Aventuras da História - Maio/2020

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EDIÇÃO 204 | MAIO/2020

OS DINOSSAUROS ALÉM DOS FILMES DE HOLLYWOOD A COLONIZAÇÃO NA BAHIA 50 ANOS DEPOIS DE CABRAL O HORROR MILENAR DAS EPIDEMIAS DE GRIPE

SANTA JOANA D’ARC HÁ 100 ANOS, A JOVEM GUERREIRA ERA CANONIZADA PELA IGREJA CATÓLICA E VIRAVA SÍMBOLO NACIONAL DA FRANÇA


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SUMÁRIO

3O CAPA: DAS CINZAS DE SUA CONDENAÇÃO À FOGUEIRA, JOANA D’ARC RESSURGIU, HÁ 100 ANOS, COMO SANTA DA IGREJA CATÓLICA

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GALERIA Fotografias coloridas da Rússia Imperial

NA 12 HOJE HISTÓRIA Aconteceu em maio

FAZÍAMOS 19 COMO SEM Mapa

20 LINHA DO TEMPO A maquiagem desde milênios a.C.

14 DÚVIDA CRUEL

22 ILUSTRADA

16 ARTE

52 PARA ENTENDER

18 À MESA

58 MEMÓRIA

Quem são os boomers?

Rinoceronte de Dürer, xilogravura de 1515

Qual a origem do popular ketchup?

O passado rico do Cassino da Urca

Cinco obras sobre epidemias mundiais

Os arcos dourados do primeiro McDonald’s

24 EPIDEMIAS Invisível, o vírus da gripe aterroriza a humanidade há milênios. E continua imbatível

40 BRASIL 50 anos após o descobrimento, os portugueses voltam à Bahia. Dessa vez, viriam para ficar

46 PRÉ-HISTÓRIA Curiosidades e fatos científicos sobre como era a vida dos dinossauros

COLUNISTAS

53 THOMAS PAPPON

54 GABRIEL WALDMAN

56 RICARDO LOBATO

57 ALEXANDRE CARVALHO


EDITORIAL

O MUNDO DÁ VOLTAS

E

não é porque a Terra é redonda e está sempre em movimento. Mas porque a História já nos ensinou que existem muitas situações – complexas e alarmantes – seguidas de reflexão e arrependimento. Escrevo esta carta confinada em casa, em plena pandemia da Covid-19, justamente na semana em que o atual prefeito de Milão, Beppe Sala, admitiu em cadeia internacional que errou ao fazer campanha contra a quarentena no momento em que o vírus chegou à sua cidade. O político não havia entendido a gravidade da doença, que, só no primeiro mês, matou mais de 4 mil pessoas por lá. Nas próximas páginas, querido leitor, você vai conhecer as maiores epidemias de gripe do passado e ver como o enfrentamento de cada uma delas pode nos ensinar (ou deveria nos ensinar) a dar nossos passos, hoje e amanhã, com mais segurança. Afinal, para que serve a história da humanidade senão para aprendermos a dar mais valor à vida das pessoas? Sobretudo àquelas que sofreram e morreram em nome de um povo. Em maio de 1431, Joana d’Arc foi acusada de blasfêmia e queimada viva com apenas 19 anos de idade. Um episódio, aliás, que também teve sua dose de arrependimento: há exatos 100 anos, a jovem guerreira foi canonizada pela Igreja Católica e virou santa, além de símbolo nacional da França. Que as cinzas de seu corpo – e as de tanta gente ao longo da História – nos sirvam para abrir nossos olhos às voltas que o mundo dá. Boa leitura! Izabel Duva Rapoport Editora

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Erramos: a ilustração da reportagem Cerco da Lapa (edição 201, página 46) foi publicada sem o devido crédito para o ilustrador Robson Vilalba. Para conhecer o trabalho do artista, acesse seu portfólio: www.robsonvilalba.carbonmade.com

PRESIDENTE Luis Fernando Maluf VICE-PRESIDENTE Wardi Awada DIRETORES CORPORATIVOS Editorial: Pablo de la Fuente Comercial: Márcio Maffei Finanças e Controle: Filipe Medeiros Internet: Alan Fontevecchia Markenting e Circulação: Luciana Romano Digital: Guilherme Ravache Plataformas Digitais: Nicholas Serrano

(Lançada em 2003) Editora: Izabel Duva Rapoport; Arte: Marilia Filgueiras; Revisão: Bianca Albert Publicidade: Ana Canton, Mari A. dos Reis e Arthur Carvalho (Executivos) Tecnologia: Victor Fontes; Arte, Prepress e Coordenação Gráfica: André Luiz Silva; Fotografia: Amanda Loureiro e Tainara Amaral; Prepress: Claudio Costa e Emerson Cação REDAÇÃO E CORRESPONDÊNCIA SÃO PAULO: Av. Eusébio Matoso, 1.375, 5º andar, Pinheiros, CEP 05423-180, SP, Brasil. Publicidade: Tel. 2197-2104/2122

AVENTURAS NA HISTÓRIA 204 ISSN (1806-2415), ano 18, nº 4, é uma publicação mensal da Editora Caras. Edições anteriores: Solicite ao seu jornaleiro pelo preço da última edição em bancas, mais despesa de remessa; sujeito a disponibilidade de estoque. Distribuída em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. AVENTURAS NA HISTÓRIA não admite publicidade redacional. A Editora CARAS informa que não realiza cobrança telefônica de débitos pendentes e não aplica qualquer tipo de multa em virtude de cancelamento de assinatura. Todos os nossos boletos são emitidos através do banco Santander em nome da Perfil Brasil. Em caso de dúvida, ligue para nós. PARA ASSINAR OU RESOLVER OS ASSUNTOS RELATIVOS À SUA ASSINATURA, ACESSE: www.assineclube.com.br/faleconosco SE PREFERIR LIGUE: São Paulo: (11) 3512-9479 Rio de Janeiro: (21) 4063-6989 Belo Horizonte: (31) 4063-8156 Segunda a sexta-feira das 9h às 18h IMPRESSA NA D’ARTHY EDITORA E GRÁFICA LTDA. Parque Empresarial Anhanguera, Via Anhanguera - Rua Osasco, 1.086 Cajamar - SP - Brasil

EDITOR RESPONSÁVEL Wardi Awada



GALERIA

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RÚSSIA IMP AVENTURAS NA HISTÓRIA


ERIAL

À BEIRA DA REVOLUÇÃO, UM FOTÓGRAFO RUSSO CONSEGUIU REGISTRAR O MODO DE VIDA DO SEU POVO EM 11 REGIÕES DIFERENTES – E TUDO ISSO EM CORES POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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GALERIA

DIVERSIDADE ÉTNICA Um dos maiores domínios que o mundo já viu, a Rússia Imperial, prosperou de 1720 a 1917. Nesse período, ela travou guerras, conquistou terras vizinhas e se estendeu por três continentes. Até que, no início do século 20, dois eventos mudariam o rumo do país e do mundo para sempre: a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Bolchevique. Poucos anos antes, para documentar a diversidade cultural de uma sociedade agrária grande, mas isolada, estava o fotógrafo e cientista russo Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii (1863-1944), cujo autorretrato está na primeira foto da página 6 (o homem que está diante da cachoeira). Com apoio e patrocínio do czar Nicolau II, ele atravessou o Império Russo de trem, numa expedição que o levaria do Ártico à fronteira com a China. No fim do seu ousado e longo projeto de dez anos (de 1905 a 1915), a Rússia Imperial e a diversidade do seu povo estariam registradas em mais de 2 mil fotografias. Todas coloridas. Graças ao conhecimento de química, Prokudin-Gorskii produziu uma emulsão ultrassensível para a fixação de três cores (vermelha, verde e azul) em lâminas de vidro – e encomendou a fabricantes alemães uma câmera específica que tirava uma série de três fotos monocromáticas em sequência rápida, cada uma através de um filtro e cor diferente. Quanto mais instável era a cena, mais bordas coloridas apareciam no resultado final da operação. No centro de cada imagem, havia desde jovens camponesas russas ou agricultores em casas tradicionais de madeira até líderes de região ou povos nômades, como os quirguizes, uzbeques e cazaques. Todos cultivando um modo de vida que logo seria perdido na História. 8

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GALERIA

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GRANDES OBRAS Além das pessoas e sua forma de viver, Prokudin-Gorskii fotografou grandes obras arquitetônicas e os avanços da Rússia Imperial. Mas sua ideia não era só agradar a vaidade do imperador. Era também levar conhecimento para os estudantes da região: seria instalado um projetor em cada escola elementar para que os alunos pudessem conhecer a história, a beleza e a riqueza de toda aquela imensidão. Em sentido horário, a partir da página anterior, há a vista do Lago Seliger e o Mosteiro de São Nil Stolbensky, na Ilha de Svetlitsa. Lá, em 1528, foi estabelecido um pequeno assentamento monástico, que, no início de 1600, se tornou um dos maiores e mais ricos mosteiros do Império. Foi fechado em 1927, sendo usado como orfanato e até campo de concentração. Em 1990, a grande obra foi devolvida à Igreja Ortodoxa Russa. Na sequência, a pequena capela de madeira da cidade de Belozersk, famosa por aparecer em crônicas russas dos tempos antigos, e a Igreja da Ressurreição, em Kostroma, na parte norte da Rússia europeia. Esta última, construída na década de 1650, exibe decoração típica do período, com mosaicos, afrescos e esculturas. Detalhes que também chamam a atenção pela diversidade podem ser apreciados nos azulejos das paredes e cúpulas da Madrassa Shir-Dar, uma escola teológica muçulmana construída entre 1619 e 1636. Depois, a paisagem montanhosa da Aldeia de Shamil, no Daguestão, sudoeste do país, e um forno de aquecimento de azulejos e cerâmica cercado por móveis e paredes pintadas com cores vivas e afrescos: parte interna do Palácio dos Príncipes, em Rostov. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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HOJE NA HISTÓRIA

ACONTECEU EM MAIO 1

O rei Kamehameha I derrota o 1785 rival Kalanikupule na batalha pela ilha de O’ahu, unifica o controle sobre as ilhas do arquipélago e estabelece o Reino do Havaí.

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Primeira mulher no cargo de 1979 primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher inicia seu mandato, marcado por decisões conservadoras.

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A esquadra de Pedro Álvares 1500 Cabral deixa o Brasil rumo à Índia. Eles teriam contratempos e sangrentas batalhas pela frente, numa das quais Pero Vaz de Caminha seria morto.

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Morre de pneumonia em Duque 1987 de Caxias Tenório Cavalcanti, o “Homem da Capa Preta”. Deputado líder nas favelas do Rio, andava com a metralhadora “Lurdinha” sob sua capa.

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Nasce em Florença Nicolau 1469 Maquiavel, filósofo político. Excluído da vida pública em 1512, dedicou-se a escrever tratados políticos, como O Príncipe, um clássico sobre a arte de governar.

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O missionário espanhol São 1542 Francisco Xavier chega a Goa, Índia, iniciando sua longa campanha de evangelização da Ásia, na qual tentaria converter o imperador do Japão.

Após um terremoto, o domo da 558 Basílica de Santa Sofia, em Constantinopla, desaba. Convertida em mesquita em 1453, é o maior exemplo da arquitetura bizantina.

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Antoine Lavoisier, considerado 1794 o pai da química moderna, é guilhotinado pelo regime de terror da Revolução Francesa, por desvio de dinheiro público em Paris.

É aberta audiência formal para o 1974 impeachment do presidente dos EUA Richard Nixon. Ele, que foi envolvido no Escândalo Watergate, renunciou poucos meses depois.

Nazistas iniciam a “purificação da 1933 literatura alemã” em Munique e outras cidades da Alemanha. Os rituais públicos buscavam expurgar ideias esquerdistas e/ou subversivas.

É inaugurada a primeira linha de 1852 telégrafo no Brasil, que ligava o Palácio Imperial da Quinta da Boa Vista ao quartel-general do Exército, no Campo de Santana.

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Diante do Fórum de Roma, a 113 Coluna de Trajano é inaugurada. Construído para celebrar o triunfo do imperador romano contra os dácios, o monumento está de pé até hoje. 12

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A Federação Internacional de 1950 Automobilismo realiza o primeiro campeonato de F1. O desafio aconteceu no circuito de Silverstone, na Inglaterra. O vencedor foi o italiano Giuseppe Farina.

O médico inglês Edward Jenner 1796 aplica um extrato de pus de varíola de vaca num menino de 8 anos. Era a nada ética estreia da vacinação. Para a sorte do menino, funcionou.

Ana Bolena, rainha da Inglater1536 ra e segunda esposa de Henrique VIII, é considerada culpada de adultério, traição e incesto pelo Parlamento inglês. Ela seria executada quatro dias depois.


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Durante a Segunda Guerra, 1943 termina o Levante do Gueto de Varsóvia, na Polônia. Cerca de 80 mil pessoas (300 mil já haviam sido levadas) lutaram por mais de um mês contra os nazistas.

A Organização Mundial da Saúde 1990 (OMS), parte da ONU, remove a homossexualidade de sua lista de doenças mentais. Uma grande conquista dos direitos gays.

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Cai a Fortaleza de Acre, na atual 1291 Israel, para as forças do Sultanato Mameluco. Era o último posto militar relevante dos cruzados na Terra Santa.

A Academia de Artes e Ciências 1929 Cinematográficas realiza o primeiro prêmio para os melhores filmes do ano. A estatueta entregue aos vencedores seria apelidada de Oscar em 1939.

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O editor Thomas Thorpe publica 1609 uma compilação com 152 sonetos inéditos do dramaturgo William Shakespeare, sem a autorização do autor.

Tropas francesas invadem a 1871 Comuna de Paris, atacando os moradores em batalhas sangrentas. Cerca de 20 mil pessoas são assassinadas e 38 mil, presas.

Durante um cerco à fortaleza de 1176 Azaz, membros da seita dos Assassinos, ou Hashishin, se disfarçam de soldados e tentam matar o sultão Saladino a facadas. Fracassam.

Dois ministros do Sacro Império 1618 Romano do Ocidente são jogados pela janela de uma igreja de Praga, em revolta de protestantes cansados de perseguição, deflagrando a Guerra dos 30 Anos.

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Nos Estados Unidos, o inventor 1940 russo Igor Sikorsky realiza o primeiro voo de um helicóptero moderno. Sikorsky fugiu da Revolução Russa em 1919.

O sacro imperador romano-germâni1521 co Carlos V finaliza a Dieta de Worms, ao redigir o Édito de Worms, em que declara Martinho Lutero fugitivo e herege e condena suas obras.

A jovem Alse Young é a 1647 primeira pessoa a ser enforcada por bruxaria em Connecticut (EUA), cinco anos depois que a bruxaria passou a ser considerada crime.

Após vencer tropas suecas, 1703 o czar Pedro I, o Grande, constrói uma fortaleza no delta do Rio Neva e funda São Petersburgo, capital do Império Russo entre 1712 e 1917.

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Data tradicional da Batalha de Hális, 585 a.C. entre medas e lídios, na Turquia, encerrada por um eclipse, entendido pelos exércitos como um aviso dos deuses para acabar a luta.

