Uma Sombra na Aljama Ă frica Ruh
O amor é a única coisa que não nos obriga a ser o que os outros decidem. Em uma época em que a religião decidia o destino das pessoas, Maria, ladra e cristã, vê-se necessitada de um médico para curar uma pessoa muito querida para ela. Forçada pelas circunstâncias, tem de trabalhar, até pagar por seu erro, para o homem que acabara de roubar: Enoc, médico e judeu. Acompanhando-o quando das visitas a seus pacientes, entre Maria e Enoc começa a florescer um sentimento que, aos olhos do resto do mundo, é proibido, perigoso e, até criminoso. Repudiados por cristãos, acossados por judeus e perseguidos pela Inquisição, como conseguirão sobreviver e fazer seu amor dar certo?
Para Nacho, com amor. Nunca lhe poderei dedicar livros suficientes. Para a minha maravilhosa famĂlia. Adoro-vos. Para os(as) meus(minhas) amigos/as escritores/as. Por tantos mundos compartilhados.
Capítulo 1
Escolheu a sua vítima imediatamente.. Era um homem jovem, bem vestido e usando quipá1. Já há bastante stante tempo que passeava pela rua da Cutelaria,, examinando diferentes lojas sem chegar a comprar nada. Maria a o seguia a uma distância prudencial, misturandomisturando se com as pessoas, enquanto analisava cada detalhe de sua presa: as costas largas, as mãos grandes grandes,, o cabelo comprido e encaracolado, o semblante pensativo… Tinha de e formar uma ideia aproximada de sua personalidade antes de atacar; dessa vez, no entanto entanto, levou-lhe mais tempo do que o normal. Finalmente chegou à conclusão de que se tratava de um judeu de boa família que tinha ido comprar uma faca especial. Caso contrário, por que ia sair da aljama2? Com um Chapéu, boina, touca ou outra peça de vestuário utilizada pelos judeus tanto como símbolo da religião como símbolo de temor a Deus. 2 Comunidade judaica que se estabelece de forma independente dentro de uma determinada da população e que se organiza à margem desta. É uma instituição política, 1
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pouco de sorte, estaria demasiado concentrado em sua tarefa para adivinhar as intenções de Maria. Se não, no pior dos casos, a moça podia correr. Era ágil como uma gata; antes que o homem desse conta, teria desaparecido por algum beco. Alheio ao que acontecia ao redor, o jovem se deteve junto à banca de Pedro. Na rua da Cutelaria se vendiam adagas,
punhais
e
estiletes,
assim
como
utensílios
domésticos de diferentes tipos; mas também havia bancas de comida e bebida. Pedro vendia cevada; nesse momento, precisamente, estava enganando a balança, enquanto distraía um cliente descuidado. Enquanto isso, deu um jeito de trocar um olhar cúmplice com Maria. Ela captou a mensagem: era seguro. Era o momento de agir. A moça caminhou com ar inocente para a sua vítima. Com as mãos nas costas, inclinava-se sobre as mercadorias e as contemplava com ar crítico, fossem sacos de grão ou bainhas de couro. Ao mesmo tempo, vigiava a bolsa que o jovem tinha pendurada no cinto. O cordão não parecia muito grosso. Quando esteve a menos de dez polegadas dele, ouviu que Pedro dizia: ― Quer provar a minha cerveja, senhor? Não encontrará outra melhor em toda a paróquia de São Salvador…, o que digo!, em toda a Saragoça. A minha cerveja sobe o ânimo, apura os sentidos e esquenta o corpo e a alma… cultural e religiosa com as suas próprias leis, seus próprios dirigentes, conselhos de anciãos e representantes para assuntos externos.
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Enquanto Pedro tagarelava, Maria tirou a faca da manga e cortou discretamente o cordão da bolsa, que caiu no chão com um ruído surdo. A moça a empurrou com o seu pé descalço para ocultá-la sob a banca; assim que o jovem se afastasse, se apoderaria dela. Ou isso pretendia fazer. Porque então as coisas ficaram feias. ― Muito bem, mercador ― disse o jovem judeu ―, dê-me um pouco de cerveja, vamos lá ver se é tão boa como dizem. Maria sentiu que o pulso se lhe acelerava. Se aquele homem levasse a mão à bolsa e descobrisse que a tinham roubado… Não, não podia permitir. Seguindo um impulso, a moça se precipitou sobre ele. ― Oh…! O jovem a agarrou pelos braços. Durante um instante, o seu olhar se encontrou com o de Maria; tinha os olhos grandes, escuros e inteligentes. A garota teve de adotar o seu melhor ar lisonjeiro. ― Perdoe-me, senhor, tropecei ― gaguejou ―. Lamento muito. O homem fez um gesto para tirar a importância do assunto. Maria desejou fervorosamente que esquecesse a cerveja de Pedro. Estúpido Pedro! O plano era distrair a sua vítima, não persuadir a que comprasse! A moça fingiu acanhamento e agachou a cabeça. Assim que o jovem se separou dela e deixou de lhe prestar atenção,
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voltou a colocar o pé debaixo da banca de Pedro e apalpou a bolsa com cautela. Então aconteceu. ― Um momento… Era a voz do homem. Maria decidiu não esperar para averiguar se a tinham descoberto com as mãos na massa: com movimentos firmes, agarrou a bolsa e pôs-se a correr na direção contrária. ― Eh! ― Ouviu o jovem gritar. Ela já estava dobrando a esquina. Não ouvia passos, nem ofegos nas suas costas; a sua vítima não tinha se dado ao incômodo de segui-la Maria sabia que o mais prudente era desaparecer imediatamente. Mas não pôde resistir à perversa tentação de olhar, por cima do ombro, para o jovem, enquanto fazia tilintar sua bolsa. ― Obrigada! ― zombou. Ele deve tê-la olhado com fúria. Mas, nesse momento, Maria já tinha começado a fuga para a rua dos Pregadores.
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Capítulo 2
A Igreja dos Pregadores era um edifício de pedra escurecida e úmida. Maria gostava pois, desde que era menina, os lugares res escuros afaziam se sentir cômoda. A salvo. Deteve-se se na entrada, onde os mendigos se encurvavam em frente a seus chapéus, e abriu a bolsa que tinha roubado do o jovem judeu. Extraiu dela um real de prata e o guardou na manga; o resto do conteúdo esvaziou aos pés dos mendigos. Um ancião chamado Johan perguntou: ― De onde você tirou isto, Maria? Maria esboçou um sorriso pícaro. ― Um homem me deu isso. ― Duvido. ― Não disse que ttinha me dado isso voluntariamente.
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Johan lhe dirigiu um olhar de recriminação, mas se apoderou de uma parte do saque e o colocou sob a sua saia imunda. ― Não conte a Catalina, está bem? ― Advertiu-a ―. Já sabe o que diz… ― Sim, sei: prefere dar-nos esmola que saber que roubamos ― Maria suspirou ―. Tentemos que não venha a saber, então. Johan lhe piscou um olho pegajoso. Maria girou sobre os seus calcanhares e se embrenhou na penumbra da igreja. A palha que cobria o chão rangeu sob os passos da moça. A Igreja dos Pregadores estava cheia de fiéis que rezavam em silêncio…, mas também de gente ociosa que cochichava, fazia negócios ou se tocavam, aproveitando a escassa luz. Quando passou diante de dois homens de meiaidade, viu claramente como apertavam suas mãos em sinal de acordo. Localizou Catalina em um canto. A mulher estava inclinada sobre um quadro de madeira meio por pintar; tinha um pincel na mão e prendia outro entre os dentes, e tinha os olhos tão semicerrados que pareciam duas linhas azuis. Uma vela de sebo ardia a seus pés, envolvendo a sua cabeça em um aura de ouro e luz. Maria se deteve atrás dela e contemplou o quadro em silêncio. Catalina estava pintando o abraço da Santa Ana e São Joaquim, um de seus motivos preferidos. Pouco a pouco, os dois vultos redondos dos protagonistas foram convertendose em figuras humanas: Maria já podia distinguir o véu de 10
Santa Ana e a barba de São Joaquim, e a graciosa inclinação de seus corpos, que mal se tocavam. Não obstante, detectou alguns erros impróprios de Catalina: por exemplo, o braço de Santa Ana estava torto, em uma posição estranha, e a cabeça de São Joaquim era anormalmente grande, em comparação com o tamanho de seu corpo. Catalina cuspiu um dos pincéis, esfregou os olhos e recolocou o véu com um suspiro. As mulheres mais velhas estavam acostumadas a cobrir a cabeça, sobretudo, quando visitavam a igreja; das mais jovens se esperava que, quando se consideravam modestas, levassem algum tipo de véu. Maria sacudiu a seus cabelos emaranhados. Ela não pensava em usar véu, nem em trançar o cabelo: nem estava casada, nem se considerava modesta de modo algum. Que a confundissem com uma prostituta seria o menor de seus problemas. Por fim, Catalina se dirigiu a ela: ― Olá, tesouro. Fico feliz em ver você. O coração de Maria deu um pulo. Provavelmente, Catalina era a única pessoa decente no mundo que se alegrava ao vê-la, e não se acostumava àquilo. Entre os amigos de Maria se incluía gente da pior índole, desde Pedro, o comerciante que alterava os pesos e medidas, até Johan, que tinha sido um trapaceiro e um trombadinha até que a idade e a dor nas pernas o obrigaram a mendigar. Maria tinha aprendido alguns de seus melhores truques com Pedro e Johan; com Catalina, no entanto, tinha aprendido outras 11
coisas. Coisas que, no fundo, a faziam desejar ir ao Céu com ela. Embora isso fosse um pouco complicado, dadas as suas…, ah…, ocupações. Por prevenção, se benzeu ante a tosca imagem da Virgem Maria, que repousava em um pilar a pouca distância do recanto de Catalina. A mulher seguiu o percurso de seu olhar. ― Já rezou para Maria? ― Um pouco ― murmurou ela. ― Eu deixei um ex-voto 3 na Igreja da Santa Engrácia esta manhã mesmo. Espero que sirva de alguma coisa. ― Como estão os seus olhos? A expressão de Catalina foi bastante eloquente. Maria mal podia distinguir a cor de sua íris sob a névoa que se estendia por eles. Seu estômago encolheu. Se Catalina ficasse cega… ― Não sei o que vou fazer ― disse a mulher em voz alta. Às vezes, parecia adivinhar os pensamentos de Maria ―, mas ainda não me vou preocupar com isso. Quando chegarmos ao rio, cruzaremos a ponte, não é verdade? Maria
lhe
deu
razão.
Catalina
guardou
os
seus
utensílios e deixou o quadro repousando em uma esquina, mas se deteve a meio caminho da porta com ar suspicaz. 3 Presente
dado pelo fiel ao seu santo de devoção em consagração, renovação ou agradecimento de uma promessa. As expressões votivas são tradicionalmente reconhecidas sob as formas de pinturas ou desenhos, figuras esculpidas em madeira, modeladas em argila ou moldadas em cera, muitas vezes representando partes do corpo que estavam adoecidas e foram curadas. Comumente são representados como placas com inscrições, manuscritos em papel ou como objetos de uso cotidiano, ressignificados no contexto religioso. São colocados em igrejas, capelas, estátuas, cemitérios, para pagar promessas, agradecer uma graça alcançada, consagrar ou renovar um pacto de fé.
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― O que estão fazendo aqueles dois? ― perguntou a Maria. ― Estão a negociar. Vi-os ao entrar. ― E não lhes disse nada? ― Se quiser, disfarço-me do Jesus Cristo e expulso os mercados do templo… ― Maria… ― O tom de Catalina era de advertência. ― Admita que me ficaria bem uma barba. ― Maria! ― A mulher franziu o cenho ―. Essa língua vai levá-la ao cárcere ou ao cemitério. ― De momento, levou-me a lugares mais interessantes. Botequins, por exemplo. ― Não tem remédio… Catalina a agarrou pelo braço e saíram juntas para a rua dos Pregadores. Ao cruzar a porta da igreja, Johan e os mendigos se despediram de Maria de forma entusiasta. Maria adotou um ar cândido, mas não lhe serviu de muito. ― A mim não tente enganar ― disse Catalina com tom severo ―, sou muito velha. ― Não sei do quê. ― Maria, já lhe disse isto: se necessitar de dinheiro, eu lhe dou. Não quero que o consiga com artimanhas. ― Agradeço-lhe muito isso ― respondeu Maria com sinceridade ―, mas não posso viver de sua esmola. ― Assinalou Johan e os outros com a cabeça ―. Nem sequer eles podem. Não se pode viver em dívida com o resto.
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― Comigo não têm nenhuma dívida, não sou uma agiota. ― Não é uma dívida material, mas moral. ― Moral? ― Até os ladrões têm disso ― disse Maria com um breve sorriso ―. Por muito que a apreciemos, Catalina, não podemos viver de sua caridade. Além disso, não lhe parece injusto?
Tanta
gente
passando
fome
e
uns
poucos
acumulando dinheiro e riquezas sem parar! Se eu fosse rica, não poderia viver com semelhante peso na consciência. ― Você nunca será rica, tesouro: os reais escapam às mãos cheias por entre seus dedos como se fossem a água de um arroio. Mal você toca em um pouco de dinheiro, desprende-se dele. ― E assim vivo em paz comigo mesma. ― Não queira viver muito em paz, não deixem que a levem presa! Maria soprou. ― Antes terão de me apanhar. A moça agarrou as mãos ressecadas de sua amiga. Os dedos de Catalina eram curtos e gordinhos; os de Maria, compridos e hábeis. ― Confie em mim ― murmurou a garota ―, sei cuidar de mim mesma. ― Não duvido. Maria lhe beijou a testa a Catalina e lhe soltou as mãos. ― Voltarei a vê-la logo! ― despediu-se. ― Isso espero. 14
― Adeus, Maria! ― gritou-lhe Johan da porta da igreja. A jovem sorriu e empreendeu o caminho de volta à sua paróquia da rua dos Pregadores. Ao dobrar a esquina, o ritmo de um pandeiro se mesclou com os gritos de um orador: ― Novos tempos se aproxima, logo verão! Tempos livres de heresia e superstição! Aqueles que não temem a Deus receberão o seu castigo! O Santo Ofício vigia a todos…! Maria se reprimiu para não chutar o barril no qual o pregador estava em cima e passou longe. Ela tinha a sua própria opinião sobre o Tribunal do Santo Ofício, mas sabia que não era prudente expressá-la em voz alta. Em qualquer caso, tinha outros assuntos com os quais preocupar-se. Como a perda de visão de Catalina. Se a mulher deixasse de pintar, como ganharia a vida? E o mais importante: como o suportaria? Catalina amava as suas pinturas, punha em cada uma delas uma pequena parte de sua alma. Mas a Maria não lhe ocorria nenhuma solução. Ela mesma sabia pôr cataplasmas de argila nas feridas e entalar ossos quebrados, mas devolver a vista a uma pessoa que estava ficando cega lhe parecia mais obra de Santos que de médicos. Assim, à falta de algo melhor para fazer, decidiu aliviar a sua inquietação com uma taça de vinho barato.
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Capítulo 3
“A A Donzela e o Caldeirão Caldeirão” era um botequim situado na n Coso4. De e vez em quando, Maria rondava por ali em busca de mercadores ansiosos os por converter os seus lucros em vinho e ela dava um jeito para colocar a mão em um par de bolsas. Mas, para variar, hoje ela gastaria o seu dinheiro. Bom, não era exatamente dele. Mas o jovem judeu já não o recuperaria,, e a Maria parecia uma pena não lhe lh dar um bom uso. De modo que a ali estava, tava, com os pés sujos pendurados pendura de um barril que fazia de assento, bebendo goles de vinho quente e escutando com dissimulação as conversas alheias. Uma mulher se queixava de que a sua filha ma mais velha visitava um moço pelas noites; outra dava o peito a seu bebê
4Uma
das s ruas mais antigas e importantes de Saragoça.
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recém-nascido, enquanto o seu marido se lamentava porque tinha nascido um furúnculo no seu olho direito. ― Olhem, olhem como tem pus! ― Estava dizendo. A julgar pela expressão de quem o rodeava, devia ser uma imagem bastante desagradável ―. Eu não posso trabalhar assim! O homem afogou as mágoas em seu copo. Então alguém lhe disse: ― Por que não vai ver o médico judeu? Dizem que opera milagres com os olhos. Recentemente devolveu a vista à sogra de Alonso de Cavalaria, que estava cega como uma toupeira… O coração de Maria acelerou ao escutar aquilo. Inclinouse para diante e aguçou o ouvido. ― Um judeu? ― respondeu o doente com tom mordaz ―. E o que lhe digo, que eu sou cunhado de Alonso da Cavalaria? Que vou pagar-lhe com orações a seu falso deus? ― Algumas pessoas se benzeram ―. Mais me vale rezar a Santa Engrácia. Todos sabemos como são esses ratos da aljama. ― Ratos ― Uma mulher o apoiou. O homem e a sua esposa foram embora em seguida, mas Maria ficou pensativa durante um bom pedaço Ela estava acostumada a andar pela aljama sem problemas. Para encontrar o médico, apenas teria de perguntar. Mas, o que ia lhe dizer? Que ela, Maria, necessitava de um milagre para a sua amiga Catalina, mas que nenhuma das duas podia pagá-lo? Maria não sabia quanto cobrava um 17
médico judeu, mas estava segura de que nem Catalina, nem ela tinham visto tantos reais juntos em toda a sua vida. Contemplou o seu copo de vinho vazio e lamentou ter-se desprendido tão rapidamente do dinheiro roubado. Pelo menos, teria tido alguma coisa com o que começar a persuadir o médico judeu. A jovem suspirou. Ela podia roubar quase qualquer objeto, podia enganar quase qualquer incauto…, mas não podia convencer uma pessoa instruída a cumprir os seus desejos. Mas recordou a expressão bondosa de Catalina e disse a si mesma que, pelo menos, tinha de tentar. De modo que ficou em pé e, sem pagar o seu copo de vinho, saiu às escondidas de “A Donzela e o Caldeirão”.
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Capítulo 4
A aljama tinha duas partes: a mais anti antiga ga estava dentro dos muros da cidade e a mais moderna, fora. O primeiro era uma amálgama de casas e becos, ruidosa e carregada de aromas fortes; na segunda, os edifícios s se e intercalavam com as hortas e eiras eiras.. A parte nova era mais límpida e luminosa…, mas Maria preferia a antiga. Sem sombra de dúvidas. Gostava de perambular pelas ruelas, bisbilhotar os arredores da Sinagoga Maior e do o hospital e contemplar, contemplar com mórbida fascinação fascinação, os muros do castelo, que servia como tribunal e cárcere para os judeus. Estav Estava a acostumada acostumad a parar junto do o açougue e a perguntar-se se qual seria o sabor daquelas
peças
que
gotejavam
gordura,,
e
desfrutava
admirando o brilho dos objetos de prata que os mercado mercadores exibiam na rua da Prata Prata.
