Ficha Técnica Título original: A DURABLE FIRE Autor: Barbara & Stephanie Keating Traduzido do Inglês por Isabel Alves Capa: M aria M anuel Lacerda Imagem da capa: Sandra Eckhardt / Corbis / VM I e Shutterstock Images ISBN: 9789892338309
Edições ASA II, S.A. uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201
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Para Christopher
O amor verdadeiro ĂŠ um fogo eterno, Chama perene que a alma consome; Jamais definha, se extingue ou fenece, E jamais sacia a sua prĂłpria fome. WALTER RALEIGH
PRÓLOGO
Quénia, Setembro de 1970 mais voltaria. Apesar desta promessa, feita a si mesma, foi incapaz de refrear a sua N unca excitação quando o avião começou a mergulhar através de castelos de nuvens em direcção à terra ressequida. Fechou os olhos e desviou a cabeça da janela, não fosse ela distorcer, de algum modo, o seu primeiro vislumbre do país. Depois sentiu o baque do impacto e, mais tarde, Edward estendeu a mão para ajudá-la a levantar-se do assento. Soou uma pancada quando a pesada porta se abriu e Camilla, pela primeira vez, inalou vagarosamente, saboreando a inconfundível fragrância de África e deixando que a boca e os pulmões se enchessem desse gosto familiar. A pista era como uma miragem no calor tremeluzente. Diante deles, estendia-se o vidro e o betão dos edifícios do aeroporto de Nairobi, mas ela mal reparou neles. O seu olhar devorava as planícies crestadas para lá da vedação de segurança, o azul despojado do céu matinal, as copas planas dos espinheiros, o remoinho de pó à passagem de uma carrinha por um caminho de terra batida em direcção à estrada principal para a cidade. As lágrimas turvavam-lhe a visão enquanto descia a escada do avião atrás de Edward, pousando cautelosa e lentamente os pés, como uma peregrina, no solo queniano. Passara tanto tempo e cada ano, num certo sentido, uma vida inteira. E agora regressava pelas razões erradas, mas não fazia diferença porque estava ali. Tinham acordado com a companhia aérea que não haveria entrevistas com a comunicação social e ela sentiu-se aliviada quando foram acompanhados através da pista do aeroporto para um salão privado. As formalidades de entrada não se tinham alterado. Sentiu a irritação de Edward enquanto esperava que os passaportes fossem carimbados, transmitindo o peso do corpo ora a um pé, ora a outro. Ele odiava a burocracia. O agente de imigração parecia enfadado e carrancudo ao ler os passaportes de uma ponta à outra, fazendo Camilla sentir-se uma criminosa. Ou uma fugitiva cujo disfarce era necessário desmascarar. Olhou para ele, profundamente aborrecida e um pouco receosa. Sentia dores de cabeça e tentou ignorar a tremura de ansiedade no estômago. O homem franziu a testa, alargando por um momento as narinas do seu nariz largo, ao erguer os olhos para ela, e depois retomou o folhear lento do passaporte. Finalmente, levantou um carimbo de borracha da almofada e, com uma pancada, carimbou os vistos. Camilla preparava-se para se afastar quando, de súbito, ele lhe sorriu, o seu rosto negro refulgindo numa visão de dentes brancos e olhos divertidos. — Bem-vindos a Nairobi. Desejo-vos uma boa estadia. Apareceu um bagageiro com as malas deles e seguiram-no até à zona da alfândega. Um casal indiano estava junto de um balcão de inspecção, a mulher estóica e muda, o marido discutindo efusivamente. As gengivas e dentes dele estavam tingidos de vermelho de mascar noz de areca e
formou-se-lhe espuma no canto da boca. A mulher suspirou e cobriu o cabelo comprido com o sari. O funcionário da alfândega estava a revistar-lhes toda a bagagem, recusando-se a olhá-los nos olhos ou a atender as suas explicações suplicantes. Com cinco malas, iam demorar-se por ali muito tempo. Era evidente que também isto não mudara muito. Camilla sentiu uma ponta de compaixão por eles quando um membro do pessoal do aeroporto chegou para a conduzir noutra direcção. Ela sentiu a mão de Edward por baixo do cotovelo, ao transporem uma porta lateral que dizia «Entrada Reservada ao Pessoal» para um parque de estacionamento privado no exterior. Viu Sarah imediatamente. Correram uma para a outra e abraçaram-se em silêncio, afastando-se para se estudarem mutuamente e se abraçarem de novo.
— Sinto muito. — Sarah prendeu uma madeixa de cabelo solta atrás da orelha. — Não devia ter sido preciso uma coisa destas para voltares. Camilla assentiu com a cabeça, levantando a mão para limpar lágrimas de uma origem diferente. Percorreram a curta distância até ao carro seguidas de perto por Edward. Já um estranho, não havia nada que ele pudesse dizer. Durante a viagem de vinte minutos para a cidade, um dilúvio de pessoas derramava-se das casas, dos autocarros e dos automóveis. Centenas de crianças de escola enchiam os caminhos empoeirados. Trabalhadores de escritório vestidos com roupas lavadas e engomadas transportavam pastas e sacos de plástico. Mulheres mais velhas, envergando tecidos kitenge de cores garridas, continuavam a carregar feixes de paus às costas, as tiras de couro que amarravam a madeira enterrando-se-lhes nas frontes. Um vaqueiro com uma shuka escarlate guiava uma manada de gado escanzelado através de uma vala, batendo nos animais com um pau comprido e assobiando ordens. Rapazes novos desviavam-se nas bicicletas e os carros decrépitos cuspiam fumos tóxicos. Motoristas de uniforme passavam a conduzir Mercedes, transportando homens e mulheres negros extremamente bem arranjados. Políticos, provavelmente; Camilla raramente vira uma mulher africana no banco de trás de um Mercedes ou mesmo a conduzir um carro. Ultrapassaram-nos autocarros inclinados a uma velocidade alucinante, a abarrotar de gente, com uma carga periclitante de sacos e fardos presos com cordas aos tejadilhos abaulados. — Tanta gente! Não estava a contar com tanta gente. — Falou numa voz estrangulada, sentindo-se ligeiramente ofegante. — Tantas casas e casebres por todo o lado. Credo, de onde é que apareceram? — Vais vê-los por toda a parte e também vais senti-los — disse Sarah. Camilla virou-se para Edward. — Todo este espaço costumava estar vazio, lembras-te? Uma África bela e deserta. Uma vez, vi leões na berma desta estrada. E sempre montes de animais das savanas. — Chama-se progresso. — O tom de Sarah era de resignação. Camilla estremeceu, com dificuldade em adaptar-se ao excesso e atropelo dos corpos. Prepararase para aceitar as mudanças com que viesse a deparar-se. Muito sucedera desde a noite em que fugira da terra da sua infância. Edward levara muito tempo a arrancá-la à concha protectora que ela construíra à sua volta, mas fora paciente. Quando o telefonema chegara, inesperadamente, ela ficara inicialmente desfeita com a dor e, em seguida, tomada de culpa e premonição. — Deves voltar agora, querida. Não tenho dúvidas — tinha dito Edward, amparando-a num mundo que se esfumava num remoinho. — Mas eu posso tirar alguns dias de férias e acompanhar-te.
Achas que ajudava? Camilla ficara surpreendida com a proposta. Era raro ele destinar tempo a assuntos pessoais. Era algo a que ela nunca se habituara completamente, esta dedicação que excluía tudo e todos quando estava a trabalhar. Nunca acreditou que ele fosse capaz de largar tudo até ao momento de partirem para o aeroporto na noite anterior. Mas agora estavam no Quénia, a terra das suas primeiras lembranças, dos seus sonhos de criança e dos fracassos posteriores. Pararam à porta do Norfolk Hotel e ela apeou-se do Land Rover. O gerente estava à espera deles, desfazendo-se em amabilidades. Podiam preencher as fichas de inscrição mais tarde, declarou, e por agora tinha-se desembaraçado dos jornalistas. Camilla fechou os olhos por um momento e respirou fundo antes de atravessar o átrio e penetrar no passado. Quantas vezes estivera naquele pátio! Em criança, admirando a plumagem brilhante das aves no aviário, em adolescente, com o seu primeiro vestido de baile, já uma jovem mulher, presa da sua primeira paixão. Olhou para o tronco retorcido da buganvília que continuava a crescer colada às mesmas paredes, recamando as varandas de esplendor púrpura. Havia tecelões a nidificar na acácia e um nectarino saltitava, iridescente, sobre as flores de hibisco. — Vou arranjar uma mesa para o pequeno-almoço — disse Sarah, desaparecendo na direcção do restaurante. Camilla seguiu Edward para o chalé. O quarto cheirava a cera de soalho e havia uma enorme jarra com rosas e um cartão. Ela leu a mensagem e pousou-a ao contrário no aparador. Ainda não, disse a si mesma. Não tens de lidar com isto agora. Abriu a mala, atirou um conjunto de roupa para cima da cama e pegou numa camisa e num par de calças lavadas. O vestido preto estava na parte de cima e ela retirou-o e levantou-o por momentos, interrogando-se se estaria a ter um pesadelo. Depois abanou a cabeça e pendurou-o num cabide no roupeiro. A bagagem de mão estava na cómoda e ela abriu-a, procurando os artigos essenciais para se refrescar para o pequeno-almoço. — Hodi! Hodi, memsahib? O doce chamamento era reconfortante e familiar ao mesmo tempo e ela recebeu o criado de quarto com um sorriso. Já não se chamavam criados de quarto, naturalmente, e Camilla pensou qual seria o termo correcto nos dias que corriam. Pediu-lhe que levasse o vestido preto para brunir e que abrisse a cama. Passaram alguns momentos até se aperceber de que estava a falar com ele em suaíli, como se nunca tivesse deixado o país. Edward surgiu da casa de banho. — Deus do céu, estava a ver quem é que estava aqui numa conversa pegada — disse ele. — Não te esqueceste então. — Pensei que sim mas, pelos vistos, não foi preciso muito para vir outra vez ao de cima — disse ela. — Devo dizer que é extremamente irritante como consegues ter sempre esse ar depois de um longo voo. Como se tivesses chegado de um hotel luxuoso onde te passam o fato a ferro e te engraxam os sapatos de hora em hora. Dá-me um momento antes de irmos ter com a Sarah. Preciso de um café queniano forte e de uma fatia de papaia com lima. Aliás, porque é que não vais indo para o restaurante, que eu não demoro nada? Ao espelho da casa de banho, a sua imagem era pouco animadora. — Olhos vermelhos e sem brilho de uma noite de viagem — disse ela em voz alta. — E o cabelo… cheio de electricidade estática, como galhos secos. Espero não me cruzar com ninguém conhecido. Lavou a cara e penteou o cabelo para trás, torcendo-o num perfeito carrapito dourado-pálido na nuca. Tinha um par de óculos de sol enormes na carteira e pô-los. Em seguida, atravessou o pátio,
banhado pela intensa luz do sol, e abriu cuidadosamente caminho através do frenesim matinal do átrio. Um homem corpulento estava de pé junto ao balcão da recepção, desconfortável e inibido, com um casaco de safári novo e brilhante. A mulher impecavelmente penteada observava e, apontando com dedos arranjados, contava a bagagem que estava a ser carregada num veículo de safári. Camilla sorriu. Não tardaria que o cabelo fixo com laca se transformasse num capacete de pó. Novos companheiros de viagem estavam a apresentar-se uns aos outros, exteriormente corteses mas já a competir pelos melhores lugares nos jipes. Os motoristas estavam a aquecer os motores e os guias de safári a conferir as listas. Os maridos repreendiam as mulheres que se demoravam pela boutique, examinando as camisas, os chapéus e a joalharia africana em exposição. Camilla continuou. Um momento repleto de demasiadas recordações. Na relativa tranquilidade do restaurante, Sarah e Edward estavam já a tomar café e chá e a comer bacon e ovos. Sarah sorria, o seu rosto franco e afável, os olhos verdes brilhantes, debruçada a explicar qualquer coisa com entusiasmo. Estava com bom aspecto, pensou Camilla. Bronzeada e cheia de energia. O seu cabelo castanho exibia os reflexos da luz do sol e tinha o nariz um pouco queimado, começando a esfolar, exactamente como quando eram crianças. Camilla passou os olhos pela sala. Felizmente, não viu rostos familiares e ninguém a reconheceu. — Pediram por mim? Estou cheia de fome. — Não tinha vontade de falar sobre os dias que a esperavam. Era demasiado doloroso e ela precisava de tempo para se recompor. — Como não comeste nada no avião, pedi o tratamento completo — disse Edward, servindo o café. — Depois, precisas de descansar. Amanhã temos um dia longo e cansativo. Sugiro que fiquemos hoje aqui e jantemos num sítio sossegado logo à noite. — Não. — Ela olhou para ele, com um ar um pouco alucinado, revelando a sua angústia. — Não posso passar o dia sem fazer nada. Quero passar tempo com a Sarah. E logo à noite também. Passou tanto tempo. E não vejo a Hannah desde… sei lá, desde outra era. — Ela não mudou. Está ansiosa por cá chegar — disse Sarah. — Está mesmo? — Camilla notou que Edward tinha registado a ansiedade na sua voz. — Foram dias terríveis para todos nós. Cheios de confusão. E medo. Éramos demasiado novos para o que aconteceu. Nenhum de nós podia estar preparado. — Sarah estendeu a mão. — Claro que podemos passar o dia juntas. Só aqui estou por tua causa. — Éramos incrivelmente chegadas, não éramos? — Camilla rodou a pulseira no braço e esforçou-se por sorrir. Sarah era uma pessoa franca e genuína. O contrário absoluto de toda a gente no círculo que frequentava em Londres. Tinha-lhe levado algum tempo a adaptar-se às frases carregadas de segundas intenções das conversas aparentemente inocentes, à procura de uma inflexão reveladora do verdadeiro sentido atrás de cada palavra. — Agora estamos mais velhas e talvez mais sensatas — disse ela. — Menos idealistas, pelo menos. — Quando é que a Hannah chega a Nairobi? — perguntou Edward. — Talvez hoje à tarde, se conseguir escapar. Caso contrário, amanhã de manhã cedo. Disse que ligava quando cá chegasse. — Sarah tentou imprimir um registo casual à voz, mas tinha reparado na maneira como Camilla agarrara na faca e no garfo com mais força e na apreensão nos seus olhos. Camilla fixou os ovos reluzentes que tinha no prato. As gemas ali eram tão amarelas. Tinha perdido o apetite e desejou que Edward não tivesse pedido um pequeno-almoço tão substancial. Sentia o estômago revolver-se e a sua coragem evaporara-se. Não estava preparada para enfrentar Hannah. Para enfrentar nada. Pensou se alguma vez estaria pronta para pegar nos laços que nunca se
haviam completamente quebrado, apesar dos anos e dos quilómetros que haviam dilatado as distâncias entre elas. Tinham sido inseparáveis no passado, as três, apesar das suas origens diferentes e dos caminhos distintos que haviam seguido depois de deixar a escola. Nesse tempo, tinham acreditado que nada poderia destruir os laços que as uniam. Pelo menos, Sarah estaria presente quando finalmente se reencontrassem. Assim, os primeiros passos, os mais penosos, em direcção à compreensão e ao perdão, seriam amenizados. — E se fosses dormir um pouco, querida? Nem que fosse uma hora, já seria bom. — A voz de Edward soou muito forte, interrompendo abruptamente os seus pensamentos. — Não, obrigada. Já te disse, não quero dormir. — Teve consciência de ter falado num tom estridente, de que a tensão entre eles era óbvia. — Pensei que a Sarah talvez pudesse levar-me ao hospital esta manhã — disse ela. O seu coração tinha começado a bater aceleradamente e pousou a chávena para esconder a tremura nas mãos. — Não acho bem que vás já lá. — Edward franziu a testa, assinando a conta do pequeno-almoço e levantando-se da mesa. — Já passaste por muita coisa e vais ter de falar com muitas pessoas amanhã. Não é boa ideia precipitares-te, Camilla. Tens de te preparar para uma experiência muito difícil. — Quero ir ao hospital esta manhã — disse ela, sentindo a voz falhar-lhe. — Camilla… há uma coisa que precisas de saber. — Sarah estava sentada muito direita na cadeira, o corpo tomado de tensão. — Antes de o veres. — O que é? — A pele perfeita de Camilla tornara-se branca. — Ele não vai morrer, pois não? É isso que me vais dizer? — Ouvia a pulsação descompassada e sonora do seu coração. O seu corpo quebrou de alívio quando viu Sarah abanar a cabeça. — Então, o que é? Que é que aconteceu que eu não… — Peço desculpa, minha senhora — o chefe de mesa falou suavemente —, está ali uma pessoa que quer falar consigo. Diz que é sua amiga. Sua rafiki ya zamani. Camilla virou-se, incapaz de controlar a apreensão que lhe estrangulava a garganta. Não teve a mais leve dúvida de que era Hannah. Não tivera tempo para reflectir demoradamente sobre esta situação, para procurar as palavras certas. Olhou em volta à procura de Edward. Ele estava um pouco afastado e a sua expressão desagradou-lhe, a forma como exprimia a sua curiosidade por meio de um ligeiro erguer das sobrancelhas. Não devia ter vindo com ele. Era uma viagem pessoal ao passado, uma tristeza corrosiva que só a ela pertencia, e ele não tinha lugar ali enquanto ela não racionalizasse a situação. Hannah tinha-se acercado da mesa. Completamente imóvel, a sua expressão era inescrutável ao contemplar a sua amiga de infância com um olhar calmo e o queixo ligeiramente inclinado. Depois, estendeu as duas mãos para Camilla. Por um momento, o gesto pareceu ficar suspenso no ar entre elas antes de darem os primeiros passos através da paisagem fustigada de um passado comum.
CAPÍTULO 1
Buffalo Springs, Junho de 1966 o cacarejar para lá da vedação do recinto que a enervava, trazendo consigo a plena força do E rapesadelo. Na periferia do sono, Sarah conseguia ouvir o riso maníaco da hiena, a batida do seu chamamento. O sonho invadia o seu espírito e mais uma vez encontrava-se na crista. Via o guerreiro com o seu toucado emplumado, preparado e imóvel, com o braço erguido, a ponta da lança cintilando sob o luar frio. E depois a hiena, agachada no afloramento rochoso sobre ela. De repente, começava a cair. A cair pela vertente do monte, com o som da derrocada das pedras atrás de si, e a ouvir gritos. Abriu a boca para gritar de medo e dor mas não saiu qualquer som e, nesse momento, despertou, sentando-se muito direita na cama. Soou uma restolhada furtiva no telhado de palhiço e, à sua volta, a negrura da noite asfixiava-a. As suas mãos tremeram ao riscar um fósforo para acender o candeeiro a petróleo, mantendo a chama baixa, para o caso de Dan ou Allie ainda estarem acordados e repararem na luz. Sarah não queria responder se batessem à porta nem ouvir a bondade e a preocupação nas suas vozes. Sentou-se na beira da cama, tentando recuperar o domínio dos seus membros trémulos, esforçando-se por respirar profunda e longamente para expulsar o horror do espírito. As imagens desapareceriam gradualmente, tinha-lhe dito o Dr. Markham. O pai dizia-lhe a mesma coisa durante as suas conversas telefónicas. Mas tinham passado vários meses e os sonhos persistiam, sempre vívidos e aterradores. Tinha-se recusado a tomar comprimidos para dormir e tranquilizantes, tinha rejeitado as insistências dos pais para regressar à Irlanda, onde se poderia distanciar da dor. Por fim, Raphael e Betty Mackay tinham viajado até Buffalo Springs, chegando de surpresa ao acampamento de investigação onde a filha vivia e trabalhava. Era um complexo modesto, semelhante a uma manyatta, com uma vedação de espinheiros em redor de cabanas redondas onde residiam e faziam as refeições. Os Briggs tinham instalado o escritório na construção maior. A sala principal estava protegida da chuva e do calor por um telhado de palhiço entrançado e as grandes janelas dispunham de portadas que estavam quase sempre abertas, para deixar entrar qualquer ponta de brisa no espaço. A mobília era velha e estava escanada, mas Allie tinha coberto as cadeiras com kangas coloridos para esconder os estofos em mau estado. A mesa de jantar interior funcionava como secretária e uma das extremidades estava coberta de pilhas de apontamentos na sua caligrafia perfeita. A parede do fundo servia de quadro de informações gigante em que Dan tinha afixado uma série de mapas, indicando os números e movimento das manadas de elefantes que estavam a estudar. Actualizava-os diariamente, movendo os pionés coloridos que designavam o tamanho, a idade e o sexo dos membros de cada família. Todas as noites, antes do jantar, ele dactilografava as observações do dia numa máquina de escrever antiga que emitia um som metálico agudo sempre que puxava o carreto atrás. Grande parte do chão estava ocupado com caixotes de documentação de referência e pilhas de livros. O quarto
deles ficava num dos lados da sala de estar e era o telhado de palhiço baixo que os protegia do calor e da chuva. Tinham atribuído a Sarah a sua própria cabana redonda que continha uma cama de madeira protegida por um mosquiteiro, uma secretária e uma cadeira toscas e um armário com algum espaço e prateleiras para roupa. Do outro lado do complexo, havia uma construção de adobe e caniço que albergava a cozinha e os celeiros e onde se situavam os alojamentos do pessoal. Dois simples cubículos continham os chuveiros, com grandes baldes de lona suspensos em ramos altos, as correntes dependuradas prontas a largar água quente, perfumada a madeira, para lavar o pó, a areia e o suor, transmitindo sempre a Sarah uma sensação de renascimento. As tendas das latrinas estavam discretamente localizadas num dos lados das cabanas de dormir. Havia uma segunda cabana redonda para hóspedes ocasionais e Allie tinha plantado algumas flores e arbustos resistentes à entrada das modestas construções, acrescentando algum colorido ao ambiente poeirento. A cerca de trezentos metros, passava o rio Uaso Nyiro, por vezes azul e prateado, mas quase sempre lamacento e túrgido no calor seco. À noite, Sarah ouvia o som dos hipopótamos a resfolegar e a chafurdar nas horas de frescura nocturna. Desde o dia da sua chegada que se afeiçoara à sua humilde morada e o seu trabalho de pesquisa com Dan e Allie Briggs era a realização de um sonho de criança. Depois da tragédia, regressara ao acampamento, acossada pelo desgosto e pela dor, mas certa de que a sua única esperança de preservar a sanidade mental era atirar-se ao trabalho. Estava sentada à sombra de uma árvore, a ler os apontamentos das observações desse dia, quando uma nuvem de poeira anunciou a chegada de um carro. Era o fim da tarde e uma leve brisa agitou-lhe as folhas, espalhando algumas pelo solo empoeirado. Baixou-se para apanhá-las, ouvindo vagamente vozes que lhe eram estranhamente familiares. Nesse momento, o portão de madeira abriu com um rangido e ela deu por si a olhar espantada para os pais. Nessa primeira noite, sentados em cadeiras de campanha à volta de uma fogueira, tinha-lhes relatado toda a história. Sentia-se grata pelo conforto da sua presença embora, no fundo, não houvesse nada que pudessem dizer para atenuar o seu sofrimento. Só passara um ano desde que os problemas de saúde de Raphael o haviam obrigado a abandonar o Quénia e ele estava absolutamente exultante por estar de regresso ao país. Mas Betty sentia-se ansiosa com o risco de ele contrair novamente malária, uma ocorrência que todos sabiam que seria fatal. Era claro para Sarah que tinham feito a viagem com a finalidade expressa de convencê-la a voltar para a Irlanda. Ficaram alojados no acampamento durante uma semana, saindo todos os dias no Land Rover e inteirando-se do trabalho de Sarah, que seguia o seu grupo de elefantes. Dava-lhe prazer que eles a vissem em plena actividade, que soubessem que estava em segurança e era bem tratada, que aquele era o melhor lugar onde podia estar naquele momento. Mas, na véspera da sua partida, apercebeuse de que não conseguira convencê-los da sua certeza. Betty suplicou-lhe que regressasse à Irlanda, que passasse algum tempo na casa da família em Sligo, e Raphael adoptou o seu estilo suave de persuasão. — Vamos agora passar dez dias em Mombaça — disse ele. — Tencionamos visitar velhos amigos, dar passeios pela praia e tomar banho no mar antes de voltarmos para Sligo. E gostávamos que voltasses connosco quando partirmos para a Irlanda. Vem passar algum tempo a casa. Sarah sacudiu negativamente a cabeça. — Não posso sair daqui agora — disse ela. — Não é a altura certa, papá.
— A vida lá é sossegada — disse ele. — É um bom lugar para meditar. Um lugar de cura, com o som do mar, o areal e os campos e colinas verdejantes em volta. E tens a nossa companhia para te ajudar a superar os maus momentos, sobretudo a do Tim. Sempre tiveste uma relação próxima com o teu irmão. Todavia, depois do primeiro relato do horror, os pesadelos de Sarah tinham redobrado e ela já não queria falar sobre ele. Sabia que, na Irlanda, seria incapaz de suportar a permanente compaixão, a simpatia silenciosa da família. Tão-pouco seria capaz de aguentar as perguntas, a perplexidade condoída nos rostos dos familiares e dos amigos. Na manhã da sua partida para a costa, Raphael e Betty aceitaram finalmente que ela não os acompanharia para Sligo. Dan e Allie tinham apoiado a sua decisão, ficando até tarde na companhia dos Mackay, procurando tranquilizálos e prometendo olhar pela filha e mandá-la para casa se achassem que ela estava a ter dificuldade em se refazer. Ao despedirem-se, Sarah sentiu-se dividida entre o desejo de os ter junto de si e a necessidade de se refugiar no seu próprio mundo. Estava convicta de que a imersão total no trabalho seria o melhor processo de cura, de preencher o vazio sem fundo da privação. Observara com lágrimas nos olhos a pequena avioneta a desaparecer no azul gritante da tarde e, em seguida, regressou ao acampamento. Conduzindo pelo mato no velho Land Rover, observando o voo relampejante e circular de uma águia no céu ensolarado, seguindo as manadas de animais selvagens pela savana árida e crestada, sabia que era assim, com um objectivo definido, que tinha de enfrentar as mudanças na sua vida. Mas as noites continuavam à espera, para enredá-la nas suas malhas. A cabana, outrora acolhedora, tornara-se um lugar de sombras ameaçadoras que a enchia de terror sempre que fechava a porta ao fim de mais um dia. Já sozinha, na luz tremeluzente da candeia, Sarah ouviu de novo o grito da hiena e tiritou apesar do calor do ar nocturno. Não adiantava tentar adormecer. Enfiou os pés nas sandálias e levantou o mosquiteiro. A sua mão não estava completamente calma quando pegou na candeia e se dirigiu à confusão de papéis na secretária. Uma pasta com as suas fotografias mais recentes estava em cima do monte e retirou as fotos uma a uma para olhar para os elefantes, esperando receber força da sua sabedoria milenar. Considerava o seu trabalho profundamente gratificante, encarando-o mais como uma vocação e saboreando cada nova experiência, enquanto registava nos seus cadernos e com a sua máquina fotográfica o comportamento das mastodônticas criaturas. E não podia ter encontrado melhores patrões. Os Briggs tinham-na admitido como uma principiante sem maturidade, uma licenciada recém-formada sem qualquer experiência para além de uma mesa de dissecação no laboratório da universidade em Dublin. Mas tinham decidido dar-lhe uma oportunidade porque ela passara a sua infância no Quénia, já falava fluentemente suaíli e era uma fotógrafa excepcional. Pagavam-lhe muito pouco, mas davam-lhe alojamento e alimentação e deixavam-na usar o velho Land Rover e quantidades ilimitadas de película. Como passava quase todo o seu tempo na área de Buffalo Springs e da adjacente Reserva Natural de Samburu, Sarah não tinha grandes necessidades de dinheiro e o contrato satisfazia-a totalmente. Durante os últimos oito meses, Dan e Allie tinham-lhe ensinado a ciência de observar os seus fascinantes objectos de estudo, mostrando-lhe como anotar as suas observações com disciplina científica e ajudando-a a conceber um sistema de catalogação das imagens. Com Erope, o seu pisteiro samburu e um bom amigo, aprendera a seguir as manadas sem as perturbar e a prever a direcção em que poderiam deslocar-se a seguir, em busca de alimento e água. Gradualmente,
começara a compreender os seus movimentos, a respeitar as suas intenções e a admirar a sua ordem familiar e estruturas sociais. A equipa trabalhava bem em conjunto e Sarah sentia-se orgulhosa por o seu talento fotográfico se ter tornado uma nova e valiosa componente do projecto. Sentou-se à secretária e começou a ordenar os apontamentos do dia anterior. Os seus olhos ardiam de cansaço e, pestanejando, tentou libertar-se dessa sensação áspera e ardente, determinada em concentrar-se nos papéis para obliterar o pesadelo. Mas, ao fim de meia hora, abandonou qualquer tentativa para se concentrar e voltou para a cama, diminuindo a chama da candeia e deitando-se rigidamente, de olhos abertos, debaixo do mosquiteiro. O despertador indicava que faltavam três horas para que a alvorada a salvasse. Desejou poder rezar mas a sua fé de infância num Deus misericordioso morrera nessa terrível noite e agora só conseguia agarrar-se ao lençol com dedos ansiosos e contar os minutos até que uma forma desmembrada de sono a invadisse.
Sarah foi ter com Dan e Allie à mesa do pequeno-almoço, sob a acácia, franzindo os olhos perante a luz intensa e puxando a cadeira para um círculo de sombra. Estava demasiado cansada para comer mais do que a fatia de papaia no prato e desfez uma torrada em pedaços que deu a comer aos ruidosos estorninhos que se pavoneavam aos seus pés, à espera de migalhas e digladiando-se pelas sobras. — Precisamos de discutir a nossa apresentação em Nairobi na próxima semana. — Allie tinha notado as olheiras de Sarah e os movimentos sacudidos do seu corpo tenso. — Tudo indica que vai ser uma ocasião extremamente importante. Vamos apresentar o orçamento para o próximo ano, conforme previsto, e o Dan está convencido de que a Federação Africana para a Vida Selvagem nos vai atribuir o mesmo financiamento. Mas agora temos de alargar o estudo e estamos a precisar desesperadamente de um veículo novo. Um dia destes, a caranguejola que conduzes cai de podre, Sarah, e deixa-te num grande aperto. Ainda acabas a ter de voltar para o acampamento a pé pelo bundu, com o Erope, a cruzarem-se com algumas criaturas muito hostis. — Pediram mais dinheiro, não pediram? — perguntou Sarah. — Pedimos, embora a Federação não se tenha mostrado muito encorajadora — disse Allie apesar de os seus olhos brilharem de excitação. — O Dan recebeu outra carta do Smithsonian, que vai mandar um representante à reunião. Se gostarem do que virem e ouvirem, talvez o homem dê cá um salto mais tarde. — Deram a entender que estão finalmente dispostos a atribuir-nos um financiamento — disse Dan. — Se o Dan conseguisse publicar um ensaio, teria o reconhecimento que merece — disse Allie, olhando para o marido com orgulho. — E não é tudo. Vão lá estar jornalistas, incluindo uma pessoa interessada em escrever um artigo de fundo sobre nós para um jornal de Londres. E, além disso, vão ver as tuas fotografias, Sarah. Seria fantástico se quisessem usar algumas delas num artigo. — Eis o nosso plano — disse Dan. — Vamos apresentar o nosso relatório anual, como sempre. Mas a Federação convidou alguns jornalistas de Nairobi para a segunda parte da reunião. Tipos que escrevem artigos para a revista Time e para um dos jornais ingleses. Assim, depois das discussões sobre o orçamento, queremos mostrar alguns dos teus diapositivos. Imagens que hão-de suscitar o interesse da comunicação social e não se destinam apenas a um bando de velhos cientistas e membros conservadores de comissões.
— Aliás, gostávamos que fizesses a apresentação — disse Allie. — Tens o dom da palavra na língua nativa, Sarah. Não, é muito mais do que isso. Tens um pendor poético que inflama a imaginação das pessoas, torna as coisas vivas. Já te vi a falar com turistas e outros visitantes que aqui vêm. E, como vamos usar as tuas fotos, deves ser tu a falar sobre elas. — Nem mais — disse Dan. — Eu e a Allie… somos competentes no nosso trabalho, acompanhando os nossos elefantes, tomando notas sobre o que observamos e tudo isso. Mas, quando se trata de falar em público, não impressionamos ninguém. Achamos, por isso, que podes preparar uma apresentação que dê uma ideia geral do que se passa aqui. Qualquer coisa mais apelativa que os nossos factos e números habituais. — Não sei, acho que não. Nunca fiz nada assim. — Sarah sentia-se alarmada. — E no regresso de Nairobi podes parar em Langani e passar lá alguns dias — disse Allie. — Tirar um tempo de folga. Ver como a Hannah está, quando falta tão pouco para o bebé nascer. Que dizes? Sarah baixou os olhos para o prato, concentrando-se furiosamente no acto de barrar com compota uma torrada que não conseguiria comer. Não queria que eles reconhecessem o pânico que começara a secar-lhe a boca. Estavam a oferecer-lhe uma preciosa oportunidade de mostrar as suas fotografias a pessoas influentes e a confiança e simpatia deles comoviam-na. Tinha uma profunda dívida de gratidão para com Dan e Allie. Desde o início que tinham sido patrões ideais e agora haviam-se tornado grandes amigos. Mas, física e mentalmente, ainda se sentia perigosamente perto de um esgotamento. Cada frase que proferia exigia esforço, mesmo em Buffalo Springs, onde estava com pessoas que compreendiam. Não se considerava pronta para enfrentar um grupo de estranhos nem para fazer discursos. De certeza que alguém na assistência saberia quem ela era e, se abordassem a questão dos acontecimentos fazenda de Langani, sabia que não seria capaz de se controlar. Além do mais, não se sentia preparada para regressar a Langani. Tinham passado mais de três meses desde o casamento e não tinha sido capaz de voltar, apesar de vários convites. Ultimamente, Hannah tinha deixado de convidá-la e a possibilidade de uma visita, mesmo de um fim-de-semana, tinha sido omitida das cartas e das conversas pelo radiotelefone. Sarah sentia-se culpada. Sabia como seria importante para a sua maior amiga que desse um salto à fazenda, mas não tinha coragem para o fazer. Por outro lado, a apresentação em Nairobi era um assunto profissional, absolutamente crucial para Dan e para Allie. O financiamento do próximo ano dependia, em larga medida, do seu sucesso e Sarah queria dar o seu contributo. Mas, se se fosse abaixo a meio da apresentação e pusesse em causa os patrocínios, nunca mais seria capaz de se perdoar a si mesma. — Sabem como estou profundamente grata aos dois. — Desviou os olhos, tentando esconder as lágrimas que se formavam. — Têm sido muito generosos e a vossa confiança nos meus poderes de comunicação sensibiliza-me imenso. Mas não posso. Ainda não. Podia deitar tudo a perder se me fosse abaixo ou se fizesse qualquer coisa estúpida. — Compreendo que seria penoso a princípio. — Dan deu-lhe uma palmadinha no braço. — Mas, mais cedo ou mais tarde, tens de abandonar a tua concha, miúda. Tem sido uma benesse poderes refugiar-te no mato e no estudo dos elefantes. Foi disso que precisaste nestes últimos meses. Mas não é possível continuares eternamente isolada aqui. Se fosse, era o que eu próprio faria por razões diferentes. — Eu sei. E dentro em breve vou tentar tirar uns dias e…
— Vais estar entre pessoas que estão a trabalhar connosco para proteger a vida selvagem — disse Dan. — E as tuas excelentes fotografias podem significar uma batelada de dinheiro para o projecto. Eu e a Allie estamos certos disso. Não rejeites a ideia para já. Pensa nela durante um ou dois dias. Estou convencido de que és muito mais forte do que imaginas. Allie não disse nada, mas Sarah compreendeu o apelo nos seus olhos. Só a ideia de se encontrar no bulício febril de Nairobi lhe causava náuseas. Não querendo que os amigos notassem a intensidade do seu medo, balbuciou que ia reflectir e levantou-se da mesa com a desculpa de ir buscar o equipamento para o trabalho dessa manhã. Dentro da cabana, recordou os primeiros dias depois do seu regresso de Langani. Allie fizera-lhe companhia até altas horas da noite, colocando a candeia onde ela derramava mais luz, não fazendo comentários quando Sarah se sobressaltava ao mais pequeno som e seguia as sombras movediças no quarto com olhos assustados. O apoio de Allie, com o seu realismo e compreensão, permitira que Sarah se fosse gradualmente adaptando e lidasse com os pesadelos sem precisar de falar das coisas que desejava esquecer. Allie e Dan tinham-lhe dado tempo para chorar, não lhe tinham feito exigências desde que ela retomara o trabalho. Agora, estavam a pedir-lhe que lhes prestasse um serviço e ela teria de recusar. Estava absolutamente fora de questão e, de qualquer modo, desenvencilhar-se-iam perfeitamente sozinhos. Afinal de contas, como se tinham arranjado antes dela chegar? Sentou-se à secretária e começou a passar revista aos diapositivos e às fotografias, seleccionando as melhores imagens para ilustrar cada aspecto do programa de trabalho actual. Prepararia um guião e Dan poderia segui-lo enquanto mostrava os diapositivos. Teria de bastar. Mas compreendia que, sem um aumento do financiamento dos Briggs, ela própria poderia perder o lugar e ter de abandonar Buffalo Springs. Permitir que o projecto de investigação fracassasse, quando era tão vital à sobrevivência dos elefantes que se habituara a amar e a admirar, era uma possibilidade demasiado horrível de contemplar. Durante uma hora, debateu-se com as frases, examinando-as mentalmente, tentando reviver o seu próprio deleite assombrado, à medida que os indivíduos da manada iam emergindo. Tinha aprendido a reconhecer cada grupo familiar, observando diariamente os colossais animais enquanto se encaminhavam uns atrás dos outros para o rio, numa passada silenciosa, usando as trombas para beber e aspergir a água, escavando com as presas na areia, conversando uns com os outros por bramidos ou barrindo mensagens de aviso ou alarme. Tinha todos os seus apontamentos de trabalho, registados segundo os termos científicos precisos que Allie a ensinara a usar. Mas estes não transmitiam a excitação que sentira à medida que os seus conhecimentos aumentavam e começara a compreender plenamente a importância de proteger estes magníficos animais. Frustrada, largou finalmente a caneta. A ideia ocorreu-lhe subitamente e ela reprimiu-a de imediato. Sabia onde encontrar as palavras certas mas a sua fonte era demasiado dolorosa para a considerar. No entanto, involuntariamente, tirou as cartas da gaveta da secretária. Tinha-as escrito a Piet quando chegara a Buffalo Springs e o mundo era um lugar de felicidade e possibilidades ilimitadas. Mas nunca as enviara porque, nessa altura, não estava segura do amor dele. Tinha-as guardado, esperando poder um dia ler-lhas em voz alta. Quando ele a pediu em casamento, tinha decidido criar um livro com as cartas e com os seus desenhos e fotografias para lhe oferecer como prenda de casamento. Teve dificuldade em ler as primeiras frases mas, à medida que ia virando a custo as páginas,
começou a compreender o que Allie queria dizer. Quando descrevia os elefantes, discorria sobre a sua vida e sobre o seu habitat, evidenciava um verdadeiro talento para dar vida a uma série de histórias e incidentes nas experiências quotidianas dos animais. Derramou lágrimas sobre as páginas escritas, turvando o poder das palavras que registara para o homem que tinha amado. Que ainda amava. E sabia que nem Dan nem Allie as podiam ler por ela, sabia que teria de encontrar forças para se erguer e proferi-las. Para dizê-las em voz alta, pelos elefantes, pelos amigos e pela memória de um tempo em que a imagem de Piet era uma esperança brilhante e risonha na sua vida. Teria de se armar de coragem. Depois de dobrar e guardar as cartas, deitou-se na sua estreita cama de campanha, embora o dia mal tivesse começado, e virou a cabeça para a parede. Abafando o som do choro, enroscou-se numa bola, cerrando os punhos até finalmente adormecer.
Uma pancada na porta despertou-a. A sensação instantânea de privação que acompanhava sempre o momento de acordar saltou para o primeiro plano da sua consciência e a luz do meio-dia tingiu-se com as sombras do seu espírito. — O almoço está pronto, memsahib Sarah. — Ahmed, o cozinheiro do acampamento, trazia um tabuleiro com uma cerveja Tusker fresca e um copo alto. Olhou-a atentamente com um ar preocupado. — Preparei a sua comida favorita. Há-de dar-lhe muito nguvu para o resto do dia. E o bwana Dan mandou-lhe uma Tusker. Ela ocupou o seu lugar à mesa que tinha sido colocada à sombra mosqueada de uma árvore. Até os pássaros estavam em silêncio no calor do princípio da tarde e não soprava ponta de brisa no ar opressivo. — Obrigada pela cerveja, Dan — disse ela. — Esta manhã, fui-me abaixo. Peço desculpa. — Ora, ora, miúda — disse Dan. — Temos de olhar por ti. Manter-te em forma para bem de todos. Acaba lá essa comida que tens no prato e vai ver se encontras elefantes. Hoje acompanho-te eu. Ela sorriu do seu tom áspero, mas ciente da protecção implícita que ele oferecia, apesar das valorosas tentativas para disfarçá-la. — Ouve, há uma coisa que quero dizer. — Falou rapidamente para não cair na tentação de voltar atrás na sua decisão. — Têm os dois razão. Mais tarde ou mais cedo, terei de enfrentar o mundo e este momento é tão bom como qualquer outro. Vou preparar uma apresentação para a próxima semana. E obrigada pela confiança que têm em mim. Vou tentar corresponder-lhe.
Sarah passou os dias que se seguiram a reduzir o número de retratos de elefantes e de fotografias da árida região norte, escolhendo as imagens mais dramáticas do relevo e da vegetação e pondo-as depois de lado, a favor de imagens mais acutilantes. Quando a escuridão envolveu o mato circundante, pôs a trabalhar o projector e, com Dan e Allie, estudou e separou os melhores diapositivos, rindo-se ao recordar veículos atolados na areia, escapadelas apertadas de animais furibundos, câmaras e cadernos largados à pressa quando um elefante se precipitara contra o Land Rover, ou momentos em que a roupa e os apontamentos ficavam encharcados sob um aguaceiro torrencial através do tejadilho aberto. Era importante conseguir um equilíbrio. Tratava-se de um estudo científico e não de uma
promoção turística. Mas Sarah pretendia que a assistência sentisse o poder e a majestade dos elefantes e do seu habitat, que mergulhasse na complexa organização da reserva, que compreendesse as razões do estudo e a forma como o projecto de Dan podia completar o puzzle da vida selvagem da região e da sua estrutura. Existia no mundo selvagem representado por ela uma harmonia natural mas também crueldade. As criaturas mais fracas eram abandonadas pelas manadas e morriam; a seca trazia consigo a fome. Os elefantes e os rinocerontes eram dizimados por caçadores furtivos com camiões e armas. Não havia lugar no acampamento dos Briggs para uma assistente de investigação que usasse o conhecimento para ocultar a realidade. Lembrava-se do firme desafio de Dan quando ela presenciara a chacina de vários elefantes por bandidos shifta. Ao ver um elefante caído, abandonado à morte depois de lhe terem sido cortadas as presas da cabeça majestosa, ela tinha chorado. Nesse dia, Dan tinha-lhe perguntado se era suficientemente forte para viver e trabalhar em África. Aprenderia a munir-se dessa força, tinha-lhe respondido do fundo do coração, mal sabendo que seria em breve levada aos limites da resistência, à beira da loucura. E hoje continuava a desejar manter essa determinação, perseverar, contribuir com a sua parte para um mundo que amava desde criança. Na véspera da partida para Nairobi, Allie perguntou-lhe como tencionava ir vestida. — Vestida? Nem sequer pensei nisso. — Agora que a questão fora levantada, Sarah apercebeu-se de que tinha passado os últimos seis meses vestida com calças de caqui deslavadas e camisas de safári, com um chapéu de lona descido sobre a cabeça para proteger os olhos do sol e impedir que o nariz esfolasse. — Aposto que tens roupa bonita que a Camilla te deu — disse Allie. — É nestas ocasiões que dá jeito ter uma amiga que é modelo. Decidiram-se por uma saia de linho com um cinto de couro entrançado e uma blusa de seda creme que realçava a pele bronzeada de Sarah. — Podes completar com missangas samburu — disse Allie. — As que o Erope mandou fazer para ti. E precisas de arranjar o cabelo. Tem uma bonita cor quente, mas é preciso dar-lhe forma. Às tantas podia aparar-to. Anda lá, já percebi que não confias nos meus talentos de cabeleireira, mas acredita que te faço um penteado impecável. Senta-te aí debaixo da árvore, que eu vou buscar a tesoura. Já me viste cortar o cabelo ao Dan e não lhe fica muito mal. O resultado foi surpreendentemente profissional e Sarah ficou espantada quando se olhou no pequeno espelho da cabana. Era raro preocupar-se com a aparência. A sua cara estava mais magra do que há seis meses mas estava bronzeada, com as faces sardentas, e os olhos verdes brilhavam. Tinha lavado o cabelo com champô e tinha-o escovado vigorosamente enquanto ainda estava molhado, de modo que lhe emoldurava as feições numa massa em que predominavam madeixas claras do sol. Sarah sorriu. Parecia incrível que a sua figura fosse tão vibrante quando continuava a sentir um vazio gelado no fundo do estômago. Uma sensação de privação a que não podia permitir entregar-se, sob pena de desbaratar a sua determinação em funcionar normalmente.
Sentia-se nervosa quando chegou à sede da Federação Africana para a Vida Selvagem. Dan e Allie estavam na sala de reuniões a testar o microfone, a passar uma bandeja de diapositivos no projector e a ajustar o ecrã. Uma mesa comprida com cadeiras ocupava o centro da sala. Trinta cadeiras. Cada lugar tinha uma pasta contendo o relatório do projecto, uma demonstração financeira
das despesas até à data e uma estimativa do orçamento para o ano seguinte. Tinham dito a Dan que contasse com a presença de alguém da National Geographic e ele estava à espera do director do Departamento de Investigação do Smithsonian Institute. Eram estes os homens que tomariam a decisão a respeito dos financiamentos que permitiriam que a pesquisa dos Briggs prosseguisse e, se tudo corresse bem, se alargasse. Sarah nunca tinha falado ao microfone perante uma audiência. Sentia a boca desconfortavelmente seca e olhou em volta, à procura de alguma coisa para beber. Numa mesa de apoio estavam tabuleiros com refrescos e o aroma do café era reconfortante. Serviuse de uma chávena e, minutos depois, foi ansiosamente à procura de uma casa de banho. — Oh, meu Deus — murmurou ela a Allie —, não me apercebi de que isto me ia dar cabo dos nervos. Espero não os deixar ficar mal. Ouviram-me ensaiar, ainda vão a tempo de me substituir. — Não digas parvoíces — disse Allie. — Vai correr tudo bem. Fala com o coração. Defende a causa dos elefantes. Isto não tem nada a ver contigo, comigo ou com o Dan. Tem a ver com eles. Não te esqueças disso e vais ver como vais brilhar. E não tomes mais café, senão não paras de correr para a casa de banho. Se for absolutamente necessário, bebe pequenos goles de água. Fizeram-se as apresentações. As pessoas estavam reunidas em redor da mesa, a fumar cigarros ou cachimbos e a falar sobre conservação e política, corrupção e ganância e fundos internacionais de ajuda humanitária. Sarah começou a sentir-se mais confiante ao conversar com os patrocinadores de Dan e Allie, que se mostravam declaradamente optimistas e impressionados com os resultados obtidos durante o ano. O homem do Smithsonian Institute era mais formal e Dan chamou-o à parte para envolvê-lo numa discussão mais circunstanciada. Allie concentrou-se num homem de aspecto enxovalhado que fumava cigarro atrás de cigarro e tinha os dedos amarelos. Era do Times de Londres e Sarah falou com ele durante bastante tempo, esperando dizer alguma coisa que o convencesse a escrever um artigo de fundo sobre os elefantes. Sobressaltou-se quando Dan subitamente pediu aos presentes que se sentassem e se lançou na sua apresentação. — No ano passado, contratámos mais uma investigadora para nos ajudar no nosso trabalho — disse ele. — Quero apresentar-vos Sarah Mackay. Tem sido um elemento extremamente valioso da equipa e vai mostrar-vos algumas das suas fotografias que ilustram o comportamento das manadas que estamos a estudar. Através destas observações, poderão constatar o delicado e essencial equilíbrio que temos de manter entre os elefantes e o seu habitat. E compreenderão o papel fundamental do povo samburu, que partilha as mesmas terras e de quem deve depender a sua protecção futura. Sarah colocou-se ao lado de Dan, com as palmas das mãos suadas e a boca novamente seca. Contudo, quando os estores foram descidos e as suas fotografias surgiram no grande ecrã, percebeu que o poder das imagens conquistara a assistência. Havia diapositivos do rio, umas vezes castanho, pachorrento e indolente, outras vezes fluindo velozmente sobre pedregulhos brilhantes, debaixo de um céu chuvoso. Mostrou retratos de membros da tribo samburu, com as suas shukas escarlates, o seu gado escanzelado e corcunda e rebanhos de cabras famintas cujas imagens refulgiam através do omnipresente halo de poeira. Captara a fragilidade das ervas penugentas e das flores silvestres banhadas pela luz dourada da tarde e silhuetas de embondeiros com troncos gigantescos e pernadas araneiformes, contrastando com um vazio azul, desprovido de nuvens. Mas, mais do que estas, havia as fotografias dos próprios elefantes. As suas colossais cabeças enchiam o ecrã, sábias e silenciosas. A sua escala inspirava poder, com as suas enormes patas, o
volume da pele espessa e enrugada, as enormes orelhas a badanar e a tromba erguida de um macho ao ataque. Mas também captara a sua vulnerabilidade nas imagens de uma cria encolhida e protegida entre as pernas da mãe e numa série de fotografias de uma família que revelavam a delicadeza de uma carícia, as chapinadelas alegres num banho de lama, a pequena jóia de um olho implantado numa cabeça maciça, o brilho da água apanhada numa pestana, uma pequena boca esboçando um sorriso. Finalmente, Sarah descreveu a extraordinária cena que filmara quando o grupo que estava a estudar fora dizimado por caçadores furtivos. Depois da emboscada, quando os bandidos arrancaram o marfim aos animais mortos, ela e Erope tinham ficado isolados do jipe graças aos imprevisíveis movimentos da manada em pânico. Forçados a esconder-se na espessa vegetação rasteira, tinham permanecido ali durante as horas de escuridão dessa noite, observando assombrados os animais sobreviventes a emergir como fantasmas das árvores circundantes, usando as patas e as trombas para construir uma sepultura com pedras e ramos para cobrir os companheiros caídos e mantendo uma vigília sobre os túmulos que tinham erigido até o sol nascente os dispersar, em busca de sombra e água. A atenção extasiada e as exclamações de espanto da assistência não deixaram a Sarah dúvidas sobre o impacto das fotografias tiradas nessa noite fatídica. Quando a apresentação chegou ao fim, seguiu-se um breve e absoluto silêncio e uma firme ovação. O seu trabalho era estimulante e inovador, disse mais tarde o director do Smithsonian Institute, sorrindo e apertando-lhe a mão. Estava impressionado com os Briggs e com os seus sucessos até à data e o contributo dela tivera um impacto enorme. Tinha decidido visitar o acampamento e, dentro de dois dias, viajaria com Dan e Allie. — Posso dar-lhe uma palavrinha, Miss Mackay? Sarah virou-se, deparando-se com um indiano alto que assistira a tudo. Olhava para ela com interesse, com um caderno e um lápis na mão. — Chamo-me Rabindrah Singh. Trabalho como freelancer para vários jornais e revistas da África Oriental — disse ele. — E escrevo esporadicamente para a Newsweek e para o Daily Telegraph. Felicito-a pela sua brilhante apresentação. Os Briggs têm sorte em ter uma colega tão talentosa. A sua voz era culta, sugerindo uma educação britânica. Pairava à sua volta uma aura vagamente perfumada, que Sarah achou estranha num homem, mas o seu rosto denotava inteligência. Não descolou os olhos dela enquanto a questionava sobre o trabalho e, ao fim de alguns momentos, ela começou a sentir-se inibida sob a intensidade do seu olhar. Era claro que estava perfeitamente a par do projecto dos Briggs e da dificuldade de conciliar a conservação da vida selvagem com as necessidades humanas, numa área onde a aridez do solo e os níveis baixos de precipitação eram causa frequente de choques entre as tribos nómadas e os animais selvagens que partilhavam o seu território. — Interesso-me pelo problema da terra — declarou ele. — É uma das questões-chave que o governo queniano tem de resolver e até agora os seus esforços têm sido pouco eficazes. Sei que a caça ilegal nessa região ainda acontece. Somalis armados do outro lado da fronteira e autoridades locais que fazem vista grossa e estendem as mãos. — Infelizmente, sim — disse ela. — Mas há samburus que começam a ocupar cargos na gestão da vida selvagem e no governo local, pessoas determinadas em melhorar a situação. Como o meu pisteiro, o Erope. Ele acredita que…
— Então como é que, estando sozinha, consegue viver num território tão difícil? — Abruptamente passou a uma abordagem mais pessoal. — Que género de motivação leva uma jovem a ignorar a questão da segurança pessoal? Por vezes deve ser perigoso. E solitário. — Vivo num complexo com os Briggs e recebemos muitos visitantes. — Sentiu-se irritada consigo própria por parecer defensiva. — Não tenho tempo para me sentir só. E é preciso ir mais para norte ou para leste para entrar em conflito com os bandidos. — Seja como for, para eles é diferente porque são um casal — disse ele. — Mas, no seu caso, é uma mulher atraente e sozinha que vive no bundu semanas e meses a fio. Gostava, além dos elefantes, de escrever sobre si. Um toque pessoal no artigo garante mais interesse do público. Como é que enfrenta o isolamento, mantém o contacto com os amigos e a família e com o que se passa no resto do mundo? — Temos um rádio no acampamento, não estamos sem comunicações — respondeu ela. — Vem a Nairobi com frequência? Desforra-se dos dias passados no mato quando vem à cidade? Tem namorado aqui? Ou lá, talvez? Quais são os seus interesses quando não anda a seguir elefantes e a tirar fotografias esplêndidas? Sarah olhou em volta, à procura de um escape. Era exactamente isto que tinha receado e achava insensível da parte do indiano orientar a conversa naquele sentido. Demasiado insistente. Devia saber quem ela era. O seu nome já aparecera muitas vezes nos jornais. — Quando é que começou a trabalhar em Buffalo Springs? — continuou ele. — Com todas essas incursões de shifta, deve pôr ocasionalmente a sua vida em perigo, já para não dizer todos os dias. Como o incidente da emboscada que acabou de nos mostrar. Não tem medo de ser cortada em pedaços numa noite escura? Uma expressão desolada assomara ao rosto de Sarah, que estendeu uma mão para se agarrar às costas de uma cadeira ao sentir as pernas ceder. Olhou para ele em silêncio, sem pinga de sangue. Quando finalmente respondeu, a sua voz soou distante embora estivesse tão próxima dele que sentia o seu hálito no espaço entre ambos. — O perigo não está confinado a nenhum lugar específico — disse ela. — É uma coisa aleatória que pode surpreender uma pessoa em qualquer lado. Não serão as ameaças de violência dos shifta que hão-de pôr em causa o projecto dos Briggs. Isso só torna o nosso trabalho mais necessário. Do outro lado da sala, Dan tinha-se apercebido da mudança na sua expressão. Correu para junto dela e acenou com a cabeça ao jornalista. — Peço imensa desculpa mas são horas de partirmos… os nossos financiadores marcaram um jantar. Espero que a apresentação lhe tenha agradado o suficiente para escrever sobre o nosso projecto. — Obrigada pelo seu interesse, Mr. Singh. — Sarah recompôs-se e apertou-lhe a mão. — A propósito, o dossier de imprensa contém informações sobre donativos, caso queira fazer uma contribuição pessoal. Tudo, por mais insignificante que seja, ajuda. Boa-noite. Dando meia-volta, afastou-se com Dan, consciente de que o jornalista ainda estava a observá-la quando entrou para o carro. No Norfolk Hotel, Allie chamou-a à parte. — Parabéns, menina! O Dan está deliciado com o sucesso da apresentação. Conseguiste conquistar os cientistas e os homens do dinheiro. Sarah sorriu, descomprimindo entre as pessoas, respondendo a perguntas sobre o seu trabalho e desfrutando da companhia de gente influente de organizações que sempre admirara. Sentia-se aliviada por ninguém se ter referido aos trágicos acontecimentos que haviam ensombrado o seu
passado. Ali, pelo menos, não era alvo da piedade muda que se habituara a temer. Pelo contrário, a conversa à mesa centrou-se nas questões da conservação, nos elefantes, nos vários processos de segui-los e identificá-los e nos problemas controversos da partilha do território por homens e animais. Mas, quando o café foi servido e os pedidos de porto e conhaque foram feitos, sentia-se esgotada. — Importas-te se me escapulir agora? — sussurrou ela a Allie, aliviada com a sua concordância discreta. Abandonou a mesa e dirigiu-se para o átrio. Num impulso repentino, tinha decidido cometer a loucura de reservar um quarto no Norfolk Hotel para essa noite. Há semanas que não gastava um tostão do salário e também sabia que Dan e Allie gostariam de passar algum tempo sozinhos, sem o fardo de a vigiar. No hotel, sentir-se-ia segura e talvez não tivesse tantas dificuldades em dormir. Ao levantar a chave do quarto na recepção, uma voz chamou-a e ela ficou consternada ao ver o jornalista indiano a caminhar ao seu encontro. Ele não participara no jantar com os financiadores e Sarah ficou intrigada, pensando como ele a teria descoberto. — Miss Mackay! Vim atrás de si porque lhe queria perguntar uma coisa. — Hesitou, aclarando a garganta. — Gostava de saber se tem algum portefólio que use para mostrar o seu trabalho. Se tem fotografias para vender. Refiro-me fora do âmbito do seu trabalho em Buffalo Springs. Tenho a certeza de que há revistas interessadas em publicá-las. Aliás, eu próprio sou capaz de usá-las para o artigo que vou escrever. Se estiver interessada e se não for incompatível com aquilo que faz para os Briggs. — Nunca pensei em vender as minhas fotografias — disse ela. — Só as uso para o meu trabalho de pesquisa. Mas se vai escrever alguma coisa sobre o nosso projecto, posso mandar-lhe alguns diapositivos ou imagens a preto e branco. — Posso ir buscá-las a Buffalo Springs — disse ele. — Estava a pensar em passar alguns dias em Samburu antes de viajar para norte para visitar o George Adamson. — Infelizmente, não vou lá estar tão cedo — disse ela. — Vou tirar um tempo de férias. Mas posso enviar-lhe as fotografias se me der um endereço. — Óptimo. — Ele entregou-lhe o seu cartão-de-visita. — Por acaso não vai estar por aqui amanhã? Talvez pudéssemos almoçar. Ou tomar uma bebida. Discutir algumas possibilidades. O único desejo de Sarah era escapar, refugiar-se no quarto do hotel. A noite tinha-lhe exigido um esforço tremendo e não se sentia capaz de enfrentar mais convívio social e mais perguntas. — Parto de manhã cedo — disse ela. — Vou para casa de uns amigos. Mas, de qualquer modo, obrigada. E fico a aguardar ansiosamente o seu artigo. — Ah. — Ele pensou se ela estaria a furtar-se por não aceitar convites de indianos. — Au revoir, então. Gostei muito de a conhecer. E mais uma vez parabéns pelas suas fotografias. — Obrigada. Boa-noite.
Sarah sabia que estava a ser brusca mas precisava de escapar. Apertou-lhe energicamente a mão e desapareceu. Tinha sobrevivido ao serão e, em parte, até tinha gostado. O seu portefólio estava pousado numa mesa e ela começou a folheá-lo, considerando que fotografias e diapositivos mandaria ao repórter indiano. Só esperava que ele não referisse a sua história pessoal no artigo, se o escrevesse. Com a imprensa, nunca se sabia.
O céu estava cinzento e o ar matinal fresco durante a viagem para norte. O Land Rover ciciava e tossia, subindo através do verde brilhante das plantações de café e das extensões de milho, hortaliças e bananas que eram as culturas de eleição da tribo quicuio. Sarah experimentava uma sensação alvoroçada no estômago, uma mistura pesada de tristeza e expectativa no coração enquanto atravessava as terras férteis e ricas. Na berma da estrada, as crianças acenavam, as mulheres percorriam caminhos íngremes e vermelhos entre as shambas, vergadas sob o peso de fardos de lenha amarrados às costas. O cume da grande montanha estava encoberto por uma faixa de nuvens e reinava uma atmosfera carregada e taciturna. À entrada da fazenda de Langani, parou e procurou serenar. Tinha falado com Hannah antes de partir de Nairobi e notara o entusiasmo na voz da amiga. — Não vais acreditar quando vires como estou gorda — tinha dito Hannah. — O Lars diz que vai ter de tirar as portas dos gonzos se eu alargar mais. Mas o Dr. Markham jura que não são gémeos. Ah, Sarah, não imaginas a felicidade que me dás ao vires finalmente para casa. Fico tão contente. Mas não era a sua casa. Langani jamais seria a sua casa, porque Piet não estava lá e a vida em comum que tinham planeado desaparecera, juntamente com a felicidade e o amor que lhe encheram o coração durante um breve e glorioso período da sua vida. Ele não estaria à sua espera nos degraus da casa, não lhe poria o braço em redor da cintura nem a levantaria no ar, rindo, beijando-a e arreliando-a, dizendo-lhe que a amava. Nunca mais voltaria a estar à espera dela. Sarah rodou a chave na ignição e transpôs o portão, percorrendo o caminho de acesso. O seu coração pulsava com força e sentia na boca o sabor da dor. Apeou-se do carro, debatendo-se para reprimir a onda de mágoa que ameaçava submergi-la. Foi o jardim de Lottie que a salvou. Lottie, que fora como uma mãe para ela, durante os anos de internato, e que estava agora exilada, a milhares de quilómetros do oásis de calma e ordem que criara no mato voraz. Quando Sarah virou, um feixe de luz rompeu do denso ventre das nuvens, conferindo ao relvado uma qualidade luminosa e aveludada. A visão dos canteiros de flores, as curvas gloriosamente coloridas que moldavam e bordejavam a antiga casa, reavivaram o amor que sentira por aquele lugar desde o primeiro dia em que o visitara em criança. Os cães apareceram no alpendre e correram para ela, a ladrar histericamente e a abanar as caudas, no momento em que Hannah desceu os degraus, de braços estendidos, o seu rosto largo aberto num sorriso. Abraçaram-se fortemente em silêncio, permanecendo assim muito tempo, antes de Sarah recuar um passo e pousar a mão na barriga dilatada da amiga. — Estás esplêndida. — Pesada. — Hannah soltou uma gargalhada. — Sinto-me pesada. O Lars está a sempre a insistir para eu descansar da parte da tarde, mas eu prefiro ir dar um passeio com os cães. Caso contrário, daqui a pouco já nem me conseguia mexer. Não me parece que nenhuma mulher tivesse filhos se isto durasse mais de nove meses. — Foi interrompida pela chegada de Lars, que subiu os degraus do alpendre, encostando uma espingarda à balaustrada. — Sarah. Que bom ter-te na nossa companhia! Não tiveste furos nem problemas na viagem? Ele pôs os braços à sua volta e ela abraçou-o com força. Era um bom homem, este grandalhão casado com Hannah. Um homem bom, generoso e encantador. — Não tive problemas nenhuns. — Olhou para ele com afeição e depois relanceou para a espingarda. Uma pequena fissura de alarme rasgou-se-lhe no espírito. — Está tudo bem por aqui?
Ele sorriu. — Foi para o jantar. Andei a caçar para o tacho. Não, está tudo calmo. Sem conflitos nem shauris. Excepto aqui a tua amiga, que se recusa a levar as coisas com calma. Pode ser que a convenças enquanto cá estás. — Tocou na trança de cabelo dourado de Hannah e depois baixou-se para a beijar na testa. — Tenho de tratar de umas coisas antes do almoço. Não demoro nada. — Vou levar-te ao teu quarto — disse Hannah. — Olha, aí está o Mwangi com o café. O velho criado cumprimentou Sarah com prazer, apertando-lhe as mãos nas suas e murmurando palavras de boas-vindas em quicuio. Depois, saiu para ir buscar a mala dela ao Land Rover, emitindo ruídos atarefados enquanto alisava a cama já imaculada e abria as cortinas para deixar entrar a luz do sol. Quando se foi embora, Hannah sentou-se numa cadeira ao lado da janela. — Trouxeste contigo o primeiro dia de sol de há vários dias para cá — disse ela. — Esteve nublado e sombrio a semana toda. Deprimente. Como é que correu a apresentação em Nairobi? Quanto tempo podes ficar? — Três ou quatro dias. Depois tenho de voltar — disse Sarah. — Correu tudo bem em Nairobi. O nosso financiamento para o próximo ano foi renovado e há uma forte possibilidade de fundos adicionais do Smithsonian Institute. Também suscitámos o interesse dos jornais. O Dan e a Allie estão optimistas. — Estás então determinada em continuar em Buffalo Springs? — Estou. E, Han, conheci um jornalista que está a pensar usar algumas das minhas fotografias. Está disposto a pagar, quero eu dizer. A princípio, senti-me incomodada com a ideia mas agora compreendo que só pode ser benéfico para o projecto dos Briggs. E ao mesmo tempo permitia-me ter algum dinheiro para as minhas despesas. Não sei se ele está a falar a sério, mas seria fantástico ver o meu trabalho na Time ou na Newsweek. Ou em qualquer lado! — E bem o mereces — disse Hannah. — As tuas imagens são extraordinárias. É uma excelente notícia. — Enfim, pelo menos, é encorajador. Agora fala-me de ti. — Não tenho muito que contar. Estou muito feliz por estares aqui. Neste momento, preciso de alguém com quem falar. Deve ser do tempo, mas sinto-me inquieta. Ansiosa. As coisas na fazenda andam calmas mas… Não sei, suponho que este nervosismo é natural agora que o bebé está quase a nascer. Tenho dificuldade em dormir e estou sempre a pensar no Lars. No que sentirá realmente. — Sente-se bem, Hannah. A maneira como ainda agora falou contigo e te beijou não deixa dúvidas sobre isso. — Mas nós nunca falamos sobre o assunto. — Hannah estava a olhar pela janela em direcção à crista do monte. A crista de Piet. — Nunca falam sobre quê? — Sarah não queria olhar para a crista, não queria pensar na sua perda. Não sabia como ia conseguir dormir nessa noite naquela casa. Naquele quarto. — Nunca falamos sobre o bebé. Se será rapaz ou rapariga. Não pensamos em nomes. Neste bebé que é o resultado de uma aventura estúpida. O bebé não é filho do meu marido, mas em breve fará parte da nossa vida. — Talvez seja melhor assim para o Lars. E para ti também. É o teu filho, Hannah, e tu sabes que ele te ama e que também vai amar a criança. Porque ela é parte de ti, está a crescer dentro de ti e é protegida pelo amor dele. Talvez não precises de pensar em mais nada. — És uma romântica incorrigível. E custa-me a crer que ele sinta isso o tempo todo. Que nunca mencione a minha aventura com o Viktor nem guarde ressentimento pela chegada deste bebé.
— Ele não parece ser um homem que guarde ressentimentos — disse Sarah. — Sinceramente, acredito que te ama como sempre amou e quer olhar por ti e por tudo o que é parte de ti. O bebé, a casa, a fazenda. São tudo coisas que estão os dois a construir juntos. Não tenhas medo, Hannah. Ele é forte e tu também e amam-se um ao outro. Vai correr tudo bem. Hannah acenou silenciosamente com a cabeça e depois levantou-se. — Preciso de ir à cozinha, organizar algumas coisas com o Kamau. Vemo-nos à hora de almoço. — Sorriu. — Eu estou bem, a sério. É só que às vezes fico nervosa e desejo ter alguém com quem falar. Tu ou a minha mãe. Mas estão as duas tão longe. — Tens tido notícias da tua mãe? Lembrei-me da Lottie assim que vi o jardim. — Sarah tentou esconder o sentimento de culpa que as palavras de Hannah tinham despertado. Não devia ter ficado afastada durante tanto tempo. — A vida lá é difícil — disse Hannah, encostando-se à porta e olhando para o jardim da mãe. — Foi um erro terem partido do Quénia. Eu detestava a plantação de tabaco, o país todo. Quando fugi e voltei para cá, senti-me culpada por deixar a minha mãe num lugar tão horrível sem ninguém para confortá-la e ajudá-la. Mas estava obcecada em voltar para casa, para Langani, e trabalhar ao lado do Piet. A princípio, ele tratou-me como uma irmãzinha mais nova, a peste que tinha fugido e que só ia causar problemas. Mas, quando me ocupei das tarefas administrativas e comecei a dar o meu contributo, tudo se compôs. — Faziam uma equipa fantástica — disse Sarah, sentindo uma reviravolta no estômago ao ouvir o nome dele. — Pois fazíamos — disse Hannah. — E ainda bem que passei algum tempo com ele antes de o perdermos. Quanto à minha mãe e ao meu pai, a Rodésia é um sítio terrível para viver neste momento e eles odeiam a plantação de tabaco. Parece que o meu pai já não está a beber tanto, mas é desalentador ser trabalhador contratado na terra de outra pessoa. O Kobus é um bruto. Podem ser parentes, mas ele trata o meu pai como um moço de lavoura e não como primo. E há assaltos constantes. Os rebeldes estão a receber armas da Rússia e da China. Sei que a minha mãe quer regressar a Langani, mas o meu pai recusa-se a encarar essa hipótese. — Deve ser horrível para ela. — É. — Hannah estava de cenho carregado. — Mas, depois de uma ausência de três anos, seria complicado para o Lars se os meus pais voltassem de repente e tomassem novamente conta da fazenda. Foi ideia do meu pai fazer as malas e partir inesperadamente, pouco antes da Independência. E, embora continue a ser a propriedade dele, não sei como nos arranjaríamos se ele anunciasse que voltava. Seria difícil com ele aqui. Ia andar por todo o lado, a beber como uma esponja e a pensar na ausência do Piet e possivelmente tentaria retomar a gestão da fazenda. Que é que o Lars fazia nesse caso? Que é que fazíamos, Sarah? Sinto-me mal ao dizer isto, mas não sei como seria a nossa vida, se eles voltassem agora. Adiante, é melhor ir falar com o Kamau sobre as hortaliças que estão prontas para colher, antes que os javalis ou os búfalos lhes cheguem. Depois do almoço, Sarah sentou-se à porta do quarto, absorvendo a tranquilidade da tarde, satisfeita por ter convencido Hannah a descansar. De cada lado da cadeira, estavam os cães, fingindo-se adormecidos, o agitar das suas sobrancelhas peludas traindo o seu interesse na bolacha que ela estava a comer. Só faltava o cão de Piet. Faltava Piet. Ele nunca mais a chamaria, nunca mais surgiria ao seu lado, cheio de sonhos e esperanças e grandes planos para o futuro. Para o futuro de ambos. Começou a chorar, o seu corpo convulso ao tentar não deixar que a desolação
destruísse o seu precário autodomínio. Os cães levantaram os olhos, gemendo suavemente e lambendo-lhe a mão. Afagando as suas cabeças macias e falando com eles, a angústia de Sarah dissipou-se um pouco. — Queres dar um passeio? — Lars fora à procura dela. — Boa ideia. — Sarah desviou a cara para ele não ver que tinha estado a chorar. — A Hannah ainda está a dormir? — Está. — Ele estava a sorrir quando começaram a caminhar. — Não sei como conseguiste. Eu ando a tentar há semanas. — Mas ela está com bom ar. — Sim, fisicamente está bem. Mas anda nervosa. — Lars bateu com a grossa bengala no chão. — Por vezes refugia-se durante dias num lugar onde não me deixa entrar. Talvez seja o bebé e o facto de as mulheres se tornarem mais emocionais quando estão prestes a dar à luz. Mas ela insiste em trabalhar muitas horas. Demasiadas horas, na minha opinião. — Se se sente bem, não há razões para deixar de trabalhar. — É o que diz o Dr. Markham. Mas ela não se sente à vontade com os watu como antigamente. Já não lhes dá ouvidos e muitas vezes zanga-se com eles por dá cá aquela palha. Eles sentem que ela desconfia do seu envolvimento no que aconteceu ao Piet e isso é mau. É como se tivesse esquecido a lealdade deles durante todos os anos anteriores à tragédia. Não se lembra que também eles estão de luto. — Zangar-se sempre foi a maneira dela de ultrapassar os obstáculos — disse Sarah. — Só podemos ajudá-la sendo pacientes. — Sabes, toda a gente me considera um norueguês grandalhão, indolente e paciente — disse Lars. — Mas eu também me zango. Às vezes enfureço-me mesmo. E, para mim, até os dias mais bonitos aqui estão infectados com o luto, apesar das minhas tentativas para transformar Langani novamente num lugar de paz. Num bom lugar para uma família. Mas sozinho não consigo e, por vezes, duvido mesmo de que alguma vez venha a conseguir. Sarah notou que os seus olhos estavam vidrados. Ele desviou rapidamente a cabeça e ela compreendeu que a perda do amigo Piet também o deixara devastado. Ninguém reconhecera devidamente esse facto. Pensou na sua generosidade, na sua lealdade, no seu amor por Hannah que o levara a casar com ela e a aceitar o filho dela como seu. Lars, o homem pragmático, o que mantinha as coisas a funcionar, a voz da razão e do equilíbrio. Sentiu vergonha por não lhe ter perguntado como se sentia. — Eu sei que afecta a tua vida como a de qualquer outra pessoa — disse ela. — Este fosso terrível que só parece alargar-se. Ele olhou para ela em silêncio e Sarah percebeu que ele estava a debater-se para controlar a emoção, para conservar a calma para bem de todos. — Enfim, agora acabou — disse ele, por fim. — E nós ficámos por cá para vivermos as nossas vidas o melhor que pudermos. Suponho que as coisas hão-de melhorar com o tempo e quando o bebé trouxer um novo sopro de vida a Langani. Olha para a montanha, Sarah, nesta luz da tardinha. Saiu das nuvens para nos recordar a sua beleza. Falaram do trabalho na fazenda e da pesquisa de Sarah em Buffalo Springs. Quando chegaram à parte do caminho de acesso de onde a vacaria era visível, viram Hannah a acenar-lhes. Foram ver as vacas leiteiras que eram as meninas dos olhos dela e depois encaminharam-se juntos para casa.
— Com que então foste um sucesso em Nairobi — disse Lars. — Deve ter sido difícil, estar ali à frente de um grupo de cientistas e outras pessoas, com tanta coisa dependente da tua apresentação. — Foi difícil — reconheceu Sarah. — Mas ainda bem que o Dan e a Allie me pressionaram. Espero que um dos jornalistas, pelo menos, escreva sobre o projecto. Davam-nos muito jeito alguns donativos substanciais. E um dos jornalistas é capaz de usar as minhas fotografias. — E paga por elas — lembrou Hannah, deliciada. — Vais ficar rica e famosa. — É, e se ele as comprar, celebramos com um fim-de-semana em Nairobi — disse Sarah. — E convido-os para jantar e dançar no New Stanley Grill. — É melhor que seja depois de o bebé nascer — disse Hannah, rindo. — Neste momento, nem o Lars consegue passar os braços à minha volta. — Às tantas não deixam entrar labregos como nós no Grill — disse Lars, juntando-se à boa disposição. — Mesmo na companhia dos ricos e famosos. — Por falar em ricos e famosos, tive notícias da Camilla há cerca de duas semanas. Diz ela que está a ver se cá vem até ao fim de Setembro. Soubeste, entretanto, de alguma coisa? — perguntou Sarah. — O mesmo que tu — disse Hannah. — Está amarrada em Londres. O agente dela diz que ela não pode deixar de cumprir o contrato em Nova Iorque e também está comprometida com anúncios a um novo perfume francês. Não pode voltar enquanto não se libertar disso. Mas mandou-nos algum dinheiro. — Dinheiro? — Sarah ficou intrigada. — Está determinada em abrir um negócio, a fazer roupas e sacos e coisas dessas. Aqui em Langani, quero eu dizer. O Lars vai arranjar a casa do feitor para ela poder instalar lá uma oficina. — Ela precisa de bastante espaço para corte e costura — disse Lars. — Disse que também ficava a viver na casa pequena. Mas a Hannah acha que inicialmente ela fica melhor na casa grande. Para o caso de se sentir nervosa quando chegar. — É uma atitude corajosa da parte dela tentar abrir um negócio aqui — disse Sarah. — Mas imagino que tem razão quando diz que há aqui um mercado para roupa feita de tecidos exóticos e decorada com missangas africanas e tudo isso. Como o fabuloso vestido de noiva que fez para ti, Han. — Espero que não sinta demasiadas saudades de Londres depois de cá estar — disse Lars. — Langani é um sítio muito remoto e até Nairobi é uma aldeia sonolenta comparada com o meio em que ela vive. — Comprei ontem uma revista inglesa e lá estava ela na capa, mais bela e luminosa do que nunca — disse Sarah. — Mas a carta dela era tristonha. Está mesmo com vontade de sair de lá e voltar para o Quénia. — Quer estar onde o Anthony estiver — disse Hannah. — É. Mas agora tem medo dele — disse Sarah. — Está a guardar uma certa distância à espera de ver se ele está pronto. — Uma grande distância — disse Hannah. — Ela está a milhares de quilómetros e ele está aqui sozinho. O grande caçador e guia branco. Um alvo para americanas ricas em safári, seduzidas pelo seu mundo de animais selvagens, acampamentos com fogueiras e leões a rugir ao luar. Aos olhos delas, é atraente e solteiro e aparentemente irresistível. — Bem, suponho que é esse o teste. — A expressão de Sarah era de cepticismo. — Se é capaz de
permanecer fiel à Camilla, apesar de tudo isso. Espero que não desperdice uma segunda oportunidade. Ela ama-o e faziam um casal fantástico. — A fama e a sofisticação da Camilla podiam ser um trunfo para o negócio dele — disse Hannah. — E ela podia dar um toque feminino aos acampamentos dele, introduzir alguma variedade nas ementas, já para não falar da apresentação dos pratos. A Camilla também podia olhar pelos clientes dele em Nairobi. Levá-los às compras e tudo isso. Ele detesta fazer essas coisas, mas os clientes contam com isso. Aqui há umas semanas, trouxe um casal de americanos a Langani para almoçar. Eram pessoas simpáticas, mas estavam bastante aborrecidos por eles os ter deixado por conta deles na cidade. Até recusou o convite deles para jantar. Não lhes caiu nada bem. Tinham chegado a casa e Lars deixou-as, afastando-se no carro com um dos trabalhadores da fazenda para inspeccionar uma vedação que mais uma vez tinha sido destruída pelos búfalos. — Sarah, há uma coisa que eu gostava de fazer — disse Hannah. — Não sei, Han. — Sarah percebeu imediatamente o que era. — A última parte do trilho é íngreme. Se escorregas… — Não escorrego. Tu ajudas-me nas partes difíceis. E não tenho lá ido recentemente, porque o Lars obrigou-me a prometer que não ia sozinha. Por favor, Sarah. Vamos visitar juntas o Piet na crista. No lugar que ele mais amava. Pode ser a última vez antes de o meu bebé nascer. Foram no Land Rover de Sarah, atravessando a extensão dourada do veldt, com o pico da montanha a dominar o horizonte. Sarah conduziu em silêncio, com o coração a pulsar aceleradamente. Como uma rapariga que vai ao encontro do amante. Mas Piet não voltaria a ser o seu amante, excepto no labirinto solitário dos seus sonhos quando o via, distante e inacessível, dilacerando-lhe o coração e despertando-a a meio da noite, invadida pela dor da sua ausência. Estacionaram o veículo na base do trilho íngreme e começaram a subir, avançando cuidadosamente em direcção ao cume. No alto, permaneceram juntas, olhando para as pedras lisas que tinham usado para construir o montículo. No centro deste, crescia uma acácia tortillis, em beleza solitária, os seus ramos longos elevando-se no ar claro. O vento transportava o chilrear dos pássaros e, por baixo delas, estendiam-se as searas, as planícies rasas e as florestas verde-escuras que constituíam a Fazenda de Langani. O sol ateara fogo ao céu, tingindo as árvores e as rochas de uma luz dourada e carmesim que alastrava lentamente sobre a terra, antiga, benigna e voluptuosa sob a luz da tarde. Sarah sentou-se na borda do montículo, no lugar que Piet sempre amara, sobranceiro à terra onde haviam planeado viver as suas vidas. Pousou as mãos nas pedras quentes, inalando a sua memória, o som da sua voz, o seu riso, o contacto dos seus dedos. — É tão calmo — disse Hannah, numa voz embargada. — Achas que ele está realmente em paz aqui, o meu maravilhoso irmão? — Acho que sim. — Sarah estendeu o braço e tocou na mão da amiga. — Acho que é aqui que ele teria desejado estar e onde podemos sempre encontrá-lo. O seu lugar predilecto. — Alguma vez sentiremos menos dor? — perguntou Hannah. — Estou sempre à espera que diminua, que seja menos lancinante. Que esta sensação terrível e dilacerante seja de algum modo mitigada. Mas não é. — As pessoas dizem que é uma questão de tempo — disse Sarah. — Mas não sei, Han. Simplesmente não sei. Olha… está ali em baixo uma chita. Na planície rasa em baixo, o felino avançava lentamente, a cabeça a espreitar das pontas penugentas das ervas, os olhos fixos na presa, os músculos tensos e rijos perseguindo uma jovem
gazela na orla de uma pequena manada. Mas um som imperceptível fez com que os animais que pastavam se dispersassem e se afastassem aos saltos pelo veldt, embrenhando-se na densa protecção do mato. A chita, reconhecendo a futilidade de persistir nos seus esforços, posicionou-se sobre um monte baixo de onde podia inspeccionar as planícies e esperar por outro alvo. Virando a cabeça, Sarah viu o kopje e o contorno do lodge que Piet construíra com grande visão e entusiasmo. Estava agora abandonado, escondido e silencioso entre o arvoredo e as rochas circundantes. Só Lars o visitava com regularidade, podando as trepadeiras, enxotando os macacos e os babuínos, deitando sal no bebedouro para os elefantes e os búfalos e os animais mais pequenos que ainda visitavam o lugar, indiferentes à tragédia que ali se desenrolara. — Depois de o bebé nascer, vou abrir o lodge — declarou Hannah. — Assim que entrar numa rotina normal e tiver uma ama de confiança para me ajudar. Nessa altura, vou abri-lo, pelo Piet. É uma ocupação, uma coisa que ele teria gostado que eu fizesse. E há-de trazer visitantes a Langani que hão-de contribuir para o nosso plano de transformar uma parte da fazenda numa reserva natural. E a nossa liquidez também pode aumentar. O Piet investiu quase todo o dinheiro que tínhamos na construção, que tem estado parada desde… — A voz falhou-lhe e ela pressionou os nós dos dedos contra a boca. — As coisas não têm sido fáceis ultimamente — disse ela por fim. — Não sei como o Lars tem conseguido manter tudo a funcionar. É um homem absolutamente extraordinário. Sarah acenou com a cabeça e levantou-se. Era tempo de deixar Piet, o seu espírito omnipresente no crepúsculo róseo, em harmonia com o meio que prezara e defendera toda a vida. Dirigiu um pedido mudo de paz, implorando-lhe que a ajudasse, que a ensinasse a viver sem a sua amada presença. — Acho melhor voltarmos agora — disse ela. — Está a escurecer e o Lars pode ficar ansioso. Desceram o trilho cautelosamente, agarrando-se a pequenos ramos para se equilibrarem. No fugaz crepúsculo africano, a terra parecia ter sustido a respiração, imóvel e expectante, à medida que a noite se aproximava com os seus estranhos sons e restolhadas sob a máscara da escuridão. Lars estava no alpendre quando chegaram a casa, aliviado quando viu os faróis do carro varrer as árvores e os arbustos ao longo do caminho. — Estava a ficar preocupado — disse ele. — Foram à crista? — Achei boa ideia ir até lá enquanto a Sarah está aqui. — Hannah encostou-se ao seu corpo forte, pousando a cabeça no ombro dele. — Vamos preparar-nos para o jantar, Lars. E podes contar-me como o Juma conseguiu virar o atrelado hoje de manhã e como se propõe pagar os danos. Depois do jantar, sentaram-se diante de um fogo espevitado, mas, apesar do calor, o corpo de Sarah estava frio. Sentia relutância em ir deitar-se, receosa dos seus sonhos, mas apercebeu-se de que estava a reter Lars e Hannah, que teriam de se levantar de madrugada para trabalhar na fazenda. — São horas de ir para a cama — disse ela, tentando esboçar um sorriso que não se reflectiu nos olhos. Abraçaram-na com força e, pegando numa candeia a petróleo, Sarah encaminhou-se pelo alpendre para o seu quarto. Viu o guarda-nocturno no relvado, bem aconchegado no velho sobretudo militar, um gorro de lã cobrindo-lhe quase toda a cara. Ele levantou o pau numa saudação quando Sarah passou e ela interrogou-se sobre a protecção que esse objecto oferecia contra as armas que tinham assolado a paz e a segurança de Langani. Demorou-se na casa de banho, arrumando a roupa com todo o vagar, mas por fim não havia mais nada que fazer e ela meteu-se na cama e apagou a luz. Os ruídos da noite envolviam-na enquanto escutava os rangidos e movimentos da casa que outrora
amara e agora temia. Sabia que não podia ficar na fazenda mais do que o necessário. Mesmo a amizade e as necessidades de Hannah e a força de Lars eram esteios insuficientes para escorar as ruínas da sua própria vida. Sentou-se e voltou a acender a candeia, num crescente estado de nervos ao ver as sombras que se agigantavam na luz crepitante. O frio da noite e a sua própria solidão assaltaram-na com uma violência que lhe cortou a respiração. Desejava Piet, precisava de ouvir a voz dele e de lhe ver o rosto, sentir-se apertada pelos seus braços carinhosos e protectores. Dirigiu-se à janela, onde permaneceu de olhos fechados, rememorando-o, imaginando, agarrando o seu próprio tronco com os braços e erguendo a cara para a escuridão vazia para sentir mais uma vez o seu beijo. Nesse instante, regressou à crista e, com um grito, levou a mão à boca, com medo de ser ouvida na noite negra e ameaçadora, onde todo o consolo a abandonara e somente os fantasmas partilhavam o seu caminho solitário.
No alto da crista, o velho quicuio olhava para a fazenda que se estendia sob ele ao luar. Observava, de olhos franzidos, as luzes da casa que refulgiam à distância, um farol na paisagem escura. A sua cabeça grisalha estava coberta com um gorro de lã e os lóbulos descaídos das suas orelhas estavam decorados com missangas e fio de cobre. Tinha uma capa de couro pelos ombros para se proteger contra o frio vento nocturno. A luz prateada da lua fazia ressaltar as suas feições contra as sombras das rochas entre as quais se encontrava, iluminando a longa cicatriz que ganhara em combate. Há três dias que esperava e observava naquele ponto. Atrás dele, escondido da vista num amontoado de pedras, estava um abrigo improvisado feito de ramos e espinheiros. No seu interior, tinha preparado uma pequena fogueira com carvão sobre uma cova pouco funda. A protecção criada pelas ramadas entrelaçadas impedia que o fumo fosse visto por quem estivesse abaixo dele, no lodge ou na planície. Abandonou o seu posto de observação e regressou para junto da fogueira, acocorando-se diante dela e tirando uma pequena bolsa de couro do cinto. Colocou uma pitada de pó na língua e inalou uma parte. Em seguida, começou a trautear, produzindo um som hipnótico no fundo da garganta e espalhando o resto das finas partículas nas brasas incandescentes. Estas crepitaram e estalaram, emitindo um odor pungente como o de osso pulverizado. Pegou numa cabaça cheia de sangue e deitou metade do líquido viscoso sobre as chamas crepitantes. A sua voz começou a crescer e a decrescer em ondas de som, desprovido de palavras, e de um saco no chão tirou pedaços de carne crua e o escroto de um cabrito, juntando-os à conflagração. Pegando numa faca, retirou do fogo a carne e os órgãos genitais chamuscados do animal e comeu-os lentamente, antes de despejar o conteúdo da cabaça. Com as pontas dos dedos nodosos, limpou os lábios, pintando a cara com manchas de sangue, cantando suavemente e baloiçando-se para a frente e para trás sobre os calcanhares, os olhos postos na casa em baixo, ao longe, e os dentes arreganhados num esgar de ódio. Ao fim de algum tempo, apanhou várias mãos-cheias de areia e lançou-as sobre o fogo, cobrindoo por completo para extingui-lo e apagar qualquer vestígio. Levantou-se e caminhou até à borda da crista para alongar mais uma vez os olhos por sobre a planície silenciosa até à casa. A sua maldição mergulhá-los-ia a todos na eterna escuridão. Brevemente. A terra deixaria de ser terra de wazungu. Voltaria à posse da tribo dos quicuios. Seria a sua terra. Cuspiu para o vento que se levantava, aconchegou a capa de couro ao corpo e desapareceu nos espinheiros e na vegetação
rasteira que cobria as vertentes da crista. Por baixo da areia, as brasas da sua fogueira oculta fundiram-se na terra sequiosa, imprimindo nela a marca da morte.
CAPÍTULO 2
Quénia, Julho de 1966 Singh reclinou-se na cadeira e levantou os braços sobre a cabeça. Doíam-lhe os dedos R abindrah de bater à máquina durante toda a tarde e estava a precisar de uma fita nova, mas queria aproveitar ao máximo todos os vestígios de tinta da fita existente antes de abrir outra caixa. Uma máquina de escrever nova seria bem melhor, mas por enquanto não tinha dinheiro para a comprar. A sua maior prioridade era um apartamento. A casa do tio Indar era um sítio tranquilo e acolhedor, mas não podia levar para lá os amigos. A tia andava constantemente de olho nele e submetia à sua aprovação uma sucessão de raparigas siques convenientes, em idade de casar. Elas apareciam com as mães ou as irmãs, fixando-o com olhos escuros e não fazendo segredo do facto de o considerarem um bom partido. A cada visita seguia-se uma sessão de análise, em que a tia Kuldip realçava as características particularmente atractivas de cada rapariga, perscrutando-o à procura de um sinal de que uma das suas escolhas tinha finalmente merecido o seu acordo. Mas Rabindrah não estava interessado num casamento sique tradicional. Vivera em Inglaterra vários anos e habituara-se à liberdade entre os sexos. Actualmente, tinha preferência pelas raparigas estrangeiras que conhecia nos bares e cafés de Nairobi. Elas dispensavam generosamente favores e exigiam pouco em troca. Nessa noite, tinha um encontro marcado com uma sueca loira, uma assistente de bordo de olhos azul-claros e seios abonados. Ela tinha um apartamento em Lavington e ele sorriu à ideia da noite que o esperava. Mais uma hora de trabalho e ficaria livre para se entregar ao prazer. Começou novamente a bater à máquina, franzindo a testa enquanto procurava as palavras mais emotivas para descrever os elefantes e o seu habitat. Quando acabou, percebeu que o artigo continha uma mensagem poderosa, sobretudo com as imagens que a rapariga irlandesa lhe tinha enviado. Era uma excelente fotógrafa. O jornal local já publicara uma versão radicalmente truncada da sua história sobre os Briggs e o seu trabalho de investigação, mas agora o Daily Telegraph concordara em publicar o artigo inteiro e Rabindrah sabia que tinham sido as fotografias de Sarah Mackay que tinham pesado a favor. Tinha apresentado seis ou sete artigos a jornais londrinos desde o seu regresso de Inglaterra, mas tinham sido todos recusados. — Às tantas puseram-me numa lista negra — tinha ele dito ao tio. — Foste muito frontal no jornal de Manchester — disse Indar Singh. — Fizeste um cavalo de batalha da questão dos passaportes britânicos para os indianos e eles lá não apreciam esse género de frontalidade. Pelo menos, no que toca à política inglesa nas colónias que estão a abandonar. Mas não me parece que um jornal de Londres te prejudicasse por isso, agora que estás a apresentar artigos sobre a preservação da vida selvagem em África. Os ingleses podem estar-se nas tintas para os seus cidadãos, mas são sempre bondosos e sentimentais com as criaturas de quatro patas. Ao que parecia, o tio Indar tinha razão. Rabindrah estava prestes a ver o seu nome num jornal internacional de grande formato. Depois disso, talvez outras publicações começassem a levá-lo a sério. Correspondente do The Economist ou do The Times na África Oriental. Ocasionalmente, um
artigo na Newsweek. Eram esses os seus objectivos. Assumir uma posição firme na questão da conservação podia ser um veículo ideal para o reconhecimento. Era um assunto que suscitava emoções e que não apresentava problemas em termos de investigação e redacção. A chacina ilegal da vida selvagem do Quénia estava a tornar-se cada vez mais um escândalo e a letargia do governo em dar resposta ao problema dos caçadores furtivos era bem conhecida. Não haveria escassez de material disponível, quase todo ele sensacional. A comunidade internacional já estava em pé de guerra a respeito da matança descontrolada de elefantes e rinocerontes e ele tinha publicado, ainda no mês anterior, um artigo numa revista americana que tinha sido bem recebido. Inicialmente, a rapariga parecera relutante em deixá-lo usar as fotografias. Mas depois o envelope apareceu-lhe na secretária e ela nem sequer tinha falado do pagamento. Talvez estivesse de tal modo envolvida na vida dos elefantes que só se interessasse pelo potencial benefício para o seu projecto de pesquisa. Para ser franco, não conseguia tirá-la da ideia. Havia qualquer coisa na maneira como ela tinha olhado para ele naquela noite. Uma expressão fugidia de angústia, seguida de desconfiança tingida de medo. Era um contraste surpreendente com o refinamento da sua apresentação. Fazia tenções de interrogar alguém sobre ela mas, nos últimos dias, andara exclusivamente concentrado na escrita dos artigos e na consolidação da sua precária posição no jornalismo internacional. O telefone interrompeu as suas divagações. — A peça sobre os elefantes estava muito boa. Queria saber se podias encarregar-te de uma entrevista aqui para o jornal. — Gordon Hedley era o chefe de redacção do Daily News. Um homem com uma profunda experiência de África e um jornalista muito competente, sempre se mostrara evasivo relativamente a um lugar efectivo para Rabindrah ou a qualquer colaboração regular da parte dele. — Escreves muito bem, mas és demasiado frontal — dissera ele. — Estamos aqui num campo minado, meu amigo. Podemos ser os dois deportados sem pré-aviso por escrever artigos que desagradam aos novos políticos. Tens de aprender a apresentar as questões de maneira a passar a mensagem sem parecer atacar as individualidades oficiais. — Este país há-de parar por completo se não houver quem ponha cobro à corrupção e ao banditismo galopantes que proliferam desde a Independência. — As coisas levam tempo a assentar. — Gordon estava resignado. — Três ou quatro gerações, quanto a mim. Mas não me cites. Entretanto, há um novo director para o Fundo Internacional para a Vida Selvagem. Um sujeito chamado Broughton-Smith. Viveu muitos anos aqui antes da Uhuru… trabalhava no Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Esteve envolvido na aquisição e distribuição de terras antes da Independência. Um tipo astuto e muito competente. Adiante, chegou ontem ao Quénia. A nova organização dele parece ter montes de dinheiro e apoio da Europa e da América, mas não sei se tem realmente poder. Podes descobrir quais são as intenções iniciais dele? Que planos tem a longo prazo? Esse género de coisa. Rabindrah tomou nota do nome. — Onde é que o encontro? — Não faço ideia. Tenta o Ministério da Vida Selvagem… ou a Fundação Africana para a Vida Selvagem. Sabem de certeza onde ele tenciona instalar-se. E vê se lhe arrancas algum comentário sobre a caça no Quénia e a corrupção que permite que o governo faça vista grossa à caça ilegal existente. Gostava de publicar essa entrevista na edição de quinta-feira.