Os turcos otomanos 1453 tomam Constantinopla, capital do Império Bizantino. A Queda de Constantinopla se torna o marco tradicional entre a Idade Média e a Idade Moderna.

Rumores de que faltaria cerveja 1896 iniciaram um tumulto no banquete em homenagem ao czar Nicolau II, com 500 mil atendentes. Essa seria a Tragédia de Khodinka, com 1389 mortos.

O faraó Ramsés II, o Grande, 1279 a.C. assume o reinado do Egito. Ele teve o segundo maior reinado da história do país e foi imortalizado em diversas estátuas.

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DÚVIDA CRUEL

QUEM SÃO OS BOOMERS? UM DOS MEMES MAIS POPULARES É TAMBÉM A GERAÇÃO FRUTO DA EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA PÓS-SEGUNDA GUERRA POR FELIPE VAN DEURSEN E IZABEL DUVA RAPOPORT

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IMAGENS GETTY IMAGES

magine a situação: você está há tanto tempo lutando contra o inimigo, em países estranhos, que nem se lembra do gosto da comida de casa. Seu dia a dia é composto de corpos mutilados e mortos, sangue e poeira. Tudo com o que você sonha é voltar para o conforto e a segurança do seu lar. A luta termina e, no fim, você faz parte do grupo vitorioso: é recebido em seu país como herói. O que acontece nove meses depois? Você é pai. Foi isso o que se passou com milhares de casais americanos com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Um ano depois começava uma explosão demográfica que só enfraqueceria na virada dos anos 60. Era o chamado baby boom. Na década de 40, nasceram nos Estados Unidos 32 milhões de bebês, 33% a mais que na década anterior. Em 1954, foram mais de 4 milhões de partos americanos, quase 11 mil por dia. E agora os mais velhos dessa turma já passaram dos 70. A geração baby boomer, como ficou conhecida, mudou os costumes do mundo – embora tenha virado piada entre os jovens atuais (ver boxe da página ao lado). Formada pelos filhos que mais se diferenciavam dos próprios pais até então, a baby boomer virou adulta no mais duradouro período de prosperidade do país, distante dos traumas sofridos pela geração anterior, que cresceu durante a Grande Depressão. Pelos 15 anos seguintes ao confronto mundial, a onda de otimismo dominou não só os Estados Unidos mas também muitos dos países aliados, como Canadá e Reino Unido. No Brasil, a euforia se deu nos anos de Juscelino Kubitschek, entre 1956

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e 1960. A economia andava a toda e o desemprego era baixo. “O que aconteceu após a Segunda Guerra Mundial foi uma conjunção de fatores: otimismo juvenil, bens materiais em abundância, vitória em uma guerra, medo de perder em outra”, escreveu o historiador Howard Smead em Don’t Trust Anyone Over Thirty: The First Four Decades of the Baby Boom (“Não Confie em Ninguém com Mais de 30: As Quatro Primeiras Décadas do Baby Boom”, inédito no Brasil). “Você quer culpar alguém pelo baby boom? Culpe Hitler: suas atividades na Europa distorceram o ciclo familiar nos EUA”, disse ele.

UMA REVOLUÇÃO NÃO TÃO LIBERAL Em 1965, quatro de cada dez cidadãos americanos tinham menos de 20 anos. Um ano antes, havia estourado a Guerra do Vietnã. Em 1969, o Festival de Woodstock entorpeceu o mundo com sua mensagem roqueira de paz e amor. Na primavera anterior, universitários de Paris mobilizaram a França contra o regime de Charles de Gaulle (os baby boomers europeus são conhecidos como “a geração de 68”) e o feminismo ganhou força e mais voz. Ou seja, as grandes manifestações da década, talvez do século, foram protagonizadas por jovens que nasceram no pós-guerra. Hippies e feministas são filhos do baby boom. Mas a geração que revolucionou os costumes não era lá tão liberal. Nos EUA, na primeira vez em que votaram, elegeram duas vezes o republicano Richard Nixon. E o democrata Bill Clinton, o primeiro presidente baby boomer, não era bem-visto por seus contemporâneos.


OK, BOOMER O conservadorismo dos baby boomers, aliás, virou piada na internet entre os jovens de hoje em dia – mais especificamente os que formam a chamada geração Z ou millennials (os nascidos entre 1996 e 2015). Para contrariar comentários publicados nas redes sociais por pessoas mais velhas, resistentes às mudanças ou ao estilo de vida das novas gerações (ou então as opiniões publicadas por internautas mais novos que agem como os nascidos entre 1946 e 1964), a juventude atual criou o meme ou a frase viral “Ok, boomer”: uma

expressão online que traz à tona um conflito geracional. A frase surgiu como desdém a um vídeo compartilhado no TikTok em 2019 que reforçava a ideia de que as novas gerações têm “síndrome de Peter Pan”, ou seja, que não querem crescer, que vivem num mundo próprio e limitado e que são dependentes de tecnologia e celular. Se, de um lado, porém, está o argumento de que os jovens vivem de utopias, do outro, há a acusação de que os adultos não acreditam, não compreendem e não investem na juventude de hoje em dia.

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ARTE

ARTE LENDÁRIA DE FEITA EM 1515, A GRAVURA DE UM RINOCERONTE COM MORFOLOGIA ERRADA VIROU REFERÊNCIA POR SÉCULOS POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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objetivo do artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528) era registrar a estrutura exótica do primeiro rinoceronte a chegar vivo à Europa desde o Império Romano. Mas o que acabou produzindo foi uma xilogravura tão rica em detalhes quanto em imaginação. Dürer, que também era matemático e anatomista, considerado o “Leonardo da Alemanha”, fez essa gravura com base em desenhos e testemunhos de terceiros, enviados por escrito. Historiadores dizem, aliás, que o artista nem sequer viu um rinoceronte na sua vida – o que talvez explique a notável obra de arte repleta de indicações morfológicas que não passam de lenda; e de um alerta para que sempre avaliemos com desconfiança os relatos alheios, por mais honestos e bem-intencionados que possam ser. Esta ilustração, publicada em 1515, foi copiada e usada como referência em estudos e manuais científicos diversas vezes, ao longo de pelo menos três séculos. E, nesse sentido, o ponto mais dissemelhante da obra, que ficou conhecida como o Rinoceronte de Dürer, é a própria pele do animal. Cheia de subdivisões, ela mais parece uma armadura dos guerreiros daqueles tempos ou um casco de tartaruga. Suas pernas e pés, com escamas na superfície, e seu chifre curto, também chamam a atenção, entre outras miudezas nos traços e na imaginação fértil do artista alemão. 16

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UM RINOCERONTE Tão fantasiosa quanto a reprodução de adornos no paquiderme é a história do próprio rinoceronte. Em janeiro de 1515, o animal doi dado de presente pelo sultão Muzafar II, de Gujarat, para o governador das Índias no império português Afonso de Albuquerque, que, por sua vez, repassou o presente para o rei de Portugal, Dom Manuel I. Do Oriente, o rinoceronte embarcou num navio de especiarias comandado por Francisco Pereira Coutinho, rumo a Lisboa, para uma relativa rápida viagem de 120 dias.

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Ao desembarcar em Portugal, próximo à Torre de Belém (que estava em fase final de construção), o rinoceronte virou sensação, como já era de esperar. A sua imagem era relacionada com um animal mítico, e a chegada de um exemplar vivo à Europa desde o século 3 causou extrema empolgação entre os soberanos, acadêmicos e curiosos. No contexto renascentista, tratava-se de uma peça de Antiguidade clássica. Não à toa, de lá, saíram muitas cartas, desenhos e relatos descrevendo a criatura.

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Após poucos meses, o rei português organizou um combate entre o rinoceronte e um elefante da sua coleção de grandes animais. Incomodado com o barulho da multidão, o elefante fugiu em pânico, sem nem mesmo lutar. Em dezembro daquele ano, Dom Manuel decidiu oferecer o rinoceronte (com seu novo colar de veludo verde) ao papa Leão X. A caminho de Roma, o navio ancorou na França para que o paquiderme fosse contemplado também pelo rei francês e, ao seguir viagem, foi atingido por uma tempestade. Preso e acorrentado, o rinoceronte morreu afogado.

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À MESA

KETCHUP O FAMOSO MOLHO FOI INVENTADO NA CHINA POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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ketchup não é invenção norte-americana, como muita gente pensa. Esse molho agridoce à base de tomate é descendente do ke-tsiap, uma salmoura chinesa típica da região portuária de Xiamen, que levava peixes, mariscos, sal e vinagre de arroz – era um molho de peixe fermentado. Na Malásia, uma adaptação mais condimentada era conhecida como kechap, a verdadeira fonte de inspiração para o preparo que chegou ao Ocidente por meio dos marinheiros britânicos. Entre os séculos 18 e 19, os ingleses misturavam o molho de tomate com cogumelos, ostras, pepino e nozes moídas – aquele que, aliás, ficou conhecido como “ketchup de nozes”, o preferido da escritora britânica Jane Austen, autora da obra clássica Orgulho e Preconceito, escrita em 1797 e publicada em 1813. No entanto, foi só nos Estados Unidos que a ideia vingou de vez, e rapidamente. Em 1830, o livro de receitas The Cook’s Oracle (“O Oráculo do Cozinheiro”, em tradução livre), de William Kitchiner, já reunia diversas receitas empregando ketchup. Em pouco tempo, o molho começou a ser engarrafado pelo empresário Jones Yerkes, que vendia o produto em galões pelo país e, em 1876, passou a produzi-lo em escala industrial. Foi quando o americano Henry J. Heinz conheceu a fórmula e a patenteou para venda, usando um recipiente de vidro transparente, gargalo e tampa de rosca, bem mais apresentável que os galões de Yerkes. Em apenas uma década, a companhia começou a crescer nos Estados Unidos e a ganhar fama pelo mundo todo.

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COMO FAZÍAMOS SEM

MAPAS Q

ATÉ O SÉCULO 20, A SOLUÇÃO ERA OLHAR AS ESTRELAS E FAZER CÁLCULOS POR ERNANI FAGUNDES

uem já rabiscou um mapinha para indicar um caminho repete um gesto tão antigo quanto a humanidade. “Uma das necessidades mais primordiais da comunicação é indicar um rio ou uma caverna”, diz Jorge Pimentel Cintra, professor de História da Cartografia da USP e curador das coleções cartográficas do Museu Paulista. Muitos desses desenhos devem ter se perdido; ainda assim, o primeiro mapa já visto é bem antigo. Ele surgiu no Egito, há 4 mil anos, e delimitava propriedades rurais. Para áreas maiores, foi necessário recorrer à matemática e à astronomia. Conhecedores dessas duas ciências, os babilônios criaram um mapa-múndi, que mostra um círculo de terra rodeado por água e por corpos celestes. Depois, o grego Erastótenes (276-194 a.C.) acrescentou uma ferramenta útil para os cálculos: o conceito de latitude. Em Roma, no século 2, um livro de Marino de Tiro (60-130) e Cláudio Ptolomeu (87-150) dava as coordenadas de 8 mil locais.

Mas os desenhos, como no mapa ptolomaico ilustrado acima, ainda não eram confiáveis. No século 14, as grandes navegações deixaram os cartógrafos mais uma vez em alta. Os mapas eram caros, mas o investimento compensava. Foi com uma tabela de distâncias do matemático José Visinho que Bartolomeu Dias alcançou o Cabo da Boa Esperança. Os desenhos eram atualizados com rapidez. Em 1502, dois anos após a descoberta do Brasil, o Planisfério de Cantino já exibia o novo território. No entanto, ainda faltava exatidão. Começou assim a busca pelas longitudes do planeta. Em 1772, o britânico John Harrison (1693-1773) resolveu o problema com um relógio que sempre marcava a hora de um único meridiano. Um novo estágio começou no fim do século passado, com os satélites. Hoje, as imagens do planeta visto do espaço estão na tela de qualquer computador. E, em vez de rabiscar mapas, usamos aparelhos de GPS para nos localizarmos. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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LINHA DO TEMPO

MAQUIAGEM NASCIDA MILÊNIOS ANTES DE CRISTO, A MODA DA MAQUIAGEM, QUE JÁ FOI PRODUZIDA ATÉ COM SUBSTÂNCIAS RETIRADAS DE UM INSETO, VIVEU SEU APOGEU NO SÉCULO 20 POR FLÁVIA RIBEIRO

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onsiderada uma das primeiras femmes fatales da Antiguidade, Cleópatra não foi apenas uma referência de sensualidade e poder político. A rainha foi também um exemplo de vaidade feminina a ser copiada – para hidratar a pele, ela tomava banhos diários de leite de jumenta. Foi Cleópatra ainda quem po- pularizou o uso do kohl, uma mistura de carvão e chumbo usada para contornar os olhos de preto. Seu cuidado minucioso com a aparência reafirmava, já no século 1 a.C., a maquiagem como um acessório fundamental na rotina feminina – e também masculina. Desde sua invenção, os cosméticos evoluem no mesmo compasso das transformações sociais. Na França pré-revolucionária, eles marcaram os rostos, exageradamente pintados, de homens e mulheres. Em meio às re-

pressões inglesas do século 18, davam o tom esbranquiçado da pele, principalmente a do rosto – na Idade Média, era comum o uso de sanguessugas para retirar o “excesso” de sangue da face. Em 1770, o Parlamento inglês se armou contra os artifícios sedutores da maquiagem. Na descrição de uma lei (vetada), eles diziam que as mulheres que “seduzirem ou atraírem ao matrimônio qualquer súdito de Sua Majestade por meio de perfumes, pinturas, cosméticos [...] ficam sujeitas à penalidade da lei que agora entra em vigor contra a bruxaria”. Mas, em 1906, o culto às peles alvas iria por terra com os pós de arroz em tons de bege. A maquiagem, então, mais uma vez se transformava. Daí em diante, ela evitaria o ostracismo se renovando sempre: batons, blushes e sombras se revezariam em uma infinidade de cores.

4000 A.C.

3150 A.C.

776 A.C.

Os povos da Mesopotâmia (atual Iraque) usam o kohl para unir as sobrancelhas, o sulfito de antimônio (pó escuro e tóxico) como sombra, o açafrão para colorir unhas e a terra vermelha com frutas silvestres (também vermelhas) maceradas como blush. Os olhos são marcados como os de Inanna, a deusa da fertilidade do povo sumério.

Cremes à base de giz e óleo de oliva davam um tom alvo à pele, acentuado pela pintura das veias do peito, têmporas e pescoço com índigo (corante azul). Homens e mulheres aumentavam os olhos com kohl, como os da rainha Nefertiti. Havia o ocre, para lábios e maçãs do rosto, e o carbonato de cobre, que dava um tom verde às pálpebras.

Na Antiguidade clássica, a maquiagem feita à base de óleos naturais, sem fixadores como os de hoje, brigava com o calor do verão mediterrâneo. Um texto creditado ao romano Ovídio ressalta os exageros: “Como não sentir repugnância diante da pintura espessa se dissolvendo e escorrendo até seus seios?”. O objetivo era ter uma pele tão clara quanto a da poetisa Safo de Lesbos.