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Também era um bom lugar para roubar. Mas, por uma vez, Maria estava ali com boas intenções. Mais ou menos. Assim que chegou à rua da Prata, deteve-se em frente à banca de um homem de aspecto amável e perguntou: ― O médico, por favor? O mercador inclinou a cabeça e o quipá escorregou até sua testa. Teve que recolocá-lo antes de responder: ― Na rua do Espinheiro. Posso saber para que…? ― Obrigada! ― Maria o interrompeu, e correu rua acima. O homem parecia amistoso, sim…, mas não gostava de dar explicações. Sempre que o fazia, acabava tendo problemas. Antes de abandonar a rua da Prata, contemplou o seu reflexo em uma bandeja de prata. A sua pele parecia muito escura, mas Maria suspeitava que se devia à camada de imundície que a cobria; quanto à sua cabeleira, a jovem tinha visto ninhos de cobras mais ordenados. A roupa tampouco ajudava, pois apenas contava com a saia puída que Catalina lhe tinha oferecido um pouco antes do Ano Novo. A mulher também lhe tinha comprado uns tamancos, mas Maria estava acostumada a andar descalça e os sapatos a incomodavam (sempre e quando não chovesse ou nevasse); agora lamentava não se ter calçado para ter um aspecto mais respeitável. Bom, tampouco podia fazer grande coisa para remediálo. Sabia que apenas contava com uma arma: seus olhos. Tinha-os grandes, castanhos e adornados por espessas pestanas escuras. E tinha aprendido a controlar o seu modo de olhar para as pessoas às quais se dirigia. Sabia como lhes 20
inspirar pena ou simpatia, dependendo da situação; e também sabia como atemorizá-las, se fosse necessário. Mais de uma vez se livrara de confusões desagradáveis usando apenas o seu olhar e a pequena faca que sempre levava na manga. Naturalmente, ao médico judeu não podia (nem devia) assustá-lo. Mas tampouco acreditava que fosse um homem de lágrima fácil, por isso não recorreria à patetice. Na verdade, confiava na sua eloquência para convencê-lo. Sabia que os judeus estavam acostumados a gostar de arte e, se lhe dissesse que Catalina era uma excelente pintora, talvez… Clareou a garanta e continuou a perguntar às pessoas até que localizou a rua do Espinheiro. Na verdade, era um beco. Qualquer um o encontrava subindo a rua da Prata e virando à esquerda. As casas estavam tão encostadas umas às outras que mal deixavam passar a luz. A casa do médico estava à direita. Era um edifício de dois andares, com as paredes de tijolo cru sujeitas com vigas de madeira e um telhado de aspecto sólido, embora ligeiramente torto. Em frente à porta crescia, precisamente, um denso arbusto negro. Havia
um
letreiro
pintado
na
madeira.
Desgraçadamente, Maria não sabia ler, por isso teve de deduzir que aquela era a Casa do Espinheiro. Decidida, agarrou na pesada aldraba de bronze e bateu. Pum, pum, pum. Nada. 21
Esperou um pouco antes de repetir o gesto. Pum, pum, pum. ― Já vou! ― disse uma voz sufocada do outro lado da porta. Maria engoliu em seco. Era uma voz profunda e aveludada; não parecia a de um homem mais velho. Por alguma razão, ela tinha imaginado que o médico seria um judeu ancião e venerável. A porta se abriu com um golpe seco. O interior estava na penumbra; ninguém apareceu na soleira, mas a mesma voz disse: ― Adiante. Em seguida estarei livre, apenas preciso tirar isto do fogo… Maria piscou e distinguiu um pátio escuro iluminado pela luz que ardia em um recanto. A silhueta negra do médico se recortava contra as chamas; estava de costas, afastando uma chaleira do fogo. O homem deixou o recipiente sobre uma mesa e limpou as mãos no avental. Depois se voltou para Maria. E, por fim, a luz que entrava pela porta aberta iluminou a sua cara coberta de suor. Os seus olhos se abriram pelo assombro. ― Você…! Os nervos subiram pelas pernas de Maria, mas a moça não foi o bastante rápida: pois quando quis começar a fugir, o jovem já tinha fechado a porta.
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Capítulo 5
O homem elevou as sobrancelhas. ― Aonde pensa que vai? Maria apertou os punhos. ― Abra a porta! ― Tem pressa? ― Deixe-me sair! O médico (era ele de verdade?) estendeu a mão e falou com tom severo: ― Devolva a minha bolsa. Depois a deixarei ei sair. A moça semicerrou os olhos. ― Já á não a tenho. ― Como? ― Não ão tenho o dinheiro! ― Gastou-o todo todo? Em um dia? ― Sou eficiente.
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― Não entendo. ― O jovem a olhava com incredulidade ― Não veio devolver a minha bolsa? ― Pode soar estranho, mas nós os ladrões estamos acostumados a ficar com o que roubamos. Se não o fizéssemos, não teria graça. Enquanto falava, tentava encontrar uma saída. Sem êxito. O médico piscou. ― Mas, se não veio por causa disso, o que quer de mim, mulher? ― Disseram-me que esta era a casa do médico, mas não sabia que era você. ― bufou Maria ― Evidentemente. ― Evidentemente. ― repetiu o jovem com frieza ― Não parece doente, sabe? ― Não estou. Não venho por mim. ― Então? Maria deixou de procurar uma saída e contemplou o homem que tinha diante. Era alto e de compleição forte, com a cara quadrada e os traços grandes. Possuía os cachos característicos dos habitantes da aljama, mas a sua tez era mais clara do que o normal e tinha olheiras marrons em redor dos olhos. Saltava à vista que não saía muito ao exterior. Embora, independentemente de tudo, o seu aspecto era agradável…, ou tão agradável quanto podia ser alguém que observava Maria como se fosse um animal falante. A moça se obrigou a pensar em Catalina. ― Tenho uma amiga que está ficando cega. Pinta lindos quadros e miniaturas; não só ganha a vida com isso, como 24
também as suas obras são um presente para a vista. Se pudesse ajudá-la… ― Está me pedindo ajuda? ― o médico a interrompeu. Maria resmungou: ― Bom, na verdade… ― Está me pedindo ajuda? ― insistiu ele ― Ao homem ao qual roubou em plena rua? Pensa que vou mover um só dedo por você? ― Esqueça-se de mim! Estou pedindo-lhe ajuda para outra pessoa, uma pessoa maravilhosa. ― Se você o diz… ― Que eu seja uma criatura desagradável não quer dizer que meus amigos também sejam! ― disse Maria com ferocidade ― Se conhecesse Catalina, pensaria o mesmo que eu! O médico voltou a elevar as sobrancelhas. ― Considera-te uma criatura desagradável? Por fim estamos de acordo em alguma coisa. ― Insulte-me, se quiser. ― Maria lhe espetou ― Não me importa. Só quero que opere um milagre e Catalina possa continuar a pintar. Só isso. O jovem cruzou os braços sobre o peito. ― E como pensa em me pagar? Ao ver a cara de Maria, estalou a língua. ― Teria de devolver-me o dinheiro que me tirou, que são uns quantos reais de prata, e a isso somaríamos o preço da cirurgia. Honestamente, ― suspirou ― jamais conseguirá
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reunir o dinheiro…, a não ser que roube a bolsa do rei Fernando. A moça sentiu que a raiva lhe amontoava na garganta. ― Muito bem, não o faça! ― gritou ― Deixe que Catalina fique cega! Magnífico, para você é igual, não? Desde que tenha o seu precioso dinheiro… ― Tome cuidado com o que diz… ― Ou o quê? Vai me bater? Ou me denunciará às autoridades? ― Maria sabia que tinha de controlar-se, sabia; mas, simplesmente, não suportava ver a expressão daquele médico presunçoso. ― Para que saiba, não me dá nenhum medo! ― Quer se acalmar? ― disse ele com aspereza ― Não vou fazer nada disso… ― Faça o que lhe dê vontade! A paciência do jovem deve ter-se esgotado, porque pôs as mãos nos ombros de Maria e a sujeitou com firmeza. ― Crê que essa é a forma de se dirigir a alguém que roubou? ― E o que pretende, que me ajoelhe ante você e lhe suplique clemência? Que lhe peça perdão com lágrimas nos olhos? Isso é o que querem os ricos: ver-nos humilhados, enquanto lhes rogamos que nos deixem viver…! A seu pesar, tinha os olhos úmidos. Esfregou-os com impaciência; não poderia suportar que aquele homem a visse chorar. Mas sentia tanta raiva, tanta impotência… O jovem a soltou. Durante um momento, nenhum dos dois disse nada mais. 26
Então ele murmurou: ― Ocorre-me uma solução… ― Maria. ― disse ela com voz sem vida ― Me chamo Maria. ― Você gostaria de ser minha ajudante, Maria? As suas palavras a deixaram petrificada. Por fim, voltou a olhar para o médico. A julgar por sua expressão, não parecia estar brincando. ― Sua… ajudante? ― Seria bom ter alguém que me desse uma mão. ― disse ele ― Cada vez são mais os que me chamam para que os examine e lhes dê um tratamento, mas não é fácil administrar remédios ou colocar talas em ossos quebrados sem ajuda, para não falar em operar. ― Mas por que eu? ― grunhiu Maria ― Eu não sei fazer nada. Os lábios do jovem se curvaram em um sorriso. ― Mas a você eu não teria que pagar. ― Não? ― É uma boa solução para que salde as suas dívidas comigo, sem que me veja obrigado a informar as autoridades. Se trabalhar comigo até o outono, estaremos quites. O que me diz…, Maria? A garota esticou os músculos. Era o primeiro dia de abril; parecia que faltava uma eternidade para o outono. Ia ser o bichinho de estimação de um médico judeu durante todo aquele tempo? Esteve a ponto de cuspir na cara dele. 27
Mas depois pensou em Catalina e em suas pinturas. E se lembrou de seus olhos, enevoados pela bruma que ameaçava cegå-la para sempre. E ouviu a si mesma resmungar: ― De acordo.
28
Capítulo 6
Maria já estava acordada quando cantou o galo. Saiu se arrastando do colchão e se esticou como um gato. Depois se dirigiu para a lareira e examinou o conteúdo da panela: a sopa
de
pão,
nabos
e
caroços
de
maçã
borbulhava
lentamente, e, e a moça engoliu uma boa quantidade como café da manhã. Uma vez saciada, abandonou a sua espelunca na rua da Cutelaria e se dirigiu para a porta Queimada. Ele ia esperá-lla ali. O seu eu nome era Enoc d de Aguilar. Era tudo o que Maria tinha averiguado sobre ele. Ela apenas tinha lhe dado o seu primeiro nome. ― Maria de Saragoça ― disse com tom cortante quando Enoc quis saber o seu sobrenome. Ele não insistiu.
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Maria foi a primeira a chegar junto da porta Queimada, mas o médico não se fez esperar: pouco depois dela se deter junto às pedras enegrecidas, apareceu no extremo oposto da rua. Maria o recebeu com um bocejo que indicava o quanto gostava de estar ali. Mas Enoc não pareceu perceber: levava uma bolsa de couro pendurada no ombro e parecia animado. ― Espero que esteja bem acordada. ― Foi a sua saudação ― Temos muito que fazer. ― Vai operar Catalina? ― Ainda não. Antes tenho que atender outros pacientes. Maria se sentiu defraudada. ― Mas… Enoc não lhe deu tempo para protestar: pois quando Maria se deu conta, já percorria a rua da Porta Queimada. Os passos dele eram compridos e rápidos, por isso a moça teve de correr atrás dele para alcançá-lo. ― Estava falando com você! ― protestou. ― E agora também ― comentou ele. Maria contemplou o seu elegante perfil. E sentiu desejo de sacudi-lo. ― Não vai operar a minha amiga? ― voltou à carga. ― Só quando tiver a certeza de que vai cumprir com a sua palavra. ― Como? ― Se eu a operar hoje, você virá amanhã? Maria não se atreveu a dizer que sim. Uma coisa era mentir a uma pessoa desconhecida na rua; outra, enganar 30
alguém com quem tinha feito um trato. Enoc tinha razão: se operasse Catalina em seguida, Maria não se daria ao trabalho de acompanhá-lo em suas visitas médicas. E ele tinha compreendido aquilo imediatamente! Que aborrecimento… Resignada, seguiu-o para a Coso. O seu primeiro paciente foi um artesão de meia-idade que vivia perto da aljama. A sua casa tinha dois andares, era espaçosa e estava limpa; no fundo, Maria teve esperança de poder entrar para bisbilhotar. Mas, quando se dispunha a cruzar a soleira da porta, Enoc a deteve: ― Tem que se lavar. A garota ficou paralisada. ― Como? ― Não pode me ajudar com as mãos tão sujas. Vá à fonte e se lave. ― A fonte está do outro lado da Coso! ― protestou ela ― Não poderia ter me falado isso antes? ― Sim ― concedeu o médico ―, mas não me apeteceu. Maria rilhou os dentes, mas pensou em Catalina e disse: ― Bem. Volto em seguida. Fez o caminho de ida e volta à fonte arrastando os pés. Quando retornou à porta do paciente, Enoc estava esperando por ela. ― Continua a ter a cara suja ― a fez notar. ― E que mais dá? Não vou tocar nesse senhor com a cara. ― Vá lavar-se. 31
― Outra vez? ― Maria se indignou ― Antes não me disse que tinha que fazê-lo! ― Mas estou lhe dizendo isso agora. Enoc a olhava com tranquilidade. Estava brincando com ela? Maria não estava certa, mas se sentia irritada; não estava acostumada a receber ordens, e muito menos a ter a sensação de que alguém lhe tirava o sarro. Mas o médico continuava observando-a sem se alterar. ― Bom, vai se lavar de uma vez ou tenho de perder todo o dia com você? «Isto o faz por Catalina, ― Maria se recordou ― só por Catalina. Por isso, engula o orgulho e obedeça». A jovem girou sobre os seus calcanhares e refez o caminho, sem deixar de imaginar diferentes torturas para Enoc. Como não podia levar a cabo nenhuma delas sem se meter em confusão, conformou-se em colocar a cabeça inteira na fonte e voltar jorrando. Quando esteve ao lado do jovem médico, se sacudiu como um cão, salpicando gotas de água por toda parte. ― Divertiu-se? ― perguntou ele com frieza. Maria viu como ele secava a bochecha com perversa satisfação. ― Muito. ― respondeu com descaramento. Enoc se aproximou um pouco mais a ela. Passava-lhe uma cabeça de altura e, quando não sorria, parecia um homem sério, quase temível. Ao sentir a sua respiração na cara, Maria se encolheu involuntariamente. Felizmente, ele apenas disse: 32
― Já basta de perder tempo. E entrou em casa. Maria o seguiu por um pátio de pedras cinzentas e uma escada muito desgastada. A casa devia ser antiga, mas, como o dono não pertencia a nenhuma linhagem, Maria supôs que ou a tinha comprado ou a tinha obtido casando-se com uma mulher de família nobre. Descobriu que se tratava desta última hipótese, quando viu a senhora: era uma dama muito distinta, embelezada com sedas e brocados e toucada com um lenço decorado com renda. Saudou Enoc com elegância; a Maria dirigiu um olhar desdenhoso. Quando ela lhe deu as costas, Maria colocou a língua de fora. Então captou um olhar impaciente de Enoc. E se sentiu ligeiramente envergonhada. O senhor lhe pareceu mais simpático que a sua esposa, embora
parecesse
bastante
doente:
a
sua
cara
tinha
adquirido um tom amarelado e mal se podia levantar, para não falar do fedor que desprendia. ― É a peste, doutor? ― gemeu baixinho. ― Apareceu algum inchaço estranho no seu corpo? ― perguntou Enoc. ― Não, que eu saiba. Por prevenção, o médico lhe apalpou o pescoço e as axilas. Depois disse com tom cordial: ― Não acredito que seja a peste. Permite-me…?
