FICHA TÉCNICA
Título original: Un Hijo Autor: Alejandro Palomas Copyright © Alejandro Palomas, 2015 Edição portuguesa publicada por acordo com Sandra Bruna Agencia Literaria, SL Todos os direitos reservados Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2017 Tradução: Catarina Gândara Revisão: Diogo Maria Pessoa/Editorial Presença Imagem da capa: Shutterstock Capa: Vera Espinha/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1.a edição em papel, Lisboa, maio, 2017 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena info@presenca.pt www.presenca.pt
DEDICATÓRIA
Para a Angélica, que não a esqueçamos. Para ti, Rulfo, porque todos os dias me ensinas a medir a ética com o coração.
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O caminho é o mesmo para todos. O destino também.
I O PRINCÍPIO DE TODAS AS COISAS
GUILLE Tudo começou no dia em que a professora Sonia nos fez uma pergunta. Nas janelas viase um sol amarelo muito grande e as folhas das palmeiras mexiam-se da mesma forma que a mão do meu pai quando acorda cedo e me leva à escola e depois, quando chegamos à porta, me diz adeus com a mão, tendo postas as luvas verdes porque é inverno. A professora Sonia levantou-se da secretária dela, que é a da professora porque é a maior, bateu palmas duas vezes e encheu o ar com pó de giz. Também tossiu um bocadinho. A Nazia diz que é por causa do pó de giz, que te deixa a garganta como se tivesses comido um bolo cheio de açúcar em pó e ficasses sem saliva e às vezes, se não bebes água, até acabas por vomitar. — Agora, antes de irem para o recreio, quero que me respondam a uma pergunta, meninos — disse ela. Depois virou-se para o quadro, pegou num pau de giz vermelho e escreveu em letras muito grandes: O QUE QUERO SER QUANDO FOR GRANDE
Levantámos imediatamente a mão. Todos, até o Javier Aguilar, que só tem uma — porque a outra não saiu quando ele nasceu — e a mexe assim no ar, muito depressa. A professora disse que não com a cabeça uma vez e depois muitas, mais de cinco. — Por ordem, meninos. Começámos pela primeira fila e continuámos até à última, que é aquela onde eu me sento. A professora apontou no total: Três futebolistas do Barcelona, dois do Real Madrid, um do Manchester e um Iniesta Seis Rafael Nadal Duas modelos muito altas Uma princesa (a Nazia) Um médico rico Três Beyoncés Um Batman Um piloto de naves espaciais de videojogos Dois presidentes do mundo (os gémeos Rosón) Uma famosa daquelas que aparecem na televisão nos programas da noite Uma veterinária de cães grandes Uma vencedora do programa The Voice Kids Um campeão do mundo dos Jogos Olímpicos Quando chegou a minha vez, o Mateo Narváez deu um arroto e desataram todos a rir, mas depois calaram-se logo porque a professora não gosta nada de arrotos nem de traques, e depois pôs a cabeça assim e disse «Chuuut, Mateo» duas vezes.
E, logo a seguir, olhou para mim. — Guillermo? A Nazia deu-me uma cotovelada e riu-se, tapando a cara com as mãos. Tapa sempre a cara porque diz que no Paquistão, se as raparigas se riem alto e com a boca aberta, é feio e os pais zangam-se. — Eu... eu gostava de ser a Mary Poppins — respondi. A professora pôs a mão no pescoço e pensei que talvez se tivesse constipado e que lhe doesse a garganta, mas não tive tempo para lhe perguntar porque logo a seguir deu o toque de saída e começámos a tirar as sanduíches das mochilas a fim de irmos para o pátio. — Fica mais um bocadinho, Guillermo, se faz favor — disse ela. E depois: — Os outros podem sair. Quando todos se foram embora, a professora veio até à minha carteira e sentou-se na cadeira do Arturo Salazar, que não vem às aulas desde antes do Natal, porque um dia fizemos uma excursão a um museu onde guardam muitos planetas e caiu por umas escadas abaixo, tendo partido uma perna, cinco dentes e dois dedos. — Então, Guillermo, explica-me melhor isso de quereres ser a Mary Poppins quando fores grande... — disse ela. Não respondi porque a Nazia, que fica muitas tardes sentada na caixa da mercearia com a mãe dela e sabe muitas coisas sobre as pessoas mais velhas, diz que, quando os clientes acabam a frase assim com a voz para cima, é porque ainda não acabaram de falar e é preciso esperar porque estão a pensar. — Não preferias ser... outra coisa? — perguntou a professora, tocando no sinal que tem de um dos lados da boca. — Não, professora. A professora Sonia soltou um «pfffff» pelo nariz e sorriu. Nesse momento lembrei-me de que a minha mãe me disse que às vezes, quando as pessoas que não são crianças se calam, não é por terem acabado de falar, mas sim para não se engasgarem ou qualquer coisa parecida, agora não me lembro, e por isso continuei sem dizer nada. — E diz-me, Guillermo — continuou a professora, deitando o ar pelo nariz como o gato da senhora Consuelo, que era a porteira da casa onde vivíamos antes de nos mudarmos para o apartamento de agora. — Porque é que gostavas de ser a Mary Poppins? — Porque ela voa, professora. A professora fez «huummmm» e, depois, coçou um bocadinho a testa. — Mas os pássaros também voam, não é? — Sim. — E tu não queres ser um pássaro, pois não? — perguntou ela. — Não. — Porque não? — Então... porque, se eu fosse um pássaro, não podia ser a Mary Poppins. A professora tornou a deitar o ar pelo nariz e, como não disse mais nada, ficámos
calados outra vez durante um grande bocado. Depois, ela franziu a boca para um dos lados, como o pai faz às vezes, e pigarreou. — E diz-me — continuou ela. — Por que outras razões é que gostavas de ser a Mary Poppins? — Então... porque tem um chapéu de chuva que fala e uma mala antiga da qual saem muitos móveis grátis... e tem poderes para fazer com que as gavetas se arrumem sozinhas... e porque quando não está a trabalhar vive no céu, apesar de também fazer mergulho no mar com os peixes e os polvos. — No céu? — Sim. A professora fechou os olhos muito devagarinho. Depois fez-me assim na cabeça, como se me estivesse a despentear muito. — Guille — disse ela. — Tu sabes que a Mary Poppins é... mágica, não sabes? — Claro. — O que eu quero dizer é que ela não é como nós. — Sim. — O que te estou a dizer é que a Mary Poppins é uma personagem de ficção, como o Super-Homem, ou como o Harry Potter ou a Matilda... ou o Bob Esponja. Ou seja, existem mas não existem. Entendes? — Não. — O que quero que percebas é que eles não são como nós porque só existem no mundo da fantasia — disse. E depois acrescentou: — Ou, o que vai dar ao mesmo: não podemos tocar-lhes porque são... inventados. — A Mary Poppins existe mesmo. — Ah, sim? — Sim. Olhou para mim e sorriu um bocadinho. — E onde é que ela está? — Agora não sei, mas vive em Londres, porque ali falam inglês. Eu conheci-a. Em agosto, quando foi a ponte do feriado da Virgem Maria, a minha mãe e o meu pai levaramme a vê-la. Vivia num teatro com os animais dela e cantava. E, quando acabou e toda a gente se foi embora, ela deixou-nos entrar no quarto dela e contou-me coisas. A professora tocou no sinal. — Hum, hum — disse. E depois: — Que tipo de coisas é que ela te contou? — É que são segredo, professora. Nesse momento, soou a campainha que indica que já passou metade do tempo de recreio e a professora virou-se para trás, a fim de olhar para o relógio grande que está por cima do quadro. — Está bem — disse. Ficou calada, como se estivesse a pensar muito a sério, e depois virou-se outra vez para mim. — Muito bem, agora vai para o recreio. Vamos lá ver se ainda tens tempo para comer a sanduíche toda. — Enquanto eu guardava os livros na gaveta e
tirava a sanduíche da carteira, ela foi para a secretária, sentou-se e pôs-se a escrever qualquer coisa no caderno, e eu saí para o corredor. A Nazia estava à minha espera diante das casas de banho. Quando cheguei, ela deu-me a mão e disse: — Porque é que demoraste tanto? — Por nada. — A professora pôs-te de castigo? — Não. — Ah. Ela afastou um bocadinho o véu cor-de-rosa da cabeça e bebeu um gole de sumo. E também disse: — Anda, despacha-te. Quero mostrar-te uma coisa.
SONIA Tudo começou na tarde em que decidi fazer o telefonema que andava a adiar desde havia algumas semanas. — Gostava de falar consigo sobre o Guille, senhor Antúnez — disse eu ao homem que me ouvia do outro lado da linha. Fez-se um pequeno silêncio e, imediatamente, o homem quis saber mais, mas eu limitei-me a esclarecer, num tom suave embora firme: — Se não se importa, preferia conversar consigo pessoalmente, aqui, na escola. Combinámos encontrar-nos uns dias depois. Quando o Manuel Antúnez chegou à escola, era a hora de almoço dos mais pequenos e a barulheira que vinha dos refeitórios do rés do chão já se ouvia no corredor. Esperei por ele na sala dos professores. Depois de darmos um aperto de mão, acompanhei-o a um gabinete mais pequeno que usamos para as conversas com os pais. O Manuel Antúnez é um homem jovem e corpulento, com pouco mais de trinta anos, cabelo preto, barba descuidada, olhos escuros e um bocado achinesados, braços fortes e umas mãos grandes com unhas quadradas. Assim que nos sentámos, foi direto ao assunto, sem rodeios. — Faça o favor de dizer. Decidi ser igualmente direta. — Vou então explicar-lhe — comecei. — Pedi-lhe que viesse aqui porque estou um pouco preocupada com o seu filho. Não pareceu achar estranho. Na verdade, todos os pais sabem que quando os chamamos para uma reunião é porque qualquer coisa não está bem, e costumam vir entre expectantes e na defensiva, e alguns até receosos. De acordo com o que tinha lido na ficha do Guille, o Manuel Antúnez é mecânico aeronáutico. A ficha também acrescentava um parêntesis: «(recentemente desempregado)». Quando lhe olhei para os olhos, pareceram-me tristes. Antes que ele pudesse dizer fosse o que fosse, preferi adiantar-me: — Pensei que talvez pudesse ajudar-me a... decifrar algumas coisas relativas ao Guille — comecei. Arqueou uma sobrancelha. — A decifrar? — perguntou, apanhado um pouco de surpresa. A seguir, deu uma gargalhada seca, que não conseguiu dissimular o nervosismo tão típico de muitos pais quando lhes peço que venham falar comigo durante o ano letivo. — Ena — continuou, cofiando a barba. — Isso soa quase como uma história de detetives ou uma série policial americana. Apercebi-me de que não se sentia à vontade e tentei que se descontraísse. — O que eu quero dizer é que talvez possa ajudar-me a entender melhor o Guille. Assentiu, ao mesmo tempo que baixava os olhos por um instante. Sorri-lhe, e isso pareceu tranquilizá-lo porque também sorriu, embora timidamente. Vi imediatamente o sorriso do Guille espelhado no dele. O olhar, contudo, era muito
diferente. No olhar do Manuel Antúnez havia uma espécie de tristeza que o do Guille não tinha. Ou talvez fosse melancolia. — Está bem — disse, passando outra vez a mão pela barba. — Conte comigo. Respirei fundo antes de tornar a falar. — Antes de mais nada, quero que saiba que o Guille é um miúdo fantástico e nada problemático. Muito pelo contrário, tem uma atitude excelente. Não sofre de défice de atenção, é ativo e participativo, é otimista, muito entusiástico e tem valores que podem contribuir de forma muito positiva para a turma. O senhor Antúnez inclinou a cabeça para o lado e também suspirou, mas não disse nada. Esperei e, por fim, ele pareceu reagir. — Sim, o Guille é uma criança... especial. — É como diz — retorqui. — É exatamente essa a palavra: especial. Reparei que enrugou a testa e ficou com uma expressão tensa. Mais uma vez, houve qualquer coisa no seu olhar que me fez ficar alerta. Percebi imediatamente que o «especial» dele e o meu não eram a mesma palavra. Não, não tinham rigorosamente nada de semelhante. — Não se preocupe — disse ele, com um esgar de irritação. — Já sei o que me vai dizer: que é um miúdo muito sensível, que só brinca com as raparigas e que, em vez de jogar futebol ou basquetebol no pátio, como seria normal, anda por aí a ler contos de fadas e todos os disparates desse tipo. Fiquei tensa. O tom de voz dele não me agradou. E a mensagem também não. — Não preciso que me diga isso — acrescentou, no mesmo tom desagradável, levantando a mão e mostrando-me a palma. — Já nos disseram o mesmo na outra escola. E também nos disseram que os outros rapazes estavam a começar a ignorá-lo, isto quando não havia algum que gozava com ele. — Olhou para mim com uma expressão de desafio. Depois, uma sombra toldou-lhe o olhar. — É por causa da mãe. Desde pequeno que o Guille sempre foi demasiado apegado a ela, andava sempre agarrado às saias dela e... bem, é daí que vem isso de ser «especial», como você diz. Quis interrompê-lo, mas não me deixou. — Mas isso é passageiro. Agora que estamos os dois sozinhos, começámos a passar mais tempo juntos e a partilhar mais coisas. A senhora sabe, de homem para homem... Por isso, se o que me quer dizer é que o Guille é... um bocado esquisito, escusa de o fazer, porque ninguém o sabe melhor do que eu e já estou a tratar de remediar o problema. Tive de engolir em seco para conter a fúria. Nem por sombras me preparara para uma situação como a que se me apresentava. O Manuel Antúnez estava muito distante da imagem que eu tinha construído do pai de uma criança como o Guillermo. Numa questão de minutos, a minha surpresa deu lugar ao assombro. E esse assombro começava a transformar-se em raiva. — Senhor Antúnez, a verdade é que me entristece muito ouvi-lo falar assim do Guillermo — disse, tentando conter-me —, sobretudo porque isso não tem nada que ver com o motivo do meu telefonema. — Ele olhou para mim e tornou a levantar uma sobrancelha,
com uma expressão surpreendida. — Sinceramente, se pensa que lhe pedi que viesse aqui para julgar o seu filho ou para o diminuir, lamento dizer-lhe que está enganado. O Manuel Antúnez inclinou-se para a frente na cadeira e cofiou lentamente a barba. Os olhos tornaram a ficar toldados por uma sombra de tristeza. Durou apenas um instante, mas a expressão do rosto ficou completamente fechada. Ao vê-lo assim, percebi imediatamente que me tinha enganado ao pensar que poderia contar com a cooperação dele e que esta não iria chegar, de maneira que mudei de estratégia e fiz uma coisa que detesto. Menti. — Senhor Antúnez, esta reunião é apenas uma conversa de rotina. O Guille é novo na escola e é habitual acompanharmos mais de perto os alunos recém-chegados. — Ah — disse ele, anuindo lentamente. — Tenho consciência de que as aulas começaram há pouco mais de dois meses e que as crianças, sobretudo nesta idade, reagem de maneiras muito diferentes a uma mudança de escola. Se juntarmos a isso a ausência da mãe, é natural que o processo possa ser mais... complicado. Ele não disse nada. — As separações dos pais, sobretudo na idade do Guille, podem ser muito difíceis — acrescentei, esboçando um sorriso profissional. Ele tornou a ficar tenso e levantou bruscamente a mão, como se estivesse a mandar-me calar. — Bem, separação, aquilo a que se chama «separação»... também não é exatamente isso — ripostou, na defensiva. Contudo, pareceu aperceber-se imediatamente de que tinha utilizado um tom demasiado seco e tentou suavizá-lo. — No nosso caso, é por motivos de trabalho. A Amanda, a minha mulher, é assistente de bordo e, bem... as coisas estão como estão, ela estava desempregada há um ano e, em agosto, teve uma proposta para trabalhar numa companhia de aviação privada do Dubai. A verdade é que não tivemos grande hipótese de escolha. Da forma como a vida está, e depois de eu ter sido despedido... pode imaginar. — E, antes que eu pudesse perguntar fosse o que fosse, acrescentou: — Mas é uma situação temporária. Por agora, serão apenas seis meses. Ficámos a olhar um para o outro durante uns segundos, sem dizer nada. Contudo, ao ver que o silêncio se prolongava e que ele não parecia disposto a falar mais, decidi intervir. — Compreendo — disse eu. — Infelizmente, tenho conhecimento de cada vez mais casos como o seu — acrescentei, num tom conciliador. Ele baixou os olhos durante um segundo. — Não me interprete mal, senhor Antúnez. Estou apenas a dizer que o Guille teve de assimilar duas mudanças muito grandes e muito repentinas, e que há alguns... pormenores nas atitudes que ele tem no dia a dia que me chamam a atenção, nada mais. Foi por isso que pensei em... como dizer? Pensei em fazer-lhe um acompanhamento mais aprofundado, uma vez que a escola disponibiliza essa possibilidade. — Um... acompanhamento? Respirei fundo.
— Sim — disse eu, olhando-o nos olhos. — Creio que seria bom para o Guille ter uma entrevista com a orientadora da escola. — A... orientadora? Assenti. — Foi o que eu disse, sim. Ele baixou o olhar por um segundo e cerrou os punhos em cima da mesa. Pareceu-me ver uma tatuagem num dos pulsos, uma espécie de inscrição que se perdia pelo braço acima, desaparecendo por baixo da camisa. Adivinhei o que estava para vir e preparei-me para o ouvir. — Oiça, professora Sonia, não me leve a mal, mas o meu filho não precisa de orientadora nenhuma — retorquiu, tornando a levantar o olhar. E depois, quase como se falasse consigo mesmo, acrescentou entre dentes: — De quem o meu filho precisa é da mãe. Soube naquele momento que não me tinha enganado ao chamá-lo para aquela reunião, e soube também que não o iria deixar sair do gabinete sem que me tivesse dado licença para o Guille ter aquela primeira sessão com a María, a psicóloga da escola. Por isso decidi acrescentar mais um ponto à nossa conversa e fazer-me valer do meu plano B. — Senhor Antúnez, creio que há algumas coisas que o senhor deveria saber — disselhe. Ele olhou para mim com desconfiança. O olhar era o de um pai que quer saber mas não quer ouvir. De há uns anos a esta parte, desde que as coisas estão como estão, são cada vez mais os casos como o de Manuel Antúnez: pais com tantos problemas que não conseguem lidar com todos, tão preocupados com o dia a dia e em resolver os problemas mais quotidianos que não têm capacidade para carregar mais pesos. O Manuel Antúnez encolheu os ombros. — Tenho a certeza de que lhe interessará saber — insisti. Ele inclinou a cabeça para o lado e pestanejou. Com a mão direita, acariciou a tatuagem que espreitava por baixo da manga do braço esquerdo. Foi um gesto de dúvida. — Acredite no que lhe digo — insisti.
MANUEL ANTÚNEZ Tudo começou um dia no gabinete da professora Sonia, a professora do Guille. Já estávamos reunidos havia algum tempo, com ela a massacrar-me com a história de que o Guille precisava de ser avaliado pela psicóloga da escola — «a orientadora», como ela lhe chamou — e eu cansado de a ouvir e prestes a levantar-me e sair dali para fora. Foi então que ela disse uma coisa que me fez vergar: — Creio que há algumas coisas sobre o Guille que o senhor deveria saber, acredite no que lhe digo. Tornei a encostar-me ao espaldar da cadeira. — Coisas? — perguntei. A professora Sonia assentiu lentamente. É uma mulher jovem, de cabelo castanhoescuro e olhos pretos e brilhantes. E é bonita, apesar de ter um olhar duro e de parecer mais velha quando sorri. — Sim — respondeu ela. — Nesse caso, diga. Respirou fundo antes de falar. — Em primeiro lugar, deve saber que o Guille não é um rapaz muito... popular entre os colegas. — Eu não disse nada. Pela expressão dela, percebi que havia mais. — Vive no mundo dele, aparentemente feliz, mas isolado do grupo. Na verdade, desde que começou o ano, praticamente só se relaciona com a Nazia, a menina paquistanesa que também entrou este ano para a escola e que, segundo sei, é sua vizinha, não é assim? — Sim — respondi. — É a filha dos donos da mercearia que fica por baixo de nossa casa. — Era o que eu pensava, sim. — São boa gente. Um pouco metidos consigo, sabe como é, têm lá as coisas deles e isso, mas são de boa cepa. Ela sorriu, mas o sorriso durou apenas um instante e depois desapareceu. — Além disso, há a paixão do Guille pela leitura — prosseguiu, mexendo um pouco as mãos ao falar. — O Guille está constantemente a ler: no refeitório, no pátio, entre uma aula e a seguinte... e as coisas que lê não são exatamente típicas da idade dele. São leituras mais... avançadas, diria eu. Não sei se o senhor tem conhecimento disso. Desta vez, fui eu a sorrir. Se tinha conhecimento, perguntava ela? Como era possível eu não saber que o meu filho passava o tempo todo a ler? Por um triz não lhe dei uma resposta torta, mas contive-me e dobrei a língua. Depois, como vi que continuava à espera, disse: — O amor pela leitura foi uma coisa que ele herdou da Amanda. Nisso são chapados. E não é a única coisa em que são iguais. A Amanda consegue passar horas a ler, sempre foi assim. Há alturas em que lê até quando vai a andar na rua, portanto imagine. É uma coisa tão forte que nem sei até onde chegará, já dei com ela a ler no supermercado enquanto
empurrava o carrinho ou quando cozinhava... — Sim, entendo — disse ela. Não estava a sorrir. Nesse momento, ouviu-se uma gritaria e um monte de miúdos passou a correr pela janela que dava para o corredor. Estiquei o pescoço, tentando reconhecer o Guille entre eles, mas não o vi. A professora esperou até que desaparecessem todos. — Para além da leitura, há mais umas coisas que me chamaram a atenção — tornou ela a falar. — A primeira é a fixação do Guille na... Mary Poppins. — Eu não disse nada. Ficámos a olhar um para o outro durante uns segundos, e eu esperei que ela continuasse a falar. — Inicialmente, pareceu-me um pouco estranho, mas, bem... reconheço que não quis dar demasiada importância ao assunto, por se tratar de uma criança que acabara de chegar de outra escola. É frequente as crianças desta idade tornarem seu todo o tipo de personagens de fantasia e, às vezes, chegam mesmo a... como dizer? A adotá-las como mais um membro da família. Do seu mundo interior, se é que me faço entender. — Sim, claro. — Mas ontem, durante as aulas, aconteceu uma coisa, um pequeno incidente que me pôs de sobreaviso. Foi por isso que decidi telefonar-lhe, porque gostaria de falar consigo sobre isso. Pelo tom de voz dela, percebi que estava preocupada e encolheu-se-me um pouco o estômago. De repente, ocorreu-me que o que ela estava prestes a dizer-me era algo que eu não ia gostar de ouvir e, por um segundo, amaldiçoei a Amanda por não estar ali sentada comigo. «Tínhamos de estar aqui os dois, Amanda. Juntos. Como dantes, maldito seja isto», pensei, enquanto tentava concentrar-me no que a professora tinha para me contar. Colei as costas ao espaldar da cadeira e engoli em seco. — Faça o favor de dizer — disse. *** Uma hora mais tarde, já a caminho de casa, quando parei no bar da esquina para beber uma cerveja, continuava a dar voltas aos últimos minutos da conversa que tivera com a professora do meu filho: «O que me levou a pensar que seria aconselhável o Guille ter uma entrevista com a orientadora da escola, para uma pequena avaliação, não é que ele queira ser “como a Mary Poppins” quando for grande, senhor Antúnez», dissera-me ela. «Sabemos que as crianças se projetam no futuro de maneiras muito diferentes, e é evidente que a Mary Poppins é uma figura com valores que não dão azo a qualquer preocupação. Pelo contrário, eu diria até que é um modelo muito positivo.» E eu, reconheço que um pouco aliviado, soltara o ar que tinha estado a conter. «O que me chama a atenção não é que o Guille queira ser “como a Mary Poppins”, mas sim que queira “ser a Mary Poppins”», esclarecera ela então, rodando a caneta entre os dedos, sem nunca deixar de olhar para mim. «Há uma grande diferença entre querer ser como alguém e querer ser alguém, senhor Antúnez, e parece-me que isso, aliado ao
isolamento dos colegas e à... hipersensibilidade, justifica que valha a pena averiguar se há alguma coisa que o Guille esteja a tentar dizer-nos: sobre o mundo dele, sobre os seus medos... quem sabe? Talvez a Mary Poppins seja apenas a ponta do icebergue.» Eu ficara sem saber o que dizer. E ela dera-me umas palmadinhas no braço e sorrirame, com aquele sorrisinho típico de espertalhões que julgam saber tudo reservado pelos professores para os pais, como se nós fôssemos uns idiotas. «A María, a orientadora da escola, já está ao corrente da situação. Não é a orientadora habitual, porque a Isabel, a psicopedagoga que trabalha connosco habitualmente, está de baixa de maternidade até ao próximo trimestre. Apesar disso, consta que é uma boa profissional, vai ver», dissera depois, abrindo a agenda e pegando num cartão de visita que me passou por cima da mesa. «Tomei a liberdade de marcar a primeira sessão para a próxima semana, para o Guille conversar com ela.» E acrescentara, desta vez num tom mais suave: «Se o senhor concordar, evidentemente.» Enquanto acabava de beber a cerveja, tornei a pensar na Amanda, e ao tirar a fotografia dela da carteira tirei também o cartão da sessão com a orientadora, que a professora Sonia me dera. Decidi que a Amanda teria feito o mesmo que eu e, nesse momento, ouvi a voz dela na minha cabeça. «Boa decisão, Manu. Sabes bem o que sempre dissemos: “É melhor saber”», pareceu-me que me dizia por entre a cacofonia dos empregados de mesa e a música da rádio. Sorri. «É sempre melhor saber» é uma frase muito típica da Amanda, essa e também «Nunca um passo atrás, Manu. Por muito que as coisas corram mal». Levantei-me, passei pela caixa a fim de pagar e saí para a rua. Exatamente quando estava prestes a atravessar, veio-me à cabeça a segunda coisa que a professora me dissera depois daquilo sobre o Guille e a Mary Poppins. Tornei a vê-la ali sentada, a levar a caneta à boca como fazem os médicos, ou como se lhe custasse muito dizer o que tinha para dizer, e também me lembrei que contraíra um pouco o maxilar antes de falar. «Mas o que mais me chama a atenção», dissera, franzindo o sobrolho, «é que, desde que as aulas começaram, o Guille nunca falou da mãe, senhor Antúnez. Não falou dela nunca, nem uma única vez.» Ficáramos calados os dois. Eu porque não sabia o que dizer, e ela suponho que por estar à espera de que eu dissesse alguma coisa. Eu pigarreara e ela reclinara-se na cadeira, lembrei-me então. E depois, como se pensasse em voz alta, acrescentara: «É como se, para o seu filho, a mãe não existisse.»
MARÍA Tudo começou com um envelope. Ou talvez não, talvez fosse mais exato dizer que tudo começou um pouco antes. Uma tarde, há uns dias atrás, a Sonia, que é professora do quarto ano, veio ao meu gabinete porque queria falar comigo sobre um aluno da turma dela. — É o Guille — disse, enquanto rodava a colherzinha de plástico e mexia o chá que pusera na chávena. — Creio que já te falei dele antes. — Sim, lembro-me disso — retorqui. — É aquele miúdo que gosta imenso da Mary Poppins, não é? Ela assentiu. — Gostava que o avaliasses. Sorri. Dado o pouco tempo que passou desde o início do trimestre, é impossível já conhecer a fundo todos os professores da escola. No entanto, apesar de não a conhecer bem, não me parece que a Sonia seja o tipo de pessoa de estar com rodeios. É uma mulher com caráter. — Claro — disse eu. — Passa-se alguma coisa? Não me respondeu imediatamente. Primeiro percorreu o gabinete com os olhos e, depois, disse: — Creio que é uma criança demasiado feliz, María — respondeu, esboçando um sorriso estranho. Não quis interrompê-la. Intuí que, se recorrera a mim para pedir ajuda — e isso é uma coisa que não costuma acontecer, a menos que um professor acredite que existe realmente um motivo de peso —, era porque, efetivamente, havia alguma coisa que a preocupava mesmo. E prosseguiu logo: — Eu explico-te melhor — disse. — Objetivamente, o Guille tem muitos motivos para ser uma criança conflituosa: acabou de mudar de escola, os pais separaram-se recentemente, está sempre na companhia de raparigas, não joga futebol nem outros jogos que sejam demasiado físicos, relaciona-se muito pouco com os rapazes, tem uma certa... hipersensibilidade, que os outros nem sempre aceitam bem, apesar de ainda nunca o terem verbalizado claramente, e, além disso, é de uma inteligência fora do vulgar. Isto já para não falar da obsessão pela Mary Poppins, a que inicialmente eu até achava uma certa graça mas que, com o passar do tempo, começou a tornar-se preocupante. — Percebo — disse eu. — E, apesar de tudo isto, é uma criança feliz — declarou. — Extremamente feliz. — E tu achas que...? — Não sei o que acho, María — interrompeu-me ela. — Só sei o que me diz a experiência, e a experiência diz-me que o Guille que vemos é uma criança que esconde dentro de si outra que não vemos. Estudei atentamente a cara de preocupação da Sonia. Do pouco que a tinha observado
desde que o ano letivo começara, parecera-me que era uma dessas professoras que vivem os problemas e as alegrias dos alunos como se fizessem parte da vida delas, por vezes até talvez excessivamente, embora não consigam evitá-lo. Às vezes são demasiado maternais com eles, e sabem-no. Mas, desde que eu começara a trabalhar na escola havia algumas semanas, nunca me parecera que ela se tivesse enganado nas apreciações que partilhara com o corpo docente. «Extremamente feliz», dissera. E depois acrescentou uma coisa que fez com que eu tomasse uma decisão: — Penso que o Guille, o Guille que vemos, é a peça de um quebra-cabeças, María — disse, com uma expressão preocupada. Falou com uma certa timidez, quase como se tivesse medo de que eu pudesse pensar que tinha perdido o juízo. Foi quase uma confidência. — E creio que, por baixo dessa felicidade, se esconde um... mistério. Um poço de dentro do qual talvez esteja a pedir que o tiremos. Não soube o que dizer. Quando quis responder, ela tirou de dentro da mala um envelope branco e pousou-o à minha frente, em cima da mesa. — Trouxe-te isto — disse. Olhámos uma para a outra por um instante. — O que é? Ela afastou a chávena de chá para o lado e apoiou os cotovelos na mesa. — São alguns desenhos e redações do Guille. Exercícios das aulas, trabalhos... esse tipo de coisas. Peguei no envelope e levantei-o. Ela estendeu a mão, pondo-a em cima do envelope, e negou com a cabeça. — Não precisas de o abrir já — disse, afastando uma madeixa de cabelo da cara e dando um suspiro de cansaço. — Como queiras. — Pousei o envelope em cima da mesa, liguei o portátil, abri a minha agenda e procurei uma hora livre. — Na próxima semana, tenho uma hora à tarde. Mesmo depois das aulas. A Sonia sorriu. — Perfeito. Vou falar com o pai dele e depois digo-te alguma coisa. *** Nessa mesma noite, depois de jantar, liguei a televisão e tentei pôr-me a par das notícias ou procurar uma dessas séries que vejo de longe em longe e que me distraem um bocado, mas passados uns minutos percebi que seria em vão. Continuava a dar voltas ao que se passara na reunião com a Sonia e, quando deixei o tabuleiro com os restos do jantar na mesa da sala, os meus olhos tropeçaram no envelope que ela me tinha entregado antes de sair do gabinete. Por momentos, estive prestes a apagar a luz e a ir para a cama. No entanto, e apesar do cansaço, a curiosidade foi mais forte do que eu. Preparei um chá, voltei para o sofá, liguei o rádio e sintonizei a emissora de música
clássica que oiço sempre antes de me deitar. Depois aninhei-me entre dois almofadões e abri o envelope. Despejei cuidadosamente o conteúdo no colo e separei para um lado as folhas de caderno escritas a lápis e, para o outro, o monte de desenhos que a Sonia organizara por data e agrafara de modo a ficarem convenientemente ordenados. Decidi começar pelos desenhos. Foi então que compreendi.