AVENTURAS NA HISTÓRIA


2010 A cosmetologia busca embelezar ao mesmo tempo em que trata da pele de homens e mulheres, usando produtos como bases com filtro solar e até batons hidratantes. A ideia é unir a função estética da maquiagem com a proteção aos efeitos de radiação, calor ou frio intensos ou usar o cosmético para ajudar a corrigir imperfeições da pele.

1945 A maquiagem muda de maneira rápida: lábios vermelhos no pós-guerra e tons pastel nos anos 1960. Na era Disco, rosa, azul e verde dão cor às sombras. Em 1980, chegam os cosméticos de longa duração.

1904 A ciência entra em ação quando o polonês Max Factor, químico profissional, abre sua loja de maquiagem. A partir daí, ele e o filho criam as versões atuais do gloss, da base e do pancake. Em Paris, surge o batom em bastão, em 1921, e as melindrosas abusam do rímel e pintam a boca em forma de coração.

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As mulheres da nobreza usavam máscaras de farinha de trigo, mel, óleo e sanguessugas para clarear a pele – já os homens de Roma se cobriam com pós brancos à base de farinha ou cal. No rosto, passavam pós de alvaiade (feito de minérios) e acentuavam as veias com índigo. Bochechas e lábios eram rosados. A cor, ligada à noção de pecado, não era bem-vista no Ocidente.

A rainha Catarina de Médici foi a responsável por popularizar a maquiagem na França do Renascimento. Era costume abusar do alvaiade, do índigo e de ruges de zarcão (um composto químico de chumbo). Mulheres raspavam as sobrancelhas para redesenhá-las.

O maquiador particular de Maria Antonieta cria nove tonalidades de ruge exclusivas para a rainha. A cochonilha (um corante de cor carmim), retirada de um inseto de mesmo nome, se tornou a base principal para o tom. Já o pó facial passou a ser feito com subnitrato de bismuto.

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ILUSTRADA

CASSINO DA URCA COM CARMEN MIRANDA NO PALCO E WALT DISNEY NA PLATEIA, O LOCAL ATRAÍA A ELITE DO PAÍS POR JUAN TORRES

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prédio imponente localizado em um recôncavo no bairro da Urca, no Rio de Janeiro, esconde um passado rico. Fechado por anos, as paredes descascadas e as janelas quebradas não faziam justiça ao lugar que já abrigou o Cassino da Urca. Entre 1936 e 1946, desfilou por ali toda a elite brasileira, que circulava ao lado de visitantes ilustres, como Walt Disney (1901-1966). Além dos salões de jogos, o local tinha um teatro onde Carmen Miranda (1909-1955) se apresentava semanalmente entre 1936 e 1940.

“Os homens levavam as amantes de carteirinha”, disse Mario Rolla, sobrinho do dono do cassino, Joaquim Rolla (1899-1972). Em 1946, depois que, a pedido da esposa, dona Carmela, o presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) proibiu os jogos no país, o cassino encerrou as atividades. O lugar ficou vazio até 1950, quando foi comprado pela TV Tupi. Em 1980, voltou a ser fechado. E assim permaneceu até 2006, quando o Istituto Europeo di Design começou a restaurá-lo para instalar ali sua sede no Brasil.

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PISTA DE DANÇA

ILUSTRAÇÃO RUBENS PAIVA

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AVENIDA JOÃO ALVES

BANHEIROS DE PRAIA


No cardápio, destaque para preparos franceses. As mesas tinham pratos de porcelana e talheres de prata pesada. Na disputa pelos agrados dos garçons, os clientes, sempre de paletó e gravata, exageravam nas gorjetas.

O prédio da frente tinha três grandes salões com vista para a praia. Os frequentadores dessa área costumavam chegar de bonde, desciam na Avenida Pasteur e caminhavam por volta de 1 quilômetro até o local.

Com cenografia de Luiz de Barros (1893-1982), o palco tinha plataformas e elevadores, para que uma orquestra saísse enquanto a outra entrava. O teatro comportava apenas 50 pessoas, mas podia ser ampliado para os grandes bailes.

Os frequentadores do prédio da frente não eram bobos. Mesmo sem ingresso para o teatro, eles davam um jeito de curtir os espetáculos. A passarela dava acesso a uma galeria, onde bastava esticar o pescoço para conseguir ver as apresentações.

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O cassino era formado por duas estruturas, unidas por uma passarela. As apostas pesadas aconteciam numa sala reservada. Para os jogadores azarados, sempre havia agiotas dispostos a comprar relógios e anéis.

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Os grandes apostadores eram muito bem tratados. Além de estacionarem seus carros na porta, eles tinham direito a uma conexão especial com o Cassino de Icaraí, que ficava em Niterói. Bastava pegar um barco no píer em frente ao local.

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5 ROLETAS

SALÃO DE JOGOS

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INFLUENZA MORTALIS EPIDEMIAS


INVISÍVEL E MICROSCÓPICO, O VÍRUS DA GRIPE ATERRORIZA A HUMANIDADE HÁ MILÊNIOS. DA CANJA DE GALINHA AOS ATUAIS REMÉDIOS, MUITOS TRATAMENTOS JÁ FORAM USADOS, MAS A DOENÇA CONTINUA IMBATÍVEL POR ÁLVARO OPPERMANN

E

m setembro de 1918, o mundo descobriu, atemorizado, um inimigo mortífero. Já não bastassem os horrores da Primeira Guerra Mundial, milhões de pessoas foram dizimadas por outra causa. A humanidade estava sendo atacada pela gripe espanhola – pelo menos um quinto da população mundial contraiu a doença –, e não sabia como se defender. Os sintomas eram violentos. O doente sentia dor de cabeça e era tomado por calafrios tão intensos que os cobertores se tornavam inúteis. Depois começava a tossir sangue e os pés ficavam pretos. Quando os pulmões se enchiam de uma mistura de secreções, era o fim. E tudo isso ocorria com velocidade assustadora: da saúde ao óbito, passavam-se poucos dias, ou mesmo horas. “Pessoas saíam de manhã para trabalhar e não retornavam”, escreveu a jornalista científica americana Gina Kolata em seu livro Gripe: A História da Pandemia de 1918. Sozinha, a gripe espanhola devastou populações inteiras, matando de 30 milhões a 100 milhões de pessoas. Mais que a Primeira Guerra, que deixou 10 milhões de vítimas fatais.

FÚRIA ESPANHOLA Alguns historiadores acham, inclusive, que a guerra de 1914-1918 pode ter terminado mais cedo por falta de soldados. E o fim do conflito, aliás, não significou o fim da pandemia: a Alemanha, derrotada, recebia de volta 6 milhões de ex-soldados desmoralizados e famintos. Isso sem falar em outras regiões do mundo, como África, Índia e China, onde a ausência de dados tornava impossível avaliar a extensão da hecatombe. No Alasca, populações foram dizimadas pelo mal que os esquimós acreditavam ser causado por um “espírito branco”. Em Londres, cartazes afixados nos teatros proibiam expressamente tossir. E, nos Estados Unidos, o costume de apertar as mãos foi praticamente abandonado. A doença se propagou em duas gigantescas ondas: a primeira, na primavera e no verão de 1918. Nessa fase, a gripe era muito contagiosa, mas causou relativamente poucas mortes. Em agosto, contudo, uma forma altamente virulenta da doença disseminou-se pelo mundo, cheAVENTURAS NA HISTÓRIA

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EPIDEMIAS

gando ao auge nos meses de setembro a novembro (ou seja, o outono do Hemisfério Norte). A curva que mostrava os óbitos por faixas etárias tinha a forma de um W, com três picos, um correspondendo a crianças pequenas, outro a adultos jovens (o que era uma novidade; pensava-se que esse era um grupo mais resistente) e um terceiro, que era o dos idosos. Nos Estados Unidos a expectativa de vida, isto é, o número de anos que uma pessoa pode esperar viver desde o nascimento, foi reduzida em dez anos. Os brasileiros foram atingidos pela gripe antes mesmo que a doença chegasse ao país. Uma divisão que o governo enviara de navio para participar da guerra adoeceu enquanto a esquadra que transportava os militares estava ancorada em Dacar, Senegal: 156 mortos. E o país não poderia escapar à espanhola. Ainda que as viagens aéreas não fossem comuns à época, muita gente viajava de navio, e o país estava recebendo então grandes contingentes migratórios. Em setembro de 1918 chegava um navio com imi26

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grantes vindos da Espanha, vários com sintomas de gripe. Outros navios foram apontados, entre eles o inglês Demerara, que atracou em Recife e Salvador, mas o certo é que no início de novembro de 1918 a doença já estava no Brasil. As cidades portuárias foram as que mais sofreram. “Já morrem 24 pessoas por dia em Coritiba”, dizia uma manchete do dia 14 de outubro. Na mesma data, um anúncio: “Precisa-se de dois cocheiros na Empreza Funerária de P. Falce”. Essas manchetes dos jornais da época, reproduzidas no livro O Mez da Grippe (assim mesmo, com essa grafia), de Valêncio Xavier, dão uma ideia do quadro assustador. A reação entre os curitibanos foi de pânico e, por isso, as notícias a respeito foram censuradas. O livro mostra a primeira página do jornal Diário da Tarde, em que, de um artigo sobre “A Influenza”, só ficou o título – o resto está em branco. Já o Commercio do Paraná adotou uma atitude diferente; a epidemia seria apenas uma gripe comum. Mas teve de admitir, em 25 de outubro: “A nossa edição de hontem saiu muito aquem da expectativa em consequência de terem adoecido operários da secção da composição, obrigando-nos assim ao sacrifício de matéria redaccional cuja inserção foi absolutamente impossível”. Em outras cidades a repercussão não foi menor. A imprensa carioca estava cheia de notícias alarmantes – e de protestos contra as autoridades sanitárias, consideradas omissas: “O que se está passando na Saúde do Porto da nossa capital é simplesmente assombroso. Os navios entram infeccionados, os passageiros e tripulantes atacados saltam livremente, contribuindo para contaminar cada vez mais a cidade, não sofrendo os navios o mais rudimentar expurgo!”. Telegramas chegados havia dias de estados do Norte anunciaram detalhadamente dezenas de casos de “influenza hespanhola” ocorridos a bordo da “Itassucê”. Era o caso de o Sr. Carlos Seidl tomar providências para isolar os enfermos e expurgar o navio, mal chegasse ele a Guanabara, se levasse a sério seus deveres. Nada disso, entretanto, aconteceu. O “Itassucê” chegou, foi desimpedido, e os doentes desceram calmamente à terra, sem que o diretor da Saúde Pública mandasse tomar


a mínima providência!” (Rio Jornal, 11 de outubro de 1918). Ou esta outra notícia: “Em todas as ruas, e todas as horas, vemos cahir subitamente, tombar sobre a calçada victimas do mal estranho. Os hospitais estão repletos.” (Rio Jornal, 14 de outubro de 1918). A criticada “medicina oficial”, como aconteceu com as autoridades em Curitiba, tentava minimizar o problema e evitar o pânico. Mas, no final de 1918, a gripe era, no Brasil e no mundo, uma realidade brutal.

O FANTASMA RETORNA Ainda é cedo para saber como será o desdobramento do atual surto de coronavírus (Covid-19) em vários países. Mas, a cada nova pandemia, o fantasma de 1918 retorna. E com bons motivos: os métodos de transmissão só foram identificados décadas depois, e ainda não se conhece a receita para interromper uma crise da doença, que parece ter se tornado mais fatal no século 20 (veja o quadro na página 29). A primeira referência à gripe na História foi feita por Hipócrates. O médico grego relatou em 412 a.C. que uma doença respiratória atacou de forma epidêmica a Grécia e em poucas semanas

EM 1918, AUTORIDADES TENTAVAM MINIMIZAR A GRIPE ESPANHOLA E EVITAR O PÂNICO matou centenas. Foram os gregos que cunharam a palavra “epidemia” para as doenças infecciosas que se abatem sobre grande número de pessoas em uma localidade. A expressão vinha de epidemos, indivíduos que não moravam nas cidades. “O médico [Hipócrates] fez tal comparação porque as doenças infecciosas não eram da região e iam embora”, escreveu o médico Stefan Cunha Ujvari em A História e Suas Epidemias. A epidemia de gripe só reapareceu em 1173 e o primeiro caso sério veio no século 16. Em 1580, uma pandemia se alastrou pela Europa a partir da Espanha. Os agentes do contágio teriam sido os soldados do rei Felipe II (1527-1598). No século 18, três novos grandes surtos provocaram o surgimento do termo “influenza”. Muitas teorias versam sobre a origem do nome, da influência dos astros à interferência do frio (já que a gripe é mais comum no inverno). Em 1837, a com-


EPIDEMIAS

EM LONDRES, BANHOS QUENTES E VINHO ERAM RECOMENDADOS COMO TRATAMENTO CERTEIRO

ficou popular o uso do quinino e purgantes. Nem um nem outro tinham efeito algum sobre a doença. O quinino era usado para a malária, que, sabe-se hoje, é causada por protozoário, não por vírus. Os purgantes, por sua vez, só funcionavam para causar uma bela dor de barriga no doente, que já estava debilitado. A Diretoria-Geral de Saúde Pública, em 1918, também indicava canja de galinha. Resultado: grandes armazéns no Rio de Janeiro e em São Paulo foram saqueados pela população em busca do frango salvador. A primeira vacina surgiria em 1945, nos Estados Unidos, feita de vírus mortos. As vacinas se popularizaram nos anos 1960, mas só em 2003 foi aprovado o uso de vírus vivos.