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O jovem colocou o polegar entre os lábios do paciente e empurrou para cima. Maria se deu conta de que pretendia examinar suas gengivas e ela mesma estirou o pescoço para olhar. ― Quem é esta empregada? ― perguntou a senhora com frieza. ― Minha ajudante. ― respondeu Enoc distraidamente. Maria ignorou deliberadamente a mulher e se dirigiu ao médico: ― As gengivas estão sangrando. ― Já vi. ― Enoc retirou o polegar da boca do homem ― Come verduras com frequência? ― As verduras são para o gado. ― respondeu ele com um gesto depreciativo. ― E para você, se quiser se recuperar, ― disse o médico com suavidade ― diga à sua cozinheira que lhe prepare verduras de todos os tipos: couves, cebolas, cenouras…; duas porções por dia, pelo menos. O paciente fez gesto de protestar, mas Enoc prosseguiu, implacável: ― E coma fruta, também. As laranjas são boas para a sua doença, mas não está na época, por isso terá que se conformar com maçãs. ― As maçãs damos aos porcos… ― Por isso os seus porcos gozam de boa saúde. Uma gargalhada escapou de Maria. Tapou a boca com as mãos, mas já era tarde: a senhora da casa lhe dirigiu um olhar ácido e se afastou dela. 34
Curiosamente, a reação do senhor foi diferente: ― Pois é verdade, os nossos porcos são gordos e saudáveis. ― admitiu ― Talvez devesse tomar o exemplo deles. O homem curvou para cima a comissura do lábio e Maria lhe sorriu abertamente. Até Enoc se permitiu um discreto sorriso. ― Que tal estive? ― perguntou-lhe a moça quando voltaram para a Coso. Ele a olhou com ironia. ― Mas se não fez nada. ― Claro que sim! Disse-lhe que as gengivas daquele homem sangravam. ― Espero que isso não a tenha deixado exausta. ― Por que lhe disse que comesse verduras? ― Porque isso curará a sua doença. ― Eu só como nabos e maçãs. ― Os nabos e as maçãs são bons. E são baratos. Maria sorriu amplamente. ― São realmente baratos, sim. Sobretudo, se a horta ou a macieira são de outro. Enoc levantou uma sobrancelha. ― Orgulha-se de ser uma verdadeira ladra? ― Me considerarei uma verdadeira ladra quando for por aí exigindo às pessoas que me deem o dízimo. ― respondeu ela com aspereza ― De momento, sou uma ladra. Apenas. Como Enoc não respondeu, Maria pôs-se a andar com dignidade. 35
― É pelo outro lado. ― ele lhe disse. ― Não sabia! ― bufou ela. ― Não é preciso gritar. Posso escutá-la perfeitamente. O nosso próximo paciente está na rua dos Pregadores. ― É Catalina? ― Maria se sentiu esperançosa. Mas não era Catalina, e sim um menino de oito ou dez anos que tinha uma lasca cravada no pé. Dessa vez, não tiveram que visitar o menino em sua casa: a sua mãe os esperava na porta. ― Não quero! ― protestou o menino ao ver Enoc. O médico o ignorou e extraiu umas pinças de sua bolsa. ― Mostre-me o seu pé. ― Não! ― Johan, querido, só será um momento… ― a sua mãe o embalou. Mas o pequeno Johan sacudiu a cabeça com vigor. Então Maria interveio: ― Sabe que eu também tenho um amigo que se chama Johan? O menino e a sua mãe a olharam com o mesmo receio, mas ela prosseguiu: ― Ele também cravou uma lasca quando tinha oito anos. Os olhos verdes do menino se abriram de par em par. ― Doeu? ― murmurou. ― Bastante. ― admitiu Maria ― Quer que lhe conte como foi? ― Sim. 36
― Bem. ― A moça clareou a garganta. Enquanto isso, a mãe do menino já estava tirando seu sapato. ― Resulta que Johan ficou brincando na oficina do carpinteiro. E a sua mãe lhe dizia: «Johan, não brinque descalço, que cravar-se-á uma lasca!», mas a Johan entrava por um ouvido e saía pelo outro… Enoc agarrou o pé de Johan e o levantou até que a rosada planta ficou à altura de seu nariz aquilino. Maria o espiou pela extremidade do olho, mas continuou a falar: ― … então foi brincar descalço. E, naturalmente, cravou uma lasca em seu pé… Então o menino se deu conta do que estava fazendo Enoc e afastou o pé velozmente. ― Não quero! ― repetiu com energia. Mas Maria prosseguiu com tom lúgubre: ― E, como Johan não quis que nenhum médico lhe tirasse a lasca do pé…, ficou coxo para sempre! O menino a olhou com espanto e balbuciou: ― A sério? ― A sério. Agora passa o dia mendigando na porta da Igreja dos Pregadores. ― suspirou ela ― Se arrepende muitíssimo da decisão que tomou, mas já é muito tarde para voltar atrás. Enfim, ― acrescentou com tom ligeiro ― posso apresentá-lo a você se quiser. Se por acaso você também acabar coxo para sempre. Pouco
depois,
Maria
se
despedia
alegremente
do
menino, a quem Enoc tinha enfaixado o pé depois de tirar uma lasca com uma polegada. 37
― Como sabia que a tinha cravado na oficina de um carpinteiro? ― perguntou-lhe o médico em voz baixa. Ela encolheu os ombros. ― Não sabia, mas onde ia fazê-lo, se não aí? ― E é verdade a história que lhe contou? ― Claro que não. Tenho um amigo coxo que se chama Johan, sim, e mendiga na Igreja dos Pregadores, mas não cravou nenhuma lasca quando era pequeno. ― E por que inventou isso? ― Porque esse pirralho idiota não ia deixar tirar a lasca se não lhe colocássemos um pouco de medo. ― Tem uma forma curiosa de se relacionar com as crianças. ― Curiosa, mas eficaz, não lhe parece? ― replicou ela ― Quanto dinheiro ganhamos? ― Quanto dinheiro ganhei, quer dizer… ― Eu também o ganhei, outra coisa é você ficar com ele. ― Ganhamos o suficiente. ― disse Enoc sem perder o bom humor ― Mas ainda temos trabalho a fazer. O médico se encaminhou para a praça da Alhóndiga5, onde disse que se ocupariam de um paciente especial. ― Quem é? ― perguntou Maria. Mas Enoc não disse. Nos arredores da praça da Alhóndiga viviam mudéjares6 e mouriscos, sobretudo. As casas eram diferentes das que Espaço de depósito e comercialização de bens alimentares e mesmo outras mercadorias onde só se pagavam taxas por aquilo que se vendia, ou seja, os bens não vendidos não eram taxados. Além da função puramente comercial, em muitos casos destinavam-se também a garantir o abastecimento das populações em geral e principalmente os camponeses em épocas de escassez. 5
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rodeavam a Coso; algumas delas tinham pátios e, até, cisternas. Maria não estava acostumada a andar muito por ali. Quando chegaram à praça, Enoc se deteve junto a um chafariz e esperou. Ao cabo de um momento, uma figura diminuta se aproximou deles. Ao princípio, Maria nem sequer a viu. Esperava encontrar-se com uma pessoa adulta, por isso não deu importância à menina de tez escura que se aproximava. Só quando Enoc se agachou para saudá-la compreendeu que era ela quem tinham ido ver. ― Bom dia, Fátima. ― disse Enoc em tom cordial ― Vá, já não está tão quente! Sente-se melhor? A menina disse que sim com a cabeça. Era muito morena e estava vestida com farrapos, mas os seus olhos se iluminaram ao contemplar o médico. ― Parece que sim. ― Enoc lhe tocou na testa e assentiu ―. É uma boa notícia, mas não esqueça que, se voltar a ter temperatura, deve se banhar em água bem fria. Está bem, Fátima? A menina voltou a sacudir a cabeça vigorosamente. Depois olhou para Maria. ― Ela é a minha nova ajudante: Maria. ― Enoc lhe explicou ― Ladra como um cão, mas não morde. 6Muçulmanos
ibéricos que permaneceram em território conquistado pelos cristãos, e sob o seu controlo político, durante o longo processo da chamada Reconquista, que se desenvolveu ao longo da Idade Média na Península Ibérica. A estes muçulmanos foi permitido prosseguir a prática da sua religião, utilizar o seu idioma e manter os seus costumes. Durante a Idade Moderna foram obrigados a converter-se ao cristianismo, passando assim a denominar-se mouriscos.
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Maria sentiu o impulso de golpear Enoc…, mas então voltou a olhar para Fátima. A menina a fazia lembrar de um camundongo do campo. E, sem saber por que, ladrou: ― Uau! Uau! Maria não teria sabido dizer quem parecia mais surpreso, se Fátima ou Enoc. Mas, depois de um momento, a menina riu. Maria voltou a ladrar. Fátima soltou uma gargalhada; depois lhes disse adeus com a mão e trotou para um beco. As suas pernas pareciam palitos golpeando um tambor. Enoc se ergueu com um grunhido. ― É suficiente por hoje. ― anunciou. Maria e ele começaram a andar pela Coso. Quando chegaram aos muros da aljama, o jovem se deteve. ― Eu fico aqui. Se me distraio, terei problemas. Maria sabia. Os judeus podiam andar livremente por Saragoça, mas só durante o dia; ao cair a noite, deviam permanecer atrás dos muros da aljama. ― Espero por você amanhã na porta Queimada ― disse Enoc ao se despedir. ― Adeus. Maria lhe deu as costas e voltou para a rua da Cutelaria arrastando os pés. Tinha sido um dia longo e pouco frutífero. Estava cansada e o estômago lhe rugia vorazmente; não tinha tido tempo de roubar nenhuma bolsa, nem sequer um punhado de maçãs rachadas. Ainda havia um pouco de sopa e uma 40
réstia de cebolas, mas o que aconteceria quando as suas reservas se esgotassem? A preocupação perfurou seu ventre com a mesma ferocidade que a fome. Mais lhe valia persuadir Enoc a curar Catalina o mais rápido possível; caso contrário, teria problemas. Maria se refugiou em sua choça, engoliu um miserável jantar e, com aqueles amargos pensamentos torturando-a, adormeceu exausta.
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Capítulo 7
Os dias seguintes transcorreram da mesma maneira. Maria se encontrava ncontrava com Enoc na porta Queimada à primeira hora da manhã e voltava para casa no crepúsculo. Os dois percorriam Saragoç ça visitando os seus pacientes; quase todos eram ricos e pagavam bem, mas alguns, como a pequena Fátima, eram pobres como rato ratos. Enoc os atendia sem se importar,, e essa era uma das poucas virtudes que Maria reconhecia em seu interior interior. De resto, o médico podia chegar a exasperá exasperá-la. la. Irritava-a Irritava a sua altura, que ele exibia com mal dis disfarçada satisfação, e a velocidade com que caminhava, poi pois a obrigava a correr atrás dele como um cachorrinho atrás de seu dono. Também a punham nervosa a sua forma de sorrir dissimuladamente, dissimuladamente quando ela abria a boca boca, e o tom zombador que empregava para lhe dar indicações indicações.
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― Agarre-a melhor! ― disse no terceiro dia de trabalho, quando tiveram que entalar a perna de um homem rico que tinha tropeçado durante uma bebedeira colossal. ― Se não, acabarei enfaixando sua cabeça. ― E assim terá um turbante que será a inveja de qualquer sultão. ― respondeu ela com tom cortante. Felizmente, o paciente acolheu o seu comentário com uma gargalhada. Mas Maria captou o olhar irritado de Enoc… e isso não lhe provocou nenhuma satisfação. Verdadeiramente, não a incomodava visitar os feridos e os doentes. Não cheiravam bem, e alguns se queixavam muito, mas era interessante escutar os seus sintomas e ver como Enoc os diagnosticava e lhes receitava (ou aplicava) um tratamento. Além disso, Maria não era escrupulosa: agarrar em bacias cheias de vômito, limpar feridas abertas ou enfaixar membros machucados não a impressionava muito. Não, o problema era Enoc. Maria odiava se sentir presa a ele. Tinha o dia ocupado e a despensa vazia por sua culpa. Até Pedro notou: ― Por onde anda, Maria? ― perguntou-lhe uma manhã. ― Agora ajudo o médico judeu. ― O médico judeu? Mas, por quê? Pedro a olhou com assombro. A rua da cutelaria não estava muito cheia, mas Maria se sentia observada…, e não gostava. ― Não é assunto seu ― disse com tom cortante.
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Não pensava em dar explicações. Não ia falar da vida de Catalina, nem da sua. Pedro assobiou, mas não insistiu. E, como sempre, Maria se dirigiu para a rua da Porta Queimada. Enoc já estava esperando. ― Chega tarde. ― Sei. ― Encontra-se bem? Está pálida. ― Não é nada. ― Mas… ― Está surdo? Disse que não é nada! Maria se arrependeu de ter gritado, mas já era tarde demais. O médico ficou calado por um momento. Então Maria sentiu uma espetada no estômago; deve ter posto cara de dor, porque Enoc estalou a língua. ― Não me vai contar o que lhe dói? ― Não. Mas, sem dar-se conta, levou as mãos ao ventre. ― Comeu alguma coisa antes de vir? A garota sacudiu a cabeça com inapetência. ― Por que não? ― E a você o que importa? ― É minha ajudante… ― Sua serva, isso é o que eu sou! Maria agarrou o estômago para ocultar o tremor de suas mãos.
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― Não ponha essa cara! ― cuspiu ― Levo uma semana seguindo-o como um cão espancado, porque me disse que curaria uma pessoa que me importa, mas não pensa em fazêlo, agora me dou conta! É um mentiroso, um mentiroso e um pão-duro…! ― Já chega. ― Enoc a interrompeu ― Faça o favor de vir comigo. Maria sentiu que os olhos se enchiam de lágrimas de raiva. ― Como se tivesse escolha! ― gritou. O jovem se aproximou dela e levantou seu queixo. Maria sentiu o toque áspero de seus dedos, mas não afastou a cara. Os seus olhos se encontraram com os de Enoc… … e algo nesse olhar lhe provocou um calafrio. ― Venha comigo, ― disse ele em voz baixa ― Maria. Maria. Tinha-a chamado de Maria. Era a primeira vez que pronunciava o seu nome. Por fim, a moça reagiu e deu um passo atrás. Mas, quando Enoc se pôs a andar rua acima, foi atrás dele. Cruzaram os muros da aljama, percorreram a rua da Prata e chegaram à do Espinheiro. Então Enoc tirou a sua chave e abriu a porta de sua casa. ― Entre! ― indicou. Maria se sentiu aliviada ao se refugiar no interior quente do pátio. O fogo estava quase apagado, mas o jovem não o foi avivar, mas sim se dirigiu para uma escada que havia à esquerda. 45
Maria o seguiu até uma cozinha em cujo centro havia uma lareira. Enoc lhe ofereceu um assento em frente ao fogo e começou a remexê-lo; enquanto isso, Maria se entreteve a contemplar o cômodo. Não era muito grande, mas estava limpo e arrumado; havia várias fileiras de sacos e um par de tonéis, e um montão de potes de cobre pendurados nas paredes. Além disso, podia distinguir o aroma de tomilho e de alecrim misturando-se com o da madeira queimada. ― Bem se nota que é rico. ― disse em voz alta ― Eu acendo o fogo com merda, não com madeira. Ouviu
que
Enoc
bufava.
Custou-lhe
um
pouco
compreender que estava rindo. Depois de um pouco, o jovem se ergueu e pôs em frente a ela um prato com vários pedaços de pão ázimo, dois ovos cozidos, umas folhas de couve e um punhado de nozes. Maria o olhou de esguelha. ― Isto é para mim? ― Não, é para o rei Fernando. A moça bufou e se apoderou de um pedaço de pão. ― Não quero a sua caridade. ― disse com a boca cheia. ― Não é caridade, é hospitalidade. ― Tampouco quero a sua hospitalidade. Não somos amigos, nem sequer gosta de mim. ― É isso que pensa? Enoc se sentou a seu lado. Nunca antes tinham estado tão perto; de fato, não tinham voltado a estar sozinhos desde que Maria se apresentara na Casa do Espinheiro pela primeira vez. 46
Maria lhe voltou a cara e agarrou um punhado de nozes. ― Eu tampouco gosto de você, sabe? ― Deduzi quando me insultou. A garota engoliu e ficou olhando para o fogo. Apenas havia uma coisa pior que sentir-se presa: sentir-se culpada. Enoc exalou um suspiro, mas não disse nada mais. Maria esteve a ponto de lhe dar uma réplica mordaz…, mas mudou de ideia. ― Sinto muito; ― balbuciou. O jovem a olhou com sobressalto. ― Ah…? ― Sinto muito! ― gritou ela. Agora sim o olhava nos olhos. ― Sinto muito tê-lo chamado de mentiroso e pão-duro! Enoc enrugou a testa. ― Não é preciso que grite, estou a seu lado. Mas, enquanto falava, esticou as comissuras dos lábios. ― Não se atreva a rir. ― Maria vaiou furiosamente. ― Como não? ― disse Enoc sem perder aquele meio sorriso ― É muito divertido. ― Oh, sim, vamos rirás custas da cristã pobre! ― Maria afastou o prato com o pé e espalhou a comida pelo chão ― Ao Inferno com isto, já não quero. As suas palavras deixaram detrás de si um silêncio pegajoso. Durante um bom momento, nenhum dos dois disse o que quer que fosse. Maria olhou para Enoc com dissimulação. O jovem contemplava os restos de comida com uma expressão indecifrável. 47
― Isso é o que pensa de mim. ― disse então. Não era uma pergunta. ― Isso é o que pensa de mim ― repetiu. Maria não respondeu. Enoc ficou em pé e se dirigiu para a escada sem olhá-la. ― Vamos, temos muito trabalho. A garota se ergueu. Não estava certa de como se sentia; apenas sabia que uma parte dela continuava furiosa com Enoc… e a outra sentia uns remorsos terríveis. «E por que deveria sentir remorsos? ― perguntou a si mesma com impaciência ― Nada do que lhe disse é mentira». Os dois saíram da Casa do Espinheiro e abandonaram a aljama em silêncio. Maria se deu conta de que algumas pessoas cochichavam ao vê-los passar, mas não lhe deu muita importância. Ficaram calados até que Enoc entrou na rua dos Pregadores. ― Aonde vai? ― perguntou Maria. Mas ele não respondeu. Nem sequer a olhou. A moça teve uma intuição, mas não quis tentar a sorte. Por isso não fez mais perguntas.
