPRIDO 1,5 km
UNIVERSIDADE POSITIVO 6
ESPECIAL | Viver sem violência
Centro 3,5 km PRÉDIO HISTÓRICO UFPR
A estação-tubo Eufrásio Corrêa, em frente ao Shopping Estação, tem linhas que vão direto ao Prédio Histórico da UFPR (Santa Cândida - Capão Raso, sentido Santa Cândida) e à Universidade Positivo (Centenário - Campo Comprido, sentido Campo Comprido)
Av. 7 de Setembro 1 km RODOVIÁRIA
SHOPPING ESTAÇÃO
Avenida das Torres 16 km
AEROPORTO AFONSO PENA
ATENÇÃO
Todas as atividades NESTA PÁGINA com fundo cinza serão no Prédio da Reitoria, localizado a 200 metros do Prédio Histórico. A programação sem cor de fundo acontece no Prédio Histórico
13h30 - 16h00 Credenciamento
14h00 | PALESTRA 07 | SALÃO NOBRE
VIOLÊNCIA E O RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES
Helena de Souza Rocha, advogada, mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Essex no Reino Unido. Professora de Direitos Humanos e Biodireito na Universidade Tuiuti do Paraná.
14h55 | PAINEL 07 | SALÃO NOBRE
Mulher, Prisão e Direito, Érica de Oliveira Hatmann, defensora pública da União. Relações de Gênero e Justiça Restaurativa, André Ribeiro Giamberardino, defensor público. Núcleo de Direitos Humanos (PUC-PR), Jucimeri Isolda Silveira, assistente social, superintendente da Fundação de Ação Social. Moderador: Luiz Fernando Lopes Pereira.
14h00 - 17h00 | WORKSHOP 04 | SALA DA MEMÓRIA O LUGAR DO GÊNERO: DIREITO(S), IDENTIDADE(S) E ESPAÇO(S) NA TEORIA E NA PRÁTICA
Thiago Hoshino, pesquisador do INCT, do PROPOLIS e Prof. da especialização em Direito à Cidade e Gestão Urbana da Universidade Positivo. Gabriela Becker, cientista social e mestre em Antropologia. PROJETO Conte Conosco da UFPR
14h00 | PALESTRA 08 | ANFITEATRO 100 (REITORIA)
14h00 - 17h00 | WORKSHOP 05 | SALA LAMARTINE MULHERES E CASTIGO: AS DIVERSAS FACES DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Katie Silene Cáceres Arguello, Direito (UFPR) Mariel Muraro, professor da Faculdade de Pinhais, doutoranda em Direito pela UERJ Washington Pereira da Silva Reis, mestre em Direito pela UFPR. PROJETO Ciência e Transcendência Educação, Profissionalizaçao e Inserção social, Cristiane Ans Oliveira
14h00 - 17h00 | WORKSHOP 06 | SALA ALCIDES MUNHOZ
ESTRATÉGIAS SOCIOJURÍDICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO Ana Carla H. Matos, professora de Direito da UFPR. Andressa Regina Bissolotti dos Santos, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. PROJETO Promotoras Legais Populares
14h00 | OFICINA | SALA 310 (SANTOS ANDRADE)
GRUPO RE-TRATO PLAYBACK THEATRE, Liziana Rodrigues
14h00 - 17h00
| OFICINA | SALA 702 (REITORIA)
MULHERES NEGRAS: SUBJETIVIDADES E RESISTÊNCIAS ÀS VIOLÊNCIAS
Andressa Ignácio, Programa de Pós-graduação em Sociologia.
14h00 - 17h00 | WORKSHOP 07 | SALA 704 (REITORIA) VIOLÊNCIA SEXUAL
Marly Marton, professora da Universidade Positivo. PROJETO Atendimento às Vítimas no Hc, Rosires Andrade
PERSPECTIVAS PARA UMA CULTURA DE NÃO VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
14h00 - 17h00 | WORKSHOP 08 | SALA 706 (REITORIA)
14h55 |PAINEL 08 | ANFITEATRO 100 (REITORIA)
Hilton Costa, Universidade Estadual de Maringá (UEM). PROJETO Educação em Direitos Humanos/SME, Lúcia H. Xavier.
Rita Laura Segato, Departamento de Saúde Coletiva da UNB.
Sobre humanos e outros animais: construindo subjetividades e práticas não violentas, Miriam Adelman, Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR. União Brasileira de Mulheres, Elza Campos, assistente social, presidente da UBM, vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Curitiba. Prêmio Empreendedora Curitibana, Gina G. Paladino, economista, presidente da Agência Curitiba de Desenvolvimento. Programa Equidade de Gênero da Itaipu, Maria Helena Guarezi, coordenadora do programa. Moderadora: Amélia Siegel Correa.
MULHERES NEGRAS: TRAJETÓRIAS, EXPERIÊNCIAS E HISTÓRIAS
14h00 | OFICINA | SALA 707 (REITORIA) masculinidades
Fernanda Azeredo de Moraes, professora do Departamento de Antropologia da UFPR. Mariana Corrêa de Azevedo, pesquisadora do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR.
19h00 | SOLENIDADE DE ENCERRAMENTO | SALÃO NOBRE
Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
MARKUS KALEBE, KAMILLA DEFFERT E SABRINA MIRANDA
Colaborou: Bruna Teixeira
A cada 12 segundos, uma mulher sofre violência no Brasil. Mesmo após a Lei Maria da Penha, 63% das mulheres avaliam que a insegurança aumentou Bater, empurrar, sacudir, morder, estrangular, chutar, queimar, cortar, furar, mutilar e torturar são algumas definições de violência física. Porém, a lei não se limita apenas a esses tipos de atos. Sancionada em 2006, a Lei Maria da Penha também define violência moral, psicológica, sexual e patrimonial como agressões contra a mulher, tão graves quanto as marcas visíveis. Xingamentos e humilhações, ameaças e assédios são exemplos de violência psicológica (ver página 28). Enquanto ofender publicamente, expor comentários ofensivos na internet ou socialmente são crimes que se enquadram como violência moral. São consideradas violência patrimonial ações que controlam dinheiro ou bens. Já fazer sexo sem consentimento, forçado ou quando a outra pessoa está inconsciente, obrigar outras pessoas a fazerem sexo, impedir uma pessoa de prevenir gravidez ou forçá-la a fazer aborto são considerados crime de violência sexual (ver página 10). Historicamente, as mulheres têm sido vítimas de violência, embora haja avanços na conquista de direitos (ver página 16). Estudos, como o da cartilha Viver sem violência é um direito da mulher, revelam que 80% dos casos de violência doméstica foram cometidos por parceiros ou ex-parceiros. Apesar de a lei Maria da Penha fazer com que as denúncias tenham aumentado, a sensação e os próprios índices de violência, segundo a última pesquisa DataSenado, aumentaram. Mesmo com a implementação da Lei Maria da Penha, 63% das mulheres avaliam que a violência aumentou. O principal agressor continua sendo o companheiro, presente em 73% dos casos relatados. Há uso de violência física em 66% das ocorrências.
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ESPECIAL | Viver sem violência
O Mapa da Violência 2015 – homicídio contra mulheres considera que em 2013, o último ano com dados disponíveis, 4,8 mil mulheres foram mortas. O estudo dimensiona esse volume, levando em conta que, no mesmo ano, 44% dos municípios do país contavam com um número menor de meninas e mulheres na população. Isso significa, comparando com outros países (ver página ao lado), que o Brasil é o quinto país mundial que mais mata mulheres, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa. Em contraponto aos países tidos como civilizados, o país tem 48 vezes mais homicídios que o Reino Unido, 24 mais que a Irlanda ou a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou a Escócia. Entre 2007 e 2013, as taxas passaram de 3,9 para 4,8 por 100 mil, um aumento de 23%. VIOLÊNCIA E DROGAS “Minha irmã é agredida pelo companheiro, que é usuário de drogas. Nossa família só soube quando o chefe do escritório onde ela trabalha como secretária me ligou contando que ela estava com vários hematomas no rosto”, conta a secretária executiva Josiane Nekel, de 32 anos. Desde o início do namoro, há dois anos, ele a agride. Já Monique sofreu abu*Nome fictício so sexual de um primo quando tinha entre 15 e 16 anos. “Levei meu namorado para apresentá-lo à minha família. Saímos para andar, mas acabou ficando tarde e ele teria que retornar para a nossa cidade. Foi quando pedi para o meu primo nos levar até a rodoviária para poder embarcar no ônibus. Incomodado com a situação, ele o deixou na rodoviária, mas enquanto retornávamos para casa pegou um caminho totalmente
diferente, quando começou a me agredir, xingar e abusar. Afirmou que se eu contasse para alguém tomaria ‘providências’”. Monique relatou a história ao pai, que teve uma reação inesperada: “Além de não acreditar, jogou a culpa em mim, agrediu a mim e a minha mãe”. Desde criança a jovem presenciava o pai agredindo a mãe. Segundo a central Ligue 180 – de atendimento à mulher –, foram registrados 1,3 mil casos de violência sexual somente este ano. Já a pesquisa DataSenado, publicada também em 2015, revela que apenas uma em cada quatro mulheres denuncia o agressor: 74% delas afirmam que o motivo, na maioria das vezes, é o medo de vingança. MULHER VIVER SEM VIOLÊNCIA Foi por esses motivos que, em 2013, foi criado o projeto Mulher – viver sem violência, que dá nome à Jornada. O programa, coordenado pela Secretaria de Políticas para Mulher, tem o objetivo de combater todo tipo de violência contra a mulher. Segundo dados do balanço de 2014, o programa já havia realizado mais de 4,1 milhões de atendimentos. Pessoas que conhecem alguma mulher que já tenha sofrido algum tipo de violência chegam a 56%, segundo pesquisa do DataSenado. As primeiras agressões tendem a ser na juventude, com o percentual de 34%, entre mulheres da faixa etária de 20 a 29 anos. Sem esquecer que 66% das vítimas reconhecem terem sido violentadas inicialmente até os 29 anos. Somente 14% das mulheres alegaram que sofreram violência pela primeira vez depois dos 40 anos, dados que sugerem que, culturalmente, a mulher é violentada em toda fase de sua vida.
FONTE: Mapa da Violência 2015
Finlândia
Noruega
Polônia
Embora no Mapa da Violência 2015 o Brasil ocupe a quinta colocação entre os países onde mais ocorrem crimes contra a mulher, o mapa ao lado mostra um comparativo das taxas de homicídio (número de mortes por 100 mil habitantes) em alguns países do mundo, tendo como ano-base 2013, data referente à última publicação da taxa de homicídios com o recorte de gênero no Brasil. O recorte foi feito porque no Mapa da Violência há algumas estatísticas de países mais antigas
Holanda
Hungria
Moldávia
Rep. Theca
Portugal
Quirquistão Croácia Turquia
Brasil Sérvia Maurícia África do Sul Leia o código acima para conferir as taxas de homicídios de mulheres por regiões, estados e capitais brasileiras no infográfico interativo
Kérley Winques e Carlos Marciano/ENTRELINHA
Reportagem
ANA SEVERINO, ANA JUSTI E FERNANDA UMLAUF
O dicionário define “assédio” como a “insistência inconveniente, persistente e duradoura em relação a alguém, perseguindo, abordando ou cercando essa pessoa”. E quando esse assédio é sexual? Nesses casos, trata-se de qualquer manifestação sensual ou sexual alheia à vontade da pessoa a quem se dirige o gesto. A lei brasileira categoriza e criminaliza tais posturas. O artigo 216-A do Código Penal caracteriza o assédio como constrangimento e/ou ameaças com a finalidade de obter favores sexuais, geralmente feito por alguém de posição superior à vítima. Também no Código Penal, o Ato Obsceno ocorre quando alguém pratica uma ação de cunho sexual em local público a fim de constranger ou ameaçar alguém. Mais do que definições em palavras ou leis, apenas quem passa por essas abordagens sabe as marcas que esse tipo de agressão deixa. Numa pesquisa sobre
violência contra a mulher, realizada pelo Instituto Avon em 2014, 78% das entrevistadas (mulheres entre 16 e 24 anos) reportaram já ter passado por situações de assédio. As ações descritas na pesquisa são as mais variadas, vão desde cantadas consideradas ofensivas, violentas ou desrespeitosas, até o assédio físico, ou tentativas de fazer fotos ou vídeos sem a autorização da vítima. O medo de sofrer assédio pode gerar ansiedade, depressão e a limitação do próprio direito de ir e vir, ou modo de se vestir: há mulheres que deixam de andar por espaços públicos em determinadas horas, ou com certas roupas, por receio de passar por esses constrangimentos. A designer de interiores, de 26 anos, Tatiany Magalhães relata que diversas vezes deixou de usar as roupas que queria para evitar situações desconfortáveis. “Uma vez, depois de um cara passar a mão na
minha bunda, deixei de ir trabalhar com um determinado tipo de calça”, conta. Nem a pouca idade parece constranger os assediadores. Harianna Stukio tem 21 anos e sofreu o primeiro assédio sexual aos nove. O constrangimento ocorreu no transporte público: “Um homem muito alto começou a me enconxar no ônibus e comecei a recuar. Ele veio mais perto e me prensou contra a porta”. Ela conta que sentiu-se envergonhada, e abaixou a cabeça. “Nesse momento vi que ele estava excitado”. Mesmo depois de tantos anos, a lembrança é dolorida: “Aquilo me assombrou por anos e até hoje é horrível relembrar”. Apesar do silêncio na época, ela conta que agora não deixa os assédios passarem batido. “Antes eu me calava por medo, mas o feminismo me ajudou muito a não me calar. Quando alguém mexe comigo eu grito, faço escândalo, aponto para o cara”, afirma. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
TAYNÁ SOARES
Colaborou: Ana Colemonts
ONU: 120 milhões de mulheres foram estupradas no mundo ano passado. Ipea: 67% dos crimes no país são cometidos por pessoa próxima à vítima Uma a cada cinco mulheres será vítima de estupro ou tentativa de estupro. Os dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU) também revelam que, em 2014, cerca de 120 milhões de mulheres em todo o mundo foram vítimas de estupro ou violação até os 20 anos. A pesquisa também revelou que 70% das mulheres sofreram algum tipo de violência no decorrer da vida. É considerado estupro (ou tentativa), quando a pessoa obriga (usando da violência, constrangimento ou ameaça) outra a praticar atos sexuais. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil, aproximadamente 527 mil tentativas ou estupros consumados são registrados. A pesquisa ainda divulgou que 67% dos casos são cometidos por conhecidos ou parentes próximos das vítimas. Das vítimas, 70% são crianças e adolescentes e apenas 10% dessas violências são notificados. O estado com maior taxa de estupros é Roraima (RR), com 55,5 casos a cada 100 mil habitantes. Em seguida vem o Mato Grosso do Sul (MS), com 51,3, e o Amapá (AP), com 45. Helena Antunes, de 21 anos, faz parte da estatística das mulheres que sofreram tentativa de estupro. Aos 13 anos, enquanto esperava o pai na saída da aula de inglês, ela foi assediada pelo próprio professor. Ele a levou para o carro, começou a abraçá-la e a beijar os seios da menina. “Ele disse que se fosse mais novo, tudo aquilo, referindo-se ao meu corpo, seria dele. Eu comecei a entrar em desespero”, desabafa. Então a jovem saiu do carro e decidiu ir para casa a pé, sozinha. Durante os dez primeiros minutos do trajeto, o professor a seguiu de carro, até que o pai
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ESPECIAL | Viver sem violência
de Helena a encontrou: “Nunca mais voltei para a escola de inglês e contei aquilo apenas para a minha mãe”. Tal acontecimento implicou uma série de problemas na vida dela. Hoje, a jovem, que mora em São Paulo (SP), tem transtorno de ansiedade social, medo de pessoas, crise de pânico, além de ter trancado a faculdade devido à aglomeração de pessoas. Fernanda, de 18 anos, foi estuprada há dois *Nomes fictícios anos. “Estava saindo com um homem de 24 anos. Era normal, saíamos, nos divertíamos, mas nunca dei abertura para sexo”, conta. O homem sabia que Fernanda nunca teve o costume de consumir álcool, mas por insistência, ela aceitou vodka que ele ofereceu. “Então apaguei”, conta a jovem, que completa: “Me lembro de alguns flashes na cama do motel, dele em cima de mim, da luz amarelada do banheiro e de muita dor. Eu sequer conseguia pedir para ele parar”. Ao chegar em casa, Fernanda contou para a mãe dela o acontecido. No outro dia, logo pela manhã, elas registraram um boletim de ocorrência. “Fiz o exame que pediram na delegacia, fui maltratada pela assistente do médico. Na delegacia fomos atendidas pelo escrivão. Ele disse apenas que eu devia tomar mais cuidado para isso não se repetir. Depois o delegado apareceu e disse a mesma coisa”, conta. Conforme o Ipea, a maioria dos agressores não é punida. São Paulo é a cidade que mais teve relatos de sexo sem consentimento no período de um ano. Os dados do 8º Anuário Nacional de Segurança Pública, divulgados em 2014, revelam que, em 2013, ocorreu um estupro a cada quatro minutos.
Em números absolutos: 143 mil casos. Os pesquisadores do anuário também mostraram que, desses casos, apenas 35% são denunciados. O relatório Violência Contra a Mulher e Estupro no Brasil, divulgado em abril de 2014 pelo Ipea, diz que 15% dos estupros são coletivos. O relatório revela que as vítimas estavam alcoolizadas de 20% a 40% dos casos. É o caso da jovem curitibana Alice. Ela estava no primeiro ano de faculdade quando decidiu ir a uma festa universitária. “Quando cheguei todos já estavam bêbados, menos eu. Lembro-me que um moço me ofereceu uma bebida muito boa. Quando percebi, mal conseguia parar em pé”, revela. Após ter ficado bêbada, o jovem roubou um beijo à força: “Ele me pegou no colo e me levou para o quarto da pousada onde era a festa. A porta e a janela estavam abertas, ou seja, todos viram o que estava acontecendo e ninguém fez nada”. Ela completa: “Não tinha consciência do meu próprio corpo e tentava resistir enquanto ele tentava arrancar minha roupa. Lembro pouquíssimo dessa parte, praticamente nada. Quando vi, ele estava me penetrando. A camisinha estourou e, mesmo assim, ele continuou. Me disseram que aquilo durou horas”. Apesar do estupro, ela revela que a parte mais humilhante de tudo aquilo foi no dia seguinte, quando as pessoas estavam zombando por ela ter tido relação sexual. “Depois descobri que ficou uma mancha enorme de sangue na cama, no quarto, na toalha, na minha calcinha. Muitas pessoas vieram me perguntar se eu era virgem, mas eu não era. Aquele sangue era da violência que ele usou para me estuprar”, relata.