George Broughton-Smith estava hospedado no Muthaiga Club. Não era um lugar particularmente
hospitaleiro para um jornalista indiano, mesmo titular de um passaporte britânico. Só recentemente é que as suas portas se haviam aberto às pessoas de cor que não fossem cozinheiros e empregados de mesa ou de limpeza. Combinaram tomar chá no Lord Delamere Bar no Norfolk Hotel. George era um homem alto, com uma figura distinta, cabelo grisalho e a vantagem de um excelente alfaiate para disfarçar uma corpulência incipiente. Rabindrah reconheceu imediatamente a educação numa escola privada inglesa, um produto de Oxford ou Cambridge. O homem poderia ser considerado arrogante se não fosse a timidez e o humor autodepreciativo típicos da sua classe. Afável era o termo que ocorria, mas com nuances de perspicácia. — Está particularmente envolvido nas questões da conservação, Mr. Singh? Rabindrah optou pela verdade. — É uma preocupação recente, no meu caso, porque está na ordem do dia. E está no centro do desenvolvimento deste país, com impacto na atribuição de terras e nas questões do turismo e das receitas estrangeiras. O mundo inteiro está curioso para ver como um Quénia independente tenciona resolver os problemas da procura de terras de lavoura face aos parques nacionais e às reservas naturais. É uma batata quente política, no contexto de um rápido desenvolvimento demográfico. — O governo conta com a competência de Johnson Kiberu, que é agora responsável pelas políticas ambientais e da vida selvagem. E estas incluem a utilização das terras privadas, assim como a protecção das áreas de conservação existentes. Vamos trabalhar em conjunto sobre estas questões. Provavelmente já o conhece. — Encontrei-me com ele de fugida. Mas não ando nisto há muito tempo. Quatro meses. Ainda estou a tentar orientar-me no labirinto dos ministérios e dos novos departamentos governamentais. Mas vou falar com Mr. Kiberu assim que tiver oportunidade. — Onde é que esteve antes? — perguntou George. — Além de Inglaterra, que é evidente na sua pronúncia, claro. — A minha história é normal. Nasci aqui. O meu avô sique era polícia e foi trazido para cá em 1898 pelos ingleses. Seguiram-se irmãos, mulheres e primos e acabaram por se instalar como cultivadores de milheto e cana-de-açúcar na região de Kericho e Kisii. Agora estamos em toda a parte. — Rabindrah encolheu os ombros. — Os meus pais partiram antes da Independência, munidos dos seus passaportes britânicos, rumo a um lugar a que consideravam ter legítimo direito no Reino Unido. Também tenho tios no Canadá e uma numerosa família aqui e no Uganda. — Mas também saiu do país, por algum tempo pelo menos? — perguntou George. — Frequentei a universidade em Inglaterra e passei lá os últimos quatro anos a trabalhar em jornais regionais. Jornalista de província, pode dizer-se. Mas foi uma boa formação. — Decidiu fixar-se aqui definitivamente? — George queria saber por que razão o jovem teria trocado a segurança de Inglaterra pelas conturbações do continente africano. — Sim, decidi. — Rabindrah apercebeu-se de que as posições se tinham invertido, de um modo fluido, e de que era agora ele quem estava a ser entrevistado. Sentia-se involuntariamente lisonjeado com o interesse do inglês. — Para ser franco, despedi-me do meu jornal em Manchester. Fartei-me de escrever artigos sobre asiáticos a quem eram recusados passaportes britânicos e o direito de residir na boa velha Inglaterra. E os chefes de redacção cansaram-se de os ler. Por conseguinte, regressei a Nairobi. Seja como for, prefiro o Quénia. Tenho mais margem de manobra aqui e é um momento estimulante para cá estar. — Pode vir a ser demasiado estimulante para alguns.
— Não estou com medo. Não tinha qualquer desejo de ficar em Inglaterra com os meus pais. De me sumir na comunidade indiana ex-colonial. Os membros mais velhos desse clube em particular vivem assombrados pelas recordações do passado e muitos dos mais novos desenvolveram ressentimentos medonhos contra tudo e todos. Passam demasiado tempo a lamentar-se mutuamente a respeito do que perderam e da sombria realidade de viver uma vida suburbana em Inglaterra. E os indianos menos afortunados têm à sua frente uma luta gigantesca em termos de segurança económica e aceitação pelas comunidades locais. Não é para mim. — Nesse caso, espero que faça grandes coisas no Quénia. Muito bem, que pretende então saber? A entrevista cobriu um vasto leque de questões. George Broughton-Smith não tinha pejo em dizer o que pensava, embora o fizesse numa linguagem cuidadosamente formulada. Sublinhou, em várias ocasiões, a necessidade do envolvimento local nos problemas da conservação. — Nunca seremos capazes de proteger a vida selvagem neste país, se o cidadão normal não colher frutos imediatos disso — declarou. — As receitas dos parques e reservas naturais devem ser reinvestidas nas comunidades locais e não esbanjadas pelos políticos em Nairobi. A nossa política de financiamento insiste numa contrapartida do dinheiro atribuído. Um bom exemplo é ajudar os pequenos agricultores a construírem vedações em redor das suas shambas. Não se pode esperar que um quicuio apoie a protecção de animais que destroem a sua plantação de milho ou atacam a sua família. Como os elefantes e os búfalos que atravessam estas pequenas propriedades na região de Nyeri e Nanyuki e destroem tudo à sua passagem. — E os masai e os samburu? Não é possível colocá-los dentro de vedações. — Não pretendemos alterar o estilo de vida de ninguém. Se vamos estabelecer regras a respeito do uso que fazem das zonas de vida selvagem demarcadas, temos de gastar dinheiro em alternativas. Como serviços veterinários itinerantes e bebedouros para o gado. E temos de tentar convencê-los de que terem menos vacas e cabras saudáveis é preferível ao sobrepastoreio. — Nunca se hão-de conformar com essa ideia — disse Rabindrah. — O número de cabeças de gado sempre foi a medida da sua riqueza e estatuto social. Isso nunca há-de mudar. — Durante a minha vida, não, desconfio — disse George. — Mas temos de começar por algum lado e a educação é a chave. Temos de formar professores no seio das próprias tribos. Pessoas que eles já conhecem e em quem confiam. Homens e mulheres mais novos que tentem guiá-los no sentido de uma atitude moderna em relação ao uso da terra. Porque as pastagens tradicionais vão acabar por se transformar em desertos se continuarem a conduzir estas manadas cada vez maiores. — Vai então fixar-se aqui em Nairobi permanentemente? — perguntou Rabindrah. — Vou. Assim, posso estar mais por dentro do que se passa realmente e tenho mais tempo para ouvir. — Isso é um passo em frente — disse Rabindrah. — Esta cidade-formiga de consultores que passam aqui uns dias e se pronunciam sobre todo o género de estratégias em relatórios que ninguém lê. Depois, vão-se embora e ninguém faz nada. Na maioria, são parasitas. Ou almas caridosas, que são ainda mais perigosas. — Espero que os seus textos sejam menos opinativos do que os seus comentários verbais — disse George, apreciando a atitude refrescantemente arrojada e franca do jovem. — Mas até as pessoas inexperientes podem ter óptimas ideias. Lançar um novo olhar sobre as coisas. Deixe-me então explicar-lhe o que espero conseguir nos próximos doze meses, mais ou menos. Trouxe uma lista das tarefas principais para o caso de se perder. Ou de decidir inventar outro programa!
Ao fim de uma hora, Rabindrah estava genuinamente impressionado com George Broughton-Smith e com as ideias práticas na base do seu projecto. — Acho que chega sobre o assunto da conservação — disse George finalmente. — Demasiada conversa não dá necessariamente uma imagem mais clara e faz sede. Aceita uma bebida? — Um whisky, por favor. Com água. — Rabindrah reparou que George erguera as sobrancelhas e sorriu. — Não sou um sique tradicional, como vê. Não uso turbante nem barba e o gosto pelo bom whisky torna-me ainda menos exemplar. O meu pai também é apreciador de whisky, embora a minha mãe não toque no álcool nem o autorize dentro de casa. Não descobriu que tomei o gosto à bebida e ainda repreende o meu pai, embora num tom resignado. Ainda bem que está a milhares de quilómetros daqui. — Li o seu artigo sobre o projecto dos Briggs em Buffalo Springs — disse George, achando graça à surpresa do indiano. — Gosto de me informar sobre os jornalistas que me entrevistam. Saber o que escreveram recentemente. Qual a sua filosofia. Se são movidos por algum interesse em particular. Era um bom artigo. Os Briggs são pessoas formidáveis e, claro, as fotografias da Sarah Mackay são magníficas. Ela é uma rapariga estupenda. — Parece muito dedicada. Mas um pouco reservada. — Não é de admirar depois do que passou. É uma grande amiga da minha filha Camilla. — A modelo londrina? — Rabindrah emitiu um assobio de apreciação. — É sua filha? Credo! Que falta de percepção a minha em não estabelecer a ligação. — Andaram juntas na escola, aqui no Quénia — disse George. — Desde então, entristece-me dizer, passaram por demasiados sofrimentos. Sobretudo a Sarah. — Como? — Ela estava noiva de um jovem agricultor africânder, o Piet van der Beer. Ele foi assassinado no ano passado por um dos trabalhadores quicuios dele, um rapaz inteligente chamado Simon Githiri, sem nenhuma razão aparente. Numa ironia do destino, o próprio Githiri morreu ao fugir do local do crime. Não sei como a pobre rapariga consegue sequer funcionar. — O crime foi noticiado na altura nos jornais britânicos — disse Rabindrah. — Mas a imprensa centrou-se mais num colono queniano branco, assassinado por um africano, do que em qualquer outro aspecto. Não se falou de familiares nem amigos. Os indianos residentes em Inglaterra abanaram a cabeça e disseram que era um mau augúrio para as comunidades minoritárias do Quénia. Um novo movimento do tipo Mau-Mau, na opinião deles, destinado a desembaraçar o país dos últimos colonos brancos. Que aconteceu à fazenda? Foi um acto político? — É agora administrada pela irmã do Piet van der Beer e pelo marido. Estão a tentar transformar parte da propriedade numa reserva de vida selvagem. Um plano a que dou o meu total apoio. Mas não sei se a jovem Hannah terá forças suficientes para persistir, com essa terrível tragédia a assombrá-la. Agora, se me dá licença, tenho um jantar marcado. Espero que tenha obtido o que pretendia com esta entrevista. Pode ligar-me se lhe faltar alguma informação crucial. Espero que voltemos a encontrar-nos e possamos unir esforços no sentido do progresso.
Na manhã seguinte, Rabindrah dirigiu-se aos escritórios do Daily News e sentou-se na sala de arquivo das edições antigas do jornal. Não demorou muito tempo a encontrar as notícias sobre a morte de Piet van der Beer na Fazenda de Langani. O assassínio tinha laivos de uma matança ritual,
como as executadas pelos Mau-Mau nos anos cinquenta, quando uma parte da tribo dos quicuios conduzira uma campanha de terror contra os colonos brancos e os elementos do seu próprio povo que se recusaram a jurar lealdade ao movimento. O corpo tinha sido encontrado por Sarah Mackay e por Hannah, a irmã do homem assassinado. Rabindrah estremeceu ao pensar nas suas próprias irmãs e no efeito duradouro que um incidente semelhante poderia ter tido sobre elas. Não parecia ter havido nenhum motivo coerente para o crime, embora o pai de Piet tivesse lutado contra os Mau-Mau durante o estado de excepção, assim como muitos membros da comunidade de agricultores brancos. No entanto, a vítima tinha vinte e muitos anos e teria sido um adolescente nessa época. Custava a crer que o homicídio estivesse relacionado com essa causa. O inspector Jeremy Hardy tinha arquivado o caso quando os seus agentes descobriram os restos mortais recentes de um homem na floresta que confinava com a fazenda. Tinha sido atacado e quase inteiramente comido, provavelmente por hienas, declarou Hardy na ocasião. Era quase certo que os ossos pertenciam a Simon Githiri porque foram encontrados junto ao corpo um toucado e ornamentos tribais que ele usara na noite da matança. Rabindrah franziu a testa ao reler a notícia, intrigado com a natureza selvática do crime e a sua aparente falta de motivo. Talvez Githiri alimentasse algum rancor contra o patrão. Os agricultores africânderes eram conhecidos pela dureza com que tratavam os seus watu. Mas, se a polícia estava convicta de que o crime era resultado de um ressentimento antigo ou estava ligado ao estado de excepção, era estranho ter abandonado a investigação tão cedo. Deviam ter considerado a possibilidade de este vir a dar azo a mais incidentes semelhantes. Rabindrah tomou alguns apontamentos sobre o caso, dobrou-os muito bem e guardou-os na pasta, regressando ao exíguo escritório que alugara perto da garagem do tio. Se a irmã do homem morto ainda planeasse transformar a propriedade numa reserva natural qualquer, talvez merecesse uma reportagem. «Irmã de homem assassinado transforma a terra do irmão num refúgio de vida selvagem, erguendo um memorial aos seus ideais e prosseguindo a sua luta, apesar do seu brutal assassinato.» Era bom material. Talvez também valesse a pena falar com o polícia encarregado da investigação. Ou visitar a irmã na fazenda. E Sarah Mackay, que perdera o noivo, mas permanecera no Quénia para salvar elefantes. Podia criar com isto uma história pungente e edificante para um dos tablóides ingleses. Levantou o telefone e ligou para o Comissariado da Polícia para contactar um primo em segundo grau, o inspector Laxman Singh. — Consegues arranjar-me o relatório da polícia sobre o crime na Fazenda de Langani no ano passado? — perguntou Rabindrah. — Não, impossível. Provavelmente ainda está em Nyeri e, de qualquer maneira, tenho a certeza de que é confidencial. Porque é que estás interessado nele? — Laxman parecia irritado. Não era a primeira vez que Rabindrah lhe pedia este tipo de favor particular. — Conheci a noiva do Piet van der Beer. Estou a escrever um artigo sobre o projecto de investigação de elefantes em que ela está a trabalhar. Mas neste momento há uma sobrecarga de cientistas por aqui. Toda a gente está envolvida num estudo qualquer. Quero basear a história na personalidade da rapariga e no seu lado inspirador. Na sua coragem em perseverar, nas terras ermas da Fronteira Norte. Esses sentimentalismos que cativam as pessoas. Ajudava imenso ter acesso ao relatório sobre o crime. Saber se o homem encarregado da investigação tinha alguma ideia a respeito do motivo. Dá-me ideia de que foi um homicídio sem sentido. — Provavelmente foi por rancor. Alguém que eles despediram. Esses agricultores africânderes
são duros, não sei se sabes. Não me admirava nada que o van der Beer batesse nos watu dele. E tivesse pago por isso. — E o inspector responsável? — quis saber Rabindrah. — É um homem competente ou foi uma dessas investigações que nunca dão em nada? — És estúpido, primo? O país todo ficou num alvoroço com a história e a polícia estava sob pressão máxima para descobrir o culpado. Agricultor branco, assassínio brutal, ressurreição dos Mau-Mau e essa coisa toda. Já trabalhei algumas vezes com o Hardy. É meticuloso e justo. Um polícia típico da velha escola inglesa. Se não descobriu nada é porque não há mais nada para descobrir. — Seja como for, gostava de ler o processo. — Nada feito, acredita. — Laxman tinha perdido a paciência. — Se quisesses, arranjava-te um encontro com aquela rapariga italiana. — Rabindrah adoptou um tom untuoso. — Pareceu-me muito interessada em ti. Apesar de seres um palerma. Pode ser que consiga convencê-la de que tens algumas qualidades que compensam esse defeito. — Dá-me dois dias — disse Laxman, rindo. — Mas não me peças mais favores. — Assim é que é. Vou contactá-la e podemos encontrar-nos no Sombrero Club por volta das nove. É bom que até lá pratiques o teu italiano.
Três dias mais tarde Rabindrah recebeu uma cópia do relatório da transcrição policial dentro de um envelope castanho anónimo. As páginas não transmitiam muita informação. Ninguém compreendia por que razão Simon Githiri, um insignificante órfão quicuio, estudante exemplar, trabalhador promissor, se transformara subitamente num brutal assassino. Na missão da Consolata em Nyeri, onde ele passara a maior parte da sua vida, os padres declararam-se desconcertados com a radical transformação do rapaz. Ninguém se lembrava de nada de anormal a respeito dele. Havia uma nota no processo dizendo que a polícia não tinha podido entrevistar um dos professores de Githiri que estava hospitalizado. Mas este era um padre idoso, gravemente doente e já desmemoriado. Rabindrah leu o relatório duas vezes, tomou nota do nome do velho e abanou a cabeça. Era um desses trágicos incidentes que quase de certeza permaneceriam por explicar. Mas sentia-se interessado na história e na falta aparente de um motivo. Decidiu deslocar-se a Nyeri para falar pessoalmente com o inspector Jeremy Hardy. Em seguida, visitaria a irmã do rapaz assassinado na Fazenda de Langani. O jornal de Manchester tinha-o mandado muitas vezes entrevistar familiares próximos e queridos de pessoas que tinham encontrado uma morte trágica. Era surpreendente o que as pessoas diziam sob pressão, sem se aperceberem de que estavam a prestar informações novas ou diferentes. E talvez seguisse depois para Buffalo Springs, para falar com Sarah Mackay sobre as fotografias dela. A tia estava à sua espera quando ele chegou a casa para almoçar. Kuldip Kaur Singh era uma mulher elegante que governava a casa com precisão metódica. A sua sala de estar funcionava como local de encontro das suas muitas amigas, com filhos e filhas cujo futuro necessitava de solução. Movia-se com um andar majestoso e bamboleante, simultaneamente determinado e sensual, e fora considerada, na sua juventude, uma grande beldade e um excelente partido para o marido. — Parto para Nyeri hoje à tarde — declarou Rabindrah. — Depois continuo para Nanyuki para seguir uma história. Provavelmente pernoito no Sportman’s Arms. Estou de volta amanhã.
— Estava a contar que cá estivesses esta noite, meu filho — disse ela, com uma expressão de censura no olhar. — Preparei um jantar especial com os teus pratos favoritos. E os Manjit Singh e a família vêm jantar connosco. A Anoop também vem. — Ora, tia Kuldip. — Rabindrah lançou os braços à volta dela, rindo. — Já sabes que não vejo nenhum atractivo nessa pobre rapariga. E até tu deves reconhecer que Anoop não é um nome ideal para ela. É muito agradável e sem dúvida virtuosa, mas não é a «beleza incomparável» que o nome dela sugere. — A beleza não é apenas um atributo físico. — Kuldip franziu o sobrolho com severidade fingida. — Estou certo de que a alma dela é incomparável — disse Rabindrah, sorrindo. — Mas não é a pessoa certa para mim. Sou um partido invejável em Nairobi, não precisas de me desvalorizar. Além disso, ouvi dizer que ela gosta de um dos filhos do Patel do outro lado da rua. — Ele não é a pessoa indicada para ela. — Kuldip não escondeu a sua reprovação. — Essa família não tem estatuto nenhum, nem na sua própria comunidade. Não sei se sabes mas o pai foi suspeito de desfalque. Foi por isso que o despediram dos caminhos-de-ferro. — Pois é, mas se não atender à minha carreira, não estarei à altura de nenhuma das tuas lindas raparigas — disse Rabindrah. — E, por enquanto, acho que prefiro desempenhar o papel do jornalista que luta pela sobrevivência e não é suficientemente fiável nem estável para uma rapariga bem-educada. Um exemplar pouco interessante. Ainda acabas a sentir vergonha de mim se me empurras para um casamento prematuro. Só ia prejudicar a tua reputação de casamenteira. — És um rapaz mimado e arrogante — disse ela, rindo e dando-lhe um leve safanão na orelha. — Ainda bem que a tua mãe não está aqui para ver como te portas. Não julgues que eu estava a dormir quando chegaste às quatro da manhã. De vez em quando precisas de chegar a casa a horas decentes e poupar o teu dinheiro para uma esposa e uma família, em lugar de o gastares nesses antros dissolutos. Estás com trinta anos. É tempo de assentares. — Mas ainda estava a rir-se e a revirarlhe os olhos quando ele arrancou no carro.
O inspector Hardy tamborilou com os dedos no tampo da secretária, irritado com o jornalista indiano. Não tinha vontade nenhuma de discutir o homicídio de Piet van der Beer com este escrevinhador aguerrido de Nairobi que não conhecia. Mas o sique persistia nas suas perguntas e era evidente que tinha lido todos os relatórios. Feito o trabalho de casa. — Foi um incidente muito desagradável — Hardy foi obrigado a admitir. — Principalmente porque foram essas duas raparigas que encontraram o corpo. Não sei como não perderam o juízo depois do que viram nessa noite. Posso saber porque é que está interessado nisto agora? — Estou a escrever um artigo sobre a Sarah Mackay e o estudo sobre os elefantes em Buffalo Springs. Estou convencido de que as pessoas se interessarão mais pelo trabalho dela se lhes der alguma informação de carácter pessoal. Mostrar como é corajosa em perseverar depois de uma tragédia destas. E a irmã também, continuar na fazenda e tudo isso. O caso foi arquivado passado pouco tempo. — Arquivámos o caso porque possuíamos todas as provas necessárias para o arquivar. O Githiri foi devorado por hienas. Para ser mais directo, provavelmente estava manchado de sangue e foi atacado quando fugia do local do crime. Encontrámos o toucado dele e outros objectos na floresta,
ao lado dos seus ossos. Graças a uma estranha justiça natural, pudemos arquivar o processo. — O polícia encolheu os ombros, pegou no cassetete e levantou-se, desejando visivelmente pôr fim à conversa. — No fundo, foi uma felicidade. — Mas qual foi o motivo dele? — perguntou Rabindrah, continuando sentado. — E a polícia não receou que se dessem mais matanças do género? — Não houve mais matanças. — Hardy carregou o sobrolho, o olhar empedernido. — Porque o Githiri morreu. E os incidentes anteriores só tiveram Langani como alvo. Por isso, faz sentido presumir que foram perpetrados pelo mesmo homem. — Que incidentes anteriores? — Houve um assalto armado à fazenda alguns meses antes. E algum gado foi chacinado. — O Piet van der Beer era um indivíduo bruto, então? — Rabindrah estava a tomar apontamentos no caderno. — Violento com os watu dele? O seu assassínio tinha as marcas de um ritual. Ou talvez tenha sido vingança. — O Piet era um dos jovens mais impecáveis que alguma vez conheci. — As palavras de Hardy encerravam uma ponta de indignação. — O tipo de homem de que este país precisa, para que as pessoas de todas as raças trabalhem em conjunto. Conheço a família van der Beer há muitos anos. Pessoas decentes e honestas que sempre trataram bem os seus trabalhadores e eram respeitadas pelos vizinhos. — E o pai? — perguntou Rabindrah. — Ao que sei, pertencia ao Regimento Real de Carabineiros e combateu os Mau-Mau. E partiu para a Rodésia por altura da Independência. Correcto? — Foi um de muitos agricultores que partiram pouco antes ou depois da Independência. — O inspector não fez qualquer tentativa para disfarçar a sua fúria crescente. O seu rosto cobrira-se de vermelho e, dirigindo-se à porta do gabinete, abriu-a. — Sinto muito mas não lhe posso dar mais informações. E tenho lá fora dois askaris à espera que não podem estar parados. — Gostava de saber se tem informação sobre os padres que foram professores do Simon Githiri na escola da missão e se sabe onde estão agora. — Rabindrah levantou-se, mas ainda tinha o caderno na mão. — Ouça, não me parece que seja necessário outro artigo sensacionalista. Só causaria angústia aos sobreviventes. Já passaram por demasiado sofrimento. O assunto já está encerrado. — Hardy não estendeu a mão. — Adeus, Mr. Singh.
Uma hora mais tarde, Rabindrah parou numa duka à beira da estrada para perguntar o caminho para Langani. Nunca tinha visitado uma fazenda de africânderes e era pouco comum, por sinal, encontrá-las naquela região. Na sua maioria, localizavam-se mais para oeste e para norte, no planalto de Uasin Gishu com as suas infinitas searas e filas de árvores-da-borracha que sempre considerara deprimentes. Como os bóeres que as tinham plantado. Conduzindo através da propriedade dos van der Beer, sentiu-se impressionado com a sua beleza e diversidade e com a visão dos picos cintilantes do monte Quénia, a elevar-se do trigo, na sua beleza assombrosa e distante. Parou por momentos para observar um grupo de girafas a afastar-se apressadamente. Mais à frente, uma trupe de babuínos atravessou a estrada poeirenta, o macho maior detendo-se para abrir a boca e exibir a ferocidade de dentes compridos e afiados. Rabindrah estremeceu. Nunca
tinha gostado de macacos, tinha inclusivamente medo deles. Em criança, vira babuínos amontoar-se diante do pára-brisas do carro do pai, no Parque Nacional de Nairobi, e enquanto as irmãs e os pais se desfaziam a rir com as suas palhaçadas, ele escondia-se no banco de trás, desejoso de que desaparecessem. Dobrou uma curva no caminho e deparou-se subitamente com uma sebe aparada e uma construção baixa de pedra rodeada por um sumptuoso relvado. A terra fora transformada num lugar de beleza organizada e meticulosa, com canteiros redondos e arbustos de todas as cores e feitios. Era quase impossível ver o telhado da casa ou os pilares que a sustinham. Toda a estrutura estava coberta com ramagens emaranhadas de madressilva e buganvília e outras plantas trepadeiras que ele não reconheceu. Quando desligou o motor e saiu do carro, achou-se num sítio onde o vento assobiava através das árvores e, por um momento, para além deste som, somente se ouviram os pios das aves. E então rompeu um frenesim de latidos e três cães enormes, de pêlo eriçado, surgiram no alpendre. Rabindrah paralisou. O sol desapareceu subitamente atrás de uma nuvem que passou e o lugar encheu-se de frio e ameaça. — Deseja alguma coisa? — A mulher era jovem e loura e estava num estado de gravidez avançada; a sua voz encerrava as cadências monocórdicas de uma africânder. — Não tenha medo dos cães. Não fazem mal. Lançou um assobio aos colossais animais, que estacaram, embora continuassem a produzir leves rosnidos do fundo da garganta. Rabindrah ficou grudado ao chão, completamente imóvel. — Queria falar com Hannah van der Beer. — Sou eu. Mrs. Olsen, mais precisamente. Vem por causa da semente que encomendámos? Ou é da serração? — Nem uma coisa nem outra. Sou jornalista e gostava de trocar algumas impressões consigo. — Sobre quê? — Hannah entrou em tensão e permaneceu no degrau de cima do alpendre, olhando para ele em baixo. Não o convidou a entrar em casa e ele sentiu-se em desvantagem. Era exasperante como estes agricultores brancos ainda conseguiam, por qualquer razão, fazê-lo sentirse inferior. — Li sobre o que aconteceu ao seu irmão. — Viu o rosto dela crispar-se. — Lamento muito. E conheci recentemente a Sarah Mackay em Nairobi. Aliás, ela enviou-me algumas fotografias que eu usei num artigo sobre a pesquisa dela. De certo modo, pode dizer-se que temos estado a colaborar. Soube que planeia transformar uma parte desta fazenda numa reserva de vida selvagem. Para continuar a obra do seu irmão. É uma atitude de grande coragem. Pensei, por isso… — Se já sabe, não compreendo o que está a fazer aqui — disse Hannah. — Neste momento, eu e o meu marido estamos a tentar explorar uma fazenda, como o resto das pessoas nesta região. E contamos, sim, abrir um pequeno lodge um dia mas não de imediato. Sinceramente, não tenho nada a dizer aos jornais. — Realmente, deve estar cansada de jornalistas e em circunstâncias terríveis. Mas julgo que as razões do assassínio do seu irmão continuam por esclarecer. Quer dizer, nunca se descobriu o motivo e… — A polícia investigou a morte do meu irmão. — Ela avançou, com movimentos desajeitados, descendo lentamente os degraus. Mas os seus olhos chispavam de dor e raiva. — O assassino foi encontrado. Era um louco e está morto. E não desejo discutir o assunto consigo. Nem com ninguém de jornal nenhum, nunca mais.
Ele viu-a juntar as mãos para as impedir de tremer. Antes de ter hipótese de responder ou de tentar acalmá-la, um homem alto apareceu ao fundo do alpendre. — Que se passa, Han? — perguntou ele, pondo-se ao lado dela. — Que é que este indivíduo quer? — Ouviu a explicação dela por um momento, passando-lhe o braço pelos ombros. Depois virou-se para Rabindrah. — Não compreendo porque é que veio aqui. Mas, como vê, a minha mulher está grávida e não quero que ela se aflija. Não temos nada a dizer sobre a morte do irmão dela nem sobre nós. Agora agradeço-lhe que se vá embora. — Pensei que Mrs. Olsen gostaria de falar do projecto de um santuário de vida selvagem na fazenda — disse Rabindrah. — Não é minha intenção afligir ninguém. — Que outro efeito pode ter a sua visita? — disse Hannah. — Acha que o assassínio do meu irmão é um tópico conveniente para uma visita a meio da tarde? Estava a contar com chá e com uma conversa sobre a vida e o corpo esquartejado dele? — Ela levantara a voz e ele viu-a enterrar os dedos na manga do casaco de safári do marido. — É melhor ir-se embora — repetiu Lars. Salientavam-se duas veias no seu pescoço e a expressão era de fúria no seu olhar. — E não há razão nenhuma para cá voltar nem para nos incomodar. — Lamento que pense assim — disse Rabindrah —, porque estou a escrever uma série de artigos sobre conservação e sei que tencionam transformar parte da fazenda numa reserva de vida selvagem. Podia inclusivamente ajudá-los. Mas Lars tinha virado as costas. Pegou no braço da mulher e conduziu-a para dentro de casa, deixando Rabindrah sozinho no caminho de acesso com os cães. O sol da tarde furou as nuvens, iluminando a ampla casa, a sua luz doce banhando o profundo recesso do alpendre. Foi então que a viu, a rapariga irlandesa. Estava a uma janela, a observá-lo, de braços cruzados e rosto tenso. Quando se apercebeu de que ele a vira, levantou os braços e fechou as cortinas. — Se mudar de ideias, Miss Mackay tem o meu número — gritou Rabindrah à figura de Lars, que se afastava. Mas, assim que proferiu as palavras, arrependeu-se. Não queria alienar a rapariga. Ela continuava a ser um tema excelente para uma história. E outra ideia começara a formar-se no seu espírito. Hannah deteve-se por um momento e olhou por cima do ombro, branca de raiva. Depois seguiu para dentro de casa. Os cães ainda estavam ao lado dos degraus, espiando todos os movimentos de Rabindrah. Este rodou nos calcanhares e entrou para o carro, espumando de raiva pela forma como tinha sido tratado. Ouviu-se o som do cascalho a estalar quando ele acelerou, deixando atrás de si, ao arrancar, um rasto de pó e inquietude.
— Sabias que esse repórter indiano cá vinha? — perguntou Hannah ao jantar. — Ele disse que tu e ele estavam a colaborar, Sarah. — Nunca imaginei que ele aparecesse em Langani — disse Sarah, aborrecida com a sugestão de que era responsável pela visita. — E não estamos a colaborar. Mandei-lhe algumas fotografias para ele usar no artigo sobre a pesquisa do Dan e da Allie, mais nada. — Ele fez-te perguntas sobre o Piet? — quis saber Hannah. — Quando o conheceste em Nairobi, ele quis informações sobre… sobre a morte do Piet?
— Não falou em nada — disse Sarah, perturbada. — Acho que não me tinha associado ao Piet. Eu era simplesmente uma pessoa dedicada à investigação dos elefantes em Buffalo Springs. — Mas deve ter cá vindo por tua causa — disse Hannah, num tom acusador. — Falou em ti. E que é que ele quis dizer… por esclarecer? O Piet está morto e esse maldito bárbaro que o matou também. Que mais há para esclarecer, excepto o facto de as nossas vidas estarem desfeitas e nunca mais se recomporem? — Os jornalistas estão sempre a tentar arranjar novas abordagens para histórias antigas, Han. — Lars estendeu a mão para lhe afagar o braço. — Não tenho dúvida de que era o que esse indivíduo pretendia fazer. — Mas devia haver mais qualquer coisa atrás da pergunta. Qualquer coisa que lhe disseste em Nairobi, Sarah, que o trouxe aqui. — Não estás a ser justa. — A expressão de Sarah estava carregada de ressentimento. — Nunca encorajaria ninguém a vir a Langani para fazer perguntas sobre o Piet. Ou meter-se na nossa vida. O nome do Piet não foi sequer mencionado em Nairobi. Não sei porque é que o homem cá veio, mas não tive rigorosamente nada a ver com isso. Valha-me Deus, já sabia que não devia ter ido a essa apresentação. Tinha o pressentimento de que alguma coisa ia correr mal. — Também tinhas um pressentimento a respeito do Simon Githiri — disse Hannah. — Achavas que saberias se ele morresse na floresta. Que o terias sentido de algum modo e que isso teria ajudado a pôr fim a todo o horror. E agora está a ser tudo desenterrado outra vez. — Não fiques transtornada, Han — disse Lars. — Não te faz nada bem neste momento. A Sarah não teve nada a ver com a visita desse sujeito. Sabes muito bem. Hannah olhou para eles por alguns momentos e depois começou a chorar. — Meu Deus! Meu Deus, porque é que isto nunca mais acaba? Quando é que vai passar e deixar-nos viver com um pouco de paz e as boas recordações dos tempos de felicidade? — Inclinou-se para a frente, com as mãos abertas sobre a barriga, chorando convulsivamente. — Às vezes, penso que devíamos partir. Deixar Langani. Acho que já não pode acontecer nada de bom aqui e que a nossa vida é um engano. Se calhar devíamos arranjar outro sítio e começar de novo. — Então, minha querida — disse Lars. — Vamos sentar-nos à lareira e o Mwangi traz-te uma bebida quente. Depois deitamo-nos cedo e vais ver como tudo parece melhor amanhã. Sentaram-se por algum tempo diante do fogo, cada um deles tentando recuperar algum sentido de esperança, por mais frágil que fosse. Foi Hannah quem quebrou o silêncio com uma desculpa.
— O Lars tem razão. Tenho de me ir deitar. Estou cheia de dores nas costas e sinto-me exausta. E pesada. Se não me deito já, caio para o lado. Boa-noite, Sarah. — Inclinou-se e beijou a amiga, pegando-lhe na mão. — Desculpa a minha estupidez, não estava em mim. Amanhã já estou bem. Lars levantou-se para ajudá-la e saíram juntos da sala. Mwangi andava de um lado para o outro, a levantar pratos, circunspecto e silencioso. Na obscuridade da sala, Sarah sentiu os fantasmas juntarem-se e começou a desejar ter voltado imediatamente para Buffalo Springs. Depois ouviu o som de passos precipitados e Lars entrou a correr. — Acho que temos um problema — disse ele. — A Hannah está a sangrar. Vou já ligar ao Dr. Markham. Acho que temos de levá-la para o hospital. Esse maldito jornalista é o responsável. — Vou embalar algumas coisas de que ela pode precisar — disse Sarah. — Posso ir com ela
atrás no Land Rover e tu conduzes. — Mwangi, tens de ajudar a levá-la para o carro — disse Lars, completamente branco. — Ela não está em condições de andar. Não houve tempo para mais discussões. Um gemido terrível chegou do quarto e Sarah precipitouse para lá, encontrando Hannah encolhida na cama, a boca aberta a tentar respirar profundamente para dominar as primeiras dores. — Está em trabalho de parto. As águas rebentaram — disse Sarah, agarrando na mão enorme e transpirada de Lars. — Tens de chamar o Dr. Markham. Acho que é demasiado arriscado levá-la agora para o hospital. O bebé vai nascer aqui, em Langani. — Debruçou-se e pousou a mão na testa de Hannah. — Vai correr tudo bem, Han. Estamos aqui para te ajudar. Não te preocupes. Respira. Inala grandes golfadas de ar e prepara-te para fazer força. — Entendes alguma coisa de partos? — Hannah levantou os olhos arregalados com o medo. — Ensinaram-te na universidade? — Claro que sim. — A mentira escapou-se da língua de Sarah, que tentou dominar uma sensação de pânico crescente. Nada a havia preparado para aquilo. — Lars, diz ao Mwangi que vá chamar a mulher, a Agnes. Ela ajudou dezenas de bebés a nascer na sanzala e na clínica da Lottie. E vamos precisar de água quente e montes de toalhas e algodão. Vá, respira, Hannah. Respira fundo. Vou lavar as mãos e preparar-me para o grande momento. Encontrou Lars à porta do quarto, imóvel como uma estátua e transido de medo. — Meu Deus, não vou conseguir aguentar — disse ele. — Não sei como posso ajudá-la. Quando ela grita assim, não sei que fazer. Isto é terrível. — Não digas disparates — disse Sarah bruscamente. — Controla-te, Lars. Já deves ter ajudado a nascer montes de vitelos. Agora já sabes porquê. Era para praticares. Para o nascimento do teu filho ou filha. Mas somos capazes de ter uma longa noite à nossa frente. Conseguiste contactar o Dr. Markham? — Falei com a mulher. Ele está com a velha Mrs. Hudson, que teve um violento ataque de asma e precisava de oxigénio e provavelmente de ser transferida para o hospital. Vem para aqui logo que possível, mas não pode dizer quando. Os Hudson moram a trinta quilómetros daqui e a estrada deles está em mau estado. — Sarah? — Hannah estava a chamar. — Sarah, não saias mais de ao pé de mim. — O seu rosto estava coberto de suor e ela estava agarrada ao lençol que a tapava. — Estou cheia de medo. E agora que começou, não sei se isto vai resultar. Não sei se o Lars é capaz de nos amar, de amar este bebé que não é dele. E nem sequer tem nome ainda. Nunca discutimos o nome. Oh, meu Deus, isto é horrível. Nunca imaginei que fosse assim. — Hannah, eu tenho um nome. — Lars apareceu à entrada e depois atravessou o quarto para se sentar na borda da cama e lhe pegar na mão. — Se tivermos um filho, vamos dar-lhe o nome do meu melhor amigo, Piet. Mas se for uma rapariga, Han, quero que ela tenha um nome norueguês. Quero pôr o nome de Suniva à minha filha. Era uma princesa irlandesa, sabes? Aqui como a Sarah. Foi para a Noruega e era amada por todos e o nome significava «dádiva do sol». É assim que se há-de chamar a nossa filha. Suniva, sim. Hannah levantou os olhos para ele e sorriu mas logo o seu rosto se crispou, quando a onda de dor seguinte a atingiu, e ela se contorceu na cama, os seus dedos agarrando-se ao braço de Sarah. Lars manteve-se de lado, sentindo-se constrangido e deslocado. A sua calma habitual abandonara-o.
Mwangi trouxe chá para Sarah e, após um breve olhar a Lars, desapareceu, regressando com um grande copo de conhaque. A mulher dele chegou com o sorriso exasperantemente alegre de uma mulher que assistira ao nascimento de muitas crianças. — Eh, bwana Lars, daqui a nada tem um lindo menino para o ajudar na shamba — disse Agnes, afastando-o firmemente para o lado. — Vá, agora deixe as mulheres fazer o trabalho delas. Sukuma, memsahib Hannah. Agora que o dia chegou está tudo bem. Sukuma, Mama! Faça força! E todas as tragédias passadas foram esquecidas enquanto exortavam Hannah a respirar, a fazer força ou a repousar. Durante as horas seguintes, as suas palavras tranquilizadoras misturaram-se com os seus gritos de dor, com os gemidos de medo de Lars e as instruções experientes da parteira quicuia. Finalmente Sarah teve o primeiro vislumbre da cabeça do bebé e depois, com um último e poderoso empurrão de Hannah, a criança veio ao mundo. Sarah pegou nela enquanto Agnes limpava o sangue e o muco da sua pequena carinha. Depois pousou-a, com o cordão umbilical ainda a pulsar, sobre o peito de Hannah. — Tens uma menina, Hannah. Uma menina muito bonita. — A voz de Sarah estava a tremer. — O Lars vai já cortar o cordão umbilical. Parabéns, Han. Ao lado de Lars, viu os dedos dele tremer enquanto separava a mãe da filha e ouviu a bebé a chorar pela primeira vez. Os olhos dele estavam marejados de lágrimas de alívio ao contemplar a perfeição da pequena criatura. A bebé abriu os olhos violeta, olhando para ele com uma expressão solene. Lars olhou para ela enlevado, o seu corpo minúsculo quase perdido nas suas enormes mãos, e os dedos dela fecharam-se então sobre um dos seus e, com um leve suspiro, adormeceu. Lars olhou para Hannah, deitada no suor e no sangue deixados pelo trabalho de parto, o cabelo húmido e desgrenhado, e depois para a bebé adormecida nos seus braços. E disse a Sarah — Nunca vi duas pessoas tão belas em toda a minha vida.
CAPÍTULO 3
Londres, Agosto de 1966 podes virar as costas à tua carreira, à espera de que esse esquema absurdo no Quénia –N ãoresulte. — Tom Bartlett estava furioso. — É uma ideia irresponsável que te pode arruinar. — Arruinar como? — A expressão de Camilla era calma. — Já te esqueceste convenientemente do que aconteceu no Verão passado? — perguntou ele, incrédulo. — Eras o rosto mais perfeito do mundo quando partiste daqui e, seis semanas mais tarde, entraste neste gabinete com a cabeça cortada por uma panga monstruosa. — Afastou-lhe o cabelo da testa. — E esta cicatriz? Cinco homens de facas em punho irromperam pela fazenda dos van der Beer e atacaram-te. Dispararam sobre o Lars, o teu amigo agricultor. E quase te destruíram a cara. Andaste com os nervos em franja durante meses. Só agora começaste a normalizar. Santo Deus, podias ter sido assassinada. E agora queres voltar para o sítio onde tudo isso aconteceu. Não me parece uma atitude muito inteligente. Nem reflectida. Mas eu não passo de um rapaz simples do East End, que sei eu? — Foi um incidente isolado. Um roubo. — Camilla arvorou um sorriso doce. — Podia ter sido atacada com a mesma facilidade numa rua escura de Londres ou no souk em Tânger quando estávamos a fazer as fotos para a Tatler. — Não sejas estúpida — disse ele. — O tipo de perigo de que estamos a falar é… — Além disso, já estive no Quénia depois disso — interrompeu-o ela, consciente da fragilidade do seu argumento. — E estava tudo calmo em Langani. — Ai sim? Então como é que explicas que um dos teus melhores amigos lá tenha sido assassinado há alguns meses? — disse ele brutalmente. — É um país perigoso como o raio, Camilla. — Discordo. — Camilla olhou para um cartaz de si própria, encaixilhado na parede atrás dele. — Foi um louco que matou o Piet van der Beer. Um jovem quicuio que podia estar drogado ou a praticar algum ritual ou que era simplesmente doido varrido. O Piet fez parte da minha vida desde criança. Era o irmão adorado da Hannah, o único irmão, e estava noivo da Sarah. É evidente que nunca nenhuma de nós há-de recuperar completamente disso. — Mordeu o lábio, tentando serenar. — Sabe-se lá porque é que estas coisas acontecem. Mas não é diferente de um lunático que empurra um passageiro incauto para debaixo de um comboio sem razão aparente. Seja como for, o homem que matou o Piet está morto. Ninguém em Langani corre agora perigo. — Nunca te deixas impressionar por nada? — Tom reclinou-se na cadeira e pôs os pés na secretária. — És a beldade mais famosa da Europa e em breve também vais conquistar os Estados Unidos. Frequentas festas com os Beatles e os Stones, apareces nas capas de todas as revistas e entraste em todos os programas de televisão em que vale a pena entrar. Foste fotografada pelo Donovan, pelo Bailey e pelo John French. Aliás, toda a gente te quer fotografar, escrever qualquer coisa sobre ti, alardear que te conhece. E queres deitar tudo a perder por causa de uma maldita
quimera. — Preciso de viver uma vida diferente — disse ela, inclinando-se sobre a secretária para colocar os olhos ao nível dos dele. — Estou farta de estúdios e objectivas e roupas idiotas e carradas de maquilhagem na cara. Estou farta de ser parada na rua, de ser convidada do Ready Steady Go e de ter flashes a piscar na cara. Parece tudo extremamente banal. — Ao contrário de coisas verdadeiramente válidas como agachares-te sobre uma fogueira numa cubata de adobe, a cozinhar uma perna de búfalo para o regresso do caçador. Uh, uh, uh! — Soltou rosnidos e coçou as axilas. — Onde é que vais depilar as pernas, querida? — És tão cegueta, Tom — disse ela, furiosa. — Este não é o único sítio onde se vive. Não vou deixar de existir só porque não estou em Londres. Fora da tua órbita deprimente. Há outros mundos, sabias? Estou farta de ser um cabide caro para roupa. Esta minha ideia, esta oficina no Quénia, é uma coisa que vale a pena. — Não percas tempo a tentar convencer-me da tua fantasia. — Tom acendeu um cigarro e expeliu lentamente o fumo, criando uma cortina de fumo entre ambos. — Sei qual é a verdadeira razão para regressares, que é ainda mais estúpida que o próprio esquema. — Vou voltar para começar um negócio. — Já tens um negócio, se é que ainda não reparaste. Temos os dois, querida, e não nos temos dado nada mal. Fazemos pipas de massa. O Saul Greenberg pôs o teu nome nos vestidos refinados que vende e agora vais receber um agradável bónus sempre que uma secretária qualquer comprar um na esperança vã de se parecer contigo. Nas próximas semanas, Nova Iorque vai ser inundada de fotografias tuas e esse patarata embeiçado, o Greenberg, quer dar o teu nome a uma linha de lingerie e cosméticos. Quantos mais negócios é que queres? — Quero criar a minha própria linha de roupa, sacos e joalharia. Com um tema africano, limitada em número e completamente diferente. Desenhada por mim. — Grande ideia. Posso arranjar-te já um estúdio e podes começar o teu projecto hoje à tarde. Há um espaço ideal três portas mais à frente. Palavra. — Estás a zombar de mim, o que é paternalista e insultuoso. Vou fazer isto no Quénia porque é lá que quero estar. — Calou-se, consciente de que precisava de se mostrar calma e razoável. Era extremamente difícil explicar a alguém que não conhecia o poder e a atracção de África, impossível racionalizar a forma como a essência do sítio se havia há muito entranhado na sua alma. Ela própria tinha dificuldade em compreender. — Posso ser pálida e loura, mas as minhas raízes estão em África. Eu sei que nunca hás-de perceber, como não compreendes a ligação entre mim, a Hannah e a Sarah. Enquanto cresci, foram elas a minha tábua de salvação. As irmãs que nunca tive. Como filha única, era quase sempre deixada por minha conta numa casa fria e infeliz. Só em Langani experimentava o afecto de um lar e de uma família. Lá, sentia-me em segurança com as minhas duas amigas e nessa altura prometemos que nunca nos separaríamos. Cortámos as mãos, misturámos o sangue e fizemos esse voto. Adoro aquela fazenda e o país e a vida selvagem que a Sarah está apostada em preservar. Quero voltar e contribuir com qualquer coisa minha. É o lugar a que verdadeiramente pertenço, Tom. — Se queres saber, acho tudo isso uma grande chachada sentimental — disse ele. — Hei-de continuar a ganhar muito dinheiro e tu continuas a ser o meu agente — disse ela, ignorando o seu escárnio. — Vou começar com casacos, sacos e cintos, bordados com missangas, penas, pedras semipreciosas e cristais tribais. Como as coisas que vendi em Londres no princípio
deste ano. Vão ter a mesma qualidade do vestido de noiva que fiz para a Hannah. Disseste que o tinhas adorado. E o Saul prometeu usar tudo o que eu conseguir produzir. Está louco com a ideia. — Está louco por ti, mais nada. — Tom fez um gesto lúbrico. — Podes dizer os maiores disparates do mundo, que ele acha tudo bem. Admito que as pessoas possam achar momentaneamente graça à ideia de andarem vestidas de donzelas masai. Mas ao fim de uma estação, vais ver-te grega para despachar um stock que passou de moda. Que é que fazes nessa altura? — Crio novos modelos, como qualquer outro estilista — disse ela, impaciente. — Um número limitado de peças por ano. E estou disposta a fazer sessões selectivas de fotografia de moda sempre que tiver tempo. — Sessões selectivas de fotografia de moda! — disse ele num tom escarninho. — Não acreditas seriamente que vais continuar na corrida para os melhores trabalhos quando estás a milhares de quilómetros em África a suspirar pelo Tarzan. A Jean Shrimpton está disponível e está aqui à mão. Para não falar da Twiggy, que continua a ser solicitada, e da Penelope Tree. Ele não merece, Camilla. — Não é por isso que vou — disse ela defensivamente. — Não vou fixar-me em Nairobi. Tenciono passar os primeiros meses em Langani. As mulheres locais que vou contratar precisam de formação. E de supervisão a tempo inteiro no início, caso contrário nunca mais consigo a qualidade que quero. Além disso, o Anthony passa a maior parte do tempo em safári. — Querida, estás completamente apanhada. Esse tipo tem consciência do que abandonas por causa dele? Porque até agora só conseguiu fazer-te infeliz, comportando-se como o don Juan egoísta que é. — Não tem nada a ver com ele, já te disse. — Deu um murro na secretária, entornando café no monte de fotografias e papéis que a cobriam. — Tenho cabeça, não sei se sabes. Sou capaz de planear e pensar por mim. — Ouve, Camilla, temos colaborado desde que começaste nesta actividade — disse Tom. — Sempre nos considerei amigos, além de parceiros profissionais. — E somos amigos — disse ela. — E tu tens feito coisas fantásticas por mim. — És inteligente e lindíssima, querida. — Acendeu outro cigarro e estudou o rosto que se inclinava para ele, com grandes olhos azuis que imploravam a sua compreensão. Ela tinha-se aproximado e empoleirado na beira da secretária, a minissaia subindo e revelando pernas extraordinariamente compridas e perfeitas. Surpreendia-o que a beleza dela ainda lhe cortasse a respiração. — Mas neste momento não estás a tirar o melhor partido dessa combinação. — Sei muito bem o que estou a fazer — disse ela, obstinadamente. — Não me interessa o que dizes. — Tom estava cansado da discussão. — Esse desejo por África só tem a ver com o caçador branco, Camilla. E nada do que ouvi sobre ele me diz que valha a pena. Também te esqueceste que acabo de te conseguir a capa da Vogue? Escolheram-te a ti como uma das três modelos das colecções de Paris. E vais passar todos os vestidos novos da Mary Quant para o próximo Verão. Para além do teu contrato actual com o Saul. Não podes virar as costas a isto. Não podes ser estúpida a esse ponto. — Teria de reparar a cara para as imagens da Vogue. Remover a cicatriz. — Levantou-se e dirigiu-se à janela, olhando lá para fora. — Pois terias. Foi esse o acordo e, graças aos meus esforços e incomparável charme, estão
dispostos a acreditar que será um sucesso total. — Olhou para ela com desconfiança crescente. — Pensei que ias resolver o problema da cicatriz em Novembro para estares pronta a trabalhar no princípio do ano. Foi o que disse o Edward e ele é o especialista. — Não quero o Edward envolvido nisto. — Ouve, foste a correr para África para o casamento da Hannah contra a opinião dele e ele ficou lixado. Tiveram um arrufo de namorados. — Tom suspirou. — Mas ele perdoa-te. Está apaixonado por ti, pobre diabo. O Edward é um tipo decente que há-de cuidar bem de ti. Há-de dar-te segurança e uma boa vida. Não é como esse personagem duvidoso de um livro de aventuras que não tem nada para oferecer senão uma vida de incerteza. — Eu e o Edward… já não andamos juntos. Sabes muito bem. Rompi com ele quando parti. Não seria justo… — Recorreres novamente ao melhor cirurgião plástico de Londres, conforme previsto, e reparares a cara — interrompeu ele, perdendo finalmente a paciência. — Por amor de Deus, querida, vê se cresces. Tens de te libertar dessa cicatriz para conseguires os melhores trabalhos. — Estou a fazer os melhores trabalhos agora. — Tens-te safado nos últimos meses com franjas e chapéus a tapar-te a testa porque as pessoas foram compreensivas depois da experiência terrível por que passaste. Mas tens de te desembaraçar dessa cicatriz para evoluir. Adquirir um novo visual. A Vogue anda a falar em imagens ao ar livre, com vento a soprar o cabelo da cara. E para as fotos das jóias, querem um visual elegante, com cabelo penteado para trás. O fotógrafo é o Donovan e está com ideias de te pôr o colar de diamantes à volta da testa e não do pescoço. — Então pode usá-lo para encobrir a cicatriz — disse ela, tentando aligeirar a disposição dele. — Tens de entrar em contacto com o Edward porque é dele que precisas — disse Tom. — Não há volta a dar-lhe. Já agora, que é que o George diz da tua escapadela para Nairobi? — Ainda não lhe disse. — Evitou olhá-lo frontalmente. — De qualquer maneira, é-lhe indiferente. — Ele está lá a viver, por amor de Deus! É teu pai, Camilla. Se estás determinada em dar um passo tão irreflectido, pelo menos podes ficar com ele enquanto organizas a tua vida. Deve ter uma casa elegante cheia de espaço. — Não quero viver com ele. E se fosse assim tão bom pai, não teria fugido com o amante assim que a minha mãe morreu.
— Pensei que tinhas aceitado o namorado — disse Tom. — Pareciam todos muito amiguinhos da última vez que te vi com o George. — Tive de me resignar ao facto de ele ser… enfim, ao tipo de vida dele. Foi por isso que os convidei para jantar. Uma vez. Mas depois o meu querido pai partiu de férias com o Giles, ainda a terra estava fresca na campa da minha mãe. Isso não é um sinal de amor, Tom. — As pessoas fazem coisas esquisitas em momentos de dor — disse ele. — À maneira dele, o George amava a tua mãe. Tu própria o disseste. Ficaram juntos apesar de todos os problemas entre eles e, enquanto a Marina esteve doente, quase nunca saiu da beira dela. Eram muito chegados. — Sim — admitiu ela com relutância. — Mas ela está morta e as coisas agora são diferentes. Ele deixou tudo isso para trás. Deixou-me a mim para trás.
— Ele ama-te, Camilla — insistiu Tom. — Sabes muito bem. — Não, não sei nada — disse ela. — E o que me revolta é ter de fazer um esforço tão grande para tentar acreditar que sim. O amor não devia ser isso. Devia ser um sentimento profundo e inquestionável. Devíamos poder confiar na pessoa que amamos. Quando era criança, pensava que ele era a única pessoa em quem podia confiar porque a minha mãe era uma pessoa distante e imprevisível. Mas depois descobri que a vida do meu pai era uma mentira pegada e que não podia confiar minimamente nele. — É uma vítima da hipocrisia ao mais alto nível — disse Tom. — Se as figuras públicas como ele forem honestas e admitirem a sua homossexualidade, são consideradas um embaraço. Caem em desgraça e são perseguidas e escarnecidas. Até há pouco tempo, até podiam ser presas. Por isso, casam-se e vivem segundo as normas da sociedade. Mas quase sempre falham porque é contra a sua natureza. No fundo, é muito triste. — Estou cansada de coisas tristes — disse ela. — Tenho vinte e um anos, Tom, e tenho passado uma grande parte da minha vida triste. A minha mãe morreu e o meu pai é homossexual. Tive uma paixão em África que só me causou infelicidade. As minhas duas melhores amigas estão a milhares de quilómetros de distância e perdemos alguém que todas nós amávamos muito numa matança abjecta e primitiva. Não suporto mais tristeza. — Também és fenomenalmente bem-sucedida, rica e bela — disse ele. — Podes ir para onde quiseres. Fazer o que quiseres. — É o que tenho estado a tentar dizer-te. — A resposta superficial dele exasperou-a. — Dá ideia de que não ouviste uma palavra do que eu disse. Quero voltar para o Quénia. Fazer qualquer coisa para ajudar a Hannah e talvez também angariar fundos para o estudo dos elefantes da Sarah. São as coisas que realmente quero. Lá posso viver uma vida que fará uma verdadeira diferença para as outras pessoas. E não compreendo a tua determinação em dissuadir-me. — Porque é que te tornaste tão altruísta de repente? — Tom não estava convencido. — Foi alguma coisa que comeste? Se foi, é um prato que tenho de evitar. — Estás outra vez a gozar comigo — disse ela azedamente. — Tenho trabalhado como uma moura aqui em Londres, mas estou cansada. Estou farta deste meio frívolo, de aplicar três conjuntos de pestanas postiças e vestir carradas de roupas impossíveis para convencer milhões de pessoas de que podem sair à rua, comprá-las e parecer-se exactamente comigo. Quero fazer alguma coisa de meritório e acho que não devias mostrar-te tão desdenhoso em relação a isso. Ele saiu da secretária e colocou-se ao lado dela, passando-lhe o braço pelo ombro e virando-a para o encarar. Ela acabava sempre por conquistá-lo. Já desistira de esperar que ela pudesse um dia considerá-lo mais do que o seu agente e olhar para ele de maneira diferente. — Desculpa — disse ele, genuinamente contrito. — Passaste por muita coisa no último ano e eu sei que consideras África como a tua verdadeira pátria. Tira então dois meses e volta. Se estás determinada em lançar-te nesse negócio de estilismo, começa em pequena escala. Assim, não enterras demasiado dinheiro no esquema logo de início. E, se correr mal, podes pensar na aventura como uma experiência e voltar para aquilo que fazes tão bem. Ou podes viver as duas vidas… passar parte do ano no Quénia e o resto em Londres e Paris e até Nova Iorque. — Acabaste de me dizer que isso não funciona — realçou ela. — Mas não importa, porque não vou voltar, Tom. Excepto para vender as coisas que produzir lá. Hei-de ser tão boa estilista como fui modelo.
— Vamos ver. — Ele teve a sensatez de não insistir no assunto. — Entretanto, tens as fotos da Biba na próxima semana e as campanhas do perfume e das jóias e a grande viagem a Nova Iorque. Tens de cumprir esses compromissos antes de partires em busca do teu garanhão da selva. Aliás, devias também reparar a cara. Esconde-te no Quénia enquanto te restabeleces e depois volta para fazeres as colecções. Mas, por amor de Deus, não corras para África a construir edifícios e a comprar maquinaria e materiais caros que absorvam todo o teu capital. Hoje em dia, o Quénia não é um país seguro, Camilla. Não é a terra da tua infância, governada pelos ingleses e onde as pessoas como tu eram protegidas. — Continuas a não perceber, não continuas? — Ela queria que ele compreendesse. — A Hannah vai dar-me um sítio para viver e trabalhar… a velha casa do feitor na fazenda. O Lars já começou a converter o espaço com dinheiro que lhes enviei no mês passado. A minha oficina vai trazer postos de trabalho e receitas a Langani. Eles estão com dificuldades. A cultura do trigo e os lacticínios estão a correr bem, mas têm o dinheiro todo empatado no lodge que o Piet construiu. E a Hannah não pode abri-lo por enquanto, porque está ocupada com o bebé. Vai ajudar-me a ensinar as mulheres locais a costurar, a bordar e a aplicar missangas. E eu prometi-lhe que dividíamos as receitas. — Agora não tenho dúvida de que perdeste o juízo. — Tom abanou a cabeça, incrédulo. — Mas estás apostada em aprender à tua custa. Quanto a mim, a única certeza que tenho em relação a essa ideia louca é que hás-de estar de volta a Londres muito em breve, querida, a chorar por trabalho. — Se isso acontecer, é bom que tenhas montes de contratos na calha. — Camilla tentou mostrarse divertida, mas sentia-se magoada com a falta de fé dele no seu discernimento. — Posso acrescentar que nem sequer pensaste no que me pode acontecer. Como teu agente, corro o risco de perder imenso dinheiro, se insistires em sumir-te na selva. — Estás sempre a dizer-me que há mais raparigas bonitas em ascensão prontas a destronar-me. — És impossível, Camilla — disse ele. — E se jantássemos hoje? — Não, obrigada. Vou estar estourada depois da sessão no estúdio esta tarde. — Pronto, castiga-me então, só por me preocupar contigo e dar-te bons conselhos. Mas é bom que faças rapidamente as pazes com o Edward Carradine — disse Tom. — Porque, aconteça o que acontecer, precisas de te livrar desta linha na testa. Vá, desaparece. O Joe Blandford está à espera com aquela máquina enorme e não gosta de modelos que chegam atrasadas. Ela deixou-o, meia a rir, meia exasperada com a sua incapacidade para compreender a seriedade dos seus sonhos. O estúdio de Blandford estava excessivamente quente e cheio de pó e ela começou a tarde com um ataque de tosse que a deixou de olhos vermelhos e mole. — Quero que ponhas este vestido para te realçar os olhos. — Joe estendeu um trapo de seda azul. — E esta écharpe de penas. Quero que ponhas o ar de quem vai saltar sobre a lua… a boca bem aberta, a rir, a esbracejar. Sacode a cabeça para o cabelo voar. Quero que dês a ideia de estares a levitar. A sessão não correu bem. Camilla esforçou-se por esquecer os comentários de Tom, as observações depreciativas que ele tinha feito a respeito de Anthony, a dúvida que plantara no seu espírito. Mas não conseguia transformar-se na leve criatura que Joe pretendia fotografar. Ele ficou exasperado, gritando-lhe ordens, mandando a assistente mudar a posição dos projectores no estúdio
para que os planos e as sombras da cara dela se alterassem com cada enquadramento, praguejando quando o sorriso dela era artificial e a pose rígida. — Porra, que é que se passa contigo? Parece que te preparas para ir a um funeral. Parece que vais desatar a chorar. É alegria que eu quero ver. Quero alegria, porra! Isto é para a Vanity Fair, Camilla. Tens de pôr um ar alegre, linda. Não quero que tragas os teus problemas para o meu estúdio, sejam eles quais forem. Tens de te esforçar mais. — Sinto-me triste — disse ela, escondendo a cara nas mãos. Ocorreu-lhe uma ideia ao falar. — Vamos pôr a tónica no lado triste, Joe. Um vestido azul para um estado de espírito melancólico. Espera… deixa-me mostrar-te. Remexeu na saca, tirou cosméticos e pincéis e dirigiu-se ao grande espelho ao fundo da sala. Dez minutos depois, apareceu diante dele, o cabelo despenteado, os olhos delineados com kohl escuro, a boca pintada num traço descaído. Olhou para a objectiva, com um braço dependurado sobre a cabeça a emoldurar o rosto, os dedos a segurar num envelope rasgado. Com a outra mão, puxou o decote do vestido para baixo para expor a clavícula e a curva dos seios. Formaram-se-lhe lágrimas nos olhos que lhe correram lentamente pelas faces. — Estou gago! É isso mesmo! Lindo! Abre ligeiramente a boca. Agora não te mexas, querida. Quieta, quieta, quieta. És o máximo, Camilla. Não há melhor do que tu. Não há ninguém igual a ti neste ramo. Queres jantar logo? Abriu um restaurante novo com… — Vou para casa ler um livro e ver televisão. Preciso de uma noite calma. — Sorriu enquanto ele encolhia os ombros, fazendo um gesto teatral de contrariedade com a rejeição. Quando Camilla saiu do estúdio, a sua disposição ainda era sombria e o chapinhar dos seus passos nos passeios molhados pela chuva arrastaram-na ainda mais para o fosso da sua depressão. As pessoas acotovelavam-na à passagem na rua apinhada, os rostos encobertos pelos chapéus, cachecóis e guarda-chuvas. Uma onda de gente indiferente cujos problemas eram, provavelmente, maiores do que os seus. Essa percepção não lhe transmitiu qualquer consolo. Em casa, atirou a mala para cima da cama e pôs a correr o banho, deitando um frasco inteiro de óleo caro na água. Recostou-se na banheira e fechou os olhos para esquecer o dia e afastar a ansiedade. Mas Anthony Chapman encheu imediatamente o vazio que ela criara, com o seu rosto bronzeado, sardento e risonho, o cabelo ruivo encaracolado sobre a parte de trás do colarinho da camisa, as pernas altas abertas, os braços cruzados sobre o peito, mostrando as pulseiras de nómada que lhe adornavam o pulso. Tinha pensado que ele a amava, mas não queria rebobinar o filme de um passado que terminara em rejeição. Conseguira arvorar indiferença para com ele no casamento de Hannah, manter a calma, distanciar-se das suas investidas determinadas. Mas não fora fácil. Saiu do banho e secou-se rapidamente, vestiu um par de calças de camurça e uma camisola e torceu o cabelo, ainda húmido de vapor, num carrapito na nuca. Momentos mais tarde, estava num táxi a caminho do cinema. — Um bilhete para Cortina Rasgada, por favor — disse ela, relanceando para o cartaz. «Suspense dilacerante», proclamava em letras garrafais. Era exactamente do que precisava. Um escape agradável durante uma ou duas horas, uma visão do mundo através dos olhos muito azuis de Paul Newman. Comprou uma tablete de chocolate e encaminhou-se para a sala às escuras, tirando o casaco e o chapéu e baixando-se para pousar o guarda-chuva no chão aos seus pés. Ao endireitarse, viu Edward, conduzindo a companheira pela coxia em direcção aos lugares, duas filas à sua frente. A mulher, sorridente, levantou a mão e tocou-lhe na cara ao sentar-se. Camilla escorregou
para baixo no assento, rezando para que ela não a visse. Ficou aliviada quando o filme das actualidades começou, proclamando os mais recentes desastres mundiais e anunciando o drama das atracções seguintes. Quando as luzes se acenderam no intervalo, estava a tentar decidir se seria melhor ir-se embora. Mas era tarde de mais. Por qualquer razão, Edward virou-se para trás e os seus olhares cruzaram-se. Camilla levantou a mão num leve aceno. Ele respondeu com um aceno de cabeça, deu a impressão de que se ia levantar, pareceu mudar de ideias e voltou mais uma vez os olhos para o ecrã. Durante o filme, Camilla viu a mulher inclinar a cabeça sobre o ombro dele, mas ele fez um gesto imperceptível de afastamento, criando uma distância entre eles. — Como é que estás, Camilla? — Ele estava à espera à porta quando o filme terminou. — Apresento-te a Juliette Dawson. Provavelmente já se conhecem. Na luz forte do átrio, Camilla reconheceu a americana. Tinha trinta e muitos anos e ia precisar de um golpe de sorte para ir mais longe do que um papel secundário, mas era uma actriz competente. Edward estava provavelmente a tratar-lhe da cara. Ou dos seios. Ou de ambos. — Adorei o seu último filme — disse Camilla. — Achei que merecia um Óscar. — Eu também. — Juliette arvorou um sorriso deslumbrante, revelando uma dentição impecável. — O Edward está a contar que tome uma bebida connosco. — O seu tom não era muito entusiástico. — Ou nos faças companhia ao jantar — disse ele. — Já reparaste que passaram cerca de cinco meses desde que estive contigo? Gostava imenso de saber como correu a tua visita ao Quénia. — Agradeço imenso o convite, mas tenho uma sessão amanhã de manhã cedo — disse Camilla. — Gostei muito de vos ver. Adeus. Não dormiu bem e, quando o telefone tocou de manhã cedo, já estava acordada e inexplicavelmente ansiosa. — Queria apanhar-te antes de saíres para a tua sessão. — Edward tentou um tom despreocupado. — Estava a pensar se poderíamos jantar juntos esta noite. — Acho que não — disse Camilla. — Vou… — Cometi um erro. — A sua voz alterou-se. — Fiquei zangado quando partiste para Nairobi para o casamento da Hannah, o que foi uma estupidez da minha parte. É evidente que tinhas de ir. Não tinha o direito de sugerir o contrário e tu tinhas todo o direito de ignorar o meu conselho e ir. Vi a tua fotografia no jornal na semana passada e tenho andado a ganhar coragem para te ligar a pedir desculpa. Gostava de estar contigo, Camilla, agora que voltaste. — Não me vou demorar muito tempo por cá. Seguiu-se um breve silêncio. — Então, mais uma razão — disse ele. — Hoje à noite, pode ser? — Não. Não quero desentender-me contigo, Edward. Nem com ninguém. Vou voltar para me fixar no Quénia e já sei que vais tentar dissuadir-me. Mas não tenciono mudar de ideias e não tenho energia nem vontade de passar a noite a discutir. — Não faço tenções de discutir contigo — disse ele, calmamente. — Posso ir buscar-te às oito? Vamos a um sítio sossegado e podes contar-me tudo sobre o casamento e como foi o regresso a Langani.
Ela tinha-se esquecido de como era fácil abrir-se com ele. Edward, o Confessor, tinha-lhe chamado uma vez. Era um óptimo ouvinte e a sua expressão era de compreensão, ouvindo o seu relato do casamento na fazenda.
— Foi lindo. Extremamente comovente, estar ali no jardim da Lottie, a ouvir o Lars e a Hannah trocar votos. Mas senti um aperto no coração pela Sarah, porque ela e o Piet também se deviam ter casado ali. Foi um acto de coragem e generosidade da parte dela ter ido à cerimónia e até cantou para eles. Foi terrivelmente tocante. Só espero que a felicidade do casamento deles possa em parte anular a tragédia, começar a conciliar qualquer coisa que é inconciliável nos nossos corações. — Mas que trágica mistura de recordações — disse Edward. — É verdade. Senti a presença do Piet em todo o lado. Por vezes, parecia-me que o ouvia, que até sentia o cheiro dele. Não sei como eles aguentam o dia-a-dia, sabendo que ele nunca mais vai sair para o relvado e olhar para a montanha nem assobiar aos cães, nem atender o telefone. — Calou-se, engolindo em seco. — Agora nunca penso nele sem sentir essa dor terrível no coração. Por isso, tento não pensar. E tenho pena porque quero recordar tudo o que ele tinha de maravilhoso. — Pelo menos acabou — disse ele. — E o bebé da Hannah há-de trazer nova vida a Langani. — Suponho que sim, que acabou. — A sua voz vacilou. — Mas teria sido mais fácil pôr uma pedra no assunto se o Simon Githiri tivesse sido levado perante a justiça. Embora tivesse sido horrível passar dias ou semanas numa sala de tribunal, a ouvir todos os depoimentos macabros, a pensar no Piet a morrer na crista. — Estremeceu e ficou calada por alguns momentos. — A verdade é que nunca mais há-de acabar — disse ela finalmente. — Quais são agora os teus planos? — Edward baixou os olhos para o copo, não querendo que ela visse a esperança que mal conseguia esconder. Ela sempre tivera sobre ele aquele efeito absurdo, levando-o a comportar-se como um adolescente num primeiro encontro e não como um homem de quarenta e dois anos, maduro e bem-sucedido. — Vou regressar. Assim que puder. Ela já lhe tinha dito aquilo ao telefone mas, ao ouvi-lo da sua boca, foi como se tivesse levado um murro no estômago. Como se tivesse ficado sem ar. No entanto, conseguiu sorrir-lhe e beber o resto do vinho enquanto ela lhe relatava os seus planos. — Decidi começar um negócio lá, a fazer roupa com a minha marca. Acho que há aqui um mercado para ela e também na América. — Camilla ficou surpreendida por ele não tentar imediatamente dissuadi-la, nem exprimir cepticismo em relação ao projecto. — Não posso partir já porque estou comprometida com uma série de sessões fotográficas e o Saul Greenberg está prestes a lançar a linha de vestidos com o meu nome. Tenho de viajar para Nova Iorque na próxima semana para fazer essas fotos. Mas gostava de partir para o Quénia antes do Natal, se possível. Edward acenou com a cabeça, ainda receoso de comentar. Não podia deixá-la escapar mais uma vez e agora via que dispunha de algumas semanas em que ela talvez mudasse de ideias. Se fosse cauteloso e subtil, talvez conseguisse convencê-la a dirigir o negócio a partir de Londres, sugerindo-lhe que contratasse e treinasse um gerente local em Nairobi e se deslocasse lá em visitas de supervisão ocasionais. Talvez Hannah pudesse até encarregar-se da empresa quando esta estivesse em marcha. Não achava que fosse um projecto a longo prazo. Entretanto, havia toda a excitação da sua primeira visita a Nova Iorque com o esplendor e adulação que a acompanhariam. Era impossível acreditar que ela desistisse de tudo isso para ir para o Quénia, presumivelmente porque continuava embeiçada pelo caçador branco. — Acho que é um sinal de grande coragem pensares em ir para lá viver — disse ele. — Depois da morte do Piet e da tua própria experiência em Langani. A propósito, a tua cara está com bom aspecto.
— Pois está. Graças a ti. Mas o traço na testa é visível nos planos próximos e preciso de me desembaraçar dele. — Fez uma pausa. — Estava a pensar se estarias na disposição de tratar disso. — Claro que sim — disse ele sem hesitar. — Logo que estejas preparada. Mas vais ter de ficar algum tempo sem trabalhar. — Imaginava-se a levá-la de férias para uma ilha exótica, a passar tempo com ela na província em Inglaterra, porventura a ficar na casa de campo em Cotswolds que Camilla tinha herdado da mãe. — Posso esconder-me no Quénia até depois do Ano Novo — disse ela. — Tenho de voltar para fazer as fotos para a Vogue em Paris e o trabalho para a Quant, porque não quero deixar ficar mal o Tom. Além disso, preciso de continuar a ganhar dinheiro como modelo até o meu novo projecto se consolidar. Mas Langani é um bom lugar para me restabelecer. — Soube que o George foi viver para Nairobi — disse ele. — Está a dar-se bem? O Giles Hannington foi com ele? — Não faço ideia. — Tornou claro que não queria falar sobre o pai. — Gostava de estar contigo no fim-de-semana. — Mudou de assunto, escolhendo um tema mais optimista. — Ouve, Edward — disse Camilla —, gostei imenso de jantar contigo. Mas não posso voltar ao ponto em que a nossa relação ficou e não quero… magoar-te. Não é boa ideia começarmos a estar regularmente um com o outro, porque nunca poderá dar em nada. — Continuamos amigos, não continuamos? — Sorriu-lhe. — Espero bem que sim. Não vou fazer de conta que os meus sentimentos por ti diminuíram de intensidade, Camilla. Mas tenho a minha carreira, a que dou um grande valor e que me toma muito tempo. Disseste-me muitas vezes que era a minha primeira paixão. E respeito aquilo que dizes sobre o passado. Não vejo, por isso, razão nenhuma para não desfrutarmos da companhia um do outro nesses pressupostos. Que dizes? Ela hesitou, estudando as sobremesas na ementa, como se fossem um texto inspirador, um conjunto de regras cruciais para o resto da sua vida. Edward sempre fora generoso. Um bom amigo. Tinham-se tornado amantes quase por acidente, num momento em que ela precisava de alguém que a apaziguasse e confortasse. Na altura em que tinha sabido da morte de Piet. A partir daí, a sua relação prosseguira com naturalidade até à discussão a respeito do seu regresso ao Quénia. Sentiase aliviada por ele aceitar que a relação entre ambos não podia voltar ao mesmo. E era verdade que o trabalho era a paixão dele, quase uma obsessão. Camilla tinha passado muitos dias sozinha no seu apartamento quando ele ficava com um doente em estado crítico. Por vezes, era chamado a um lugar distante para operar uma criança desfigurada à nascença ou reparar um corpo destruído num incêndio ou num acidente. Nesses casos, podia estar dias ou mesmo semanas ausente. Mas, quando estavam juntos, ele fora sempre divertido e perspicaz. Uma boa companhia. Sentira a falta dele nos últimos meses. — Se uma amizade te satisfaz, suponho que podemos encontrar-nos de vez em quando — disse ela. — Mas… — Não há mas nem meio mas. — Ele estava deliciado. — Porque é que não vamos almoçar no domingo a um sítio agradável? Ainda não me falaste do vestido que fizeste para a Hannah nem onde eles foram passar a lua-de-mel. — Não posso estar contigo este fim-de-semana — disse Camilla. Ele arrependeu-se de ter pedido muito cedo de mais. Mas, para seu alívio, ela desatou a rir.
— Vou para Nova Iorque na segunda de manhã — disse ela. — É a minha primeira visita e confesso que estou excitada com a ideia. Tens de esperar pelo meu regresso. Nessa altura, também quero ouvir as tuas histórias. Os teus feitos cirúrgicos mais recentes de esperança e triunfo sobre o desespero. — Fez um pequeno esgar. — Ainda me sinto culpada por causa daquele artigo horrível no jornal. — Eu até gostei — disse ele, sorrindo. — Tinha todos os ingredientes de um folhetim barato. «Homem mais velho salva bela rapariga do desfiguramento permanente e apaixona-se.» Uma história moderna da Bela e o Monstro que cativou toda a gente. Até eu me deixei enganar por ela durante algum tempo. — Viu-a corar de embaraço e angústia genuína. — Eu sei que não tiveste nada a ver com o assunto, Camilla, mas aposto que o Tom Bartlett deu o palpite a um jornalista amigo. Depois era só uma questão de tempo até se virarem para nós. Mas não teve importância. Absolutamente nenhuma. — Estava ansioso por evitar qualquer assunto que pudesse estragar a noite. — Onde é que vais ficar em Nova Iorque? E que vais fazer para além das fotografias? — Quero subir ao topo do Empire State Building e encontrar o Cary Grant — disse ela. — Tenho de ver a Estátua da Liberdade do ferry de Staten Island e fazer compras na Fifth Avenue e comer cachorros quentes e pretzels de uma barraca de rua. Como é a minha primeira visita, não vou ser reconhecida em todo o lado onde vá. Não há-de ser como Londres onde toda a gente me conhece e sou obrigada a andar de peruca ou cachecol, com ar de mulher-a-dias. Edward acompanhou-a a casa e, não fazendo qualquer tentativa para entrar, beijou-a na face e desejou que tudo corresse bem em Nova Iorque. Camilla estava a sorrir enquanto se preparava para se deitar e continuava a sorrir quando atendeu o telefone ao segundo toque. — Que é feito de ti? — A voz de Anthony Chapman destruiu o frágil verniz da tranquilidade. — Pensei que já cá estavas por esta altura. Acabo de jantar com o teu pai e decidimos ligar-te para saber o que andas a fazer. O Lars e a Hannah vão baptizar a menina na próxima semana e pensámos que talvez quisesses estar presente. — Estarei em Nova Iorque. — O coração de Camilla saltara-lhe à boca e ameaçava sufocá-la. — Parto na segunda-feira. É um compromisso inadiável. — Mas continuas a fazer planos para vir? Em breve. Gostava que fosse muito em breve, Camilla. — Sim. Vou tentar estar aí em meados de Setembro — disse ela, mal se atrevendo a acreditar no tom de súplica na voz dele. — Era o que eu queria ouvir — disse ele. — Suponho que aguento até lá mas não vai ser fácil. Agora vou-te passar o teu pai. Está a fazer grandes coisas e eu estou felicíssimo por estar a trabalhar com ele em alguns aspectos da conservação. Vemo-nos quando chegares. Salaams. Camilla mal ouviu a saudação do pai, a sugestão de que ficasse em casa dele quando chegasse, a garantia de que a ia esperar, de que podia usar o carro e o motorista dele. Estava ansioso para lhe dizer que a ajudaria em tudo o que pudesse. Mas as suas palavras não tiveram grande peso. Anthony tinha telefonado. Queria que ela voltasse. Estava de partida para Nova Iorque onde ganharia uma fortuna em poucos dias. Assim que regressasse a Londres, combinaria com Edward a remoção da cicatriz e depois voltaria para casa, para o Quénia. Para junto de tudo e de todos aqueles que mais amava e prezava. O Quénia, onde Anthony estava à espera e a sua nova vida seria maravilhosa.
Jamais esqueceria a sua primeira visão da linha do horizonte de Nova Iorque, a emoção dos
arranha-céus recortados contra o céu, ao mesmo tempo poderosos e delicados, o rendilhado curvo das pontes e os barcos vagarosos ao longo do rio Hudson, as filas cintilantes de carros em estradas com seis faixas de rodagem, entrando e saindo da mítica ilha de Manhattan. Hordas de jornalistas e público aguardavam-na, mais pessoas do que alguma vez teria imaginado. Gritavam perguntas ininteligíveis e os flashes encandearam-na, fazendo-a tropeçar ao tentar descer elegantemente os degraus do avião. Agarrou-se ao braço de Tom e tentou abrir caminho através da multidão excitada. — Camilla! Camilla, de que é que mais gosta em Nova Iorque? — Camilla, onde gosta de comer? Onde está hospedada? — Camilla, que opinião tem da cerveja e dos hambúrgueres? — Que mais lhe agrada nos Estados Unidos? — Quando foi a última vez que esteve com os Beatles? A multidão apertou-se à sua volta, estendendo freneticamente os braços para lhe puxar pela roupa e lhe tocar no cabelo. Vozes histéricas criavam a cacofonia mais ensurdecedora que alguma vez tinha ouvido. Foi Saul Greenberg quem lhe acudiu, pegando-lhe pelo cotovelo, puxando-a pelo meio das pessoas e gritando por sobre o alarido, ao ajudá-la a entrar para o helicóptero que os esperava. — Entre. Vamos directamente para o centro de Manhattan. Vamos aterrar no edifício da Pan Am, a dois quarteirões do meu apartamento. Temos lá uma limusina à espera. Fãs histéricos só amanhã. — Meu Deus! Não esperava um alvoroço destes — disse ela, mole de alívio. — Nesse caso, é muito ingénua — disse Saul. — Desde que os Beatles pisaram solo americano, o público aqui anda a gritar por tudo o que é britânico. A Camilla é um símbolo da Londres moderna e vibrante. A sua fotografia apareceu em jornais e revistas, a conviver com toda a gente desde os Rolling Stones aos membros da família real. E agora vai ser a rainha de Nova Iorque. — Um helicóptero só para mim! Isto é espantoso — disse ela, beijando-o na bochecha gorda. — Nunca teria sonhado com tal coisa. É um génio, querido Mr. Greenberg.
O apartamento de Saul ficava nas alturas de Park Avenue, um vasto cubo de vidro e aço que absorvia e reflectia as luzes e os sons envolventes da cidade. Camilla, à janela do quarto, hipnotizada, abriu-a ligeiramente para olhar para a lenta fila de autocarros, para os automóveis longos e aerodinâmicos e para os táxis amarelos em baixo e para ouvir o som estridente das sirenes da polícia que circulavam com dificuldade pela grelha de ruas congestionadas. Um rio escuro de pessoas desfilava pelos passeios, juntando-se por breves momentos em grupos nas passadeiras para peões. Um agente de trânsito pegou no apito e emitiu um assobio prolongado e sonoro. Camilla ansiava por se fundir na multidão em movimento, sentir dentro de si a urgência que a movia, e, vestindo um casaco, saiu do apartamento. Numa questão de segundos, como um sopro, o elevador depositou-a no rés-do-chão, deixando-lhe o estômago trinta andares acima. Um porteiro sorridente levou a mão ao chapéu quando ela atravessou o átrio de mármore e saiu para se integrar na grande metrópole. Atravessou a rua e encaminhou-se para a Fifth Avenue, onde foi arrastada pelas multidões do fim da tarde, a velocidade pouco familiar a que se moviam deixando-a sem fôlego. A energia da cidade apoderou-se do seu corpo como um impulso eléctrico, impelindo-a em frente, enchendo-a de uma
excitação desmedida que ela nunca experimentara. Elevavam-se dos passeios espirais de vapor como se os alicerces da cidade repousassem sobre uma ardente e insondável fonte de calor capaz de irromper e envolver as ruas a qualquer momento. Num café, fez o seu pedido a um empregado de mesa enfastiado que não conseguiu compreender o seu sotaque. Permaneceu por momentos sentada, bebendo o café e observando os clientes no espaço apertado e fumarento, ouvindo as suas vozes nova-iorquinas, as suas frases sacudidas, o calão que ouvira em filmes e que era agora um som áspero e vivo nos seus ouvidos. Homens de fatos caros compravam sanduíches enormes e café para levar, acotovelando-se ao balcão para serem atendidos, trocando piadas com os empregados, partilhando as notícias do dia com pachorrentas senhoras de idade e raparigas espampanantes de pestanas postiças e sonhos de fama. Dois quarteirões mais à frente, Camilla passou por uma barraca de cachorros-quentes e parou para comprar um, afogando a salsicha e o pão em sauerkraut, mostarda e molho de tomate que se lhe derramou para os dedos e lhe escorreu pelo queixo quando deu, deliciada, a primeira dentada. Deteve-se por muito tempo diante do Rockefeller Center, de olhos erguidos, assombrada com a beleza e o poder dos edifícios e os incessantes sons que ressaltavam no interior das estreitas gargantas das ruas. Já vira tudo antes, em livros, filmes, na televisão. Mas a realidade gritante e gloriosa era maior, mais brilhante, mais vívida do que alguma vez poderia ter imaginado, e sentia-se fascinada com a sua magia. Encaminhou-se para os quarteirões residenciais e deu por si na 59th Street, à entrada da Bloomingdales. Lá dentro, percorreu os corredores, deleitada com o esplendor e a variedade em exposição, de uma exuberância completamente diferente do decoro de um grande armazém inglês. Um encosto inesperado e o insistente tom nasalado romperam o seu devaneio. — Dá-me um autógrafo? Virou-se surpreendida, deparando-se com uma mulher atrás dela com um pedaço de cartão branco estendido. — Deve ter-se enganado — disse Camilla, mas imediatamente compreendeu que o engano era dela. Num grande painel, a escassos dez metros de distância, viu a fotografia que fora tirada em Paris dois meses antes. Estava com uma minissaia de mosaicos e discos prateados, as pernas altas nuas, e era o seu rosto, sedutor e inconfundível, que olhava do outro lado do corredor. — Ouça, estou cá a passar férias — disse ela. — Agradecia muito que… Era tarde de mais. Numa questão de segundos, viu-se rodeada de pessoas que a chamavam, lhe metiam papel e canetas na mão, lhe gritavam perguntas, empurrando e acotovelando-se para chegar mais perto. Tentou escapar à força, levantando os braços para se proteger do alvoroço que tinha provocado, procurando desesperadamente uma saída. Mas não havia nenhum sítio para onde fugir. Tomada de um pânico crescente à medida que a multidão se avolumava, sentiu o mundo encolher à sua volta no espaço asfixiante. Começou a respirar com dificuldade e enfiou-se atrás de um dos balcões de venda. Começou a chorar silenciosamente, a maquilhagem escorrendo-lhe pela cara em fios escuros, enquanto a multidão crescia e a assediava. Parecia-lhe que os pulmões lhe iam rebentar quando se deixou cair numa pequena cadeira. Foi o corpulento gerente de secção que lhe pegou no braço e quase carregou com ela para a privacidade do seu escritório. Passou-lhe um copo de papel com água fresca e viu-a bebê-la de um trago. Ela sorriu com dificuldade, esperando compreensão. — Não tem um guarda-costas? — perguntou ele, inesperadamente hostil. — Não gostamos de cenas destas aqui. Mais dez minutos e teríamos de fechar metade da secção. É melhor pedir a
alguém que a venha buscar. Ela olhou para ele, chocada. — Não tenho ninguém a quem pedir — disse ela. — Lamento. Nunca imaginei que acontecesse uma coisa destas. — A sua fotografia está por todo o lado neste armazém, minha senhora — disse ele, irritado. — Aqui, a senhora é propriedade pública. Devia saber que ia causar este alarido ao aparecer na hora de maior afluência da clientela. Foi por pouco que não rebentou um motim ali fora. Tem algum carro na rua? Uma limusina? Tem de haver alguém que eu possa contactar. Camilla não sabia que dizer, embaraçada com a sua própria ingenuidade. Limpou o rímel da cara e tentou recuperar a dignidade e a pose. — Estou em casa de amigos em Park Avenue — disse ela. — Sinceramente, lamento esta confusão. — Chamo-me Walter Jackman. Vou-lhe buscar um café — disse ele, num tom mais cordial. — Se me der o telefone da casa onde está, eu ligo para lá. — Não tenho o telefone — disse ela, sentindo-se ainda mais idiota. — Mas sei a direcção. Se me chamar um táxi… Ele olhou para ela, incrédulo, e desatou a rir, a sua enorme barriga tremendo ao recostar-se na cadeira. — Com os diabos, Miss Camilla — disse ele, abanando a cabeça. — Não preciso que me diga mais nada. Venha, vamos escapar juntos. Mas, já sabe, tem de me dar o seu autógrafo. Credo, a minha mulher e os meus filhos nem vão acreditar. Caramba, isto é de mais! Ele pegou-lhe na mão e levou-a por uma segunda porta para um elevador monta-cargas. Na cave do edifício, chamou por um certo Joe. — Esta menina é a Camilla, a modelo inglesa. Amiga dos Beatles e desses todos. Por incrível que pareça, perdeu-se e eu quero que a leves a casa antes que se meta em mais sarilhos. — Entregou a Joe um pedaço de papel com a morada de Park Avenue. — Não a largues de vista até a pores dentro do prédio em segurança. Ouviste? — Muito bem. — Joe estava a sorrir. — Siga-me, minha senhora. Mas tem de me dar o seu autógrafo para a minha namorada. E para mim, já agora. Camilla virou-se para Jackman. — Agradeço-lhe muito — disse ela. — Posso mostrar-lhe a minha gratidão de alguma maneira? Posso fazer alguma coisa… — Não apareça na Bloomies nas horas de maior movimento — disse ele. — E tenha uma boa estadia em Nova Iorque. — Ouça — disse ela —, amanhã vou aparecer na televisão. Por volta das oito e meia da manhã na CBS. E vou fazer um sinal, só para si e para a sua família. Para lhe agradecer. Vou levar o dedo aos lábios, assim, e tamborilar duas vezes. Só para si. Deu-lhe um beijo na face e afastou-se, deixando-o a tamborilar nos lábios enquanto entrava na carrinha de Joe e arrancavam. No apartamento de Park Avenue, foi recebida desagradavelmente. — Onde diabo te meteste? — Tom gritou-lhe quando ela entrou no salão. — Desapareceste sem dizer água vai. Sem deixar mensagem, nada. Tenho estado aqui consumido com medo de que tivesses sido atropelada. O Saul já se preparava para ligar para todos os hospitais. Não podes desaparecer assim, Camilla. — Eh, a rapariga precisa de uma bebida — disse Saul. — Vamos acalmar-nos e ouvir onde ela esteve. Vou preparar martinis. Ela sentou-se numa poltrona excessivamente estofada e olhou pela janela para o brilho de Nova Iorque, para a longa fila do trânsito nocturno e para as massas apressadas nas ruas em baixo.
— Tive uma aventura incrível — disse ela, lançando-se na narração do incidente na Bloomingdales. — Fui muito ingénua, infelizmente. Para ser franca, não me importo nada de ficar neste apartamento fabuloso e nunca mais daqui sair. Ainda bem que não estamos num hotel onde as outras pessoas me podiam reconhecer. — Por mim, pode ficar aqui para sempre. — O anfitrião estava a sorrir radiosamente, agitando o copo de cocktail e servindo cautelosamente a bebida. — Toma a tua bebida, querida — disse Tom, passando-lhe o copo gelado. — Mas é melhor que a leves para o banho. Vamos jantar fora e tens meia hora para te arranjares. No 21 Club, conduziram-nos à melhor mesa onde os olhares na direcção dela eram mais discretos. Mas Camilla estava consciente de que, mesmo aqui, onde jantavam constantemente celebridades, toda a sala seguia os seus movimentos. Sentia-se cansada depois do voo e da assustadora experiência ao fim da tarde e não conseguia comer. Depois da segunda taça de champanhe, começou a sentir a cabeça andar à roda. — Devo estar mais cansada do que imaginei — disse ela. — É fatigante ter toda a gente a olhar para mim. — Em Londres acontece o mesmo — disse Saul. — Não é diferente aqui. E a sua chegada foi noticiada nos jornais da tarde. — Mas é diferente — disse Camilla. — Em Londres, nunca passaria pela cabeça de ninguém agarrar-me em público, barrar-me a passagem. Os melhores restaurantes estão cheios de pessoas que não querem ser comidas com os olhos. E os comensais menos famosos não olham durante muito tempo, porque nunca mais os deixariam entrar. — Aqui são os ossos do ofício, menina. Mas a partir de amanhã, vai andar com um guardacostas. Tenho um tipo bestial que vai acompanhá-la para todo o lado. Vai gostar dele de certeza. — Que sinistro, um guarda-costas — disse ela, alarmada. — É normal — garantiu Saul. — Metade das pessoas neste restaurante tem um à espera lá fora. O seu chama-se Harold. Tem a constituição de um touro, quase um metro e noventa e cinco, e ninguém se mete com ele nem se chega a si com ele perto. É bom tipo. Agora vamos falar de amanhã e do resto da semana. De manhã, temos o programa de televisão. Querem-nos no estúdio por volta das sete para a prepararem. Depois vai andar de um lado para o outro até ao fim do dia. O boletim meteorológico dá bom tempo. A equipa de filmagens vai segui-la pela Fifth Avenue, que é onde começamos por filmar. Depois é no Empire State Building e finalmente em Central Park, para o passeio de carruagem. Há uma equipa de apoio na carrinha com as roupas, incluindo o cabeleireiro e a caracterizadora. E o pessoal do catering. Vai correr tudo lindamente. Vai ver como faz isto com uma perna às costas. — Mas vão reconhecer-me na rua, como esta tarde. Sobretudo com as câmaras e tudo isso. — Camilla sentiu um aperto no estômago. — Claro que a vão reconhecer. Mas a equipa de apoio está consigo e o Harold encarrega-se de quaisquer problemas que possam surgir. — Saul tinha pedido outra garrafa de champanhe. — Na sua ausência, eu e o Tom discutimos o seu contrato. Introduzimos algumas alterações. Pode estudálo quando voltarmos para o apartamento e assiná-lo esta noite ou de manhã. Assim, ficamos com a papelada resolvida. — Que alterações? — perguntou Camilla, irritada com a ideia de discutir assuntos profissionais quando se sentia exausta.
