Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 141/13 (2013:1) Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia Dr. H. Hülskath e Comissão especializada Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968) - Academia Brasil-Europa e institutos integrados
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501 Doc. N°2969
Da participação alemã na superação da barreira comercial no São Francisco: a ferrovia de Piranhas a Jatobá e implicações culturais - o papel de imagens e a valorização de inscrições rupestres do Nordeste Do Rio Grande do Sul a Alagoas: o diário de engenheiro alemão no São Francisco em narração de Hermann Ferschke (1835-1903) II Alemanha-Brasil Diálogos de Berlin-Charlottenburg pelos 30 anos do simpósio euro-brasileiro de renovação dos estudos da emigração alemã ás Américas no ano da Cumbre Unión Europea-CELAC 2013
Em ano no qual se considera com especial atenção as relações entre a Alemanha e o Brasil (http://revista.brasil-europa.eu/141/Brasil-Alemanha-2013.html), surge com oportuno reconsiderar-se sob perspectivas atuais algumas fontes que se encontram há longo tempo esquecidas e que são mesmo desconhecidas nos estudos brasileiros. A necessidade desse reexame de textos foi salientada durante simpósio internacional realizado há 30 anos, quando comemorou-se o tricentenário da emigração alemã à América. Em anos marcados por anelos e iniciativas de integração européia, discutiu-se a necessidade de renovação dos estudos transatlânticos e interamericanos segundo as novas condições e perspectivas. Para isso, impõe-se a revisão de interpretações de fontes históricas, marcadas em grande parte por perspectivas nacionalistas de ambos os lados, por concepções culturais hoje questionáveis ou pelo reducionismo representado pela visão dirigida a contextos bi-laterais de processos mais amplos. Entre elas, fontes do século XIX exigem privilegiada consideração, uma vez que dizem respeito a fases iniciais da história da imigração e colonização alemã no Brasil e do desenvolvimento do empreendendorismo comercial, industrial e da vida cultural de alemães em centros brasileiros, adquirindo assim significado especial para a análise de fundamentos de processos culturais. Como então considerado e desenvolvido nos trabalhos que se seguiram, essa reconsideração de fontes e suas interpretações sob novos enfoques e pressupostos teóricos não deve resumir-se a escritos, mas também englobar, entre outros, artes visuais e música. O visual merece mesmo na releitura de textos redobrada atenção, uma vez que se trata primordialmente de questões de imagens nos anelos atualizadores dos estudos de processos atlântico-interamericanos sob as condições mais recentes de aproximação de países, interações culturais e esforços integrativos de nações. Consequentemente, escolheu-se o complexo "música e visões" para tema do congresso internacional de abertura do triênio de estudos científico-culturais pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil. (Brasil-Europa 500 Jahre: Musik und Visionen/Brasil-Europa 500 anos: Música e Visões, Colonia: A.B.E./I.S.M.P.S./I.B.E.M. 2000 ) Significado do visual em texto sôbre o Nordeste do Brasil de Hermann Ferschke
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Uma dessas fontes então consideradas e que documenta o significado de imagens em publicações de divulgação popular de conhecimentos do Brasil na Alemanha do século XIX é o artigo de Hermann Freschke (1835-1903) dedicado a um empreendimento no Nordeste do Brasil com base em diário de um oficial emigrado (Hermann Ferschke, "Im Nordosten Brasiliens. Aus dem Tagebuche eines ausgewanderten Offiziers", Vom Fels zum Meer, Spemann's Illustrirte Zeitschrift für das Deutsche Haus I, Oktober 1888 bis März 1889, Stuttgart: Verlag v. W. Spemann 478-336). (http://revista.brasileuropa.eu/141/Alemaes-e-critica-da-sociedade.html) Correspondendo ao escopo da revista, o artigo de Freschke inclui várias ilustrações e o próprio texto revela um cunho ilustrativo e transmissor de imagens. As ilustrações visuais do texto são em parte baseadas em registros fotográficos realizados por um fotógrafo brasileiro mencionado apenas pelo seu sobrenome: Mende. Para além de retoques e mesmo de casos onde não bem se distingue até que ponto as fotografias serviram apenas de base para trabalhos gráficos, o artigo inclui desenhos que antes representam visualmente descrições do texto. No primeiro caso, trata-se sobretudo de documentação visual das cachoeiras do São Francisco, para as quais necessariamente o ilustrador teve que basear-se em fotografias para fazer jus à realidade geográfica. No segundo caso, os desenhos ilustram antes situações da vida popular, procura transmitir atmosferas e ambientes, assim como momentos vivenciados pelo oficial emigrado e pelo fotógrafo brasileiro na descoberta de paisagens e relitos de remotas culturas indígenas. Neste sentido, o trabalho do desenhista lembra ao leitor atual procedimentos que conhece de histórias de quadrinhos, o que confere à fonte particular interesse sob a perspectiva dos estudos da cultura popular. Diferentemente das ilustrações fotográficas, esses desenhos são assinados de forma abreviada e dificilmente legível (H.G.F.DANKJ?). Decifrar essa assinatura poderia oferecer indícios para a identificação do autor do diário, não explicitamente nomeado, uma vez que este, no seu trabalho profissional, atuava como desenhista, ainda que técnico. É possível, assim, que o próprio emigrado alemão tenha fixado no seu diário desenhos do que vivenciou. Uma leitura atenta deste artigo revela assim um significado que vai muito além daquele que aparenta ter numa primeira aproximação.