II A PALAVRA MÁGICA, NUVENS NO CÉU E ALGUMAS VOZES AMIGAS
GUILLE — Não! Outra vez? Mas ainda ontem disseste bem! A Nazia levantou os ombros, quase os encostou ao pescoço, e riu-se um bocadinho, mas eu não achei graça nenhuma e ela percebeu. Pôs-se logo muito séria e pegou na folha onde tinha a palavra copiada em letras muito grandes, e tentou outra vez: — Xu-per-ca-fri-li-gis-to-pa-li-do... xe — leu muito devagarinho e até disse a palavra um bocadinho cantada. Depois olhou para mim e riu-se, ao mesmo tempo que tapava a boca com as mãos, como a mãe dela faz quando está na caixa da mercearia. Tentámos mais algumas vezes e depois fomos para a cozinha fazer o lanche, porque o pai estava no escritório a escrever uma carta eletrónica à mãe no computador, e quando o pai escreve à mãe não pode ser incomodado porque se concentra muito para lhe sair bem. Enquanto lanchávamos, tornámos a ver a parte do filme em que a Mary Poppins diz a palavra mágica e todos dançam e cantam cada vez mais e mais depressa no parque, com os desenhos animados, para ver se assim a Nazia aprendia a dizê-la de uma vez por todas. Muitas das tardes, a Nazia vem para minha casa depois das aulas e fazemos os deveres juntos. Às vezes vamos até à mercearia dos pais dela quando acabamos de lanchar, e outras vezes ensaiamos no meu quarto o número da festa de Natal. É que um dia a professora disse-nos que este ano toca aos alunos do quarto atuar na festa e que tinha de ser aos pares ou em grupo, para não ser muito demorado. Quando a aula acabou, a Nazia e eu éramos os únicos que não tinham grupo porque, como somos novos, é claro que ninguém nos tinha escolhido. Por isso, a professora juntou-nos. — E o que é que gostavam de fazer? — perguntou. Já havia um número de magia, uma dança das Monster High, um Justin Bieber com o coro dele, um Pai Natal com três renas e também uma Pipi da Meias Altas no Egito e... e muitas outras coisas de que agora não me lembro. A Nazia ficou sem saber o que dizer. Durante as aulas nunca diz nada. Como fala de uma maneira um bocadinho esquisita, às vezes não se percebe muito bem o que ela diz. E também tem vergonha de que gozem com ela. — Podemos cantar um número da Mary Poppins? — perguntei eu. A Nazia tapou a boca com a mão para se rir e a professora sorriu. — Claro, Guille — respondeu ela. — Que boa ideia. — E depois: — Qual é que gostavas de apresentar? Fiquei tão contente que senti o coração a bater muito depressa e me deu vontade de fazer xixi. — Acha que pode ser o da palavra mágica? — perguntei e, como estava tão contente, saltaram-me uns perdigotos, que limpei imediatamente com a manga. A professora olhou para mim com um ar um bocadinho estranho, com as sobrancelhas juntas e uma ruga muito grande na testa, e, como o meu lugar é na última fila, viraram-se
todos para trás. A Nazia já não se estava a rir. — A... palavra? — perguntou a professora. — Sim. Aquela palavra mágica, a que é tão comprida que serve para quando não sabemos o que dizer e que também se canta. A professora pôs a cabeça assim, de lado, e ninguém disse nada. — Parece-me muito bem — disse ela, escrevendo qualquer coisa no caderno. — Pronto, já estão os dois marcados. A Nazia e o Guille vão cantar um número da Mary Poppins e... a palavra mágica. É isso? Eu disse que sim com a cabeça e a Nazia olhou para mim, mas não se riu nem nada. Isso foi nesse dia, e desde então ensaiamos algumas tardes em minha casa, mas com a Nazia é um bocadinho difícil porque ela não fala muito bem e, ao princípio, estava sempre a enganar-se, apesar de já estarmos a ensaiar há algumas semanas e, se calhar, se não aprendermos depressa, não termos tempo porque já falta muito pouco para a festa. Outras vezes descemos à mercearia da senhora Asha, que é a mãe da Nazia, e lanchamos bolinhos de mel e amêndoas que ela guarda debaixo de um plástico para não se sujarem, e depois vamos para o armazém, que é um sítio grande, sem janelas e cheio de coisas tapadas com cortinas, onde vive a Nazia, os pais e o irmão dela, o Rafiq, que sabe muito de telemóveis e de computadores e que às vezes está lá e outras não, e quando está discute um bocado com o pai da Nazia, mas em paquistanês. A Nazia é muito esperta, apesar de não falar muito. Está sempre a rir, menos quando tem de estar na caixa da mercearia com a mãe, a vigiar os clientes, para que ninguém leve nada sem pagar, e a meter as compras dentro de sacos verdes. Nessas alturas, ela põese muito séria e eu vou para casa, que é logo no prédio ao lado, mas no sótão, e as chaves de casa ficam debaixo do tapete da porta, para eu poder entrar se o pai ainda não tiver chegado. Quando o pai está em casa, vemos televisão juntos e às vezes revemos os meus deveres e ele faz-me o jantar, mas logo a seguir tenho de ir para a cama porque ele sentase no computador do escritório a escrever cartas eletrónicas à mãe. Se o pai ainda não tiver chegado, ponho o DVD da Mary Poppins na televisão do meu quarto e canto as canções, sobretudo a da palavra mágica, e também danço com um casaco comprido da mãe, que é um dos preferidos dela e que eu vou buscar ao armário sem que o pai saiba. É que ela deixou muita roupa de inverno em casa. O pai diz que a mãe, no sítio onde está, já não precisa dela porque é no deserto e lá não há inverno, mas assim que ele chega a casa eu dispo a roupa da mãe muito depressa e escondo-a debaixo da cama, com os sapatos dela e outras coisas que tenho para me mascarar, porque uma vez ele apanhou-me vestido com as coisas da mãe e bem, tive de lhe prometer que não tornava a fazer aquilo nunca mais, mas nunca mais mesmo, e ele fechou-se no quarto e nem jantámos nem nada. Mas na quinta-feira à tarde não pude voltar da escola com a Nazia, porque, depois da aula de Expressão Plástica, deu o toque de saída e eu tive de ficar à espera no corredor, e depois a professora Sonia levou-me com ela à casinha do jardim. Como estava a chover, tivemos de correr um bocadinho, apesar de a casa do jardim ficar muito perto do portão de
saída e quase ao lado da fonte que tem o cata-vento do galo. — Já sabes que hoje tens sessão com a orientadora — disse a professora. E a seguir, quando chegámos à porta, acrescentou: — Vais gostar muito da María, Guille. Vais ver que sim. Antes de entrar, não consegui aguentar mais: — Mary é María em inglês, não é? A professora disse que sim com a cabeça. Depois tocou à campainha, mas não aconteceu nada. — E ela é bonita? A professora olhou para mim. — Quem? — perguntou. — A María? Eu disse que sim com a cabeça. — Claro. Senti uma espécie de arrepio pequeno aqui, atrás do pescoço, e, quando estava quase a perguntar-lhe se a professora María cantava, uma voz que vinha de trás da rede de prata que há ao lado da campainha disse: — Sim? A professora Sonia aproximou a cara da rede. — É a Sonia, María. — Entra. Ouviu-se um zumbido e a porta abriu-se. Entrámos para uma sala de estar muito pequena, como a lá de casa, e logo a seguir, da porta do lado direito, saiu uma mulher que era mais velha mas não velhota, ou seja, como a mãe, apesar de ser diferente, porque tinha um carrapito ruivo e a cara muito rosada, como a de uma boneca. — Com que então, tu és o Guille? — disse ela. Eu não soube o que dizer. Na outra sala, atrás da senhora, havia uma mesa muito grande de madeira brilhante, que tinha os pés torcidos como as patas dos leões e, mesmo em cima, uma mala castanha um bocado grande e aberta, muito parecida com a mala da Mary Poppins. — Guille? — disse ela outra vez. Sorria tanto que me fez lembrar a mãe, e eu baixei os olhos porque senti saudades dela e deu-me vontade de chorar. Ao lado da porta vi um tubo de ouro com um chapéu de chuva preto como o do pai, mas com o cabo em prata. Então respondi-lhe: — É que o Marcos Salazar disse-me que o mais certo é trazerem-nos aqui para nos castigarem. A professora María agachou-se, pôs a mão por baixo do meu queixo e eu tive de levantar a cabeça. — Isso é porque o Marcos Salazar não sabe que aqui só vêm os melhores — disse ela, olhando fixamente para mim. Estava com um sorriso tão aberto que eu quase me ri. — Os... melhores? Ela disse que sim com a cabeça. E depois acrescentou, em voz baixa: — Disseram-me
que gostas muito da Mary Poppins. — Sim. — E queres saber uma coisa? — Sim. — Eu também gosto muito dela — murmurou-me ao ouvido. — A sério? Ela disse outra vez que sim com a cabeça. — Muito. Sobretudo quando canta. Depois levantou-se e deu-me a mão. Quando me puxou para eu entrar com ela na sala, não me mexi. Então ela virou-se para trás e piscou-me o olho. Também deu uma gargalhada, mas muito pequenina, e passou-me a mão pelo cabelo. — Só os melhores, Guille — disse, despenteando-me assim com os dedos, como a mãe faz às vezes. — E só os meninos que conhecem a Mary Poppins. Olhei para a professora Sonia e ela fez que sim com a cabeça. — Não tenhas medo — disse. Então a professora María e eu entrámos na sala, de mãos dadas.
MANUEL Cheguei quase um quarto de hora antes das sete e fiquei sentado à espera na sala de estar. Lá dentro, no gabinete, pela porta entreaberta, ouvi a voz do Guille e também uma voz de mulher. Às vezes a mulher perguntava-lhe qualquer coisa e, nalguns momentos, também me pareceu ouvir o Guille a rir. Sempre que ele se ri parece-me estar a ouvir a Amanda e sinto tantas saudades dela que quase morro. Enquanto esperava que o Guille terminasse a sessão com a orientadora, aproveitei para pegar no bloco e escrever o rascunho da carta que iria enviar essa noite à Amanda por correio eletrónico. Isso de falar por Skype é muito bom e tudo o mais, mas connosco não funciona porque quando lá é de dia aqui é de noite e, ainda por cima, ela trabalha sem parar, por isso, como agora tenho muito tempo livre porque estou desempregado, escrevolhe todos os dias e assim custa-me menos não a ter junto de mim. Enquanto esperava na sala de estar, lembrei-me do que a professora Sonia me dissera sobre o Guille quando fui ao gabinete dela — «É uma criança especial», dissera — e pensei imediatamente na Amanda e em quão especial ela é. E quando digo «especial» não estou a falar do facto de ser bonita, que é, e muito, mas sim de outras coisas que não vi em mais ninguém e que me conquistaram desde o primeiro dia em que a vi. Lembrei-me de quando a via passar pela pista do aeroporto, acompanhada das outras assistentes de bordo da tripulação, e já nessa altura só tinha olhos para ela. Era como se de repente tudo desaparecesse: o barulho, os colegas, o cheiro a combustível da pista... tudo. E ela, se me apanhava em flagrante, a olhar, sorria-me com aqueles olhões azuis, grandes como dois discos. Lembrei-me também de que, no dia em que me atrevi a convidá-la para sair e ela aceitou, quase não consegui falar. Fechei-me numa das casas de banho do terminal 1 e molhei o cabelo e a cara, porque estava empapado em suor. Levei-a a jantar a um restaurante chinês e também ao cinema, ou talvez tenha sido ao contrário: primeiro ao cinema e depois ao chinês, agora não me lembro. Do que me lembro, isso sim, é que a partir daí foi tudo muito fácil. Embora, claro, com ela as coisas sejam assim: fáceis, como se fossem coisas de toda a vida e só fosse preciso esticar a mão para as agarrar. É como se a Amanda entendesse a vida, como se tivesse nascido com um manual de instruções para fazer com que tudo corra sempre bem. Casámo-nos passado muito pouco tempo, talvez menos do que eu teria gostado. Foi ela que me pediu para casarmos e, quando eu lhe perguntei porque é que não esperávamos mais um bocado, até nos conhecermos melhor, a Amanda desatou a rir e deu-me um beijo. «Manu», disse ela, «porque é que vamos esperar, se já nos encontrámos?» Embora estivesse a falar num tom muito sério, estava a brincar, mas eu não me dei conta e, como sempre, caí de quatro como um tonto. Fiquei tão corado, de felicidade primeiro e de vergonha depois, que senti a nuca a arder, e ela, ao ver-me assim, pôs a cabeça de lado e abraçou-se a mim, afundando a cara no meu pescoço e banhando-me no seu cheiro. «Nunca devemos fazer esperar o que é bom, meu amor», disse-me ao ouvido assim, muito
baixinho. Casámo-nos um mês depois. A Amanda é inglesa. Os pais dela abandonaram-na quando ainda era bebé, e foi criada num centro de acolhimento de Liverpool até aos nove anos, antes de ser adotada por um casal do Sul de Inglaterra com quem nunca chegou a entender-se. Assim que fez dezoito anos, saiu de casa e foi viver para Londres. Começou logo a trabalhar como assistente de bordo na British Airways. Depois, na primeira viagem em que veio a Espanha, decidiu que queria ficar aqui. Foi por isso que nenhum familiar dela veio ao casamento, apenas os colegas de trabalho e uns quantos amigos. Do meu lado só veio o meu irmão Quique e a mulher, que vivem na Argentina desde há uns anos e com quem quase não me dou. O meu pai não veio porque queria trazer a Marga, a nova namorada, e, quando eu lhe disse que era melhor vir sozinho, ele levou a mal e as coisas ficaram assim. No fundo, fiquei contente, porque a minha mãe morrera havia pouco tempo e eu ainda a tinha muito presente, por isso ter-me-ia custado horrores ver-me obrigado a lidar com tanta tensão. Enfim, foi uma cerimónia íntima, seguida de um jantar com amigos num bar da praia, com direito a banho noturno e tudo. A Amanda estava linda e eu era o homem mais feliz do mundo. O Guille chegou dez meses depois. No dia em que a Amanda me disse que estava grávida, senti-me tão... estranho que nem sequer agora saberia explicá-lo. De repente tudo era diferente, mas ela estava tão feliz que pensei: «Claro, homem. Vai ser fantástico, vais ver que sim», e não me custou habituar-me à ideia. Se nesse momento alguém me tivesse dito que as coisas iriam correr assim tão mal, como agora, eu teria desatado à gargalhada na cara dessa pessoa, sobretudo porque desde o início que o Guille foi uma criança muito bonita e muito tranquila, com uns olhos azuis e grandes como os da mãe e com o mesmo cabelo loiro. Apercebemo-nos imediatamente de que entre a Amanda e ele havia qualquer coisa de muito especial, uma... ligação muito forte. O Guille chamava constantemente por ela. Se não conseguia dormir, se lhe doíam os dentes, se tinha fome... fosse o que fosse, não se acalmava até a Amanda chegar e o abraçar. Sim, eu sei que isso acontece muito entre mãe e filho; o Javi, um colega meu do aeroporto que tinha sido pai quase ao mesmo tempo que nós, já me tinha avisado. Mas a relação entre a Amanda e o Guille era diferente e, apesar de ao princípio eu achar graça, reconheço que, com o passar do tempo, acabou por me aborrecer um bocado. «Estás com ciúmes», dizia-me o Javi, a picar-me quando fazíamos uma pausa para tomar o pequeno-almoço, e eu ria-me e dava-lhe uma palmadinha na nuca, mas no fundo ele tinha razão. Sim, estava com ciúmes: sentia ciúmes da Amanda porque o que o Guille tinha com ela não tinha comigo, e também sentia ciúmes do Guille porque havia vezes em que parecia que a Amanda era toda dele, e isso não cai bem a homem nenhum, as coisas são como são. Tal não quer dizer que eu não gostasse que o Guille fosse tão parecido com a Amanda. Claro que gostava, era impossível não gostar. Vê-los juntos era como... como assistir a um milagre: tinham o mesmo olhar, a mesma forma de mexer a cabeça, o mesmo sorriso... O problema — ou, pelo menos, para mim era um problema — era que, à medida que ia crescendo, o Guille parecia-se cada vez mais com a mãe e cada vez menos com os
outros rapazes. Mesmo que quisesse, não saberia explicá-lo de outra maneira: o Guille era como a Amanda, mas em ponto pequeno. Como uma Amanda em miniatura. Por exemplo: desde que a conheço que a Amanda sempre foi uma leitora voraz de livros de fantasia. Pela-se por tudo o que sejam espíritos, fadas, duendes, sereias, bruxas, magia e todas essas coisas que, a mim, para dizer a verdade, não me aquecem nem me arrefecem. E desde que o Guille era bebé que sempre lhe leu contos desses, de... de meninas. Mais especificamente, a Branca de Neve, a Gata Borralheira, o Capuchinho Vermelho e, sobretudo, a Mary Poppins. Nunca conheci ninguém tão doido pela Mary Poppins como a Amanda. E claro, à força de ela lhe ler o livro todas as noites, o Guille também começou a entrar nesse planeta. E quando falo da Mary Poppins, falo igualmente de tudo o resto: o Guille nunca gostou de brincar com os outros rapazes, nem de jogar futebol nem nada, e também não gosta de nenhum desporto. Mas se, por acaso, apanhamos na televisão algum campeonato de ginástica rítmica ou de patinagem artística, disso já gosta. E depois há aquela mania de se mascarar, e de brincar com as raparigas... Foi sempre assim. E, bem, ao princípio eu não dizia nada, calava-me e fazia de conta que não me apercebia. Mas houve um dia em que a brincadeira passou dos limites. Lembro-me de que foi em finais de novembro e de que saíramos para dar um passeio. Paráramos em frente da montra de uma loja de brinquedos. O Guille devia ter quatro ou cinco anos. Colou a cara ao vidro, apontou para uma boneca que estava sentada em cima de uma espécie de caixa de plástico e, olhando para mim, perguntou: — Se eu a pedir aos Reis Magos, achas que eles ma trazem? O senhor que estava parado ao nosso lado, com os dois filhos, virou-se para nós. Depois olhou para a boneca, fez uma cara de nojo e puxou os dois miúdos mais para junto dele. Apeteceu-me partir-lhe a tromba ali mesmo, mas tive de engolir a raiva e também a vergonha. Quando chegámos a casa e quis falar com a Amanda sobre o que se tinha passado, a resposta dela foi a mesma de sempre: — Meu amor, parece-te que o Guille é uma criança infeliz? — perguntou. Fiquei calado durante uns segundos. Depois olhei para o Guille: estava sentado no chão da sala, a desenhar e a cantar. — É evidente que não — respondi. Ela sorriu. — Então, pode muito bem mascarar-se de marciano e ainda vir a tornar-se mecânico — rematou. O assunto ficou encerrado, sem mais conversa. Se o Guille era feliz, então a Amanda também o era. E, se ela era feliz, como é que eu não haveria de sê-lo? Contra isso havia poucos argumentos. Também é verdade que, naquela altura, o Guille ainda era muito pequeno e eu trabalhava como um mouro no turno da noite e chegava a casa morto de cansaço, por isso preferi não dar muita importância ao assunto. Além disso, como era a Amanda quem cuidava do miúdo, deixei de pensar nisso e acreditei nela. «Ela resolve a situação», pensei. «Fica tranquilo. A Amanda sabe muito bem o que faz.»
Agora que a Amanda não está cá, creio que talvez me tenha enganado. Optei pela via do pai comodista, fiz vista grossa e deixei que fosse ela a tratar sozinha do Guille. E, tendo em conta o que se passa, devia tê-la ajudado e ter estado atento. Se o tivesse feito, talvez as coisas não tivessem corrido tão mal e agora não teria de lidar com toda esta confusão da psicóloga e todas estas tretas. Se calhar, tudo o que se está a passar com o Guille é um pouco... culpa minha. *** De repente, vinda da sala, a voz da mulher — uma voz doce, um pouco cantarolada — despertou-me dos meus pensamentos. — E agora, Guille, conta-me, tens muitas saudades da tua mãe ou só um bocadinho? Engoli em seco. Do outro lado da janela, o cata-vento de ferro forjado que estava em cima da fonte começou a girar para a direita e para a esquerda sob a chuva. Houve um silêncio. — Guille? — insistiu a voz. Mais silêncio. — Não me queres responder? Um novo silêncio. Depois, finalmente, o Guille disse: — Não. Passaram-se uns segundos de espera. O cata-vento começou a girar cada vez mais depressa sobre a pedra da fonte e a chuva aumentou. — Porquê? — perguntou a voz de mulher. A agulha do relógio que estava na prateleira por cima do radiador passou para as sete e o cata-vento parou de girar repentinamente. Então ouvi a voz do Guille a sussurrar. — É que... é segredo.
MARÍA — É segredo — respondeu o Guille, com um sorriso entre o tímido e o traquina. À minha frente, em cima da mesa, estava o desenho que ele fizera durante a sessão e que acabara de me entregar. Tornei a olhar para o desenho e senti um pequeno calafrio a percorrer-me as costas. O desenho era idêntico aos que estavam dentro do envelope que a Sonia me dera: em baixo, do lado direito, por cima da linha do chão, havia um homem sentado a uma secretária, em frente de um ecrã muito grande, num quarto com a porta aberta. O homem estava de auscultadores e tinha o rosto com borrões, cheio de manchas. Na parte superior da folha havia um avião, por cima do qual estava uma mulher de pé e, por baixo, a agitar uma varinha mágica em direção à mulher e a segurar uma espécie de livro grande debaixo do outro braço, voava uma Mary Poppins em miniatura, na qual me pareceu reconhecer o Guille. O resto do desenho consistia nuns retângulos espalhados pelo céu, e cada um deles tinha, num dos cantos, uma pequena janela pela qual espreitava uma cara. Dentro da casa também havia uma máquina de lavar roupa e, por trás do homem, junto da porta, um armário alto com uma caixa no cimo e um escadote apoiado contra a parede. A palavra «Supercalifragilisticexpialidoce», escrita na diagonal, atravessava a folha inteira. O Guille pegou nas peças de Lego com que estivera a brincar durante grande parte da sessão e começou a reencaixá-las, para construir o que parecia ser uma ponte.
Quando o relógio de parede deu as sete e eu estava prestes a dar a sessão por terminada, levantou os olhos e perguntou-me, com o mesmo sorriso feliz que nunca o abandonara desde que tinha entrado: — E demoramos muito até chegarmos a adultos? Sorri. O Guille tem uns olhos azuis que observam tudo sem pudor. Quando faz uma pergunta, fá-la sem vergonha, como se fazer perguntas fosse a coisa mais natural do mundo, e isso tranquiliza-me. — Uns anos — respondi. Ele franziu o sobrolho e pôs a cabeça de lado, num trejeito de aborrecimento tão natural
e tão infantil que não pude reprimir outro sorriso. — E não podemos chegar mais depressa? — perguntou, ainda de sobrolho franzido. Esperei uns segundos antes de responder. — E para que é que gostavas de chegar mais depressa? Ele desviou o olhar em direção à janela e pestanejou. — Porque senão, quando lá chegarmos, talvez já seja demasiado tarde — disse, com uma expressão muito séria e num tom em que me pareceu notar alguma ansiedade. — Tarde para quê, Guille? — perguntei, tornando a passar os olhos pelo desenho e pousando-os na imagem do homem com os auscultadores que estava sentado em frente do televisor. O Guille deu um grande suspiro e disse: — Para a magia. Nesse momento, não soube como devia entender a dimensão da resposta que me deu, por isso optei por distraí-lo e, apontando para o homem do desenho, perguntei: — É o teu pai, Guille? Ele sorriu e assentiu. Foi um sorriso estranho, quase adulto. — Ele vê muita televisão? Negou com a cabeça. — Não. Não é o televisor. É o computador. — Ah. — É que o pai põe os auscultadores para falar com a mãe à noite. Tornei a olhar para o desenho e vi que, efetivamente, à frente do homem, havia também uma janela e, do outro lado desta, uma lua. — E tu nunca falas com ela? O Guille baixou os olhos. — Ela só pode falar quando eu estou a dormir — disse. — Ah, está bem. — Olhei para o relógio e vi que passavam quase dez minutos da hora, por isso decidi dar a sessão por terminada. — Se quiseres, podes deixar o teu desenho aqui. — Está bem. Acompanhei o Guille à porta e cumprimentei o pai, que já estava à espera dele. Quando o senhor Antúnez me perguntou que tal tinha corrido a conversa, tentei ser o mais cautelosa possível e disse-lhe simplesmente que era demasiado cedo e que, se ele não se importasse, gostava de ver o Guille uma vez por semana até ao final do trimestre. Ele não pareceu muito contente nem muito convencido, mas acedeu, embora um pouco a contragosto. Depois combinámos que o Guille passaria a vir todas as quintas-feiras à mesma hora. Acompanhei-os à porta e vi-os a ir embora a toda a velocidade, sob a chuva. Assim que me sentei novamente à secretária, escrevi um breve resumo da sessão na ficha do Guille e, quando peguei no desenho para o guardar na pasta, reparei numa coisa que me despertou a atenção. Pus os óculos, aproximei a folha do candeeiro e estudei atentamente o desenho. Foi
então que senti um pequeno baque no peito. O rosto do homem que o Guille desenhara sentado à mesa com os auscultadores na cabeça não estava cheio de borrões. Não, o que manchava a cara do pai do Guille não eram rabiscos. Eram lágrimas. Desviei um pouco o olhar para a direita, para o ecrã do computador desenhado pelo Guille, e então sim. Fiquei sem ar.
III UMA DECISÃO CORAJOSA, A ARCA DO TESOURO E AS CARTAS DAS QUINTAS-FEIRAS
GUILLE Quando a mãe vivia cá em casa, vinha sempre ver-me antes de se ir deitar. Trazia-me um copo de leite quente e lia-me coisas engraçadas. Às vezes também me contava histórias de quando era pequena e vivia em Inglaterra, apesar de não viver em Londres como os irmãos Banks, que são os meninos de quem a Mary Poppins é ama, mas sim com os pais dela, que não eram os pais verdadeiros porque eram adotivos. Outras vezes lia-me partes da Mary Poppins, não a do filme, que se chama Yuli Andrius porque também é inglesa como a mãe, mas a dos livros, que é diferente mas também é igual. — Esta é a autêntica — disse-me a mãe um dia. — A do filme é outra, porque, como os filmes são mais curtos, tiveram de fazer uma versão resumida. Agora que a mãe não está cá, tenho de me deitar sozinho, sem a companhia dela. Depois de jantar, o pai vai logo para o computador escrever-lhe a carta e a seguir fica à espera que seja mais de noite para falar com ela, enquanto eu fico a ver televisão na cozinha ou a acabar de fazer os deveres, sem me aproximar nem um bocadinho dele porque é muito proibido, com direito a castigo e tudo. Mas às quartas-feiras é diferente: deito-me mais cedo, porque às quintas-feiras chega a carta da mãe e o pai diz que, se eu não adormecer cedo, o carteiro não passa cá em casa e eu vou ter de esperar até à semana seguinte. Por isso, ontem deitei-me cedo e esta manhã já tinha a carta na caixa do correio, dentro do envelope violeta e com aqueles selos que a Nazia diz que são muito raros, mas se calhar ela não sabe lá muito bem porque é do Paquistão, e o Dubai e o Paquistão estão muito longe um do outro no mapa-mundo da biblioteca da escola, mas isso também não interessa. Quando fomos para o recreio, fui com a Nazia à casa de banho e lemos a carta juntos. Bem, eu lia e ela ouvia-me, porque às vezes há algumas palavras que lhe custam um bocadinho a dizer: Meu amor: O pai já me disse que estão muito bem e que tu estudas muito, e também que continuas a ensaiar com a tua amiga o número que vão apresentar na festa de Natal. Nem sonhas quanto gostava de poder estar aí para assistir à tua atuação. Mas não te preocupes, o pai prometeu-me que vai gravar tudo e que depois me manda o vídeo. Hoje lembrei-me muito de ti, porque uma das passageiras tinha um chapéu de chuva com um punho em forma de cabeça de catatua, apesar de o dela não ser de ouro, como o da nossa Mary, e não falar (bem, pelo menos, eu não ouvi, mas... quem sabe?). E diz-me, já começaste a fazer a lista dos presentes que queres para o Natal? Não deixes tudo para a última hora, hã? Dá a lista ao pai e pede-lhe para também ma mandar, porque se calhar, se a enviarmos para os Reis Magos daqui e daí, é mais fácil. Bem, meu amor, agora tenho de te deixar. Vou trabalhar daqui a menos de uma hora e ainda tenho de ir aos correios pôr a carta. Ah, é verdade, também te mando um postal que vais adorar. Não, não é um golfinho (lembraste que me perguntaste se aqui havia golfinhos?). Este chama-se dugongo e é... o pai das sereias! Sim! Não sabias que existiam sereios, pois não? Pois aqui o tens. Para que vejas a imensidão de coisas maravilhosas que existem no mundo. Gosto muito de ti, meu filho. Até ao infinito e ao inframundo. Nunca te esqueças disso. Mãe
P.S.: O pai disse-me que tens uma amiga nova muito simpática, que te ajuda muito e que se chama María. Que bom! Tenho a certeza de que é uma mulher muito boa. Ah, é verdade, ouve o que o pai te diz e não o aborreças muito, já sabes como é que ele é.
A Nazia tirou o postal do envelope e ficámos os dois a olhar para o sereio da fotografia. Era como um ursinho de água mas sem pelo, e muito feio, tão feio que era muito parecido com o Sebastián, o auxiliar que trabalha no refeitório, e desatámos os dois a rir à gargalhada, de tal modo que até me escapou um bocadinho de xixi e tive de entrar a correr no cubículo para não ficar todo molhado e sujo, como me acontece às vezes em casa durante a noite. No momento em que saí do cubículo, a Nazia ainda estava a olhar para o sereio. — Quando for grande, se calhar gostava de viajar muito, como a tua mãe — disse ela. Eu não disse nada e a Nazia devolveu-me o postal. — Sabes uma coisa? Acho que já não quero ser princesa. — Riu-se um bocadinho, tapando a boca com a mão. — Não? — Não. — Abanou a cabeça de um lado para o outro e depois acrescentou: — Agora quero ser assistente de bordo no Dubai. Rimo-nos os dois outra vez, mas baixinho, para não nos ouvirem no corredor. — Porquê? — Então, porque acho que as princesas têm de estar sempre paradas num sítio sem se mexerem, com o véu posto e muito caladas, como a minha mãe na caixa da mercearia, mas sem uma mercearia e com um marido que passa o tempo todo a vigiar. E acho que talvez eu não goste disso. É muito bom ter uma mãe assistente de bordo, não é? Tão moderna e tão bonita, como uma atriz de Bollywood mas loira, e sem ter de dançar e cantar o tempo todo, que deve ser muito cansativo... Senti uma coisa dura na garganta e abri e fechei os olhos muitas vezes, porque me lembrei da mãe e também do dia em que estávamos em casa da Nazia, a ver um álbum de fotografias, e ela me mostrou uma de um homem muito sério com um bigode muito preto, vestido de soldado e um bocado gordo. Quando lhe perguntei se era um familiar, a Nazia ficou estranha e disse-me que sim com a cabeça. — Chama-se Ahmed — disse. — É o meu prometido. — O que significa isso de ser o teu prometido? — Então, ser meu prometido significa que vai ser meu marido mas ainda não é. — E tu vais ser feliz porque se vão casar? A Nazia tapou a boca com o lenço, mas não se riu. Fez assim com os ombros e disse: — Não sei. — E logo a seguir: — É que não o conheço, mas o meu pai diz que ele é bom e que tem uma casa e uma fábrica muito grandes, como as de Nova Iorque, onde trabalham muitas pessoas com máquinas e muito barulho. — Ah. Ela não disse mais nada e continuámos a virar as páginas do álbum durante um bocado, até que a Nazia disse:
— Ele tem trinta e dois anos. Eu não soube o que dizer. Nem durante essa tarde nem durante esta manhã, na casa de banho, quando a Nazia se chegou a mim e me deu a mão. Por isso, olhei para o chão e engoli um bocadinho em seco. — Vais ver que a tua mãe volta muito depressa — disse ela. Disse que sim com a cabeça, mas a voz não me saiu. — Se calhar até pode vir no Natal, para nos ver cantar na festa! — Não. — Mas ela não tem férias? — Não. — Ah. A seguir, ficámos os dois calados durante um bocado muito pequenino e depois ela disse, enquanto me puxava para a porta: — Queres ir para o pátio de trás brincar com a minha Barbie? — E, como eu não disse nada, ela olhou para mim. — Ou se calhar podíamos ensaiar um bocadinho! Ainda faltam dez minutos para o toque de entrada. Vamos! Deixei logo de sentir os olhos a picar. Enfiei a carta no bolso da bata e descemos as escadas a correr. Quando saímos para o pátio, cruzámo-nos com a professora Sonia e com a professora Adela, que dá aulas aos do quinto ano. A professora Sonia passou-me a mão pela cabeça, assim, despenteando-me um bocadinho, e quando já nos íamos embora disse: — Não te esqueças de que esta tarde tens hora marcada com a María, Guillermo. Disse que sim com a cabeça e, depois, a Nazia e eu fomos a correr de mãos dadas até ao pátio de trás. — Quem é a María? — perguntou-me a Nazia, enquanto comíamos a sanduíche com Nutella. — É uma senhora que pergunta coisas na casinha do jardim. — Coisas? — Sim. E também me deixa brincar com as peças de Lego. — Que estranho, não é? — Não sei. — E porque é que lá vais? — Porque o meu pai diz que é uma orientadora. — Ah. — Pois. — Se é orientadora, se calhar é porque vem do... Oriente... como os Reis Magos — disse ela, sentando-se no rebordo do campo de basquete. Como tinha a boca cheia de pão com Nutella, disse-lhe que não com a cabeça. E, além disso, eu sei que a história dos Reis Magos é mentira, porque aquilo dos camelos não pode ser verdade, mesmo que a Nazia diga que até pode ser e que se calhar, como são mágicos, voam.