Reportagem
LAURA TORRES
Kelly Cordeiro/ENTRELINHA
VI.O.LÊN.CIA: 1. Qualidade de violento. 2. Qualidade do que atua com a força ou grande impulso; força, ímpeto, impetuosidade. 3. Ação violenta. 4. Opressão, tirania. 5. Intensidade. 6. Veemência. 7. Irascibilidade. 8. Qualquer força empregada contra a vontade, liberdade ou resistência de pessoa ou coisa. 9. Constrangimento físico ou moral, exercido sobre
alguma pessoa para obrigá-la a submeter-se à vontade de outrem; coação. Essas são as definições para violência, de acordo com o dicionário Michaelis da língua portuguesa. Vanda de Quadros, de 39 anos, é hoje uma mulher totalmente renovada, mas, no passado, três pessoas marcaram sua vida. Aos sete anos, foi estuprada por
um primo de seu pai. Dos nove até os 13 anos foi abusada frequentemente e, aos 16, sofreu uma tentativa de estupro. Quando pequena morava no interior de Ponta Grossa, cidade a 90 quilômetros de Curitiba. Com uma vida sofrida, não tinha roupa, calçados, brinquedos e muitas vezes passava fome. A mãe aceitava “presentes” do patrão e, em troca, Entrelinha | JORNALISMO UP
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deixava que ele abusasse da filha. O pai era totalmente ausente: “Só sabia brigar e bater na minha mãe e ela só cuidava do meu irmão, até hoje é assim”, afirma. Aos 13 anos, a professora da escola falou sobre sexo e ela então entendeu o que estava passando. Não contou para ninguém e, mesmo se tivesse contado, acredita que não teria mudado as coisas. “A primeira pessoa para quem contei foi para meu atual marido, depois contei para minha família e minha mãe disse que a culpa era minha, que quem não prestava era eu”. De acordo com Chayene Hackbarth, mestre em Psicologia, quando os pais se deparam com uma situação de abuso sexual é natural que fiquem ansiosos: “É preciso tomar cuidados para que a criança não sofra mais, como culpabilizá-la pelo abuso ou duvidar de sua palavra”. Os abusos contra Vanda duraram quatro anos, dos nove até os 13 anos. Ela afirma que era uma criança retraída, não conversava com ninguém e na escola não tinha amigos. Entre 13 e 14 anos, relata ter se tornado uma pessoa violenta; agredia, principalmente, os meninos. “Uma vez estava vendo umas meninas pequenas brincarem. Veio um menino e ergueu o vestido de uma delas e eu falei para ele não fazer de novo senão arrebentava ele. Só que ele fez. Eu joguei ele contra a parede e só não o matei porque a secretária da escola chegou a tempo”, relata. Em maio deste ano, reforçando a luta contra o abuso infantil, foi lançado o filme O Silêncio de Lara, uma parceria entre o Centro Europeu e o projeto “Quebrando o Silêncio”, da Igreja Adventista do Sétimo dia. No filme, Lara mostra-se constantemente angustiada por lembranças do passado, e esgotada por guardar esse segredo por tantos anos, vivendo dias de angústia, medo e revolta. Até que, encorajada por uma propaganda em um folder, ela começa a lutar contra o medo. O nome do filme foi escolhido porque Lara significa “aquela que carrega um silêncio”. Caroline Roehrig interpretou a mãe de Lara, e conta que, no filme, ela está um pouco alheia ao que acontece com a menina. Como engravidou muito jovem e o relacionamento não deu certo, a todo momento ela busca construir uma nova família para a filha e acaba fechan-
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do os olhos para o momento que a menina vive, negligenciando indiretamente e acreditando que seria algo normal da adolescência. “Normalmente, quem sofre a violência sente medo, acuado, com culpa, e o filme mostra que isso não é verdade. A pessoa não tem culpa e tem para onde recorrer”, conta. O diretor e roteirista Rudy Barros acredita que o filme pode ajudar muitas crianças e adolescentes a se prevenirem de abusos e denunciarem os agressores. Ele conta que o roteiro foi feito com base em relatos reais. Uma das pessoas que inspirou o diretor foi Maria, de 37 anos. Com *Nomes fictícios apenas 9 anos, o avô materno começou a molestá-la. Ele a tocava, acariciava partes íntimas, falava coisas obscenas e também havia tentativas de penetração, que ele só não conseguia porque não tinha mais ereção. “Sentia medo, raiva e muito nojo de tudo aquilo”, explica. O avô tinha entre 60 e 65 anos, não fazia ameaças, mas pedia para que Maria não contasse a ninguém. “Realmente não contaria naquela época, porque a vergonha era muito grande”, afirma. Maria conta que era um misto de sentimentos ruins: “Medo quando ele se aproximava ou de ficar sozinha com ele... E culpa. Porque, logicamente, pela atuação dos hormônios, eu sentia prazer, acho que uma vez senti até orgasmo e ele percebeu. Chorei muito nesse dia”. Ela sabia que estava errado, mas não conseguia mudar a situação. Aos 11 anos, menstruou pela primeira vez, o avô soube e desde então não a molestou mais. Depois de uns anos, Maria descobriu que ele também fazia isso com sua irmã mais nova. “Nós duas nunca conversamos sobre isso. E ninguém da
minha família sabe até hoje”. O avô faleceu poucos anos depois. “Não sei exatamente que prejuízos essa experiência pode ter me causado”, admite. Outra pessoa que fortaleceu a pesquisa de Rudy Barros foi Rafaela. Desde os quatro anos, morava numa comunidade carente, chamada Vila Arraiz, no bairro da Várzea, em Recife (PE). Cresceu com a ausência do pai biológico, que somente a registrou e não manteve contato. “Não lembro bem como minha mãe iniciou outro relacionamento, mas lembro que era pequena e meu padrasto já morava conosco: eu, minha mãe, minha irmã mais velha e meu irmão”, explica. A mãe sempre trabalhou para que não faltasse nada aos filhos. Já era casada e o padrasto vivia de bicos, não tinha um emprego fixo. “Mas lembro que tinha uma época que ele era vigia de um prédio à noite e, durante o dia, ficava em casa, e era aí que aconteciam os abusos. Aos cinco anos, a caçula começou a ser molestada. Ela e o irmão iam para a escola de manhã e a irmã mais velha, à tarde, quando a mãe também saía para o trabalho. Os dois chegavam em casa, almoçavam e o irmão ia para a rua. Rafaela ficava sozinha com o padrasto: “No começo as conversas eram de que iríamos brincar. Um dia era médica e cuidava dele, no outro massagista, mamãe e filhinho, tudo era em volta do corpo dele e no fim ele dizia que, se eu contasse para alguém, ninguém iria acreditar em mim”. A coordenadora geral de enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes da Secretaria de Direitos Humanos, Heloiza Egas, afirma que a violência sexual está dividida em duas categorias, o abuso e a exploração: “O abuso não envolve uma troca monetária, muitas vezes está pautado em uma relação de
O curta-metragem com duração de 26 minutos conta o drama de uma garota de 14 anos que é abusada sexualmente pelo avô desde pequena e resolve acabar com o segredo
confiança entre agressor e vítima. Essa relação pode confundir a criança que não sabe até que ponto é abuso ou cuidado, por isso é tão difícil identificar esse tipo de violência”. A exploração tem uma troca comercial, mas também a utilização da força, violência física, uso de álcool e outras drogas por parte dessa criança. Também envolve uma relação de confiança, às vezes com falsas promessas de carreira, como uma boa proposta no mercado de modelo, ou futebol, por exemplo. “A violência sexual está incluída em uma trajetória de violência, e nunca vem sozinha”, afirma. Essas brincadeiras com a garota eram só o início para que ele chegasse até onde queria. “Fui criada assim com ele, sempre com essas brincadeiras, tocando ele nas partes íntimas. Eu fui ficando moça, os seios se desenvolveram e ele me tocava, mas sempre com a mesma conversa de que eu seria presa se falasse alguma coisa”, conta Rafaela. Com o tempo, ela passou a ser uma criança estressada e revoltada, brigava muito e batia de frente com as pessoas, principalmente com a mãe. Ela foi para a rua cedo, e se tornou uma menina “saliente” com os amigos, gostava de ficar com os garotos, passava noites fora de casa, mas nunca teve relação sexual com nenhum. Quando fez 11 anos, menstruou pela primeira vez, e entre os 11 e 12 foi abusada sexualmente: “Já tinha certa liberdade com o corpo dele e ele com o meu, mas eu sentia ódio e sempre pedia, em minha mente, que aquilo acabasse”. Os abusos só acabaram quando Rafaela contou a história para uma prima. “Como eu já era um menina de rua, vivia saindo, bebendo e fugindo, um dia uma prima fez uma brincadeira, falou que se eu virasse minha mão e os ossinhos do meu dedo estivessem abertos eu já era mulher. Ela então perguntou de quem eu era mulher. Não tive como esconder”, relata. O pedido de segredo foi em vão. No dia seguinte, a mãe de Rafaela recebeu uma ligação da avó contando tudo. Elas foram até a delegacia, denunciaram, e a mãe se separou do padrasto. Porém, cerca de três meses depois, os dois voltaram: “Tive que conviver com ele até os 16, que foi quando arrumei um namorado e casei”. Na hora da denúncia, Rafaela sentiu medo, e também alívio. O problema é que
Sacha Sanches
O cinema sempre fez parte da minha vida. Desde o começo, um dos meus filmes favoritos era Tomb Raider, com Angelina Jolie no papel de Lara Croft, a protagonista. Mesmo lançado em 2003, era um tanto incomum ver uma mulher interpretando uma heroína em filme de ação/aventura, sendo um papel frequentemente masculino. Até a década de 1990, a mulher era responsável por personagens secundários e, muitas vezes, com uma imagem de inferioridade. Quentin Tarantino era um dos poucos cineastas que colocava a mulher como protagonista. Jackie Brown (1997), Pulp Fiction (1994) e Kill Bill 1 e 2 (2003 e 2004) são exemplos clássicos. Mesmo quando a imagem feminina era levada a um papel principal, seu contexto era abordado sob perspectivas machistas, algumas facilmente perceptíveis e outras nem tanto. Em comparação com as décadas anteriores, o papel da mulher no cinema evoluiu. Hoje é mais fácil encontrar filmes que discutem as lutas feministas, retratam a violência contra a mulher ou que simplesmente exploram a alma feminina como Tomates Verdes Fritos (1991). Um bom exemplo de filme que discute a mulher negra na sociedade é Histórias Cruzadas (2011) de Tate Taylor. O filme retrata a luta de Eugenia Skeeter Phelan para dar voz às mulheres negras, vítimas do forte racismo presente na década de 1960 nos Estados Unidos. O longa ainda conta com as brilhantes atuações de Viola Davis e Octavia Spencer. Outros filmes como Selma (2014) e 12 anos de escravidão (2013) retratam aspectos de violência contra a mulher, sendo o primeiro indicado ao Oscar e o segundo levou a estatueta de melhor filme. O longa Acusados (1988) conta a história real de uma jovem que é estuprada por um grupo de homens em um bar nos Estados Unidos. Sem testemunhas, ela denuncia a agressão, mas
sofre inúmeros preconceitos e descréditos do sistema judicial, que a coloca sob suspeita, indicando que suas ações teriam provocado o estupro. A protagonista Jodie Foster ainda levou o Oscar e Globo de Ouro de Melhor Atriz pelo papel. Em O Sorriso de Mona Lisa (2003), um grupo de mulheres que estudava em uma universidade dos anos 1950 nos Estados Unidos tinha como horizonte a formação para o lar. É quando entra uma professora de artes que amplia as possibilidades e referências das meninas. A educadora convida as estudantes a desafiarem essa situação e fazer com que assumam seu protagonismo na sociedade. Já no filme Dormindo com o Inimigo, Sara (Julia Roberts) é espancada pelo marido regularmente. Ela simula sua própria morte e foge para uma outra cidade, a fim de recomeçar a vida com uma nova identidade. Ainda nessa linha de longas que narram relacionamentos abusivos, Millenium – Os homens que não amavam as mulheres, baseado no livro best seller sueco. Rooney Mara, no papel de Lisbeth Salander, comentou sobre as atrocidades que deixam a história mais pesada. “Cada cena foi um desafio. A parte do estupro foi a mais difícil. Assisti Toy Story 3 para relaxar depois”, relatou. Terra Fria (2006) conta a história verídica de Aimes (Charlize Theron), uma mulher que abandona o marido que a espancava para procurar emprego e sustentar os filhos. Ela resolve trabalhar numa mineradora de ferro e, por ser uma das poucas mulheres que trabalhavam no local, sofre com os abusos psicológicos e sexuais. Aimes decide entrar com uma ação judicial contra a empresa, sendo a primeira a fazer isso e dando início a um marco de lutas feministas no país e no mundo. No fim deste ano, Meryl Streep, Carey Mulligan e Helena Bonham Carter estreiam o tão aguardado Suffragette, que narra a jornada das mulheres que foram forçadas à clandestinidade para enfrentar um Estado cada vez mais brutal no início do movimento feminista. Entrelinha Entrelinha | JORNALISMO | JORNALISMO UPUP
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até quando começou a namorar e saiu de casa, ela passou a fugir e ter relação com vários garotos. “Na época ninguém me entendia, só sabiam me julgar, diziam que eu fui a culpada de tudo”. Durante esse período, a mãe de Rafaela tinha voltado a morar com o padrasto e a família dizia que as atitudes da garota revelavam a verdade. Ninguém julgava ele. Numa dessas noitadas, Rafaela encontrou o atual marido, e se casaram depois de um ano de namoro. Estão há 12 anos juntos, têm dois filhos e o marido tornou-se o principal apoio de Rafaela.
De acordo com a psicanalista Lucia Barbero Fuks, há um trauma na vida dessa criança, seja físico ou psicológico. As consequências podem ser imediatas ou aparecerem depois de um tempo; a vítima pode sentir-se culpada, ansiosa, depressiva, com vergonha, com baixa autoestima e às vezes até acreditar que mereceu ser abusada. Pode se colocar em situações de risco e apresentar atitudes suicidas concretas. A longo prazo, podem surgir quadros de anorexia, bulimia, personalidade antissocial, problemas de conduta, perturbações do sono e pesadelos. Lucia comenta que, no caso de a vítima ser do sexo masculino, PÓS-DENÚNCIA também pode levar a uma crise sobre sua A audiência aconteceu duas vezes, a orientação sexual e identidade de gênero. primeira com o depoimento completo de Em geral, as principais consequênRafaela e a segunda, quando já tinha 18 cias são a baixa autoestima e um sentianos, casada, grávida e com uma filha nos do, ou percepção, do ego danificado. De braços. Ele só viria a ser preso em 2013. acordo com a psicanalista, isso faz com “Foi quando ouvi minha mãe dizer que que a pessoa se sinta isolada e marginaDeus fez a sua justiça e que sabia quem foi lizada. A violência sexual pode provocar o errado”, diz. Depois de dois anos preso, ainda o chamado Transtorno do Estresse o padrasto está prestes a ser liberado, pois Pós-Traumático (TEP), em que a pessoa teve progressão da pena por ter convivên- revive as lembranças negativas inúmeras cia estável com a família. vezes. Desde a prisão, a mãe de Rafaela não A recuperação do trauma depende quer mais um relacionamento com ele. Ra- da idade em que a criança foi vítima, da faela está insegura quanto à saída: “Tenho proximidade com o agressor e por quanto medo, não sei como ele vai sair de lá, ele tempo a violência aconteceu. O comporsempre negou, sempre disse que inventei”. tamento dos pais, depois da revelação, Aos 27 anos, ela é professora e acredi- também é determinante. Se a criança não ta que a profissão possa servir de exemplo se sentir acolhida pela família, terá uma e ajudar quem se cala. “Sempre gostei de maior dificuldade para superar o ocorrido. brincar de escola, e acredito que a educa- E o acompanhamento com um profissioção é que transforma”, afirma. nal também mostra resultados positivos. Rafaela ainda não viu o filme “O SilênDe acordo com a Organização Internacio de Lara” pronto, viu apenas o trailler, cional do Trabalho (OIT), no Brasil, ocorque já emocionou muito. “Pelo pouco que rem cerca de 100 mil casos de abuso e exvi, achei muito emocionante, chorei em re- ploração sexual de crianças e adolescentes lembrar cada detalhe, mas hoje sou mais por ano, mas menos de 20% deles chegam forte, sei que posso ajudar outras Rafaelas ao conhecimento das pessoas encarregae Laras que ainda escondem esse fato”. das em tomar algum providência.