— Tive dúvidas quando me obrigou a incluir esses vestidos africanos no meu novo catálogo, mas agora vejo que estão a vender-se bem. — Saul viu a expressão dela iluminar-se. — Quero, por isso, fazer uma sessão extra com os operadores de câmara para uma página dupla na Bazaar. Implica mais dois dias. Três ou quatro talvez, depois dos preparativos. O Tom conhece um tipo que tem um leopardo amansado e… — É uma chita — disse Tom, levantando as sobrancelhas e acendendo um cigarro. — Um desses animais pintalgados. — Saul acenou vagamente com a mão. — Adiante, é como um cachorrinho quando se lhe dá uns quilos de carne antes de o trazer para a cidade. O fotógrafo quer fotografá-la no Plaza Hotel a passear com o bicho, com uma coleira e trela de diamantes. E a Camilla vai pôr as saias de missangas e as botas e as penas. Temos um tipo negro que se vai vestir de maneira a fazer parte do cenário. A caracterizadora acha que é boa ideia cobri-lo de óleo e pôrlhe uma pintura assustadora e tribal na cara. Vai ser esplêndido. Vamos pôr tudo em polvorosa. S-ex-y! — Não quero pôr mais ninguém em polvorosa — disse Camilla, sorrindo. — E não posso ficar mais de dez dias porque tenho marcação para tratar da cara assim que voltar a Londres. Não quero cancelar isso. Ficou um pouco surpreendida ao ver com que facilidade Tom tinha engolido a mentira. Mas no dia seguinte rectificaria a situação, telefonando a Edward e pedindo-lhe o favor de lhe adiantar a operação. E depois podia voltar para o Quénia. Para junto de Hannah e Sarah. Para Anthony.
Os dias em Nova Iorque desfilaram pela sua consciência como um filme surrealista. Fotógrafos, entrevistadores, caracterizadores e cabeleireiros iam e vinham numa interminável procissão. Assim que deixava a privacidade bem protegida do apartamento de Saul, tornava-se alvo de uma febril adulação que raiava a histeria. Havia apresentadores de televisão famosos que a bajulavam, estilistas que lhe davam roupa para envergar em eventos públicos e que podia guardar depois. Em vários restaurantes, os outros comensais puseram-se de pé e aplaudiram-na quando ela entrou na sala. Ao fim de uma semana, só queria esconder-se. Passava os momentos livres enroscada no apartamento de Saul, a ler ou absorvida na novidade da televisão durante o dia. Era a coqueluche de Nova Iorque, a menina bonita da imprensa, a refinada e etérea beldade inglesa sem igual. Sentiase exausta. Harold acompanhava-a para todo o lado, orientando-a, protegendo-a da insistência das pessoas que queriam tocar-lhe. Tom estava constantemente ao seu lado, saboreando o seu espanto quando se viu sentada ao lado de Frank Sinatra e Peter Sellers num jantar, a dançar com Gene Kelly numa festa de beneficência, a visitar Andy Warhol na The Factory. Os dias estendiam-se, cada vez mais longos, aumentando o ímpeto da sua fama. Greenberg fumava charutos e sorria. Tinha descoberto a rapariga mais bela e sofisticada do mundo e tencionava prendê-la enquanto pudesse. Os vestidos que tinha mandado fazer com o nome de Camilla estavam a receber mais encomendas do que tinha previsto nos seus sonhos mais gananciosos, e as suas máquinas trabalhavam sem quartel para produzir mercadoria suficiente para a próxima estação. Todos os movimentos de Camilla eram noticiados e fotografados pelos jornais diários. O negócio nunca tinha sido tão lucrativo. Perguntou-lhe o que ela queria fazer no último dia, desejando organizar alguma coisa especial, que ela guardasse na memória e a fizesse querer
voltar. — Não aguento mais restaurantes chiques nem jantares «íntimos» com dezenas de estranhos — declarou ela, com um rosto cansado e pálido. — Sinto-me exausta, Saul. Preciso de um dia a fazer as coisas que as pessoas normais fazem. Ou, melhor ainda, um dia sem fazer nada. Caso contrário, vou daqui dentro de um caixão. — De súbito sentou-se muito direita na cadeira. — Não acredito que a sua vida seja sempre assim, Saul. Deixe-me dizer-lhe o que gostava de fazer agora. Gostava de ir ver um bom filme. E depois gostava que me levasse a um restaurante onde gosta de comer quando não está sob a mira do público. Um sítio onde ia em criança, por exemplo. Ele levou-a a ver uma comédia com Jack Lemmon e, em seguida, ao seu restaurante judeu predilecto na Village. Fazendo fila no longo balcão, ele mostrou-lhe o que pedir, apresentando-a orgulhosamente ao proprietário, às pessoas atrás do balcão e aos empregados que conhecia desde rapaz. Camilla pediu uma sanduíche de corned-beef em pão de centeio que era acompanhada por um par de pickles gordos e brilhantes, uma dose de salada de repolho cru e uma cerveja gelada. — Nunca vi doses tão grandes de comida — disse ela, espantada com a quantidade no prato. — Esta sanduíche é do tamanho de um prédio de apartamentos. Como é que se consegue meter uma coisa deste tamanho na boca? As pessoas não comem assim todos os dias, pois não? Mas comeu tudo, rindo e brincando com o pessoal, imitando os seus sotaques nova-iorquinos, aprendendo palavras em ídiche com Saul, ensinando aos empregados termos de calão cockney e expressões inglesas finas que os fizeram rir e dar-lhe palmadas nas costas, tentando convencê-la a comer o cheesecake e a tarte de maçã com gelado. Saiu com um convite para voltar ao pequenoalmoço para experimentar os bagels com queijo cremoso e salmão fumado. — Foi o melhor dia que passei em Nova Iorque — disse ela — O melhor, de longe. — Podia ficar mais alguns dias — disse ele, esperançado. — Podia levá-la a Coney Island e… — Já acabámos, Saul. Chegou o momento de partir. — Tom falou afavelmente mas com firmeza. — Ela está exausta e temos trabalho à espera em Londres e Paris. A gente encontra-se do outro lado do mar.
Depois da chegada a Londres, Camilla passou dois dias na cama ou estendida no sofá do apartamento. — Não consigo falar com ninguém — disse ela a Tom. — Preciso de alguns dias sozinha, por isso não sugiras nada que me tire de casa. E não digas a ninguém que cá estou, porque não tenho forças para dizer uma palavra e muito menos sorrir ou reagir. — Foste magnífica em Nova Iorque e mereces uma pausa — disse ele. — Que triunfo! E o teu gerente bancário vai ter de abrir um cofre-forte especial para essa massa toda que trouxeste. Depois disto, querida, não te vejo a enlanguescer em África. Ias sentir demasiadas saudades. Nasceste para o estrelato, Camilla. E o dinheiro também dá jeito. — Não comeces com essa conversa, Tom — disse ela. — E não aceites novos trabalhos sem me consultares primeiro. Mas a máquina publicitária de Tom já estava em marcha e os jornais do dia seguinte anunciaram o seu regresso a Londres apesar de ter sido considerada a menina bonita de Nova Iorque. Edward ligou-lhe à tarde e ela aproveitou-se do seu evidente prazer com o seu regresso. — Janto contigo — disse ela. — Preciso de marcar uma data para terminar a cirurgia na cara.
Mas comemos aqui porque não suporto a ideia de sair. E não me peças para descrever Nova Iorque. Preciso de tempo para me distanciar disso tudo e recuperar.
A cirurgia foi marcada para a semana seguinte. Embora não gostasse de hospitais, a breve estadia de Camilla no tranquilo ambiente da clínica transmitiu-lhe uma sensação de repouso. — Podemos tirar os pontos dentro de dez dias — disse Edward, inspeccionando a sua obra. — E daqui a uns meses o traço há-de ter desaparecido por completo. Juntamente com as últimas recordações dessa noite tenebrosa. Entretanto, estava a pensar se gostarias de passar alguns dias na Escócia. Tenho amigos que têm uma bela casa antiga à saída de Edimburgo e podias lá estar em total privacidade. Eu era capaz de aparecer no fim-de-semana, se tivesses pachorra para me aturar, e podíamos dar passeios de carro pelo campo a desfrutar as charnecas, a urze e o whisky. Que dizes? — Vou pensar — disse ela. — Estou-te muito grata, Edward. O teu talento e atenção tornaram possível que eu continue a trabalhar. Quando voltei do Quénia, no ano passado, com a cara destruída, podia ter perdido o meu ganha-pão. Mas tu puseste-me como nova e eu tenho absoluta consciência disso. Ele não resistiu a abraçá-la ali mesmo no consultório. Sabia que não devia fazê-lo, que era uma conduta pouco profissional e demasiado cedo para cortejá-la. E tinha consciência da diferença de idade entre ambos, a noção aguda de que ela não retribuía os sentimentos que inflamavam todos os momentos conscientes da sua vida. Mas confiava nele, estava-lhe grata. Mentalmente, começou a traçar um plano, a delinear uma forma de ajudá-la a lançar o seu negócio no Quénia, por mais descabido que ele fosse. Viajaria com ela para Nairobi, passaria lá alguns dias enquanto ela lá estava, ajudá-la-ia a contratar um gerente para a empresa. A sua presença protegê-la-ia do risco de o caçador branco, por quem se apaixonara no passado, a ferir. Não lhe levaria muito tempo a compreender que o seu futuro estava em Londres com um homem de quem podia depender. Tudo o resto seria um passatempo agradável. — Amanhã telefono-te, minha querida — disse, quando ela se libertou do seu abraço. — Talvez pudéssemos jantar em qualquer lado, se te apetecer sair. Mas quando lhe ligou, na tarde do dia seguinte, Camilla tinha partido, apanhado um avião para longe dos limites seguros que ele edificara para ela nos seus sonhos.
CAPÍTULO 4
Buffalo Springs, Setembro de 1966 fez o Land Rover descer lentamente por um trilho íngreme e sulcado e virou para uma S arah estrada de terra batida mais larga, no fundo da descida, ganhando velocidade através da planície em direcção a Buffalo Springs. A noite caía veloz, lançando em contraluz os contornos irregulares das palmeiras egípcias e a filigrana das acácias. Uma paleta lânguida de rosas e dourados apagava o sol poente do céu e bandos de francolinos dispersaram-se à frente do carro, levantando voo da poeira para se empoleirarem nos matagais de espinheiros para lá do feixe dos faróis. De tempos a tempos, um par de olhos reluzia e desaparecia quando o carro passava aos saltos no piso ondulado do caminho. Fora um dia cheio de peripécias e Sarah anotara as suas últimas observações da tarde nas margens do caderno, quando o seu grupo de elefantes se encaminhou para uma curva do rio, determinado em juntar-se à manada principal para passar a noite. Ela e Erope observaram-nos a cumprimentar-se uns aos outros, ribombando, barrindo e tocando as trombas, e os mais jovens a lutar e a jogar à apanhada uns com os outros. Até os adultos participavam ocasionalmente nestas frivolidades e Sarah ria-se ao ver as colossais matronas galopar como adolescentes, agitando as trombas e abanando as orelhas, colidindo com os companheiros como carros de feira gigantes num parque de diversões. Havia algo de absolutamente enternecedor nestas criaturas mastodônticas e majestosas, abandonando-se à exuberância da vida, e ela ainda estava a sorrir ao afastar-se delas rumo a casa. Tinham saído de madrugada, deixando o Land Rover estacionado na parca sombra de uma acácia e seguindo a manada a pé, mas guardando uma distância segura de uma célula familiar que avançava vagarosamente. Erope ia à frente, em completa sintonia com o meio e as criaturas selvagens com quem sempre partilhara o seu mundo. Ela confiava plenamente no conhecimento intemporal que ele herdara da região. Embora oficialmente ele fosse o seu assistente, ela habituarase a considerá-lo um colaborador inestimável e um amigo leal. Impressionava-a ainda a sua capacidade para se libertar dos sinais exteriores do seu treino e roupagens ocidentais, envergar uma shuka e transformar-se instantaneamente num feroz habitante do mato. Era como uma serpente a largar a pele, passando naturalmente de uma vida para outra. A maioria dos rapazes da idade dele teria considerado um emprego de escritório na grande cidade muito mais prestigiante do que passar a vida no mato e Erope tinha formação para um emprego desses. Mas desagradava-lhe a ideia de estar fechado, rodeado de máquinas de escrever e armários de arquivo e relatórios. Cruzara-se com Dan Briggs na sede dos Parques Nacionais. Quando soube que o americano estava instalado na área samburu, implorara-lhe trabalho, declarando que seria útil como guia e contacto com as tribos locais na sua terra natal. Dan dizia sempre que a sua contratação tinha sido uma das melhores decisões que jamais tomara. Sempre que estavam fora do veículo, Sarah seguia de perto o samburu. Ele caminhava com
elegância natural e lesta, sem fazer ruído, movendo-se furtivamente, cheirando o vento, olhando para a forma como um ramo se partira, inspeccionando o solo seco à procura do rasto de um animal, a profundidade de uma depressão que indicasse a idade e o peso da criatura que perseguiam. Por vezes, esboroava um pedaço de excremento para avaliar a sua textura e o grau de humidade, a fim de determinar há quanto tempo o animal tinha passado. Não desejavam qualquer encontro inesperado com búfalos. Quando procurava imitá-lo, Sarah pisava invariavelmente um galho seco e o som paralisava-a, um pé ainda levantado para o passo seguinte, revirando os olhos num pedido de desculpa mudo pela sua falta de jeito. Erope nunca falava em Piet. Mas, ocasionalmente, quando a dor assaltava Sarah, ele acenava com a cabeça e tocava-lhe na mão e ela sentia-se reconfortada. O trabalho era a sua tábua de salvação, a única parte da sua vida que lhe proporcionava paz de espírito, que a ajudava a enterrar a memória do passado. E tinha começado a permitir que uma visão de Piet entrasse no seu espírito, uma imagem vibrante e dourada, uma recordação que talvez viesse a substituir a derradeira imagem dele, caído inerte no solo. Aqui, sentia-se próxima dele. A sua ausência não era tão insuportável como fora em Langani, talvez porque o seu espírito parecia livre na imensidão dos espaços que ela amava. As longas horas passadas ao ar livre e o tempo que dedicava à noite para anotar as suas observações tornavam o sono mais possível e gradualmente os seus sonhos passaram a ser menos conturbados. Um grande animal saltou de súbito da vegetação, trazendo-a ao presente. Agarrou-se ao volante quando o carro guinou para o lado, rodopiou numa secção de terra solta e se imobilizou. Erope segurou-se às costas do assento para se equilibrar e a poeira demorou uns momentos a assentar, permitindo-lhe aperceber-se de que não tinham capotado por pouco. — Desculpa — disse ela. — Distraí-me por um momento. Era um golungo? — Ndio — disse ele. — Acho que está a começar a conduzir como a Mama Allie. — Pois eu acho que resolvi bem a coisa. — Sarah riu-se de alívio. — Consegui evitar o golungo e não capotar. Claro, se o tivesse atingido, podíamos ter levado o jantar para toda a gente. — Mas a Sarah não o comia — disse Erope com um sorriso. — Ia chorar pelo pobre golungo morto. — És capaz de ter razão. — Sarah ainda se estava a rir quando pôs o motor a trabalhar. — Vamos embora antes que nos aconteça mais alguma coisa. Ouviu-se um som áspero, quase uma tosse, quando ela rodou a chave na ignição. Depois, silêncio. Ela tentou novamente mas desta vez não soou ruído algum. Erope soltou um suave gemido de aflição. — Deu o berro — disse ele. — O Dan bem avisou. — E agora? — Sarah olhou para a abóbada do céu que escurecia e onde as primeiras estrelas começavam a surgir. — Andam búfalos nas proximidades e vimos leões à tarde. Não é o momento mais indicado para um passeio a pé. Devemos estar a cinco ou seis quilómetros do acampamento. — Vamos tentar reparar o gari — sugeriu Erope. — Se não conseguirmos pô-lo a andar, vamos a pé. Erope demorou quase uma hora a fazer pegar o Land Rover e, nesse breve espaço de tempo, Sarah apercebeu-se de que não entendia praticamente nada de motores. Sem os conhecimentos rudimentares de Erope, teriam sido obrigados a passar a noite no veículo ou a tentar caminhar pelo trilho, unicamente com uma lança e uma lanterna para se defenderem de leões ou búfalos ou dos
predadores mais pequenos que sabiam tirar o máximo partido da noite. A certa altura, ouviram um rosnido grave nas imediações e Sarah paralisou. Erope estava debaixo do chassi, às voltas com alguma peça da sua vetusta estrutura. Mas também ele ouvira o ruído. O seu corpo magro deslizou para fora e levantou-se de imediato, colocando-se à frente dela em poucos segundos, de lança em riste, pronto a protegê-la de algum ataque directo. Quando ele descreveu um arco alargado com a lanterna, viram a leoa. Por um momento sem fim, ela olhou para eles, a cauda abanando de lado a lado, e depois deu meia-volta e embrenhou-se nas ervas altas. — Meta-se no gari, Sarah. Acho que já pega. — Erope contornou rapidamente o veículo até à porta do passageiro e subiu para o lado dela. Sarah respirou fundo e rodou a chave, aliviada por ouvir a reacção soluçante do motor ao arrancarem lentamente pelo trilho sulcado. Ao entrar no acampamento, ia a pensar na agradável perspectiva de um duche, uma cerveja fresca e o relato da sua aventura. Estacionou no seu lugar habitual e imediatamente reparou num Peugeot cinzento à porta da zona residencial principal. Visitas. Encolheu os ombros interiormente, pensando quem poderia ser. Erope acenou-lhe ao afastar-se e ela sentiu inveja dele, por não ter de se mostrar sociável. Mas mesmo visitantes inesperados podiam ser importantes. Alguns eram também cientistas que vinham partilhar dados das suas pesquisas e já não seria a primeira vez que apareciam turistas com generosos donativos. — Já estávamos a ficar preocupados contigo. — Allie saiu da cabana principal. — Ainda bem que estás sã e salva. Temos uma visita, por sinal. É o jornalista que escreveu sobre a nossa apresentação. O Rabindrah Singh. Sarah franziu a testa. Que é que ele queria? Pensou numa desculpa para o evitar, retirar-se para o seu duche e ficar na cabana até ele se ir embora. Mas as palavras seguintes de Allie estragaram-lhe os planos. — Trouxe com ele o artigo que saiu no Daily Telegraph. Chegaram exemplares para todos nós no avião de ontem de Londres. É um óptimo artigo, uma publicidade fantástica, e as tuas fotos estão esplêndidas. Devo dizer que ele fez uma excelente investigação. Baseou-se no nosso relatório anual e não se enganou num único facto. Anda fazer-nos companhia, Sarah. Estás com ar de quem está a precisar de uma cerveja fresca. — O Land Rover avariou — disse Sarah. — O Erope resolveu o problema mas apareceu uma leoa curiosa a espiar os movimentos dele. Foram momentos alarmantes. Acho que vou tomar um duche e anotar as minhas observações. Hoje foi um dia excepcional mesmo antes do azar com o carro. — Não sejas parva — disse Allie bruscamente. — Vai lá tomar o duche. Esteve um dia abrasador. Mas depois anda contar-nos a avaria. Despacha-te. Este Rabindrah passou aqui a tarde toda a falar com o Dan. Traz uma proposta interessante que estou morta que ouças. Convidámo-lo a pernoitar para poderes falar com ele e tomar uma decisão. — Uma decisão? Porquê eu? — Sarah queria a todo o custo evitar o homem que tinha causado tanta aflição em Langani. — Quem toma decisões aqui são vocês. Eu só tomo notas e tiro fotografias. — Estás muito kali hoje — disse Allie, levantando as sobrancelhas. — Pensei que te tinha corrido bem o dia. — Deu uma palmada no ombro de Sarah. — Anda lá, és um elemento crucial desta equipa e hoje em dia participas em todas as nossas decisões. Não te podes fechar na cabana quando temos convidados. Vai lá arranjar-te para o nosso visitante. A água quente está pronta e eu
mando-te uma Tusker para te ires refrescando. Rabindrah estava sentado numa cadeira de lona debaixo da acácia, ladeado por Dan e Allie. Estava bem vestido, com uma camisa de riscas com as mangas muito bem arregaçadas e calças de safári brunidas. Janota foi a palavra que ocorreu a Sarah. Um homem que visivelmente prodigalizava atenções à sua aparência. Sentiu o cheiro a loção de barba de boa qualidade. Olhou-a nos olhos e ela reparou que ele usava uma pulseira de aço. Não percebeu muito bem o significado do seu ligeiro sorriso. Sardónico? Divertido? Ou simplesmente cortês? Desviou a cara quando o rubor nas suas faces traiu o seu desconforto. Ele devia saber que lhe tinha causado embaraço, para não dizer dor, ao visitar Langani. Provavelmente essas questões não afectavam os jornalistas. — Miss Mackay. Muito prazer em vê-la de novo e desta vez no seu território. — No meu território? — Ela sentiu-se estúpida, repetindo as palavras dele. Ele continuava a olhar para ela e ela considerou que a frontalidade do seu olhar raiava a grosseria. — Quero dizer que aqui, nesta paisagem selvagem e entre os elefantes, está no seu elemento. Ninguém seria capaz de fotografar como a Miss Mackay, se não se sentisse em harmonia com o ambiente. Ele falou numa voz baixa e ela deu por si a inclinar-se para o ouvir, apesar de as suas palavras serem perfeitamente audíveis. Um estratagema astuto para prender a atenção dos seus ouvintes. Ou das suas presas. A observação dele foi demasiado pessoal e ela estranhou que o jornalista indiano tivesse detectado isso no seu trabalho. Ainda o via no relvado em Langani, a fazer perguntas provocantes que haviam causado perturbação, desenterrando o espectro da morte de Piet. Era um fura-vidas típico do jornalismo, um predador que se alimentava da infelicidade de pessoas indefesas. Claramente, um homem sem escrúpulos. Não fazia ideia do que o trouxera a Buffalo Springs. Dan passou-lhe uma bebida e indicou com um gesto a mesa onde trabalhava nos seus relatórios. — Estão aí exemplares do jornal, Sarah. Meia página no Daily Telegraph. Dá uma vista de olhos. Dá-me ideia de que nos há-de valer muitos apoios. E tens aí um cheque pelas fotos também. Parabéns, miúda. — Deu-lhe uma palmada no ombro. — Soube que essa caranguejola te deixou ficar mal finalmente. Temos de te arranjar um carro mais seguro para trabalhares. E depressa. Sarah teve de admitir que o artigo era absorvente. Fez questão de dizer que o achava excelente e de lhe agradecer a inclusão das suas imagens. O prazer dele com a sua reacção deixou-a surpreendida. Tinha-o tomado como um repórter calejado, uma pessoa que publicaria qualquer história independentemente do seu efeito. Mas talvez tivesse sido um pouco inflexível. Ele começou a expor a sua ideia, inclinando-se para ela, os seus olhos acesos de entusiasmo. — Ainda bem que gosta do artigo — disse ele — porque ando há algum tempo com uma ideia e, quando vi os seus diapositivos em Nairobi, descobri que tinha encontrado a fotógrafa ideal para colaborar comigo. — Colaborar consigo? — Sarah teve vontade de ralhar a si própria por parecer um papagaio. — Não digas nada enquanto não ouvires, Sarah. — Allie sorriu-lhe e trocou um olhar cúmplice com Rabindrah. — O que eu tinha em mente era um livro sobre os elefantes nesta região — disse o indiano. — Um livro com ilustrações a cores de qualidade das suas imagens. E com texto meu. A descrever o projecto de investigação do Dan de um modo acessível ao grande público sem deixar de passar a mensagem. Sei que sou capaz de escrever uma boa história. Mas as suas fotografias seriam uma
garantia de sucesso. Ela viu que seria uma oportunidade maravilhosa para ter as suas fotografias publicadas num livro que granjeasse o reconhecimento dos Briggs. Mas não confiava nele. Era sem dúvida bem-falante mas que hipóteses tinha de arranjar um editor? Conhecia várias pessoas envolvidas em causas nobres que sonhavam em ser publicadas mas muito poucas o conseguiam. Podia passar meses de tempo precioso a preparar imagens para um livro que nunca veria o prelo. — Duvida que eu arranje um editor — disse ele, como se lhe tivesse lido o pensamento. — Nesse aspecto, tive sorte. Apresentei uma ideia geral, com algumas das imagens que me mandou, a um homem chamado John Sinclair. Ah, estou a ver que sabe quem é. O Dan e a Allie concordam que ele publica os melhores livros sobre vida selvagem no mercado. A Sinclair & Lewis foi fundada pelo avô dele. Conheci o John quando andava na universidade e depois voltei a encontrá-lo quando trabalhava como jornalista em Manchester. Ele lembrava-se de que eu era do Quénia e pediu-me uma opinião sobre o prefácio de um livro sobre a Costa Africana. Quando me mandou as suas fotos, tomei a liberdade de lhe enviar algumas delas e agora ele está disposto a avançar, se quiser colaborar comigo. — Mas… que forma teria o livro? Quero dizer, como é que arranjava o material para o texto? — O Rabindrah sugeriu passar um período de tempo aqui em Buffalo Springs. — Allie era claramente a favor da ideia. — Acompanhava-nos, a mim e ao Dan, e a ti e ao Erope, todos os dias durante dois meses ou o tempo necessário. O Dan aprovaria o texto para assegurar a validade científica das observações e tudo isso. — E as suas fotografias falam por si próprias — disse Rabindrah. — O Dan e a Allie estão bastante entusiasmados com a ideia. Sarah notou com irritação que o homem já era tu cá, tu lá com os Briggs. Estava a sorrir radiantemente, com dentes muito brancos e regulares num rosto tisnado. Reparou então que ele possuía um nariz adunco e que os seus olhos tinham reflexos dourados e achou-o parecido com uma ave de rapina que tivesse mergulhado certeira sobre a vítima. — Posso garantir que não estorvaria de maneira nenhuma o vosso trabalho aqui — disse ele. — Estou bem familiarizado com o papel do observador discreto. Seja como for, teria de andar cá e lá, porque é em Nairobi que ganho a vida como jornalista. Assim, não estaria sempre de roda de ninguém. Sarah ficou sem saber como reagir. Olhou para Dan a pedir apoio, mas ele estava concentrado a encher o cachimbo e Allie ocupada a abrir uma segunda garrafa de vinho. — Quanto ao dinheiro, calculo que quer saber com que linhas se cose. — Rabindrah sentia que tinha de manter a iniciativa. — Por isso, sugiro uma divisão equitativa das receitas. Imagino que os fundos são sempre insuficientes num projecto desta natureza. Pensei que quaisquer verbas adicionais seriam bem-vindas para a investigação e para si pessoalmente e… Ela ficou irritada e ele apressou-se a continuar, apercebendo-se de que nunca compreenderia a classe média inglesa e a sua relutância em falar de dinheiro. — Tive ocasião de reparar no carro velho que conduz e concordo com o Dan, quando ele diz que é um milagre que ainda não tenha caído de podre. Aliás, estou a pensar se conseguirei que o meu tio, Indar Singh, ofereça um veículo a título de patrocínio. — Acho essa possibilidade muito remota. — Sarah estava agora certa de que o jornalista estava a tentar impressionar Dan por qualquer razão obscura que não conseguia definir.
— O meu tio é dono de uma grande oficina e é um dos principais esteios da comunidade sique — continuou Rabindrah fluidamente. — É muito capaz de lhe agradar a ideia de ver o nome dele associado a um programa de investigação meritório. E podemos mencioná-lo no livro sobre os elefantes. — Acho a ideia um tanto rebuscada. — Sarah manifestou abertamente o seu cepticismo. — Ele tem patrocinado uma série de causas. — Rabindrah precisava de outro isco para assegurar a colaboração da rapariga, um incentivo que ela não pudesse recusar. A empatia que ela tinha com os elefantes parecia muito especial, o que era extraordinário. O editor tinha-a reconhecido imediatamente e ficado admirado com a qualidade do seu trabalho. — Acho que o livro é o mais importante aqui. — Não passara despercebida a Dan a animosidade na voz de Sarah e foi ele quem reorientou a conversa para o assunto principal. — Sabe, Miss Mackay, a maior vantagem em publicar este livro é a publicidade que vai gerar à sua investigação — disse Rabindrah, experimentando uma táctica diferente. Sem as fotografias dela, sabia que não havia hipóteses de o seu nome aparecer numa publicação tão prestigiante. — Gostaria de sugerir que déssemos uma percentagem dos direitos de autor aqui ao Dan e à Allie. Se concordar. Assim, toda a gente beneficiaria, incluindo os elefantes. Estava a sorrir radiosamente, com uma expressão quase triunfante. Sarah sentiu uma ponta de irritação e até ressentimento. Ele fora muito astuto. Não queria, no fundo, trabalhar com ele, mas a sua proposta era boa de mais para declinar, tanto em prol da sua carreira como dos Briggs e da obra deles. E ele sabia. Era manipulador e não lhe despertava qualquer simpatia. Mas, por Dan e por Allie, não podia senão concordar e era obrigada a reconhecer uma certa excitação com a possível publicação das suas imagens. Se tinha de aturar Rabindrah Singh durante algumas semanas, paciência. Afinal, não podia demorar esse tempo todo a redigir o texto básico, sobretudo se Dan o ajudasse. Assim que o trabalho preparatório estivesse concluído em Buffalo Springs, ele teria de regressar a Nairobi para conduzir a pesquisa sobre conservação. Até podia revelar-se uma experiência agradável, desde que ele percebesse que qualquer referência à sua vida pessoal estava fora de questão. — Bem, Mr. Singh, que posso eu dizer? — Dirigiu-lhe um sorriso tenso. — Fechemos este acordo com um aperto de mão e preparemo-nos para falar ao mundo sobre os elefantes de Buffalo Springs. — Excelente! — disse Allie, erguendo o copo. — Aos dois e a uma óptima colaboração! — Se vais mesmo tentar, seria boa ideia começares por levar o teu co-autor contigo de manhã, Sarah. Para verem que tal se dão um com o outro. — Dan olhou para Rabindrah. — Espero que gostes de te levantar cedo, meu amigo, porque esta miúda é amiga de madrugar. Sarah tinha aberto a boca para protestar. Não gostava de sair com estranhos. Não tinha dúvida de que a presença de Rabindrah interferiria com o trabalho e não queria alterar a sua rotina diária com Erope e os elefantes. Mas Dan era seu patrão e agora tinha-se comprometido com o livro. Se o jornalista queria começar no dia seguinte, não estava em posição de provocar atrasos. — Parto assim que nascer o dia. Deve preparar-se para um dia longo e abrasador — disse ela num tom brusco. — Estarei pronto quando mandar. — Rabindrah teve visões de um Land Rover avariado, de uma fuga a uma investida de animais selvagens no mato, mas tinha chegado até ali e não podia voltar atrás. — E, enquanto aqui estou, talvez possamos dar uma vista de olhos às fotografias que já tem.
O John Sinclair vai precisar de cerca de quinhentos diapositivos, de que provavelmente vai seleccionar cento e cinquenta dos melhores. Espero que consiga satisfazer estes números, Sarah. Agora, tinha começado a tratá-la informalmente e ela não podia propriamente insistir numa relação formal. Não era o estilo dos Briggs. — Tudo bem — disse ela, rigidamente. — Amanhã começo a separá-las. — Que dizes a um malte de primeira, meu rapaz? — Dan estava a pegar na sua melhor garrafa de whisky. Sarah percebeu que ele se preparava para uma noitada de conversa e filosofia, bem regada com bom álcool para estimular a discussão. Rabindrah Singh teria de ter uma boa resistência para sobreviver a esta iniciação e conseguir levantar-se cedo. Sarah sorriu a Allie e escapuliu-se para a sua cabana para começar a redigir o relatório diário. Algum tempo depois, bateram à porta. — Hodi. Posso entrar? — disse Allie. — Trouxe-te chá. — Obrigada. Aqui… deixa-me pôr este monte de papéis no chão. Põe as canecas na cómoda. Infelizmente, não há espaço na mesa. Sentaram-se amigavelmente, tomando chá e discutindo os acontecimentos do dia. — Então, qual é o problema com Mr. Singh? — Allie mudou subitamente de assunto. — Raramente te vi tão abespinhada. O homem trouxe uma proposta interessante, Sarah, se estiver a fazer jogo limpo. É uma oportunidade única e achei que reagiste com uma grande indiferença. Sarah recostou-se e suspirou. Não tinha falado da visita do jornalista a Langani nem das perguntas dele sobre a morte de Piet, mas percebia agora que tinha de justificar o seu comportamento. Descreveu o incidente na fazenda e falou da sua convicção de que as perguntas dele tinham precipitado o nascimento do bebé de Hannah. — Felizmente, não houve complicações — disse ela. — Mas este Rabindrah já tinha começado a fazer perguntas sobre a minha vida pessoal quando nos conhecemos em Nairobi e depois apareceu inesperadamente em Langani a bisbilhotar. Foi por isso que quando disseste que ele cá estava fiquei assustada. Tive medo de que tivesse vindo aqui para falar novamente da morte do Piet. — Estou a ver — disse Allie. — Se te serve de consolo, ele não mencionou o Piet nem Langani antes de teres chegado. — O Lars disse-me que o Jeremy Hardy o despachou com uma ensaboadela. Foi por isso que fiquei tão irritada. Desculpa se reagi exageradamente. Ele veio por uma boa razão. Agora percebo isso. — Se ele voltar a falar no Piet, diz-me, que eu dou-lhe mais que uma ensaboadela — disse Allie. — Entretanto, acho sinceramente que deves levá-lo contigo amanhã de manhã. Para ver como te dás com ele. Se te importunar, no dia seguinte pode ir comigo. A propósito, amanhã queremos que saias com o nosso carro para o Dan tentar reparar o teu. Ele está preocupado, mas acha que ainda vai durar mais algum tempo. Uma das prioridades quando recebermos o novo subsídio tem de ser substituí-lo, se bem que vá abrir um grande buraco no orçamento. Mas não há alternativa, a não ser que o tio do Rabindrah se transforme num benfeitor. — Isso não passou de um disparate — disse Sarah. — Mas obrigada, Allie. Vou dar o meu melhor. Não te aflijas.
Rabindrah estava pronto e à espera quando ela apareceu de manhã. Não revelou indícios de
ressaca e Sarah pensou que ele devia ser de boa fibra. Tomaram chá e entraram para o Land Rover onde Erope tinha carregado uma lancheira, uma garrafa-termos e três grandes garrafas de água. Sarah fez as apresentações e os homens apertaram as mãos. — Quando andamos a pé pelo mato, o Erope vai sempre à frente — disse Sarah. — Siga-o em silêncio e obedeça às instruções dele. Não andamos com espingardas e por isso estamos dependentes dele para não nos metermos em sarilhos. Rabindrah acenou com a cabeça e partiram em busca da manada. Dan insistira para que levassem o Land Rover em melhor estado e decidira passar a manhã a inspeccionar o outro veículo. Sarah conduziu em silêncio durante algum tempo, irritada com o ambiente de tensão que estava a prejudicar a sua manhã. O sique parecia perfeitamente à vontade, fazendo de vez em quando perguntas a Erope sobre as regiões rurais, sobre a tribo dele e sobre o que o levara a trabalhar para os Briggs. Não perguntou nada a Sarah e ela deu por si vagamente aborrecida por ser excluída da conversa. Por fim, foi ela quem fez uma pergunta. — Porquê nós? — perguntou. — Porque é que escolheu os Briggs? Já alguma vez trabalhou na área da conservação? — Não, nunca. Se bem que seja uma questão importante hoje em dia. Um assunto que interessa aos leitores, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. — Fez uma pausa, olhando para ela, debruçada sobre o volante, franzindo os olhos perante o sol matinal e procurando os elefantes com os olhos. — Aliás, nunca me interessei particularmente pelo tópico até ser incumbido da notícia sobre a apresentação dos Briggs. Achei que era uma questão estimulante que valia a pena seguir, compreende? E depois o Telegraph reagiu com entusiasmo, assim como o John Sinclair. Como vê, começou tudo consigo. — Vai ter de ser muito cuidadoso com o texto — disse ela. — É por isso que estou aqui. Não posso escrever com convicção sobre um tema destes, se não o tiver pesquisado exaustivamente. Compreendo a importância do seu trabalho em termos globais. Involuntariamente, ela sentiu-se lisonjeada e começou a descomprimir e a explicar-lhe como o projecto funcionava. — Dividimos certas tarefas nas últimas semanas para alargarmos o âmbito da investigação — disse ela. — A Allie tem acompanhado três grupos familiares, concentrando-se no registo da vida das fêmeas, enquanto o Dan se dedica aos machos que abandonaram a família para integrarem um grupo exclusivamente masculino. Eu fiquei com alguns elefantes jovens e a ideia é segui-los desde a nascença, se possível, e registar os hábitos de alimentação, cuidados e desenvolvimento dentro da unidade familiar. Nunca vi um elefante nascer, mas o Erope chamou-me a atenção, na semana passada, para uma jovem fêmea grávida e diz que está perto do termo. Por sinal, pensámos que podia acontecer ontem. Às tantas vamos encontrar um bebé à nossa espera esta manhã. — Gostava muito de ver isso — disse Rabindrah, no momento em que Sarah carregou no travão, parando em derrapagem e levantando uma poeirada. — Ui, meu Deus — disse ele —, esse búfalo é enorme. Não estamos demasiado perto? Devemos fechar as janelas? Sarah? — Chiu. Já não é a primeira vez que o vemos — disse ela em voz baixa. — É feroz e imprevisível. Olhe para a bossa enorme e a curva dos chifres. É capaz de matar num abrir e fechar de olhos, este velho mbogo. — Que é que fazemos agora? — perguntou Rabindrah, incapaz de disfarçar o medo. — Vou fazer marcha-atrás — disse ela. — Mas não tenho muito jeito.
— Kweli. É verdade — acrescentou Erope inutilmente. Estava claramente desalentado com a ideia de o jornalista de Nairobi passar a ir no Land Rover com eles todos os dias. O irmão tinha trabalhado em tempos para um duka wallah indiano. Não eram conhecidos por tratar bem o pessoal africano. — A Sarah não tem dificuldade nenhuma em capotar o carro — disse ele, satisfeito com o efeito que as suas palavras estavam a ter sobre Rabindrah. — Exactamente como a Allie. O búfalo começou a avançar na direcção deles, a colossal cabeça baixa, mantendo o veículo na sua mira. Rabindrah fechou os olhos, esperando pelo som dos chifres a rasgar o metal. Mas quando chegou a seis passos deles, o velho macho virou-se inesperadamente, resfolegou ruidosamente e galopou para o mato. — Já pode abrir os olhos — disse Sarah. — Já se afastou, não precisa de se preocupar com as minhas manobras. Por agora. — Meu Deus — repetiu Rabindrah. — Durante os anos todos que aqui passei, nunca estive tão perto de um animal perigoso. Nunca lhes tinha dado assim tanta atenção, excepto enquanto atracções turísticas. Os safáris não eram o género de coisa que os meus pais fizessem. Os animais selvagens eram criaturas lendárias que tinham devorado o nosso tio-avô que estava a construir o caminho-de-ferro. — Disse que estudou e trabalhou em Inglaterra — disse Sarah. — Que é que o fez voltar? Ele encolheu os ombros. — É a minha pátria, suponho. Onde cresci. Podia ter ficado em Inglaterra. Os meus pais vivem lá agora e as minhas irmãs também. Mas cansei-me de andar a bater às portas. — Bater às portas, como? — Perguntar a viúvas como se sentiam quando os maridos morriam num incêndio na fábrica ou atropelados por um camião ou qualquer coisa do género. — Como perguntar às pessoas se pensam nos irmãos assassinados — disse Sarah, regozijando-se ao vê-lo retrair-se. — Parece assédio. Mas não pode ter feito só isso. — Escrevi artigos sobre a comunidade asiática em Inglaterra, sobretudo a respeito da questão dos passaportes e da plena cidadania britânica. Mas senti que estava a ser arrastado para uma campanha, pressionado para transmitir um ponto de vista exclusivamente asiático. Não queria ser rotulado como o jornalista indiano que só escreve sobre indianos. E deparamo-nos com uma hostilidade considerável quando começamos a remexer em assuntos que as pessoas querem ignorar… — Viu os nós dos dedos de Sarah ficarem brancos sobre o volante. — Estou a falar de intolerância e racismo e ressentimento contra os asiáticos, por terem o que os ingleses consideravam seu. — Porque não envolver-se? Tornar-se a voz do seu povo? — Queria mais diversidade no meu trabalho. Queria uma boa vida. Não se ganha dinheiro como jornalista de província e não consegui arranjar emprego em Londres. Além disso, o clima inglês não é muito cativante. — Nisso estou de acordo. Pensei que nunca mais ia secar depois de três anos a viver na Irlanda — disse Sarah. — Por isso, voltei. E até agora estou a gostar de cá viver. Gosto da liberdade de fazer o que me apetece, de estar onde quero. — Mas não voltou por amor ao Quénia e ao seu futuro?
— Infelizmente, não foi nada de tão nobre — disse ele. — Estou aqui para construir uma carreira e ganhar decentemente a vida. Tenho um instinto para uma boa história e escrevo bem. Não é preciso ser um fanático para fazer uma narrativa poderosa. Por vezes, é preferível não estar ligado à questão… vêem-se aspectos que escapam às pessoas implicadas, se se mantiver a objectividade. Tinham chegado ao último local onde Sarah vira as manadas na noite anterior. Pediu silêncio com um gesto e parou a favor do vento em relação aos mastodontes, desligando o motor. Ao fim de alguns momentos de observação, Erope indicou a família que andavam a estudar. A matriarca era uma velha e majestosa dama com orelhas esfarrapadas e presas que quase se cruzavam. Sarah pusera-lhe o nome Hipólita, em honra da rainha amazona, pois era uma guerreira destemida, sempre pronta a arrostar qualquer inimigo que ameaçasse a sua família. Estava na borda no bebedouro, a aspergir-se completamente até que o corpo inteiro adquiriu uma forte tonalidade de barro vermelho. Quando a lama secou, formou uma delicada filigrana de fissuras, dando a impressão de que usava uma camada de renda grossa sobre a pele cinzenta e enrugada. Havia quatro matronas mais jovens no grupo, incluindo a grávida que Sarah tinha mencionado. — Lá está ela… a que está quase a dar à luz — disse Sarah. — Pus-lhe o nome Lily e nos próximos dias vamos concentrar-nos nela. Normalmente, quando vão parir, afastam-se da manada principal na companhia de um par de fêmeas. Quando isso acontecer, é possível que tenhamos de segui-las a pé, o que pode ser perigoso. Se os elefantes nos considerarem uma ameaça para o novo bebé, podem tornar-se agressivos numa questão de segundos. — Sendo assim, sou capaz de ficar no carro — disse Rabindrah. — Não dou nas vistas e deixo a caminhada para os cientistas experientes. — Não pode ficar dentro do carro sozinho — disse Sarah vivamente. — A não ser que queira correr o risco de se tornar alvo de algum macho jovem. Agora que aqui está, não tem outro remédio senão andar colado a nós. Uma hora mais tarde, Hipólita e a família tinham-se separado do contingente principal da manada. Erope e Sarah apearam-se do veículo, seguidos relutantemente por Rabindrah. Lily parecia irrequieta, afastando-se das outras fêmeas e correndo de novo para junto delas, rosnando e bramindo. Ao meio-dia, já o calor era insuportável e o grupo tinha viajado bastante. Finalmente, pararam e Rabindrah encostou-se à sombra de uma figueira, limpando o suor da cara e do pescoço. Sarah apercebeu-se de que ele estava apreensivo com a distância a que estava do carro e com a proximidade das colossais criaturas. — A única coisa que sei sobre os elefantes africanos é que são perigosos e imprevisíveis — disse ele, franzindo a testa e massajando os braços onde picara a pele em espinheiros e acácias assobiadoras ao caminharem pelo mato. — E, neste momento, estamos demasiado perto para o meu gosto. — Não há problema nenhum desde que não se sintam ameaçados — disse Sarah. — E estamos contra o vento em relação a eles. Não se aflija. Pouco convencido, ele acenou com a cabeça e ela viu-o abrir a garrafa de água e examinar a pequena quantidade de líquido. Tinha bebido a água demasiado depressa e agora teria de poupar a pouca que lhe restava. Sarah permitiu-se um leve sorriso, admitindo a maldade deste pensamento. Tinha sido uma manhã abrasadora e Rabindrah, para um novato, tinha aguentado bem, sem protestar nem se queixar, seguindo à risca os sinais de Erope. Pensou em dar-lhe alguma da sua água, mas decidiu que não. Ele tinha de aprender a racionar a sua. Se ficasse desidratado, dar-lhe-ia alguns
goles da sua garrafa. Quem tinha voltado para o Quénia em busca da boa vida tinha sido ele. Que passasse sede agora! Erope estava do outro lado da árvore, equilibrado, como uma cegonha, sobre uma perna, segundo o costume da sua tribo, indiferente ao calor e à agrura da paisagem. Parecia adormecido, mas Sarah viu-o então fazer-lhes sinal para continuarem a avançar. Acocoraram-se atrás de um afloramento rochoso, observando a actividade agitada dos elefantes. Sarah levantou a máquina fotográfica enquanto Lily se esforçava por dar à luz. Manteve-se afastada, abanando as orelhas, baloiçando-se de pata em pata e barrindo ansiosamente, até que por fim a pequena criatura saiu de dentro dela e deslizou para o chão. Mas estava presa no saco membranoso e a mãe não parecia saber abri-lo. No espaço de minutos, as outras fêmeas rodearam-na, empurrando suavemente com as trombas e as patas até libertarem o pequeno elefante. Depois, Lily usou a sua própria tromba e a perna dianteira para o erguer sobre as pernas. Sarah olhou de relance para Rabindrah e viu que ele estava extasiado. O recém-nascido estava a tentar levantar-se. Tinha a cabeça coberta de uma massa de pêlos frisados e pretos e os olhos estavam orlados de vermelho, como se tivesse acabado de apanhar uma bebedeira. Vacilou, caiu várias vezes, e acabou por conseguir dar alguns passos titubeantes. Quase imediatamente, começou a mamar na mãe, a tromba soprando desajeitadamente à volta dela até descobrir as tetas e começar a mamar. As outras fêmeas juntaram-se em redor de Lily, tocando-lhe com as trombas e afagando o bebé. Os ruídos que emitiam chamaram a atenção de vários machos mais jovens. — Deitem-se. — Erope assobiou a ordem quando os elefantes começaram a encaminhar-se na direcção delas. — A mamã grande vai rechaçar os machos e eles podem vir para aqui. Sarah espalmou-se no solo espinhoso e puxou por Rabindrah. Este tapou a cabeça com os braços e ficou de bruços sobre a poeira, à espera de morrer espezinhado. À sua volta, ouviam bramidos e o estalar de ramos à medida que os elefantes avançavam através da vegetação, aproximando-se das três figuras deitadas. Soaram então barridos e o solo vibrou por baixo deles. O ar estava denso com a poeira e Sarah ouviu Rabindrah soltar uma pequena exclamação de terror. Virando a cabeça, viuo apertar os lábios e olhar para ela, talvez à espera de um gesto tranquilizador que não chegou. Os seus olhos estavam fechados quando ela finalmente lhe abanou o braço e lhe falou. — Os machos afastaram-se — disse ela. — Pode levantar-se. — Está a sorrir! Deve ser doida. Quase morri de puro terror aqui no chão e está a sorrir. O meu coração batia descompassadamente e tinha o nariz cheio de pó. Pensei que ia espirrar e morrer espezinhado. Não me atrevi a pestanejar e o medo martelava-me na cabeça com uma fúria incrível. Mas Sarah já estava de pé, batendo chapa atrás de chapa, receosa de que o estalido do obturador denunciasse a sua posição, mas incapaz de resistir à oportunidade de registar tão extraordinário acontecimento. Passado algum tempo, um dos machos mais velhos foi investigar o recém-nascido. O pequeno elefante aproximou-se dele e o ancião tocou-lhe na cabeça com a tromba, no que pareceu um ritual de bênção. Passou o resto do dia abrigado entre as pernas da mãe até Hipólita começar a conduzir a família de volta à segurança da manada principal para passarem a noite. Rabindrah observou, esquecido do seu medo e desconforto recentes, hipnotizado pelas cerimónias que tinham rodeado o parto. Sarah levantou as sobrancelhas e sorriu a Erope. Era evidente que tinham um convertido.
As sombras do fim da tarde tinham começado a alongar-se, formando desenhos suaves e
umbrosos no solo saibroso, quando finalmente deixaram a manada, regressando através da paisagem espinhosa ao Land Rover. O interior do veículo era um forno e as sanduíches estavam reduzidas a uma massa pastosa. Mas havia café na garrafa-termos e devoraram um pacote de bolachas, indiferentes a qualquer contrariedade, tão exultantes se sentiam. Na manhã seguinte, ao nascer do sol, estavam de novo entre os elefantes e, desta vez, durante a viagem, o ambiente era de à-vontade. O parto deixara uma profunda impressão em Rabindrah. No dia anterior, Sarah pensara que o único objectivo dele era puramente obter prestígio pessoal através do livro proposto e ganhar dinheiro. Agora ele estava desejoso de descobrir a manada, de rever o pequeno elefante e acompanhar o seu progresso. Sarah esperava que a sua experiência o levasse a redigir um texto estimulante, que desse a conhecer ao grande público as vidas e necessidades dos elefantes. Enquanto procuravam Lily e o seu bebé, começou a trautear uma melodia irlandesa e ficou surpreendida quando ele fez coro com ela, familiarizado com a letra. — Metade dos jornalistas com quem trabalhei em Manchester eram irlandeses — disse ele. — Um bando de selvagens para mais. Fizeram de mim um irlandês honorário, sabe? Consideravam-me um rebelde como eles, sempre a fazer perguntas embaraçosas sobre as actividades dos ingleses na arena mundial. Foi quando aprendi a emborcar uma boa dose de whisky de uma vez. E ainda hoje prefiro o whisky irlandês ao escocês… mas não diga nada ao Dan. Ela riu-se e olhou para ele de relance. Pelo menos, tinha sentido de humor. Talvez assim fosse mais fácil trabalhar com ele nos meses que se avizinhavam. Ia sentado ao lado dela em silêncio enquanto ela conduzia, inalando o ar poeirento, ouvindo os chilreios dos calaus e o palrar dos tecelões, perscrutando a luz escaldante em busca de uma chita ou até de um leão antes de o pisteiro os ver. Rabindrah tinha dificuldade com o papel passivo que lhe fora atribuído, consciente de que Sarah e Erope o consideravam um pendura, irrelevante para o seu trabalho quotidiano. Encontraram os elefantes a caminhar pachorrentamente na direcção do rio. A água estava baixa e faltavam várias semanas para a chegada das chuvas breves, se viessem. As ervas secas estalavam, castanho-amareladas e espinhosas, e vários membros da manada estavam a escarafunchar o solo com as trombas ou as patas para forçar o solo duro a produzir algumas gotas de líquido lamacento, insuficientes para sustentar o grupo ou refrescá-lo sob o sol tórrido. Ao fim de uma hora, o calor invadiu o Land Rover e as moscas zuniam e pousavam na pele e na roupa de Rabindrah, que não parava de as enxotar. Quando se moveram para se posicionarem à frente da manada, as rodas derraparam e rodopiaram na areia grossa do trilho e ele imaginou-se atolado naquela fornalha durante horas ou dias a fio. Os animais avançavam pesadamente à frente deles, partindo galhos e casca pelo caminho. O novo bebé debatia-se para se manter a par da mãe e a família detinha-se regularmente, virando-se para acompanhar o seu progresso e esperar por ele, sempre que necessário, encorajando-o com bramidos, empurrões e carícias com as trombas. Seguiram o mesmo grupo durante dez dias. Sarah fotografou o pequeno elefante, enquanto ele tentava perceber o que devia fazer com a tromba, e ouviam os seus gritos de protesto quando a mãe não o deixava mamar. Guinchava quando se enredava num matagal ou quando não conseguia afastar um ramo grosso do caminho e, então, uma ou mais fêmeas acudiam-lhe. À medida que os dias passavam, o espanto deles crescia ao ver a rapidez com que ele ganhava forças e se tornava mais aventureiro. — Amanhã vou passar esta pequena unidade ao Dan e à Allie — disse Sarah a Rabindrah, sentados no Land Rover, rodeados pela manada. — Você está de partida para Nairobi e é a minha
vez de levantar o correio em Isiolo e de me ocupar das tarefas correntes no acampamento. Por isso, observe bem o pequeno Louis porque da próxima vez que nos visitar há-de estar muito mais crescido. Estava a abrir uma garrafa-termos de café quando o elefante bebé se aproximou do veículo e ela paralisou. A cria apalpou os guarda-lamas com a tromba. Depois acercou-se da porta do condutor e olhou para Sarah com os seus olhos brilhantes. Ela permaneceu imóvel, a pele arrepiada de medo e excitação. Não havia forma de prever o que a mãe e as outras matronas poderiam fazer, se considerassem que ele estava em perigo. A sua tromba macia enrolou-se, entrando pela janela, e tocou-lhe no cabelo, acompanhou-lhe os contornos da cara e desceu-lhe pelo braço até à mão. Lentamente, ela virou a palma para cima e deixou os dedos acariciarem a pele áspera, sentindo o seu leve hálito quando ele soprou na sua direcção. Depois, ele esticou novamente a tromba e passou-lha mais uma vez pela cara. Lily estava a emitir ruídos agitados mas não se aproximou. Os companheiros andavam de roda dela, aflitos e à espera do sinal dela. Rabindrah estava com medo de respirar, convencido de que iam ser esmagados pela manada. Nem Erope mexia um músculo. Após alguns momentos, o jovem animal virou-se e, com um trejeito da tromba e uma primeira tentativa para barrir, foi ter com a família. Durante muito tempo, Sarah permaneceu sentada numa nuvem de deleite, inalando o odor forte que ele deixara ao agarrar-lhe fugidiamente na mão, revivendo todos os momentos do contacto. — Meu Deus! Podíamos ter sido mortos. — Rabindrah quebrou o silêncio. — Sobretudo pela mãe. E pela maior, a que tem as presas cruzadas… podia ter-nos esmagado em segundos. Que risco incrível, Sarah, é louca. Não me ocorre outra palavra. — Não estava exactamente em posição de arrancar — frisou Sarah, mas também ela estava abalada. — Seja como for, foi o ponto alto do dia. O ponto mais alto por muito tempo, imagino. Voltemos para o acampamento.
Passou o serão a seleccionar e a embrulhar diapositivos e provas para Rabindrah levar com ele. Passariam várias semanas até ele voltar mas, entretanto, ficara de enviar para Londres os primeiros capítulos do texto, juntamente com uma sinopse e as imagens dela. Parecia convicto de que o resultado seria um contrato de publicação e Sarah achou o seu entusiasmo contagiante. Dan e Allie foram os primeiros a sair do acampamento na manhã seguinte, partindo no carro à procura de Lily e da sua cria. Sarah apertou a mão a Rabindrah, aliviada por a sua vida poder agora retomar a confortável rotina que partilhava com Erope. — Adeus — disse ela. — Fico a aguardar ansiosamente os primeiros capítulos. — Não hão-de demorar — disse Rabindrah. — Mas antes de partir, devo-lhe um pedido de desculpas. — Desculpas? — Sei que não começámos da melhor maneira quando nos conhecemos — disse ele. — Não fazia ideia do que tinha acontecido na sua vida. E lamento muito ter perturbado os seus amigos em Langani. Sofreram juntos uma perda terrível e eu devia ter respeitado a vossa privacidade. — Pois devia — disse ela. — Não somos material para outra história sensacional, sabe? Somos seres humanos normais e já tivemos inquéritos, investigações e sofrimento que cheguem. Soube que até foi falar com o inspector Hardy em Nyeri.
Ele olhou para ela por um momento, querendo perguntar se fazia ideia do motivo que levara ao assassinato do noivo. Mas a sua expressão era tensa, os olhos frios de raiva, e Rabindrah teve medo, se agora a alienasse, de que ela ainda pudesse fazer gorar o projecto do livro. De qualquer modo, já não precisava de basear a sua história na tragédia pessoal dela. Vira todas as suas fotografias, observara-a a trabalhar, soubera por Dan Briggs que a National Geographic era capaz de estar interessada em apoiar o projecto deles. Se escrevesse o texto de um livro sobre os Briggs e os seus elefantes, havia hipóteses de a revista também lhe oferecer trabalho. Tudo pendia a seu favor e não tencionava dar passos em falso. — Lamento muito — disse ele. — Suponho que andava à procura de falhas na investigação policial. A indagar por razão nenhuma. É um traço comum aos jornalistas. Espero que aceite o meu pedido de desculpas e que possamos esquecer esse deslize insensível da minha parte. — Não tenho qualquer desejo de ficar a remoer nisso — disse Sarah. — E, já agora, agradeço a sua proposta de entregar uma percentagem dos direitos de autor ao Dan e à Allie. — É uma honra colaborar com todos vocês — disse ele, com respeito sincero.
Depois de ele partir, Sarah arrancou para Isiolo, onde levantou uma pilha de correspondência, encheu o Land Rover com grades e caixotes de provisões e sentou-se à sombra de uma árvore para abrir as suas cartas pessoais. No envelope mais grosso, reconheceu a letra fina e longa do irmão e abriu-o em primeiro lugar, lendo as suas notícias com emoções contraditórias. Em seguida, dirigiuse ao pequeno gabinete governamental e pediu para fazer uma chamada. — Desejo telefonar para a Irlanda — disse ao funcionário, sorrindo à sua reacção de cepticismo. — Não se aflija, fica mesmo ao lado de Inglaterra e é como uma chamada para lá. A operadora diznos depois quanto tenho de pagar. Houve uma longa discussão com a operadora antes de Tim aparecer em linha. — Marcaste então a data — disse ela. — Tens de vir, Sarah — gritou ele. — Ouve, podemos continuar a adiar. Um mês ou assim. A Deirdre disse que não se importava. Sarah sentiu a dor da sua própria perda. Já tinham adiado a data duas vezes e seria injusto esperar que adiassem mais. Mas a ideia de ir a um casamento tão perto do aniversário da morte de Piet angustiava-a. Finalmente, conseguiu falar. — Fico muito feliz por ti, Tim. Já sabes que sim. E a mãe e o pai também devem estar encantados. Ainda não li a carta deles… quis falar contigo assim que li a tua. É maravilhoso, é mesmo. Mas não adies mais. Não contes comigo. Não posso… — Vamos realizar a cerimónia em casa — Tim interrompeu-a. — Vai ser uma coisa discreta e não vêm muitas pessoas da família dela. Aliás, ela quer que sejas a dama de honor. Está muito insistente nesse ponto. — Pareceu não saber como continuar e seguiu-se um silêncio constrangido enquanto ele esperava pela concordância dela. Depois recomeçou: — Compreendo como deve ser difícil. Devias ser tu e o Piet. E sei que é pedir muito, mas, por favor, por favor, não deixes de estar aqui com todos nós. É muito importante para mim. — Tim, claro que adorava estar contigo no grande dia. — Estava a ter dificuldade em manter a voz calma. Estava a ser muito mais penoso do que imaginara. — Fico sensibilizada que a Deirdre queira que eu participe. Mas estou numa etapa vital da minha pesquisa e tu sabes o tempo que me
deram de licença depois… — Não foi capaz de terminar a frase. — Seja como for, seria de mau tom pedir aos Briggs para me ausentar outra vez. Sou a única assistente deles e precisam de mim. Lamento muito, Tim, acredita. — Custa-me a crer que estejas a dizer isso. — O seu tom alterou-se. — Afinal foste ao casamento da Hannah, não foste? Ela precisou de ti e tu não faltaste à chamada. Só te peço que faças o mesmo por mim. E sabes a que ponto a mãe e o pai gostariam que viesses… o que significa para todos nós. — Eu sei — disse Sarah. — Mas a Hannah vive a poucas horas daqui. Não me parece que possa agora viajar até à Irlanda. Nem mesmo por ti. Registou o desapontamento e a fúria na voz do irmão quando ele se despediu e passou o telefone a Betty. Mas, embora os pais não tivessem feito nenhum esforço concertado para levá-la a mudar de ideias, Sarah pousou o telefone consciente de que os tinha transtornado a todos. Tim pensaria provavelmente que ela não queria ir, porque sempre alimentara reservas em relação a Deirdre. A rapariga era mandona e impositiva. Pertencia a um meio social diferente do deles e a sua visão do mundo era tacanha. Sarah desconfiava de que a história da dama de honor era provavelmente ideia de Tim para ela se sentir parte da celebração. A ideia deste casamento ou de outra cerimónia qualquer apertava-lhe o coração. Talvez se lhe escrevesse novamente, se tentasse explicar-se um pouco melhor, ele compreendesse que era impossível. O telefone era inútil para esse tipo de conversa. A emoção e a distância tornavam difícil exprimir a realidade. Era mais fácil por escrito, compor as frases até estas traduzirem correctamente as ideias. Saiu para o sol ofuscante, ainda mentalmente perturbada com o seu dilema, quando esbarrou com Anthony Chapman. — Bem me pareceu que reconheci esse chaço velho que conduzes — disse ele, abraçando-a. — Tens de resolver o problema desse carro antes que te fique nas mãos no meio do bundu. Estou de volta de Samburu. Despachei os clientes para Nairobi de avião. Pensei em visitar-te em Buffalo Springs e aqui estás tu, morta por me levar à cerveja gelada mais próxima. Ela ficou satisfeita por vê-lo, por pôr de lado os seus problemas. Anthony fazia-a sempre rir com as suas descrições de clientes difíceis ou satisfeitos e das palhaçadas do pessoal dos seus acampamentos. — Vens passar uns dias connosco? — perguntou ela. — Não — disse ele. — Estou cheio de pressa para voltar a Nairobi. Esta noite, se possível. — Tu odeias Nairobi — disse ela. — Que é que se passa? Tens outro safári logo de seguida? — Vou para Nairobi porque a Camilla chega depois de amanhã. — Lançou-lhe um olhar de esguelha, meio sorridente, meio interrogativo. — E vou pedi-la em casamento.
CAPÍTULO 5
Quénia, Dezembro de 1966 viajo para aí. — A voz ligeiramente ofegante de Camilla era alegre. — O agente –Amanhã conseguiu levantar os meus embrulhos todos e estão na traseira do carro. Posso levar um hóspede? — Claro que podes — disse Hannah. — É o Anthony? — Por sinal, é o meu pai. Ele quer muito ver a oficina e falar contigo e com o Lars sobre os guardas-florestais. Como vai passar o Ano Novo com uns amigos em Nyeri, seria óptimo se pudesse passar o Natal connosco. — Óptimo — disse Hannah. — Tenho andado para lhe telefonar, mas a bebé toma-me tanto tempo que o resto fica sempre para depois. — Então até amanhã — disse Camilla. — Queres alguma coisa da grande cidade? Hoje à tarde, vou fazer umas últimas compras. — Tentei arranjar sultanas no Patel hoje. Para o bolo de Natal. Mas ele só tinha sacos de coisas cobertas de pó que pareciam formigas secas. Acho que estão na loja desde o tempo dos primeiros colonos. A Sarah conseguiu falar contigo ontem? Entrou num programa de rádio, sabes? — Conseguiu. Vou buscar as impressões dela logo de manhã e os textos do escritor. A nossa amiga, a famosa fotógrafa — disse Camilla com satisfação. — É esplêndido ela vir passar um tempo connosco. — Já tinha perdido a esperança de a ver por cá — disse Hannah. — Depois de a Suniva nascer, tive esperança de que viesse com frequência, mas não aconteceu. A Allie deve ter corrido com ela à força no Natal. Provavelmente estão com medo que lhe cresça uma tromba se lá ficar muito mais tempo. E o Anthony?
Anthony. Ele estava à espera no aeroporto quando Camilla chegou de Londres. Tinha ficado uma semana em casa do pai e, na segunda noite, quando George tinha ido a um beberete obrigatório, Anthony levou-a de carro aos montes Ngong para assistir ao pôr-do-sol, levando uma manta, almofadas e champanhe gelado. Pegou-lhe na mão e conduziu-a pelo mato a uma zona plana e rochosa de onde viam as planícies semeadas de manadas de zebras, gazelas e antílopes africanos a pastar. Uma girafa solitária contemplava os contornos da cidade do seu posto de observação elevado e, a meia distância, o sol captou o brilho de uma lança e a shuka vermelha de um vaqueiro masai, guiando as vacas e as cabras para a manyatta para passarem a noite. — Bem-vinda a casa — disse Anthony. Ela susteve a respiração, inalando o odor da poeira no ar e saboreando a vastidão e a glória da terra virgem, a sensação de perigo que África lhe transmitia. — Este continente reduz-nos ao nosso verdadeiro tamanho — observou ela. — Diz-nos que
somos insignificantes no plano geral do universo. Tinha razão, sinto-me em casa. — Tenho sido um idiota — disse ele. — Deixei-te escapar. Da minha vida e para demasiado longe. E agora quero dizer-te uma coisa que nunca te disse até hoje. Amo-te, Camilla. — Ela não respondeu e, à medida que o silêncio se prolongava entre eles, ele começou a falar e calou-se. Procurou uma forma de lhe confessar a importância que ela tinha para ele, apercebendo-se de que nunca pusera a alma a nu a ninguém e que nunca fora tão vulnerável como naquele momento. Pôs os braços à volta dela, agarrando-a pela cintura e levantando-lhe o rosto para a beijar na boca. Camilla fechou os olhos e sentiu uma onda de amor e desejo tão forte que mal se teve em pé. Ele puxou-a para a manta e ajoelhou-se ao lado dela, afastando-lhe o cabelo para trás, para passar o dedo pela fina linha vermelha ainda visível na sua fronte. A camisa dela tinha pequenos botões prateados na frente e ele começou a desapertá-los lentamente, beijando cada centímetro de pele à medida que ia sendo revelada, assombrado e conquistado pela sua perfeição. Fizeram amor como se fosse a primeira e a última vez e a intensidade do momento fê-la chorar. — Quero casar contigo — disse ele mais tarde, deitado ao lado dela, face a face, os dedos de ambos entrelaçados, os corpos tocando-se. — Tudo o que fiz, todos os pensamentos que tive nos últimos meses, conduziram à certeza de que te amo. E tudo na minha vida faz sentido agora que compreendo isso. Casa comigo, Camilla, por favor. Ela sentia a brisa, fresca e leve sobre a pele. Mas uma corrente de calor percorreu-a e o seu coração palpitava como uma ave presa dentro do seu corpo. Levantou uma mão para o tocar na cara. — Não — disse ela. — Mas eu amo-te. — Ele estava a olhar para ela, incrédulo. — Somos loucos um pelo outro. Fomos feitos para estar juntos. Tu sabes e eu também sei. Não entres em jogos, Camilla. Quero que cases comigo. — Não — repetiu ela. — Há outra pessoa? — perguntou ele. — Tem alguma coisa a ver com o homem que tratou da tua cara? — Não há mais ninguém — disse ela. — Mas já me enganei antes a respeito dos nossos sentimentos um pelo outro. Desta vez tenho de avançar com mais cuidado para ver o que… — Quem se enganou fui eu — disse ele. — E agora vais obrigar-me a pagar por isso. Ou não sou suficientemente sofisticado e mundano para a criatura mais bela da terra? — Quero que tenhamos os dois a certeza — disse ela. — Quero que tenhas a certeza de que me amas o suficiente para me seres fiel. E preciso de tempo para ter a certeza de que posso viver aqui e singrar. De que tenho fibra para isso. — Tu és famosa e bem-sucedida em todo o mundo — disse ele. — Tudo o que fizeste saldou-se num enorme triunfo. — Não tem sido exactamente assim — disse ela, pondo-lhe os dedos sobre os lábios para o impedir de continuar. — Enveredei pela carreira de modelo por acidente. Não foi uma coisa para que tivesse trabalhado ou que tivesse conquistado a pulso. Quando fui rejeitada na escola de teatro, desisti simplesmente da ideia de representar e apareceu-me uma alternativa fácil. E foi o mesmo quando tu me rejeitaste. Desisti e voltei para o que sabia fazer. Tomei o caminho menos penoso. — Devia ter ido buscar-te — disse ele. — Mas não foste. E eu não tive a coragem de continuar aqui, como a Sarah ou a Hannah. Virei as
costas e fugi. — Agora estás aqui — disse ele, beijando-a de novo. — Estamos os dois aqui juntos. — Estamos, mas preciso de provar a mim mesma que estou à altura do desafio. Quero que a oficina em Langani seja um sucesso. Preciso de saber que sou capaz de lidar com qualquer problema com que me depare e que não fujo às dificuldades, como toda a gente acha que vai acontecer. — Quem é que acha isso? — perguntou ele. — Preciso de que me dês seis meses — disse ela, ignorando a pergunta dele. — Para me instalar em Langani e consolidar o meu negócio. No princípio do ano tenho de voltar a Londres para cumprir alguns contratos que assinei e vender as coisas que tiver produzido na fazenda. Depois veremos se temos o estofo necessário para nos casarmos. Ele desviou-se dela, o rosto sombrio com a desilusão. — É uma ideia irracional — disse ele. — Seis meses para provarmos uma coisa que já sabemos. Parece um enredo de um filme de Hollywood. Não vi já um filme assim? — É possível — disse ela, sorrindo e pegando na roupa. — E teve um final feliz. Mas a nossa história ainda acaba no hospital em Nairobi, se não voltarmos para o carro. Agora que o sol se pôs, estou cheia de frio. A sofrer da exposição aos elementos. — Eras capaz de ser mais maleável, se estivesses presa a uma cama de hospital — disse ele, amuado. — Vamos para a cidade, mas estou inconsolável porque me ia apresentar esta noite ao George como futuro genro dele. E tu estragaste-me o plano.
Dois dias mais tarde, ele partiu em safári e Camilla fizera um esforço determinado para não pensar no pedido dele. Durante três meses, concentrou as suas atenções na oficina. Agora, faltavam poucos dias para o Natal e ela não sabia se Anthony estaria presente para o passar com ela. Tinha esperado que ele a convidasse a ir ter com ele a um dos seus acampamentos, se os clientes dele decidissem lá ficar. Mas até agora não tinha havido nenhuma sugestão nesse sentido. — O Anthony está no Mara — disse ela, em resposta à pergunta de Hannah. — Acho que passa lá o Natal. Mas os clientes são capazes de ir para Nairobi ou para o Safari Club do monte Quénia passar o Ano Novo e, se assim for, ele aparece em Langani. — Óptimo — disse Hannah. — Então até amanhã. A propósito, a Suniva tem mais um dente e eu tenho um almoço marcado. Tenho de me despachar. — Para almoçar com quem? — Camilla estava curiosa. Hannah praticamente não saíra da fazenda desde o nascimento da filha. — Um estranho alto e moreno — disse Hannah, com uma gargalhada. — Gosto de contrastes, como sabes. — Parece interessante e perigoso — disse Camilla. — Até amanhã.
Uma hora mais tarde, Hannah verificou a sua lista de compras pela última vez, repetiu uma ladainha de instruções a respeito dos cuidados a dar a Suniva e olhou, hesitante, para Lars. — Vai — disse ele, sorrindo-lhe. — Eu e a Suniva temos muito com que nos entreter e tu já estás atrasada. Vamos sair para ver o trigo e falar sobre coisas que as raparigas só podem discutir com
os pais. — O quê, por exemplo? — perguntou Hannah. — Ela sabe mais sobre a vacaria do que sobre o estado do trigo. — Exactamente — disse Lars. — É por isso que vamos rectificar isso hoje, só os dois. Vai lá, Hannah. A Esther está cá, temos os biberões todos prontos e as fraldas e o resto. Encontramo-nos em Nanyuki às quatro. Há muito tempo que não jogamos ténis e estou ansioso. — Não te esqueças da manta dela — disse Hannah, deitando uma última olhadela à filha. — Vai! — ribombou Lars. * Afastou-se no carro, um pouco nervosa por se separar da bebé pela primeira vez. Mas estava grata pela insistência de Barbie Murray para almoçarem juntas. Os Murray eram bons vizinhos. Desde a morte de Piet que tinham manifestado o seu apoio e sido discretamente atenciosos e tinham acolhido bem Lars desde o seu regresso à fazenda. Durante a época da sementeira, tinham aparecido a ajudar e, quando o tractor se avariou num momento crucial, Bill Murray tinha emprestado a Lars o seu novo Massey Ferguson. Barbie tinha ainda recomendado a ama de Suniva, uma mulher reconfortante e de confiança, chamada Esther, que tinha cuidado dos filhos dos Murray quando estes eram pequenos. Hannah estava a trautear quando estacionou à porta da duka de Patel para deixar a lista das compras e regatear com o proprietário indiano o preço dos pregos e do querosene. À tarde, levantaria as compras, esperando que não faltasse nada de essencial. O seu ténis estaria terrivelmente enferrujado, embora ela própria estivesse, no geral, em boa forma, graças às longas caminhadas que dava diariamente, empurrando Suniva no carrinho com os cães atrás. No dia anterior, tinha preparado um piquenique e Lars tinha posto o berço da menina na traseira da carrinha para irem até ao rio. Quando pararam, o sol estava no zénite. Mesmo à sombra da figueira selvagem, estava irrespiravelmente escaldante. — Vamos nadar — anunciou Lars. — São horas de esta jovem aprender a nadar. — Não podes meter uma criança pequena nesse rio gelado — protestou Hannah. — É um choque excessivo e ela pode ficar a odiar a água para sempre. Mas Lars já se tinha libertado dos calções e da camisa. Pegou em Suniva e deslizou pelo talude abaixo para se sentar num tronco semi-submerso, baloiçando os pés da bebé na água veloz. Ela levantou os olhos para ele com um ar espantado e depois concentrou-se nos pés, contorcendo-se e chapinhando com as pernas gorduchas e agitando os braços, deleitada com a descoberta. — Junta-te a nós — pediu Lars à mulher. Hannah levantou-se, despiu-se completamente e mergulhou no rio, sustendo a respiração com o choque da água fria. Lars olhou para ela, sentindo-se de novo tomado de paixão, e quando ela apareceu a boiar ao lado dele, pousou a bebé no regaço e estendeu a mão para lhe acariciar os seios redondos e belos, a barriga macia e as pernas robustas. — Amo-te, Han. — Amo-te — disse ela, com olhos brilhantes de felicidade. Saiu da água, tiritando um pouco, e ele beijou-a e ajudou-a a subir o talude, com Suniva enfiada na curva do outro braço. Ela virou-se para lhe passar os calções e, nesse momento, viu a generosidade no seu rosto largo, o cabelo louro que começava a revelar entradas, as rugas nos cantos dos seus olhos cinzentos-esverdeados e toda a
força, amor e bondade que o caracterizavam. E pensou que ele era perfeito. Sentada agora na poltrona no alpendre do clube, corou à recordação do sexo que se seguira. Barbie Murray olhou para ela com uma expressão de aprovação. — Estás com um aspecto estupendo, querida — disse ela. — Radiosa e bela. Vais adorar o ténis. Uma partida de pares nunca é muito complicada, é uma boa maneira de recomeçar. — Estava a pensar num caril para o almoço — disse Hannah. — Mas é capaz de acabar com as hipóteses de jogar bem. Pediram o almoço e preparavam-se para passar à sala de jantar quando uma voz sonora, com um sotaque cerrado, as interpelou. — Duas belas mulheres sozinhas. Não posso ver tal coisa sem acudir. Viktor Szustak atravessou a sala e pegou na mão de Barbie, baixando-se sobre ela. O seu cabelo preto era espesso e revolto, o seu sorriso ávido. Quando se endireitou, olhou demoradamente para Hannah antes de a abraçar e de murmurar qualquer coisa deliberadamente ininteligível ao seu ouvido. Ela retesou-se no seu abraço, inalando o familiar odor a charuto da sua roupa, o cheiro a gin no seu hálito. Ele fora seu amante, mas agora sentiu uma espécie de repugnância táctil e olfactiva por ele. — Estás gloriosa como sempre — disse ele, libertando-a e recuando. — Não mudaste nada. Sempre a magnífica rainha guerreira. — Baixou a voz e, por um momento, pôs uma expressão genuinamente triste. — Lamento imenso o que aconteceu ao Piet. Um homem excelente e um bom amigo. Hannah permaneceu como a mulher de Lot, silenciosa e imóvel. Há um ano que não o via. Desde que o apanhara na cama com uma mulher africana em Nairobi. Viktor, que a seduzira e depois a largara quando se cansara da relação. Viktor, que fora amigo de Piet, arquitecto do lodge que agora estava abandonado em Langani. Viktor, o pai da sua filha. — Tu também não mudaste — estava Barbie a dizer, com um sorriso rasgado. — Estás com um ar mais pérfido que nunca e a tua pele está quase negra. Onde é que tens andado? — Na Tanzânia. — Viktor acenou com o charuto. — Estou a construir um lodge magnífico no Sul. Em Ruaha. É território virgem e demorei quase um ano a terminar o projecto e a conseguir os materiais. Aluguei uma casa em Dar es Salaam e passo o tempo livre à beira-mar. Na praia. Transformei-me num homem do oceano e dos ventos alísios, um senhor de escravos obedientes que satisfazem todos os meus desejos. — Os seus olhos negros estavam brilhantes ao passar o braço pelos ombros de Barbie. — Vão almoçar? Faço-lhes companhia. Os olhos de Hannah arregalaram-se de consternação e a expressão não passou despercebida a Barbie. Tinham corrido rumores sobre Hannah e Viktor, no ano anterior, zunzuns sobre um romance. Mas ele desaparecera de cena e depois Piet tinha morrido. O seu reaparecimento estava claramente a evocar recordações tristes. — A Hannah está a ter um dia de folga da fazenda, do marido e do bebé — disse Barbie. — É um almoço entre amigas. Não estão autorizados homens. Mas, se ficares por cá um ou dois dias, aparece para uma bebida. O Bill há-de gostar de te ver. — Ouvi dizer que te tinhas casado. — Viktor mirou Hannah penetrantemente. — Parabéns ao grande agricultor viking. E disse agora a Barbie que há um bebé também? Estava a sorrir-lhe, esperando uma resposta orgulhosa, quando viu um lampejo fugidio nos olhos dela. Não foi capaz de defini-lo, mas pensou que podia ser medo. Sentiu a pele arrepiar-se.
— É menino ou menina? — O tom dele era diferente e ela notou a mudança. — Menina — respondeu Hannah, o queixo levantado na atitude que ele recordava. Provocadora. Ele assentiu. — Parabéns a dobrar — disse ele. — E muitos anos felizes. Barbie, amanhã à noite vou visitá-los, se lhes convier. Vou ficar por cá dois dias para discutir a possibilidade de um novo lodge de observação no monte Quénia. No meio da floresta onde contam ver bongos e leopardos à noite. Por enquanto, não passa de uma proposta mas pode ser interessante. — Parece óptimo — disse Barbie, satisfeita com a perspectiva da companhia dele. — Vamos, Hannah, precisamos de uma pausa entre o almoço e o ténis. — Estou desalentado com a vossa rejeição — disse Viktor. — Vou voltar para o bar para afogar as mágoas em gin e vocês serão responsáveis pela minha queda. Conta então comigo, Barbie. E diz ao Bill que lhe vou levar uma garrafa de whisky decente. — É um patife, aquele homem — disse Barbie a rir enquanto almoçavam. — Um sedutor, mas não merece a mais pequena confiança. — Tinha reparado na forma como Hannah estava a debicar a comida com uma expressão sombria. — Minha querida — disse ela —, as velhas paixões são sempre incómodas quando voltam a aparecer sem avisar. Mas não deves preocupar-te com alguém como o Viktor. Relações duradouras com as mulheres não são com ele… não é o género de homem que queira voltar atrás. — Tens razão — disse Hannah, esforçando-se por sorrir. — Tivemos um romance breve e depois caí em mim. Mas espero que o Lars não esbarre com ele… não o suporta. — É natural. — Barbie estava a rir com vontade. — Lembro-me de o Bill se ter cruzado com um antigo namorado meu, uma noite, num baile em Nyeri. E o meu terno e bondoso marido tornou-se de repente num animal feroz, a arder por uma briga. Mas senti-me extremamente lisonjeada, porque estávamos casados há dez anos ou mais e tínhamos caído numa rotina certinha e um pouco deprimente. Por sinal, fez-nos muito bem. Vá, conta-me tudo sobre a tua hóspede famosa e a nova oficina. A comunidade agrícola aqui não fala de outra coisa. — A Camilla já se instalou completamente e parece que as bibis que lá trabalham já começaram a entender o projecto. — Encontrei-a na duka em Nanyuki, na semana passada, parecia um raio de luz a dançar naquele antro de poeira. Tive a impressão de que nunca tinha visto uma rapariga tão bonita. Há qualquer coisa de etéreo nela, com aquela pele delicada e perfeita, os olhos azuis cor de centáurea e o cabelo claro com os seus reflexos prateados. Dá ideia de que é capaz de se evaporar a qualquer momento, desaparecer nas nuvens como uma aparição celeste. E sabe tirar partido disso. — Está em Nairobi há alguns dias — disse Hannah. — Está a tentar levantar da alfândega alguns tecidos novos, o que está a pô-la louca, apesar de ter um agente para ajudar. Acho que não estava à espera de tanta letargia e corrupção. — Nós, que já somos veteranos nisto, não acreditamos no que se está a passar — disse Barbie. — A corrupção grassa em todo o lado. Não percebo como se instalou tão depressa. Antes da Independência, orgulhávamo-nos do facto de o Quénia ser uma sociedade relativamente justa. Ao contrário dos países oeste-africanos onde não se consegue nada sem um suborno. — É grave, muito grave — disse Hannah. — Dei aulas de condução a um dos nossos watu e ele aprendeu depressa. Mas quando foi fazer o exame na semana passada, o examinador pediu trezentos xelins para o passar, porque era de outra tribo. Se fossem os dois luos, teria custado menos. Assim,
o resultado é que continua a andar de bicicleta. — Um funcionário subalterno no Departamento de Agricultura tentou uma gracinha com o Bill no outro dia — disse Barbie. — Ameaçou deportá-lo por ter despedido um dos nossos trabalhadores. A não ser que o Bill arrotasse quinhentos xelins. Suborno flagrante. O tipo andava bêbado há uma semana ou mais e não tinha posto os pés no trabalho. E tinha-se pirado com uma série de ferramentas pertencentes ao mecânico indiano que faz a revisão à ceifeira debulhadora. — E então o que aconteceu? — O velho indiano foi à procura dele e obrigou-o a assinar uma declaração a dizer que tinha roubado as ferramentas. Claro que não as recuperou… já tinham sido vendidas, provavelmente por um décimo do que valiam. O documento salvou o Bill do aperto mas, da próxima vez que ele precisar de uma licença para alguma coisa, hão-de lembrar-se. Como é que vão as coisas em Langani? — Bem — respondeu Hannah. — O trigo promete, as vacas estão saudáveis e para já as nossas patrulhas parecem ter dissuadido os caçadores furtivos. — Fico muito feliz, minha querida. E não podias ter melhor pessoa no Lars. Eu e o Bill gostamos imenso dele. — É, sinto-me extremamente segura com ele perto — disse Hannah, os seus traços suavizando-se. — No mês passado, contratámos mais um guarda-nocturno para reforçar a segurança. Começámos a sentir-nos novamente seguros. E a Camilla está a treinar cinco bibis na oficina. — Esses artigos vão ser mesmo despachados para Londres e até Nova Iorque? — Barbie estava visivelmente impressionada. — Quase todos — disse Hannah. — Mas a Camilla é capaz de apresentar um desfile de moda em Nairobi, em conjunto com uma das lojas de roupa. Acha que devíamos tentar desenvolver um pequeno mercado local e eu concordo. Mas o principal objectivo dela é vender os nossos produtos em Inglaterra e até na América. — Constou-me que o principal objectivo se encontra muito mais próximo — disse Barbie com ar de entendida. — Nesse capítulo, ela está a avançar com cuidado — disse Hannah. — O Anthony esteve em Langani em duas ocasiões desde que ela chegou e ela encontra-se com ele em Nairobi, quando ele não anda no bundu com clientes. Mas a Camilla conhece a vida destes caçadores e guias de safári e está prevenida. — Rapariga esperta. Ele é um homem atraente. Ela precisa de o prender aos poucos e não largar. E mantê-lo na dúvida também. É o que os apanha infalivelmente. Sobremesa? Eu quero. O ténis da tarde foi suficientemente agradável. Mas Hannah deu por si a olhar por cima do ombro para o clube e, mais tarde, na cidade, quando ela e Lars foram levantar as provisões à loja de Mr. Patel. Mas não viu sinais de Viktor e sentiu-se aliviada quando deixaram Nanyuki e se dirigiram para casa.
No dia seguinte, irrompeu um alvoroço quando Sarah e Camilla chegaram à fazenda ao mesmo tempo. Os cães desataram a ladrar freneticamente, Mwangi e Kamau apareceram da cozinha radiantes, para lhes dar as boas-vindas, e Hannah ficou toda babada perante as festinhas que todos fizeram à bebé. George Broughton-Smith manteve-se um pouco afastado, sentindo-se de algum
modo excluído do ruído e palração das três raparigas, mas aliviado quando Lars surgiu a atravessar o relvado em passos largos para se juntar à excitação. — Prazer em vê-lo por cá — disse Lars depois dos apertos de mão. — Ouvi dizer que as coisas estão a correr bem. Que não tem havido caça ilegal, quero eu dizer — comentou George. — Exacto. Posso levá-lo a dar uma volta pela fazenda hoje à tarde, se quiser. — É melhor deixar as coisas no carro por agora — disse Camilla. — Quero ir mostrar a oficina ao papá e à Sarah. — Onde está o Anthony neste momento? — Sarah pegou no braço de Camilla ao atravessarem o relvado em direcção ao edifício que Lars convertera. — Anda em safári com um grupo de americanos de Seattle, reformados e desesperadamente sérios e aborrecidos. A brigada do reumático da alta sociedade. Não conseguem decidir se querem passar o Natal no acampamento ou festejar na companhia de uma chusma de gente. Somos capazes de passar a véspera de Ano Novo juntos. — Olhou para Sarah com uma certa tristeza. — Ainda bem que estou aqui com o Lars e a Hannah — disse ela. — E que tenho o meu pai em Nairobi quando lá vou. Caso contrário, sentia-me terrivelmente só. Mas a oficina está a avançar e as mulheres estão a aprender. A antiga casa do feitor ficava a várias centenas de metros da casa principal e fora transformada numa pequena fábrica. Lars tinha deitado abaixo algumas paredes divisórias e criado um espaço arejado com soalhos envernizados e grandes janelas. No centro da sala, havia uma mesa de cavaletes que era usada para estender moldes e cortar tecido. Havia várias arcas de madeira para arrumação encostadas às paredes e quatro máquinas de costura eléctricas, duas para costura simples, outra para costuras rebatidas e uma de tipo industrial para coser pele e couro. Na parede do fundo, havia prateleiras e armários repletos de peças de seda, lona, couro e camurça macia, impecavelmente enroladas em tubos de cartão. — Vai levar tempo a pôr tudo a funcionar na perfeição — disse Camilla ao pai. — As coisas aqui não avançam exactamente à mesma velocidade que em Londres.
Camilla tinha achado os primeiros dois meses extremamente árduos. Depois de Anthony ter partido em safári, tinha passado muitas e frustrantes horas em Nairobi, entre departamentos governamentais, para obter uma licença de trabalho e o alvará de funcionamento. As máquinas que tinha encomendado não foram entregues na data prometida e, quando finalmente chegaram, uma delas estava seriamente danificada. Teve de pagar taxas de importação adicionais sobre tudo o que fizera entrar no país. Na Repartição Alfandegária, um inspector recentemente nomeado examinou os formulários que ela tinha preenchido e entregou-lhe outro maço de papéis. Vasculhou os caixotes e embrulhos dela, desenrolando metros de delicados têxteis e camurça clara sobre a superfície imunda da sua bancada, causando estragos irreparáveis. Era despótico e carrancudo, um pequeno funcionário com uma visão exagerada da sua própria importância, saboreando visivelmente a nova experiência de reter uma memsahib branca. Estava claramente à espera de um suborno, o que Camilla se recusou a reconhecer. No Departamento de Imigração, deparou-se com o mesmo problema. — Vou abrir uma empresa — disse ela a um funcionário impassível. — Apresentei o meu pedido
de autorização de trabalho há semanas. Enviei-o de Inglaterra por carta registada. Vou criar vários postos de trabalho, trazer divisas estrangeiras para este país e exportar mercadoria, o que vai estimular a economia do Quénia. — Não encontramos o seu pedido. Tem de preencher novos formulários — disse ele, fechando categoricamente o processo dela. Camilla estava determinada em não oferecer subornos, apesar de se deparar com funcionários obstrutivos e até ameaçadores. Ao fim de quatro dias, tinha-se sentado com o pai, exausta e à beira das lágrimas. — É tudo assim hoje em dia — disse ele. — Precisas de alguém influente que garanta que a tua autorização é processada e o teu alvará de funcionamento emitido. Vou dar um toque ao Johnson Kiberu a ver se ele resolve o problema.
— Johnson Kiberu. Conheci-o uma vez em Londres. — Camilla franziu a testa à recordação. O homem tentara seduzi-la e ela escapara às suas investidas desajeitadas. — É um político competente — disse George. — Dedicado e firme. Determinado em exercer um controlo verdadeiro da gestão dos parques e reservas nacionais. Sem o apoio dele, eu próprio não conseguiria grandes resultados. Ele há-de recomendar alguém na Alfândega e na Imigração com quem possas lidar. Não te preocupes, querida. Eu ajudo-te a pôr um sistema em marcha. Entretanto, sugiro que vás para Langani e comeces a instalar-te. — Mas tenho uma série de materiais na alfândega — disse ela. — Às tantas desaparecem se não conseguir levantá-los. — Precisas de um agente alfandegário para tratar dessas coisas — declarou George. — Há um jovem jornalista indiano que conheci recentemente que tem de certeza um familiar nesse ramo. Vai custar uns cobres extra mas, pelo menos, não tens de passar a vida exasperada em repartições governamentais. Em Langani, Lars e Hannah insistiram para que ela ficasse com eles na casa principal. — Podes ocupar o teu velho quarto na ponta do alpendre — disse Hannah. — Sentimo-nos mais descansados se ficares connosco. E a tua companhia é um bónus para mim quando o Lars tiver de ir a Nairobi. Camilla tinha reparado num segundo guarda-nocturno na casa e nas armas no armário das bebidas. Lars e Hannah também tinham revólveres no escritório e no quarto. Mas não tinha havido conturbações na fazenda desde a tragédia da morte de Piet, há quase um ano. Com o fundo para a conservação da vida selvagem que a organização de George lhes atribuíra, Hannah comprara um Land Rover e contratara uma patrulha de quatro guardas-florestais para combater a caça ilegal. Lars passou semanas a treiná-los e criou uma série de percursos de patrulha que cobriam quase toda a propriedade. Nos últimos meses, não se tinha registado a captura ou matança de animais selvagens na fazenda. Na primeira tarde do seu regresso a Langani, Camilla instalara-se no seu quarto e, em seguida, fora dar uma primeira vista de olhos ao seu futuro local de trabalho. Quando voltou à casa principal, estava um vetusto Land Rover estacionado no caminho de acesso. — Surpresa! — Sarah desceu os degraus a correr, de braços estendidos, com um sorriso imenso como o céu. — Tive de vir passar uma noite para acreditar que estavas mesmo de volta.