— Chama-se «orientadora» porque... porque em frente à janela tem um cata-vento preto com um galo — expliquei-lhe — e, quando uma pessoa se senta na cadeira, o catavento gira para leste, que é oriente, porque é isso que diz o homem do tempo no telejornal que vemos quando estamos a jantar. A Nazia abriu assim a boca, com pão e Nutella e tudo, e olhou para mim com uma cara tão esquisita que até fiquei um bocado assustado. — Um cata-vento! Como na Mary Poppins! — gritou ela, salpicando-me com migalhas e também com um bocadinho de cuspe. — De certeza que é um sinal, Guille, como nas séries de detetives americanos. Fiquei a pensar durante um bocado, mas depois lembrei-me de que ainda não tinha acabado o desenho que a María me tinha pedido para fazer em casa, e fiquei um bocadinho nervoso porque, se calhar, ela ia ficar zangada comigo. Depois pensei que se ela não gostasse do desenho, se calhar mostrava-lhe a carta da mãe e o postal do sereio, porque de certeza que ela nunca tinha visto nenhum, ou então talvez sim. — O toque, Guille! — exclamou a Nazia, enfiando o resto da sanduíche na boca e apanhando do chão a Barbie moura. — Despacha-te, vamos, está a tocar para a aula de Ginástica e já sabes como o professor Martín fica se chegamos atrasados. Desatámos os dois a correr para a porta, porque o professor Martín fica com as bochechas inchadas como as dos sapos quando nós nos portamos mal e, às vezes, também nos põe de castigo e manda-nos dar voltas ao campo de futebol, se nos esquecemos do equipamento de ginástica ou das sapatilhas ou dos ténis, e eu acho que ele implica um bocadinho connosco porque os pais da Nazia não a deixam mudar de roupa na escola, nem quando é dia de jogo, e os outros miúdos escolhem-nos sempre em último lugar porque eu tenho medo da bola, mas não me importo porque assim escondemo-nos os dois atrás dos balneários e brincamos a coisas sem que ninguém nos veja. E pronto.
MARÍA — Então os Reis Magos não existem? O Guille continuou a olhar, muito concentrado, para a casa de Lego que estava prestes a acabar de montar em cima da mesa. Pôs a língua um bocadinho de fora enquanto tentava encaixar a última peça no telhado. Ao vê-lo assim, tão absorto, veio-me à memória a conversa que a Sonia e eu tivemos há uns dias na sala de professores. Foi uma coisa muito rápida, cinco minutos roubados entre aulas. Com ela às vezes é assim. Nenhuma de nós as duas é muito amiga de preâmbulos quando se trata de um assunto importante. Abri a carteira assim que me sentei, tirei o último desenho do Guille e pousei-o em cima da mesa, à frente dela. — Vê. A Sonia estudou atentamente o desenho, de caneta na mão. Depois foi seguindo cada imagem da folha com a ponta, sem tocar no papel, até que a caneta ficou suspensa por cima da figura do pai do Guille sentado em frente do computador. Nesse momento, levantou os olhos. — Está...? Assenti. — A chorar, sim. A Sonia franziu o sobrolho, mas não disse mais nada e tornou a concentrar-se no desenho. Uns segundos depois, pousou a caneta em cima da mesa e olhou para mim, ainda de testa enrugada. Depois levantou uma sobrancelha. — E? — perguntou. Mas acrescentou imediatamente: — Não me parece minimamente anormal que o homem esteja a chorar. Deve ser muito duro estar tão longe da mulher. Se calhar, quando fala com ela e a vê no ecrã, sente-se um bocado assoberbado pelas circunstâncias. Não creio que seja nada fora do vulgar. Abanei a cabeça de um lado para o outro, concordando com ela. — Não, não é. — Então? — perguntou ela, num tom entre o irritado e o impaciente. Do corredor chegaram os gritos de um grupinho de miúdos que passaram a correr em frente à porta. A Sonia deu estalidos com a língua e eu levantei-me, dando a volta à mesa até ficar de pé ao lado dela. Depois pousei o dedo no ecrã do desenho. — Não me pareceria estranho se, no ecrã, o Guille tivesse desenhado a cara de uma mulher. Por um décimo de segundo, a Sonia franziu ainda mais o sobrolho e ficou com a testa cheia de pequenas rugas. Depois afastou o meu dedo com o dela e inclinou-se ainda mais sobre a folha. — Mas... — ouvi-a murmurar. — Mas esta é a cara do... Virou-se para mim muito devagar e ficámos a olhar uma para a outra. Depois, assenti lentamente.
— Sim. É a cara espelhada do pai do Guille, não a cara da mãe. *** — Já está — disse o Guille, olhando para mim do outro lado da mesa, com a mão pousada no telhado da casa de Lego. À minha direita, junto do relógio, estava o desenho que ele me entregara quando chegou e que fui estudando enquanto conversávamos. Esperei que me dissesse mais alguma coisa, mas em vão. Decidi quebrar o silêncio repetindo a pergunta. — Então, os Reis Magos não existem? Ele sorriu, abanando a cabeça de um lado para o outro. — Não. — Hum, hum. — Foi um menino do sexto ano que me disse no ano passado, mas eu já sabia. — Ah, sim? — Claro. — Levantou os olhos e sorriu. Outra vez aquele sorriso feliz, quase perfeito. — E o Pai Natal também não. — Ah. Ena! Ele coçou o nariz e depois cravou os olhos na janela. — É que quem nos traz as prendas no Natal é a Mary Poppins. Reprimi um sorriso. Outra vez a Mary Poppins. — E como é que sabes? — Porque os camelos andam demasiado devagar para conseguirem distribuir tantos presentes e, além disso, não sabem voar. E as renas também não. Mais uma vez, tive de dissimular um sorriso. A lógica das crianças às vezes é tão desarmante e tão... particular que não deixa lugar a comentários. Para elas, as coisas são quando são e não são quando não são: as renas e os camelos não voam porque não têm asas, mas uma mulher com sapatões, um chapéu com uma flor e um chapéu de chuva falante já pode certamente voar. O Guille ficou calado durante uns segundos, enquanto eu olhava novamente para o desenho que me trouxera. Na quinta-feira passada, pedira-lhe que me desenhasse o escritório do pai. Decidira que, como tarefa para cada sessão, lhe pediria que se concentrasse numa parte específica do desenho que tantas vezes repetira desde o início do ano letivo. A minha surpresa ao ver o desenho foi enorme. A parte superior do papel estava cheia de retângulos que flutuavam no ar, com uma pequena janela no canto superior direito e uma cara a espreitar por ela. Por baixo, na parte inferior da folha, o Guille desenhara o escritório do pai, mas havia qualquer coisa que mudara em relação ao desenho original: a secretária era a mesma, bem como o ecrã do computador, o armário com a caixa em cima e o escadote apoiado contra a parede, contudo não havia ninguém sentado na secretária e o Guille desenhara-se a si mesmo a subir ao escadote. E, de cima deste, apontava com o dedo para a caixa que estava no topo do armário.
Ao olhar para o desenho, tomei por certo que os retângulos que o salpicavam todo eram as janelas dos vizinhos que deviam ver-se do escritório. — Tantas janelas, Guille! — comentei, quebrando o silêncio. Ele olhou para mim e franziu o sobrolho, mas não disse nada. — Tens muitos vizinhos? Ele negou com a cabeça. Depois esperou uns segundos e, por fim, disse: — Não são janelas. — Ah. — São cartas — esclareceu. Ao ver a minha expressão de surpresa, desatou a rir-se e apontou para uma delas. — Bem, são envelopes. As cartas estão lá dentro — acrescentou, com um olhar luminoso. — Isto é o selo. E chegam a voar. Do céu. Por isso é que estão no ar. Não mostrei a minha surpresa. Também não mostrei interesse excessivo. Esperei. Ele demorou algum tempo até continuar a explicação. — São da mãe — disse. — Ah, então a tua mãe escreve-te. Disse que sim com a cabeça. Tinha os olhos brilhantes. — Todas as quintas-feiras de manhã. Muito cedo. — Isso é bom, não é? — Sim. — Deve gostar mesmo muito de ti, para te escrever todas as semanas. E tão cedo. Ele não disse nada. Depois pareceu pensar melhor e acrescentou: — E também me manda postais. — Ah, sim? — Sim. Uns segundos de espera. — De sereios — esclareceu. Fiquei na dúvida se teria ouvido bem e o Guille pareceu aperceber-se disso porque, depois de uma hesitação inicial, desatou a rir e, levando a mão ao bolso do casaco, tirou um envelope de cor violeta. Estendeu-mo, mas pareceu arrepender-se imediatamente e encolheu bruscamente a mão, como se se tivesse lembrado de alguma coisa e a tivesse
corrigido no último momento. Olhou para mim e sorriu, mas desta vez não foi um sorriso alegre, antes de alarme. A seguir abriu rapidamente o envelope, tirou lá de dentro um postal e uma folha de papel escrita apenas de um dos lados e entregou-mos. Mas não me deu o envelope. Demorei uns minutos a ler a carta com calma e a seguir, depois de ver o postal, estivemos a falar dos sereios. Perguntei-lhe se se importava de que eu fotocopiasse a carta e ele disse-me que não. Dediquei o resto da sessão a fazer-lhe perguntas sobre os preparativos do número musical que ia apresentar na festa da escola, bem como sobre a parte do desenho em que retratara o interior do escritório. Percebi, pela forma como se incluía a si mesmo na cena, que estava a chamar a minha atenção para a caixa. Quando lhe perguntei por ela, respondeu-me: — É a arca do tesouro. — E, antes que eu pudesse perguntar-lhe mais fosse o que fosse, acrescentou, baixando a voz: — Mas é segredo. «Outra vez um segredo», ouvi-me a pensar. Também eu baixei a voz: — Então não contamos a ninguém, está bem? O Guille não sorriu. Pelo contrário, olhou para mim com uma expressão muito séria e, quando se preparava para responder, ouvimos o clique da porta de entrada e uma tosse que reconheci como sendo a do pai dele. Olhei para o relógio. Tinha-se acabado o tempo. — Mas a ninguém, a ninguém mesmo, professora María — disse ele num sussurro, lançando um olhar furtivo na direção da porta. Peguei-lhe na mão e apertei-lha. — Prometo, Guille. Não conto a ninguém — tranquilizei-o. Pareceu-me que ficou menos tenso. — É que se o pai descobre que eu às vezes subo ao escadote e abro a arca do tesouro para... para ver a mãe, se calhar morre de desgosto, e então já será tarde porque ainda falta muito para eu ser grande. Fiquei sem saber o que dizer. A pequena pausa de que o Guille precisou para completar aquele «ver a mãe» deixou-me tão desconcertada que, por instantes, fixei o olhar no desenho para tentar ganhar mais algum tempo. Houve qualquer coisa naquela hesitação que ecoou no silêncio do gabinete e ficou suspensa por cima de nós, como uma bolsa de ar pesado. Olhei novamente para o relógio. Não havia tempo para mais. Uns minutos mais tarde, enquanto olhava pela janela do gabinete e via o Guille e o pai a irem-se embora, senti um pequeno nó no estômago. Afastavam-se de mãos dadas, como qualquer pai que vai para casa com o filho depois de o ir buscar à escola, mas havia alguma coisa diferente. Alguma coisa que não encaixava. Continuei a observá-los durante uns segundos até que, subitamente, percebi: O Guille puxava o pai, mas não como uma criança que puxa um adulto quando está impaciente, ou feliz, ou com pressa de chegar a casa. Não, não era isso. O Guille puxava o pai como um pequeno rebocador puxa para o porto um navio pesado e à deriva. «A -
arrastar um peso morto», foi exatamente o que pensei. Ao vê-los da janela, percebi imediatamente que a Sonia tinha razão e que a intuição dela não estava errada: existia realmente um icebergue, e a alegria do Guille era a sua ponta visível. Sob a superfície, a sombra cinzenta do gelo parecia unir pai e filho num só bloco, expandindo-se sob os pés deles num halo de mistério, enquanto ambos se afastavam no silêncio da tarde.
GUILLE — A arca do tesouro? A Nazia e eu estávamos a lanchar na cozinha da casa dela. Apesar de ser muito pequena e de não ter nenhuma janela, também é a sala de jantar, a sala de estar e o sítio onde os pais dela dormem, porque tem um sofá que eles abrem à noite, com colchão e tudo. A Nazia nunca me disse, mas eu acho que é mágico como um tapete voador, e deve ser mesmo, já que no Paquistão às vezes têm tapetes porque vem o Aladino e outras vezes têm sofás para descansar. Nalguns dias, quando chegamos da escola, o Rafiq, que é o irmão mais velho da Nazia, está a dormir a sesta no sofá, e temos de falar muito baixinho e lanchar sem fazer barulho porque, se ele acorda, fica de mau humor e a Nazia diz que depois vai contar tudo ao pai. Quando o Rafiq se vai embora, a Nazia apanha o prato e as sapatilhas que ele deixou no chão, enquanto os pais estão a trabalhar na mercearia. Ela disse-me que faz isso porque é o que vai ter de fazer quando se casar com o senhor gordo do bigode que está na fotografia do álbum e que assim já saberá fazer as coisas, mas hoje o Rafiq não estava, porque às terças-feiras vai ajudar no cibercafé do tio, por isso acabámos de fazer os deveres e eu pus o copo de Cola Cao no lava-loiças. Como, quando vínhamos da escola, contei à Nazia que na quinta-feira a professora María me mandou desenhar a arca do tesouro, ela ficou a olhar assim para mim, com as sobrancelhas um bocadinho juntas, à espera de que eu lhe contasse. — A arca do tesouro é uma caixa cheia de coisas muito giras da mãe que o meu pai guarda em cima do armário para eu não ver — expliquei-lhe —, mas, quando ele não está, eu às vezes subo ao escadote e levo-a até à cozinha, para ver o que tem dentro. — E porque é que o teu pai não te deixa ver a caixa? — Porque são coisas de gente grande. — De gente grande? — Sim. — Mas de gente grande como nos filmes americanos de discotecas ou de gente grande como as pessoas que se casam e têm uma família? — Não sei. A Nazia fez uma cara um bocadinho esquisita. E depois perguntou: — Mas tens de desenhar a arca só por fora ou também por dentro? — Por fora e por dentro. A Nazia subiu para cima do degrau de madeira e começou a lavar os copos e os pratos que estavam no lava-loiças. Depois, enquanto os limpava, disse: — Se quiseres, eu ajudo-te. — Não sei. Sentámo-nos à mesa e, uma vez que eu não sabia como havia de desenhar a caixa por fora e também por dentro, porque na mesma folha não dá, a Nazia disse que o melhor era
fazer o desenho como se estivéssemos a olhar de cima para a caixa aberta. E depois também me deu um lápis. Olhei para ela, mas não fiz nada. — É que se calhar, como é um segredo porque é a arca do pai, tu não podes vê-la — disse-lhe eu. — Ah. — Pois. — Bem. Então tapo-me com o véu e assim não vejo. — Baixou o véu e riu-se um bocadinho. Depois olhou para o relógio que estava em cima do frigorífico. — Mas despacha-te, porque senão o Rafiq volta e depois não temos tempo para ensaiar. — Está bem. Quando vi que ela já não estava a olhar, pus-me a desenhar. Demorei um bocadinho, porque ao princípio não me cabia tudo e tive de apagar algumas vezes. E ainda por cima só tinha um lápis. Mas, no fim, lembrei-me de uma coisa para ser mais rápido e pôr no desenho tudo o que há na arca. Bem, quase tudo. — Já está? — perguntou a Nazia, do sofá. Disse-lhe que sim, mas ainda me faltava desenhar mais uma coisa, embora não soubesse de que modo fazê-lo porque, como o pai põe essa coisa sempre no fundo de tudo para eu não a encontrar, já não tinha espaço na folha. Depois, enquanto tirava os disfarces do saco de ginástica para ensaiarmos, porque, como os pais da Nazia não a deixam mascarar-se, ela quer sempre que seja eu a levá-los, lembrei-me de que o melhor era pôr o que faltava do outro lado da folha e pronto. Ligámos o computador e pusemo-nos a cantar, mas só um bocadinho, porque, quando a Nazia se tornou a enganar na letra da canção e disse três vezes «Superclarifisticolidoce», eu zanguei-me um bocadinho, bem... zanguei-me muito, e ela calou-se e tapou a boca com o véu e disse: — É que... não consigo, Guille. É muito difícil. Ficámos calados durante um bocadinho, até que me lembrei da Mary Poppins e também do que a mãe me diz sempre quando eu não sei fazer uma coisa, ou quando tenho medo de qualquer coisa. «Experimenta ao contrário, Guille», diz-me a mãe. Olhei para a Nazia. E então tive uma ideia. — E se experimentarmos ao contrário? — perguntei-lhe. Ela olhou para mim com um ar estranho e tapou a boca com a mão, mas não se riu nem nada. E depois perguntou: — Ao contrário, como? — Não sei. Ao contrário. Ficámos calados mais um bocadinho. Lá fora ouvia-se o «cling-cling» da caixa registadora e o «tschhh» dos sacos de plástico a abrir quando a mãe da Nazia põe as compras para os senhores e as senhoras as levarem para casa. — Se calhar podíamos fazer outra coisa para a festa — disse a Nazia, coçando o
cabelo por baixo do véu. — Mais fácil. Fez-se-me um nó aqui, na garganta, e senti os olhos a picar um bocado, mas logo a seguir ela disse: — Podíamos contar uma história ou qualquer coisa. — E depois, como eu continuava com o nó na garganta, acrescentou: — De fadas. — De... fadas? — Ou de... de assistentes de bordo que viajam muito porque assim se calhar não têm de ser princesas e de passar o tempo todo em casa a aborrecer-se! Engoli o nó e disse-lhe que não com a cabeça, mas sempre a olhar para o chão. — É que tem de ser da Mary Poppins. — Porquê? — Porque, caso contrário, não vai ser mágico e não servirá de nada. A Nazia olhou para mim outra vez com uma cara esquisita, mas disse que sim com a cabeça, num movimento um bocadinho lento. — Ah, claro. Sentámo-nos no sofá enquanto, no ecrã do computador, ia passando constantemente a canção do Disney Channel com a letra assim em letras muito gordas, para que conseguíssemos cantá-la bem e a víssemos de muito longe, e foi então que vi os disfarces que estavam em cima da mesa. — Acho que já sei! — exclamei. — A sério? — perguntou ela, e pôs assim os ombros, para cima. — A sério! Já te conto!
MARÍA Ontem o Guille chegou à sessão um bocado antes das 18:00, exatamente às 17:47. Eu estava nesse preciso momento a rever um relatório e, ao ouvir a campainha, fiz uma coisa que não costumo fazer: antes de me levantar para abrir a porta, fui à janela. Foi uma coisa instintiva, nada de importante. O Guille estava em frente da porta da casinha, a ler um pedaço de papel amarelo que, do sítio onde eu estava, parecia sujo e amachucado. Ia alternando o peso do corpo de um pé para o outro e remexia o papel entre os dedos de uma das mãos, enquanto com a outra coçava distraidamente o pescoço. Quando me afastei, uma brisa leve abanou ligeiramente o cata-vento da fonte que está em frente à janela, e o chiar do ferro acordou o Guille do ensimesmamento em que mergulhara. Virouse bruscamente a fim de olhar para a fonte e, por um décimo de segundo, consegui ver-lhe os olhos. Fiquei colada ao vidro. Apercebi-me nesse momento de que, desde que conhecia o Guille, era a primeira vez que via nos olhos dele o olhar de uma criança com nove anos. «O icebergue», ouvi a voz da Sonia a dizer na minha cabeça, enquanto me afastava da janela para evitar que ele me visse. Dirigi-me imediatamente para a porta. Quando a abri, o pedacinho de papel tinha desaparecido. — Chegaste cedo. Ele disse que sim com a cabeça. Mais nada. Afastei-me para o lado e ele entrou diretamente para o gabinete, sentando-se na cadeira com uma expressão decidida. Seguio e, assim que me sentei à secretária, ele abriu uma pasta com elásticos e pôs em cima da mesa o desenho que eu lhe pedira para fazer na semana anterior. Depois empurrou-o na minha direção. — A arca do tesouro — disse. — Obrigada. Tentei reprimir um sorriso ao ver o desenho. Obviamente, o Guille tentara reproduzir o conteúdo da «arca» visto de cima, porque no interior da caixa viam-se os restos de alguns objetos desenhados e depois apagados. Ao tentar desenhar o conteúdo exato da arca, dera-se conta de que não sabia sobrepor um objeto a outro e, depois de várias tentativas, encontrara uma solução que revelava muito mais sobre ele do que qualquer desenho. Em vez de desenhar o conteúdo, decidira descrevê-lo e, para isso, usara a folha na vertical, dividindo-a ao meio e pondo na parte superior o título «O SÓTÃO» e na inferior o título «O RÉS DO CHÃO». Em cada uma das metades da folha escrevera uma lista de objetos acompanhados de uma breve descrição: O SÓTÃO 1 — A tartaruga guarda-joias verde da mãe, que brilha um bocadinho e que lá dentro tem um colar, alguns brincos que brilham às vezes e um relógio que se calhar é de ouro e é muito caro. 2 — Uma caixa de sapatos pequena e preta com fotografias minhas, outras da mãe vestida de assistente de
bordo em frente de um avião muito limpo e outras de coisas que eu não sei o que são porque são de há muito tempo e eu não estava lá. 3 — Uma pasta castanha sem elásticos onde está escrito «hipoteca e carro». E também «Contas pendentes». 4 — Dois livros em inglês, que não são da Mary Poppins porque não têm desenhos nem canções. 5 — Um caderninho verde com rebordo de ouro e um cadeado muito pequeno, como os das histórias, que está trancado. O RÉS DO CHÃO 1 — Um ursinho de peluche que se chama «Renato» e que tem uma etiqueta com a letra do pai que diz: «Volta sempre para a toca. Faz hoje um ano que demos o primeiro abraço.» 2 — Um baralho de cartas com um velho mago cheio de cores na caixa, onde se lê «Tarô de Marselha». 3 — Um lenço azul que cheira muito à mãe, apesar de ela estar longe. 4 — Uma fotografia grande da mãe e do pai, numa moldura de madeira escura, com muita gente a rir-se porque ela tinha um vestido branco e flores no cabelo e o pai um casaco preto um bocado grande, mas pronto. 5 — Umas cartas atadas com uma fita azul, que são menos de cem mas mais de cinquenta, ou se calhar não.
Quando acabei de ler em voz alta e tornei a pegar na folha para a guardar no arquivo do Guille, ele moveu timidamente a mão para a frente e disse, quase num sussurro: — É que... falta a outra. Olhei para ele, confusa. — A outra? Ele disse que sim com a cabeça e murmurou: — A parte de trás. — Estendeu a mão e virou a folha, tornando depois a pousá-la na secretária. «A parte de trás.» No verso da folha, o Guille tinha completado a sua peculiar lista. E escrevera o seguinte: A CAVE 1 — O álbum de pele castanha, que está debaixo de tudo para ninguém o encontrar porque, como é o tesouro do pai e é um segredo, é melhor assim.
Durante uns instantes, fiquei sem saber o que dizer. Era evidente que o Guille devia ter incluído o álbum no último momento, porque o texto estava escrito com uma letra mais descuidada do que a do resto da lista e não fora escrito a lápis, mas sim com um marcador de ponta fina. — Ena, o álbum de pele castanha. — Pousei a folha em cima da mesa. O Guille olhou para mim, mas não disse nada. Decidi provocá-lo. — Hummm... está muito no fundo da arca, não está? — Sim — confirmou ele. — Se o teu pai o tem assim tão escondido, é porque deve ser muito valioso. Ele assentiu, mas não olhou para mim. — De certeza que dentro do álbum há um monte de coisas misteriosas e muito bonitas. O Guille mexeu-se na cadeira, incómodo. Silêncio. Esperei. Ele engoliu em seco, enfiou discretamente a mão no bolso e começou a mexer em qualquer coisa que, pelo roçar e pelo barulho suave, percebi ser o pedaço de papel
amarelo que, da janela, o vira guardar enquanto esperava para entrar. — Hoje não brincamos com as peças de Lego? — perguntou então, sem levantar os olhos. Assim que o ouvi, soube que havia qualquer coisa que não estava bem. A voz era a dele, mas o timbre era novo, com uma cor que eu nunca ouvira e que me pôs alerta. O tom contraíra-se. Quase teria dito que havia mais ar do que voz. Angústia. Era isso. — Claro — disse-lhe eu. — Queres? Assentiu umas quantas vezes e eu levantei-me imediatamente, para tirar a caixa com as peças de Lego de dentro do armário. Exatamente quando tinha chegado à caixa e estava prestes a pegar nela, ouvi-o a dizer nas minhas costas: — É que é o álbum da mãe. Quando me virei novamente, o Guille continuava a mexer no pedaço de papel, que pusera em cima dos joelhos, e olhava para mim com uma expressão tão concentrada que optei por continuar onde estava e respeitar a distância física que nos separava. Havia coisas novas naqueles olhos. E vontade de as partilhar. — Ah, claro. Por isso é que é tão valioso — comentei, esboçando um sorriso —, porque tem fotografias e coisas da tua mãe que, para o teu pai, são um tesouro. Ele começou a abanar a perna para cima e para baixo, muito devagar primeiro, e depois cada vez mais depressa. — Não — disse. Apoiei as costas na estante, respirei fundo e olhei para ele ali sentado, a abanar a perna e a mexericar no pedaço de papel, enquanto os segundos passavam e o silêncio enchia a sala. Ao ver que ele não dizia mais nada, decidi intervir. — Guille, há alguma coisa que me queiras contar? Silêncio. Aproximei-me, dei a volta à secretária e ajoelhei-me ao lado dele. Quando o fiz, reparei que, junto dos seus pés, estava outro papelito igual ao que ele tinha nas mãos. Vi que eram iguais, da mesma cor e do mesmo tamanho, e dei-me conta de que eram post-its. Supus que o que estava no chão lhe caíra do bolso. — Deixaste cair um papel — disse então, tentando romper de algum modo a bolha em que parecia estar metido. Ele baixou um bocado a cabeça e pareceu encolher-se. — Sim. Mais nada. — Guille... — Pus-lhe a mão no joelho e ele parou de abanar a perna, como se o meu contacto lhe tivesse provocado uma descarga elétrica, mas continuou calado e com ambas as mãos em cima do post-it. Até que finalmente falou. — É que... ontem aconteceu uma coisa — disse, num tom de voz encolhido. «Ah, então era isso.» — Ah, sim? — perguntei, num tom que tentei que parecesse casual. Não me respondeu. — Ena — disse então, levantando-me lentamente e sentando-me no tampo da secretária,
com os pés cruzados e de frente para ele. — E essa coisa que aconteceu é... muito importante? Silêncio. — Queres contar-ma? Ou preferes que brinquemos um bocado com as peças de Lego? Demorou a responder. Quando o fez, levantou os olhos para o relógio. — É que... é um bocado comprida. Eu também olhei para o relógio. Eram 18:23. — Não te preocupes com isso — tranquilizei-o. — Temos tempo. Ele olhou para as mãos e suspirou. — Está bem — disse. Tornou a olhar para o relógio antes de lançar um olhar furtivo à porta. — E se o meu pai chegar? — Fica tranquilo. Se o teu pai chegar e nós ainda não tivermos terminado, ele fica à espera na saleta. — Está bem. Tornámos a ficar em silêncio. Do outro lado da janela, o cata-vento voltou a chiar e o Guille pestanejou. Esperei mais uns segundos, levantei-me e dei a volta à mesa para me sentar na cadeira. Quando pensei que ia começar a contar-me o que se passara, agachouse e apanhou o post-it que lhe caíra junto dos pés, pousando-o depois devagar em cima da secretária. A seguir, olhou para mim e disse: — Tenho mais. Sorri. Ele pegou na mochila, abriu-a e tirou lá de dentro um punhado de papelinhos que pôs junto dos outros dois. Depois empurrou-os na minha direção. — São para mim? Ele disse que sim com a cabeça e também sorriu. Parecia mais tranquilo. — Mas temos de os pôr por ordem. — Claro. A seguir, silêncio. O Guille coçou a cara umas quantas vezes e, por fim, depois de deixar escapar um longo suspiro, começou a contar o que acontecera.