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O projeto Quebrando o Silêncio da Igreja Adventista está na causa para conscientizar crianças e adolescentes, mulheres e idosos sobre a importância de denunciar todo tipo de violência e prevenir o abuso. Queila Marques faz parte da organização do projeto e afirma que esse tipo de situação não tem classe social e pode atingir qualquer pessoa. “O objetivo é alcançar o maior número possível de crianças e adolescentes, que eles possam quebrar o silêncio, contar para alguém que eles confiem e conscientizar a família para que acreditem”, afirma. Com pais ausentes, Vanda nunca recebeu carinho ou amor e achou no então marido, que conheceu com 14 anos, o suporte que precisava. Antes de se casar, aos 16 anos ainda passou por uma tentativa de estupro. “Isso foi com um amigo, ele era casado e queria que eu tivesse um romance com ele, eu não aceitei”. Um dia estava sozinha em casa, ele chegou e a agarrou. Ela não conseguia se soltar e se desesperou, por sorte os primos chegaram na hora certa, viram ela chorando, pedindo por socorro e ele a soltou. Aos 18 anos se casou, com a esperança de que tudo fosse mudar. “Depois de oito meses começou um puro inferno, aquele que dizia me amar começou a me agredir e eu já estava grávida do meu primeiro filho”. Vanda estava com quase oito meses de gestação e por causa das agressões a criança nasceu prematura. “As agressões continuaram e para meu desespero fiquei grávida de novo, com 21 anos tive meu segundo filho”. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a violência responde por 7% de todas as mortes de mulheres entre 15 e 44 anos no mundo. Em alguns países, até 69% das mulheres relatam terem sido agredidas fisicamente e até 47% declaram que
sua primeira relação sexual foi forçada. Francy Vieira, 30 anos, também começou a ser agredida depois do nascimento do filho. “Fiquei viúva com 20 anos e logo em seguida conheci o agressor da minha vida”. Francy se apaixonou e ficou grávida em seguida. “Depois do nascimento, começaram as agressões, é repetitivo, mas tudo começou com um tapa e em seguida o pedido de perdão”. O “motivo” para a primeira agressão foi uma panela que foi derrubada, depois disso as surras se tornaram constantes. “Eram socos, chutes, mas a pior arma que um agressor usa é a psicológica”, afirma. Uma vez, chegou a passar 24 horas dentro de uma mata depois de um espancamento com capacete. Francy perdeu os sentidos e só acordou quando o agressor estava tratando dos ferimentos. “Eram surras com correntes, e sempre muito hematomas, fui deixando acontecer por medo de não conseguir criar os meus filhos sozinha”. Eles chegaram a se separar por um tempo, mas tinham uma aproximação por causa das visitas aos filhos, até que depois de muitas desculpas e a promessa de mudar, voltaram a viver juntos. As agressões voltaram a acontecer e duraram quatro anos. Francy fez vários boletins de ocorrência e, mesmo depois de separados, ele continua a perseguir e a ameaçar a ex-mulher. “A polícia chegou a prender ele, mas a justiça já liberou”. Ele desobedeceu a medida protetiva e ficou um mês e quinze dias na prisão. Depois da promessa de que seria esquartejada, Francy tem medo. “Vivo apavorada, tive que mudar de cidade e ele quer tomar a casa que construímos juntos”, relata. Depois que saiu da prisão, o ex-marido não a procurou mais. Atualmente, Francy mora com os pais, dentro de dois cômodos, e os filhos são atendidos pelo atendimento à família, com uma psicóloga. A medida protetiva vale até novembro. “Mas isso não garante minha sobrevivência”, declara Francy. MAIS HISTÓRIAS Vanda também não tinha garantia de sobrevivência. Uma vez, acordou com as mãos do ex-marido presas na garganta dela, tentando sufocá-la. E essa foi só uma das tantas agressões. Como não paravam,
Vanda decidiu, com a esperança de que as coisas melhorassem, ir para a cidade grande e deixar o interior: “Foi pior, eu ficava presa em casa, com as janelas e portas fechadas, não tinha banheiro”. Ganhou o segundo filho e as coisas pioraram. Ela não tinha família ou alguém para ajudá-la a deixar essa situação, não conhecia ninguém na cidade grande. Ficou doente, com síndrome do pânico e muito estressada: “De tanto ele tentar me matar, meus nervos não estavam aguentando a pressão”. O ex-marido bebia muito, chegava em casa alterado e a agredia, verbal e fisicamente. “Me xingava de tudo sem eu merecer, tentava me estrangular, mas graças a Deus eu sempre conseguia escapar, levava murros, tapas, chutes, puxão de cabelo, vivia toda machucada e com medo”. Um dia, enquanto estava vendo TV, Vanda escutou de uma apresentadora que as mulheres não podem deixar ser humilhadas e agredidas, e isso fez com que mudasse o jeito de pensar. “Um dia ele chegou bêbado e tentou me matar com um facão. Meus filhos estavam do lado, eu joguei um acolchoado e ele caiu, peguei o facão da mão dele e desferi na cabeça dele”. Outro dia, durante a madrugada, ele chegou mais uma vez bêbado e violentou Vanda. “Ele estava drogado, me puxou da cama pelos cabelos, arrancou minha roupa e me levou para o chão fora da casa onde morávamos, ele me arrastava pelos cabelos, dava socos, chutes e me violentava”. Ela ficou com as partes íntimas com terra e muito machucada. Jacqueline Gomes é mais uma das mulheres que sofreu pelo alcoolismo do ex-marido. “Numa das brigas, eu estava no sofá e, de repente, ele me deu um soco no rosto”, conta. Essa foi a primeira agressão, mas não seria a única. Fez 23 boletins de ocorrência contra ele na Delegacia da Mulher em Campo Belo, zona sul de São Paulo, e está com medida protetiva. “Entrei na medida protetiva em agosto do ano passado mas, mesmo assim, ele entrou no meu serviço, me ameaçou. Chamei a polícia, mas eles demoraram tanto que meus colegas de trabalho conversaram com ele e
mandaram ele embora”. Depois disso, o encarregado falou para Jacqueline ir embora; quando estava no ônibus, a caminho de casa, a viatura chegou. De acordo com a medida protetiva, o ex-marido deveria ficar 300 metros longe de Jacqueline. “Ele me perseguia, mas desde novembro do ano passado ele não me procura mais”. Ela já está há um ano e cinco meses separada. O ex-marido chegou a ir atrás dela, mas Vanda estava decidida. “Comecei a viver minha vida”. Essa é a sensação de Vanda, que, depois de 12 anos casada, finalmente aprendeu que ela deveria vir em primeiro lugar. “Aprendi a me amar e coloquei na cabeça que nunca mais ninguém vai me agredir, sou maravilhosa e mereço todo o amor do mundo”, afirma.
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Reportagem
ANA CLARA FARIA
Seja por meio de leis ou do combate à discriminação da mulher, o país ainda precisa progredir para chegar à igualdade entre gêneros em diversos aspectos
Em 2015, uma nova medida de combate à discriminação e à violência contra a mulher foi sancionada. Por meio da Lei nª 13.104/15, conhecida como Lei do Feminicídio, o assassinato de uma mulher passa a ser considerado crime hediondo, marcando mais um passo em direção à igualdade de gênero no Brasil. Mas, a evolução dos direitos da mulher no país passou, e ainda passa, por um processo peculiar. Há quase um século, era promulgado o Código Civil de 1916, que estabelecia, nos termos da lei, a subordinação da mulher ao marido. Essa configuração só seria oficialmente alterada com a Lei nº 4.121, sancionada em 1962 pelo presidente João Goulart. Conhecida como Estatuto da Mulher Casada, a lei de 1962 concedeu à classe feminina direitos fundamentais, como trabalhar fora de casa sem precisar da autorização do marido. Em relação ao voto, a inclusão da mulher no processo democrático brasileiro só teve início com a publicação do Código Eleitoral de 1932. O apoio constitucional, porém, viria apenas após a promulgação das Constituições de 1934 e 1946. Essa última concedendo sem restrições o pleno direito ao voto. Outra medida que abriu espaço para a atuação da mulher na sociedade civil foi a publicação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, durante o
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governo Vargas. Nela, foram estabelecidas algumas condições para a proteção da saúde e bem-estar da mulher no ambiente de trabalho, como a concessão da licença-maternidade. “Essas medidas referentes à legislação foram importantes para dar maior estabilidade à situação das mulheres de um modo geral”, comenta o professor de Sociologia do curso Dom Bosco, Sandro Luis Fernandes. ALÉM DO CONGRESSO Em paralelo às decisões tomadas pelo Congresso, o movimento feminista no Brasil foi responsável pela ascensão de notáveis figuras nacionais na luta pelo direito das mulheres. Com início ainda no século XIX, o movimento foi impulsionado por Nísia Floresta (pioneira do feminismo no país), que publicou em 1835 o livro Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Já nas primeiras décadas do século XX, nomes como o da professora Leolinda de Figueiredo Daltro, da advogada Mirtes de Campos e da bióloga Bertha Lutz marcaram a reivindicação pelo direito feminino ao voto. Repreendido pelas ditaduras do Estado Novo (1937-1945) e após o golpe militar de 1964, o movimento feminista voltou a ganhar força na década de 1970, apresentando conquistas como a regulamentação do divórcio, por meio da Lei nº 6.515, e a criação do Movimento
Feminino pela Anistia (1975), que condenava ações violentas do regime militar. No século XXI, um dos resultados mais significativos do combate à discriminação foi a criação da Lei Maria da Penha, em 2006. O nome veio em homenagem à farmacêutica cearense Maria da Penha Fernandes, vítima de violência doméstica (leia a entrevista com Maria da Penha na página 20). A lei, por sua vez, garantiu o estabelecimento de medidas preventivas para a segurança da mulher, como a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres e o aprimoramento das Delegacias de Atendimento à Mulher. RESSALVAS Apesar dos avanços, dados recentes revelam que a desigualdade entre homens e mulheres no Brasil ainda é evidente. Segundo o relatório de Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, publicado em 2014, as meninas predominam no grupo de jovens entre 10 e 15 anos que realizam afazeres domésticos. Quanto à profissão, elas também são maioria entre os brasileiros na informalidade: são mais empregadas sem carteira assinada e que exercem trabalho não remunerado. Além disso, ainda há divergências entre os gêneros quanto às médias salariais: as mulheres, com rendimento médio de R$ 1.322, encontram-se abaixo da média masculina, de R$ 1.808.
FONTES: Secretaria de Políticas Públicas para as Senado Federal Mulheres Publicação do livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens, de Nísia Floresta
O Rio Grande do Norte torna-se o primeiro estado a reconhecer o voto feminino
Rita Lobato Velho Lopes torna-se a primeira mulher diplomada a exercer medicina no Brasil
O Estatuto da Mulher Casada dá maior autonomia à esposa
Consolidação das Leis do Trabalho, marco na concessão de direitos trabalhistas a mulheres
Para a psicóloga Claudia Cobalchini, as crenças sociais estão fortemente envolvidas com o problema: “A crença sobre a diferença de papéis sociais, perpetuada pelas gerações, imprime sobre o cotidiano a divisão de tarefas, como a de educar na família, prover sustento por meio do trabalho, a noção de propriedade sobre a mulher ou sobre o direito de violar sua autonomia”, explica. Sob uma perspectiva histórica, Fernandes cita algumas características da sociedade brasileira que, para ele, são responsáveis pela permanência da discriminação de gênero: “O atraso vem, dentre outros fatores, da formação católica e do tipo de organização política do país, que é bastante patrimonialista e paternalista – estas visões presentes na organização pública são bastante masculinas”.
Lei estipula percentual mínimo (20%) de representatividade feminina nas eleições municipais
Lei do Divórcio regulamenta a separação judicial e dava fim ao termo desquite
é um fator de influência no desencadeamento de determinados quadros: “É fácil de constatar, no cotidiano, a sobrecarga de funções delegadas à mulher. Hoje, ela representa o papel de mãe, profissional, provedora financeira, principal educadora, mantenedora das atividades domésticas e, quando em relacionamento estável, o de esposa”, analisa, e acrescenta: “Diante de tamanha responsabilidade, muitas vezes é pelo mau funcionamento do corpo, da mente e das relações que se manifestam as dificuldades no equilíbrio de todas essas tarefas. Logo, algumas doenças crônicas, bem como algumas degenerativas, têm atingido substancialmente este público”.
COMO PROGREDIR Embora o tratamento desigual entre homens e mulheres ainda seja uma reaDIFERENÇAS ATÉ NA SAÚDE lidade no país, a psicóloga vê com otiA análise das condições de saúde mismo as políticas de proteção à mulher de homens e mulheres também apre- desenvolvidas pela administração pública senta relações implícitas com a discri- dos últimos anos: “Percebo avanços imminação. Segundo a Pesquisa Nacional portantes na discussão dessa temática de Saúde de 2013, realizada pelo IBGE, para a proposição de políticas públicas as mulheres predominam nos diag- que garantam os direitos de qualquer ser nósticos de doenças como depressão, humano, independentemente do gênero. hipertensão arterial, colesterol alto, As políticas sociais, por exemplo, têm diabetes, problemas crônicos de colu- reconhecido a centralidade da figura na e Distúrbios Osteomusculares Rela- da mãe na constituição familiar, dancionados ao Trabalho (DORT). Segundo do prioridade ao registro da casa própria Cobalchini, a desigualdade de gênero ou das bolsas de prestação continuada,
Emenda 72/2013 regulamenta direitos às empregadas domésticas
Sancionada a Lei Maria da Penha, que amplia o combate à violência doméstica e familiar
Sancionada a Lei do Feminicídio
Ana Clara Faria/ENTRELINHA
no nome da mulher em famílias que em torno dela se organizam”. Para ambos os entrevistados, a transformação de consciência da sociedade quanto à igualdade entre gêneros deve ser cultivada, sobretudo, no ambiente escolar. “Como construir a igualdade de gênero é, sem dúvida, uma questão cultural que passa pela escola brasileira – que é tradicionalmente machista. É claro que já existem ações, mais do que pontuais, que vão contra isso. Mas, de uma forma geral, as escolas, hospitais e demais instituições sociais que deveriam promover a igualdade causam, na verdade, um maior distanciamento”, ressalta Fernandes. O professor acredita que o desafio atual é fazer com que as escolas desenvolvam efetivamente, em suas práticas, a igualdade de gênero. “Essa questão precisa chegar de maneira mais consistente, e isso não tem acontecido. A maioria das escolas não está preparada para isso, inclusive teoricamente”, diz. Para a psicóloga, a educação – tanto familiar, quanto escolar – tem papel fundamental no questionamento e debate sobre a violação de direitos, sendo importante para a consolidação de uma cultura de igualdade. “A criança aprende por modelos, vivenciados em casa e repetidos na escola; é em sala de aula que podemos questionar as ideias que assumem status de verdades”, afirma. “É preciso falar sobre o assunto”, conclui. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
MARINA ORTIZ, VINICIUS SEVERIANO E PATRÍCIA SANKARI
Em meio a um ambiente colaborativo, a criação de aplicativos e uso de redes sociais auxiliam na segurança de mulheres A violência contra a mulher é uma prática cotidiana em uma sociedade machista. Com os movimentos de luta e resistência, os direitos femininos crescem cada vez mais e acabam de receber um grande aliado na luta contra essa prática: a tecnologia. Foi para explorar essa ferramenta de peso que a ONU Mulheres decidiu criar o aplicativo Clique 180. Com o objetivo de prevenir, identificar e facilitar denúncias de violência, o aplicativo tem informações e conteúdos sobre a Lei Maria da Penha e sobre como enfrentar a violência contra as mulheres. Além disso, tornou-se uma plataforma capaz de reunir dezenas de lideranças comunitárias e especialistas sobre esse tipo de assunto. De acordo com a representante da ONU Mulheres, Nadine Gasman, o aplica-
tivo demorou cerca de um ano para ser desenvolvido e desde o lançamento, em maio de 2014, já teve mais de 5 mil downloads. “Em março deste ano, tivemos uma ação com a Prefeitura de Curitiba em que pudemos medir o alcance da ferramenta e a sua aceitação junto a uma população específica. Em menos de uma semana, foram mais de 200 mil visualizações nas redes sociais, cerca de 5 mil curtidas e mais de 500 downloads do Clique 180”, conta. Na oportunidade, o grupo foi convidado a indicar locais seguros e inseguros para as mulheres em Curitiba, por meio da ferramenta “Minha Cidade Mais Segura”. “Em seis dias foram registradas 10 ocorrências, entre elas, denúncias de assédio a mulheres em via pública, incidência de assaltos e falta de iluminação”, explica a representante.
INICIATIVAS CRIADAS NA INTERNET PARA A SEGURANÇA DAS MULHERES CLIQUE 180 O aplicativo é opção para buscar informações e fazer denúncias dos casos de agressão presenciados. Disponível nos sistemas Android e IOS
CHEGA DE FIU-FIU Blog feminista que visa empoderar mulheres a partir do acesso a informação http://thinkolga.com/chega-de-fiu-fiu/ MINHA VOZ Mapeia serviços públicos disponíveis a vítimas de violência e incentiva a denúncias http://www.minhavoz.com/ VAMOS JUNTAS? Página para que mulheres compartilhem rotas nas ruas visando a aumentar o grau de segurança www.facebook.com/movimentovamosjuntas
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ESPECIAL | Viver sem violência
OLHAR MAIS CARINHOSO Babi Souza, de 24 anos, tornou-se idealizadora da página Vamos Juntas? depois de ter um insight no meio de uma praça escura em Porto Alegre, e percebeu que se as mulheres se unissem nas ruas se sentiriam mais seguras. A partir da ideia, ela e uma amiga desenvolveram um encarte sobre o movimento, com intuito de compartilhar apenas com os amigos. Três horas depois, já havia vários pedidos para que ela criasse uma página no Facebook para o projeto. Após três meses, a página conta com mais de 230 mil curtidas, sendo 48% do público mulheres entre 18 e 24 anos. Apenas 2% dos seguidores são homens, mas se mostram engajados com a ação. Para a criadora do projeto, “por meio da tecnologia é possível criar uma corrente que não seria possível offline”. Ao perceber o sucesso da página, Babi iniciou uma campanha de financiamento coletivo para o desenvolvimento de um aplicativo. A ideia inicial era que a ferramenta conectasse mulheres que estivessem percorrendo o mesmo caminho, porém, por falta de segurança o conceito foi repensado. A partir desse novo viés será criado um mapa, com ajuda das usuárias, que apontará caminhos mais seguros. Uma história que marcou Babi foi a de uma menina da Região Nordeste que sofreu abuso voltando de uma festa junina: “Depois de cinco anos, ao ler a página, ela viu que não estava sozinha e decidiu contar para mim”. Após a conversa, procurou tratamento psicológico e aceitou compartilhar sua história na página. “Houve vários comentários de apoio no post e a menina me contou que não conseguia acreditar em todo o carinho que recebeu”, conta.