— Cá estamos as três, novamente juntas. — Hannah estava radiante. — E isso cá para mim é lekker. Passaram um serão feliz, brincando à vez com a bebé e recordando os tempos de escola, até a conversa se desviar para Anthony e o seu pedido de casamento. — Amo-o — disse Camilla. — Amo sinceramente. Mas preciso de saber que sou capaz de construir uma vida que me ocupe enquanto ele anda pelo mato semanas a fio de cada vez. Mas ainda bem que ele não está agora aqui porque, se entrasse nesta sala e me perguntasse outra vez, não sei se a minha determinação seria assim tão forte. — Não deves falar dele quando ele não está presente — disse Lars, embora estivesse a sorrir. — É terrível um homem estar à mercê de uma mulher, quanto mais de três, sem a oportunidade de se defender. Ao jantar, instalou-se um silêncio ao pensarem em Piet e evocarem as muitas noites em que Jan e Lottie haviam presidido àquela mesma mesa, cheios de optimismo em relação ao futuro da família em Langani. Lars sentiu a tristeza insinuar-se na sala. Fez os possíveis por distraí-las com histórias da sua primeira visita ao Quénia em rapaz, quando aprendera como a plantação de café do tio funcionava e sentira vontade de ficar. No quarto que haviam partilhado na sua infância, Sarah e Camilla sorriram uma à outra, deitadas na cama à espera de ouvir o ruído do gerador a abrandar e de ver as luzes do alpendre apagarem-se e serem substituídas pelo veludo estrelado da noite africana. Camilla estendeu o braço no espaço entre as camas e agarrou na mão de Sarah. — Amo-te — disse ela. — Boa-noite. — Eu também — disse Sarah. E, pela primeira vez, desde o desaparecimento de Piet, adormeceu em Langani com um sorriso nos lábios. * — Esta manhã, vamos andar a cavalo — anunciou Hannah, no dia seguinte, ao pequeno-almoço. — Não tenho montado muito desde que a Suniva nasceu, portanto vai ser uma ocasião especial. Partiram através da estepe, seguindo as manadas dos animais de planície, detendo-se para observar uma família de javalis-africanos a rebolar-se na lama. Nas ervas rasteiras, um serpentário atacou uma cobra com intransigente ferocidade, engoliu-a e continuou a sua caminhada com passos precisos e amaneirados, resplandecente na sua bonita plumagem negra, cinza e branca, como se se dirigisse para o seu clube. Desmontaram na margem do rio e deixaram os cavalos à solta a pastar. Em pé, junto do veloz fluxo do límpido riacho da montanha, todas elas sabiam por que razão Hannah as conduzira ali. — Foi aqui que fizemos a nossa promessa há quatro anos — disse ela. — Cortámos as mãos e fizemos um juramento de sangue em como olharíamos sempre umas pelas outras. E agora que a Camilla voltou, pensei que podíamos renovar esses votos. Não precisamos de tornar a abrir buracos nas palmas das mãos mas podemos pronunciar as palavras. E sei que o Piet ainda as ouve e que está connosco hoje. — Prometo nunca esquecer, ser eternamente fiel à nossa amizade e dar apoio às minhas irmãs sempre que precisarem de mim. — Sarah recordava-se exactamente das palavras como se as tivesse proferido no dia anterior. Deram as mãos, enquanto Hannah e Camilla repetiam o voto, e
depois permaneceram enlaçadas, à sombra da figueira a que Piet amarrara o seu cavalo e assistira ao juramento inicial. Num dia ensolarado que agora parecia ter tido lugar noutra vida.
Sobre elas, nas alturas da crista, o velho olhou para as figuras das três memsahibs brancas e amaldiçoou-as em voz baixa. Estavam muito juntas, de mãos dadas como se estivessem a praticar um ritual. Em seguida, cingiram-se nos braços umas das outras num abraço e separaram-se. Ele cuspiu no chão. Pouco depois, elas montaram de novo e ele observou-as a cavalgar através das planícies, com o vento a cantar a sua centenária melodia através das ervas altas, passando pelas manadas de animais selvagens e pela orla da seara dourada até alcançarem o local onde se encontravam as vacas, o milho e as hortaliças. O local que em breve seria seu.
Na tarde do dia seguinte, Sarah tinha regressado aos seus elefantes, enquanto Camilla começava a instalar a oficina. Tinha entrevistado mulheres da sanzala de Langani recomendadas por Hannah, examinando as suas obras nativas com missangas e tentando avaliar as suas competências em costura. Mas funcionar com uma máquina eléctrica não era fácil. Tinham soltado gritinhos de alarme quando uma delas carregou no pedal com demasiada força e a agulha entrou em superaceleração, engolindo o tecido num ziguezague de pontos. Camilla passou dias com as mulheres, separando linhas e procurando salvar parte dos tecidos rasgados. Elas não conseguiam apreender o método de inserir a bobina de linha pela ordem de laçadas correcta e gemiam de frustração quando a máquina se recusava a coser ou a linha se partia. Perdeu-se uma quantidade considerável de seda e camurça caras durante o processo de aprendizagem. Também tinham ocorrido roubos. As bibis eram como pegas-rabudas, atraídas pelas contas e decorações mais vivas e brilhantes e perfeitamente capazes de meter ao bolso uma selecção para adornar o seu vestuário e as suas casas. Camilla consultou Lars, que instruiu o carpinteiro da fazenda a instalar cadeados em todos os armários e gavetas. Em várias ocasiões, tinha-se deslocado de carro a Nairobi para estar com Anthony, entre safáris. Passavam as suas preciosas noites em casa dele, falando sobre as suas experiências recentes no mato e na fazenda, deitados lado a lado à noite e fazendo amor com uma ternura que os deixava saciados mas desejosos de mais. Camilla comprou lençóis e fronhas bordados, toalhas de mesa e almofadas novas, castiçais e jarras de vidro e prata. Sentiu-se gratificada com a surpresa e o prazer que ele demonstrou ante a transformação do seu alojamento de celibatário num retiro romântico. O seu arranjo da mesa também apanhou o criado de surpresa. — O bwana vê perfeitamente à mesa — frisou Joshua, indicando o candeeiro de tecto e os apliques de parede enquanto Camilla distribuía velas por toda a sala. — Não precisa dessas coisas, memsahib Camilla, e largam porcaria no aparador. — Este é um jantar especial para o bwana e é assim que fazemos quando eu estiver aqui — disse ela. — Agora, Joshua, quero que pegues neste guardanapo e o dobres em dois. E depois em quatro. Isso. Agora pega nos cantos… Divertiu-a a expressão dele enquanto aprendia a criar formas de flores com os quadrados de tecido engomados e, gradualmente, ensinou-o a pôr a mesa de novas maneiras, a arranjar rosas e dálias cortadas do jardim e a colocar velas nos lugares. Em cada visita, levava caixotes com
roupas e acessórios que confeccionara na oficina de Langani e, ao fim do primeiro mês, apresentou amostras a uma das principais boutiques de Nairobi, assinando imediatamente um contrato para os fornecer. — Não quero que as minhas criações estejam disponíveis em todo o lado — explicou ela a Anthony. — Acho que uma loja em Nairobi chega. No próximo mês, vou ao Safari Club no monte Quénia saber se estão interessados em ficar com algumas peças. E talvez um dos hotéis elegantes na costa. Mas têm de ser exclusivos. Além disso, tenho uma grande encomenda do Saul Greenberg para satisfazer e não posso reservar demasiada mercadoria para vender localmente.
Em Langani, Camilla passava todos os dias na oficina. No fim do primeiro mês, depois de pagar às mulheres as horas de trabalho, só duas delas voltaram para as máquinas na manhã da segundafeira seguinte. Makena, a melhor costureira, abriu os braços num gesto fatalista, explicando que os maridos das três que faltavam tinham comprado sementes ou se tinham embebedado com os salários e tinham mandado as mulheres trabalhar novamente nas shambas familiares. Durante as seis primeiras semanas, tinha tido a sensação de estar a dar dois passos atrás por cada três passos em frente e tinha passado muitas noites acordada a pensar em Tom Bartlett e nos seus sinistros avisos. Mas a convicção dele de que voltaria para Londres com o rabo entre as pernas, a implorar contratos, serviu finalmente para reforçar a sua determinação em vencer. Por fim, percebeu que as suas bibis quicuias começavam a compreender o que pretendia delas. E as mulheres sentiam-se orgulhosas dos seus esforços e com razão. Gostava de ouvi-las cavaquear enquanto costuravam, as suas vozes melodiosas e risos estrondosos fazendo-a desejar compreender a sua língua tribal. Camilla dominava razoavelmente o suaíli, mas não conseguia acompanhar o dialecto quicuio, à parte meia dúzia de frases que tinha apanhado ultimamente. Hannah ajudava-a a embalar os produtos acabados em camadas de papel de seda e a encaixotá-los para serem vendidos localmente e despachados para Londres e Nova Iorque.
Sarah sentia-se desapontada por nenhuma das amigas ter arranjado tempo para visitar Buffalo Springs nas semanas que antecederam o Natal e estava inquieta com a ideia de passar as férias em Langani. Não queria especular sobre os sentimentos de todos no aniversário do seu noivado com Piet e nos dias terríveis que se haviam seguido. Mas acabou por ir, por amor e lealdade e porque não era capaz de se imaginar a sofrer sozinha com as recordações. Ficou satisfeita ao ver que George também ia estar presente. Seria uma boa companhia para Lars. Estava visivelmente impressionado com os feitos de Camilla. Olhava com frequência para ela enquanto exploravam a oficina, levantando o polegar em sinal de aprovação, a sua expressão transbordante de orgulho paternal. — Conheci o teu amigo jornalista em Nairobi — disse ele a Sarah. — O Rabindrah Singh. — Não é propriamente um amigo — disse ela. — Bem, é um tipo inteligente e ambicioso — disse George. — Tem-me sido muito prestável, colocando artigos sobre a nossa fundação em jornais e revistas regionais. Qual é a situação com o vosso livro? — Ele vai voltar a Buffalo Springs no princípio do ano — respondeu Sarah. — Revimos o que
ele escreveu até agora e o Dan introduziu alterações. Está tudo bem encaminhado mas ainda estamos à espera de luz verde do editor. Mas recebi uma carta encorajadora do John Sinclair a dizer que está encantado com o que mandámos até agora. Depois do almoço, George foi dar uma volta pela fazenda para conhecer os guardas-florestais que Hannah contratara com os fundos que ele atribuíra a Langani. Lars alinhou-os à porta do escritório para serem inspeccionados, elegantemente vestidos com uniformes caqui, boinas de lã enroladas e enfiadas nas presilhas dos ombros, e casacos grossos para as patrulhas nocturnas. Puseram-se orgulhosamente em sentido enquanto George os cumprimentava e depois entraram para o banco de trás do Land Rover para os acompanhar. Fora erguida uma vedação em redor de parte da área destinada à reserva de vida selvagem e Lars parou em dois locais onde elefantes ou búfalos tinham recentemente destruído a rede. A área de conservação estendia-se por planícies douradas e era bordejada pela linha de árvores ao longo do rio e alguns hectares de floresta densa. Uma avestruz macho fugiu rapidamente do veículo, em passadas saltitantes, a sua plumagem negra cintilando. Na vastidão do céu limpo, uma águia-rabota descrevia círculos fluidos e um par de antílopes-pigmeus saltitou para o meio de um matagal com as suas pernas minúsculas e frágeis. Perto do fim da tarde, Lars enfiou o Land Rover pelo caminho que levava ao local onde Piet construíra o seu lodge. — Deve ser penoso vir aqui, mesmo agora — observou George. — É. Mas eu venho regularmente — disse Lars —, para impedir que o mato engula a construção e para olhar pela conservação do interior. A Hannah está a pensar em abri-lo no próximo ano. Inicialmente não era sequer capaz de pensar no sítio, mas agora começou a encará-lo como uma espécie de santuário ao Piet. Sente-se na obrigação de o abrir. Assim, trago comigo dois watu todas as semanas e limpamos as divisões, cortamos o bundu e deitamos sal para os animais continuarem a aparecer. Subiram à plataforma de observação e alongaram os olhos até à tranquilidade da tarde. No bebedouro, estava um javali-africano solitário que levantou momentaneamente os olhos antes de retomar a sua actividade de beber. De resto, não se ouvia nenhum som excepto o chilrear de pássaros. À distância, George avistou uma pequena manada de elefantes a emergir da floresta e a dirigir-se para o kopje. — A patrulha vem aqui quase todas as noites, mas alteramos regularmente o percurso e a hora para os potenciais caçadores furtivos nunca saberem quando podemos aparecer de repente nem onde. Até agora parece estar a resultar. — Custa pensar neste magnífico local como o cenário de actividades tão abjectas — disse George. — Tenho uma enorme admiração por essas três raparigas e pelo apoio que lhes tens dado. E folgo muito em saber que o dinheiro da minha organização tem ajudado a reforçar a segurança aqui. Quando voltaram para casa, George decidiu dormir a sesta e Lars dirigiu-se ao escritório. Preparava-se para abrir a porta quando ouviu Hannah ao telefone. O seu tom era zangado, as palavras sacudidas. — É escusado cá vir. Não tenho nada para dizer excepto adeus. — Pousou o telefone no descanso com uma pancada e saiu disparada da sala, chocando com o marido. — Eh, com quem é que estavas a falar? — perguntou ele, surpreendido. — Ora, era um palerma que nos queria vender não sei o quê — respondeu ela. — Estava a ver
que não me livrava dele. — A vender o quê? — Lars estava intrigado com a sua atitude agitada e os olhos a chispar de fúria. — Também vais começar a pressionar-me? — perguntou ela. — Tenho de dar satisfações de tudo o que digo a um imbecil de um vendedor? — Hannah, o que é que se passa contigo? — Abraçou-a e apertou-a contra o peito. — Desculpa — disse ela finalmente. — Estou um pouco nervosa esta tarde. Deve ser cansaço. A Suniva acordou-me duas vezes esta noite e tenho passado o dia numa roda-viva a preparar tudo. — Acho que deves ir dormir uma sesta como o George — disse ele. — A Esther levou a menina a passear, aproveita para descansar uma hora. Vai lá. Hannah anuiu e dirigiu-se pelo alpendre para o quarto partilhado por Sarah e Camilla. — Olá — disse ela, enfiando a cabeça na porta. Sarah levantou os olhos de uma pasta com folhas dactilografadas e sorriu. — Estou a meio do rascunho do Rabindrah e devo admitir que ele escreve bem — disse ela. — Melhor do que imaginei. Sobretudo quando se considera o pouco tempo que lá passou. Mas o estilo é poderoso e acertou nos factos, graças às correcções do Dan. Desperta a curiosidade do leitor pelos elefantes sem se tornar sentimental. Mas não tenciono elogiá-lo muito porque ele é bastante vaidoso a respeito do trabalho dele e só lhe subia à cabeça. — Encontrei o Viktor em Nanyuki ontem — disse Hannah num impulso. — Quer cá vir. Acho que quer ver a Suniva. — Oh, meu Deus! — Sarah olhou para ela, consternada. — Que é que ele estava a fazer em Nanyuki? A Allie disse-me que ele estava a trabalhar na Tanzânia. É impossível que suspeite… — Não sei — disse Hannah, infeliz. — Mas estou com medo. Telefonou agora mesmo e acho que o Lars me ouviu a falar com ele. Quando perguntou quem era, menti-lhe. — É melhor dizeres ao Lars exactamente o que aconteceu — disse Sarah. — Han, era melhor enfrentarem isso juntos. — Não posso falar disto ao Lars. — Hannah abanou veementemente a cabeça. — Não posso. — Quanto tempo é que o Viktor vai cá ficar? — quis saber Sarah. — Não sei. Dois dias, foi o que disse à Barbie Murray. Mas há hipóteses de ser convidado a projectar um novo lodge aqui. — Nesse caso, tens mesmo de contar ao Lars — disse Sarah. — Contar ao Lars o quê? — Camilla apareceu à porta. Sentou-se na sua cama e ouviu a história. — O Viktor é um cobarde — disse ela finalmente. — Não é o género de pessoa que queira assumir a responsabilidade por uma criança que lhe atasse os movimentos. Não quis nada contigo, Hannah, quando achou que te podias tornar uma relação permanente. Não acredito que ele viesse aqui criar problemas. — Não sei. — Sarah estava céptica. — Há homens que não se ralam muito com as namoradas e as mulheres, mas têm sentimentos muito diferentes em relação a um filho. Temos de evitar que ele cá venha. Arranjar maneira de o despachar. — Sem ser empurrá-lo por uma ribanceira abaixo, não estou a ver como — disse Camilla. — Tenho um mau pressentimento a respeito disto. — Os olhos de Hannah estavam toldados com o medo. — Tenho andado num estado lastimoso todo o dia. Estou sempre a pensar que foi quase há um ano que o Piet foi assassinado. Não queria falar dele, mas sinto-me tão inquieta neste momento.
Todos os dias sinto saudades terríveis dele. E estou com medo do Natal e do aniversário da morte dele. — Enterrou a cabeça nas mãos e começou a chorar. Sarah levantou-se e dirigiu-se à janela com a sua vista sobre a crista. Tentara não pensar no aniversário mas, agora que Hannah o mencionara, sentiu-se tomada de apreensão. Foi invadida pela dor de sempre, que corroía o seu frágil domínio sobre as emoções sublimadas. Não conseguira rezar desde a noite da morte dele, nunca mais entrara numa igreja, não desejava celebrar o Natal com os seus cânticos de alegria, esperança e nova vida. — Vamos enfrentar tudo isto juntas. — Camilla colocou-se ao lado dela. — Não me parece que o Viktor queira uma briga com o Lars, que é o que acontece se cá vier. — Além disso, Han, pensando bem, a Suniva é a tua cara chapada — disse Sarah. — Eu sei que esta situação te provoca emoções terríveis. Mas a tua filha é loura e tem olhos azuis. É muito mais parecida contigo e com o Lars do que com o Viktor. Hannah desviou a cabeça, os braços firmemente cruzados sobre o peito e o rosto empedernido. Por um momento, teve vontade de bater em Sarah, ofendida com a sua afirmação abrupta. Depois, a sua expressão alterou-se e desatou a rir. — Só tu eras capaz de dizer uma coisa tão simples e sensata — disse ela, lançando os braços em redor da amiga. — Mas espero que isto não se torne um problema. Porque eu e o Lars somos muito felizes juntos e com a bebé e, pelo caminho para Nanyuki, ia a pensar que era a rapariga mais felizarda do mundo.
No dia seguinte, iniciaram os preparativos para o Natal. Hannah passou a manhã na cozinha com Kamau. O velho cozinheiro era perfeitamente capaz de recriar as receitas de Lottie sem ajuda, mas escutou com amor e paciência as instruções e pediu conselhos de que não precisava. George ofereceu-se para ir de carro a Nanyuki buscar coisas de última hora às lojas e, na sala de estar, Camilla e Sarah pegaram no grande caixote com decorações de Natal e começaram a pendurá-las na árvore que fora entregue depois do pequeno-almoço. Todavia, o véu da memória azedava os seus esforços e a casa estava silenciosa enquanto trabalhavam. O som de um veículo fê-las sair ao alpendre e foi com consternação que viram Viktor apear-se do carro. Sarah susteve a respiração ao ouvir a porta do escritório abrir. Lars olhou para o visitante por longos momentos, antes de galgar os degraus ao seu encontro. — Não és bem-vindo aqui — declarou ele. — Era um grande amigo do Piet, muito antes da tua chegada — retorquiu Viktor. — A propósito, parabéns. Encontrei a tua mulher em Nanyuki e soube que tinham uma bonita menina. Achei que seria boa ideia conhecê-la. Mwangi tinha alertado Hannah, que saiu da cozinha, pálida com o choque. — Que é que queres, Viktor? — disse ela. — Disse-te que não viesses aqui. — Disseste, Hannah? — Lars olhou para ela e depois virou a sua atenção de novo para Viktor. — Tens trinta segundos para entrares no carro e abandonares a nossa propriedade — disse ele. — Já estou a contar. Viktor fez finca-pé, os olhos sinistros e trocistas, a sua boca carnuda formando um sorriso sardónico. Depois lançou a cabeça para trás e explodiu em gargalhadas. Lars transpôs num relâmpago o espaço que os separava, lançando inesperadamente o braço direito, que aterrou sob o queixo de Viktor. Este cambaleou e caiu e, por momentos, seguiu-se um silêncio pesado. Em
seguida, ele tirou um lenço do bolso e limpou o fio de sangue do lábio. Pôs-se em pé a custo e ergueu um punho, mas Lars investiu na direcção dele e ele achou por bem não prolongar o confronto. — Hei-de voltar — disse ele, acenando com o braço de fora da janela do carro, ao afastar-se numa nuvem de poeira, os pneus chiando quando desapareceu de vista na curva no caminho. — Não me disseste que tinhas encontrado o Viktor. Aliás, mentiste-me — disse Lars enquanto Hannah o fitava, muda de consternação, chocada com a fúria gélida que via no seu rosto. — Vou andar por fora o resto do dia — declarou ele, afastando-se. Era quase noite quando regressou. Hannah estava à espera no alpendre, a andar de um lado para o outro com Suniva ao colo. A menina tinha sentido a tensão e estava irritadiça e chorosa. — Desculpa — disse Hannah. — Desculpa, Lars. Devia ter-te dito, mas fiquei muito chocada quando o vi no clube. E com medo. Foi simplesmente o medo. Ele, porém, continuou sem lhe responder e ela ouviu a porta do escritório bater. Aproximou-se da janela, dando uma leve pancada no vidro, mas ele não levantou os olhos e, minutos depois, ela desistiu. Uma hora mais tarde, Hannah estava afundada numa cadeira na sala de estar quando ouviu o ruído de um motor. Paralisou. — Os meus clientes decidiram passar o Natal no Safari Club no monte Quénia. — Anthony estava a galgar os degraus do alpendre, sorrindo radiosamente. — Onde é que está toda a gente? Tenho uma surpresa de Natal para todos. Hannah lançou-se nos braços dele, escondendo a cara no seu casaco de safári e agarrando-se a ele com força. Ele abraçou-a e depois desprendeu-lhe os dedos do braço, à espera de uma saudação e ouvindo-a explicar em frases curtas e desconexas o que tinha acontecido. — Esse tipo é um idiota. Um badameco completo — disse Anthony. — Aposto que só cá veio por gozo pessoal. O Viktor nunca quereria reclamar uma filha, nem assumir as responsabilidades daí inerentes. Tem uma série de mulheres por todo o país e em metade da Tanzânia também. Não te aflijas, Han. Ele não vai voltar. — Ele diz que é capaz de vir para aqui projectar um lodge — disse Hannah. — E o Lars está tão zangado que acho que… não sei o que ele vai fazer. — Vai tomar um whisky com soda comigo e com o George — disse Anthony. — Dás-me dormida? — É melhor dormires no antigo quarto dos meus avós. — Hannah estava a sorrir debilmente. — Tem uma cama de casal e desconfio que a Sarah vai perder a companheira de quarto. O ambiente na casa alterou-se com a chegada de Anthony e uma atmosfera mais risonha envolveu o Natal. — Tenho um plano — declarou ele nessa noite ao jantar. — Há problemas terríveis com rinocerontes na região de Nyeri. Andam a arrasar as shambas e a atacar pessoas à medida que vão surgindo novas povoações em redor da orla da floresta. Alguns deles têm de ser transferidos para outros locais, para sobreviver, e o George está a pensar em financiar o projecto. Assim, despachei o pessoal de campo para o meu local favorito em Aberdares e sugiro que partamos todos de manhã e passemos lá o Natal. — Não posso abandonar a fazenda neste momento — disse Lars. Quase não tinha falado durante o serão e não estava com disposição para considerar propostas de natureza frívola.
— São só dois dias — disse Anthony. — Está aqui uma bonita rapariga que merece umas férias e seria um prazer para mim levar a Suniva a fazer o primeiro safári dela. Depois, pensei que podíamos todos voltar para aqui. Para… para o aniversário. Para podermos subir juntos à crista e apresentar salaams ao Piet. — Sim — disse Hannah. — Sim, é o que devemos fazer, Lars. Podíamos passar uns dias fora. O Juma pode olhar pelas coisas aqui durante dois dias e o Mwangi e o Kumau podem dormir na casa. Eu informo os Murray e, se houver algum problema, podem contactar-nos por rádio. Não vamos estar a mais de duas horas de viagem. Não temos uns dias de férias já não sei há quanto tempo. — Parece uma óptima ideia, Lars, meu velho — disse George. — Eu fico convosco no acampamento e depois vou passar o Ano Novo com uns amigos em Nyeri.
O acampamento estava montado numa clareira e, durante a viagem pela floresta, pararam a admirar os macacos colobos, as suas pelagens pretas e brancas abertas como asas quando saltavam pelo meio de um rendilhado de ramagens. Um antílope-d’água macho estava na orla da clareira, os olhos líquidos e brilhantes sob a luz do sol matizada, o nariz em forma de coração húmido, a pelagem abundante, macia e revolta. O pessoal de Anthony estava ao lado da tenda da messe e rompeu em radiosos sorrisos e aplausos quando ele ajudou Camilla a apear-se do Land Rover. Almoçaram à sombra das árvores, rodeados pela restolhada e gritos das aves e um lampejo de asas vermelhas de um par de turacos a cacarejar e saltitar de ramo em ramo em busca de alimento. À tarde, partiram em dois veículos num passeio para ver animais, seguindo um trilho pouco usado através da floresta que subia em direcção a charnecas rasas. Por todo o lado à sua volta, erguiam-se caules grossos de bambu, emergindo do solo escuro e margoso, as folhas projectando-se no agradável calor do sol. Fetos e flores silvestres aninhavam-se no solo fértil e Anthony parava com frequência, apontando para espécies de tasneiras e lobélias com mais de um metro e oitenta de altura, mutações gigantes de minúsculas plantas alpinas. Mais adiante no trilho, viam-se líquenes suspensos na vegetação, de um verde fantasmagórico, movendo-se sob a luz enevoada. Na charneca, inalaram o ar rarefeito e detiveram-se a admirar uma cascata que se despenhava das alturas e a observar uma manada de elefantes a encaminhar-se para um cintilante riacho de montanha. Foi na viagem de regresso ao acampamento que se depararam com os búfalos. Ao dobrarem uma curva no caminho, vários machos jovens surgiram na estrada diante dos dois carros, barrando a passagem e resfolegando agressivamente, os seus pequenos olhos pretos brilhando de desconfiança. Camilla ia à frente ao lado de Anthony, mas Hannah tinha-se sentado no tejadilho do veículo, deixando a bebé a dormir num cesto no assento em baixo. Virou-se para ver se era possível fazer inversão de marcha e susteve a respiração, alarmada, ao ver o resto da manada emergir no trilho e rodear os automóveis. — Estamos encurralados — sussurrou ela, deslizando para o banco de trás. — E há vários jovens, separados do grupo principal. Estão logo atrás do Lars e do George. Até a Sarah se meteu dentro do Land Rover. Os animais começaram a aproximar-se, empurrando, resfolegando e mexendo as cabeças enormes e protuberantes para cima e para baixo, agitados mas sem saberem o que fazer. A mão de Anthony estava na manete de velocidades e Hannah reparou que os nós dos seus dedos estavam brancos
apesar do rosto calmo. Viu Lars fazer-lhe sinal do outro carro com uma expressão tensa. Mas não havia nada que ele pudesse fazer. Estavam presos entre os dois grupos. Uma fêmea mais velha começou a dar patadas no solo, o seu peito maciço e corpo volumoso avançando de tal forma que ouviram a sua respiração ruidosa. Os seus chifres curvos eram enormes, as pontas afiadas e letais, prontos a prender o pára-choques e suficientemente potentes para virar o carro. Permaneceram imóveis, à espera do impacto. Depois, inesperadamente, um macho idoso e esfrangalhado explodiu do mato mais à frente no trilho, calcando ramos, resfolegando ferozmente e dispersando a manada antes de galopar em busca de protecção, desaparecendo tão abruptamente como surgira. O resto do grupo dispersou-se em todas as direcções, embrenhando-se desajeitadamente na floresta, de ambos os lados da estrada, até que caiu um silêncio arrepiante e até os pássaros se calaram. — Foi por pouco — disse Anthony, vendo a palidez de Hannah pelo espelho retrovisor e pegando na mão de Camilla. — Vamos embora tomar uma bebida forte em redor da fogueira. Regressaram ao acampamento e, quando Hannah abriu a porta e saltou do veículo, Lars surgiu imediatamente ao lado dela, pegando na bebé e dando a mão à mulher. — És a coisa mais preciosa do mundo para mim — murmurou ele ao ouvido dela, ao agarrá-la. — Tu e a Suniva. As minhas duas meninas que adoro. E é tudo o que importa.
O dia de Natal amanheceu, límpido e perfeito. Tinha havido um aguaceiro leve durante a noite e a floresta estava enfeitada de gotas de chuva que cintilavam nos caules das ervas e nas folhas brilhantes. O céu estava limpo, de um azul resplandecente. Sobre as copas das árvores, o pico nevado do Kirinyaga erguia-se, majestosamente dominador. À entrada da tenda, Sarah sentia-se estarrecida com a beleza do mundo. Por um momento, pensou em ir a uma das igrejas africanas no Kinangop mas depois a recordação do Natal, um ano antes, assaltou-lhe o espírito. Tinha-se ajoelhado na igreja, ao lado de Lottie, a cantar canções de Natal e a agradecer a Deus a imensa felicidade que sentira. Piet amava-a, iam casar-se e todos os seus sonhos mais preciosos iam tornar-se realidade. Mas, naquela manhã gloriosa, um ano mais tarde, não se sentia capaz de rezar, nem por misericórdia nem por paz. As suas conversas com Deus tinham acabado quando Ele levara o seu amor e permitira que Piet morresse sem ela. Não tinha nada a dizer a uma divindade tão cruel e implacável. Sentiu-se aliviada quando Anthony surgiu ao seu lado e lhe pegou na mão, como que a absorver uma parte da sua dor. Trocaram presentes simples ao pequeno-almoço e, em seguida, partiram de novo, conduzindo através da densa floresta em direcção à catarata de Chania, admirando as distantes vertentes verdes e ondulantes e a visão de um mundo que era um lugar de ordem e harmonia aparentes. As horas passaram lentamente. Sarah tirou fotografias, retratos de Hannah, Lars e Suniva, uma família sorridente cuja união dilacerava o seu coração solitário. Camilla acompanhou o pai e Anthony, quando eles se dirigiram ao rio com canas e iscos de pesca, regressando mais tarde com várias trutas gordas. Ao meio-dia, o pessoal do acampamento chegou com um piquenique que incluía um peru, milagrosamente assado na perfeição num forno construído com um bidão de querosene convertido. Mas, apesar dos esforços de Anthony e da determinação de todos em se animarem, foram tomados de uma sensação profunda de privação que não conseguiram vencer. — É um marco e ultrapassámo-lo — disse Hannah, quando estavam sentados em redor da fogueira do acampamento à noite. — Temos de avançar lentamente, um passo de cada vez, e esperar
que o tempo seja a melhor cura, como se costuma dizer. Mas, quando voltarmos para casa, vou telefonar à minha mãe e ao meu pai porque eles estão naquele sítio horroroso, sem ninguém com quem partilhar os problemas deles, enquanto nós nos temos uns aos outros. — Temos de convencê-los a voltar — disse Lars. — Eu sei que é difícil para eles e para nós também. Mas é tempo de enterrar os fantasmas e eles nunca poderão fazer isso à distância. O Janni há-de encontrar um papel a desempenhar em Langani e eu posso adaptar-me para o ajudar. Não vai ser fácil, mas tenho a certeza de que é possível. Entretanto, temos mais um dia neste estupendo acampamento do Anthony e tenciono mostrar à minha filha o primeiro leopardo dela. E talvez um rinoceronte ou dois. Na manhã da sua partida, George fez as suas despedidas e partiu com o guarda-caça local para discutir a questão da relocalização dos rinocerontes e para se encontrar com os amigos em Nyeri. Era o aniversário da morte de Piet e estavam num estado de espírito sombrio ao prepararem-se para levantar o acampamento. Anthony observou Camilla a embalar os seus haveres num saco de lona, registando os seus movimentos, o brilho da sua pele, as suas pestanas negras e sedosas projectando-lhe sombras nas faces quando fechava os olhos, e a curva perfeita da sua boca. — Amo-te — disse ele. — Quero que sejas minha. Ela sentou-se e lançou os braços à sua volta, empurrando-lhe a cabeça para o espaço entre os seios. — Sê paciente — disse ela. — A minha pequena fábrica está a correr bem e, quando terminar os contratos de modelo com que me comprometi em Londres, fico em melhor posição para encarar o futuro. — Quero-te comigo agora — disse ele. Camilla estava a sorrir quando o beijou. — Mas só por alguns dias — disse ela. — E depois partes para o bundu outra vez e esqueces-te de mim. — Não — disse ele. — Quero que me acompanhes durante parte do meu próximo safári. São três caçadores e só um leva a mulher. Pensei que podias passar algum tempo connosco. Levá-la em passeios para ver os animais ou organizar actividades que ela queira nos dias em que andarmos a caçar. Que dizes? — Gostava muito — disse ela, abraçando-o, deleitada. — Se a Hannah não se importar de supervisionar a oficina enquanto eu estiver fora, sim. Vou contigo.
Abandonaram o acampamento ao fim da manhã e dirigiram-se para Langani, a norte, parando pelo caminho para tomar uma cerveja e comer uma sanduíche, encher o depósito e comprar provisões para a fazenda. Sarah estava silenciosa, preparando-se para o que a esperava. Compusera mentalmente algumas palavras que queria dizer no montículo que era o memorial de Piet, mas não sabia se seria capaz de as dizer em voz alta. Doía-lhe a garganta e invadia-a uma agonia terrível sempre que as horríveis memórias lhe assaltavam o espírito. Passava das três horas quando passaram pela enfiada de árvores que levava ao caminho de acesso e ao jardim. Lars foi o primeiro a encostar, com Anthony um minuto atrás dele. Estavam a retirar a bebé e as malas dos carros quando Mwangi desceu os degraus. O seu rosto estava sem cor e estava a enclavinhar as mãos artríticas. Havia lágrimas nos seus olhos remelosos de velho. — Mama Hannah — disse ele. — Mama Hannah…
CAPÍTULO 6
Quénia, Dezembro de 1966 dos escombros da oficina de Camilla, examinaram a devastação. As mesas de cavaletes D iante tinham sido derrubadas e a madeira partida. As máquinas estavam irreparavelmente destruídas. As peças de tecido tinham sido desenroladas, cortadas e desfeitas em farrapos pela lâmina de uma panga ou calcadas e cobertas de lama e terra. Estavam espalhados pelo chão caixotes de guarnições, os galões rasgados em fragmentos inutilizáveis. As contas de vidro tinham sido esmagadas, reduzidas a cacos minúsculos de luz que estalavam no chão onde quer que caminhassem. Parecia obra de um lunático. Camilla olhou à sua volta, incrédula. Todas as peças de equipamento, sem excepção, tinham sido sistematicamente destruídas. Sarah estava ao lado dela, sem fala. Recordou a destruição gratuita que testemunhara em Buffalo Springs quando um grupo de caçadores furtivos chacinara manadas de elefantes para lhes extrair o marfim, deixando as carcaças a apodrecer onde os animais tinham sido abatidos. Mas isso era uma coisa que era capaz de compreender: uma questão de caça ilegal, dinheiro e corrupção. Aqui, na oficina de Camilla, tanto quanto podiam ver, nada tinha sido roubado. O assalto não parecia ter servido nenhum propósito. Hannah percorreu a sala, com a filha ao colo, produzindo pequenas exclamações consternadas, apanhando pedaços de tecido do chão e passando os dedos pelos destroços das mesas demolidas com feroz violência. Captou o olhar de Sarah e desviou os olhos, assustada com o reflexo do seu próprio medo. Lars estava a praguejar, levantando as cadeiras e mobília caídas por todo o soalho. Anthony passou o braço pelos ombros de Camilla quando ela começou a tremer com o choque. Ela baixou-se e apanhou fragmentos de um casaco de camurça bordado que estava quase concluído antes de ela ter partido. Estava cortado de cima a baixo, as costuras rasgadas, as contas e as penas nas bordas destruídas. — Quem é que me pode ter feito uma coisa destas? Porquê? — Fez as perguntas, sabendo que não havia respostas. — Ainda agora comecei. Todas as mulheres pareciam satisfeitas e tínhamos finalmente chegado ao ponto em que estavam a produzir peças perfeitas. Não compreendo. — Virou-se para Anthony, largando a peça estragada no chão. — Nem sequer tenho seguro — disse ela. — Nunca me ocorreu tal coisa. Mwangi e Kamau estavam à porta, a discutir em voz baixa a presença de espíritos malignos. A polícia chegou e dois askaris começaram a recolher declarações. Devia ter acontecido durante a noite, disse Juma, o vaqueiro. O segundo guarda-nocturno que tinham contratado recentemente tinha desaparecido. Talvez fosse ele o responsável e tivesse deixado entrar os assaltantes. Ou talvez tivesse simplesmente fugido. — Anda embora, Camilla — disse Anthony, pegando-lhe na mão e conduzindo-a para longe dos escombros do seu projecto. — Não podemos fazer nada por agora. Vamos para casa. Acho que precisamos todos de nos sentar e falar sobre isto.
Na sala de estar, Lars serviu bebidas. A notícia tinha chegado à sanzala e vários trabalhadores agrícolas juntaram-se no relvado em frente à casa, murmurando e abanando as cabeças. Era obra de um shitani, diziam. Ou então o fantasma de Simon Githiri tinha vindo assombrar a fazenda. Era um mau augúrio para Langani. Lars saiu para lhes falar e explicar que deviam responder às perguntas da polícia com grande cuidado. Qualquer observação seria valiosa, por mais insignificante que pudesse parecer. Mas, quando eles dispersaram, notou que estavam mais preocupados com os actos dos espíritos malignos do que com a capacidade dos askaris para encontrar motivos para o sucedido. — Todos sabemos que isto não é nenhuma coincidência. — Lars sentou-se na sala de estar ao lado de Hannah, passando-lhe o braço pelos ombros. — Faz hoje um ano que o Piet morreu. É uma mensagem qualquer, embora só Deus saiba quem pode ser o responsável. Vou ligar ao Jeremy Hardy. Os askaris locais não são capazes de solucionar isto e nós precisamos de resultados rápidos para impedir uma debandada geral. Estes watu são extremamente supersticiosos e muito dados a acreditar no poder dos mortos para perturbar os vivos. — Nós estamos perturbados — disse Hannah, com uma expressão desolada. — Mas não acho que isto tenha a ver com o poder dos mortos. O Jeremy sempre disse que houve outras pessoas a ajudar o Simon. Na noite em que a fazenda foi assaltada, no ano passado, por exemplo, eram cinco atacantes. Deviam estar todos ligados ao Simon. E ele não podia ter matado as minhas vacas sem ajuda. — Estás a dizer que há alguém a dar continuidade às acções do Simon? — Camilla estremeceu. — É horrível. — O Simon Githiri era um solitário. — Lars falou categoricamente. — Era um órfão sem família e nunca recebeu visitas de amigos enquanto esteve em Langani. Aliás, parece ter vivido num vácuo, ainda antes de ter vindo para cá. Quem é que ia querer continuar a obra dele? Sarah desviou os olhos. Não conseguia libertar-se da certeza agoniante que a assaltara assim que vira a oficina. Apresentava todas as marcas dos ataques anteriores: a mesma destruição furiosa e gratuita que caracterizara o primeiro incidente na fazenda quando o gado de Hannah tinha sido chacinado e estripado, com as gargantas e os jarretes cortados. Era a acção de uma mente pérfida. Mas não conseguia descortinar a razão dela, do mesmo modo que nunca descortinara o motivo por que Simon matara Piet, o patrão que lhe dera a oportunidade de um bom emprego e de uma vida segura. Simon, cuja presença sentia no ar apesar de também estar morto. Os seus pensamentos remoinhavam em círculos de desespero e começou a doer-lhe a cabeça. Saiu da sala de estar para o alpendre, esperando que o ar fresco da noite aliviasse a dor. Mas achou a escuridão ameaçadora e não tardou a vislumbrar vultos agourentos nas sombras do jardim de Lottie. Quis voltar a correr para dentro, mas não era capaz de enfrentar o resto das pessoas nem de deixá-las ver o terrível pensamento que a obcecava. E tinha medo de ir para o seu quarto sozinha. Agarrou-se à balaustrada do alpendre, desesperada por se libertar da imagem de Piet que se formara diante de si. Alguns momentos depois, Lars apareceu junto dela, compassivo e preocupado. — Desculpa — disse ela. — É difícil lidar com a ideia de que alguém continua a tentar destruirnos. Que o ódio do Simon é perpetuado. — Estamos a alimentar esperanças vãs — disse ele. — Isto tem implicações terríveis. Acho que não podemos ficar aqui perante o recomeço das ameaças porque não existe qualquer motivo ou lógica nelas, nenhum caminho a seguir para encontrar um motivo ou uma solução e nenhuma forma
de nos protegermos. Temos permanecido em Langani cheios de determinação. Para ultrapassar o que aconteceu no ano passado. Mas a minha prioridade é construir uma vida segura para a Hannah e para a Suniva. Não faço ideia do que podemos fazer nem para onde podemos ir mas… Foram interrompidos pela luz trémula de faróis a aproximar-se. Parou um carro no caminho do qual Jeremy Hardy se apeou com uma expressão tensa. — Isto é um mau shauri — disse ele. — O facto de ser o aniversário da morte do Piet torna-o gravíssimo. Vou começar por interrogar o pessoal doméstico e depois toda a gente na sanzala. Vou passar pessoalmente a pente fino todos os homens e mulheres nesta fazenda nas próximas quarenta e oito horas. Apurar onde cada um deles esteve nos últimos dias e se viram alguém desconhecido ou ouviram alguma coisa de anormal. Onde é que arranjaste esse guarda-nocturno que desapareceu? — Veio de Nyeri. Trabalhava no Hotel Outspan há mais de um ano e apresentou boas referências — respondeu Lars. — Então porque é que quis trabalhar numa fazenda, presumivelmente a ganhar menos? — perguntou Jeremy. — Disse que a mulher era desta zona e tinha uma pequena shamba que queria ter debaixo de olho — disse Lars. — Espero não ter aberto a porta a algum… — O mais provável é ter fugido com medo de ser culpado pelo que aconteceu — disse Jeremy. — Como foi o último homem que contrataram, seria alvo de alguma suspeita. Mas se foi ele que destruiu a oficina ou se deixou entrar alguém, não há-de ser difícil encontrá-lo. Toda a gente por aqui se há-de lembrar dele porque era um forasteiro e vai deixar rasto de certeza. Vamos começar a interrogar o pessoal da casa a ver o que descobrimos.
Nessa noite, ninguém dormiu. As horas arrastaram-se num pesadelo em que eram revividas as cenas ocorridas apenas há um ano na mesma sala. Jeremy entrava e saía, tomava café, falava com os seus askaris e interrogava pessoas assustadas da sanzala. De madrugada, Hannah deixou-se cair na cama, ainda a embalar Suniva nos braços, como desde que chegara a casa. Ao fim da manhã, Camilla voltou à oficina e começou a arrumar. Sarah e Anthony ajudaram-na, separando os destroços, para tentar salvar tudo o que pudesse ser salvo. Era um desastre financeiro. Makena, a costureira, ofereceu-se para ajudar, mas as outras mulheres quicuias estavam demasiado aterradas para pôr os pés no edifício. Podia trazer má sorte trabalhar num sítio assim. Ao fim da tarde, a fadiga tomara conta deles e Anthony insistiu para que trancassem as portas. — Casa roubada, trancas à porta — disse amargamente Camilla, arrastando os pés, moída de exaustão, ao regressar a casa. Na sala de estar, Mwangi serviu chá. Sarah estava a cabecear, tomada de fadiga, e quando o telefone a acordou já era quase noite lá fora. Lars atendeu e chamou-a do vestíbulo. — É para ti — disse ele. — A Allie Briggs. — Sarah, minha querida — disse Allie numa voz alegre. — Espero que tenhas tido um bom Natal. Tentei contactar-te no dia de Natal, mas o Mwangi disse-me que tinham ido todos acampar nos Aberdares com o Anthony. Grande ideia. — Foi. Mas quando chegámos deparámo-nos com um desastre aqui — disse Sarah, tendo dificuldade em controlar a voz. — Assaltaram a oficina da Camilla. Partiram tudo. O Jeremy Hardy e os askaris dele estão cá desde ontem à noite a interrogar toda a gente.
— Deus do céu! Lamento muito. Coitada da rapariga, tinha acabado de se instalar. Roubaram as máquinas? Salva-se alguma coisa? Sabem quem foi e porquê? — Não levaram nada — disse Sarah. — Foi vandalismo puro. E foi no aniversário da morte do Piet. O Jeremy não gosta das implicações. Allie, passa-se aqui qualquer coisa de muito sinistro. É assustador e tenho um pressentimento… — Sarah deixou morrer a frase, relutante em articular o medo que se avolumava dentro dela. — Seja como for, a polícia está aqui e não nos resta senão esperar. — Deves estar terrivelmente abalada. E a Hannah também. — É. E o Lars está preocupado com o futuro deles aqui — disse Sarah. — Seja como for, por agora só podemos esperar que o Jeremy descubra alguma coisa com a investigação. Passemos a assuntos mais animadores. Como foi o teu Natal? — Óptimo — disse Allie. — Estou a ligar-te de Nairobi. Não vais acreditar, mas consegui arrastar o Dan até aqui por dois dias. Está a divertir-se imenso, se bem que nunca o admita. E temos notícias espantosas que te vão alegrar um pouco. — Diz lá. — Sarah tentou invocar algum entusiasmo. — Recebemos uma chamada do Rabindrah — disse Allie. — Conseguiu convencer o tio, o Indar Singh, a doar um Land Rover completamente novo ao projecto. Até nos custa a crer. E o mesmo Indar está disposto a montar um motor reformado no chaço velho com que tens andado. Que dizes, eh? — É fantástico — disse Sarah. — Até custa a crer. — Pois é — disse Allie. — Claro, o Dan está desconfiado. — Desconfiado? — Diz que deve haver condições associadas a uma doação tão generosa, sobretudo de um membro da comunidade indiana. Está convencido de que esperam uma contrapartida qualquer mais para a frente e que o tio Indar tem intenções que, de algum modo, nos hão-de comprometer. Diz o Dan que ninguém dá nada a ninguém e que a maioria dos indianos, quando faz algum favor, quer sempre qualquer coisa em troca. — Compreendo as reservas dele — disse Sarah. — É realmente um gesto extravagante de alguém que nem sequer conhecemos e de quem só recentemente ouvimos falar. O Rabindrah deve ter poderes de persuasão extraordinários. As intenções dele preocupam-me mais que as do tio. É muito ambicioso e, dê por onde der, quer publicar o livro com o nome dele em letras garrafais na capa. — Continuo a não ver que mal qualquer um deles pode fazer. Até agora, só temos saído a ganhar — disse Allie. — Não têm qualquer influência sobre o nosso trabalho e não pediram nada em troca deste donativo. O Rabindrah combinou um encontro entre nós e o tio para amanhã de manhã. Ele tem uma grande oficina em Westlands e é uma das razões do meu telefonema. Quando ele entregar o Land Rover, quer fazer publicar qualquer coisa sobre o facto no jornal. Com uma fotografia apropriada. — Oh!, diabo — disse Sarah. — Então sempre há condições. — Esse tipo de condições é aceitável — disse Allie. — Um artigo no jornal só nos pode favorecer. Como realcei ao Dan. Adiante, tens de dar cá um salto para a cerimónia da entrega. — Quando é? — Sarah sabia que não podia recusar. — Não tenho bem a certeza. Depende de quando o Rabindrah conseguir publicar o artigo. Disselhe que o contactavas, toma nota do número. E… Sarah?
— Sim? — Tenta não te afligires de mais — disse Allie. — Eu sei que esse incidente se deu na pior altura, mas o Jeremy Hardy é competente e estás rodeada de amigos. Se tiver sido um rafiki do Simon Githiri, tenho a certeza de que vai ser apanhado. Agora liga ao Rabindrah e vê o que ele organizou. Sarah marcou o número com relutância e ele atendeu ao segundo toque. — Estava com esperança de que fosse a Sarah — disse ele. — Feliz Natal, se não for muito tarde para dizer isto. Presumo que a Allie já lhe deu a notícia. — É muito generoso. Estão os dois deleitados. — Tentou soar optimista mas tinha consciência do tom apagado da sua voz. — O meu tio sugere uma cerimónia com uma foto no jornal — disse Rabindrah, desapontado com o discreto entusiasmo dela. — É bom para os seus elefantes e para o tio Indar e a oficina dele. Não que ele precise de publicidade. Já tem mais do que trabalho suficiente. Mas gosta de ser considerado um pilar da sociedade que salva o mundo para as gerações vindouras e essas coisas. — Desconfio de que nunca pensou em salvar elefantes quenianos, nem mesmo para a geração dele, até o ter abordado. — Sarah não pôde deixar de rir. — Como é que conseguiu? — Ele só tem filhas, está a ver? As filhas são encantadoras e lindas, mas também são um peso morto até estarem bem casadas, não é verdade? — Rabindrah pronunciou as palavras com um forte sotaque indiano antes de retomar a sua forma de falar habitual. — Sempre fui o sobrinho favorito dele. Trata-me como o filho que nunca teve. Mas há-de conhecê-lo em breve, espero. Estamos a pensar no dia depois de amanhã para a cerimónia, pode ser? — Lá estarei — disse ela. — Então encontramo-nos na oficina em Westlands. A Allie sabe onde fica. Por volta das três? O fotógrafo quer falar consigo antes para discutir a melhor maneira de fazer as fotos. — Oh, não. — Sarah apercebeu-se de que também esperavam que desempenhasse um papel na cerimónia. — Não. Não quero a minha fotografia nos jornais. E não é nada conveniente eu sair da fazenda neste momento. Só vou porque a Allie me pediu. Ele registou a mudança de tom dela e lembrou-se de que o noivo tinha sido assassinado por altura do Natal. Há cerca de um ano. — Compreendo que não seja uma boa altura para si — disse ele. — Mas até pode fazer-lhe bem sair daí, nem que seja por algumas horas e… — Já saí — disse ela secamente. — Fomos acampar nos Aberdares no Natal. Mas, quando voltámos ontem, deparámo-nos com uma situação grave. Rabindrah ouviu-a, com crescente apreensão, descrever a cena de devastação que tinham encontrado no regresso. — Não pode ser um incidente fortuito — disse ele, compreendendo imediatamente a situação. — A data é uma declaração evidente. Interrogou-a sobre a extensão dos danos e as primeiras conclusões da polícia e, ao fim de alguns minutos, Sarah começou a pensar se ele estaria a tomar notas, a preparar um artigo sensacionalista para enviar a um jornal assim que desligasse. — Espero sinceramente que isto não venha a ser um dos seus artigos com chamada de primeira página — disse ela, interrompendo-o quando ele procurou saber mais pormenores. — Se aparecer nos jornais, a responsabilidade não é minha — disse ele, ofendido. — Mas acho
que deve insistir com o seu amigo Hardy. Garantir que ele investiga todos os pormenores, por mais pequenos que sejam. Ele devia analisar o antigo relatório da polícia novamente e procurar qualquer pequeno aspecto que não tenha sido explorado da última vez. Assaltou-a uma lembrança. — Você falou de uma falha qualquer na última investigação — disse ela. — O que era? — Era um aspecto insignificante e… — Diga-me. — Não era nada de importante — disse ele. — A polícia foi bastante meticulosa. — Diga-me, que diabo! — disse ela, levantando a voz. — Não pode fazer insinuações dessas e depois calar-se e deixar-me pendurada. O que foi? Ele ficou em silêncio, surpreendido com a sua explosão de fúria. — Peço desculpa — disse ela, num tom fatigado. — Mas não faz ideia do que isto é. Como é sentir todo o horror voltar, passar todos os momentos do dia a olhar por cima do ombro. Tinha começado há pouco a libertar-me do medo. Todos nós, aliás. — Os ficheiros da polícia faziam referência a uma coisa — disse Rabindrah. — Um padre que deu aulas ao Simon Githiri na missão de Nyeri. Que cuidou dele quando ele foi levado para lá. Chamava-se Bidoli… padre Bidoli. Mas nunca ninguém o interrogou. — Porque não? — Sarah estava intrigada. — Tinha-se reformado do ensino e depois adoeceu. Estava hospitalizado em Nairobi na altura do crime. É velho e, ao que parece, bastante desmemoriado. Suponho que ninguém achou que ele tivesse alguma coisa a acrescentar e não servia de nada incomodar um homem doente. Mas eu pensei que alguém devia ter ido falar com ele. O homem podia ter dado pistas sobre o carácter do Githiri ou conhecido os amigos dele ou alguém relacionado com ele. Até o seu amigo inspector pensou que ele não agiu sozinho. — Foi falar com o padre? — perguntou ela. — Não. Mas indaguei e ele continua em Nairobi. Numa casa de retiro para missionários. Agora que isto aconteceu, talvez a polícia deva ir falar com ele. Ou talvez a Sarah. É capaz de conseguir refrescar a memória de um velho melhor do que um polícia com um bloco de notas e falta de tacto. É que, enquanto andar por aí à solta alguém com um rancor para com a fazenda, estão todos vulneráveis em Langani… — Não terminou a frase e pairou um silêncio entre eles. — Não! — Ela tentou dominar o pânico crescente. Não queria falar com ninguém sobre Simon, nem tão-pouco ouvir o nome dele. Estava para além das suas forças reviver toda a dor que tão cuidadosamente enterrara. E duvidava dos motivos de Rabindrah. — Não, não me acho capaz de falar com o padre. — Talvez se fosse acompanhada por alguém amigo — disse ele. — Ou vou eu, se quiser. — Não, mas mesmo assim obrigada. A propósito, como é que teve acesso aos relatórios da polícia? Pensei que essas coisas eram confidenciais. — Sou jornalista. Todos os bons repórteres têm processos para aceder a essas coisas. — Fez uma pausa. — Agradecia que não informasse o inspector Hardy deste pormenor. Podia arranjar sarilhos à minha fonte na polícia. Ela podia perder o emprego. — Não digo a ninguém. — Sarah franziu a testa. — Mas não me reconforta nada saber que os relatórios confidenciais da polícia não estão seguros. Que pessoas como o Rabindrah podem lê-los e interpretá-los como quiserem. É assim que as coisas são deturpadas e publicadas com
imprecisões nos jornais. A meu ver, não ajuda em nada. — Há jornalistas responsáveis — disse ele defensivamente. — Bem, espero que seja um deles — disse ela. — Vemo-nos em Nairobi. Depois de desligar, Sarah sentou-se durante muito tempo, a pensar no padre reformado e na vaga possibilidade de ele lançar alguma luz sobre este novo pesadelo. Por fim, dirigiu-se à sala de estar, sabendo o que queria fazer. — O tio do Rabindrah Singh vai dar um novo Land Rover ao Dan e à Allie — disse ela. — E também vai pôr um motor novo no meu chaço velho. A Allie quer que eu esteja presente na cerimónia de entrega em Nairobi. Vou ter de pernoitar lá, porque leva tempo a tratar dos registos e tudo isso. Mas, assim que estiver tudo resolvido, volto. — Um novo Land Rover? — Hannah olhou para ela, boquiaberta. — É uma fortuna. Que é que ele quer em troca? — Pelos vistos, nada — disse Sarah. — Embora o Dan tenha feito a mesma pergunta. — Eu não confiava em nenhum desses indianos — disse Hannah. — Aposto que vem associado a um contrato de assistência caro. Há-de haver condições. — Nenhuma, aparentemente — disse Sarah. — E a comunidade sique é conhecida por fazer donativos a instituições. Ouvi o Dan falar muitas vezes da generosidade deles. — O meu conselho é: aceita-o e não faças ondas — disse Anthony com um sorriso rasgado. — Talvez o tio queira cair nas boas graças do governo ou das organizações para a vida selvagem, que estão sempre a comprar carros. Seja qual for a razão, é estupendo. Embora, se a Allie o conduzir regularmente, talvez seja melhor avisar o tio Singh para que inclua um contrato de assistência. — É verdade — disse Sarah, rindo. — Posso usar o telefone, a ver se arranjo hotel? — Podes ficar em minha casa — disse Anthony. — Não está lá ninguém e o Joshua olha por ti. Há-de mantê-lo ocupado. Eu ligo e combino tudo, se quiseres. — Pode praticar dobrar guardanapos e acender velas para ti — disse Camilla, sorrindo pela primeira vez. — Caso contrário, ainda se esquece de tudo o que lhe ensinei sobre as coisas mais refinadas da vida. — Às tantas também devias ir a Nairobi, Camilla — disse Hannah. — Ficavas em casa do Anthony ou do teu pai até as coisas se resolverem. — Prefiro ficar aqui, contigo e com o Lars — respondeu Camilla, notando a gratidão muda nos olhos da amiga. — E a Sarah só está ausente um ou dois dias. De repente, a ideia da casa em Karen pareceu assustadora a Sarah. Durante o ano, desde a morte de Piet, sempre estivera em Langani ou em Buffalo Springs, tirando uma ou duas noites num hotel em Nairobi. Agora tinha de enfrentar a perspectiva de uma estadia solitária na casa de Anthony, com o seu amplo jardim, imediatamente depois deste novo e inexplicável acto de vingança. Mas não lhe ocorria nenhuma boa razão para declinar a oferta e não queria deixar transparecer o medo. — Obrigada, Anthony, seria esplêndido — disse ela, esforçando-se por sorrir radiosamente.
Sarah notou a influência de Camilla em toda a casa. Olhou pela janela para o jardim, dizendo a si mesma que não havia necessidade nenhuma de estar nervosa. A propriedade adjacente estava escondida de vista por uma faixa de arbustos e uma massa de buganvílias, mas ficava suficientemente próxima para a reconfortar. Não haveria problema nenhum e era tempo de passar
uma noite sozinha. Depois de passar um sermão de encorajamento a si mesma, ligou a Dan e a Allie, que estavam em casa de amigos. — Os nossos amigos foram jantar fora hoje — disse Allie. — Não queres dar cá um salto e comer do que houver? Posso ir buscar-te se quiseres. — Gostava muito. Obrigada. Mas escusas de me vir buscar. A que horas? — Por volta das sete e meia. Até logo. Sarah pousou o auscultador e pegou na lista telefónica. O seu coração batia com força enquanto procurava a secção das Ordens Religiosas, folheando as páginas até encontrar o número da Missão da Consolata. Disseram-lhe que o padre Bidoli estava na casa de repouso de Mathari. Tomou nota do número e voltou a marcar. Sim, podia visitá-lo, disse a recepcionista, mas só por breves momentos. Ele tinha estado novamente hospitalizado e cansava-se depressa, mas uma curta visita far-lhe-ia bem. Seria estimulante. Minutos depois, Sarah pôs-se a caminho. A missão situava-se numa zona populosa, adjacente a um bairro de lata. O simples edifício caiado tinha um aspecto imaculadamente limpo, com um telhado pintado de verde e o pequeno jardim cercado, de todos os lados, por casebres decrépitos com esgotos a descoberto e telhados furados de chapa ondulada cheia de ferrugem. Parou à porta e ficou sentada por momentos no carro, ganhando coragem. Uma série de desculpas assaltou-lhe o espírito. Não era justo importunar o padre quando ele saíra recentemente do hospital e era pouco provável que ele tivesse alguma coisa de útil a dizer-lhe. Devia ir-se embora e deixar o pobre homem em paz. Mas havia uma possibilidade remota de ele recordar qualquer coisa sobre o passado de Simon ou sobre alguém que lhe tivesse sido chegado. Armou-se de coragem e saiu do carro. — Hodi! — chamou ao subir para o alpendre. — Está alguém em casa? Um jovem africano com uma camisa engomada e calças brancas saiu ao encontro dela. — Sim, minha senhora, o padre Bidoli está aqui — disse ele, respondendo à sua pergunta. — Eu levo-a junto dele. Conduziu-a a um canto ensombrado do alpendre, onde estava uma figura reclinada numa cadeira. O padre era idoso e frágil. Tinha a cabeça caída sobre o peito e o queixo flácido formava pregas de pele. Era evidente que, noutro tempo, fora anafado, mas agora a carne frouxa era prova da doença e da senilidade. O seu rosto exibia rugas acentuadas e parecia adormecido. A sotaina branca que envergava estava ligeiramente desfiada nas mangas e na bainha e as mãos estavam cruzadas sobre o peito como se tivesse sucumbido ao sono em plena oração. Sarah já estava arrependida da intromissão. Recuou, indecisa, e preparava-se para dar meia-volta quando os olhos do padre se abriram e ela se viu alvo de uma avaliação penetrante. Ele estudou-a em silêncio por alguns segundos e depois estendeu a mão para a cumprimentar. Quando Sarah a apertou, ficou surpreendida com a força da sua pressão e o calor do seu sorriso. Pensou que idade ele teria. — Peço desculpa por incomodá-lo, padre Bidoli — disse ela. — Chamo-me Sarah Mackay. Espero que não se importe que tenha vindo falar consigo. Sei que tem estado doente e não lhe vou tomar muito tempo. — Seja bem-vinda, Sarah. — O seu inglês denotava um sotaque cerrado com a inflexão musical dos italianos. — Em que posso ajudá-la? Agora que o momento chegara, Sarah sentiu formar-se o familiar nó na garganta. Fez um esforço enorme para manter a voz calma. — Dá-me a impressão de que tem um problema sério. — O padre Bidoli debruçou-se um pouco,
retraindo-se de dor ao mudar de posição. Voltou a pegar-lhe na mão e indicou uma cadeira. — Venha sentar-se ao meu lado, minha filha. Não há pressas — disse ele. Esperou que ela se sentasse e retomasse a compostura. — Antes de mais, fale-me de si. De onde é? Ela encontrou uma certa tranquilidade ao falar sobre a sua infância, descrevendo demoradamente os anos de juventude passados na costa e o trabalho do pai. Relatou-lhe o tempo no internato conventual e por fim explicou-lhe a sua ligação com a fazenda de Langani. À menção do local, o padre Bidoli acenou com a cabeça. — Ah, começo a compreender o que a trouxe aqui. — Suspirou e cruzou as mãos. — Veio falar sobre o Simon Githiri. A referência ao nome de Simon abriu as comportas da sua memória e toda a história jorrou dos seus lábios numa torrente de frases desconexas. Falou do lodge que Piet construíra e do seu orgulho quando ficou concluído. Descreveu-o então, risonho e dourado, quando partira da fazenda nessa manhã limpa, querendo verificar se estava tudo em ordem para o abrir aos primeiros hóspedes. Tinha prometido contactá-la de tarde e ela recordou a sua inquietude crescente quando a chamada não chegava e os seus esforços para o contactar por rádio se revelaram infrutíferos. Anthony e Hannah tinham-na acompanhado então de carro ao lodge, pensando todos que o carro de Piet podia ter-se avariado. Mas não tinham encontrado sinais dele. Tinham passado revista ao edifício, chamando pelo seu nome, procurando Simon, que o acompanhara nesse último dia fatídico. Não encontraram o rasto de nenhum deles. Também não tinham conseguido encontrar Kipchoge, o pisteiro e amigo que Piet conhecera e amara desde a infância e que ia para todo o lado com ele. Por fim, Sarah tinha saído para a plataforma de observação, procurando divisar algum movimento no luar intenso ou uma indicação que pudesse constituir uma pista. Já não via nem sentia a abrasadora tarde de Nairobi, sentada ao lado do padre, deixando que as imagens proibidas se avolumassem na sua memória. Estremeceu ao relembrar a sensação da mão no seu ombro, quase a derrubando na sua força e desespero, quando se virou e encarou Kipchoge, esfaqueado e ensanguentado, agarrando-se a ela, tentando dizer-lhe qualquer coisa e morrendo ali aos seus pés. Momentos mais tarde, descobriram Ole Sunde, o vigilante nocturno, cujo corpo fora retalhado e desfeito em pedaços juntamente com o cão de Piet. Depois a subida frenética até à crista com Anthony e Hannah, ouvindo as hienas rir e gritar na noite, rezando para que Piet tivesse escapado ao assassino dos seus companheiros, mas cheios de um terror apavorante. Ela correra à frente dos outros em direcção ao lugar que ele mais amava, subindo a custo a última parte da colina na escuridão, o medo emprestando-lhe forças para escalar o solo pedregoso. Junto ao cume, tinha encontrado a hiena macho, agachada nas pedras sobre ela, os olhos reluzentes, a boca aberta e babosa, pronta a atacar. Mentalmente, ouviu a esfuziada da lança a atravessar o ar e o baque do corpo do animal ao cair. A imagem que constantemente se esforçava por reprimir formou-se-lhe no espírito enquanto falava. Viu o guerreiro, o seu toucado de plumas e ornamentos tribais brilhando ao luar, o rosto voltado para ela. Simon Githiri. Levou um punho fechado à boca, incapaz de encontrar uma forma de contar ao padre como finalmente tropeçara no homem que amava. — Vi-o então. O Piet. Estava estendido no chão. Preso com estacas como um animal. — Sarah estava sem fôlego ao pronunciar as palavras pela primeira vez. — O corpo dele tinha sido aberto e as estranhas estavam espalhadas, o sangue formando uma poça na terra. Senti o cheiro do sangue dele. E depois vi-lhe a cara. — Calou-se, respirando asperamente, apertando o seu próprio corpo com os braços numa tentativa desesperada para acabar com as tremuras.
— Minha pobre filha, não precisa de… — Preciso, sim. Tenho de descrever como foi. Porque me persegue dia e noite, enterrado no mais fundo de mim. Sempre presente, para onde quer que eu vá ou o que quer que faça. O padre assentiu e pegou-lhe na mão, vendo-a com compaixão tentar estancar as lágrimas. Passaram alguns minutos antes de ela conseguir continuar. — Ele era muito belo, compreende, com olhos azuis e um sorriso que derretia o mundo. E o cabelo era puro ouro ao sol. Mas quando o encontrei, a cabeça dele estava escura e empastada de sangue. E… os órgãos genitais tinham-lhe sido cortados e enfiados na boca. — Estava agora a soluçar, esforçando-se por prosseguir. — E já não tinha olhos, tinham sido vazados e no lugar deles ficaram dois buracos ensanguentados. Oh, meu Deus. — Inclinou-se, baloiçando-se para trás e para a frente, tomada de soluços ásperos e sufocantes, as lágrimas correndo-lhe copiosamente pelas faces e caindo na sotaina desfiada do padre. — Oh, meu Deus, nunca consigo fechar os olhos para imaginar o Piet sem ver aquilo. Nunca. O padre Bidoli permaneceu imóvel, pegando-lhe nas mãos, os lábios movendo-se numa oração muda. — Disse à Hannah que não havia nada que pudéssemos ter feito, mesmo que tivéssemos chegado uma hora antes — disse ela, numa voz esganada. — Mas o sangue dele não tinha coagulado. Ainda escorria e a hiena tinha acabado de o encontrar. Nunca demoram muito tempo a farejar sangue fresco. E, por mais que me esforce, não posso deixar de imaginá-lo, ali deitado em agonia, cego, a gritar pela nossa ajuda. Mas quando chegámos junto dele era tarde de mais. Sabe-se lá quanto tempo demorou a morrer ou que dor e medo teve de suportar. O Piet morreu sozinho. Nunca saberei como foram esses momentos finais e só isso é intolerável. — É difícil pensar nisso assim — disse o padre. — Nunca falei sobre isto com a irmã dele. Nunca quis que a Hannah pensasse se ele poderia ainda estar vivo, se o tivéssemos encontrado antes. — Limpou as lágrimas. — Mas talvez pudéssemos tê-lo salvo, se eu tivesse insistido em ter ido logo à procura dele. Ou podia ter estado ao seu lado a confortá-lo nesses momentos terríveis. — Minha filha, quando nos deparamos com a tragédia, pensamos sempre no que poderia ter acontecido. Mas isso não altera o que aconteceu. O sofrimento é o maior de todos os mistérios. Não deve mortificar-se pelo que poderia ter feito. Não estava escrito que devesse lá estar. — Tentei dizer isso a mim mesma. Pergunto-me constantemente se ele teria desejado viver, cego e com o corpo mutilado. Privado de tudo… — Sarah agarrou-se ao braço da cadeira, procurando dominar todos os seus nervos e músculos. — Porque ele amava o mundo, queria fazer parte de todas as coisas vivas. Adorava andar a cavalo e percorrer a sua terra. E amava-me. Amávamo-nos muito um ao outro. Não acredito que ele quisesse a vida que lhe restava, se o tivéssemos encontrado antes. — Que o nosso misericordioso Deus a ajude e console nessa perda tão terrível — disse o padre, pousando-lhe a mão na cabeça. — Espero que possa rezar e encontrar consolo na oração. — Rezar? Já não sou capaz de rezar, padre. Porque um Deus clemente não teria permitido que isto acontecesse — disse ela. — Nenhum Deus clemente o teria destruído no viço da vida quando era tão belo. Quando a nossa vida comum estava prestes a começar e éramos tão felizes. Tão abençoados e gratos. A crueldade do acto ultrapassa-me. — Iam casar-se?
— Ele tinha-me pedido em casamento no dia anterior. Mas não chegámos a ter tempo para estar juntos. Nem uma semana ou um mês partilhámos. — As lágrimas voltaram a saltar-lhe dos olhos. Pousou a cabeça nas mãos em concha do padre e a sua infelicidade saiu em soluços enquanto ele lhe afagava o cabelo e orava. Ele abraçou-a enquanto ela se rebelava contra o poder impiedoso que lhe permitira uma breve visão do amor, para logo a privar da sua promessa e deixá-la, fracturada, a vaguear num deserto de solidão e isolamento. — E o Simon Githiri, o rapaz que conhecia. — Finalmente, levantou os olhos para o padre Bidoli. — Porque é que ele faria uma coisa destas? Porquê? — Tem a certeza absoluta de que foi ele? — Tenho. — Limpou os olhos e massajou as faces e as pálpebras inchadas. — O Piet abriu-lhe as portas, deu-lhe a oportunidade de um futuro brilhante. O Simon não tinha nenhum motivo para fazer o que fez. Não compreendo. — Nunca há respostas simples, Sarah. Quando o homem envereda pelo caminho do mal, acontecem coisas terríveis. Compreendo que esteja zangada com Deus pelo acto que destruiu o seu futuro, todo o seu mundo. Não é por isso capaz de rezar pelo homem que amava e por si mesma. — Fui educada na oração, mas não consigo encontrar nisto um Deus amigo e compassivo, padre. Ninguém devia sofrer o que o Piet sofreu. Não posso comunicar com um Deus que permitiu que um homem fizesse uma coisa destas a outro. — Sarah estremeceu e uma nova torrente de lágrimas ardeu-lhe nos olhos. — Que pretende então de mim? — perguntou o padre, com grande bondade. — Não fez esta viagem só para ouvir palavras de consolação da minha boca. — Soube que o Simon foi morto por hienas? Quando isso aconteceu, pensámos que o assunto estava encerrado. Foi o que disse a polícia. Que estava tudo acabado. Mas há três dias, no aniversário da morte do Piet, houve outro assalto violento à fazenda. — Em poucas palavras, relatou-lhe o que tinha acontecido à oficina de Camilla. — Não pode ser uma coincidência — disse ela. — Está tudo a recomeçar. Pensei por isso que talvez me pudesse dizer alguma coisa sobre o Simon que nos desse uma pista sobre a razão por que matou o Piet. E que talvez soubesse quem eram os amigos dele. Porque pode haver uma ligação ao que está a passar-se agora. Talvez o tenha visto com alguém, alguém que queria continuar o que o Simon começou. — Ajoelhou-se ao lado dele. — Vim porque estou convencida de que é a única pessoa que me pode dizer alguma coisa, qualquer coisa de que se lembre, por mais insignificante que seja, que nos aponte o caminho a seguir. Caso contrário, acho que nunca mais poderemos viver a nossa vida como seres humanos normais. O padre desviou os olhos dela e fixou a distância. Por um momento, Sarah pensou que ele ia recusar, por uma questão qualquer de princípio. Mas depois ele começou a falar. — O Simon era um rapazinho quando nos foi entregue. Tinha ar de ter quatro anos de idade, mas acho que devia ter sete ou oito. O tamanho dele era provavelmente consequência de subnutrição. Durante muito tempo, não foi capaz de falar. Inicialmente, pensámos que tinha uma deficiência. Mas, depois de algum tempo passado connosco, quando já não tinha fome nem medo, começou a produzir sons. O homem que o entregou aos nossos cuidados não deixou ficar o nome. Estava claramente com medo e partiu da missão o mais depressa que pôde. Disse-nos que o nome da criança era Githiri. Disse que os pais tinham sido assassinados e que ele não tinha familiares que tomassem conta dele.
— Como é que foram assassinados? — perguntou Sarah. — Na altura, pensámos que talvez tivessem sido vítimas de um massacre dos Mau-Mau. Houve muitos na região de Nyeri. Foram assassinados muitos quicuios, os seus recintos incendiados e os animais chacinados, quando não prestavam juramento. — O padre Bidoli fez uma pausa, ordenando as ideias. — Havia também mulheres nas aldeias que davam secretamente de comer aos homens que se tinham juntado aos bandos escondidos nas florestas dos Aberdares. A polícia e o exército apareciam regularmente a interrogá-las e alguns soldados eram tão bárbaros como os juramentados que perseguiam. Nesse tempo, prendiam ou fuzilavam pessoas, se as apanhassem nas florestas. Toda a gente andava com medo. Possivelmente, os pais do rapaz foram apanhados nisso. Pusemoslhe o nome de Simon porque ele não tinha nome nem documentos. Não dizia nada mas, pelos olhos dele, percebi que era inteligente. Gostava dele e, quando por fim começou a falar, dei-lhe aulas suplementares para o estimular. Dei-lhe livros… encorajei-o a ler. — Ele falou-me dos livros. — A voz de Sarah estava carregada de tristeza. — Dei-lhe um livro meu, sabe? Na última manhã, antes de ele partir com o Piet, dei-lhe uma antologia de literatura inglesa. Um prémio que tinha ganho na escola. — Passou a mão pela cara para limpar lágrimas frescas. — Oh, padre, porque é que não vi quem ele era realmente? Lembra-se de alguma coisa especial que ele possa ter-lhe dito? Ou de alguém que ele conhecesse? O padre Bidoli sacudiu negativamente a cabeça. — Nunca recebia visitas. Trabalhava arduamente e não criava problemas. Julgo que encontrou alguma felicidade, à medida que o tempo passava, e tornou-se forte e mais seguro. Dava-se bem com os outros rapazes, mas isolava-se sempre um pouco. Não era gregário, como a maioria das crianças, mas possuía bom feitio. — Fez uma pausa. — Até há cerca de três anos. — Que aconteceu então? — Sarah sentiu-se percorrida por uma corrente de expectativa. — Veio um homem falar com ele. Um parente que disse que queria levar o Simon a visitar a família. Nunca ninguém tinha aparecido antes, porque não teriam tido dinheiro para alimentar o Simon ou para o mandar para a escola. Foi por isso que o deixaram na missão. Mas agora que ele estava em condições de trabalhar, de ocupar o lugar dele no mundo, o clã dele queria conhecê-lo. O Simon ficou excitado, mas também nervoso. Pediu-me para não dizer a ninguém porque é que ia sair, porque não sabia se a visita ia correr bem. Compreendi que ele não queria perder a face. Respeitei o seu desejo e fiquei feliz por ele. Na missão, os jovens não têm férias nem dias de folga. Têm de trabalhar para retribuir a alimentação e os estudos que recebem. Mas eu tentava sempre organizar algum tempo livre para os meus alunos quando era possível. — O velho sorriu e encolheu os ombros. — Dei algum dinheiro ao Simon para que ele pudesse levar um presente à sua nova família e disse aos outros padres que ele ia a Nanyuki visitar uma gente que talvez lhe desse trabalho. Esteve duas semanas ausente. — E depois voltou? — Voltou. Mas tinha mudado. — Mudado de que forma? — Sarah inclinou-se para a frente, não querendo perder uma sílaba da resposta. — Não sei definir exactamente. — O padre Bidoli franziu a testa. — Só sei que olhava para mim de maneira diferente. Para todos nós. Reservado, pode-se dizer. Carrancudo até. Já não sorria. Já não lia. Nas horas livres, preferia estar sozinho. — Perguntou-lhe como tinha corrido o encontro com a família?
— Naturalmente. Ele disse que não era o clã dele afinal. Que tinha sido engano. Pensei que ele estivesse a tentar superar a desilusão por não ter encontrado os familiares que esperava. Era também possível que o pretenso primo o tivesse enganado, na esperança de lhe arrancar dinheiro. Ou que o clã dele o tivesse rejeitado por qualquer razão. Não seria a primeira vez. Perguntei-lhe se havia mais alguma coisa que o preocupasse, mas ele não disse nada. Disse-lhe que provavelmente tinha achado o reencontro com a família mais difícil do que tinha imaginado e que podia vir sempre falar comigo sobre o que quer que o apoquentasse. Mas ele não me disse mais nada. — Mas continuou em Kagumo? — Por pouco tempo. Um mês mais tarde, disse que queria arranjar emprego nas cidades. Não queria continuar na missão — disse o padre Bidoli. — Achei que era uma boa decisão. Era um rapaz novo, pronto a viver a vida dele. Tinha passado a infância como um recluso e agora queria saborear a liberdade. Tinha obtido o certificado escolar com boas notas. Pensei também que, depois do desapontamento de não encontrar a família, devia ser encorajado a construir uma vida própria. Assim, pedi ao nosso padre tesoureiro que lhe redigisse uma carta de recomendação e lhe desse algum dinheiro. Ele partiu imediatamente. Isto foi mais ou menos há dois anos. Nunca mais o vi. — Há dois anos? — Sarah recuou no tempo, calculando os movimentos de Simon. — Mas ele só apareceu em Langani, em Junho de 1965. Para onde é que foi entretanto? — Deve ter estado a trabalhar noutro lado. — Não me parece. A única carta de recomendação que ele tinha era da missão e a Hannah depreendeu que ele tinha chegado directamente de lá. Ele nunca disse que tinha trabalhado noutro sítio. — Sarah estava intrigada e começou a sentir um aperto no estômago. Podia ser a primeira pista que os encaminhava para alguém para quem Simon poderia ter trabalhado ou com quem poderia ter vivido. — Teve notícias dele depois de ele ter partido? — O padre sacudiu negativamente a cabeça, perturbado com a pergunta dela. — Faz alguma ideia de onde ele poderá ter ido procurar trabalho? — Fiquei gravemente doente depois de ele ter partido — disse o padre Bidoli. — Fui transferido para Nairobi porque tinha de passar muito tempo no hospital. — Sorriu com resignação. — Bem, para ser franco, continuo a passar demasiado tempo no hospital. Agora estou velho e já não me resta muito tempo. — Lamento muito. — Sarah tinha acabado de conhecer o padre, mas reconhecia na afabilidade do seu tom um homem que assistira ao sofrimento e à confusão da raça humana e que compreendia. Ele voltou a pegar-lhe na mão e ela semicerrou os olhos, retirando conforto da sua coragem. — Quando estive no hospital, no ano passado, uma pessoa da nossa comunidade foi visitar-me — disse o padre. — Disse-me que o Simon tinha ido à missão em Nyeri à minha procura. Deve ter sido quatro ou cinco meses depois de ter partido. Parece que estava perturbado. E ficou agitado quando soube que eu estava ausente. Deram-lhe o meu contacto em Nairobi, mas ele nunca me contactou. — O padre Bidoli passou fatigadamente uma mão pelos olhos. — Talvez não conseguisse arranjar emprego e tivesse começado a andar com pessoas que reconheceu serem más companhias. Pode ter ido pedir-me ajuda, conselhos. E talvez eu pudesse ter dito alguma coisa que o tivesse levado a mudar de ideias sobre o que se preparava para fazer. Mas podia não me ter dado ouvidos e, por qualquer razão, Deus determinou que fosse de outro modo. — Pensa, como eu, que ele tinha planeado o que fez? Que foi para Langani para matar?
— Não sei. Talvez nunca ninguém venha a saber isso, minha filha. — Suspirou e ela viu que as suas mãos estavam a tremer um pouco e que ele estava extremamente cansado. — Lamento não lhe poder dizer mais. Mas rezarei por si e pela sua amiga Hannah e pela família e pela jovem cujo local de trabalho foi destruído. Rezarei para que recebam protecção e conforto e para que uma luz vos indique o caminho. — Obrigada. Quem me dera ainda ter a sua fé, padre. Acho que era capaz de aceitar a doença ou um acidente, mas não esta indescritível selvajaria. Não posso rezar a esse tipo de Deus. — Compreendo-a. Mas não desista da oração, mesmo que não seja capaz de aceitar o que aconteceu agora. No fim, há-de ajudá-la mais do que tudo o resto. — Foi muito bondoso, padre, e muito paciente. — Sarah não queria envolver-se em mais discussões sobre fé. Ou os poderes da oração. — Impedi-o de descansar, tomei-lhe demasiado tempo. — Tirou um pequeno bloco de notas da carteira e escreveu a sua morada em Buffalo Springs e a ligação por radiotelefone. — Para o caso de se recordar de mais alguma coisa. — Contactá-la-ei. E tem de me prometer uma coisa em troca. — Se estiver ao meu alcance. — Não se culpe. Tal como eu, não podia ter adivinhado o que ia no coração do Simon. Todos falhamos, porque não podemos ver a tapeçaria completa mas apenas os pequenos fios próximos de nós. E não renuncie a Deus. — Os olhos estavam carregados de sabedoria e bondade. — Agora está revoltada… faz parte do processo natural de luto e há-de passar. Mas a revolta pode consumila. Tem de se libertar dela. Então, mais do que nunca, sentirá a necessidade Dele. — Afundou-se na cadeira. — Venha visitar-me, sempre que precisar de falar com alguém que não pode ficar magoado nem assustado com o que disser ou sentir. Isso pode ser importante. Ela permaneceu em pé, a olhar para ele, por alguns momentos, pensando se voltaria a vê-lo. Depois disse, num tom suave: — Adeus, padre. — Ao descer os degraus do alpendre, pareceu-lhe que ele tinha dito qualquer coisa, mas, quando olhou para trás, ele parecia adormecido.
Em casa de Anthony, a lareira fora acesa na sala de estar. Joshua andava por ali, para ver se havia mais alguma coisa de que ela precisasse, evitando diplomaticamente qualquer olhar directo para a cara manchada e os olhos inchados de Sarah. — Esta noite vou jantar fora — disse ela. — Não precisas de ficar, Joshua, obrigada. Decidiu servir uma bebida forte e levá-la para o banho. A ideia de jantar com Dan e Allie já não a aliciava e deixou-se ficar muito tempo dentro da água fumegante, completamente esgotada, bebericando pelo copo e pensando se ainda poderia cancelá-lo. Mas era demasiado tarde e achou que seria rude esquivar-se à última da hora. * Dan recebeu-a à porta. — É bom ver-te, miúda. Entra. Felizmente, os nossos anfitriões têm um mpishi excelente que nos salva da comida da Allie. Pode ser uma cientista brilhante, mas cozinheira não é de certeza! — Estava a rir ao conduzi-la para a sala de estar. Sarah estacou à porta. Rabindrah Singh tinha-se levantado do sofá, a sorrir. Sarah demorou alguns
segundos a refazer-se da surpresa de o ver ali. Não ficou muito satisfeita e Dan notou a sua hesitação. Pegou-lhe firmemente no braço. — O Rabindrah apresentou-nos esta tarde ao tio, Indar Singh. Um sujeito extraordinário, indiscutivelmente, e tão entusiasmado com o seu generoso donativo como nós. Espero que nos vá visitar ao acampamento um dia destes. Amanhã vais conhecê-lo. — Estou ansiosa — disse Sarah, intrigada por as reservas de Dan a respeito de Indar Singh se terem evaporado tão depressa. — Tentámos apanhar-te em casa do Anthony mais cedo, mas o criado disse que tinhas saído — disse Dan. — Ora bem, preparei um jarro com um cocktail de martini seco. Ao nível do James Bond. Experimenta isto, miúda. A propósito, vimos o novo Land Rover e é um carro espectacular. O mínimo que podíamos fazer era convidar o Rabindrah para jantar, para lhe agradecer. — Ora, Dan. Quem vai dar o carro é o meu tio. — Sob uma certa pressão — disse Dan. — Aconteceu mais alguma coisa em Langani de utilidade para a investigação? — Rabindrah dirigiu-se a Sarah. — Não houve mais novidades por lá. — Ela estava com receio de que ele mencionasse o padre mas, depois da primeira pergunta, Rabindrah limitou-se a banalidades gerais. — Sinto muito o que aconteceu na fazenda. — Allie apareceu, abraçando Sarah e aceitando um martini. — Devo avisar-te que esta mixórdia é letal. Uma das habilidades favoritas do Dan. Uma pessoa só sente o efeito quando se levanta e depois… zás! Sarah nunca tinha provado um martini e estava a apreciar o travo gelado do gin e o seu aroma característico. Pensou se teria efeitos negativos depois do whisky que tinha tomado no banho. Mas, passado pouco tempo, ficou surpreendida ao descobrir que estava relaxada e cheia de fome. A sensação agoniante com que saíra do encontro com o padre Bidoli dissolveu-se gradualmente. Durante o jantar, bebeu vários copos de vinho tinto, sentindo a cabeça ligeiramente tonta. Falou-se sobretudo de Buffalo Springs e Rabindrah expressou interesse em lá voltar e redigir o resto do texto para o livro. À medida que o serão ia avançando, pareciam ter todos bebido uma quantidade prodigiosa. Os homens possuíam uma tolerância extraordinária ao álcool e Allie parecia capaz de os acompanhar. Sarah apercebeu-se de que devia ser a única que estava bastante embriagada. Ouvia a sua própria tagarelice, tornando-se cada vez mais incoerente, mas ninguém parecia importar-se. O jantar decorreu numa bruma e não se recordava de nada do que tinha comido. Em seguida, voltaram para a sala de estar e, depois de tomarem o café e o fogo na lareira ter esmorecido, percebeu que eram horas de partir. Mas agora que o momento tinha chegado, era mais difícil do que tinha pensado. A casa de Anthony parecia remota e solitária, um lugar onde estaria sozinha com as suas visões e pesadelos. Sentiu-se subitamente assustada. Dan inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na cabeça. — Dá ideia que são horas do teu sono de beleza, minha jovem — disse ele, olhando para ela com uma expressão divertida. — Porque é que não dormes aqui? — Boa ideia — disse Allie, sentando-se ao lado dela. Sarah estava a ter dificuldade em concentrar-se e sentia-se desesperadamente ensonada. Esforçou-se por reflectir, mas era como caminhar em areia. — Acho melhor ir embora — disse ela por fim. Não sabia bem como ia conduzir. Rabindrah estava a falar. Os seus contornos eram indistintos,
mas pareceu-lhe que ele estava a sorrir. Sempre a sorrir, com aqueles dentes brancos e brilhantes no rosto escuro. — Se quer voltar para o sítio onde está hospedada, eu levo-a — disse ele. — São só dez minutos daqui. O Dan ou a Allie podem ir buscá-la de manhã e trazê-la aqui para pegar no seu carro. Sarah fez um esforço para se concentrar. Uma cama ao fundo do corredor, a uns passos de distância, era uma proposta atractiva. Mas os donos da casa deviam estar a chegar. Não lhe apetecia explicar a perfeitos estranhos que estava demasiado bêbada para ir para casa. E agora que estava completamente bêbada, seria provavelmente mais fácil passar sozinha a noite numa casa estranha. Não queria que Dan e Allie soubessem até que ponto era cobarde. Tinha a cabeça a andar à roda e pestanejou com força. — Sarah? — A voz de Allie chegou de uma grande distância. — Acho que tiveste aí uma branca. Às tantas o melhor é metermos-te na cama. — Não, não. — Sarah empertigou-se. — Prefiro ir para casa do Anthony… se não se importar de me levar, Rabindrah. Vou só refrescar-me um pouco primeiro. Levantou-se cautelosamente e dirigiu-se à casa de banho, onde atirou água para a cara numa tentativa de aclarar as ideias. Sentia que as pernas eram de borracha. Custava-lhe manter o equilíbrio. Mas, pelo menos, não sentia dor. Não sentia nada, aliás. Isso era bom. Não sentir nada era óptimo. Estava óptima. Bastava-lhe manter-se direita tempo suficiente para chegar ao carro de Rabindrah. Sorriu à sua imagem no espelho. — Estás bêbada como um cacho — tartamudeou, apontando um dedo ao seu reflexo. — Se as freiras te vissem agora! Abriu a porta e começou a encaminhar-se lentamente para o vestíbulo. Sentindo a cabeça andar à roda, estendeu uma mão para se apoiar às paredes palpitantes. Viu Allie falar gravemente com Rabindrah, com a mão pousada na manga dele. — É uma altura muito difícil para ela. O aniversário do Piet e agora o problema na fazenda. Está muito vulnerável, olha bem por ela. Temos-lhe uma grande afeição, eu e o Dan… é uma rapariga extraordinária e muito especial. Sarah parou na obscuridade, sustendo a respiração enquanto Rabindrah tomava as mãos de Allie nas suas. Continuava a sorrir. — Olho por ela como se fosse um bebé — disse ele, virando-se ao ouvir os passos inseguros de Sarah. — Estou pronta. — As suas enérgicas palavras soaram entarameladas, até aos seus ouvidos. Quis protestar que não era nenhum bebé e que não queria ser tratada como tal. Queria dar a saber a toda a gente, o mais dignamente possível, que era perfeitamente capaz de olhar por si própria. Mais nada. Mas o esforço de encadear as palavras era demasiado e deixou Allie acompanhá-la ao carro de Rabindrah. — Não me despedi do Dan — disse ela. — Ele compreende com certeza. E já te vemos amanhã. Eu vou buscar-te mas acho que vais precisar dos óculos de sol. — Allie estava a sorrir ao fechar a porta do carro. — É melhor ficares a dormir mais uma ou duas horas de manhã… acho que vais precisar. Sarah murmurou palavras de agradecimento e fechou os olhos com força quando arrancaram, esperando que os movimentos ameaçadores no estômago diminuíssem à medida que o carro ganhava velocidade. Não queria que Rabindrah soubesse que estava com medo de ficar sozinha,
mas não parecia ter controlo sobre a língua. As suas palavras e frases pareciam fundir-se umas nas outras e desaparecer-lhe dentro da cabeça, de tal maneira que não tinha a certeza de as ter realmente proferido ou simplesmente sonhado que as tinha proferido. O barulho e cheiro do motor estavam a causar-lhe tonturas e náuseas. Queria ter forças para abrir a janela. — Acho que não estou muito bem — disse ela solenemente. — Aliás, acho que vou vomitar. Sim, vou mesmo vomitar. Mesmo, quero eu dizer. Sempre enjoei a andar de carro. Quando voltou a abrir os olhos, o carro tinha parado e Rabindrah estava a retirá-la em peso para o caminho de acesso. Ela tropeçou à porta, agarrando-se a ele firmemente e rindo porque não conseguia manter o equilíbrio. Uma vez em casa, encostou-se à porta, tentando registar o que a rodeava. Mas as paredes moviam-se de uma forma estranha e ela tinha começado a sentir-se extremamente maldisposta. Inesperadamente, os seus joelhos cederam e Sarah começou a escorregar para o chão. Foi um choque quando ele a levantou sem cerimónias e a transportou pelo corredor. — Que é que está a fazer? — Fez um esforço para perguntar. — Vou levá-la para a casa de banho, porque o seu anfitrião não há-de querer que vomite no tapete persa. Indique a porta. Óptimo. Cá estamos. — O barulho tinha atraído Joshua dos fundos da casa e este pôs-se a olhar para o indiano com um misto de pasmo e séria desconfiança. Rabindrah emitiu instruções por cima do ombro. — A memsahib sente-se mal. Por favor, abre-me a porta da casa de banho e depois vai ao quarto dela e abre a cama. Já. Joshua entrou rapidamente em acção e chegaram à casa de banho na hora H. Sarah caiu de joelhos em cima da sanita e Rabindrah amparou-lhe a cabeça enquanto ela vomitava e gemia e sentia os últimos vestígios de sofisticação e dignidade serem despejados com os vergonhosos resultados dos seus excessos. Quando se deixou cair contra a banheira, vazia e tiritante, ele limpou-lhe a cara e passou-lhe uma esponja pelo pescoço e pelos ombros. Em seguida, conduziu-a ao quarto e ajudou-a a meter-se na cama. O rosto dele surgiu sobre ela ao estender-lhe um copo de água e dois comprimidos brancos, que ela engoliu sem protestar. Sarah pensou que ele estava de sobrolho carregado, mas não conseguiu distinguir se estava zangado, preocupado ou simplesmente enojado. Pelo menos, não estava a sorrir e ela sentiu-se aliviada por ele falar numa voz baixa e doce. Estava a ter dificuldade em concentrar-se. Havia uma coisa que era muito importante. Tinha de lhe fazer saber. — Não sou nenhum bebé, sabe? — Franziu a testa, irritada. — Não preciso de enfermeiro. Sou capaz de olhar por mim. Não há problema. Não consigo é levantar-me sozinha agora, é tudo. Não precisa de tratar de mim, não… senhor! — Reclinou-se na almofada. — Não sou bebé. Que fique muito claro. Virgem, sim. Bebé, não. — Soltou uma risadinha e outro leve gemido. — Que diabo! Estou a fazer para aqui uma figura triste. Peço desculpa. Muita desculpa. — Boa-noite — disse Rabindrah, dando-lhe uma palmadinha na cabeça. — Estou certo de que não vai ter problemas em dormir esta noite, mas, seja como for, vou ficar aqui. Dadas as circunstâncias, estou certo de que o seu amigo, Mr. Chapman, não se importa. E amanhã conversamos.
