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conceitos

1HISTÓRIA DA RELAÇÃO ENTRE COMÉRCIO E ESPAÇO/CIDADE

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A palavra comércio tem como significado “local de troca”. Historicamente, ele surgiu a partir de processos que aconteciam na Antiguidade, com determinados grupos trocando suas produções por outras, antes mesmo que houvesse dinheiro ou qualquer outra forma intermediária de pagamento. As mercadorias, portanto, circulavam por meio do escambo executado em um nível local, refletindo uma necessidade das comunidades de aproveitar os produtos perecíveis que advinham da agricultura e da pesca, já que essas produções não poderiam ser estocadas por períodos longos.

Com a transição da Idade Média para a Idade Moderna houve uma mudança tanto do modo de produção adotado com a consolidação do Capitalismo, quanto da forma como os seres humanos viviam em sociedade. Por meio dessas mudanças, é possível perceber como os meios de consumo foram moldando os espaços da cidade, da mesma forma que os espaços foram influenciando o comportamento de seus usuários.

Dessa maneira, percebe-se que o comércio contribuiu para a formação das cidades: as calçadas surgidas na

Roma Antiga e revividas em Londres e as passagens parisienses como áreas exclusivas para tráfego de pedestre são exemplos de alguns elementos que surgem como modo de suprir as necessidades de fluxo de pessoas nos centros urbanos, gerado pelo movimento comercial. A posterior reintrodução e proliferação das calçadas e a atual “pedestrianização” reforçaram o urbano como espaço de consumo.

Como é descrito por Koolhas, (2001) que as compras [10] introdução

“O comércio contribuiu para a formação das cidades, e princípios de organizaç“O comércio contribuiu para a formaos ão urbana também se moldam de acordo com o comércio. ”ção das cidades, e os princípios de organização urbana também se moldam de acordo com o comércio”

são o meio pelo qual o mercado solidificou seu controle nos espaços, construções, cidades, atividades e vidas. Os Princípios de organização da cidade também estão se moldando às compras, aos shoppings. Apesar de ter origem suburbana, o shopping está retornando à cidade, porém os centros se mantém espetacularizados, apenas como temas. O shopping, que antes era um componente da cidade, está se tornando um pré-requisito para a organização dela. Nada é mais fundamental para a sobrevivência do comércio que um contínuo fluxo de clientes e bens.

A correlação entre tráfego pedonal e volume de vendas fez a relação entre comércio e urbanismo indistinguível dos problemas de mobilidade, não apenas o comércio se torna o bloco de construção básico da cidade, mas é uma das melhores ferramentas para prover conectividade, acessibilidade e coesão urbana. Simultaneamente, a religião correlaciona com o comércio, uma vez que a palavra “feira” (latim) significa “dia santo” ou “feriado”. As pessoas se reuniam em lugares públicos a fim de venderem seus produtos artesanais e, a partir desse incremento, o poder pú2 BREVE HISTÓRICO DE GOIÂNIA E SUA RELAÇÃO COM AS FEIRAS blico interveio a fim de disciplinar, fiscalizar e cobrar impostos.

A cidade de Goiânia foi formada a partir das transformações políticas que marcaram a história do país na década de 1930: o projeto de mudança da capital goiana já já vinha sendo discutido porque a Cidade de Goiás, primeira capital goiana (criada no século XVIII) havia sido fundada em razão da atividade aurífera naquela época. Assim, após o período do ouro, as cidades envolvidas com a criação de gado e o desenvolvimento da agricultura, mais alocadas ao sul, passaram a ter maior importância para Goiás. Por isso, no ano de 1932, foi organizada uma comissão que deveria realizar a escolha da melhor região para a qual a nova capital seria transferida, a qual se deu em função de cidades que já existiam. Assim, entre as opções existentes, a nova capital veio a ser definida nas proximidades da cidade de Campinas, hoje o mais antigo bairro de Goiânia, e no dia 24 de outubro daquele mesmo ano foi lançada a pedra fundamental que daria início aos trabalhos de construção da cidade. Por meio desse breve histórico, percebemos as raízes comerciais de Goiânia desde a sua criação na década de 30, pois o bairro de Campinas foi sofrendo modificações ao longo do tempo que hoje o configuram como um dos centros comerciais mais importantes do estado. Segundo Custódio (2018), várias feiras já funcionavam desde meados da década de 1940, principalmente aquelas dos bairros pioneiros da capital. 02 _ BREVE “Na data de 24 de outubro de 1932 foi lançada a pedra fundamental que daria início aos trabalhos de construção HISTÓRICO DE GOIÂNIA da cidade de Goiânia.”