Reportagem
GABRIEL KRAMBECK
Guilherme Coimbra e Lucas Capanema
Colaborou: Izabella Moreira
Lei do Feminicídio: um grito de justiça contra as fatalidades Em março deste ano foi acrescentada ao Código Penal uma nova vitória na luta contra a violência, ou pelo menos, na devida punição aos assassinos de mulheres. A Lei do Feminicídio (13.104/15) qualificou o homicídio praticado contra a mulher pela condição de sexo feminino, sendo por violência doméstica/familiar ou menosprezo e discriminação. O feminicídio é hoje um crime hediondo. Ofuscada pelo debate político no país, a lei é um avanço para combater o número crescente de assassinatos de mulheres na última década. Nas estatísticas, o Brasil é o quinto país mundial que mais mata mulheres, atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa. Em contraponto aos países tidos como civilizados, o país tem 48 vezes mais homicídios que o Reino Unido, 24 mais que a Irlanda ou a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou a Escócia. Entre 2007 e 2013, as taxas passaram de 3,9 para 4,8 por 100 mil, um aumento de 23%. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cada ano cerca de 1,2 milhão de mulheres sofrem agressões no Brasil. As consequências são depressão, transtorno de estresse pós-traumático, vergonha. Além do julgamento pela sociedade, essas mulheres se sentem culpadas pelas agressões que sofreram e acabam defendendo o agressor. Foi nesse contexto de violência que organizações feministas começaram a se reunir, como a ONG Mais Marias, que iniciou seu trabalho apenas como uma campanha de conscientização para as vítimas de violência doméstica e, hoje, já é reconhecida por estar ligada a projetos maiores como o Atendimento Humanizado e a Corrida e Caminhada Mais Marias.
A presidente da Associação Paranaense de Médicos Legistas e fundadora da ONG, Maria Letícia Fagundes, conta que sua vontade de fazer mais pela causa veio em partes da experiência profissional em necrotérios, ao examinar corpos femininos e encontrar, além de evidências dos crimes, sinais de perversão. “Na necropsia descobrimos a causa da morte e também em que condições a pessoa morreu. Entender como o feminícidio é cometido me ajudou a construir o projeto da ONG”. A partir da Lei do Feminicídio, a pena tem a possibilidade de dobrar e, em certos casos, quadruplicar (vítimas menores de 14 anos, maiores de 60, portadoras de deficiência e se o crime for realizado em presença de ascendente ou descendente). O Brasil foi escolhido pela ONU como país piloto em investigação de mortes violentas de mulheres e a lei pode significar uma baixa no número de mulheres agredidas e mortas nessas circunstâncias. É o que acredita a advogada criminalística Fernanda Velozo. “A lei Maria da Penha abarca situações de ameaça, injúria, justamente para que a situação não se agrave evoluindo para o homicídio. Acredito que as estatísticas, embora tenham aumentado, se devem ao fato de os olhares da sociedade se atentarem ao problema e as delegacias e veículos de investigação passarem a registrar realmente o fato”, explica. Segundo a advogada, em função das características extremamente machistas da sociedade brasileira, muitos dos crimes contra a mulher não eram registrados: “O fato de uma mulher ser morta pelo marido até meados de 2000 não era nem motivo de circulação midiática, pois primeiro a mulher era objeto do pai, depois do marido e isso era tido como normal”.
A Cadeia de Custódia é uma das ações que integra o Programa Mulher – viver sem violência, criado pelo governo federal. No que compete ao projeto, estados e municípios signatários do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres firmam uma parceria da rede pública de saúde com os Institutos Médico Legais (IMLs) para facilitar e ampliar o atendimento a mulheres vítimas de violência sexual. A medida é uma conjunção entre os ministérios da Saúde e da Justiça e da Secretaria de Políticas para as Mulheres. O Decreto 7.958/2013 busca facilitar os procedimentos a mulheres vítimas de violência sexual. A medida, conhecida como cadeia de custódia, estabelece diretrizes de atendimento e coleta de materiais para perícia e tem o intuito de humanizar e desburocratizar o atendimento às mulheres, agilizando o processo de coleta, medicação e emissão de laudos periciais. Isso possibilita que a vítima tenha toda a assistência necessária e coleta de provas num único local, evitando o transtorno de passar mais de uma vez pelas avaliações e exames necessários. “Aqui no Paraná, por exemplo, assim que a vítima procura um dos três hospitais de referência – Hospital de Clínicas, Evangélico e Pequeno Príncipe, em caso de abusos infantis –, os profissionais são acionados e se dirigem ao local para fazer o recolhimento dos materiais biológicos e físicos”, explica o diretor-geral IML do Paraná, Carlos Alberto Peixoto. Tendo como ano-base 2014, dados da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba revelam que houve 540 notificações de mulheres vítimas de violência sexual em Curitiba e Região Metropolitana, sendo que em 64,8% as vítimas foram crianças ou adolescentes. A enfermeira-chefe da ala de Ginecologia e Maternidade do Hospital de Clínicas de Curitiba, Sorau Matiolli, explica que a vítima deve procurar atendimento médico até 72 horas após o ato para a perícia dos materiais biológicos e tratamento contra infecções sexualmente transmissíveis. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
BRUNA TEIXEIRA
Colaboraram Alessandra Becker e Murilo Prestes
Vanguarda em tempos conservadores, Maria da Penha enfrentou o medo e mudou o rumo de milhares de mulheres brasileiras 20
ESPECIAL | Viver sem violĂŞncia
Ela sabe que as filhas não vão passar pelo mesmo que passou. Uma lei, sancionada em 2006, beneficia milhares de brasileiras. Antes, na boca de advogados, mulheres eram assassinadas e culpabilizadas. Hoje, com 66 anos, reconhece o legado que deixou, provando que a justiça precisava ser revista porque as mulheres eram, e ainda são, vítimas da sociedade. O símbolo da luta contra a violência doméstica tem nome e sobrenome: Maria da Penha Maia Fernandes, cuja história de vida protagonizou a implementação de uma lei de proteção à mulher. Vítima de violência em uma época que nem ao menos existia Delegacia da Mulher no país, criada doze anos após a tragédia, ela é considerada vanguarda em tempos conservadores. Procurando viver com o que tem de bom, eliminou as memórias ruins e pondera que o legado deixado precisa ser abraçado por todos. Descrente na justiça, ainda vê muito machismo na sociedade. Nascida em Fortaleza (CE), filha de uma professora e de um dentista, Maria da Penha é a mais velha entre cinco irmãs e diz ter tido uma infância com muita liberdade. Porta uma voz tênue e carrega vitalidade nos traços. A história de vida inicia-se na rua Teresa Cristina, 1375. Passou no vestibular aos 17 anos, foi cursar Farmácia por indicação da avó. Na Graduação, se apaixonou pela primeira vez. Ele, ciumento; ela, oprimida. Ficaram quatro anos casados. Depois de concluir a faculdade, foi cursar o Mestrado na Universidade de São Paulo (USP), em 1973. Lá, conheceu o segundo marido. Prestativo, o colombiano era a menina dos olhos. Ao terminar o mestrado, voltou para Fortaleza. Ela relembra que foi nessa época que passou a não reconhecê-lo. Aflorou a agressividade e despertou medo nela, que tentava conversar para negociar uma separação. A pauta em relação a crimes contra as mulheres começou a ter muita visibilidade em 1981, principalmente na região Sudeste. Muito disso deve-se ao fato de as mulheres não quererem continuar em relacionamentos abusivos. Maria da Penha recorda-se que teve que refletir muito para tomar aquela decisão “contra tudo e contra todos”.
Não poderia criar uma armadilha a ela mesma. O medo de provocá-lo e fazer parte das estatísticas era praxe. Em uma manhã de maio de 1993, acordou assustada com um forte barulho. O tiro lesionou a terceira e quarta vértebra torácica e por pouco não atingiu o coração. Aos prantos, vizinhos chegaram à casa e a levaram ao hospital. A versão do marido? Quatro assaltantes entraram na casa e atiraram em sua esposa. Conseguiu uma vaga para reabilitação em Brasília. Lá, a notícia de que a cadeira de rodas seria sua companheira de vida. Maria da Penha tornou-se paraplégica. No mesmo período, descobriu que o marido era o principal suspeito. Voltando para casa, o terror não findou. O ex-marido disse que a levaria ao banho. Quando abriu o chuveiro, percebeu que o aparelho emitia choques. Gritou até que a ajuda chegou. A segunda tentativa de homicídio foi premeditada. Ela e as filhas viveram em cárcere privado. Providenciou um documento chamado separação de cônjuge para poder sair de casa e não perder a guarda das filhas. O documento ficou pronto exatamente quando o marido precisou viajar para outro estado a trabalho, momento em que ela conseguiu voltar para casa com as filhas. Ao chegar à rua Teresa Cristina, pediu para as meninas brincarem, pois queria dormir. Encontrou no sono, finalmente, a plenitude. Esgotou todas as medidas jurídicas do país em busca de condená-lo. Resolveu recorrer a Comissão interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O Brasil não respondeu aos ofícios enviados pela OEA e foi condenado por negligenciar casos de violência doméstica. A condenação definiu que o país deveria cumprir as recomendações que a Organização determinou na finalização do seu processo: mudar a legislação brasileira, atendendo aos tratados internacionais, assinado e ratificado. Marco Antonio Heredia Viveros cumpriu apenas um terço da pena. Em 1994, Maria lançou seu livro Sobrevivi, posso contar. Em 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei Maria da Penha. Três anos depois, fundou o Instituto
Maria da Penha, que atua na defesa da igualdade de gêneros. Em entrevista à Entrelinha, Maria da Penha conta detalhes dos 20 anos de luta e dos dilemas e preocupações com a discussão de gênero no país. Confira. ENTRELINHA: Como avalia sua representatividade no cenário brasileiro? Maria da Penha: Avalio com muita alegria e muita responsabilidade. Porque desde o momento que a lei foi criada, foi necessário que o movimento de mulheres e instituições comprometidas passassem a cobrar que a lei realmente fosse implantada. Porque não adianta ter uma lei apenas no papel. Pra funcionar, essa lei precisa que sejam criadas políticas públicas, e isso tem acontecido, mas com muita leveza, com falta de celeridade. A Delegacia da Mulher, por exemplo, em muitos municípios não funciona no fim de semana, nem nos feriados... Não funciona 24 horas por dia. Geralmente, às 17h a delegacia é fechada. O porquê disso? É a cultura machista interferindo numa legislação que é importante para as mulheres. Hoje, o Brasil é apontado como o quinto país mais violento contra a mulher. Como tirar o país deste ranking? Tudo é uma questão de educação. Quem agride os filhos talvez tenha sido educado dessa maneira. Não conversar e ser uma pessoa que os filhos respeitam pelo medo, não pelo respeito pela pessoa. A pessoa deve ser orientada a não bater nos filhos de uma maneira irracional. Qual a forma mais eficiente de combate a cultura patriarcal e machista? O que já vem sendo feito. Em parte, a conscientização da comunicação, em que as pessoas podem escutar você do rádio, e também investir na educação formal e formar esse lado do cidadão. Que, nas escolas, esses temas sejam abordados e debatidos. Nossas políticas públicas são suficientes ao combate à violência contra a mulher? Não são. A maioria dos pequenos municípios, quase por unanimidade, não possui políticas públicas. Os médios municípios ainda estão se estruturando acerca disso. Então é necessária ainda muita luta. Entrelinha | JORNALISMO UP
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A redação do ENEM este ano tratou como tema da redação a “Violência contra a Mulher”. Qual a importância das escolas aplicarem em sala o debate sobre a questão de gênero? Olha, eu acho que foi uma escolha muito feliz. O resultado dessa prova, se for analisado, pode servir de parâmetro para daqui dez anos ser feita novamente uma nova redação desse tipo, enfocando a violência contra a mulher. Daqui a dez anos, nós esperamos que seja possível abordar esse tema com parâmetros mais positivos do que os encontrados hoje. As mulheres foram a maioria presente no Enem, e elas, como mulheres, são mais interessadas e devem ter se debruçado sobre essa temática. E eu sei que tem muitos homens interessados, mas eu sei que existe uma grande maioria dos jovens que são violentos com suas namoradas. O que as escolas ensinam sobre violência é suficiente? Ainda é preciso investir muito na educação, para que esse tema seja elevado em todos os níveis de educação. Para quando o adolescente chegar a essa idade, ele tenha um entendimento e respeito pela namorada e pelas colegas. Olhando a perspectiva no âmbito nacional, além de levar este tema às salas de aula, de que outra forma o ambiente escolar e acadêmico podem contribuir? Em relação à atuação do Instituto Maria da Penha, instituições têm aberto espaço para nós trabalharmos a educação. O conhecimento da Lei Maria da Penha nas universidades e comunidades de grande vulnerabilidade social têm sido de interesse muito grande da parte das instituições e dos alunos. O aluno se inscreve no curso Defensoras do direito à cidadania e lá eles estão se conscientizando sobre a questão da violência doméstica. Esse tipo de informação trará para os futuros juízes, advogados, médicos, enfim, conhecimento a ponto de eles aplicarem o que aprenderem. Por exemplo, ao encontrar uma mulher vítima de violência doméstica, vão saber acolhê-la. Ou então, se ele é médico e está trabalhando numa emergência, poderá reconhecer que aquela mulher é vítima da violência
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ESPECIAL | Viver sem violência
Paulinne Giffhorn, Sarah Graçano e Leonardo Mion Medidas que tramitam no Congresso atualmente propõem limitações ao atendimento a mulheres vítimas de violência. O projeto de lei 5.069, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, “tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto”, visando a punir criminalmente qualquer pessoa que se enquadre dentro da lei, o que pode incluir até mesmo atendentes, enfermeiras e médicos que explicam ou aconselham métodos contraceptivos ou fornecem medicamentos. Pela proposta, se a indução ao aborto for praticada por um agente de serviço público de saúde ou por quem exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro, a pena será de um a três anos de detenção e, no caso de uma gestante menor de 18 anos, as penas serão aumentadas em um terço.
Em 2014, o deputado federal Jair Bolsonaro foi condenado por ofender a deputada Maria do Rosário, no plenário. À época, ele afirmou que a petista “não merecia ser estuprada” por ele. O deputado, que recorreu da decisão, foi condenado a indenizá-la em R$ 10 mil... O feminicídio ocorre quando a mulher é Acho uma pena muito leve para quem assassinada pelo fato de ser mulher. Por desrespeita uma colega de trabalho parque é importante a legislação pontuar lamentar. Entendo que, infelizmente, teleis específicas para proteger a integri- mos representantes que não representam dade da mulher e punir os agressores? as mulheres, não representam a maioria, O fato de ela ser assasinada pelo foram eleitos num gueto, numa situação companheiro vai dar oportunidade das muito peculiar e que não representam o estatísticas colocarem que aquela mu- que uma sociedade deseja pro seu país. lher foi vítima de violência de gênero. Antes do feminicídio, tudo era caracte- O local onde mais comumente ocorrem rizado como homicídio e não tinha essa situações de violência contra a mulher é separação. Com essa aprovação da Lei, é a residência da vítima. Até os nove anos, muito importante para as pesquisas que conforme foi identificado pelo estudo possam ser feitas, a fim de evidenciar que do CNJ em 2013, os pais são os principais o índice da violência doméstica é muito agressores. A violência paterna é subsgrave na história do país. tituída pela do cônjuge e/ou namorado, que prepondera a partir dos 20 até os 59 Quais as justificativas mais comuns para anos da mulher. Já a partir dos 60 anos, este tipo de crime? são os filhos que assumem esse papel. A questão da situação financeira, que Ou seja, a mulher passa a vida inteira não é só característica da classe menos sendo vítima da violência. Você vê a curfavorecida. Ela reflete na dificuldade que to ou longo prazo a extinção desse cenáa mulher tem de tomar uma decisão. É rio às mulheres? o medo que ela tem de denunciar, é a Vai depender de uma série de coisas: certeza de que ela nunca será assassina- depende de as mulheres não viverem no da. Ela duvida que o marido vai matá-la. ciclo da violência doméstica pra tomar Quando o relacionamento dá uma estru- uma decisão. Depende também de quem tura financeira importante para a família causou uma agressão física, psicológica daquele casal, a mulher se acomoda em ou moral ser punido. Para cada vez mais função dos filhos, pois sozinha não pode os homens perceberem que a Lei veio dar essa mesma estrutura de educação e para punir quem não respeita a mulher de lazer, por exemplo. como pessoa humana. doméstica. Também em relação ao serviço social e médicos, e o pessoal da área de Direito, que eles com certeza estarão mais sensiblizados quando saírem do curso por terem se capacitado com esse curso de direito à cidadania.