Um raio de sol trespassou-lhe as pálpebras e pôs-lhe a cabeça a martelar. Sarah olhou para o
relógio de olhos semicerrados, tentando deixar entrar no cérebro o menos luz possível. Credo! Não podiam ser onze e meia. Sentou-se rapidamente e depois voltou a deitar-se com um gemido de dor, sentindo como se alguém lhe tivesse desatarraxado o pescoço e a cabeça lhe estivesse prestes a cair. Que era isto? Onde diabo é que estava? À medida que a memória se recompunha, virou a cara para a almofada e gemeu. Que figurinha que tinha feito! Vomitar na casa de banho, papaguear sobre virgens e bebés! Oh, Deus do céu! Oh, Deus do céu! Era uma vergonha, um desastre. Que devia o diabo do homem ter pensado dela? Devia ter perdido o respeito todo. Como seria capaz de continuar a trabalhar com ele no livro? No que quer que fosse. E Joshua! Teve uma visão das suas feições impassíveis a oscilar quando estava a ser transportada pelo corredor. E se ele contasse a Anthony? Claro que ia contar a Anthony. Nunca mais se iam calar com aquilo. Voltou a sentar-se, desta vez com muito cuidado, pensando se haveria algum sítio onde pudesse esconder-se pelo menos durante uma semana. Mas, ao pousar os pés no chão, a porta abriu-se e Rabindrah apareceu à entrada. Olhou para ele horrorizada. Ele tinha passado ali a noite? Estava com um ar irritantemente fresco e saudável, embora tivesse bebido imenso na noite anterior. Mas, como Dan e Allie, era capaz de emborcar litros sem se ressentir. Não era justo. Os siques supostamente não consumiam álcool. Até ela sabia isso. Ele era um sique não praticante. Como ela era uma católica não praticante. Sarah virou a cabeça e o leve esforço fê-la retrair-se. — Não se sente terrivelmente em forma? Ele estava novamente a sorrir, os dentes brancos a brilhar tanto que pareciam ferir-lhe os olhos. Sentia-se dividida entre a vergonha e a fúria. Agora ele ia tratá-la com ares superiores. Era um esforço olhá-lo nos olhos. Aclarou a garganta e falou-lhe num tom formal. — Devo-lhe uma desculpa. Portei-me vergonhosamente ontem à noite. — Sim. Vergonhosamente. Foi realmente uma pouca-vergonha. — Soltou uma sonora gargalhada, lançando a cabeça para trás. — O Joshua está a preparar o pequeno-almoço. — Viu-a fazer um esgar e avançou para dentro do quarto. — Tenho um remédio infalível para a ressaca que aprendi em manhãs medonhas no Norte de Inglaterra. Tome estas aspirinas com água, seguidas de uma garrafa inteira de Coca-Cola. Depois, um duche quente e um pequeno-almoço de bacon, ovos e salsichas e um Bloody Mary com café forte. Garanto-lhe que se há-de sentir muito melhor. Pronta a receber um Land Rover, aliás! Parecia uma tortura mas obedeceu submissamente às instruções dele e tentou pensar numa maneira de justificar o seu comportamento. Quando acabou o pequeno-almoço, ficou surpreendida por descobrir que Rabindrah tinha razão. Já se sentia quase humana. Também ele tinha dado conta de uma pratada de comida, de várias chávenas de café simples e de uma das bebidas de tomate e vodca com umas gotas de tabasco que a fez tossir. Ele não tinha falado muito durante a refeição, mas agora encarava-a frontalmente. — Sinceramente, lamento muito — repetiu ela. — O que aconteceu ontem à noite. Não estou habituada a beber tanto álcool. Devia ter parado mais cedo. — Não foi nada — disse Rabindrah. — Foi muito civilizada, comparada com certas pessoas que já tenho visto. Mas agora é melhor irmos andando. — Consultou o relógio. — O Dan já telefonou e eu disse-lhe que a deixava lá para pegar no seu carro. Sarah olhou para ele, consternada, apercebendo-se de que os patrões deviam estar a par da história toda. — Encontramo-nos na garagem do tio Indar às três horas — disse ele. — Ainda tenho algumas
entrevistas para escrever antes, por isso temos de sair daqui a pouco. Ela acenou com a cabeça. Achou que ele estava a ser extremamente delicado mas distante. Não tinha mencionado de todo o padre Bidoli. Ou era um poço de discrição ou estava a tentar furtar-se aos problemas dela sem causar mais embaraço a si próprio. — Obrigada. Mas não precisa de me levar. Posso apanhar um táxi. Não é longe. — Não queria que ele pensasse que esperava mais ajuda ou atenções dele. Ele levou a mão à testa. — Peço desculpa. Lembrei-me agora de que o seu amigo Anthony telefonou e eu disse que lhe ligava. Sarah foi tomada de desânimo. — Tomei a liberdade de lhe dizer que tinha vindo buscá-la para a entrega do Land Rover — disse Rabindrah. A sua expressão era inescrutável e Sarah não percebeu se ele estava a rir-se dela ou não. Estava a rir-se dela, claro. Dirigiu-se ao telefone e ligou para Langani. — Sarah? Está tudo bem? — Pareceu-lhe notar preocupação na voz de Lars. — Está. Tive um problema gástrico ontem à noite e o Rabindrah deu-me boleia depois do jantar. Foi muito simpático. Sabia que não era muito convincente, mas não queria alargar-se com Rabindrah na sala ao lado, provavelmente a ouvir a conversa divertido. — A Hannah está? — perguntou ela, contrita. — Vou passar. Até amanhã. — Já sei que foi estúpido — disse Hannah. — Mas estava com medo de que tivesses ido a algum lado e tivesses sido assaltada no regresso. Há assaltantes à noite em Nairobi. Barricam a estrada e esperam pelos carros, sobretudo se forem mulheres a conduzir sozinhas. — Não estava sozinha. O Rabindrah deu-me boleia porque era muito tarde. — Que é que ele estava lá a fazer? — O tom de Hannah parecia ser acusador. Ainda não tinha perdoado ao jornalista a sua aparição em Langani. Sarah suspirou. — Ouve, eu estava nervosa e perturbada ontem à noite. Bebi de mais ao jantar e, quando chegou a hora de partir, era tão tarde que tive medo de voltar para casa do Anthony sozinha. Não és capaz de compreender, Han? Não me tinha apercebido de que me custava tanto estar sozinha. — Esperou que Hannah dissesse qualquer coisa mas, não obtendo qualquer resposta, continuou. — Estava bastante tonta e quando finalmente aqui cheguei, não me lembrei de ligar a ninguém. Devia ter deixado um número para me contactares, mas também não me ocorreu. A minha cabeça não estava a trabalhar como deve ser. — Porque é que não ficaste com o Dan e a Allie, se não querias estar sozinha? — Hannah, por amor de Deus, estava completamente bêbada! Foi por isso que o Rabindrah se ofereceu para me trazer. Quase lhe vomitei o carro todo e, quando aqui cheguei, adormeci, até hoje de manhã. É a verdade nua e crua. Portei-me como uma idiota, não me faças sentir ainda pior. — Sabia que estava a falar brusca e defensivamente mas, de facto, ninguém tinha nada a ver com quem e onde ela passava o tempo. — Desculpa. — A voz de Hannah mudou de tom. — Por ser uma estúpida e entrar em pânico por nada. É tudo tão difícil depois da destruição da oficina. E tu és a minha tábua de salvação, Sarah, sobretudo agora. Dá notícias, eh? Por favor. — Prometo.
Sarah pousou o telefone. Rabindrah estava nos degraus que davam para o jardim a fumar um cigarro. — Tudo bem? — perguntou ele. — Óptimo. Somos uma família grande e feliz. Vamos? Pegou na carteira, pronta a sair de casa e a ocupar-se das tarefas quotidianas que lhe eram pedidas. Mas doía-lhe o corpo e sentia-se indolente, desejando poder apoiar-se em alguém, alguém que fizesse desaparecer o fardo, o sofrimento e o medo e a deixasse dormir. Fechou os olhos. No veldt, Piet estava de pé sob a luz do sol, de costas para ela. Chamou por ele e ele virou-se. Olhou para ela com as suas órbitas vazias e ensanguentadas. Sarah tapou a cara com as mãos, sustendo a respiração e dobrando-se. Rabindrah correu para o lado dela e ela deixou-o pegar-lhe no braço e virá-la para o encarar. Ouviu o som dos pássaros nas copas das árvores e sentiu o aroma da madressilva que cobria o pórtico da entrada. O céu estava de um azul perfeito e o dia cheio de sol e calor, no assombroso mundo de Deus, onde o homem que amava morrera numa agonia indescritível. — Fale comigo — disse Rabindrah. — Não tenho nada a dizer. — Esforçou-se por esboçar um sorriso radioso, mas ele viu as lágrimas assomarem-lhe aos olhos. — Se não falar com alguém, vai acabar num farrapo — disse ele. — Não tenho ninguém com quem falar — disse ela. — Ninguém que possa saber o que é estar na minha pele. Terrivelmente só e assustada. Acordar todas as manhãs e saber que, faça o que fizer, nunca mais o vou ver. Nunca mais enquanto viver. E agora tudo voltou. — Foi falar com o padre. — Era uma afirmação intuitiva e Rabindrah encheu-se de compaixão ao ver que tinha adivinhado a causa da angústia dela. — Fui. — Era um alívio contar a alguém. — É um homem bom e conversámos sobre o Simon Githiri. — Quer contar-me o que ele disse? Sarah tentou reproduzir o mais fielmente possível as palavras do padre Bidoli e, quando terminou, encolheu os ombros, resignada e impotente. — Não disse a ninguém que lá ia — disse ela. — Não queria que a Hannah se precipitasse atrás de uma pista falsa, com esperança de encontrar alguém que soubesse porque é que o Piet foi assassinado e porque é que continuam a atacar-nos em Langani. E não sei se o padre Bidoli não passa de mais um beco sem saída. O único resultado que consegui foi ressuscitar os meus pesadelos mais aterradores. — Compreendo que deve ser terrivelmente doloroso. — Mas há outra coisa. — Hesitou e depois as palavras precipitaram-se num tropel de infelicidade e angústia. — É qualquer coisa que não sei exprimir. Uma ideia que parece louca e formulá-la faria mal a muitas pessoas. — O que é? Quando ela finalmente pronunciou as palavras, falou numa voz tão baixa que ele teve de se aproximar para as captar. — E se ele não estiver morto? — Quem? — Ele ficou confuso. — O Simon Githiri. — Mas está morto. Foi a Sarah que o viu nessa noite, em pé na crista. Viu como ele estava
vestido e pôde assim identificar a roupa depois de a polícia encontrar o toucado e os ornamentos na floresta, perto dos restos dele. — É verdade — disse ela em voz baixa. — Mas sempre pensei que saberia se ele tivesse morrido. Se as hienas o tivessem matado na floresta. As pessoas riem-se de mim desde criança porque tenho estas premonições, mas são quase sempre verdade. E agora o terror recomeçou em Langani e eu sinto a mesma ameaça no ar, pairando sobre a fazenda. E tenho medo de que o Simon ainda esteja vivo.
CAPÍTULO 7
Quénia, Janeiro de 1967 é a época mais concorrida do ano em termos de turistas, Mary, e estou a propor abastecer–E sta te em exclusivo — disse Camilla. — Tenho uma colecção excepcional de vestuário e acessórios e tu sabes que vendes até à última peça. — Prometeste-me o triplo desta quantidade, querida. E se a tua oficina tiver ido ao charco, como é que continuas a fornecer-me? — Mary Robbins pediu café. — Isto fica muito aquém do nosso acordo e a minha loja não está dependente de meia dúzia de turistas. Todas as mulheres bem vestidas de Nairobi se abastecem na minha loja e não estou limitada a uma única estação. Se puser à venda uma linha nova, gasto tempo e dinheiro a promovê-la. É lógico que a minha principal preocupação seja a continuidade. — Hei-de estar novamente em actividade numa questão de… — Perante o que aconteceu, acho que devemos chegar a um novo acordo. Assentemos que começas a fornecer-me daqui a nove meses, digamos. Mary não queria discutir propostas alternativas. Na sua opinião, havia um problema extremamente grave na Fazenda de Langani. Não acreditava que Hannah e o marido continuassem lá a viver depois do incidente que tinha ocorrido no aniversário da morte do irmão dela. Se os Olsen partissem agora, não seriam os únicos agricultores a desistir da tentativa de conservar as suas terras nas difíceis circunstâncias de um país africano recentemente independente. Camilla provavelmente também acabaria por partir. Parecia extraordinário que a rapariga tivesse criado uma empresa no Quénia quando era a coqueluche de Londres e Nova Iorque. O seu romance com Anthony Chapman tinha determinado o seu regresso, mas Mary não acreditava que durasse. Ele era um garanhão, amigo da farra. Camilla era uma de muitas mulheres sofisticadas que se tinham deixado enfeitiçar pelo charme de um caçador branco e pela excitação e romance de andar no mato. Era inacreditável a frequência com que acontecia e a intensidade do enamoramento. Mas a realidade da vida quotidiana em África era outra questão e a rapariga parecia demasiado frágil para aguentar até ao fim. Mary recordava-se da mãe dela, que tinha sido uma das suas melhores clientes. Marina Broughton-Smith também fora uma beldade e era triste pensar que a sua vida fora tão curta. Constava que George era homossexual, mas a mulher tinha feito vista grossa a isso durante o casamento. Só Deus sabia que tipo de relação Camilla tinha com o pai. Precária, na melhor das hipóteses. Feitas as contas, seria melhor se a rapariga regressasse à Europa e à sua brilhante carreira. Era possível que a oficina em Langani nunca mais reabrisse. Havia incerteza a mais em torno da situação e não faltavam fornecedores a bater à porta de Mary com mercadoria de qualidade. — Gostava de vender a tua roupa — disse ela a Camilla, tentando introduzir um registo mais positivo na conversa. — São lindamente desenhadas e confeccionadas. Mas estou prestes a abrir lojas nos três hotéis mais caros do Quénia e preciso de mais quantidade do que me podes garantir
neste momento. Voltamos a falar daqui a seis meses ou assim, quando a tua oficina reabrir. Veremos então se chegamos a acordo. Camilla foi invadida de desânimo mas estava decidida a manter a calma e a chegar a um acordo com Mary Robbins. Dentro de algumas semanas, teria de partir para Londres para cumprir os compromissos assumidos com Tom e Saul Greenberg. Em Langani vivia-se uma situação limite com graves problemas de liquidez. Algumas das trabalhadoras tinham-na abandonado e Lars estava a batalhar para manter a fazenda a funcionar com eficiência. — Investi quase todo o dinheiro que tinha disponível na instalação da oficina — tinha-lhe dito Camilla antes de partir para Nairobi. — Quando assinar estes novos contratos, terei dinheiro que posso usar para começar novamente do zero. E vou receber em breve a minha percentagem do primeiro lote dos vestidos do Saul Greenberg. Mas ainda vai demorar algumas semanas. — Não precisas de persistir, sabes? — Lars estava impressionado com a sua vontade e determinação. — Nós compreendíamos perfeitamente se não quisesses continuar em Langani. Talvez fosse boa ideia procurares um sítio adequado em Nairobi onde pudesses trabalhar. — Não — disse Camilla. — Se vocês ficam, eu também fico. Tenho de estar em Londres por volta dos finais de Fevereiro, como sabes. Tenho de participar em várias campanhas de moda importantes. Mas a Hannah pode gerir a oficina na minha ausência. Tem estado comigo quase todos os dias, a treinar as bibis e a supervisionar o corte e a costura. É perfeitamente capaz de olhar pelas coisas. É só uma questão de treinar algumas mulheres novas, se nenhuma das antigas voltar. Durante vários dias, depois da destruição da oficina, Hannah tinha andado calada e taciturna, inacessível e refugiada num lugar mental isolado. — Não sei o que lhe vai na cabeça — tinha dito Lars a Camilla. — À noite, vira-me as costas, recusa-se a falar comigo, apesar de eu saber que não está a dormir. Passa o dia sentada com a menina ao lado, sem dizer nada. Às tantas quer desistir. Abandonar Langani. Foi no dia de Ano Novo que Hannah fez o seu anúncio. — Não sabemos o que se está a passar aqui nem porquê — disse ela, com uma expressão exausta, os olhos ensombrados de fadiga. — Mas não tenciono renunciar à fazenda só porque uns malditos cafres estão a tentar assustar-me. — Viu Lars retrair-se perante o termo que tinha usado e sacudiu a mão, não ligando à sua reprovação. — Os meus avós criaram esta fazenda e o meu pai combateu os Mau-Mau para defender as nossas terras. O papá partiu para que o filho pudesse preservar Langani e o próprio Piet morreu a acreditar que tínhamos o direito de aqui estar, como cidadãos deste país. Por isso, vou fazer tudo o que for preciso para manter a fazenda. Por causa do que eles já deram a este país e por mim, pelo Lars e pela Suniva. — Virou-se para o marido. — Vamos abrir o lodge que o Piet construiu e reparar a oficina da Camilla. Vamos ficar na nossa própria terra, Lars, e no país que é o nosso. E ninguém nos vai privar deles, pelo terror ou pela força. Camilla tinha ouvido, admirando a convicção e a coragem que inspiravam as palavras. O seu primeiro instinto fora virar costas às ruínas da sua oficina e transferir-se para Nairobi, onde podia estabelecer-se de novo. Mas, quando ouviu a voz entrecortada de Hannah, a viu relancear para Lars e para a bebé e para a espingarda na prateleira ao seu lado, Camilla tinha decidido ficar. Mas precisava de dinheiro. Urgentemente. Tinha gasto quase todos os seus fundos disponíveis na renovação e operação da oficina. Tinha sido necessário instalar um telhado novo, canalizações novas e electricidade, divisórias e prateleiras. Além disso, tinha comprado maquinaria e materiais,
pago três meses de salários e insistido em contribuir para as despesas da casa na fazenda. Precisava de dinheiro vivo para se aguentar nas semanas seguintes e Mary Robbins era a melhor fonte. A empregada trouxe mais café e pousou-o, entornando um pouco no pires de Camilla e respingando uma gota para a sua camisa de linho branco. Ela levantou os olhos, vagamente irritada, e deu por si a olhar para uma das mais belas raparigas que já tinha visto. Uma somali, pensou. Ou etíope. O rosto era uma oval perfeita, pousado sobre um longo pescoço de cisne. Os olhos eram amendoados e bordejados por pestanas espessas e curvas. O nariz era fino, ligeiramente arrebitado, a boca redonda, carnuda e doce, como um fruto maduro. Nesse momento, uma possível solução assaltou-lhe o espírito. — Compreendo o que me estás a dizer, Mary — disse ela. — Já sei que preferes mais quantidades. Mas deixa-me sugerir-te um plano alternativo. — Se for arriscado ou dispendioso, não vale a pena dizeres nada — disse Mary. — Acho que devíamos criar uma procura que não pode ser satisfeita — disse Camilla. — Vender alguns artigos confeccionados com requinte que só chegam à tua loja duas ou três vezes por ano, em pequenas quantidades. Verdadeiras peças de alta-costura. Proponho que organizemos uma gala de moda e um jantar de beneficência numa data qualquer nos próximos dois meses e apresentemos as roupas e os acessórios. Na Noite de São Valentim, por exemplo. Sim, era boa ideia. Escolhemos uma causa e doamos parte das receitas… limitamos as entradas e vendemo-las a preços astronómicos. Montamos um desfile de moda em estilo parisiense. Eu e mais duas raparigas, uma indiana e outra africana. O novo rosto da moda queniana. Mostramos a colecção que tenho neste momento e criamos uma autêntica corrida para comprar peças que nunca mais voltarão a estar disponíveis. — É impossível organizar uma coisa dessas em tão pouco tempo — disse Mary. — E ainda por cima publicitá-la. — Sou capaz de conseguir um ou dois nomes famosos de Londres para o evento. Gente das festas que anda sempre nos jornais e nas revistas sofisticadas. Há várias que me devem favores. — Camilla já estava a pensar como poderia concretizar uma ideia tão louca e se haveria uma única personalidade famosa na Europa disposta a apoiá-la. — Eu própria treino as outras duas raparigas e garanto-te que vão dar ideia de já terem apresentado as melhores colecções de Paris e Londres. — Onde é que vais desencantar essas raparigas? — Mary estava céptica. — Parece demasiado trabalho sem garantia nenhuma de resultados. Nairobi pode ser uma cidade pequena, mas as pessoas são bastante sofisticadas e esperam níveis elevados. — Ficou calada por alguns momentos. — Quem é que achas que consegues trazer de Londres? É muito em cima da hora. Camilla percebeu que tinha tocado num ponto sensível. Meia hora mais tarde, despediram-se com uma data de entrega e pagamento do stock que ela tinha disponível. Levantou-se de um salto da mesa e passou os olhos pelo café à procura da empregada, mas não viu sinais da rapariga. — Onde está o gerente? — perguntou ela ao empregado que foi levantar a mesa. — Há algum problema? — perguntou ele, um pouco mal-humorado. — Não. Está tudo bem — disse Camilla, deixando-lhe uma gorjeta excessiva. — Estava só a pensar… como é que se chama a nova empregada? Ele franziu o nariz grande e contraiu os lábios num gesto de desaprovação. — Chama-se Zahra. É somali. Mas já se foi embora.
— Importa-se de lhe transmitir uma mensagem? — pediu Camilla. Ele abanou a cabeça. — Hapana. Não nos damos com essa — respondeu ele. — Não se mete em boa quando não está de serviço. E não fala connosco. — Imagino — disse Camilla. — Onde é que ela mora? — Sijui. — O homem encolheu os ombros, embolsou a gorjeta antes que ela mudasse de ideias e fez a fita de que estava a atender outro cliente. No exíguo escritório, a secretária explicou, com um sorriso desdenhoso, que o gerente tinha saído e que não fazia ideia de quando voltava. E ninguém sabia onde Zahra vivia. Excepto o gerente. Camilla voltou de carro para casa do pai, onde estava hospedada enquanto Anthony andava em safári. Devia tê-lo acompanhado, mas agora não havia qualquer possibilidade com a organização do desfile de moda. Levantou o telefone. — Queria fazer uma chamada internacional — disse ela. — Para Londres. Tom Bartlett riu-se com vontade quando ouviu o plano dela. — Deves estar a brincar, querida — disse ele. — É impossível preparar uma coisa dessas nesse espaço de tempo. Ninguém que eu conheça vai saltar para um avião e tirar fotografias de um desfile de moda amador no interior de África. Ainda vivo no mundo real, não te esqueças. — Para já, vais tu — disse ela. — Anda lá, Tom, usa a tua imaginação. Pode ser uma coisa espantosa. Tenho a certeza de que o Joe Blandford também vinha. Há aqui uma rapariga somali que é tão bela, que ganhas uma fortuna se a contratares. Acredita, os editores e fotógrafos de moda vão ficar doidos quando a virem. Só precisas de passar alguns dias no Quénia. — Estás a ter alucinações — disse ele. — Deve ser o calor que te está a afectar. Ou, como eu predisse, o teu homem do mato pôs qualquer coisa na água que te desarranjou a cabeça. Em que data estavas a pensar para esse evento maluco? Ela passou o resto do dia a tratar dos preparativos básicos e, à noite, já tinha arrancado uma promessa relutante de apoio a Tom e a Joe Blandford. * — Vou organizar uma gala de moda — disse Camilla ao pai enquanto jantavam nessa noite. — Essa bruxa da Mary Robbins recruta toda a gente para os espectáculos grandiosos dela — observou George. — Como é que te deixaste envolver? — A ideia foi minha, não foi dela. Vai ser o espectáculo mais fabuloso que Nairobi já viu. — Explicou as razões por detrás do plano e, quando acabou, ficou desiludida quando viu George de testa franzida. — Precisava de aplacar a bruxa, como lhe chamas — disse Camilla. — Felizmente, tenho stock suficiente para a calar. Tenho andado a trazer as peças acabadas para casa do Anthony e a guardálas lá, caso contrário teria perdido tudo. Ontem tive de despachar dois terços para o Saul Greenberg. Se o tivesse deixado ficar completamente mal, ter-me-ia custado muito mais do que a venda de alguns vestidos numa boutique de Nairobi. Entretanto, preciso do cheque da Mary na minha conta local, para voltar a montar a oficina em Langani. — Acho que devias esperar que a polícia tire este incidente a limpo — disse George. — Há qualquer coisa de sinistro nesta situação toda, querida. A fazenda não é um lugar seguro e tenho a certeza de que a Hannah compreenderia se não reabrisses a oficina por enquanto.
— Porque é que usas a palavra «sinistro»? — perguntou ela, ficando irritada quando ele desviou os olhos e não respondeu. — Estás sempre a fugir ao problema de Langani. A Hannah está a tentar salvar a fazenda e tu devias ser a primeira pessoa a compreender. Pareces ter esquecido como o Jan e a Lottie olharam por mim quando me mandaste para o colégio interno lá. Foram como meus pais durante esses anos todos, enquanto tu andavas ocupado em Nairobi ou ias para Londres com hordas de políticos. E a bela Marina estava metida em eventos de caridade e beberetes até ao pescoço. Eu passava mais tempo com os pais da Sarah e dos van der Beer do que convosco. Langani era como uma casa para mim até a mamã dar cabo de tudo. — Camilla, não faz sentido repisar velhas feridas. Neste momento, a Hannah tem um bom marido, um homem sensato, que é mais do que capaz de olhar pela fazenda, melhor do que o Jan van der Beer alguma vez olhou. E não há razão nenhuma para sentires que tens de reparar uma indiscrição da tua mãe, nem para correres riscos agora. — Ela foi responsável pela partida do Jan e da Lottie de Langani — disse ela. — Foi ela que disse que o Janni estava numa lista negra elaborada pelo novo governo. Que ia provavelmente ser expulso da fazenda depois da Independência por causa de uma coisa que tinha feito anos antes. Deves saber o que era. — Não sei nada com certeza absoluta — disse ele. — Conjecturar nestas circunstâncias é estúpido e perigoso e não ajuda ninguém. E já passou tudo à história. Se estás apostada em reabrir a oficina, deixa-me adiantar-te o dinheiro. E depois não precisas de andar como uma barata tonta para agradar a uma bruxa como a Mary Robbins. — És um amor. — Camilla lançou-lhe um sorriso radioso, vendo que tinha tocado num ponto sensível na memória do pai, interrogando-se se ele por vezes se sentia culpado da partida de Jan e Lottie de Langani. — Mas não vou aceitar a tua oferta, porque o negócio é meu e sou capaz de me desenvencilhar sozinha. Não passa de um problema temporário. A partir de Março, não me vai faltar dinheiro. Provavelmente, vou ter mais dinheiro do que tu. E, entretanto, o pagamento da Mary deve chegar para me safar. — Minha querida, és extraordinariamente leal e corajosa — disse ele. — Mas continuo a achar que não estás em segurança em Langani. Eu sei, eu sei — disse ele, levantando a mão para a impedir de o interromper —, não queres abandonar a Hannah. Mas aquilo lá não é seguro, Camilla. Todos nós pensámos que a morte do Piet tinha fechado um capítulo do passado. Que as contas estavam ajustadas. Mas agora deu-se este novo incidente. — Que contas? — Ela olhou para ele, perturbada. — Falaste nesses termos quando ele morreu. Disseste que podia estar ligado ao tempo dos Mau-Mau. Mas o Janni não foi o único agricultor que combateu durante o estado de excepção. O Bill Murray, mesmo ao lado, e a maioria dos outros colonos da região uniram-se para combater os Mau-Mau. Ninguém anda a atacá-los nem a atacar o gado ou a destruir a propriedade deles. Além disso, o Jan e a Lottie já nem sequer lá estão. — Qual é a situação deles? — perguntou George. — Vão continuar na Rodésia? — Não sei — disse Camilla. — A Hannah falou com eles no Ano Novo. Falámos todos. Contou à Lottie o que tinha acontecido à oficina. Disse que ia ficar na fazenda com o Lars e que eles, como pais dela, deviam voltar. Mostrar que não tinham medo. A Lottie chorou, mas o Janni não quis falar com nenhum de nós. A Hannah achou que ele devia ter estado a beber. — É uma rapariga corajosa — disse George. — São uma raça de fibra, esses africânderes. — Oh, é tudo tão horrível — disse Camilla. — Sempre que penso nos tempos felizes em Langani,
quando era pequena, tenho vontade de chorar. Nessa época, o Janni era fantástico, deixava-nos guiar o tractor, ensinava-nos a montar e a pescar, fazia-nos rir. Lembro-me de plantar rosas com a Lottie no jardim e de estar ao lado dela na cozinha, a aprender a fazer deliciosos bolos italianos com natas espessas e amarelas da vacaria da fazenda. E o Piet tinha imensos planos para a exploração da fazenda um dia. Tínhamos sonhos tão ambiciosos e todos se transformaram em pesadelos horríveis. George reparou que a filha estava à beira das lágrimas e mudou de assunto. — Quando é que tens de ir para Londres? — Logo a seguir a esta gala — disse ela. — Mas só lá vou estar algumas semanas. — Bem, pensa em tudo isto enquanto estiveres em Londres — disse ele. — É sempre bom dar um passo atrás e olhar para um problema à distância. Tem-se uma perspectiva muito melhor. Não faltam sítios excelentes em Nairobi para uma oficina. — De súbito, sorriu mas o seu tom foi reflexivo. — Passavas mais tempo com o Anthony e para mim também é maravilhoso ter-te cá. — Sentes-te feliz aqui, papá? — Camilla captou uma sugestão de solidão e pegou-lhe na mão. — Eu sei que tens amigos do tempo em que trabalhavas no Alto Comissariado. Mas… — Calou-se, não sabendo a que ponto queria perguntar ou saber. — Sentes-te só? Tens saudades de Londres? Tens saudades do Giles? Ele ficou chocado com a frontalidade da pergunta dela e Camilla apercebeu-se do esforço que fez para recuperar o seu ar habitual de imperturbável confiança. — Estou muito feliz por estar aqui novamente a viver — disse ele por fim. — E estou a apreciar o desafio que esta missão representa. — E o Giles? — Agora que tinha abordado o assunto do amante do pai, queria ir até ao fim. — Era demasiado complicado. Tenho cá amigos que eu e a tua mãe… enfim, teria sido pouco próprio neste momento. Tão cedo depois da morte dela. Além disso, no fundo, ele não queria vir para o Quénia — disse George, com uma expressão tensa. — Haveria dificuldades com autorizações de trabalho e o número limitado de coisas que ele podia cá fazer e por aí fora. Para ser franco, prefiro não discutir o assunto. — Desculpa — disse Camilla, surpreendida com a resposta dele e recordando como Giles lhe tinha implorado que aceitasse a relação entre eles e o seu amor pelo pai. — Não estava a querer intrometer-me. Só queria saber se tu… enfim, saber que não te sentes só. — Não sinto — disse ele firmemente. — Achas que consegues que o teu amigo, o Johnson Kiberu, aceite ser um dos VIP desta gala? — Foi a sua vez de mudar rapidamente de assunto. — Tenho a certeza de que ia adorar. Vou formar uma mesa e incluí-lo com a mulher. — Obrigada, papá. — Camilla beijou-o na face. — O Anthony vai estar presente? — É difícil saber. Anda muito ocupado mas, em princípio, vai estar quatro dias na cidade a partir de doze de Fevereiro. Por isso, espero que sim. — Camilla fez figas, sorrindo. — Ele quer casar-se contigo. Se fosse a ti, não o fazia esperar muito mais — disse George. — Tu não és eu, papá. E eu tenho de estar segura. — Minha querida, ele está perdidamente apaixonado por ti. É um rapaz com qualidades raras que ama este país, tal como tu, e quer contribuir para o seu futuro. Faz parte de uma nova comissão que eu criei para estudar duas questões importantes. Uma tem a ver com a matança de animais selvagens e a subsidiação da venda da carne para alimentar os vastos números de pessoas que sofrem de
deficiências de proteínas e malnutrição. E a outra é a transferência de animais em vias de extinção de terras agrícolas para Parques Nacionais. Ele tem exprimido pontos de vista muito interessantes e sensatos sobre ambos os assuntos. — Disse-me que tinha passado uma tarde empoleirado numa árvore há algumas semanas. Para escapar ao que tinha tomado por um rinoceronte inconsciente, que voltou a levantar-se e carregou sobre toda a gente à vista. — Camilla riu-se ao recordar a vívida descrição de Anthony. — Disse que não tinhas ajudado nada e que te partiste a rir enquanto ele fugia com quantas pernas tinha. — É. — George estava a rir-se. — Mas está sempre a moer-me a cabeça para lhe dar mais fundos para essas operações. Devo dizer que é extremamente convincente. No mês passado, persuadiu-me a passar um cheque chorudo para a relocalização de um grupo de girafas-derothschild mais para o fim do ano. Seja como for, acho que já pagou o tributo dele à mocidade. Não me importava nada de ter o Anthony como marido da minha bela e corajosa filha. — Veremos — disse Camilla, inclinando a cabeça para ele e sorrindo. — Talvez a Noite de São Valentim não signifique só uma gala de moda. Na manhã seguinte, voltou ao café e observou Zahra a servir as mesas superlotadas. Era estranho, pensou Camilla, como quase nenhum cliente reparava na beleza dela simplesmente por ser negra. — Queria um café duplo com natas — pediu Camilla quando chegou a sua vez. — E quero falar contigo quando o teu turno acabar. — Não fiz nada de mal. — A rapariga arregalou os olhos, alarmada. — Não estou a criar problemas nenhuns aqui. — Eu sei — disse Camilla. — Quero propor-te um trabalho. Acho que podes fazer melhor do que servir à mesa. Mais nada.
Não demorou muito tempo a deslindar a história de Zahra. A rapariga tinha atravessado a fronteira do Quénia e entrado na região semidesértica da Fronteira Norte, na tentativa de escapar a uma vida de trabalho escravo e fome numa aldeia somali. Durante os primeiros meses, o homem com quem tinha viajado, tinha-a instalado num bordel em Maralal, onde ela era frequentemente espancada. Finalmente, tinha fugido, pedindo boleia a dois turistas italianos que regressavam a Nairobi depois de uma expedição de caça. Alugaram um apartamento na cidade durante duas semanas e usaram-na a seu bel-prazer. Mas tinham-lhe comprado roupas e levado a restaurantes e um deles oferecera-lhe uma pulseira de ouro e algum dinheiro antes de partir. Zahra tinha arranjado um casebre onde podia viver e depois pôs-se à procura de emprego. Para sua surpresa, a sua beleza tinha funcionado contra ela. Estava a ser constantemente assediada pelo dono do café e por vários clientes. Receosa de perder o lugar, sujeitava-se ao patrão que odiava com um ardor apaixonado. Camilla arranjou-lhe um quarto num apartamento partilhado por duas jovens mulheres nandi que estavam a estudar secretariado. Estas não simpatizaram com a rapariga somali nem confiavam nela, mas o dinheiro com que Camilla contribuía para a renda determinou a sua aceitação relutante. A partir daí, Zahra passou os dias a aprender a arte de manequim, caminhando quilómetros na sala de estar e no alpendre de Anthony até Camilla lhe ter ensinado o bambolear e menear insolentes e deliberadamente sexuais da passarela internacional. Usava o cabelo frisado numa abundante carapinha, mas Camilla levou-a ao cabeleireiro e insistiu para que ela o cortasse rente para que nada destruísse a beleza suave das suas feições. O único problema de Zahra eram os pés. Eram
grandes, largos e grosseiros, mercê de anos a trabalhar descalça. Após dias de pedra-pomes e pedicuras, continuava a ser impossível arranjar sapatos que lhe ficassem bem e ela não sabia caminhar de saltos altos. Camilla decidiu-se por calçado aberto. Comprou contas e lantejoulas e outros ornamentos no mercado indiano e mandou-os coser em sandálias de couro simples. A rapariga, pelo seu lado, era esperta mas desconfiada. Numa ou duas ocasiões, faltou a uma sessão de treino e Camilla interrogou-se se teria voltado ao seu velho ofício, a única coisa que tinha sido uma certeza na sordidez da sua vida anterior.
Foi através de Rabindrah que Camilla descobriu uma modelo indiana. — Apresento-te o Rabindrah Singh — disse George à filha, ao sentarem-se a uma mesa no restaurante Taj Mahal uma noite. — Está a trabalhar com… — Eu sei — disse Camilla, apertando-lhe a mão. — Está a preparar o livro com a minha melhor amiga, a Sarah. Calculo que volta em breve a Buffalo Springs. — Gostava de poder lá passar mais tempo — disse ele. — Quando comecei, o meu principal interesse era o êxito financeiro do livro e o reconhecimento que me poderia trazer. Mas agora estou fascinado com os elefantes e o projecto dos Briggs e com a própria Sarah. — Tinha planeado voltar com ela depois do Ano-Novo — disse Camilla. — Mas acabou por não ser possível. — Lamento o que aconteceu à sua oficina — disse Rabindrah. — A investigação policial já chegou a alguma conclusão? — Nenhuma — disse Camilla. — Mas estou determinada em não fechar portas. É por isso que vou organizar esta gala de moda, para angariar fundos para as reparações em Langani. Será que conhece alguma rapariga indiana que gostasse de ser um dos manequins do meu desfile? — Tenho uma prima que é capaz de aceitar — disse ele. — Posso combinar um encontro com ela, se quiser. Camilla hesitou. Não queria ver-se em posição de ter de rejeitar uma familiar do jornalista. Ele podia ficar ofendido e isso podia ter reflexos sobre o trabalho dele com Sarah. — Eu mando-lha com o pretexto de lhe entregar qualquer coisa — disse ele como se lhe tivesse lido o pensamento. — Assim pode avaliá-la sem se sentir obrigada a ir mais longe, se ela não servir. Mas acho que é capaz de ser o que procura. Tem um andar maravilhoso porque é boa dançarina. Ou pode tentar a senhora ali no canto. — Estava a sorrir ao indicar um casal sentado na outra ponta do restaurante. — A Twinkle Kiberu. Tem aspirações nesse sentido. Aliás, em qualquer sentido que chame as atenções. George soltou uma breve exclamação. — O Johnson e a Twinkle. Quando sairmos, passamos pela mesa deles. — Twinkle não é nome que se tenha — disse Camilla, rindo. — É absurdo1. — Ela é as duas coisas. — Rabindrah sorriu. — Venha, que eu apresento-a. Johnson levantou-se e apertou a mão a Camilla, não deixando transparecer qualquer sinal de reconhecimento. Ela sentiu-se aliviada por ele ter aparentemente esquecido o seu fatídico encontro em Londres, quando ela tinha ido à suíte dele no Savoy, pedir ajuda para proteger a vida selvagem em Langani. Ele tinha ouvido as suas preocupações sobre os caçadores furtivos e as questões de segurança durante algum tempo e depois tinha-se lançado numa tentativa de sedução desastrada mas
bruta. — Eu e o seu pai somos aliados e amigos — disse Johnson. — E o Rabindrah por vezes dá-nos cobertura nos jornais. George, não sei se conheces a Twinkle. A jovem mulher levantou-se e inclinou-se sobre a mesa, os seus avantajados seios ameaçando escapar-lhe do corpete decotado do vestido. Tinha uma cintura finíssima, ancas largas e um traseiro grande e perfeitamente redondo que mostrou saber valorizar quando se virou para apanhar um guardanapo que tinha caído. Tinha alisado o cabelo, que usava atado atrás num pequeno carrapito. Tinha uma cara excepcionalmente bonita, com maçãs do rosto cheias e lábios polpudos e pintados de um rosa iridescente. Quando sorriu, revelou dentes muito brancos e riu tolamente, batendo as pálpebras, ao tomar a mão de Rabindrah. — Apresento-lhe a Camilla Broughton-Smith — disse ele. — Já a deve ter visto em todos os jornais e revistas. E talvez nos desfiles dos estilistas de Paris e Londres. Rabindrah sabia perfeitamente que ela nunca tinha ido a Londres ou a Paris, mas ela acenou entusiasticamente com a cabeça. — Sim, claro que conheço — disse ela. — Adorava assistir a um dos seus desfiles lá. Em Londres. — Deve convencer o Johnson a levá-la da próxima vez que ele for a Inglaterra — disse George. — Entretanto, a Camilla está a organizar uma gala de moda aqui em Nairobi e eu espero bem que se sentem os dois à minha mesa. — Credo, a rapariga ressuma sex appeal — disse Camilla quando saíram do restaurante. — É como uma aura à volta dela. Que mulher! Mas as minhas roupas nunca lhe serviriam, com aquele rabo magnificamente abundante. Preciso de desenhar toda uma nova colecção de roupa para mulheres com aquele tipo de figura. Isso sim, teria piada. * A prima de Rabindrah, Lila, possuía uma cascata de cabelo preto-retinto e uma forma de andar pudica mas sensual. Os seus gestos tinham a precisão estilizada de uma dançarina clássica e a sua elegância natural e espontânea dava-lhe a aparência de estar a flutuar pelo solo. Durante três semanas, Camilla praticou diariamente com as duas raparigas, obrigando-as a apresentar pelo menos vinte indumentárias em cada esgotante sessão, verificando a velocidade a que trocavam de roupa e experimentando maquilhagem, penteados e joalharia. Mary Robbins expediu convites e foi bombardeada com pedidos de mais lugares. Em Londres, Tom organizou passagens de avião para ele e para Joe Blandford. A Tatler concordou em enviar alguém para cobrir o evento para as páginas sociais. Era o pico da estação e havia numerosas pessoas da alta sociedade e da aristocracia europeia a passar férias no Quénia. Mary Robbins apressou-se a descobri-las e a emitir convites especiais. O Daily Telegraph acedeu a publicar um artigo de Rabindrah, baseado na nova sofisticação multicultural da ex-colónia. Tinha sido prometida uma avultada doação para um hospital pediátrico para doenças incuráveis. A imprensa e as estações de rádio locais estavam absolutamente febris com a gala. Quando Sarah chegou de Buffalo Springs, foi recebida por uma versão da amiga que nunca vira até então. — Não sei como me passou pela cabeça fazer isto. — Camilla estava pálida e distraída. — Não acertamos com a luz e o sistema sonoro estava francamente horrível hoje à tarde. Fraco e metálico.
E acho que ninguém ao fundo da sala vai ouvir as apresentações. — Não tem importância, desde que vejam as roupas — disse Sarah. — Elas hão-de falar por si. Credo, nunca pensei que alguma vez te visse sem ser calma e organizada. Devo dizer que esta nova faceta de pânico me agrada. — Oh, por amor de Deus, cala-te. Olha, encomendei flores brancas para as mesas todas e mandaram estes arranjos multicolores que fazem o salão parecer uma maldita feira de diversões. E a passarela tem para aí um metro e vinte menos do que me garantiram. Tenho nas mãos um desastre em potência e tu estás a rir-te de mim. Há novidades sobre o teu livro? — O Dan está a fazer a última revisão ao manuscrito do Rabindrah antes de ser mandado para Londres. Acho que depois nos vão oferecer um contrato. É possível que tenha de lá ir pessoalmente verificar a paginação. — A propósito, não vi os Briggs na lista de pessoas presentes esta noite — disse Camilla. — Gostava tanto de os conhecer. — Ofereci-lhes bilhetes, mas eles disseram que era fogo de vista a mais para o gosto deles. — Sarah estava a sorrir. — Pelo menos, a mais para o Dan, embora cá para mim a Allie tenha ficado furiosa com ele, por não querer vir. Tentei esquivar-me a essa discussão em particular. — A tia e o tio do Rabindrah só vêm sob coacção — disse Camilla. — Bem, o tio não se importa, mas acho que a tia Kuldip não está propriamente satisfeita. — Não acha bem raparigas seminuas a exibirem-se em público e uma delas é a sobrinha. Conheci-a na cerimónia de entrega do Land Rover. Fez-me lembrar as freiras que tentavam incutirnos um sentimento de vergonha só à ideia de carne nua. E que falharam… pelo menos, no teu caso. — Bem, os pais da Lila marcaram uma mesa para os seus amigos — disse Camilla. — Espero que não fiquem demasiado chocados. Anthony chegou três dias antes da gala, mas Camilla raramente o viu durante o período que antecedeu o desfile. Estava a trabalhar freneticamente, saltando entre a casa dele e o hotel onde a gala seria realizada, supervisionando a passagem a ferro da roupa e instalando cabides e uma mesa comprida para acessórios que seriam dispostos pela ordem de uso. Ele apareceu ao princípio da tarde e ela estava de joelhos a ajustar uma bainha bordada no vestido de Zahra. Lila estava espapaçada no sofá dele, apenas com roupa interior, de olhos fechados, pernas e braços abertos, a aproveitar uns breves minutos de sono antes da sua vez de praticar novamente. Anthony parou à porta, contemplando por momentos a cena, na sua sala de estar, antes de pigarrear. — Estou na casa certa? Costumava viver aqui. Era a calma residência de um celibatário. Mas posso habituar-me a isto. Camilla levantou-se para o beijar. Lila, ouvindo uma voz de homem, levantou-se de um salto, alarmada, e correu para a casa de banho à procura de roupa. Zahra permaneceu imóvel, olhando para ele em silêncio, com os seus olhos castanho-claros, como uma criatura selvagem pronta a lançar-se ao ataque ou a fugir. — Só contava contigo mais ao fim da tarde — disse Camilla. — É uma longa viagem de Meru. — Vim de avião com os clientes e um dos motoristas traz o carro. — Passou os olhos pela sala e assobiou. — Sim, senhor, o Joshua nunca mais será o mesmo homem. — Está proibido de entrar na zona principal da casa enquanto as raparigas cá estiverem — disse Camilla, rindo. — Esta é a Zahra, da Somália. E esta é a Lila. Conheces o primo dela, o Rabindrah Singh. Estamos a pensar em trabalhar mais uma hora ou assim. É a selecção final das roupas para a
grande noite e estamos a tentar decidir sobre as jóias e as outras quinquilharias que as acompanham. — Podiam fazer um desfile privado para mim — disse Anthony. — Não, nem pensar — disse Camilla severamente. — Porque é que não vais tratar dessa papelada enfadonha que trazes sempre contigo? E quando acabares, nós também já estamos prontas. — Podes jantar com os meus clientes esta noite? — disse ele. — Adoravam conhecer-te. — Pode ser — disse ela, embora tivesse planeado um jantar calmo a dois em casa. — Mas, a partir de amanhã, não tenho um minuto a perder. E às tantas não te vou ser muito útil logo à noite porque estou morta de cansaço.
Tom chegou de Londres na manhã seguinte. Trouxe Joe Blandford com ele e um especialista em caracterização, chamado Gino, que se pôs a trabalhar com as duas raparigas, murmurando sobre os problemas de lidar com pele escura e cabelo encarapinhado. Anthony tornou claro que os três homens o divertiam e que em nada o impressionavam as suas pretensas carreiras no frívolo mundo da moda. — Custa-me a crer que dois homens adultos possam passar o dia a falar da cor de um par de sapatos e se deves ou não usar pestanas postiças — disse ele a Camilla. — Acho que o fotógrafo está com ideias a teu respeito. E o outro está definitivamente com ideias a meu respeito. Não podes mandar passear esses fiteiros e passar a noite em casa? — Estás doido? — disse ela. Estava meio a rir, mas desiludida com o desdém dele pelos amigos que tinham viajado de tão longe para apoiá-la. — Vieram de Londres de propósito para isto. Por mim. Além disso, está combinado jantarmos todos no Grill com a velha que escreve sobre a cena social britânica para o Queen. As pessoas em casa de quem ela está organizaram a jantarada. Fazes alguma ideia do que se está a passar aqui? — Nenhuma — disse Anthony, agarrando-a pela cintura e enfiando-lhe a mão debaixo da saia para lhe afagar a pele sedosa das coxas, quase a fazendo desfalecer. — Mas sei que vai ser esplendoroso. Um êxito estrondoso. Anda para a cama comigo. Quero fazer amor contigo. Agora. Vamos fechar a porta e esquecer esta coisa toda por uma ou duas horas. Camilla libertou-se do abraço dele, exasperada por ele considerar o seu trabalho banal. Lançoulhe um olhar desdenhoso e saiu de casa, o carro cuspindo cascalho ao arrancar a toda a velocidade para um último encontro com Mary Robbins. Apesar dos protestos, Anthony compareceu ao jantar e fez um esforço por divertir os visitantes de Londres. A mesa do jantar era comprida e, depois de a sobremesa ser servida, várias pessoas trocaram de lugar. Tom foi sentar-se ao lado de Camilla. — Brilhante, querida — disse ele. — Está toda a gente entusiasmada com isto tudo. Julgam-se de volta à época de ouro do colonialismo. Só espero que o teu rapaz da selva não me dê um tiro. Já percebi que nunca seremos amigos. Mas tem andado a entregar cartões-de-visita a alguns dos presentes, pelo que não é com certeza um desastre completo para ele do ponto de vista profissional. Camilla sorriu e procurou Anthony com os olhos. Ele estava do outro lado da mesa e reparou que Zahra estava ao lado dele. Estava a fixá-lo com extasiada atenção, enquanto ele relatava uma das suas histórias de safári, os olhos grudados na sua cara, a boca cheia revirada num sorriso, os braços longos pousados sobre a mesa, quase a tocá-lo. Camilla experimentou uma sensação de
aperto no estômago e desviou os olhos. Mas, mais tarde, quando finalmente ficaram sós no sossego das primeiras horas da manhã, ele abraçou-a, acariciou-a e fez ardentemente amor com ela. — És tão bela — sussurrou ele, beijando-lhe a garganta. — E inteligente. Talvez demasiado inteligente e sofisticada para este bicho do mato. Ainda não sei o que estás a fazer comigo. — Não sejas parvo — disse ela, surpreendida com a observação dele. — Foste uma companhia fantástica esta noite. As pessoas de Londres estavam todas deleitadas com as tuas histórias. — Não é normalmente o meu género de coisa. — A sua voz já estava entaramelada com o sono. — Vi-te contar à Zahra histórias de grandes aventuras. — Camilla não resistiu a abordar o assunto. — Ela parecia hipnotizada. — Nada que se compare com a história que ela me contou. Que vida medonha! Tem sorte em ser tão atraente, caso contrário nunca teria escapado. É uma rapariga corajosa. Camilla preparava-se para responder mas mudou de ideias. Sem a ajuda dela, a rapariga nunca teria superado a sua sórdida situação mas não quis agora chamar a atenção para o facto. Pegou antes na mão de Anthony e virou-se para o beijar. Mas ele já tinha adormecido e, durante muito tempo, ela ficou de olhos abertos no escuro e tentou convencer-se de que era e sempre seria o amor da vida dele.
Lars e Hannah chegaram na manhã da gala. Tinham levado Esther, a ama, para olhar por Suniva para poderem passar à vontade o curto tempo de que dispunham na cidade. A rapariga nunca tinha ido a Nairobi e estava siderada com o trânsito, a quantidade de pessoas nas ruas, os edifícios altos e as avenidas largas e bordejadas de flores. Era tudo demasiado grande e assustador para ela e ficou aliviada quando a instalaram em casa de George com a bebé. Lars e Hannah passaram o dia juntos, demorando-se ao almoço num restaurante italiano e fazendo algumas compras que, na sua situação insegura, eram uma agradável extravagância. Sarah só se encontrou com eles ao fim da tarde, acabada de chegar de uma reunião com a Fundação Africana para a Vida Selvagem. George serviu bebidas antes de partirem para a gala e brindaram a uma noite de sucesso. No hotel, Hannah deu um salto aos bastidores e abraçou fortemente Camilla. — Amo-te, és corajosa e fantástica e vai ser um sucesso — disse ela. — Eu e o Lars sabemos o que fizeste por nós e esta noite há-de ser a tua recompensa. Sabes, nunca pensei que ele viesse. Com o ambiente em Langani, estava com medo de se ausentar, mesmo por uma noite. Mas depois disse que tínhamos de cá estar para te mostrar a nossa profunda gratidão. — Por cima do ombro de Camilla, espreitou por uma fresta nas cortinas para o fundo da passarela. — Oh, não! Oh, não, não! — O que foi, Han? Que é que se passa? — É o maldito do Viktor — disse Hannah. — Está sentado quatro mesas atrás. Oh, meu Deus, se o Lars o vê… — O Lars não o vai ver. Vai já para a nossa mesa e troca os marcadores para o Lars se sentar do mesmo lado do meu pai, de costas para a sala. Não o largues toda a noite. Derrete-te com ele e dálhe a mão, para ele não reparar em mais ninguém senão em ti. E avisa a Sarah de que talvez precises de ajuda. Onde é que está o Viktor exactamente? Hannah apontou-o e desapareceu para trocar os marcadores de lugar. Camilla respirou fundo e dirigiu-se ao camarim. As duas raparigas estavam atacadas de nervoso miudinho. Estavam sentadas em frente ao espelho como criaturas nocturnas paralisadas nos faróis de um carro, a maquilhagem
incapaz de disfarçar o terror nos seus olhos. — Levantem-se — disse Camilla. — Vamos vestir agora os primeiros fatos e daqui a quinze minutos começamos. Assim que entrarem em cena, o medo passa. Eu sei porque já senti duas vezes mais medo que vocês e consegui. As luzes, o público e a música levam-nas até ao fim. Somos todas belas. Uma trindade de deusas e esta é a nossa grande noite. Harambee. Vamos lá. Foi um triunfo desde o primeiro momento. Percorreram a passarela, meneando-se com a música. Os vestidos eram provocantemente curtos, com mangas cavadas e golas e bainhas bordadas a fio de seda brilhante, as formas inspiradas em vertiginosos desenhos africanos que Camilla tinha descoberto no vestuário masai e quicuio, em vasos, escudos e cabaças para água. Seguiram-se saias mais compridas e casacos, com aplicações de contas e borlas e cortados em viés. As calças exibiam bolsos e costuras decorados. Os sapatos, as botas e as sandálias apresentavam cores exuberantes, com carteiras condizentes feitas de lona, couro e veludo, as alças e os fechos decorados no mesmo estilo. Os cafetãs e os vestidos de noite cintilavam com explosões de pedras semipreciosas, penas e pérolas pequeninas cosidas em braçadeiras, costuras, decotes e bainhas. O desfile final arrancou uma ovação estrondosa quando Zahra apareceu no cimo da passarela, a pele levemente oleada e cintilante sob a luz difusa. O seu vestido sem costas dourado exibia um decote acentuado, revelando a curva dos seus seios, a seda fina mal lhe escondendo os mamilos. A saia tinha uma racha lateral e as suas pernas moviam-se num movimento lento e sinuoso, exótico e felino. Caía-lhe uma borla sobre as costas nuas, com pedaços de quartzo rosa nas pontas, e em redor da cabeça trazia uma fita dourada, com a forma de uma serpente. Lila vinha atrás dela, com um casaco de cerimónia feito de seda changeant que reflectia a luz e mudava de cor com cada passo. O seu comprido cabelo estava penteado em tranças, entretecidas com lantejoulas, e os brincos formavam uma cascata cintilante. Foi Camilla quem encerrou o desfile, entrando em cena a deslizar como um espírito perdido, o único projector aceso focado nela. Avançou pela passarela, como que em transe, até ao meio da assistência, de braços abertos, as mangas de chiffon pejadas de contas de prata e esvoaçando como asas diáfanas. O vestido branco era quase transparente, flutuando como uma nuvem em redor do seu corpo, envergado sobre uma combinação bordada que brilhava como uma miragem. Tinha calçadas sandálias de couro branco com tiras finas de contas de vidro e pérolas. Quando chegou à mesa de George, baixou os olhos para o pai e para os seus maiores amigos e soprou-lhes um beijo. E depois as luzes apagaram-se e ela desapareceu, como o fantasma da beleza, na súbita escuridão. Instalou-se um silêncio eléctrico, seguido de uma ovação entusiástica, antes de uma vibrante explosão de luzes e música, e as três raparigas surgiram a agradecer. Atrás do palco, abraçaram-se umas às outras vezes sem conta, a adrenalina ainda a correr-lhes nas veias. Mary Robbins, em êxtase, precipitou-se para o camarim improvisado. Os convidados amontoaram-se à porta e foi preciso dispersá-los. Tom furou à cotovelada através da multidão, gritando o nome de Camilla e sorrindo radiante ao chegar junto dela. Atrás dele, Anthony abriu caminho pelo meio de dois jornalistas e de um fotógrafo e acenou com a mão por cima da confusão de gente. — Não acredito no que fizeste esta noite — disse Tom, lançando os braços ao pescoço de Camilla. — No meio de uma terra de ninguém. No meio da África mais profunda, caramba! Amanhã tens de me ajudar a contratar essas raparigas, sobretudo essa bomba sensual, a rapariga negra. O Joe está a arder por uma oportunidade para a fotografar na selva. Toda a gente ficou de rastos. Que mulher fantástica que tu és. Um geniozinho do caraças! Mas estás a desperdiçar os teus talentos
aqui, querida. Já fizeste a tua experiência, tal como eu sugeri. Provaste que és capaz de uma coisa brilhante sem a ajuda de ninguém. E agora podes deixar-te de jogos com os nobres selvagens e os agricultores e o bom velho Tarzan que claramente não faz ideia do teu valor. Aquela cabecinha traumatizada não tem a mínima noção. É tempo de voltares para casa, querida. — É evidente que era capaz — disse ela, pondo-lhe os braços à volta do pescoço e rindo-se para ele. — Devias ter tido mais confiança em mim. Disse-te exactamente como ia ser. Disse que era capaz de construir a minha vida no Quénia. Que não tinha nada a ver com ele. E tinha razão. Em todos os aspectos. Em pé à porta, a cara de Anthony tornou-se vermelha e ele abriu caminho outra vez à força, a espumar de raiva. Mas Camilla estava rodeada de admiradores ruidosos, que se acotovelavam, e não reparou nas suas tentativas para fazer parte do círculo do seu sucesso.
Foi quase meia hora mais tarde que os jornalistas acabaram de entrevistar Camilla e ela se dirigiu para o restaurante. O resto das pessoas já estava sentada e Zahra tinha escolhido uma cadeira à esquerda de Anthony. Sarah franziu a testa ao ver a rapariga somali apostada em seduzi-lo e procurou Camilla com os olhos. Mas a sua atenção foi rapidamente desviada pela desagradável presença de Viktor Szustak. Este estava sentado com um grupo de artistas de Nairobi, conhecidos pelo seu apetite por álcool e orgias e, mais recentemente, por drogas experimentais. Naquele momento, ele estava absorvido em conversa com o seu círculo imediato e não relanceou sequer para a mesa principal. Lars tinha sido sentado entre Twinkle Kiberu e Hannah e era evidente que estava hipnotizado com a visão da mulher envergando um vestido de noite com que nunca a vira antes. Camilla chegou e sentou-se do outro lado de Anthony. Beijou-o na face, mas ele não reagiu e ela sentiu uma ponta de inquietude para a qual não encontrou explicação. A maré do seu sucesso crescia à sua volta e ela deixou-se arrastar pelo prazer que lhe transmitia o orgulho que via nas expressões dos amigos e a pressão da mão do pai quando se levantou para agradecer as felicitações dos convidados. Bebeu muito depressa a primeira taça de champanhe e depois bebericou a segunda, observando, divertida, Tom concentrado em seduzir Lila. Inicialmente, Sarah tinha ficado consternada ao ver-se sentada entre Rabindrah e Johnson Kiberu. Não queria recordar-se do episódio da bebedeira com o seu colega calmo e profissional, que não via desde o dia da entrega do Land Rover, e não fazia ideia do que havia de dizer ao político negro. Mas não tardou a descobrir que Johnson Kiberu era um homem que compreendia todas as vantagens e problemas da conservação. — A educação é fundamental — disse-lhe ele. — Demora tempo, mas é a única maneira de atingir equilíbrio num país onde a necessidade de terra arável e gado estará sempre em conflito com a necessidade de proteger a nossa vida selvagem. — Não será resolvido facilmente — disse Sarah. — É um problema político, tribal e internacional também. Um conjunto explosivo de ingredientes. — É uma combinação difícil para os nossos legisladores — disse ele. — O facto de a vida selvagem no Quénia se ter tornado uma questão internacional é uma faca de dois gumes. Somos bombardeados com especialistas de última hora que são muitas vezes académicos e especialistas nenhuns. Alguns são demasiado idealistas. E há pessoas aqui que se vão aproveitar disto e impedir
que grandes áreas sejam reservadas à conservação para as reclamarem para si mesmas. Mas já me encontrei várias vezes com o Dan e a Allie Briggs e fiquei impressionado com o trabalho e a atitude deles. Aliás, espero visitá-los nas próximas semanas. Talvez vá com o George, que é um homem sensato nestas matérias. Conhece-o há muito tempo? — Conheço. — Sarah sorriu à recordação desses anos. — Andei na escola com a Camilla. E com a Hannah também. Somos amigas de infância. — Então temos no George um amigo comum — disse Johnson. — Fico a aguardar ansiosamente a visita a Buffalo Springs. E espero que dê os meus cumprimentos aos Briggs. Precisamos de pessoas equilibradas como eles, para nos ajudar e ensinar. Camilla comeu num estado de aturdimento, apercebendo-se com surpresa de que estava esfomeada e de que há muito tempo que não se sentava e relaxava durante uma refeição. Enquanto tomavam o café, ouviu Hannah emitir uma leve exclamação consternada e levantou os olhos, vendo Viktor a abandonar o seu grupo. Mas, embora ele tivesse relanceado brevemente para eles, não fez qualquer tentativa de se aproximar da mesa. — Outro dos teus admiradores? — Tom inclinou-se para ela, erguendo as sobrancelhas e carregando a voz de sugestão. — Não, credo. É arquitecto e um mulherengo célebre — respondeu ela. — Ao contrário do tipo estupendo que tens aqui esta noite — disse Tom. — É exactamente como eu o tinha imaginado, o teu grande amante. Estou a ver que não és a única que se derrete por ele, querida. A passarela tinha sido enrolada e a banda chegou para tocar música de baile. Anthony e Zahra levantaram-se ao mesmo tempo e encaminharam-se para a pequena pista de dança. Camilla olhou para as profundezas negras da sua chávena de café, tentando disfarçar o ciúme e a decepção que se haviam alojado como setas envenenadas no seu peito. — Vá dançar com a Camilla. — Sarah deu uma pontada insistente em Rabindrah. — O quê? — disse ele, com uma expressão de surpresa cómica. — Porquê? — Por nada. Vá lá — disse ela. — Agora. Hannah estava sentada ao lado do marido, de mão dada com ele, à espera que Viktor destruísse a noite e lhe estragasse o prazer. Mas, quando finalmente se armou de coragem para lançar uma olhadela na direcção da sua mesa, não viu sinais dele e rezou uma muda oração de graças. — Foi-se embora — sussurrou ela a Camilla. — Estava aterrada que ele viesse aqui e que houvesse uma cena ou até pancadaria. Amanhã vamos embora cedo, porque o Lars não quer estar ausente mais um dia. Só espero que o Viktor não torne a aparecer na fazenda porque não sei o que podia acontecer. — Se não se aproximou de ti esta noite, acho que não te volta a incomodar — disse Camilla. Mas percebeu que Hannah não ficou convencida. — Vais a Langani antes de partires para Londres? — perguntou Hannah. — Provavelmente não — respondeu Camilla. Estava a ver Anthony ao longe, sentado agora a outra mesa, a conversar com uma mulher de meia-idade carregada de jóias caras. Enquanto observava, Zahra apareceu ao lado dele e ele fez as apresentações. A rapariga somali juntou-se ao grupo e aceitou uma taça de champanhe. — Acho que sou mesmo capaz de voltar com o Tom — disse Camilla. O seu tom de voz denotou uma desolação total e Hannah encheu-se de compaixão. — Os homens
são uns idiotas — disse ela. — Completamente estúpidos quando farejam um estafermozinho desonesto. Mas não significa nada, por mais difícil que seja de digerir. — Anda, Han. Temos de dançar. — Lars pegou na mão da mulher e Hannah concentrou-se em tirar partido do sofisticado serão. A pista vibrava com as pessoas e Zahra não estava a fazer segredo da sua atracção por Anthony, dançando chegada a ele, rodopiando e contorcendo o seu corpo esguio, olhando para ele com olhos castanhos líquidos e um sorriso abertamente convidativo. Camilla pediu mais champanhe e decidiu encantar os convidados, detendo-se ao acaso em várias mesas a falar com pessoas que não conhecia nem nunca vira, dançando com Johnson Kiberu e Rabindrah, com Lars e com o pai, namoriscando escandalosamente com Tom. A distância entre ela e Anthony ia aumentando e a sala fervilhava de excitação e falatório, enquanto a festa avançava pela noite dentro. Foi George quem finalmente decidiu que eram horas de partir e Sarah saiu com ele, pois arrancava para Buffalo Springs de madrugada. Por essa altura, já Camilla se sentia muito cansada e procurou Anthony no meio das pessoas, ansiosa por reparar a clivagem que se abrira entre eles e arrancá-lo a Zahra. Mas não viu sinais dele e, com um suspiro, encaminhou-se para o camarim para retocar a maquilhagem. Estavam os dois juntos no corredor deserto, Zahra encostada à parede, com um braço em volta do pescoço de Anthony à maneira de uma serpente, a outra mão puxando-o para si e levantando a boca para ele. Ele estava a sorrir quando se inclinou para ela. — Sai daqui. Sai imediatamente daqui. — Camilla dirigiu-se à rapariga, numa voz distinta e muito fria. — Podes pegar nas tuas coisas e sair já. E depois nunca mais te quero ver. Não olhou directamente para Anthony, que rodou nos calcanhares e as deixou sem uma palavra. No camarim, Zahra juntou os seus pertences em silêncio, não procurando explicar-se nem pedir desculpa, e minutos depois a porta fechou-se e ela desapareceu. A raiva gélida de Camilla dissolveu-se em lágrimas e ela engoliu o nó que lhe queimava a garganta e cerrou os dentes, determinada em não sucumbir. Olhou-se ao espelho e viu apenas desapontamento enquanto penteava o cabelo para trás e aplicava bâton nos lábios trémulos. Depois endireitou-se, arvorou o seu sorriso mais profissional, e voltou para a festa. — Ah, estás aí — disse Tom. — Pensei que te tinhas sumido com o teu namorado e me tinhas abandonado. A Lila deu-me com os pés, apesar de todos os meus esforços para a levar para a cama. Não resistiu aos olhos vigilantes dos pais. E a beldade negra parece ter desaparecido na noite. O Joe está doido com ela. — Quero champanhe — disse Camilla. — Vamos embora daqui até ao bar. Já. — Champanhe, pois seja — disse Tom, reconhecendo o seu estado de perturbação e acompanhando-a para fora da sala. — Melhor ainda, porque é que não damos um salto à minha suíte, onde está tranquilo e ninguém nos incomoda? Deves estar estourada. — Estourada. Sim, é exactamente como estou — disse ela. — Completamente estourada, em todos os sentidos. Tom não perguntou onde estava Anthony, mas observou Camilla a emborcar duas taças de champanhe em rápida sucessão. — Há entrevistas marcadas para de manhã, querida — disse ele por fim. — A velhota da Tatler está em casa de Lady Carghill e quer falar contigo. E o Rabindrah também me disse que está a preparar qualquer coisa para o Telegraph. — E tu estás de partida numa adorável excursão — disse ela secamente. — Não podes vir cá e
não ver um único animal selvagem. Organizei uma visita para ti a Treetops. É uma plataforma espantosa construída no meio das árvores na floresta de Aberdare. Era onde a princesa Isabel estava quando o pai morreu e ela se tornou rainha. — Fantástico — disse Tom, sem ponta de entusiasmo. — Umas luzes de História são sempre bem-vindas. Ela urinava em cima dos tigres quando tinha vontade? — Grosseiro e ignorante, é o que tu és — disse Camilla. — Não há tigres em África. Mas podes passar a noite acordado a morrer de frio e observar os rinocerontes e os elefantes e, quem sabe, até pode ser que vejas um leopardo. Comungar com a Natureza. — Não me agrada muito a ideia de comungar com animais selvagens embora dê muito valor à gola de pele do meu sobretudo de Inverno — disse Tom. — Mas suponho que devo estar agradecido por não ficar numa tenda com os leões a tentar abrir o fecho e o teu rapaz da selva a afugentá-los. Tens a certeza de que não podes vir connosco? — Absoluta — disse Camilla, começando a cabecear. — Estou bastante bêbada, querido. Acho que vou passar a noite aqui contigo. Não te importas? Tinha-se deixado cair sobre as almofadas do sofá e adormeceu antes de ele poder responder. Tom tirou um cobertor da cama e cobriu-a com ele. Camilla ia sentir-se pessimamente de manhã, mas ele estaria ali para a salvar e ajudar a aguentar o dia. Bom velho Tom, agente e amigo leal. Com alguma sorte, ela voltaria agora para Londres e deixaria os simpáticos amigos agricultores a olhar pela oficina. Feitas as contas, estava tudo a correr bastante bem e Tom sorria quando apagou a luz.
De manhã, Tom foi despachado ao camarim, onde juntou as coisas de Camilla e organizou a limpeza do sítio e mandou encaixotar as roupas e entregá-las na loja de Mary Robbins. Ao voltar para os elevadores, cruzou-se com Joe, que andava pelo átrio. — Viste a Camilla? — perguntou ele. — Estava com esperança de apanhar essa Zahra. Fazer algumas fotos de rosto para levar para Londres. Mostrá-las a algumas pessoas. — Depois digo-te alguma coisa sobre isso — respondeu Tom. — É. Eu vi-a atirar-se ao homem da Camilla. Devo dizer que foi uma má jogada — disse Joe. — Seja como for, é uma brasa e tu devias contratá-la. O que eu chamo escaldante e exótica. * — Queres falar de ontem à noite? — Tom arriscou a pergunta enquanto Camilla tomava um duche e se vestia. — Aquela galdéria atirou-se ao Anthony e ele caiu na esparrela — disse ela friamente, embora o estômago se lhe revolvesse de humilhação. — Cruzei-me com o Joe no átrio. Estava a contar fotografá-la. Camilla saiu da casa de banho e plantou-se directamente em frente a Tom. — Deixa-me ser muito clara — disse ela. — Se contratares essa rapariga, saio do teu portefólio e nunca mais me vês. Entendido, Tom Bartlett? Porque, se não entendes, podes meter-te no avião para Londres e esquecer que alguma vez nos conhecemos. — Não lhe tocava por nada deste mundo — apressou-se ele a dizer. — Se ela se envolver na moda, juro que não tem nada a ver comigo. Vá, desanda lá para as tuas entrevistas. Primeiro a
Tatler e depois o teu compincha indiano, não é? — Sacudiu a cabeça de lado a lado e revirou os olhos, sentindo-se aliviado quando a viu sorrir, ao saírem do quarto.
— Podemos falar enquanto almoçamos? — perguntou Camilla quando Rabindrah pegou no caderno e nos lápis. — Estou com uma ressaca razoável e já dei uma entrevista hoje. Preciso seriamente de comer e de um Bloody Mary, senão não consigo continuar. Quando chegaram ao Equator Club, Camilla estava exausta e deprimida. Sentiu-se tentada a ligar a Anthony, mas não fazia ideia do que podia dizer sem perder o controlo e cumulá-lo de acusações. Talvez fosse boa ideia ir a casa dele da parte da tarde e tentar conversar com ele calma e sensatamente. Mas, quando pensou no assunto, Camilla deu por si à beira das lágrimas e, deixando Rabindrah, refugiou-se nos lavabos, demorando-se diante do espelho e procurando arranjar coragem para chegar ao fim do dia. Quando dominou as emoções, abriu a porta e voltou ao restaurante. A sala de jantar no Equator Club estava sombria, enfumarada e cheia de gente. E o cheiro a comida chinesa levou Camilla a perceber que estava um pouco enjoada. O almoço era capaz de ter sido má ideia. Encaminhando-se para a mesa, ouviu um riso de mulher e o som era estranhamente familiar. Curiosa, olhou para trás. Sentado num pequeno reservado, estava Viktor Szustak com uma mulher africana com uma inconfundível cintura delgada e uma aura de pura sexualidade. Twinkle Kiberu. Ele estava a rir-se e a ensinar-lhe a usar os pauzinhos, cobrindo com uma das mãos os dedos esguios dela, de unhas escarlates, e estendendo a outra mão para lhe limpar alguns grãos de arroz do canto da boca. Murmurou-lhe ao ouvido e a língua dela projectou-se para lhe aflorar as pontas dos dedos, sorrindo-lhe com inconfundível desejo carnal. Não admirava que ele não se tivesse aproximado da mesa deles na noite anterior. Camilla desviou-se rapidamente, uma visão paralela de Anthony e Zahra formando-se-lhe no espírito. Talvez estivessem os dois juntos agora, a arfar um pelo outro como estes dois. Estugou o passo e sentou-se à mesa. — Estou a ver o Viktor Szustak ali escondido — disse Rabindrah. — Com a Mama Kiberu. Não me surpreende que ele não tenha aparecido a conversar ontem à noite. — É uma relação estável? — Camilla perguntou. — Parte da eterna pergunta: «É casado ou vive no Quénia?» Estou a assistir a um escândalo local? — A má-língua da terra está deleitada — disse Rabindrah. — Mas não me parece que vá haver duelos ou pistolas. Vá, vamos pedir e falar de quinquilharias e missangas multiculturais.
A tarde ia a meio quando Camilla finalmente chegou a casa de Anthony. O Land Rover dele estava estacionado à porta e o coração dela batia e saltitava quando entrou na sala de estar. — Onde diabo te meteste? — O seu rosto estava tenso, a voz sacudida. — Esperei por ti até de madrugada. Estás com um ar derreado. Dirigiu-se para ela, passando-lhe as mãos pela cintura, tentando puxá-la para si. Mas ela abanou a cabeça e repeliu-o. — Anda sentar-te — disse ele. — Vejo que estás terrivelmente cansada. — Não estou cansada. Estou simplesmente triste — respondeu ela. — Acho que é a minha sina. — Tiveste uma noite estupenda — disse ele. — Espectacular.
— E tu também, pelos vistos. — Não foi capaz de esconder o ciúme. — Calma aí — disse ele, claramente na defensiva. — Ontem à noite andavas demasiado ocupada para reparar sequer em mim, envolvida em jogos de sedução com esse sujeito, o Bartlett. Mas eu percebi que era fita. Que era só por gozo. Toda a gente se estava a atirar à Zahra e foi um azar que ela tivesse corrido para mim como uma flecha. Não teve significado nenhum. Era a grande noite dela. — Era a minha grande noite — disse ela azedamente, desviando a cara para ele não ver as lágrimas de revolta nos seus olhos. — E não quero falar disso, Anthony, não digas mais nada. Por favor. — Acho que estás a ser um bocado dura — disse ele. — Ela ligou para aqui hoje de manhã à tua procura. Praticamente histérica. Disse que nunca bebia e que sabe que se portou terrivelmente mal e está arrependida. Às tantas devias dar-lhe a oportunidade de te pedir pessoalmente desculpa. — Como é que te atreves a dizer-me o que devo fazer? — Atirou-se a ele, a sua fúria explodindo através da sala de tal modo que ele a sentiu como uma força física. — Não fazes ideia do que tudo isto significou para mim. Como era importante para a Hannah, que fica com metade do que ganharmos com as vendas. Porque quando chega o momento da verdade, Anthony, és totalmente egocêntrico e oco. És incapaz de ver para além do superficial e não consegues resistir a uma mulher que te faça olhinhos. A lealdade não é uma palavra que alguma vez tenhas perdido um minuto a analisar e muito menos a pôr em prática. Foi por isso que não quis falar de casamento há cinco meses e agora sei que tinha razão. — Estás a exagerar porque tens andado debaixo de uma grande tensão. — O seu tom era apaziguador. — Vamos esquecer este episódio estúpido, Camilla. Olha como o Joshua arranjou as flores e tem tudo preparado para o jantar. Tenho de partir de manhã e são os únicos momentos que temos um com o outro. Tens andado ocupadíssima e eu quase que não te tenho visto. — Vou a um cocktail com o meu pai — disse ela formalmente. — Não volto esta noite. Atirou uma selecção arbitrária de roupas para um saco e deixou-o em pé, de costas para ela, a olhar pela janela para a tarde amena que estava agora marcada pela raiva e pela mágoa. Quando ela pôs o carro a trabalhar, ele saiu para o alpendre, mas não falou nem fez qualquer sinal e o orgulho não a deixou sair do carro e voltar para casa.
George saudou-a afavelmente e não fez comentários quando ela pôs o saco no quarto de hóspedes. Camilla estava desejosa de dizer alguma coisa, de desabafar sobre a sua dor e incerteza. Acima de tudo, desejava que as amigas não tivessem partido de Nairobi e, por um momento alucinado, pensou em meter-se no carro e ir para norte, para Langani ou até para Buffalo Springs. Mas não, tomou banho e vestiu-se com meticuloso cuidado. — Estás muito bonita, minha querida — disse George com afecto. — E tudo se vai compor com o teu rapaz. Estas pequenas tempestades fazem parte da vida e das relações amorosas e não têm grande importância nem duram muito, vistas no contexto geral das coisas. Não há mais ninguém que seja importante para ele. Sabes disso. — Não, não sei nada. — Os homens muitas vezes comportam-se estupidamente quando acham que não são o centro das atenções — disse George. — E tenho a certeza de que o Anthony não sabia que a rapariga ia
aparecer hoje em casa dele. Ligou imediatamente para aqui, à tua procura, mas eu não fazia ideia onde tu estavas. Acho que não podes querer-lhe mal por isso. Camilla ficou imóvel, o ar sugado dos pulmões, ao aperceber-se de que Anthony lhe tinha mentido. Sentiu-se mortalmente doente, pequenas pérolas de suor formando-se-lhe na testa, e olhou para o pai, sem fala e sem pinga de sangue. Ele percebeu que tinha involuntariamente divulgado uma confidência e desviou os olhos. Camilla cerrou os punhos, sentindo unicamente repugnância por ele e por Anthony, que ele tentara desculpar. — Tens toda a razão — disse ela. — Não tem importância nenhuma. Vamos ao cocktail, papá, e divertir-nos. Meia hora mais tarde, atravessou a sala apinhada, aceitando felicitações pelo espectáculo da noite anterior. Desejava agora não ter concordado em vir e preparava-se para subir ao andar de cima, para o sossego do bar, quando George lhe fez sinal para ir ter com ele. — Foi uma noite estupenda — disse-lhe Johnson Kiberu, os seus olhos viajando muito lentamente sobre o corpo dela. — Espero conseguir um convite para um dos seus desfiles de moda da próxima vez que estiver em Londres. Conhecer talvez algumas das modelos suas amigas. — Claro — disse Camilla, suspirando interiormente. O homem podia ser um bom político, mas era um tarado sexual e um chato no capítulo das mulheres. Kiberu pousou a mão no braço nu dela e apertou-o levemente. — Por acaso, temos amigos comuns — disse ela — e encontrámo-nos de fugida em Londres, uma noite, no ano passado. Provavelmente não se recorda, deve conhecer tanta gente. — Realmente. — Os olhos de Johnson estreitaram-se ligeiramente e ela detectou alarme no rosto macio. Ele sorveu quase toda a bebida de um trago. — É difícil recordar toda a gente. Estou encantado que o seu pai tenha decidido fixar-se em Nairobi. Já nos prestou conselhos preciosos sobre a nossa política para a vida selvagem. Vai demorar-se mais por aqui? — Não sei — respondeu Camilla, sorrindo por baixo das pestanas, num pequeno jogo de sedução deliberado com ele, para o guiar para uma cilada. — Depende do que Nairobi tiver para oferecer. — Espero que voltemos a encontrar-nos — disse ele, confiante de que ela não ia levantar problemas. Tentou dar um primeiro passo. — Não anda sempre acompanhada, pois não? — Não, de maneira nenhuma. — Olhou para ele com inocência estudada. — Como está a sua irmã hoje? — Conhece a minha irmã? — Ele ficou intrigado. — A sua irmã fabulosa e sexy que nos fez companhia ontem à noite — disse Camilla. — Já a vi muitas vezes com um amigo meu. O Viktor Szustak. Ele está louco por ela, têm passado momentos fantásticos. Acabamos por nos encontrar sempre no sítio onde os vi no outro dia à noite. Não me recordo do nome mas deve saber qual é. Um covil obscuro, ideal para ligações ardentes e romances escaldantes. Há jazz e dança até de madrugada. Se calhar era boa ideia encontrarmo-nos lá. Podíamos sair os quatro. Viu os olhos do político acenderem-se de raiva e sentiu a mão agitada de George no braço. — Anda, querida, quero apresentar-te um velho amigo meu do Alto Comissariado — disse ele desesperadamente. — Johnson, encontramo-nos na reunião sobre o programa de protecção à vida selvagem. — Não precisavas de me arrastar tão abruptamente — disse ela. — Ele há-de pensar que somos mal-educados.
— Valha-me Deus, Camilla, sabes perfeitamente que não é a irmã dele — balbuciou George. — A Twinkle Kiberu é a mulher dele, caramba. Apresentei-ta quando estávamos com o Rabindrah. Não te lembras? Não acredito que tenhas pensado que era a irmã dele. E o Szustak é um mulherengo incorrigível. Onde é que te esbarraste com eles? — Ó diabo, pelos vistos enganei-me — disse Camilla, com um sorriso matreiro. — Ou então estou a confundi-la com outra pessoa. — Viu Johnson Kiberu a mirá-la do outro lado da sala com uma expressão desconfiada. — Bem, não interessa — disse ela. — Seja como for, é um velho lúbrico, o teu amigo Kiberu. Podemos ir para casa agora? Estou derreada. Ao saírem da recepção, Camilla dirigiu um leve aceno com a mão e um sorriso deslumbrante a Johnson que rodou nos calcanhares e desapareceu no meio das pessoas.
O telefone estava a tocar quando entraram na sala de estar de George. — Por favor, anda para casa — disse Anthony. — Vou-me embora de manhã e quero muito que passemos esta noite juntos. — Esqueceste-te completamente de me dizer que a Zahra te visitou hoje — disse ela, tremendo de raiva. — Camilla, fazia tenções de te dizer. Mas achei que ias ficar ainda mais transtornada. Livrei-me dela imediatamente porque ela estava impossível. Histérica, como já te disse. E nada disto tem a mínima importância para mim. Absolutamente nenhuma. Camilla? — Para mim tem — disse ela, furiosa. — Volta para casa, por favor. Quero estar contigo. Desejo-te loucamente, agora. És a única pessoa que desejo. Por favor, vamos esquecer esta estupidez toda. — Estou a jantar com o meu pai — disse ela, uma névoa inflamada de raiva invadindo-a. — E parto para Londres amanhã à noite. Com o Tom. — O quê? Então quando é que te vejo? Quando é que voltas? — Não sei — disse ela. — Não sei mesmo.
CAPÍTULO 8
Londres, Abril de 1967 pela visita de Sarah a Londres tinha sido Rabindrah. Ele regressara a Buffalo O responsável Springs, onde tinha passado alguns dias, antes de desaparecer numa missão na Tanzânia, e o tempo tinha passado depressa. Quando não seguia as manadas, sentava-se à sombra da acácia com uma pequena mesa articulada à sua frente, os dedos a tamborilar sobre o teclado de uma velha máquina de escrever portátil, num ritmo sincopado, indiferente ao suor que lhe pingava da testa. A pulseira simples de metal que trazia sempre no pulso cintilava. Tinha uma farripa de cabelo preto que lhe caía sobre os olhos, quando estava debruçado sobre a máquina, e de tempos a tempos sacudia a cabeça para trás para a afastar dos olhos. — Tenho uma excelente tesoura que lhe resolvia esse problema — disse Sarah. — E a Allie é especialista a cortar cabelo. Poupava-lhe imensa energia e diminuía o perigo de a cabeça lhe cair. — Há siques que nunca cortam o cabelo nem a barba — disse ele, sorrindo-lhe. — Tirando a pulseira, é a minha única concessão à tradição e é um excelente enxota-moscas. Possuía um sentido de humor negro e um raciocínio rápido que o tornava uma companhia estimulante. À noite, lia passagens do texto, aceitando sugestões e críticas com elegância, rindo-se dos seus erros ocasionais. Entendia-se com os Briggs e ficou várias vezes com Dan até tarde, à noite, a discutir o mundo em geral e a débil esperança de o Quénia se transformar numa sociedade verdadeiramente multirracial. Até o pessoal africano do acampamento começou a aceitar com relutância a presença do mahindi. Só Erope continuava pouco impressionado com a sua lamentável falta de conhecimento na matéria. — Teve mais notícias do padre? — perguntou Rabindrah a Sarah, no dia em que regressou. Ela sacudiu negativamente a cabeça. — Fiquei extremamente emocionada no dia em que o visitei, compreende? Fez-me recordar todas as coisas más e, durante algum tempo, não consegui pensar direito. — Está a dizer-me que os seus instintos a respeito do Simon Githiri estavam errados? Que afinal não acredita que ele possa estar vivo? — Não sei — disse ela. — E não quero cismar nisso porque é uma coisa instintiva. Não se baseia em nada de científico ou sensato e, por agora, quero esquecer. Não quero falar mais no assunto. Está pronto para sair no meu belo calhambeque reformado e procurar elefantes? — Claro que sim — disse Rabindrah. — Disse ao tio Indar que ia andar nos novos veículos dele. Vamos tirar fotografias no meio da manada para ele ver os benefícios que trouxe à selva. — Porque é que ele não vem cá ver pessoalmente? Teríamos imenso gosto em fazer-lhe uma visita guiada — disse Sarah. Rabindrah não respondeu e ela olhou para ele com curiosidade. — Aposto que ele tem medo de animais ferozes — disse ela, sorrindo. — Ficava espantado se soubesse a quantidade de homens grandes e fortes que se encolhem no banco de trás do carro quando vêem um elefante a caminhar
para eles. Ele não tinha qualquer desejo de contar a Sarah que a tia e o tio andavam um pouco receosos da sua associação com ela e que tinham exprimido as suas reservas numa discreta mas inequívoca troca de palavras. — Também deves estar a trabalhar em boas reportagens em Nairobi — tinha dito Kuldip Singh, quando o sobrinho anunciou que ia voltar a Buffalo Springs. — Há sempre assuntos interessantes — dissera ele. — Mas estar lá é uma coisa que eu nunca tinha imaginado. É um sítio que se entranha em nós. Uma experiência que se apodera completamente da pessoa. Quero levar-te lá, tia Kuldip. É uma coisa mística, sair com a Sarah de manhã e ficar sentado, completamente em silêncio, no meio daqueles animais gigantescos, a observá-los a executar as suas actividades de uma maneira incrivelmente ordeira e digna. É uma rapariga cheia de coragem, a Sarah. Conhece individualmente os elefantes, consegue saber o que vão fazer ainda antes de eles o fazerem. Dia após dia está no meio deles, sozinha ou com um pisteiro samburu, a seguir as manadas, sem medo delas, dos búfalos ou dos caçadores furtivos shifta. Não tem medo de nada. Nunca conheci uma mulher assim. É como observar uma lenda em construção. — É com certeza boa rapariga — disse Kuldip. — Não conversou muito connosco quando veio receber o Land Rover. — Não a conheceste num dia sim — disse Rabindrah. — Não sei se sabes, mas ela estava noiva do agricultor africânder que foi assassinado há pouco mais de um ano. Perto de Nanyuki. E recentemente houve um assalto na fazenda, pouco antes de a conheceres. Era por isso que estava muito nervosa, nesse dia, e cheia de más recordações. — Pobre rapariga — dissera Kuldip. — Provavelmente ainda não fez o luto. Certas pessoas vivem com essas coisas toda a vida. Nunca mais voltam à normalidade, sabes? Vais cá estar amanhã, Rabindrah? Quero apresentar-te uma pessoa. — Nunca desistes, tia — dissera ele, rindo. — Deve ser outra das tuas noivas potenciais e vais ficar desapontada. Mas, sim, cá estarei. — É sempre melhor uma pessoa cingir-se à sua raça — dissera Kuldip. — O casamento já de si é exigente, sem ser preciso acrescentar mais problemas aos que um casal já tem de enfrentar. — A tua tia tem razão. — Indar tinha entrado na parte final da conversa. Mas Rabindrah não era capaz de definir a sua raça, excepto o facto de ser uma tribo pequena e estrangeira que, no fundo, não pertencia a nenhum continente. Os ingleses tinham-nos trazido para África e agora iam abandoná-los à sua sorte. Já não eram indianos, estes descendentes dos polícias, soldados e agricultores siques e os netos dos trabalhadores manuais hindus trazidos para construir ferrovias numa terra distante. Mas também não eram africanos, embora tivessem prosperado no Quénia e os seus filhos tivessem nascido em solo africano. — E qual é a minha raça? — perguntou Rabindrah embora tivessem discutido o assunto muitas vezes sem chegar a nenhuma conclusão satisfatória. — És indiano. É o teu legado. És um sique, se bem que não pareças interessado na prática da religião — respondeu Indar. — Sou queniano — retorquiu Rabindrah. — Nasci aqui e nunca pus os pés na Índia. Mesmo os tios só lá estiveram uma vez e sentiram-se como estrangeiros. «Indianos» não passa da ideia que fazemos de nós próprios. Uma noção sentimental que só existe no nosso espírito. Para o bem ou para o mal, esta é a nossa pátria.
— Também somos cidadãos britânicos — dissera Kuldip. — Minha querida, acho que o rapaz tem razão. — Indar falou num tom sombrio. — O meu irmão está a trabalhar no Reino Unido, instalado na sua casa geminada, mas nunca será inglês. E não vão deixar lá entrar muitos mais de nós. Os ingleses usaram-nos para promover as suas intenções colonialistas. Mas não gostam de nós e em breve vão descobrir uma maneira de nos impedir de emigrar. Os judeus de África, é o que nos chamam, e não é um elogio. — Olhou para o sobrinho. — A tua tia é uma mulher sensata — dissera ele. — Tens falado muito dessa rapariga irlandesa nas últimas semanas. O nome dela surge regularmente nas tuas conversas. É uma coisa boa estarem a escrever esse livro juntos, mas deves ter cuidado e não esperar mais do que isso. O verdadeiro companheirismo e amor encontram-se mais facilmente no seio da tua comunidade. Relembrando a expressão austera do tio, Rabindrah sorriu enquanto viajava com Sarah na tardinha tingida de tonalidades róseas. O sol começava a pôr-se. Corriam pássaros pelo caminho saibroso, levantando voo no ar fresco diante do Land Rover. Ele via a solitária beleza da estrelad’alva e a forma pálida de um quarto crescente. Estava coberto de poeira e exausto e totalmente em sintonia com o mundo à sua volta. Sarah ia de olhos postos na estrada, as suas mãos pequenas e bronzeadas agarrando o volante. Ia a trautear em surdina, uma coisa que fazia quando estava relaxada e contente, e Rabindrah experimentava uma satisfação absurda por ela se sentir assim. Dois dias antes, tinha recebido uma mensagem de John Sinclair, o editor londrino, que deixou Sarah entusiasmada e lhe suscitou um exame de consciência. — Finalmente podemos celebrar — tinha dito Rabindrah, quando estavam sentados sob as estrelas a desfrutar de um momento de calma antes do jantar. — Temos um contrato para assinar. — Presumo que lho vão mandar por correio para Nairobi — disse ela. — Se é preciso a assinatura dos dois, é melhor trazê-lo consigo. — Sim — respondeu Rabindrah. — Mas temos de tomar decisões sobre a paginação do livro. O John sugeriu que nos encontrássemos em Londres. E a Sarah devia estar presente. — Virou-se para Dan. — Uma semana chegava, se puderes dispensá-la. — Acho que podemos deixá-la ir, já que nos vai tornar famosos. — Dan sorriu a Sarah. — Às tantas devias aceitar a proposta do teu pai e ir passar uma semana à Irlanda, miúda. Visitar a família com uma paragem por Londres. O teu irmão não se vai casar brevemente? Sarah tinha desviado os olhos. — No final de Abril. — Talvez o Rabindrah possa organizar a viagem de maneira a combinares as duas coisas — disse Dan. — Que é que dizes, Allie? — Se a Sarah quiser, claro. — Allie tinha tido o cuidado de não forçar o assunto, consciente de que Sarah podia não se sentir preparada para participar numa celebração familiar, em especial um casamento. — Veremos. — O tom de Sarah foi abrupto e ela percebeu que tinha sido um pouco rude. No seu subconsciente, estava a probabilidade de não conseguir evitar a viagem. Era tempo de dar os primeiros passos no mundo mais vasto, de visitar a família que lhe suplicava há tanto tempo que fosse a Sligo. Que fosse a casa. Não era a sua casa e não era o seu casamento, mas sabia que mais cedo ou mais tarde teria de ir.
