Roteiro de Paulo Afonso

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ROTEIRO DE

PAULO AFONSO LIVRARIA

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BRASIL PITORESCO, TRADICIONAL E ARTíSTICO

I EDGARD DE CERQUEIRA FALCÃ.O

ROTEIRO DE

PAULO AFONSO

LIVRARIA

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RUA 15 DE NOVEMBRO - 135

SÃO PAULO

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Esta obra é dedicada, como preito de reconhecimento a F. Lanzara

e a todos os seus colaboradores

para o êxito gráfico das "Relíquias Adolfo

Walker,

Rosenberger

José Vercelll,

e Eustachio

e estima,

que contribuiram

da Bahia", destacada mente Felix Lanzara

José Alves.

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Eduardo


Um curioso livrinho, adotado no curso primário das escolas brasileiras, na época risonha dos meus oito anos, cavou fundo em meu espírito o ardente desejo de, à maneira dos heróis do mesmo, cruzar o Brasil de norte a sul, tomando contato direto com as magníficênctas prodigamente espalhadas pela natureza em seu solo. "Através do Brasil" assim se chamava e tinha por autores dois eminentes nacionalistas - Olavo Bilac e Manuel Bomfim. Carlos e Alfredo, duas figuras que se não apagaram mais de minha mente, pouco depois reunidos a Juvêncio, deixam Pernambuco, numa arrojada aventura infantil, e, palmilhando os agrestes sertões do nordeste brasileiro, em meio a mil dificuldades, chegam à capital da Bahia, donde prosseguem, por via marítima, para o sul, alcançando finalmente as planícies da terra gaúcha. Foi nas páginas dêsse opúsculo, de que me recordo hoje com ternura, que li, pela vez primeira, algo referente a Paulo Afonso. Desde então, tomou forma em meu cérebro a idéia de apreciar "de visu" o grandioso espetáculo. O conhecimento posterior de outras narrativas aguçou ainda mais êsse desejo, aguardando eu apenas a oportunidade feliz, que se me deparou há pouco. NOSSA EXCURSÃO Organizada metodicamente pelo "Touring Club do Brasil - Secção da Bahia", partiu da Cidade do Salvador, no dia 29 de Abril de 1939, com destino à famosa catarata, via Propriá-Piranhas, uma caravana composta de vinte membros, entre os quais sete elementos do sexo feminino, chefiada pelo Snr. Osvaldo Valente, incansável diretor da secretaria daquela instituição. De Bahia a Propriá, a viagem fez-se de trem, na nova composição azul da Leste Brasileiro. Tal percurso era o espantalho de todos os excursionistas. Vinte e quatro horas ininterruptas, rodando sôbre uma via-férrea que, não há muito tempo, primava pela desorganização, ocasionando-se frequentes e mortíferos desastres, em meio a um desconfôrto proclamado por gregos e troianos, constituia expectativa pouco lisongeira. Confesso lealmente que modifiquei por completo a má impressão que levava. Muito embora cansativo, decorreu êsse trajeto num ambiente agradável, estabelecendo-se de pronto camaradagem franca, como sóe acontecer sempre entre brasileiros. Divertida, não obstante incômoda, foi a dormida, nessa noite, do grupo masculino. 'Por não haver leitos para todo o pessoal, ficou estabelecido que somente as senhoras e senhoritas repousariam no vagão-dormitório. Os homens que se atravessassem nos bancos comuns e caíssem nos braços de Morfeu, de qualquer modo. E assim sucedeu. Volta e meia, com os solavancos naturais das paradas e partidas, despertava-se em sobressalto, quando se não era solicitado a encolher as pernas para ceder lugar a outros passageiros embarcados no caminho. Excusado se torna acrescentar que pilhérias e anedotas cruzavam no ar, a cada passo. O romper d'alva nos encontrou já em território sergipano. Cêrca de onze horas da