GUILLE O que aconteceu foi que a Nazia não consegue cantar bem porque se está sempre a enganar na letra e, como já falta muito pouco para a festa, decidimos experimentar ao contrário. Ela passava a ser o Bert, que é o limpa-chaminés da rua e que também pinta quadros no chão do parque, e eu fazia de Mary Poppins, porque o Bert só tem de dançar com a vassoura, cantar «tiririti-tiririri-tiri» umas quantas vezes e uma estrofe muito fácil que diz: «Quando era pequenino habituei-me a gaguejar, e o meu pai torceu-me o nariz para me ensinar a falar, até que um dia ouvi, quando já era crescido, a frase com mais letras, a palavra que faz alarido»; e é só isto. — Eu visto o teu disfarce e tu vestes o meu — disse eu à Nazia. Ela tapou a boca e riu-se um bocadinho. Depois olhou para a porta que tem as cortinas de tiras de plástico e disse que não com a cabeça. — Não posso. — Porquê? — Porque é um disfarce de rapaz, com calções e tudo. — Claro. O Bert é um homem, ou já não te lembras? — Lembro-me. — Então? — É que... o meu irmão não me deixa. — Porquê? — Porque não se pode. Voltei a sentir aquele nó aqui, na garganta. — Mas se é a fingir, tolinha — disse eu e ri-me um bocadinho, só que o riso não me saiu muito bem. — É só para nos mascararmos. E isso não conta. A Nazia olhou para mim durante uns segundos e, depois, também olhou para a porta. A seguir, disse: — Tens a certeza? — Claro. Pegou nos calções do disfarce, que estavam em cima do sofá e que são os meus calções de ginástica da escola, e pô-los assim à frente da roupa, como se fossem um avental. — Mas só para experimentar, está bem? — disse. — Está bem. Como estava frio na cozinha, começámos a despir a roupa muito depressa para mudarmos para os disfarces e, como tínhamos um bocadinho de vergonha, eu pus-me atrás do sofá e ela pôs-se à frente da televisão. Quando acabámos de nos despir e a Nazia ficou só com as cuequinhas e eu com os bóxeres, de repente a cortina colorida da entrada fez «shhhh shhhh shhhh» e vimos o Rafiq a olhar para nós da porta, com uma cara de quem está muito zangado e a fazer um «O» muito grande com a boca. Depois entrou na
sala e foi a correr até ao armário, abriu uma gaveta, pegou numa manta cheia de cores como um dos tapetes do Sindbad, o Marinheiro, e cobriu a Nazia com ela, enquanto gritava coisas que eu não entendia e que eram de certeza em paquistanês, porque às vezes, quando a mãe dela lhe liga para o telemóvel à saída da escola, a Nazia fala assim, rápido, rápido, «lihilihalihiliha» tudo de seguida, como se o ele e o agá fossem sempre cantados, mas de maneiras diferentes. A seguir, o Rafiq olhou para mim e gritou, aos berros muito altos e a abanar assim as mãos no ar: — E tu o que é que fazer? Mudar a roupa, veste-se e fora daqui. Vamos, vamos, porque é que espera?! Por isso, enfiei as calças a correr, vesti a T-shirt por cima e a camisola e o blusão também. Enquanto metia os disfarces no saco de ginástica e depois saía a correr para a rua, atravessando o corredor das bolachas da mercearia, ainda fiz um bocadinho de xixi nas calças, mas muito pouco. Conseguia ouvir o Rafiq na cozinha, a gritar coisas em paquistanês, cada vez mais alto, e também ouvia a Nazia aos berros, só que me pareceu que estava a chorar. A mãe da Nazia, que estava na caixa registadora, quando me viu passar a correr, levantou-se e começou a dizer qualquer coisa, mas eu não a ouvi e já não sei mais nada porque continuei a correr o mais depressa que consegui, até à porta do meu prédio, e também subi as escadas a correr porque desde segunda-feira que o elevador tem um cartaz vermelho pendurado na porta a avisar que está avariado. Como era terçafeira e o pai estava no ginásio, porque às terças-feiras tem treino de kickboxing, fui para o meu quarto, vesti logo o pijama e pus o DVD da Mary Poppins na parte em que vão os quatro passear pelos telhados de Londres e cantam e dançam todos juntos, com os limpachaminés todos, e que é uma das partes de que mais gosto, e pronto, foi assim. Bem, não, não foi só isso. Também aconteceu aquilo de ontem. Mas isso foi diferente porque é outra coisa. O que aconteceu ontem foi que a Nazia não veio às aulas de manhã. Eu não me atrevi a perguntar à professora se sabia porquê. Tinha medo de que o Rafiq ou os pais dela se tivessem zangado muito e tivessem telefonado ao senhor gordo do bigode, que está no álbum, para que viesse do Paquistão a fim de levar a Nazia para um harém por minha culpa, mas depois pensei que talvez ela se tivesse constipado por ter ficado só de cuecas na cozinha tão fria e, bem... Calei-me e esperei o dia inteiro, primeiro até à hora do recreio, e depois até à hora do almoço, mas não aconteceu nada. À tarde a Nazia também não foi e, quando saí da escola, não passei na mercearia porque tive medo de encontrar o Rafiq. Foi por isso que hoje, quando a vi chegar à sala e ela se sentou ao meu lado como sempre, ao princípio fiquei sem saber o que dizer porque estava com um bocadinho de vergonha, mas depois disse-lhe «olá». Ela olhou para mim e disse que não, assim, com a cabeça, e também tapou um bocadinho a cara com o véu.
— Não? — perguntei-lhe, enquanto a professora Sonia apagava do quadro os exercícios de Matemática da última hora de ontem, para escrever as perguntas do teste de Espanhol. E, como ela não dizia nada, baixei a voz, porque a aula já estava a começar: — Não, o quê? A Nazia olhou para mim muito depressa e de lado, e depois abriu a gaveta. Descolou do bloco um papelinho amarelo, desses que se colam de um dos lados, escreveu qualquer coisa e depois deu-mo. «Os meus pais não me deixam falar contigo. Vai ter comigo à casa de banho à hora do recreio.» Por isso, a manhã passou muito devagar, sem falarmos nem nada: primeiro tivemos ditado e teste e, a seguir, aula de Desenho, com as quadrículas e tudo, que são uma chatice porque a mim nunca me saem bem. Depois tocou para a saída e a Nazia foi a primeira a levantar-se e a sair para o corredor. Quando chegou à porta, olhou para mim assim, só durante um bocadinho, como fazem os espiões dos filmes do James Bond quando vão dizer coisas secretas, e depois saí eu, apesar de ter esperado um bocadinho, para disfarçar. — Não me deixam falar contigo — disse-me ela, quando entrei na casa de banho do fundo do corredor e nos fechámos no cubículo que cheirava um bocadinho mal, porque às quintas-feiras os miúdos das turmas do terceiro e do quarto anos saem para o recreio antes de nós e, às vezes, deixam-nos usar a casa de banho do primeiro andar. — O meu irmão e o meu pai zangaram-se muito e não me queriam deixar voltar à escola nunca mais, mas a minha mãe disse que tenho de estudar e que não posso faltar às aulas porque, se faltar, a senhora Amelia, que é a assistente social, vai lá a casa e então teremos problemas. Quando a mãe disse aquilo da senhora Amelia, o Rafiq ficou muito corado e disse: «Não, não, não, é melhor não.» E também disse que estou proibida de falar contigo até às férias, pelo menos, e que a seguir logo se vê, porque no Natal se calhar vamos ao Paquistão ver os meus primos, e depois também vão pedir à professora que me mude de lugar e me ponha ao lado de uma menina. É o que diz o Corão, mas o Corão diz muitas coisas, tantas que agora não me lembro de todas porque é muito grosso, como o livro de Espanhol, mas ainda mais grosso e também muito mais difícil. Enquanto a Nazia falava, eu ia desembrulhando a sanduíche que o pai me tinha feito esta manhã com pão de ontem. É que, como ele se deita tão tarde para poder falar com a mãe no computador, de manhã nunca se levanta cedo porque tem sono. Mas eu já não tinha fome. — Mas... mas... se não podes falar comigo... como é que vamos ensaiar? — perguntei à Nazia. Ela enfiou na boca um bocadinho de empada, das que a mãe dela faz, com carne e coisas picantes, e depois olhou para o chão como se tivesse deixado cair alguma coisa. E a seguir disse: — Também não me deixam atuar na festa. Senti os olhos a arder, primeiro só um bocadinho e depois mais, e também um frio
esquisito, que me subia pelas costas até à cabeça, e uma coisa parecida com uma bola na garganta. Queria dizer muitas coisas, mas não sabia por onde começar porque estavam todas desordenadas, como os quebra-cabeças de cem peças ou mais de castelos da Baviera, que é onde viveu a imperatriz Sissi. Desde que a mãe se foi embora, esses são os que o pai começa a fazer na mesa da sala de estar e que nunca acaba. Bem, foi uma coisa parecida. — Então... não vai haver festa? — A Nazia não olhou para mim. — E nunca mais podemos falar? E... E já não vais mais lá a casa? Nem brincamos juntos? E com quem é que vais lanchar? Ela disse que não assim, com a cabeça, muito devagarinho, como se estivesse a pensar, mas de olhos fechados. E depois disse: — Não, não vai haver festa. Nem lanches. Foi então que ouvimos as vozes dos gémeos Rosón e do Javier Aguilar, que estavam a insultar-se no pátio, e depois alguém que gritava «luta, luta, luta». Logo a seguir, ouvimos a voz do professor Estévez, o professor de Matemática do quarto ano, que tem uma sobrancelha muito grande e muito preta que lhe ocupa a testa toda por causa de pensar tanto, a dizer: «Basta, meninos. Já disse que basta! Tu, para o gabinete do diretor. E vocês venham comigo, seus demónios.» E depois já não ouvimos mais nada. A Nazia olhou para mim e sorriu, mas sem pôr o lenço a tapar nem nada. — Mas é que tu és minha amiga... — disse-lhe. — Eu sei. Foi então que me lembrei de uma coisa. — Se calhar só te põem de castigo até às férias, e quando voltares do Paquistão já se esqueceram do que aconteceu e perdoam-te. Ela não disse nada. — E se calhar não te mudam de lugar e podemos escrever bilhetinhos um ao outro. Assim ninguém dará por isso. E também podemos vir aqui durante o recreio. Nunca nos viram. A Nazia olhou para mim com um ar um bocadinho esquisito e depois pegou-me na mão. Disse-me, muito baixinho: — Guille, tens de fazer a festa sozinho. — Sozinho? — Sim. — Mas... — E tens de cantar muitas vezes a palavra mágica da Mary Poppins sem te enganares, para acontecer qualquer coisa antes do Natal e ficar tudo bem, porque senão... — Calouse e respirou fundo uma vez, depois outra e mais outra. — Por favor, por favor, por favor. Diz que sim... — E depois já não disse mais nada, porque deu o primeiro toque e ela não me largava a mão, que se mexia assim sozinha o tempo todo, e, como me pareceu que a voz lhe tremia, tive vergonha e não sabia se devia abraçá-la, como a mãe me abraça
quando tenho medo à noite, ou se devia olhar para a janela, como o pai faz quando vemos um filme juntos aos domingos à tarde, depois do almoço, e há uma cena triste e ele engole em seco uma vez, e outra e mais outra, e desvia os olhos para o lado durante um bocadinho e eu continuo a olhar para a televisão porque ele não gosta que eu o veja assim. Depois a Nazia pegou-me na outra mão e disse assim, muito depressa: — Promete-me, Guille. Por favor, por favor, por favor. Prometes?
MARÍA O tiquetaque do relógio que estava em cima da secretária soou repentinamente no silêncio do gabinete ao mesmo tempo que o Guille percorria as paredes com o olhar e encolhia os ombros, enquanto do outro lado da porta o pai se sentava na cadeira da saleta, dando um pequeno suspiro e deixando cair qualquer coisa — uma caneta, provavelmente — no chão. O homem praguejou entre dentes. O olhar do Guille era um misto de alarme e interrogação. O relógio marcava 18:57. — Está tranquilo — disse-lhe eu. — Temos tempo. Ele continuou sem dizer nada. Desde o momento em que o Guille começara a contar o que sucedera com a Nazia, as suas mãos tinham estado ocupadas a desdobrar, a alisar e a tornar a dobrar o post-it que tinha apanhado do chão e ao qual tinha juntado os que ainda estavam dentro da mochila, de maneira que agora os tinha todos perfeitamente ordenados diante dele, num montículo. No silêncio que nos envolvia, o Guille tapou os post-its com a mão e fê-los deslizar por cima da mesa na minha direção. Foi um gesto de timidez e também de cumplicidade. — São para mim? — perguntei, sem lhes tocar. Ele disse que sim com a cabeça e sorriu. Não foi um sorriso alegre. Ao ver a letra torta e desalinhada do post-it que estava por cima, percebi que pelo menos uma parte dos bilhetinhos não fora escrita por ele. — São os bilhetinhos que a Nazia e tu escreveram hoje, depois de voltarem da casa de banho? — Sim — respondeu. Depois inclinou ligeiramente a cabeça e coçou o joelho. — Bem, não. — Ah. — É que eu não escrevo. Quem escreve é a Nazia. Tornei a olhar para o montículo de papéis. — Ena. E porquê? Soltou o ar pelo nariz, como se a pergunta fosse desnecessária e o tivesse aborrecido. — Então, porque quem está de castigo e não pode falar é ela — retorquiu com um novo sorriso, este mais descontraído. — É claro que a mim me deixam falar. A lógica da resposta obrigou-me a disfarçar uma gargalhada com um falso ataque de tosse. — Claro. Ele tornou a olhar para o relógio. — Queres que tos guarde? — perguntei, ainda sem tocar nos papelitos. Pareceu refletir na resposta, mas apenas por uns segundos. — Sim. — Tornou a olhar para a porta e, inclinando-se para mim, baixou a voz e acrescentou: — É que ainda podem tornar a cair-me do bolso, mas desta vez em casa, e
se o pai os encontra... — Abanou a mão no ar e abriu mais os olhos. Sorri. — Achas que se ia zangar? Disse que sim várias vezes com a cabeça. — Um bocadinho. Ou mais. — Porquê? Mordeu o lábio inferior e coçou o nariz. — É que é segredo. — Ah. — Pois. — Bem, então, se é segredo, não contamos a ninguém. Está bem? — Está. Olhou para mim como se estivesse à espera de que eu lhe perguntasse qual era o segredo, mas decidi não o fazer. Preferi deixar que fosse ele a marcar os tempos. Do outro lado da porta, o pai do Guille pigarreou e mudou de posição na cadeira. O Guille engoliu em seco e, passando a mão pela madeira da secretária, baixou a voz e disse: — É que... vou representar o número da festa de Natal. — Ah, muito bem. — Olhei para o relógio: eram 19:04. — E vais procurar alguém para substituir a Nazia? Negou com a cabeça. — Então? Só o Bert é que vai cantar? O Guille baixou os olhos e tornou a passar a mão pelo tampo de madeira. — Não. — Lentamente, muito lentamente, percorreu as paredes do gabinete com o olhar, como se procurasse alguma coisa, até que por fim os seus olhos se fixaram nos meus. E, depois, quase num sussurro, acrescentou: — Vou fazer de Mary Poppins. — Sorriu ligeiramente, mas não foi um sorriso aberto. — Sem o Bert nem nada. Só vou cantar e dançar muito pouco, porque com o disfarce é uma confusão, mas pronto. Eu não disse nada. Limitei-me a esperar. — Não vai contar ao meu pai, pois não? — perguntou, olhando de soslaio para a porta. — Prometo-te que não. — É que, se não canto a palavra mágica, a Nazia tem de ir embora no Natal e o pai nunca mais vai ficar bom e... Do outro lado da porta, o Manuel Antúnez tornou a pigarrear. Desta vez, o pigarro veio acompanhado de uma espécie de apito, que já ouvi por vezes vindo de alguns telemóveis. Um toque de mensagem. O Guille pestanejou. — Se calhar é melhor ir-me embora — disse. — Queres ir? Encolheu os ombros e pousou os olhos sobre a folha de papel com que chegara à sessão. Subitamente, ao seguir a direção do seu olhar, veio-me à memória a lista que fizera e a arca do tesouro que desenhara, e lembrei-me também de que essa conversa
ficara inacabada. «O álbum de pele castanha», pensei. Rebobinei mentalmente a última sessão até ao ponto exato onde deixáramos a minha última pergunta e a resposta dele. — Só mais uma coisinha antes de te ires embora — disse-lhe, ao ver que se agachara para pegar na mochila e que se preparava para se levantar. Olhou para mim e lançou um olhar fugaz ao papel. Depois ficou quieto, como um gato encandeado pelos faróis de um automóvel. — O que é que há exatamente dentro do álbum de pele castanha, Guille?
IV UM RAMO DE FLORES BRANCAS, OS LENÇÓIS MOLHADOS E A HABITANTE DO ÁLBUM DE PELE CASTANHA
GUILLE Nalguns domingos vou com o pai ao cinema, mas só à tarde, porque de manhã está fechado. Com a mãe, antes de se ir embora, ia pouco porque ela gostava mais de brincar a coisas e também de ver filmes no computador. Fazia pipocas no micro-ondas e depois juntava-lhes manteiga e sentávamo-nos os dois no sofá, tapados com a manta de desenhos mágicos que tem escrito «madeinturkey» na etiqueta e que ela trouxe uma vez de um sítio que se chama Istambul, que não é no Paquistão, apesar de o pai dizer que ali todos os homens usam bigode e as mulheres são parecidas com a mãe da Nazia, porque se vê muito poucochinho a cara delas. Os filmes preferidos da mãe são aqueles em que as atrizes estão sempre a cantar, sobretudo os que têm mulheres loiras. Gosta de muitos filmes, mas aquele de que mais gosta é o Música no Coração, porque é com a Mary Poppins disfarçada de freira, que no filme também se chama Maria, apesar de os meninos da família Trapp não saberem isso, porque, claro, como são da Áustria é melhor assim, para que os alemães, que são os maus, não os atropelem com os seus carros cinzentos. Também gosta imenso de um filme muito divertido que se chama O Casamento de Muriel e que é a história de uma rapariga gorda e cheia de sardas, que vive na Austrália e tem amigas muito más porque são bonitas e ela não é. A mãe sabe todas as canções, e nalguns domingos, quando o pai não estava em casa porque a essa hora ia ao ginásio ou às vezes ao futebol, tirávamos os sapatos, púnhamo-nos em pé em cima do sofá e cantávamos e dançávamos ao som da canção do Mamma Mia, como a Muriel e a amiga dela, com as perucas e os vestidos prateados, assim, costas com costas. Também há outros filmes de que a mãe gosta muito, que são uns a que ela chama «clássicos», mas que a mim me aborrecem porque, como são velhos, nunca têm cores, e também há o meu filme preferido, de que a mãe também gosta muito e o pai não, e que se chama Billy Elliot. A mãe diz que o Billy se parece um bocadinho comigo. Bem, um bocadinho muito, porque a mãe do Billy também é inglesa, apesar de eu não saber dançar lá muito bem e, se calhar, já não vir a aprender. É que no ano passado, no dia dos meus anos, pedi ao pai e à mãe que me inscrevessem numa academia de balé que há do outro lado da praça, como a do Billy mas em espanhol, e a mãe ficou toda contente e pôs-se a bater palmas assim, uma vez e depois outra e mais outra, mas o pai disse: — Hum... logo se vê. E isso quer dizer que não. Sei que é assim porque disse a mesma coisa quando a mãe quis ficar com o cão da senhora Arlés porque ela estava demasiado velhota para tomar conta dele e, no fim, a sobrinha dela acabou por levá-lo para a terra. Mas, desde que a mãe não está cá, já nunca vemos filmes tapados com a manta. Agora o pai e eu vamos a um cinema que se chama Multisala, e o pai compra as pipocas num bar, mas eu não gosto muito de lá ir porque não vejo bem. Além disso, nesses filmes nunca cantam e eu acho que o pai se aborrece porque está sempre a olhar para o telemóvel e a
mandar mensagens. Noutros domingos, o tio Enrique e o tio Jaime, que não são meus tios a sério nem nada mas é como se fossem, passam em nossa casa para vir buscar-nos na furgoneta e vamos ao Estádio Universitário. O pai e os tios jogam numa equipa de râguebi que quase nunca ganha e às vezes, depois do jogo, se eles se tiverem zangado, o pai e eu voltamos para casa de metro e paramos para comprar uma piza na pizaria do senhor Emilio, que está sempre a suar, usa um chapéu branco de cozinheiro na cabeça e é argentino, apesar de não ser de Buenos Aires. — Não, portenho, não. Eu sou de Rosario, como o Messi — diz sempre, enquanto dá umas palmadinhas no peito e aponta para uma fotografia que está pendurada por cima do balcão, onde ele aparece abraçado a um homem pequeno e feio que tem o cabelo muito curto e sorri com a cara muito branca. Um dia a mãe disse-me que o senhor Emilio está sempre de mau humor porque a mulher dele foi de férias com a filha e já não voltou. Esqueceu-se ou qualquer coisa assim, agora não me lembro, mas comigo ele é sempre muito simpático e, desde que a mãe não está cá, sempre que vê o pai dá-lhe um aperto de mão muito forte e diz-lhe: «Che, como vai a vida, che? É bom ver-te.» Bem, o que aconteceu ontem foi que, quando chegámos ao Estádio Universitário com os tios e com o pai, eu fiquei sentado nas bancadas para ver o jogo, que é sempre muito comprido porque demora muito. Depois uma senhora e uma menina sentaram-se ao meu lado. Ao princípio não disseram nada e eu também não, porque, como eram negras, não sabia se falavam espanhol, mas logo a seguir a senhora perguntou-me: — Tu és o Guille, o filho do Manuel, não és? Eu disse-lhe que sim e ela fez assim com a boca, como se lhe doesse um bocadinho um dente. Depois fez uma festa na cabeça da menina, que estava cheia de tranças com muitas contas coloridas, que pareciam caramelos, enquanto eu olhava para o campo, para ver se via o marido da senhora e pai da menina, mas foi muito estranho porque não vi nenhum homem negro. A senhora disse: — Pobrezinho, bem me queria parecer. Eu não soube o que dizer, mas também não tive tempo porque, logo a seguir, ela perguntou: — E como é que estás? — Muito bem, obrigado. A mulher tornou a contorcer a boca e disse que não com a cabeça. Depois já não pude dizer mais nada, porque a menina aproximou-se e disse: — Olá. Chamo-me Lisa. — Olá. — Queres ir apanhar flores comigo? No campo ali atrás há muitas. Chegam para dois ramos. Quase lhe disse que sim, mas depois lembrei-me de que o pai está sempre a dizer-me que tenho de ficar sentado nas bancadas para aprender a jogar râguebi, porque assim talvez ele possa inscrever-me na equipa dos juvenis muito em breve, apesar de eu ter um -
bocadinho de medo da bola, que parece um melão e que salta de uma maneira esquisita. É que nunca se sabe aonde vai parar. E também tenho medo quando os jogadores se empurram de propósito para se magoarem uns aos outros, mas ainda não disse isso ao pai, para ele não se zangar. A Lisa tinha ficado à minha espera e eu não sabia o que fazer. Olhei para o campo e pensei que, se não nos distraíssemos muito, o pai não ia dar por nada. Então ela deu-me a mão e desatámos a correr até um jardim que havia do outro lado, perto do murete que rodeava as piscinas e o campo de basquetebol. — Porque é que a minha mãe te chama «pobrezinho»? — perguntou a Lisa, quando entrámos no jardim. — Não sei. — O teu pai também joga râguebi? — perguntou. — Sim. — E a tua mãe, porque é que não vem vê-lo como a minha faz? — Porque não está cá. — Ah. — E quando é que chega? — Não sei. A relva estava alta e havia alguns sacos de lixo e papéis espalhados, mas também muitas flores pequenas brancas, amarelas e roxas. A Lisa agachou-se logo e pôs-se a apanhar algumas, mas de repente levantou-se. — E quem é que vos dá de jantar? — perguntou. — Nós. — Ah. Estivemos um bocadinho a apanhar flores e depois a Lisa ajudou-me a fazer um ramo com uns raminhos pequenos que cresciam ao lado da cerca, enquanto ela cantava uma coisa que eu não sabia o que era porque parecia francês, e depois voltámos para a bancada, cada um com um ramo de flores. Quando chegámos já estava um bocado escuro e já não havia ninguém a jogar no campo. A mãe da Lisa estava de pé ao lado de um homem loiro, e também vi o pai e os tios e outros senhores que jogam com eles, todos com o cabelo molhado e as mochilas penduradas ao ombro. Aproximámo-nos e a Lisa deu o ramo dela à mãe negra. A mãe da Lisa deu-lhe um beijo e eu aproximei-me do pai, que estava de costas a falar com os tios e a rir. — São para ti — disse, dando-lhe o ramo. O pai virou-se, mas não disse nada. Os tios e os outros senhores também não. — São parecidas com as margaridas, mas são mais pequenas — disse-lhe eu, porque achei que, como já estava um bocadinho escuro, ele não sabia muito bem o que eram. — Não achas que são parecidas com as que a Mary Poppins usa no chapéu? O pai continuou sem dizer nada, mas tinha ficado um bocadinho vermelho e estava a mexer assim o pé, a bater depressa com a ponta, e também fez «hum, hum» com a garganta uma vez e depois mais outra. Então, o senhor loiro que estava ao lado da mãe da
Lisa aproximou-se de mim, agachou-se e disse: — São muito bonitas, Guille. — A mãe gosta das vermelhas, mas não havia. O senhor sorriu baixando os olhos para o chão e deu-me uma palmadinha na bochecha, mas muito devagarinho. — Pois. Se calhar podes oferecer-me o ramo a mim. Eu gosto muito das brancas. — A sério? — A sério. — Está bem. Dei-lhe o ramo, ele despenteou-me um bocadinho e depois cheirou-o. A seguir perguntou: — E como é que tu sabes tantas coisas sobre a Mary Poppins? — Então, é porque quando for grande vou ser ela. É que ela é como os mágicos mas melhor, e além disso voa sem asas. Não é, pai? O pai tornou a fazer «hum, hum» com a garganta e, antes de o senhor loiro se levantar, pôs-me a mão no ombro e disse, com aquela voz que usa quando se zanga, mas sem gritar nem nada: — Deixa-te de flores e de disparates e vamos embora, pois já é muito tarde. E o melhor é irmos de metro. Assim vamos buscar umas pizas antes de irmos para casa. Anda, vamos. Depois, quando chegámos à boca do metro e vi um avô negro e velhote que tocava um trompete muito grande, lembrei-me de que o senhor que estava com a mãe da Lisa era loiro. — O pai da Lisa é aquele senhor loiro que estava com a mãe dela nas bancadas? — perguntei ao pai, enquanto ele enfiava o cartão na ranhura da máquina cinzenta. O pai não disse nada, só me empurrou um bocadinho para eu passar e depois voltou a enfiar o cartão na máquina. — É que como ela é negra... Nada. Começámos a descer as escadas um bocadinho depressa, porque se ouvia um «brrrrrum», que é o barulho do metro a vir. — É estranho, não é? Quando chegámos lá abaixo, o pai parou de repente ao fundo das escadas, mesmo quando chegámos à plataforma, e, como eu continuei a andar, ele puxou-me pelo braço com um bocadinho de força e, depois, agachou-se e disse: — Quando voltarmos das férias de Natal, vou inscrever-te no râguebi e acabou-se a conversa. — Disse aquilo assim, muito baixinho, como se tivesse uma dor qualquer na boca. Depois ficou calado e tão quieto que até começou a magoar-me um bocado o braço. A seguir, deitou o ar todo fora, encostou a testa à minha e disse: — Porque é que não pode ser tudo mais fácil, filho? Porquê, porquê, porquê... Depois abraçou-me com muita força e disse-me mais algumas coisas ao ouvido, mas eu não ouvi porque ele estava a falar muito depressa e, nesse momento, o metro entrou na
estação e fez muito vento. Uma senhora mais velhota com um carrapito cinzento disse qualquer coisa ao marido, que estava a olhar para nós com um ar esquisito, e o senhor já não olhou mais para nós até o metro parar, e o pai continuou abraçado a mim com muita força, com a mochila ao ombro e o blusão a abafar-me a cara, como faz às vezes, desde que ficámos os dois sozinhos em casa, só ele e eu. E acho que já acabei.
MARÍA Falta pouco para o Natal. De há uns dias para cá, o frio é muito intenso e anteontem até nevou durante a noite, por isso de manhã muitos pais decidiram não trazer os filhos à escola, o que aumentou ainda mais o caos. As crianças já só pensam nas férias e cada vez é mais difícil trabalhar com elas, sobretudo com as mais novas, que é preciso estimular com novos desafios, jogos e atividades. O inverno escolar vai pesando mais à medida que dezembro avança. Na quinta-feira passada foi feriado e não houve sessões de orientação na escola, por isso decidi trabalhar um bocado depois de almoçar. Havia alguns dias que andava a dormir mal. Assim que me distraía, dava por mim a rever mentalmente a minha última sessão com o Guille, como se tivesse ignorado qualquer coisa importante ou como se, em algum momento da nossa conversa, uma peça do quebra-cabeças que tento resolver desde o nosso primeiro encontro tivesse caído ao chão, sem que eu me desse conta. Tinha a sensação de que havia uma fenda pela qual passava um ar frio que me incomodava, e sei que, quando isso acontece, é porque, efetivamente, há qualquer coisa que não encaixa. Fiz um chá de frutas, pus um CD de música clássica na aparelhagem, instalei-me comodamente no sofá e fechei os olhos. Por instantes, deixei-me embalar pela delicadeza do piano, enquanto, na escuridão dos meus olhos fechados, revia cada cena da minha última sessão com o Guille. «Procura, María», disse a mim mesma em silêncio, massajando lentamente as têmporas. A pouco e pouco, a música foi-me esvaziando a cabeça de ruído, até que, uns minutos mais tarde, na sala apenas se ouvia o matraquear da chuva contra o vidro e os acordes do piano. Respirei fundo umas quantas vezes e procurei descontrair-me, tentando deixar a mente em branco. Foi então que, no parêntesis de chuva e de música, uma frase do Guille saltou para a luz, como que empurrada por uma mola. Tornei a ver a sua expressão de angústia enquanto me contava o que a Nazia lhe tinha pedido às escondidas na casa de banho. Ouvi novamente as palavras da Nazia, repetidas na minha cabeça com a voz do Guille. «Tens de cantar muitas vezes a palavra mágica da Mary Poppins sem te enganares, para acontecer qualquer coisa antes do Natal e ficar tudo bem, porque senão... Porque senão...» Abri os olhos. Era isso. Aquela ameaça velada. O que é que a Nazia tanto temia? Seria tão grave que levara o Guille a aceitar atuar sozinho na festa, e a fazer o papel da Mary Poppins? Seria talvez um exagero por parte do Guille? Uma... interpretação? Estive prestes a telefonar à Sonia, mas depois lembrei-me de que ela tinha aproveitado a ponte para ir a Roma com o namorado e achei que era uma irresponsabilidade da minha parte incomodá-la. Por mais uns momentos, deixei-me ficar sentada no sofá, com a
cabeça apoiada nas almofadas das costas, enquanto a música continuava a tocar. E, subitamente, lembrei-me. Os post-its. Claro. Levantei-me, fui até à mesa da sala de jantar e tirei da mala a pasta em que guardava todas as informações e notas sobre o caso do Guille. Sentei-me à mesa e abri a pasta pelo fim. Lá estava o envelope castanho com os post-its que o Guille me dera para guardar. O que é que ele dissera? Ah, sim: «São da Nazia. É claro que a mim me deixam falar porque eu não estou de castigo.» Eram sete post-its. Tirei-os do envelope e fui-os pondo em cima da mesa, alinhados de cima para baixo sem uma ordem predefinida, deixando-me guiar pela intuição, como se distribuísse as primeiras cartas de um solitário. Fiquei a olhar para os papelinhos amarelos durante uns segundos. Depois li, devagar e em voz alta, as mensagens que estavam escritas nos seis primeiros.
