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Crónica de uma morte anunciada

Vivemos, ao que dizem alguns profetas hipermodernos, os últimos dias do mundo analógico e o triunfo do universo digital. Não obstante, a vida real, no que realmente importa, continua obstinadamente física. Os objectos significantes, aqueles que carregam história, memória e emoção, continuam irredutíveis na sua corporeidade.

A terra que os nossos pés pisam é matéria mineral, o horizonte de paisagem que os olhos alcançam é orgânico, os corpos que abraçamos, tocamos e amamos são de carne e osso, de nervos e tendões, de sangue e lágrimas. Os cachorros e os gatos domésticos, como os animais em estado selvagem, são entes viventes em estado puro. Como as árvores, as plantas e as flores, na exuberância de uma sensitiva existência vegetal. Ou como as pedras e os minerais, na sua vida silenciosa e subterrânea.

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As placas eléctricas térmicas, com fingidas chamas de fingido laranja, não alcançam, sequer de modo remoto, as irrequietas labaredas de uma lareira de pedra, de pinhas, de lenha, de caprichoso atear e de rebelde fumar.

A vida numérica é um simulacro de vida, uma existência zombie, uma saison num universo de fantasmas. O que explica a tenaz resistência dos objectos sólidos, da realidade orgânica, ao liquefeito universo digital.

Vejamos a espantosa ressurreição, no campo da música, depois de deixados quase fora de combate pelos desinteressantes CDs, dos LPs, da gloriosa tacticidade do negro vinil, do cuidadoso e amoroso manusear das capas, do ritual minucioso, quase religioso, do colocar o disco no prato, do suave e lento descer da agulha na estria inicial.

Ou, em registo paralelo, a feroz e apaixonada resistência dos livros. A convocatória implícita para um lento desfolhar, para um tocar de natureza quase erótica, para um rasurar a sedosa grafite as palavras, as frases, as linhas vivas, para uma estudada disposição na estante, objecto estético e objecto de culto, a um tempo.

Por todo o lado os objectos analógicos e a vida orgânica se infiltram no totalitário universo digital.

Com uma excepção: a do mundo dos jornais, precisamente. Excepção inesperada porquanto, a um olhar inicial, os jornais em papel, pela sua longa história, pelos enraizados hábitos pessoais, comunitários e culturais que transportam, teriam tudo para constituir o último reduto de resistência analógica a uma impiedosa totalização digital da vida quotidiana.

“O lento e irreversível declínio dos jornais em papel não se explica apenas, contudo, pela radical mudança no respirar da vida pessoal, familiar e comunitária”.

“A adição do vídeo, logo, da imagem e do som, transforma radicalmente a experiência da leitura, tornando-a muito mais rica, quando comparada com a materialmente possível na versão tradicional em papel”.

Afinal, o jornal escrito, lentamente desfolhado com o lento café da manhã, na solidão da casa ou no bulício silencioso dos cafés de bairro, representava, por definição, na sua leitura plácida, um instrumento de resistência às correrias do mundo, um elo, ao passar de mão em mão, de construção de laços de pertença comunitária.

Sucede que os tempos actuais são pouco dados a lentidões improdutivas e a micro-enraizamentos urbanos. Os cafés não mais são lugares de caloroso estar, para passarem a ser entrepostos de rápido e anónimo passar. Daí a desaparição, em todo o lado, das barras de madeira que, no Café Central das desaparecidas vilas e das pequenas cidades, mal suportavam o peso dos jornais diários aí presos, para comunhão diária de leitura dos clientes habituais.

O lento e irreversível declínio dos jornais em papel não se explica apenas, contudo, pela radical mudança no respirar da vida pessoal, familiar e comunitária. Na verdade, por uma vez, o digital e o numérico conferem ao jornal virtualidades, profundidades e densidades materialmente impossíveis de alcançar nas tradicionais edições em papel.

A adição do vídeo, logo, da imagem e do som, transforma radical- mente a experiência da leitura, tornando- a muito mais rica, quando comparada com a materialmente possível na versão tradicional em papel. Pensemos nas críticas musicais, de cinema ou de arte em geral presentes na edição numérica do New York Times ou do Guardian, por exemplo, com remissões directas para o Spotify, para o Tidal ou para o You Tube das músicas, dos álbuns, dos filmes, das exposições e dos espectáculos objecto de recensão. Ou pensemos, ainda, na remissão temática imediata para artigos ou notícias afins dos objecto da leitura actual.

Ler um jornal em versão digital não é apenas ler. É ver e ouvir. É ter, à distância de um clique, como adjuvante imediato da leitura, a biblioteca universal de Jorge Luis Borges, que o Google resgatou do mundo do fantástico para o admirável novo mundo digital.

Esta novo modo de ler é impossível de acompanhar pelos jornais tradicionais, prisioneiros do sortilégio, e dos inultrapassáveis limites, do papel. Daí que, a prazo não muito longo, estejam condenados, na lógica darwinista das coisas do mundo, a uma inevitável desaparição.

(*) Professor do Ensino Superior e advogado

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