Significado para o estudo local de Piranhas e regional do Baixo São Francisco O seu significado mais evidente deriva dos dados que transmite sobre a região do Baixo São Francisco, há muito reconhecida como de particular interesse para os estudos culturais, oferecendo assim importante subsídios para o prosseguimento de pesquisas que remontam ao início dos anos 70 (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM10Index.htm). Referindo-se em particular à construção da ferrovia Piranhas-Jatobá, o artigo surge como fonte relevante para o estudo mais amplo das vias de comunicação na históría de processos culturais que levou ao programa de pesquisas no Baixo São Francisco (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM0601.htm). O texto publicado na Alemanha diz respeito mais especificamente a Piranhas. Esse município de Alagoas, cortado pelo São Francisco, limita-se ao sul com o Estado de Sergipe, ao norte com o município de Inhapi, a leste com o de São José da Tapera e Pão de Açúcar, a oeste com Olho d'Água do Casado e a nordeste com Senador Rui Palmeira.
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Piranhas tem a sua imagem hoje marcada pela história do cangaço, em particular com a morte de Lampião, e a sua presença nos estudos sócio-culturais baseia-se sobretudo nesse episódio de sua história. Como lembrado em documentos do museu local, foi nela que foram expostas a cabeça decapitada do Lampião - assim como a de outros do grupo. O registro do engenheiro alemão quando da sua estadia de trabalho em Piranhas em 1880 contribui para o aprofundamento dos conhecimentos e a ampliação do quadro histórico, oferecendo também possibidades para estudos mais diferenciados de contextos.
Desenhos no contexto do marco histórico da passagem de Pedro II° em 1860 O maior acontecimento que a história registra para Piranhas do século XIX é a passagem do imperador Pedro II° com o objetivo de visita às Cachoeiras de Paulo Afonso, em 1860 (http://www.revista.akademiebrasil-europa.org/CM10-04.htm) Em Piranhas, Pedro II descansou na casa do subdelegado local Joaquim da Costa Campos. Após o pernoite me Piranhas, seguiu para a Fazenda dos Olhos d'Água a cavalo, acompanhado por mais de 140 cavaleiros. (Abelardo Duiarte, Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina nas Alagoas, Edição comemorativa do Sesquicentenário do Nascimento de Dom Pedro II, Maceió: Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas 1975, 46-52) Esta comitiva de cavaleiros acompanhado Pedro II° a Paulo Affonso entrou na história como a maior e mais importante cavalgada já realizada na região. Atendendo a apelo do Presidente da Província, a ela contribuiram fazendeiros e proprietários de maiores posses. Mata Grande deu a maior e mais expressiva parcela de cavaleiros, enviando um piquete ou esquadrão de mais de cem Guardas Nacionais, usando estes jaquetas brancas ou escuras e não portando armas. Este último pormenor teria o sentido de oferecer uma melhor imagem dos matagrandenses, que já então teriam o renome de ávidos de provas de valentia e de violência. O papel do desenho na fixação da natureza e de momentos da viagem já se evidencia nessa viagem imperial. Pedro II tomou durante o trajeto esboços a lapis, desenhos conservados entre manuscritos existentes no Museu Imperial, tendo sido alguns deles reproduzidos. (Alcindo Sodré,´"Visita de Dom Pedro II à`Cachoeira de Paulo Afonso", Anuário do Museu Imperial, Petrópólis 1949, cit. Abelardo Duarte). No seu diário, o Imperador oferece imagens desse trecho do São Francisco em direção a Piranhas que coincidem com aquelas do artigo publicado na Alemanha, precedendo-as: também Pedro II° fala de condições climáticas quase que insuportáveis, falta de arejamento e calor abrasador. A sua impressão de Piranhas foi desoladora: "O aspecto do lugar é tristíssimo e o calor horrível" (Abelardo Duarte, op.cit. 48).