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Capítulo 8
Maria estava há um bom pedaço contendo a respiração. ― Estão ão preparadas? ― perguntou Enoc. Maria grunhiu um algo parecido a um «sim». Catalina, que tinha aspirado as ervas q que o médico lhe tinha oferecido, mal pôde balançar a cabeça em sinal de aprovação. Uma vela acesa separava Enoc da moça. Ela o observou com atenção, enquanto passava os seus utensílios de metal pelo fogo; tinha-o visto fazê-lo lo em outras ocasiões, por isso não se e surpreendeu. ― Agarre-a bem, Maria. ― disse ele entre dentes ― não a deixe se mover nem um pouco. Uma gota de suor escorregava pela têmpora do jovem. Maria se obrigou a deixar de olhá olhá-lo lo e concentrou todos os seus esforços em sujeitar os braços de Catalina. Tinham-na Tinham colocado em um recanto da Igreja dos Pregadores; Enoc tinha
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expulsado os curiosos, mas, apesar de seus esforços, dez ou doze paroquianos os observavam a uma distância prudente. Entre eles estava a prima de Catalina, uma mulher bem vestida que também se chamava Maria, mas que todos chamavam de Marieta. Marieta retorcia as mãos. Catalina tinha enviado um moço para procurá-la, quando Enoc lhe contou como ia ser a sua cirurgia. ― Talvez seja melhor que primeiro lhe cure um olho e, mais adiante, o outro. ― o médico tinha dito ― Para que possa ver alguma coisa enquanto isso. Mas Catalina tinha outra opinião. ― Cada dia que passa estou mais cega. Prefiro que me opere os dois olhos de uma vez… e que seja o que Deus quiser. ― Sangrarão. ― Enoc então a tinha advertido ― E terá que usar uma atadura durante uns dias. Quem se cuidará de você? ― Eu. ― disse Mariano em um momento. Catalina sorriu. ― Não, tesouro, você tem coisas a fazer. Mas estou segura de que a minha prima Marieta não se importará. Assim, decidiram que Marieta cuidaria de Catalina durante a sua convalescença. A mulher choramingava. ― Tem os amuletos, Catalina…? Catalina respondeu com um murmúrio, já que mal podia levantar a cabeça. A sua piedosa prima se empenhou 50
em rodeá-la de missangas; Maria duvidava da sua utilidade, mas não queria perder a concentração discutindo com Marieta. Agora tudo estava em mãos de Enoc. A vela tremeu quando a mão do médico se aproximou da cara de Catalina. Maria sentiu que lhe arrepiava o cabelo da nuca; não era o mesmo ver um paciente desconhecido sangrar que a sua amiga. Se alguma coisa corresse mal… «Não, ― disse a si mesma com firmeza ― nada vai correr mal. Que corra mal não é opção». E esticou ainda mais os braços em redor de Catalina. Tudo foi mais rápido do que pensara. Enoc deve ter furado o olho de Catalina, porque a mulher chiou. Por precaução, Maria a abraçou com força; não era necessário, pois Catalina em seguida relaxou de novo. ― Está indo muito bem, Catalina. ― disse Enoc com suavidade ― Já falta pouco… Maria sentiu que começava a enjoar. Para evitar, analisou a cara concentrada de Enoc, as suas fartas sobrancelhas negras, o seu nariz aquilino, os seus lábios carnudos, que agora estavam cobertos de suor… ― Terá que enfaixá-la ― disse ele sem aviso prévio. A moça piscou, mas em seguida reagiu e agarrou as ataduras que tinha deixado preparadas. Pouco depois, Catalina se erguia com a ajuda da Maria e de Enoc. Ainda estava aturdida e lhe tremiam os joelhos, mas podia caminhar. 51
A sua prima se aproximou com cautela. ― Catalina…? ― Não me fale como se fosse uma aparição, prima. ― respondeu ela em voz baixa ― Pare agora, continuo viva, mas não vejo. Se me oferecer o seu braço… Maria contemplou a mulher com satisfação. Tudo tinha terminado; apenas tinham que passar uns dias antes que Catalina pudesse voltar para as suas pinturas. Catalina esticou a mão em busca de Maria. ― Agradeço-lhe, tesouro. E a você também, meu salvador; chamam-lhe médico, mas, para mim, é um santo. Que Deus o bendiga. Enoc sorriu brevemente. Quando Catalina e a sua prima saíram do templo, Maria lhe sussurrou: ― Por que sorriu? O meu deus e o seu são diferentes. ― Talvez. ― Enoc concedeu ― Ou talvez sejam o mesmo com nomes diferentes. Nós, pobres mortais!, não podemos saber. O jovem parecia de bom humor. E, no entanto, Maria acreditou ver um pingo de dor em seu olhar. ― Obrigada. ― disse com sinceridade. ― Graças a você. ― Enoc voltou a pendurar a bolsa ao ombro ― Suponho que os nossos caminhos se separam agora… Maria abriu os olhos e a boca ao mesmo tempo. ― Como diz? ― Você saldou a sua dívida. ― disse ele. ― Tão rápido? 52
Enoc levantou um ombro. ― Talvez tenha exagerado um pouco, quando disse que teria que trabalhar comigo até ao outono. Maria esteve a ponto de se enfurecer. A ponto. Mas, em vez disso, disse: ― Mas eu quero continuar a ajudá-lo. O jovem a olhou como se acabasse de pedi-lo em matrimônio. ― O quê? ― Você cumpriu com a sua palavra. ― disse Maria ― E eu… quero cumprir com a minha. Além disso, eu gosto de curar as pessoas e tudo isso. ― Mas do que viverá? A garota mordeu o interior da bochecha. Era uma boa pergunta… ― Darei um jeito… ― Façamos um trato. ― disse então Enoc ― Pode continuar trabalhando comigo…, mas eu vou lhe pagar. Não muito, ― advertiu ― mas o bastante para que possa comprar comida e tudo aquilo que necessite. Sem necessidade de roubar. ― acrescentou com tom severo. Havia
mais
de
cem
velas
acesas
na
Igreja
dos
Pregadores. A sua luz dourada envolvia a figura de Enoc; durante um momento, Maria o comparou mentalmente a São Rafael, «A cura de Deus». Deu-se conta de que tinha deixado de respirar. ― Trato feito? ― perguntou Enoc. Maria tentou dissimular um sorriso, mas não foi capaz. 53
― Trato feito. ― declarou.
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Capítulo 9
Maria escolheu uma maçã especialmente brilhante. brilhante ― Quantos maraved maravedis são? ― perguntou ao mercado. O homem, que a conhecia bem, pareceu surpreso, mas lhe disse o preço. Maria pagou com prazer e se afastou mordendo a maçã. «Pois não é assim tão mau ser uma pessoa honrada, honrada ― disse a si mesma com alegria ― só é preciso ter dinheiro». Começou a andar pel pela Coso. Continuava a andar descalça, mas tinha compra comprado do uma saia nova de cor alaranjada no dia anterior. O risonho comerciante lhe tinha assegurado que era vermelha; Maria não estava cega, cega nem era estúpida, mas, na verdade, a cor era igual para si. si Ela apenas queria uma saia que não tivesse mais de cinco buracos.
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Enquanto devorava a fruta, notou que alguém a seguia. Teve a astúcia de não olhar por cima do ombro, mas fingiu que lhe cravava algo na planta do pé e se deteve com o pretexto de examiná-la. Então descobriu que se tratava de uma menina. Era alta e esbelta, mas parecia jovem, de uns oito ou dez anos. Estava bem vestida e calçada, e usava um lenço branco do qual escapavam duas tranças negras. Os seus olhos, da mesma cor, estavam cravados em Maria. Não o tinha imaginado: a menina a seguia. Mas por quê? Conhecia-a de algum lado? Não, teria se recordado; Maria tinha uma memória excelente. A jovem deu outra dentada na maçã e olhou para a menina com ironia. ― Quer um pouco? ― disse com a boca cheia ― Está deliciosa. Lentamente, a menina avançou para ela e, depois de um instante de vacilação, agarrou o resto da fruta. ― Não deveria aceitar comida de uma desconhecida, sabia? ― Maria a olhou com ar divertido ― Poderia estar envenenada. A menina engoliu e sacudiu as tranças. ― Mas você não é uma desconhecida. ― Não? ― É a ajudante do médico. ― Como sabe? ― Toda a aljama sabe. Maria elevou as sobrancelhas. 56
― Já vi que sim. Então teve uma revelação. ― Disseram-lhe que me vigiasse? A menina não respondeu, mas seu olhar confirmou as suspeitas de Maria. ― Já vi que sim. ― suspirou ela ― Suponho que hoje é um bom dia para fazê-lo, não é verdade? Aproveitando que Enoc tem assuntos com os quais se ocupar… ― Enoc está na casa da família De Andújar. ― E esses De Andújar são…? ― Ourives. ― respondeu a menina ― Têm uma banca na rua da Prata. ― Entendo. ― Os meus avós dizem que são gente de bom berço. ― Se os seus avós o dizem… A menina inclinou a cabeça com ar pensativo. Tinha o nariz aquilino e o olhar sagaz; por alguma razão, lhe parecia familiar. ― Como se chama? ― perguntou-lhe. ― Galit. ― Galit…? ― Galit… de Aguilar. Claro. Por isso lhe parecia familiar. Maria amaldiçoou Enoc por não ter dito que tinha uma irmã. Mas por que ia fazê-lo? Tampouco tinha falado de sua família. Mas isso era diferente. A sua era um assunto doloroso.
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― Prazer em conhecê-la, Galit de Aguilar. ― resmungou finalmente. As povoadas sobrancelhas da menina se elevaram. ― Igualmente…, Maria de Saragoça. E acrescentou em voz baixa: ― Mudei de ideia. Já não vou lhe espiar. ― Ah, não? E isso por quê? ― Eu gosto de você. ― Ah, essa não é uma opinião muito popular. Galit começou a retorcer uma das tranças. ― Não há muita gente que esteja disposta a falar comigo. Sendo você uma pessoa que o faz, não vou espiá-la. ― Mas quem quer que me espie? ― bufou Maria ― Seus avós? ― Não… Não exatamente. ― a menina se corrigiu ― Não apenas eles. Maria arranhou a cabeça. ― Explique-se. ― Os meus avós e os De Andújar têm planos. ― E esses planos têm a ver comigo? ― Sim e não. A moça estalou a língua. ― Pode ser mais clara? ― Querem casar Enoc com Ruth de Andújar. Maria se sobressaltou. Casar Enoc…? ― Foi essa Ruth que enviou você, então? ― Não, ela não me disse nada. ― Galit voltou a sacudir as tranças ― Os meus avós e os pais dela estão de acordo que 58
as mulheres não devem falar destas coisas. Nem de outras coisas, na verdade… ― Oh, para por aí. ― Maria a interrompeu ― Para começar, as mulheres podem falar do que quiserem, digam o que digam os seus avós. E agora vamos ao ponto; o que têm Enoc ou a sua prometida a ver comigo? Os olhos escuros de Galit adquiriram um brilho travesso. ― Não imagina? ― Oh… ― Maria se encheu de paciência ― Espero que não esteja pensando o que acredito que está pensando. ― Então, não é verdade? ―
O
que
é
que
não
é
verdade,
menina?
―
Definitivamente, a paciência não era um de seus dons. Galit sacudiu a cabeça pela terceira vez. ― Não se zangue comigo. Se quiser, direi aos De Andújar que estão equivocados. A expressão da menina apaziguou um pouco Maria. Inquietava-lhe a ideia de que alguém quisesse espiá-la, mas, ao mesmo tempo, achava graça nessa situação; sobretudo, porque Galit parecia levar aquilo muito a sério. ― Mas o que esperavam que visse? ― Suspirou ― O mais interessante que ia fazer esta manhã era comprar uma maçã e um pouco de cerveja. ― Posso acompanhá-la? Maria piscou. ― O quê?
59
― Por favor! ― Galit disse aquilo com seriedade ― Faz muito tempo que ninguém me deixava falar tanto tempo seguido. Se me permitir que a acompanhe, vou me comportar bem. Até a ajudo a levar os pacotes…! ― Está bem. ― Grunhiu Maria ― Pode vir comigo, e talvez falemos um pouco mais…, mas não comece a choramingar. Não suporto os meninos chorões. ― Eu não sou nenhuma chorona, vai ver. ― A menina levantou o nariz com orgulho ― Onde vai comprar a cerveja? ― Siga-me e descobrirá. Maria
pôs-se
a
andar
com
Galit
lhe
pisava
os
calcanhares. Não sabia se tinha feito bem lhe dando permissão para acompanhá-la; mas, afinal de contas, era irmã de Enoc. Que mal podia fazer? Preocupava-a
mais
que
uma
família
da
aljama
pretendesse controlar os seus passos. Se Maria odiava alguma coisa era ser controlada… e mais ainda por gente rica e poderosa. Talvez ela também fizesse averiguações sobre esses De Andújar. Só por prevenção. Mas não era o momento de pensar nisso. E lhe ocorreu algo para distrair-se. ― Galit… ― Sim? ― Quer saber como convenci um menino de sua idade a deixar tirar uma lasca do pé? ― Sim! E Maria começou a lhe contar a história. 60
61
Capítulo 10
Maria contemplava Enoc através das chamas d da lareira. O médico tinha colocado um caldeirão sob sobre re o fogo e lhe dava voltas com ar absorto; Maria começou a olhar por cima de seu ombro, mas, como dava apenas para ver um líquido castanho que borbulhava, logo se aborreceu. ― Como está á Galit? ― perguntou. ― Galit…? …? ― repetiu Enoc distraidamente ― Bem, suponho. Com os nossos avós. ― Ontem esteve me seguindo por toda a cidade. ― Diz que você ê lhe deu permissão. ― Como não ia dar? É sua irmã. ― Como Enoc Eno não respondia, acrescentou ― Não sabia que tinha uma irmã. Nem avós. ― Pois agora já á sabe.
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O jovem continuava sem olhá-la. Quando começava a preparar remédios, não prestava atenção às conversas. Quanto muito, bebia um gole de vinho com mel de vez em quando. Maria voltou a falar: ― Correu tudo bem ontem? ― Ontem…? ― Enquanto eu estava com Galit. Disse que tinha algo a fazer… ― Isso disse. ― Algo relacionado com umas bodas, talvez? Enoc levantou a cabeça de repente. ― O quê? O jovem parecia perplexo. Maria pigarreou: ― Existe o rumor que uma tal Ruth de Andújar tem interesse em você… Enoc apertou as mandíbulas. ― Afinal vou ter que sacudir a minha irmã. O
médico
removeu
vigorosamente
o
conteúdo
do
caldeirão. Maria murmurou: ― Por que não tinha me contado isso? A mão de Enoc se deteve durante um instante. ― E deveria? Maria encolheu os ombros. ― Não sei. ― Nem sequer estou seguro de que vá me casar com ela, sabe? ― Mas você gosta dela? 63
― Não sei. ― Como não sabe? ― Mal a conheço. ― Mas já a beijou ou algo… O jovem se engasgou. ― Não! ― rugiu. Maria o olhou com ar divertido. ― Por que ruboriza? Não é como se um beijo fosse crime. Se tivessem se embolado em um palheiro, ainda assim… As bochechas de Enoc tinham adquirido a mesma cor que o vinho. ― Como pode sequer insinuar…? ― gaguejou ― Eu não me emboleiem nenhum palheiro! E muito menos com uma mulher! ― Com um homem, então? ― Tampouco, obviamente! Maria soltou uma gargalhada. ― Pois você é quem perde. O jovem escondeu a cara atrás da taça de vinho e balbuciou: ― Não posso acreditar que estejamos falando disto. Minha religião me proíbe… ― Que aborrecida. ― A sua também! ― Tire a taça da cara, homem, que o vejo de qualquer forma. Maria, estava se divertindo; Enoc, pelo contrário, parecia cada vez mais tenso. 64
Por alguma razão, isso divertia Maria ainda mais. ― Não sei sobre você ― murmurou então ― mas eu não penso em deixar que a religião controle a minha vida. ― Não crê em seu Deus? ― Sim, acredito Nele. E o amo muito. Mas penso que está demasiado ocupado com as suas coisas para prestar atenção ao que faço nos palheiros. ― Não vá dizendo isso por aí. Poderiam pensar que é… ― Uma prostituta? ― sugeriu Maria sem se alterar ― Você pensa isso de mim, Enoc? ― Não. Seu tom foi categórico. A moça se sentiu estranhamente comovida. ― Sabe? ― disse em voz baixa ― Antes de casar com a Ruth, deveria averiguar se você gosta dela nesse sentido. Pelo menos, deveria beijá-la. O jovem voltou a ocultar-se atrás da taça. ― Não acredito que um beijo seja assim tão importante. ― Diz isso apenas porque nunca o beijaram. ― Pare de zombar de mim ou a jogarei para fora de minha casa! ― E você deixe de beber vinho ou lhe doerá a cabeça. Maria lhe tirou a taça com delicadeza. Enoc tinha a cara avermelhada e os olhos brilhantes. Ao encontrar-se com os de Maria, baixou a cabeça. ― O que se passa? ― A moça riu ― Está envergonhado porque falei de beijos? ― Não…! ― protestou ele fracamente. 65
Maria suspirou. Não soube por que o fazia. Nem sequer parou para pensar. Enoc e ela estavam tão perto que podia sentir a carícia de sua respiração; inclusive acreditou ouvir os batimentos apressados de seu coração. Então sentiu aquele calor. Um calor que nascia no peito e descia pelo ventre. Conhecia-o muito bem, mas fazia tempo que não o sentia com tanta intensidade. As suas mãos se apoiaram nos ombros do jovem. ― Maria… ― começou ele a dizer. Mas ela afogou as suas palavras com um beijo. Não foi um beijo normal. Primeiro lhe acariciou os lábios com a língua. Depois os separou delicadamente para invadir a sua boca. Enoc se esticou e suspirou, mas não se afastou; quando Maria entreabriu os olhos, descobriu que ele os tinha fortemente fechados. Reprimiu um sorriso e, por fim, encontrou a língua de Enoc. O sabor do vinho com mel a deixou aturdida por um momento. Pensava em parar logo em seguida. Apenas queria brincar com ele, tocar no seu cabelo um pouco. Era um beijo inocente… Mas então aconteceu. A respiração acelerou. Os seus dedos se afundaram no tecido. A sua boca escorregou pelos lábios de Enoc, por seu queixo, por sua garganta… Ele gemeu. Maria se afastou bruscamente. 66
― Sinto muito. ― balbuciou atropeladamente ― Eu apenas queria… Oh, sinto muito! O coração lhe golpeava as costelas. Enoc continuava de joelhos no chão, ruborizado e despenteado, e a olhava como se não entendesse o que acabava de acontecer. E Maria sentiu medo. Um medo irracional que a empurrou escada abaixo e não lhe permitiu parar até que deixou para trás a aljama.
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Capítulo 11
Ainda era noite quando Maria acordou encharcada em suor. Ufa. Era apenas um sonho. Não sabia se devia sentir-se se aliviada ou… decepcionada. Ainda sentia o corpo d de Enoc contra o seu,, nu e coberto de suor. Tinha sonhado que eles dois… Mas isso não estava bem. Saiu do colchão de gatas e colocou a cabeça no balde que tinha enchido no dia anterior. Depois jogou água fria pelo corpo, também. Para ver se assim se acalmava um pouco… Ela nunca ca tinha dado muita importância aos beijos, nem sequer ao sexo. Parecia Parecia-lhe lhe o mais natural do mundo. Não é como se o fizesse com qualquer, e tomava cuidado, obviamente;; mas não lhe parecia algo a ser encarado tão seriamente…, até àquele momento.
