A vitória da barcaça Escrito por Evaldo Cabral de Mello Qui, 01 de Novembro de 2001 00:01 Na segunda metade do século 19, a barcaça tornou-se onipresente, de Alagoas ao Rio Grande do Norte. Dadas as dificuldades de navegação do rio Igaraçu, Itapissuma, sobre o canal da Santa Cruz, que separa a ilha de Itamaracá do continente, “porto de mar excelentíssimo para navios e sumacas”, já era descrito num relato de fins do século 17, acerca do governo de Câmara Coutinho, como “o verdadeiro porto do termo de Igaraçu”. Segundo Vital de Oliveira, ali acorria “quantidade imensa de barcaças e canoas”, que freqüentavam os riachos e braços de mar que deságuam no canal, o Tromba-las-águas, o Araripe e o Tejucopapo. Na ilha de Itamaracá, as barcaças navegavam o Jaguaribe em busca do seu sal; e a norte da barra de Catuama, o Itapessoca e o Abiaí. No Paraíba, fundeavam no varadouro da cidade e subiam os principais afluentes. O Cunhaú era freqüentado em extensão de cinco léguas; o Potengi, na de quatro. A ausência ou raridade de barcaças em certos portos da costa decorria não de condições físicas, mas da falta de carga decorrente da inexistência de boas estradas ou da pouca importância produtiva da área adjacente, como nas barras de Pau Amarelo, São José, do Rio Doce ou do rio Tapado, ao Norte de Olinda. Em lugares tais, só ancoravam à procura de escala tranqüila para o pernoite ou para fugir de alguma tempestade. Seria impossível imaginar o tráfego de barcaças sem o rosário de povoações litorâneas que lhe serviam de escala. Ao Sul do Recife, o Pirapama, que, como o Jaboatão, desemboca em Barra de Jangada, era trafegado por canoas e barcaças até o engenho Velho, mais de duas léguas da foz. No Jaboatão, porém, o assoreamento só permitia o acesso de canoas. Pela Barra de Jangada transitava boa parte da carga procedente da freguesia do Cabo, de modo a evitar as atribulações da estrada que a ligava ao Recife. Dos quatro rios que deságuam em Suape, apenas o Ipojuca era regularmente utilizado por barcaças, que alcançavam o engenho Trapiche sem necessidade da maré; os outros bifurcavam-se em riachos que, embora utilíssimos aos engenhos, eram inaptos para a navegação. No rio Formoso, barcaças e canoas chegavam até a cidade homônima, cerca de légua e meia acima da foz, que oferecia as facilidades de duas grandes camboas. No Una, evitando as pedras do seu leito, as barcaças navegavam em extensão de duas léguas. Daí por diante, as dificuldades provinham da topografia, pois a um quarto de léguas, o relevo começava a dar lugar a pequenas quedas d’água. No litoral alagoano, as barcaças subiam na preamar o rio Manguaba ou das Pedras até à vila de Porto Calvo, seis léguas da foz. O Camaragibe lançava um braço ao norte, outro ao sul, o Meirim, este navegável até o passo de Camaragibe. Ao Sul da Jaraguá, a “barra velha” dava acesso às barcaças que carregavam, na margem das lagoas, açúcar, algodão e madeiras. No São Miguel, barcaças e sumaquinhas alcançavam a vila ou iam mais além. No Coruripe, preferiam ancorar na enseada ao sul do pontal, para onde também se trazia a carga. Ancoradouros marítimos, como o Porto Francês, outrora freqüentados por sumacas, foram abandonados em função das facilidades de acesso da barcaça. O reino da barcaça circuncreveu-se à costa do barlavento. Ao Norte do cabo de São Roque, ela ficou reduzida à função de assegurar o transporte de mercadorias no porto de Fortaleza ou entre o Aracati e a barra de Jaguaripe. No Apodi, navegava por espaço de léguas, mas não era utilizada no Açu. Devido às grandes distâncias, não lhe foi possível sustentar a concorrência da grande cabotagem, especialmente dos vapores das companhias maranhense e pernambucana. Ao contrário da organização espacial predominante na mata açucareira, a economia de ribeiras caracterizava-se pela concentração das atividades de transporte naqueles pontos do litoral cearense e riograndense (o Acaraú, Fortaleza, o Aracati) que drenavam o interior pastoril e algodoeiro, estimulando embarcações de maior porte. Na costa do Sertão, a barcaça não teve, por conseguinte, a fortuna da sumaca. Quando ela se generalizou na Mata, o comércio cearense já escapara em boa parte à dominação do entreposto recifense, o que não ocorrera, entretanto, com os centro salineiros de Mossoró e Macau, cujas comunicações marítimas com o Recife ela assenhoreou. Nos anos cinqüenta, as barcaças de sal constituíam categoria à parte, tendo direito a espaço próprio no porto do Recife. Quanto ao limite sul da barcaça, ele coincide grosso modo com o São Francisco, passando a dominar, abaixo dele, as embarcações de pequena cabotagem típica do recôncavo baiano; e a montante, da navegação do baixo São Francisco. A geografia da barcaça correspondeu, assim, à área do entreposto recifense em meados do século 19, de Mossoró a Penedo. Sabe-se que o sistema hidrográfico da “mata-seca” ao Norte do Recife e seus prolongamentos paraibano e riograndense não têm a diversificação da “mata-úmida” ao Sul e da sua extensão alagoana. Nem dispunham da oferta de madeira abundante. Foi, portanto, nesta última sub-área, especialmente em Alagoas, que se concentraram os estaleiros de barcaças. A disponibilidade de madeira apropriada à