III


manhã do domingo 30, alcançamos Aracajú. Durante ÇI curta parada nesta cidade, todo o grupo saiu _adar uma volta, de automóvel. A tarde, atingimos a borda direita do São Francisco, chegando a Propriá. Começou aí o verdadeiro encanto do passeio. Alojados num hotel regularmente confortável, o "Florelisa", de duas irmãs com o sotaque cantado dos nordestinos, passamos agradabilíssima noite, recuperando o sono que não pudéramos conciliar satisfatoriamente na véspera. Pela manhã de segunda-feira, saímos, aos grupos esparsos, a conhecer Propriá. Despertou-nos logo curiosidade o original sistema de calçamento, feito com lages das margens do rio, dispostas de maneira interessante e inteligente, a ponto de formar pavimentação regular e inalterável, permitindo o trânsito de automóveis em condições idênticas às das grandes artérias das metrópoles. !:sse sistema de calçamento encontramos também em outras povoações ribeirinhas, parecendo ser o ideal para o meio. Visitamos um colégio, mantido pela abnegação de algumas religiosas ursulinas, do qual trouxemos a mais agradável das impressões. Estivemos ainda em outros pontos, apreciando magníficas paisagens. Após o almôço, dirigimo-nos para o cais, afim de tomar o "Comendador Peixoto", vaporzinho fluvial que faz regularmente, durante a cheia, a viagem Penedo-Piranhas e vice-versa, uma vez por semana. Ancorado aquele a uns 150 metros da margem, fomos conduzidos para bordo por meio de originais canoas à vela, cuja navegação, subindo ou descendo a corrente, constituiu para nossos olhos inédito espetáculo, durante todo o tempo em que sulcamos águas do São Francisco. Dispondo de dois traquetes simétricos, um avante outro à ré, tomam as embarcações em aprêço postura diversa, conforme singram a favor ou contra o vento. No primeiro caso, expandem as velas em sentido oposto, apresentando, vistas de frente ou por detrás, aspecto alado de uma "borboleta", nome pelo qual são vulgarmente designadas. Na segunda hipótese, os propulsores aéreos são orientados na mesma direção, oferecendo igualmente encantador feitio. Dois tipos principais dêsses veleiros, foi-nos dado observar: a canoa sem tolda, de velas triangulares, -destinada aos curtos trajetos, e- a canoa também conhecida por "paquete", com tolda de palha à frente e velas quadrangulares, reservadas aos longos percursos e ao transporte de cargas mais importantes. Navegando rio acima, com paradas mais ou menos longas, para permuta de malas postais, atingimos já tarde da noite o logarejo de Ilha do Ouro, onde ancoramos. Com o dealbar do dia, prosseguimos viagem rumo a Piranhas, onde aportamos, aproximadamente, às quatorze horas. Descrever todo o encanto dessa travessia torna-se para mim inexequível: fale em meu lugar minha objetiva fotográfica, fixando aspectos e pormenores que me extasiaram infinitamente a alma. De Piranhas a Pedra, numa composição especial da "Great Western", vencemos mais um trecho, gastando cêrca de três horas. Galgando uma serra granítica bastante íngreme, descortinamos lindos panoramas do vale sanfranciscano, entrando a seguir numa zona hostil e esquecida de Deus. Só o xique-xique aí medra. Está dito tudo. A chegada a Pedra trouxe novo alento aos excursionistas. Avizinhavamo-nos do majestoso cenário, que nos devia deslumbrar na manhã seguinte. Instalada a caravana nos dois hoteis da localidade, magníficos sob vários pontos de vista, particularmente no que tange às refeições, retemperou-se a mesma das fadigas da jornada vencida, para apreciar devidamente a esplendorosa