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O que lhe tinha acontecido com Enoc? Precisava clarear as suas ideias. Precisava de falar com alguém de confiança… e em seguida soube a quem devia recorrer. «Já sei o que vou fazer, ― decidiu ― sairei cedo, comprarei algumas quinquilharias a Catalina e, quando me despedir de Enoc, irei visitar a casa de sua prima. Assim poderei ver como se encontra… e, de passagem, pedir-lhe conselhos». Catalina gostava de mel. Talvez Maria pudesse comprar um pote… Mais animada, saiu de casa e se dirigiu à praça do Ulmeiro, onde havia um velho que vendia mel. A praça estava quase vazia, mas o velhote já tinha instalado a sua banca. Maria o cumprimentou com vivacidade. Mas não obteve resposta. ― Bom dia ― insistiu. Não
era
imaginação
dela:
o
comerciante
estava
ignorando-a deliberadamente. ― Tem cera nos ouvidos? ― disse ela com impaciência ― Estou falando com você. Por fim, o homenzinho lhe dirigiu um olhar depreciativo. ― Eu não lido com hereges. ― Hereges? Onde? ― Maria fingiu procurá-los debaixo da banca ― Se não estiverem escondidos debaixo das vestes… ― Desaparece daqui! ― explodiu o velho. ― Sim, será melhor que vá. Não vá pegar a surdez ou a estupidez. 69
― Fora, desbocada! Fora, fora! Maria partiu sem o mel e com o sangue a ferver. Chegou à porta Queimada de péssimo humor … e este não melhorou ao ver que Enoc já estava lá. Não se atreveu a falar do que tinha acontecido na tarde anterior. Enoc tampouco fez comentários a respeito e se limitou a falar dos pacientes que deviam visitar. Um deles era o artesão do primeiro dia. Assim que entrou em seus aposentos, Maria notou que a sua cor tinha melhorado significativamente. Além disso, as suas gengivas tinham deixado de sangrar. Mas o homem parecia de mau humor. ― Nabos. ― resmungou ― Dão-me nabos para comer. E cebolas. Como se fosse um mendigo… Maria esticou os músculos, mas não disse nada. Teve a impressão de que o paciente não se alegrava tanto ao vê-los, como da outra vez. Provavelmente Enoc também tenha notado, porque agarrou o dinheiro e saiu praticamente sem se despedir. Os dois caminharam em silêncio durante a maior parte do dia. Quando o sol começou a cair, o médico suspirou: ― É hora de voltar para casa. Maria sentiu uma mescla de alívio e de decepção. Por um lado, temia que o jovem mencionasse o que tinha acontecido no dia anterior; por outro lado…, doía-lhe que lhe concedesse tão pouca importância. Maldição, desde quando ela se preocupava tanto?
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«Reage, Maria! ― disse a si mesma com impaciência ― Você não é assim!». ― Amanhã tiraremos a atadura de Catalina. ― Enoc a tirou de seus pensamentos ― Esperemos que tudo tenha corrido bem. ― Esperemos. ― concedeu ela ― Pensava em visitá-la hoje mesmo, mas, se vamos tirar sua atadura amanhã, talvez espere. Sim, podia esperar. Se Enoc não dava importância ao beijo, ela tampouco o faria. Além disso, nem sequer tinha podido comprar nada para Catalina… ― Encontramo-nos junto à porta Queimada, como sempre? ― Claro. Já estavam em um dos becos que desembocavam nos muros da aljama. O sol poente desenhava um mosaico de luzes e sombras nas paredes das casas. Então Enoc se deteve. ― Maria… Ela abriu a boca para responder, mas não teve tempo. As suas costas chocou contra a parede. Sentiu o calor de duas mãos em sua cintura e, momentos depois, uns lábios apanharam os seus com delicadeza. Ouviu o suspiro sufocado de Enoc. Ouviu os batimentos acelerados de seu próprio coração. «O que está acontecendo…?». ― Agora estamos quites. ― murmurou o médico junto a seu ouvido. 71
Então se separou dela. E, sem olhá-la, dirigiu-se para a aljama. Maria não se moveu. Ficou um bom pedaço apoiada na parede, tentando ordenar seus pensamentos e reprimindo o impulso irracional de chamar Enoc aos gritos.
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Capítulo 12
O céu mal clareava qua quando Maria foi ao encontro de d Pedro com uma petição. ― Mel? ― repe repetiu tiu o homem com ar incrédulo ― Quer que compre mel para você você? ― Vou pagar por isso. ― disse Maria entre dentes. dentes Os dois s estavam na esquina da rua da Cutelaria. Cutelaria Pedro ia arrastando dois sacos de cevada, mas tinha parado para falar com a moça. ― Isso não é próprio de você você. ― murmurou. ― Pagar, quer dizer? ― Bom, isso tampo tampouco. ― Pedro sacudiu a cabeça cabe ― Mas me referia a pedir favores. ― Olhe, eu já á fui comprar mel na praça do Ulmeiro, Ulmeiro mas o idiota não quis me vender vender. O que lhe custa ir lá? ? Pode ficar f com o dinheiro que sobre!
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O homem desviou o olhar. ― Sinto muito, mas terá que pedir a outro. ― Por quê? ― Tenho que ir. ― Posso saber o que se passa, Pedro? Mas Pedro já estava recolhendo os seus sacos de novo e não respondeu. Maria o amaldiçoou enquanto se afastava. Não obstante, Pedro não era o único que atuava de forma estranha. Na rua da Cutelaria todos pareciam lhe virar a cara ao vê-la; no princípio, pensou que seria imaginação dela, mas em seguida se deu conta de que também ouvia cochichos quando passava. ― Podem ir todos para o Inferno! ― disse entre dentes. O seu mau humor foi substituído por um nervosismo inexplicável quando chegou à porta Queimada. Enoc já estava lá, com a bolsa pendurada no ombro, mas lhe dava as costas. Estava lendo algo que estava escrito na parede. Maria se deteve a seu lado e pigarreou. ― Bom dia! ― saudou o médico. Quando os seus olhos se encontraram, Maria sentiu um calafrio. Não tinha esquecido o beijo do dia anterior. Mas, se Enoc também o recordava, dissimulava às mil maravilhas. ― O que escreveram aí? ― perguntou Maria, mais para falar de alguma coisa, do que porque lhe interessava realmente. ― Nada de importante. ― disse Enoc ―. Vamos ver Catalina. Hoje tiraremos sua atadura.
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Maria
e
ele
se
encaminharam
para
a
rua
dos
Pregadores. Mas assim que levavam uns minutos andando, Enoc freou em seco. Acabavam de passar junto à banca das maçãs da Coso. Hoje
o
dono
tinha
companhia:
outros
dois
homens
conversavam com ele. Maria recordava vagamente de tê-los visto trabalhar como pedreiros. Os homens pareciam alegres, mas deixaram de sorrir quando Enoc ficou a olhá-los. ― Algum problema? ― Ladrou um deles. ― Digam-me vocês. ― respondeu Enoc com tom cortante. ― O que se passa, Enoc? ― sussurrou-lhe Maria. Mas o jovem a ignorou. ― Sigam seu caminho. ― resmungou um dos pedreiros. ― Seguirei se tiver vontade ― disse Enoc ― Mas antes quero que repitam o que disseram em voz alta, se tiverem coragem. Maria não entendia o que estava a acontecer, mas podia sentir o nervosismo daqueles homens… e a raiva de Enoc. O mercador levantou as mãos e adotou um tom conciliador: ― Foi um mal-entendido… ― Nem estou surdo, nem sou imbecil. Diga-me, têm coragem para repetir o que disseram antes? ― Nem sequer era sobre você! ― balbuciou o primeiro pedreiro.
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Então Enoc descarregou o punho sobre a banca. A madeira tremeu e várias maçãs rolaram pelo chão, mas nenhum dos três homens moveu um só músculo. O médico vaiou: ― Se voltar a ouvi-los sussurrar algo parecido, me encarregarei pessoalmente de que não voltem a trabalhar pelo resto de suas vidas. E, depois de cuspir no chão, agarrou Maria pelo braço e recomeçou a marcha. Mas, quando estavam quase a dobrar a esquina, a face de Enoc mudou. Um casal os observava do outro lado da rua. Ela era uma moça jovem, com os olhos azuis e esbugalhados e o queixo pequeno; ele tinha os mesmos olhos e o mesmo queixo que a sua acompanhante, mas era uns vinte anos mais velho. Enoc inclinou a cabeça. ― Bom dia! O homem lhe devolveu a saudação, mas não parecia muito amistoso. A garota nem sequer levantou o olhar do chão. O médico seguiu o seu caminho e Maria foi atrás dele. Morria de vontade de fazer perguntas, mas não abriu a boca até que estiveram na rua dos Pregadores. ― Isto…, Enoc, poderia me explicar…? ― Não. ― ele a interrompeu. ― Não sou tola, sabe? Enoc fez menção de se dirigirá porta de Marieta, mas a garota se interpôs em seu caminho. 76
― Quero saber. O jovem a olhou com inapetência. ― Esqueça. Ela se impacientou: ― Como vou esquecer? Enoc, você quase destroçou a banca daquele homem! Não é normal em você… ― Ele merecia! Voltava a estar furioso; notava-se no seu olhar. Maria ficou na ponta dos pés e roçou sua bochecha com o dorso da mão. ― Se tiverem dito alguma coisa sobre mim, não me importa. Enoc fechou os olhos por um segundo. Depois desviou o olhar. E pôs a sua mão sobre a de Maria. ― Mas a mim, sim. Maria sentiu que ficava sem ar, ao escutar aquelas palavras. O toque de Enoc era tão quente quanto o seu olhar. Mal podia suportá-lo, por isso se separou dele. ― Esqueça. ― murmurou ― Se tivéssemos de nos preocupar com o que dizem de nós, não teríamos tempo para viver. Enoc fez menção de responder, mas Maria o impediu: ― Vamos ver Catalina! Estou impaciente para tirar suas atadura. E entrou pela porta. Catalina estava instalada no quarto de sua prima. Marieta era viúva e as duas tinham dormido juntas todo 77
aquele tempo. Marieta já estava vestida, mas Catalina os recebeu de camisola. ― Não quero me vestir até que possa escolher a minha roupa. ― disse a modo de desculpa ― O gosto de minha prima e o meu são bastante diferentes. ― Ai, Senhor, Senhor! ― Marieta gemeu ― E se Ele não obrou um milagre? Enoc ignorou os seus lamentos e se sentou na beira da cama. Depois começou a retirar as ataduras dos olhos a Catalina. Maria levou as mãos ao coração e rezou uma Ave-Maria, que era a única oração que sabia de cor. Quando pálpebras
a
atadura
fechadas
de
caiu, sua
a
moça
amiga.
contemplou
Estavam
tenros
as e
avermelhados. Mas
então
Catalina
abriu
os
olhos.
E,
quase
imediatamente, se encheram de lágrimas. ― Meu Deus… ― Ai, que ficou cega! ― Marieta se lamentou ― Ai, Senhor, Senhor…! ― Meu Deus. ― repetiu Catalina ― Meu Deus, querido… Estendeu os seus braços gordinhos para Enoc. O médico sorriu levemente e se deixou beijar na cara. Depois Catalina contemplou Maria. ― Tinha esquecido quão bonita você é, tesouro. Venha aqui… As duas se abraçaram com força. Maria ouviu a voz sufocada de Marieta: 78
― Então, Ele lhe devolveu a visão? ― Se se refere a Deus, não sei, ― bufou Maria ― mas Enoc sim, o fez. ― Bendito seja… ― Suspirou Catalina. Agora os seus olhos já não eram daquele azul nebuloso, mas verdes e brilhantes. Maria disse a si mesma que fazia tempo que não contemplava nada tão formoso. ― Mal posso esperar para voltar para a igreja e pôr-me a pintar ― disse com um sorriso. ― Mas não vá de camisola. ― brincou Maria. Enoc e ela se despediram das duas mulheres. Ainda ouviram, da escada, como Marieta dava as graças a Deus. ― Não o incomoda? ― perguntou então Maria ― Que deem graças a Deus, digo. Foi você quem operou Catalina, não Ele. ― Há quem acredita que Ele guia a minha mão. ― Você acredita nisso? ― Eu cada dia acredito em menos coisas. Enoc exalou um suspiro. Já tinham saído à rua dos Pregadores, que estava banhada pelo sol; Maria pensou que ia ser um bom dia… até que ouviu os gritos: ― Aproxima-se o momento! Logo esses hereges e porcos terão de prestar contas ante Deus…! Maria respirou fundo. Já tinha visto aquele homenzinho uma vez: era um tipo pálido e de pernas arqueadas que vociferava com grande entusiasmo. Em torno dele se reunia uma pequena multidão.
79
― As suas almas ímpias arderão no fogo purificador! ― Estava dizendo ― Agora se misturam conosco, mas logo estarão onde pertencem: no Inferno! ― Ao inferno vou mandá-lo às patadas, imbecil. ― grunhiu Maria. Algumas pessoas se voltaram para ela ― Alguém mais quer ir com ele? Sabia que estava procurando problemas, mas não se importava. Estava demasiado furiosa para se controlar. Então uma voz conhecida interveio: ― Maria! ― Johan chegou mancando e a saudou com grande entusiasmo ― Quanto tempo sem ver você! Quem é o seu amigo? Sem perder o sorriso, o mendigo puxou a manga de Enoc em direção à igreja. ― Venham, estávamos quase a comer. Comerão conosco, não é verdade? Os três se afastaram do pregador, mas o eco de suas palavras ainda ressonava nos ouvidos de Maria. Sabia que apenas era um linguarudo, que não supunha nenhum perigo para eles; nesse caso, por que não podia limitar-se a ignorálo? Johan entrou no templo. Maria se dispunha a ir atrás dele, mas Enoc se deteve na porta. Quando a moça o interrogou com o queixo, ele murmurou: ― Talvez não devesse entrar… Não enquanto aqueles tipos estiverem gritando ali fora. Poderiam interpretá-lo como um insulto. 80
Ao ver que não o seguiam, Johan voltou a assomar a cabeça. ― Se preferirem, comeremos aí fora. ― disse com amabilidade. Depois se girou para a penumbra da igreja ―Ó, vocês! Hoje se come lá fora. Venham, vão ver a Maria… ― Olá, Maria! ― Olá, olá! ― Quem vem com você, Maria? ― Maria…! O grupo de vagabundos os rodeou. Alguns puxavam pela roupa de Enoc e um par deles colocou a mão na bolsa, mas Maria os repreendeu. Por fim, todos se dirigiram para o extremo oposto da rua, onde havia um canal de irrigação. ― Hoje nos espera um festim. ― anunciou Johan ― A Madrinha Salinas esteve aqui e nos deu esmola. Aproximemse, amigos… ― A Madrinha Salinas? ― perguntou Enoc com interesse ― Ouvi falar dela. Dizem que é a melhor parteira de Saragoça. ― Isso dizem, sim. ― respondeu Johan com a boca cheia. Depois ofereceu um pouco de pão tenro a Maria e Enoc ― Comam, comam. Falaremos melhor com o estômago cheio.
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Capítulo 13
A Madrinha Salinas tinha sido generosa: a comida dos mendigos consistiu em pão quente, cebolas assadas, queijo e pêssegos. A princípio, Maria viu que Enoc noc vacilava: certamente, se sentia culpado por aceitar a hospitali hospitalidade de pessoas que mal podiam se dar a ao o luxo de comer uma vez ao dia. Mas Maria lhe sussurrou: ― Não negue o seu convite. Necessitam de seu orgulho, orgulho quase tanto como de comida. Ofereceu-lhe um pêssego meio por descascar. descascar Enoc acabou de tirar a casca e lhe deu uma dentada, mas logo o devolveu. Enquanto compartilhavam a fruta, Maria descobriu que não podia tirar seu seus olhos de cima. «Que boba é! ― pensou ― Tola, tola, tola!».
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― Ouça, Maria. ― Johan a devolveu à realidade ― Não lhe convém se colocar contra os pregadores. Também nos incomodam, mas… ― É claro que nos incomodam! ― Saltou um mendigo ancião e desdentado ― Diz que as prostitutas e nós sujamos a cidade e que deveríamos partir! ― Que se vá ele! ― Atravessou um moço esfarrapado ― Nós não fazemos nada de mal! ―
Nem
as
prostitutas.
―
Assentiu
o
ancião
―
Pobrezinhas, que culpa têm? A culpa é dos que as exploram. A esses é que a Inquisição deveria perseguir, não a nós… ― «Esses» e a Inquisição são os mesmos. ― disse Johan com tom sombrio ― Todos conhecemos os pecados de quem diz persegui-los. Maria interveio: ― Embora o ódio não seja um pecado capital, nenhum outro me parecerá tão terrível para merecer o Inferno. Os vagabundos lhe deram razão. Então Johan assinalou Enoc com o dedo. ― Você é judeu. ― disse sem rodeios ― E dizem que o nosso Deus não quer que nos juntemos com você. Mas eu vejo deus no sol que agora mesmo brilha sobre as nossas cabeças, no delicioso pão com manteiga que comemos e nas risadas dos amigos. E não acredito que esteja descontente. Se estivesse, por que nos daria de presente esta reunião tão agradável? ― O homem sacudiu a cabeça ― Não sei o que pensará o seu deus, mas o meu parece de um humor excelente. 83
Enoc inclinou a cabeça. ― Não sei o que pensará Javé, ― admitiu ― mas eu aceito a vossa amizade e lhes dou a minha. Maria não se deu conta de que estava sorrindo, até que Johan lhe deu uma cotovelada. Então sacudiu a cabeça e se levantou. ― Obrigada por tudo, ― disse aos mendigos ― mas temos que ir antes que anoiteça. ― Até logo! ― despediu-se Johan. ― Adeus! ― disseram outros. Quando Maria e Enoc estivam longe do canal de irrigação, o médico sussurrou: ― O dinheiro que me roubou… ― Ainda guarda rancor por isso? ― brincou Maria. Mas Enoc estava sério. ― Deu pra eles. Não estava perguntando. ― Como sabe? ― surpreendeu-se Maria. Mas o jovem não respondeu. Havia algo estranho em seu olhar, algo parecido a… admiração? Não, não podia ser. Maria estava imaginando. ― Roubou para dar a eles ― murmurou Enoc ― Meu Deus… ― Fiquei com um real. ― grunhiu Maria ― Não sou assim tão generosa. Mas
Enoc
continuava
olhando-a
com
a
mesma
intensidade. E estavam chegado ao beco do dia anterior. Maria ficou nervosa: 84
― O que foi? Por que me olha desse modo? ― Se não sabe, está cega. ― Prefiro estar. ― Por que me beijou? Aquela pergunta a desarmou. ― Não sei, ― confessou ― mas me arrependo muitíssimo. Enoc se deteve bruscamente. ― Por quê? ― É que não percebe? ― O quê? Maria estalou: ― Pelo amor de Deus, olhe para mim! Sou uma ladra piolhenta! E ainda por cima sou cristã. ― Apertou os dentes ― Nem sequer deveria me dirigira palavra. Enoc engoliu em seco. ― Eu não vejo nada disso. ― disse com voz rouca ― Eu vejo uma mulher valente e generosa que se arrisca pelos outros. Maria ouviu soar os sinos da catedral de São Salvador. ― Tem de ir. ― suspirou. Mas Enoc sacudiu a cabeça. ― Não. Não até que você se veja do modo como eu a vejo. ― Sei perfeitamente quem sou. ― A voz de Maria tremeu perigosamente ― A minha própria família me desprezava, por isso fugi de casa. Sou o que escolhi ser… e pertenço a um mundo que não é o seu, o mundo dos marginais. Essa é minha gente agora.