introdução “Na data de 24 de de 1932 foi lançada [11]outubro a pedra fundamental que daria início aos trabalhos de construção da cidade de Goiânia. ”

No decorrer dos anos, como fruto da dinâmica urbana, houve um substancial aumento de seu número na cidade e, ainda, a inclusão de outros segmentos de produtos, além dos alimentícios, e de novos horários de funcionamento. Como projeto de aceleração, a década de 90 por exemplo, foi marcada por um estímulo governamental para a regularização de feiras na capital, havendo um “boom” de feiras, as quais passaram a ocupar diversos espaços públicos da capital. Foi a partir disso que Goiânia se tornou conhecida como a “cidade das feiras”. Hoje em dia, a economia da capital goiana se deve em grande parte às feiras, as quais têm a capacidade de envolver um público local e fiel, mas também de trazer turistas de todo o Brasil. Dessa forma, a 03 _ RELAÇÃO DE valorização das feiras que acontecem na cidade se GOIÂNIA COM AS FEIRAS mostra importante não só no quesito econômico, mas também nos aspectos culturais e sociais que derivam dessa convivência tão heterogênea entre pessoas advindas de diversos locais. “É essencial conhecer a importância que as feiras têm para a cidade de Goiânia, não só em relação ao aspecto econômico, mas quanto a sua forma de ocupação de espaço e estímulo à 3 trocas simbólicas.” RELAÇÃO ATUAL DO ESPAÇO CONCRETO X VIRTUAL

A arquitetura deve se relacionar com os sentidos do usuário. O espaço é um local de práticas sociais heterogêneas e, por vezes, antagônicas, mas sempre diversas. Isso é característico as formas de comércio como feiras, shoppings: aquele que tem a presença corporal do indivíduo. Segundo Monte-Mor (2006) hoje, o urbano-industrial impõe-se virtualmente a todo o espaço social.

Caso a forma como o ser humano experiencia o espaço seja distante, ele não conseguirá abranger os aspectos sociais e sensoriais que envolvem uma experiência arquitetônica em sua forma mais completa. Assim, compreendendo o virtual como uma forma de arquitetura à distância, as feiras livres vêm, ao longo do tempo, resistindo às mudanças econômicas e à atual globalização do comércio, representando o que ficou dos anos sem a internet, sem aplicativos de compras, sem a comodidade de comprar com um clique. Afinal, se esse novo comércio virtual fosse adotado, a feira estaria negando a característica fundamental de sua existência: a troca. Não a troca de dinheiro por mercadorias,