Reportagem
TAYNÁ SOARES
Manifestação nasceu no Canadá, em 2011, e tem foco no combate à opressão de gênero Em janeiro de 2011, na Universidade de Toronto, no Canadá, diversos casos de violência sexual foram denunciados. Devido à incidência, a Universidade chamou um policial para que orientasse os estudantes. O policial Michael Sanguinetti disse às mulheres para que evitassem se vestir como “vadias”, pois assim não sofreriam abuso sexual. A atitude dele foi repugnada por todas as alunas, principalmente pelas feministas e ativistas. Para demonstrar a indignação com os casos de assédio sexual e a falta de auxílio, em abril de 2011, 3 mil pessoas saíram em marcha pelas ruas de Toronto reivindicando direitos e repudiando o machismo e todas as formas de opressão. Nasceu então o movimento Marcha das Vadias, em inglês: SlutWalk. “Há uma polêmica muito forte em torno da palavra vadia. Pra mim, se ser livre é ser vadia, então sou vadia”, explica a feminista Rafaela Guimarães Souza. Los Angeles, Chicago, Buenos Aires, Amsterdã e diversas cidades do Brasil aderiram ao movimento. Em Curitiba, por exemplo, a primeira marcha acon-
teceu em julho de 2011 e reuniu centenas de pessoas. Durante o trajeto – que iniciou no Passeio Público e terminou na Boca Maldita, na região central da cidade –, mulheres carregavam cartazes com frases como: Mexeu com uma, mexeu com todas e Meu corpo, minhas regras. Anaterra Viana, de 34 anos, foi uma das organizadoras e diz que a marcha oxigenou o movimento feminista. “O primeiro ano foi um marco para a cidade. Depois da marcha passamos a ocupar um café da Boca Maldita todas as sextas-feiras, lugar onde somente os homens conversavam sobre política”, conta. Uma pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) revelou que 7 a cada 10 mulheres já foi ou ainda será violentada em algum momento da vida. Essa é uma das lutas do movimento feminista, que, por meio da Marcha das Vadias, mostra à população os dados alarmantes sobre a violência que a mulher sofre. A Marcha das Vadias, portanto, é uma maneira de conscientizar a população a respeito do que acontece no dia a dia da mulher. “A principal razão para essas violências acontecerem é o machismo”, diz a estudante de Filosofia Mariana Cordeiro, de 20 anos, que participa da marcha desde 2011. Seguindo o pensamento de Mariana, o jornalista Gregório Carlos Fernandes, de 27 anos, diz que “todo homem é machista e muitas mulheres reproduzem
“Não sei quando me tornei feminista. Só sei que fui salva de um relacionamento abusivo por uma feminista que me mostrou o que eu estava passando e me deu apoio”. Alinne Gabriela Kraubeki, 24 anos, psicóloga
o machismo”. Ele afirma que isso é cultural e está “incrustado” nas pessoas. Priscila Oliveira, de 26 anos, participou da sua primeira Marcha neste ano. A jovem considera-se feminista desde 2013, mas somente agora resolveu ir às ruas. “Precisei entender pelo o que exatamente as pessoas da marcha lutam. Agora sei que lutamos contra o machismo, a homofobia, o racismo, a transfobia, lesbofobia, bifobia e outras formas de opressão”, diz. Para Anaterra Viana, a marcha tem papel importante junto aos transexuais, além de possuir uma forte aliança com o movimento LGBT. Do mesmo modo, para ela, a marcha é essencial para ajudar no empoderamento das mulheres. “A Marcha das Vadias mudou muito a minha vida e acredito que a vida de todas as mulheres, que de alguma forma, participam do movimento”, desabafa. ORGANIZAÇÃO Para organizar a primeira Marcha das Vadias, diversas mulheres do movimento feminista se reuniram dois meses antes do evento para deixar tudo preparado. Desde 2012, elas se reúnem muito antes do evento com intuito não só de divulgá-lo, mas de preparar outras feministas para participar do trajeto. Em 2012 e 2013 a marcha recebeu o apoio da Prefeitura de Curitiba, que permitiu a colagem de cartazes nos ônibus.
“Foi pela marcha e também pelo movimento feminista que descobri que o meu ex-marido estava errado quando me proibia de usar roupas curtas. Ele também estava errado quando não me deixava sair. Estava errado quando me batia”. Claudia Denischewiz, 25 anos, bióloga Entrelinha | JORNALISMO UP
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Por vingança, homens vazam na internet imagens íntimas de parceiras. Casos, segundo a ONG SaferNet, quadruplicaram no Brasil em dois anos
Reportagem
ALANA THAIS, KARLA MIRELA E CAMILA FRANÇA
Kelly Cordeiro/ENTRELINHA
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ESPECIAL ESPECIAL ||Viver Viver sem sem violência violência
Certamente você já ouviu falar de algum caso em que uma mulher teve suas fotos ou vídeos íntimos – feitos ou não com o seu consentimento – divulgados durante ou após um relacionamento. Esse crime está se tornando cada vez mais comum. De acordo com a ONG SaferNet, as ocorrências da chamada pornografia de vingança quadruplicaram no Brasil nos últimos dois anos. Júlia tem 18 anos e aceitou gravar vídeos durante *Nome fictício o ato sexual com o então namorado. O relacionamento de dois anos começou a se desgastar e o parceiro passou a agredi-la fisicamente. Ela ocultava as brutalidades de seus pais e sempre reatava o namoro, até o momento em que decidiu interromper a relação: “Ele começou a passar dos limites e eu terminei. Então, ele achou que não tinha mais volta e divulgou o vídeo para se vingar. No dia que eu soube, estava na sala de aula. Quando vi já estavam todos falando sobre isso. Entrei em desespero”, declara a adolescente sobre o choque de receber a notícia. Para a psicóloga Neuzi Barbarini, esse crime muitas vezes vai além de uma vingança. “É um prazer sádico para alguns homens, com uma grande dose de perversão”, completa. Este é o caso da estudante de Educação Física Thainá Vieira, de 22 anos. Além de ser ameaçada, viveu como escrava sexual de seu parceiro durante os três últimos meses do relacionamento: “No começo era tudo lindo! Começamos a trocar fotos íntimas e muitas vezes tirávamos algumas delas durante o ato sexual. Mas do nada ele se transformou, dizia que se eu não fizesse o que ele queria, divulgaria minhas fotos e destruiria minha vida”, relata. As ameaças do rapaz só tiveram fim depois de ela expor a situação à mãe e realizar um boletim de ocorrência. ESTADO PSICOLÓGICO No compartilhamento de vídeos ou fotos há exposição do que a mulher tem de mais íntimo: a sexualidade. Além de todo o trauma, elas perdem empregos, pessoas próximas se afastam, são alvos de críticas e ofensas. Como consequência, o emocional é abalado, ocorrem bloqueios na vida social e, em situações ex-
tremas, há até mesmo a possibilidade de suicídio. Segundo a psicóloga, o preconceito da sociedade é o que mais influencia no estado psicológico da vítima: “Nossa sociedade é machista. O julgamento é sobre a mulher. De vítima, ela passa a ser a culpada”. Júlia diz que sofreu e ainda sofre com comentários alheios. “As pessoas me falavam: ‘Você é a moça do vídeo? Vamos fazer um vídeo comigo?’. Fora os xingamentos”. A condenação das pessoas fez com que ela mudasse sua vida. “Muita gente deixou de falar comigo na época. Eu era conhecida na rua e as pessoas riam e falavam do caso. Parei de ir para o colégio por um tempo. Cortei meu cabelo, pintei... Mas até hoje as pessoas comentam sobre o episódio”, conta. De acordo com Barbarini, para que essas mulheres se recuperem dos traumas é necessário mais do que apenas um acompanhamento psicológico: “É fundamental um círculo social sólido formado por amigos e pela família para que a vítima não se sinta sozinha”, completa. A PUNIÇÃO O investigador da Delegacia da Mulher de Curitiba, Paulo José de Souza, diz que para que haja de fato uma punição para os homens que expõem a intimidade de uma mulher sem permissão, é necessário que elas não tenham vergonha e nem medo de denunciar, pois só com a denúncia é possível abrir um inquérito policial. Nos casos de Júlia e Thainá, o apoio familiar fez com que ambas fossem até uma delegacia para denunciar os crimes. “A audiência é só para o ano que vem. Mas sim, ele vai ser punido. A justiça é lenta, mas não falha”, afirma Julia com convicção. Já para Thainá, as coisas tomaram rumos diferentes. Como as fotos não chegaram a ser expostas, ao receber as intimações da Delegacia da Mulher, o ameaçador recusou todas as intimações, e por medo, acredita a vítima, ele desistiu da vingança e ela não teve mais notícias do ex-parceiro.
HUMANIZA REDES Douglas Partica
No Brasil há quase 85 milhões de pessoas com acesso à internet, segundo o site Crimes pela Internet. Dessas, 90% acessam as redes sociais, sendo o Facebook a rede com maior número de usuários, com mais de 50 milhões de pessoas no país. Algumas pessoas cometem crimes pela internet acreditando que a rede garante o anonimato e que a punição no ambiente virtual simplesmente não existe. De acordo com o site Crimes pela Internet, são considerados crimes virtuais, pelo Código Penal Brasileiro: os insultos (Art. 140), a calúnia (Art. 138), difamação (Art. 139), e preconceito ou discriminação (Art. 20 da Lei 7.716/89), e são punidos com pagamento de indenização ou até mesmo reclusão. O problema é que muitas vezes quem sofre a agressão virtual não sabe como agir e se cala. E é nesse momento que o portal Humaniza Redes começa a agir. Ele ajuda na denúncia, garantindo a prevenção e a segurança do indivíduo. O canal, criado em abril deste ano pelo Governo Federal como medida do Pacto Nacional de Enfrentamento às violações de Direitos Humanos na Internet, tem o objetivo de estimular o uso seguro e responsável da internet e receber e encaminhar denúncias de crimes e violação de direitos humanos. O portal recebe as denúncias e as encaminha à polícia. A vítima não precisa fornecer qualquer tipo de identificação pessoal, pois a denúncia é sigilosa.
Instagram: @humanizaredes Twitter: @humanizaredes WhatsApp: (61) 9304-0021 humanizaredes@sdh.gov.br www.humanizaredes.gov.br Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
NICOLE SMICELATO, JULIA BIANCHINI E RAUL DANIEL
Pesquisa aponta que uma em cada cinco mulheres já sofreu abusos no parto Bruna Andrade, de 24 anos, é mãe da Heloísa, de um ano e oito meses. Ela é um exemplo de como as mães podem sofrer na hora de dar à luz. “Depois de seis horas de trabalho de parto, minha mãe, que estava me acompanhando, não pôde entrar na sala. Me deixaram sozinha, sem ninguém para me dizer o que fazer. Depois, uma das enfermeiras espirrou algo em mim [no períneo e no canal]. Perguntei qual a necessidade daquilo, mas não deu tempo de nada: o médico passou o bisturi, cortando o que não tinha necessidade, sem me avisar! Dei um grito! O doutor foi mandando fazer força. As enfermeiras subiram numa miniescadinha ao meu lado, deram as mãos empurrando minha barriga. No mesmo instante, uma delas parou e disse: ‘Assim não dá! Se ela não parar de gritar eu não ajudo mais!’”. Bruna não sabia que todos os traumas físicos e psicológicos pelos quais passou no parto são crimes: “Quando a Helô nasceu, confesso que não pensava em mais nada, a não ser em tê-la nos braços”.
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A enfermeira obstétrica e ativista em prol do parto humanizado Maria Rita Almeida afirma que “a violência contra a mulher está intrinsecamente enraizada na cultura do patriarcado, uma ideologia milenar que concebe o mundo a partir do masculino e o coloca no centro da realidade. O parto é apenas mais uma forma de violência contra a mulher. Como a Medicina é uma profissão majoritariamente masculina, ela incorpora todos os traços do patriarcado de forma a manter o seu poder e domínio”. Para a enfermeira, no campo da obstetrícia, o corpo feminino é mais um lugar no qual a dominação é imposta. “Se os abusos no parto foram construídos, podem então ser desconstruídos. E o espaço para isso é o da educação, seja em casa, na escola, nas igrejas, espaços públicos ou coletivos”. ORGANIZAÇÃO SOCIAL Algumas organizações e ações existem para auxiliar as mães traumatizadas. Um exemplo disso é a subcomissão de Violência Obstétrica da Ordem dos Advogados do Brasil, que, primordialmente, opera na prevenção e orientação das mães. A advogada e coordenadora da subcomissão Sabrina Ferraz explica os objetivos: “Orientamos quanto aos direitos e possibilidades, para que elas possam ter uma melhor qualidade na assistência ao parto. Se isso não ocorre, orientamos a família quanto às possibilidades de denúncia. Os casos mais graves são analisados e também orienta-se quanto à adoção de medidas legais”.
Segundo ela, a violência obstétrica é silenciosa e institucionalizada. Isso acontece porque trabalha com limites tênues entre procedimentos realmente necessários e aqueles de rotina que não seriam essenciais para todos os casos. “Esses comportamentos de rotina causam muito sofrimento à mulher e por vezes ao bebê, e são acompanhados de um padrão ‘desumano’ de atendimento, com grosserias, humilhações e maus-tratos”, avalia. Esse descumprimento dos direitos humanos, referentes aos traumas físicos ou psicológicos que englobam desde o trabalho de parto até o pós-parto, é o maior problema enfrentado pela subcomissão, segundo Sabrina. O Brasil lidera o número de cesarianas. Segundo um ranking divulgado pela Organização Mundial da Saúde, 56% dos partos realizados no país são cirúrgicos. O parto humanizado mostra efetivo como uma saída para evitar a perpetuação da violência obstétrica. Por ser realizado em condições totalmente diferentes, com um ambiente mais acolhedor, maior zelo pelos profissionais, a hora do parto torna-se um momento significativo e positivamente marcante para mãe e bebê. “As mulheres procuram esse método porque querem o direito a um projeto de felicidade que preencha os seus corações de boas lembranças, que as aproxime das pessoas que amam e das coisas e viver os momentos que dão sentido para a suas almas. E assim será quando um nascimento for encantador para uma mulher, um bebê, um homem, uma família, uma casa”, comenta Maria Rita.
Reportagem
ANA SANTOS E ELIZABET LETIELAS
Preconceito étnico-racial amplia machismo. Estudo do IBGE revela que a média salarial de mulheres brancas é 92% maior que de mulheres negras “Machismo e racismo são fatos do cotidiano que a mulher negra aprende a conviver desde pequena”. É assim que a estudante de Relações Públicas Gabriela Vidal, de 29 anos, responde quando questionada se já foi duplamente vitimizada. “É toda uma estrutura pra mostrar qual é o meu lugar, pra que eu ‘sirvo’”, explica. As histórias são diversas. Quando era criança, as pessoas batiam no portão de sua casa, em São Paulo, pedindo para chamar a patroa dela (a mãe de Gabriela é branca). No colégio, os outros alunos tampavam o nariz enquanto ela passava, como se ela fedesse por ser negra. O racismo e o machismo andam de mãos dadas na vida da estudante. Os assédios que todas as mulheres sofrem tomam dimensões piores por conta da cor da pele: “É assim mesmo, a maioria das negras são prostitutas”. Gabriela já teve que ouvir que, por ser negra, gostava de ser assediada. “O machismo e o racismo se encontram aí, tentando me colocar no lugar que a sociedade patriarcal branca reservou pra mim, como a subalterna, a que serve. A pessoa que estuda e fala sobre isso é arrogante, a prostituta, a mulata hiperssexualizada”, lamenta. O papel da mulher na sociedade sempre foi caracterizado pela inferiorização. Para a mulher negra, essa inferiorização se dá diante de homens e de mulheres brancas. Se à mulher branca era reservado o espaço de dona de casa, à negra sobrava o papel de escrava. Se a vida econômica da primeira dependia do marido, a da segunda mal existia: as negras eram propriedade. Mesmo diante de conquistas históricas, como o direito ao voto e ao trabalho assalariado, a desigualdade entre mulheres brancas e negras persiste. Segundo dados do Instito Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), a presença das mulheres no mercado de trabalho representa 54,6% da população. As mulheres negras são a maioria em trabalhos domésticos e receberem salários inferiores . Dados da Pesquisa de Gênero de 2010 do IBGE mostram que mulheres negras têm média salarial de R$ 726,85, enquanto as brancas recebem, em média, R$ 1.396.32. MULHERES NEGRAS “As mulheres negras construíram um caminho de ativismo autônomo”. É o que diz a socióloga e ativista do Movimento de Mulheres Negras, Andressa Ignácio da Silva, de 27 anos. Segundo ela, durante muito tempo houve uma dificuldade do Movimento Negro para lidar com as questões de gênero, já que esse movimento sempre foi protagonizado por homens. O Movimento de Mulheres Negras do Paraná participa de diferentes espaços de controle social para que as políticas públicas destinadas às mulheres negras sejam colocadas em pauta e discutidas. Uma das questões importantes que o Movimento trata são as diversas formas de violência contra as mulheres. Além de mobilizar, a função do movimento é estabelecer o diálogo com poder público, formar novos quadros de mulheres e o empoderá-las para enfrentarem o racismo, o machismo e outras formas de violência. Um dos espaços que o Movimento das Mulheres Negras do Paraná participa é a Marcha das Mulheres Negras, que aconteceu no dia 18 de novembro, em Brasília. O tema desse ano foi Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver. A socióloga acredita que a mídia hegemônica deixa a desejar quando se trata das
questões de gênero e raça. Segundo ela, os meios de comunicação são promotores de discursos relacionados ao ódio, ao racismo e sexismo. A mídia ainda tem dificuldades para a representação das mulheres, que fujam dos estereótipos. “A maneira que somos vistas pela sociedade, como mulheres fogosas. A maneira como as pessoas se dirigem a nós é muito agressiva. Eles olham para as mulheres negras e pensam que a gente tem que saber sambar… Infelizmente ainda as mulheres negras são visualizadas, são entendidas por muitas pessoas com esse referencial da sensualidade”.
Gabriel Krambeck/ENTRELINHA
Reportagem
BRUNA TEIXEIRA E TALINE MOREIRA
Colaborou: Erica Costa
A violência psicológica é uma grave violação dos direitos humanos das mulheres, e produz reflexos diretos na saúde mental e física. É considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) “como a forma mais presente de agressão intrafamiliar à mulher e sua naturalização é apontada ainda como estímulo a uma espiral de violências.” A lei Maria da Penha define como Violência Moral ou Emocional o ato de xingar e humilhar, intimidar, amendrontar, ameaçar, invalidar atos da mulher, tirar a liberdade de crença, decisão e ação.
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Atormentar psicologicamente, controlá-la, invadir sua privacidade, chantagear e, também, isolá-la de parentes e amigos. Já a definição de Violência Moral não se limita a comentários ofensivos socialmente, mas também legitima como violência atos de: humilhação pública, exposição da vida íntima perante as pessoas, e até mesmo em plataformas online. Acusar de crimes publicamente, inventar histórias a fim de diminuí-la para outrem também são considerados crimes contra a mulher. Em ranking publicado por uma pesquisa do Canal 180, do Governo Fede-
ral, relatos de violência psicológica estão em segundo lugar, seguida pela violência moral. Abusos verbais são “anúncios” da violência física e homicídio contra mulheres. Normalmente são decorrentes de episódios de ciúmes, segundo a cientista social Eliane Basilio. Segundo ela, “a violência verbal psicológica pode destruir a autoestima das mulheres, gerando medo, dependência emocional, pânico, estresse e até mesmo suicídio. Esse tipo de violência pode transformar as mulheres em rascunhos de seres humanos”, afirma socióloga.