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A moça fechou os olhos. Se continuasse a falar, desmoronaria. Jamais tinha se arrependido de sua decisão. Jamais tinha lamentado escapar para Saragoça, renunciar ao teto que a sua família lhe oferecia em troca de liberdade. Mas Enoc não podia fingir que não existia uma brecha entre os dois. A religião e o dinheiro nos separavam. E eram dois obstáculos intransponíveis. O jovem inspirou profundamente. ― Eu também sei quem você é, Maria da Saragoça. E não penso virar as costas a seu mundo nunca mais. ― Esqueça-o. Não pode entrar nele. Enoc deu um passo em frente e lhe levantou o queixo. Os seus olhos lançavam faíscas. ― Já entrei! E não pode me tirar dele tão facilmente! Beijou-a quase com fúria. Maria gemeu, mas se deixou levar; por uma vez, sentia-se fraca demais para resistir. Enoc lhe acariciou a cabeleira suja. Jogou os braços ao seu pescoço… E então uma sombra se abateu sobre os dois: ― Alto aí! Maria e Enoc se separaram de repente. Em frente a eles havia três encapuzados; um deles levava uma tocha na mão. Pela primeira vez, a moça se deu conta de que o beco estava na penumbra. O sol já se tinha posto.
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― O que faz fora da aljama, judeu? ― Cuspiu um dos encapuzados ― Não conhece as normas? ― E com uma rameira… ― disse o que levava a tocha ― Repugnante. Enoc pôs Maria atrás dele. ― Quem são e o que querem? ― Ajudamos o Santo Oficio a limpar esta cidade. Parece que esta noite temos trabalho… Enoc fez menção de responder, mas Maria viu o brilho da adaga na luz da tocha e o separou de um empurrão. Depois brandiu a sua própria faca. ― Para trás! ― gritou. O homem da tocha riu. ― Olhem a puta! Acredita que pode com três de nós? Maria tinha o coração acelerado mas sustentou o olhar turvo do encapuzado. ― Não posso com os três. ― disse com aspereza ― Mas, se nos atacarem, levarei um de vocês para o Inferno. ― Olhou para eles alternativamente e moveu a faca ― Quem será? Um dos homens retrocedeu involuntariamente. O da tocha cuspiu a seus pés. ― Afaste-se, rameira. Isto não tem a ver com você. ― Vá, Maria. ― disse Enoc entre dentes ― Posso tratar disto. Não, não podia. Enoc era alto e forte, mas o mais parecido a uma arma que levava era a faca com a qual operava a vista. Se Maria o deixava sozinho, aqueles homens o fariam em pedaços. 87
― E então? ― Insistiu ela ― Querem que corra sangue ou não? O homem da tocha deu um passo em frente, mas um de seus companheiros lhe pôs a mão no ombro. ― Quieto. ― sussurrou. Depois se dirigiu a Maria: ― Fora daqui. Se voltarmos a ver o judeu fora da aljama depois do anoitecer, estriparemos como a um porco. Maria não respondeu à provocação e empurrou Enoc para o outro extremo do beco. Ela retrocedeu sem soltar a faca, nem dar as costas aos encapuzados. Quando chegaram às portas da aljama, Enoc estendeu a mão a Maria. ― Não volte sozinha. ― Não se preocupe comigo. Já viu que sei cuidar de mim. Mas o jovem sacudiu a cabeça. ― Não, venha comigo. Por favor. ― Para sua casa…? ― Maria soprou ― Enoc, não devo… ― Não me obrigue a lhe suplicar. Os seus olhares se cruzaram na escuridão. Durante um momento, nenhum dos dois disse nada. Maria ouviu ao longe passos apressados, gritos e latidos de cães. Finalmente, suspirou: ― Está bem. E aceitou a mão de Enoc.
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Capítulo 14
A Casa do Espinheiro cheirava a cinza e a especiarias. Enoc tinha fechado as janelas e acendido o fogo da cozinha; Maria tinha se instalado em ffrente à lareira,, sobre umas peles macias e coberta por uma manta de lã, enquanto o médico preparava va o jantar. Depois de um pouco pouco,, ele se sentou a seu lado com um prato de pão ázimo ázimo, molho de ervas e queijo. ― Não ão é grande coisa coisa. ― se desculpou. ― É mais do que suficiente. ― Maria molhou o pão p no molho e o meteu na boca ― Obrigada. Enoc lhe sorriu brev brevemente, emente, mas em seguida olhou para outro lado. Durante uns minutos, nenhum dos dois disse nada. Entre o agradável calor e o crepitar do fogo, Maria estava começando a adorm dormecer.. Acreditava ver desenhos nas
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chamas e pensou que gostaria de dançar com elas; fazia séculos que não dançava ao som da música, mas talvez no equinócio da primavera pudesse fazê-lo… ― Você arriscou a vida por mim. A voz de Enoc a tirou de seu pensamento. ― Não é para tanto. ― Bocejou ela ― Não é a primeira vez que ameaço alguém, sabe? ― Mas o fez para me proteger. ― Sim, suponho que sim. O jovem ficou rígido. ― Maria, não se equivoque: não a trouxe para minha casa com más intenções. ― O que quer dizer com isso? ― Sabe muito bem. ― balbuciou ele ― Apesar de tudo, sou um homem… ― Bom, não tenho tanta certeza. Nunca olhei entre as suas pernas. Enoc
a
olhou
com
uma
mescla
de
vergonha
e
recriminação. ― Podemos falar sério? ― Sim, claro. Tenta dizer-me que não me trouxeste para sua casa para me possuir grosseiramente sobre as peles da cozinha, não é verdade? O jovem levou as mãos ao rosto. ― Por que faz isso? ― A que se refere exatamente? ― Antes, no beco, senti que tudo isto lhe importava… e agora brinca como se nada fosse. 90
Maria evitou olhá-lo diretamente. ― Se com «tudo isto» se refere aos três beijos tolos que demos, não têm a menor importância… ― Para você foram três beijos tolos? Porque para mim não. O coração da moça se encolheu ao escutar aquelas palavras. Tinha de se controlar. Se não o fizesse… ― Não me dirá que se apaixonou por mim… O silêncio de Enoc lhe provocou uma dor aguda no peito. Não. Não, não, não. ― Ou você mente ou é estúpido. Enoc apertou os dentes. ― Aceito que me rejeite. ― vaiou ― mas prefiro que não me insulte. Não é necessário. A pena de Maria foi substituída por uma raiva intensa. ― Não se equivoque, Enoc: estaria rejeitando se você tivesse me pedido em casamento ou algo parecido. Mas, como apenas está dizendo tolices… ― Casamento? ― Interrompeu-a com brutalidade ― Você queria se casar comigo? ― Ao Inferno com o que eu queria! ― Maria estalou ― O que eu quero não importa! Lembre-se que somos um judeu e uma cristã, um médico e uma mendiga! Nem sequer deveríamos estar falando um com o outro! ― Eu gostaria de ver quem pode nos impedir disso. ― Eu posso! 91
― E por que não o faz? ― Enoc levantou o queixo ― Se tanto a irrita tudo isto, por que não põe um fim? Maria se ajoelhou com os punhos apertados. Encarou Enoc e respirou fundo um par de vezes. ― Porque não posso. ― murmurou. O primeiro beijo foi ansioso. Enoc afogou um gemido de assombro, mas não resistiu; Maria se sentou em seu colo e começou a devorá-lo. Quando o ouviu gemer pela segunda vez, entreabriu os olhos e o espiou: tinha as bochechas acesas e a sua boca parecia pedir mais beijos. Maria perdeu o controle. Enoc não protestou quando lhe arrancou a túnica. Tampouco quando o empurrou para tombá-lo no chão, nem quando contemplou com desejo o seu corpo nu. Tinha o peito grande, os braços fortes e as pernas longas, e a pele clara e coberta de pelo escuro. ― Definitivamente…, é judeu ― disse ela com voz sufocada. ― Ah, já viu bem. ― Enoc riu entre dentes. Voltaram a se beijar e Maria se colocou em cima dele. O simples roçar de seu corpo lhe provocou um estremecimento. Os lábios do jovem continuavam sobre os seus, quentes e ofegantes. A moça começava a notar uma umidade insuportável entre as pernas. ― E-Enoc… ― gaguejou ― Se quiser parar, é o momento… Como resposta, ele começou a despi-la. 92
Quando Maria sentiu a sua respiração entre os seios, soube que já não pararia. Já não. «Meu Deus, ― rezou em silêncio ― perdoe-me». O fogo se apagou. Mas nenhum dos dois se deu conta.
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Capítulo 15
As primeiras luzes do dia projetaram a sombra d de Maria na rua do Espinheiro. A jovem fechou a porta em silêncio; depois começou a andar pelas pontas dos pés. Tinha deixado Enoc adormecido do junto às cinzas da d lareira. Antes ntes de sair, tinha beijado suas as pálpebras e sua boca, mas ele não despert despertara. Melhor assim.. A aljama ainda dormia. Maria percorreu a rua da Prata, na qual apenas havia um artesão instalando a sua banca, banca e se dirigiu para a Sinagoga Maior. O homem cravou seus olhos azuis nela, mas a moça fingiu não se dar conta; não tinha vontade
de
confronto
àquelas
horas
da
especialmente, depois da noite que tinha passado.
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manhã…,
O perfil escuro da sinagoga se recortava contra o céu cinzento. Ouviu-se um trovão ao longe; momentos depois, começou a chover. Então Maria pôs-se a correr. Não fugia de ninguém, apenas de si mesma. Os seus pés voavam
pelos
becos,
ultrapassando
obstáculos
e
se
esquivando dos mais madrugadores; quando chegou ao seu destino, a moça estava quase sem fôlego. A catedral de São Salvador parecia tão negra quanto a sinagoga, mas ali sim podia entrar. O interior do templo estava fresco e escuro, pois ainda estavam acendendo as velas. Maria se benzeu rapidamente e se dirigiu à capela da Santa Maria. O feno que cobria o chão colou em seus pés molhados, mas não lhe importou. A imagem de Maria a contemplava do seu altar, com o Menino nos joelhos e a mão levantada em sinal de bênção. A moça afundou o joelho no feno e abaixou a cabeça. ― Ave-maria, cheia de graça… ― começou a rezar. Mas então levantou a cabeça e se encontrou com os olhos vazios da Virgem. E soube que necessitava de algo mais que um Ave-Maria para comovê-la. ― Querida Maria, ― sussurrou ― sei que não venho vê-la frequentemente, mas preciso me justificar com alguém e a senhora é boa com todos, inclusive com os pilantras como eu. Por isso, vou falar do coração. Voltou a olhar para a imagem. Dessa vez, a sua expressão lhe pareceu aprazível. 95
Isso lhe deu ânimo para continuar. ― Nem sequer sei se está aí. ― murmurou ― Por que iria estar? Eu mal venho aqui. Mas não se equivoque: não é que não acredite na Senhora. Acredito Nele e na Senhora, profundamente. Maria fez uma pausa. ― Mas não acredito em nada mais. ― disse com voz sufocada ― Não acredito no dízimo que empobrece os que já são pobres, nem nas bulas com as que os ricos compram a sua entrada no Paraíso. Não acredito em quem tortura seus irmãos no nome de Deus, nem em quem os condena à fogueira. Não acredito em nada disso, Maria; por isso não a visito tão frequentemente como eu gostaria. Mas a levo no coração, por isso lhe peço que me guie agora. O capelão se aproximou discretamente. Era um homem grande e muito torpe, mas não pareceu incomodado ao ver Maria. Acendeu um par de velas e se afastou; enquanto isso, Maria aproveitou para ordenar as suas ideias. ― Querida Maria, eu… não sou boa. ― Engoliu em seco ― Saí de casa sem permissão. Roubei bolsas e extorqui a pobres descuidados. Embebedei-me, entrei em brigas e me embolei em uns quantos palheiros. E nem sequer me arrependi como Deus manda. Contudo… Maria olhou de esguelha para a Virgem, mas nada em seus toscos traços de madeira revelou desaprovação ou desgosto. Na verdade, Santa Maria parecia… divertida? A moça também reprimiu um sorriso e suspirou:
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― Contudo, juro-lhe que não fui egoísta, ou não em tudo. Vim embora de Taraçona porque era o melhor para a minha madrasta, mulher de quem nunca gostei. Nunca roubei aos pobres, só aos ricos; e nunca o dei aos ricos, só aos pobres. E eu preferi comer sopa e vestir farrapos que ficar com um maravedi a mais. Não sou ambiciosa e, se pudesse me permitir algum luxo, me aborreceria de qualquer forma. Maria voltou a suspirar. ― Perguntará por que lhe conto tudo isto. Veja bem… ― A garota arranhou a cabeça ― Sei que as coisas más que tenho feito, como roubar e tudo isso, não são muito graves. Acredito que Deus e você são bastante generosos para me perdoar. E, no entanto, esta noite fiz algo que se supõe ser imperdoável…! Maria golpeou o feno com irritação. ― O que tem de mal? Por muito que tente, não sou capaz de vê-lo. Eu… gosto dele. ― Respirou fundo ― Supõe-se que deveria arder no Inferno por isso? As pessoas que odeiam não condenam a sua alma, mas eu condenei a minha por… amar? Maria levantou a cabeça. ― Pois não me parece justo. Sinto muito, mas não. Por que está bem que os cristãos e os judeus se odeiem, mas não que se amem? O seu próprio filho disse que devíamos amar o próximo. E os meus próximos são também os judeus, os muçulmanos e os pobres. Os meus próximos são todos aqueles que, à sua maneira, tentam ajudar os outros. De fazer que o mundo terrestre se pareça um pouco com o 97
celestial através das suas boas obras. E não é isso o que quer Deus, Maria? A
Virgem
parecia
conter
a
respiração.
Maria
se
perguntou se a teria ofendido ou se, simplesmente, a estava escutando com interesse. ― Querida Maria, ― murmurou então ― nunca lhe pedi nada para mim, nem vou fazer agora. Mas, se estiver em suas mãos
fazer
com
que
cristãos,
judeus
e
muçulmanos
possamos ser irmãos de novo…, rogo que o faça, por favor. A moça se benzeu. Depois se levantou e abandonou a capela.
98
Capítulo 16
Maria saiu da catedral em silêncio. Sentia entia-se mais tranquila ila depois daquela bre breve ve oração à Virgem; agora tinha que e voltar para a Casa do Espinheiro para se reencontrar com Enoc. Se ele desperta despertasse e não a visse,, podia pensar que o tinha abandonado… Mas, quando se dispunha a empreender o caminho de volta à aljama, o seu estômago prote protestou stou com energia. A moça decidiu comprar um pouco de comida antes de voltar. Além disso, poderia compartilhá compartilhá-la la com Enoc. Na verdade, era muito cômodo não ter que e roubar o que necessitava… Dirigiu-se a uma banca de bolachas e olhou umas de noz; mas, quando tentou perguntar o preço, a proprietária lhe deu as costas. ― Senhora? ― perguntou Maria com frieza.
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Mas ela não se voltou. Maria foi à banca do lado, onde vendiam hortaliças. Quis comprar um punhado de cenouras, mas aquele mercador também fingiu não escutá-la. A jovem não compreendia. Há quase dez anos que sobrevivia na rua da Cutelaria e todos os comerciantes a conheciam. Com uns se dava melhor do que com outros, mas nunca nenhum a tinha ignorado. Perplexa demais para se enfurecer, quis ir ao encontro de Pedro mas, quando este a viu vir, escapou por entre a multidão. Maria ficou gelada. Pedro já se mostrara frio com ela nas últimas vezes, mas ia ser capaz de ignorá-la? Depois de tantos anos sendo sócios? Voltou para a aljama com o estômago vazio e um mau pressentimento. Um mau pressentimento que se converteu em uma certeza quando começou a se sentir observada. «Isto já não é imaginação minha. ― disse a si mesma, com inquietação ― Tanto na paróquia de São Salvador como na aljama estão me vigiando. Por quê?». Sentiu-se aliviada ao chegar à rua do Espinheiro…, mas então descobriu que a casa do médico estava trancada. ― Enoc? ― Chamou enquanto fazia soar a aldraba ― Enoc, sou eu…! ― Quem procura? Maria virou bruscamente e encontrou com uns frios olhos azuis. 100
Era o mesmo homem com quem cruzara de manhã. Estava certa de que o tinha visto antes, mas onde? Quando? O homem estava acompanhado de um pequeno grupo de judeus. Entre eles havia homens e mulheres, e todos tinham algo em comum: o modo de olhar para Maria. ― Procuro o médico. ― disse ela com aspereza. Alguns judeus trocaram olhares e cochichos, mas aquele homem não deixava de observá-la. ― Para quê? Por fim, Maria reagiu. ― Vocês são…? ― perguntou com tom zombador. ― Isaac de Andújar. ― Dado que não nos conhecemos, Isaac de Andújar, os meus assuntos não lhe dizem respeito. A Casa do Espinheiro continuava em silêncio. Maria compreendeu que Enoc teria saído e fez menção de voltar sobre os seus passos… … mas Isaac de Andújar parou a sua frente. ― Não queremos prostitutas na aljama. ― Esse é um problema seu. ― Não me entendeu, rameira. ― disse o homem com calma ― Ou vai sozinha ou a tiramos arrastada. Maria reprimiu a sua raiva e cuspiu: ― São tempos estranhos, não é verdade? As prostitutas saem de nossos bordéis e os porcos saem de suas pocilgas. Isaac de Andújar se dirigiu aos outros: ― Além de puta, é descarada!
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― Seduziu o médico e ainda por cima zomba de nós! ― rugiu um homem. ― Fora da aljama, rameira! ― chiou uma mulher. Maria nunca se considerou um exemplo de castidade, mas tampouco se vira rodeada de uma multidão que a insultava. A ira era um bom escudo, mas não era infalível. Deu-se conta de que não sabia o que fazer. Tirava a faca e se defendia, como tinha feito com os encapuzados que tinham ameaçado Enoc? Baixava a cabeça e partia da aljama debaixo de maldições? Sentiu algo viscoso no pescoço e compreendeu que alguém lhe tinha cuspido. Ela também cuspiu. ― Que cômodo é atacar em grupo! ― Zombou ― Por que não vem um de cada vez…? Mas as suas palavras ficaram afogadas pelos gritos de indignação. Alguém a empurrou e outra pessoa lhe puxou o cabelo; por um momento, Maria acreditou que a arrastariam pela rua do Espinheiro… … mas então alguém foi em sua ajuda. ― Parem! ― gritou uma voz infantil ― Eu a conheço! É minha amiga! O peito de Maria tremeu. Galit abria passagem às cotoveladas por entre a multidão; quando a localizou, rodeoulhe a cintura com os braços. ― Venha comigo. ― disse em voz baixa.