mas sim a troca de experiências, já comentada anteriormente. associar esses dois mundos distintos relacionados à arquitetura e ao comércio das feiras livres. Conforme cita Lefebvre (1973), a arquitetura tem o objetivo de criar condições e possibilidades de utilização do espaço de forma contraditória ou fora do esperado, rumo à uma arquitetura da satisfação, do divertimento, do prazer. Pensando nisso, a arquitetura das feiras livres como espaço físico, possibilita o cumprimento desse objetivo, já que cria diversas possibilidades de apropriação por parte de seus usuários. Nas feiras, surgem elementos diferentes das lojas tradicionais: há uma certa flexibilidade, informalidade e ocorrem experiências repentinas e imediatas. Em relação à atual virtualidade do comércio, a “disneyficação”, o “junkspace “ e o “espaço-lixo” são termos usados para as paisagens artificiais. Esses conceitos referenciam as formas de comércio através das imagens, deslocando o processo para uma nova forma de desejo e experiência, que distância quase totalmente da venda e troca real. Leva-se, então, ao processo de experiência com o comércio apenas na forma de obtenção do objeto, anulando a experiência sensorial e antropológica que o corpo e o estar no espaço proporcionam (a qual é a característica presente nas feiras que as mantém relevantes nos mundo atual). Portanto, o mundo virtual é, hoje, a principal for“Compreendendo o virtual como uma forma ”fria” de interações, as feiras livres vêm ao longo do tempo reagindo e resistindo às mudanças das relações econômicas e sociais inerentes ao comércio. ” “Compreendendo o virtual como uma forma ”fria” de interações, as feiras livres vêm ao longo do tempo reagindo e resistindo às mudanças das relações econômicas e sociais inerentes ao comércio.” 4 ARQUITETURA EFÊMERA E FLEXÍVEL A arquitetura efêmera se dá quando uma construma de desenvolvimento: tudo se traduz em forma ção possui características transitórias no espaço, digital ou almeja chegar lá. As inovações definem algo definido não pela durabilidade potencial do novos desejos e necessidades, reduzem o tempo objeto, mas sim pela durabilidade real da sua relade giro do capital e reduzem a distância que antes ção com o espaço. Portanto, segundo Paz (2008), o limitava, a âmbito geográfico, fornecedor e cliente. primeiro paradoxo do tema é que uma arquitetura Em contraposição à isso, as feiras estão fora desse só se torna efêmera de fato quando se desfaz de patamar, devido a sua própria condição de existên- um dado lugar, assim, existe apenas quando cumcia, com características de efemeridade e de tro- prida sua efemeridade. Isso leva ao segundo paracas simbólicas. Logo, cabe levar em consideração doxo, que se configura como uma conseqüência do todos os fatores apontados anteriormente antes de primeiro: não há relação direta entre a tecnologia introdução [13]

construtiva e a efemeridade real da construção. Assim sendo, a arquitetura não pode ser desassociada de seu espaço, mas essa relação deve ser pensada para a concepção temporal que se tem pós Revolução Industrial, em contraposição com a concepção do Renascimento, por exemplo, visto que, após a Revolução Industrial a arquitetura ganha a possibilidade de perder seu vínculo secular com o solo. Dessa forma, ao aplicarmos todos esses conceitos à feira, percebemos como ela é um exemplo de arquitetura que se encontra em uma linha tênue entre efemeridade e permanência, pela forma como se apropria de um espaço, mas apenas por um curto espaço de tempo; flexibilidade e identidade, na maneira como tem uma disposição heterogênea de seus módulos (que são as barracas) mas ainda assim possui uma identidade visual; e independência do sítio e relação com os usuários, “Compreendendo o virtual como uma forma ”fria” de interações, as feiras livres vêm ao pelo modo como apesar de ocupar um espaço por “A feira é exemplo de uma linha tênue entre efemeridade e permanência, flexibilidade e“A feira é exemplo de uma linha tênue longo do tempo reagindo e resistindo às mudanças das relações econômicas e sociais inerentes ao comércio. ” apenas algumas horas ou dias, seu vínculo com o usuário não é menos intenso do que aqueles ocoridentidade, independência do sítio e relação com os usuários, arquitetura fluida e identidade visual. ” entre efemeridade e permanência, flexibilidade e identidade, independênridos em uma arquitetura formal e fixa. Em resumo, cia do sítio e relação com os usuários, para citar Marta Bogéa em seu livro Cidade Errante, de 2009: “o espaço é fluido, mas há estabilidade o bastante para permitir reorganizações através do tempo” Portanto, quando levamos em conta características como a montagem e desmontagem de barracas das feiras, a curta duração desse evento, sua capacidade de apropriação dos espaços urbanos e a aparente disposição de barracas ao acaso percebemos o quanto a efemeridade é um traço inerente 5 arquitetura fluida e identidade visual.” TROCAS SIMBÓLICAS à arquitetura da feira, e o quanto essa particularida- O que é capaz de carregar tamanho valor coletivade aprofunda e agrega nas possibilidades de estu- mente imaginado ao ponto de que esta concepção dos e abordagens em pesquisas sobre esse evento possa valer mais do que a matéria? Segundo Bourtão essencial dos centros urbanos, principalmente dieu (2003), algo que se titula alguém ou alguma da cidade de Goiânia. coisa, mesmo que apenas no conhecimento coleti[14] introdução