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Projetos viários e presença alemã em Piranhas: J. P. A. Schrambach Pedro II° encontrou-se em Piranhas com Pedro José de Azevedo "Scharamback", que pertencera ao batalhão de estrangeiros 28, e que trabalhava como engenheiro civil em Alagoas, passando a ser conhecido sob essa qualificação. Tinha sido encarregado pelo Presidente da Província M. Pinto de Souza Dantas (1831-1894) para preparar uma estrada que ligasse Piranhas a Paulo Afonso. Essa tarefa, como anota Abelardo Duarte, não fora e nem podia ter sido realizada. À época do encontro com Pedro II°, essa engenheiro já estava com 72 anos, padecia de moléstias e apresentava, na sua aparência, sinais de decadência física e desleixo, indicando talvez uma excessiva adaptação ao meio, onde era conhecido popularmente como "Capitão Charambuque". De origem alemã representaria, assim, um exemplo de europeu que, só, em ambiente de penúria e condições climáticas adversas, teria perdido fibra e saúde. O sobrenome Scharamback levanta dúvidas. Trata-se certamente de Schrambach, proveniente de Frankfurt a.M., tenente do Batalhão de Caçadores 28, estacionado em Pernambuco. Pelo relato de viagem de Julius Mansfeldt, de 1826, conhece-se os nomes dos componentes desse batalhão multinacional. (Reise nach Brasilien im Jahre 1826, herausgegeben von Julius Mansfeldt, herzoglich Braunschweig'schgem Oberlieutenant a. D., Magdeburg, bei C. Bänsch jun., 1828). O seu comandante era um escocês de sobrenome Mac Gregor, tinha como major e capitão dois italianos, respectivamente Benedicto Thiola e Garony. Entre os tenentes, além Schrambach, citam-se o Adjudant St. Brisson e Rummilac, franceses; Orenslicht I, sueco e Fürstenrecht, de Nassau. Entre os Alferes, os prussianos Müller, Koop, Willing e Puff, von Kiesewetter, de Mecklenburg o saxão Dehnert, Kiez, Zacharias de Sondershaus, além do holandês Plat von Stein e o sueco Orenslicht II. O médico do batalhão era um prussiano de nome Meyer. Como se constata dessa lista, Schrambach não pertencia ao corpo de engenheiros, onde o seu nome não é registrado. Êle tinha sido Corporal nos militares de Frankfurt a.M., posteriormente escrivão de Polícia. Fugindo, veio para o Rio de Janeiro, tendo sendo logo contratado como Tenente. Êle tinha mulher e crianças em Frankfurt, casou-se porem novamente em Pernambuco (op.cit. 58).
Nova presença de militar alemão como engenheiro em Piranhas: a ferrovia
O texto de Hermann Ferschke dirige a atenção ao principal empreendimento do Baixo São Francisco do século XIX: o da construção da estrada de ferro que tinha a sua principal estação em Piranhas. Já dispondo de vasta experiência no sul do Brasil e tendo percorrido outros países sul-americanos, o militar alemão foi contratado para atuar ali como engenheiro, em particular na correção do traçado da projetada ferrovia. Segundo as suas palavras, o estabelecimento da via férrea era resultado do empenho particular de Pedro II°. Tendo visitado a região há poucos anos antes, compenetrou-se da necessidade de uma estrada de ferro que possibilitasse transporte de mercadorias do interior, superando o obstáculo representado pelas quedas do São Francisco. O rio, no seu curso superior navegável, possuia no seu curso médio numerosas cachoeiras, sendo a mais famosa a de Paulo Afonso. Retornando da Europa, onde tomara conhecimento do grande progresso representado pelas ferrovias, o Imperador passara a dedicar-se com especial intensidade ao fomento de empreendimentos que possibilitassem o desenvolvimento comercial e econômico em geral, assim como melhorias da qualidade de vida. Embora já houvesse há nos uma ferrovia de Pernambuco a Rezisto no São Francisco, assim como dessa cidade à Bahia, o Imperador ordenou a construção de uma terceira ferrovia, que tinha como único objetivo contornar as cachoeiras do São Francisco e unir o seu curso superior ao inferior.