O sétimo era um desenho:
Apercebi-me imediatamente de que, embora os post-its com as mensagens tivessem sido escritos pela Nazia, o desenho do sétimo post-it fora feito pelo Guille. O traço não deixava lugar a dúvidas. Decidi concentrar-me no desenho. Era evidente que a menina era a Nazia. Mas, e o homem? Quem era? O pai dela? Ou talvez fosse o próprio Guille, que se tivesse representado a si mesmo assim, mais velho e adulto, como uma figura protetora. E aquela grande cruz vermelha que riscava o desenho? Onde é que estava o perigo e onde é que estava a rejeição? — Tenho de falar com a Sonia — ouvi-me dizer em voz alta, enquanto reordenava conscienciosamente as mensagens da Nazia, tentando encontrar o fio à meada da conversa que as duas crianças deviam ter tido para ter resultado em frases como aquelas. E, subitamente, surgida de algum recanto da minha memória, lembrei-me da pergunta que tinha encerrado a minha última sessão com o Guille e à qual ele não respondera: «O que é que há exatamente dentro do álbum de pele castanha, Guille?» Nesse momento, arrependi-me de não lhe ter pedido para desenhar o conteúdo do álbum e de não ter insistido mais para que me falasse dele. Tornei a sentar-me no sofá e fechei novamente os olhos, ao mesmo tempo que umas pequenas pontadas nas têmporas anunciavam uma enxaqueca iminente. Deixei-me levar por uma vaga de desalento e, de repente, senti-me como se, na realidade, não tivesse nada de tangível — nenhuma pista, nenhum dado concreto — a que me agarrar; como se, depois de várias semanas de trabalho com o Guille, ainda estivesse no princípio. «Como se estivesse à procura de qualquer coisa que, na verdade, não existe», pensei. — Não tens nada, María. Nada — murmurei no silêncio da sala, enquanto do outro lado da janela a chuva aumentava e lá em baixo, na rua, um casal corria entre risos, sob um impermeável que os cobria como se fosse um toldo. Por alguma razão, aqueles risos, aquela felicidade, fizeram com que o rosto do Guille e também o seu sorriso me voltassem à memória. «Dizer a palavra mágica antes que seja demasiado tarde, professora María», fora o que me dissera. — Demasiado tarde para quê, Guille? — tornei a murmurar, massajando novamente as têmporas. — Para quem? Respirei fundo umas quantas vezes e descontraí o pescoço e os ombros. «Tenho um miúdo que quer ser a Mary Poppins», pensei, tentando recapitular e pôr também em ordem as minhas ideias. «E uma festa de Natal que ele acredita que pode mudar tudo. Tenho também uma mãe ausente por motivos laborais que, segundo o Guille, vive numa arca cheia de tesouros que está em cima do armário do escritório do pai, e que só manda cartas ao filho uma vez por semana. Curiosamente, apesar de a mãe o adorar, nunca tem tempo para falar com ele ao telefone. Tenho um pai que chora todas as noites enquanto
olha para um ecrã de computador em que, ao que parece, está a sua própria imagem e não a da mulher, e que insiste em “corrigir” a hipersensibilidade do filho (nos desenhos do Guille, o pai está sempre de costas, sem olhar para ele). E tenho sete post-its e um álbum de pele castanha que ninguém deve ver porque, embora esteja guardado junto das coisas da mãe, não é valioso pelo conteúdo.» Tornei a respirar fundo e contemplei o meu reflexo na janela. Ocorreu-me que talvez fosse tudo um equívoco desde o início e culpei-me por não ter parado antes para refletir. Senti que talvez tivesse cometido um erro imperdoável — de método, não de fundo — e que talvez o mais acertado tivesse sido concentrar-me na terapia da fala e pôr de lado a análise dos desenhos. Ao fim e ao cabo, devido à minha experiência, sei que os desenhos infantis misturam demasiado os planos de comunicação e que isso torna muito difícil saber o que é real, o que é imaginado e o que é interpretado pela criança. — E se fosse tudo mentira? — perguntei à minha imagem refletida no vidro escuro. — Talvez esteja tudo na cabeça do Guille. Talvez a única coisa que eu tenha entre mãos seja um de tantos casos de um pai que não aceita a natureza do filho e de um filho que se refugia num mundo imaginário para poder sobreviver à rejeição. Talvez seja tudo mais simples, María. Levantei-me, aproximei-me da mesa e, uma vez mais, passei os olhos pelos post-its amarelos. «Talvez sejam demasiados e eu tenha demasiado pouco tempo pela frente», pensei, antes de os descolar da mesa e tornar a metê-los dentro do envelope. A seguir, depois de guardar o envelope na pasta do Guille e enquanto preparava qualquer coisa para jantar, decidi que o melhor seria esperar pela sessão seguinte para aplicar uma mudança de rumo na terapia. «Precisamos de respostas, Guille», pensei, enquanto batia os ovos para fazer uma tortilha. Naquele momento, mal podia imaginar que as respostas — as verdadeiras — estavam prestes a chegar. E que chegariam repentinamente, apanhando-me de surpresa.
GUILLE QUERIDA MÃE: Falta pouco para o Natal e daqui a uns dias é a festa da escola. Eu acho que não me vais ver, mas se calhar sim, porque o pai diz muitas vezes, quando está com o tio Jaime e com o tio Juan a beber um copo, que «agora toda a gente vê tudo, é impossível fazer o que quer que seja sem que nos vejam, têm uma ficha sobre cada um de nós, não me estás a contar nada de novo, homem», e põe as sobrancelhas grossas e pretas assim por cima dos olhos, como uma pala. Afinal a Nazia não vai poder cantar na festa porque os pais a puseram de castigo. Vou ter de atuar sozinho e ser a Mary Poppins em vez de ser o Bert, o limpa-chaminés, porque, claro, como não posso ser os dois e tenho de cantar a palavra mágica umas quantas vezes, que são mais de quatro porque senão não funcionará, vou ser a Mary. Mas não disse ao pai, não, não, não, é melhor ele não saber para ser uma surpresa mágica, com todos os pais no teatro. Assim não se vai zangar tanto comigo. No outro dia, quando foi levar-me à escola de manhã, encontrámos a mãe do Carlos Ulloa à porta e eles falaram um bocado de coisas de crescidos, até que ela disse: — Que bom, e já falta pouco para a festa de Natal. É espantoso como o tempo passa depressa, não acha? O pai não disse nada. Só me endireitou a mochila nos ombros. Então a mãe do Carlos torceu a cabeça assim, de lado, e perguntou: — Vem com a sua esposa ver a atuação do menino? O pai agarrou-me na mão com um bocadinho de força e enrugou a boca como quando fuma um cigarro. E também disse: — Não. Ela não pode. E creio que eu também não irei. A mim essas coisas... não sei, eu... A mãe do Carlos disse «Oh» com a boca redonda, e depois deu o toque de entrada e pronto. Bem, não. À tarde, como o pai não estava em casa porque tinha ginásio, quando cheguei da escola, liguei o DVD para ensaiar na cozinha. Antes vesti a saia e calcei os sapatos grandes e pus o chapéu com a flor que a Nazia me tinha dado e, com a música da televisão, não ouvi que o pai tinha voltado a casa porque se tinha esquecido de uma coisa. Bem, quer dizer, ouvir ouvi, mas já foi um bocadinho tarde de mais. Então apressei-me muito, mas só tive tempo de tirar o chapéu e os sapatos, a saia não, e quando o pai entrou na cozinha olhou para mim assim, com um «O» muito grande na boca, como o da mãe do Carlos. Depois ficou muito vermelho e arrancou-me a saia com tanta força que eu caí ao chão, mas não me magoei muito, só na mão e no pé. E depois agarrou-me pelos ombros e ficou ainda mais vermelho. — Não tornes a vestir-te de mulher nunca mais, ouviste bem? Ouviste bem, Guille? — disse, a gritar um bocado e com uma respiração esquisita. E também: — Se torno a ver-te vestido assim, não sei o que te faço. E agora vais para o teu quarto sem jantar. — Saiu da cozinha e bateu com a porta, mas voltou a entrar logo a seguir e pegou-me assim no braço, como se eu fosse fugir ou qualquer coisa parecida, e agachou-se até ficar da mesma altura que eu. E disse: — Da próxima vez que eu te ouvir dizer à frente dos tios que, quando fores grande, queres ser a Mary Poppins, juro-te que... juro-te que... Depois levou-me até ao meu quarto e fechou-se na casa de banho, e pareceu-me que chorou um bocado que foi comprido, porque quando saiu estava escuro e estava a dar o telejornal com o senhor careca de cara achatada, e eu senti muita pena do pai. É que, se tu estivesses aqui, de certeza que ele não chorava, mãe, porque não teria tantas saudades tuas e dantes o pai nunca chorava, pois não? Agora tenho de apagar a luz. Amanhã vou guardar esta carta na caixa vermelha que me ofereceste quando estivemos em Londres. É que se a dou ao pai para ela ta mandar, como manda as outras, se calhar ainda a lê e bem... À tarde é dia de ir ter com a professora María à casinha do jardim. Vou levar-lhe um desenho, apesar de esta semana ela não me ter dado deveres para fazer porque se esqueceu. Eu acho que ela vai gostar muito, mas se calhar não vai gostar porque... é que são dois. Mas o melhor é contar-te para a semana que vem, está bem? Pronto. Tenho muitas saudades tuas. Muitas, muitas, até ao infinito. E também gosto muito de ti. Acho que quase tanto como dantes, ou se calhar ainda mais.
Guille P.S.: Já fiz a lista dos presentes de Natal. Meti-a dentro da bota preta do costume. Se não puderem ser todos, tu achas que a Mary Poppins saberá que a coleção de livros dos Mumins e o livro do Puck são os mais importantes de todos? Ou então, como ainda são alguns, talvez ela possa trazer-me só dois dos Mumins agora, mas trazer-me mesmo o do Puck, está bem? A não ser que não se lembre, claro.
MARÍA «A mente humana é como a vida: um labirinto que às vezes tira de quem se perde nele coisas que jamais teria imaginado.» Esta frase — estas palavras exatas — foi o que me veio à cabeça enquanto via o Guille e o pai a afastarem-se pelo caminho que rodeia a fonte, no fim da sessão de ontem. Era uma das frases favoritas da senhora Violeta Bergman, uma professora do meu último ano de curso que foi fundamental para eu decidir dedicar-me à área da psicologia infantil. Mas isso é outra história. Ontem, quando o Guille entrou no gabinete e olhou para mim, percebi imediatamente que alguma coisa mudara. A experiência diz-me que essa «alguma coisa» costuma surgir, mais tarde ou mais cedo, na maioria das terapias. De repente há uma porta que se abre, uma luz diferente ou uma expressão que não estava ali antes. Para mim, essa «alguma coisa» continua a ser um fator quase mágico, embora saiba que não devia envolver a magia nisto. Há uma janela nova, como se o cata-vento tivesse girado sobre o eixo, trazendo ventos renovados. O Guille sentou-se e, com uma expressão muito séria, disse: — Hoje não quero brincar. Sorri. — Muito bem. Esperei. — Posso pedir-lhe uma coisa, professora María? — disse por fim. — Claro. — É que... — Engoliu em seco e olhou pela janela. — Se calhar podia deixar-me vir ensaiar o meu número da festa durante o recreio. Aquele pedido apanhou-me completamente desprevenida, mas ele não se apercebeu. — Pensava que ensaiavam durante o recreio com a professora Sonia. Encolheu os ombros e pôs a cabeça de lado. — Sim — disse —, mas, como a professora está doente e não sabe que a Nazia já não vai cantar comigo e que agora eu vou ser a Mary Poppins, se calhar a professora Clara zanga-se, porque é ela quem nos dá aulas até a professora Sonia ficar boa. E também tenho um bocado de vergonha de ensaiar com toda a gente. — Eu percebo. Ele continuou com os ombros encolhidos, à espera da minha resposta. — Então, posso? — Claro. Se achares bem, vou falar com a professora Clara para ela te deixar vir durante o recreio. Vou-lhe dizer que são coisas... nossas. Os olhos iluminaram-se-lhe e ele sorriu. Depois, passados uns segundos, abriu a mochila e tirou lá de dentro duas folhas que pousou em cima da mesa, empurrando-as devagar na minha direção.
Peguei nelas. — Fiz dois desenhos — disse ele. — Como na semana passada não vim, tinha de trazer dois. Sorri. — Obrigada. Olhei para os desenhos. O primeiro era uma mancha cor de laranja sobre o fundo branco da folha. O segundo consistia em dois círculos centrais, com a mesma mancha cor de laranja dentro deles, e três círculos mais pequenos na parte superior.
Quando levantei os olhos, o Guille estava a observar-me com uma expressão muito atenta. Ao ver que eu não dizia nada, estendeu a mão para o primeiro desenho e disse: — Este é o lençol da minha cama nalgumas noites. — A seguir, pôs as mãos entre as pernas e sorriu com timidez. — É que às vezes faço... xixi. Tentei disfarçar a minha surpresa. Pareceu-me tão estranho que nem o pai do Guille nem a Sonia tivessem dito nada sobre aquilo que, de repente, fui outra vez assaltada pela dúvida sobre se o que o Guille me dizia através dos desenhos era real ou meras invenções dele. Senti um pequeno aperto no peito, mas não houve tempo para mais, porque o Guille apontou para o segundo desenho. — Isto é quando meto o lençol na máquina de lavar roupa e dá voltas muito cedo porque o pai dorme até muito tarde, até depois das dez ou do meio-dia, e, como a mãe comprou uma máquina de secar porque é inglesa, ele nunca se dá conta. Respirei fundo enquanto ele continuava a apontar para o segundo desenho. — Ena. E isso acontece muitas vezes? — perguntei, tentando parecer que não estava a dar muita importância ao assunto. Ele ficou a pensar na resposta. — Às vezes sim e outras não — disse. «Claro», pensei. — E quando é que sim? Demorou uns segundos a responder. — Quando já não aguento mais. «Lógico.» Resolvi tentar outra abordagem. — Se calhar é porque, como estás a dormir, quando isso te acontece não tens tempo para acordar. Ele tornou a pensar durante uns segundos e depois negou com a cabeça. — Não. Estou sempre acordado. — Ah. Baixou o olhar.
— É que às vezes tenho vontade mas, como o pai está no computador e para fazer xixi tenho de passar à frente do escritório, não quero que ele me veja. — Porquê? — Porque se ele me vê fica a saber que eu o vi. A resposta pôs-me alerta, mas não alterei o tom nem o ritmo da conversa. — Mas, Guille — perguntei então —, o teu pai não faz nada de mal, pois não? — Não. — Então? Baixou os olhos. A resposta dele chegou quase num murmúrio. — É que muitas vezes chora sem parar. Imaginei o pai do Guille sentado ao computador, de costas para a porta, como ele sempre o desenhara. — Mas o teu pai senta-se de costas para a porta, não é? Ele disse que sim com a cabeça. — Então, é estranho que consiga ver-te, não é? Não respondeu. Limitou-se a continuar a olhar para mim, tenso e incomodado. Esperei. Enquanto o tiquetaque do relógio marcava o compasso de espera, lembrei-me da cara do homem que o Guille desenhara no ecrã do computador havia umas sessões atrás e qualquer coisa fez um clique num recôndito da minha memória. — Guille, com quem é que o teu pai fala no computador? Silêncio. — Com a tua mãe? Silêncio. — Com algum amigo? Nada. — Guille... Levantou a cabeça e passou lentamente os olhos pelos dois desenhos que acabara de me dar. — Com... ninguém. Acho eu. Respirei fundo. Subitamente, houve qualquer coisa que encaixou. Percebi nesse momento que a única maneira de o Manuel Antúnez conseguir ver o filho, se estivesse sentado de costas para a porta, era através do reflexo no ecrã do computador, mas para isso o ecrã tinha de estar apagado. Portanto, o que o Manuel via no ecrã, além do Guille, era o seu próprio reflexo! Mas então... Subitamente, lembrei-me da pergunta que o Guille deixara sem resposta no fim da sessão anterior. — Guille, no último dia em que nos vimos, ias contar-me o que há dentro do álbum de pele castanha. Lembras-te? Ele olhou para mim. Disse que sim com a cabeça. — O que há no álbum, Guille?
Engoliu em seco duas ou três vezes, enquanto balouçava os pés no ar. Depois olhou para o teto. E disse: — A minha mãe vive no álbum de pele castanha.
V LONDRES, OS DESAPARECIDOS E UM PAPEL ESQUECIDO
MARÍA «A minha mãe vive no álbum de pele castanha.» Nove palavras como nove casas do Jogo da Glória. A casa em que tínhamos acabado de cair era o Labirinto. Era aí que eu e o Guille estávamos. Os ponteiros do relógio da secretária marcavam 18:50. «Só tenho dez minutos», pensei. «O que é que posso fazer em dez minutos?» Nesse momento, ouviu-se o barulho da porta de entrada a abrir, seguido do já habitual pigarro do Manuel Antúnez. O Guille tornou a balançar as pernas e percorreu os desenhos com o olhar. Ouvimos o pai dele a sentar-se na cadeira da saleta, enquanto bufava, e também o som de uma caneta a cair ao chão e uma voz de homem que praguejava em voz baixa. Mais nada. — Ena — comecei, sondando-o. — Pensava que me tinhas dito que a tua mãe vivia no Dubai. O Guille disse que sim com a cabeça e olhou de soslaio na direção da porta. Ouvimos novamente o pigarro vindo da saleta. — E também me disseste que é assistente de bordo — acrescentei. — Sim. Sorri. — E, segundo o que a professora Sonia me disse — continuei —, em princípio só vai passar uns meses a trabalhar lá. Ou seja, se calhar regressa não tarda nada. Silêncio. — Em... fevereiro? — insisti. Não disse nada. — Guille... Levantou os olhos e sorriu, mas não foi um sorriso alegre. — É que... — começou. Mas calou-se logo. A luz suave do candeeiro iluminou-lhe os olhos e respirou fundo antes de tornar a falar. — Quando as pessoas desaparecem para onde é que vão? — perguntou, com uma expressão muito séria. Senti uma espécie de pequena chispa de calor a estalar atrás dos olhos e uma moinha nas têmporas. — Depende — respondi. Depois, antes que eu pudesse continuar a falar, ele acrescentou: — É como quando morrem ou é diferente? No tabuleiro imaginário do Jogo da Glória, o Guille voltava à casa de partida e eu com ele. Onde quereria levar-me? — Às vezes sim e outras não — respondi, tentando ganhar um bocadinho de tempo. Assim que me calei, ele tornou a falar, desta vez baixando ainda mais a voz. — A minha mãe está no Dubai porque... porque está desaparecida — disse. — É o que diz sempre no álbum de pele castanha que tem as notícias e as fotografias dos jornais. Mas se calhar acontece o mesmo que com a Mary Poppins, que quando desaparece é
porque volta para o céu, para descansar um bocado, quer dizer, ela não morre mas também não está cá e por isso dizem que está desaparecida, não é? Engoli em seco e esforcei-me por manter o sorriso, apesar da dor de cabeça, que já era mais do que uma simples moinha. Em cima da mesa, o relógio marcava 19:03 e lá fora tocou um telemóvel, seguido do chiar da cadeira no soalho flutuante e de um baque surdo. Qualquer coisa caíra ao chão e o Manuel Antúnez praguejava entre dentes. — Que grande me... — resmungou. O Guille e eu olhámos um para o outro. Ele mudou de posição na cadeira e olhou para o relógio. Depois disse: — A professora também se vai embora, ou não vai? — A pergunta apanhou-me de surpresa. Não respondi imediatamente e ele engoliu em seco. Depois tornou a perguntar, baixando um pouco a voz: — É que os mais velhos vão-se sempre embora, não vão? Olhei-o nos olhos e tive de fazer um esforço para não desviar o olhar. — Algum dia terei de ir, Guille. Ele sorriu, embora tenha sido mais um esgar do que um sorriso. — Eu gostava que não fosse. Desta vez fui eu quem sorriu. Custou-me, mas sorri. — Bem, agora não devias preocupar-te com isso. Contorceu a boca e coçou lentamente o nariz. — Quando é que é algum dia? — perguntou. Tornei a hesitar. Não me pareceu oportuno contar-lhe que, quase de certeza absoluta, não regressaria à escola depois das férias de Natal, porque a substituição que estava a fazer acabava nesse trimestre. Não me pareceu que fosse o momento certo, mas também não queria mentir. Algo me dizia que não era uma boa opção. Não com o Guille. Enquanto tentava encontrar uma resposta melhor, percorri o gabinete com os olhos e, ao chegar à janela, deparei com o cata-vento de ferro que coroa a fonte. Respirei de alívio. — Vou-me embora quando o vento mudar, Guille — disse então. — Quando o catavento rodar para norte. Ele abriu muito os olhos, que ficaram redondos como dois discos, e mordeu o lábio inferior. — A sério? — perguntou, olhando também para a janela. — Como a Mary...? Assenti. — Como a Mary Poppins, sim — disse. — Mas é segredo. Fica entre ti e mim, está bem? Ainda com os olhos muito abertos, assentiu várias vezes muito depressa e, depois, encolheu os ombros. — Sim, sim, sim — disse. — Prometo. — Muito bem. Fez-se silêncio e, uns segundos depois, tornámos a ouvir um pigarro vindo do vestíbulo. O Guille baixou lentamente os ombros e a luz que lhe brilhava no olhar tornou-se opaca.
— Acho que tenho de me ir embora — disse, apanhando a mochila do chão e puxando o fecho de correr. Depois levantou-se da cadeira e ficou de pé, à espera. — Não tenho deveres para a próxima quinta-feira? — perguntou. A pergunta apanhou-me de surpresa, mas também me deu uma ideia. «Acabaram-se os desenhos», pensei. — Sim — respondi. — Claro que tens. — Ah. — Sorriu. Levantei-me, dei lentamente a volta à mesa e ajudei-o a pôr a mochila às costas. Depois passei-lhe a mão pela cabeça, despenteando-o. — Para o próximo dia quero que me tragas uma redação — disse. Ele abriu um bocadinho os olhos e a cara iluminou-se-lhe com um sorriso. — Uau! Que bom! Eu também sorri, aliviada. — Muito bem. Gostava que me contasses a viagem que fizeste este verão quando foste a Londres com a tua mãe e com o teu pai — expliquei. Ele parou, virou a cabeça e levantou os olhos para mim. — E também quero que me contes o que aconteceu quando foram ver a Mary Poppins cantar. E, bem... tudo o que tu quiseres. O Guille olhou para mim durante uns segundos, com uma expressão muito séria, e depois encolheu os ombros e disse que sim com a cabeça. — E o que aconteceu depois também? — perguntou. Estive prestes a dizer que não, mas houve qualquer coisa no olhar dele que me deteve. — O que aconteceu... depois? — perguntei. Ele começou a andar e eu fui atrás dele. Quando chegámos à porta, virou-se para trás e disse: — Sim. O que aconteceu depois. Tornei a despenteá-lo. — Claro — disse eu. — Porque não? Rodou a maçaneta e abriu a porta. Do outro lado, o Manuel Antúnez estava agachado junto da cadeira da saleta, a apanhar uma série de papéis que estavam espalhados à volta dos pés da cadeira e que lhe deviam ter caído do bloco de notas que segurava na mão, juntamente com o telemóvel. Ao ver-nos, levantou rapidamente os olhos e franziu o sobrolho, como se o tivéssemos apanhado em falta. — Já acabou? — perguntou, dirigindo-se ao filho. O Guille respondeu que sim com a cabeça e ele acabou de apanhar as folhas soltas, que enfiou rapidamente no bloco. Depois levantou-se, arquejando, estendeu a mão ao Guille e pigarreou. — Vamos? — Sim. Pai e filho despediram-se de mim à porta e, enquanto os via a contornarem a fonte e a afastarem-se para o portão da escola, respirei por fim, sentindo-me mais aliviada. Depois da confissão do Guille, sentia que tinha finalmente algo concreto: o Guille era, efetivamente, uma criança precoce, hipersensível e com uma imaginação transbordante, que vivia a ausência da mãe como um abandono. Era tanta a dor que sentia que se
refugiara na magia da Mary Poppins — e nos seus poderes — para invocar o regresso da mãe. O facto de molhar a cama durante a noite era muito explicativo. Ele dizia que estava acordado e que fazia xixi para não ver o pai a sofrer, mas não era isso que acontecia. O mais provável era que molhasse a cama enquanto dormia e que o desenho do pai a chorar em frente do computador fosse apenas um sonho recorrente. Da porta, fixei o olhar nas costas corpulentas do pai do Guille. — Creio que chegou a altura de o senhor e eu termos uma conversa sobre o Guille, senhor Antúnez — murmurei para o frio da tarde. Também fiz uma nota mental para falar com a Sonia assim que ela regressasse ao trabalho, para lhe transmitir o que sabia sobre a Nazia e sobre o que se passara com a família dela. Talvez ela tivesse mais informações sobre o assunto. Esperei uns segundos, desfrutando a brisa estranhamente suave que varria as folhas do jardim, e depois tornei a entrar. Quando estava prestes a fechar a porta do meu gabinete, houve qualquer coisa que me chamou a atenção. Debaixo da cadeira da saleta, entre a perna traseira e o rodapé, espreitava uma pequena mancha branca. Era metade de uma folha de caderno. Aproximei-me da cadeira, afastei a perna e apanhei a folha. Estava amachucada e um bocado suja. Levei-a para o gabinete, sentei-me à secretária e alisei-a com a mão. Não tinha escrito nada de importante. Era uma lista, supus que de coisas a não esquecer. Li-a em voz baixa e não pude conter um sorriso. Coisas de um homem que tem de se organizar sozinho, pouco mais. Terça-feira, 23 de outubro 1 — Arranjar puxador porta sala 2 — Levar carro oficina. Revisão pastilhas 3 — Palmilhas para botas de râguebi!!!! (outras para o Jaime) 4 — Descongelar ervilhas e frango. É melhor lasanha 5 — Marcar centro de emprego (na terça-feira) 6 — Supermercado (Açúcar mascavado, amaciador de roupa e azeite).
A lista tinha mais alguns pontos, mas preferi não continuar a ler. Ao reparar na data, decidi que provavelmente já não servia para nada ao Manuel Antúnez e virei-me para a deitar no cesto dos papéis quando, subitamente, estaquei, ficando exatamente na posição em que estava, inclinada por cima do cesto com a folha no ar. Foi como se o tempo tivesse parado repentinamente e senti um suor frio a subir-me pelas costas. «Não pode ser», pensei enquanto o frio continuava a subir-me pelo pescoço até à cabeça. Esperei uns instantes, sem me mexer. No gabinete só se ouvia o tiquetaque do relógio, misturado com o bater do meu coração. Uns segundos depois, levantei-me e pousei novamente o papel em cima da mesa. A seguir, abri a gaveta onde guardo as pastas com os casos dos pacientes da semana, peguei na do Guille e pousei-a ao lado do papel. — Oxalá esteja enganada — ouvi-me a dizer, quebrando o silêncio do gabinete. — Por
favor! Abri a pasta e folheei os desenhos até encontrar a fotocópia da carta que o Guille recebera da mãe. Peguei nela, sentindo um nó na barriga, fechei a pasta e pousei a carta por cima. Assim que vi as duas folhas ao lado uma da outra, não tive a mais pequena dúvida: a letra era a mesma. O autor também.
GUILLE (Redação para a professora María) TÍTULO: AS MINHAS FÉRIAS EM LONDRES E O QUE ACONTECEU DEPOIS A meio de agosto, a mãe, o pai e eu fomos a Londres, que é a capital de Inglaterra porque falam inglês e está sempre a chover e também é lá que a Mary Poppins vive quando tem trabalho. Eu nunca tinha andado de avião e, como a mãe era assistente de bordo e conhecia muita gente, deixaram-me sentar ao pé do piloto, que tinha um bigode ruivo e se ria como um pirata porque era australiano, que é como um inglês mas de mais longe. O pai estava de mau humor, ou se calhar estava triste. A mãe já não ia voltar para casa, porque ia trabalhar para o Dubai, e nunca estavam de acordo: o pai dizia que não e a mãe dizia que sim; o pai dizia que não queria que ela fosse, a mãe dizia que tinha de ir. E foi assim o tempo todo desde a primavera, por isso é que a mãe levava tantas malas e nós só levávamos um saco desportivo muito pequeno, que pusemos no armário do teto do avião. Quando chegámos a Londres, já não havia sol e chovia um bocadinho, mas foi melhor assim porque não estava calor e a mãe riu-se muito quando o pai começou a falar inglês e a senhora da bilheteira do comboio não conseguiu entendê-lo e pôs as sobrancelhas assim, como os palhaços, só que era uma senhora negra com coisas coloridas no cabelo. Depois fomos para o hotel e estava tudo coberto de carpete, para o chão não se sujar, até o elevador, e o pai disse: — Os ingleses são mesmo esquisitos, com esta história das carpetes. Vê lá tu que até nas paredes põem carpete. O homem com o uniforme de botões grandes que vivia no elevador riu-se um bocadinho, mas não muito, porque era argentino como o senhor Emilio, e disse: — Os ingleses, já se sabe como são, che. E pronto. Depois fomos ao Big Ben, que é o mesmo relógio grande com ponteiros que aparece no Peter Pan quando eles voam à noite, e fomos ao museu onde dormem as múmias antigas e onde também passeiam muitos japoneses, mas era tão grande e havia tantas coisas que a mãe acabou por dizer: — Apetece-vos ir comer a um vietnamita, meninos? O pai disse «Está bem», mas com uma cara muito séria, e a mãe olhou para mim e também fez assim com os ombros, como nós fazemos quando a professora Sonia pergunta qualquer coisa nas aulas e não sabemos o que responder, apesar de não termos culpa porque ainda não demos a matéria. Então metemos por uma rua muito comprida e depois virámos para outra e chegámos. O pai contou-me que os vietnamitas são homens chineses mas mais educados, e que vivem mais felizes porque cozinham coisas picantes que lhes queimam a língua para comerem com a boca fechada. A mãe passou o tempo todo a rir-se muito e eu também, mas o pai quase não se riu. É que, como ele não sabe bem o truque de agarrar nos pauzinhos, pegou num pedacinho de peixe que lhe saiu a voar para a mesa do lado, e o senhor vizinho, que tinha um turbante cor de laranja como o do Aladino e uma barba branca muito comprida, disse muitas coisas muito depressa, como se estivesse zangado, e depois também se riu, mas agora já não me lembro muito bem porque, como íamos andar na roda gigante e já estava a ficar tarde, eu estava com medo de que fechasse, pois a mãe está sempre a dizer que os ingleses fazem tudo muito cedo para poderem tomar o chá das cinco em casa com os gatos. Desse dia só me lembro da roda gigante com muita gente e de mais nada. No dia seguinte, fomos ao parque onde os cães do 101 Dálmatas se conheceram, quer dizer, onde os pais dálmatas se conheceram, e comemos peixe com batatas fritas numa banca de rua que tinha um cheiro esquisito. Também fomos dar um passeio no rio, num barco de vidro, e quando descemos a mãe disse ao pai: — Temos de levar o Guille a tomar chá como bons ingleses. Então apanhámos um autocarro vermelho de dois andares, como os que aparecem nos filmes mas a sério, e saímos em frente de uns grandes armazéns que eram como o El Corte Inglés mas mais ricos, com carros de ouro à porta e um restaurante muito grande com empregadas loiras. Quando acabámos de tomar chá e de comer um bolinho cada um, o pai pediu a conta e a rapariga loira trouxe-lha dentro de uma caixinha. O pai abriu a caixinha e
ficou vermelho como um tomate, como quando se zanga quando está a ver futebol na televisão. Depois abriu a boca num «O» muito grande e também disse, quase a gritar um bocadinho: — Mas, bem... pode saber-se...? A mãe pôs-lhe a mão no braço e virou assim a cabeça, para o lado. — Não faças isso, Manu. — Mas, mas... — murmurou o pai. E então a mãe olhou para ele com uma cara muito séria e disse, muito baixinho: — Não estragues tudo. Depois fizemos mais coisas e também dormimos no hotel, e no dia seguinte já era o último dia porque era domingo, e fomos finalmente ver a Mary Poppins! Eu estava muito nervoso e escapou-me um bocadinho de xixi enquanto esperávamos à porta cheia de luzes do teatro, com um cartaz muito grande onde estava a Mary com o Bert na cena dos cavalinhos do carrossel e também muitos meninos e mães e pais, mas escrito em inglês. Então entrámos e, logo que o senhor indiano com óculos nos acompanhou até ao nosso lugar, a cortina levantou-se e a música começou a tocar. Depois apareceram a Mary Poppins e o cata-vento, e o chapéu de chuva do papagaio e a casa que se abria pelo telhado, e a mãe e eu pusemo-nos a cantar, ela em inglês e eu não, porque sabíamos todas as canções de cor, de tanto as ensaiarmos em casa. Passou-se tudo tão depressa que, de repente, a Mary Poppins voou do cenário até ao teto pendurada por uma corda e foi-se embora, e depois começámos todos a saltar e a gritar, e alguns meninos choravam e outros riam-se muito, e a mãe abraçou-se a mim com muita força porque estávamos com pena de que a Mary se fosse embora, e pronto. Depois fomos ver a Mary Poppins ao quarto dela, que está cheio de espelhos. Quando entrámos cheirava muito bem. Ela deu-me dois beijos e disse coisas em inglês, que a mãe esteve sempre a traduzir, até que a Mary me sentou em cima da saia e disse: — Ah, eu adora Espania, eu gosta das gentes e Torremolainos e Benalmadena porque tudo é muito alegre em verão e as gentes ri sempre muito simpática. — Depois calou-se e endireitou um bocadinho o chapéu. E também disse: — Tens de ser bom com os teus pais, William, muito bom. Eles amar-te sempre, sim? Disse-lhe que sim e ela despenteou-me, e pronto. Bem, não, porque quando já nos estávamos a ir embora a Mary disse-me: — E nunca te esqueças: quando tenhas problema grande ou tristeza, lembra da Mary Poppins, diz a palavra mágico muito alto para eu ouve bem e tudo, tudo, muda sempre, sim? — Olhou para mim pelo espelho e piscou-me o olho, assim, e cantou: — Supercalifragilisticexpialidocious! Saí do teatro muito contente e a cantar de mão dada com o pai, mas logo a seguir chegou a parte má porque já era tarde e tínhamos de nos despachar para ir para o aeroporto. É que voltávamos num voo noturno porque, como a mãe e o pai não são ricos, claro. A mãe foi connosco até à estação dos comboios. Ela ficava em Londres porque no dia seguinte ia-se embora no seu avião pequeno para ir trabalhar para o Dubai, e durante todo o caminho no metro o pai não disse nada e a mãe também não, e eu tinha uma dor aqui, como uma dor de barriga mas diferente, até que chegámos à estação dos comboios e o pai disse: — Isto não é boa ideia, Amanda. A mãe abraçou-me com muita força e eu senti mais dor aqui, quase como se quisesse fazer xixi, mas não me saiu nada. Depois, ela olhou para o pai. — Já falámos sobre isso muitas vezes, Manu — disse ela. — E tornamos a falar as vezes que forem necessárias — disse o pai, gritando um bocadinho. E também disse um palavrão que não sei como se escreve. — Manu — disse a mãe. O pai deu um pontapé num cartaz do palhaço do McDonald’s, que caiu ao chão, e uns senhores olharam para nós, e um deles disse qualquer coisa em inglês. Então, pelos altifalantes gritaram uma coisa que não se percebeu e a mãe pôs a cabeça assim e abraçou-me com muita, muita força. E depois disse: — É o vosso comboio. E pronto. Do resto não me lembro muito bem. O pai não disse mais nada, nem no metro nem no avião, e, apesar de eu ter um nó aqui, adormeci logo porque era muito tarde, e depois chegámos a casa, e quando nos levantámos já era depois e também já era meio-dia, e o pai disse: — Vamos comer uma piza com o tio Jaime e o tio Enrique ao restaurante do senhor Emilio, queres?