vo ou individual, desde que pudesse vir a ser significativo para essa pessoa, carrega capital simbólico. Algum tipo de capital não simbólico poderia se tornar um capital simbólico dependendo do ponto de vista e do significado daquilo para com alguém. Uma joia de família para um penhor deveria ter um capital financeiro específico, mas toda a história, o legado e o conhecimento adquirido acerca do bem o tornou carregado de valor simbólico para os membros da família em questão. Outro exemplo a ser disposto é o valor de um diploma universitário de um engenheiro, claramente ele representa um capital cultural já que o mesmo representa o agregado de conhecimento pelo qual o indivíduo veio a adquirir em sua estadia acadêmica, mas por outro, para o indivíduo aquilo vale mais do que isso, representa para ele o tempo que ele investiu para se tornar algo, ganhar um título, ser visto por si próprio e pela sociedade como um profissional reconhecido por todos, e a sociedade retribuiria o mesmo valor simbólico reconhecendo o valor do diploma, depositando nele sua confiança e outros capitais. De modo geral podemos entender que o capital simbólico de Bourdieu significa qualquer capital que possa significar algo para alguém, mesmo que involuntariamente. Claro que é complexo afirmar isso sem dar um respaldo mais concreto, mas, para o autor, o capital cultural, por exemplo, é algo que as classes dominantes usam para distinguir e segregar as classes. Quando uma classe dominante vê valor em algo coletivamente, aquilo passa a ser mais bem visto pelas demais classes, deixando assim aquele aspecto cultural com mais valor e o capital cultural a ele envolvido passa a ser uma moeda de troca mais valiosa. Podemos ver o exemplo da beleza, alguém que é bonito tem consigo capital cultural agregado, já que para a sociedade a beleza é um bem que se tem e agrega valor, por outro lado “A feira configura-se como arquitetura dos sentidos, do corpo, da forma como o usuário se relaciona com a obra.”

alguém feio, é alguém desprovido de beleza, já que ele não possui este capital cultural agregado, ele é selecionado para uma classe menos dominante, que no caso é classe bonita. Nesta mesma analogia podemos distinguir ricos de pobres em capital financeiro, cultos e ignorantes, fortes e fracos, sempre variando um ponto de comparação. Partindo do conhecimento do Capital Cultural e Simbólico podemos então relacioná-lo com as trocas simbólicas. Como foi possível perceber, o caintrodução [15]

pital simbólico está tão intrinsecamente ligado a outros capitais que quase sempre o estamos consumindo de uma maneira ou outra. Comprimentos, elogios e sugestões são sempre trocas de capitais culturais além disso carregados de valor simbólico agregado.

Por isso, praças e parques são locais na cidade propensos à trocas simbólicas, onde as pessoas se divertem, conhecem umas às outras, revisitam a natureza, interagem em sociedade, gerando trocas diversas. Ainda assim, espaços comerciais podem ser antro de trocas simbólicas, já que num mercado tão concorrido, os comerciantes que podem oferecer mais do que valor monetário, adicionando valores culturais e sociais, podem sim interferir do pleno desenvolvimento da empresa e nas suas vendas. O mercado da experiência e numa era completamente marcada pelas avaliações dos usuários e clientes, o valor e capital simbólico nunca foi tão importante.

Dessa forma, as feiras nas cidades se configuram como um exemplo perfeito de trocas simbólicas, pois mais do que adquirir bens e serviços, as pessoas frequentam para despertar memórias afetivas, estimular sua sensorialidade, diversificar sua cul6 A FEIRA COMO EVENTO E A EXPERIÊNCIA DO USUÁRIO tura e experienciar uma convivência em socieda de. -

A metáfora da máquina, tão em voga na arquitetura moderna dos anos 1960 e 1970, é colocada em pauta pela proposição de Bernard Tschumi de que a [16] introdução

arquitetura é constantemente transformada pelos múltiplos eventos que ocorrem dentro e em volta dela. Esses eventos são tão variados que não conseguem ser contidos em nenhum programa arquitetônico preconcebido. A teoria ganha mais força ao se analisar o contexto urbano em grandes cidades, em que a metáfora da máquina não consegue abarcar as complexas interações inerentes à metrópole contemporânea (TSCHUMI, 1994). O planejamento urbano do pós-guerra, no geral, buscava categorizar e segregar as atividades urbanas a fim de facilitar o controle e a conceituação da prática arquitetônica. Em posição crítica ao contexto em que se encontrava, Bernard Tschumi, através de seu discurso arquitetônico e de sua prá-