IV


CACHOEIRA

DE PAULO AFONSO

Quando ainda não era nado o sol e um manto espêsso de neblina envolvia a amplidão celeste, deixamos Pedra, distribuidos em três automóveis e uma "sopa". (*) À medida que avançávamos em direção ao estupendo rolar espumejante das águas do São Francisco, comprimidas entre gargantas graníticas de colossal altura, a natureza ia-se enfeitando das galas que a luz solar lhe proporciona nas primeiras horas do dia. E assim, favorecidos pela expansão feliz do tempo, após hora e meia de viagem, chegamos ao Limpo do Imperador, donde nos foi dado contemplar a mais subi ime cena que nossos olhos jamais avistaram: bramindo ester torosamente, lençóis d'água gigantescos despenham-se de incrível eminência, des•. . dobrando-se em alvíssima espuma, a projetar no espaço gotículas que formavam densas nuvens, nas quais se vinha decompor a luz solar, matizando-as com as (sete côres do espectro visível. De novo reunida na angustura profundamente escavada na' rocha, num desnível de cêrca de 80 metros, espumejando ainda e redemoinhando, a massa líquida vai de encontro a uma muralha granítica mais ou menos vertical, outro tanto elevada, e inflete-se em ângulo reto, seguindo após, num leito pedregoso e estreito, a perder-se de vista ao longe. Embevecidos ficamos a contemplar a maravilha que Deus nos doou, por espaço de uma hora. Começaram, então, a funcionar as objetivas de tôda a caravana e não houve perspectiva que escapasse à sanha dos amadores fotográficos. Dirigimo-nos, em seguida, à usina hidro-elétrica que a vontade férrea de Delmiro Gouveia fez instalar, há pouco mais de dois decênios, afim de aproveitar parte insignificante do imenso potencial de energia que representam as formidáveis quedas d'água. Num "trolley", à primeira vista inseguro, atravessamos certa primitiva ponte, que nos conduziu a um plano, donde nos foi dado observar novo e surpreendente espetáculo: as catadupas da margem alagoana, cuja belezaindescritível deixo à minha objetiva o cuidado de fixar em pálido reflexo. Descendo algumas centenas de degraus, inclusive determinada escada em espiral, plantada diretamente sôbre o abismo, fomos ter às turbinas que transformam a energia hidráulica em elétrica, destinada a movimentar as máquinas da fábrica de tecidos instalada em Pedra e fornecer luz. a esta cidade. Primitivíssimo caminho aéreo promove o acesso dêste ponto à banda fronteiriça. Certo acidente, ocorrido no instante em que fazia o percurso de volta o segundo excursionista a se utilizar dêsse meio de transporte, trouxe momentos de aflitiva emoção a todos nós: foi quando se partiu o cabo de tração, ficando a frágil viatura a balançar-se desarvorada sôbre o precipício. Felizmente, o sangue-frio e a coragem do condutor permitiram o retôrno ao ponto de partida, sem maiores incidentes, valendo-se o mesmo do próprio cabo onde deslisam as roldanas. Dêsse lugar, pode-se bem avaliar o drama angustioso das águas a se chocarem contra a muralha atrás citada e a se dobrarem em ângulo. Ruído ensurdecedor não consente que outros sons sejam ouvidos a maior distância. Após a visita retro-enumerada, buscamos a famosa "gruta dos morcegos", caverna granítica de proporções descomunais, talvez a maior no gênero existente no mundo, segundo opinião abalizada do Pe. Camilo Torrend. Antigamente, em épocas imemoriais, quando o volume das águas do rio devia ser bem maior, estas (.) -

Denominação

aplicada,

no nordeste,

aos 'ônibus.