— Está bem. Quando nos sentámos à mesa do restaurante, o telemóvel do pai tocou e ele atendeu: — Sim? — E depois não disse mais nada porque se levantou, saiu para a rua e começou a andar muito depressa para trás e para a frente diante da janela, a olhar para o chão e a mexer assim a mão o tempo todo e a despentear o cabelo como se estivesse a andar à pancada. Também deu um pontapé numa garrafa de plástico. Então o tio Jaime saiu do restaurante e agarrou-o pelo braço, mas primeiro o pai não queria e empurrou-o contra um carro. Depois o tio Jaime agarrou-o outra vez e afastaram-se os dois, com o pai sempre ao telemóvel e a gritar: — Não, não e não! Já disse que não! Foi então que tocou o telemóvel do tio Enrique. — Estou? — disse ele. Depois ficou calado durante muito tempo a abanar a cabeça de um lado para o outro. E a seguir olhou para mim e também disse, muito baixinho: — Eu trato dele, descansa. Sim, claro. Não te preocupes. E desligou. — O que é que achas de irmos ao cinema ver um filme que te apeteça, depois de acabares de comer? — perguntou-me. — E o pai? — Teve de se ir embora para tratar de um assunto e disse-me para ficar contigo. — Ah. O pai esteve fora dois dias. Quando voltou, passou em casa do tio Jaime para me ir buscar e, durante umas semanas, às vezes ligavam-lhe para o telemóvel e ele fechava-se no quarto e gritava coisas que eu não entendia. Acho que às vezes também chorava, mas não tenho a certeza porque não vi. E pronto. FIM
MARÍA O Manuel Antúnez olhava para mim do outro lado da mesa do meu gabinete. Não tinha despido o casaco, apesar de a lareira estar acesa e o aquecimento ligado. Continuava de braços cruzados desde que se sentara. — Faça o favor de dizer — disse. O tom não me agradou. Pareceu-me quase provocador e tão na defensiva como me soara ao telefone dois dias antes, quando eu lhe ligara para combinar o encontro e ele aceitara encontrar-se comigo com uma má vontade mais do que evidente. Tive de fazer um esforço para não lhe dar importância. — Gostava de lhe falar do Guille — comecei. Ele arqueou uma sobrancelha e coçou o queixo, mas não disse nada. — Durante as sessões que tive com o seu filho, observei nele uma certa... inquietação, que ao princípio não entendia, que apenas intuía, e que finalmente acabou por ganhar forma — continuei. O Manuel Antúnez inclinou a cabeça para o lado, com um trejeito de impaciência. — Ah — foi tudo o que disse. Respirei fundo. O Manuel que estava diante de mim era o homem parco de palavras e reservado que vinha buscar o Guille todas as quintas-feiras, mas a energia não era a mesma. Havia qualquer coisa nele que mudara. — Penso que sei o que se passa com o Guille — disse eu por fim, olhando-o nos olhos. Ele tornou a arquear uma sobrancelha. — Pensa? — perguntou, apoiando os cotovelos em cima da mesa. — Sim. Susteve o meu olhar durante uns segundos e depois abanou silenciosamente a cabeça de um lado para o outro. — Então faça o favor de dizer — retorquiu, com uma expressão aborrecida. Engoli em seco antes de tornar a falar. — O Guille tem tantas saudades da mãe que tem medo de que ela não volte. — O Manuel Antúnez não pestanejou. Também não se mexeu. — É por isso que recorre à magia, senhor Antúnez. É por isso que quer ser a Mary Poppins: para se certificar de que ela... de que a sua mulher vai voltar. Ele baixou o olhar. E pigarreou. — Senhor Antúnez, o Guille não está a viver bem esta... separação — continuei. — Creio que seria uma grande ajuda se a sua mulher pudesse manter um contacto mais direto com ele. Ele tornou a expirar pelo nariz e depois abanou a cabeça de um lado para o outro mais umas quantas vezes, antes de voltar a falar. — Isso não é possível — disse simplesmente. — Sim, estou a par da dificuldade que existe em termos de horários e tudo isso —
continuei —, e o Guille também, mas talvez um telefonema fosse suficiente — insisti. — Se o Guille pudesse falar com a mãe, senti-la próxima... acredite que tudo seria muito diferente. Ele precisa de uma prova que lhe confirme que ela está cá para ele. Na verdade, não creio que seja pedir muito. Cravou em mim um olhar gelado que me provocou um pequeno calafrio. — Pedir muito, é o que diz? — perguntou, num tom de voz metálico. Assenti. — A senhora não sabe nada — murmurou entre dentes. — Ninguém sabe nada — repetiu, sem deixar de olhar-me nos olhos. — É muito fácil opinar daí, comodamente sentada atrás da sua secretária, a julgar as pessoas como se as pessoas precisassem de que a senhora lhes dissesse o que têm de fazer. — Pestanejou e cerrou os punhos com força. — Como se já não bastasse aquilo com que temos de lidar. — Senhor Antúnez, estou apenas a tentar... — A senhora só tenta ganhar o seu sustento a meter o maldito nariz na vida dos outros — rugiu. — Como muitas outras pessoas. Subitamente, o homem contido de havia apenas uns instantes convertera-se num animal ferido. Tentei perceber porquê enquanto, do outro lado da mesa, ele continuava a olhar para mim com raiva, a respirar pesadamente e com os punhos cerrados. — Eu bem disse à professora Sonia que isto não era boa ideia — murmurou entre dentes, relaxando os punhos e baixando os olhos. — Foi o que lhe disse, e tinha razão. Respirei fundo. O arrebato de fúria tinha passado, mas o silêncio que se instalou era de cortar à faca. Esperei uns segundos antes de tornar a falar. — Senhor Antúnez, sei que o senhor se preocupa tanto ou mais do que nós com a felicidade do seu filho. Levantou o olhar e fez um trejeito gozão com a boca. — Ah, sim? — perguntou, num tom de surpresa fingida. — Sim. E também sei que tenta que ele sofra o mínimo possível com esta... separação. Apoiou os cotovelos na mesa e enfiou a cara entre as mãos. — Ena! — exclamou. — A senhora é muito observadora. — E acrescentou: — Qualquer um diria que é psicóloga. Ignorei o comentário. Se houve coisa que aprendi com os anos foi a não me deixar guiar pelas reações de um pai magoado. Abri a gaveta, peguei na pasta que estava por cima das outras e tirei a fotocópia da carta e o pedaço de papel que encontrara no chão do vestíbulo, depois da minha última sessão com o Guille. — Senhor Antúnez, sei que é o senhor quem escreve as cartas que o Guille recebe da mãe. Ele franziu a testa e endireitou as costas. — Não diga disparates — rugiu. — Era o que me faltava! Pousei a carta e o papel em cima da mesa e empurrei-os na direção dele. O Manuel Antúnez inclinou-se para a frente e, durante uns segundos, ficou a olhar
fixamente para os papéis sem dizer nada. Depois passou lentamente a mão pelo cabelo e deixou escapar um suspiro. — O que eu gostava de saber é por que motivo não é a mãe do Guille quem as escreve — disse eu, num tom suave. Ele encolheu os ombros e baixou os olhos. Passaram-se uns segundos em silêncio. — Porque não pode — respondeu, por fim. Falou tão baixo que não tive a certeza de ter percebido o que ele tinha dito. — Não pode? — Não. — Porquê? Percorreu a sala com os olhos: as estantes, a janela, a lareira... — A senhora não entenderia. — Experimente. Negou com a cabeça. Depois fechou os olhos. — Não sou eu quem precisa de entender — disse eu então. — É o Guille. Abriu os olhos bruscamente e pestanejou, claramente alarmado. — O Guille...? Neguei com a cabeça. — Não, ele não sabe, fique tranquilo — interrompi-o. No entanto, nesse instante uma pequena luz acendeu-se na minha cabeça, ao mesmo tempo que ouvia a minha própria voz a perguntar: «Tens a certeza, María? Tens a certeza de que o Guille não sabe?» Lembreime então de todos os desenhos que o Guille me tinha entregado, das imagens, das nossas conversas... e hesitei. Fui imediatamente assaltada por dúvidas e ocorreu-me que talvez o que o Guille desenhava e contava não fossem invenções dele, mas sim a realidade do que vivia. E pensei que, se calhar, quem estava a inventar não era o Guille. Olhei para o homem que estava sentado à minha frente e vi-o tão desfeito, com a cabeça entre as mãos, tão... desprotegido, que algo me levou a ir um pouco mais longe. Precisava de saber. De uma prova. De qualquer coisa. — Senhor Antúnez — comecei, num tom suave —, pode dizer-me se o Guille já molhava a cama antes de a sua mulher se ter ido embora? Ele demorou um instante a levantar a cabeça. Quando o fez, tinha a boca cerrada e recuperara o olhar vivo, apesar de, desta vez, não haver raiva nos seus olhos, apenas incredulidade e aborrecimento. — Molhar a... cama? O Guille? — Deu um estalinho com a língua e bateu com o pé no chão. — Pode saber-se que merda é que está para aí a dizer? — perguntou, fulminandome com o olhar. «Meu Deus!», pensei. «Não sabe de nada.» E, logo a seguir, senti um suor frio a subirme pelas costas, ensopando-me de cima a baixo. «O Guille esteve sempre a dizer a verdade», pensei logo a seguir. «O Guille não mente.» E, quase sem querer, disse: — Senhor Antúnez, gostava de lhe fazer uma pergunta.
Ele pestanejou, mas não disse nada. Da minha secretária, o tiquetaque do relógio marcou os tensos segundos de espera, em contraponto ao silêncio do gabinete, até que, ao ver que ele não me respondia, decidi intervir. — Acha que o senhor e a sua mulher estão a passar por um momento... emocionalmente complicado? — Antes que ele tivesse tempo para reagir, acrescentei: — Por outras palavras: a vossa separação é apenas por motivos de trabalho ou é... definitiva? Uma sombra cobriu o olhar de Manuel Antúnez. Foi uma sombra negra, como uma nuvem carregada que anuncia uma tempestade. Pareceu-me ver-lhe uma veia a palpitar na têmpora, e vi também que apoiava as palmas das mãos em cima da mesa, fletindo os braços. Senti medo. Durou apenas um instante, mas bastou para me reclinar na cadeira e afastar-me dele uns centímetros. Senti medo, é verdade, mas precisava de saber. Insisti. — Ocorre-lhe algum motivo que possa levar o Guille a pensar que a mãe está... — respirei fundo antes de terminar a pergunta — desaparecida?
VI A VERDADE SOBRE A NAZIA, OS DOIS ÚLTIMOS DESENHOS E UMAS NUVENS DE TEMPESTADE
MARÍA Falta pouco mais de um dia para acabar o trimestre, e tudo se precipitou de tal modo que parece mentira que tenham passado apenas umas semanas desde que o Guille me veio ver pela primeira vez. Assim é o tempo quando governa os sentimentos: caprichoso, imprevisível, às vezes um bom companheiro e, outras, o nosso pior inimigo. Apesar de já terem passado duas semanas desde a minha reunião com o Manuel Antúnez, ainda me lembro dos pormenores da entrevista como se tivesse acabado de os viver: os dentes cerrados como os de um animal acossado quando se levantou da cadeira e, apoiando-se na secretária do gabinete, se inclinou ameaçadoramente para a frente ao ouvir a minha última pergunta. Num dos lados do pescoço palpitava-lhe uma veia, grossa e azul, e ficara tão corado que quase temi por ele. Ficara assim durante uns segundos que a mim me pareceram anos, a respirar pesadamente pela boca entreaberta, e a seguir, muito devagar, endireitara-se novamente. Depois virara-me as costas, dera a volta à cadeira e, sem dizer uma única palavra, dirigirase para a porta. Quando a abrira e estava prestes a sair, dissera, sempre de costas para mim: — A partir de agora, acabaram-se as sessões com o Guille. — Apenas aquilo, nada mais. Depois saíra e, antes de fechar a porta, ouvira-o a murmurar entre dentes: — Já basta de tanto disparate. Uns segundos depois, ouvi a porta a bater com toda a força e uns passos que se afastavam, pisando com força a gravilha do caminho. Desde então não tive mais nenhuma sessão com o Guille, embora ele tenha continuado a vir à casinha todas as tardes para ensaiar. Não falámos sobre nada da minha entrevista com o pai dele. O Guille chega, cumprimenta-me timidamente e vai diretamente para o quartinho situado ao fundo da saleta. Por vezes, se ao ir-se embora vê que a minha porta está aberta, assoma para despedir-se. — Adeus, professora María — diz, com a mochila ao ombro, fazendo-me um aceno de despedida. E depois vai-se embora, fechando devagarinho a porta da rua. No entanto, nestes últimos dias houve qualquer coisa que mudou: depois de se despedir, o Guille tem ficado plantado uns instantes ao pé da porta, sem falar, como se quisesse dizer-me alguma coisa mas não soubesse como fazê-lo, ou como se não se atrevesse a falar. Esta tarde aconteceu a mesma coisa, só que, contrariamente a outros dias, não se foi embora. Quando viu que eu olhei para ele, sorriu-me. Era um sorriso preocupado. — Precisas de alguma coisa? — perguntei-lhe, tirando os óculos. Não me respondeu logo. Respirou fundo e pestanejou umas quantas vezes. — Posso pedir-lhe uma coisa, professora? — perguntou, coçando o nariz. — Claro. — A senhora... — começou, hesitante — se calhar vem ver-me atuar amanhã na festa? A franqueza da pergunta fez-me sorrir.
— Gostavas que eu fosse? Disse que sim com a cabeça. — Sim, sim, sim. — Muito bem. Então eu vou. O rosto iluminou-se-lhe e ele tornou a sorrir. Depois baixou os olhos. — É que... como a Nazia não pode ir e o meu pai também não... Tentei disfarçar a surpresa e mantive o sorriso. — Ah, então o teu pai não vai à festa? — perguntei, esforçando-me para que o tom de voz não me traísse. — Não. Fechei a pasta em que estava a trabalhar e cruzei os braços. — E disse-te porquê? O Guille tirou a mochila do ombro e pousou-a no chão, junto dos pés. Depois encolheuse um bocado e inclinou a cabeça para o lado. — Sim. Disse: «porque-não-e-acabou-se-a-conversa.» Depois tornou a baixar os olhos. — Bem — disse-lhe eu —, se calhar ainda muda de ideias. Já sabes como são os adultos. Olhou para mim com um sorriso triste estampado nos olhos. — Sim. Ficou ali de pé, à porta, sem dizer mais nada, como se estivesse à espera de qualquer coisa. — Precisas de mais alguma coisa, Guille? — Sim. — Diz, então. — É que... como não tornei a vir vê-la às quintas-feiras e as férias começam amanhã, trouxe-lhe dois desenhos — explicou, agachando-se sobre a mochila. Antes que eu pudesse dizer fosse o que fosse, abriu o fecho de correr e tirou lá de dentro duas folhas um bocado amachucadas. Depois levantou-se e estendeu-mas, sem se mexer de onde estava. Quis dizer-lhe que não podia aceitar os desenhos, porque já não sou orientadora dele, mas não tive coragem. Desde que o Manuel Antúnez pôs um ponto final nas sessões, não consegui parar de dar voltas ao caso do Guille e a todas as pontas que continuam soltas. Durante estes dias, passei em revista o arquivo dele, as minhas notas, as minhas imagens e os meus retalhos das nossas conversas... e também o observei enquanto ele ensaiava, sem que se desse conta disso. Nalgumas tardes, aproximei-me da porta do quarto ao fundo do vestíbulo e fiquei uns minutos a observá-lo, enquanto cantava e dançava o «Supercalifragilisticexpialidoce» como se a sua vida dependesse disso, com o eterno sorriso, o estranho disfarce — o chapéu com a flor artificial, a saia comprida, os botins de atacadores e o chapéu de chuva imaginário — e de olhos fechados. Enquanto o observava, ouvi o eco das palavras da Sonia por entre a música: «Penso que o Guille que vemos é a
peça de um quebra-cabeças e que, por baixo dessa felicidade, se esconde um... mistério. Um poço de dentro do qual talvez esteja a pedir que o tiremos.» Quis dizer-lhe que não, que já não posso fazer nada com os desenhos dele, mas não fui capaz e, em vez disso, estendi a mão por cima da secretária. — Anda, senta-te — disse-lhe. Depois olhei para o relógio. — Mas só tenho uns minutos. Estou à espera de uma visita que deve estar mesmo a chegar. — Está bem. Entregou-me as duas folhas e sentou-se à minha frente, na beirinha da cadeira, do outro lado da secretária, a baloiçar os pés no ar enquanto eu tornava a pôr os óculos. Quando levantei os olhos, vi-o a pôr as mãos debaixo das coxas e a percorrer a sala com o olhar. Olhei então para o primeiro desenho. O que vi deixou-me completamente perplexa, de tal maneira que o Guille deve ter percebido isso na minha expressão, porque disse imediatamente: — Esse é o de depois. Olhei para ele. — O de depois? Ele disse que sim com a cabeça. — O de depois da festa. Olhei para o desenho, mas não consegui entender. O Guille sorriu. — É o que vai acontecer quando eu acabar a minha atuação na festa de Natal e a palavra mágica funcionar, para já não ser muito tarde, e depois vai ficar tudo bem. Dei uma olhadela rápida ao desenho. Efetivamente, a ocupar a parte de baixo da folha, a palavra «SUPERCALIFRAGILISTICEXPIALIDOCE», escrita a vermelho, atravessava a página de um lado ao outro, como um enorme carimbo estampado numa encomenda urgente. Antes que eu tivesse tempo para analisar o desenho com mais atenção, o Guille tornou a falar: — O outro não — disse, com um sorriso estranho. Pestanejei, tentando acompanhá-lo. Não precisei de lhe perguntar nada. Ele próprio me explicou. — O outro desenho é de agora — disse. Peguei no desenho e aproximei-o da luz do candeeiro. De repente, senti um pequeno calafrio que se foi espalhando lentamente pelo meu peito, como uma rede de tentáculos. — Mas, Guille... — ouvi-me a dizer em voz baixa. — Isto é... Nesse momento, um figura passou em frente da janela e uns passos que vinham em direção à porta fizeram barulho na gravilha do caminho que rodeia a casinha. O Guille e eu olhámos um para o outro e, mais uma vez, ele tornou a assentir com um movimento da cabeça. — Sim — disse. — É uma sereia. Os passos detiveram-se e lá fora fez-se silêncio. Depois a campainha tocou. Carreguei no botão que está junto da mesa e ouviu-se o clique da porta a abrir. O Guille virou-se a fim de olhar para trás e depois desceu da cadeira.
— Acho que tenho de me ir embora, não é? — perguntou, pegando na mochila que estava no chão e virando-se de costas, sem me dar tempo para lhe responder. Enquanto se afastava devagar em direção à porta, baixei a vista e passei os olhos pelos dois desenhos que continuavam pousados à minha frente, em cima da secretária. — Guille — chamei-o então, quase sem pensar. Ele parou e virou a cabeça para mim. — Sim? — Espera. Virou-se completamente e ficou onde estava, um pouco encurvado e com a mochila pendurada na mão, como um homenzinho cansado. — Antes de te ires embora, gostava de te pedir uma coisa — disse-lhe.
GUILLE — Não é preciso serem muito compridas — disse a professora María, antes de fechar a porta. — Basta um parágrafo para cada desenho. A Nazia diz sempre que os adultos são estranhos, porque às vezes dizem coisas que não se entendem e outras vezes parece que sim mas depois não, como quando a professora diz que temos de estudar muito e também diz «mas não demasiado», e ninguém percebe mas também ninguém se queixa nem nada. Lembrei-me porque a professora María primeiro disse-me que podia ir-me embora e logo a seguir perguntou-me se podia ficar mais um bocadinho, porque queria que eu escrevesse numa folha o que está nos dois desenhos que lhe levei. Não percebi muito bem o motivo por que ela queria que eu lhe contasse o que está nos desenhos se os desenhos são para ela, mas se calhar é porque não vê bem e precisa de uns óculos novos, apesar de não saber que precisa. — É que agora é depois do recreio e vou ter aula de Ginástica — respondi. — Não te preocupes com isso — disse ela, despenteando-me assim um bocadinho. — Logo que me sente vou telefonar para a secretaria, para lhes dizer que estás comigo. Depois veio comigo até aqui, que é a sala ao fundo do corredor onde eu ensaio para a festa, e deu-me uma folha e uma caneta verde. Bem, um marcador. — Quando acabares, podes deixar tudo em cima da mesa. Eu venho buscar assim que terminar a conversa com a minha visita. — Está bem. E foi-se embora. Como não sabia por qual havia de começar, peguei no desenho do que vai acontecer depois da festa, quando a palavra mágica tiver funcionado. Pus o desenho ao lado da folha de linhas e escrevi, com a caneta verde: REDAÇÃO DO PRIMEIRO DESENHO DO GUILLE PARA A PROFESSORA MARÍA
Depois olhei para o desenho durante um bocadinho, para me lembrar bem.
Então, o que vai acontecer quando eu cantar na festa é que a Mary Poppins vai ouvir a palavra mágica muitas vezes, porque na canção estou sempre a repeti-la, apesar de me custar um bocadinho porque, como também
danço, isso cansa-me e a voz não me sai. E depois isso quer dizer que cheguei a tempo de as coisas mudarem, e mesmo que seja um bocadinho à justa não importa, e assim a Nazia não vai ter de se ir embora de castigo com a família para o Paquistão, para conhecer o homem gordo e feio de bigode que vai ser marido dela, porque, apesar de ele não ser assim tão velho, é primo dela e também é rico, e por isso o Rafiq já tem tudo preparado. Ou então, se calhar, vão-se todos embora menos a Nazia, e o pai, como se sente tão sozinho e chora tanto, vai adotá-la. Sim, acho que assim é melhor: o pai vai adotar a Nazia e vamos voltar a ser três, como dantes, e vamos comer as doze passas em casa enquanto vemos televisão, e se calhar a Nazia pode tirar um bocadinho o véu, não sei, logo se vê.
Quando acabei a redação do primeiro desenho, peguei numa folha de linhas nova e pus ao lado o outro, para não me esquecer de nada.
REDAÇÃO DO SEGUNDO DESENHO DO GUILLE PARA A PROFESSORA MARÍA Neste desenho está a mãe quando se foi embora e depois ficou a viver na arca do tesouro do pai, em cima do armário, porque se transformou em sereia, que é como os peixes mas é uma senhora, apesar de eu nunca dizer isso porque acho que ninguém sabe, caso contrário os jornais que o pai guarda no álbum de pele castanha não diziam que ela está desaparecida. Eu acho que, como no Dubai têm um mar muito azul e há sereios, a mãe mergulha com os peixes e está sempre a nadar, como quando íamos a Maiorca e nos metíamos dentro de água no colchão amarelo e ela dizia: «Agora vou mergulhar um bocadinho para investigar»; e depois enfiava-se na água e demorava um bocadinho a voltar. E de certeza que... bem, não sei o que hei de dizer mais. Ah, sim, de certeza que a Mary Poppins vai vê-la às vezes, e até dançam juntas com os caranguejos e os polvos e os búzios que soam como os barcos grandes. E se calhar aconteceu-lhe o mesmo que à Ariel, que ninguém sabia onde estava e no fim descobriu-se que tinha fugido para se apaixonar pelo príncipe moreno que é parecido com o pai, e pronto. Já está.
Depois de acabar as duas redações, tornei a lê-las para ver se havia algum erro, como faço nos ditados das aulas de Espanhol, e, antes de me ir embora, deixei-as em cima da mesa, junto dos desenhos. Depois peguei na mochila e saí para o corredor. Quando passei em frente do gabinete da professora María, vi que a porta estava um bocadinho aberta e espreitei para me despedir, mas ela estava sentada a falar ao telefone e não estava lá mais ninguém, por isso fiquei sem saber o que fazer e, portanto, não fiz nada. — Preciso de me encontrar contigo, Sonia — dizia a professora. E depois: — Espero que já estejas bem. Sim, sim. Claro. Sim, preciso de falar contigo sobre o Guille, e também sobre a Nazia. Depois passou-se um bocadinho muito curto sem ela dizer nada, até que começou a anotar umas coisas no caderninho e disse:
— Não, suponho que possa esperar até amanhã, sim. E quase prefiro não falar do assunto por telefone. Passou-se mais um bocadinho. — Sim. Perfeito. Amanhã, à primeira hora, no teu gabinete. Pensei que a professora María devia estar quase a desligar, pois quando dizem aquilo nos filmes é porque já não vão dizer mais nada, e, como ela me tinha dito que não era preciso ir ao gabinete para me despedir, passei em bicos dos pés à frente da porta e saí para o jardim. Nesse momento, deu o toque da última hora e desatei a correr para não chegar tarde às aulas, e pronto.
MARÍA — O que é que disseste? A Sonia levantou os olhos do relatório e cerrou o maxilar. Tensão, havia tensão na voz dela e também nas mãos, que se fecharam sobre o relatório que estava em cima da mesa. — Ao princípio pensei que era uma invenção do Guille e não lhe dei importância, mas depois, quando ele tornou a falar no assunto, pensei que talvez devesse falar sobre isso contigo. Isto foi há umas semanas. Na verdade, foi precisamente quando ficaste doente, e eu preferi esperar que regressasses ao trabalho para falar contigo — expliquei. Enquanto eu falava, ela continuava a ler no meu relatório o que o Guille me contara sobre o que acontecera com a Nazia nas traseiras da mercearia, a conversa que tinham tido na sala de aula, os post-its e a referência ao Ahmed, o primo da Nazia, bem como a suposta viagem ao Paquistão orquestrada pelo Rafiq para que ela se casasse com o primo. A Sonia interrompeu a leitura durante um segundo e olhou para mim com uma expressão muito séria, enquanto tirava os post-its amarelos de dentro do envelope. — Se calhar devias ter-me ligado — disse, com um trejeito de preocupação. — É possível que sejam apenas coisas de crianças e que não tenham importância de maior, mas... — Franziu os lábios e depois abanou devagar a cabeça de um lado para o outro. «Ela tem razão», pensei, aborrecida comigo mesma por me ver apanhada em falta. Depois de uma noite muito mal dormida, passada a dar voltas à minha conversa de ontem com o Guille e aos dois desenhos e redações que ele deixara no meu gabinete antes de se ir embora, a reunião com a Sonia não podia ter começado pior. O dia amanheceu escuro, com um céu atapetado de nuvens negras, parecidas com as de uma dessas manhãs de fim de verão quando, ao cair da tarde, o calor se transforma em tempestade. Assim que cheguei à escola, e enquanto falava com a Sonia e tentava fazer-lhe um resumo do que foram estas três últimas semanas de terapia com o Guille, comecei a sentir-me cansada e desatenta. E, na verdade, ela também não parecia estar muito mais desperta. Além disso, a gripe tinha-a deixado pálida e com olheiras. Fizemos café e depois concentrámo-nos no assunto que tínhamos de resolver. — Para dizer a verdade, fiquei tão absorta no caso do Guille que não prestei muita atenção ao episódio da Nazia — expliquei então, tentando desculpar-me. Ela não olhou para mim. Continuou a ler, folheando depressa as páginas do relatório e parando de vez em quando. — Tu pensas que...? — comecei a perguntar. — O que eu penso não importa muito — interrompeu-me ela, levantando a cabeça. Depois pareceu dar-se conta do tom cortante e sorriu, suavizando um bocado o efeito das palavras. — O que me preocupa é que, pelo que leio aqui, não há nenhuma contradição naquilo que o Guille contou sobre a Nazia. Nem uma única. É uma narrativa muito... — Linear? — perguntei. — Sim, linear — assentiu. — Ou, o que é o mesmo, não me parece que seja produto da
imaginação de uma criança, María. Pelo menos no que respeita à Nazia. — Tornou a baixar os olhos para as páginas do relatório. — Devíamos começar por verificar se a Nazia continuou a vir às aulas regularmente — disse, virando-se para o ecrã do computador. Inseriu a palavra-passe e abriu o programa de assiduidade da escola. Depois entrou no curso do quarto ano e clicou no separador «Faltas». — Merda! — exclamou entre dentes um segundo depois, coçando a cabeça. — O que é que se passa? — Há quatro dias que a Nazia não vem às aulas. E as faltas estão todas por justificar. — Aproximou a cara do ecrã para ler o texto constante do separador «Observações», que apareceu sobre um fundo cor de laranja. — Segunda-feira foi o último dia em que veio. A funcionária da secretaria telefonou para os pais dela, mas não obteve resposta. E também não responderam aos SMS de notificação automática. Senti uma onda de calor a subir-me pelo rosto e estive prestes a dizer que talvez fosse uma mera coincidência, apesar de, subitamente, todas as peças do quebra-cabeças que o Guille me tinha ido dando sobre a Nazia terem encaixado. «Não pode ser», pensei, fechando os olhos durante um instante. Quando os abri, a Sonia tinha o telefone colado à orelha e, com a caneta, marcava um número de memória. Esperou uns segundos e soltou um suspiro de aborrecimento. — Carmen, é a Sonia — disse. — Preciso de falar contigo. Liga-me para a escola ou para o telemóvel assim que ouvires esta mensagem. É muito urgente. Não precisei de fazer perguntas. A Carmen é a assistente social que trabalha com algumas famílias da escola e que também faz de ponte entre a escola e o Ministério da Educação. É uma mulher muito competente, seca e habituada a encarar com pulso firme situações difíceis e, por vezes, até extremas. Só nos encontrámos duas vezes ao longo deste trimestre e nunca lhe vi um sorriso supérfluo. A Sonia desligou e virou-se a fim de olhar para mim. — Acho que ela não deve demorar a ligar de volta — comentou. E depois fez-me um pequeno sorriso. — Entretanto, querias falar comigo sobre o Guille? — Sim. Endireitou as folhas do relatório, tornou a metê-las na pasta e devolveu-mas. — Diz, então. Olhei pela janela antes de falar. O céu estava mais escuro e a luz que entrava no gabinete era tão fraca que, sem a luz das lâmpadas fluorescentes, teria sido impossível ver o que quer que fosse. Pareceu-me ouvir um trovão à distância, apesar de a Sonia não ter dado sinais de ter ouvido nada. Sentei-me à secretária e pousei a pasta ao lado. — Tinhas razão — disse eu. — Há uma ponta do icebergue que é visível e o resto esconde-se por baixo. É como se o Guille fosse o vigia de um castelo que encerra coisas que ele deve ocultar, mas que, por outro lado, tem necessidade de partilhar porque o peso é demasiado para ele. Ou como se... Nesse momento o telefone do gabinete tocou e a Sonia atendeu logo depois do primeiro toque, deixando-me com o resto das palavras suspensas na boca.