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― Direi a seu avô que lhe dê uns açoites, Galit! ― bramou Isaac de Andújar ― Eu mesmo lhe emprestarei o meu cinto! Mas a menina já estava puxando mariana direção contrária.
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Capítulo 17
Galit conduziu Maria até um beco que cheirava a urina. Comprovou que não h havia ninguém por perto, encarrapitouencarrapitou se em um muro baixo de barro e disse: ― Siga-me! As mãos de Maria tremiam, mas fez o que Galit lhe dissera.. A menina escalou a parede, subiu em um telhado te e chegou até ao o batente de uma janela. A Maria custou um pouco compreender que tinham rodeado a Casa do Espinheiro. ― Ainda bem que Enoc não fechou as janelas. janelas ― comentou Galit. Entraram traram pela janela da cozinha. O fogo estava apagado e as peles, revoltas; mas não havia nem rastro d de e Enoc, nem de sua roupa. Era como se tivesse saído apressadamente damente. ― Sabe onde está o meu irmão?
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Maria virou para olhar Galit. A menina estava fechando as janelas, mas pôde distinguir a sua expressão preocupada na penumbra. ― Não. ― Eu sim, ― disse ela com voz grave ― Está sendo julgado pelo Bet Din7. ― O tribunal dos judeus? ― perguntou Maria com tom incrédulo ― Por quê? Galit desviou o olhar. ― Porque colocou uma cristã em sua casa. E porque… Então Maria compreendeu. ― Porque se deitou com ela. ― balbuciou ― Isaac de Andújar me viu sair daqui de manhã… ― … e contou a todo o mundo. ― assentiu Galit. ― Não só na aljama. ― disse Maria com desalento ― Também foi contar aos mercadores cristãos. ― Eu lhe disse que a sua família era de bom berço. ― Mas por que resolveu implicar comigo? ― Também já lhe disse isso: quer que Enoc se case com a sua filha… ― Pois ela que ganhe o seu coração! ― Maria estalou ― Os ricos acreditam que podem comprar tudo, mas o amor alheio está fora de seu alcance…! As suas palavras se quebraram com um soluço. Deixouse cair sentada nas peles e chorou. Não lhe importava fazê-lo, pois apenas Galit podia vê-la. Um Bet Din ou Beth Din, ou ainda Beit Din: "Casa do Julgamento", plural: Battei Din), é um Tribunal Rabínico composto por três pessoas observantes do judaísmo, especialistas no tema tratado, sendo que, ao menos um dos integrantes, deve ser um rabino ordenado de acordo com a Halachá (conjunto de leis da religião judaica). 7
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A menina sentou a seu lado com acanhamento. Maria queria lhe dizer alguma coisa, mas o pranto a impedia de articular uma só palavra. Por sua cabeça passavam dezenas de imagens: as pessoas da paróquia lhe dando as costas, os misteriosos encapuzados acossando Enoc, os judeus da aljama a insultando …, Enoc nu à luz do fogo… Por que não se esqueciam deles? Notou que Galit apoiava sua cabeça no ombro. E esse gesto de carinho permitiu que se tranquilizasse um pouco. ― Então estão a julgar Enoc. ― balbuciou ― e eu sou a rameira mais odiada da Saragoça. ― Não é uma rameira. ― Galit protestou. ― Diga isso às pessoas… ― Direi todas as vezes que forem precisas. Maria secou os olhos e contemplou a menina. A sua expressão decidida lhe provocou onda de gratidão… e outra de medo. ― Não, Galit. Você deve se manter à margem. Não quero que a açoitem… ou algo pior. ― Eu sou valente. Como você. ― Não siga o meu exemplo. ― bufou a moça ― Veja como vivo. ― Gosta do meu irmão, não é verdade? E ele gosta de você. Muita gente vive e morre sem amar, nem ser amada por isso eu diria que está a viver bastante bem. ― Mas devo me afastar de Enoc. ― Maria levou as mãos à cara ― Se não o fizer, só teremos problemas. Galit se separou dela. 106
― Vai abandoná-lo? ― perguntou com aspereza ― Será capaz? ― Se o fizer… ― Se o fizer, vai quebrar seu coração. ― O que sabe você? É apenas uma pirralha! ― Sei o que ele disse no Bet Din! ― protestou Galit ― Não é permitido que eu assista aos julgamentos, mas sei como entrar no castelo sem ser vista. Estive escutando-o durante um tempo e depois fui procurar você. ― Me procurar? ― Maria se surpreendeu. Então se deu conta de algo ― Como sabia que estaria na Casa do Espinheiro? ― Pensei que, se você se importava com o meu irmão, iria a seu encontro. E, conhecendo Isaac de Andújar, ― acrescentou com tom lúgubre ― imaginava que ele a estaria esperando. Maria contemplou os olhos escuros da menina e sentiu admiração. Galit não parecia ter noção…, mas a tinha resgatado daquela turba. ― Obrigada, Galit. ― disse com voz sufocada ― Obrigada por me ajudar. Ela sorriu levemente. ― Como não ia ajudar a única pessoa que me considera seu igual? Se não nos ajudarmos, ninguém mais o fará. A menina lhe estendeu as mãos. Maria as agarrou com cuidado. ― Pode me fazer um favor? ― perguntou Galit então. ― O que quiser. 107
― Espere pelo meu irmão. Maria mordeu o interior da bochecha, mas a menina insistiu: ― Faça o que fizer, não desapareça de repente. Enoc não merece, não depois do que disse no Bet Din… ― O que foi que ele disse? ― Realmente precisa que lhe reproduza as suas palavras? Não o conhece suficientemente bem para saber o que diria se alguém se atrevesse a atacar você? A jovem engoliu em seco. Então recordou como Enoc tinha derrubado a banca de maçãs da Coso. E ligou os pontos. ― É verdade ― sussurrou ―, não necessito que me conte isso. ― Vai esperar por ele, então? Maria soltou as mãos de Galit. Durante
um
momento,
as
duas
ficaram
caladas,
olhando o fogo apagado. Finalmente, Maria começou a limpar as cinzas da lareira. ― Vou esperar por ele. ― prometeu.
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Capítulo 18
A fechadura começou a girar momentos depois que Maria ouviu o longínquo tangido dos sinos de São Salvador. Estava todo o dia à espera de Enoc. Tinha acendido ace o fogo e preparado uma sopa com o qu que e tinha à mão: lentilhas, cenouras e um pouco de ovo cozido.. Também tinha esquentado vinho e o tinha apreciado. Quando ouviu os passos d de Enoc na escada, se levantou e aguçou o ouvido. Em seguida notou que algo não estava bem. Os passos eram
lentos s
e
pesad pesados, s,
como
se
o
médico
estivesse
arrastando os pés. Maria fez menção de se dirigir para a porta… e, nesse instante, Enoc apareceu na soleira. A moça afogou um grito: ― Não!
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O jovem lhe dirigiu um olhar sombrio. Tinha tirado a túnica e a tinha embrulhada nas mãos. Também estava mortalmente pálido. A seus pés havia um atoleiro escuro. ― Não me olhe assim, ― disse com voz rouca ― Por favor. Deu um passo em frente para entrar na cozinha, mas perdeu o equilíbrio e Maria teve que segurá-lo. Então ela viu. ― Meu Deus… ― gemeu ― Meu Deus, o que lhe fizeram? Enoc grunhiu: ― Poderia ter sido pior. Vou me deitar nas peles… O jovem se deixou cair de barriga para baixo com um suspiro. Quando o fogo iluminou os cortes em suas costas, Maria teve que fazer um grande esforço por manter a calma; deviam ter-lhe dado mais de vinte açoites. «Isto é por minha culpa?», esteve prestes a perguntar. Mas compreendeu que assim não ajudaria Enoc. E só disse: ― Vou buscar água fria. Aliviará a dor. ― Prepara também uma infusão de alho, tomilho e casca de bétula. ― murmurou ele ― Mas, por tudo quanto é mais sagrado, esfrie antes de aplicar em mim. Maria levou mãos à obra. Agradecia ter algo com o qual se distrair. Enoc devia estar pensando o mesmo. ― Como entrou? ― perguntou. ― Pela janela. Galit me guiou. 110
O jovem deixou escapar um pequeno bufido. ― Poderiam ter aberto a cabeça. ― Mas não o fizemos. ― Felizmente. Maria acabou de preparar a infusão e a deixou esfriar. Quando estava pronta, agarrou um punhado de ataduras da bolsa de Enoc e as umedeceu cuidadosamente. ― Vai doer ― advertiu. ― Não me diga. Maria lhe acariciou os cachos. Depois começou a cuidar de seus ferimentos. ― Do que o acusavam? Ele balbuciou: ― De umas quantas coisas, temo. Mas podemos resumilo em fornicação. ― E lhe açoitaram por isso? ― Se fosse uma mulher, talvez tivessem me apedrejado. Suponho que posso me considera afortunado. A moça recordou a expressão cruel de Isaac de Andújar e sentiu um calafrio. Mas fez um esforço e dissimulou. ― Se fosse judia, poderíamos chegar a um acordo, não é verdade? ― Suspirou ―. Poderíamos nos casar… ― Mas não posso me casar com uma cristã. Não enquanto seja judeu. ― Isso já sei, só estava pensando em voz alta… Enoc a interrompeu: ― Não quero ser judeu. Disse sem aborrecimento. Sem tristeza. 111
Com uma frieza entristecedora. ― Não quero ser judeu. ― repetiu ― Vou me converter ao cristianismo. ― Você ficou louco? ― Maria gaguejou ― Será a sua ruína… ― Se não me converter, será de todas as maneiras. ― Enoc fez uma careta de dor. ― Pensei e tomei uma decisão. Se fosse cristão, poderia me casar com você… e isso é exatamente o que penso fazer. ― Não. Os seus olhos se encontraram. Os de Enoc se abriram de assombro; os de Maria lutavam para não se encherem de lágrimas de novo. ― Viveu vinte anos sem mim e viveu bem ― disse ela ―. Não tem por que jogar tudo a perder agora. Além disso, eu também tomei uma decisão. ― Do que fala? ― Esperei aqui por você porque a sua irmã me convenceu, mas queria lhe dizer uma coisa. ― O quê? ― Acabou. ― Acabou? ― Pelo amor de Deus, Enoc, pense bem! ― Maria esfregou a cara com impaciência ― Acha que vou deixar que se converta ao cristianismo para que o chamem de sujo? Posso não saber ler, mas não sou tola: sei o que dizem dos convertidos. Sei das pinturas que apareceram perto da aljama e sei por que os encapuzados patrulhando a cidade. 112
― Não seja tão pessimista. Alonso de Cavalaria é convertido e ninguém se atreve a se meter com ele. ― Alonso de Cavalaria é rico e poderoso. Você é médico e sua amante é uma prostituta. ― Isso não é… ― Não é verdade? ― Maria zombou ― Diga-me, a quem importa que seja ou não? As pessoas falam e isso é o que conta. Se se converter, o chamarão de sujo e o perseguirão. Você ouviu os tipos na outra noite; Saragoça cada vez é menos segura para as pessoas como você. E, se nem sequer tem o apoio dos seus… ― Os membros do Bet Din não são «meus»! ― protestou Enoc ― Nem tampouco Isaac de Andújar! Você é dos «meus» mais que ninguém! Maria não sabia o que desejava mais, beijá-lo ousásseilo. ― Sabe qual é o castigo do Santo Ofício por fingir que é cristão quando continua sendo judeu? ― resmungou ― Eles o chamam judaizar e propõem duas soluções: a tortura ou a fogueira. Não vou deixar que esse seja o seu destino! ― Para sua desgraça, o meu destino quem escolhe sou eu! ― Então, não penso em me casar com você! Por muito cristão que seja! Enoc golpeou o chão com os punhos. ― É que não entende? Só quero encontrar uma maneira para que nos deixem em paz! Maria se abraçou a si mesma. 113
― Não há, Enoc. O problema não são os cristãos, nem os judeus: o problema são os que, com o pretexto de acatar as ordens de um deus ou outro, tentam governar as nossas vidas. E desses há em toda a parte. Aconteceria o mesmo se fôssemos um cristão e uma muçulmana, ou um muçulmano e uma judia; o problema não é a religião, são as pessoas más que a utilizam como desculpa. E contra eles não conseguimos fazer nada. Então Enoc se levantou com dificuldade. ― Pode ser que você tenha desistido, Maria, mas eu não! ― O que faz, tolo? Deite-se agora mesmo! ― Não! O jovem continuava pálido, mas parecia sereno. Naquele momento, Maria o odiava: ― Deite-se! Deite-se ou eu o deito a bofetadas! Enoc esboçou um sorriso zombador. ― Adiante, faça comigo o que quiser. Sabe que pode. ― Girou a cara para lhe mostrar a bochecha ― Quando quiser. Maria apertou os punhos. ― Não ia me bater? ― soprou Enoc. ― Mereceria que o fizesse… O médico se sentou nas peles e encolheu os ombros com um gesto de dor. ― Seria mais agradável que o fizesse você, para variar. Olhou para Maria durante um instante. Depois abriu os braços. Ela se deu conta de que estava tremendo. Não podia mais. 114
Enoc a sentou em seu colo e apoiou seu queixo no ombro. Maria escondeu a cara em seu pescoço. ― Quem dera que nunca tivesse me conhecido ― gemeu. ― Conhecer você foi a melhor coisa que fiz. ― respondeu ele sem fôlego ― E a único coisa pode me impedir de continuar a seu lado é a sua vontade. Se não me quisesse, Maria… Se não me quisesse, não voltaria a olhar para você duas vezes. Mas você me quer! ― Suspirou ― Por isso sei que Javé me perdoará. Beijou-a com suavidade. Maria suspirou e levantou suas saias. ― Perderemos tudo, então ― sussurrou ― A família, a comunidade, a religião… e a reputação, se é que eu alguma vez tive uma. Só resta uma coisa. Enoc amaldiçoou entre dentes. Depois levantou Maria com delicadeza. Quando os seus corpos se encaixaram silenciosamente, as costas de Enoc se esticaram como a corda de um arco. ― De tudo o que disse, ― murmurou fracamente ― o amor é a única coisa não a obriga a ser o que outros decidiram. Fico com ele. Maria engoliu em seco. ― Não vai doer? Enoc apertou os dentes e empurrou Maria contra os seus quadris. Ela deixou escapar um grito sufocado. O jovem entreabriu os olhos e sorriu levemente. ― Não arranhe minhas costas e tudo ficará bem.
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Maria ficou olhando a sombra oscilante que projetavam na parede da cozinha. E, enquanto o seu corpo se desfazia, se perguntou quantas noites passaria temendo que alguĂŠm irrompesse em seu refĂşgio e os arrancasse do leito.
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Capítulo 19
Maria não queria voltar a ter problemas na aljama, por isso abandonou a Casa do Espinheiro antes do amanhecer. Enoc a despediu na porta. ― Me reunirei ei com você na Igreja dos Pregadores ao a meio-dia. ― sussurrou ―. Nessa altura, já terei me despedido de Galit. ― Acha que não o deixarão vê-la? O jovem enrugou a testa. ― Não ão sei. Não sei como levarão isso. Mas, caso isso aconteça, quero lhe dar uma explicação. Para que saiba a verdade. Maria o beijou fugazmente nos lábios. ― Nos vemos ao meio-dia, então. A moça escapou scapou pela rua da Prata,, que ainda estava vazia. azia. A neblina da madrugada penetrava por baixo da roupa
117
e a impedia de ver mais de três palmos de distância, mas sentia calor no peito. Enoc ia se batizar nesse meio-dia. Tinham escolhido a Igreja
dos
Pregadores,
porque
Catalina
conhecia
um
sacerdote que podia ajudá-los. A mulher já estava recuperada da operação, e Maria sabia que faria o que fosse preciso pelo médico que tinha permitido que continuasse a pintar. Foi um alívio sair da aljama; e, ao mesmo tempo, sentiu uma pena inexplicável. Tudo tinha começado na Casa do Espinheiro, quando tinha ido procurar o médico judeu, sem saber que era o mesmo jovem que tinha roubado. Por alguma razão, doía pensar que não poderia voltar a passear pela aljama sem recear ser abordada por Isaac de Andújar e por seu séquito. Mas não era momento de lamentações, mas sim de ações. A escuridão estava começando a se dissipar quando Maria chegou à rua da Cutelaria. Não ia passar por casa antes de visitar Catalina…, mas algo a fez parar. Uma cara conhecida. ― Maria! ― sussurrou Pedro. Estava bem diante de sua casa, escondido entre as sombras. ― Estive toda a noite à sua espera. ― disse o homem com tom acusador. ― Na porta da minha casa? ― perguntou Maria com aspereza. ― Queria falar com você. 118
― Que novidade. Pedro esfregou a nuca com ar de culpabilidade. ― Sinto muito não haver lhe dito nada até agora, mas estão nos vigiando todo o tempo… ― Quem? ― Os de Andújar. ― Pedro assobiou ― Esse tipo tem olhos e ouvidos em toda a parte. Nota-se que está carregado de dinheiro… ― Não me interessa a sua vida. ― Mas a ele lhe interessa a sua. Proibiu-nos… ― …que me vendessem coisas? ― sugeriu Maria com irritação ― Que me dirigissem uma palavra? Acredite ou não, Pedro, já tinha notado. O homem a olhou com assombro. ― Sabia que era ele? ― Podia imaginar. ― Mas como…? ― Não é assunto seu. ― Por que não? Somos amigos, recorda? ― Engano seu. ― replicou Maria com orgulho ― Um amigo não teria virado as costas. ― Esse homem nos ameaçou! ― Subornou, você quer dizer? ― A expressão de culpado de Pedro foi reveladora ― Diga-me, Pedro, que preço pôs à sua
lealdade?