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Essa medida iria favorecer sobretudo Maceió, cujo desenvolvimento tinha sido abalado desde a construção das ferrovias de Pernambuco e Bahia.
Quadros de Piranhas e da natureza da região O engenheiro, que ali chegou em 1880, descreve o local que estava predestinado a ser a principal estação da ferrovia e o desenvolvimento que ali se desencadeara com os trabalhos. Esse projeto trouxera nova vida à localidade que, correspondendo à descrição de Pedro II°, era também vista negativamente pelo engenheiro, que a qualificou como "tenebrosa". O novo alento que então se observava era devido ao grande número de trabalhadores e funcionários, assim como aos vapores do govêrno que para ali vinham de vez em quando para trazer material e mantimentos. Os depósitos se encontravam à beira do rio, as moradias, tanto dos habitantes como a dos trabalhadores, levantavam-se nas encostas íngrimes dos morros. A rua principal era uma garganta que, com chuva forte, se tornava em riacho caudaloso. Era por essa razão que as casas tinham sido construidas nos morros. Segundo o engenheiro, as moradias erão tão primitivas que pouco se podia imaginar algo de mais rudimentar. Fazia-se simplesmente uma cavidade na encosta, fincavam-se algumas varas no chão, cobria-se tudo com algumas esteiras e a habitação estava pronta. De forma semelhante, ainda que de maiores dimensões, apresentava-se o "hotel", situado não muito distante do ancoradouro. Usando de humor tipicamente alemão, o autor recomenda este "hotel" ironicamente a todos aqueles insatisfeitos com os albergues no antigo continente. A fotografia feita pelo seu amigo Mendo falaria mais do que estava em condições de descrever. Esta, base de ilustração do texto, mostra de fato apenas um espaço aberto, coberto de folhas e esteiras, sem móveis. Também ironicamente, o diarista registras que o proprietário do "hotel", a dona da casa e as crianças mantinham-se acocoradas e silenciosas. Se o viajante tinha algo comestível consido, podia estar satisfeito. A família hospedeira, sem meios, ficava contente se fosse convidada a participar da alimentação. A descrição do engenheiro alemão oferece assim um quadro sugestivo da situação de vida dos habitantes e dos trabalhadores e funcionários à época do estabelecimento da ferrovia em Piranhas. De muitos outros pormenores do relato obtém-se um panorama da vida rudimentar e marcada por provisoriedade e transformações causadas pelas obras e pela vinda de operários e funcionários de diferentes regiões. Assim como Pedro II° descrevera a região como "tristíssima", também o engenheiro salienta a pobreza da vegetação da terra. Apenas o calor insuportável lembrava ao alemão que se encontrava nos trópicos, de vida vegetal luxuriante nada se podia dizer. Ainda que estando nos trópicos, a localidade pouco podia ser mais desconsolada: nenhuma palmeira, nenhuma bananeira que pudesse dar sombra. Assim, era obrigado a tolerar os sofrimentos dos trópicos sem que pudesse aproveitar de suas vantagens. Tratava-se de uma vegetação de deserto, em geral mimosas e incontáveis plantas de espinhos e cactos de todas as formas e tamanhos. O facheiro e o mandacaru davam madeira e tábuas, podendo ser encontrados aqui e ali em gargantas protegidas e podiam ser usados como material de construção, um fato quase que impossibilitado pelas dificuldades para alcançá-los e transportá-los. Grandes áreas eram cobertas com mandacaru, facheiro, chique-chique e outras plantas espinhosas, o que impedia absolutamente a passagem. A macabira, um forma de ananas selvagem, cobria o chão totalmente e cortava com os espinhos até mesmo roupas de couro. Era quase que um milagre que, nessa vegetação, com tão pouco capim, existissem cabras e gado em geral. As reses, apesar de tudo, chegavam a engordar. Os cavalos também podiam existir e, embora não grandes, eram resistentes. Caindo um temporal, tudo mudava para pior. Nos anos de sêca, por último na grande de 1878, todas as reses morreram e os habitantes padeceram fome. Os mantimentos doados pelo Govêrno teriam sido em grande parte desviados por funcionários sem escrúpulos e vendidos em outros locais.