— Olá, Carmen — disse. — Sim, é a Nazia, a menina nova do quarto ano. Sim. — Depois de uns segundos de silêncio, tornou a falar. — Não, não posso esperar. — Um novo intervalo. — Talvez esteja enganada, mas creio que temos de agir urgentemente. — Silêncio. — Sim, agora mesmo, se puderes. Passo aí a buscar-te e, pelo caminho, ponhote ao corrente da situação. Claro. — Outro segundo de silêncio. — Eu dou-te um toque, não te preocupes. Sim, daqui a dez minutos estou aí. Levantou-se assim que desligou e pegou na carteira que estava pendurada nas costas da cadeira. — Desculpa, mas tenho de me ir embora — disse, enfiando o telemóvel no bolso do casaco. — Se quiseres eu vou contigo e, pelo caminho, conto-te o que se passou — propus-lhe. Ela já estava quase na porta. Virou-se e, com um trejeito de impaciência, disse-me: — Se não te importas, preferia que ficasses aqui e que ajudasses a Clara a terminar os preparativos da festa. Segundo o que ela me disse ontem, está tudo pronto, mas não sei se voltarei a tempo e de certeza que ela não consegue fazer tudo sozinha. — Claro. — Quanto ao Guille... — disse, olhando de soslaio para o relógio. — É melhor falarmos sobre ele quando eu voltar, está bem? Hesitei e ela inclinou ligeiramente a cabeça, antes de sorrir e se virar para a porta. — Além disso, confio em ti, María! — ouvi-a dizer enquanto saía para o corredor. — Tenho a certeza de que não estás enganada. O clique da porta a fechar ressoou contra o silêncio sepulcral que enchia a escola àquelas horas da manhã, e lá de fora chegou o clamor surdo de outro trovão, este mais próximo. Sentei-me na cadeira da Sonia e abri a pasta. O relógio do computador indicava que eram dez horas e, por breves instantes, estranhei que ainda ninguém tivesse chegado, embora depois me tenha lembrado de que hoje, por ser o último dia de aulas, a escola abre às onze e meia e fecha à uma e meia, depois da festa dos alunos do quarto ano. A seguir, ouvi um automóvel a pôr-se em andamento e arrancar com um pequeno chiar de travões. Depois, o silêncio regressou. E enquanto estava ali sentada, envolta no aroma a café do gabinete da Sonia, invadiume uma onda de tristeza profunda porque me lembrei da primeira vez que vi o Guille chegar à casinha do jardim, com aqueles olhos de menino adulto e aquele sorriso tão límpido e tão genuíno. Tornei a vê-lo de pé junto da porta, com medo de entrar no gabinete, mas com a mão na minha, e fez-se-me um nó na garganta porque, pela primeira vez em muitos anos, senti que tinha falhado e que já não havia tempo para mais. Fechei os olhos e massajei as têmporas, enquanto revia de memória imagens, retalhos de conversas e pequenas histórias das sessões semanais com o Guille, numa última tentativa de encontrar qualquer coisa, essa chave que não tinha aparecido até então e que tinha de estar nalgum recanto da nossa história comum. — A chave da arca do tesouro — disse em voz baixa, sem abrir os olhos. Depois, continuei a procurar na minha memória durante mais uns minutos, até que lá de fora
chegou o clamor surdo de um trovão que fez estremecer os vidros das janelas. Sobressaltada, virei-me a fim de olhar para o céu cinzento da manhã. O aroma do café chegava-me agora mais intenso, vindo da mesinha do canto, e, subitamente, vi um avião que sulcava o céu, deslizando sob as nuvens como um peixe sob a superfície de um mar revolto. Um relâmpago iluminou o céu a pouca distância do avião, seguido de mais um trovão que tornou a fazer vibrar os vidros. E, nesse momento, ao ver o clarão do relâmpago, senti um golpe no peito que me fez encolher as costas durante um segundo e me deixou sem respiração. — Claro — ouvi-me a murmurar. — Claro! Como é que não percebi antes? Com o coração encolhido, abri a pasta do arquivo do Guille e passei a toda a velocidade as folhas escritas, as fichas de observações, as notas e os desenhos, até chegar à última página. Quando a tirei da pasta, senti a mão a tremer um pouco e, antes de a desdobrar, tomei um gole de café e respirei fundo. Depois, enquanto um novo relâmpago iluminava o céu escuro, desdobrei a folha com o último desenho do Guille. E então fez-se luz.
GUILLE Hoje levantei-me mais tarde porque só temos de ir para a escola às onze e meia por causa da festa, de modo que pude dormir mais um bom bocado enquanto o despertador da Mary Poppins fazia tiquetaque na mesinha de cabeceira, ao lado da fotografia da mãe, mas sem tocar. Depois, tirei o lençol da máquina de lavar roupa e enfiei-o na máquina de secar. É que ontem o pai tornou a ficar até muito tarde ao computador e, como ele nunca mais ia para a cama, eu acabei por não consegui aguentar e fiz xixi, e, enquanto o lençol secava, preparei um Cola Cao e torradas com compota vermelha com pedacinhos, que é a que a mãe gosta. Depois de lavar a cara e os dentes, vesti-me e tirei o lençol da máquina de secar para o dobrar e o deixar no armário, porque assim o pai não o vê. Depois, vi pela janela da cozinha que o céu estava cheio de nuvens gordas, como se fosse chover, e por isso vesti o blusão com capuz e também peguei no saco de ginástica que é igual ao do pai, onde guardo o disfarce de Mary Poppins, e saí sem fazer muito barulho, bem, talvez um bocadinho. Desde que vivemos aqui que gosto de descer pelas escadas, porque são de mármore como as dos castelos, e além disso um dia destes tenho de aprender a deslizar sentado no corrimão, como a Mary Poppins faz, para demorar menos porque, como vai haver muito que fazer, vou mais depressa assim do que no elevador, que se avaria muitas vezes porque não é mágico. Mas, quando saí para o patamar, encontrei a senhora Yudmila, que é a nossa vizinha esquisita. Acho que é atriz mas da Roménia, como o Drácula, e fala assim, com uma voz como as dos espiões dos filmes a preto-e-branco: «Bonsh diash, Guillerrrrmo, comosshhtás hoje? Eu bem, obrrrigada, não parrrash de crrrescher, hã? Jáh éssh um homencinho.» E eu tenho um bocadinho de medo dela, com aquele cabelo tão loiro, as sobrancelhas pretas como carvão e o dente de ouro que abana um bocadinho, mas pronto. Bem, a senhora Yudmila estava à espera com a porta aberta e disse: «Deshcessh, Guillerrrmo?» E então descemos juntos até ao rés do chão, enquanto ela pintava a cara diante do espelho e até pôs um perfume que se calhar era caro porque cheirava como o que o pai põe na ficha do escritório, para não se notar que fuma muitos cigarros, e pronto. Depois, quando abri a porta da rua e dei a volta para ir apanhar o autocarro à paragem, aconteceu como nos filmes: à frente da porta da mercearia havia dois carros da polícia com as luzes azuis a rodopiar e um monte de gente atrás de umas fitas brancas, como acontece no pátio do liceu que fica ao lado da minha escola quando os alunos da secundária se zangam e alguém grita «Luta, luta!», e corremos todos muito para ver quem é e ficamos um bocadinho a olhar, até chegar alguma professora ou o diretor e acabar com aquilo porque no liceu não se pode andar à pancada. Aproximei-me da montanha de gente e vi que havia um buraco entre três senhores velhotes com bonés aos quadradinhos, daqueles que já não trabalham porque o pai diz que
«já trabalharam no duro ao longo de toda a vida e já conquistaram esse direito, homem», por isso esgueirei-me para espreitar e então senti uma coisa aqui, em cima da barriga, mas dura, porque vi que a Nazia e a mãe estavam de pé ao lado da grade, de mãos dadas, e a mãe tapava a cara com o véu, mas a Nazia não. E quando mexi a mão assim, para ela me ver, vi o pai da Nazia e o Rafiq a saírem pela porta da grade com dois polícias, que os levaram pelo braço até ao carro que estava parado à frente da mercearia. E o Rafiq estava a gritar muitos insultos e a dar pontapés, e um dos senhores do boné aos quadradinhos disse: — Bah, estes são todos iguais, vá-se lá saber no que andarão metidos. Se é que... O outro fumava uma coisa que deitava fumo, como um cigarro, mas que não estava acesa porque era de plástico, e tossiu um bocado e disse: — Em nada de bom, com toda a certeza. Bem me parecia que o miúdo não era boa rês, sempre enfiado no cibercafé com o outro. Vamos lá ver se não acabam por ser daqueles que põem bombas... E a rapariga que estava um bocadinho mais afastada olhou para o céu e disse: — Pobres pessoas! Com tudo aquilo por que têm de passar, tão longe de casa e, ainda por cima, acontece-lhes isto... Então outra senhora disse: — Então e nós? Nós também passamos por muito. Acha que precisamos que eles nos venham roubar? Já estamos outra vez com a mesma cantilena de sempre... Não aprendemos mesmo. Parece mentira, credo! Mas de repente calaram-se todos porque os polícias enfiaram o Rafiq e o pai num carro e, de dentro da mercearia, saíram a professora Sonia e a senhora Carmen, que também trabalha na escola mas agora não me lembro do que é que faz. A professora Sonia e a senhora Carmen estavam muito sérias e ficaram a falar com a Nazia e com a mãe dela, que tocava na testa e passava o tempo todo a dizer que não com a cabeça e «ai, ai, ai, ai», até que a professora Sonia a abraçou por trás e lhe disse coisas baixinho durante um bocado, mas um bocado curto. Depois entraram todas para o segundo carro e também se foram embora, com a sirene desligada, e pronto. — Amanhã já os soltaram, vais ver — disse o senhor do boné e do cigarro de plástico. E também cuspiu. Depois disse mais coisas, mas, como a senhora disse «Ui, como o tempo voa! Já passa das onze. Uma pessoa perde a manhã sem dar conta disso, e ainda por cima de certeza que vai chover», eu pensei que se calhar ia chegar tarde à escola, de modo que dei uma corrida até à paragem do autocarro, que mesmo nesse instante dobrou a esquina da praça e ficou parado no semáforo. E, enquanto eu corria para a paragem, comecei a sentir um bocado de dor aqui, como se tivesse vontade de fazer xixi, porque me lembrei de que a Nazia não me tinha visto e, se calhar, se ia embora com a mãe para o aeroporto. E, se ela se for embora antes de eu cantar o número da Mary Poppins, já não vou poder ajudá-la e ela vai morrer no harém do marido gordo e de bigode que também é um primo mais velho dela e depois... Depois entrei no autocarro, e quando cheguei à escola já passava um bocadinho das
onze e meia. Quem o disse foi o avô da Pilar Soria, que estava à porta com a mãe dos gémeos Rosón. — Despacha-te, Pilar, vamos, porque já são onze e trinta e cinco, vamos lá ver se não é no último dia que chegas tarde — gritou o senhor. E depois disse à senhora Rosón: — Se quiser, podemos ir tomar um café à pastelaria da rua de baixo. Não lhe parece que é um disparate irmos para casa, se depois temos de voltar daqui a uma hora para a festa das crianças? E ela disse: — Hummm. — E depois coçou a orelha e tornou a dizer: — Hummm. E foram-se embora devagarinho, de braço dado. Então comecei a correr muito e sem parar, porque, se fosse o primeiro a chegar, se calhar podia pedir à professora María que me deixasse cantar antes dos outros todos, e assim ia a tempo de a Nazia ainda não ter entrado no avião com a mãe, e depois já não tinham de se ir embora para o Paquistão. Mas, quando cheguei ao salão de festas, estavam à porta uns quantos meninos da minha turma e também alguns pais, mas a professora María não estava lá. Só lá estava a professora Clara. — Ah, Guille. Menos mal que chegaste — disse-me do palco. Depois olhou, com as sobrancelhas muito juntas, para uma pasta de argolas que tinha nas mãos e disse: — A Nazia e tu entram depois dos gémeos Rosón. São... vamos ver... hummm... sim, são os penúltimos. — Mas, professora... — Sim? — É que se calhar eu podia ser o primeiro, porque assim saía antes e então chegava a tempo e pronto. A professora Clara olhou para mim assim, com uma cara um bocado aborrecida, e depois fez «tschut» com a língua. Duas vezes. — Nem pensar nisso, Guille. Já está tudo preparado. Agora já não podemos mudar a ordem. Engoli um bocadinho em seco, como quando vamos ao quadro e o pó de giz nos entra pelo nariz, mas ali não havia pó de giz. — Mas se calhar... se perguntar à professora María... É que ela disse... A professora Clara disse que não com a cabeça e acrescentou: — Acho que a professora María não vem à festa, Guille. — Não? — Teve de sair. Foi tratar de uma emergência. — Ah. — E agora passa para trás da cortina e vai para junto dos teus colegas, está bem? Tenho de receber os vossos pais. Assim que conseguir vou ajudar-vos com os disfarces, porque eu sozinha não posso fazer tudo. — Está bem. Fui para trás da cortina e já lá estavam os gémeos e a Silvia Gómez e muitos outros,
alguns com os disfarces já vestidos, e como eu tinha um bocadinho de xixi fui à casa de banho que fica atrás da cortina, ao lado da porta do pátio, mas estava ocupada, por isso tive de esperar. E depois... Depois aconteceu uma coisa muito má. Mas muito, muito má. E também rebentou um trovão. Tudo ao mesmo tempo. E pronto.
MARÍA A verdade. É muito acertado isso que se diz: quando passamos muito tempo à procura da verdade, é no dia em que finalmente a descobrimos que chega a parte mais difícil. O que fazer com ela? O curioso não é tanto tê-la tido diante dos nossos olhos durante todo o tempo e não ter sabido vê-la até ao último momento. O que é realmente curioso é que, quando por fim surge, a verdade não permite longos prazos. Exige que se aja e, regra geral, com urgência. O avião, era aí que estava a verdade do Guille. A peça do quebra-cabeças que faltava. Há pouco, quando desdobrei o último desenho do Guille na secretária da Sonia, percebi que o que o Guille tinha querido retratar era qualquer coisa pontual ocorrida num dado momento e que, para ele, mudara tudo. O princípio de todas as coisas. Fora isso que ele desenhara. Mas o princípio de quê? Uma sereia, um avião, um sol e uma tempestade súbita. Durante uns segundos fiquei a olhar para o desenho como se estivesse a vê-lo pela primeira vez, enquanto o meu cérebro ordenava todas as informações que fora acumulando desde que o Guille começara a vir às sessões comigo. «Quando as pessoas desaparecem para onde é que vão? É como quando morrem ou é diferente?», ouvi-o na minha cabeça, a perguntar novamente. Foi então que surgiu uma suspeita por entre o emaranhado de peças do quebracabeças. «Claro», pensei. «Como é que isto não me ocorreu antes?» Afastei o desenho e cliquei no ícone do navegador no computador. Depois escrevi «15 agosto assistente de bordo espanhola» na janela de pesquisa e premi «Enter». Nada. Nem um único resultado. Do outro lado da janela chegou um novo trovão, desta vez mais próximo, seguido de uma série de rugidos mais baixos. No mar de nuvens escuras praticamente não restava uma única aberta de céu azul. Levantei-me para preparar outro café e comecei a passear devagar pelo gabinete, esforçando-me por tornar a pôr as ideias em ordem. «Há qualquer coisa que te está a escapar, María», ia pensando, enquanto lá fora a luz da manhã quase parecia a de um anoitecer de outono. «Falta qualquer coisa.» Continuei a dar voltas ao assunto, até que, quando cheguei à porta, parei para beber um gole de café quente e, quando baixei a chávena, vi que sobre o fundo branco da porcelana estava gravado um desenho do Big Ben e da Ponte de Londres em cima de um quadrado onde estava escrito «I London». Quase larguei a chávena. Claro! Era isso! Pousei a chávena no parapeito da janela e
corri para o telefone. Do outro lado da linha, a Ester, uma das duas secretárias da escola, atendeu logo a seguir ao primeiro toque. — Olá, Ester, bom dia. Fala a María, a psicóloga — disse-lhe. — Preciso de uma informação urgente. — Claro — respondeu, num tom eficiente. — Diga. — Preciso que procures o segundo apelido do Guillermo Antúnez. Pertence à turma do quarto ano. — É só um momento — disse. Fiquei a ouvir a respiração dela no auricular enquanto escrevia no computador. Passados uns segundos de espera, tornou a colocar o auricular perto da boca e disse: — Já está. Vejamos. Guillermo... — leu qualquer coisa entre dentes, até que por fim disse: — Willet. Guillermo Antúnez Willet. Pedi-lhe que me soletrasse o apelido e depois desliguei. Desta vez não podia falhar. Escrevi «Amanda Willet assistente de bordo agosto» no separador «Notícias» do Google e premi «Enter». Não foi preciso mais nada. Havia cento e catorze notícias. E todas tinham praticamente o mesmo título. *** Isto aconteceu há apenas quinze minutos, o tempo suficiente para eu terminar o café, passar pelo salão de festas para avisar a Clara de que tinha de sair para ir resolver um imprevisto urgente, descer ao parque de estacionamento, entrar para o carro e chegar aqui num abrir e fechar de olhos. Enquanto subia no elevador, enviei à Sonia um whatsapp que dizia mais ou menos isto: «Sonia, tive de sair da escola e deixei a Clara encarregada da festa. Trata-se do Guille. Não podia esperar. Volto assim que puder. Confia em mim.» Agora, enquanto espero pelo whatsapp de resposta, do outro lado da porta ouvem-se passos que se aproximam devagar. Os passos param e a réstia de luz que passa pelo óculo desaparece. Alguém me espreita do interior e faz-se um silêncio tenso até que, por fim, a luz volta ao óculo e a porta abre-se rangendo um bocado. — A senhora?! — pergunta o dono dos passos, com uma expressão entre o espanto e o aborrecimento. — Posso entrar? Ao fundo, vindas de um rádio, ouvem-se as notícias, mas aqui, na porta, torna a fazerse um silêncio incómodo enquanto nos olhamos sem dizer nada. Depois ele nega devagar com a cabeça, baixando os olhos. Quando penso que vai fechar-me a porta, afasta-se devagar para o lado e diz em voz baixa: — Entre. Precisamente no momento em que estou prestes a entrar, o toque de um whatsapp soa
no meu telemóvel. Toco no ecrã, num gesto reflexo, e vejo a mensagem de resposta da Sonia. Diz assim: «Avança, María. E cuidado com os icebergues.» Sorrio dissimuladamente e entro. Quando o Manuel Antúnez fecha a porta devagar, o clique da fechadura provoca-me um calafrio nas costas que disfarço com um sorriso tenso. «Avança, María», penso, respirando fundo e dando o primeiro passo pelo corredor até onde suponho que seja a sala.
VII O SEGREDO DA AMANDA WILLET, A MALA DE PELE BRANCA E UMA MARY POPPINS MUITO ESPECIAL
MARÍA — Acho que é melhor ir-se embora. O Manuel Antúnez espera sentado numa cadeira à minha frente, com os cotovelos apoiados na mesa da sala de jantar. Não tomou banho e tem vestido um robe cinzento que deve usar para andar por casa e talvez também como pijama. A sala de estar, que serve também de sala de jantar, é uma divisão escassamente decorada com um sofá castanho, a mesa e três cadeiras, um televisor e uma parede coberta de caixas de mudança ainda por abrir. A impressão que dá é de algo provisório, ou melhor, do descuido típico de um apartamento de solteiro. Nem uma planta. Nem um quadro. Pela janela veem-se terraços e ruas, e um céu carregado cobre a manhã com um manto cinzento, quase negro. O Manuel Antúnez olha para mim enquanto abana a cabeça de um lado para o outro, ao mesmo tempo que um trovão retumba do outro lado das portas de vidro que dão para a varanda e um casal de pombos levanta voo de cima do corrimão. A tensão da tempestade é quase elétrica. — Já lhe disse para não se tornar a meter nos nossos assuntos — diz-me, num tom ameaçador. — Nem o Guille nem eu precisamos da ajuda de ninguém. Há dez minutos que estamos aqui, na sala, e foi a primeira vez que falou. Desde que me sentei na cadeira à frente dele, todas as minhas tentativas de iniciar uma conversa sobre o Guille e sobre o motivo da minha visita embateram contra o seu silêncio. Nada, nem uma só palavra, até este «é melhor ir-se embora» por que eu já esperava. Antes de tornar a falar, apoiei também os braços na mesa. — Creio que devia ouvir-me antes de eu me ir embora, senhor Antúnez. — Ele levantou o olhar e cravou em mim uns olhos cansados, mas não disse nada. — Por favor — acrescentei. Silêncio. — Sei que isto não é agradável. Agora já entendo o esforço que fez durante todos estes meses para proteger o Guille. Não deve ter sido nada fácil para si. — Tentei sorrir, apesar de não ter conseguido realmente fazê-lo. — Mas talvez tenha chegado a altura de se deixar ajudar. Silêncio. Um novo trovão a retumbar, desta vez quase por cima de nós. O pai do Guille expirou pelo nariz e esfregou a cara com as palmas das mãos, como se estivesse a lavá-la para acordar. — Seja como for, creio que já passou um período prudente, e não me parece que prolongar esta situação durante mais tempo seja bom nem para si nem para o Guille — disse. — Nós, eu... podemos ajudá-lo a enquadrar o assunto. Uma notícia assim não é fácil de dar a uma criança, ainda que essa criança seja o Guille. O Manuel Antúnez franziu o sobrolho e, pela primeira vez desde que estávamos a conversar, senti que me via, que estava na sala de jantar comigo. — Não sei do que é que está a falar — disse, num tom de voz metálico. Depois tornou a
olhar para a janela e a negrura do céu obscureceu-lhe as pupilas. — Acho que devia ir-se embora. — Baixou o olhar para o relógio e acrescentou: — Sim. É melhor que se vá embora. Tenho coisas para fazer. Respirei fundo antes de tornar a falar. — Eu sei de tudo, senhor Antúnez — disse-lhe por fim. Ele nem sequer pestanejou. Esperou uns segundos antes de falar. — Tudo? — murmurou, enrugando ainda mais a testa, como se não me tivesse entendido. — Sim. Não disse nada. Apenas tornou a expirar pelo nariz. — Sei da... sua mulher — disse. — E lamento muito, acredite. Eu... — Vá-se embora! — sibilou subitamente, num tom glacial. — A senhora não sabe nada — acrescentou, enquanto as primeiras gotas tilintavam contra o metal do corrimão da varanda. — Ninguém sabe nada! — A mudança de tom na voz dele surpreendeu-me tanto que me inclinei um bocado para trás na cadeira, mas não me mexi. — Deixe-nos em paz de uma vez por todas e desapareça com as suas teorias para outro lado! — berrou, empurrando ruidosamente a cadeira para trás e levantando-se abruptamente. Nesse momento, outro trovão retumbou no céu e a chuva começou a cair com força. A luz da rua era quase nula e na sala de jantar a obscuridade era inquietante. Mesmo assim, não perdi a calma. Abri a pasta que tinha pousado em cima da mesa quando me sentara, peguei no monte de cópias que imprimira no gabinete da Sonia e fi-las deslizar por cima da mesa, na direção dele. O olhar do Manuel Antúnez ficou cravado como um arpão na primeira folha do monte, uma cópia a cores de uma notícia de um jornal digital na qual aparecia uma fotografia de uma mulher jovem, loira e sorridente, vestida com um uniforme de assistente de bordo. O título que coroava a fotografia dizia o seguinte: ASSISTENTE DE BORDO ESPANHOLA DADA COMO DESAPARECIDA EM ÁGUAS DO DUBAI (Agências noticiosas, 19 de agosto) Amanda Willet, um dos membros da tripulação do avião que se despenhou na madrugada de segunda-feira, dia 16, nas águas do Golfo Pérsico, a cerca de 60 milhas da costa do Dubai, foi dada como desaparecida juntamente com o resto da tripulação e dos passageiros. As autoridades competentes dos Emirados Árabes garantem que prosseguirão as buscas na área. Até ao momento, não foram encontrados quaisquer destroços do aparelho e, segundo as equipas de busca, a esperança de encontrar sobreviventes é nula.
Uns segundos depois, quando levantou o olhar, tremia-lhe o queixo e piscava os olhos de uma maneira estranha, como se houvesse uma luz que estivesse a cegá-lo. Depois tapou os olhos e ficou assim, com uma mão apoiada na mesa e a outra por cima dos olhos, enquanto lá fora a chuva caía nos terraços e batia nos corrimãos das varandas como uma cortina de moedas. — Senhor Antúnez — disse-lhe, num tom suave —, o que se está a passar com o Guille é que tem demasiadas perguntas e demasiadas suspeitas que não sabe como formular. Nada. Nem se mexeu.
— Há já algum tempo que o Guille sabe da existência destes recortes. Encontrou-os um dia na caixa que o senhor guarda em cima do armário e, desde então, lê-os frequentemente quando o senhor não está em casa, ficando perdido num labirinto de coisas que não entende e que é demasiado pequeno para assimilar sozinho. Mais silêncio. O Manuel Antúnez continuou onde estava, imóvel. — Entendo que isto seja muito doloroso para si, mas pense no que o Guille deve estar a sofrer, sem poder partilhar com o pai tudo o que guarda dentro dele — insisti. — Sei, através do Guille, que o senhor fez muitas coisas para que ele não se dê conta de que a ausência da mãe não é apenas uma ausência... temporária: as cartas que lhe manda às quintas-feiras fazendo-se passar por ela, as horas que passa a fingir que fala com ela no computador, os mails que lhe envia, os telefonemas inexistentes... Eu sei o que aconteceu e, com base nas sessões que tivemos os dois, o Guille também o intui, apesar de não ter consciência disso. Mas creio que o facto de o senhor insistir em protegê-lo da dor de uma perda como a da mãe não lhe está a fazer bem, senhor Antúnez. É por isso que o seu filho se apega tanto à Mary Poppins e é por isso que insiste em refugiar-se na magia. Silêncio. Lá fora, a tempestade era uma torrente ensurdecedora de água, relâmpagos e trovões que desabava de um céu negro e baixo, quase irreal. — O não saber é um peso demasiado grande para uma criança tão pequena, e também é um peso demasiado grande para si, acredite no que lhe digo. Nenhum dos dois merece isto, Manuel — prossegui, enquanto ele continuava sem se mexer. — Deve sentar-se com o Guille para lhe explicar o que aconteceu e para o ajudar a aceitar que a mãe não voltará; e deve dar-lhe as respostas de que ele precisa. E faça-o quanto antes. Ele já suportou demasiada angústia... Lá fora, um trovão semelhante a um rugido abafou-me a voz e, nesse momento, o Manuel Antúnez baixou lentamente a mão que lhe cobria a cara, deixando à vista uns olhos vidrados e um rosto contraído pela dor. Um instante depois, estendeu as mãos, pegou no monte de fotocópias dos artigos de jornal que estava no meio da mesa e apertou-o contra o peito. Depois, baixou a cabeça e começou a embalar as folhas muito devagar, enquanto soltava um gemido rouco que me cortou a respiração. — A Amanda não se foi embora — disse, com uma voz que parecia cheia de vidros. — Ela... hão de encontrá-la. Tenho a certeza. Vai ver que sim. É só uma questão de tempo. E as coisas voltarão a ser como dantes. — Depois, num fio de voz, apertou um bocado mais as fotocópias contra o peito e murmurou: — Tudo se vai compor, meu amor, claro que sim... Enquanto o Manuel Antúnez continuava abraçado ao monte de folhas, apegado a uma Amanda que já não existia, eu entendi, com um nó no coração, que a verdade, quando surge, muitas vezes é apenas uma porta para outra verdade mais profunda de que nunca havíamos suspeitado e que frequentemente explica tudo. Fechei os olhos durante um instante e respirei fundo. Foi então que a vi. A base do icebergue.
Ali estava ela. Potente como a luz de um farol.
GUILLE Bem, a coisa má que aconteceu foi que, como a casa de banho que fica atrás da cortina ficou ocupada durante muito tempo porque ninguém saía lá de dentro, eu sentei-me à espera com o saco de ginástica no degrau que está encostado à parede. Já faltava muito pouco para começar e a professora Clara entrou duas ou três vezes e disse: — Shhhh, meninos, calma. Estejam quietos. — E também, mas um bocadinho mais baixo e com os lábios assim, torcidos: — Assim não há quem se entenda. Vai dar-me uma coisa má. De certeza. A seguir, a Marta Ramírez pôs-se a ensaiar com a Silvia Leiva o número das Monster High e, quando deram a volta assim, para aquele lado, a Silvia tropeçou numa madeira que saía de debaixo de uma cadeira e caiu de cara no chão. Ficámos todos calados, bem, todos não porque o Martín Gil riu-se um bocado, até a Silvia se levantar com os óculos partidos e sangue no nariz. — Ai, meu Deus, era o faltava! — exclamou a professora Clara, e pôs a mão no peito, que subia e descia muito depressa, enquanto ela fazia «fu, fu, fu», até que a Silvia começou a chorar como a sirene de uma ambulância e a professora pegou nela pela mão e a levantou devagarinho do chão. E depois disse: — Anda, querida. Vamos à enfermaria e o senhor Armando vai tratar de ti, não te assustes. Vais ver que isso não é nada e que, num abrir e fechar de olhos, voltas para aqui para apresentar o teu número, está bem? — E, quando estavam a sair, virou-se para nós e disse: — E vocês fiquem quietinhos que eu volto já, ouviram? Eu que saiba que armaram confusão enquanto estamos na enfermaria... Depois elas desapareceram e, logo a seguir, puseram-se todos a falar e a brincar com os disfarces e também às escondidas, mas, como eu tinha muito xixi e não queria levantarme do degrau, fiquei sentado a apertar um bocadinho as pernas e afastei um bocado a grande cortina preta para ver se já tinha chegado muita gente ou só pouca, apesar de achar que no teatro não se diz assim. É que a mãe disse-me uma vez que as pessoas que se sentam em fila mas no cinema ou no teatro chamam-se «público», que isso da «gente» é no futebol ou na rua, mas agora não me lembro. Vi que no público já havia muitas cadeiras ocupadas, mais de quarenta, acho eu; bem, todas menos duas da segunda fila e algumas do fundo, que eram as das senhoras, dos professores e do diretor. Na terceira fila, por baixo da janela, estavam os pais dos gémeos Rosón, que não vivem juntos porque o pai diz que agora gostam um do outro de outra maneira, e também o irmão mais velho da Teresa de Andrés, que já vai à universidade dos mais velhos para ser engenheiro de foguetões na América, e também outros pais e mães que eu não conhecia, e alguns avós com o cabelo branco ou cinzento-escuro. Então pensei que, se calhar, as duas cadeiras vazias eram para o pai e para a mãe e tive vergonha, porque de certeza que a professora Clara não sabia que eles não vinham e estava à espera deles para começarmos as atuações, e também pensei que se calhar, se eu tivesse prometido ao pai que em janeiro me inscrevia no râguebi, ele teria vindo com o tio
Enrique, mas talvez fosse melhor não, porque se me vê vestido assim vai ficar com cara de zangado e eu fico sem jantar e... bem, então deu-me uma dor aqui, como a dor de respirar debaixo de água na banheira com espuma, mas sem água, e a seguir lembrei-me da mãe vestida com a roupa de sereia no mar do Dubai, a fazer mergulho com o sereio e os caranguejos e a cantar debaixo do mar, como na Pequena Sereia, porque está à espera que eu faça a minha atuação e diga a palavra mágica para a Mary Poppins me ouvir e descer das nuvens, agarrada ao chapéu de chuva, para a levar com ela para o céu, e pronto. Quando fechei a cortina, já não aguentava a vontade de fazer xixi. Fui a correr, com as pernas apertadas, até à porta da casa de banho e bati mais de cinco ou sete vezes, mas nada, não saía ninguém. Esperei um bocado e tornei a bater à porta: — Por favor, está alguém? É que tenho muito xi... — Não está ninguém — disse uma voz por detrás de mim. Dei a volta e era a Lara Gutiérrez, que já estava disfarçada de senhora Simpson, mas sem o cabelo de mentira. Antes de desatar a correr para o quarto onde mudamos de roupa, ainda disse: — Está avariada. A professora diz que temos de ir à do segundo andar. — Mas é que não chego... Então abriu-se a cortina preta e a professora Clara apareceu a andar muito depressa com a pasta na mão. Quando me viu, veio ter comigo e disse-me, com a cara quase vermelha, mas não de raiva: — Guille, filho, ainda estás assim? — É que... — De que é que estás à espera para mudar de roupa? — É que tinha xixi e a porta... — Deixa-te de xixis agora, não é altura para isso. — Olhou para o relógio e abriu muito os olhos. — Mas se estamos prestes a começar! Já devias ter mudado de roupa! — Sim. — Então? De que é que estás à espera? — É que eu pensava que estava ocupada e a Lara Gutiérrez disse-me que o que se passa é que... — Bem, não te preocupes. Como ainda falta muito para o teu número, se estás assim tão aflito podes usar a casa de banho dos do quinto ano. Mas sai ali por trás! E despachate! Enquanto a professora se ia embora para o quarto dos disfarces e dizia «Meninos, meninos, faltam cinco minutos! Quero-vos caladinhos e preparados!», eu saí pela porta que dá para o campo de basquetebol e, como estava a chover um bocadinho com gotas grossas, fui a correr muito depressa até à porta da secretaria como correm os amigos do pai que jogam râguebi com ele, mas eu ia com as pernas juntas porque já não aguentava mesmo mais. Depois subi pela escada até ao segundo andar e cheguei às casas de banho, mas não consegui abrir a porta de nenhum dos três cubículos, porque tinham um cartaz que dizia: «Acabado de lavar. Não usar.»