“As feiras têm como característica efêmera a CORPOGRAFIA URBANA de resistência, pois os usuários ali, experimentam em seu corpo um espaço urbano não espetacular.”

tica projetual, busca contestar essa realidade, ao afirmar e tomar partido da desordem e aleatoriedade da vida metropolitana. Compreendendo o conceito de evento como a experiência espacial, o discurso de Tschumi afirma que “a arquitetura é a relação disjuntiva entre espaços e eventos, ou de outro modo, a relação disjuntiva entre a concepção do espaço e a experiência do espaço” (Sperling, 2008, p.20). Tendo em vista essa interrelação entre a construção e a prática espacial, Bernard Tschumi pontua duas mudanças necessárias no paradigma arquitetônico pós-moderno: primeiro a troca dos preceitos forma-função por espaço-evento, e segundo, extrair a hierarquia sobreposta a esses termos como a fala “a forma segue a função” do arquiteto Louis Sullivan (SPERLING, 2008). Na substituição de forma-função por espaço-evento, a concepção do objeto arquitetônico sai de um encargo rígido e fixo, passando a abarcar a influência intrínseca dos movimentos e dos usos no espaço (SPERLING, 2008). Algo que também não é exprimido pelos métodos tradicionais de representação arquitetônica. Dessa forma, seria necessária uma nova forma de desenho arquitetônico que conseguisse expressar as complexidades da relação da vivência com o construído. Posto isto, a interdependência entre espaço e evento dentro da condição mutável e flexível da sociedade contemporânea, não admite hierarquia entre os termos (espaço e evento). Como expressão física de suas teorias, Bernard Tschumi realizou o projeto teórico The Manhattan Transcripts (1976-1981), que consiste de quatro séries de desenhos que transcrevem, através da combinação de diferentes tipos de representação bidimensional, eventos imaginados, específicos aos locais em que se ocorrem. Esse estudo vem contestar a disciplina da arquitetura como um desenho meramente técnico e enfatiza que os eventos e os movimentos que ocorrem na edificação são tão importantes para a definição do espaço arquitetônico quanto os desenhos tradicionais (plantas, fachadas, cortes, etc.) (TSCHUMI, 1994). Assim como no Manhattan Transcripts, no projeto do concurso do Parc de la Villette (1982), Bernard Tschumi faz uso das ferramentas da arquitetura para questionar a validade de suas próprias regras. Ao sobrepor três diferentes sistemas de racionalização arquitetônica: pontos, linhas e planos. A combinação da lógica de cada sistema forma contradições e acidentes que contesta e a racionalidade que pressupõem. A feira, pela sua própria essência efêmera e espontânea, contraria os métodos tradicionais do fazer arquitetônico. Além de lugar, a feira é evento e essas duas naturezas são indissociáveis. Dessa forma, é possível compreender o movimento e a experiência como fatores vitais na prática e na construção espacial da feira. Posto isto, o espaço da feira vai além de um conjunto de barracas, ele é composto pelos feirantes e pelos compradores, pelos que entram e pelos que apenas observam e pelas interações e trocas entre pessoas e lugar. No momento em que a vivência se míngua, a feira se encerra. introdução [17]

7DIREITO À CIDADE

08 _ DIREITO À CIDADE

“O direito à cidade é muito mais “O direito à cidade é muito mais que a que a liberdade individual de ter acesso recursos urbanos: é um direito de mudarliberdade individual de ter acesso aos aos a si próprio, mudando a cidade. É um direito coletivo e não individual. ”recursos urbanos: é um direito de mudar a si próprio, mudando a cidade. É um direito coletivo e não individual.”