Descrição do local e de condições de trabalho - abundância de piranhas A sua moradia de trabalho, possível de ser identificada na foto de Piranhas, era situada numa encosta pelada a 60 metros do rio. O seu material de trabalho resumia-se a um grande mapa feito pelo seu antecessor e que havia sido por êle corrigido e posteriormente desenhado de novo. Encontrava-se constantemente numa situação desesperadora. Embora a casa fosse bem ventilada, a temperatura no quarto era de 30 a 33° C. Permanentemente molhado de suor, quase que não podia desenhar nessa situação. Como, porém, não podia pegar no papel com mãos molhadas, tinha que inventar artimanhas para poder traçar cada linha. Quando queria descer do seu "escritório" até o rio, não havendo caminhos, escadas ou degraus, precisava ir pulando sobre os obstáculos; para ir para cima, aos trabalhadores, também precisava subir escalando pela encosta como uma cabra selvagem. Nessas condições, até mesmo um aventureiro acostumado com dificuldades e ávido de aventuras tinha saudades das florestas alemãs. No calor do local, seria agradável tomar um banho no rio ao cair da tarde. Infelizmente, tinha-se que evitar esse banho. Como o nome da localidade indicava, havia nesse trecho do São Francisco grande quantidade de piranhas. Descrevendo esse peixe, que compara pelo seu perigo com o tubarão, o engenheiro diz que teria semelhança com o Blei ou Brassen da Alemanha, atingindo um pé e meio de comprimento, um pé de altura e 4 polegadas de espessura; a sua dentadura, porém, era um serrote.
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Caindo uma pessoa ou animal na água, e ferido por um desses peixes, de modo a correr sangue, centenas de peixes atacavam o infeliz e, dentro de poucos minutos dele só restava um esqueleto.
Herança indígena na população, traços holandeses e excesso de mulheres Quanto aos moradores, o autor registra que havia poucos negros. A razão do fato era que a região era por demais pobre e, por isso, não haviam proprietários de escravos. Tanto mais predominava o sangue do índio e como no passado os holandeses ali estiveram, via-se não raro singulares indivíduos de pele bronzeada e cabelos loiros. Como registra no seu diário, o engenheiro alemão de ínicio surpreendeu-se com o grande número de mulheres em Piranhas, desproporcional relativamente à população em geral. A explicação residia no fato de que muitas mulheres tinham vindo como aventureiras devido à concentração de homens causada pelo início da construção da ferrovia. Segundo o engenheiro, teriam passado em geral a ser usadas como animais de carga pelos trabalhadores da ferrovia. Também aqui o engenheiro via uma persistência de hábitos indígenas. Como os trabalhos pesados eram particularmente cansativos no calor da região, exigindo grande consumo de água, e existindo água apenas no vale, as mulheres estavam destinadas a continuamente transportá-las. Isso o faziam em potes de barro que sabiam equilibrar à cabeça, mesmo precisando saltar de pedra a pedra. Para o engenheiro, a sua única distração era observar essas tropas de carregadoras de água que, em fila indiana, vestidas simplesmente com uma camisa e uma leve saia curta, subiam as encostas saltando sobre as pedras.