E então... Então foi quando me escapou um bocadinho de xixi e depois já não consegui parar, como nas noites em que o pai fica no computador e eu acabo por fazer xixi na cama, mas aqui não tinha lençol para me limpar e os papéis das mãos são dos ásperos e, como são pequenos, é preciso usar muitos e a seguir não se põem na máquina de lavar roupa. O que aconteceu foi que despi as calças, as cuecas e as meias, tudo muito depressa para me limpar, e também me sequei todo muito depressa, porque estava com medo de que entrasse alguém, e depois já não pude tornar a vestir a roupa porque estava muito molhada e cheirava um bocadinho mal, quer dizer, muito mal, e então pensei que o melhor era embrulhá-la em papel de secar as mãos e vestir o disfarce da Mary Poppins que estava no saco de ginástica para a festa. Só que assim que abri o saco para tirar o disfarce senti uma coisa aqui, por baixo da garganta, e ao mesmo tempo as janelas da casa de banho também estremeceram por culpa de um trovão dos grandes. — Ai — disse assim, baixinho, porque a dor que estava a sentir por baixo do pescoço também me apertava a voz e custava-me um bocadinho a respirar. E depois disse outra vez: — Ai. «Que não seja, por favor. Que não seja», pensei, mesmo quando rebentou outro trovão e as luzes da casa de banho se apagaram durante um bocadinho pequenino e depois tornaram a acender-se. Mas, assim que enfiei a mão no saco e tirei a toalha branca e as calças de fato de treino da Adidas com as luvas do ginásio, vi que sim. Que era mesmo. O saco do pai.
MARÍA Ao ver o Manuel Antúnez abraçado aos artigos sobre o desaparecimento da mulher, a verdade foi tomando forma na escuridão da sala, enquanto a chuva caía intensamente sobre os terraços. Subitamente, as peças encaixaram no quebra-cabeças que durante estas últimas semanas eu estivera a tentar resolver com o Guille, e o desenho surgiu-me completo. «Ele sabe», pensei. E então vi tudo com tanta clareza, com tanta... lógica, que senti um enorme calafrio enquanto tornava a pensar: «O Guille sabe.» Percebi que a sombra negra do icebergue que, desde o primeiro dia, a Sonia pensou ver debaixo do pai e do filho não era aquilo que imaginávamos, mas sim exatamente o contrário. A outra face da moeda. A verdade, a real, era mais tremenda do que supúnhamos: quem não interiorizava a morte da Amanda, quem se recusava a aceitá-la, não era o Guille mas sim o pai. Sim, o Manuel Antúnez era um homem aferrado a uma recordação a que não sabia renunciar. E o Guille... Olhei para o Manuel Antúnez e senti que havia entre nós um vazio tão redondo como o tampo da mesa de madeira, como se nos separasse um grande poço cheio de uma tristeza profunda e solitária. — O Guille sabe de tudo, Manuel — ouvi-me dizer, num tom de voz tão grave que quase não parecia o meu. Ele continuou abraçado aos papéis durante mais uns segundos. Depois, muito lentamente, levantou os olhos e, cravando-os nos meus, perguntou, como se não entendesse: — O Gui... lle? — Sim — confirmei, suavizando o tom de voz. — Desde o princípio. Desde o dia a seguir a terem regressado de Londres, quando o seu telemóvel tocou na pizaria e lhe anunciaram que o avião da Amanda se tinha despenhado no mar. — Não — disse, num fio de voz, apertando as fotocópias contra o peito. — Não. — Lá fora retumbou um novo trovão e um raio iluminou a sala de jantar. O centro da tempestade parecia estar mesmo por cima de nós, a martelar o teto, e o Manuel Antúnez cambaleou um pouco, primeiro para trás e depois para a frente. — Não... pode... ser — murmurou, como se falasse consigo mesmo, e ficou com a testa enrugada. Fiquei tão assustada ao vê-lo cambalear assim que me levantei rapidamente da cadeira e também fiquei em pé junto da mesa. Ele parou de cambalear, mas o olhar continuava perdido. — Desde esse dia na pizaria que o Guille tem vivido para o proteger, Manuel — disselhe, com um esboço de sorriso que desejei que fosse de consolo. — Apesar do seu repúdio, da sua ausência, apesar de... tudo, o Guille velou por si, para que o senhor não
se deixasse abater; fingiu que não sabia nada sobre o desaparecimento da Amanda porque tem tanto medo de que o senhor se vá abaixo e ele perca a única pessoa que lhe resta que está disposto a fazer o que for necessário para o pai não sofrer. O Manuel pestanejou várias vezes, com a testa sempre enrugada, apesar de ter o olhar mais límpido, como se começasse a despertar de um sono muito longo e pesado. — Mas... eu... — O Guille sabe que a mãe morreu naquele avião, Manuel, e também sabe que é o senhor quem lhe escreve as cartas, e que quando se senta no computador do escritório não há ninguém do outro lado do ecrã, porque o viu a chorar com o computador desligado. É por isso que faz xixi na cama à noite, porque não quer que o senhor o veja a passar e se aperceba de que ele sabe o seu segredo. O Manuel começou a respirar com dificuldade, primeiro muito discretamente mas depois inspirando cada vez mais fundo, como se estivesse com falta de ar. Assustada, dei a volta à mesa para me aproximar dele. — Guille... — murmurou, ofegante, enquanto passava os olhos pela sala de jantar. Fui para o lado dele e pousei a mão no seu ombro. Assim que sentiu o meu contacto encolheu-se, como se tivesse apanhado um choque elétrico. Depois descontraiu-se e respirou fundo. — O Guille fez-se de forte por si, Manuel — disse-lhe, enquanto lhe fazia festas no ombro, devagar. — Perante a desgraça do que aconteceu, apesar de só ter nove anos, o Guille decidiu lutar pelos dois, e fê-lo com essa sensibilidade tão extraordinária que o caracteriza e que o senhor repudia porque a interpreta mal e a toma por fraqueza. O Manuel engoliu em seco e baixou o olhar. — Então, este tempo todo... — murmurou. Assenti, sem parar de lhe fazer festas no ombro. — Pôs de lado a dor dele para poder cuidar de si. É por isso que se veste de Amanda quando o senhor não está a vê-lo. É a única maneira de que se lembra de ter a mãe com ele, de a sentir próxima. E o mesmo se passa com a obsessão que tem com a Mary Poppins. A Mary era uma coisa que a Amanda e ele partilhavam, que era só dos dois, e que agora é o vínculo que o une à mãe. O Manuel ficou novamente com a respiração entrecortada, ofegando como se estivesse muito cansado e lhe custasse respirar. Olhava para mim com uns olhos tão tristes que, momentaneamente, me fizeram lembrar os do Guille e tive de afastar o olhar. — É por isso que a festa de hoje é tão importante, Manuel — insisti um instante depois, obrigando-me a olhar para ele. — O Guille acredita que, se atuar na festa e cantar e dançar em público representando o número que ele chama «da palavra mágica», poderá salvar a Nazia da sorte que lhe está reservada e poderá salvá-lo a si, antes que a dor e a tristeza vos afastem tanto um do outro que ele acabe por ficar completamente órfão. O Manuel tornou a engolir em seco e começou a cambalear novamente. — Ór... fão? — disse, num fio de voz. Agarrei-o pelo braço, numa tentativa de o amparar. Depois estendi a mão até ao monte
de papéis que ele continuava a apertar contra o peito e tirei-lho. — A Amanda já não está cá, Manuel — disse-lhe, puxando os papéis para mim. Silêncio. — A Amanda não vai voltar. Ele olhou para mim, ainda agarrado às folhas. Tentei tirar-lhas suavemente, mas ele resistiu. — Ela não está cá, Manuel. Duas grossas lágrimas rolaram-lhe lentamente dos olhos, enquanto eu continuava a puxar as folhas. — Tem de a deixar ir, Manuel — disse-lhe suavemente. — Faça-o por si, e faça-o também pelo Guille. No exterior, a chuva caía com tanta força que, do outro lado da janela, não se via nada a não ser um manto de água escuro como uma cortina cinzenta. Passados uns segundos de resistência, o Manuel relaxou finalmente a mão e, a pouco e pouco, consegui arrancar-lhe as folhas, enquanto as lágrimas começavam a sulcar-lhe silenciosamente as maçãs do rosto, caindo diretamente em cima da mesa, e ele ia chorando também em silêncio, como uma criança grande, até que pousei as folhas em cima da mesa e o rodeei com os braços, encostando-lhe a cabeça ao meu ombro para que por fim pudesse chorar tranquilamente a sua perda. *** Dez minutos depois ainda continuava a chover. O Manuel estava mais tranquilo e já não chorava. Tinha tornado a sentar-se e havia já um bocado que estávamos em silêncio, a ouvir o matraquear da chuva contra a janela. Olhei para o meu relógio. Um quarto para o meio-dia. — Agora tenho de ir-me embora — disse, pondo-lhe a mão no ombro. — Prometi ao Guille que estaria presente quando ele atuasse na festa. Ele não se mexeu. Olhava para baixo. — Se precisar de alguma coisa, não hesite em ligar-me — disse-lhe, pegando na mala e começando a dirigir-me para a porta. — Já tem o meu número. Quando cheguei à porta, ouvi-o a dizer, em voz muito baixa: — Posso... ir consigo? Fiquei onde estava. Depois virei-me a fim de olhar para ele. — Claro. Ele sorriu. Foi um sorriso triste, mas nos seus olhos havia uma nova luz. Uma luz mais clara. Levantou-se e disse: — Se me der um instante para eu mudar de roupa... — Com certeza. Cinco minutos depois tornou a aparecer. Lavara a cara, vestira umas calças de ganga e um casaco de cabedal, e calçara umas botas de montanha azuis.
— Vamos? — perguntou, da porta da sala de jantar. Levantei-me e segui-o pelo corredor fora, até à entrada. Quando chegou à porta da rua, abriu-a e afastou-se para o lado a fim de me deixar sair. Depois, antes de me seguir, estacou e ficou a olhar, de sobrolho franzido, para um saco de cabedal branco que estava no chão, ao lado de um bengaleiro. — Passa-se alguma coisa? — perguntei-lhe do patamar. O meu relógio marcava cinco para o meio-dia. Não me respondeu imediatamente e, passados uns segundos, agachou-se sobre o saco e abriu-o. Sem se levantar, olhou para mim com uma expressão preocupada. — O Guille enganou-se — disse, abanando lentamente a cabeça de um lado para o outro e mostrando-me a pequena saia de flores do disfarce da Mary Poppins, que espreitava de dentro do saco. — Levou o meu saco.
GUILLE — Mas... pode saber-se onde é que te meteste? A professora Clara tinha-me agarrado pelo braço e estava a sacudir-me um bocado, assim, mas não muito, e tinha os olhos cheios de luzes vermelhas. No palco, os gémeos Rosón cantavam o número do Ricky Martin e já estavam a acabar porque estavam a cantar outra vez a parte do «María», ou seja, a seguir era a minha vez. — É que fui à casa de banho dos grandes e, como estava a chover tanto, não pude sair porque não queria molhar-me muito, mas acho que agora se calhar já não importa, não é? Então a professora olhou para mim com a boca em forma de «O» e disse: — Mas... mas... e o teu disfarce? — É que me esqueci dele em casa... — Ai, meu Deus! — Levantou uma das sobrancelhas pretas até lhe tocar na testa e disse: — E a Nazia? Onde é que se meteu essa menina? — Eu não disse nada. — Guille? — Está com a professora Sonia. — Com a professo...? — Sim. Se calhar estão no aeroporto ou se calhar não. É que não sei, porque, como iam num carro da polícia com a sirene desligada, talvez não cheguem a tempo e assim ela já não vai casar-se com o homem gordo do harém. — Ai, Senhor! Mas, Guille — disse, agarrando-me pelo capuz da camisola preta do pai —, tu sabes que não podes ir cantar assim vestido, não sabes? — Disse que não umas três ou quatro vezes com a cabeça e também deu uns estalinhos com a língua, e a seguir disse: — Mas pode saber-se de que é que estás vestido? Pareces um... um... rapper desses da rua. Como eu não sabia o que era um rapper, não disse nada, e ela também não falou mais, e depois não houve tempo para mais nada porque, no palco, os gémeos Rosón deram duas voltinhas como duas cambalhotas, mas de pé, um para a direita e o outro para a esquerda, e cantaram «Un, dos, tres, María», e acabou-se, porque no público começaram todos a bater muitas palmas e a tirar fotografias com os telemóveis, sobretudo a mãe deles, que é de uma aldeia que se chama Soria e que sempre que fala com o pai diz: «Ai, gostávamos tanto de voltar para a terra, mas claro, os gémeos e o trabalho do José e a minha sogra, e quando lá vamos de férias no verão custa-nos tanto regressar...» Então a professora olhou para mim devagar, da cabeça aos pés, como se procurasse alguma coisa, e a sobrancelha que lhe ia até à testa ficou mais grossa. — Mas, Guille... tu estás ensopado! — Um bocadinho. — Um bocadinho, como? E esses chinelos! — disse, abrindo muito os olhos. — Ainda apanhas uma pneumonia ou qualquer coisa, meu filho! Olhei para os pés e lembrei-me de que, quando estava a voltar pelo pátio para o salão de festas, tinha pisado alguns charcos porque estava a chover muito e eu não via bem, e,
como as calças do fato de treino do pai me ficavam muito grandes e arrastavam pelo chão, também se tinham sujado de lama e pesavam muito. — Vamos ter de suspender o teu número, filho — disse a professora, pondo a boca assim, torcida. — Não posso permitir que apareças assim em palco. Mas então os gémeos voltaram do palco pelo nosso lado das cortinas e, quando a professora se virou para olhar para eles, o senhor Ramón, que é o senhor que vai ao palco quando acaba um número e diz com o microfone quem é que vai atuar a seguir, pôs-se debaixo do foco branco e anunciou: — E, agora, quero apresentar-vos um número muito especial. — Virou-se para olhar para o nosso lado e fez assim para cima com o dedo grande, como os americanos dos filmes, e também nos piscou o olho. — Para todos vocês, vindos dos telhados da velha Londres, chegam-nos a grande Mary Poppins e o seu amigo Bert, o limpa-chaminés! Todos bateram muitas palmas e houve um senhor que assobiou e tudo, e, quando a professora me largou o capuz para segurar um dos gémeos que tropeçou numa corda, eu desatei a correr com os chinelos molhados e com o fato de treino sujo em direção ao foco branco, e corri tanto que quase passei o sítio onde estava o foco, mas só um bocadinho. E, quando tentei agarrar-me à barra do microfone, escorreguei. Então ficaram todos muito calados, mas assim, de repente. E alguém gritou: «Oh!» Porque eu me tinha estatelado.
MARÍA Era demasiado tarde. Tínhamos chegado demasiado tarde, e no corredor já se ouvia a música que vinha do salão de festas. Estugámos o passo. Durante o trajeto de carro, o Manuel Antúnez e eu praticamente não tínhamos falado. Ele olhava pela janela sem dizer nada, apenas vendo passar as pessoas enquanto a chuva caía com menos força e a atividade voltava às ruas. Subitamente, quando estávamos parados num semáforo, murmurou: — Como é que pude ser tão cego... Olhou para mim. Tinha uma luz tão triste nos olhos que fiquei contente por o semáforo ficar verde e eu poder arrancar. — Não se culpe, Manuel — disse-lhe. — A vida assestou-lhe um golpe muito duro e, quando isso acontece, cada um tenta sobreviver como pode. Ele tornou a virar a cara para a janela e, depois de passar um bom bocado calado, murmurou: — Só espero que o Guille consiga perdoar-me. Dei um suspiro profundo antes de lhe responder. — O Guille não tem nada para lhe perdoar — disse-lhe. — Basta-lhe tê-lo com ele. Saber que está presente. Ele baixou a cabeça e não disse mais nada até ao semáforo seguinte. — Ele é um craque, não acha? O comentário apanhou-me tão de surpresa que não percebi se tinha ouvido bem. — Diga? — O Guille. — Sorriu. Foi um sorriso débil, mas ao fim e ao cabo foi um sorriso. — É um verdadeiro craque. Não consegui conter o riso. — É uma criança fantástica, sim. — Nisso saiu à mãe. Parámos à frente de uma passadeira para deixar passar uma senhora com duas crianças pequenas que corriam à volta dela. — Agora só o tem a si — disse-lhe, antes de acelerar. — Sim. *** Quando chegámos à porta do salão de festas, ouvimos a voz de um homem vinda lá de dentro. Primeiro, pareceu-nos que estava a declamar ou a fazer um discurso, mas logo a seguir percebemos que estava a apresentar qualquer coisa no palco, porque conseguimos distinguir fragmentos soltos do que estava a dizer: «... quero... um número muito especial... Poppins e o seu... Bert.» Depois fez-se silêncio, até que, precisamente no momento em que abrimos a porta, se ouviu um «Oh!» vindo do público e, ao fundo, no palco, vimos o
Guille a escorregar pelo chão até cair de braços abertos e com um baque surdo na zona escura do palco, junto do microfone. Ao meu lado, o Manuel Antúnez conteve um arquejo e deu imediatamente um passo em frente, avançando pelo corredor, mas consegui segurá-lo pelo braço ainda a tempo de o deter. Estacou e olhou para mim com uma expressão interrogativa. — Espere — murmurei. — Espere. Ele descontraiu-se e ficámos onde estávamos, ao pé da porta, às escuras. No palco, o Guille levantou-se lentamente e aproximou-se da zona da luz do foco. Só então conseguimos vê-lo bem. E engoli em seco. O Guille estava vestido com uma camisola preta com capuz que lhe chegava até aos joelhos, umas calças de fato de treino sujas de lama que arrastavam pelo chão e que pareciam estar ensopadas, e uns chinelos de piscina brancos tão enormes que davam aos seus pés um aspeto desproporcionalmente minúsculo. — É o meu fato de treino — disse o Manuel em voz muito baixa, fechando os dedos sobre o saco de cabedal branco que levava na mão. — Tenha calma. Ele cerrou os dentes e continuou onde estava, sem afastar os olhos do palco, enquanto o Guille pegava no microfone e ficava a olhar para o público sem dizer nada. Passaram uns segundos em que não se ouviu nem uma mosca, apenas uma ou outra tosse nervosa e uns pigarros dispersos. Por fim, o Guille levou o microfone à boca. — É que... eu... — começou, com a voz trémula — tinha de cantar e dançar com a Nazia, que é minha amiga, mas se calhar ela está no aeroporto ou talvez no avião, porque tem de se casar no Paquistão com o primo que tem trinta anos ou mais e que é dono de uma fábrica onde cabem muitas casas e até um harém, para não ser assistente de bordo como a minha mãe. E a Nazia ia fazer de Mary Poppins e eu de Bert, que é o amigo dela, mas já não pode ser. Puseram a Nazia de castigo porque é o que diz o Corão, que é como a Bíblia mas ao contrário, e então eu disse: «Como ela não pode, eu vou ser a Mary Poppins apesar de ser rapaz.» O que se passa é que o meu pai não gosta que eu me vista de mulher. Ele gostava mais que eu jogasse râguebi, mas eu tenho medo da bola e que se riam de mim, e gosto mais de apanhar flores no campo atrás das bancadas, e também gostava de dançar como o Billy Elliot na academia da praça, mas só lá andam raparigas e o pai tem muita vergonha, por isso não lhe digo nada, bem, por isso e também porque a minha mãe não está cá e ele tem tantas saudades dela que às vezes, quando não estou a vê-lo, passa o tempo todo a chorar e também lhe escreve cartas num caderno, mas, como a mãe vive no fundo do mar, acho que não pode receber as cartas porque ali não há carteiro, mas se calhar podemos tentar metê-las numa garrafa, como fazem os piratas, para chegarem ao país dos sereios, que é para onde vão as mães quando desaparecem sem avisar, mas também pode ser que não, e pronto. O Guille calou-se e ficou com o microfone encostado à boca e a cabeça baixa, como se estivesse a pensar, enquanto entre o público não se ouvia nem um suspiro. Ao meu lado,
na escuridão, o Manuel Antúnez olhava para o filho sem pestanejar, enquanto dos seus olhos tornavam a cair umas lágrimas finas que quase não cheguei a ver porque ele não se virou. Quando lhe apertei o braço encolheu-se um bocado, mas nada mais. Depois o Guille recomeçou a falar: — Bem, eu queria cantar com o Bert a canção «Supercalifragilisticexpialidoce», a das vassouras e dos limpa-chaminés, porque quando conheci a Mary Poppins ela disse-me que essa era a palavra mágica que se diz quando está tudo um bocado mal e precisamos de ajuda. Acontece que a Nazia precisa muito de ajuda para não a meterem no harém, e o meu pai também, porque tem a mãe guardada numa caixa em cima do armário para ela não se ir embora, mas a mãe já se foi embora, e se calhar com a palavra mágica ela ouveme e vem despedir-se do pai, como naquele dia na estação mas sem estarem zangados, e assim o pai já não vai chorar mais, não vai ficar doente nem vai morrer. É por isso que eu queria cantar o meu número. E quando saí de casa enganei-me e peguei no saco de ginásio do pai, e depois tinha muita vontade de fazer xixi e não consegui aguentar, por isso fiquei todo molhado e tive de vestir a roupa dele, que me fica muito grande e que também está molhada por culpa da chuva. E se calhar por isso não posso cantar e gostava muito, apesar de ter um bocadinho de vergonha, mas pronto... e acho que agora sim, já está. Fez-se novamente um silêncio sepulcral. Desta vez, o Manuel Antúnez não esperou ao meu lado. Começou a andar pelo corredor fora em direção ao palco, com a luz do grande foco de cena refletida no rosto molhado e o saco numa das mãos, enquanto as cabeças se iam voltando à sua passagem e o Guille semicerrava os olhos, encandeado pelo enorme foco, tentando ver o que se estava a passar. Por fim, o Manuel chegou ao palco e subiu devagar pela escada central. Depois, aproximou-se do Guille e ficou parado ao lado dele. Olharam um para o outro. Pai e filho olharam-se e o Guille esboçou um sorriso pequeno e tímido, como se estivesse a pedir desculpa. — É que... — disse. O Manuel Antúnez limpou a cara e o nariz com as costas da mão, depois ajoelhou-se ao lado do Guille, abriu o saco e disse-lhe: — Anda cá, filho. Deixa-me ajudar-te. O Guille olhou para ele sem saber o que fazer e o Manuel levantou-lhe os braços e despiu-lhe suavemente a camisola pela cabeça. Depois, levantou os pés do filho e tirou-lhe os chinelos e as calças do fato de treino, deixando-o nu enquanto tirava do saco uma toalha com que lhe foi secando as pernas, o peito e o cabelo, sem que o Guille dissesse uma única palavra. Pai e filho olhando-se no meio de um silêncio absoluto, como se o palco, o público e o salão de festas não existissem, ou como se o mundo fosse apenas eles os dois, sozinhos. Nem uma tosse. Nem um sussurro. Nada. Até que o Manuel acabou de limpar o Guille e tirou uns bóxeres do saco. Assim que lhos vestiu, pegou numa saia de flores e também lha vestiu. Depois seguiu-se uma blusa branca e um casaco comprido, os botins de salto alto que apertou com cuidado, o chapéu de
palha com uma flor de plástico e um chapéu de chuva dos de encolher, de cor verdepistácio. Por último, do bolso lateral do saco, tirou uma pequena bolsa de maquilhagem transparente e pousou-a no chão. A seguir, abriu-a e, de costas para o público, começou a maquilhar o Guille: primeiro os olhos e depois as bochechas, os lábios e, por último, as sobrancelhas, tudo com um cuidado tão extremoso que não havia um único olhar na sala que não estivesse posto neles. Ninguém se mexia. Do exterior chegava o bater da chuva, já mais fraco, e ouviu-se um trovão distante a ribombar ao fundo. Ao meu lado, a Cristina, que é a professora do quinto ano, baixou a cabeça e assoou-se discretamente, e mais ao fundo, perto de uma das portas de vidro, um pai pigarreou e virou-se para a cortina. No palco, enquanto o Manuel Antúnez acaba de pentear o filho para lhe pôr o chapéu, o Guille levantou o braço e pôs a mão no ombro do pai. O Manuel ficou com o pente no ar e o ambiente do salão de festas tornou-se quase elétrico. — Pai — começou o Guille, num tom decidido —, se a mãe já não volta, se calhar agora tu já não vais morrer, não é? — perguntou, com um sorriso tão tímido que, no meio da escuridão do fundo do salão de festas, engoli em seco. O Manuel sorriu. Os lábios tremiam-lhe. — Claro que não, filho. Eu nunca vou morrer. O Guille inclinou a cabeça para o lado. — Como a Mary Poppins? O Manuel engoliu em seco duas ou três vezes e fechou os olhos com muita força. — Isso — disse, em voz baixa. — Como a Mary Poppins. O Guille sorriu, mas desta vez foi um verdadeiro sorriso. — Está bem. Então o Manuel perguntou-lhe: — Queres que eu ponha o chapéu? O Guille franziu o sobrolho. — Cabe-te? O Manuel tornou a fechar os olhos momentaneamente. E depois pôs o chapéu, que lhe ficava pequeno. Mesmo assim, não o tirou. O Guille começou a rir. — Queres cantar, filho? — perguntou-lhe o Manuel, passando-lhe a mão pelo cabelo. O Guille tornou a rir quando o viu com o chapéu posto, e depois baixou a mão e procurou a do pai. — Não — disse, abanando a cabeça de um lado para o outro. — Prefiro ir comer uma piza ao restaurante do senhor Emilio e beber uma Coca-Cola normal. Pode ser? O Manuel também se riu e deu-lhe a mão, levantando-se. — E até um gelado de baunilha, se quiseres. E então, de mãos dadas, desceram lentamente a escada do palco e devagar, muito devagar, começaram a mover-se pelo corredor fora em direção à porta, o Manuel com o pequeno chapéu de palha e a flor de plástico na cabeça, e o Guille vestido como uma Mary
Poppins em miniatura, ambos alheios a todos os olhares. O Manuel olhava para o Guille e o Guille ia cumprimentando as pessoas com a mão que tinha livre, como um ator a cumprimentar o público ou uma pequena Mary Poppins a despedir-se de um mundo que só ela conhecia. Quando chegaram à porta, pararam ao meu lado e viraram-se, a fim de olharem para mim. O Guille largou a mão do pai e veio ter comigo. Agachei-me para ficar à sua altura e ele sorriu-me. — Quer vir comer piza connosco, professora? — perguntou-me. Recusei, abanando a cabeça. — Não, Guille, obrigada. — Acariciei-lhe o rosto e ele riu-se. — Ainda tenho muitas coisas para fazer. — Está bem. Ficámos calados os dois, a olhar um para o outro. Ele inclinou a cabeça e, com a voz um pouco trémula, perguntou: — Vai-se embora, não é? — A pergunta apanhou-me tão de surpresa que não consegui responder logo. — É que, quando voltei a correr da casa de banho, passei ao lado da fonte e o galo do cata-vento estava a apontar para norte. Senti um nó na garganta e quis sorrir, apesar de não ter conseguido. — Se calhar podia ficar mais algum tempo — disse ele, baixando os olhos. O nó que tinha na garganta subiu-me até à boca e eu senti que me ardiam os olhos, por isso pestanejei umas quantas vezes. Então ele aproximou-se devagar e rodeou-me o pescoço com os braços, envolvendo-me no seu cheiro a maquilhagem, a suor de criança e a calor cansado, e eu abracei-o contra mim, apertando-o com força, com muita força, durante uns segundos em que cheguei a ouvir o coração dele a palpitar contra o meu. Respirei fundo para sentir o seu cheiro, até que ele se mexeu entre os meus braços. Quando o soltei e pensei que ele ia afastar-se, colou a boca ao meu ouvido e disse muito baixinho, quase num sussurro, detendo-se em cada sílaba, como se me contasse um segredo muito importante que eu não devia esquecer: — Su-per-ca-li-fra-gi-lis-ti-ce-ex-pia-li-do-ce. Depois piscou-me o olho, deu-me um beijo na cara e, muito devagar, voltou para junto do pai. O Manuel Antúnez pôs-lhe a mão no ombro e, levantando os olhos para mim, disse: — Obrigado, María. Sem me levantar, tornei a engolir em seco e sorri. Ele também. Depois fez uma festa na cabeça do Guille e disse-lhe: — Vamos, craque? O Guille riu-se, encantado, e disse que sim com a cabeça. Depois deram os dois meiavolta, saíram para o corredor e começaram a afastar-se de mãos dadas em direção à porta de entrada da escola, que emoldurava as suas silhuetas negras contra a luz que entrava a rodos pelos vidros.
À direita, uma figura alta e deselegante, com um chapéu de palha e uma flor em cima. À esquerda, uma figura muito pequena, de saia e botins. Ambas a moverem-se lentamente em direção à luz, como duas metades de uma mesma mulher.
AGRADECIMENTOS Quero agradecer a Claudina Jové, por me ter ajudado a recuperar o Guille e por o ter trazido à luz do dia; a Pilar Argudo, por ser uma boa amiga e uma grande profissional; a Silvia Valls, pela esperança, pela fé e pela ajuda; a Quique Comyn, porque não podias faltar; a Menchu, porque são muitos anos; a Iolanda Batallé, por apostar; a Sandra Bruna, claro; a Antonio Fontana, a Nuria Azancot e a Braulio Ortiz, evidentemente; a Ricard RuizGarzón, Álvaro Colomer e May Revilla, porque o tempo vive-se estando e vocês estão há já muito tempo; a Elena Palacios, pela fé; à minha gente do Facebook, pela generosidade, por me inspirarem tanto e porque sem vocês não teria chegado aqui; e, sobretudo, aos livreiros, livreiras, bibliotecários, bibliotecárias e bloggers (elas e eles) que, a pouco e pouco, se foram somando a esta minha aventura e me levam para destinos cada vez melhores. Quero igualmente agradecer a quem faz com que escrever continue a ser uma parte fundamental do que gosto de partilhar diariamente com o mundo.