Aposto
que
não
vale
maravedis… ― Você está sendo injusta. ― E você está sendo um hipócrita. 119
mais
que
cinco
― Esse homem tinha nos controlado! ― protestou Pedro ― Mas a todo porco chega seu São Martinho…, e o dessa gente se aproxima cada vez mais. ― O homem esboçou um sorriso malicioso ― Vai acontecer algo grande, Maria. Vai ver. ― O que quer dizer? ― Não soube? Maria olhou em redor e viu que as pessoas começava a sair de suas casas. Logo cantaria o galo; ela não podia perder tempo mexericando com Pedro. ― Se tiver algo para me dizer, apresse-se! ― urgiu. O homem inclinou a cabeça e sussurrou: ― Vão expulsá-los. ― Os De Andújar? ― A todos. ― A todos…? ― Aos judeus, mulher! E aos porcos, ao seu devido tempo. O Santo Ofício pressionou os reis; logo haverá um novo amanhecer, um amanhecer livre de agiotas… ― Ficou louco, Pedro? ― vaiou Maria ― Como vão expulsar todos os judeus? É uma loucura! ― Pois a loucura já começou. E esses pecadores pagarão. O coração de Maria começou a bater com violência. ― Como se atreve a falar de pecados, Pedro? Você, que é um golpista, um ser desprezível e um covarde! ― Não tem o direito de me insultar. ― grunhiu ele ― É tão golpista quanto eu e se acha com coragem para soltar grosserias a quem está acima de você. 120
― Posso ser uma golpista. ― Maria se defendeu ― mas não há ninguém acima de mim. Nem Isaac de Andújar, nem o Santo Ofício, nem os reis. São tão humanos quanto eu! ― O que você disser, Maria. ― disse Pedro com exasperação ― Faça o que quiser; no que diz respeito a mim, estarei em A Donzela e o Caldeirão brindando pela boa nova. Nesse instante, ouviu-se o tangido acelerado de um sino. E o rumor de gritos longínquos. Maria virou para o outro lado da rua… … e viu a fumaça. ― Já começou. ― anunciou Pedro com satisfação. Mas,
quando
terminou
a
desesperadamente para a aljama.
121
frase,
Maria
já
corria
Capítulo 20
Maria sentia como se tivesse cem agulhas na garganta, mas não se deteve até chegar ao muro da aljama. A fumaça se m misturava com a névoa e subia dando voltas para o céu, salpicado de faíscas que estalavam como relâmpagos e sombras que passavam correndo de um lado para o outro. «Não», disse uma voz dentro de seu coração. Entrou na aljama apressadamente. A sua tosse se misturou com a gritaria; o caos reinava nas velhas e conheci das ruas. A moça abriu caminho aos empurrões aos judeus que fugiam e aos encapuzados que os perseguiam com tochas. Não podia ser verdade. Pedro tinha que estar enganado. Apesar de tudo, tinha que estar…
122
Percorreu velozmente a rua da Prata, que estava tingida de âmbar por causa do fogo, e dobrou a esquina para entrar na rua do Espinheiro. Mas se deteve imediatamente. Porque onde devia estar a casa de Enoc já não havia nenhuma casa, apenas uma enorme língua de fogo que parecia lamber as últimas estrelas do céu. O mundo da Maria veio abaixo. Não. Não, não, não. Não, por favor… O seu pranto foi engolido pelo rugido do incêndio. As lágrimas nublaram sua vista e só pôde ver aquele clarão mortal. Enoc tinha se convertido em um montão de ossos queimados sob as cinzas daquela casa. Como poderia suportá-lo? Como poderia…? ― Está ali! ― chiou uma voz conhecida nas suas costas ― Ela veio! Os braços magros de Galit rodearam a sua cintura. Maria, que estava chorando aos gritos, mal pôde recebê-la neles sem cair. E então outra voz estremeceu a sua alma: ― Maria… Enoc a estreitou contra o seu peito. Estava suado e sujo de cinza, mas vivo. Maria continuou a chorar até que ele a sacudiu levemente. 123
― Temos que ir. ― disse com firmeza ― Já. Mas Maria já não o estava olhando. Os seus olhos estavam fixos em um vulto que havia atrás dele. Um vulto que levava uma adaga na mão. ― Afaste-se, Enoc! ― gritou. O jovem não vacilou. Isso lhe salvou a vida. Maria tirou a sua faca e enfrentou o encapuzado… … e então o reconheceu. ― Você… ― Soprou ― Você… Era o próspero artesão ao qual Enoc tinha aconselhado comer verduras. O tipo risonho com o qual Maria tinha rido então. Agora usava um capuz e uma arma. E os olhava com um ódio inexplicável. ― Hereges! ― bramou ― Ímpios! ― Este homem curou você! ― Maria rugiu ― Como pode queimar a sua casa? ― Você é cristã! ― respondeu ele com a mesma ferocidade ― Não deveria estar com eles! ― Pois estou! Estou e estarei até ao dia do Julgamento Final! Outros homens se uniram ao primeiro. Maria se perguntou quantos mais conheceriam, quantos mais seriam capazes de se voltar contra Enoc, o jovem que lhes tinha devolvido a saúde. ― Você, mulher! ― Alguém cuspiu ― É judia ou cristã? ― Sou Maria! ― Ela deu um passo atrás ― E eles estão comigo! Se algum de vocês tentar lhes fazer mal, eu o mato! 124
Juro pelo mesmo Deus que castigará o seu ódio e o seu fanatismo! ― Herege! ― gritaram-lhe. Mas ninguém tentou detê-la. ― Espero que ardam no Inferno. ― grunhiu. E, sem soltar a arma, dirigiu-se a Enoc e a Galit: ― Corram!
125
Capítulo 21
Fecharam-se se na casa d de Maria. Saragoça a tinha deixado de ser um lugar seguro para eles; o melhor seria se esconderem até que as coisas acalmasse acalmassem m um pouco. ― Não ão entendo nada nada. ― murmurou Enoc ― Essa gente apareceu de repente. Maria exalou xalou um suspiro. Galit dormi dormia a em um recanto; tinham-na na envolvido na única manta do casebre e agora a contemplavam silenciosamente. Apenas ela parecia capaz de conciliar o sono. Enoc tinha se sentado ao lado da parede, com cuidado para não apoiar as costas nela. Maria estava avivando o fogo. Uma só pergunta flutuava no silêncio: o que iiria ser deles? ― Acredito que n não ão é um bom momento para me converter. ― disse Enoc fi finalmente.
126
Maria não respondeu. O jovem a olhou de soslaio. ― Não estará se culpando, não é verdade? Você não tem culpa desses lunáticos terem ateado fogo à aljama. ― Tampouco fui de ajuda, isso está claro. ― Não diga tolices… ― Não são tolices. Cada vez que toco em alguma coisa, destruo. Maria lhe deu as costas. Enoc lhe acariciou a nuca com suavidade. ― Nunca me contou de onde vem. ― Nasci na Taraçona, se se refere a isso. ― E como acabou na Saragoça? Maria apertou as mandíbulas. Por um lado, não queria remexer no passado; por outro lado, se não confiasse em Enoc, em quem confiaria? ― A minha mãe morreu ao me dar à luz, mas a minha madrasta sempre cuidou de mim. Até mesmo depois da morte de meu pai. Era uma mulher bondosa e alegre; durante doze anos, foi toda a minha família… e me fez muito feliz. ― Teve sorte. ― disse Enoc com suavidade ― Nem todo mundo teve uma infância feliz. ― Sei. ― Maria afundou os ombros ― Mas, quando fiz doze anos, ela quis voltar a se casar… ― E o seu padrasto não era um bom homem? ― Tampouco acredito que fosse mau. ― admitiu Maria ― Mas já tinha duas filhas e não me queria. Os três me ignoravam; para uma menina que apenas conheceu amor e cuidados, isso pode chegar a ser muito doloroso. Mas a 127
minha madrasta tinha tanta vontade de voltar a se casar…! E, apesar de tudo, esteve quase a cancelar as bodas quando soube que eu não me sentia bem. Por isso vim embora. Não sabia por que estava recordando aquilo em um momento como aquele. Mas, de algum jeito, sentia que era o momento certo. ― Foi muito generoso de sua parte. ― murmurou Enoc. ― Foi uma estupidez. ― Maria soprou ― Mas correu bem. ― Parece incrível que pudesse tê-lo feito… ― Tampouco tinha escolha, sabe? Aquela mulher levava doze anos cuidando de mim. Como ia entorpecer a sua felicidade? Uma noite, enquanto todos dormiam, subi em um carro de feno e vim para Saragoça. E o resto já pode imaginar. Houve um breve silêncio. ― Como se chama a sua madrasta? ― Chama-se Alodia, ou se chamava. Nem sequer sei se está viva. ― Obrigado por me contar isso, Maria. ― Ora essa. ― Nunca mais voltará a estar sozinha, sabe disso? As
palavras
de
Enoc
lhe
provocaram
um
estremecimento. ― Eu estarei com você. ― ele acrescentou ― até ao dia da minha morte. Maria lhe dirigiu um sorriso úmido. Ele o devolveu.
128
― Oh, não vai chorar? ― Soltou-lhe ― São as minhas feridas, não as suas! ― Equivoca-se. Agora também me pertencem. A moça abriu a boca para responder, mas uns golpes na porta a impediram. Galit abriu os olhos. Enoc semicerrou os seus. ― Quem é? ― perguntou Maria sem se mover. Ao princípio, apenas ouviram o rumor longínquo do vento e o discreto crepitar do fogo. Até que uma voz bramou: ― O Santo Ofício! ― Os golpes se repetiram ― Abram a porta!
129
Capítulo 22
Enoc falou com voz funesta: ― Vêm êm por mim. ― Não abra a porta, Maria! ― implorou Galit. ― Deixem-me pensar. ― disse Maria entre dentes. dentes Mas não lhe ocorria nada. O homem chamou pela terceira vez: ― Abram, já disse disse! ― Abra, Maria Maria, ― suspirou Enoc ― vejamos o que quer. A moça roçou a lâmina de sua faca com dissimulação. Depois se dirigiu para a porta e a abriu. Uma sombra se recortou na soleira. ― O Tribunal do Santo Of Ofício ício me enviou em busca de uma alma desencaminhada ― disse uma voz áspera ― para que Deus possa julgá julgá-la por seus pecados.
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Enoc fez gesto de se aproximar, mas o homem continuou a falar: ― Maria de Saragoça? O sangue de Maria gelou. ― Eu…? ― balbuciou. ― É você? ― disse o homem ― Venha comigo. ― Do que me acusa? ― Ficará a saber durante o julgamento. O desconhecido não parecia disposto a dar explicações, mas Maria compreendeu depois de um pouco. Iam acusá-la de judaizar. Tinham-na visto com Enoc e Galit; ela mesma tinha gritado aos quatro ventos que «estava com eles». E agora a Inquisição queria que prestasse contas. A moça fechou os olhos. Fizesse o que fizesse, a torturariam para lhe arrancar uma suposta verdade; e, se essa verdade não os satisfizesse…, a queimariam na fogueira. ― Maria irá ao Palácio da Aljaferia sem demora. Era Enoc quem falava. Parecia tranquilo. Maria não entendia aonde ele queria chegar, mas confiava nele. Talvez tivesse um plano; talvez fingisse que Maria ia acudir voluntariamente à sede do Tribunal para poder escapar juntos em um descuido… ― O seu trabalho é duro, irmão. ― disse o jovem então ― Antes de levar esta mulher, por que não aceita um pouco de vinho quente? Enoc deu um passo em frente e deixou que o fogo o iluminasse. Maria notou que tinha tirado o quipá. 131
O desconhecido hesitou; mas, finalmente, entrou na casa. ― Obrigado, irmão… Não chegou a terminar a frase. Porque, assim que cruzou a soleira da porta, um brilho prateado sulcou o ar. O sangue salpicou as saias de Maria. Ela afogou um grito. Na garganta daquele homem tinha aparecido um sorriso grotesco. O seu olhar se esvaziou; instantes depois, as pernas lhe falharam. Quando desabou no chão, já estava morto. Enoc o olhava sem piscar. Ainda sustentava na mão a faca com a qual operava os olhos, que estava manchada até ao punho. Também tinha gotas vermelhas na cara. Mas nada disso parecia lhe importar. ― Irmão… ― balbuciou Galit. Ele contemplou a menina e, por fim, deixou de parecer uma estátua de pedra. ― Sinto muito, pequena, ― sussurrou ― mas tinha que crescer mais cedo ou mais tarde. A menina hesitou. Mas, quando o seu irmão lhe estendeu os braços, refugiou-se neles resoluta. Maria ainda estava paralisada. ― Enoc… ― Acha que ia deixar que a levassem? ― disse ele com lentidão ― Se for preciso, matarei todos os inquisidores do reino para impedi-lo. ― Temo que essa não seja uma possibilidade. 132
― Então, temos de encontrar outra. Maria contemplou o cadáver do enviado da Inquisição. Não havia forma de ocultá-lo em casa; e, se lhes ocorresse atirá-lo para a rua, seriam descobertos. Só tinham uma opção: partir. Mas não tinham dinheiro, nem cavalos, nem sequer uma mula. Não podiam ir assim, sem mais nem menos. E Maria compreendeu: ― Há uma pessoa que pode nos ajudar, mas temos que falar com ela antes que amanheça. Enoc guardou a faca em sua bolsa. Galit se aferrou com firmeza a saia de Maria. ― Leve-nos. ― disse a menina. Sua voz tremia, mas havia decisão em seu olhar. Maria assentiu. E, sem fazer ruído, conduziu Enoc e Galit para a escuridão.
133
Capítulo 23
Catalina leu com voz trêmula: ― «Nós ós ordenamos neste decreto que os judeus e judias de qualquer idade que residam em no nossos ssos domínios partam com seus filhos e filhas antes de julho, e que não se atrevam a retornar». ― A mulher engoliu em seco ―. «Se algum retornar, será condenado à morte e seus bens serão confiscados». As suas uas palavras deixaram atrás trás de si uma esteira de silêncio. lêncio.
Felizmente,
estavam
sozinhos
na
Igreja
dos
Pregadores. ― Então é verdade verdade. ― murmurou Maria ― Os reis ordenaram a expulsão dos judeus. ― Se Enoc se converter ao cristianismo cristianismo… … ― começou a dizer Catalina, mas a moça não lhe permitiu continuar:
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― Se Enoc se converter ao cristianismo, terá que se separar de Galit, já que seus avós jamais permitirão que ela faça o mesmo. ― Mas eu quero estar com o meu irmão! ― A menina pulou ― Não me importa fingir que sou cristã! ― Se fingir que é cristã e descobrirem, a matarão. ― disse Maria sem olhar para ela ― Tal como a seu irmão. E não devemos esquecer que o Santo Ofício me persegue. E Enoc assassinou um de seus representantes. Agradando ou não, nos adaptarmos à nova situação nem sequer é uma possibilidade. ― É verdade, tesouro ― suspirou Catalina ― ; só podem fazer uma coisa: partir. O antes possível e para o mais longe que possam. ― Mas como? Vigiarão as portas e registrarão os viajantes. Você já leu o decreto: não quererão que nenhum judeu leve as suas riquezas. ― Esta noite não registrarão ninguém; já têm muito a fazer apagando o incêndio e a manter a ordem. ― Catalina sacudiu a cabeça ― Têm uma oportunidade, meus queridos; eu não a desperdiçaria. ― E o dinheiro? ― perguntou Enoc ― Todas as minhas economias estavam na Casa do Espinheiro. ― Do dinheiro me ocupo eu ― disse Catalina ―. Não tenho grande coisa, mas poderão comprar um cavalo que os leve os três; Maria é magra e Galit não pesa mais que um saco de cevada. Maria lhe deu um beijo na testa. 135
― Que Deus a bendiga, Catalina. ― Não, querida: que vos bendiga a vocês. Está recompensando através de mim as boas ações que você levou a cabo nos últimos tempos. ― De que deus falam? ― perguntou Galit então ― Do seu ou do nosso? ― E isso importa? ― respondeu Catalina com sensatez. Depois esvaziou o seu moedeiro na bolsa de Enoc ― Não vão ao estábulo da rua dos Pregadores, mas ao da rua dos Aguadores. Conheço o dono; não lhes fará perguntas indiscretas. ― Obrigada, Catalina. ― disse Maria ― Despeça-se de Johan por mim, por favor. E dos outros também. O seu coração se retorcia ao pensar que não voltaria a ver os seus amigos, mas não tinha alternativa. Catalina cravou os seus olhos verdes nela. ― Tenho outra coisa para vocês. Catalina se aproximou do recanto onde pintava e agarrou uma tela pequena. ― Comecei a pintar Maria e José. Faltam alguns detalhes, mas terão que conformar-se… Maria contemplou a imagem à luz das velas. Era uma formosa cena familiar da Virgem e de São José…, exceto que a Virgem se parecia estranhamente com ela e São José com Enoc. ― São José era judeu, tal como Jesus Cristo. ― disse Catalina com simplicidade ― Na verdade, não somos tão diferentes assim. 136
Enoc guardou a tela junto com o dinheiro. Maria voltou a beijar Catalina e os três se dirigiram para a rua dos Aguadores. A mulher lhes disse adeus da porta da igreja. Maria só chorou um pouco e com dissimulação. Não era momento para lamentações, mas sim para lutar por sua vida. Catalina estava certa: o dono dos estábulos não lhes fez perguntas incômodas. Compraram um cavalo velho, mas robusto, e montaram nele imediatamente. Galit ia diante, Enoc atrás e Maria, no meio dos dois. ― Sabe montar? ― perguntou a Enoc. ― O suficiente. Não saíram pela porta Queimada, mas sim pela do Anjo. Catalina também tinha razão ao supor que nessa noite não haveria registros, ou talvez apenas tivessem tido sorte. Era uma noite sem lua, mas as estrelas emitiam um resplendor azulado. Galit se apoiou no peito da Maria e adormeceu assim que começaram a cavalgar; a moça, no entanto, permitiu-se olhar para trás uma última vez. Os
fogos
da
Saragoça
já
pareciam
faíscas. Logo
deixariam de se ver. Ouviu a voz de Enoc junto a seu ouvido: ― Está triste, Maria? ― Sim, ― admitiu ela ― mas me sinto liberta. O jovem sorriu levemente. ― Então, a tristeza irá. Mais cedo ou mais tarde. Esticou o pescoço para beijar sua bochecha. Depois estalou a língua e fez com que o cavalo andasse mais depressa. 137
Maria voltou a olhar para diante. ― Enoc… ― Diga-me. ― Já á se está indo. A alvorada os perseguia, mas eles eram mais rápidos. Maria estava convencida de que seus inimigos já não poderiam alcançá-los. los. Só eram três sombras na madrugada. Escuras e insignificantes, mas livres. Por fim.
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Agradecimentos Agradeço a Carmina Garcia por me ter contagiado com a sua paixão pela época medieval. Agradeço a Javier Paricio por me ter aberto as portas de Saragoça de 1492. Agradeço a Teresa Cameselle por me ter feito confiar em Maria.
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