A DESCOBERTA DO VÍRUS Graças ao microscópio, o estudo das causas e dos tratamentos só ganhou rigor científico no século 20. No século 19, já se conheciam as bactérias, mas o vírus da influenza A seria isolado apenas em 1933, pelos cientistas Wilson Smith, Christopher Andrews e Patrick Laidlaw. A versão B foi identificada em 1939, e a C em 1950. Essas letras, A, B e C, foram criadas nos anos 1950 para

IMAGENS GETTY IMAGES

binação de doença e baixas temperaturas foi tão séria em Berlim que, em janeiro, o número de mortos pela gripe excedeu o de recém-nascidos. As pandemias de gripe atravessaram o tempo, os vírus sofreram mutações e os tratamentos também mudaram muito desde a época de Hipócrates, que, no século 5, prescrevia sangrias. Adepto da teoria clássica dos humores (secreções do corpo), ele dizia que a sangria eliminaria o fluxo sanguíneo excessivo, o suposto causador da doença. Tal tratamento foi amplamente utilizado pelos médicos até o fim do século 19. Porém, ele nem de longe era o mais bizarro. No século 18, médicos franceses garantiam que a gripe era causada pelo excesso de relações sexuais e recomendavam a castidade. Em Londres, do fim do século 19 até a década de 1920, os banhos quentes e o vinho eram recomendados como tratamento certeiro. No Brasil, em 1918,


identificar os três tipos que existem: a C é a comum, a B é a típica gripe de inverno, que ataca especialmente as crianças, e a A é selvagem e perigosa – um verdadeiro peso-pesado. O habitat natural do vírus A, causador das grandes pandemias, é o mesmo dos patos e de outras aves aquáticas. Ele também pode viver em mamíferos como porcos, cavalos, baleias e leões-marinhos. Isso explica por que se costuma dizer que uma gripe é “suína” ou “aviária”. O apelido indica a origem do vírus A. Quando Smith isolou o micro-organismo, na década de 1930, notou que ele tinha uma estrutura muito simples. “É constituído apenas do seu material genético, seja DNA, seja RNA. Ao contrário das bactérias, não tem o maquinário necessário para reprodução”, afirmou Stefan Cunha Ujvari. Por isso, precisa, necessariamente, viver dentro de um hospedeiro. Ele invade as células e lá dentro faz cópias exatas de si mesmo. É a forma de se replicar. Os vírus têm extrema dificuldade de saltar de uma ave para um ser humano. Porém, conseguem fazer essa migração utilizando os porcos como “escala”. Foi isso que aconteceu em 1918, segundo a teoria de dois eminentes professores de virologia, Robert Webster e Kennedy Shortridge. O causador da gripe espanhola, dizem eles, começou provavelmente em uma ave, foi transmitido a um porco, que por sua vez infectou pessoas – razão pela qual os sobreviventes da epidemia tinham anticorpos da gripe suína. De acordo com Shortridge, foi na China, um milênio antes da era atual, que os plantadores de arroz começaram a criar porcos junto com patos. “Foi a oportunidade ideal para o vírus saltar para nós”, disse o cientista. Devemos ficar bravos com os porcos? Bem, se eles pudessem entender de virologia, também teriam motivo para ficar irritados conosco. Afinal, esses bichos também pegam gripe dos seres humanos. No início de maio de 2009, cientistas investigavam o caso de um fazendeiro de Alberta, no Canadá, que teria transmitido a gripe para sua criação de porcos: cerca de 200 animais foram contaminados após ele passar uma temporada no México, onde contraiu o vírus originado em outros porcos. Com isso, o ciclo se fecha.

VÍRUS MORTAIS As cinco maiores epidemias da História recente GRIPE RUSSA 1889-1890 Sintomas: febre e pneumonia. Propagação: carregada pelo vento e pelas linhas de trens. Em 15 dias atravessou a Rússia. Mortos: 1,5 milhão Tratamento: achavam que banhos quentes e vinho eram remédios. Durante o surto, casas de banho ficaram populares em Londres. GRIPE ESPANHOLA 1918-1919 Sintomas: pneumonia viral, sangramentos e calafrios. Propagação: chegou às Américas por navio. Mortos: de 30 milhões a 100 milhões Tratamento: na Europa, cidades ficaram de quarentena. No Brasil, receitava-se sulfato de quinino, limonada purgativa, chá de canela e canja de galinha. GRIPE ASIÁTICA 1957-1958 Sintomas: febre, dor de cabeça e cansaço. Propagação: devagar, por terra e por mar, com surtos localizados. Mortos: 2 milhões Tratamento: a tecnologia da época permitiu a fabricação de vacinas, porém não em quantidade suficiente.

GRIPE DE HONG KONG 1968-1969 Sintomas: febre alta, dor nas articulações e cansaço. Propagação: carro, trem, navio e avião. Os voos intercontinentais foram um fator decisivo. Mortos: 1 milhão Tratamento: antibióticos e vacina. GRIPE AVIÁRIA 1997/2004 Sintomas: febre alta, tosse, dor de garganta. Propagação: em 1997, 18 pessoas foram infectadas por frangos. Depois o vírus sofreu mutação e se espalhou através das aves. Mortos: 300 Tratamento: sacrifício de 1,5 milhão de frangos em Hong Kong e vacina. EBOLA 1995/2000/2007/2014 Sintomas: febre, fraqueza, calafrios, dor de cabeça, de garganta e nas articulações. Propagação: os surtos ocorreram principalmente em regiões tropicais da África subsaariana. Mortos: 11 mil Tratamento: hidratação, controle da pressão arterial, dos níveis de oxigenação no sangue e também das complicações infecciosas que possam surgir.

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CAPA

OS MILAGRES DE

JOANA

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D’ARC

DAS CINZAS DE SUA CONDENAÇÃO À FOGUEIRA, POR HERESIA, A “VIRGEM GUERREIRA” RESSURGIU COMO SÍMBOLO NACIONAL DA FRANÇA, ÍCONE FEMINISTA, FENÔMENO POP E – HÁ EXATOS 100 ANOS – SANTA DA IGREJA CATÓLICA POR ALEXANDRE CARVALHO


CAPA

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rimeira Guerra Mundial. Um holofote alemão projetava luz no céu, procurando aviões inimigos. Os mais crentes entre as tropas da França nas proximidades entenderam aquelas nuvens, subitamente iluminadas, como um sinal místico: era sua padroeira, Joana d’Arc, que surgia no breu da noite para reforçar o moral dos soldados, exaltando sua luta e levando-os à glória. No conf lito (1914-1918), era comum entre os combatentes franceses carregar consigo uma imagem da adolescente camponesa que, desafiando toda a lógica, liderara exércitos vitoriosos contra os ingleses... 500 anos antes. Uma devoção longeva que ultrapassava as fronteiras de seu país: nos Estados Unidos, no mesmo período, um pôster com a imagem de Joana, de armadura e espada empunhada – e equivocadamente com cabelos

do fogo “purificador”, renunciou às visões divinas que a levaram à guerra e à prisão – ainda que, apenas três dias depois, tenha se arrependido e declarado que mentiu para escapar da fogueira, preferindo a sentença de morte à negação de sua verdade íntima, sagrada. Há também um detalhe que pode parecer tolo para o nosso mundo contemporâneo, mas talvez fosse um obstáculo à canonização nos primeiros anos do século 20: Joana foi adepta do crossdressing. Embora não haja registro de que sentisse atração sexual por outras mulheres, ela se vestia como homem e cortava os cabelos curtos, como homem. À época de seu julgamento, o travestismo se impunha entre os aspectos que mais incomodaram os religiosos que a julgaram. O Livro do Deuteronômio, do Velho Testamento, estabelece que uma mulher vestida com roupas masculinas é “uma abomi-

O PRIMEIRO GRANDE TRIUNFO MILITAR DA MENINA, GUIADA POR VOZES DO CÉU, FOI LIBERTAR SUA CIDADE DO DOMÍNIO INGLÊS compridos –, era usado pelo Departamento do Tesouro para pedir que as americanas comprassem selos do governo, de modo a gerar fundos para os esforços de guerra. Aos olhos de boa parte do mundo ocidental, a virgem guerreira era uma inspiração, ideal de coragem e também de pureza. Uma percepção que não passou despercebida pelo Vaticano, que, após um processo que levaria mais de cinco décadas, a incluiu em sua preciosa lista de santos do catolicismo em 1920. Joana d’Arc não era, sob uma perspectiva menos liberal, o padrão de candidata à canonização. A Igreja Católica nunca foi conhecida por admitir seus erros, e a menina francesa havia sido queimada viva após condenação como herege por um tribunal eclesiástico. Além disso, diferentemente de tantos mártires cristãos que enfrentaram seus suplícios com inabalável resignação, Joana se abalou. Por medo 32

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nação para o Senhor”. Mesmo assim, Joana d’Arc era unanimidade entre o povo europeu. Principalmente na França, e especialmente entre os cidadãos de Orléans, que nunca se esqueceram: o primeiro grande triunfo militar daquela menina, guiada por vozes do céu, foi libertar sua cidade do domínio inglês.

HEROÍNA DE UM TEMPO DE FÉ Joana viveu no epílogo da Idade Média, e os conflitos bélicos que determinaram sua ascensão e queda entraram no bolo de disputas que os historiadores chamaram de Guerra dos 100 Anos – que opôs, principalmente, os reinos da Inglaterra e da França. E não é lenda: as vitórias da jovem foram decisivas para o final da guerra. Abriram caminho para a coroação do rei Carlos VII, o grande vencedor do último período de conflitos, que expulsou os ingleses e restabeleceu o domínio francês em seu pró-


prio país. Mas não foram soldados da Inglaterra que aprisionaram a jovem, nem religiosos de língua inglesa que a julgaram: foram seus próprios conterrâneos. Isso porque, naquela época, o solo francês era campo de batalhas não apenas com os que vinham do outro lado do Canal da Mancha. Havia guerra civil entre os burgúndios (de Borgonha) e os armagnacs (confederação que unia nobres da região homônima e de Orléans). Tomar partido de um desses lados, como fez Joana, não era simplesmente canalizar um ódio ao invasor estrangeiro – era também se opor a outros grupos de um território fragmentado, numa época em que o nacionalismo ainda engatinhava diante do poder das dinastias. “O que significava ser ‘francês’ era intensamente questionado durante esses anos”, explica Helen Castor, historiadora especializada na Inglaterra medieval e autora de Joana d’Arc: A Surpreendente Heroína Que Comandou o Exército Francês (editora Gutenberg). “A guerra civil ameaçou a identidade da França geográfica, política e espiritualmente; e a percepção de Joana sobre quem eram os franceses, a quem Deus agora pretendia conceder a vitória através de sua missão, não era compartilhada por muitos de seus compatriotas.” Para a adolescente – ou para as vozes celestiais que a inspiravam –, o verdadeiro espírito francês tinha de ser liderado pelo delfim Carlos, da Casa de Valois, apoiado pelos armagnacs. Delfim era o título do herdeiro da Coroa francesa, mas esse nobre, apesar de filho do rei Carlos VI (“o louco”), tinha seu direito ao trono contestado tanto por seus inimigos de guerra civil quanto pelos ingleses. Quando seu pai morreu, apenas os armagnacs reconheceram a realeza do descendente. Dois terços da França obedeciam a Henrique VI, da Inglaterra – sim, um rei inglês no trono francês –, que contava com o apoio dos burgúndios. Para piorar a situação, a cidade de Reims, em cuja catedral os reis da França eram tradicionalmente coroados, estava fora dos domínios dos aliados de Carlos. Até que a história começou a mudar em 23 de fevereiro de 1429. Foi nessa data AVENTURAS NA HISTÓRIA

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SANTA LOUCURA Para a sorte dos historiadores, as transcrições do julgamento de Joana d’Arc, em 1431, foram preservadas e chegaram aos tempos modernos. Graças a isso, temos as palavras da própria heroína da França. Numa delas, há sua resposta a respeito das vozes celestiais às quais dizia obedecer: “Eu tinha 13 anos quando ouvi a voz de Deus para a minha ajuda e orientação. Na primeira vez em que ouvi, fiquei com muito medo. Ouvi essa voz à minha direita. Raramente eu ouço sem que a voz esteja acompanhada de uma luz. A luz sempre surge do mesmo lado que a voz”. Joana dizia ainda que recebia mensagens de Deus intermediadas por São Miguel Arcanjo, Santa Catarina e Santa Margarida, que apareciam em visões. Afirmava que sabia até que esses santos torciam pela vitória da França na Guerra dos 100 Anos. Hoje, a ciência tem suas apostas a respeito da capacidade milagrosa de ouvir santos. Um estudo atual das universidades de Bolonha e Foggia, na Itália, com base numa extensa análise dos documentos do processo de condenação da jovem medieval, chegou à seguinte conclusão: Joana sofria de epilepsia idiopática parcial, um distúrbio que afeta a região do cérebro responsável pela audição. Segundo os pesquisadores, a descrição dos episódios sugere que a menina tinha alucinações audiovisuais características da epilepsia. Sem um diagnóstico (a psiquiatria e a neurologia nem existiam ainda), Joana d’Arc supôs que as visões tinham caráter de missão divina – uma intuição relacionada à sua criação religiosa.

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


que um pequeno grupo de homens armados chegou ao Castelo de Chinon, onde o príncipe se exilava, fazendo a escolta de uma jovem de cabelos curtos, vestida como rapaz. Vinha sob ordens de um capitão do exército que deu ouvidos ao extraordinário segredo daquela moça: ela era enviada por Deus. Sob Seu comando, iria conduzir Carlos à coroação que lhe era de direito. E salvar a França. Hoje parece mais surpreendente ainda que aquela camponesa, proveniente do vilarejo de Domrémy, tenha conseguido uma audiência com o delfim. E mais: que esse príncipe tenha dado atenção ao que ela dizia, a ponto de lhe conceder um exército. Mas ter um sinal dos céus a seu favor, na época, era um milagre tão transformador que um candidato a rei hesitava em deixar qualquer profeta de lado. “A suposição de uma profecia era das poucas ma-

cês numericamente bem superior foi arrasado pelos ingleses, comandados por Henrique V – monarca guerreiro que viraria até personagem de Shakespeare. A chegada de Joana, então, alegando que ouvira de São Miguel Arcanjo, Santa Catarina e Santa Margarida que Deus estava ao lado do delfim de Valois, tinha um simbolismo que impressionou não apenas o candidato ao trono – mexeu com o moral dos soldados de tal forma que resultou em vitórias inimagináveis no campo de batalha. E foi a primeira, quando Joana d’Arc recuperou uma área estratégica, havia meses imobilizada pelos ingleses, que acabou com qualquer dúvida: Deus estava mesmo ao lado dela.

