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O despertar dos sentidos de uma folha de jornal

Ainda me lembro da primeira vez que li um jornal do início ao fim, há cerca de 20 anos, durante a frequência na licenciatura em Comunicação Social, para um trabalho sobre “O Século”. Aquelas páginas já meio amareladas, frágeis, que transpiravam história por todos os poros. As mesmas que li em ambiente perfeito, o silêncio magistral de uma biblioteca. Até então, confesso, era criteriosa (ou preguiçosa, talvez, agora que penso nisso), lia apenas as notícias com títulos mais apelativos. Há estudos que sublinham: um título é lido, em média, cinco vezes mais do que o corpo de um artigo. Escreve-se um mau título e é provável que ninguém leia o texto por muito bom que ele até possa ser. Dizia eu, então, o jornal “O Século” foi o meu primeiro, por inteiro, e foi “amor à primeira leitura”.

O “Campeão” completa 23 anos e cinco deles (também) são meus. Quando terminou a nossa ligação - muito além de um mero vínculo laboral - escrevi, em jeito de despedida, que cinco anos é muito tempo e que, desde o início dessa mão cheia de colaboração, tanta coisa mudou: deixei Angola para regressar ao meu país e dedicar-me ao que, verdadeiramente, me apaixona, o jor- nalismo; enveredei e enamorei-me pelos meandros da maternidade; deu-se uma pandemia que virou (ainda vira) o mundo do avesso; há cinco anos, ainda não tínhamos sido surpreendidos por uma guerra em pleno século XXI. Contas feitas, cerca de três desses cinco foram marcados por adversidades que, por si só, poderiam ter ditado o fim de um jornal que, tal como tantos órgãos de comunicação social, luta contra a limitação dos tempos, insurgindo-se se necessário for (dentro da ética que o caracteriza), não se acomodando, diferenciando-se.

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Aqui aprendi muito. Cresci. Apaixonei-me (ainda mais) pelo Jornalismo, o verdadeiro, aquele que é mais que apenas o trabalho que nos traz o salário ao fim do mês, o Jornalismo que nos sai das entranhas, que é Amor.

Quando fui desafiada a escrever este Artigo de Opinião sobre a minha experiência enquanto jornalista no “Campeão”, aliado ao tema que serve de mote ao 23.º aniversário, lembrei-me daquele dia em que li “O Século” e a resposta foi imediata, ainda que não a tenha verbalizado: “claro que faz sentido a continuidade de jornais impressos”.

Li, há uns anos, um estudo - que agora repesquei - da Universidade

NÁDIA MOURA*

“No dia em que as pessoas preferirem apreciar uma Mona Lisa ou uma estátua de David através de um ecrã de telefone ou computador, ao invés de o fazer no Museu do Louvre ou na Academia de Belas Artes, talvez aí o papel comece, também, a perder o protagonismo” de Valência, em Espanha, em que os investigadores concluíram que é mais eficaz ler em papel do que em formato digital uma vez que, quando se lê em papel, a compreensão do que é lido é maior, ao contrário do que acontece quando o mesmo conteúdo informativo é lido em ecrãs. A amostra deste estudo (171 mil pessoas, desde crianças a idosos) não inclui participantes nem fundamentações portuguesas, mas é também esse o encanto de um Artigo de Opinião, não obriga a dados científicos que o comprovem e os que apresentei são meramente contextualizadores. Com ou sem eles [os dados científicos], acredito veementemente que nada substitui a sensação de folhear um livro ou um jornal.

É certo que, com a era digital, a informação chega mais rápido e mais facilmente a todos, temos acesso às obras e notícias que quisermos à distância de um click e há quem diga até que esse será o fim do papel. Recuso-me a acreditar.

As pessoas não podem (ou não deviam) querer abdicar da sensação ímpar ou do cheiro peculiar de um jornal acabado de comprar. O sentimento de refúgio, do ‘dolce far niente’ (que, afinal, de ócio nada tem) que acompanha aquele momento único de ler um jornal na mão. O sentar, calmamente, em um qualquer recanto que nos acomode, a folhear aquela publicação, tantas vezes, de picotado nas margens ou cor mais esbatida por dificuldades na impressão… ou aquela folha que teima em não querer dar lugar à próxima, meio colada, a querer dizer, diz-me a imaginação fértil, “relê-me a mim, relê-me a mim”… onde é que há, no digital, todo esse enlevo de “imperfeição”? Não subestimemos, no entanto, esta nova era. Acompanhemo-la sempre de perto, com a devida distância de segurança: próximo o suficiente para não a perder de vista, longe quanto baste para que não nos camufle a essência. No dia em que as pessoas preferirem apreciar uma Mona Lisa ou uma estátua de David através de um ecrã de telefone ou computador, ao invés de o fazer no Museu do Louvre ou na Academia de Belas Artes, talvez aí o papel comece, também, a perder o protagonismo. Até lá, Parabéns ao “Campeão” que há 23 anos se destaca em Coimbra, mas antes disso com mais de sete décadas de publicações em Aveiro. Diariamente com a sua edição digital, adaptando-se às exigências dos tempos (perto q.b., relembro), e à quinta-feira, semanalmente, no papel: a essência, a tal altura em que os sentidos se apuram. É dia de mais uma edição impressa.

(*) Responsável pela Comunicação do Núcleo Regional do Centro da LPCC

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