Era o fim da Primavera quando chegou a Londres. Camilla foi esperá-la ao aeroporto e
apanharam um táxi para o apartamento de Knightsbridge. Tinha-se esquecido de como o vento podia ser cortante e como o céu cinzento parecia envolver as multidões apressadas nas ruas numa atmosfera de ameaça. — Porque é que não dormes umas horas? Eu dou-te uma chave, para o caso de quereres sair e dar uma olhada nas lojas — disse Camilla. — Tenho uma sessão no estúdio ao meio-dia e não volto antes das cinco. Pensei que podíamos passar a noite sozinhas, se achares boa ideia. Jantaram numa trattoria à cunha, demasiado barulhenta para mais do que uma conversa superficial. Sarah perguntou-se se a amiga a teria escolhido por essa razão. Era tarde quando voltaram ao apartamento e ela pôde penetrar a tagarelice atrás da qual Camilla estava a esconderse. — Queres experimentar? — Camilla acendeu um isqueiro dourado e estendeu um cigarro com um cheiro doce. — É de boa qualidade. Se te causar sono, não precisas de andar muito. E se ficares histérica de riso ou acometida de soluços, só aqui estamos as duas. Não te causa alucinações, nem te dá vontade de saltar da janela nem nada disso. — Devo dizer que, desde que fui viver para o acampamento dos Briggs, consumi mais álcool do que alguma vez imaginei possível — disse Sarah. — Mas nunca experimentei um charro. Não, obrigada, acho que não. Camilla estava reclinada no sofá, de olhos fechados, como se tivesse adormecido. Nenhuma delas falou durante algum tempo. — Ainda tens pesadelos? — perguntou ela de súbito. — Depois do assalto, quando fiquei com a cara destruída, tinha medo de adormecer, medo de estar sozinha numa sala, medo de tudo. Passei meses assim. E quando cheguei a Langani no ano passado, estava ainda mais assustada. Levou-me tempo a sentir-me à vontade e a dormir bem. Mas desde que a oficina foi destruída, esses sonhos antigos reapareceram e vejo a panga a voar contra a minha cara, sinto-a rasgar-me a pele, como se tivesse sido ontem. Agora começo a duvidar de que seja capaz de regressar. Que tenha esse tipo de coragem. — É penoso — disse Sarah. — Quando não se compreende por que razão se foi atacado. — Como é que se enfrenta um ódio sem rosto? — Camilla falou num tom revoltado. — Afecta os africanos ainda mais do que nós. Olha para os empregos perdidos, as mulheres locais para quem o trabalho se tinha tornado importante, mesmo em tão pouco tempo. E pode voltar a acontecer porque ninguém entende as razões desses actos. — Tirou uma fumaça do cigarro. — Não quero desapontar a Hannah. Tenho a certeza de que nunca lhe passou pela cabeça virar as costas e fugir de Langani. Mas eu não sou forte como ela. Desenvolvi um medo real de lá voltar. — É a casa dela e continua a dizer que não sai de lá, aconteça o que acontecer — disse Sarah. — Mas tu podes voltar e instalar-te em Nairobi. — A minha ideia não era essa. Tinha um plano excelente para Langani, mas descarrilou por completo. Foi destruído. E eu não sei o que fazer. A respeito de nada. Sarah compreendeu que ela estava agora a falar de Anthony, além do desastre da oficina. Mas que idiota superficial e insensível que ele era! Um canalha consumado, como lhe tinha chamado em tempos. Pensou se ele alguma vez conseguiria fazer a relação funcionar e se mereceria outra oportunidade. — Há alguma esperança para vocês os dois? — perguntou por fim. Camilla não abriu os olhos. — Não mais que entre o Anthony e qualquer outra mulher que se
cruze com ele. — Comportou-se como um imbecil — disse Sarah, sabendo que o termo não exprimia a verdadeira dimensão do problema. — Nunca hei-de compreender — Camilla fez um gesto lânguido com o pulso — o amor. Porque é que, em algumas circunstâncias, se desperdiça, se desbarata, e noutras completamente implausíveis sobrevive apesar de tudo. Olha para o George e para a Marina. Ela nunca tinha falado da mãe desde a sua morte. Sarah permaneceu calada, não querendo interromper o fluxo das palavras. Era raro Camilla desnudar a alma. — Quando ela morreu, chorei, sabes? Não estava à espera, mas ela fez-me chorar. Disse que éramos a vida dela, eu e o meu pai. Que nos adorava e que ele era o único homem que alguma vez tinha amado. Disse que, se lhe fosse dado satisfazer um desejo, escolheria viver até aos cinquenta anos, para poder tentar fazer-nos felizes juntos, custasse o que custasse. Não queria voltar atrás e viver a vida dela sozinha. O único desejo dela era que tudo estivesse bem por algum tempo, para nos recordarmos sempre disso primeiro quando pensássemos nela. Era tudo o que queria. Ficar por cá até aos cinquenta anos. E depois riu-se e disse que até aos cinquenta bastava, porque depois disso teria rugas e a pele flácida, coisa que sempre tinha temido, e que depois voltaria a portar-se mal outra vez. — Os olhos de Camilla vidraram-se de lágrimas, mas ela não as deixou cair. — Era muito corajosa — disse ela. — Tornou as coisas muito mais difíceis. — Amavam-se os dois então, apesar de tudo? — Suponho que sim. Um tipo de amor, pelo menos. Mas como é que se pode viver com um casamento daqueles? Tantos anos a viver com um homem que andava a engatar rapazes. Ele não era um verdadeiro marido. Mas ela resignou-se. Segredo e silêncio, com custos terríveis para ela mesma. Para todos nós. Porque ele nunca poderia libertar-se da culpa e ela não era capaz de contemplar uma vida sem ele. E eu tive de me desenvencilhar no meio da infelicidade deles. — Endireitou-se e debruçou-se, olhando para os pés. — Não admira que não entenda o amor e as relações. — E o Anthony? — Às tantas anda em safári. Rodeado de mulheres a rasgarem a lona para se enfiarem na tenda dele à noite, enquanto ele lhes cobra milhares de dólares pelo privilégio de fazerem figuras tristes. — Camilla soltou uma gargalhada forçada e estridente. — Como eu. — Não, tu não — disse Sarah. — Ele é um idiota de primeira. Um adolescente disfarçado de homem que ainda não ultrapassou a fase da estroinice. Ainda não amadureceu. Mas acho que te ama embora não saiba. Ou não saiba como se ama outra pessoa. — Está apaixonado pela vida dele exactamente como ela é e não vê razão nenhuma para a mudar. Tinha começado a pensar que ele estava pronto para assumir um compromisso, mas enganei-me redondamente. — Pediu-te em casamento. Foi um compromisso, não foi? — Não passou de um gesto romântico sem valor nenhum, Sarah. Tu viste-o com essa galdéria da Zahra. E ainda por cima depois do que eu fiz por ela! — Um dia destes, ele vai acordar e perceber como é estúpido. Depois há-de aparecer aqui de joelhos a implorar-te perdão. — Por amor de Deus, Sarah, és uma optimista incorrigível! Uma Pollyanna1 dos tempos modernos. Não. Não vai nada. E, além disso, nunca mais confio nele. Confiança não é coisa que
abunde na minha vida e por isso tornou-se importante para mim. Confiança, amor e paz e essa treta toda. É o que me interessa hoje em dia. — Fez um gesto com o charro no ar. — Anda, experimenta isto. Faz-te bem. Hás-de dormir como uma santa. — Oh, porque não? Cá vai. — Sarah tirou uma fumaça do esguio cigarro de papel fino e seco e fiapos desgrenhados de tabaco, inalando cautelosamente o fumo. Tirou outra, recostando-se com a cabeça contra as almofadas cheias. Camilla tinha almofadas e cadeiras fofas e confortáveis. — Já não durmo bem — disse ela. — Estou como tu. Os pesadelos voltaram desde o aniversário do Piet. Imagino que hão-de passar outra vez, mas entretanto tenho de ir lidando com um dia de cada vez. Não posso fazer mais nada. Ninguém pode. Quanto à confiança… bem, confio em ti. E na Hannah e no Lars. E nos Briggs. Tornaram-se verdadeiros amigos e damo-nos lindamente apesar de vivermos tão próximos o tempo todo. Trabalhamos juntos, vivemos juntos naquele pequeno acampamento e quase sempre comemos e bebemos juntos. Só os três. Mas funciona porque temos um objectivo comum. — É um sítio tão isolado — disse Camilla. — Não é mais penoso assim? Sarah pensou em Dan e Allie e na sólida fundação de amor e companheirismo que os mantinha unidos. — Às vezes a relação deles faz-me sentir só, porque se têm um ao outro — disse ela. — Mas não consigo imaginar-me a partilhar a minha vida com ninguém. O Piet morreu e tenho de aceitar isso e aprender a viver sem ele. É a única maneira de resistir. E adoro o meu trabalho. Nesse aspecto tenho tido sorte. — Estava a começar a sentir os braços e as pernas pesados e letárgicos, uma sensação de abatimento que era agradável. — Não estamos isolados em Buffalo Springs. Recebemos montes de visitantes. — Como quem? — Cientistas, pessoas do Departamento da Vida Selvagem e do Lodge de Samburu. — Sarah reclinou a cabeça embora não soubesse muito bem se ainda a tinha presa ao pescoço. Parecia-lhe estar a flutuar centímetros acima do resto do corpo mas sentia uma certa paz de espírito e contentamento por estar a falar abertamente. — Estamos com o George e a Joy Adamson e com guardas fantásticos, como o Peter Jenkins e o Bill Woodley que mantêm as reservas em funcionamento contra ventos e marés. São uma verdadeira inspiração, acredita. — Sarah tornou-se mais efusiva. — E de tempos a tempos recebemos a visita de uma estrela de cinema que anda em safári e dá um cheque gordo ao Dan para o nosso trabalho de investigação. São os caçadores e os guias de safári que os levam lá. — Calou-se, apercebendo-se de que estava a entrar em terreno minado. — Quem me dera que tivesses podido passar uns dias comigo. Queria imenso que ficasses a conhecer aquilo. — Fazia tenções de ir em Janeiro. Não adiantou de nada fazer planos. — E agora estou ocupada com o livro, o que é bom. — É melhor que bom — disse Camilla. — Quando é que te vais encontrar com o teu jornalista? — Tenho de lhe ligar de manhã — disse Sarah, franzindo a testa. — Não sei porque é que as pessoas estão sempre a chamar-lhe o «meu jornalista». É uma relação de curta duração, puramente profissional. Ele contactou-me porque gostou das minhas fotografias. Escreve bem, tem contactos úteis e estamos a colaborar num livro. É tudo. Enquanto falava, viu Rabindrah a carregar com ela no corredor da casa de Anthony. O charro estava a ter sobre ela o efeito de um soro da verdade e Sarah continuou, descrevendo a desastrosa
noite em Nairobi, rindo a bom rir com Camilla, enquanto relatava o episódio da bebedeira e a expressão de espanto na cara de Joshua ao ser levada para a casa de banho de Anthony. — Devo admitir que o Rabindrah foi um cavalheiro mais do que manda o sentido do dever. E bondoso também. No dia seguinte, fui-me abaixo e acabei a contar-lhe a história toda embora imagine que ele já a conhecia, sendo jornalista. O tio deve ter-me achado esquisita quando cheguei à oficina para a entrega do Land Rover. Até estremeço só de pensar. Tinha o nariz vermelho, os olhos papudos e, como se não bastasse, uma ressaca horrível. — Começou a rir. — O Rabindrah chegou mesmo a emprestar-me uns óculos de sol que me teriam custado três meses de salário. Preocupa-se imenso com a aparência. Acho-o um tanto vaidoso. Tirou outra fumaça do charro, mais acostumada agora a inalar profundamente o fumo. Ao expelilo num fio lento, sentiu-se como se estivesse a levitar. Desta perspectiva superior, via coisas em que nunca tinha reparado antes. — No mês passado, quando ele voltou para o acampamento, devo dizer que gostei de o ver — disse ela. — É que não faz parte das conturbações do passado. Tentei esconder tudo isso, não deixar que ninguém compreendesse o que me ia cá dentro. Mas agora ele conhece a minha história, sabe tudo sobre mim. Não há, por isso, razão para continuar a contornar o problema. Sinto-me à vontade com ele. — Então é por isso que estás em Londres. Porque ele está cá. — Camilla lançou-lhe um olhar maroto. — Não, não. — Sarah aprumou-se num gesto de protesto e deixou-se cair novamente para trás. Abanou a cabeça para desanuviar a névoa que parecia estar a envolver-lhe o cérebro. Camilla estava a observá-la com os olhos semicerrados. — Não, vim encontrar-me com o editor. Discutir a paginação do livro e como as minhas fotos devem ser usadas. E vou ao casamento do Tim, apesar de não me apetecer nada ir, porque não entendo sinceramente porque é que ele se quer casar com ela. — A desoladora Deirdre. Também não entendo. Devíamos ter-nos esforçado mais para a espantar no princípio — disse Camilla. — Devia ter sido eu a apaixonar-me por ele, doce e querido Timmy. — Fazes-me um favor, Camilla? — Sarah sentou-se direita. — Vens comigo à Irlanda? Porque vai ser difícil, lidar com a compaixão, ver o constrangimento das pessoas que sabem o que me aconteceu e não sabem como reagir. Os meus pais vão provavelmente tentar convencer-me a ficar, o que também vai ser penoso. Dava-me jeito algum apoio moral. — Está bem, vou contigo. — Camilla não hesitou. — Para te apoiar. E pode ser que salvemos o Timmy. Que o convençamos a fugir antes com a empregada do bar local. Ou talvez o seduza eu. Por uma boa causa. — Ainda bem que pudemos passar este tempo juntas — disse Sarah. — Não respondeste às nossas cartas e a Hannah está aborrecida com isso. Não devias cortar relações com os teus amigos sempre que as coisas correm mal. Fugir e nunca nos dizer como te sentes. — Eu não fugi — objectou Camilla. — A oficina vai reabrir e eu não vou deixar ninguém ficar mal. Só preciso de algum tempo para esquecer o que aconteceu. O que podia ter acontecido. Sarah queria dizer mais mas as suas pálpebras ameaçavam fechar-se e a cabeça tinha sido definitivamente separada do resto do seu corpo. — Hoje ficamos por aqui — declarou Camilla, numa voz lânguida. — Havias de te ver. Estás pedrada e eu também. Vamos deitar-nos.
O encontro de Sarah com o editor era às duas horas. De manhã, sentou-se na beira da cama, um pouco atordoada, olhando em volta à procura de qualquer coisa de apropriado para vestir. Queria causar boa impressão. Camilla levantou os olhos do jornal da manhã e soltou uma exclamação de horror. Depois pegou no telefone e fez várias chamadas. — Cabeleireiro, manicura, calças novas e um casaco sobre uma camisa de seda — disse ela. — Tenho a camisa perfeita para ti. Nunca a usei. E sei onde se arranja o resto. Encontramo-nos no Fenwicks por volta do meio-dia. E, já agora, o Edward convidou-nos para jantar logo, se estiveres disponível. Achas que Mr. Singh gostaria de nos fazer companhia? — O Edward? Pensei que o Edward tinha passado à história. — De vez em quando encontramo-nos. — Camilla falou num tom casual. — Mas não estamos… eu não estou… Não interessa, dizes-me depois. Sarah saiu do luxo do salão de cabeleireiro para ir ter com Camilla e irem fazer compras indispensáveis mas, felizmente, rápidas. Nunca se tinha encontrado com um editor e não fazia ideia do que se esperava dela. Uma selecção de novas fotografias, diapositivos e apontamentos tornavam o portefólio dela desajeitado e demasiado pesado para transportar. A alça do ombro estava constantemente a deslizar, obrigando-a a parar com frequência e a pousar os outros embrulhos para a ajeitar. Quando chegou ao escritório da editora, estava afogueada e cansada, o cabelo tinha frisado no ar húmido e a roupa estava ligeiramente amarrotada. Não se sentia minimamente a profissional calma que tencionava aparentar. Rabindrah estava à espera na recepção. Exibia um ar urbano e elegante. Momentos depois, John Sinclair emergiu para os cumprimentar e pô-la inteiramente à vontade. Tinha publicado vários livros sobre a fauna e a flora africanas e a qualidade da impressão era excelente. Pacientemente, explicou o processo e referiu a quantidade de texto e imagens que planeava usar, estudando as fotos de Sarah com solene atenção. Mais de uma hora mais tarde, saíram do gabinete dele, cada um deles com uma cópia do contrato de publicação. — Provavelmente querem dá-lo a examinar a um advogado ou um agente — tinha dito John. — Para terem a certeza de que está tudo bem do vosso ponto de vista. Vamos pagar um adiantamento para dividirem entre os dois conforme entenderem. Não é muito grande porque se trata do vosso primeiro livro, mas é por conta de direitos de autor futuros e imagino que, oportunamente, hão-de ganhar mais do dobro do adiantamento. Terão de nos dar instruções sobre como e onde querem que o dinheiro seja pago. Vai demorar mais de um ano até o livro aparecer nos escaparates, compreendem? Primeiro há o processo de selecção de imagens e a preparação do texto para edição. Depois faremos as chapas fotográficas, finalizaremos a paginação e o design, tomaremos decisões sobre a sobrecapa e por fim vai para revisão final e impressão. Vou controlar o processo pessoalmente, em colaboração convosco, e estou certo de que temos um grande sucesso entre mãos. A altura é ideal, com este barulho todo em torno dos Adamson e do filme sobre os leões deles e tudo isso. Parabéns aos dois. — Acho que devemos ceder à velha tradição inglesa do chá da tarde — sugeriu Rabindrah quando deixaram a editora. — A Brown’s fica mesmo ao dobrar da esquina. Não é todos os dias que se assina um contrato de publicação. — Não conheço aqui nenhum advogado — disse Sarah. — Mas talvez a Camilla conheça. — O meu pai é advogado — disse Rabindrah. — Podemos pedir-lhe que analise o contrato. Se
não tiver nenhuma objecção. — Ficou satisfeito quando ela indicou que não. Tinha-lhe ocorrido que ela podia não gostar da ideia de um advogado indiano, além do mais seu familiar. — Está com um ar diferente. É a sua imagem elegante de Londres? — Suponho que se pode dizer que sim — disse ela, rindo. — Estou em casa da Camilla e ela tenta sempre dar-me um ar mais respeitável. Devidamente apresentada, como ela diz. É uma coisa que faz desde os nossos tempos de escola. — Os resultados são excelentes — disse ele, ficando divertido com o rubor instantâneo que lhe subiu às faces. — Que é que a Camilla vai fazer agora? — Acho que ainda não decidiu. — É corajosa mas um tanto louca, se decidir recomeçar no Quénia. Teve mais alguma notícia da polícia? — Viu as mãos dela retesarem-se nos braços da cadeira. — Chá indiano ou chinês? Sou capaz de comer dois desses scones com natas espessas e compota. Muito civilizados, os ingleses, quando estão em casa a tomar chá em lugar de andarem nas colónias a suprimir selvagens de pele escura. — Está ocupado logo à noite? — perguntou Sarah quando acabaram o chá. — A Camilla convidou-nos para jantar com ela e com um amigo. — Gostava de a ver. E amanhã podemos visitar o meu pai. Vou dar-lhe o contrato hoje e podemos ir ao consultório dele ou talvez lá a casa. Não fica longe e os meus pais gostariam muito de a conhecer. — Está hospedado em casa deles? — Não, prefiro ser visita. A minha mãe é muito ortodoxa, muito religiosa. E eu não tenho seguido a tradição sique. Por isso, quando cá estou, prefiro ter a liberdade de fazer o que me apetece sem provocar discussões familiares. — O seu pai praticou advocacia no Quénia? — Praticou. Era sócio principal de uma firma de advogados em Nairobi. Mas convenceu-se de que a comunidade asiática ia ser expropriada e expulsa depois da Uhuru. Que ia ficar sem nada e que a conta bancária dele ia ser congelada. Assim, partiu antes do grande êxodo e trouxe a família para Inglaterra. Agora trabalha numa firma de advogados em Southwark. — Que é que o Rabindrah sentiu com a mudança? — Já tinha sido mandado para a universidade aqui e estava hospedado em casa de familiares. Quando os meus pais chegaram, trouxeram as minhas duas irmãs e a primeira casa era muito pequena. Acabei por nunca viver com eles. — E as suas irmãs? — Agora estão as duas casadas. — Os seus pais não sentem saudades do Quénia? — O meu pai gosta do que faz embora tenha uma posição inferior à que tinha em Nairobi. Muitos dos amigos deles também se fixaram aqui e agora conseguiram comprar uma casa. Acho que se contentaram com isso, apesar de terem um estilo de vida modesto e a minha mãe não ter criados aqui. — Encolheu os ombros. — As minhas irmãs casaram-se com bons maridos siques, que seguem as regras e vão regularmente ao gurdwara. Não são rebeldes nem impertinentes como eu. Acho que para a minha família é quanto basta. — Mas para si não? — Os indianos que se radicaram aqui perderam qualquer coisa. As raízes, suponho. Instalados na
Grã-Bretanha, a viver no seu enclave, rodeados de outros asiáticos que vieram de outros lugares. Mas talvez não tenham raízes. Todos falam sobre a Índia como se fosse a pátria deles e o Quénia como uma espécie de escala a caminho de lá. Mas o meu pai nasceu em Nairobi e só visitou a Índia duas vezes. Achou que era um país horrível e sujo e não descansou enquanto não se veio embora. O meu avô chegou ao Quénia em 1898 e não tardou a mandar vir a mulher e os irmãos e as mulheres deles também. — Mais ou menos como os avós da Hannah — disse Sarah. — Sim, mas acho que a comparação não lhe agradaria — disse ele ironicamente. — Um dia destes há-de ficar a conhecê-la — disse Sarah. — E depois vai ver que ela não é tão preconceituosa como pensa. — Talvez. A Índia nunca foi a pátria dos meus pais. E a Inglaterra? Aqui somos como refugiados, cidadãos de segunda classe a quem é dado, de má vontade, o direito de ficar. Acho que o meu pai cometeu um erro, mas nunca o há-de admitir. E a minha mãe vai para onde ele for. Tenta tirar o melhor partido das coisas, onde quer que estejam, como a boa esposa sique que quer que eu arranje. * Pouco depois das sete, Sarah voltou ao apartamento. Camilla estava sentada no sofá ao lado de um homem alto, na casa dos quarenta, que se levantou e estendeu a mão. — És a famosa Sarah. — O sorriso iluminou-lhe os olhos. — Li sobre ti no Telegraph. Sou o Edward Carradine. Acho que estás de parabéns, pelo que ouvi. É uma proeza e tanto conseguir publicar um livro. Sarah simpatizou imediatamente com ele. Achou que ele tinha um rosto agradável embora bastante afilado graças à testa alta. Começavam a aparecer-lhe algumas brancas nas têmporas. Possuía uma boa postura, como se tivesse a sua vida sob firme controlo. Quando sorria, os seus olhos cor de avelã eram calorosos, embora as suas feições denotassem algo de felino. O seu afecto por Camilla era evidente. Ouvia atentamente quando ela falava e guiou-a para o táxi e para o restaurante, colocando protectoramente a mão nas costas dela. Interessante, pensou Sarah. Mas seria alguma vez capaz de desalojar Anthony, por mais imperfeito que ele fosse, do coração de Camilla? O restaurante era elegante e ruidoso e estava superlotado. Sarah avistou Rabindrah em pé no bar. Várias pessoas acenaram a Camilla enquanto outras a observavam disfarçadamente, enquanto ela avançava graciosamente entre os comensais e os empregados azafamados. Rabindrah reparou que lhes tinha sido dada a melhor mesa da casa. Edward pediu o vinho. — Saúde — disse ele. — Preciso sempre desta primeira bebida depois de atravessar um destes lugares na moda em que a Camilla é o centro das atenções. — E tu és muito modesto e reservado, não? — Camilla levantou as sobrancelhas numa expressão ligeiramente trocista. — Pois sou — disse ele, sorrindo. — Não posso cumprimentar aqui nenhuma pessoa que não me acene primeiro. Estão várias mulheres nesta sala a fingir que não me conhecem, para não darem a entender a ninguém que fizeram uma cirurgia plástica à cara. Comportam-se como se nos tivéssemos encontrado nalguma caverna secreta e clandestina onde eu as corto e suturo sem que
ninguém alguma vez descubra. E os homens são ainda mais recatados. — Não me digas que os homens também fazem liftings? — disse Sarah, incrédula. — Os homens não têm problema nenhum em fazer todo o tipo de liftings. Especialmente as celebridades do mundo do espectáculo que já passaram a primavera da vida. Então, Sarah, que tal este excelente vinho leve que estamos a beber? É de um pequeno vinhedo na Bouche du Rhône. Estou a ver se convenço a Camilla a acompanhar-me ao Sul de França este Verão para conhecer a região, que é um encanto. Ver que existe vida fora das casas de alta-costura de Paris e do frenesim de Manhattan. — O vinho é delicioso mas um copo basta — disse Sarah, lançando um olhar de esguelha a Rabindrah. — Não quero deixar ficar mal a companhia. Conheces Paris e Manhattan? — Conheço ambos bastante bem — disse ele. — Aliás, vivi em Nova Iorque durante algum tempo, a aperfeiçoar o meu ofício nas caras das senhoras de uma certa idade de Park Avenue. É uma cidade fantástica. — Nova Iorque foi amor à primeira vista — disse Camilla. — Adorei tudo desde o minuto em que saí do avião. Londres em comparação é horrivelmente lenta. Mas, apesar de invocar que a conhece bem, o Edward nunca subiu ao topo do Empire State Building. — Camilla sorriu-lhe. — É a vista mais espectacular do mundo. Não me importava de lá viver se… — Podias fazer isso durante parte do ano — disse Edward. — A tua empresa americana está a correr bem. Ainda tenho um pequeno apartamento com vista sobre o Central Park. Queres melhor posição? — A posição em que estou agora é perfeita, obrigada — disse Camilla. — E a minha agenda está muito, muito preenchida. A conversa virou-se para a visita de Rabindrah à Tanzânia, onde tinha entrevistado Jane Goodall no seu acampamento de investigação em Gombe. — Fiquei bem impressionado com ela. Com todo o dispositivo, aliás. E os chimpanzés são extraordinários, se bem que seja perturbante observar criaturas tão parecidas connosco. Houve recentemente um surto de poliomielite que se propagou a partir de algumas das aldeias perto da reserva. A Jane lançou imediatamente um programa de vacinas no centro de investigação. Era uma altura perigosa para os cientistas e para os animais. — Também imunizaram os chimpanzés? — Camilla estava espantada. — Claro. Mas não foi uma operação simples porque, se os animais dominantes tivessem pegado em mais do que a dose deles de bananas injectadas com a vacina, podiam ter mesmo contraído poliomielite em lugar de ficarem imunes. — Os olhos de Rabindrah ensombraram-se com mágoa. — Cerca de nove contraíram o vírus. Quatro morreram, dois dos quais tiveram de ser abatidos, o que foi traumático para a equipa. Criam laços muito fortes com eles, como a Sarah pode confirmar. — E os outros? — perguntou Edward. — Cinco ficaram paralisados das pernas e foi espantoso ver a rapidez com que aprenderam novas competências para compensar essa incapacidade. Por muito trágico que o surto tenha sido, revelou-se valioso para os cientistas observarem como os chimpanzés lidavam com uma crise de saúde. — Estás a especializar-te em entrevistar mulheres ligeiramente loucas que vivem com animais selvagens? — A pergunta de Camilla era bem-humorada. — Tenho todo o gosto em entrevistar toda e qualquer mulher ligeiramente louca — respondeu
Rabindrah. — Quer-me parecer que têm mais obstáculos a ultrapassar, tanto fisicamente como em termos da percepção que as outras pessoas têm delas, particularmente em África. Entrevistei a Mary Leakey há pouco tempo e sim, espero falar com outras. — Eu não sou louca — disse Sarah a rir. — Só um bocadinho — disse Rabindrah. Camilla captou uma leve inflexão familiar na voz dele. Sente-se atraído por ela, pensou. Ela não tem consciência e talvez ele também não tenha. Mas está a nascer. Pediram a sobremesa e a conversa passou para o trabalho de Edward e as suas visitas a países do Terceiro Mundo, onde tratava crianças queimadas ou de algum modo desfiguradas. — Já estive várias vezes no Quénia — disse ele. — A mãe da Camilla angariava fundos para uma instituição de caridade que pagava as despesas de hospital e os medicamentos dos meus doentes. Mas já há algum tempo que lá não vou. — Devias voltar — disse Sarah. — Tratar dos doentes e fazer um safári. Visita-nos em Buffalo Springs e aproveita para ires também a Samburu. É uma zona magnífica, sobretudo se acampares na região do rio Uaso Nyiro. — Há pessoas a precisar de ajuda em todo o mundo — interrompeu Camilla num tom brusco. — Acho que devias espalhar mais a tua generosidade, Edward. Já foste ao Quénia seis vezes. — Ela tem razão — disse Edward suavemente. — Mais para o fim do ano, vou fazer algumas reconstituições faciais nas Baamas. Vamos lá ficar quinze dias. — Sorriu a Sarah. — Temos amigos comuns que têm uma casa estupenda na praia e uma velha chalupa em que podemos saltar de ilha em ilha. Vamos lá ficar hospedados. Camilla estava a olhar fixamente para o prato. Sarah retraiu-se de continuar a discutir safáris e viagens. Que é que lhe tinha dado para falar de tendas em Samburu, onde a relação apaixonada de Camilla e Anthony tinha começado? O vinho devia ter-lhe soltado a língua. Mais uma vez pensou qual seria a situação com Edward. Camilla tinha dito que estava com ele de vez em quando. Mas ali estava ele, a falar em levá-la a França e a Nova Iorque e às Baamas. Era evidente que estava convencido de que ela tinha vindo para ficar. Devia ser vinte anos mais velho que Camilla mas era encantador, cheio de energia e visivelmente um homem de sucesso. Podia ser uma relação melhor para ela a longo prazo, uma relação que lhe oferecia o tipo de confiança e segurança de que precisava. E, no entanto, ela tinha falado dele antes com uma certa indiferença. Tinha sido quase desdenhosa. — Tive imenso gosto em jantar contigo, Sarah — disse Edward mais tarde. Rabindrah tinha-se afastado para fazer um telefonema e Camilla estava a voltar da casa de banho, parando aqui e ali para falar com pessoas conhecidas. — És uma pessoa extremamente corajosa e sei a que ponto és importante na vida da Camilla. Amigas como tu são muito raras. — Também gostei muito de te conhecer — disse Sarah. — Vejo que tens um grande afecto por ela. — Tenho. E quem sabe, pode ser que ela acabe por se habituar a mim e queira ficar comigo. — Estás a dizer que gostavas de te casar com ela? — Sarah arrependeu-se imediatamente da sua frontalidade. Não era nada com ela. Ficou consternada ao ver o rosto de Edward alterar-se instantaneamente. Ele desviou a cabeça, fazendo sinal ao empregado para que trouxesse a conta. Quando saíram para a rua, tinha começado a chover e ele mandou-as entrar novamente enquanto organizava os táxis com Rabindrah.
— Qual é o vosso programa para amanhã? — perguntou Camilla enquanto esperavam à porta. — Temos outra sessão com a editora. Há uma reunião de manhã com o director de arte e depois o Rabindrah quer apresentar-me o pai. — Viu Camilla levantar as sobrancelhas e apressou-se a explicar. — Mr. Singh é advogado e vai analisar o nosso contrato antes de o assinarmos. Olha, o Edward arranjou um táxi. Boa-noite, Rabindrah. Até amanhã. De novo no apartamento, Sarah pôs duas chávenas de café na mesa. — O Edward está a tornar-se uma companhia permanente? — perguntou. — Há alguma coisa permanente? — Camilla atirou a carteira para o sofá e sentou-se. — Posso ser atropelada por um autocarro amanhã. Ele pode escorregar numa casca de banana e partir o pescoço. Permanente não tem significado nenhum. — Pois eu diria que ele está permanentemente apaixonado por ti — disse Sarah. — Por isso, podes começar por me dizer o que sentes a esse respeito. E não me venhas com a conversa brilhante que reservas para o resto do mundo. Quero conhecer a verdadeira história. — Não vou deixar o Anthony destruir a minha vida. — Embora tivesse falado com firmeza, Camilla parecia delicada, quase frágil. — Prometi a mim mesma que nunca mais o deixo ferir-me. Encontrei o Edward pouco depois de voltar. Era inevitável… temos amigos comuns. Agora estamos ocasionalmente juntos, jantamos ou vamos a um concerto ou ao cinema. Gosto dele. Sinto-me em segurança com ele e ele faz-me rir. E também zomba de mim. Parece compreender aquilo por que passei e o que senti nesses momentos. Mas é um viciado no trabalho. Muitas vezes está ocupado à noite e até aos fins-de-semana e também viaja muito. Vemo-nos quando é conveniente e eu tenho montes de tempo para mim. Chega-me perfeitamente. — Mas chegar-lhe-á a ele? — Sarah pressionou-a. — Ele não quer casar contigo? — Não é… bem, a verdade é que é casado. Oh, deixa-te disso, Sarah. — Camilla ficou exasperada com a expressão de espanto da amiga. — Estamos em 1967, por amor de Deus, e estamos em Londres. A mulher sofreu uma hemorragia cerebral grave há algum tempo. Está viva, mas é pouco mais que um vegetal. — Que horror — disse Sarah. — Têm filhos? — Já estavam separados há algum tempo quando aconteceu, porque ela teve uma ligação e um filho de outro homem. Mas o Edward nunca se divorciou dela. Adiante, hoje em dia as pessoas não precisam de se casar. Muitos dos nossos amigos estão a viver juntos. Nem toda a gente pensa que vai arder no inferno se não tiver uma certidão de casamento. Além disso, não faço ideia dos meus planos a longo prazo. Só voltei há poucas semanas e tornei as minhas condições muito claras. Ele é um homem sofisticado que sabe como as coisas são. — Levantou-se. — São horas de ir para a cama. Amanhã de manhã tenho uma sessão muito cedo, já cá não estou quando te levantares. E estou ocupada o resto do dia. Mas consegui alterar os meus outros compromissos e podemos partir para a Irlanda depois de amanhã. Mesmo a tempo de salvar o Timmy. — Não imaginas como te estou grata por ires comigo — disse Sarah. — E desculpa… não falo mais no Edward. Não é nada comigo. — Não há mais nada a dizer sobre esse assunto. A propósito, os teus pais mandaram-me um convite para o casamento. Sou uma convidada legítima, se bem que não a primeira escolha da Deirdre, imagino. — Deteve-se à porta do quarto. — Porque é que ele se vai casar com ela, na tua opinião? É tão fabuloso, com aquela expressão inocente e os pequenos óculos redondos de metal e aquela figura indefesa e desalinhada. As enfermeiras e as doentes deviam derreter-se com ele.
— E derretiam e ainda não percebi como aconteceu — disse Sarah. — Talvez se sinta atraído pela necessidade que ela tem dele e provavelmente ela é o tipo de rapariga que nunca há-de olhar para outro homem. Perguntei-lhe se a amava quando eles ficaram noivos. Só me disse que ela era generosa e boa, mas nunca mencionou a palavra amor. Tomou uma atitude extremamente defensiva. Nunca me pareceram um casal de noivos. Não vi a mínima excitação ou paixão entre eles. Mas tenho a certeza de que vão ser ditosamente felizes. — Não foi capaz de disfarçar o registo de ciúme e infelicidade na voz e Camilla passou-lhe um braço pelos ombros. — Não há-de ser tão mau como pensas — disse ela. — Vamos enfrentar tudo juntas. Agora preciso de dormir, senão estou um farrapo de manhã.
— Liguei ao meu pai — disse Rabindrah quando terminou a reunião preliminar com o director de arte. — Estão à nossa espera em casa para almoçar. Atravessaram o rio em direcção a Southwark, o maior enclave asiático da cidade. Por todo o lado, havia mulheres com casacos apertados sobre saris coloridos. Muitos dos homens usavam turbante ou estavam vestidos com as túnicas salwar kameez paquistanesas, com chapéus de astracã e longos xailes. O táxi deixou-os à porta de uma bonita casa geminada, numa tranquila rua lateral. Uma mulher com o traje punjabi tradicional, uma túnica pelos joelhos com rachas laterais sobre calças largas e um lenço bordado pelos ombros, abriu a porta. Rabindrah cumprimentou-a respeitosamente mas com evidente amor e fez as apresentações. Nand Kaur Singh tinha cinquenta e poucos anos, era de constituição franzina, com olhos profundos e escuros num rosto afilado. O seu cabelo comprido era negro, ainda sem traços de brancas. Usava-o numa trança nas costas, com fios coloridos entrelaçados. Tinha um ar exótico e elegante. Uma autêntica beldade, pensou Sarah. Era fácil de ver onde Rabindrah tinha ido buscar a boa figura e o estilo. — Entrem, por favor. Seja bem-vinda a nossa casa, Miss Mackay. Sarah não sabia bem se devia pedir para ser tratada pelo primeiro nome. Ao entrarem para o vestíbulo, foi assaltada pelo aroma a caril e especiarias que emanava da cozinha. Nand Kaur conduziu-os à sala de estar e indicou duas cadeiras de braços. A sua voz era baixa e possuía a entoação melodiosa de que Sarah sempre tinha gostado nos indianos que conhecia. — Rabindrah, serve uma bebida à nossa convidada, por favor — disse ela. — Há sumo de laranja ou Coca-Cola. Sarah passou os olhos pela sala. A mobília era escura e pesada e estava adornada com coxins de borlas bordados a fio de ouro. As cortinas de veludo estavam entreabertas, conferindo à sala uma qualidade sombria. O chão estava coberto por um belo tapete, provavelmente persa. Nas paredes havia uma série do que Sarah julgou serem panfletos religiosos em molduras douradas, rodeados de paisagens coloridas. Todos os quadros estavam pendurados muito alto e as cadeiras na sala estavam cuidadosamente dispostas à volta das paredes. Fez-lhe lembrar uma sala de espera. — Por favor, estejam à vontade. O meu marido não deve demorar muito — disse Nand Kaur. Sentou-se defronte deles, com os pés juntos e as mãos perfeitamente cruzadas sobre o regaço. Lembrou a Sarah a maneira como as freiras a tinham ensinado a sentar-se quando era criança. — Lamento muito que as irmãs do Rabindrah não tenham podido vir — disse ela. — Claro, ele avisou-nos muito em cima da hora. Mas temos muito gosto na sua visita. Conhece bem Londres,
Miss Mackay? — Nem por isso — disse Sarah. — Como frequentei lá a universidade, conheço Dublin melhor. Os meus pais são irlandeses. Fez-se um silêncio constrangedor e depois ouviram a porta da rua a abrir. — Deve ser o meu marido — disse Nand Kaur. Levantou-se e, escusando-se, foi ao encontro dele no vestíbulo. — Acha que a sua mãe se importa de me tratar por Sarah? — perguntou ela, virando-se para Rabindrah. — É que me sentia mais à vontade assim. Miss Mackay faz-me sentir ligeiramente nervosa. Rabindrah riu-se. — Acho que nunca a vi intimidada com nada, nem ao de leve. Rinocerontes, búfalos ao ataque e manadas de elefantes… passeia-se entre eles sem o mais pequeno sinal de inquietação. Mas a minha mãezinha põe-na nervosa! Jasmer Singh era alto como o filho. Como Rabindrah, estava vestido com um fato antracite, mas usava o turbante e a barba tradicionais do seu povo. Cumprimentou Sarah formalmente e cingiu a conversa inicial às cláusulas do contrato de publicação, fazendo várias sugestões úteis. Mas, quando Nand Kaur os chamou para almoçar, o ambiente descomprimiu diante de um caril vegetariano fortemente aromático. — Sentimos um grande orgulho por estar a preparar este livro com o meu filho — disse Jasmer. — Será uma coisa muito boa para os dois, em termos profissionais. E bom para o Quénia também, suponho, com todos os problemas actuais. Mas o Rabindrah ainda não nos disse como a conheceu. — Ele não se abre muito connosco, sabe? — disse Nand Kaur com um sorriso nos olhos. — Só tenho notícias dele pela minha cunhada. Este rapaz nunca escreve para casa. Sarah riu-se. — Acho que os meus pais se queixam do mesmo — disse ela. — Mas eu explico como nos conhecemos. Já agora, a ideia do livro foi dele. Descreveu o primeiro encontro entre ambos e continuou, contando episódios divertidos sobre os primeiros tempos de Rabindrah no mato em Buffalo Springs. — Acho que ele não estava preparado para algumas das coisas que aconteceram lá. Como meterse debaixo do carro para mudar um pneu e ver uma cobra a avançar para ele. Bateu com a cabeça ao tentar escapar e nós partimo-nos a rir, porque era uma nyoka completamente inofensiva. E uma noite encontrou um daimão debaixo da cama, a guinchar e a tremer de medo. Tinha deixado a porta do quarto aberta e o bicho entrou e ficou lá preso. — Agrada-me ver que ele adoptou uma causa, Miss Mackay — disse Jasmer. — Hoje em dia, há muitos jovens que são muito amigos de dinheiro e da busca de prazeres. — Olhou severamente para o filho. — Mas deves ter cuidado com as questões a que decides dar destaque. — Nós, os indianos, temos tanto direito a fazer ouvir a nossa voz como os outros cidadãos — disse Rabindrah, claramente irritado. — Não me vou deixar intimidar para escrever coisas sem interesse por causa de um qualquer político africano corrupto. Sou tão queniano como qualquer um deles. Nasci no mesmo país e tu também nasceste lá. — És um optimista, meu filho — disse Jasmer. — Nós nunca seremos como eles nem iguais a eles. Somos indianos e eles são negros. — Somos todos quenianos — disse Rabindrah obstinadamente. — Temos ascendência indiana mas somos quenianos de gema. O coração de Sarah apertou-se, ao recordar o seu tempo de escola e Jan van der Beer a presidir à mesa do jantar em Langani, advertindo Piet exactamente nos mesmos termos. Parecia tratar-se de
uma velha discussão em casa dos Singh. Pensou se seria frequente o choque de opiniões e aspirações. Jasmer Singh era encantador e culto mas claramente um conservador, ao passo que o filho defendia ideias mais liberais. Rabindrah apressou-se a desviar a conversa para o donativo de Indar do Land Rover e Sarah percebeu que ele era exímio em esquivar-se a temas desconfortáveis. Mas não tardou que outro problema causasse nova divergência entre eles. — Quando acabares de escrever esse livro, talvez queiras pensar em voltar para Londres — disse Jasmer. — Já conseguiste publicar vários artigos no Telegraph e o teu tio em Manchester também me mandou os teus artigos no Manchester Guardian. A tua estadia no Quénia deu-te a oportunidade de ganhar nome, Rabindrah, e podes aproveitá-lo para procurar aqui um lugar permanente. Numa sociedade segura. — Não quero viver em Inglaterra, exactamente como não queria há um ano — retorquiu Rabindrah. — E agora estou seriamente interessado no tópico da vida selvagem e no que os Briggs e a Sarah estão a fazer no Norte. — Mas escreveste sobre Miss Mackay e estão a publicar um livro juntos — disse Nand Kaur. — Tens de encontrar brevemente um tema novo, senão voltas a ficar confinado a um único assunto sobre que escrever. Era o que te desagradava em Manchester, não era? — Não é a mesma coisa — objectou Rabindrah. — Eu sei que o nosso filho lhe está grato — disse Jasmer, fixando directamente Sarah. — Mas estou certo de que compreende a importância de evoluir, de manter uma perspectiva profissional aberta. — Espero que o nosso livro dê uma oportunidade ao Rabindrah de escolher um caminho — disse ela, sentindo uma tendência latente na conversa que não compreendia. — É um bom escritor e no fim é isso que conta. Nand Kaur sorriu e manteve-se calada até ao fim da refeição, cumulando-os de comida em abundância e refrigerantes. Depois do almoço, foi servido chá doce com leite acompanhado de pequenos doces que eram irresistíveis. A pedido de Rabindrah, Sarah pegou no portefólio e espalharam as suas fotografias sobre uma mesa de apoio baixa. Ela ficou satisfeita com a admiração demonstrada pelos pais dele e o resto do tempo na companhia deles foi relaxado e agradável. Por fim, chegou a hora de Jasmer voltar ao escritório. Apertou a mão a Sarah energicamente, mas os seus olhos transbordavam de orgulho ao abraçar o filho. — Desejo-lhe muitas felicidades, Miss Mackay — disse Nand Kaur. — Talvez voltemos a encontrar-nos um dia destes, se bem que, de momento, não tenhamos planos para visitar o Quénia. A base da nossa família agora é aqui, onde esperamos vir a ter uma boa vida juntos. — Estendeu a mão para tocar na face do filho, em jeito de bênção. — Não fiques longe muito tempo — disse-lhe ela. — O teu pai preocupa-se e deves dar ouvidos aos conselhos dele. Pelo menos, tenta escrever com mais frequência. — E agora? — perguntou Rabindrah quando saíram para a rua. Estava visivelmente aliviado por se ter libertado das malhas de tensão que se ensarilharam no tempo passado com os pais. — Eu levo os contratos ao Sinclair e ao Lewis amanhã, a ver se concordam com as alterações que o meu pai sugeriu. Depois assinamos e dentro em breve há-de receber um cheque. Não será muito, mas é sempre bem-vindo. — Acho que nunca apanhei tantos táxis na vida — disse Sarah quando ele mandou parar outro. — Sinto-me totalmente decadente, a esbanjar assim o meu dinheiro. Mas ainda bem que não tenho de
carregar com esta enorme pasta no metro. Quer voltar ao apartamento da Camilla comigo? Talvez pudéssemos fazer qualquer coisa com ela mais tarde. — Sentiu-se instantaneamente embaraçada com a sua presunção. — Mas às tantas já tem que fazer. — Gostava muito de acompanhá-la — disse ele. Mas não respondeu à segunda proposta.
— Não tenho planos nenhuns para esta noite — disse Camilla. — Escapei a uma festa horrorosa e o Edward está ocupado com assuntos profissionais. Porque é que não vamos ao cinema? Fez chá e discutiram animadamente o que gostariam de ver. — Deve ser a Sarah a escolher — disse Camilla. — Nunca vai ao cinema e deve ser ela a decidir. — Que tal Alfie? — perguntou Sarah. — Ouvi dizer que o Michael Caine é sensacional. — Não. — Camilla foi categórica. — Nada de patifes. — Pensei que tinhas dito que a Sarah podia escolher — disse Rabindrah a rir. — Que mal é que tem o Michael Caine? — Recuso-me a passar uma noite a aprender mais coisas sobre homens irresponsáveis — disse Camilla. — Já sou perita. Decidiram-se por Blow Up e depois jantaram num pequeno restaurante, discutindo a natureza da realidade e o génio de Antonioni. — Acho que devia mudar de profissão — disse Rabindrah. — Cheguei à conclusão de que preferia ser fotógrafo de moda a um jornalista obscuro. Podia passar a minha vida com mulheres seminuas ou mesmo completamente nuas. E ser principescamente pago por isso. — Que disparate — disse Sarah. — Prefere mil vezes investigar alguma conspiração governamental escandalosa ou entrevistar bandidos shifta para saber o que é preciso para ser caçador furtivo! É muito mais provável que goste do bundu, agora que se habituou a ele. Acho que se enfastiava ao fim de dez minutos a fotografar raparigas seminuas com roupas idiotas. — Que mal é que têm as raparigas seminuas com roupas idiotas? — perguntou Camilla. — Sei de pessoas que vivem disso. — Virou-se para Rabindrah e sorriu-lhe com uma expressão cúmplice por baixo das longas pestanas. — Temos de ter cuidado aqui com a minha amiga, senão ainda se torna uma militante feminista, para além dos impulsos que já tem para praticar o bem. O que seria um exagero. — Se são raparigas seminuas que quer examinar, devia fazer um estudo da tribo samburu — disse Sarah. — Há lá muitas e podia escrever qualquer coisa de útil sobre o estilo de vida delas e as adversidades por que passam, sobre a circuncisão feminina e tudo isso. Se bem que o seu pai provavelmente não achasse o tema ideal. — Bandidos shifta e virgens samburu — disse Rabindrah reflexivamente. — Era muito capaz, era. — Apaixonante — disse Camilla. — E há uma coisa que podes fazer por mim, Rabindrah. — O quê? — perguntou Rabindrah. — Quero que fales com o meu pai — disse ela. — Sobre a Fazenda de Langani e o Jan van der Beer. Rabindrah reclinou-se, apanhado de surpresa e distanciando-se do pedido, consciente da tensão que se apossara de Sarah e da aflição que se lhe estampara no rosto.
— Que é que o teu pai pode ter a dizer sobre isso, que a gente já não saiba? — disse Sarah, angustiada. Não queria pensar em Langani nem no passado. Tinha vivido um óptimo dia e queria que acabasse bem. — O Jeremy Hardy está a fazer o que pode para descobrir porque é que a tua oficina foi destruída, não vejo que contributo o George possa dar. — Há coisas que talvez não compreendas sobre este problema. — Camilla dirigiu-se a Rabindrah. — Coisas que eu e a Sarah discutimos no passado, mas que nunca conseguimos resolver. Cerca de um ano antes da Independência, estávamos numa festa e a minha mãe acusou o Janni de ser um criminoso. Disse que não iam deixá-lo ficar com a fazenda depois da Independência por causa de uma coisa que ele tinha feito muitos anos antes. Sempre teve ciúmes da minha afeição aos van der Beer e, nessa noite, estava muito bêbada. Mas, pouco depois, o Janni fugiu do país de repente e sem explicações. Acho que o meu pai conhece a razão, mas sempre se esquivou às minhas perguntas. Estou convencida de que ele tem informações que podiam lançar luz sobre o que aconteceu ao Jan van der Beer nesse tempo e se tem alguma ligação com tudo o que entretanto sucedeu em Langani. E é possível que ele te diga o que é. — Não me parece que o George me diga nada. Mas sou capaz de ter outra fonte que… — Não quero saber com quem falas — disse Camilla. — Mas tens de fazer isto pela Sarah, que perdeu o noivo e o futuro, e pela Hannah, que está a lutar para conservar a casa dela. E por mim, porque as amo às duas e porque Langani sempre foi a coisa mais parecida com um lar que já conheci. Promete-me agora e à Sarah que o fazes. — Prometo — disse Rabindrah, olhando Sarah nos olhos. — Prometo às duas que sim.
CAPÍTULO 9
Irlanda, Abril de 1967 passagens para o primeiro voo da manhã para Dublin e Sarah tinha decidido apanhar o Tinham comboio para Sligo para poderem saborear a paisagem rural. — Não sou capaz de admirar a paisagem — protestou Camilla quando se afundaram em bancos opostos no compartimento. — Preciso de dormir. E de óculos mais escuros para me protegerem de toda este verdor gritante. Vamos à carruagem-restaurante. Chá forte, ovos, bacon, salsichas e pão frito. É a cura perfeita para tudo, um pequeno-almoço irlandês. E que ninguém me diga que os siques não bebem. — Ele não é um sique fundamentalista — disse Sarah. — Não usa turbante nem frequenta o templo e come tudo o que lhe aparece à frente. Destribalizou-se enquanto esteve em Inglaterra. — Estar longe de casa tem muitas vezes o efeito contrário — disse Camilla. — Faz as pessoas ansiar pelas suas origens. Enraíza-as, mesmo quando nunca pensaram na questão. Mas ele usa aquela pulseira e não me admirava nada que tivesse um punhal tradicional escondido no corpo já que não o pode esconder no turbante. — Eles não escondem punhais nos turbantes — disse Sarah, rindo. — Usam-nos numa bainha. — Ai sim? Às tantas até usa essas culotes de guerreiro que pelos vistos eles usam todos. Devias perguntar-lhe. Ou dar uma olhada. É quase tão intrigante como descobrir se um escocês usa alguma coisa debaixo do kilt. — És chocante. — Sarah tinha corado até às orelhas. — Não sei como te aturo. Mas obrigada por vires comigo. — Hesitou. — Preciso de te pedir outro favor. — Força — disse Camilla. — Arranca-mo enquanto estou fraca e indefesa. — Não quero que eles saibam da oficina — disse Sarah. — Os meus pais, digo eu. Tentavam convencer-me a voltar de vez para casa e isso só ia deitar mais achas para a fogueira. — A minha boca não se abrirá. Estamos nisto juntas. Como prometemos, quando éramos colegiais ingénuas e tontas e muito, muito sensatas. Raphael estava à espera delas na estação e Sarah lançou-se-lhe nos braços, abraçando-se a ele como uma criança pequena. Finalmente ele afastou-a suavemente e cumprimentou Camilla. Ajudouas a entrar para o seu velho carro amassado e percorreram estradas rurais ladeadas de extensos campos e árvores em flor, com a grande forma achatada de Ben Bulben projectando-se do horizonte na direcção deles. Estava um dia fresco e cortante, mas o sol tinha decidido brilhar. Sarah sentia um aperto no coração sempre que olhava para o rosto enrugado do pai, via o seu sorriso retorcido e os pêlos no seu queixo que tinham escapado à lâmina. Ele estava igual e ela amava-o mais do que seria alguma vez capaz de exprimir. — Sarah! Oh, não imaginas a alegria que me dás. Graças a Deus, graças a Deus! Betty chorava desalmadamente ao abraçar a filha, grata por ela estar de novo entre a família e poderem estar juntos no casamento de Tim. Depois virou-se para Camilla, que estava um pouco
afastada, observando o reencontro com um sorriso pensativo. — Minha querida — disse ela, abrindo os braços —, há quanto tempo, estamos encantados que tenhas podido vir também. Espero que te sintas em casa como sempre. Sinto muito a morte da tua mãe. — Onde está o Tim? — perguntou Sarah, não querendo demorar-se sobre o tópico de Marina. — Porque é que ele não está aqui a desenrolar a passadeira vermelha? — Deve estar a chegar. — Betty sorriu afectuosamente. — Foi à cidade com a Deirdre organizar umas coisas de última hora. Voltam para o chá. — Temos uma surpresa para a Deirdre. — Raphael exibia um ar de auto-satisfação. — Descobrimos uma velha casa rural na estrada para Colloony. Está desocupada há anos e comprámola por uma ninharia e mandámo-la renovar para os recém-casados. — Eu e o teu pai achámos que era melhor do que viver com os sogros, sobretudo porque trabalhamos todos juntos. — O rosto de Betty resplandecia de expectativa ante a reacção deles. — O Tim já sabe, claro, e está felicíssimo. Mas a Deirdre não suspeita de nada. Tencionamos dar-lhes a chave amanhã. — Mas que prenda de casamento fantástica — disse Sarah. — Uma casa deles. Vão ficar no sétimo céu. Passou os olhos pelo vestíbulo onde se encontravam. Por ocasião da sua última visita, a casa pouco mais era que um estaleiro de obras. Agora era um lar que respirava aconchego, com metais reluzentes e flores numa grande jarra na mesa da entrada. O tapete persa predilecto de Raphael estava estendido no soalho de carvalho polido e a mobília de Mombaça emprestava às salas uma familiaridade calorosa. Mas emanava a nostalgia de tempos e lugares passados, de uma felicidade que jamais poderia ser recuperada e de vidas transformadas para sempre. Na sala de estar, Sarah viu-se rodeada dos objectos da sua infância e estendeu a mão para tocar numa mesa de teca, num aparador trabalhado de Lamu e nas arcas cravejadas de tachas de latão de Zanzibar, que faziam parte da história africana da família. A selva abundante que tinha rodeado a casa quando a tinham ocupado estava agora transformada. As sebes estavam impecavelmente aparadas, e os arbustos e os canteiros de amores-perfeitos proliferavam mas de forma ordenada. Sarah recordou o jardim de Lottie em Langani e abruptamente afastou-se da janela. Betty desapareceu na cozinha e voltou com o tabuleiro do chá. Enquanto servia, começaram a conversar e Sarah apercebeu-se de que a companhia de Camilla tinha sido providencial. Os tópicos constrangedores e dolorosos foram postos de lado, enquanto ouviam as descrições da vibrante Londres e de Nova Iorque e histórias do mundo da moda. — É um milagre termos chegado aqui hoje — disse Camilla. — Já passava das duas quando nos separámos do Rabindrah e tivemos de nos levantar por volta das seis. Se não fosse a insistência da Sarah, ainda estava na cama em Londres. Mas foi divertido e ele dança como um dervixe. — Conta lá quem é esse homem com quem estás a preparar o livro — disse Raphael, sorrindo com orgulho à filha. — Estamos entusiasmadíssimos com a publicação das tuas fotografias. Espero que ele escreva suficientemente bem para lhes dar o realce merecido. Ele já escreve há muito tempo? Não me lembro do nome dele nos jornais de Nairobi do meu tempo. — Não deves ter lido nada que ele tenha escrito — disse Sarah, descrevendo por alto a história de Rabindrah.
— Imagino-o como um desses siques corpulentos com um turbante e suíças, e olhos ferozes de lince — disse Betty. — Um pilar do templo e da comunidade indiana em Nairobi. — De maneira nenhuma. O Rabindrah tem qualquer coisa de lince, mas também é novo e demasiado elegante — disse Camilla. — Bem barbeado, com cabelo curto e uns olhos espantosos de um verde dourado. Inicialmente, a Sarah fez-lhe a vida negra mas agora têm uma boa relação de trabalho. — A princípio, não me agradou a ideia de ele me acompanhar no jipe sempre a fazer perguntas — disse Sarah. — Pensei que só estava interessado em ganhar nome. Mas acabou por ser fiel à palavra dele. Escrevi-lhes sobre o Land Rover que ele convenceu o tio a dar ao Dan. Foi um gesto extraordinário, para não dizer mais. O tio Indar. Esse, sim, é um pilar tradicional da comunidade sique. Não aprova completamente o sobrinho predilecto mas, ao mesmo tempo, sente orgulho nele. Também conheci os pais do Rabindrah em Londres. — Santo Deus — disse Betty. — Foste recebida no seio da família. Que é que eles querem em troca dessa generosidade toda? — O Dan fez a mesma pergunta no princípio. Mas não me parece que queiram nada — disse Sarah. — É muito raro um indiano escrever sobre a vida selvagem e a vida rural — disse Raphael. — São bons nos temas da actualidade e da política, mas esses tópicos são um pouco fora do comum, não são? — Sim, são — disse Sarah. — Mas o Rabindrah é fora do comum e gradualmente começou a interessar-se a sério pela nossa investigação e pela sorte dos elefantes. A palavra «Singh» significa leão mas, quando começámos, não havia semelhança nenhuma entre o Rabindrah e o destemido rei da selva. Os animais metiam-lhe um medo terrível. Começou a relatar uma série de episódios divertidos que tinham deixado o jornalista num estado de quase terror e todos estavam a rir-se quando Tim entrou na sala. Fez-se um silêncio momentâneo quando ele olhou para a irmã, que logo correu a abraçá-lo, e Tim apertou-a com tanta força que quase lhe sugou o ar dos pulmões. Em seguida, virou-se para Camilla. — Bons olhos te vejam, Timmy. — Ela despenteou-lhe o cabelo com os dedos delicados e deulhe um beijo ao de leve na face. Deirdre estava à entrada. Sarah viu-a pestanejar ansiosamente e atravessou a sala para a abraçar e a incluir no reencontro. — Anda contar-nos como estão a correr os preparativos. — Sarah pegou-lhe no braço. — Queremos saber tudo. — Está bem, eu conto tudo, mas ainda tenho algumas tarefas para acabar esta tarde. Boletins clínicos e a lista do dispensário. — Deirdre parecia agitada e olhou para Tim com uma expressão suplicante. — Se calhar o Raphael podia ir agora mostrar-lhes o novo consultório antes de abrir para o atendimento nocturno. E mais tarde podemos conversar sobre o resto. — Está a correr tudo bem em todas as frentes — disse Raphael com um certo orgulho enquanto o seguiam pelo caminho para o consultório. Acho que alguns dos mais velhos pensavam que eu era um curandeiro com um osso no nariz depois dos anos todos que vivi em África. Mas agora temos mais doentes do que precisamos. A tua mãe, claro, foi estupenda, fazendo mais do que lhe competia, ocupando-se do atendimento durante parte do dia e olhando pela casa ao mesmo tempo. E a Deirdre é muito trabalhadora. A melhor enfermeira que podíamos esperar e uma peça-chave. Vá, Tim,
vamos mostrar-lhes os cantos à casa. O consultório tinha sido instalado na antiga casa da guarda à entrada da propriedade. Era um lugar luminoso, mesmo numa tarde ventosa. Havia quadros nas paredes e a sala de espera dispunha de cadeiras confortáveis, de uma mesa com revistas e de um cesto com brinquedos para entreter crianças irrequietas. O atendimento da noite começaria dentro de vinte minutos e era Tim quem estava de plantão. — Dentro de dias, vou-me embora, flanar por Paris em lua-de-mel — disse ele, tamborilando com os dedos na secretária, claramente ansioso por se ver livre das visitas. — É por isso que estou a fazer o dobro dos turnos esta semana. Ando ocupadíssimo. Leva as raparigas de volta a casa, papá, agora que já viram o sítio. Eu volto assim que acabar aqui. — Acho o Tim um pouco seco — disse Sarah, enquanto se encaminhavam para casa ao crepúsculo. — Nervoso miudinho com o casamento — disse alegremente Raphael. — Eu quase que fugi na véspera do casamento com a tua mãe. Mas ultrapassei o medo. E não fiz bem? Sorriu à filha e a Camilla e abriu a porta de entrada. Chegou da cozinha um aroma apetitoso e Raphael gritou à mulher. — Já chegámos, querida. Vá, meninas, achava boa ideia irem descansar um pouco e descer para umas bebidas às sete. Abrimos os cordões à bolsa e comprámos champanhe. Não é uma bebida que se tome muitas vezes por aqui, mas esta noite é especial. — Dirigiu-se ao escritório mas parou e virou-se. — Sarah — disse ele docemente —, estou muito feliz por te ter em casa.
O jantar foi uma refeição ligeira em que discutiram os planos de casamento. Não se esperavam muitas pessoas e o copo-d’água teria lugar em casa. — Decidimo-nos todos contra um hotel. É mais agradável fazê-lo aqui — disse Raphael. — A Betty queria preparar a comida toda, mas eu convenci-a a contratarmos esses serviços. Assim, pode desfrutar do dia sem ficar presa na cozinha. Sarah estava agora contente por ter vindo. Não lhe faltaria que fazer e a sua ajuda seria preciosa para a mãe. Tinham sido encomendadas mesas e cadeiras adicionais que seriam entregues na véspera do copo-d’água, juntamente com flores, toalhas de mesa, pratos, copos e talheres. A igreja teria de ser decorada no dia anterior à boda e, à tarde, haveria um ensaio com o padre e o organista. Deirdre pouco falou ao jantar e Sarah observou-a disfarçadamente, reparando que ela mal tocara na comida. Não é só o Tim que está nervoso, pensou ela. Já tinham chegado prendas e, depois do jantar, foram para o escritório de Raphael, onde tinha sido instalada uma mesa para as pousar. — E o vestido? Gostávamos muito de o ver — disse Camilla. — Ou está no teu apartamento na cidade, não vá o Timmy sentir-se tentado a espreitar? — Não — respondeu Deirdre. — Está aqui. A Betty reservou um dos quartos lá em cima para usar no casamento. Está lá o meu vestido de noiva e o saia-casaco para depois e as outras coisas. Um sítio para mudar de roupa e assim. — Podemos lá ir? — perguntou Sarah. — Podias pôr o vestido e desfilar um bocadinho. — É uma óptima ideia — disse Betty. — Vai lá, Deirdre. Eu, o Tim e o papá levantamos a mesa do jantar, vai lá aperaltar-te.
— Vou à frente vesti-lo. — Deirdre já estava perturbada quando chegaram ao primeiro andar e à porta do quarto. — Mas não é um vestido que… enfim, comprei-o já feito. Não foi confeccionado especialmente. Não é um vestido de estilista nem nada disso. — Estava a enclavinhar as mãos, olhando para elas, pálida e apreensiva. — Vai lá — incitou Camilla, dando-lhe um leve empurrão. — Estamos mortas por ver. Passou muito tempo até a porta se abrir. Camilla encostou-se à porta do lado de fora, de sobrancelhas levantadas. Sarah encolheu os ombros e abriu os braços, com as palmas das mãos para cima, num gesto de impotência. — Acho que ela está com medo — sussurrou. Segundos depois, ouviram o estalido do puxador. Deirdre surgiu diante delas, com os lábios contraídos e o corpo tenso. A sua expressão era defensiva ao olhar para Camilla e Sarah sentiu, de súbito, pena dela. Ali estava uma rapariga do campo, com o vestido mais importante que alguma vez possuiria. Mas estava a ser inspeccionada pelo olhar crítico de uma modelo famosa que tinha visto em revistas e até na televisão. Alguém que usava as roupas e as jóias mais belas e caras do mundo. Devia pôr os nervos em franja. O vestido consistia numa saia rodada de tule, com uma gola alta e mangas compridas de renda. Devia ter o ar de um bolo de aniversário, mas, estranhamente, favorecia Deirdre. Ela tinha emagrecido bastante e tinha prendido o cabelo atrás, liso e brilhante e afastado da cara, evidenciando a sua pele perfeita. Camilla não fez qualquer comentário e o silêncio prolongou-se constrangedoramente. Deirdre agarrou-se à porta como que prestes a fechá-la nas caras delas. — Estás absolutamente espectacular — disse Camilla finalmente. — Não me tinha apercebido de que tinhas uma ossatura tão encantadora. E essa cintura delgada e a pele perfeita como a de um bebé. Absolutamente adorável! Podemos entrar agora? O vestido tem véu? O alívio estampou-se no rosto de Deirdre, que exalou, num suspiro suave, a respiração que tinha sustido. Pouco depois, começou a andar de um lado para o outro, rodando e virando-se, enquanto Camilla ajustava a saia e arranjava o toucado. — Tenho uma corrente de ouro que gostava de te oferecer — disse ela. — É o meu presente pessoal para ti. Uma coisa nova. Já tens o velho, o emprestado e o azul? Credo, Deirdre, estás perfeitamente fabulosa. O Timmy vai ficar sem fala. Os olhos de Deirdre encheram-se de lágrimas. — Obrigada. Obrigada às duas. — Falou em voz baixa. — Estava cheia de dúvidas. Acho que o vou guardar agora. Tenho de me levantar cedo amanhã porque é o meu último dia de trabalho. A manhã seguinte despontou luminosa mas fria e a relva verde-esmeralda cintilava ao sol. Tim tinha sugerido um passeio a cavalo logo de manhã. Não havia sinais de Deirdre quando selaram os três cavalos e partiram a galope pela praia, o vento gelado trazendo-lhes cor às faces e aguandolhes os olhos. Era pura exultação. — A Deirdre ainda não superou o medo de montar? — perguntou Sarah, enquanto regressavam a trote pelo caminho para o estábulo. — Ou chegava tarde ao consultório se tivesse vindo? — Infelizmente, nunca há-de montar — disse Tim. — Bem tentou, mas está sempre aterrada e não lhe dá prazer nenhum. Os cavalos pressentem que ela não os domina e reagem em conformidade, até o velho Ben. Pensei que com o tempo perdia o medo, mas agora praticamente desisti. Pelo menos por agora. Sarah achou uma pena que ele não pudesse partilhar com a mulher uma das suas grandes paixões.
Mas tinham com certeza outros prazeres para partilhar. Novamente nos estábulos, arrumaram os arreios e Sarah foi à frente para ajudar a mãe a preparar o pequeno-almoço. Ouviu Tim e Camilla atrás no caminho, rindo e fazendo pouco um do outro, como era hábito deles desde crianças. Ocorreu-lhe que nunca tinha ouvido o irmão a meter-se com Deirdre. Ela era demasiado sensível para responder na mesma moeda e não havia entre eles o à-vontade que lhe permitiria brincar com ela. Pensou que ia ser uma provação para Tim. Passou a manhã com a mãe e Camilla, a arrumar e a reposicionar móveis para arranjar espaço para as mesas e cadeiras adicionais para o copo-d’água. Betty afligia-se e ria-se, mudando de sítio jarras, ornamentos e castiçais dezenas de vezes, até que Raphael e Tim chegaram para almoçar. Estavam a tomar café quando Raphael bateu com a colher na chávena para prender a atenção de todos. — Tim e Deirdre, temos uma surpresa para vocês — disse ele. — Vamos dar uma volta. Como não é longe, podemos ir todos no meu carro. A velha casa rural estava recuada em relação à estrada no seu próprio jardim. Era de tijolo vermelho, com um telhado de ardósia muito inclinado e janelas de guilhotina. Cresciam rosas trepadoras em redor da porta de entrada e das janelas pintadas de fresco. Lá dentro, tudo parecia novo. Betty tinha arranjado uma selecção de mobília básica em leilões e lojas de artigos usados e os soalhos de madeira polida estavam cobertos de tapetes coloridos. A única extravagância era a cama de dossel no quarto principal, uma peça irlandesa antiga em que ela tinha montado cortinas e que tinha decorado com um edredão feito à mão. Esperaram na sala de estar, enquanto Tim guiava Deirdre lentamente pela casa. Betty estava ao lado do marido e da filha, o seu rosto benigno brilhando de satisfação. Mas quando Deirdre reapareceu, o seu rosto parecia uma máscara e virouse para eles com um sorriso forçado. — É muito bonita, é realmente muito bonita. Estamos muito gratos. Mas agora tenho de voltar para o consultório, porque tenho muito que fazer antes de passar o serviço à enfermeira temporária. — Apressou-se a sair da sala, dirigindo-se para o carro quase a correr. Quando chegaram à casa principal, ela largou a correr pelo caminho para o consultório sem uma palavra. — Não gosta da casa, Raphael — disse Betty, deixando-se cair numa poltrona e cobrindo os olhos com a mão. — Deve ter achado que nos estávamos a intrometer, comprando mobília e tudo isso. Provavelmente queria tê-la escolhido ela. Devia ter previsto. Mas sem a mãe por perto para a ajudar, pensei… — Estava quase a chorar. — Lamento muito, Tim. — Não, mamã. É a prenda mais fantástica e generosa que nos podiam ter dado. — Falou numa voz sombria. — Sinceramente, não entendo a reacção dela. É impossível ter outra reacção que não seja de entusiasmo com a casa. É um sonho e vocês arranjaram-na na perfeição. Deixem-me falar com ela. — Talvez seja melhor ir eu — atalhou Sarah. Percebeu que o irmão estava zangado e magoado pelos pais. Seria um mau momento para um confronto. — Ela é capaz de não se sentir à vontade para falar contigo neste momento. Deixa-me tentar tirar isto a limpo. — Ela tem razão — disse Camilla. — Porque é não vamos dar uma volta, Timmy, e deixamos a Sarah tratar do assunto? Mas não havia sinais de Deirdre no consultório e Sarah voltou para casa, intrigada. — Está lá em cima — murmurou Betty à filha. — Entrou pelas traseiras, claramente para nos evitar. Está com certeza arrependida, pobre rapariga. Embaraçada. Não me tinha apercebido de que andava tão tensa.
Sarah subiu as escadas a correr e bateu à porta. Não recebeu resposta e experimentou o puxador. A porta estava fechada à chave. — Deirdre? — chamou ela. — Podemos falar? Estás certamente nervosa com o casamento. Com tudo. É uma reacção natural e uma conversa talvez ajude. Abre a porta, por favor. — Está tudo bem. — Deirdre falou com uma voz abafada. — Só preciso de estar um pouco sozinha. Não te preocupes. Daqui a nada, desço. Sarah esperou, sem saber o que fazer, sentindo-se impotente e algo irritada, incapaz de compreender o estado de espírito de Deirdre. Por fim, deu meia-volta e voltou a descer as escadas, consciente de que não podia forçar aquela rapariga, que mal conhecia, a fazer-lhe confidências. — Mamã? Ela quer ficar algum tempo sozinha. — Recusou-se a falar contigo? — Betty apareceu da cozinha. — Oh, meu Deus. Suponho que só agravaria a situação pressioná-la agora. — Sim. Acho que vou dar uma volta — disse Sarah. — Queres vir? — Excelente ideia — disse Betty. — Mas convém agasalharmo-nos. No vestíbulo, vestiram casacos e cachecóis antes de saírem para a desmaiada luz do sol. Sarah viu imediatamente o irmão. Estava sentado ao fundo do jardim com Camilla, em animada conversa, com as mãos dela nas suas. Ela escutou-o por alguns momentos até que ele lhe passou os braços pela cintura e lhe pousou a cabeça no ombro, de modo que o cabelo comprido de Camilla lhe escondeu a expressão. Quando ele se endireitou, tomou a cara dela nas mãos e fitou-a sem falar. Ela beijou-o na testa e lançou-lhe os braços ao pescoço e ficaram assim a baloiçar-se levemente. Por fim, ele inclinou-se para ela, mas ela estendeu a mão para lhe afagar a cara e depois afastou-se dele. As palavras que ela disse perderam-se, transportadas no vento, mas Tim acenou com a cabeça, sorrindo enquanto ela se afastava à frente dele, fazendo-lhe sinal para que a seguisse. Quando a apanhou, enfiaram pelo caminho que levava ao mar, abraçados, desaparecendo de vista. Sarah ficou a vê-los, petrificada, a veia da sua garganta a pulsar fortemente. Olhou de relance para a mãe. Betty reentrou em casa com uma expressão carregada. Quando Sarah se virou para a seguir, um movimento captou a sua atenção e fê-la levantar os olhos. Em cima, viu Deirdre à janela do quarto, com as mãos na cara, olhando sobre o relvado para a praia, inclinada para a frente, imóvel como uma estátua, como que hipnotizada. Depois desapareceu. Sarah demorou-se por momentos no terraço, tentando pensar nas palavras que diria a Deirdre. Mas as ondas impetuosas e o sibilar do vento frio não lhe serviram de inspiração e, pouco depois, voltou para dentro de casa. Estava certa de que não podia ser o que parecia. Tim estava perturbado, confidenciando com uma amiga de infância. Mas recordava a maneira como ele olhava para Camilla, no passado, quando estavam em Mombaça. E, mais tarde, quando eram estudantes e tinham ido passar a Páscoa com ela a Londres. A atracção nesse tempo era evidente. Camilla também tinha consciência dela. Era perspicaz de uma maneira que Tim nunca seria. Ainda poucos dias antes, tinha dito a brincar que ia seduzir Tim. Tinham ambas brincado com isso. Sarah pendurou o casaco, pensando se tentar falar com Deirdre novamente ia piorar as coisas. Mas talvez conseguisse convencer a rapariga de que não havia significado nenhum na cena que tinham presenciado e descobrir o que a tinha perturbado tanto antes. Subiu as escadas e bateu à porta do quarto. Não teve resposta. Quando experimentou o puxador, a porta abriu mas o quarto estava vazio. Desceu à procura da mãe e encontrou-a na cozinha. — Viste a Deirdre sair? — perguntou Sarah com uma estranha premonição.
— Ouvi-a descer as escadas e sair pela porta das traseiras — disse Betty. — Mas não quis confrontá-la nem correr o risco de agravar as coisas. Deve estar no consultório com o Tim. — O Tim está com a Camilla. — Betty levantou os olhos, reconhecendo a preocupação na voz da filha. Não demorou a compreender. — Oh, meu Deus. Espero que ela não os tenha visto. Valha-me Deus! — Não há nada entre eles — declarou Sarah. — Sabes muito bem. — Talvez não. Mas, se fosses tu, que é que sentias se tivesses assistido? Se tivesses visto o teu noivo nos braços dela? Sarah estremeceu e afastou-se. Mentalmente viu Piet, nesse passado longínquo, quando ainda andava na escola. Já nesse tempo, sabia que o amava e o seu coração ficara destroçado quando o vira da janela em Langani a beijar Camilla, sob o luar frio e brilhante, antes de desaparecerem na escuridão. — Vou levar a máquina fotográfica e dar uma volta — disse ela, esperando poder encontrar o irmão e avisá-lo de que teria de apresentar uma explicação a Deirdre. Mas o jardim estava deserto e Tim e Camilla não apareciam. Frustrada e furiosa, Sarah tomou o caminho que levava à praia, mas a luz da tarde estava a sumir-se e ela teve de contentar-se com um passeio solitário e uma tentativa pouco entusiástica para fotografar o areal deserto e o mar, soturno e baço sob a luz fraca do fim do dia. A casa estava em silêncio, quando voltou, e Sarah pôs a correr um banho quente e vestiu-se lentamente para o jantar, atrasando as tensões que fariam decerto parte do serão. Quando foi ter com os pais ao andar de baixo, era evidente que havia um problema terrível. Betty estava em pé junto da lareira, agarrada ao lenço, com os olhos vermelhos. Raphael, ao seu lado, tirava fumaças ansiosas do cachimbo. Sarah olhou para um e para o outro. — Que é que foi? — Foi a Deirdre. — Betty respirou fundo. — Foi-se embora. — Embora para onde? — Sarah tentou compreender a frase. — Foi-se embora de vez. Tanto quanto sabemos — disse Raphael —, o Tim encontrou uma mensagem dela na secretária dele no consultório, mais ou menos há meia hora, a dizer que se ia embora. — Porque é que se foi embora? — perguntou Sarah. — Ele não nos disse — respondeu Raphael, num tom sombrio. — Que é que disse então? — A notícia era desconcertante. — Que tinha sido um erro terrível. Que devia ter percebido. Que deviam ter percebido os dois. Diz ele que ela não vai voltar. Mas não apresentou nenhuma razão para a decisão dela. Disse ao teu pai que não quer discutir agora o assunto. — A mão de Betty tremeu um pouco ao ajeitar o cabelo. — Achas que foi por causa de ele trabalhar tantas horas, Raphael? Foi isso? — Minha querida, não sei o que foi — disse Raphael. Deixou-se cair numa cadeira e esvaziou o cachimbo. — Não faço ideia nenhuma do que aconteceu. — Às tantas é uma crise aguda de nervos pré-nupciais — disse Sarah. Mas a visão de Tim e Camilla estava vívida na sua memória. A mesma imagem que Deirdre devia carregar consigo nesse momento. Relanceou para a mãe, mas Betty evitou o olhar dela. — A Deirdre estará em casa dos pais? Sabes o número do telefone? — Ela não se dá muito bem com eles — disse Raphael, duvidoso. — O pai é um homem azedo e
a mãe tem um problema grave de alcoolismo. Acho que fomos mais pais para ela do que eles alguma vez foram. — Mas não faz sentido fugir agora, sem sequer pedir uma explicação — disse Sarah. — Uma explicação de quê? Quem tem de dar explicações é a Deirdre. — Raphael olhou para a filha, captando um registo estranho na sua voz. Betty abanou levemente a cabeça. — Pedir… oh, pedir ao Tim que resolva o que quer que seja que a apoquenta. — Sarah esforçouse por soar vaga. — Olhando agora para trás, ela andou um tanto esquisita nos últimos meses. — Betty estava agora calma e mais reflexiva. — Adiou várias vezes o casamento. Primeiro disse que as coisas estavam demasiado complicadas aqui com a abertura do consultório e tudo isso. Depois foi por tu não poderes estar presente, Sarah. E, quando o Tim marcou a data para este mês, ficou na dúvida que algum dos amigos dela de Dublin pudessem vir. Ainda na semana passada andava preocupada por ter de se ausentar em lua-de-mel e foi por isso que contratámos uma enfermeira temporária para a substituir. Na altura, ficámos impressionados com a preocupação dela mas, pensando nisso agora, acho estranho. — A tua mãe está consumida a pensar se teremos levado a rapariga a pensar que a queríamos pôr fora de casa, quando lhes oferecemos a vivenda. Ou se ela se terá sentido excluída porque toda a gente sabia da casa menos ela. — Empurrou os óculos para cima e apertou a cana do nariz entre o polegar e o indicador. — Até o Tim sabia e não lhe disse nada. Mas não me parece que tenha sido nenhuma dessas razões. — Claro que não — disse Sarah, impacientemente. — Isso é absurdo. — Vou pôr o jantar no forno — disse Betty. — Volto já. Raphael e Sarah sentaram-se a contemplar o fogo, levantando os olhos quando a porta abriu e Camilla apareceu. — Viste o Tim? — Sarah percebeu que tinha falado num tom brusco. — Não. Fomos dar uma volta e depois deixei-o no consultório — disse Camilla. Não revelou qualquer sinal de inquietação e Sarah interrogou-se se ela saberia alguma coisa sobre o comportamento extraordinário e o desaparecimento de Deirdre. — Provavelmente quer estar algum tempo sozinho — disse Raphael. — Acho que ainda não está pronto para enfrentar perguntas. Não puderam continuar a conversa porque o próprio Tim chegou. — Peço desculpa por tudo isto — disse ele, sem jeito. — Esforçaram-se imenso por tornar o casamento numa ocasião fantástica… lamento profundamente. Não sei que mais diga. Sarah encheu-se de compaixão dele enquanto Betty estendia a mão e lhe dava uma palmadinha no braço, como quem conforta uma criança. Camilla não exprimiu curiosidade ou surpresa e não fez perguntas. Foi claro para Sarah que ela já sabia o que se tinha passado. Jantaram rapidamente e quase sempre em silêncio. Quando Tim se levantou da mesa e se dirigiu ao escritório, Sarah seguiuo. — Que aconteceu, Tim? — Pegou-lhe no braço. — Que é que posso fazer para ajudar? — Não há nada que ninguém possa fazer — disse ele. — Cometi um erro, mais nada. Cometemos os dois. — Não compreendo como ela foi capaz de partir assim — disse Sarah. — Pouco antes do casamento quando tudo está pronto. Que é que ela…
— Talvez nunca se possa conhecer ninguém — disse Tim, tomado de tristeza. — Adiante, foi-se embora, ponto final. Não posso nem quero falar do assunto. Mas agora tenho de começar a fazer telefonemas a informar os convidados de que está tudo cancelado. Felizmente não eram muitos. Por favor, Sarah, não me pressiones. Deixa-me fazer o que tenho a fazer para encerrar esta história. Lamento muito e amo-os a todos. O resto é merda. Sarah fixou o irmão, tentando analisar exactamente a sua expressão. Tensa. Remota. Mas não distinguia a dor terrível que teria esperado de alguém que acabara de perder o seu grande amor na véspera do casamento. Era uma sensação que conhecia. Talvez se lha descrevesse, ele se sentisse mais à vontade para se abrir com ela. Tim abriu ligeiramente a janela para ouvir o mar e ela foi ter com ele, falando suavemente e descrevendo o momento em que Piet a tinha pedido em casamento e tudo parecera perfeito. Falou dos planos que tinham feito, sentados lado a lado na crista, contemplando a fazenda e o lodge e discutindo os seus sonhos e o futuro glorioso que partilhariam. Queria que Tim soubesse que havia um caminho em frente, por mais penoso que parecesse. Falou assim da sua própria viagem para escapar ao desespero, apercebendo-se de que nunca até então tinha confrontado toda a verdade. Tinha apenas desejado que a dor se extinguisse mas isso não tinha acontecido e ela pensou que nunca mais viria a acontecer. Sarah estremeceu. A milhares de quilómetros de distância, o espírito de Piet ainda pairava sobre o montículo e a Acacia tortillis, aguardando justiça, vogando sobre o mesmo local amaldiçoado e belo. Durante algum tempo, não tinha desejado senão permanecer ali com ele. Mas fizera um esforço para seguir em frente, para o deixar ali. Num certo sentido, tinha-lhe virado as costas porque, de outro modo, também teria morrido. E agora sabia que, apesar de toda a agonia dos últimos quinze meses, não queria morrer e que não tinha de sentir vergonha disso. Tim ouviu-a sem interromper até ela chegar ao fim da narrativa e depois passou-lhe o braço pelos ombros. — Está a arrefecer — disse ele. Mas não se mexeu e ficaram ambos ali em silêncio, ouvindo o som das ondas e os gritos das aves marinhas que sobrevoavam a rebentação e olhando pela janela para o luar fantasmagórico. — O Piet morreu — disse ela por fim, olhando para ele. — Nunca mais o terei. Mas, se tu amas a Deirdre e queres resolver este problema, vai atrás dela. Já. E, aconteça o que acontecer, quero que prometas que me vais visitar. Conhecer os Briggs, ver os elefantes. Como a mamã e o papá fizeram depois de o Piet ser assassinado. Quero que vejas como adoro o meu trabalho e preciso de o fazer. E o bem que me faz. — Ocorreu-lhe uma ideia e pegou-lhe no braço. — Depois, se a tua relação com a Deirdre tiver mesmo acabado, talvez fosse boa ideia passares algum tempo no Quénia a trabalhar. Sarah saiu da sala, notando o sorriso desmaiado nos lábios de Tim, não querendo intrometer-se nas dolorosas explicações que ele teria de dar aos amigos. Quando fechou a porta, ele estava de pé ao lado da velha poltrona de couro, agarrando as costas com os dedos, a cabeça baixa e os ombros vergados. O dia seguinte passou carregado de tristeza. Ninguém tinha conseguido encontrar Deirdre. O serviço de restauração foi cancelado, as prendas encaixotadas e devolvidas a quem as oferecera. Camilla pouco disse enquanto embrulhava presentes e endereçava embrulhos. Mas era a única que conseguia arrancar um sorriso a Tim. Observando-os, Sarah ouvia as palavras ecoarem-lhe na mente. Deviam arrancá-lo às garras de Deirdre, tinha dito Camilla, a rir. Salvar o pobre Timmy. O ambiente em casa tornou-se tenso e desconfortável, mas Sarah não era capaz de falar sobre o que
tinha visto. Sobre o que Deirdre tinha visto antes do seu injustificado desaparecimento. Raphael passou todo o dia no consultório e havia uma frieza perceptível na atitude de Betty com Camilla. — Olha pela janela. — Betty tinha acabado de colocar a última peça de mobília de novo no lugar. Endireitou-se e fez um gesto a Sarah. Lá fora debaixo do carvalho, o cabelo louro de Camilla captava a luz do sol mosqueada. Estava sentada no baloiço com Tim, as cabeças de ambos juntas. Baloiçavam-se suavemente para a frente e para trás como que ao som de uma música que tinham criado para eles. — Ele disse-te alguma coisa? — O rosto de Betty denotava cansaço ao olhar para a filha. — Não. Só à Camilla. — Sarah sentia vergonha do ressentimento e ciúme que sentia. — Por vezes é mais fácil falar com alguém menos próximo — disse Betty. — Mas não sei se ele escolheu a confidente certa. Está extremamente vulnerável agora. Sob o efeito de uma desilusão sentimental. — Houve uma pausa e ela voltou a falar. — Sabes, é terrível dizer isto mas, de certa maneira, sinto-me aliviada. Em relação à pobre Deirdre. Sarah olhou para a mãe com surpresa. — Não era a pessoa certa para ele — disse Betty. — Era demasiado… carente, acho que é a palavra. O Tim é generoso, alegre e muito equilibrado, mas precisa de amor e apoio como qualquer outro homem. Não sei se ela teria sido capaz de lhos dar. Raphael tinha entrado na sala e Sarah ficou entre os pais, sabendo que tinha de partir em breve e pensando como havia de lhes dar a notícia, facilitar a separação. Eles tinham feito alusões, referências à falta de segurança no Quénia, na esperança de que ela decidisse permanecer na Irlanda. — Tenho de voltar — disse ela. — Na segunda-feira. — Não podes ficar mais uns dias? — Raphael não conseguiu esconder a consternação. — Só cá estou porque o Dan me deu uns dias a mais por causa do casamento — disse Sarah. — A viagem a Londres foi de trabalho, mas esta visita a casa foi um favor. — Tens a certeza de que deves voltar? — A ansiedade de Betty envolvia-a como uma aura. — Eu sei que adoras o teu trabalho, mas o Quénia é um lugar perigoso neste momento. Podias ter sido morta pelos bandidos shifta no ano passado quando passaste aquela noite com os elefantes mortos. — Hesitou. — Pelo que dizem as notícias, a violência tribal no Quénia está a aumentar. Talvez fosse melhor viveres noutro sítio durante algum tempo. Volta para a Irlanda e tira o teu mestrado. Começa de novo, sem a proximidade constante da tragédia do passado. Podes sempre regressar a África mais tarde. — Não seria melhor se eu estivesse noutro sítio. — Sarah manteve-se firme. — Quero continuar a trabalhar com os Briggs. E também há aspectos a finalizar relativamente ao livro. Não posso deixar tudo com o Rabindrah. E há outras coisas… Calou-se, não querendo falar-lhes do encontro com o padre italiano nem do seu medo irracional de que Simon ainda pudesse estar vivo. A mãe ficaria consumida de preocupação, se soubesse do mais recente ataque a Langani e da investigação policial em curso. — É o lugar que eu amo — disse ela. — O Quénia é onde quero viver. É a minha terra. O lugar onde estão os meus amigos e o meu trabalho. Betty suspirou e encostou-se a Raphael. Já tinham tido esta mesma discussão no passado, naquela mesma sala, quando Sarah renunciara à oportunidade de continuar na universidade e insistira em aceitar o lugar de investigadora com os Briggs. Era jovem e, nesse dia, estava despreocupada e
repleta de esperança. E, três meses depois, tinha ligado de Langani a dizer que se ia casar com Piet. Raphael sorrira então à mulher e dissera-lhe que todas as preocupações eram infundadas. — Vejo que não consigo convencer-te a mudares de ideias — disse Betty. — Mas quero que me prometas que voltas para casa se a situação se tornar… enfim, mais perigosa. — Não me vai acontecer nada, juro — disse Sarah. — Os jornais pintam sempre as coisas piores do que são na realidade. Deixou-os e encaminhou-se para os estábulos. Tinha andado a cavalo com Tim todos os dias no vasto areal, com a rebentação de um lado e a mancha distante dos montes violeta no horizonte. Ao dobrar a esquina para entrar no pátio da cavalariça, cruzou-se com o irmão. Ele reagiu com absoluta descontracção. Não havia sinais de Camilla. — Ia à tua procura — disse ele. — Pensei que talvez precisasses de ser salva da preocupação paternal. O papá disse que se encarregava do consultório. Selei os cavalos para sairmos os dois. A maré está vaza, a areia deve estar perfeita para um bom galope. Partiram em silêncio, os cavalos dançando através do remoinho da maré, resfolegando de impaciência para lhes ser dada rédea solta. — Estás preparada para voltar? — perguntou ele. — Estou. E eles tiveram de aceitar. Já sabem que não vale a pena insistir com mais argumentos e para mim é um alívio. Quero continuar a trabalhar com os Briggs e acabar o livro com o Rabindrah. — Ouvi dizer que era bom tipo — disse Tim. — A propósito, a Camilla acha que ele se sente atraído por ti. — Que disparate — disse Sarah, corando de irritação. — Em Buffalo Springs, não se pode parar de trabalhar às cinco horas e ir para casa nem dar um salto ao pub ou ao restaurante ao fundo da rua. É por isso que temos passado muito tempo juntos. Com o Dan e a Allie, naturalmente. — Pronto, pronto — disse ele, divertido. — Não precisas de ficar toda abespinhada. Mas a Camilla é muito observadora. No teu lugar, a ser verdade, tinha um certo cuidado. As diferenças culturais seriam certamente um desafio. — Não há nada entre nós, podes crer. — Sarah estava agora irritada e a maldizer Camilla por especular sem razão e confidenciar tais ideias a Tim. — Não sei onde ela foi buscar uma ideia tão estúpida. — Ela falou-me do pai — disse Tim subitamente. — Que é homossexual. Nunca me teria passado pela cabeça. Não é nada o tipo. E falou do Anthony e do comportamento dele como o mulherengo desmiolado que é. É uma rapariga de coragem. — Disfarça bem. Como tu — disse Sarah, determinada em furar a carapaça. — Diz lá, agora que estou de partida, como é que estás a aguentar-te? Não quero intrometer-me, mas sinto-me terrivelmente apreensiva contigo. Mas Tim abanou a cabeça e esporeou o cavalo, obrigando-a a segui-lo, chapinhando na espuma e nos seixos que pareciam jóias na correnteza cintilante da água. O ar estava puro, frio e saturado de sal e ela inalou-o com prazer, guardando-o nos pulmões e na memória para os dias em que estaria sob o sol tórrido de África, com saudades da família. Estava a rir de felicidade quando pararam na ponta da praia. — Minha irmãzinha — disse ele. — Estás com um ar fantástico, com o cabelo desgrenhado e os olhos brilhantes, a cara toda rosada do vento. Tão corajosa.