Atos de violência psicológica e moral são invalidados socialmente. Já a violência física é considerada legítima por ser visível. Isso faz com que a mulher não sinta autonomia na hora de fazer uma denúncia, uma vez que a sociedade trata as mulheres como seres subordinados. Essas informações são da pesquisa realizada pelo Instituto Avon/ Data popular 2013. Nela, por exemplo, 56% dos homens acreditam que, para esse tipo de violência, não é necessário denunciar ou chamar a polícia. A pesquisa aponta “xingamentos, humilhações públicas, ameaças verbais, empurrões e proibições de sair de casa em algum momento” como exemplos de violências admitidas e praticadas por 56% dos homens. Eliane explica que a base da cultura machista é responsável por invalidar as consequências morais e psicológicas sofridas pelas mulheres, o que acaba naturalizando essa agressão praticada contra elas. Segundo ela, a sociedade aceita esse tipo de agressão porque faz parte de qualquer relacionamento afetivo: “A sociedade espera que a mulher tenha sempre uma atitude maternal diante dessas agressões, entendendo e perdoando o seu agressor”. CONSEQUÊNCIAS DO SILÊNCIO Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cada ano cerca de 1,2 milhão de mulheres sofrem agressões no Brasil. As consequências são depressão, transtorno de estresse pós-traumático, vergonha – porque além de elas serem julgadas pelos outros, sentem-se culpadas pelas agressões que sofreram e acabam defendendo o agressor.
Impotência. Esse é o sentimento que Alessandra sentia ao *Nome fictício tentar revidar as violências que sofreu em dois relacionamentos. Apesar de tentar se defender, não conseguia medir forças com o agressor: “Minha maneira de me defender era tentar impedir que a agressão chegasse ao meu rosto”. O agressor afirmava a ela que só tinha aquele tipo de comportamento porque ela despertava a ira dele. “A família dele me dizia que era o comportamento que eu provocava. E depois de me agredir, ele me queria na cama”.
No entanto, os relatos de violência não cessaram na vida de Alessandra. Na tentativa de recomeço, ela deu à luz uma menina, sua caçula. Segundo ela, apesar de um começo tranquilo, aos poucos qualquer tipo de desentendimento era motivo para ofensa: “No primeiro casamento discutíamos verbalmente, havia muitas ofensas, até mesmo na hora da briga. Mas o que era frequente era a violência física. Já no segundo casamento, apesar de já ter acontecido violência física, até hoje, quando nos encontramos, ele sempre me agride verbalmente”.
QUESTÃO DE GÊNERO Esse sentimento de impotência se deve não só pela força do homem, mas pela questão de gênero também. A vítima afirma que ser mulher também não ajuda nesse tipo de situação, e que não se sente respeitada no país. Segundo a Cartilha Viver sem Violência é direito de toda mulher, publicada pela presidência da República este ano, a violência contra as mulheres acontece “porque em nossa cultura muita gente ainda acha que os homens são superiores a elas, ou que eles podem mandar na vida e nos desejos das mulheres, e que a única maneira de resolver um conflito é apelar para a violência. [...] Homens acham que têm o direito de impor suas opiniões e vontades às mulheres e, se contrariados, partem para a agressão verbal e física.”
GOSTAR, CONSIDERAR E SUPORTAR Entre os motivos que levaram Alessandra a relutar em encerrar o segundo relacionamento estavam o sentimento afetivo pelo parceiro, as questões financeiras e a relutância em voltar a morar com os pais. Hoje, apesar de afirmar conhecer a Lei Maria da Penha e saber que ainda sofre violência moral e psicológica, mesmo após o término do relacionamento, a vítima não quer prestar denúncia. “Ele sabe que se eu der parte dele, vou prejudicar a carreira dele. Não faço isso em consideração a minha filha”. A Lei Maria da Penha define como agressão verbal “qualquer conduta que cause danos emocionais, a diminuição da autoestima, ou prejudique e perturbe o desenvolvimento da mulher. Ainda, que vise a degradar ou controlar suas ações, HISTÓRICO DE ABUSOS comportamentos, crenças e decisões, meAlessandra passou os últimos anos diante ameaça, constrangimento, humilhaem dois relacionamentos abusivos. O pri- ção, manipulação, isolamento, vigilância meiro deles foi com o pai de seu filho mais constante, perseguição contumaz, insulto, velho. Ela, carioca, após um mês do parto chantagem, ridicularização, exploração e foi morar com o agora ex-marido no Espíri- limitação do direito de ir e vir ou qualquer to Santo, estado em que ele cresceu e que outro meio que lhe cause prejuízo à saúde lidera o ranking de violência contra a mu- psicológica e à autodeterminação”. lher no país. Segundo o Mapa da ViolênDo ponto de vista social, há uma dificia 2015 – homicídios de mulheres no culdade de mensurar e punir essa violênBrasil, são 11,8 homicídios em cada 100 cia “invisível”. Ainda faltam profissionais mil mulheres, número que supera a mé- qualificados para analisar e fazer valer a lei dia nacional. Vivendo com o cônjuge por que garante a punição para esse tipo de dois anos, período em que foi vítima de violência, sugere a socióloga Eliane Basiviolência física, moral e psicológica cons- lio. Para ela, “esse profissional precisa ter tantes, voltou para sua cidade natal, o Rio um entendimento sobre a violência dode Janeiro, que apresenta taxa de 4,5 ho- méstica, conhecer os direitos humanos e micídios de mulheres, estando, portanto, ter noções de gênero, para impulsionar o na 21º posição do mesmo ranking. cumprimento da lei. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Rafaela, de 41 anos, loira dos cabelos compridos, alta, usa um vestido florido na altura do joelho, fuma um cigarro, anda meio agitada e receosa, ressabiada com as perguntas que estava prestes a responder. Mesmo que não tenha sido a primeira vez que fora entrevistada, a mulher das unhas compridas e azuis as bate contra a mesa de madeira fazendo um barulho que tomava conta da sala. O som das unhas é substituído pelas perguntas que ela fez para quem ia entrevistar. Queria entender melhor para onde ia seu depoimento. Após esclarecidas as dúvidas, a entrevista tem início. Ela explica que a desconfiança foi
uma forma encontrada para se defender de possíveis discursos de ódio e da transfobia. Rafaela Almeida não nasceu com esse nome, era chamada de Rafael até realizar a transgenitalização, conhecida popularmente de cirurgia de mudança de sexo. A transexual não gostava do nome de batismo, assim como as roupas masculinas que era obrigada a usar na infância pela sua família. “Nunca me identifiquei com as brincadeiras de meninos, mas amava pegar bonecas e arrumá-las; as coisas destinadas às mulheres sempre me desertaram desejo”, explica Rafaela. A identidade de gênero é o assunto abordado por ela. A psicóloga Grazielle Tagliamento, que atende transexuais e travestis e é voluntária na Associação de Travestis e Transexuais de Curitiba (TransGrupo), explica: “Embora a maioria das mulheres se reconheça no gênero feminino e a maioria dos homens no masculino, isso nem sempre acontece. Falamos, então, de pessoas cujo sexo biológico discorda do gênero Reportagem
AMANDA CAROLINA
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psíquico: são os travestis e transexuais, ou transgêneros”, explica a psicóloga. A identidade de gênero pode ser compreendida como a maneira que alguém se sente e se apresenta para si e para as demais pessoas como masculino ou feminino. Por se identificar com o gênero diferente do seu corpo, ela sofreu desde muito cedo com insultos e gozações: “Costumava vestir as roupas da minha mãe escondida. Quando meu pai me flagrava, eu sempre apanhava e ficava de castigo, ele não me entendia nessa época”. Aos 17 anos, o então Rafael contou para a família sobre suas inquietações, questionamentos e insatisfação com o corpo e a sexualidade. O pai não aceita e a expulsa. A transexual relata que, na época da adolescência, ela ainda não sabia sua identidade de gênero. Em um primeiro momento, a homossexualidade era o que parecia se encaixar na vida dela. “Eu não me sentia bem no corpo de um homem e também não sentia atração por um, foi um período de muitas conflitos internos para mim”, conta.
Muitas vezes, a identidade de gênero é confundida com orientação sexual, porém são coisas distintas, como explica o coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade, Luciano Palhano. “São coisas completamente independentes. Uma pessoa de sexo biológico feminino pode se enquadrar no gênero masculino e se sentir atraído exclusivamente por homens. Ele seria, então, um homem transexual gay”, exemplifica. A transexualidade pode parecer, à primeira vista, semelhante à homossexualidade ou ao travestismo. Palhano explica que travestis são homens que se vestem de mulher, podem
modificar o corpo com silicone, mas não sentem desconforto com seu sexo anatômico. “O Transexualismo sempre envolve um transtorno na identidade de gênero. Não basta que a pessoa queira pertencer ao outro sexo para usufruir de vantagens culturais ou que goste de atividades típicas do outro sexo”, explica. Após ser mandada embora de casa, Rafaela foi morar no centro de Curitiba. Largou o colégio no segundo ano do então segundo grau. Vivia de “bicos” e trabalhos não registrados, em lojinhas de varejo. “Por viver sozinha, ganhei muitas responsabilidades, mas também aproveitei para começar a modificar meu corpo”. Começou a usar brincos, maquiagem e algumas roupas do vestuário feminino. Porém, o medo de encontrar algum familiar e o preconceito por parte da sociedade faziam com que a jovem não usasse no cotidiano, apenas em festas com os amigos. Dois anos depois, ela resolveu se travestir em tempo integral: deixou os cabelos e unhas crescerem, passou a utilizar o vestuário feminino e esteroides. De forma clandestina, Rafaela tomou hormônios e esteroides sem orientação médica por mais de uma década, o que acarretou problemas de saúde. “Eu tive complicações por usar remédios sem ajuda médica, queria me transformar o quanto antes e paguei por isso, meus ossos enfraqueceram, sentia fortes dores nas pernas”. Depois do ocorrido, ela busca acompanhamento médico. O baixo custo e o fácil acesso foram as justificativas encontradas para fazer uso sem o acompanhamento médico. O médico endocrinologista é o responsável pelo tratamento hormonal. É ele quem
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indica as dosagens de hormônio e remédios mais adequados a cada organismo. O Guia da Terapia Hormonal para Transexuais, produzido pelo Escritório Central de Informações do Departamento de Saúde do Reino Unido, em 2007, registra: “Não realizar os procedimentos com acompanhamento é arriscado e pode trazer complicações corporais como na tireoide, ossos (mesmo que na fase adulta), e até câncer”. Aos 20 anos, com o corpo parcialmente transformado, a voz mais feminina, coxas e bunda arredondadas, cabelo comprido e maquiada, Rafaela é demitida do mercadinho no qual trabalhava. A dificuldade de achar emprego devido ao travestismo lhe trouxe problemas financeiros, por isso resolveu procurar na prostituição o sustento. Ela não sente vergonha em relatar essa época da vida, considera a prostituição uma profissão digna como qualquer outra. Relembra as histórias que teve com os clientes e cai no riso ao dizer que eram homens casados, ricos que buscavam nas travestis uma forma de aliviar as tensões do cotidiano. “Na maioria das vezes me tratavam como princesa, recebia muitos presentes, joias, tudo em troca de alguns momentos de prazer para eles, porque eu mesma, muitas vezes, só fingia estar gostando”. Não apenas glamour e presentes caros marcaram os aproximadamente dez anos de prostituição. O preconceito, a violência física e psicobiológica, as brigas com as demais garotas de programa, e o vício do cigarro também fizeram parte do cotidiano da vida de prostituta. Ela conta que nunca utilizou drogas, apesar das incontáveis propostas para experimentar. Muitos clientes ofereciam mais
dinheiro caso ela usasse drogas, como a cocaína. Negou as drogas ilícitas, porém achou no cigarro uma válvula de escape para a vida que levava. “Eu dormia de dia em hostels no Centro porque era mais barato. À noitinha me arrumava e descia para as ruas ganhar meu dinheiro. Fazia o meu trabalho, nada fora da lei, aprendi muito na rua, com as minhas colegas, com os clientes e até com os momentos ruins que passei”. SUBEMPREGO O subemprego é comum no mundo das travestis, relata Toni Reis, presidente do Grupo Dignidade, organização não governamental em Curitiba que luta pelos direitos LGBT’s. “Devido à falta de apoio familiar, as travestis e transexuais são expulsas cedo de casa e consequentemente sofrem com a evasão escolar por conta da transfobia”. Números da pesquisa da Associação das Travestis e Transexuais do Triângulo Mineiro (Triângulo Trans) revela que apenas 5% das travestis de Uberlândia estão no mercado formal de trabalho; 95% estão na prostituição. A transfobia é uma forma de discriminação ou ato de violência que ocorre por conta de a pessoa ser julgada como travesti, transexual ou trangênero, segundo o portal de Direitos Humanos. Atualmente, no Brasil, a vítima de transfobia pode denunciar pelo portal de Direitos Humanos. O denunciado pode, ainda de acordo com informações do portal, responder legalmente pelos crimes de injúria (pena de três meses a um ano de prisão, ou pagamento de fiança), assédio moral e bulliyng (pena de uma a dois anos de reclusão).
Porém, não existe uma lei e condenação específica para a transfobia. Toni Reis defende a criação de uma lei específica para condenar agressores e LGBTransfóbicos. “As leis que existem hoje não protegem o grupo LGBT, são leis brandas e amplas, nada definido ou delimitado para nós, o que dá margem para o preconceito. A bancada LGBT tem como uma das principais reivindicações a regularização da transfobia”, explica Reis. O preconceito é sentido na pele por Rafaela todos os dias. Segundo ela, antes de a grande mídia colocar o assunto em pauta como hoje, a situação era pior. Porém, ainda há muito desrespeito. “Já apanhei de skinhead, comerciantes dos locais onde eu fazia ponto. Com os xingamentos e olhares de repúdio, eu já me acostumei”. Ela também defende a criação de leis mais rígidas como forma de garantir a integridade física e moral.
do/a transexual. O nome social é, portanto, “como um nome civil que não aderiu à personalidade da pessoa natural, portanto é o prenome que é utilizado publicamente distinto do nome civil de quem o utiliza”. Porém, a mudança de nome judicialmente é uma luta árdua. Muitas vezes travestis e transexuais preferem utilizar o nome social apenas como apelido, sem mudar a documentação. Para o advogado Rodrigues, “o processo é longo e dificultoso, fazendo com que o nome social seja um paliativo à dificuldade de mudar o nome civil em tais circunstâncias”. Apesar de mudar os documentos, ter seios, coxas e quadris arredondados e cabelos compridos, Rafaela ainda não estava satisfeita com o corpo. “Eu queria ser uma mulher por completo”. Já enganchada no Trans Grupo e longe da vida de prostituição, decide realizar acompanhamento psicológico para realizar a cirurgia de transgenitalização. TEMPO Ela realizou todo a tratamento pelo SisSete anos se passaram e, nesse tem- tema Único de Saúde (SUS). po, Rafaela colocou próteses de silicone O Conselho Nacional de Medicina nos seios e nas coxas. Concluiu o ensino (CFM) regularizou em 2008 a transmédio por meio de supletivo. Cansada genitalização, ano em que Rafaela fez da vida de garota de programa, a tra- a cirurgia. Antes disso, a intervenção vesti procurou ajuda no Grupo Dignida- cirúrgica era considerada experimende, no qual recebe apoio dos psicólogos tal. O Conselho autoriza a retirada da e instruções para deixar o subemprego. mama, do útero e dos ovários nos casos Ela decidiu entrar na justiça para trocar de diagnóstico de transgenitalismo. a documentação. “Ninguém me chamaO processo da mudança de sexo, va de Rafael, aqueles documentos não desde a primeira consulta com a psicólome representavam”. ga até a cirurgia, durou cerca de um ano De acordo com o artigo 16º do Có- e meio. Para a psicóloga Creusa Dias, o digo Civil, “toda pessoa tem direito ao acompanhamento psicológico é essennome, nele compreendidos o prenome cial para a transgenitalização. O psicóe o sobrenome”. O artigo faz referên- logo é responsável por acompanhar os cia ao nome civil, ou também conheci- pacientes e elaborar um laudo que atesdo como nome de batismo (ou poste- te sua plena convicção de que deseja riormente, o nome de casamento com passar pela intervenção cirúrgica, que é a união dos sobrenomes). Segundo o permanente. “É uma decisão que transadvogado, professor de Recursos e Di- forma por completo a vida do paciente, reitos Humanos Uninive-SP, Antônio por isso o acompanhamento é de extreCarlos Rodrigues, todo ser dotado de ma importância”, relata a psicóloga. personalidade tem direito ao nome. As terapias com a psicóloga duraPorém, em muitos casos, a persona- ram quase dois anos, Rafaela afirmou lidade não corresponde ao nome que que durante o processo ela se certifilhe fora instituído. Por isso, o nome so- cou de que a transgenia era mesmo sua cial foi instaurado em território nacio- escolha. nal, a fim de garantir a personalidade Após dois anos aproximadamente
e mais de vinte consultas, a psicóloga deu o parecer positivo. Neste período, Rafaela contou para a família sobre a decisão. Não se falam constantemente, apenas em datas comemorativas, mas apesar disso ela achou importante contar, sob orientação da psicóloga. Seus pais e irmãos agora aceitam a filha e não se posicionaram contra a cirurgia. O cirurgião plástico Jalma Jurado é um dos mais respeitados e experientes médicos especialistas em transgenitalização e alega em suas palestras que a intervenção não muda o corpo do paciente, mas apenas adequa o sexo ao cérebro. ‘A técnica está bastante aprimorada, mas os médicos precisam se cercar de cuidados para que não caia na vulgaridade’, afirma o médico. A cirurgia é delicada e envolve riscos graves como incontinência urinária e formação de feridas nos lábios vaginais causadas por má circulação. Algumas pacientes ficam insatisfeitas e precisam passar por nova intervenção. Oitenta por cento voltam para fazer reparos, admite o médico. A reabilitação física foi o processo mais doloroso para Rafaela. “Nos primeiros dias senti dores incríveis. Gemia o tempo todo e mal podia mover e trançar as pernas. O incômodo durou dez dias e nenhum analgésico resolvia”. As terapias com a psicóloga continuaram após a intervenção, para se habituar com o novo corpo. O acompanhamento com o endocrinologista também foi essencial para a recuperação, para adequar a dosagem de hormônio. A recuperação durou em torno de um mês e meio. Ela conta que valeu a pena. “Me senti uma mulher por completa, estou realizada”. Rafaela terá que tomar hormônios pelo resto da vida, já fez uma cirurgia reparatória na vulva e pretende aumentar a prótese de silicone. Hoje, ela trabalha no Trans Grupo, para defender e pedir os direitos dos LGBT’s. Não é casada e não tem filhos. Seu sonho é adotar um menino. Ela dá palestras em todo Sul do Brasil sobre a transgenia. “Um dia, a população de modo geral vai entender que não somos diferentes de ninguém, estou aqui para lutar pelos meus direitos”. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
CAMILLA DE OLIVEIRA E DAYANE FERREIRA
Para a professora Marilene Tamanini, respeito às diferenças é uma grande necessidade de convivência social O enfrentamento da violência de gênero ainda é um dos maiores desafios para a consolidação dos direitos humanos no Brasil. A falta de políticas públicas adequadas, a negligência do Estado e a perpetuação de estereótipos fazem com que mulheres e homossexuais sofram com os efeitos devastadores da violência física e psicológica. Alguns avanços têm ocorrido nas últimas décadas, como a aprovação da Lei do Feminicídio, em 2015, e a criação do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT, em 2009. Outro destaque é para a edição deste ano do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que abordou, na redação, o tema da violência contra a mulher. Entretanto, ainda há muita coisa a ser feita.