Alto custo de vida no canteiro de trabalhos e indústria de couros e de rêdes Os comentários sobre as condições de vida em Piranhas oferecem indícios da orientação política do oficial alemão. As suas crítícas são sobretudo dirigidas ao estado centralizado e aos impostos, o que impedia o livre desenvolvimento de iniciativas empreendedoras. Uma indústria razoável era a da confecção de roupas de couro, tendo levado a bons artesãos. Um traje completo de couro, bem trabalhado, custava segundo moeda alemã até 50 marcos, Se fosse exportado, devia-se pagar imposto de exportação, que chegava a ser 100% do preço, de modo que um traje de couro, contando-se com os custos do transporte, alcançava 150 marcos. Assim, segundo o engenheiro as pobres pessoas eram mantidas pelo próprio Govêrno na pobreza devido aos altos impostos. Além de artigos de couro, fazia-se também ótimas esteiras e rêdes, cujo preço variava de 10 a 60 marcos. O mais vantajoso era comprá-las nas feiras, e o próprio engenheiro havia comprado uma das maiores por apenas 10 marcos. Também para essa indústria valia o mesmo que constatara para os artigos de couro. Devido aos impostos, os artesãos dela pouco proveito tiravam. A farinha para o pão era importada ou obtida em comércio de troca com couros. Considerando importações e exportações, o autor comunica alguns preços de mantimentos. Na Europa fumava-se tabaco do Brasil, um dos mais baratos que havia. Em Alagoas, porém, meio-quilo custava 11 marcos e era péssimo; meio-quilo de café ruim custava um marco; batatas, 60 Pfennige por meio-quilo; manteiga, de qualidade muito duvidosa, 4 marcos; para uma caixa de cerveja de 30 garrafas, 96 marcos. Assim, o dinheiro acabava rapidamente mesmo para aquele que ganhava bem. Como era feliz o alemão que podia sentar-se no seu bar costumeiro e tomar a sua cerveja fresca por apenas 15 Pfennige!
Retratos de sítios de interesse natural e cultural. A Pedra do Sino: som e visões Episódio particularmente significativo no diário do engenheiro e aquele a que se refere a um descobrimento feito por Mende, o fotógrafo brasileiro que era incansável na procura de pontos de interesse natural e cultural. Nas suas perambulações, descobrira uma formação rochosa de interesse há ca. de 1/12 horas de Piranhas. Não descansou até que, num domingo, conseguiu levar ao local todo o secretariado da ferrovia, constituido de sete profissionais. De início, a excursão foi agradável, pois podia-se utilizar um vale coberto de capim. A seguir, o trajeto tornava-se difícil, pois tinha-se que subir um morro em meio à vegetação densa e espinhosa.
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Os altos da montanha, de ca. 150 metros, eram coroados por uma pirâmide de pedras de granito, cujo ponto alto parecia ser uma "cadeira de vovô" de respaldos altos. Como se podia a ela subir sem dificuldades, os viajantes deixaram os seus cavalos sob a guarda de um serviçal e escalaram as pedras. Para além de um magnífico panorama do São Francisco, o grupo rochoso em si despertou o maior interesse dos visitantes. O mesmo parecia ter sido edificado por mão humana e a "cadeira de avô" encontrava-se quase que solta no ar. Esta e outras formações rochosas singulares deviam ter sido resultados de lavagens graduais, adquirindo a sua forma atual, mesmo assim havia um pormenor que indicava ter sido o local utilizado para fins religiosos pelos antigos indígenas da região. Essa suposição baseava-se na surprêsa que todos tiveram quando o Sr. Mendo tirou um martelo que havia trazido no seu casaco e bateu com o mesmo na "cadeira do vovô". Esta produziu um som de sino puro, que ressoou pelo vale e montanhas. Um som desses não se tinha esperado de um granito, e a rocha foi imediatamente batizada como Pedra do Sino. Chegou-se assim à conclusão que essa pedra singular teria sido no passado um local de sacrifício dos indígenas.
Necessidade de estudos de relitos visuais do passado indígena do Nordeste O artigo de Ferschke termina salientando a necessidade de pesquisa de inscrições e outros traços culturais de indígenas do passado nas províncias do Nordeste. Em particular em Pernambuco e Alagoas existiam ainda muitas inscrições e outros relitos de remotas eras. Para explicar a ocorrência desses sinais, o autor estabelece uma teoria: o desenvolvimento cultural de um povo processar-se-ia em direção oposta à força de produção da terra no qual reside. Nem nas regiões férteis do Sul, subindo mesmo até à Venezuela, o engenheiro encontrara traços de registros escritos ou outros sinais de cultura de indígenas. A facilidade com que os mesmos podiam existir fisicamente era a razão do baixo desenvolvimento intelectual. Aqui, porém, onde a terra era árida e pouco oferecia em alimentos, o indígena precisou esforçar-se intelectualmente e refletir sobre os meios para garantir a sua existência. Podiam ser comparados, assim, com habitantes de tristes regiões ermas das Cordilheiras. O autor não queria afirmar que havia na região um sistema de hieroglifos desenvolvido, mas afirmava que pelo menos podia-se supor que as inscrições não eram apenas resultado de caprichos de algum
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indivíduo. Somente estudos comparados das muitas inscrições que podiam ser encontradas por todo lado nessa parte do Brasil poderiam chegar a demonstrar se os mesmos tinham ou não sentido. Esta era uma tarefa de urgência, pois já muito havia sido destruído e os registros pré-históricos do Nordeste brasileiro logo estariam desaparecidos.