Quando o momento chegou, Sarah sentiu um aperto no peito e teve de engolir as lágrimas da separação. — Volta comigo, Tim — disse ela num tom insistente. — Anda para Buffalo Springs agora. Ficas na nossa cabana de hóspedes durante algum tempo e afastas-te disto tudo. Fazia-te tão bem. — Vai, filho — insistiu Raphael. — É uma ideia excelente. O velho Mallory já me vinha ajudar durante a tua lua-de-mel, por isso… — Calou-se, vendo Tim crispar a cara. — O que quis dizer foi que nos desenvencilhamos sem ti durante duas semanas. Mas Tim sacudiu negativamente a cabeça. — Agora não — disse ele. — Mais para o fim do ano, vou. Quando as coisas estiverem… enfim, mais tarde. Compreendes? Camilla abraçou Tim, debatendo-se para manter a vivacidade, mas incapaz de se sair com um dos seus comentários frívolos ou de fazê-los a todos rir. — Se decidires visitar a Sarah, também me podes visitar — disse ela. — Aparece quando quiseres. Já sabes onde moro e talvez o ruído e as luzes da grande cidade sejam exactamente o que precisas. Sarah sentia-se inconsolável ao embarcar no comboio. Camilla sentou-se ao seu lado, oferecendo-lhe lenços, não fazendo qualquer tentativa para conversar, servindo chá forte e pedindo um conhaque para cada uma. Passado algum tempo, Sarah assoou o nariz e tentou não ouvir o som das rodas nos carris que a separavam das pessoas que a amavam. Não tinha falado na cena que tinha presenciado entre o irmão e Camilla nem no facto de Deirdre também a ter visto. Sentia vergonha da suspeita alojada no seu subconsciente e a recusa de Tim em abrir-se com ela ainda a incomodava. — Vi-te com o Tim — disse ela num impulso. — Estavam abraçados um ao outro e tu beijaste-o. No dia em que a Deirdre partiu. E ela também viu. — Oh, por amor de Deus! — disse Camilla, zangada. — Agora percebo porque é que tu e a Betty têm estado tão frias comigo. Suponho que compreendo que ela tenha tirado conclusões erradas. Mas tu? Não acredito que tenhas pensado por um momento que eu queria influenciar o Tim de alguma maneira. Sarah? — Não, claro que não. — Sarah percebeu que a negativa não soava muito convincente. — Mas ao longe pareceu um gesto demasiado íntimo e, depois de ela partir, passaste muito tempo com o Tim. — Fez uma pausa e depois atirou a contenção às urtigas. — Ele disse que lhe contaste do George. E deste a entender que o Rabindrah… que ele gostava de mim. O que é uma parvoíce. Sentidas confissões de parte a parte. Calculo que o Tim também te confidenciou os problemas dele. Que te disse porque é que a Deirdre se foi embora. — Disse. Por acaso disse. — O olhar de Camilla era frio. — E então? — E então prometi que não dizia nada. A ninguém. Portanto, tenho de cumprir a minha palavra e não contar. — Sim, claro que tens — disse Sarah, o ressentimento quase em ponto de ebulição. Camilla abriu a mala e tirou um livro, mas não conseguia ler. Parecia-lhe que tinha sido alvo de uma injustiça. Tinha procurado convencer Tim de que devia ultrapassar a humilhação e discutir o desaire com a família. — É a única solução — dissera-lhe Camilla. — Além disso, as coisas muitas vezes resolvem-se
quando são abertamente discutidas. Deves pelo menos contar ao Raphael. — Hei-de falar com o meu pai mas agora não sou capaz. — Tim tinha tirado os óculos e massajado os olhos. — Obrigado por me ouvires. Por não moralizares nem ficares chocada nem te pores com sentimentalismos. Tinha sido nesse momento que ele tomara a cara dela nas mãos mas ela tinha-se esquivado à sua tentativa desajeitada para a beijar, afastando-se dele e chamando-o para irem até à praia. Camilla suspirou de frustração. Tinha cancelado todos os seus compromissos em Londres para dar apoio quando ele foi necessário e achava as suposições de Sarah irreflectidas e moralistas. O clima entre elas permaneceu frio até ao fim da viagem. Chegaram ao apartamento de Camilla ao fim da tarde. Sarah estava incapaz de relaxar e saiu, desculpando-se com compras de última hora. Mas estava num torvelinho de emoções, depois da penosa separação da família e da discussão com Camilla, e não tardou que a chuva e o frio se lhe entranhassem nos ossos. Uma hora mais tarde, voltou para Knightsbridge, cansada e deprimida. — Lamento dizer-te que estás presa aqui — disse Camilla enquanto Sarah tentava despir o casaco húmido e descalçar os sapatos molhados. — Presa? — A Allie ligou de Nairobi. Há uma recepção amanhã em Londres, organizada pela National Geographic que esteve na tua apresentação no ano passado. O Dan quer que estejas presente. Além disso, os Briggs receberam um aumento de fundos e o Dan quer que vás buscar a documentação. Deves tentar mudar o bilhete e informá-los. — Devia sentir-me entusiasmada — disse Sarah, depois de alterar o bilhete para um dia mais tarde. — E, no fundo, sinto. Mas só queria que tivesse acontecido antes de irmos à Irlanda, porque agora só quero voltar. Ofendi-te e estou profundamente arrependida. De certeza que não me queres cá em casa mais um dia. E já tive a minha dose de despedidas dolorosas. — Eu também fiz algumas recentemente — disse Camilla. — Mas compreendi que não posso perder tempo a cismar nelas. O Edward pergunta se queremos jantar hoje em casa dele. — Três pessoas é gente a mais — disse Sarah. Apetecia-lhe estar sozinha, distanciar-se da confusão que tinha criado. — Eu vou ao cinema ou, melhor ainda, fico em casa e deito-me cedo. — O martírio está fora de questão — disse Camilla. — Além disso, vão estar presentes uns amigos dele. Um casal americano. É melhor decidires o que levas vestido. — Adoptou uma pose ameaçadora, o seu olhar revelando uma sugestão incipiente de riso. — Ou ires às compras. — Sou uma investigadora pobre em África. — Sarah começou a sorrir. — Não me parece que precise de ter o aspecto de quem faz compras em Bond Street ou Knightsbridge. Ouve, sinto muito se fui uma idiota chapada. Desculpa-me, sim? — Estava à beira das lágrimas. — Não tens emenda — disse Camilla. — Tu e o teu irmão. Anda dar uma vista de olhos ao meu guarda-roupa e depois fazes exactamente como eu te disser. Já sabes como é e funciona sempre. * O jantar com Edward foi informal. Os amigos dele ficaram impressionados com os relatos de Sarah sobre animais a investir, rios infestados de crocodilos e o rugido dos leões à noite, sob infinitos céus estrelados. Sempre tinham desejado fazer um safári, disseram. Mas achavam que era melhor viajar com um guia profissional que lhes tinha sido recomendado pessoalmente. — Acho que deviam contactar um amigo nosso — disse Sarah, quando Camilla foi preparar o
café e Edward estava a servir o conhaque. — Se me derem o vosso contacto, transmito-lhe o vosso nome e ele contacta-vos com certeza. É um dos melhores a trabalhar actualmente na área dos safáris. Fazem alguma ideia do que gostariam de ver ou fazer em particular? Discutiram os méritos dos vários parques nacionais e as diferentes aves e animais existentes em cada região. Quando estava de partida, Sarah ficou espantada quando lhe enfiaram um cheque na mão. O trabalho dela era extremamente vital e importante para a humanidade em geral, disseram. E gostariam de visitar o acampamento dos Briggs quando visitassem África mais para o fim do ano. O rosto de Sarah exultava de prazer quando eles se despediram e deixaram o grupo. — Não acredito. — Olhou para o valor do cheque e soltou um gritinho de surpresa. — Não acredito que uma pessoa possa estar a jantar, a contar histórias sobre as coisas que adora e, no fim, alguém lhe enfie na mão um pedaço de papel que cobre meio ano do seu salário. Meu Deus, é simplesmente… enfim, estou profundamente grata. Obrigada, Edward, por me teres apresentado aos teus amigos e pelo jantar e tudo o mais. — És uma contadora de histórias e uma angariadora de fundos nata — disse Camilla. — Inflamas a imaginação das pessoas com a maior das facilidades. Um talento muito útil. — Deixou que Edward a beijasse ao de leve na cara e deu o braço a Sarah. — Vamos embora. Tenho uma sessão marcada logo de manhã cedo. — Amanhã vou ver algumas atracções turísticas — declarou Sarah. — Mas volto lá para as cinco para me aperaltar para o jantar. — Não te aflijas. Já estarei em casa para te ajudar. Boa-noite. * Sarah conseguiu hora no cabeleireiro de manhã, usando o nome de Camilla. Depois passou pela Royal Academy. Seria uma vergonha regressar ao Quénia sem ter visto uma única exposição. Numa loja de fotografia, abasteceu-se de película e abriu os cordões à bolsa, comprando duas objectivas novas. Já tinha as malas cheias e definitivamente com excesso de peso e tinha gasto demasiado dinheiro. Decidiu evitar mais tentações e voltar cedo para o apartamento. Em Knightsbridge, saiu do metro para a luz do sol e consultou o relógio. Eram apenas três horas. Teria tempo para uma sesta e um banho demorado antes de ter de sair novamente. Brompton Road estava movimentada, com pessoas a fazer compras à tarde, e foi um alívio virar para a rua lateral que levava ao apartamento. Uma chávena de chá saber-lhe-ia muito bem. À porta do prédio de Camilla, viu um táxi encostado à espera, o motor a trabalhar e as luzes apagadas. A porta da rua abriu-se e um homem saiu apressado, provavelmente consciente do taxímetro a funcionar. Ele estava de costas para ela mas, ao virar-se e debruçar-se junto da janela do taxista para lhe dar instruções, Sarah estacou espantada, pensando se os olhos lhe teriam pregado um partida. Depois, levantou timidamente o braço e começou a correr para o táxi que se afastava da berma, acelerando para longe da praça. Parou para recuperar o fôlego e avaliar a situação. Era Tim. Tinha a certeza absoluta. Mas que é que ele estava a fazer em Londres e porque é que não tinha esperado por ela no apartamento de Camilla? Deviam saber que ela estava prestes a chegar. A sua cabeça ia revolvendo as possibilidades. Talvez o irmão tivesse decidido viajar para o Quénia com ela. Sentiu-se mais animada. Estava a sorrir enquanto subia as escadas e enfiava a chave na fechadura. Na sala de estar,
Camilla estava a falar ao telefone. Fez sinal de que não demorava e apontou para a cozinha. Sarah dirigiu-se ao balcão e ligou a chaleira. — Amanhã à noite, não posso, Tom — disse Camilla com irritação. — É muito em cima da hora e tenho outro compromisso. — Não, porra, não posso desmarcar. Se querem realmente que eu vá jantar, têm de arranjar outra data. De certeza que resolves isso. Ciao, querido. Enquanto aquecia o bule, Sarah reparou nos dois copos vazios no lava-loiça. Ouviu o estalido de Camilla a desligar. — Voltaste cedo. Que tal foi o dia? Era o querido Tom ao telefone. Há um cliente que me seleccionou para uma nova colecção de jóias e convidou-nos para jantar. Nunca hei-de perceber porque é que esta gente não é capaz de assinar contratos num escritório, diante de uma chávena de café. Porque é que querem todos ser vistos num restaurante ou num clube chique com a modelo a reboque. O teu cabelo está bestial. Queres dormir uma sesta? Tenho uma coisa que és capaz de gostar de usar se quiseres arrumar com eles. Camilla estava a falar muito depressa, uma catadupa de palavras, e Sarah viu que ela estava nervosa. Não mencionou Tim. — Toma o chá — disse Sarah. — Aconteceu alguma coisa de importante hoje? — Nada. — A resposta de Camilla foi vaga. — Um dia sem história. Os convidados do jantar do Edward ligaram a dizer que eras maravilhosa. Depois de te darem um cheque, são capazes de se julgar teus donos e do Dan, da Allie e dos elefantes também. Tenho a certeza de que vão aparecer no Quénia mais para o fim do ano. Visitámos o sítio, conversámos com os cientistas, ficámos no acampamento deles. Essas coisas. Sarah afastou-se. Que é que se estava a passar? Tim tinha acabado de ali estar, não tinha qualquer dúvida. Mas não tinha esperado por ela nem deixado mensagem. E Camilla estava a esconder o facto de ele estar em Londres. E já agora, porque é que ele estava em Londres? Cada pergunta que se lhe formava no espírito levava a outra e estava a começar a sentir uma dor de cabeça incipiente. Às tantas devia dizer qualquer coisa, admitir que tinha visto o irmão lá fora na praça e que o vira desaparecer num táxi. A raiva começou a ferver dentro dela, deixando-lhe um sabor azedo e acre na garganta. — Vou dormir uma hora e tomar um banho depois — disse ela. — E depois vou arranjar-me. Vou vestir a mesma roupa de ontem à noite.
Quando saiu do apartamento para o jantar, um remoinho de dúvidas agitava-lhe o espírito. Agora que estava fora de casa, pensou se Tim voltaria. Talvez ele e Camilla estivessem a planear jantar juntos ou encontrar-se no hotel dele. Onde ele teria um quarto seu. Não, isso era impossível. Mas parecia muito suspeito. Estava preocupada com o irmão, confusa com o seu comportamento. Quando embarcou no avião na manhã seguinte, estava zangada. Muito, muito zangada.
Camilla abriu a porta ao princípio da tarde, dando com Tim Mackay à entrada. Ele parecia um cão perdido e ela ficou tão irritada com a sua vulnerabilidade como com o facto de ele a ter colocado numa posição impossível com a irmã. — Desculpa ter aparecido inesperadamente ontem — disse ele. — Pensei que a Sarah já tivesse
partido para Nairobi. — Ela viu-te na praça — disse Camilla. — Tens a certeza? — perguntou ele, deprimido. — Mostrou-se decididamente fria comigo antes de partir e não me ocorre outra razão. É melhor entrares. — Que é que lhe disseste? — quis saber Tim. — Nada. Como prometi. — Olhei à minha volta quando cheguei à rua — disse Tim. — Não olhaste com atenção suficiente. Por que diabo não ficaste e falaste com ela? — É complicado. — A vida é complicada. E agora que fizeste uma mossa na minha amizade com a tua irmã, talvez queiras explicar o que estás aqui a fazer. Estou a partir do princípio de que não te meteste num avião para vires tomar um chá comigo. — Não. O bom, sólido e leal Timmy não faz essas coisas. — Pôs um ar embaraçado. — Onde é que o Raphael e a Betty pensam que estás? — Imagino que pensam que ando à procura da Deirdre. — Pois, mas ela aqui não está de certeza — disse Camilla. — Desculpa esta história toda — disse ele, empurrando os óculos para a cana do nariz. — Eu sei que devia ter vindo enquanto a Sarah ainda cá estava. Mas ando tão confuso. Além disso, ela já tem os problemas dela. — E eu não? — Não serve de nada seres sarcástica. Preciso de falar com alguém. Explicar o que aconteceu. — E resolveste atribuir-me o papel de consultora psíquica — disse Camilla, irritada com a presunção dele. — Queres que eu largue tudo só porque me bates à porta sem me avisar. E depois desapareces como o maldito coelho branco porque ficas com medo de te cruzar com a Sarah. — Realmente é um comportamento idiota — admitiu ele. — Não me expliquei em condições. — Disseste-me na praia em Sligo que a Deirdre fugiu porque não era capaz de enfrentar o casamento. Que os pais dela estavam desesperadamente infelizes e a família estava em pantanas e que ela se acobardou. E estavas furioso porque ela nunca te tinha dito nada e depois deixou-te pendurado à última hora. Para mim está explicado. O que não entendo é por que razão não podes explicar isso à Sarah. Ele abanou a cabeça, sem a olhar frontalmente e sem responder. — Perdeste o pio — disse ela. — Assim não vamos a lado nenhum e eu tenho mais que fazer. — Não sabia que piava. — Formou-se um sorriso no rosto de Tim e desataram os dois a rir, quebrando a tensão. — Vou fazer chá — disse ela. — E depois é bom que comeces a falar. Depressa. — Queria encontrá-la — disse Tim, depois de acabar a segunda chávena. — A Deirdre tem uma irmã em Londres e por isso pensei que podia ter vindo para aqui. A morada e o telefone estavam na nossa lista de convidados para o casamento. Quando liguei de Sligo, foi a Deirdre quem atendeu o telefone. Desliguei sem dizer nada. Mas depois pensei que devia tentar falar com ela. Já não me sentia zangado. Pensei que ela já se podia ter acalmado, como eu. Mudado de ideias, mas demasiado envergonhada para admitir. E, se fosse o caso, podíamos casar-nos aqui. Discretamente e sem festejos.
— Ainda a amas o suficiente para fazeres isso? — Camilla não foi capaz de esconder a surpresa na voz. — Não sei. Achei que ela seria a mulher ideal — disse Tim. — Saí com muitas raparigas quando era estudante com quem passei bons momentos. Mas não escolheria nenhuma delas para passar a vida comigo. Eram experientes, dormiam com metade dos meus amigos. Sabes como é. — Andavas à procura de uma vestal virgem apesar dos teus esforços para as condenar à extinção? — perguntou Camilla, levantando as sobrancelhas. — Na hora da verdade, essas meninas dão com os pés a um tipo num abrir e fechar de olhos por um médico de sucesso ou um advogado endinheirado. Ou até um dentista. A verdade é que fiquei a arder algumas vezes. Mas ela era diferente. Levantou-se e começou a dar voltas na sala, detendo-se à janela de costas para ela. Tinham-se conhecido no turno da noite, disse ele. Tinha ficado impressionado com os esforços de Deirdre para acalmar um homem idoso cuja família o abandonara. Era um doente difícil, solitário e azedo, e a maioria das enfermeiras tratava rapidamente dele e partia para outra. Mas, à medida que o fim dele se aproximava, Deirdre sentava-se com ele sempre que havia um momento morto na enfermaria. O homem tinha sido professor e ela fazia-o sorrir, citando passagens de manuais escolares que tinha adorado ou detestado. Ele morreu tranquilamente, um dia, ao nascer do sol e, mais tarde, Tim tinha-a levado a um café do bairro para tomar um café forte e comer bacon e ovos. — Quando começámos a sair regularmente, ela contou-me que tinha tido uma infância difícil porque a mãe era alcoólica. Nunca falava do pai, a não ser para dizer que era sempre severo com ela. Eu estava a trabalhar no limite, com um horário brutal, sem poder levar uma rapariga a sair duas ou três vezes por semana. Agradava-me que a Deirdre fosse estável e sensata. Não era uma pessoa que mudasse de namorado como quem muda de sapatos. — Parece razoável — disse Camilla, pensando se Deirdre teria tido mais namorados. — Ainda que um tanto monótono. — Sentia-me bem com ela — disse ele. — Claro, ao fim de algum tempo, quis dormir com ela, mas ela rejeitou-me sem hesitar. Disse que nunca pensaria em ir para a cama com ninguém que não fosse marido dela. E eu tive de respeitar isso. Podes achar antiquado e irracional, mas a mim causou-me admiração. — Valha-me Deus — disse Camilla, com um sorriso malandro. — Pobre Timmy… nas garras do desejo carnal insatisfeito. — Suponho que sim. Seja como for, quando o meu pai decidiu instalar-se em Sligo, a Deirdre disse que vinha trabalhar connosco. Disse que estava cansada de Dublin. — Tim voltou a sentar-se. — Estou para aqui a fazer uma figurinha, não estou? A desfiar as mágoas assim. — Não és o único que fazes figurinhas — disse Camilla. — Até agora essa história podia ter acontecido a qualquer um. — Reclinou-se no sofá. — Senti-me lisonjeado — disse Tim. — Tinham-lhe oferecido uma promoção em Dublin com aumento de salário. Um dos consultores principais tinha-a convidado para sair algumas vezes e ela tinha-o rejeitado. Estava preparada para largar tudo e vir comigo para o calcanhar-do-mundo. Nessa altura, pedi-a em casamento. E ela aceitou. — E tu pensaste que estavas a caminho da eterna felicidade. — Concordámos com um casamento discreto — disse Tim. — Quando a Sarah disse que não vinha, a Deirdre sugeriu que adiássemos o casamento, mas eu quis ir avante. Fui falar com os pais
da Deirdre. A mãe foi perfeitamente agradável e, tanto quanto me foi dado ver, estava sóbria. Mas o clima entre a Deirdre e o pai era mau e ele não fez qualquer tentativa para o disfarçar. Não achou graça nenhuma à escolha dela de um médico de província modesto e fez uma série de observações desdenhosas sobre as minhas perspectivas de futuro. Senti-me incomodado, para não dizer mais, e fiquei aliviado quando viemos embora. Camilla esperou que ele continuasse, mas ele ficou de olhos fixos no espaço até que ela o instigou suavemente. — Então, Timmy. Não percas agora a fala. — Não podia falar com a Sarah sobre nada disto — disse ele. — Ela nunca simpatizou com a Deirdre. Quando decidiu aceitar o lugar em Buffalo Springs, em lugar de continuar na universidade, tivemos uma desavença. Ela partiu para o Quénia e pouco depois o Piet pediu-a em casamento. Estavam perdidamente apaixonados e eram perfeitos um para o outro. Não sei como ela sobreviveu ao que se passou a seguir. E acabei por ser eu a ficar noivo. Tinha a oportunidade que ela tanto desejou. Mas fiz tudo mal e parece injusto e cruel, seja qual for o ponto de vista. E não é um assunto de que queira falar com ela. Compreendes o que eu estou a dizer? — Compreendo. — A Deirdre queria adiar a lua-de-mel por causa do excesso de trabalho no consultório. Mas eu já estava farto de adiamentos e disse que não. E depois ela viu a casa. Uma casa nossa onde podíamos viver juntos. Reagi com entusiasmo nesse dia, puxando-a para a cama de dossel comigo, beijando-a e brincando com ela. — Calou-se, corando. — Sabes como é. Tinha-lhe dito que íamos passar a lua-de-mel a Paris. A cidade do amor. Mas ela estava nervosa porque não falava a língua e achava os franceses intimidantes. — É o que os parisienses gostam de fazer as pessoas sentir — disse Camilla. — E são muito hábeis nisso. — Bem, irritei-me com ela. Disse-lhe que estava cansado dos receios e das objecções dela e ela fugiu a correr da casa, passando por vocês todos, e voltou para o consultório. Não dei muita importância ao episódio, pensando que ela estava a ter dificuldade em lidar com tanta coisa, sem ter a família para desabafar. — Nervosismo de noiva. Antiquado e encantador — observou Camilla. — Essa história parece cada vez mais um romance da Barbara Cartland, Timmy. — Mas não é — retorquiu Tim. — É uma maldita história de terror. Porque quando voltei para o consultório, ela estava lá, lavada em lágrimas. Disse que me tinha escrito uma carta. E que não podia casar-se comigo. Nunca. Disse que tinha sido… enfim, que tinha sido desonrada. Que tinha sido molestada em nova. Oh, merda, foi violada pelo pai, porra! Foi uma coisa que durou anos. E ela nunca conseguiu esquecer. Disse que não era capaz de ter relações sexuais com ninguém. — Oh, meu Deus, que coisa terrível! Pobre rapariga. Pobre Timmy. — Sugeri que ela fosse a um psiquiatra. Que se libertasse daquilo de uma vez por todas. Mas ela ficou furiosa. Disse que não era louca e que não ia a nenhum psiquiatra porque, assim que a vissem entrar no consultório, toda a gente ia ficar a saber. E depois desapareceu. — Nunca mais tiveste notícias dela? — Não. Na mensagem dizia que se matava se eu tentasse encontrá-la ou forçá-la a voltar. — Fez uma pausa. — Desde o princípio que sabia que não estava preparada para se casar com ninguém. Mas, mesmo assim, alinhou no noivado e deixou a minha mãe avançar com os preparativos do casamento. Não me consegui conformar com o facto de ela não me ter contado a verdade. De me ter
posto completamente a ridículo. — Estiveste com ela? — Tentei — disse ele. — Depois de ter saído daqui ontem. Mas ela recusa-se a falar comigo. Nunca mais, disse ela. Tenho pena dela, mas também me sinto culpado. Porque, agora que ela me rejeitou outra vez, o que sinto é alívio. Pior ainda, sou suficientemente egoísta para estar para aqui a pensar como vou lidar com o falatório todos os dias no consultório e com os cochichos e risinhos pelas costas numa terra tão pequena. Descobri que, no fundo, não passo de um cobarde e custa aceitar. Portanto, estou completamente fodido, seja qual for o ponto de vista. — Subitamente sorriu. — Enfim, suponho que o problema é não estar fodido. E a minha irmã provavelmente está furiosa com nós os dois. — Não se pode dizer que a situação seja a ideal. — Camilla olhou para ele com simpatia, a cabeça inclinada de lado. — O Raphael tem de ser informado. Deves falar com o teu pai, Tim. Tim tirou os óculos e esfregou os olhos. — Suponho que tens razão — disse ele, num tom cansado. — Mas não podia ter explicado nada disto à Sarah. — Mas tens de lhe escrever. Contar-lhe por carta. — Não quero… — Estou-me nas tintas para o que tu queres — explodiu Camilla, irritada. — A amizade da tua irmã é a coisa mais importante que eu tenho e não vou correr o risco de beliscá-la por nada. Podes cá ficar esta noite e amanhã continuamos a conversa. Mas na condição de contares à Sarah o que aconteceu. Deves-me isso. — Tens razão. Eu escrevo-lhe. O telefone tocou e Camilla atendeu. — Edward. Não, infelizmente não posso fazer nada esta noite. Agradeço muito a ideia, mas amanhã tenho uma sessão de estúdio com luzes muito fortes e estou a planear deitar-me cedo. Ligo-te durante a manhã. Sim, prometo. Boa-noite. — Virou-se para Tim. — Estás a ver o que arranjaste? Tive de recusar um encontro para jantar por tua causa. É bom que me convides para jantar no restaurante mais próximo para te redimires. * De manhã, Camilla levantou-se cedo. Tim ainda estava a dormir no quarto de hóspedes, a boca ligeiramente aberta, emitindo pequenos sopros e ressonando levemente. Tinha um ar indefeso sem os óculos grossos de aros de metal e o cabelo estava desalinhado, como o de um personagem num livro de histórias aos quadradinhos. Camilla debruçou-se e beijou-o na testa como teria beijado uma criança. Depois fez uma cafeteira de café e torrou pão e o aroma penetrou através do sono dele e fê-lo aparecer na pequena cozinha. — Obrigado — disse ele, sem jeito. — Por ontem à noite e por tudo. Desculpa se criei problemas entre ti e a Sarah. — Só tens de os resolver — disse ela. — Que planos tens para hoje? — Tenho de apanhar o avião ao meio-dia, saio daqui dentro de uma hora ou coisa assim. — Olhou para ela com os seus olhos míopes e sorriu. — Não me tinha permitido pensar no assunto, falar sobre ele. Era como uma grande bola escura alojada no meu cérebro. Mas agora há-de ser mais fácil continuar. — És impossível — disse ela. — Se queres o meu conselho, devias pensar em aceitar o convite
da Sarah. Mete-te num avião para Nairobi. Vai para longe disto tudo. Ela ia adorar mostrar-te o reino dos elefantes dela. E a Hannah havia de ficar deliciada por voltar a ver-te. — Ainda não — disse Tim. — Preciso de resolver as coisas em casa primeiro. Agora vou arrumar as minhas coisas, porque sei que tens um dia em cheio à tua frente. Passou os braços pela cintura de Camilla e baixou a cabeça para a beijar mas ela libertou-se e fez-lhe uma festa afectuosa na cara. — É melhor ir andando — disse ele, um pouco tímido e corado. — Mais uma hora sozinho com a rapariga mais bela do mundo e não garanto que permaneça casto. — Sentia-me insultada se permanecesses — disse ela, rindo. — Cheira-me ao princípio da recuperação. Fala com o Raphael. Mantém-me a par. Nada de segredos misteriosos. Pela janela, Camilla viu-o afastar-se em Brompton Road. Suspirou, pensando na dor que ele devia carregar no peito e na humilhação que lhe atormentava o espírito. Sentimentos com que estava bem familiarizada. Já estava atrasada para a sessão e tomou um duche e vestiu-se rapidamente, enfiou vários livros e uma confusão de cosméticos no saco e saiu do apartamento. Foi um dia cansativo com um fotógrafo exigente que estava com uma ressaca. Fazia demasiado calor no estúdio; a luz forte dos projectores pôs-lhe os olhos a arder e causou-lhe dores de cabeça. Quando voltou para casa ao fim do dia, já passava das sete e sentia-se estourada. O telefone estava a tocar quando abriu a porta. — Ficaste de me ligar hoje de manhã, não te lembras? — disse Edward. — Desculpa, tive um dia infernal. — Eu também — disse ele. — Tive uma série de doentes esta manhã particularmente complicados. Mas posso ser revigorado. Jantamos? — Podes cá vir, se quiseres — disse Camilla. — Estou demasiado exausta para me mexer. Ele chegou com uma garrafa de champanhe gelado e uma mão-cheia de tulipas cor-de-rosa. — Estás com um ar exausto — disse ele. — Pensei que te ias deitar cedo ontem. — E deitei. Saí de casa às nove da manhã e tive um dia extenuante. Mas agora tenho quatro dias de folga. Disse ao Tom que não me marcasse rigorosamente nada. — É motivo para festejar — disse ele. — Vou abrir o champanhe e pô-lo no gelo. No lava-loiça da cozinha estavam duas chávenas e dois pires e um par de pratos com as sobras do pequeno-almoço. Edward olhou para eles, franzindo a testa. Ela devia ter tido um convidado, se bem que o princípio da manhã não fosse a hora preferida de Camilla. Se tivesse ficado alguém a passar a noite, era estranho ela não ter falado em nada. Encheu o balde do gelo e voltou para a sala de estar, o coração a pulsar um pouco depressa de mais. Era absurdo alimentar suspeitas, sentir-se inquieto, mas não conseguia libertar-se dos tentáculos do ciúme que lhe apertavam o coração. Que é que ela estava a esconder e porquê? Olhou para Camilla, o seu cabelo refulgindo com um brilho dourado sob a luz do candeeiro, o rosto calmo, inocente e absolutamente belo. A sua paixão por ela tornava-o inseguro, destruía a sua habitual autoconfiança. Só sabia que a queria para si. Ela aproximou-se dele e ele tomou-a repentinamente nos braços e beijou-a, experimentando um sentimento parecido com pânico. Camilla permaneceu imóvel, deixando-o acariciá-la e murmurar-lhe palavras de amor ao ouvido. Pensou em Tim e no seu sonho de felicidade perdido e em Sarah, que era simples, meiga e generosa e nunca mais poderia sorrir ao seu amado Piet e sentir gratidão pela sua presença. Imaginou Lars, a abraçar Hannah com os seus poderosos braços, protegendo-a contra ventos e marés. E a solidão e
futilidade da fama atingiram-na em força. — Anda — disse ela, conduzindo Edward pela mão para o quarto, movendo-se como uma sonâmbula num sonho sobressaltado. — Vem fazer amor comigo. Já lá vai muito tempo e eu tive saudades tuas. Deitada ao lado dele mais tarde, olhou para o seu corpo magro e para as suas belas feições e descobriu que se sentia calma. E grata pelo que tinha. — Amas-me nem que seja um bocadinho? — perguntou ele, numa voz levemente rouca. Ela ficou surpreendida com a intensidade da expressão dele e pelo tom da voz, um tom que raiava o medo. Beijou-o na boca mas, quando ele quis fazer novamente amor com ela, Camilla afastou-o com um sorriso e uma promessa murmurada. Tomou banho, vestiu-se e foi à cozinha reunir ingredientes para um jantar. Enquanto acendia as velas na mesa, Edward aproximou-se por trás dela e passou-lhe os braços pela cintura. — Casa-te comigo, Camilla. Amo-te loucamente e acho que te posso fazer feliz. Casas-te comigo? — Ainda não estou preparada para isso, Edward. — Eu estou — disse ele. — Fazemos um bom par. Eu sou ideal para ti, querida. Sabes bem. — Se bem me lembro, já tens mulher. — Era cruel, mas ela não queria ser pressionada. — Nunca accionei o processo de divórcio — disse ele. — Não sei porquê, pareceu-me desleal divorciar-me de uma pessoa que está impotente, em estado de coma. E, de qualquer modo, não tinha nenhuma razão para o fazer. Até agora. Mas, depois de tanto tempo, não seria difícil consegui-lo. Estou muito apaixonado por ti, Camilla, e quero casar-me contigo. Não sou capaz de imaginar o resto da minha vida sem ti. — Seria demasiado fácil dizer que sim — disse ela, adoptando um tom mais suave. — Mas não me parece boa ideia. Não sou do género carinhoso, como uma mulher deve ser. Ainda há um lado em mim que precisa de independência. Não te quero desapontar, nem estragar os bons momentos que partilhamos. — Talvez não seja preciso que sejas carinhosa. Talvez seja esse o meu papel. — Não, Edward. O casamento não é uma coisa que eu possa contemplar agora. Talvez seja um efeito do passado, uma coisa entranhada em mim, de assistir à luta diária entre os meus pais. Mas não é para mim. Ele baixou a cabeça, desalentado e incapaz de esconder a desilusão. — Há alguma coisa que eu não saiba? — perguntou-lhe. — Tem a ver com o Anthony Chapman? Estiveste com ele? — Não tem nada a ver com ninguém senão eu — respondeu ela. — Não falemos mais nisto. Tens de procurar tolerar-me por enquanto como eu sou e esperar que eu mude para melhor. — Sim — disse ele. — Vou sempre esperar que mudes de ideias. Entretanto, à nossa saúde e ao que já temos.
Ele foi-se embora, no dia seguinte de manhã cedo, e ela viu-o partir com alguma mágoa. De certo modo, amava-o. Não era uma paixão assolapada que a fazia sentir-se desolada e incompleta quando não estava com ele. As horas não se arrastavam quando estavam separados e ela não passava tempo impacientemente à espera dele ou a pensar quando ele iria telefonar. Mas sentia-se bem quando estavam juntos, à vontade em casa dele e com os amigos dele, que claramente lhe invejavam o seu
belo troféu. Edward proporcionava uma sensação de segurança que ela reconhecia ser importante. Ouvia-a, encorajava-a a abrir-se à sua compreensão, interessava-se pelo seu trabalho. Com ele estaria segura. Ele nunca a enganaria. Camilla pensou que talvez bastasse.
CAPÍTULO 10
Quénia, Maio de 1967 que ela não vai voltar — disse Hannah. — Deu-nos o dinheiro todo da gala para –Acho recomeçarmos. E podemos ficar com o que ganharmos com as vendas locais, em lugar da percentagem inicial. Aos olhos da Camilla, é o mais importante… receitas adicionais para a fazenda. Sabe que precisamos delas e que eu fico grata. E lisonjeada também por ela me confiar inteiramente a oficina. Foi fiel à palavra dela. — Não achas que ela te teria dito se tivesse decidido ficar em Londres? — disse Lars. — Ou à Sarah? — Não necessariamente. Tem o hábito de desaparecer sem explicações quando as coisas correm mal. — Suponho que em Londres a situação no Quénia é capaz de não parecer muito boa — disse Lars. — A carreira dela quase foi arruinada aqui uma vez. A cicatriz só agora começou a desaparecer. Depois, por nenhuma razão que se vislumbre, a oficina é destruída. E o homem dela tratou-a muito mal. Porque é que ela havia de voltar? — Não faço ideia — disse Hannah. — Em Londres, tem tudo… um apartamento numa zona chique da cidade vibrante, fama e segurança. Mas em breve saberemos. — Fechou a porta da oficina e meteu a chave ao bolso. — Tenho de lhe escrever hoje a contar que já está tudo pronto. Não é que ela responda. Ainda não me conformei com o facto de ela ter mandado os cheques através do contabilista sem sequer juntar uma mensagem. — Saiu de circulação, por assim dizer. — Lars tocou-lhe na face. — Mas sabes que tens um lugar no coração dela. — Suponho que sim. Seja como for, na próxima semana quando as máquinas de costura chegarem, podemos retomar o trabalho. A Makena aceitou voltar e uma das filhas também. Vou ter três novas recrutas em mãos, mas acho que me desenvencilho. Lars pegou-lhe na mão. — Tão forte, a minha pequena Hannah — disse ele, sorrindo-lhe. — Tão forte e doce, como o meu chá preferido com mel. Ainda queres dar um salto ao lodge agora? — Quero — disse ela. — Temos de abrir em Junho, se pudermos. O Anthony vai trazer os primeiros hóspedes e várias empresas de safáris prometeram-nos reservas. Temos de abrir o lodge para mostrar que estamos aqui para ficar. Que eles não nos afugentam com o terror. Ele acenou com a cabeça e ajudou-a a entrar para o Land Rover. Mas interrogou-se quem ela pensaria que «eles» eram e que hipóteses tinha de protegê-la contra o inimigo sem rosto que estava a tentar destruir a fazenda. Desde que tinha tomado a sua decisão, Hannah tinha dado início a uma rotina que, embora extenuante não lhe deixava tempo para rememorar nem para alimentar dúvidas ou reconsiderar. Mwangi servia o chá todos os dias às seis da manhã e ela tomava-o na cama, retirando forças do poderoso e reconfortante corpo de Lars ao seu lado e dos sorrisos e gorgolejos da bebé no berço. A
primeira paragem era na vacaria, seguida do pequeno-almoço e de decisões domésticas tomadas com Mwangi e Kamau. Hoje em dia, o cozinheiro andava sempre bem-disposto. O jovem casal não ia abandonar a fazenda como o bwana Jan tinha feito. O lodge abriria em breve e depois o filho David teria uma posição da maior importância em Langani. Viriam wazungu de muito longe para louvar as cozinhas e ele, Kamau, seria reconhecido por ter ensinado ao filho primogénito a preparar a melhor comida do Quénia. Movia-se pelo seu domínio como um turbilhão, batendo com tachos e panelas e repreendendo David pela maneira como ele descascava cenouras ou adicionava claras de ovo ao preparado de um bolo. Hannah nunca tinha gostado de trabalhar no escritório, mas preparava os arquivos e as contas com uma precisão que teria resistido a uma auditoria nacional, e estava sempre presente nas reuniões com o banco, armada de factos e números e de razões plausíveis para o banco continuar a atribuir-lhes crédito. Permitia-se várias pausas ao longo do dia para amamentar Suniva e brincar com ela. Depois, deixava a bebé com a ama e partia mais uma vez a cavalo ou de carro para percorrer os campos com Lars, inspeccionando o gado, avaliando a qualidade do trigo, sempre a calcular mentalmente as receitas e as despesas. Mas raramente falava com os watu. Lars sentia preocupação com a sua recusa em se dirigir aos trabalhadores mais velhos, muitos dos quais estavam na fazenda ainda ela não tinha nascido. — Há uma semana que praticamente não falas com o Juma — disse-lhe Lars, incomodado com os seus modos severos quando se cruzaram com o capataz durante a sua ronda. — Ele ficou ofendido, Hannah. É um trabalhador leal e faz um bom trabalho. Olha para ele além, a dar cabo das costas a reparar aquela vedação. — Ninguém sabe quem é leal e quem não é — disse ela, franzindo os olhos. — Não podemos confiar em nenhum deles. Lars não respondeu. Era uma diferença de opinião que ele nunca tinha conseguido resolver. Desde o assassínio do irmão que Hannah não conseguia ultrapassar a desconfiança que sentia de todos os trabalhadores da fazenda. Só Mwangi e Kamau estavam acima de toda a suspeita e, como a ama tinha trabalhado muitos anos com a família Murray, também era tolerada. Mas Lars já não podia deixá-la sozinha na fazenda. Embora ela procurasse disfarçar o medo, ele tinha plena consciência dele. Pairava sobre eles, dia e noite, um clima de ameaça que os obrigava a uma cautela e vigilância constantes. Era fatigante, esgotando-os mental e fisicamente, e o consolo que transmitiam um ao outro não bastava para aplacar o seu desassossego. Lars tinha mesmo telefonado a Jan na Rodésia, discutindo demoradamente com ele o incidente na oficina de Camilla. Mas o sogro não tinha ajudado e tornara claro que não podia regressar a Langani. O seu regresso também não teria adiantado de nada. No seu estado actual de alcoolismo e melancolia, teria sido mais um peso morto que outra coisa. Mas Hannah talvez beneficiasse com a companhia da mãe, mesmo por pouco tempo, e Lars pensou se poderia convencer Lottie a tirar umas férias. * O Land Rover ia saltando ao longo do trilho acidentado, juncado de pedras angulosas e recordações, e pouco depois chocaram com um buraco na estrada. O veículo fugiu de lado e Lars agarrou-se ao volante e voltou a atenção para a condução. — Tem um ar fantástico daqui — disse ele, abrandando por um momento para indicar os
contornos do lodge. — Vê-se o palhiço dos telhados mas têm um aspecto muito natural com as paredes curvas. Como se tivessem nascido espontaneamente dos rochedos. Exactamente como o Piet previu. A visão dele criou uma obra excepcional. Hannah olhou pela janela e Lars não viu o seu súbito sorriso. Não tinha falado em Viktor, que concebera genialmente as construções, e ela achava que nunca mais nenhum deles voltaria a pronunciar o seu nome. Sabia que Lars o devia ter visto na gala em Nairobi, mas não tinha dito nada. Três dias depois de regressarem à fazenda, Hannah tinha ido a Nanyuki fazer compras. Quando terminou, tinha-se sentado no Hotel Silverbeck e, enquanto tomava café, deu uma vista de olhos aos jornais diários. Não havia nada de interesse na primeira página mas, quando abriu o jornal, viu as feições vorazes de Viktor Szustak a sorrir-lhe, o que a fez engasgar-se e entornar café da chávena levantada no regaço. Limpou a nódoa na saia e tentou compor-se. Ao fim de alguns minutos, voltou a pegar no Standard, dizendo a si mesma que não tinha lido bem o curto artigo. Por baixo da fotografia de Viktor, não havia mais do que algumas linhas de texto. A sua autorização de trabalho tinha sido revogada e tinham-no deportado por causa de irregularidades nos seus negócios. Mr. Johnson Kiberu tinha feito uma declaração, dizendo que Mr. Szustak era um arquitecto talentoso que tinha feito um excelente trabalho ao projectar as sedes dos Parques Nacionais e ao criar vários hotéis turísticos excelentes. Mas não estava acima da lei e a sua deportação devia ser entendida por quem não respeitasse os regulamentos governamentais como um aviso. Hannah soltou uma sonora gargalhada, o seu corpo contorcendo-se com o riso, e depois tapou a boca com uma mão porque várias pessoas olharam para ela com curiosidade. Pegou nas suas coisas e dirigiu-se para o carro, trauteando sozinha quando transpôs o portão da fazenda. No escritório, pousou o jornal na secretária, ainda aberto na segunda página, e pôs-se a ordenar as pastas de contabilidade. Lars pegou no Standard e leu o artigo. Depois virou-se para encarar a mulher por alguns momentos antes de acenar lentamente com a cabeça. Estava a sorrir radiosamente quando atirou o jornal para o cesto dos papéis e saiu para o sol. Hannah tinha ficado a vê-lo afastar-se, atónita. Ele não parecia minimamente surpreendido. De súbito, teve a certeza de que tinha sido obra dele. O seu maravilhoso e inteligente marido tinha-a salvado da angústia e da vergonha e amava-o mais do que alguma vez imaginara possível. Hannah ainda estava a sorrir quando pararam à porta do lodge. — Hannah? — Lars deu-lhe uma cotovelada. — Não respondeste à minha pergunta. — Que pergunta? — É mesmo típico de uma mulher — disse ele. — Fiz-te uma pergunta muitíssimo importante e tu estás aí perdida em devaneios sem me ligares nenhuma. — Os meus devaneios eram contigo — disse ela, inclinando-se para o beijar. — Que é que perguntaste? — Se queres plantar alguns arbustos de flores à volta desta zona de recepção — disse ele. — E, se queres, de que cor devem ser? Posso mandar aqui um dos rapazes das shambas para começar a abrir buracos se me disseres onde queres pô-los. Entraram na área de recepção principal e atravessaram o salão. Hannah ia parando pelo caminho para posicionar melhor uma cadeira, alterar o sítio de um tapete ou a combinação das almofadas num sofá. Toda a mobília tinha sido feita na fazenda e ela tinha pessoalmente cosido as capas das almofadas, as colchas e as cortinas, orgulhosa por fazer parte do plano de Piet para criar na fazenda uma reserva de animais selvagens e um lodge de observação. Tinham passado mais de quinze
meses desde que estivera naquele mesmo lugar com o irmão, contemplando a sua obra com satisfação e alimentando os seus sonhos impossíveis. Durante muito tempo, não fora capaz de ir ali, confiando em Lars para cuidar do lugar. Mas, desde a destruição da oficina, Hannah tinha começado a encarar o lodge de uma perspectiva diferente, determinada em suprimir o profundo terror de o visitar. Quando abriu a arrecadação pela primeira vez, as suas mãos tremiam ao abrir o cadeado, escancarando a porta e assustando uma coruja que tinha fixado residência nas vigas do tecto. Ele observou-a solenemente a retirar as capas de protecção e a admirar os belos objectos que tinham sido arrumados depois da morte de Piet. Se ao menos tivesse sabido que ele os deixaria em breve… Não lhe tinha dito vezes suficientes como o amava e admirava. Muitas das esperanças que tinham alimentado ainda permeavam aquele lugar e agora transmitiam-lhe a vontade de continuar a obra que ele tinha começado. Em sua memória. — Vai correr tudo bem, não vai? — perguntou ela a Lars, numa voz trémula. — Vai. Vai correr tudo bem, Hannah. E ele vai sentir orgulho em ti. Ela apertou-lhe a mão e foram ambos até à plataforma de observação, alongando os olhos sobre a seara dourada e ondulante à distância e a curva de vegetação que acompanhava o rio. O céu estava coberto de um tom esbranquiçado e deslavado e a forte claridade humedeceu-lhe os olhos, levandoa a proteger a cara com a mão. No alto sobre as planícies, vários abutres descreviam círculos no ar parado, à espera de cair sobre uma presa. Hannah não viu nem ouviu o homem escondido no arvoredo para lá do bebedouro, agachado no solo e baloiçando-se para trás e para a frente sobre os calcanhares, desenhando círculos na terra com dedos ossudos e murmurando orações e feitiços enquanto os wazungu contemplavam a terra dos seus antepassados. O seu ódio avolumava-se, supurando como uma ferida, e Hannah sentiu o corpo percorrido de um tremor. Os abutres estariam também à espera dela? Sobrevoando o estertor final da fazenda? Endireitou os ombros e deu a mão ao marido. — O Anthony chega mais para o fim da semana — disse Lars. — Vai deixar alguns clientes em Nanyuki, para o descanso habitual no Safari Club enquanto o acampamento dele é transferido. Podemos discutir o lodge enquanto ele cá está. Conversar sobre a maneira como ele quer orientar as coisas enquanto accionista. — Esteve de visita no acampamento dos Briggs recentemente — disse Hannah, num tom reprovador. — A Allie fez-lhe perguntas sobre a Camilla com a frontalidade habitual. Mas não era um assunto na agenda dele. Ora, não é melhor que um velho bode ou um cão que fareja uma cadela com cio. Portou-se muito mal. Todos sabemos onde tinha a cabeça nessa noite. Não tem sensibilidade nenhuma nem sabe o que é a lealdade. Pode ser inteligente e encantador e conhecer o mato de trás para a frente, mas falta-lhe qualquer coisa. É incapaz de criar laços. Não é de confiança no capítulo das mulheres.
Contudo, quando Anthony chegou, Hannah gostou de o ver. Ele estava bronzeado e alegre, a fervilhar de histórias sobre o pequeno grupo de clientes que tinha levado em safári. Naquela ocasião, tinha atravessado o Mara com eles, entrando nas lendárias Planícies do Serengeti, onde tinham visto leões a acasalar, encontrado leopardos, chitas e dingos, sofrido a investida de um elefante e registado mais de duzentas espécies de aves. O grupo tinha feito nova marcação para o
ano seguinte. — Com que então vão abrir o lodge — disse ele. — É uma boa decisão, Hannah, apoio-te a cem por cento. Qual é o plano? — Pensei que devíamos abrir em Julho — disse Hannah. — Dá-nos quase dois meses para nos prepararmos. Não é uma época muito concorrida do ano e assim podemos arrancar devagar para o pessoal se familiarizar com o trabalho. Se tivermos boas chuvas, a paisagem fica verde como uma mesa de bilhar e haverá uma explosão de flores silvestres. Os novos pastos também hão-de trazer grandes manadas das planícies. — Sim, seria ideal — disse Anthony. — Diz-me qual é a minha quota-parte, que eu transfiro o dinheiro para a conta do lodge. Felizmente, estou com os bolsos recheados depois de uma época lucrativa. E agora que a Sarah tem o jornalista dela nas mãos, podemos conseguir boa publicidade ao lodge antes de abrir. — Não gosto desse homem — disse Hannah. — Não o quero por aqui. — Porque não? — disse Lars. — Ao que parece, conseguiu pôr os Briggs na ribalta e até lhes desencantou um novo Land Rover. Além disso, o tio reparou aquele horrível chaço velho que a Sarah conduz. Para não falar do contrato de publicação que obteve. O Rabindrah parece-me um sujeito perfeitamente razoável. — Mesmo assim, não me agrada que ele tenha ido falar com o Jeremy e depois tenha irrompido por aqui adentro a fazer perguntas sobre o Piet — disse Hannah. — Esses jornalistas são todos iguais. Sempre à espreita de uma história sensacional, sem quererem saber se destroem a vida das pessoas com o que escrevem. Não acredito que ele seja diferente. — Mas não publicou nada sobre o Piet — realçou Lars. — Saiu uma referência de três linhas à destruição da oficina, mas não foi ele que a escreveu. — Provavelmente incumbiu outra pessoa para o nome dele não aparecer — disse Hannah obstinadamente. — Oh, deve ser porque nunca conheci um indiano que não fosse manhoso quando lhe convém. Não fazem nada sem segundas intenções, a ver se lucram alguma coisa, uma fatia maior do bolo. E além disso tratam muito mal os trabalhadores africanos. Só pensam no dinheiro. Aposto que esse novo carro em Buffalo Springs não foi dado sem condições. — Estás a ser dura — disse Anthony. — Enquanto comunidade, são bons trabalhadores, têm famílias unidas e os siques, em particular, fizeram muito por este país. Não me custa nada a crer que tenha sido um gesto puramente filantrópico. — Veremos — disse Hannah. — São uns lambe-botas. Sobretudo este. E de qualquer maneira não é um sique genuíno. Na minha opinião, não é de confiança. A Sarah que se acautele. Está sempre pronta a ver o lado bom das pessoas e a deixar-se levar. — Acho que não precisas de te preocupar com ela, Han. — Lars tocou-lhe na mão, afagando-lhe o interior do pulso e tentando aplacá-la. Mas era claro que hoje ela não estava com disposição para ter papas na língua e ele sabia que era difícil levá-la a adoptar um ponto de vista mais razoável. — Vais à Europa ou à América mais para o fim do mês? — Hannah transferiu a atenção para Anthony. — Na tua viagem promocional anual? — Não faço ideia — disse ele, evasivo e embaraçado. — Ainda não fiz planos. — Nesse caso, acho que devias fazer — disse Hannah frontalmente. — Fazer planos e redimireste. — Ouve, foi uma estupidez da minha parte ter-me atirado à rapariga somali — disse Anthony. —
Mas acho… — Custa a crer que tenhas usado a cabeça — disse Hannah. — Pela maneira como te comportaste, acho que tens uns parafusos a menos. E voltaste a magoar terrivelmente a Camilla. Estragaste a noite em que ela investiu tudo, sobretudo para nos ajudar aqui em Langani. A verdade é que és um parvo e um domkopf, Anthony Chapman. — Não teve significado nenhum. Foi… — Vou-me deitar — disse ela, cortando-lhe a palavra. — Amanhã tenho de sair cedo, não sei se te vejo antes. Mas sugiro que voltes no fim do safári e então concluímos os planos e as contas e tudo isso. Entretanto, vê se voltas a pensar com a cabeça, eh? Estava a sorrir levemente quando o beijou na face e revirou os olhos a Lars. — Não fiquem acordados toda a noite — disse ela, deixando-os entregues a um silêncio constrangedor. Foi Anthony o primeiro a falar. — Não tem papas na língua, a tua mulher — disse ele, um pouco envergonhado. — É corajosa — disse Lars. — E muito leal e fiel às pessoas que ama. É sobretudo isso que ela é. Queres uma última bebida? — Acho que não — disse Anthony rigidamente. — Vou-me deitar e amanhã de manhã arranco antes do pequeno-almoço. Tenho de estar no acampamento antes de os meus próximos clientes chegarem num voo fretado. Até breve, meu caro.
Durante a semana seguinte, Hannah passou todos os dias no lodge. As duas raparigas que tinha contratado antes da morte de Piet estavam ansiosas por retomar o trabalho e ela passou muitas horas com elas, fazendo e refazendo as camas até ficarem perfeitas, dobrando toalhas em pilhas impecáveis, limpando o pó e polindo para que não houvesse um centímetro de pedra, madeira e vidro que não estivesse a brilhar. Na cozinha, trabalhou com David, adaptando algumas das receitas que Lottie ensinara a Kamau muitos anos antes e inventando pratos simples, baseados em produtos frescos disponíveis na fazenda e nos mercados locais. Chegou um postal de Sligo. O casamento teria lugar dentro de três dias. Estava tudo a postos. Adoravam que ela estivesse presente. Estava assinado por Sarah e Camilla. — Podemos viajar até à Europa um dia? — disse Hannah a Lars. A sua expressão era de melancolia, estudando o postal com a sua ilustração de casas rurais caiadas de branco, campos suaves e a montanha de cume plano atrás. Camilla e Sarah estavam ali, no coração daquela terra verde, e mais uma vez ela fora excluída. — Parece um conto de fadas — disse ela. Estavam sentados na plataforma de observação, Hannah com a bebé ao colo. Em baixo, o bebedouro estava sossegado, mas ouviram restolhadas no mato e debruçaram-se quando uma família de javalis-africanos apareceu e trotou energicamente em direcção a uma secção de solo molhado de um dos lados da clareira. O ar da tarde transportou grunhidos de contentamento enquanto eles chafurdavam e se cobriam de lama vermelha e líquida. — Não há disto na Europa. E na Noruega muito menos. — Lars estava a rir-se das palhaçadas dos javalis. — Na quinta dos meus pais, as vacas são tão limpas e brilhantes que parece que foram a um desses sítios que os americanos têm para os cães. Um salão de beleza para animais. Não são como as nossas ngombes aqui, cobertas de camadas de pó e com as patas enlameadas. Mas havemos de lá ir, sim, e eu levo-te no paquete para ver a aurora boreal.
— E temos de ir a Londres — disse Hannah. — Quando andávamos na escola, eu, a Camilla e a Sarah, queríamos lá ir para ver os mods e os roqueiros e as lojas e museus e a Guarda Real e a Torre. — No próximo ano vamos — disse Lars, pegando-lhe na mão. — Vamos ter uma boa época no lodge. E quer a Camilla volte ou não, a oficina há-de confeccionar os modelos dela. Havemos de ter dinheiro suficiente para umas férias, ja. Fazemos uma pequena campanha de promoção do lodge, como o Anthony, e visitamos as atracções turísticas. — Sim. E, quando voltarmos, pensamos que foi maravilhoso e que é bom estar de novo em casa — disse Hannah, sorrindo. — Porque é quase perfeito onde estamos agora. — Pois é — disse Lars. — E quando a Sarah voltar, vai ficar espantada com o que fizeste nas duas últimas semanas. — Lembras-te como ela estava cheia de medo da primeira vez que aqui veio? — disse Hannah. — Queria desesperadamente dizer ao Piet que o lodge dele era perfeito, mas tinha um mau pressentimento e tentou disfarçá-lo. Só me falou disso há cerca de dois meses. Ela sempre foi assim, sabes? Capaz de pressentir coisas. Não sei se gostava de ser assim ou se é melhor não ser. Lars não disse nada, consciente de que o omnipresente espectro da inquietação se havia erguido no espírito de Hannah. — Mas agora não sinto nada disso — disse ela. — A não ser saudades do Piet e saber que ele gostaria de estar aqui connosco. Ficaria orgulhoso ao ver que o sonho dele afinal está vivo e que eu estou a fazer tudo para que assim seja. — Sem dúvida. Acho melhor irmos agora para casa, tomar banho e comer qualquer coisa. Depois quero abraçar-te e amar-te, Han. Anda, assistimos ao pôr-do-sol no carro. E pode ser que nos cruzemos com um chacal ou até um leopardo à caça do jantar.
Deitaram-se cedo, beijando-se, entrelaçados, e desenhando traços e mensagens um no outro com as pontas dos dedos. Fizeram amor docemente, com uma profunda ternura, e mais tarde o sono reclamou-os rapidamente, envolvendo-os no seu calor. Foi Hannah quem acordou sobressaltada, a meio da noite. Encostou-se ao corpo forte de Lars e passou-lhe o braço pela cintura. As cortinas estavam parcialmente fechadas, agitando-se levemente na janela entreaberta e ela sentiu o vento frio da montanha directamente nas faces. Uma noite que cheirava vagamente à kuni que ardia debaixo do velho esquentador da água. Abriu os olhos, intrigada, pensando que horas seriam. Talvez o toto da cozinha tivesse acendido o fogo cedo. Hannah pegou numa pequena lanterna que tinha sempre na mesinha-de-cabeceira e apontou-a ao mostrador do despertador. Duas da manhã. Estava muito frio, mas ela saiu da cama, enfiando o roupão e inalando o leve cheiro a fumo que sabia agora ter sido a causa de ter despertado. Viu-a assim que olhou pela janela. Uma fina linha laranja, avançando ao longo da encosta da crista. Fogo. — Acorda! Acorda, Lars! — Sacudiu-o violentamente. — Há um incêndio na crista. Mas não tinha sido a única a vê-lo. Enquanto vestia as calças e a camisola, soaram fortes pancadas na porta do quarto. — Bwana Lars. — Juma estava sem fôlego, o seu peito escanzelado a subir e a descer, a saliva amontoando-se-lhe nos cantos da boca ao tentar falar. — Bwana Lars, há um incêndio no monte. Está tudo muito seco para aqueles lados e temos de partir imediatamente. Já pus baldes na carrinha
e debbies de água. Haraka, haraka! Lars correu para a garagem, seguido de Hannah. — Tens de ficar aqui — disse-lhe ele. — Não podes deixar a Suniva. — Quero ir contigo. Vou chamar a Esther. — Não — disse ele. — Tens de ficar aqui. É uma ordem. Fica com a arma à mão. O Mwangi e o Kamau ficam contigo e o guarda-nocturno também. Liga já para o Bill Murray. Precisamos da ajuda toda que conseguirmos. Deixou-a no meio da escuridão, com uma candeia de querosene e uma expressão de medo nos olhos. O seu cérebro ia a trabalhar em sobrecarga, assolado por dúvidas, ao arrancar no carro pelo caminho para a crista. Às tantas devia tê-las levado, Hannah e Suniva. Podia não ser seguro deixálas em casa. Mas os guardas-nocturnos estavam lá. Esperava que estivessem. O seu coração batia demasiado depressa. Atrás dele, nas traseiras do veículo, os watu iam agarrados aos lados, gritando uns com os outros. À frente, via o fogo começar a subir em línguas finas e vermelhas, enquanto a linha se alastrava rapidamente pela encosta do monte. Sabia com uma certeza agoniante onde era, sabia que não era um acidente. Juma ia sentado no banco da frente ao seu lado, agarrado ao painel de instrumentos. — Quando lá chegarmos, organiza uma cadeia de watu com os baldes — disse Lars. — Oito de nós estendem-se ao longo da crista com a água. Os outros começam a cortar o bundu para criar um corta-fogo. — Deitaram fogo ao lodge — disse Juma, os olhos revirados de terror. — Estão a destruir o lodge do bwana Piet, a arrasá-lo com o fogo. É um homem mau que está por detrás disto ou um shitani. Lars parou a derrapar ao fundo do caminho de acesso ao edifício principal. O telhado de palhiço estava agora a arder, refulgindo contra a noite negra. À sua volta, o mato cintilava com as faúlhas que voavam pelo ar, ateando fogo à vegetação seca. Correu para a arrecadação e arrastou para fora as mangueiras de incêndio que ainda não tinha instalado no lodge. — Toma — disse ele a Juma. — Liga isto à bomba e à torneira atrás da cozinha. Vai. E abre-a logo que possas. Aponta-a às árvores mais próximas do lodge. O calor era intenso, queimando-lhe os pulmões a cada inalação acre. Correu ao longo da cadeia de homens com baldes, emitindo instruções, palavras de louvor e encorajamento, e depois deixouos para ajudar a criar um corta-fogo. As chamas elevavam-se em picos brilhantes, galgando as curtas distâncias entre as casas de dormir, deflagrando subitamente em novas direcções. O ruído do fogo abafava os gritos frenéticos dos homens, que cortavam e golpeavam e lançavam água sobre o voraz inferno. Mas o seu apetite era insaciável e a sua enorme e poderosa boca devorava tudo o que encontrava pela frente, rugindo, crepitando, estalando e partindo todos os galhos e arbustos quebrados, a sua língua explorando todas as clareiras no mato e consumindo todos os ramos retorcidos que caíam no seu caminho. À distância, Lars ouviu gritos, barridos e latidos e o matracar de cascos à medida que dezenas de animais aterrorizados fugiam da conflagração. A polícia, os bombeiros e os vizinhos demoraram quase uma hora a chegar, alertados por Hannah. Bill Murray deitou mãos à obra ao lado de Lars, passando o resto da noite a combater o incêndio e fugindo para uma distância segura quando o lodge se transformou numa bola de fogo ofuscante e ardente que parecia saltar sobre as pedras e cair pela encosta do kopje, tornando fúteis todas as tentativas para a extinguir. Mas o corta-fogo e as mangueiras começaram gradualmente a surtir
efeito e, por fim, quando o dia nasceu, Lars achou que tinham o fogo sob controlo. Voltou para a carrinha tropegamente, a cara e os braços cobertos de fuligem, as pernas cortadas e a sangrar. À sua volta, estendiam-se as ruínas do sonho de Piet. Colunas de fumo escondiam a glória rósea da manhã sobre os picos da montanha, refúgio remoto e primitivo do grande deus Kirinyaga, que furavam o ar enfumarado. Havia homens espalhados por toda a crista, sentados no chão, encostados a tocos de árvores, afundados contra os pedregulhos, limpando as caras, tossindo e cuspindo, murmurando e chorando perante a devastação que os cercava. Na fazenda, Hannah estava à espera, o seu rosto tão cinzento como as cinzas na crista. Saiu a correr assim que Lars abriu a porta da carrinha, lançando-se nos seus braços enfarruscados, o seu corpo soluçando convulsivamente. — Graças a Deus, graças a Deus que estás bem — disse ela enquanto ele a abraçava e lhe afagava o cabelo, beijando a sua testa com os lábios gretados. — Precisamos de água, chá e comida para toda a gente — disse Lars. — Não teríamos conseguido nada sem o Bill. Devemos-lhe o facto de não termos perdido metade da floresta atrás do lodge. — A Barbie também cá está — disse Hannah. — Veio fazer-me companhia e ainda bem. Jeremy Hardy chegou alguns minutos depois e foi servida comida aos homens exaustos que tinham combatido as chamas. Os trabalhadores da fazenda sentaram-se no relvado em silêncio, bebendo chá doce e quente por canecas de metal e comendo tigelas de posho e grossas fatias de pão com manteiga. Na sala de jantar, o pequeno-almoço foi um momento sombrio em que todos se absorveram nas suas reflexões, vencidos pela enormidade do incêndio e do que significava. Os Murray partiram assim que a refeição terminou. — Liga-me sempre que precisares de descansar ou de ajuda — disse Barbie a Hannah, profundamente preocupada com a rapariga, cuja ansiedade podia levá-la em breve a um ponto de ruptura. Assim que saíram, Jeremy sentou-se na sala de estar e fez sinal a Hannah para que fechasse a porta. — Minha querida, isto agora é uma emergência — disse-lhe ele. — Vou pôr a casa sob vigilância policial vinte e quatro sobre vinte e quatro horas. Mas acho que o Lars deve considerar a possibilidade de tirares umas férias curtas com a Suniva para saírem daqui. Talvez fosse boa ideia ires passar algum tempo à costa ou visitar amigos. E acho que deves falar com o teu pai. Informa-o sobre o que se passou aqui. Pode ser importante. Hannah olhou para o prato, muda de ansiedade. Ele estava a tentar dizer-lhe qualquer coisa mas ela não fazia ideia do que pudesse ser. Tinha vontade de partir imediatamente, de fugir para o mais longe que pudesse, com o marido e a filha, pô-los em segurança. E a si própria também. Estava prestes a perder o controlo, a gritar, e juntou os joelhos e cerrou os punhos para deixar de tremer. A raiva salvou-a, sobrepondo-se ao medo. — E que achas que o meu pai nos podia dizer? — perguntou. — Ele foi-se embora há quatro anos, o teu velho amigo Jan van der Beer. Já nem o reconhecias agora, Jeremy, acredita. Se achas que alguém devia falar com ele, eu dou-te o número de telefone e tu podes ligar-lhe pessoalmente. Jeremy abriu os braços, num gesto de derrota, e olhou para Lars à procura de apoio. Mas, não recebendo qualquer indicação, o polícia levantou-se da mesa e começou a despedir-se. — Não preciso de lhes dizer…
— Que vais fazer tudo o que estiver ao teu alcance. — Hannah foi abertamente azeda. — Com certeza que nos hás-de trazer brevemente notícias de progressos. Como prometeste há mais de um ano. Em breve hás-de poder explicar-nos o que está a acontecer na nossa fazenda e porque é que nos matam o gado e nos assaltam a casa e esquartejam um membro da nossa família. E porque é que ninguém na polícia consegue encontrar os cafres que destruíram a oficina e pegaram fogo ao lodge. — Levantou-se para o confrontar, o rosto escarlate de fúria. — O Piet pensava que ninguém se ralava com o que acontecia a esta fazenda por sermos africânderes e eu começo a acreditar que ele tinha razão. — Não me parece que seja uma explicação plausível para o que se está a passar aqui — disse Jeremy. — Para ofensas reais ou imaginárias. — Uma explicação plausível? — Hannah estava a gritar. — Isto não tem a ver com ofensas que tenhamos cometido. O Piet sempre ofereceu trabalho, salários justos e a oportunidade de uma boa vida aos nossos watu. Exactamente como a minha amiga Camilla tentou fazer. O nosso lodge teria dado emprego a mais de vinte pessoas e a nossa reserva de vida selvagem é a única verdadeira protecção para os animais aqui, caso contrário vão acabar no tacho de alguém ou como brincos de chifre e garras ou cabos de punhais, enquanto as últimas carcaças dos rinocerontes apodrecem ao sol. Por isso, é bom que mandes os teus askaris locais para as cidades e para as reservas, Jeremy. É bom que os mandes imediatamente para lá para descobrir a explicação do que está a acontecer na minha fazenda. — Rodou sobre os calcanhares e saiu da sala, batendo com a porta. — A situação é muito grave, Lars — disse Jeremy. — Acho que devias tentar convencê-la a… — Ela não sai de Langani — disse Lars. — Ouviste-a. E tem toda a razão. Temos de poder confiar na lei para que proteja a nossa vida quotidiana e temos de saber que a polícia está a fazer tudo ao seu alcance para fazer cumprir essa lei. Caso contrário, não há esperança para ninguém neste jovem país. Para negros, brancos ou mestiços. Jeremy suspirou. — Há por aqui muitas contas antigas a ajustar — disse ele. — O Kenyatta é um homem extraordinário, um estadista que está disposto a esquecer o passado, a fazer tábua rasa e a começar num espírito de boa vontade genuína para bem do país. Harambee. Mas não se pode dizer o mesmo de outros políticos e responsáveis. Na maioria, estão dispostos a ignorar um incidente que envolva danos ou prejuízos aos brancos. Sobretudo aos primeiros colonos. — Não estamos aqui a falar de «um incidente», homem — disse Lars, furioso. — Estamos perante roubo à mão armada, chacina de gado, assalto e homicídio, vandalismo e agora fogo posto. Tudo na mesma fazenda. Tem de haver alguma coisa que te escapou. Deves fazer alguma ideia do que está por trás de tudo isto. Jeremy pegou no chapéu e no cassetete. — É anormal, mas não nos chegou nada aos ouvidos dos nossos informadores regulares. — Hesitou. — Mas pode haver uma ligação aos dias negros do estado de excepção, sabes? — Que ligação? — perguntou Lars. — Todos os colonos desta região se opuseram aos Mau-Mau e combateram ao lado do Exército britânico e da polícia. Sei que o irmão do Jan foi morto e o próprio Janni andou na floresta atrás dos bandos, juntamente com centenas de outros. Se a tua teoria tem algum fundamento, talvez possas explicar porque é que os nossos vizinhos não estão a ser atacados como nós. — Volto assim que puder — disse Jeremy, não fazendo qualquer tentativa para responder à pergunta. — E havemos de tirar isto a limpo. Dou-te a minha palavra. A longo prazo…
— A longo prazo, estaremos mortos — disse Lars. — Entretanto, quero que a minha mulher e a minha filha se contem entre os vivos por muitos anos. Jeremy deu a impressão de que ia fazer outro comentário mas mudou de ideias e acenou energicamente com a cabeça. — Volto a dar notícias antes do fim da semana — disse ele. — E garanto-te que vou trabalhar nisto dia e noite. Lars encontrou Hannah no quarto, a olhar pela janela. A crista erguia-se diante dela, desolada, enegrecida e despida, as marcas do fogo parcialmente escondidas por um manto de fumo em movimento, troncos e ramos de árvore queimados projectando-se numa súplica sinistra. Ele colocou-se atrás dela, passando-lhe os braços pela cintura, e ela encostou-se a ele. Por alguns momentos, ficaram a contemplar em silêncio as ruínas fumegantes do lodge. Ele sentiu então o corpo dela começar a tremer e rodou-a para si, para que ela chorasse dentro do seu abraço. Apertou-a durante muito tempo até que ela limpou os olhos e se afastou um pouco dele. — Achas que devemos partir agora? — perguntou ela. — Diz-me, Lars, chegou o momento de deixarmos Langani? — Acho que precisamos de discutir o assunto — disse ele. — Entretanto, chegou um telegrama da Sarah de Londres. Chega aqui amanhã, a caminho do Norte. Vai pegar no Land Rover assim que desembarcar e vem directamente para cá.
Sarah viu a crista muito antes de chegar ao portão da fazenda. Parou o carro e ficou a olhar para a visão negra e ainda fumegante, espalhando um cheiro amargo e acre no ar que a fez engasgar-se. Arrancou a toda a velocidade para a casa. — Que aconteceu? — perguntou ela a Hannah, saltando do veículo. — Foi um incêndio no mato? — Mas, ao fazer a pergunta, adivinhou a resposta. — Oh, meu Deus! Alguém se magoou? Hannah sacudiu negativamente a cabeça. — Foi há duas noites e o lodge está destruído. Estou aterrada, Sarah. Estou cheia de medo que alguém faça mal ao Lars ou à menina. O Jeremy mandou para aqui askaris, que andam a fazer as intermináveis perguntas habituais, exactamente como das outras vezes. Não consigo dormir nem concentrar-me em nada. — Ele não faz nenhuma ideia? — perguntou Sarah, passando os braços pelos ombros da amiga. — Diz que não conseguiu nenhuma informação na reserva ou nas comunidades. Nada. — A boca de Hannah, revirada nos cantos, exibia uma expressão de desânimo e os seus olhos estavam sombrios de revolta. — Sinto-me derrotada, Sarah. Ao ponto de não saber se podemos continuar aqui. O Lars quer que eu leve a Suniva para a costa durante algum tempo, mas eu não quero deixálo aqui. E não quero que pensem que conseguiram correr comigo da minha propriedade. — Podias vir comigo amanhã para Buffalo Springs — disse Sarah. — Com a bebé. E o Lars pode ir lá passar um ou dois dias quando achar que pode escapar. — Não sei. — Hannah estava duvidosa. — Aí está o Lars. Vou-me deitar um bocado. Já não consigo dormir bem à noite. Tenho de aproveitar durante o dia. Até logo. — Sarah. — O rosto normalmente vermelho de Lars estava cinzento e cansado. — Estamos com sérios problemas nas mãos e este último incidente não augura nada de bom, em vista do que já aconteceu antes. — Imagino que o Jeremy não vos deu muitas esperanças — disse ela. — Há alturas em que penso se haverá alguma coisa que não sabemos sobre tudo isto — disse ele.
— Ele é um polícia competente e um velho amigo da família, mas tenho uma sensação estranha de que nos está a esconder qualquer coisa. Talvez seja qualquer coisa ligada ao Janni. Mas não percebo porque é que ele nos há-de esconder o que quer que seja. — A Camilla pensa o mesmo. E o Rabindrah também — disse Sarah. — Mas eu nunca disse nada à Hannah porque sei que ela ia ficar zangada. E não passa de um palpite. Por um momento, sentiu-se tentada a falar a Lars do padre e do seu medo irracional de que Simon estivesse vivo, escondido na protecção densa e escura da floresta, à espera de atacar de novo por razões que escapavam ao seu entendimento. Mas o bom senso sobrepôs-se, dizendo-lhe que não havia provas, que os seus pressentimentos não eram lógicos e só podiam originar falsos alarmes. E a situação já assim era suficientemente grave. — E Londres, que tal? Conta-me tudo, para me animares um pouco — disse Lars. — Se bem que seja melhor deixares a descrição do casamento do teu irmão para quando a Hannah estiver presente. — A Deirdre cancelou-o à última hora — disse ela. — Foi um desastre completo. O Tim é um desastre completo. Sentou-se e contou-lhe a história toda da sua visita à Europa, incluindo a ligação continuada de Camilla com Edward e descrevendo finalmente o choque de ver o irmão a sair do apartamento de Knightsbridge. — Dei voltas à cabeça para encontrar uma explicação — disse ela, o ressentimento ainda a arder dentro dela como o rescaldo do incêndio na crista. — Não percebo porque é que haviam de querer esconder-me a visita dele. Até ao último minuto, pensei que ela me ia falar disso ou que o Tim aparecesse e explicasse. Mas ela fechou-se em copas e separámo-nos num clima de tensão. Linda amizade. Mas acho melhor não falarmos de nada disto à Hannah. Já tem preocupações que cheguem. — Concordo — disse Lars. — A Camilla nunca mais escreveu desde que partiu. Mandou dinheiro para a oficina, como prometido. Mas nem uma palavra ou um telefonema pessoal e a Hannah está transtornada com isso. — É típico — disse Sarah amargamente. — Nunca mais aprendemos. — Ainda estás a conduzir o Land Rover antigo? — perguntou Lars, percebendo a sua perturbação e tentando distraí-la. — Estou — disse ela. — Mas o tio do Rabindrah desmantelou-o e montou peças novas… por sinal, o motor foi completamente reformado. Agora anda que é uma maravilha. Temos assim um segundo veículo, que está como novo, e o Dan está felicíssimo. — Ah, por falar no Dan — disse Lars. — Tens uma mensagem do Dan. Diz que chegou uma chamada ontem para ti pelo radiotelefone. De um padre em Nyeri. Padre Bidoli. Quer falar contigo. — Oh, não. — Sarah sentiu o coração saltar-lhe à boca. Por um momento, desejou estar na Irlanda com a família, longe do medo e da violência que pareciam prender-se a este lugar que sempre amara. Tinha havido demasiados choques, demasiadas lembranças, premonições e mensagens do passado. Não era capaz de suportar mais. Lars estava a olhar para ela com curiosidade e Sarah esperou que nem ele nem Hannah lhe fizessem perguntas sobre o padre. Com sorte, pensariam que ela tinha finalmente decidido voltar a praticar a sua religião. — Que chatice — disse ela. — Acabo de vir de Nairobi, que é onde esse padre vive. — Não — disse Lars. — O Dan disse que ele está em Nyeri. E deu-me o número de telefone. Sarah demorou imenso tempo a obter ligação e a localizar o padre Bidoli. Mas finalmente ouviu a
voz dele, trémula e débil na linha. — Sarah, trouxeram-me de volta à missão. A Kagumo — disse ele. — Espero ficar uns tempos por aqui. O resto dos meus dias. Contactei-a no acampamento e disseram-me que estaria em Langani. Acha que pode dar cá um salto? Para me visitar? Amanhã talvez. Porque me lembrei de uma coisa. Uma coisa que lhe quero mostrar, minha filha. É sobre o Simon Githiri.
CAPÍTULO 11
Quénia, Maio de 1967 Bidoli estava à espera dela na missão de Nyeri, tão frágil que Sarah distinguiu cada um O padre dos ossos dos seus dedos quando lhe apertou a mão. Sentou-se e tentou disfarçar a sua impaciência enquanto ele se instalava. — Voltou à sua primeira missão, padre — disse ela. — Espero que signifique que está a sentir-se melhor. — Os médicos em Nairobi fizeram o que podiam por mim — disse ele com calma resignação. — Agora estou melhor aqui. Ao fim destes anos todos, é a minha casa. — Olhou para ela, registando a sua expressão cansada. — Os seus amigos em Buffalo Springs disseram que tem estado para fora. Sarah falou-lhe da visita a Londres e da estadia na Irlanda e por fim, do incêndio no lodge. — Devia ter voltado hoje ao acampamento — disse ela. — Mas deram-me mais algum tempo para estar com a Hannah. Por causa do incêndio. — Recostou-se, caindo em silêncio. — Nunca mais háde acabar — disse ela. — Sejam eles quem forem e sejam quais forem as razões, há-de continuar até conseguirem correr com a Hannah de Langani. Ou pior. E nós somos impotentes para lhe pôr fim. — Foi por isso que lhe pedi para cá vir — disse o padre Bidoli. — Quando me visitou da primeira vez, não estava preparado. Tenho tido muitos rapazes ao meu cuidado ao longo dos anos e precisava de tempo para pensar sobre o Simon. Para me recordar. E desde a nossa conversa é o que tenho feito. Pensar nele, tentar recriar as circunstâncias do tempo que passei com ele. — Sorriu-lhe. — Uma das vantagens da minha idade é que tenho tempo para pensar. E lembrei-me de uma coisa que pode ser-lhe útil. Tinha um livro em mau estado nos joelhos e ela viu a data na capa em letras grandes. Datava de há dois anos. Ele começou a folheá-lo, continuando a falar. — Em Kagumo, guardam um registo dos lugares onde os rapazes vão quando saem do complexo da missão — disse ele. — Quando um estudante sai da missão para visitar parentes ou para frequentar um curso de formação, tem de assinar um livro antes de sair. Tem de escrever o nome da pessoa que vai visitar e do lugar onde vai estar. Lembrei-me de que o Simon estava muito excitado no dia em que pensou que tinha finalmente encontrado a família. E ocorreu-me que ele não teria qualquer razão para esconder a informação. Ter-se-ia sentido orgulhoso por ter alguém para visitar e, por isso, o que tinha escrito no livro podia ser uma morada genuína… a não ser que, por qualquer razão, o familiar que o levou não tivesse falado verdade. Assim, na semana passada, quando cheguei a Nyeri, pedi para ver os registos e tenho estado a analisá-los. — Estendeu o livro. — Aqui está. O seu dedo estava a apontar para um registo perto do fundo da página e Sarah olhou para ele, sentindo um abalo ao reconhecer a caligrafia perfeita de Simon. Por um momento, assaltou-a uma recordação distinta dele, a escrever cuidadosamente no seu caderno quando Hannah ou Piet lhe
transmitiam as instruções do dia. Enterrou as unhas nas palmas da mão, cerrando os punhos e sentindo a dor que ele tinha causado a todos. O padre Bidoli pousou uma mão manchada sobre a dela. — Vejo que conhece a letra. Ele sempre foi metódico. Foi o que me levou a pensar que teria escrito o nome no livro. — Simon Githiri. Para a Reserva de Mwathe com Karanja Mungai. Sarah ficou a olhar para a página, assimilando as palavras e pensando se Simon lhes teria deixado uma primeira pista vital. — Acha que é um endereço genuíno, padre? — Alguém terá de ir a esse sítio perguntar — respondeu o velho padre. — Não é muito longe de Nyeri. Mas, mesmo que tenha sido onde ele foi, as pessoas de lá podem não o admitir. Ele está morto e não vão querer arcar com a vergonha dele. Tome nota do nome, Sarah, e do distrito. Mas não alimente demasiadas esperanças. — A sua voz soou carregada de fadiga. — Sinto muito, padre. Sei que lhe tinha uma grande afeição em rapaz. — Era muito pequeno quando veio para aqui. — O padre massajou a testa. — Jovem, mas com um rosto velho, crispado de medo. Pensei que era uma criança que tinha visto coisas que uma criança não deve ver e que, o que quer que tivesse sido, o tinha deixado mudo. A primeira reacção dele aconteceu quando eu estava a ler um livro em voz alta aos mais novos, um simples conto popular quicuio sobre um menino pobre e um burro. Estava a imitar a fala do burro e, de repente, ele sorriu. Tinha um sorriso muito bonito. Transformou-lhe o rosto e fê-lo parecer finalmente um rapazinho. Compreendi que tinha encontrado uma maneira de lhe devolver a infância. Não a que ele devia ter tido… essa, não lhe podia restituir. Ele não tinha pai nem mãe nem família. Mas, através dos livros e das histórias que eu contava, o espírito dele renasceu. Aprendeu a brincar e a rir, embora não tivesse perdido a timidez. Esforçava-se muito por me agradar. Encarava tudo com uma grande seriedade. Acho que nunca se sentiu inteiramente seguro, nem na missão. — Acredita então que ele passou por uma experiência aterradora quando era muito pequeno. — Sarah pensou nos modos de Simon, nos seus gestos e expressões. Sempre lhe tinha parecido um rapaz modesto, com uma confiança discreta nas suas capacidades. — Mas nunca descobriu o que podia ter sido? — Tentei levá-lo a contar-me o que lhe tinha acontecido antes de ter vindo para a missão. Mas, passado algum tempo, deixei de perguntar, porque quando alguém o questionava ele passava dias calado, sentado sozinho, incapaz de comer. Não queria recordar-se. Com o tempo, foi refazendo a sua vida. Era inteligente e estudava com afinco e fazia bons progressos. Há aqui muitas crianças que nunca encontram um caminho. Não podemos ajudá-las todas. — Que é que o transformou? O padre Bidoli abanou a cabeça. — Só sei que deve ter sido uma coisa terrível para o levar a desperdiçar tudo o que tinha aprendido. Para o transformar num assassino. Talvez se eu estivesse na missão quando ele apareceu à minha procura… Mas quando ele mais precisou de mim, eu estava fora. Ninguém pode compreender estas coisas, minha filha. Sarah reclinou-se na cadeira, cansada de não compreender, abalada com a recordação do rosto de Simon, com o seu evidente prazer quando ela lhe ofereceu o livro. Seria ele realmente esta criatura monstruosa, uma parte dele cheia de esperança no futuro e a outra repleta de ódio ao ponto de mutilar e matar? Afastou o pensamento.
— Tenho a certeza de que ele o admirava — disse ela, querendo transmitir algum consolo ao padre. — Devia sentir-se grato. — Não o suficiente para se manter fiel aos meus ensinamentos — disse o padre Bidoli. — Mas talvez esta informação lhe venha a ser útil agora. Dou-lhe a minha bênção, minha filha. Já sabe que pode vir falar comigo sempre que quiser, seja por que razão for. Que Deus a acompanhe! Durante o caminho para Langani, Sarah debateu-se com o problema do que fazer com a informação que tinha descoberto. Talvez a pessoa que foi buscar Simon tivesse dado um nome e uma direcção falsos. Mas seria difícil que soubesse que esses elementos ficariam registados. Portanto, se tinha sido para a Reserva de Mwathe que tinham ido, alguém lá tinha de se lembrar da chegada de Simon. Decidiu discutir o assunto com Lars, antes de o abordar com Hannah. Ainda era tudo muito vago e podia revelar-se um beco sem saída, dando origem a mais uma devastadora desilusão. Já chegava de desilusões. Considerou passar a informação a Jeremy Hardy. Ele tinha dito que mesmo as informações mais insignificantes, quando adicionadas ao que já se sabia, podiam pô-los na pista certa. Sarah decidiu telefonar-lhe depois da conversa com Lars. Em Langani, os cães lançaram-se sobre o carro, com os seus latidos de boas-vindas. Mwangi apareceu a dizer que a memsahib Hannah estava na vacaria, mas que o bwana estava no escritório. Sarah foi pelo alpendre e bateu à porta. — Hodi! Já voltei. Como vão as coisas? A Hannah está bem? — Assim-assim. — Lars levantou-se para a cumprimentar. — Tiveram notícias do Jeremy? — Estava ansiosa por abordar o assunto da sua visita à missão. — Nada. É uma frustração completa. — Lars, preciso de te contar uma coisa, embora possa vir a revelar-se pouco importante. — Olhou frontalmente para ele, a exigir uma promessa. — Mas não quero que digas nada à Hannah. Para já. — Se assim queres — disse ele, mais com curiosidade do que relutância. — Fui falar com um dos padres italianos em Kagumo — disse Sarah. — É um homem idoso, agora reformado e muito doente. Mas esteve muito ligado ao Simon na infância dele. Por sinal, foi o Rabindrah que se apercebeu de que ninguém o tinha entrevistado depois da morte do Piet… — O Rabindrah? Que é que ele tem a ver com isto? Porque é que ainda anda a meter o nariz no assunto? — Ouve, Lars. É possível que o Rabindrah nos tenha dado a primeira informação útil que tivemos desde o início da investigação. Desde que o Piet morreu. Então, queres ou não saber o que é? — Desculpa. Mas já sabes o que a Hannah pensa desse homem. Sarah ignorou o comentário e lançou-se imediatamente na sua narrativa, não querendo envolverse numa discussão sobre o jornalista indiano. — Como eu estava a dizer, o Rabindrah descobriu que ninguém tinha entrevistado este padre porque, na altura, ele estava doente no hospital. Como tal, resolvi ir falar com ele. Duas vezes, aliás. — Duas vezes? Quando foi a primeira vez? — Lars estava surpreendido. — Visitei-o em Nairobi. Antes de ir para Londres. Mas na altura não disse nada, porque não sabia se ele me ia dizer alguma coisa de útil. — E disse?
— Da primeira vez, não. Mas voltei a falar com ele hoje, porque ele se tinha lembrado de uma coisa. Apresentou a folha de papel com o nome que Simon tinha escrito no registo e a localização da reserva e repetiu-lhe as palavras do padre Bidoli. Lars estudou-o em silêncio. — Eu sei onde fica a Reserva de Mwathe — disse ele por fim. — Fica logo à saída de Nyeri, na orla da floresta de Aberdare. É um dos maiores distritos da tribo quicuia. — Não é muita coisa, mas temos um nome. Karanja Mungai. Pode ser uma ajuda. Achas que devemos falar disto ao Jeremy? — perguntou Sarah. — Para ele lá mandar alguém investigar? — Seria isso exactamente que ele faria. Ja. — Lars sacudiu afirmativamente a cabeça. — É mesmo capaz de lá ir pessoalmente. Mas essas terras pertencem exclusivamente aos quicuios. Foram o centro das operações dos Mau-Mau durante o estado de excepção. — Que quer isso dizer? — Que é que achas que essas pessoas na reserva vão dizer a um polícia branco que anda à procura de um membro da tribo deles por causa do assassínio de um bwana branco e do incêndio da propriedade dele? — disse Lars. — Nada. Não vão dizer rigorosamente nada e nós vamos ficar na mesma. — Então devemos ir nós — disse Sarah. — Eu e tu devemos lá ir sem a ameaça da lei ou da prisão. Falar pessoalmente com eles. Tu próprio estás sempre a dizer que é a melhor maneira de lidar com os quicuios. E, se não conseguirmos nada, pedimos então ao Jeremy que lá vá. — De maneira nenhuma. — Lars abanou a cabeça. — Seria imprudente lá irmos sozinhos. — Podíamos levar um quicuio connosco para facilitar as coisas. Alguém daqui em quem confies. — Não podemos fazer isso, Sarah. — Então vou eu — disse ela. — E levo o David comigo. Ele é filho do Kamau e de inteira confiança. Neste momento, não tem trabalho desde o incêndio do lodge. Tenho a certeza de que só lhe há-de dar satisfação tentar descobrir quem foi o responsável. — Sabia que Lars ia fazer tudo para a dissuadir e apressou-se a continuar: — É a única pista que temos e pode ser importante. Contigo ou sem ti, vou a Mwathe. — Não podes ir à reserva sozinha, Sarah. — Queria dizer-lhe que ela era obstinada, demasiado impulsiva, mas sabia que não servia de nada. Ela já tinha decidido. — Pronto, eu vou contigo e levamos o David. Ele, pelo menos, é boa ideia. — E que dizemos à Hannah? Lars não respondeu imediatamente, dividido entre o desejo de poupar Hannah a mais riscos e a certeza de que estaria a mentir-lhe se fizesse segredo da expedição. — Acho melhor não lhe dizer nada para já — disse ele, contrafeito. — Enquanto não tivermos informações mais definitivas. Se ela soubesse, ia insistir em acompanhar-nos. Temos de conduzir as perguntas lenta e cuidadosamente, sem sermos directos. A Hannah anda demasiado nervosa. Nunca conseguiria manter a calma e a paciência num confronto destes. Por agora não dizemos nada. — Mas vamos estar fora quase todo o dia. Que justificação lhe damos? — Sarah sentou-se, com uma expressão carregada de dúvida. — Não sei, Lars. De repente, já não me parece boa ideia. — O que é que não parece boa ideia, Sarah? — Hannah abriu a porta do escritório e aproximouse do marido, afagando-lhe a nuca. Sarah olhou para Lars, desejando orientação e pensando há quanto tempo Hannah estaria ali e o que poderia ter ouvido. Ele abanou lentamente a cabeça e a mentira escapou dos lábios de Sarah,
fácil e natural, apesar do seu momento de indecisão. — É um problema com uma das fotografias do livro. Acho que preciso de trocá-la. — Ainda é possível? — Hannah estava surpreendida. — Qual é a que não te agrada? Não vejo como podes melhorar o que me mostraste. Anda comigo agora buscar a Suniva. Podemos ir dar um passeiozinho com ela. Saíram juntas do escritório, Sarah lançando um olhar aflito a Lars, Hannah sorrindo com o suave fulgor de uma mãe prestes a redescobrir o milagre de um filho.
— Estou a pensar em dar um salto a Nanyuki amanhã — disse Lars ao jantar. — Se calhar podia ir contigo. — Sarah fixou as profundezas da sopa, não querendo encarar Hannah. — Para quê? — Hannah ficou intrigada. — Estava a contar que me ajudasses no dispensário amanhã de manhã. — Sinto muito, Han. Mas preciso de despachar alguns negativos e diapositivos para Londres e mandar uma mensagem ao Rabindrah a explicar que mudei de ideias. É muito importante e urgente. — Porque é que o Lars não te pode fazer isso? — Há mais algumas coisas que preciso de comprar antes de voltar ao trabalho. Coisas pessoais… compreendes? Ontem não tive tempo. — Sarah sabia que não era uma desculpa muito convincente, mas não lhe ocorreu outra melhor. Pôs-se a rodar o copo. — Bem, tu é que sabes — admitiu Hannah mas a contragosto. — A que horas regressam? — Durante a tarde. — Lars não precisou. — Sou capaz de ter de esperar por uma peça para a ceifeira mecânica. Vou levar o David comigo. Hannah olhou para ele. — O David? Porquê? — Anda muito desmoralizado, agora que perdeu a oportunidade de ser cozinheiro no lodge. Achei boa ideia dar-lhe qualquer coisa com que se ocupar. — Lars tentou ignorar a irritação crescente dela e afundou-se ainda mais. — Não é como se estivesses a usá-lo para alguma coisa agora. — Voltei a mandá-lo para o armazém, onde ele estava antes. — Hannah estava vermelha de irritação. — Sim, mas podes certamente dispensá-lo por um dia — disse Lars. — Não podias arranjar-lhe outra ocupação, Han? O David pode não ter muita instrução, mas é inteligente e precisa de um trabalho mais estimulante. Caso contrário, corremos o risco de o perder. — Não vejo que uma ida às compras em Nanyuki seja muito estimulante — disse ela, zangada. — E não me parece que devas criticar a ocupação que lhe dei. Está com muita sorte por continuarmos a empregá-lo. Se começas a protegê-lo, vais provocar o descontentamento e a inveja dos outros watu e depois ainda temos mais problemas. — Possivelmente — disse Lars —, mas mesmo assim vou levá-lo. — Como queiras — disse ela, atirando o guardanapo para cima da mesa. — Mas depois de amanhã o David retoma o trabalho no armazém. Saiu imediatamente depois do jantar, irritada com a proposta viagem de Sarah. Tinha havido um surto de disenteria na fazenda, e era difícil tratar de toda a gente que aparecia no dispensário. Algumas das mulheres levavam totos atacados de desidratação e febres altas. Parecia a Hannah que
a expedição a Nanyuki era desnecessária e inoportuna. Estava também a contar com a companhia de Sarah para levantar o ânimo, nos poucos dias que restavam à amiga antes do seu regresso a Buffalo Springs. Lars ficou a olhar para a mesa, com uma expressão empedernida. Sarah sentiu uma grande pena dele, mas não sabia o que dizer. Por fim, levantou-se e tocou-lhe no ombro. — É a tensão dos últimos dias — disse ela. — Não, é a tensão de mais de um ano, aliás. Sê paciente. Até amanhã.