Passados nove anos desde a promulgação da Lei Maria da Penha, os índices de violência contra a mulher continuam preocupantes. De acordo com o Mapa da Violência 2015, mais de 106 mil mulheres foram mortas entre 1980 e 2013. Ao analisar o contexto internacional, percebe-se a dimensão disso. O Brasil ocupa a quinta posição na lista, feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), dos 83 países com maior nível de violência contra a mulher. Outro fator preocupante é o fortalecimento de setores contrários à igualdade de gênero. Exemplo disso são os grupos que apoiaram o Projeto de Lei criado pelo deputado federal Eduardo Cunha (5069/2013), que dificulta o aborto legal em casos de estupro e o acesso a substâncias abortivas, incluindo a pílula do dia seguinte.
POPULAÇÃO LGBT Victória Vieira, de 40 anos, é transexual e professora de Direito na Universidade Positivo. Durante toda a vida, ela levou uma vida dupla, escondendo a verdadeira identidade. O medo do preconceito, das consequências em sua carreira e da reação da família foram alguns dos fatores que a fizeram criar um personagem masculino. No entanto, desde 2014 ela vem recebendo acompanhamento psicológico e, em março deste ano, realizou, finalmente, a transição. Ela explica que receber o apoio da família, especialmente o da mãe, foi essencial para que assumisse sua verdadeira identidade. Além disso, a reação dos estudantes foi bastante calorosa. A iniciativa da conversa partiu deles, inclusive.
Victória Vieira, de 40 anos, está entre as primeiras transexuais a se tornar professora universitária no país. Ela é exceção: o país registra o maior número de homicídios de transgêneros no mundo. De acordo com a ONG Transgender Europe, entre janeiro de 2008 e abril de 2013 foram registradas no país 644 mortes de travestis e transexuais, seis vezes mais do que o segundo colocado: o México
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Além de acolhê-la, os estudantes enviaram um documento à Universidade, pedindo para que ela permanecesse no cargo e explicando que o papel dos estudantes não é o de aceitar ou não a situação, mas sim o de respeitar e conviver com as diferenças. O fato de Victória ser professora universitária é uma exceção em meio às estatísticas. Atualmente, apenas duas transexuais dão aulas em universidades brasileiras. Além disso, no Brasil há o maior número de homicídios de transgêneros no mundo. De acordo com a ONG Transgender Europe, entre janeiro de 2008 e abril de 2013 foram registradas no país 644 mortes de travestis e transexuais, seis vezes mais do que o segundo colocado, o México. Mesmo representando uma parcela significativa da sociedade – cerca de 25% dos brasileiros, segundo dados de 2009 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, a população LGBT ainda é uma das mais vulneráveis à violação dos direitos humanos. Para a professora, a perpetuação dos estereótipos ainda é um dos principais fatores responsáveis pela violência homofóbica. Além disso, ela critica as instituições escolares, que promovem a exclusão dos alunos considerados diferentes. “A escola é cruel. Por isso, a maioria dos transexuais acaba nem terminando o ensino básico, ficando exposta a inúmeras situações de violência. Hoje, a idade média de um transexual é de 30 anos”, explica. Outra questão delicada é o conservadorismo de grande parte dos políticos brasileiros. “A sociedade é um reflexo do Congresso. O que é discutido e proposto lá acaba influenciando o cotidiano das pessoas, e isso é perigoso”, afirma. Para a professora da Universidade Federal do Paraná Marilene Tamanini, a influência da religião ainda pauta muitas decisões políticas, o que pode gerar retrocesso na conquista dos direitos humanos. “O conceito de família é muito mais que o proposto pelo Estatuto da Família. É um absurdo resumir a experiência humana a uma só. Isso fere frontalmente a possibilidade da organização da sociedade na sua diversidade”, explica.
POLÍTICA E AÇÕES GOVERNAMENTAIS Um grande desafio na busca pela igualdade de gênero continua sendo a inclusão de mulheres no ambiente político, historicamente masculinista. Ainda hoje, a maioria dos cargos é ocupada por homens. Dos 513 integrantes da Câmara dos deputados, apenas 10% são do sexo feminino. Desde 1995, há no Brasil um sistema de cotas voltado a candidaturas femininas. Para a vereadora curitibana Professora Josete, as cotas de gênero necessitam de aperfeiçoamento. “O que a legislação coloca é que 20% da chapa de parlamentares tem que ser ocupada por mulheres. Mas a chapa não é, necessariamente, a vaga do parlamento”, explica. Em setembro deste ano, o Senado aprovou uma proposta de emenda à Constituição (PEC 98/2015) que prevê cotas progressivas para cada gênero nas três próximas legislaturas. Assim, seriam 10% das vagas no pleito de 2016, 12% nas eleições de 2018 e 16% na votação de 2020. A proposta ainda precisa ser aprovada, em dois turnos, pela Câmara dos Deputados. No entanto, em junho deste ano, a Câmara rejeitou uma proposta semelhante (PEC 182/07). Outra medida necessária é a ampliação de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da violência de gênero. Em 2014, apenas 431 municípios (7,7%) do Brasil tinham políticas específicas desenvolvidas pelo órgão gestor de direitos humanos, segundo o IBGE. A publicação de pesquisas e estudos relacionados a esse tipo de violência também é importante, à medida que esses estudos trazem consistência à discussão. Com relação aos trangêneros, Victória afirma que deve haver menos burocracia nos processos de mudança de sexo e do reconhecimento do nome social. Para a Professora Josete, avanços significativos foram notados em âmbito nacional. Entretanto, é importante levar as políticas públicas para as cidades pequenas. “O desafio é fazer isso acontecer lá na ponta do município, no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), na Unidade de Saúde”, diz. Ela explica que garantir a igualdade de gênero deve ser entendido como uma obrigação da sociedade e dos governos, e não como um favor às mulheres.
CULTURA E EDUCAÇÃO Mais do que oferecer políticas voltadas ao enfrentamento da violência de gênero, é necessário promover uma mudança cultural. Ainda hoje, são destinados às mulheres o trabalho doméstico ou profissões que envolvam relações de cuidado, como docência ou enfermagem. Segundo a Professora Josete, isso faz com que elas tenham seus espaços de decisão limitados. “No meu partido ainda é comum o homem ir a reuniões e eventos, enquanto a esposa fica em casa com os filhos”, exemplifica. Marilene Tamanini explica que a discussão de gênero envolve inúmeras estratégias, como trabalhar a linguagem. Segundo a professora, determinadas frases, como “mulher no volante, perigo constante” podem parecer inofensivas, mas, na verdade, perpetuam estereótipos e marcam o lugar social das pessoas. Ela também critica o “fiu-fiu” das ruas, expressão que fere o direito de ir e vir das mulheres e que reafirma alguns pressupostos, como o do corpo disponível. Por isso, é imprescindível que a questão de gênero entre nas salas de aula. Entretanto, em junho deste ano, houve a retirada desse assunto de muitos planos estaduais e municipais de educação. Tamanini considera a decisão um retrocesso e afirma que a discussão deve fazer parte dos currículos escolares, já que envolve a participação coletiva da sociedade. É importante, também, que as próprias mulheres reconheçam sua independência e seu poder de escolha. “A mulher tem que ter reconhecimento de que é um ser completo e de que não precisa do aval do outro para existir”, afirma Tamanini. Além disso, ela argumenta que o empoderamento feminino ocorre, em grande parte, na intimidade. Dizer não quando não se quer ter um filho ou uma relação sexual desprotegida, por exemplo, são direitos da mulher e devem ser exercidos. O enfrentamento da violência de gênero é um processo difícil e envolve inúmeras questões. Entretanto, para Tamanini, respeitar a diversidade e desconstruir preconceitos, seja na escola, no trabalho ou na família, podem, sim, ajudar a combater a cultura machista e patriarcal existente no Brasil. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
CAMILA ABRテグ E GABRIELLY DOMINGUES
Equipe da Entrelinha acompanha por dois dias o trabalho da Patrulha Maria da Penha e conhece a perspectiva de vida de mulheres vテュtimas de violテェncia 36
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Um jardim com rosas delicadamente bem cuidadas numa casa aparentemente comum de um bairro tranquilo de Curitiba não revela os mistérios de violência que aconteceram por ali durante anos. Ao se aproximar da residência, os primeiros sinais de brutalidade começam a surgir. Portão danificado, porta amassada. As irmãs Antônia, de 83 anos, e Isabel, de 80 anos, levam uma vida semelhante com a de qualquer pessoa da mesma idade e só se diferenciam pelas situações delicadas que enfrentaram nos últimos anos. Sentadas na cozinha bem iluminada, com olhar firme e ao mesmo tempo resiliente, Antônia fala com a naturalidade de quem conta uma história corriqueira, sobre as agressões e ameaças das quais foi vítima. O neto de 24 anos, Cristiano, agredia física e verbalmente ela e Isabel, quando negavam dinheiro para compra de drogas e bebidas alcoólicas. A filha da vítima e mãe do agressor, Maria Cláudia, de 50 anos, quando estava alcoolizada, também participava dos ataques de agressividade. Antônia e Isabel conseguiram, em 2010, o direito à medida protetiva, pela Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. A medida protetiva serve para afastar o agressor da vítima, ele é proibido de se aproximar ou frequentar determinado lugares, “a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida”, segundo o texto da Lei. Por meio desse recurso, Cristiano deveria se manter a, no mínimo, 200 metros de distância de Antônia, e Maria Claúdia a 200 metros de Isabel. Nem sempre o limite foi respeitado. VIOLÊNCIA CONJUGAL Poucos quilômetros da casa de Antônia e de Isabel, a história de violência doméstica se repete. Há três anos, Graciele Bárbara Horevitch tomava café da manhã em uma panificadora acompanhada do filho adolescente, fruto do primeiro casamento, e do atual marido. Extremamente ciumento, o marido começou a ameaçar um garoto, de aproximadamente 15 anos, que olhava para Bárbara. Ela estava grávida e até hoje diz não ter compreendido a cena, justificando os olhares curiosos com a barriga de gestação. O comportamento violento e obsessivo dele só aumentou. Nem as festas de família eram
poupadas das crises de ciúme. Num final de domingo, a família assistia a um programa de televisão que retratava a história de um homem que pensava em matar a esposa. Mostrando espanto, Bárbara exprimiu sua indignação com o caso e recebeu uma resposta que não esperava. Com frieza, o marido afirmou que também já havia cogitado essa hipótese. O relacionamento enfraquecido chegou ao fim quando o marido partiu para a agressão física. Um soco na altura do fígado levou Bárbara para o hospital e resultou em meses de tratamento. Com lágrimas escorrendo pelo rosto, a vítima conta que não sabia como agir depois de sofrer a agressão. Temia falar com pessoas próximas, pensava em suicídio e era assombrada pelo medo. Contando com o incentivo de um amigo, ela tomou a decisão de avisar a mãe, Elizabeth Luiza Bumiller Horevitch, que acolheu a filha em casa mesmo recebendo ameaças e agressões verbais do ex-genro. Por algum tempo, o contato com o agressor foi inevitável. Como pai, ele tinha o direito de ver o filho a cada 15 dias. No início, tudo parecia certo, mas, em fevereiro de 2015, o menino de três anos começou a apresentar resistência e, nos últimos encontros, foi arrancado à força do colo da mãe, enquanto implorava para não ser levado pelo pai. Foi Elizabeth quem tomou a primeira atitude contra o agressor, providenciando uma medida protetiva no lugar da filha para facilitar as visitas do pai ao filho e, ao mesmo tempo, garantir mais segurança à família. O caso, que ainda segue desenrolando, dá desvantagem para as vítimas em mais um ponto: o agressor conta com amizades na Polícia Militar, fato que dificulta o atendimento apropriado para a família. Como alternativa, as mulheres escolheram receber o acompanhamento preventivo da Guarda Municipal, por meio da Patrulha Maria da Penha. Atualmente, o agressor de Bárbara está desaparecido e não demonstra nenhum interesse na criação do filho, contribuindo somente com uma pensão, o equivalente a 15% do salário dele, que é descontado diretamente na folha de pagamento. Mesmo assim, os dias dessas mulheres são perturbados pelo medo e, por isso, Bárbara en-
controu maneiras alternativas para superar o trauma. Além do acompanhamento da Guarda Municipal, que proporciona segurança, ela participa de um grupo de mães que realiza trabalhos artesanais. A produção é uma distração e uma terapia para Bárbara. As atividades parecem estar dando bons resultados. Ela enfatiza uma vontade pessoal de ajudar mulheres que passaram ou ainda passam por problemas de violência doméstica e assim contribuir com o bem-estar das vítimas. TRABALHO HUMANIZADO A Patrulha Maria da Penha, que dá amparo para Antônia, Isabel, Bárbara, Elizabeth e mais outras 3,1 mil vítimas de violência doméstica foi criada em março de 2014 e é uma ação da Secretaria Municipal da Mulher e da Guarda Municipal de Curitiba, em parceria com o Tribunal de Justiça do Paraná. O treinamento normal pelo qual todos os guardas devem passar dura 80 horas/aula. Para os guardas que querem se voluntariar para o trabalho na patrulha, são exigidas mais 32 horas/aula. Nelas são ministradas palestras para que estejam aptos a lidar com situações envolvendo violência doméstica. “A capacitação deu base para a gente trabalhar, mas eu imagino que o principal se aprende na rua fazendo as visitas”, afirma o guarda Fábio Paulus Ribeiro. Para que essa capacitação tenha o efeito desejado, há o envolvimento de vários setores que trabalham com a mulher vitimizada, segundo a inspetora da Patrulha Maria da Penha, Cleusa Pereira. Fazem parte do curso representantes da OAB, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar, o Ministério Público, a Delegacia da Mulher, a Secretaria da Mulher e setores internos da própria Guarda Municipal: “É um somatório de esforços, todos colaboram com sua visão e colocam em perspectiva o que compete a cada um. O foco é trabalhar na humanização do tratamento da vítima”. A Guarda Municipal tem um efetivo de quase 1.400 pessoas, dessas 131 passam pelo treinamento específico, porém, 15 fazem parte da Patrulha Maria da Penha. Por ser um trabalho voluntário dentro da corporação, é possível notar o engajamento dos guardas. Quando a mulher consegue a medida protetiva contra o agressor, ela tem a possibilidade de escolher, se quer ou não, Entrelinha | JORNALISMO UP
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ser acompanhada pela Patrulha. Se aceitar o acompanhamento, uma dupla de guardas (um homem e uma mulher) fica responsável por se inteirar do caso e realizar visitas periódicas à casa da vítima. Em um ano e meio de existência, a Patrulha já atendeu, segundo dados da corporação, quase 6 mil mulheres, e realizou 58 prisões em flagrante de agressores reincidentes que estavam violando a medida protetiva. CONSEQUÊNCIAS TURBULENTAS Antônia é atendida há quase um ano. Em certa ocasião, Cristiano descumpriu a medida protetiva e foi até a casa onde ela mora com a irmã, uma neta de 16 anos e outro de 11 anos, também filhos de Maria. Sob efeito de drogas, ele gritava xingamentos e chutava o portão de ferro na tentativa de invadir a casa. O motivo era que ele queria dinheiro da avó. A guarda foi chamada e levaram Cristiano e Antônia para a Delegacia da Mulher. Era preciso, no entanto, que a avó formalizasse uma queixa contra o neto, isso tudo às 3 horas de uma madrugada fria. Na delegacia, o responsável pelo plantão a princípio se recusou a deter Cristiano, mesmo ele tendo infringido a Lei Maria da Penha. Depois de praticamente implorar para que o neto ficasse detido e de os policiais averiguarem os antecedentes criminais, Cristiano ficou preso. Na mais recente visita da Patrulha, Antônia relembrou os detalhes daquela noite, em uma conversa com os guardas Ana Cristina de Lima Araújo, de 47 anos, e Fábio Paulus Ribeiro, de 34 anos. Ana Cristina perguntou por Cristiano, que havia passado
Em um ano e meio de existência, a Patrulha já atendeu, segundo dados da corporação, quase 6 mil mulheres, e realizou 58 prisões em flagrante de agressores reincidentes que estavam violando a medida protetiva
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dois meses preso. Depois de um longo respiro, Antônia contou que o neto tinha sido morto após um confronto com a Polícia Militar no início de outubro, depois de assaltar uma panificadora e um pedestre. Os policiais o encontraram se escondendo em uma casa e ameaçando se matar. Passadas algumas horas de negociação, ouviram-se tiros. Maria que havia sido chamada para tentar ajudar o filho estava a alguns metros de distância quando ele foi alvejado. Maria Cláudia passou quase cinco anos presa. Fora da cadeia descobriu que é portadora do vírus HIV. Agora, mora num bairro distante da casa da mãe, principalmente devido à medida protetiva pedida por Isabel. Antônia comenta com a guarda que talvez seja hora de retirar a medida, já que a filha está debilitada e o neto faleceu. Maria Cláudia chegou à casa de Antônia junto com a filha adolescente no meio da visita da Patrulha. Ficou surpresa ao perceber a presença dos guardas, parou na
soleira da porta e mexia nervosamente na sacola de remédios que carregava. Apesar do clima tenso, Ana Cristina conversou com Maria e explicou a preocupação de Antônia. A guarda disse também que num momento delicado como o que a família vive, não ajudaria repreender Maria Cláudia, já que poderia atrapalhar a recuperação dos vínculos. Os próprios guardas criam vínculos com as vítimas, pois estão presentes nas situações de maior vulnerabilidade delas. Na casa de Bárbara e Elizabeth, a situação é diferente. Com o desaparecimento do agressor, as vítimas parecem temer uma reincidência. Bárbara cogita a hipótese de providenciar mais uma medida protetiva. Elizabeth não deixa de prestar o seu apoio à filha em nenhum momento, buscando incentivá-la nos processos judiciais e registros de boletins de ocorrência. Para Bárbara, restaram traumas, que vão desde o medo de encontrar o agressor na rua até aversão a relacionamentos.