Interpretação de sinais rupestres como sinais de tesouros enterrados pelos holandeses O povo comum olhava para esses sinais como marcas de tesouros enterrados, que no passado teriam sido escondidos pelos holandeses quando tiveram que abandonar o país. Assim, ainda há pouco tempo o engenheiro recebera uma carta vinda da Serra de Fanelas na Bahia, distante de ca. 150 km de Piranhas, onde tinha-se tomado conhecimento da presença de um alemão em Piranhas. Nela pedia-se que fosse visitar um local que tinha sinais holandeses e que levavam provavelmente a um tesouro oculto. O engenheiro respondeu dizendo que os holandeses eram pessoas por demais práticas para que pudessem ter escondido os seus tesouros em região tão desértica e, mesmo que o tivessem feito, não seriam tão ingênuos em marcar o caminho com sinais. Assim, o assunto ficava a cargo dos pesquisadores, e o autor declarava-se pronto a dar mais informações àqueles interessados.
Da estrada de ferro pouco antes do "melhoramento" da cachoeira de Paulo Afonso O diário do oficial alemão que trabalhou como engenheiro na implantação da ferrovia em Piranhas assume interesse especial para a história das vias de comunicação e sua influência nas transformações culturais do Leste do Brasil. A Estrada de Ferro de Paulo Affonso a Jatobá cujo traçado corrigiu chegou a alcançar consideravel significado no início do século XX, ainda que deficitária. Pouco antes do "melhoramento" das cachoeiras de Paulo Afonso, também com decisiva participação alemã (Veja http://revista.brasil-europa.eu/141/Brasil-Alemanha-tecnica-e-ecologia.html), a ferrovia, pertencendo ao quadro da Great Western Brazil Railway, tinha 115 Kms. Em 1911, apresentara um um déficit de 63:085$160. Transportava neste ano 2.662 passageiros, 13 toneladas de carga, 136 animais, 4.594 toneladas de mercadorias, 3.646 telegramas. A linha foi percorrida nesse ano por 277 trens que fizeram um percurso de 29.542 quilômetros. As oficinas, situadas em Piranhas, funcionavam convenientemente e as obras de arte, as estações e outros edifícios encontravam-se em bom estado de conservação. O material rolante dessa linha, que não era o mesmo de outras linhas da Great Western Brazil Railway, era composto por 5 locomotivas, 10 vagões de passageiros e 40 de carga. (Annuaire du Brésil Économique 1913, Rio de Janeiro: Le Brésil Économique, 466-467). Entre os veículos empregados havia locomotivas importadas da Alemanha, uma vez que a firma Henschel & Sohn de Kassel, a maior fábrica de locomotivas da Europa, eram fornecedoras da Brazil Railway. O representante dessa firma no Brasil era a empresa de Theodor Wille, com agências em São Paulo, Rio de Janeiro, Santos, e, para o Nordeste, Adolf Petersen & Cia., com casa filial em Pernambuco e agências em Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe.
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Círculo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor. Indicação bibliográfica para citações e referências: Bispo, A.A. "Da participação alemã na superação da barreira comercial no São Francisco: a ferrovia de Piranhas a Jatobá e implicações culturais - o papel de imagens e a valorização de inscrições rupestres do Nordeste -Do Rio Grande do Sul a Alagoas: o diário de engenheiro alemão no São Francisco em narração de Hermann Ferschke (1835-1903) II". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 141/13 (2013:1). http://revista.brasil-europa.eu/141/Alemaes-em-Alagoas.html
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Desenhos de imagens do artigo de H. Freschke. Reclames de "O Brasil e a Allemanha" (1923), Mapas: Annuaire du BrÊsil Économique (1913).
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