Compreender o que é ter direito à cidade é, antes de tudo, entender que o meio urbano não é apenas um resultado material, um fim, mas sim o produto das relações humanas, em todos os aspectos possíveis, as quais garantem a diversida[18] introdução

de e o dinamismo comum a este meio. A partir disso torna-se imprescindível refletir sobre como 09 _ CONFLITOS DE os problemas urbanos não são simplesmente problemas técnicos, mas sim sociais, que conINTERESSE sequentemente refletem nos outros aspectos. Lefebvre (1973) afirma que a reflexão teórica sobre a realidade urbana passa a reconhecer novas necessidades de investigação que dão abertura e redefinem um novo modelo que ele denomina como “ciência da cidade”. Ele explica que “uma ciência analítica da cidade, necessária, está hoje ainda em esboço. Conceito e teorias, no começo de sua elaboração, só podem avançar com a realidade urbana em formação, com a práxis (prática social) da sociedade urbana. ” Fica evidente que, para o autor, essa ciência precisa ser repensada já que as ideias que a ordenam são extremamente simplistas e que por isso não conseguem englobar toda a complexidade que esta temática abrange. A cidade contemporânea possui um novo papel. Cabe agora aos pensadores e cientistas articularem as novas demandas ao cenário urbano. Quando se pensa nesse tema relacionado com as feiras, percebe-se que há uma disputa muito grande sobre o uso da cidade entre os feirantes, os usuários e o poder público. A apropriação de espaços públicos para esse comércio, gera diversos questionamentos e conflitos em esfe“A estrutura de uma feira, sua localização, seus produtos e seu ras privadas, legais e culturais, que demonstram público são permeados por conflitos entre o público e privado, individualidade e coletividade” como ainda não temos uma solução clara para inserir e valorizar as feiras, da maneira como elas se configuram tão livremente, na cidade. Por isso garantir o direito à cidade é garantir a dignidade das pessoas. A cidade, nessa perspectiva, é palco da vida cotidiana. Trabalhar é agora só mais uma das infinitas atividades possíveis de serem feitas nela. Sendo assim, torna-se um dever pensá-la e desenvolvê-la de forma democrática, pois a cidade é o resultado da ação e vida de todos.

8CONFLITOS DE INTERESSE

08 _ DIREITO À CIDADE

Historicamente, as cidades surgiram nos lugares onde havia produção de excedentes, ou seja, itens que iam além das necessidades de subsistência de uma população. Com a efetiva consolidação do urbano como meio de maior convivência humana, houve a tomada desse espaço pela indústria, trazendo a produção e o proletariado para um só espaço: o espaço do poder. A urbanização, portanto, sempre foi um fenômeno de classes, uma vez que o controle sobre o uso dessa sobre-produção tradicionalmente fica na mão de poucos. Dessa forma, a cidade expressa a divisão socioespacial do trabalho. Sua configuração, segundo Lefebvre (1973), ocorre em um contínuo que se estende desde a cidade política até o espaço urbano, finalizando com a sua dominação sobre o campo: ou seja, as cidades cada vez mais se tornam o centro da organização econômica mundial. Nessa dinâmica, percebe-se que o modo de produção capitalista está intimamente relacionado com “O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos a formação do urbano e, consequentemente com os recursos urbanos: é um direito de mudar a si próprio, mudando a cidade. É um direito coletivo e não individual. ” conflitos políticos, sociais e espaciais gerados a partir dos interesses das diferentes esferas de poder envolvidas nesse processo. No objetivo de gerar lucro a partir de todo e qualquer tipo de produção, percebe-se como as leis de competição necessariamente criam lados que ficam em constante oposição. Tais conflitos no caso dos espaços das feiras na cidade, podem ser exemplificados na apropriação de ruas e praças versus a impermanência

09 _ CONFLITOS DE INTERESSE “A estrutura de uma feira, sua localização, seus produtos e seu público são permeados por conflitos entre o público e privado, individualidade e coletividade”

nesses espaços, nos desacordos em relação ao direito à cidade (conforme já abordado anteriormente), nos interesses do público e privado, na “A estrutura de uma feira, sua localização, seus produtos e seu competição entre feirantes e lojistas regulares, público são permeados por conflitos entre o público e privado, individualidade e coletividade” em disputas entre coletividade e individualidade, no caso da efemeridade indo contra a espetacularização promovida pelos shoppings, na linha tênue entre legalidade e ilegalidade de algumas formas de comércio, na contraposição entre tradição e adaptação ao contemporâneo… Ou seja, a feira, sendo esse espaço tão heterogêneo, se mostra como um local em que interesses aparentemente paradoxais convivem lado a lado. introdução [19]

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