A MAIOR DAS VITÓRIAS Para ter uma ideia do quão milagroso foi o triunfo de Joana d’Arc, ao libertar os franceses

A SUPOSIÇÃO DE UMA PROFECIA ERA DAS POUCAS FORMAS PELAS QUAIS AS MULHERES PODIAM FALAR COM AUTORIDADE PÚBLICA neiras pelas quais as mulheres medievais podiam falar com autoridade pública, certas de serem ouvidas”, explica a autora americana Mary Gordon, biógrafa de Joana d’Arc. O fervor religioso no século 15 era tanto que se acreditava que Clóvis (466-511), o primeiro rei bárbaro a se tornar católico após a queda do Império Romano do Ocidente, considerado fundador da França, teria recebido diretamente de Deus a “santa ampola” – um frasco que conteria óleo sagrado, usado para ungir cada rei francês durante a coroação em Reims. “O trauma mais dolorido da França na década de 1420”, aponta Helen Castor, “era que sua posição social profundamente internalizada como o reino ‘mais cristão’ tinha sido desafiada pela carnificina da guerra civil e a derrota esmagadora perante os ingleses”. A historiadora se refere à Batalha de Azincourt, travada em 1415, no norte da França, quando um exército fran-

de Orléans de um cerco inglês que já durava meio ano, é importante ter o histórico. Apenas dois meses antes do feito da virgem guerreira, um exército dos armagnacs, reforçado por tropas escocesas, tentou a mesma coisa e tomou uma sova dos ingleses: mais de 400 morreram entre os defensores de Carlos, enquanto só quatro ingleses perderam a vida. Era para esse lugar que o delfim estava mandando a camponesa iluminada em sua primeira missão. E havia motivos para isso. Quando Joana se apresentou como enviada de Deus, obstinada em sua missão divina de levar Carlos para ser coroado em Reims, logo lhe mostraram um obstáculo logístico: entre Chinon, onde vivia o príncipe, e o local tradicional da coroação, havia no meio do caminho a cidade de Orléans, sitiada pelos ingleses. Isso não seria problema, respondeu Joana, ela mesma derrubaria o cerco – desde que lhe desAVENTURAS NA HISTÓRIA

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sem um exército. Para Carlos, era uma proposta razoável. Os recursos envolvidos numa tentativa de socorrer Orléans seriam limitados, diferentemente de uma grande guerra. Além disso, a missão seria um teste prático a verificar se a inspiração daquela menina realmente vinha do céu, e se era um milagre a seu favor. Então, no dia 22 de março, Joana ditou uma carta que devia ser enviada ao inimigo inglês – ditou porque, lembremos, não sabia escrever. Nessa mensagem, ela deu início ao costume de se referir a si própria, em terceira pessoa, como la Pucelle (a Donzela), uma alusão a sua mocidade e também à pureza. “Era notório e perfeitamente certo que o Diabo não podia fazer pacto com uma virgem”, afirmou o filósofo e historiador francês Jules Michelet (1798-1874). A carta de Joana tinha a altivez de quem realmente se acreditava invencível. “Restituam

Os ingleses zombaram mais ainda quando Joana chegou com um estranho exército, que mais parecia uma procissão. A primeira coisa que viram foram sacerdotes, carregando um estandarte da crucificação e cantando o hino Veni Creator Spiritus (“Venha, Espírito Santo”). Só então vinham os soldados e, entre eles, havia uma adolescente vestida como homem. Os sitiadores de Orléans explodiam em escárnio e insultos profanos. Chamavam a Donzela de prostituta – embora acreditassem mais que fosse uma bruxa ou maluca. Quando a batalha começou, os franceses não viram Joana d’Arc empunhando uma espada ou qualquer outra arma. Ela só carregava uma bandeira, orientava o caminho das tropas e, principalmente, estimulava os soldados. Logo passou a impressão a todos de que era mesmo uma jovem abençoada, um sinal divino

NÃO FORAM OS SOLDADOS E RELIGIOSOS INGLESES QUE PRENDERAM E JULGARAM A JOVEM, MAS SEUS PRÓPRIOS CONTERRÂNEOS à Donzela, que aqui é enviada por Deus, as chaves de todas as belas cidades que vocês tomaram e violaram na França. Rei da Inglaterra, se não fizer o que peço, onde quer que eu encontre seus homens, eu os farei sair e, se eles não me obedecerem, eu os matarei. Sou enviada por Deus, o rei dos céus, para enfrentar vocês face a face e expulsá-los de toda a França.” Falando de igual para igual com o monarca inglês, essa adolescente concluiu o recado garantindo que, se os ingleses se recusassem a ouvi-la agora, a Donzela bradaria um grito de guerra maior do que a França tinha ouvido em mil anos. Quem não riu da petulância daquela menina ficou profundamente impressionado. O desprezo pela jovem moça prevaleceu, e Joana d’Arc decidiu que não tinha outra escolha a não ser dar início à batalha. Então, na noite de 25 de abril, ela adormeceu já vestida com sua armadura. 36

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de que a vitória era certa – e que, se eles perdessem a vida lutando, seria executando a obra de Deus. Essa impressão era tão profunda que, anos depois, dois dos militares que a acompanhavam admitiram ter visto seus seios (“eram belos”) e as pernas nuas em uma troca de roupa, mas declararam que a visão não lhes despertou nenhum impulso carnal “diante de alguém tão sagrada”. A luta durou muito menos do que qualquer um poderia imaginar. Apenas quatro dias de batalha – lembrando que se tratava de um cerco que não caía havia seis meses. Num momento mais difícil do combate, Joana foi atingida por uma flecha entre seu pescoço e o ombro. Os soldados a viram cambaleando, ensanguentada, e por um momento imaginaram que não seria a vontade de Deus que eles vencessem. Um dos comandantes franceses ensaiou ordenar o recuo das tropas, mas Joana o impediu.


Então, numa reação incrível, avançou sozinha, sangrando, contra uma torre dominada pelos ingleses, levantando bem alto o estandarte. Foi quando seus liderados imediatamente perceberam: a menina era protegida dos céus. Então eles mesmos teriam corpo fechado. Irromperam num entusiasmo que jamais poderia ser contido, abateram o capitão inglês, Sir William Glasdale, e deixaram os soldados ingleses desnorteados e sem líder. Não demorou para que a vitória fosse proclamada. Contra todos os prognósticos, Joana d’Arc derrubava o cerco de Orléans – uma batalha-chave, que precipitou o final da Guerra dos 100 Anos. Por todo o simbolismo que esse triunfo trazia consigo, a notícia logo se espalhou. Tanto que, em Roma, no mesmo ano de 1429, o bispo Jean Dupuy acrescentou às pressas um novo capítulo à sua Breve História do Mundo, para descrever “a donzela chamada Joana, que realiza ações que parecem mais divinas que humanas”. Essa foi apenas a primeira de uma série de grandes vitórias, que levariam à coroação de Carlos VII em Reims – ocasião na qual Joana se ajoelhou aos seus pés, chorando, para dizer profundamente: “Nobre rei, a vontade de Deus está feita”. A adolescente não adivinhava, então, a reviravolta por vir. Uma vez coroado, Carlos começou a pensar na menina iluminada mais como uma inconveniência do que uma salvação. Afinal, chegou um momento em que expulsar os ingleses da França seria mais uma questão de diplomacia – conquistar a Borgonha para o seu lado – do que o pesado investimento militar. Como Joana não se conformava com a hesitação em varrer de vez os ingleses de seu país, o monarca foi lhe dando missões menos importantes – ou de vitórias inviáveis, como a libertação de Paris – e tropas de menor poderio. Foi nessa nova sequência malfadada que ela acabaria capturada por burgúndios – os franceses que eram seus inimigos na guerra civil, aliados dos ingleses. Como Carlos não empreendeu grandes esforços para negociar a liberdade de sua líder, o destino da heroína da França foi aquele que a História já contou e AVENTURAS NA HISTÓRIA

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IMAGENS HERITAGE. UNIVERSAL IMAGES GROUP / GETTY IMAGES

GAROTA-PROPAGANDA DO FEMINISMO Ela foi uma mulher à frente do seu tempo. Mas não estamos falando de Joana d’Arc. Ainda. E sim de Cristina de Pisano (1364-1430), escritora italiana que se mudou jovem para Paris, quando o pai ganhou emprego de astrólogo do rei Carlos V. Cristina descobriu um ganha-pão na escrita – atividade masculina na época – quando o marido morreu. E revolucionou a literatura ao lançar A Cidade das Mulheres, no qual exalta personagens femininas notáveis da História – uma obra protofeminista, contra a misoginia do fim da Idade Média. Depois, com a guerra civil e a invasão inglesa, partiu para um retiro religioso. Só voltaria a escrever 11 anos depois, em 1429, então para exaltar as conquistas de outra mulher extraordinária, sua contemporânea: agora, sim, Joana d’Arc. Segundo a autora, ninguém mais podia duvidar da consideração de Deus pelas mulheres, uma vez que Ele havia escolhido, como instrumento de Sua vontade, uma jovem humilde, e dado a ela “um coração maior que o de qualquer homem”. Joana seria retratada como amazona – virgem guerreira da mitologia grega – antes de se tornar ícone feminista no começo do século 20. Virou garota-propaganda das sufragistas inglesas, que expunham sua imagem de mulher capaz de tudo para reivindicar o acesso ao voto. Um pôster de 1912, da União Social e Política das Mulheres (WSPU, na sigla em inglês), exibia uma Joana d’Arc de armadura, empunhando a bandeira das suffragettes e exigindo direitos iguais.


recontou: o julgamento religioso, de cartas marcadas, seguido da fogueira que lhe daria a estatura dos grandes mártires.

SANTA JOANA Não foi preciso esperar 500 anos para que a Igreja fizesse as pazes com Joana d’Arc. Pelo contrário, apenas duas décadas após sua execução, já com Carlos VII vitorioso e os ingleses finalmente expulsos, o julgamento da salvadora do rei foi revisto e considerado “corrupto, enganoso, calunioso, fraudulento e malicioso”. Seus acusadores foram excomungados e uma cruz foi construída na antiga praça onde ela foi queimada viva, levando às lágrimas a multidão que a viu gritar em desespero, “Jesus! Jesus! Jesus!”, enquanto a fumaça subia. Finalmente, a Donzela era inocentada aos olhos do catolicismo: ela não era uma herege.

brilhou como uma nova estrela destinada a ser a glória não apenas da França mas também da Igreja”. Só que o processo no Vaticano ficou parado em função da Primeira Guerra Mundial. Foi, então, apenas em maio de 1920, 100 anos atrás, que a camponesa de Domrémy seria transformada em Santa Joana d’Arc pelo papa Bento V. Os milagres reconhecidos pelo Vaticano – uma exigência para a canonização – foram duas curas sem explicação científica: de uma mulher que quase morreu de tuberculose e outra que tinha um furo que atravessava o pé – ambas aliviadas de seus problemas depois de pedidos pela intervenção sobrenatural de Joana. A canonização deu status oficial a uma mulher que o povo considerava sagrada, e impulsionou uma popularidade que já era incomparável, tornando-a, ao longo do século 20, a maior popstar entre os santos da Igreja Cató-

EM APENAS DUAS DÉCADAS, O JULGAMENTO E A EXECUÇÃO DA SALVADORA DO REI FORAM REVISTOS E CONSIDERADOS CORRUPTOS Foi justamente na época dessa revisão que a fama de santa começou a se disseminar. Soldados que lutaram a seu lado disseram que ela “não experimentava o mal secreto das mulheres”: em bom português, não menstruava. Na libertação de Orléans, os ventos teriam mudado de direção repentinamente para ajudar um barco a vela que a levava ao longo de um rio. E um duque testemunhou que Joana lhe disse para se movimentar numa batalha, prevendo que uma bala de canhão seria atirada no lugar em que ele estava – o nobre saiu de lá, seguindo sua orientação, e outro soldado morreu, atingido exatamente no local profetizado. Quase 500 anos depois, foram outros milagres que a confirmaram como santa da Igreja Católica. Em 1908, o papa Pio X já havia promovido sua beatificação – o último passo de um candidato à santidade antes da canonização. E o fez dizendo o seguinte: “Joana d’Arc

lica. No cinema, ela é de longe a santa campeã das películas, tendo sido interpretada por atrizes tão diferentes como Maria Falconetti (em 1928), Ingrid Bergman (1948), Jean Seberg (1958) e Milla Jovovich (1999). A diversidade de biografias cinematográficas e literárias (há até uma do nosso Erico Verissimo, publicada em 1935) tenta dar conta da variedade de percepções a respeito da trajetória extraordinária de Joana d’Arc. Algo que brota da própria complexidade dessa personagem histórica, de facetas muitas vezes paradoxais. Uma herege que virou santa. Uma virgem ultrarreligiosa que se tornou ícone feminista. Uma heroína para os franceses e até para os ingleses, que tanto a odiaram cinco séculos atrás. Uma mulher que combinou inocência e determinação obstinada, fúria e perdão, humildade e o maior dos papéis na história da França. E que assim mudou o mundo todo. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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BAHIA DE TODAS AS CORES QUASE 50 ANOS DEPOIS DO DESCOBRIMENTO, OS PORTUGUESES VOLTAM À BAHIA E SE ENCANTAM COM O QUE ELA PODIA LHES DAR. DESSA VEZ, ELES VIRIAM PARA FICAR POR EDUARDO BUENO

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a radiosa manhã de 29 de março de 1549 – uma sexta-feira, como no dia da partida de Lisboa –, após exatas oito semanas de viagem, a frota do primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, avistou terra. Eram os áridos baixios de Tatuapara (hoje Praia do Forte), que se prolongavam até a insinuante ponta de Itapuã, resplandecente em verdor tropical. Deixando para trás os pontiagudos recifes do Rio Vermelho – a temível barreira de corais onde, 30 anos antes, Caramuru naufragara –, os navios do governador contornaram a ponta do Padrão (hoje farol da Barra) e penetraram, um a um, na Baía de Todos os Santos. Aquela era e continua sendo uma porção extraordinariamente bela do litoral brasileiro. Mesmo que, para os navegantes portugueses do século 16, vantagens estratégicas com certeza sobrepujassem encantos paisagísticos, a

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baía, ainda assim, distinguia-se como um acidente geográfico notável – imponente sob qualquer ponto de vista. Com cerca de 200 quilômetros de perímetro e mais de mil quilômetros quadrados de superfície, aquele vasto mar interior, formado ao longo dos milênios por uma sequência de atribulações geológicas, rompia a linha retilínea da costa, constituindo um pequeno mediterrâneo – resguardado, seguro e amplo o suficiente para abrigar “não só todos os navios de Vossa Majestade como as armadas dos monarcas da Europa”. Suas águas de um azul translúcido estavam repletas de ilhas verdejantes – quase 100 delas. As margens, vestidas de matas e mangues, eram pontilhadas por um colar de praias e enseadas de areias faiscantes. Rios de águas escuras, transportando ricos sedimentos, desenhavam meandros indecisos ao redor de pequenos tabuleiros de arenito antes de mer-


gulhar vagarosamente no mar por entre os bancos de corais. Soprando de sudeste, bons ventos asseguravam chuvas regulares e constantes. Quando o Sol tornava a luzir em céu límpido, a terra exalava aromas adocicados. A baía não era apenas um espetáculo para os olhos: sua natureza se revelava extraordinariamente generosa. Naquele mundo dominado pelas águas, o impenetrável emaranhado dos mangues costeiros garantia a reprodução de crustáceos – lagostas, siris, caranguejos, guaiamus, lagostins e uçás – em quantidade prodigiosa. Os blocos graníticos, caprichosamente intervalados entre zonas alagadiças e praias arenosas, constituíam um habitat de tal modo privilegiado que a tonalidade rósea das pedras fora substituída pelo manto cinzento das ostras e mariscos, agrupados em colônias inumeráveis. As águas do mar e dos rios eram tão piscosas que, durante muitos anos, em um parado-

xo apenas aparente, pescadores profissionais mal podiam garantir seu sustento na baía: “O peixe é tanto que vai de graça...”, escrevera, em 1536, o finado donatário da capitania da Bahia, Francisco Pereira, o Rusticão. Eram garoupas, meros, pargos, xaréus, bonitos, dourados e corvinas, além de dezenas de outras espécies. Nos meses de maio, junho e julho, época da procriação, baleias afluíam às águas tépidas do Recôncavo em tal quantidade que mais pareciam “carpas num viveiro”, dizia a historiadora e escritora Miriam Ellis (1922-2017). Era frequente vê-las encalhar nas praias e baixios. Então os moradores da orla dissecavam-lhes os corpos, removendo a manta de toicinho, que utilizavam para obter óleo. Os encalhes dos bichos eram bem-vindos, já que os portugueses estavam incapacitados de “arpoar baleias por desconhecimento das técnicas apropriadas, em que eram inconstestáveis autoridades, na AVENTURAS NA HISTÓRIA