Perfil
KARINNE LOURENÇO, MILLENA MÜLLER E MURILO PRESTES
Desde julho deste ano, Flávia Carvalho tatua voluntariamente mulheres com marcas de violência de gênero. Ideia surgiu há dois anos, após cliente procurála para cobrir duas cicatrizes Entrelinha | JORNALISMO UP
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“Estou à flor, à flor da pele, a pele que você marcou, com beijo e dor… Como se atreve, marca de amor, à ferro e flor, na minha pele”. O trecho da música de Armandinho revela que o relacionamento entre duas pessoas enfrenta obstáculos que, em alguns casos, podem ser abusivos. Com o intuito de cobrir cicatrizes de mulheres vítimas de agressões, o projeto A pele da Flor foi criado pela tatuadora Flávia Carvalho que, aos 31 anos, coleciona 60 tatuagens no corpo e quase 39 mil seguidores nas redes sociais. A mãe foi a pessoa que incentivou a jovem a desenhar, pois percebia a afinidade da filha com a arte. Quando entrou na faculdade de Ciências Biológicas na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Flávia começou a trabalhar na área de iniciação científica num laboratório de entomologia, fazendo ilustrações para artigos, livros e trabalhos científicos. Com o estímulo dos colegas, que pediam para que ela aprendesse a tatuar, e o amor pela arte, a jovem fez algumas aulas com um tatuador experiente. Em seguida, utilizou alguns amigos como “cobaias”. Antes disso, a curitibana destaca que enfrentou dificuldades no começo da carreira, em 2009, devido à relutância dos tatuadores com experiência em ensinar iniciantes, principalmente mulheres. No último ano de faculdade, Flávia engravidou – terminaria o relacionamento com o pai da criança pouco depois. Ele pagou alguns meses de pensão, mas, em seguida, deixou de cumprir o acordo. O curso universitário era integral e faltavam sete disciplinas para a conclusão, fato que a impediu de se formar: “Não me imagino trabalhando numa empresa normal. Adoro trabalhar por conta”. FAMÍLIA Houve certa reprovação familiar pela escolha da nova profissão e pelo ato de tatuar o corpo, aspectos somados à desistência da faculdade. “Minha mãe dizia: ‘Você tem que se formar, passar num concurso público, ter estabilidade, pois você não vai conseguir tirar um dinheiro bom na tatuagem...’”, lembra Flávia, que destaca também que reconquistou a confiança familiar à medida que se consolidava como tatuadora.
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Ser autônoma e trabalhar com o público foram as mudanças mais perceptíveis na vida dela. Como as tatuagens estão relacionadas a histórias de vida, Flávia percebeu há dois anos a essência do projeto A pele da flor, após uma cliente procurá-la para cobrir duas cicatrizes na barriga. “Ela estava num bar e o cara queria ficar com ela. Ela disse não. Não foi grosseira. Quando ela foi no banheiro, ele a abordou novamente e ela recusou. Nesse momento ele esfaqueou a menina e fugiu. Ela ficou hospitalizada e a segunda cicatriz foi feita devido ao dreno”, conta a tatuadora ao rememorar comovida a reação da cliente ao ver a tatuagem pronta: “Ela me abraçou, me agradeceu, disse que era um marco de superação pela agressão que ela tinha sofrido”.
procurá-la por medo da exposição. Uma busca no Google comprova: mais de 200 matérias envolvendo o projeto menos de seis meses após a implantação, algumas delas com o teor principal da ação banalizado: repórteres davam mais importância às tatuagens do que à violência contra mulher. Meninas que tiveram a iniciativa de aparecer na mídia começaram a ser perseguidas e ficaram com medo de tanta exposição. Flávia, claro, também passou a sofrer com o assédio midiático, e se viu obrigada a não mais falar com jornalistas, algo que postergou em pelo menos duas semanas a entrevista concedida à Entrelinha. “O telefone não parava, vieram repórteres e eu até bati boca, porque eles ficavam em cima falando que eu tinha que ver [que PELE DA FLOR ceder entrevista era uma] publicidade O projeto foi criado com o intuito gratuita para mim”, relata. de atenuar marcas da violência contra mulheres. A maioria dos tatuadores não ENVOLVIMENTO gosta de produzir em cima de cicatrizes. A tatuadora alega que o mais difícil foi Um trabalho como este, segundo Flávia, aprender a ter respaldo psicológico. Para custa entre R$ 800 e R$ 1 mil. ela, o assunto é mais complicado do que Quando abriu o próprio estúdio, o imaginara. O estado psicológico mudou. anseio de concretizar o projeto fez com Há dias que sai do estúdio abalada e revolque Flávia buscasse parceiros para via- tada com as histórias. Casos em que mebilizá-lo. Algo que conseguiu em julho ninas ficam com o corpo todo marcado, deste ano, quando foi firmada uma par- enquanto o agressor vive tranquilamente, ceria com a Secretaria Municipal da Mu- deixam-na comovida. lher de Curitiba. Até o fechamento desta No estúdio, Flávia não recebe soedição, já haviam sido tatuadas 18 mu- mente mulheres que foram agredidas, lheres. Até o fim do ano, Flávia pretende mas também meninas que se automutatuar mais de 10. Embora a agenda do tilaram devido à violência psicológica ano que vem ainda não tenha sido aber- causada pelos parceiros e mulheres que ta, com a divulgação do projeto Flávia passaram pela mastectomia, processo conta que a procura aumentou. que gera a remoção total ou parcial da A busca pela tatuadora é, de certo mama, geralmente resultado de câncer. modo, reflexo de dados alarmantes sobre No momento desta entrevista, Flávia violência contra a mulher. Segundo uma relê trechos de uma carta remetida pela pesquisa realizada em novembro do ano mãe de uma menina de 18 anos atendipassado pelo Instituto Avon em parceria da pelo projeto. A tatuadora relata que com o Data Popular, três a cada cinco mu- a jovem foi devastada psicologicamente lheres já sofreram algum tipo de violên- após sofrer agressões do marido e viocia em relacionamentos. Dados do Insti- lência obstétrica. A menina havia perdituto Brasileiro de Geografia e Estatística do a guarda do filho e precisava realizar (IBGE) revelam que 1,2 milhão de mulhe- um tratamento para surtos psicológicos, res sofre agressões no país. que se manifestavam, em média, quatro vezes por semana. A carta foi uma forma SEM TATUAGEM NO JORNAL de a mãe da menina expressar agradeciPor criar um projeto muito valoriza- mento. Após a sessão, segundo o relato do pelo ponto de vista midiático, já hou- da carta, a menina havia sofrido apenas ve casos de mulheres se intimidarem em dois surtos psicológicos no mês.
NOVO PROJETO? O caso inspirou outra ideia. Em 2016, Flávia pretende oferecer workshops gratuitos para mulheres com afinidade com desenho para iniciá-las no mundo da tatuagem. “São nesses contatos posteriores à tatuagem que tudo de melhor acontece”, diz a tatuadora que recebe diversos presentes, inclusive para os filhos. A tatuadora também integra o grupo de mulheres que já foram agredidas em algum momento da vida: “Meu primeiro namorado já me bateu. Me dava tapas na cara, me jogava no sofá, me puxando pelo braço”. Não era um fato isolado. Flávia sofreu violência psicológica. Na época, Flávia não tinha noção de que não estava errada, e de que todo o enredo de seu relacionamento era a violência contra mulher explícita. Quando jovem, inclusive achava que era responsável por toda a situação, fator reconhecido pelo feminismo, quando o agressor tenta iludir a mulher, colocando-a sempre em uma posição fragilizada e incoerente no relacionamento ou em uma história, fazendo com que ela se sinta culpada. Flávia conta que seu pai agredia muito sua mãe, e as lembranças de quando era criança, o passado violento internalizado em seu psicológico, a fizeram crer que toda aquela situação era algo normal, comum e cotidiano; o que havia acontecido na sua infância fez seus olhos se fecharem para a realidade, talvez também pela falta de maturidade suficiente para compreender melhor as situações. A tatuadora também já atendeu personagens com histórias muito parecidas à dela, em que a menina jovem achava toda a situação de violência que sofria algo normal. Aceitava tudo como se fosse seu papel sofrer calada, sem que ninguém soubesse de sua real situação. Flávia acredita que infelizmente a agressão é naturalizada por muitas mulheres devido a esse comportamento machista da sociedade brasileira. Crendo que somente quando um homem tenta matar, esfaquear ou algo mais grave pode ser considerado como violência, esquecendo que outros fatos considerados simples, como o controle da roupa, a proibição de atividades como o trabalho, são sim tipos de violência contra mulher.
Manoela Militão
“Atriz é vista saindo da academia”; “saiba como perder 5 quilos em uma semana”; “o chá mágico que faz você perder calorias”; “como emagrecer e ser sensual”; “saiba se vestir de acordo com o seu corpo”. Todos os dias somos bombardeados pelas mídias sociais nos mostrando que tipo de corpo, cabelo, sensualidade e roupas devemos ter, ser e usar. Vivemos a era da mídia social, em que não só os meios de comunicação ditam modelos, mas pessoas comuns são alçadas ao conhecimento público por seguirem padrões estéticos e corroborarem o que a mídia promove. A advogada de Direito Internacional Caroline Paciornick, de 26 anos, indignou-se com a notícia de que seios pequenos agora estão na moda: “Não entendo como meu corpo pode ou não estar na moda. Cada um nasce de um jeito e cada um tem uma beleza, não podemos alterar ou recorrer a cirurgias para que possamos ser felizes. A sociedade está muito errada”. A antropóloga da Universidade de São Paulo Marcella Betti lembra que todo e qualquer padrão de beleza varia conforme o contexto histórico e cultural. É necessário entender que os meios de comunicação não inventaram o padrão de beleza “branca, magra e jovem” que paira sobre a sociedade, embora contribuam para a divulgação e manutenção desse padrão. “É sempre importante lembrar que os meios de comunicação não se encontram isolados da sociedade, mas dialogam com os valores e padrões vigentes, reforçando e reelaborando concepções sociais”, explica a pesquisadora. O perigo por trás dessa divulgação e manutenção seria a naturalização desse ideal, o que oculta o caráter de construção social desse fenômeno. “A ideia de que o corpo bonito é o corpo magro e livre de sinais do tempo não é uma ideia óbvia ou universal,
ainda que sejamos levados a pensar assim”, prossegue Marcella. Pensando no exemplo, seios grandes, seja por cirurgia plástica ou não fazem parte da nossa sociedade e qualquer um que não esteja dentro deste padrão não fará parte dessa sociedade pujante que os meios de comunicação vangloriam. A discussão sobre padrões de beleza e do posicionamento da mídia em relação à mídia significa também discutir a questão de gênero e a posição social das mulheres na sociedade. Marcella explica que a questão estética traz uma carga muito grande às mulheres que muitas vezes são desconsideradas em relação aos homens. A ideia de que a estética e a futilidade fazem parte do universo feminino equipara as mulheres a meras bonecas que devem ser cuidadas e admiradas: “Quantas vezes não vemos mulheres que ocupam importantes cargos políticos, por exemplo, serem julgadas por conta da roupa que usam e da aparência que exibem, e não por sua atuação política? Quantas vezes vemos o mesmo acontecer com homens que exercem estas mesmas funções?” Um exemplo clássico foi o da cosmonauta Russa Yelena Serova que se tornou a quarta mulher russa a ir ao espaço, depois de sete anos de treinamento. Na coletiva de imprensa pré-lançamento, em 2014, foram-lhe feitas perguntas sobre como ela cuidaria do cabelo no espaço, se levaria maquiagem ao espaço e como manteria a relação com a filha durante sua viagem. Além de se irritar com a pergunta, a astronauta afirmou que existe um problema grave de gênero na profissão, e que a cada ano menos mulheres se inscrevem para o grupo de cosmonautas. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
LETÍCIA NECO E GIOVANA CANOVA
Cálculo da beleza por uma perspectiva não financeira mostra que “investimento” em corpo perfeito pode trazer prejuízos graves à saúde da mulher A busca pelo corpo tido como “perfeito” tem levado pessoas até o limite. Pautadas na ilusão de um objetivo a ser atingido, mulheres ignoram os danos à saúde física e mental. Segundo a psicanalista Eliana Barbosa, de 46 anos, essa fixação pela estética está diretamente ligada a uma imposição de ideal narcisístico. “Com essa imposição, a relação com o mundo externo fica prejudicada”, afirma. Segundo ela, a concepção freudiana da melancolia e do ideal do ego prega que a obsessão pela construção do corpo começa como um aspecto psicológico, partindo da necessidade da adequação e aceitação. Só então se manifesta no físico, tornando patológicos hábitos como exercícios físicos, dietas e outros métodos estéticos. “Faria de tudo por beleza, não ligo para as consequências”, afirma a empresária Carla Vitek, de 26 anos que, mesmo com a rotina intensa dos negócios, não abre mão da academia e de uma dieta restrita a frango, batata-doce e brócolis, em porções de 100 a 200 gramas. A jovem mantém uma disciplina rigorosa de treino e alimentação e “foge” das tentações mais calóricas. A nutricionista Giliane Nassif, de 27 anos, afirma que dietas muito restritas causam uma série de alterações no funcionamento do organismo, como perda de massa muscular, alteração da função da tireoide, aumento da gordura corporal, alteração da microbiota intestinal, acarretando na diminuição da imunidade, que amplia quadros de ansiedade e irritabilidade. Além disso, ocorrem as deficiências nutricionais devido ao baixo consumo de vitaminas e minerais, levando ao ressecamento da pele, à queda de cabelo e ao enfraquecimento das unhas. Mesmo assim, as dietas e a academia
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muitas vezes não bastam. A procura por cirurgias plásticas tornou-se a saída para as pessoas que buscam incessantemente o “corpo perfeito”. A fixação é tão grande que, em diversos casos, a vida é posta em risco em procedimentos desnecessários do ponto de vista da saúde. A retirada de costelas para afinar a cintura, por exemplo, está entre as sete cirurgias estéticas mais arriscadas para a saúde da mulher. Para obter resultados mais rápidos, Carla aplicou, sem prescrição médica, o anabolizante Lipostabil nas coxas, no bumbum e no abdômen. Mesmo que já tenha sido acometida por uma cirurgia de implante de próteses mamárias, ainda deseja “corrigir” o nariz e as orelhas. Usando manequim 40, conta que também passaria por uma lipoaspiração para
MAMOPLASTIA DE AUMENTO Implante de próteses. Riscos: rompimento ou movimento da prótese, flacidez, contratura capsular, hematomas, necrose
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ABDOMINOPLASTIA Retirada do excesso de pele e gordura no abdômen. Riscos: necrose do tecido e aparecimento de queloides
chegar ao resultado que deseja. Esse comportamento pode estar em muitos casos ligado à baixa autoestima. A mulher relaciona a construção da imagem que passa por um fracasso na sua constituição simbólica, podendo também se manifestar por meio de distúrbios alimentares, como anorexia, bulimia e vigorexia. Apesar da influência dos arquétipos de beleza mantidos pela sociedade, não existe um modelo de corpo perfeito. “Cada um precisa se sentir bem consigo, independentemente de número de manequim”, diz a fisiculturista Andreia Mariani, de 27 anos, que prioriza a saúde e o amor-próprio para manter o físico e o psicológico equilibrados. Ela afirma que, para ser feliz, uma mulher não deve se render à ditadura da beleza e a padrões inalcançáveis.
PÁLPEBRAS Eliminação de rugas, gordura, bolsas e flacidez. Riscos: secura, disfunção da pálpebra e pele solta
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MAMOPLASTIA DE DIMINUIÇÃO Diminuição ou reposição das mamas. Riscos: cicatriz irregular, hematomas e rompimento dos pontos
LIPOASPIRAÇÃO Retirada de gordura localizada. Riscos: flacidez e rugosidade da pele, alteração de coloração e necrose da pele
VOCÊ SABIA? que a Unidade de Valorização de Recicláveis (UVR) é responsável pela separação e triagem de 50% de todo o resíduo sólido coletado pela Prefeitura de Curitiba? E mais: que todos os recursos gerados com esse processo são destinados a ação social da cidade?
ISSO É RESPONSABILIDADE
SOCIOAMBIENTAL Para saber mais acesse: www.ipcc.org.br Entrelinha | JORNALISMO UP
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