v


corroeram as rochas que Ihes opuseram menor resistência, produzindo a a aludida anfractuosidade, em direção contrária à que segue o curso da torrente depois de formado o ângulo reto já referido. Para atingir a furna em questão, tivemos que descer a escarpa rochosa, nem sempre a oferecer passagem franca; em determinados trechos, trilhamos veredas estreitíssimas, à borda do abismo. Finalmente, alcançamos nosso objetivo. Deslumbrante e portentosa visão se nos antolhou então, recordando o que teria sido, em eras pretéritas, a luta homérica entre os elementos· líquido e sólido, neste local. Aberta na rocha viva, qual vivenda de titans, ostenta dimensões que podem muito bem ser apreciadas na fotografia adiante inserida, comparando-se à estatura de um homem que a minha objetiva apanhou. Infinita quantidade de madeira rolada junca ainda hoje o solo da gruta. De regresso desta, já com o sol a pino, fomos dos últimos elementos da caravana a tornar a Pedra. Aí começou a invadir-nos sentimento novo: a saudade do espetáculo que havia pouco contemplávamos enlevados. logo depois do almôço, voltamos a Piranhas. Não houve tempo para mais detidamente apreciarmos a obra social moderna que o espírito precursor de Delmiro Gouveia criou naquele solo árido e que um braço assassino impediu de levar a cabo tal, como planejara. Em Piranhas, reembarcamos no "Comendador Peixoto", que zarpou sem demora, indo pernoitar defronte de Pão de Açúcar, para, no dia seguinte, prosseguir em sua rota até Penedo. E' azado o momento de nos referirmos, mais pormenorizadamente, à vida de bordo. Tivemos, desde o embarque em Propriá, fidalgo acolhimento por parte do comandante e demais membros da tripulação. Tudo foi disposto para que nada nos faltasse. As acomodações principais, inclusive as do próprio capitão, nos foram cedidas. Tomamos verdadeiramente posse do vaporzinho e, ao deixá-Io em Penedo, com tristeza dêle nos apartamos. A noite, o convés enchia-se de redes, para os que preferiam esta magnífica espécie de leito. Pela manhã, antes do sol nascer, já todos se punham de pé, para, em primeiro lugar, gozar as delíclas do chuveiro de bordo. No pavimento inferior do navio, um mundo estranho se acotovelava indistintamente: animais de tôda a espécie (tatús, cotias, macacos, araras, papagaios, etc.I e gente de tôda a categoria e procedência se misturavam, dando ao conjunto bizarro colorido que bem poucos conheciam. Entramos na fase de aquisição de recordações. A nota mais pitoresca, então, foi a compra de araras. Filhotes implumes, arrancados prematuramente dos ninhos, ainda a necessitar de calor materno e alimento pelo bico, eram vendidos a bom preço aos incautos excursionistas. logo no dia imediato, entretanto, começaram a morrer, e antes do término da viagem não existia mais um sequer. Em Penedo, fomos gentilmente acolhidos pela sociedade local, que nos ofereceu excelente recepção no "Penedo Tennis Club", esplêndida organização esportivo-recreativa que honraria qualquer grande capital. Chegados ao anoitecer de quinta-feira, 4 de Maio, àquela cidade alagoana, visitamos, na manhã subsequente, seus estabelecimentos fabrís e demais instituições, trazendo ótima impressão de tudo quanto vimos. A tarde, regressamos a Propriá, onde passamos todo o dia imediato e tivemos ensejo de apreciar a feira semanal. Visitamos ainda a magnífica fazenda de criação e plantação do Dr. Hercílio Brito, situada à margem do rio, alguns quilômetros a montante da cidade, observando o sistema de irrigação arti-

VI


ficial para plantio de arroz e também a usina instalada para beneficiamento do produto. A noite, a caravana ofereceu um jantar de despedida ao prefeito local, Dr. Carlos de Meio, e ao Snr. José Gonçalves, em retribuição às atenções que os mesmos nos haviam dispensado. No domingo, pelas 6 horas da manhã, embarcamos de regresso à Bahia, pernoitando ainda em Barracão e chegando ao ponto de partida, à tardinha do dia 8 de Maio. ~ste singelo relato que pessoais da excursão, traçadas A grandeza do que vimos é mente em nossa retentiva, de

Bahia -

aí fica exprime apenas minhas impressões de um fôlego, sem preocupações literárias. inenarrável; grava-se, contudo, indelevelmistura com o travo agri-doce da saudade.

Maio de 1939.

E. C. F. /

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PAULO

AFONSO

Queda da Princeza

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(lado da Bahia)


PAULO

AFONSO

Queda da Princeza,

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vista de frente


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PAULO

Escarpas

granĂ­ticas

AFONSO

e a queda

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da Princeza

ao fundo


PAULO

AFONSO

Precipitação

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final


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PAULO

O canhão do rio -

AFONSO

Inflexão

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das águas em ângulo

reto


PAULO

AFONSO

O canh찾o do rio visto ap처s a inflex찾o

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•

PAULO

Gruta

AFONSO

dos Morcegos

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35


Igreja

de Sรฃo Gonรงalo Garcia

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(Penedo)


Orat贸ria

dos condenados

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(Penedo)


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IMPRESSO

POR

"GRAPHICARS"

F. LANZARA

-

S.

PAULO·RIO


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