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BRASIL

época, bascos franceses e espanhóis”. Tamanho potencial e tais limitações não passariam despercebidas a Gabriel Soares de Sousa, o maior cronista das opulências da Bahia, que, em 1587, relatou: “Se à Bahia forem biscainhos ou outros homens que saibam armar às baleias, em nenhuma parte entram tantas como nela, onde residem seis meses do ano e mais, de que se fará tanta graxa que não haja embarcações que a possam trazer à Espanha”. Os recursos alimentares oferecidos pela zona do Recôncavo Baiano não se restringiam às águas. A floresta, que revestia a terra para além da estreita faixa de areias alvas, também fervilhava de vida, abrigando, no solo e nos ares, “toda a casta de animálias”: antas, cotias, pacas, veados, perdizes, mutuns, galinhas do mato e pombos silvestres voavam em bandos afoitos ou se agrupavam em desprevenidas manadas. Havia uma infinidade de plantas frutíferas, repletas de cajus, pacovas, abacaxis, umbus, mamões, pitangas, sapotis, maracujás,

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cupuaçus, guabirobas. Por fim, os “bons ares” que ali sopravam eram “reconhecidamente vitais”, a ponto de a região ter sido definida como “um quase segundo paraíso, em perpétua primavera, donde raramente andam desterradas as pestes e ramos delas, as doenças contagiosas”, como anotou, sem os exageros habituais, um antigo cronista franciscano. Fora justamente a barreira das febres palustres das águas estagnadas e dos calores malsãos que bloqueara o avanço da colonização portuguesa em determinados trechos da costa e em algumas ilhas do litoral da África. Assim, por mais amortecida que a “sensibilidade para o exótico” pudesse se encontrar entre os lusitanos, como teorizou Sérgio Buarque de Holanda, eles não deixariam de reconhecer de imediato a “bondade” de uma baía como a de Todos os Santos. E assim fora desde o dia de sua descoberta, 1° de novembro de 1501. Embora cedo tenha se destacado como uma das joias mais vistosas no vasto colar de con-


quistas ultramarinas dos portugueses, meio século já se havia passado desde a incorporação da Bahia ao curso da história da expansão europeia sem que suas águas transparentes refletissem uma cena imponente como a que se desenrolou naquela manhã de 29 de março de 1549, quando lá ancoraram as seis embarcações da armada do governador-geral do Brasil, com bandeiras desfraldadas e uma multitude de homens reclinados nas amuradas. Nunca se saberá com certeza qual a primeira impressão que Tomé de Sousa – ele próprio um veterano das praias e costas da África e da Índia – teve da Bahia naqueles dias inaugurais: das várias cartas que o governador terá enviado para o rei, apenas duas foram preservadas, e ambas tratam basicamente de assuntos administrativos. Mas o padre Manoel da Nóbrega, que jamais havia deixado a Península Ibérica, ficou fascinado com o que viu. Em carta a seu mestre, Aspicuelta Navarro, escrita em 10 de agosto de 1549, ele disse:

AQUELE VASTO MAR INTERIOR ERA SUFICIENTE PARA ABRIGAR OS NAVIOS E AS ARMADAS DOS MONARCAS “A terra é muito fresca, (...) tem muitas frutas e de diversas maneiras e muito boas, e que têm pouca inveja às de Portugal. Os montes parecem formosos jardins e hortas, e eu nunca vi tapeçaria de Flandres assim tão bela. Nos ditos montes há animais de muitas diversas feituras, dos quais Plínio nem escreveu nem soube. Tem muitas ervas de diversos aromas e muito diferentes das ervas de Espanha, e certamente bem resplandece a grandeza, formosura e saber do Criador em tantas, tão diversas e formosas criaturas.” Apesar da inegável beleza, aquela era também uma terra de danação para muitos dos homens a bordo – e não apenas os degredados. É difícil conjecturar até que ponto uma primeira impressão eventualmente favorável

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BRASIL

É PROVÁVEL QUE TOMÉ DE SOUSA TENHA TRANSFORMADO A CHEGADA DA SUA FROTA EM OPERAÇÃO MILITAR terá perdurado entre os tripulantes. Afinal, ninguém se encontrava ali por vontade própria, e é preciso não esquecer que, além de repleta de cobras e mosquitos (que causariam sérios problemas aos primeiros colonizadores), a Bahia era ocupada por indígenas de humores inconstantes e seria povoada quase que exclusivamente por portugueses “de baixa condição”. Vinho, pão de trigo, talheres, camas, mulheres europeias, um mínino de requinte – nada disso seria desfrutado nos trópicos. Além do mais, os burocratas escalados para dar ao novo território um resquício de ordem jurídica e fiscal não desconheciam o quão árduo seria fazer carreira longe dos favores reais. É possível que inúmeros expedicionários já estivessem odiando a terra antes mesmo de tomar contato nela. O desembarque de Tomé de Sousa e seus comandados permanece envolto em uma aura fantasiosa que não encontra base no registro documental.

ILUSTRAÇÕES BÁRBARA STEINBERG

COM OS PÉS NO CHÃO Escrevendo em 1758 (mais de 200 anos depois dos acontecimentos), o frei franciscano Antônio Jaboatão arriscou-se a descrever a cena com extraodinário luxo de detalhes. De acordo com o padre, “uma bem composta e devota procissão, diante da qual iam os padres jesuítas, levando arvorada uma grande e formosa cruz”, deixou os navios e marchou com toda solenidade em direção à Vila do Pereira, que fora a primeira sede da capitania e havia sido destruída pelos nativos. Apesar de bastante improvável, a cena – “tambores soando, couraças cintilantes ao sol, o estandarte real no alto, o governador e seus homens procissionalmente desfilando entre alas de gente nua, esparramada pelas várzeas” – tem sido repetida ao longo dos séculos por vários historiadores, entre os quais Pedro Calmon (1902-1985), autor do trecho acima. 44

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A verdade é que simples considerações de estratégia militar devem ter impedido tal despropósito. Além das notícias sobre a nova terra estarem defasadas de muitos meses, Tomé de Sousa fora alertado pelas prudentes recomendações do Regimento Régio sobre um possível estado de guerra (ou, quando menos, de conflito latente) entre os portugueses e os tupinambás do Recôncavo. O governador vinha precavido contra qualquer surpresa e estava instruído para agir “o mais a vosso salvo e sem perigo da gente que puder ser”. Em vez de impor respeito e temor aos indígenas, a procissão imaginada por Jaboatão e repetida por outros pesquisadores iria apenas expor toda a tripulação da armada a um ataque caso a Bahia não estivesse em paz. “Não terá sido com tais imprudências”, observou o etnólogo e historiador baiano Edison Carneiro (1912-1972), “que Tomé de Sousa mereceu as esporas de cavaleiro”. A inexistência de um cais na antiga Vila do Pereira é outro dos detalhes


apontados por ele que contribuem para desfazer decisivamente o mito de um desembarque em massa. O mais provável é que o governador – cujo tino e siso todos os cronistas contemporâneos concordam em louvar – tenha transformado o episódio não em uma procissão religiosa, de todo inapropriada para as circunstâncias, mas em uma cautelosa e sensata operação militar, levada a cabo “com todos os cuidados e precauções de uma manobra de guerra”. A primeira medida de Tomé de Sousa deve ter sido o envio de emissários à terra em busca de Caramuru e de seu genro, Paulo Dias, a quem o próprio rei Dom João III escrevera alguns meses antes. Só depois de ter se certificado de que a terra estava pacificada, o governador teria autorizado o desembarque – e, ainda assim, parcialmente, uma vez que a “gente do mar”, auxiliada por alguns artilheiros, certamente deve ter permanecido a bordo para defender os navios, enquanto em terra a “gente d’armas” vigiava a praia.

Além de ser o único ponto de apoio dos recém-chegados, os navios eram preciosos como meio de transporte e defesa ou mesmo de fuga e pela inestimável carga que traziam. É preciso considerar também que, dada a precariedade da Vila do Pereira, com reduzidíssimo número de habitações aproveitáveis, boa parte dos homens deve ter pernoitado a bordo ao longo de várias semanas. Por fim, quase todo o material e as guarnições que estavam nos porões e no convés não seriam levados de imediato para terra, simplesmente porque a nova cidade não seria construída no local onde se erguia a “povoação que antes era”. O desembarque, ainda assim, há de ter adquirido certa solenidade, já que, em carta ao seu superior, Simão Rodrigues, redigida em maio de 1549, o padre Nóbrega, testemunha ocular da história e sempre atento a qualquer vantagem tática, não deixaria de registrar o impacto que a operação provocou entre os nativos: “Estão espantados de ver a majestade com que entramos e estamos”, disse. “E temendo-nos muito, o que também ajuda.” A mesma carta revela que Caramuru cumprira à risca as ordens do rei, não apenas armazenando mantimentos como também apaziguando os indígenas: “Este homem, com um seu genro (Paulo Dias), é o que mais confirma as pazes com esta gente, por serem eles seus amigos antigos”. Mas o melhor é que a Bahia não estava apenas em paz: “A terra cá”, afirma Manoel da Nóbrega, “achamo-la boa e sã. Todos estamos de saúde, Deus seja louvado, mais sãos do que quando partimos”. Independentemente de como todos aqueles homens tenham se desenrolado, aquele dia e os seguintes estavam destinados a adquirir enorme importância não apenas simbólica como factual para o curso da história do Brasil. Afinal, passados 48 anos, dez meses e 29 dias do desembarque de Cabral, os portugueses estavam outra vez colocando os pés em uma praia da Bahia, mas só a partir de então iriam de fato deflagrar o processo que resultou na colonização do vasto território que lhes pertencia na costa ocidental do Atlântico. AVENTURAS NA HISTÓRIA

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PRÉ-HISTÓRIA

FATOS CURIOSOS DOS DINOSSAUROS A CIÊNCIA SOBRE ESTES ANIMAIS VAI MUITO ALÉM DO QUE VOCÊ APRENDEU NOS FILMES DE HOLLYWOOD POR EVERTON FERNANDO ALVES

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urante a minha jornada como divulgador de ciência, tenho me surpreendido com o fato de as pessoas se interessarem pela história dos dinossauros, mas desconhecerem conteúdos básicos sobre o tema, como o surgimento, a adaptação e a extinção desses animais. Se você assistiu às trilogias Jurassic Park e Jurassic World, da franquia Universal Pictures, por exemplo, talvez não saiba, mas quase tudo que há nelas, desde o primeiro filme, lançado em 1993, é pura ficção. Ou seja, não é real. Toda a série teve a consultoria de Jack Horner, o renomado paleontólogo que deu as bases científicas para a versão cinematográfica do livro de

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

ficção científica de Michael Crichton, cuja obra conquistou milhares de fãs ao redor do mundo. Porém, o conhecimento científico avança mais rápido que a indústria do cinema consegue acompanhar: de lá para cá, muitas descobertas foram feitas, contrariando as características já conhecidas e assimiladas pelo grande público, referentes aos “enormes e ferozes” répteis. No filme, o tiranossauro rex (T. rex), por exemplo, era muito veloz e corria furiosamente atrás de um carro. Seria, de fato, o T. rex um dos dinos mais velozes? Na época da série, esse famoso espécime era considerado um dos mais temíveis dinossauros da História. Mas o que o atual conhecimento científico nos diz? Será que ele foi mesmo o maior carnívoro que já existiu? A obra recém-lançada Curiosidades sobre os Dinossauros, apresenta 30 fatos que Hollywood não mostrou. Confira dez a seguir.


o Nhandumirim waldsangae (233 m.a.) e o mais recente descoberto Gnathovorax cabreirai (230 m.a.). Outros exemplos incluem o eoraptor (Eoraptor lunensis), uma espécie de dinossauro carnívoro e bípede que viveu entre 230-225 milhões de anos atrás na Argentina. O último de nossos exemplos mais antigos é o herrerassauro (Herrerasaurus ischigualastensis), um saurísquio basal carnívoro e bípede que viveu há 231 milhões de anos também na Argentina. Ao que tudo indica, a América do Sul foi o berço dos primeiros dinossauros durante o Triássico.

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QUAIS FORAM OS PRIMEIROS DINOSSAUROS? A maioria dos cientistas crê que os ancestrais dos dinossauros representavam um grupo de répteis não dinossaurianos chamados de arcossauros, que evoluíram durante o Triássico médio, dando origem, então, aos dinossauros. Os primeiros, portanto, teriam surgido há cerca de 233 milhões de anos. O mais famoso de todos e talvez um dos mais antigos dinossauros conhecidos é o estauricossauro (Staurikosaurus pricei), um pequeno terópode em formação – que chamamos de saurísquio basal –, carnívoro e semibípede que teria vivido, segundo a cronologia-padrão, entre 231-225 milhões de anos atrás no Brasil e foi encontrado no Rio Grande do Sul. Além desse, outros dinos terópodes gaúchos se destacam, tais como

QUANTOS DINOSSAUROS EXISTIRAM? O mundo perdido dos dinossauros era amplo e diverso. Os dinossauros, ao que tudo indica, eram coloridos, belos, dinâmicos e plurais assim como todas as espécies em nosso planeta. Evidências mostram que já foram descritos cientificamente mais de 500 gêneros de dinossauros, embora as estimativas de gêneros sejam mais de 1500 para todo o Mesozoico ao levar em conta que 71% dos gêneros de dinossauros permanecem desconhecidos. Quanto às espécies, as estimativas são de cerca de 2 mil, apesar de algumas terem sido erroneamente classificadas. No livro Ascensão e Queda dos Dinossauros, o paleontólogo Dr. Steve Brusatte diz que “em algum lugar do mundo, uma nova espécie de dinossauro acabou de ser encontrada, o que acontece, em média, uma vez por semana ou 50 novas espécies por ano”. Porém, como afirma o paleontólogo brasileiro Luiz E. Anelli, esses números são controversos “em virtude das incertezas das identificações. Isso se deve principalmente a dois fatores: muitos restos de esqueletos incompletos tidos como pertencentes a dinossauros podem, na verdade, tratar-se de restos de outros animais aparentados; além disso, muitos restos atribuídos a dinossauros de espécies distintas podem constituir partes diferentes de uma mesma espécie, os chamados ‘sinônimos’.” AVENTURAS NA HISTÓRIA

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PRÉ-HISTÓRIA

Nem todos os dinossauros eram criaturas enormes, gigantescas. Apenas um pequeno número chegou a proporções tão grandes

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QUAL ERA O TAMANHO DOS DINOSSAUROS? Os dinos têm sido apresentados em desenhos, séries e filmes como sendo criaturas enormes, gigantescas. Mas eles eram realmente grandes? O que os cientistas descobriram? Bem, sinto em informar, mas os dinossauros eram pequenos. Uma pesquisa científica recente mostrou que a maioria dos dinossauros era pequena. Como afirma Dr. Paul Barrett, paleontólogo do Museu de História Natural de Londres, em entrevista à BBC, “nem todos eram enormes, apenas um pequeno número chegou a proporções gigantescas”. Portanto, o que você vê em exposição nos museus são apenas amostras daquele pequeno percentual de dinos que eram grandes. Sim, alguns eram grandes, mas eles são a exceção, e não a regra. Ah! O velocirraptor, que nos filmes Jurassic Park e Jurassic World é apresentado como sendo do tamanho de um homem adulto de 1,80 m, é pura ficção! Aquele dinossauro do filme, na verdade, seria ou o deinonico ou um utahraptor, carnívoros bípedes da mesma família do velocirraptor,porém bem maior que ele. O velocirraptor tinha um pequeno tamanho de 50-70 centímetros de altura. E outra curiosidade é que parece que ele não era um predador, mas sim um carniceiro, isto é, se alimentava de animais que já estavam mortos.

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QUAL FOI O DINOSSAURO MAIS VELOZ? O velocirraptor é apresentado nas trilogias Jurassic Park e Jurassic World como sendo muito alto, como vimos na pergunta anterior, e bem veloz. Porém, assim como muitos outros detalhes do filme, isso não é

verdade. Devido ao longa-metragem, ao significado do seu nome e às primeiras descrições desse dino, muita gente ainda hoje acha que o velocirraptor foi o dinossauro mais veloz que pisou neste planeta durante o reinado desses poderosos répteis. Hoje há certo consenso de que, na realidade, movendo-se ereto em duas pernas, o velocirraptor poderia correr 39 km/h. Porém, outra pesquisa associou o comprimento da perna à habilidade de corrida em dinossauros carnívoros bípedes e descobriu uma velocidade ainda menor para o velocirraptor, uma vez que ele e seus parentes próximos foram considerados os menos adaptados para a corrida rápida. Segundo estudo baseado em um modelo computacional de biomecânica desenvolvido pela Universidade de Manchester (Reino Unido), o dinossauro mais veloz de todos foi o compsognato, um réptil do tamanho de um gato que podia atingir velocidades de até 64 km/h. O mesmo estudo ainda descobriu que o velocirraptor podia correr até 39 km/h; o dilofossauro, 38 km/h; o alossauro, 34 km/h; e o T. rex, até 29 km/h. Uma pesquisa anterior encontrou outras velocidades para os seguintes dinossauros: alossauro, cerca de 34 km/h; T. rex. aproximadamente 30 km/h; tricerátopo, cerca de 26 km/h; e braquiossauro, 18 km/h.

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O QUE OS DINOSSAUROS COMIAM? Novas evidências científicas têm mostrado que até o grupo de supostos carnívoros talvez fossem herbívoros. Ao analisar o cocô fossilizado de dinossauros, cujo nome científico é “coprólito”, o estudo demonstrou que a dieta da maior parte dos terópodes, com exceção do tiranossauro rex e do velocirraptor, era possivelmente composta de plantas. É claro que existem outros dinos terópodes carnívoros que essa pesquisa não avaliou, tais como o giganotossauro, o espinossauro e o compsognato. Neste último, inclusive, cientistas encontraram um pássaro em seu estômago. Porém, desde 2007 o


paleontólogo australiano Dr. John Albert Long já havia comentado em seu livro Dinossauros que, “assim como em toda cadeia alimentar, a maioria dos dinossauros comia plantas, e não carne. Dos fósseis encontrados, cerca de 65% são de herbívoros. Se nós pudéssemos identificar e descrever todo tipo de dinossauro que já existiu, a proporção de herbívoros seria ainda muito maior”. Por sua vez, com dados mais recentes em mãos, o paleontólogo Dr. Reinaldo Bertini, da Unesp de Rio Claro (SP), afirmou que “a maior parte dos dinossauros que habitavam a Terra até o fim do período Cretáceo, 65 milhões de anos atrás, tinha uma dieta vegetariana – a proporção era de nove herbívoros para cada carnívoro”. Como pôde ser visto, a associação mental “dinossauros e carnivorismo” é apenas mais uma ideia equivocada.

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COMO DETERMINAR O SEXO DOS DINOSSAUROS? Atualmente, os métodos existentes para determinar o sexo dos dinossauros são controversos ou inconsistentes. Um deles é por meio da comparação de pares de um osso chamado de “chevron”, localizado no final da cauda de alguns dinossauros. Em terópodes a forma e o tamanho desses ossos variaram entre os fósseis encontrados juntos na mesma camada de rochas. Também foi observado que na base da cauda os chevrons apontam para baixo. Os longos representariam os machos. Os curtos e deslocados mais para trás dos quadris, as fêmeas. Outro método utilizado é por meio da análise do osso medular de alguns terópodes. Nesses dinossauros, especialmente no tiranossauro rex, foi encontrado, através de AVENTURAS NA HISTÓRIA

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PRÉ-HISTÓRIA

tomografia computadorizada, esse tipo de tecido que aparentemente só está presente em fêmeas e durante o período de postura de ovos. Para os cientistas, o osso medular é quimicamente distinto dos outros tipos de tecidos ósseos e, por isso, poderia ser usado como uma “assinatura química” para definir se o animal é fêmea ou não. Existe ainda uma discussão relacionada ao formato das placas de um dinossauro ornitisquiano chamado estegossauro. Alguns cientistas afirmam que nesse dinossauro os machos teriam as placas de suas costas mais arredondadas, enquanto as fêmeas, mais pontudas.

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QUAL FOI O MAIOR DINOSSAURO CARNÍVORO DO MUNDO? Com relação à altura, pouca gente sabe que existiu um dino parente do tiranossauro rex bem maior que ele. O giganotossauro foi um dinossauro carnívoro e bípede, do grupo dos terópodes, com uma cabeça e mandíbu-

Pesquisas mostram que a maioria dos dinossauros e pterossauros tinha a língua ancorada no chão da boca, como a dos crocodilos atuais 50

AVENTURAS NA HISTÓRIA

la bem maiores que as do T. rex. Só o crânio media quase 2 metros de comprimento. Esse gigantão foi descoberto na Patagônia, Argentina, media 5,5 metros de altura, 13,2 metros de comprimento e pesava 8 toneladas. É ou não é o maior carnívoro do mundo em questão de altura? Já com relação ao comprimento, sem dúvida alguma o tiranossauro rex também é coisa do passado. O mais “terrível” dinossauro carnívoro de todos os tempos é o espinossauro. O consenso é de que ele foi um dinossauro semiaquático quadrúpede e que por vezes alternava sua posição para bípede – embora uma pesquisa recente de biomecânica tenha desafiado a hipótese de que esse espécime realmente tivesse sido “flex”, ou seja, que tivesse habitado naturalmente ambientes terrestres e aquáticos. O fato é que pesquisas encontra-

IMAGENS MARK GARLICK / SCIENCE PHOTO LIBRARY / GETTY IMAGES

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COMO ERA A LÍNGUA DOS DINOSSAUROS? Você já viu a língua de um crocodilo? Não? Um crocodilo tem língua, mas ele não consegue pôr sua língua para fora da boca como o fazem os lagartos e os pássaros modernos. Aliás, ela é totalmente presa na parte inferior da boca. O mais curioso ainda é que uma pesquisa recente descobriu que a maioria dos dinossauros e pterossauros também tinha a língua presa na boca. Ao estudar os ossos dos pescoços dos dinos por meio de tomografias computadorizadas, alguns cientistas descobriram que esses dinos e pterossauros tinham sua língua ancorada no chão da boca semelhante à dos crocodilos atuais.


-descoberta na Mongólia chamada de Halszkaraptor escuilliei. O “halszka”, como foi apelidado, é um terópode, grupo de dinos do qual supostamente descendem as aves. Ele seria uma mistura entre um velocirraptor, um avestruz e um cisne, com nariz de crocodilo e asas de pinguim. De acordo com os cientistas, ele possivelmente poderia matar suas presas em terra e em água, mas, como é um achado recente, o mais prudente é esperar novas descobertas para ver se essa pesquisa se confirma ou não.

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ram pistas de que, apesar de o espinossauro ter chegado a apenas cerca de 5 metros de altura, ele, na verdade, em comprimento, superava qualquer outro carnívoro de seu tempo, podendo chegar a 18 longos metros de extensão.

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DINOSSAUROS ERAM EXCLUSIVAMENTE TERRESTRES? É importante discutirmos essa questão, uma vez que os novos dados científicos vêm fazendo a gente rever tudo o que sabia sobre os dinossauros. De maneira geral, os dinossauros andavam sobre a terra firme, porém há exceções – e, o que se sabe até agora, não se trata de apenas uma: foram descobertos dois dinossauros semiaquáticos. O primeiro foi o espinossauro, já citado na questão acima. O outro seria uma recém-

EM QUE POSIÇÃO OS DINOSSAUROS DORMIAM? As poucas evidências que temos nos mostram que alguns dormiam deitados, supostamente parecido com os pássaros modernos. Uma pesquisa encontrou uma espécie chamada Mei long, um pequeno dinossauro terópode de 30 centímetros, olhos grandes e uma pequena garra em cada pé, que repousava a cabeça sobre os braços cruzados e cauda enrolada no torso. Os cientistas acreditam que mei morreu dormindo em uma posição de descanso semelhante à de pássaros modernos devido a ter sido enterrado vivo em decorrência de uma erupção vulcânica. Alguns especulam que o T. rex poderia ter dormido em pé, de forma semelhante a um cavalo, usando a pressão no púbis. Porém, um estudo do cientista da computação gráfica Dr. Kent A. Stevens, da Universidade de Oregon, feito a partir do projeto em andamento “DinoMorph”, que utiliza modelos computacionais 3D para entender como os tiranossauros caminhavam e sentavam, indica que eles dormiam de modo provavelmente similar a como se sentavam: semelhante aos pássaros, mas não exatamente assim.

EVERTON FERNANDO ALVES É PESQUISADOR BIOLÓGICO E ACABA DE LANÇAR O LIVRO CURIOSIDADES SOBRE OS DINOSSAUROS (EDITORA INDEPENDENTE), DE ONDE O TEXTO ACIMA FOI EXTRAÍDO E ADAPTADO

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PARA ENTENDER POR MALU SAFATLE

EPIDEMIAS LIVROS HISTÓRICOS SOBRE O TEMA NOS AJUDAM A ENTENDER ESSE FENÔMENO QUE TANTO PREOCUPA HOJE EM DIA

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CIDADE FEBRIL, Sidney Chalhoub – 1996 A atuação dos médicos sanitaristas nos cortiços do Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do século 19, é o tema central deste livro, cuja linguagem é histórica e bem-humorada. Trata-se de um estudo sobre as políticas de saúde pública na corte imperial e sobre as concepções populares de doença e cura.

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

A GRANDE GRIPE, John M. Barry – 2020 Com lançamento previsto para este mês, descreve os eventos que desencadearam o surto da gripe espanhola, mostrando os esforços da comunidade científica para combatê-la, e faz uma análise sobre como situações desse tipo estão diretamente relacionadas à política, ao poder, à ciência e ao acesso à informação.

CHÃO DE FERRO, Pedro Nava – 1976 Uma obra que aborda principalmente a vivência carioca do autor mineiro (e médico) na primeira metade do século 20 – enquanto ainda era menino. Em determinado momento, Nava relata a chegada da gripe espanhola em 1918, a bordo do navio Demerara, proveniente da Europa, e suas consequências desastrosas no país.

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DE DORES E DE AMORES, Ronaldo Trindade – 2018 Este livro traz à tona algumas experiências vividas por homossexuais masculinos na cidade de São Paulo nas últimas décadas do século 20, passando pelo surgimento e a proliferação da aids até o acontecimento da Parada Gay (depois LGBT), que começou em 1997 na cidade.

IMAGENS REPRODUÇÃO

1348 – A PESTE NEGRA, José Martino – 2017 Além de um panorama da tragédia que assolou a Europa entre os anos 1347 e 1352, a obra retrata de maneira profunda a vida das pessoas atingidas pelo horror da pandemia: tanto os camponeses quanto os habitantes das principais cidades europeias. Em geral, acreditavam ser um castigo divino contra as falhas da humanidade.


COLUNA THOMAS PAPPON

KRAKATOA E O MAIOR RUÍDO DA HISTÓRIA E m 1883, o mundo presenciou um evento natural tão bombástico e violento que pôde ser notado por praticamente todos os habitantes do planeta. A pequena ilha de Krakatoa, no estreito entre Sumatra e Java, na Indonésia, foi destruída em 27 de agosto por uma série de erupções. A mais violenta delas foi uma explosão gigantesca, um barulho tão alto que foi ouvido a 5 mil quilômetros de distância, nas Ilhas Maurício – onde se achou que era um tiro de canhão dado por um navio. Há relatos de ter rompido os tímpanos de marinheiros que estavam a dezenas de quilômetros de distância. “O ar tinha tanta poeira que a gente achou que fosse sufocar”, contou à BBC, em 1946, Sidney Baker, que na época do Krakatoa era um adolescente no navio de seu pai, que viajava de Batávia (mais tarde batizada de Jacarta) aos Estados Unidos. “Estava tão escuro que você não conseguia ver a mão colocada na frente do rosto.” Simon Winchester, autor de Krakatoa, The Day the World Exploded, diz que a pequena ilha foi desintegrada, deixando um enorme buraco no mar. “Esse buraco foi enchido por trilhões de toneladas de água. Estava tão quente no interior desse buraco que a água imediatamente se converteu em vapor. Esse vapor causou tsunamis gigantes, que fizeram um enorme estrago na costa de Sumatra e de Java.” “O barco de meu pai estava a caminho de Anjer (na Ilha de Java)”, contou Baker, “e a cidade desapareceu completamente sob a água. A gente estava navegando por cima dela. Me lembro de ouvir meu pai dizendo que, se jogasse uma âncora, ela ficaria

presa em uma chaminé. O mar estava cheio de toda espécie de destroços... vilarejos levados pela água e corpos por tudo o que é lado”, descreveu Baker. Tais tsunamis mataram cerca de 40 mil pessoas em cidades costeiras da Indonésia e ainda avançaram pelos oceanos Índico e Pacífico. Segundo Winchester, “marégrafos detectaram as ondas empurradas pelos tsunamis em lugares distantes como Biarritz, na França, o Canal da Mancha e Portland, na costa oeste americana”. A incrível força da explosão liberou uma energia estimada em 200 megatons – mais de 10 mil vezes a força da bomba atômica de Hiroshima. Isso criou uma onda de pressão que deu três voltas no planeta, mexendo com ventos, ar, luz e cores. Os efeitos da luz do Sol, refratada pelas partículas na estratosfera expelidas pelo vulcão, deram aparência extraordinária a crepúsculos e auroras. Descrições da época dão conta de pores do sol tão vívidos e brilhantes que teriam inspirado poetas e pintores até da Europa. Winchester diz que muitos especialistas acreditam que o O Grito, de Edvard Munch, retrata um céu de intenso laranja e roxo inspirado nesse evento. O autor conta ainda que o Krakatoa marcou o nascimento do que hoje se conhece como aldeia global. “Quando (Abraham) Lincoln foi assassinado, cerca de 20 anos antes, demorou 12 dias para que a notícia chegasse a Londres. Mas a instalação de cabos de telégrafo atravessando os oceanos permitiu que a mensagem de um correspondente em Java – ‘explosão gigante, Krakatoa, vários mortos’ – chegasse a Londres quatro minutos depois.”

AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

A força da explosão da ilha liberou uma energia 10 mil vezes maior que a da bomba atômica de Hiroshima

THOMAS PAPPON É JORNALISTA DA BBC NEWS BRASIL; TEXTO ADAPTADO DO PODCAST QUE HISTÓRIA!, DISPONÍVEL NO SITE BBC.COM/BRASIL

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COLUNA GABRIEL WALDMAN

ao Holocausto e em especial diante de Eichmann: a questão do genocídio judaico foi discutida e resolvida em janeiro de 1942 na Conferência de Wannsee por líderes nazistas de segundo escalão, inclusive Eichmann. O primeiro escalão (Hitler, Goring etc.) já havia decidido em princípio e as matanças já estavam em curso, porém de forma desorganizada. Em Wannsee, os 15 participantes convocados por Heidrich (tenente de Himmler, chefe da SS) tinham por incumbência criar um plano abrangente de como a “solução final” deveria ser executada em ordem, com eficiência e disciplina germânica. As secretárias presentes elaboraram uma ata no final da reunião e uma das cópias sobreviveu à guerra, nos dando uma ideia do clima e do conteúdo que prevalecia, além da participação e do comportamento de cada um dos presentes. O encontro foi filmado com atores profissionais depois da guerra, mas os diálogos são reproduzidos fielmente conforme as atas. E, entre os aspectos que se ressaltam, está a extrema civilidade do encontro. Regado a conhaque, não há nem sinal de ordens do Führer nem ameaças ou imposições. Mesmo as ocasionais críticas são respondidas com deferência e respeito. Foi dito, por exemplo: “Temos de achar jeito mais humano. No inverno russo, as crianças chegam aos campos com as nádegas congeladas nos assentos do vagão. Ao tirá-las à força, pedaços de pele e mesmo carne ficam presos. As crianças saem gritando de dor e sangrando. Péssimo efeito sobre os soldados”. Heidrich responde: “Louvo seu sentimento humano. Entretanto, eles não são humanos, apenas judeus. Mesmo assim vou tomar providências”. O clima geral lembra uma reunião de confraria de criadores de gado planejando quantas cabeças mandar a qual matadouro, quando e como organizar o transporte. É de arrepiar.

Para Adolf Eichmann, a morte de 6 milhões de judeus constituía preço razoável para aplacar seu ego inflado

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

FOTO BETTMANN / GETTY IMAGES

o se defrontar com o réu Adolf Eichmann atrás do painel de vidro no tribunal de Jerusalém, Hanna Arendt sentia a vertigem da decepção. Aguardava pelo menos um “anjo da morte”, um gênio do mal, mas encontrou um homúnculo inexpressivo, um burocrata carimbador diligente de documentos sem responsabilidade, sem remorso, cumprindo cegamente ordens de seus superiores. Surge então sua teoria da “Banalidade do Mal”. A comunidade judaica da época rejeitou essa interpretação. Muitos (alguns até hoje) achavam que a palavra banalidade relativizava a dimensão do crime e seria um convite para absolver ou diminuir a pena de Eichmann. Nada mais errado. Em nenhum momento ela solicitou leniência, questionava apenas a motivação do crime. Outros condenavam Arendt por dessacralizar as vítimas – sendo vítimas de um emissário de Lúcifer, honrava e dava grandeza moral a elas; mortas por um mero burocrata, de certa forma diminuía sua estatura de mártires. Já que é bem mais fácil odiar Lúcifer do que um contador manipulando números e horários de trens. Hoje, a “banalidade do mal” é relutantemente aceita no vocabulário do Holocausto. Seus apologistas ressaltam ainda que é um grito de cautela salutar de que não é necessário aguardar nenhum Hitler ou Lúcifer brandindo espada flamejante para que o Holocausto se repita e que os Eichmanns de hoje perambulem pacificamente pelas ruas aguardando serenamente uma nova oportunidade. E, depois, tem aquele pensamento incômodo roendo-nos por dentro: “O que teria feito eu nas mesmas circunstâncias?”. Impõe-se a tolerância zero, portanto. Pena que a realidade seja indiferente às nossas teorias filosóficas. Vejamos como a banalidade do mal se sustenta diante dos fatos históricos referentes

AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

A SEMENTE OU A BANALIDADE DO MAL? A


Ao assistir ao filme da conferência pela internet, a expectativa sobre os participantes é a de um comportamento similar ao de Eichmann em Jerusalém: contadores diligentes compilando números e horários sem qualquer responsabilidade pelo que representam (a banalidade do mal). Em vez disso, há participantes opinativos e assertivos, cuja questão não era mais se o genocídio deveria ser perpetrado, mas sim como proceder de forma mais eficiente. O objetivo do advogado de defesa de Eichmann, Dr. Gervatius, era evitar a pena de morte a seu cliente. E como fazer isso de forma minimamente aceitável pela promotoria e juízes? A primeira opção seria alegar a inimputabilidade mental e psíquica do réu, pela qual (caso aceita) o cliente seria acometido a um instituto. O advogado, porém, sabia que o réu seria desmascarado por médicos que a promotoria convocaria para avaliar suas condições mentais. Sobrou, então, a única alternativa: a de posicionar Eichmann como um mero autômato, transmissor de ordens, sem matar e sem nunca ter visto alguém morrer. Um subalterno cumprindo ordens e nada mais. Essa alternativa, aliás, foi utilizada nos Julgamentos de Nuremberg; porém, naquela ocasião, os réus eram do primeiro escalão do nazismo e só podiam atribuir culpa a Hitler, o único acima deles. Não funcionou: as costas de Hitler eram largas, mas não

o suficiente para carregar todas as culpas do nazismo. Agora o julgamento envolvia o terceiro escalão, portanto havia mais gente a quem atribuir a culpa. Eichmann desempenhou com credibilidade seu papel de robô, mas acabou enrolado por seu comportamento totalmente diverso daquele que apresentou em Wannsee, onde participou inclusive do planejamento da matança. Ficou clara a fragilidade da arquitetura jurídica apresentada pela defesa. E ele foi condenado à morte e executado. Afinal, quem foi o verdadeiro Eichmann? Um psicopata e assassino compulsivo ou um medíocre perpetrador da banalidade do mal? Parece-me que nem um nem outro. Um de seus hábitos recorrentes no julgamento consistia em ressaltar sua intimidade com pessoas influentes e conhecidas pelo grande público. Ora, galgar posições na escala social, acrescida pelo inato antissemitismo, explica muito de seu caráter predominante. Para Eichmann, a morte de 6 milhões constituía preço razoável para aplacar seu ego inflado. E isso nos induz a outra pergunta: quem não gosta de sociabilizar com poderosos? No entanto, sempre há um preço a pagar: seja moral, pecuniário ou de submissão. Aceitando a premissa, discute-se apenas a ousadia do preço que Eichmann achava razoável. A semente do mal está disseminada como o coronavírus: por todo lugar e entre todos nós.

GABRIEL WALDMAN É JUDEU, AUTOR DE TRÊS LIVROS E SOBREVIVENTE DE DUAS GUERRAS

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COLUNA RICARDO LOBATO

R2: AS ORIGENS DO OUTRO OFICIAL

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o contrário do que se possa imaginar, a história dos oficiais da Reserva de Segunda Classe do Exército Brasileiro (R2) não começa num quartel do Rio de Janeiro, nem nas escaramuças do Exército pelo interior do Brasil. Muito menos em uma das tantas guerras de disputa fronteiriça do Prata. A história desses militares começa em um conflito distante, do outro lado do Atlântico, numa guerra em que a participação brasileira foi praticamente inexistente. Sua história começa nas enlameadas trincheiras da “guerra para acabar com todas as guerras”, a Primeira Guerra Mundial. Com o advento da Grande Guerra, o Exército brasileiro enviou observadores militares para acompanharem “a grande guerra moderna” europeia. Alguns participaram das Batalhas do Marne e Verdun. Entretanto, além das observações de que o Brasil estava despreparado para uma guerra em escala industrial – um dos motivos da vinda da Missão Militar Francesa em 1919 –, foi a lição de que não bastava mobilizar grandes reservas de soldados: era preciso oficiais para comandá-los. A então Escola Militar do Realengo não seria capaz, em tempos de belicismo, de prover oficiais suficientes para o Exército. A solução encontrada para a rápida substituição de oficiais subalternos e intermediários estava no que faziam ingleses e norte-americanos: programas de formação de oficiais da reserva. No Reino Unido, os University Officers’ Training Corps (UOTC) existem desde 1642, época da Guerra Civil Inglesa – a efeito de comparação, a Batalha de Guararapes, marco fundacional do Exército, foi em 1648. Nos EUA, os Reserve Offi-

cers’ Training Corps (ROTC) remontam ao ano de 1862, em plena Guerra da Secessão, apesar de terem sido formalizados só em 1915. Ambos se mostraram um sucesso durante a Grande Guerra, sendo, diante das baixas colossais do conflito, os grandes responsáveis pela rápida capacidade de mobilização e substituição de efetivos dos países Aliados nessa guerra. No caso brasileiro, apesar de o Exército reconhecer a formação de oficiais qualificados para a Reserva, não fosse pelos esforços do então Capitão Luiz Araújo Correia Lima, a ideia não teria saído do papel. Mesmo assim, além de o primeiro Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) ter sido inaugurado só em 1927 – ao contrário dos modelos bretão e estadunidense, em que é possível fazer carreira, alcançando o generalato –, no Brasil, o oficial podia alcançar no máximo o posto de Capitão. Hoje, apenas até Primeiro-Tenente. As lições da Primeira Guerra e os esforços de Lima prepararam o país para a guerra seguinte. Quando Vargas declarou guerra ao Eixo, em agosto de 1942, dos 1070 Tenentes e Aspirantes que compunham a Força Expedicionária Brasileira (FEB), 433 eram R2, cerca de 40% do efetivo. Com isso, mais CPORs e os primeiros Núcleos de Preparação de Oficiais da Reserva (NPORs) foram criados. Uma herança que persiste até hoje. Na Itália, esses oficiais se destacaram não apenas entre seus pares oriundos do Realengo, mas também entre seus superiores e com os demais militares das Forças Aliadas. Antes vistos com desconfiança pelos oficiais de carreira, os R2 são um exemplo de que, também nesse caso, a cobra fumou.

AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

No Brasil, dos 1070 Tenentes e Aspirantes que compunham a FEB, 433 eram Oficiais R2

RICARDO LOBATO É SOCIÓLOGO E MESTRE EM ECONOMIA PELA UNB, OFICIAL DA RESERVA DO EXÉRCITO BRASILEIRO E CONSULTOR-CHEFE DE POLÍTICA E ESTRATÉGIA DA EQUILIBRIUM – CONSULTORIA, ASSESSORIA E PESQUISA

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AVENTURAS NA HISTÓRIA


COLUNA ALEXANDRE CARVALHO

O Sétimo Selo Suécia, 1957 Direção: Ingmar Bergman

AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

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O SILÊNCIO DE DEUS

Covid-19 da Idade Média foi a peste negra, uma pandemia de dimensões apocalípticas que, no século 14, matou um terço da população da Europa. A doença era transmitida ao ser humano por pulgas de ratos – o que não faltava naquele mundo medieval – e surgia com bolhas na virilha, pescoço e axilas, que soltavam pus e sangravam quando abertas. Logo vinham febre alta e vômito de sangue. Mas era tudo muito rápido: a maioria dos infectados morria entre dois e sete dias após a contaminação. Cronista da época, o poeta italiano Giovanni Boccaccio escreveu a respeito desse cenário de fim de mundo: “Para dar sepultura à grande quantidade de corpos, já não era suficiente a terra sagrada junto às igrejas. Por isso, passaram-se a edificar igrejas nos cemitérios. Punham nessas igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando, e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios”. Em O Sétimo Selo, foi a essa terra “punida por Deus” que o cavaleiro cristão Antonius Block (Max von Sydow) retorna das cruzadas. E logo no início do enredo ele se depara com a própria morte, antropomorfizada como um homem pálido trajado de preto. Essa morte ergue seu manto para levá-lo, mas

Antonius resiste e faz um trato com ela. Desafia-a para um jogo de xadrez, e ambos combinam que ele será poupado enquanto resistir no tabuleiro – uma das cenas mais icônicas da história do cinema. A sobrevida do cruzado permite que ele ganhe tempo para o que considera ser o objetivo final de sua existência: adquirir conhecimento sobre a natureza de Deus e o sentido da vida. Afinal, Block voltava de um período de dez anos lutando pela cristandade contra os mouros, tudo para encontrar sua própria cidade devastada pela peste – que a maioria associava a um castigo metafísico. Supostas punições de que o cavaleiro-filósofo de Ingmar Bergman desconfia, e o fazem questionar a própria crença. “Por que Ele se esconde em uma nuvem de meias promessas e milagres invisíveis? O que vai acontecer conosco, os que querem acreditar, mas não conseguem? Por que não posso matar Deus em mim?” Como aconteceu a mais de 200 milhões de contaminados pela pandemia, também Antonius receberá seu xeque-mate. Mas não antes de chegar a um veredicto íntimo de suas aflições – o conhecimento pelo qual tanto ansiava: “Nós criamos um ídolo a partir do nosso medo, e o chamamos de Deus”.

ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)

AVENTURAS NA HISTÓRIA

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MEMÓRIA

OS PRIMEIROS MCDONALD’S DO MUNDO JÁ EXIBIAM ARCOS CHAMATIVOS, MESMO SEM O FAMOSO “M” NA FACHADA POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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ambúrgueres a 15 centavos. Anunciava o display que abria a “loja número 1” da McDonald’s, fundada em 1955 por Ray Kroc depois de comprar a marca dos antigos donos: os irmãos Richard e Maurice McDonald. A propaganda iluminada disputava a atenção dos habitantes de Des Plaines, em Illinois, com a imponente arquitetura do local, que mais parecia valer 1 milhão de dólares. Um contraste de valor, aliás, que também existia nos bastidores do negócio naqueles tempos. De um lado, os irmãos McDonald (que já mantinham a pequena franquia fast-food) estavam satisfeitos com o ritmo lento, mas estável, do negócio. Do outro,

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AVENTURAS NA HISTÓRIA

porém, o americano de Chicago, Kroc, almejava expandir a marca para os Estados Unidos e até transformá-la em uma corporação global. Os dois irmãos não aderiram ao plano do visionário, mas a insistência foi tão grande que acabaram vendendo a franquia por 2,7 milhões de dólares e 0,5% dos lucros futuros. O acordo, selado com um aperto de mãos (porque ninguém queria declarar a renda extra), durou até Kroc querer comprar a primeira lanchonete dos criadores – que negaram e, curiosamente, precisaram rebatizar o nome para The Big M, pois McDonald’s não lhes pertencia mais. Kroc, então, abriu uma loja bem em frente à da dupla, que acabou fechando e, com o tempo, foi esquecida – assim como a arquitetura original: em 1968, os dois grandes arcos de metal, pintados de dourado neon, deram lugar ao famoso “M”, que, enfim, o mundo inteiro comeu.

FOTO HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES

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