Partiram cedo, conscientes do persistente desagrado de Hannah. Lars tinha revirado os olhos, quando ela se levantou da mesa do pequeno-almoço, rodou nos calcanhares e partiu para enfrentar sozinha as tarefas quotidianas. Sarah teve a sensação de que eram crianças a fazer gazeta à escola e sentiu-se tentada a correr lá para fora e a contar a Hannah a verdade. Mas isso só poria Lars em maus lençóis, por não se ter aberto com ela no dia anterior. Fosse como fosse, haveria problemas. Suspirou de frustração. Em Nanyuki, fizeram uma breve paragem para fazer o pedido de provisões para a fazenda, combinando levantá-las no regresso. Sarah comprou várias peças de tecido kitenge e alguns novelos de lã de cores garridas. — Para que é isso? — perguntou Lars. — É espantoso, o mundo pode estar a desabar, que as mulheres fazem sempre compras. — É para as mulheres em Mwathe — disse Sarah, num tom crítico. — O Karanja deve ter uma ou duas mulheres. Pode ser vantajoso oferecer-lhes presentes. — Boa ideia. — A sua expressão denotava um certo embaraço ao reentrar na loja. — Vou comprar tabaco para os homens. Durante a viagem para Nyeri, a sul, explicaram a David onde iam e o que esperavam descobrir. O rapaz ficou decididamente inquieto. — Têm de ter cuidado — disse ele. — Esses homens em Mwathe… se estavam a ajudar o Simon ou se fizeram as coisas que têm acontecido em Langani desde que o bwana Piet foi assassinado, são gente má. Também podem matá-los. Era melhor a memsahib Sarah esperar por nós em Nyeri. — Ele tem razão — disse Lars. — Não vou ficar para trás — disse Sarah num tom categórico. — Posso falar com as mulheres enquanto vocês se concentram no Karanja, se o encontrarmos. É mais provável que as bibis me digam alguma coisa a mim do que a ti ou ao David. Isto pode não levar a nada, mas eu vou a Mwathe. Está decidido. — O David tem razão quando fala na nossa segurança — disse Lars. — Temos de lhes dizer que há pessoas que sabem onde estamos. E que, se não chegarmos a casa até uma certa hora, vão à nossa procura. Sarah indicou a sua concordância. Mas, no fim, pensou, não fará qualquer diferença o que dissermos para nos tentarmos proteger porque, assim que souberem que vimos de Langani, passamos a ser alvos fáceis para quem estiver determinado em causar mais destruição. Em Nyeri, pararam para perguntar o caminho e meia hora mais tarde viraram para a estrada em direcção à Reserva de Mwathe. A floresta de Aberdare elevava-se, verde e densa, sobre as habitações humanas. Sarah ia à frente, ao lado de Lars, silenciosa e tensa, enquanto David
perguntava onde ficava a casa de Karanja Mungai. Pessoas que caminhavam ao longo dos trilhos enlameados, nos seus afazeres diários, lançavam-lhes olhares curiosos. Algumas dirigiam-lhes uma saudação, outras observavam-nos, desconfiadas, falando em cochichos quando os estranhos passavam. David ia sentado, direito e rígido, no banco de trás do Land Rover, apreensivo mas não querendo expressar a sua preocupação. Por todo o lado, as casas dos quicuios de adobe e caniço, com telhados de colmo, estavam agrupadas numa série de recintos, rodeados de pequenas propriedades intensamente cultivadas. Mais acima na encosta, andavam totos a guardar cabras e vacas e, à frente de cada cabana, cacarejavam e esgaravatavam galinhas. Mulheres carregadas com grandes feixes de lenha arrastavam-se pelos caminhos estreitos, vergadas sob o peso dos seus fardos. Os homens iam à frente das mulheres, conversando amigavelmente e fumando os seus cachimbos, observando os trabalhos domésticos em curso. Era uma cena pacífica de outra era. Pararam num ponto em que a estrada era demasiado estreita para continuar e apearam-se do carro. David apontou para a frente, para um grupo de cabanas na orla da floresta, que ganhava progressivamente terreno. — É aqui — disse ele. Lars e Sarah seguiram a direcção do seu dedo. Elevava-se fumo das aberturas nas cabanas circulares. Ao aproximarem-se, viram duas mulheres no exterior e várias crianças pequenas a brincar na terra à sua volta. Uma terceira mulher mais nova estava à sombra de uma árvore, de um dos lados do recinto, com um bebé à cintura. Estava a observá-los, imóvel e desconfiada. — Este Karanja vive bem, a julgar pelo número de cabanas do recinto dele — comentou Lars. — Pelo menos, três mulheres, ao que parece. E aquela é muito nova, mesmo pelas normas deles. — Indicou a rapariga solitária. — Que é que vais dizer? — perguntou Sarah. Agora que tinham chegado, sentia-se insegura. — Não podemos aparecer assim a perguntar o que sabem sobre o Simon Githiri. — O David apresenta-nos segundo a tradição tribal — disse Lars. — Depois temos de avançar por instinto. Foi cometida uma série de crimes graves e, se alguém estiver a tentar esconder informações, temos de estar atentos a qualquer sinal. — Que tipo de sinal? — perguntou Sarah. — Não sei exactamente — disse Lars. — Mas o David é capaz de interpretar a reacção da gente dele melhor que nós. É mais provável que perceba se estão a mentir. E o meu quicuio é mau. Tenho dificuldade em compreendê-los quando começam a falar muito depressa e pode escapar-me alguma coisa. Seja como for, acho melhor parecer um branco ignorante. — Esboçou um sorriso de encorajamento. — Tu é que és famosa por pressentir espíritos maus, Sarah. Mantém as antenas apuradas. Vamos lá. Estacaram à entrada do recinto. Sarah olhou em volta, subitamente consciente de que estavam a ser observados de todas as cabanas circundantes e de que eram os únicos brancos. Apareceram vários rapazes que se aproximaram dela, sem falar, com expressões defensivas. Como a sua. Sentiu uma ponta de inquietude. David dirigiu uma saudação respeitosa em quicuio e uma das mulheres mais velhas acenou-lhe com a cabeça. Ele perguntou se o Mzee Karanja estava em casa. Com um gesto de cabeça, a mulher indicou a habitação maior e a rapariga com o bebé dirigiu-se à entrada e chamou. Por fim, surgiu um homem pela abertura estreita. Estava a dormir, pensou Sarah, e perscrutou-os com olhos injectados e amarelecidos. O seu rosto era enrugado e austero, com uma longa cicatriz que começava na testa, atravessando a maçã do rosto esquerda e descendo quase até
ao queixo. Trazia um bastão tribal coberto de desenhos coloridos, realçados com missangas ao longo do cabo e, embora franzino, transmitia uma impressão de força rija. Era difícil aferir a sua idade, talvez na casa dos sessenta ou até dos setenta. Usava um par de calças caqui coçadas e uma camisa velha, em lugar de vestes tribais, mas os lóbulos das suas orelhas eram descaídos e estavam decorados com fio de cobre e, na cabeça, usava uma boina de intrincadas missangas. Enquanto eles se aproximavam, esperou-os à entrada de casa, com uma expressão séria e ameaçadora. David voltou a falar, pedindo licença para os wazungu entrarem no recinto para discutir um assunto importante. Karanja considerou-os durante o que pareceu uma eternidade. As mulheres deram cotoveladas umas às outras e segredaram com as bocas tapadas e as crianças olhavam-nos esgazeadas e solenes. Dois homens mais novos agacharam-se à entrada baixa de uma segunda cabana, à espera de ver a reacção do mzee. Por fim, ele acenou afirmativamente e fez-lhes sinal para que avançassem. — Diz-lhe que agradecemos que nos autorize a falar com ele — disse Lars a David. — Trouxemos presentes para o mzee e para as suas mulheres. Queremos o conselho dele relativamente a um shauri muito delicado. Sendo ele um homem sábio, talvez nos possa ajudar. Enquanto David traduzia, Sarah abriu o embrulho de papel castanho e ofereceu as peças de tecido e missangas às mulheres, saboreando o deleite das suas expressões enquanto passavam os dedos pelo material. Lars entregou a Karanja uma bolsa de tabaco. O velho voltou a acenar com a cabeça e em seguida emitiu instruções às mulheres. Elas desapareceram dentro da cabana dele e saíram com três bancos de madeira trabalhados, colocando-os na terra batida à entrada da cabana principal. Lars e David sentaram-se à frente de Karanja, mas Sarah teve de ficar de pé ao lado. Para Lars, foi uma espécie de número de equilibrismo, obrigado a dobrar as compridas pernas num ângulo esquisito. Sarah captou um brilho maldoso nos olhos de Karanja, que observava o branco alto a tentar sentar-se com dignidade. Os quicuios mais jovens acocoraram-se de cada lado do seu chefe. Estavam todos na expectativa enquanto Lars pegava num maço de cigarros e os oferecia ao anfitrião. Karanja aceitou um e depois os outros dois homens estenderam as mãos e, ao fim de alguns segundos de discussão sussurrada entre os homens e as mulheres, a mulher mais velha também se serviu de um cigarro. Lars acendeu o cigarro de Karanja com o seu isqueiro Zippo e, à medida que este ia sendo passado de mão em mão, cada um deles inspeccionava o desenho em relevo numa das faces. Quando voltou às mãos de Karanja, ele guardou-o pensativamente. — Diz-lhe que me daria uma grande honra se aceitasse o isqueiro de presente — disse Lars a David. O Zippo e o maço de cigarros desapareceram no bolso das calças de Karanja. Ele tirou fumaças do cigarro e mirou os wazungu com hostilidade através do fumo, murmurando qualquer coisa em surdina a um dos homens. O quicuio de Sarah era mínimo e ela não conseguiu entender o que ele estava a dizer. Lars pediu então a David que explicasse que pretendiam informações sobre um rapaz que julgava ser um familiar dele e que era conhecido pelas pessoas com quem tinha trabalhado pelo nome de Simon Githiri. Sarah permaneceu imóvel, observando-os atentamente quando o nome de Simon foi mencionado. Houve um retesar perceptível entre os homens e um olhar sub-reptício entre os dois mais novos. Mas foi a rapariga com o bebé que traiu a reacção mais evidente. Estava à margem do círculo, fora de qualquer linha de visão, e os homens não notaram que ela teve um sobressalto e apertou a trouxa nos braços, enterrando os dedos na criança. Soou um gemido angustiado e Karanja virou-se para a
fulminar com os olhos. Ela afastou-se para o lado, explicando que o bebé tinha acordado nesse instante e estava com fome. A sua expressão denotava perturbação ao tentar acalmar a criança, pedindo desculpa ao velho por tê-lo incomodado. A expressão deste, ao olhar para ela, era de azedo desdém. Sarah observou atentamente a rapariga. Tinha-se apercebido do relâmpago de pânico na sua expressão e estava agora convencida de que aquela jovem conhecia Simon ou que sabia pelo menos da existência dele. Sarah aproximou-se dela, acenando respeitosamente com a cabeça a Karanja, disfarçando o seu interesse pela mãe ao fingir interesse pela criança. O bebé devia ter mais de um ano, mas não estava a brincar com os outros totos no recinto. Uma das mulheres mais velhas emitiu uma casquinada e cuspiu na terra quando Sarah estendeu a mão para afagar o bebé. Ele mexeu-se, destapando o cobertor de malha, e ela viu com um choque que ele tinha um pé horrivelmente deformado. A rapariga viu para onde ela estava a olhar e cobriu-o com a sua própria roupa num gesto protector. Sarah sorriu-lhe, tentando tranquilizá-la, mas não produziu qualquer reacção. Karanja falou durante vários minutos, num murmúrio rápido, com os outros homens. Em seguida, virou-se para David, abanando a cabeça, afirmando desconhecer Simon Githiri. Os seus dois homens de mão tinham-se aproximado dele, sacudindo negativamente as cabeças. Lars manifestou a sua pena, estendendo as mãos, de palmas viradas para cima, e encolhendo os ombros. — Deve ter havido um engano com certeza — disse ele. — Mas estivemos na escola da missão de Kagumo onde este homem, o Simon Githiri, foi levado em criança. Havia uma informação no livro de registos da missão que dizia que ele ia com um parente, Karanja Mungai, visitar a família na Reserva de Mwathe. Os padres disseram-nos que o Simon Githiri saiu definitivamente da missão com o Karanja Mungai. Será que existe outro homem com este nome em Mwathe? Karanja levantou-se, indicando aos seus companheiros que fizessem o mesmo. David compreendeu o sinal, mas Lars foi mais lento. Estava agora em desvantagem pois era o único homem sentado. Com dificuldade, levantou-se e enfrentou os três quicuios. A atmosfera tornara-se tensa. O velho agitou o bastão diante da cara de Lars e falou furiosamente, a saliva borbulhando-lhe nos cantos da boca e batendo com o rungu na terra para sublinhar a sua ira. Não fez mais nenhuma tentativa para falar com cortesia e inclinou-se agressivamente para eles. Através de David, disse que tinha ido realmente à missão de Kagumo uma vez, mas que tinha sido há muito tempo. Tinha sabido que estava lá um rapaz que tinha uma ligação qualquer à sua tribo. Mas, quando interrogou o jovem, apercebeu-se de que era engano. Esse rapaz não tinha nada a ver com ele nem com a sua tribo. Era um rapaz desonesto. Tentou afirmar coisas que não eram verdade. Se tinha indicado o nome de Karanja como sendo seu parente, era falso. Tinha mentido, talvez para escapar da missão, para ir para qualquer lado que não merecia a aprovação dos padres. Karanja cuspiu para o chão e abriu os braços. Não tinha mais nada a dizer, excepto que os wazungu tinham feito a viagem para nada. Enquanto Lars tentava em vão obter mais informações, Sarah aproximou-se da jovem mãe e estendeu de novo a mão para acariciar o bebé, falando num misto de quicuio rudimentar e suaíli que esperava que a rapariga compreendesse. — O meu pai é um curandeiro branco — disse ela, em voz baixa. — Ajudou muitas crianças com o problema que aflige o teu filho. Se me levares o menino à Fazenda de Langani, perto de Nanyuki, eu posso ajudar-te. Conheço médicos que curam o teu filho. Leva tempo, mas ele poderá um dia andar como as outras crianças. A rapariga abriu muito os olhos e afastou-se. David estava a explicar a Karanja que a polícia
tinha querido ir à reserva interrogá-lo. Mas este bwana Olsen tinha dito que devia ser engano e que ele próprio viria falar com o mzee. Concordava que Simon Githiri era um homem desonesto. Aliás, era um homem muito mau, procurado por homicídio. E agora também estava morto. Uma sentença do grande deus, Kirinyaga. Mas se se lembrassem de alguma coisa sobre ele e quem os seus amigos ou familiares realmente eram, deviam informar o bwana Olsen ou a polícia em Nyeri. Karanja fitou-os, com modos cada vez mais antagónicos, e repetiu que não sabia nada sobre o homem em questão. E, já que estava morto, o assunto estava encerrado. Voltou a cuspir para o chão, não acertando por pouco nos pés de David. Lars acenou com a cabeça e fez sinal para que se fossem embora. A rapariga tinha desaparecido dentro de uma das cabanas. Quando Sarah saiu do recinto, pareceu-lhe captar um vislumbre dela, de pé na sombra da entrada, a observar. Mas o sol estava raso no céu e, ofuscada pela luz, não pôde ter a certeza.
Voltaram para Nanyuki a toda a velocidade, com medo de não chegarem a tempo de levantar as provisões para a fazenda. Se chegassem a Langani de mãos a abanar, Hannah ficaria zangada e com razão. — Sabem qualquer coisa de certeza — disse Sarah, enquanto avançavam a todo o gás. — A reacção quando mencionaste o nome do Simon traiu-os. — Mas não trouxemos nada de definitivo em que nos basear — disse Lars. — Não acredito, nem por um momento, que o Karanja tenha viajado até Kagumo e decidido depois que o Simon não era seu parente. Tenho a certeza de que voltaram juntos para Mwathe. Mas o teu velho padre tinha razão… nunca lhe passou pela cabeça que o Simon tivesse escrito o nome dele num livro. — É o primeiro indício de alguém que possa ter uma ligação com ele — disse Sarah. — E, em resultado, talvez possamos descobrir a pessoa que ainda nos quer fazer mal. — Ninguém em Mwathe nos vai dar mais informações — frisou Lars. — Às tantas o melhor é o Jeremy e os homens dele fazerem agora pressão sobre eles. — Mas, se a polícia começar a fazer perguntas, este Karanja pode mudar-se para outro lado. Desaparecer na floresta. Se esteve envolvido nos dois últimos incidentes em Langani, pode conduzir a campanha dele de outro lugar qualquer das redondezas. É melhor que pensem que engolimos a história deles. Que reagimos como wazungu estúpidos. Talvez o Jeremy possa montar vigilância ao recinto. — E tu, David? — perguntou Lars. — Que é que achaste do Karanja? — É má rês, bwana. E toma bhang. — É. Estava pedrado com qualquer coisa. Tinha aquele olhar febril próprio de quem é viciado. — A rapariga do bebé é que me despertou interesse — disse Sarah. — Apanhou um susto de morte quando ouviu o nome do Simon. Só queria que tivéssemos falado com ela a sós. — Seria perigoso para essa rapariga se a vissem a falar com wazungu — disse David. — Matavam-na. É nova, não passa de uma mulher secundária. E com um filho deformado. É um mau presságio para a tribo dela. Tem consequências nefastas para todo o clã. Há maridos que obrigam as mulheres a deixar um toto assim no mato. Para pasto das hienas. — O pobrezinho tem o pé boto — disse Sarah. — O meu pai tratou várias crianças com esse problema e o tratamento pode ter sucesso. Foi o que eu disse à rapariga. Que lhe arranjava a ajuda
de um médico. Mas não sei se ela entendeu. Desapareceu antes que eu pudesse explicar-me melhor. Sentia-se desiludida, desanimada com a falta de qualquer coisa de concreto que pudessem usar ou seguir. — Tenho a intuição que ela sabe alguma coisa sobre o Simon — disse ela. — Talvez o David saiba de alguma maneira de voltarmos a falar com ela — disse Lars. Mas não alimentava grandes esperanças. — Agora temos de contar à Hannah — disse Sarah. — Apesar de não haver muito que contar. Mas não podemos continuar a esconder-lhe. Eu, pelo menos, não posso. Se vamos falar sobre isto ao Jeremy, temos de dizer primeiro à Hannah. Por favor, Lars. Não tenho jeito nenhum para estas histórias de espionagem. Lars acenou com a cabeça, indicando a sua concordância. — Explicamos-lhe tudo logo à noite. — Olhou pelo retrovisor. — E tu, David… — Ndio, bwana. — Não podes contar a ninguém onde fomos hoje. Absolutamente a ninguém. É muito importante que as pessoas em Mwathe pensem que não queremos mais nada com elas, entendido? — Ndio, bwana. Eu não digo a ninguém. Chegaram a Nanyuki segundos antes de a loja fechar. — Que tal uma bebida rápida no Silverbeck? — perguntou Lars depois de carregarem o Land Rover. Estava desejoso de descomprimir antes de regressar à fazenda. — Acho melhor continuarmos — disse Sarah. — A noite está a cair e a Hannah não se sente bem sozinha. Lars sorriu e pousou-lhe uma mão afectuosa no braço. — Tens razão. Como sempre. Vamos seguir viagem. — Talvez seja melhor telefonarmos-lhe. Lars hesitou e depois abanou a cabeça. — Não quero começar a explicar ao telefone e dentro de quarenta minutos estamos em casa. Vamos. Dirigiram-se para Langani, a toda a velocidade, cada um deles absorto em reflexões privadas, quando dobraram uma curva e quase colidiram com um jovem elefante macho. Sarah soltou um grito de consternação quando a forma colossal surgiu diante do pára-brisas. Lars travou a fundo. O carro guinou violentamente de uma berma à outra enquanto ele se esforçava por controlá-lo no piso esburacado. O choque parecia inevitável mas, nos últimos segundos antes do impacto, o elefante levantou a tromba, alarmado, e escapuliu-se para o mato. A roda dianteira embateu contra uma pedra, na berma da estrada, com um rangido, e o veículo imobilizou-se, inclinado de lado. Durante alguns minutos, Sarah ficou aturdida, a olhar para o espinheiro que tinha detido o avanço descontrolado do carro. Seguiu-se então o pânico. — Lars? Lars, estás bem? David? — Deu por si a gritar pelos nomes deles. Ao seu lado, Lars começou a tossir, tentando limpar o pó dos pulmões que remoinhava à volta deles em asfixiantes nuvens vermelhas. — Tudo bem, tudo bem… pelo menos, estou vivo! E tu? — Estou bem. — Olhou para ele, tomada de choque e alívio. — David? Magoaste-te? — Não, memsahib. Estou bem. — A voz dele era trémula e estava meio deitado no banco de trás, agarrado à armação da janela. — Vou ver se houve danos. — Lars apeou-se do veículo, que oscilou violentamente quando ele
pousou os pés no chão. — Cuidado — advertiu. — O carro pode capotar. Está em cima de um pedregulho enorme. Sai com cuidado, Sarah. A seguir tu, David. Toma, agarra-te ao meu braço. Temos de ver se conseguimos voltar a pô-lo na estrada e se ainda anda. Saíram cautelosamente do veículo sinistrado, ouvindo com apreensão os protestos do metal quando a mudança de peso alterou o seu ângulo. Agora que estavam fora e aparentemente intactos, Sarah sentiu náuseas e começou a tremer. — Senta-te — disse Lars. — David, está uma garrafa-termos lá atrás. — Deitou café na chávena, juntou uma boa dose de açúcar e passou-lha. — É o choque. Bebe isto e fica quieta, enquanto eu e o David tentamos tirar este chaço velho de cima do pedregulho. Não estás a sangrar, pois não? Não partiste nada? Sarah sacudiu negativamente a cabeça, incapaz de falar. Sentou-se numa pedra próxima e bebeu o café doce até o tremor nas mãos acalmar, a respiração normalizar e a náusea passar. Os homens debatiam-se com o carro, tentando levantá-lo e empurrá-lo da sua posição, mas o pedregulho era enorme e não conseguiam impulsão suficiente. Lars estava a praguejar de frustração. — Com o caraças! Não vejo danos de maior nas rodas nem no chassi, mas estamos presos e não quero virá-lo completamente. Pega na corda, David. David procurou nas traseiras do veículo. O carro deu um solavanco para o lado quando ele se apoiou no taipal de trás e Sarah susteve a respiração. Por fim, depois de Lars ter metido o ombro ao painel lateral para imobilizá-lo, o jovem quicuio conseguiu tirar um pedaço de corda. Prenderam-na à barra de reboque e Lars desapareceu no mato. Quando voltou, trazia um ramo robusto de uma acácia caída que pousou no chão. — Se conseguir enfiar isto debaixo do carro à frente, talvez consiga levantá-lo e depois o David pode puxar por ele — disse ele. Sarah aproximou-se. Lars preparava-se para recusar a ajuda dela quando ela o mandou calar. — Tens de me deixar ajudar. Já escureceu e não é boa ideia ficarmos aqui presos toda a noite. É pouco provável que passe alguém nas próximas horas e a Hannah vai ficar desesperada se nos demorarmos muito mais tempo. — Está bem — disse ele. — Pega na corda. Quando eu fizer sinal, tu e o David puxam com toda a força que puderem e eu empurro. Desapareceu à frente do carro e ela ouviu-o debater-se e praguejar ao tentar posicionar o ramo por baixo do eixo. — Agora quando eu contar até três, puxem com toda a força! — gritou ele. — Um, dois, três! Harambee! Demorou vinte minutos a tirar o carro da pedra. Por duas vezes, a alavanca improvisada partiu e Lars teve de ir em busca de um ramo mais robusto. — Cuidado — disse David. — O elefante pode estar à espera que a gente se mexa ou a prepararse para nos afugentar. Eu vou consigo buscar o ramo. Para alívio de Sarah, não havia sinais do elefante nem de outros animais. Mas quando finalmente o Land Rover começou a mover-se, soou uma chiadeira e ela teve medo de que destruíssem completamente a parte inferior do veículo antes de o descerem. Por fim, com um último ruído metálico, o veículo caiu na estrada numa baforada de pó e eles sentaram-se, sujos e a arfar. David e Sarah tinham as mãos esfoladas da corda e os braços de Lars exibiam cortes sangrentos da sua luta com os ramos espinhosos. Sem fôlego, detiveram-se por momentos a recuperar na escuridão que se
adensava e depois Lars foi fazer nova inspecção. Um rasto revelador de óleo indicava o trajecto do carro sobre o pedregulho e ele enfiou-se debaixo do chassi para ver onde tinha origem. — Merda! Há uma fuga no cárter — disse ele. — Temos de tentar estancá-la com um trapo e ir devagar para casa. Mas sabe-se lá quanto tempo aguenta. O carro foi avançando lentamente e Lars teve de parar por duas vezes para substituir o trapo que tinha enfiado no cárter. O óleo estava a escapar depressa. Não andava mais ninguém na estrada e Sarah experimentava um medo crescente de que ficassem atolados no mato toda a noite sem maneira de dizer a Hannah onde estavam. Quando o inevitável aconteceu e o motor gripou completamente, ficaram à escuta, impotentes, do vapor que se escapava da capota sobreaquecida. — Isto é mau — disse Lars. — Muito mau mesmo. Nesse momento, David soltou um grito. — Vem aí alguém, bwana Lars. Da direcção de Nanyuki. Lars apeou-se de um salto, acenando freneticamente aos faróis do carro que se aproximava. Uma viatura da polícia parou ao lado deles e Jeremy Hardy abriu a janela. — Ainda bem que vos encontro — disse ele. — A Hannah ligou-me, completamente histérica. Convenceu-se de que estavam mortos numa vala qualquer depois de um acidente ou de uma emboscada. Estão todos bem? — Olhou para as mãos esfoladas e ensanguentadas de Sarah. — Que aconteceu? — Não faltou muito para ficarmos mortos numa vala — disse Lars, sorrindo de alívio. — Esbarrámos de repente com um elefante, batemos numa pedra e o cárter deu o berro. Precisamos de ser rebocados. Lars prendeu o Land Rover à carrinha da polícia, enquanto Jeremy mandava uma mensagem pelo rádio para Langani. Enquanto regressavam à fazenda, Lars explicou onde tinham estado e o que tinha dado origem ao acidente. — Amanhã discutimos isso a fundo — disse Jeremy, com uma expressão severa e crítica. — Foram de uma estupidez atroz em aparecerem assim na reserva, sem me informarem. Não é boa altura para se porem a brincar aos detectives amadores. Que é que lhes passou pela cabeça? Passava das oito horas quando chegaram a Langani. Mwangi saiu a correr para recebê-los e David começou a contar-lhe o acidente, abrindo muito os braços para descrever o elefante e mostrando orgulhosamente as mãos cortadas, como um guerreiro que exibe ferimentos de guerra. Sarah manteve-se afastada, rígida e esgotada. Não havia sinais de Hannah. Kamau apareceu da cozinha e o filho repetiu a história, com novos exageros do perigo e do drama. Por fim, Hannah apareceu com uma caixa de primeiros socorros. Parou por um momento a olhar para eles e depois engoliu em seco. — Onde diabo é que andaram? — Falou numa voz aguda, permeada de ansiedade. — Sobretudo depois do pôr-do-sol. Podiam ao menos ter telefonado. Não lhes passou pela cabeça que eu podia estar morta de preocupação, caramba? Diz o Mwangi que o carro capotou. Sarah avançou, consternada com a violência da fúria de Hannah e ansiosa por apresentar uma explicação. — Desculpa, Han — disse ela. — Quase chocámos com um elefante e estamos num estado lastimoso. As mãos esfoladas, cortes nos braços e nas pernas e os músculos perros. Mas, pelo menos, ninguém se magoou gravemente. — Quando é que isso aconteceu? — Hannah estava a olhar para as marcas nos braços de Lars. — Por volta das seis — disse ele. — Vínhamos depressa para recuperar o tempo perdido e…
— Seis horas? — interrompeu Hannah. — Que é que estiveram a fazer em Nanyuki até às seis? Iam só buscar provisões e ao correio. Não percebi que iam passar a tarde por lá a vadiar. Mas eles não podiam explicar à frente do pessoal. Hannah abriu a caixa de primeiros socorros em absoluto silêncio, pegando em desinfectante, que entornou em várias compressas de algodão. — Vai lavar as mãos — disse ela a David num tom seco. — E aplica esta pomada amarela. Ele afastou-se para um canto do alpendre, ouvindo com interesse para ver como iam escapar à fúria da jovem memsahib e se lhe iam contar muitas mentiras. Sarah teve pena dele enquanto ele tratava das mãos, sozinho no escuro. Estava exausta, sofrendo das sequelas do acidente e consciente da sensação ardente nas palmas das mãos e dos músculos doridos em todo o corpo. — O David foi fantástico hoje — disse ela. — Passámos duas horas de pânico a tentar chegar aqui para não estares sozinha toda a noite. — Ai sim? Folgo em saber que tentaram. — Hannah virou-se para ela, a chispar dos olhos. — Espero que se tenham divertido em Nanyuki depois de me pregarem uma mentira. As compras de que falaram hoje de manhã não podem ter demorado mais de meia hora. Quando não apareceram, comecei a ligar para o clube e para os hotéis, mas ninguém os viu durante todo o dia. Estou a tentar explorar aqui uma fazenda, porra, a olhar por um bebé, a arcar com ataques e fogo posto e… — Com a fúria, engasgou-se por um momento e depois continuou: — E com tudo o que aconteceu. O Lars tem muito que fazer aqui, Sarah. Não está livre para passar o dia contigo nas compras. — Nós não passámos o dia nas compras, Han. — Desapareceste com o meu marido e um dos meus empregados, e ambos faziam falta aqui. — Com a fúria, a voz de Hannah saiu estridente. — E ainda conseguiste dar-me cabo do carro, provavelmente porque vinhas a conduzir como uma doida. Sabia que estava a disparatar, que devia estar a dizer como se sentia aliviada por terem chegado, como estava assustada com a demora deles. Queria lançar os braços ao pescoço de Lars, dizer-lhe que teve medo de que lhe tivesse acontecido alguma coisa, que nunca seria capaz de viver sem ele ou passar um só dia sem o amor dele. Tentara durante muito tempo ser resoluta, calma e corajosa e acabara apenas por descobrir que o marido e a melhor amiga estavam envolvidos num esquema qualquer de que a tinham deliberadamente excluído. Onde se tinham metido o dia todo? Que é que estavam a esconder-lhe? Todo o seu terror reprimido explodiu num desabafo furioso e não conseguiu conter as palavras. Sarah estava a fixá-la, contrita e silenciosa. Lars estava de costas para ela, os ombros vergados e as mãos nos bolsos. — Imagino que achas que eu devia estar cheia de pena porque chegaste aqui com meia dúzia de arranhões — disse ela, avançando para Sarah. — Mas deviam ter chegado aqui às três horas, o mais tardar, e eu não sabia o que lhes tinha acontecido. Por isso, não tentes explicar-me como é que o meu marido e o meu empregado se portaram nesta confusão que tu criaste, Sarah Mackay! Porque és uma convidada aqui na minha fazenda. Não tens o direito de me dizer nada. O rosto de Sarah crispou-se. Pousou as mãos feridas nas costas de uma cadeira para se apoiar e logo as retirou porque a dor foi imediata. — Vou andando. — Jeremy Hardy aclarou a garganta, claramente embaraçado. — Falamos sobre tudo isto de manhã, quando tiverem tempo para recuperar. Entretanto, quanto menos se disser, melhor. Não me parece que esta visita deva chegar ao conhecimento geral. — Deu uma palmada no braço de Hannah. — Boa-noite, minha querida — disse ele brandamente. — Ainda bem que pude ajudar. Durmam todos bem.
— Quem é que foram visitar? — Hannah virou-se para Lars quando o polícia arrancou. — Hannah, acho melhor discutirmos este assunto lá dentro — disse ele, em voz baixa. — Antes que digas alguma coisa de que venhas a arrepender-te. Ela afastou-se dele mas ele agarrou-a pelo braço e conduziu-a ao escritório, deixando Sarah sozinha, grudada ao chão, os olhos velados pelas lágrimas que se formavam e sentindo o peso das palavras de Hannah, como pedras, no coração. Ao cabo de alguns momentos, ouviu David descer os degraus e Sarah avançou pelo alpendre, passando pelos estores descidos e pela porta fechada do escritório, e fechou-se no quarto.
— Não me agrada que fales comigo nesse tom diante dos criados — disse Lars. — Não devias ter falado assim com nenhum de nós, fossem quais fossem os teus sentimentos. Não, não digas nada, Hannah. Ouve. — Deu um murro na secretária para a silenciar. — O Rabindrah Singh pôs a Sarah em contacto com um padre que tinha olhado pelo Simon em criança. À menção do nome do sique, Hannah sibilou de fúria. — Esse maldito indiano! Já sabia que só ia trazer problemas. Ligou para aqui esta noite. Só queria que fosse à vida dele e nos deixasse em paz! — Cala-te, Hannah. Cala-te, sim? — Lars agarrou-a com força, obrigando-a a sentar-se numa cadeira. — Não fales assim. É muito possível que ele nos tenha conduzido à nossa primeira pista. O padre deu à Sarah o nome de um homem que afirmou ser parente do Simon. Foi por isso que fomos hoje à Reserva de Mwathe para tentar encontrá-lo. E fui eu que decidi não te dizer porque podia não dar em nada. — Mas não tiveste problema nenhum em explicar ao David, e à tua mulher já tiveste. — A voz de Hannah estava a falhar-lhe e os nós dos seus dedos estavam brancos ao agarrar-se à madeira escura da velha secretária do pai. — Levei o David para servir de intérprete porque confio nele — disse Lars. — E ele prometeu não falar da visita. Não é um assunto que se possa discutir diante do resto do pessoal. E o meu trabalho nesta fazenda também não. — E então que descobriste? — perguntou ela. — Já te digo — disse Lars. — Mas, entretanto, não tens o direito de me acusar de um comportamento irresponsável, nem de presumir que eu era capaz de tirar um dia de folga para me divertir com a Sarah, sem te incluir. A propósito, é bom que lhe trates das mãos e lhe dês qualquer coisa para a distensão muscular depois de ela ter puxado pelo carro como puxou. Devias ter-lhe agradecido, e ao David também, em vez de… — Porque é que estás a tomar o partido dela, a pô-la à minha frente? — Hannah levantou-se, de braços cruzados e costas aprumadas. — Não consegues imaginar o que eu senti quando não te vi chegar? Lars suspirou e estendeu a mão para a tocar, o ressentimento dando lugar à compaixão. Mas ela esquivou-se. — Lamento muito não te ter dito onde íamos — disse ele. — E compreendo perfeitamente como te deves ter sentido. Mas não és a única que está a sofrer. Parece que te esqueceste de que a Sarah perdeu tudo com a morte do Piet… o homem com quem se ia casar… e o futuro que tinham planeado juntos nesta fazenda. Mas sempre fez tudo o que podia para te ajudar a aguentar a dor, para tentar proteger-te, para estar cá sempre que pode. Deve ter sido terrível falar com aquele
padre sobre o Simon, para não mencionar a viagem de hoje. Correr o risco de enfrentar a pessoa que está a tentar destruir-te, a ti e à tua fazenda. Nada disso é fácil para ela. Tu tens uma bonita filha e tens uma casa em Langani, apesar das dificuldades presentes. E tens um marido que te ama. Mas a Sarah perdeu todos os seus sonhos. Ela olhou para ele, a sua fúria começando a desvanecer-se, e tentou sorrir. Mas ele não reagiu. — Mereço mais respeito do que me mostraste — disse ele. — Deves compreender isso, Hannah, da próxima vez que o teu mau génio se apoderar de ti. A Sarah é a melhor e mais leal amiga que alguma vez tiveste e que, provavelmente, alguma vez terás e devia ser tratada como tal. Esse tipo de amizade é raro e esta noite és muito bem capaz de a ter destruído para sempre. Agora vou lavar-me e tu deves levar dawa à Sarah e ir depois à cozinha pedir ao Kamau que nos arranje qualquer coisa para comer. — Saiu da sala, fechando firmemente a porta atrás de si. No escritório, Hannah sentou-se à secretária que o pai e o avô tinham usado durante muitos anos antes dela. Baixou a cabeça quando uma imagem de Janni lhe assaltou o espírito, inchado e bêbado, amargurado por saber que tinha virado as costas a Langani e levado Lottie para uma vida de escravidão e desespero num país que odiavam. Tinha perdido o filho num assassínio brutal e sem sentido. E tudo para não abrir mão da terra que os seus antepassados tinham construído no mato no princípio do século. Langani, o lugar feliz da sua infância e das suas recordações mais preciosas, tornara-se um estorvo. Um fardo que já reclamara a vida do seu bem-amado irmão e que estava agora a destruir uma amizade essencial, a ameaçar até o seu casamento e a segurança da filha. Interrogou-se se não seriam horas de partir.
CAPÍTULO 12
Quénia, Maio de 1967 acordou antes de o sol raiar. A discórdia da noite anterior entranhara-se no seu espírito e os S arah seus primeiros pensamentos do dia deixaram-lhe um amargo de boca. No refúgio do seu quarto, tinha criado uma distância física entre ela e Hannah. Mas as duras palavras da amiga não a tinham abandonado e a sua angústia impediu-a de aparecer quando Mwangi a foi chamar para jantar. Pouco depois, ouviu outra pancada na porta. Seguira-se um silêncio tenso, aumentando o abismo entre as duas. Hannah tinha então falado. — Ai, Sarah, desculpa-me. Trouxe-te umas sanduíches e uma pomada para as mãos. Sarah tinha acenado com a cabeça, incapaz de encontrar palavras. — Já não consigo lidar com nada. — Hannah tinha-se sentado na cama, enterrando a cara nas mãos. — Entrei em pânico quando anoiteceu, cheia de medo que tivesse acontecido alguma coisa de terrível a ti e ao Lars. Que nunca mais voltassem e que eu e a Suniva ficássemos sem ninguém. Absolutamente sem ninguém. Depois o Jeremy encontrou-os e eu senti-me profundamente aliviada mas furiosa também. E quando o Mwangi me veio dizer que tinham tido um acidente e eu apareci na varanda, vi toda a gente a rir-se da história do David sobre o elefante e pareceu-me que ninguém queria saber de mim. — Tinha-se calado, à espera de que Sarah dissesse alguma coisa, que estendesse a mão num gesto de reconciliação. Mas Sarah permanecera imóvel. — Fico sempre furiosa quando estou assustada. Já me conheces. Talvez seja a minha costela italiana. A minha mãe era igual, se eu desaparecesse sem lhe dizer onde ia. Convencia-se de que eu tinha caído ao rio ou sido comida por um leopardo ou coisa assim e, quando eu chegava, estava numa fúria comigo. Era a maneira que ela tinha de se libertar do medo. Desculpa-me, Sarah, compreendo que não queiras falar comigo. — Havia uma súplica nos seus olhos. — Tenho de voltar para o pé do Lars agora. Ele também está zangado comigo e tem toda a razão. Mas queria que soubesses que te amo e estou arrependida. Até amanhã. Depois de ela sair, Sarah tinha ficado sentada, durante algum tempo, sem se mexer. Por fim, tentara comer qualquer coisa mas teve dificuldade. Ainda lhe ardiam as mãos, apesar de ter aplicado a pomada, e tinha o corpo todo moído. Pouco depois, tinha desistido de comer e voltado a deitar-se, mas não tinha conseguido dormir. Deviam ter dito a Hannah onde iam. Ela tinha o direito de estar zangada. Mas a crueldade das suas palavras estavam indelevelmente gravadas na consciência de Sarah. Era uma convidada na fazenda, alguém que não merecia confiança. Não fazia parte da família, não era uma irmã nem uma amiga acarinhada, como sempre tinha acreditado ser. E essa era a verdade. Já não tinha um lugar ali. Hannah tinha um marido e uma filha a quem se dedicar e uma casa onde se refugiar. Não queria a noiva do irmão morto a perturbar a sua vida já conturbada, a tornar a ausência dele ainda mais sentida, a servir de lembrança constante da sua perda. Sarah tinha tentado aplacar a dor crescente. Piet tinha morrido e o lugar que devia ter sido a sua casa já não constituía uma parte real da sua vida. Devia tê-lo reconhecido mais cedo.
Passara o resto da noite numa sucessão de sonhos inquietos. A presença ameaçadora de Karanja Mungai enchia a escuridão sempre que fechava os olhos. Tinha a certeza absoluta de que ele tinha conhecido Simon. E a rapariga do bebé também. Mas a visita a Mwathe não os tinha levado mais perto de identificar quem ou que coisa estava por trás da ameaça a Langani. Sarah sentia agora que só tinha conseguido criar mal-entendidos e recriminações entre todos. Perdera Piet e agora perdera Hannah também. Em Londres, Camilla traíra-a. Partiria de Langani pela manhã. Quando o primeiro raio de luz rasgou o céu, Sarah vestiu-se rapidamente. Escreveu um recado para Hannah e foi discretamente para o carro, acenando ao guarda-nocturno e afastando-se o mais silenciosamente que pôde na esperança de que o barulho do motor não acordasse ninguém. Na alvorada nublada e fria, virou para a estrada principal para Nanyuki, esperando sentir algum alívio, agora que tinha deixado a fazenda. Mas, enquanto conduzia com o sol nascente à sua frente, a glória da manhã parecia apenas intensificar o isolamento que a tinha submergido. Passando pelo local do acidente, viu o pedregulho onde o carro ficara preso e o longo traço de óleo preto do cárter que tinha manchado a estrada. Deu por si a tremer à lembrança do impacto. E se Lars tivesse morrido ou ficado gravemente ferido? Tinham tido sorte em escapar com alguns arranhões e um motor danificado. A estrada estendia-se à sua frente, interminável, deserta e vermelha, sob a luz do sol na argila brilhante. Sempre tinha gostado de viajar sozinha, entregue ao prazer de observar a vida selvagem que pululava no mato de cada lado da estrada, de identificar flores silvestres, plantas e cantos de ave. Mas agora ansiava por ter alguém com quem conversar. Outro ser humano que pudesse compreender como se sentia perdida, à deriva no mundo estranho e hostil que se tornara a sua vida. Continuou, de olhos fixos à sua frente, quase indiferente ao caminho, até que chegou a Nanyuki. Tinha começado a sentir-se enjoada e trémula e lembrou-se de que não tinha comido praticamente nada nas últimas vinte e quatro horas. Quando viu o sinal para o Hotel Silverbeck, decidiu parar para tomar o pequeno-almoço. Não estava ninguém por ali, excepto o porteiro da noite, que lhe disse que o pequeno-almoço só seria servido às sete. Sarah voltou para o parque de estacionamento, consciente de que não tinha dormido o suficiente e de que estava com fome e com frio e desalentada. As chaves do carro tinham desaparecido no fundo do saco e, enquanto remexia à procura delas, a sua necessidade de consolo intensificou-se. Parou de procurar e encostou-se à porta do Land Rover, pontapeando uma pedra, sem se importar de estragar um par de sapatos novos que tinham sido uma extravagância em Londres. Depois, regressou ao hotel. — Queria fazer uma chamada — disse ela, escrevendo o número e entregando-o ao porteiro. Ele indicou a cabina telefónica e marcou o número da central. Sarah instalou-se no pequeno cubículo, segurando desajeitadamente no auscultador com as mãos empoladas enquanto esperava ligação. Quando ouviu a voz, o coração caiu-lhe aos pés. Tinha-o claramente acordado. Outro erro. — Fala Indar Singh. Quem fala? Sarah pensou em desligar. Era mais que embaraçoso. Consultou o relógio. Que é lhe tinha dado? Um telefonema àquelas horas ia dar azo a todo o género de conjecturas. Era um desastre. Mas precisava de falar com alguém. Quem quer que fosse. — Estou? Está lá? Quem fala, por favor? — A pergunta de Indar Singh denotava alarme. — Estou? — Sarah recuperou a fala. — Peço imensa desculpa por incomodar, Mr. Singh. Fala a Sarah Mackay. Seria possível falar com o Rabindrah? Se ele estiver em casa.
— O meu sobrinho ainda está na cama, Miss Mackay. Ainda só são seis da manhã e toda a família está a dormir. — Eu sei. Sinto muito. Mas preciso muito de falar com ele. É um assunto urgente… Estava com as faces escarlates. Porque é que tinha feito aquilo? Em segundo plano, ouviu Kuldip, incrédula por ela ter ligado àquela hora. Seguiu-se uma conversa abafada entre Indar e a mulher e o embaraço de Sarah intensificou-se. Mas agora era tarde de mais. Tinha feito a chamada e, de súbito, deixou de se importar com o que pensassem. Queria falar com Rabindrah. — Um momento, por favor. Vou chamá-lo. — A irritação de Indar era evidente. Depois fez-se silêncio. — Sarah? Tenho estado em trabalho na Tanzânia e só soube do incêndio ontem. A Hannah disselhe que telefonei? Sarah detectou surpresa e preocupação na sua voz, mas custou-lhe encontrar palavras para responder. Emitiu alguns sons estrangulados, tentando explicar o que tinha acontecido antes de o dique de emoção a submergir e a privar da fala. — Pare — disse Rabindrah. — Respire fundo várias vezes e conte-me tudo em pormenor. Sobre o incêndio. E o acidente com o carro. Alguém se magoou? Aos poucos, ela conseguiu descrever o que se tinha passado, começando pelo fogo no lodge e a sua sensação de que a memória de Piet estava a ser apagada da terra. De que até o último símbolo dos seus sonhos tinha sido agora eviscerado. Ele ouviu o relato dela da visita ao padre Bidoli em Nyeri e da viagem à Reserva de Mwathe. — Tenho a certeza de que conheciam o Simon — disse ela. — Apesar de terem negado. O velho, o Karanja… achei-o diabólico. Cheio de maldade, se bem que não saiba muito bem dizer porque é que fiquei com essa impressão. Mas a rapariga… ela é que os traiu porque estava demasiado assustada para fingir. E, mais tarde, pus-me a pensar que era capaz de ter razão a respeito do Simon. E se estivessem a escondê-lo ali? E se ele esteve a observar-nos o tempo todo? Foi horrível. E depois, no regresso, tivemos o acidente. Nesse momento, pensei que o Lars tinha ficado ferido e que podíamos morrer todos e seria culpa minha por obrigá-lo a ir comigo. Fiz tudo da pior maneira. Não fui honesta com ela. As suas frases eram fragmentadas, incoerentes, e não se calava a pedir desculpa porque ela própria mal conseguia dar sentido à narrativa entrecortada, quanto mais transmiti-la a outra pessoa. — Sarah, está a sofrer de um excesso de choques depois de tudo o que aconteceu nas últimas vinte e quatro horas. Não há ninguém que fosse capaz de passar por isso tudo e permanecer lúcido e calmo. Onde está exactamente? — Em Nanyuki. Fugi. Hoje de manhã. Não fui capaz de lá continuar. Sentiu que ia começar a soluçar e uma nova onda de humilhação veio juntar-se à sua infelicidade. Ele ia decerto pensar que tinha estado a beber. Mais uma vez. — Peço desculpa. Não devia tê-lo incomodado. — Tentou reprimir o soluço seguinte, mas ele escapou como um guinchinho. — Os seus tios devem estar escandalizados. — Sim? E porquê? — Ela sentiu o sorriso na voz dele. — Ligar-lhe de madrugada. Histérica. Acordar a casa toda. Sei muito bem que não acharam graça nenhuma. — Voltou a soluçar e começou à procura de um lenço mas ainda tinha as mãos engorduradas da pomada que tinha aplicado de manhã para poder conduzir. O telefone escorregoulhe da mão e caiu ao chão. — Merda!
— Sarah? — A voz desencarnada de Rabindrah chegava-lhe do chão. — Que é que lhe aconteceu? Sarah? Ela sentou-se no chão e levantou cuidadosamente o auscultador, encostando-o à orelha. Agora ia ouvi-la fungar e Sarah agradeceu a Deus que não estivesse a vê-la, desgrenhada e com os olhos vermelhos. O porteiro estava a observá-la com curiosidade da zona da recepção, mas era tarde de mais para se importar. — Desculpe. Deixei cair o telefone. Ouça, não quero gastar muito dinheiro e… — Dê-me o número daí. Já lhe ligo e depois pode falar o tempo todo que quiser. Ela não teve a certeza de quanto tempo durou a chamada. Pelo menos, meia hora, pensou. Ele deixou a conversa saltar de tópico em tópico e falaram sobre o editor em Londres, os elefantes, o livro e a família dela, até a voz de Sarah deixar de tremer e os soluços passarem. — Já me sinto melhor — disse ela. — Obrigada por me acalmar. Por me ouvir. — Tome o pequeno-almoço antes de se meter nessa estrada má — disse ele. — É uma longa viagem, sobretudo estando cansada. A propósito, estou a pensar em aparecer brevemente para discutir algumas passagens do texto. E sou capaz de ter outro trabalho na região. Sarah? — Sim? — Não se esqueça de que a Hannah se deve ter sentido terrivelmente assustada. Está a viver em estado de sítio e as pessoas muitas vezes dizem coisas nessas circunstâncias de que se arrependem mais tarde. Não dê demasiada importância a palavras ditas num estado de pânico. Sarah dirigiu-se à sala de jantar, escondendo os olhos inflamados atrás dos óculos de sol que Rabindrah lhe tinha emprestado no dia em que ela se descontrolara em Nairobi. Tinha tentado devolver-lhos mas ele tinha insistido que seriam úteis na intensa claridade das terras semidesérticas em que ela trabalhava. Devorou um pequeno-almoço substancial e tomou várias chávenas de café forte. O sol brilhava num céu cor de bronze quando finalmente abandonou Nanyuki. Pensou em ligar para Langani para falar com Hannah, mas achou que não estava com forças para enfrentar outra conversa emocional. A mensagem de desculpas e justificação teria de bastar. Estendiam-se à sua frente mais de três horas de estrada poeirenta e esburacada e, pela primeira vez, deu por si a temer a viagem solitária. Agarrou com força o volante e retraiu-se de dor. Ia ser uma longa estirada.
— Ela partiu, Lars. — A expressão de Hannah era de desolação, segurando na carta que Sarah lhe deixara. — Pu-la fora de casa. — Observou Lars enquanto ele lia a mensagem. — Devia ter ficado mais tempo com ela ontem à noite. Explicado melhor. — As circunstâncias não eram as ideais ontem à noite — disse ele. — Mas deves escrever-lhe. É a melhor maneira de reparar a situação. Ela precisa de tempo e de espaço para se recompor. Mas agora precisamos nós de falar. — Sim. Vou tratar das minhas tarefas e ver se a Esther tem tudo preparado para a Suniva e tenho algumas coisas… — Não, Hannah. Vamos falar agora. E não apenas sobre o que se passou ontem. Vamos também falar sobre os outros dias. Lars tomou a dianteira para a sala de estar e fechou a porta. Sentiu uma onda de compaixão ao ver o medo dela. Hannah sentou-se no sofá, ao lado dele, com as mãos muito apertadas no regaço, e
ele sentiu-se tentado a tomá-la nos braços e a afagar-lhe o cabelo e beijar-lhe o rosto triste e ansioso. Mas era tempo de uma conversa frontal. — Desde que a oficina foi destruída, Han, tens andado cada vez mais revoltada — disse ele. — Eu sei que é porque andas assustada. Mas, se é assim que te vais comportar, então temos de deixar Langani. Para bem de todos. Porque de dia para dia estás a tornar-te cada vez mais intratável. — Não sei como lidar com as coisas. — Os ombros de Hannah descaíram num gesto de derrota. — Sempre que ultrapassamos uma crise e recomeçamos, há outra coisa que é destruída. Pensei em desistir mas, quando chega a hora da verdade, esta fazenda é a minha casa. A nossa casa. É a minha herança e é tudo o que me resta. Tudo o que é bom e que recordo da minha família e da minha infância está aqui. Foi aqui que nos casámos. Foi aqui que a Suniva nasceu, como eu e o Piet. E o meu pai. É a nossa casa, Lars. — Que herança vamos ter, se acontecer alguma coisa a um de nós ou à Suniva? Sabes bem que nunca perdoaríamos a nós próprios. — Olhou pela janela, escolhendo cuidadosamente as palavras seguintes. — O teu medo e o teu ódio estão a propagar-se como veneno na nossa fazenda. Não podes continuar assim, a ver em toda a gente à tua volta um inimigo potencial. Incluindo a Sarah. É essa a herança que queres? — Perdi o norte. — As palavras dela foram comoventes. — Mas não estou preparada para abandonar a minha casa. E se o Jeremy prender esse homem com quem falaste ontem, talvez tudo acabe e nos sintamos seguros outra vez. — Acreditas que acaba mesmo, Hannah? — Ele olhou para ela tristemente. — Não estou certo disso. E pode levar muito tempo a provar-se que o Karanja Mungai está implicado no que aconteceu em Langani. Talvez nunca se obtenham provas suficientemente sólidas para resistir em tribunal. E continuamos sem saber por que razão o Piet foi morto. Quando este assunto estiver finalmente resolvido, pode ser demasiado tarde para nós. Pode não restar nada da Hannah que eu conheci. — Podemos aguentar mais algum tempo. Amo-te, Lars. Não posso viver sem ti. Foi por isso que perdi a cabeça ontem à noite. Estou tão arrependida. — Olhou para ele com olhos suplicantes. — Prometo que me vou comportar melhor a partir de agora. Juro. — Se queres que tenhamos uma vida comum, Hannah, tens de aceitar que pode não ser aqui — disse Lars. — Podemos ter de começar do zero, noutro lugar. Não será a mesma coisa, eu sei. Mas temo-nos um ao outro e isso deve ser mais importante que tudo o resto. — Mas ainda não. — A expressão dela era de súplica. — Temos de dar uma última oportunidade ao Jeremy. Temos de descobrir se esse Karanja Mungai é o responsável pelo que tem acontecido aqui. — Enterrou os dedos no braço dele, tentando aplacar a sua ansiedade. — E a partir de agora vou esforçar-me mais, por ti e pela Suniva. Se me ajudares. Hannah tinha alongado os olhos até à crista enegrecida, para lá do montículo de Piet, até às ruínas carbonizadas do seu sonho. Lars estendeu a mão para lhe tocar na face e ela virou-se para ele, com uma expressão solene, confiante e doce que lhe partiu o coração. — Anda, Hannah — disse ele. — Vamos concluir as contas da semana. E depois tiramos uma folga e levamos a Suniva a nadar no rio. Está um dia muito bonito. *
Foi ao fim da tarde que Jeremy Hardy chegou. Respondeu ao olhar interrogativo de Hannah sacudindo negativamente a cabeça. — É demasiado cedo para resultados — disse ele. — Mas tenho um bom agente infiltrado em Mwathe. Foi para a reserva ontem à noite. Um tipo experiente que nasceu lá e a visita com frequência. Ninguém desconfia se ele for passar uns tempos a casa. — E o velho com quem o Lars falou ontem? — perguntou Hannah. — O Karanja Mungai não tem cadastro na polícia. Já tentámos no passado prendê-lo por uma série de assaltos e roubos de provisões e por vender mercadoria roubada. Mas ele é manhoso e usa vários homens mais novos do clã para lhe fazerem o trabalho sujo. — Então é conhecido da polícia? — Hannah franziu a testa. — Precisamente — disse Jeremy. — É possível que tenha organizado o primeiro assalto a Langani e a chacina do gado. Mas custa imaginar por que razão havia de atacar uma fazenda tão distante da reserva dele. Até agora, tem operado sempre na área de Nyeri. Mas a ligação ao Githiri não pode ser coincidência e temos de seguir essa pista. — Virou-se para Lars. — Na minha opinião, a vossa surtida ontem foi imprudente. Levar uma memsahib branca à reserva e fazer perguntas. E agora, com esse Karanja de sobreaviso em relação ao facto de conhecermos a ligação dele ao Githiri, perdemos o elemento surpresa, se quisermos interrogá-lo nós. Estes assuntos devem ser deixados com a polícia, Lars. Quando se trata de trabalho de equipa, acho melhor cingirmo-nos à nossa parceria no ténis. — Se tivesses seguido a pista do padre no início da investigação, às tantas já tinhas apanhado o Karanja há muito tempo. — Hannah atirou-se ao polícia em defesa do marido. Pelo canto do olho, viu o olhar de advertência de Lars e ignorou-o. — E aí podíamos não ter perdido a oficina nem o lodge do Piet, que nunca mais vamos poder reconstruir porque não temos dinheiro para isso. Acho que o Lars e o jornalista indiano fizeram um trabalho de investigação melhor que o teu, Jeremy. O polícia demorou o seu tempo a acender o cachimbo e preferiu não responder directamente à acusação dela. A pobre rapariga estava no limite das forças, pensou, e não valia de nada discutir o passado. Desde a noite anterior que andava furioso consigo mesmo por não se ter apercebido de que o padre nunca tinha sido interrogado. Queria saber como e onde Rabindrah Singh tinha conseguido acesso ao relatório da polícia. Hannah levantou-se e tocou à campainha para chamar Mwangi. Depois de pedir bebidas, voltou a sentar-se, esforçando-se por manter a serenidade enquanto Lars relatava tudo o que tinha visto e ouvido em Mwathe. — Acho que devemos tentar falar com a rapariga do bebé — disse Hannah quando ele terminou. — A Sarah tinha um pressentimento muito forte a respeito dela. Achas que o teu homem infiltrado consegue que ela se encontre connosco fora da reserva? — É uma possibilidade — respondeu Hardy. — Mandei-o andar de olho nela, mas ele não a viu desde que chegou ontem à noite. Por falar nisso, onde está a Sarah? Precisava de falar com ela. — Teve de voltar para o trabalho — disse Hannah. — Mas podes contactá-la pelo rádio. — Óptimo. Bem, agora vou andando. — Jeremy levantou-se para partir. — Havemos de prender o estafermo do velho. E talvez finalmente comecemos a compreender porque é que o Piet foi assassinado. — Estou com medo, Lars — disse Hannah quando ficaram sozinhos. — Se esse homem nos atacou antes, pode tentar outra vez. Sobretudo agora que a ligação dele com o Simon foi desmascarada. E se ele volta e tenta atacar-nos e fazer mal à bebé? — Mordeu o lábio, mordendo o
interior da boca até sentir o gosto do sangue. — Estarei a pedir de mais, a arriscar de mais, tentando ganhar mais algum tempo? Será melhor partirmos já, Lars? Diz-me. Diz-me o que fazer. Lars bateu na mesa, procurando uma resposta àquela pergunta impossível. — Não há terra alguma que valha o risco para ti e para a Suniva — disse ele. — Eu sei que estás determinada em ficar por causa da história da tua família. E por causa do Piet. Mas ele nunca quereria ver nenhum de nós magoado, fosse de que maneira fosse. — Viu-a estremecer. — Amo esta fazenda mas não estou disposto a morrer por ela nem a deixar-te a ti morrer por ela. É tão simples como isso. — Pois. Temos de tomar uma decisão. — A voz de Hannah era desolada. — Proponho que demos duas semanas ao Jeremy. O velho pode andar assustado desde ontem e a violência pode parar. Ou o Jeremy arranjar uma razão para prendê-lo. E eu vou tentar acalmar-me. E ser mais dócil. Concordas? — Sim, Han — disse ele. — Concordo.
Passaram três dias sem terem notícias. Hannah escreveu a Sarah a pedir-lhe perdão, mas sabia que uma resposta de Buffalo Springs demoraria tempo a chegar. Se é que chegaria. Lars também parecia ter-se refugiado em si mesmo e bloqueado qualquer via de acesso aos seus pensamentos. Depois, Hardy telefonou com o ponto da situação. Durante o estado de excepção, Karanja Mungai tinha sido detido por ser um adepto conhecido dos Mau-Mau. Mas a polícia nunca tinha conseguido provar o seu envolvimento na prestação de juramentos ou em assassínios específicos. — A shamba dele ficava na orla da floresta — disse Jeremy a Lars ao telefone. — Tínhamos praticamente a certeza de que ele estava a fornecer comida e munições roubadas aos bandos da região. E estava em boa posição para passar informação sobre as patrulhas do exército e da polícia e para esconder homens procurados. — Nunca foi acusado? — perguntou Lars. — Provas insuficientes — disse Hardy. — Ao que sei, é o chefe daquele recinto e os mais novos têm medo dele. Tem três mulheres mas a rapariga nova do bebé não é uma delas. É casada com um homem do clã dele. O marido trabalha algures em Nairobi. É a situação habitual… partiu e deixou a bibi a lavrar o solo e a olhar pela criança. Há-de voltar de licença quando estiver preparado e háde fazer mais filhos. Como está a Hannah? — A fazer os possíveis — disse Lars sombriamente. — Mas não sei quanto tempo mais vai aguentar. — É uma rapariga corajosa — disse Jeremy. — Já assistiu a demasiadas tragédias para a idade que tem. Ela e a Sarah Mackay. A propósito, vou passar o dia de amanhã em Nanyuki e passo por aí durante a tarde, se não for inconveniente. Salaams aos dois e coragem. Havemos de apanhar este homem, acredita. — É uma notícia mas não é nenhum progresso — comentou Hannah. — Mas temos de ter paciência por mais algum tempo. * Na manhã do dia seguinte, Lars estava a trabalhar no escritório, a separar o correio e a pagar
contas, quando viu David à porta com uma expressão grave. — Sim, David? Algum problema? — É a bibi de Mwathe, bwana. A nova, com o bebé. Está lá fora e quer falar com a memsahib Sarah. Lars levantou-se imediatamente. — Onde é que ela está? Tem a criança com ela? — Tem. E está cheia de medo. — David também estava com medo. — Alguém a viu? — Lars ficou aliviado quando o rapaz sacudiu negativamente a cabeça. — Óptimo. Trá-la já para aqui. Olhou pela janela mas não distinguiu ninguém na sombra carregada da árvore-do-fogo. Esperava que a visitante não tivesse chamado a atenção. David desapareceu na folhagem escura, que a tinha escondido bem, e ela emergiu relutante, apertando a criança contra o peito, bem embrulhada nas pregas da sua kanga. A sua expressão era um misto de medo e provocação. Lars sentiu uma profunda compaixão por ela quando viu o seu aspecto magro e doente. Baixando os olhos, apercebeu-se de que ela tinha os pés gretados e a sangrar e caminhava com dificuldade. Perguntoulhe em quicuio como se chamava e ela olhou para ele em silêncio, os olhos arregalados de medo. — Acho que era melhor se ela falasse contigo — disse ele a David. — Sentia-se menos nervosa. Começa por lhe perguntar o nome. — Wanjiru — respondeu a rapariga. — Diz-lhe que está em segurança aqui. Que ninguém lhe vai fazer mal. Mas seria melhor irmos para o escritório, que é mais privado. Wanjiru olhou em volta, com medo de entrar na casa mas com mais medo ainda de ficar lá fora. Lars dirigiu-lhe um sorriso tranquilizador quando ela transpôs de lado a porta e se encostou à parede, de olhos baixos. Por um momento, ficou a debater-se com o dilema do que devia fazer com ela. Depois tomou uma decisão. — Pede-lhe para se sentar. Depois vai buscar a memsahib Hannah e diz-lhe que tenho um assunto urgente a discutir com ela. David olhou para ele, com inquietude. Que iria a memsahib Hannah fazer a esta bibi? — Vai. — Lars deu-lhe um leve empurrão. — Haraka! Ah, David… — Sim, bwana? — Traz uma bacia de água e a caixa dos medicamentos com dawa para os pés dela. Fez uma longa caminhada. Wanjiru olhou em volta, fixando a porta com apreensão. Quando esta se abriu e a rapariga viu Hannah com David, pôs um ar de quem era capaz de fugir. Rompeu numa insistente torrente de perguntas e ele demorou algum tempo a convencê-la a sentar-se. — Ela quer saber onde está a outra memsahib, a que foi à reserva — disse ele. — Diz que a memsahib lhe disse que ajudava a criança. Foi por isso que veio. — Diz-lhe que o bebé vai receber ajuda, como foi prometido — disse Lars. — Mas primeiro quem precisa de ajuda é ela. Hannah pegou na bacia e pousou-a diante da rapariga, encorajando-a a meter um pé e depois o outro na água tépida para lavar a sujidade e o sangue. Wanjiru encolheu-se mas não emitiu qualquer som enquanto Hannah extraía os espinhos e os pequenos seixos alojados nas plantas gretadas dos pés, aplicando em seguida desinfectante. Wanjiru apertava a criança com força contra o peito. — Quanto tempo é que ela andou a pé? — perguntou Hannah, ouvindo Wanjiru responder em voz
baixa. — Começou a viagem há três dias — respondeu David. — Desde que fomos à reserva, só esperou por uma oportunidade para escapar. Foi muito difícil. Sempre que perguntava o caminho, tinha medo de ser apanhada e levada outra vez ao Karanja. Por isso, evitou quase sempre as estradas principais e escondeu-se no bundu à noite. — Deve estar cheia de fome — disse Hannah. — Três dias é muito tempo para andar a pé no mato com uma criança ao colo. Vai arranjar-lhe comida, por favor, e trá-la aqui. Lars, se calhar é melhor ligares ao Jeremy… vê se ele consegue pôr-se aqui depressa de Nanyuki. Mas diz-lhe para não vir de uniforme. Se ela perceber que ele é polícia, é capaz de não se abrir connosco. Até pode tentar fugir. David, explica-lhe que temos de lhe fazer algumas perguntas e que temos outro amigo que também quer falar com ela. Mas que vamos ajudar o bebé e que não precisa de ter medo. Lars levantou o telefone, na tentativa de localizar Jeremy Hardy. Wanjiru estava visivelmente agitada com a chegada de outro wazungu, mas pouco a pouco foi aceitando que a memsahib era de confiança e sentiu-se animada com a perspectiva de uma refeição. Sentou-se submissamente, à espera da comida. Hannah massajou-lhe os pés com pomada anti-séptica e pôs uma toalha lavada debaixo deles. Depois tocou no bebé, falando no tom calmo e doce que usava com um cavalo assustado. — O David vai trazer-te comida e, depois de comeres, conversamos sobre o tratamento do teu bebé. — Tenho alguns assuntos urgentes a tratar com o Juma — disse Lars. — Deixo-te com a rapariga até o Jeremy chegar. Deve estar aí dentro de meia hora. Hannah sentou-se pacientemente com a rapariga, conversando com ela numa mistura de suaíli e quicuio, como Sarah tinha falado, para esclarecer o que pretendia dizer. Alguns minutos depois, Wanjiru abriu a kanga e deixou Hannah examinar o pé da criança. Estava virado para dentro num ângulo acentuado, o que sem dúvida lhe dificultaria no futuro a locomoção. Mas a criança era pequena, teria no máximo uns quinze meses. Hannah já tinha visto este defeito e sabia que, num caso de pé boto, uma intervenção cirúrgica, seguida de fisioterapia, tinha geralmente sucesso. Soou uma pancada na porta e Mwangi espreitou na sala, os seus olhos remelosos pousando com curiosidade sobre a jovem mulher. — O bwana Hardy chegou — disse ele. — Está na sala de estar e eu dei-lhe uma Tusker. O bwana Lars pergunta se pode trazê-lo agora. — Sim, Mwangi — disse Hannah. — Diz-lhes que podem vir imediatamente. Segurando na perna fininha da criança com a mão, tentou mostrar como um médico endireitaria o tornozelo e o poria em gesso durante algum tempo. Wanjiru teria de ir a Nairobi, explicou, e ficar com o bebé no hospital durante a operação. Mas depois ele poderia andar como as outras crianças. A rapariga rompeu numa catadupa de palavras de que Hannah não compreendeu quase nada. Queria que David voltasse para traduzir correctamente. Mas percebeu que Wanjiru não tinha dinheiro nem nenhum sítio onde viver. Tinha medo de ser descoberta pelo clã do marido e levada novamente para a reserva. Matá-la-iam, disse ela. Essa parte Hannah entendeu perfeitamente. Seria bastante simples conseguir que o Dr. Markham encaminhasse a criança para um especialista em Nairobi. Mas arranjar um lugar seguro para a rapariga viver enquanto o bebé recuperava era outra questão. Se Karanja Mungai descobrisse que ela tinha estado em Langani, a sua vida podia correr perigo. Mas talvez fosse possível contactar o marido de Wanjiru e ela pudesse ficar com ele
enquanto a criança era tratada. — Wanjiru, onde está o teu marido? — Hannah falou com meiguice. — Tenho a certeza de que ele vai ficar contente quando souber que o filho vai receber ajuda. Está a trabalhar em Nairobi? Podes ficar com ele enquanto o bebé está no hospital? A rapariga fixou-a tristemente, abanando repetidamente a cabeça. E, tentando acompanhar o que ela estava a dizer, Hannah finalmente entendeu. Sentiu uma onda de náusea e repulsa crescer dentro de si, submergindo-a e levando-a a ter dificuldade em raciocinar e até em respirar. — Wanjiru — disse ela finalmente, incapaz de manter a calma na voz e preparando-se para a resposta. — O teu marido era o Simon Githiri? É por isso que estás sozinha com o teu filho? A rapariga começou a gemer. Num estado de pânico, lançou-se numa confusão de soluços e explicações. Hannah mal ouviu as frases entrecortadas enquanto olhava, muda de terror, para a rapariga e depois para a criança. O bebé de Simon Githiri. Estava a ajudar o filho do assassino de Piet. A bílis subiu-lhe à garganta quando as primeiras gotas de suor lhe rebentaram na fronte. Engoliu em seco e reclinou-se na cadeira, incapaz de articular uma palavra. Meu Deus! Isto era demasiado cruel, demasiado para um ser humano aceitar. A criança era inocente de qualquer crime. E a mãe? Estaria ao corrente dos actos do marido? As súplicas de Wanjiru extinguiram-se e ela pôs os braços à volta do filho e começou a embalá-lo. A sua agitação tinha perturbado a criança, que se contorcia, inquieta. Ela sentou-se no chão e, aproximando a boca do bebé do seio, começou a darlhe de mamar. Hannah levantou-se sobre pernas trémulas e dirigiu-se à janela. Pensou em Sarah, que tinha prometido à jovem tratamento para o filho, se ela fosse pedir ajuda a Langani. Que é que ela faria, confrontada com esta terrível verdade? Se Piet fosse vivo, estariam agora casados, talvez mesmo com um filho seu. Mas Simon Githiri ceifara-lhe a vida e Sarah e Piet nunca teriam um filho para amar e acarinhar. Olho por olho, dente por dente. Era o que dizia o Antigo Testamento. O filho de Simon não morreria como Piet morrera, pregado como um animal sacrificial na encosta de uma montanha. Mas ficaria estropiado. Um aleijado numa sociedade que considerava a deformidade física como uma sentença do grande deus Kirinyaga contra o seu clã. Seria alvo de escárnio, os seus dias espinhosos e estéreis, punido pelos pecados do pai. A polícia que levasse a rapariga, que a interrogasse e a mantivesse sob custódia até ela fornecer provas que incriminassem Karanja. Depois seria mandada para Mwathe, onde o clã podia ocupar-se da mãe e do filho da maneira que entendesse. Não havia nenhuma razão para oferecer cura e segurança àquela criança, que podia tornar-se, quando crescesse, num selvagem assassino como o pai. Hannah encostou a cabeça ao vidro fresco da janela e olhou para a harmonia do jardim de Lottie. Em seguida, virou-se para observar a criança, que mamava, os seus dedos abrindo-se e fechando-se sobre a pele de ébano da mãe. Tinha os olhos fechados, o seu mundo limitava-se à protecção e ao alimento de Wanjiru, o cheiro dela nas suas narinas, o mamilo dela entre os seus lábios. Eram estas as suas garantias. Hannah sentiu-se comovida pela sua dependência, por essa mesma confiança que via em Suniva, quando lhe pegava ao colo. E não podia ignorar o apelo desesperado nos olhos da mãe. — Isto tem de ter um fim — disse ela em voz alta. — O ódio, a matança e o sofrimento têm de ter um fim. Tem de acabar agora. E eu posso fazer com que acabe, se tiver a coragem e a força para o fazer. Por mim, pelo Lars e pela Suniva. E pela Sarah.
Wanjiru estava a fixá-la, assustada e sem compreender. Hannah acocorou-se e pousou uma mão no ombro da rapariga. — Não tenhas medo — disse ela. — Eu levo-te com o bebé a um bom médico que te há-de ajudar. Dou-te a minha palavra de honra. Quando Lars chegou com Jeremy, a rapariga pôs-se em pé de um salto e Hannah travou-a, pondolhe a mão no braço. — Wanjiru, tens de falar a este bwana sobre o teu marido e o Karanja. Porque eles fizeram uma coisa muito má. Sabes disso, não sabes? E aqui está o David com comida para ti. Come e depois o bwana Hardy vai fazer-te algumas perguntas. Entendeste? Wanjiru baixou várias vezes a cabeça. Pegou na tigela de posho e estufado e comeu muito depressa, relanceando ocasionalmente em volta, os seus olhos saltando entre as três pessoas brancas, em pé ao seu lado, que a impediam de escapar. Hannah aproximou-se de Lars e enfiou a mão na mão dele, dizendo uma oração muda a pedir forças para suportar o pesadelo. Ele percebeu que ela estava com os nervos num feixe e interrogou-se sobre o que ela teria sabido depois de a ter deixado. — Tenho uma coisa terrível para vos dizer — disse ela finalmente. — Esta criança é o filho do Simon Githiri. Viu o choque nos olhos de Lars e no rosto do polícia. David soltou um silvo por entre dentes. Ela continuou, não querendo perder a determinação. — Estou convencida de que a Wanjiru sabe o que aconteceu e qual foi o papel do Karanja na história. Mas está petrificada de medo. Se queremos que ela nos diga alguma coisa, temos de avançar com cuidado. E ela precisa de um lugar seguro onde ficar enquanto a criança recebe o tratamento que prometemos. — Hannah. — Lars passou-lhe os braços pela cintura e sentiu-a tremer. — É de mais para ti. É demasiado penoso. É melhor deixarmos agora o Jeremy levá-la e interrogá-la. E mais tarde pensamos no pé da criança e no que podemos fazer. — Já pensei nisso. — Hannah abanou a cabeça e fez um esforço para articular as palavras, ouvindo-as como que a uma grande distância. — Foi a primeira coisa que pensei em fazer. Mas duvido que uma rapariga tão nova e simples tenha tido alguma coisa a ver com as acções do Simon. Seja como for, dificilmente há-de ter tido influência sobre ele. Olha para ela. Pouco mais é que uma criança. Já sabes como é… provavelmente foi-lhe oferecida. Não deve ter tido voto na matéria. Bem vistas as coisas, não passa de uma mãe com um filho aleijado e já sofre com isso. — Pôs os braços à volta de Lars e apertou-o com força, tomando uma decisão. — Já chega de sofrimento. E assim começaram as perguntas. David acocorou-se ao lado de Wanjiru e fez as perguntas. Jeremy estava sentado à secretária, tomando notas. Depois de algumas palavras de estímulo e apaziguamento, Hannah e Lars afastaram-se para junto da janela, ouvindo com atenção horrorizada o desenrolar da história, no silêncio aturdido da sala. Simon tinha chegado à Reserva de Mwathe cerca de dois anos antes, sendo sobrinho de Karanja Mungai. As raparigas do recinto tinham-no achado um homem atraente, bem vestido, educado e directamente aparentado com o homem mais poderoso do clã. Tinha suscitado grande atenção. Wanjiru tinha olhado para ele com interesse e ele também tinha reparado nela, sorrindo-lhe brevemente quando a deixaram levar cerveja à cabana dos homens e servi-lo. Foi durante as longas reuniões que tiveram lugar durante a sua primeira visita. As mulheres não sabiam da razão de ser dessas reuniões, mas a mulher mais velha de Karanja revelou que Simon era sobrinho do velho.
Wanjiru perguntou porque é que só então é que ele visitava a casa da família e porque é que nunca tinham ouvido falar dele. Mas a mulher fez má cara e deu-lhe um safanão na cabeça, avisando-a para que não fizesse tantas perguntas. Inicialmente, Simon tinha parecido feliz por estar novamente com a família. Mas não tardou a mostrar-se perturbado e distante e, alguns dias depois, partiu. Depois da sua partida, nunca mais ninguém falou dele e a vida de Wanjiru continuou como antes. A sua família pertencia ao clã de Karanja, mas era pobre e não possuía terras próprias e, assim sendo, ela tinha sido mandada para ajudar a terceira mulher dele durante a sua gravidez. A mulher era caprichosa e difícil de agradar e, quando Wanjiru não cumpria rigorosamente as suas instruções, era espancada. Mas, sobretudo, procurava evitar Karanja. O homem era notório pela sua crueldade e, quando olhava para ela, enchia-a de medo. Passou um mês até Simon voltar a aparecer. Desta vez, demorou-se mais tempo mas o seu estado de espírito era sombrio e discutia com o tio com frequência. Um dia, quando Wanjiru foi à floresta apanhar lenha, viu o rapaz no caminho à sua frente. Ele ia a tartamudear sozinho e ela sentiu curiosidade e, assim, pousou os gravetos e foi sorrateiramente atrás dele, com cuidado para não ser vista. Quando ele chegou a uma pequena clareira, alguns metros afastada do caminho, estacou abruptamente, soltou um grito e depois atirou-se ao chão, chorando e batendo na cabeça com as mãos. Ela ficou aflita, com medo de que ele estivesse a ter um ataque e sem saber o que havia de fazer. Se denunciasse a sua presença, ele podia ficar zangado. Mas sentiu imensa pena dele, sozinho e tomado de tal tormento. Acabou por se aproximar dele e tocou-lhe a medo no ombro. Ele virou-se bruscamente e agarrou-a pela garganta, aos gritos, e ela convenceu-se de que ele ia estrangulá-la. Mas, segundos depois, pareceu cair em si. Largou-a e sentou-se, tapando os olhos com a mão e explicando que o tinham assaltado más recordações, que pensou que estava noutro lado. Por fim, ela arranjou coragem para lhe perguntar o que o perturbava, mas ele recusou-se a explicar. Pediu-lhe para não revelar o que tinha visto e ela compreendeu imediatamente que ele não queria que o tio soubesse do seu momento de fraqueza. Ela prometeu guardar segredo e deixou-o ali sozinho, indo reaver o feixe de lenha. Era pouco sensato estar tanto tempo longe do recinto. Uma ausência injustificada valeria a ira de Karanja e resultaria talvez noutro castigo. Nos dias que se seguiram, viu muitas vezes Simon e teve a ousadia de lhe sorrir, mas não falaram um com o outro. Ele passava muitas horas sentado na cabana de Karanja e voltava a desaparecer. Wanjiru tentou descobrir para onde ele ia, mas não podia fazer perguntas directas. Não era nada com ela. Algum tempo mais tarde, ia ela a caminho do recinto com um feixe de gravetos amarrado às costas, quando viu Karanja a sair de um trilho estreito em que nunca tinha reparado. Parou em silêncio com a pesada carga, de olhos baixos, esperando que ele a ignorasse e passasse à frente. Mas ele parou e perguntou-lhe o que estava ali a fazer. O seu tom era beligerante e ela percebeu que ele tinha estado a tomar bhang. Punha-o sempre agressivo. Respondeu num tom respeitoso, mantendo os olhos no caminho pedregoso, mas de súbito ele atirou o feixe de lenha ao chão e esbofeteou-a. Ela levantou os olhos aguados, a face a arder da violência do golpe, e ele derrubou-a, acusando-a de ser uma espia e dizendo que ia ensinar-lhe o que acontecia a uma mulher que espiava. Ajoelhou-se sobre ela, batendo-lhe repetidamente e arrancando-lhe o tecido kanga do corpo. Ela começou a chorar e a implorar, jurando que só tinha ido apanhar lenha, que não tinha visto nem ouvido nada. Mas ele continuou a bater-lhe até ela se convencer de que ia morrer. Que ele se ia refastelar com ela e matá-la a seguir. Estava demasiado aterrada para dar luta.
Nesse momento, ouviu a voz de Simon. Ele começou a protestar com o tio e, poucos minutos depois, o velho levantou-se. Wanjiru arrepanhou o tecido rasgado à volta do corpo e levantou-se com dificuldade. Karanja olhou para ela com repulsa. O sobrinho queria casar com ela, disse ele. Ela não valia nada mas ia dá-la a Simon. A rapariga fugiu para a cabana, com medo de que o velho malévolo mudasse de ideias. Durante o resto do dia, trabalhou no recinto apesar dos cortes e das pisaduras. Nessa mesma noite, um dos filhos de Karanja apareceu e mandou-a segui-lo. Ela obedeceu aterrada, certa de que ia ser torturada e punida ou até morta. Enfiaram pelo caminho por onde ela tinha visto Karanja emergir antes e embrenharam-se na floresta. Numa clareira húmida, no alto do monte, encontrou Simon à sua espera com Karanja e alguns dos chefes do clã. Estava um bode amarrado ao pé de uma fogueira, no centro da clareira, e obrigaram-na a despir-se e a ajoelhar-se ao lado dele. Karanja pegou numa panga e cortou a garganta do animal. Recolhendo o sangue numa cabaça, virou-se para ela e fez-lhe um golpe com a lâmina nas costas. Nesse momento, ela convenceu-se de que a sua vida tinha chegado ao fim. Manteve a cabeça baixa e os olhos fechados, esperando pelo golpe de misericórdia. Karanja falou então. O seu sangue misturar-se-ia com o do bode na cabaça e ela devia agora fazer um juramento de silêncio e dar sete voltas ao animal sacrificial. Se quebrasse a promessa, morreria, tal como o bode ia morrer. Ela fez o juramento enquanto o bode era desmembrado, ainda vivo, e os seus testículos queimados no fogo. Foi-lhe feita uma marca a fogo no ferimento nas costas e ela gritou, sentindo a pele crepitar. Em seguida, Simon avançou e levantou-a. Disse que ela agora lhe pertencia. Estava vestido com o traje tradicional de um guerreiro quicuio, nu à excepção do toucado de plumas, de uma tanga de couro, de uma capa de pele de macaco colobo e de pulseiras de missangas na parte de cima dos braços. Os seus olhos estavam brilhantes do bhang, o corpo coberto de óleo e o seu hálito cheirava a álcool puro. Levou-a para uma caverna na orla da clareira e empurrou-a para cima de uma cama de caniço. Aí possuiu-a enquanto ela se submetia numa bruma de dor e medo. Foi a sua noite de núpcias. Não houve namoro, ternura, presentes, nem dias de festejos com os membros da tribo, como os que outras jovens mulheres teriam usufruído. Permaneceu duas noites tomada de febre por causa da agoniante ferida nas costas. Ouvia os homens a entoar cânticos nas proximidades, enquanto o novo marido se sujeitava a um ritual qualquer. Ele levou-lhe um pedaço de bode assado que a obrigou a comer, embora ela se tivesse engasgado com ele. Depois obrigou-a a engolir uma amarga bebida de ervas que lhe causou alucinações terríveis até que, por fim, perdeu a consciência. Não sabia quanto tempo ali tinha ficado mas, quando acordou, estava a entrar luz do dia na caverna. Simon entrou e agachou-se ao lado dela, olhando-a severamente, mas os outros homens tinham partido. Disse que ela tinha de se levantar e tratar das tarefas domésticas. A caverna seria a sua moradia e não podia voltar para a aldeia. Se ouvisse alguém a aproximar-se, devia esconder-se até a pessoa se ir embora. Não devia falar com ninguém. Ele traria comida para ela preparar e ela podia apanhar lenha na orla da clareira. Tinha-a salvo da ira de Karanja e tomado como mulher e ela tinha feito um juramento. Já sabia o que lhe aconteceria se tentasse escapar. Rígida, dorida e entorpecida de desespero, Wanjiru levantou-se para acender uma fogueira e cozinhar a sua primeira refeição para o marido. Simon comeu em silêncio e, quando ele terminou, ela serviu-se de uma porção de comida. Estava demasiado assustada para fazer perguntas. Durante o dia, apanhava lenha, olhava pelo fogo, limpava os tachos com água de um riacho próximo e interrogava-se sobre o que lhe ia acontecer e por quanto tempo ficaria presa na floresta. A ferida
nas costas acabou por sarar, mas deixou uma cicatriz irregular. Como não tinha roupa lavada, lavava a sua única kanga no rio gelado e voltava a envolver-se nela ainda molhada. Não experimentava qualquer orgulho ou prazer em exibir o corpo jovem e firme ao marido. Simon mal reparava nela, excepto quando queria sexo. Não passava então de um recipiente do seu sémen e ele, quando acabava, virava-lhe sempre as costas com um grunhido e adormecia. Mais tarde, levantavase e ia sentar-se sozinho à entrada da caverna. Bebia grandes quantidades de álcool e a sua expressão era sombria e cismática, mas não era violento com ela. Wanjiru sabia que estava melhor com ele do que se tivesse ficado à mercê de Karanja. A sua vida na floresta foi um período de incessante adversidade. Sofria com o frio da elevada altitude, com os nevoeiros e a chuva e com o isolamento. Mas aproveitou como podia as circunstâncias e, ao longo dos meses, começou a desenvolver-se uma relação entre ela e o marido. Ele ausentava-se por muitas horas durante o dia e ela não podia perguntar o que ele andava a fazer. Apareciam homens na clareira a buscá-lo e, quando se aproximavam, ela escondia-se na caverna até partirem. Karanja aparecia de tempos a tempos, mas não havia qualquer comunicação entre eles e ela sentia-se grata por isso. A forma como ele a tratava enchia-a de terror e ressentimento e estava convencida de que era por causa dele que o marido se tinha transformado tanto desde a sua primeira visita à reserva. Sempre que Simon saía com Karanja, voltava taciturno e bêbado e muitas vezes pedrado com a droga. À noite, dormia sobressaltado e gritava, mas ela não se atrevia a acordá-lo dos seus pesadelos porque ele podia reagir como da primeira vez na floresta. Ainda recordava as mãos dele a apertar-lhe o pescoço e a alucinação nos seus olhos. Não queria dar-lhe qualquer pretexto para voltar a magoá-la. Um dia, ao princípio da noite, ele voltou com um embrulho e, quando ela saiu para o saudar, ele entregou-lho. Lá dentro, estavam três kangas e um pequeno colar de missangas. Os olhos dela encheram-se de lágrimas ao pegar no primeiro presente que alguma vez recebera. Olhou para ele timidamente, duvidando de que aquelas preciosidades fossem para ela. Ele sacudiu afirmativamente a cabeça e sorriu-lhe. Encorajada pela sua reacção, despiu o tecido esfarrapado e ficou diante dele sob a luz suave da floresta para que ele olhasse para ela. Ele pegou numa das kangas e envolveu-a nela, tocando-lhe os seios e as ancas com apreço. Depois, levou-a para dentro da caverna, acariciou-a e fez amor com ela como se estivesse a vê-la pela primeira vez. Mais tarde, permaneceram entrelaçados e, enquanto ele dormia, a esperança dela renasceu. O marido não era mau homem. Tinha conquistado a sua aprovação. Com o tempo, talvez ele a salvasse daquele lugar escuro e sombrio e pudessem ir para longe de Mwathe e construir uma vida juntos. Mas as semanas foram passando e ela continuou prisioneira. Agora conversavam com mais frequência e, quando estava deitado com ela à noite, Simon abraçava-a. Mas dormia mal, acordando alagado em suor e com os olhos esbugalhados, e ela afagava-lhe a cabeça e apertava-o contra o peito para o sossegar. Por fim, depois de uma noite particularmente agitada, ela suplicoulhe que lhe dissesse o que o fazia ter pesadelos tão terríveis. Timidamente, lembrou-lhe que tinha feito um juramento de silêncio e, portanto, nada do que lhe dissesse poderia prejudicá-lo. E ele contou-lhe finalmente o que o tinha levado a Karanja e à reserva. Durante a revolta dos Mau-Mau, disse ele, o pai tinha-se juntado aos ajuramentados na floresta. Tinha integrado um grupo que fazia assaltos a fazendas de brancos e a aldeias africanas. Simon tinha cerca de cinco anos, filho único da mulher favorita do pai, e tinha sido levado com a mãe para se esconder num enclave dos Mau-Mau na floresta. O irmão mais velho do pai, Karanja, era o
homem que organizava as provisões para o acampamento e passava informação sobre os movimentos da polícia e do exército. O esquema funcionava bem e, durante algum tempo, escaparam à captura, até que uma das patrulhas especiais descobriu o acampamento deles. Os MauMau tinham acabado de perpetrar um assalto e tinham trazido um novilho da fazenda que tinham atacado. Exultantes com o seu sucesso e famintos como estavam, acenderam uma fogueira e assaram o animal num espeto. Há muito tempo que não sentiam o gosto da carne e descuidaram-se. As sentinelas não tardaram a embebedar-se e o fumo acima das árvores denunciou a sua posição. A polícia preparou uma emboscada, esperando no escuro que os fugitivos acabassem de comer e fossem dormir. Então investiram contra o acampamento. Seguiu-se um confronto encarniçado e muitos membros do bando foram mortos. A mãe de Simon escondeu-se com ele na vegetação densa até o combate terminar. Viu o pai e os outros serem capturados e decidiu então escapar para a floresta. Mas um dos askaris notou os seus movimentos e deu o alarme. Ela enfiou a criança no meio da vegetação compacta e largou a correr pelo caminho, com a intenção de afastar a polícia do esconderijo do filho. Soaram tiros e a criança viu-a cair por terra, levantar-se de novo e tentar rastejar. Um homem branco que estava com a patrulha ergueu a espingarda e disparou de novo sobre ela. Ela nunca mais se mexeu. A criança deixou-se estar nos arbustos, demasiado assustada para se mover, assistindo a tudo o que estava a acontecer na clareira. A polícia começou a interrogar os prisioneiros. Ele viu o pai ser levado à presença de dois brancos. Quando o interrogaram, ele cuspiu-lhes e gritou que todos os wazungu seriam expulsos da terra e que as suas mulheres seriam mortas como eles tinham matado as suas. Recusou-se a dar-lhes informações. Bateram-lhe e bateram aos companheiros dele, mas todos se recusaram a falar. Um dos homens brancos emitiu uma ordem e os askaris riram-se e arrastaram o pai para a fogueira. Amarraram-no ao espeto em que o vitelo tinha sido assado, e um deles provocou-o, perguntando-lhe se ele ia continuar tão fogoso quando sentisse as chamas por baixo. Depois foram buscar gravetos e atearam o fogo. Os dois homens brancos assistiram em silêncio enquanto os askaris prosseguiam o interrogatório. Um terceiro homem branco, o que tinha matado a mãe de Simon, apareceu da floresta e mandou-os parar. Mas os outros protestaram, dizendo-lhe que não passava de um agricultor, que não era um verdadeiro soldado, e ao cabo de uma discussão, ele encolheu os ombros e afastou-se. Simon viu-o sentado na orla da clareira, olhando para a floresta, quando o pai começou a gritar. Os gritos prolongaram-se por muito tempo mas ele nunca lhes disse nada. Outros homens do grupo, quando foram levados à presença da polícia, começaram a chorar e a contar o que sabiam. Não queriam ser torturados como o pai de Simon. Finalmente, o homem branco que tinha matado a mãe ordenou aos askaris que tirassem o pai do espeto. Mas era tarde de mais. Quando o pousaram no chão, a sua pele estava carbonizada e ele morreu no leito da floresta. Um dos polícias quicuios perguntou o que deviam fazer aos corpos dos Mau-Mau e um homem branco mandou-o deixá-los ali, para servirem de exemplo a outros terroristas. A polícia pegou então fogo ao que restava do acampamento e partiu com os prisioneiros. Simon permaneceu escondido nos arbustos durante muito tempo, petrificado de medo e a tiritar. Quando teve a certeza de que os polícias se tinham ido todos embora, rastejou até junto da mãe, onde ficou a chorar. Tinha medo de se aproximar da outra forma carbonizada e fumegante ao lado da fogueira. Não se lembrava de quanto tempo esteve ali sentado nem de quem o encontrou e o levou a Karanja. O rapazinho foi questionado sobre o que tinha acontecido, mas não foi capaz de responder. Estava sem fala. Mantiveram-no na reserva
durante algumas semanas e então, quando alguém disse que ele era inútil, levaram-no para a Missão de Kagumo. Os padres foram bondosos com ele. Ele próprio sabia que lhe tinha acontecido uma coisa terrível. Mas, quando lhe perguntavam o que era, o seu espírito nublava-se e não era capaz de se lembrar de nada, nem sequer do nome. Puseram-lhe o nome de Simon Githiri. Demorou muito tempo a reaprender a falar. Não se recordava da sua primeira infância até Karanja ter aparecido para o levar para Mwathe. Inicialmente, agradou-lhe descobrir que tinha família. Durante anos, tinha-se interrogado sobre quem era e de onde era e porque é que nunca ninguém o ia visitar. Mas os acontecimentos do passado estavam profundamente enterrados na sua memória e só começou a temer a verdade quando Karanja o levou ao lugar onde o pai tinha morrido. Depois disso, tinha voltado para Kagumo, mas nada dissera a ninguém sobre o terrível incidente. Devia ser mentira. Ou tinham-no confundido com outra pessoa. Os padres tinham-lhe falado sobre o estado de excepção, assim como os professores quicuios que se tinham mantido leais aos ingleses. Não queria que o pai fosse um dos terroristas pérfidos. Os padres da missão tinham-lhe dado um tecto e educação. Podiam expulsá-lo, se soubessem que o pai tinha pertencido aos Mau-Mau. Perderia o pouco que possuía. Assolado pela dúvida e já incapaz de encontrar satisfação no seu trabalho em Kagumo, decidiu procurar um emprego fora da missão. Os padres deram-lhe algum dinheiro e boas referências. Partiu com a intenção de ir para Nairobi. Mas, na camioneta, tinha sentido um impulso incontrolável de regressar a Mwathe. De descobrir, de uma vez por todas, se o que Karanja dizia era verdade. O dia em que Wanjiru o tinha encontrado na clareira fora o dia em que não teve mais dúvidas. Tinha ido andar a pé e qualquer coisa no lugar tinha despertado a sua memória. Subitamente, viu-se de novo sentado ao lado do corpo da mãe, recordando a pestilência do cadáver queimado do pai prostrado ao pé da fogueira. Era tudo como Karanja tinha descrito. Agora teria de obedecer aos desejos do tio. Horrorizada com esta história, Wanjiru tentou descobrir o que Karanja queria que o sobrinho fizesse, mas Simon recusou-se a dizer. Tinha passado todo esse dia com ela, esgotado com a repetição da narrativa da tragédia da sua infância. Ela não lhe fez mais perguntas. Ele já estava nervoso, com medo de ter falado de mais. Durante a semana seguinte, pouco falou. Quando ele queria sexo, ela oferecia-lhe o corpo de boa vontade e generosamente e, à noite, quando os pesadelos voltavam, consolava-o como a uma criança. Ele não abandonou a clareira. Algum tempo depois, Karanja apareceu. Teve lugar uma acesa discussão. Wanjiru, sentada na caverna, não distinguiu o que foi dito. Pouco depois, Simon partiu com ele e dessa vez esteve muitos dias ausente. Wanjiru ficou sozinha na floresta. A comida acabou e ela tentou sobreviver à custa de bagas e de tudo o que encontrasse. Começou a pensar no que faria se ele não regressasse. Ninguém sabia nem queria saber se morresse à fome. E estava doente. Tinha começado a suspeitar de que podia estar grávida e a ideia enchia-a, em igual medida, de medo e júbilo. Se desse ao marido um bebé saudável, talvez ele a levasse daquele lugar. Não era sítio onde criassem um filho. Ele compreenderia isso. Um filho seu, esperava que fosse um rapaz, podia libertá-lo da memória do passado. Não havia de querer que a criança passasse parte da infância escondida na floresta, como lhe tinha acontecido a ele. Passaram mais três dias e os últimos restos de posho chegaram ao fim. Wanjiru sabia que, se não agisse depressa, estaria demasiado fraca para se salvar, a ela e ao filho. No fim, decidiu voltar à reserva. Simon não
a teria deixado sozinha, entregue à morte. Devia ter-lhe acontecido alguma coisa de grave. Temendo as consequências, agora que estava a quebrar o seu juramento, começou a trilhar o caminho. Mas não tardou a compreender que estava perdida. Havia trilhos em todas as direcções, feitos por elefantes e búfalos, e só tinha percorrido o caminho uma vez, ao crepúsculo e levada pelo filho de Karanja. Nessa altura, tinha sentido demasiado medo para prestar a devida atenção ao trajecto. Quando a noite caiu, deu por si em plena floresta. Todos os pontos de referência familiares tinham desaparecido e ela ouvia a restolhada dos elefantes a comer e os resfôlegos de um búfalo nas proximidades. Não havia água. Tinha o estômago vazio. Tinha vomitado a última refeição minguada que tinha comido e estava absolutamente exausta. Em desespero, deitou-se e tentou cobrir-se com folhas, convencida de que a maldição do juramento estava agora a abater-se sobre ela. Foi Karanja quem a encontrou e a sua fúria foi tão terrível que ela desejou ter morrido na caverna ou sido desmembrada por um animal selvagem. Acordou, aturdida, dando com ele ao seu lado, os olhos a chispar de fúria. Não se alargou sobre a tareia que ele lhe deu. Era impossível saber como tinha sobrevivido à caminhada de volta à caverna, onde Simon estava à espera dela. Ele não lhe deu conforto nem apoio quando a viu entrar na clareira a cambalear e, quando ela olhou para os olhos dele, apenas viu o vazio. Karanja disse-lhe que ela teria de pagar o preço pela sua desobediência. Tinha uma panga na mão. Numa última tentativa desesperada de se salvar e à criança que carregava no ventre, lançou-se aos pés do marido e implorou-lhe misericórdia. Mentiu, dizendo que não tinha tentado escapar. Estava com fome. Tinha-se aventurado para além do limite da clareira em busca de comida e depois tinha-se perdido. Era por causa da gravidez que estava confusa. Sentia-se doente. Só tinha procurado alimento para bem do filho de ambos. Se ele a matasse agora, o bebé também morreria. Estaria a matar o seu próprio filho. Karanja rangia os dentes, avisando o sobrinho de que a mulher era uma inútil e não merecia confiança. Mas as palavras dela tocaram num ponto sensível de Simon. Ele fixou-a com nova intensidade e disse ao tio que a deixaria viver até ter a certeza de que ela estava de esperanças. Se estivesse a mentir, ele próprio a mataria. Quando Karanja partiu, a tartamudear furioso, Simon dirigiu-se ao riacho, encheu uma cabaça de água e trouxe-lha, mandando-a beber e lavar-se e entrar em seguida na caverna. Ela deitou-se na obscuridade, com a cara inchada, os olhos quase fechados da violência dos golpes de Karanja. Tinha as pernas pisadas e a sangrar e chorou de dor e desolação. O marido, aquele homem que tinha servido e de quem tinha cuidado, não tinha oferecido qualquer explicação para a sua ausência nem para o tempo que tinha demorado. Era marido dela e devia ter provido ao seu sustento. Mas, pelo contrário, tinha-a deixado sozinha e sem comida e, quando voltou, permitira que o tio lhe batesse. A única razão por que estava viva era a ideia de que ia dar-lhe um filho. Se tinham forjado algum laço durante o tempo passado juntos, ele tinha agora desaparecido para sempre. A criança era a sua única esperança. Pousou as mãos na barriga e, enroscando-se, adormeceu. À medida que os meses foram passando e o bebé crescia dentro dela, passava quase todo o tempo sozinha, falando com a criança e cantando-lhe canções. Era feliz, tanto quanto podia ser. Simon deixava-a entregue a si mesma, mas certificava-se de que havia sempre comida na caverna. Parecia-lhe que ele impedia que Karanja se aproximasse porque o velho deixou de aparecer na clareira. Depois, uma noite, Simon chegou à caverna, elegantemente vestido com uma camisa e calças lavadas e disse-lhe que ela ia voltar a Mwathe. Disse que tinha arranjado trabalho e que
estaria ausente muito tempo. Ela não podia continuar na caverna. Wanjiru implorou-lhe que a levasse com ele, mas Simon recusou categoricamente. Apesar das suas lágrimas e súplicas, insistiu para que ela voltasse para casa de Karanja e desse à luz aí. Conduziu-a pelo caminho da montanha e deixou-a sozinha na orla da floresta. A última parte da caminhada foi a mais dura. Enchia-a o terror do que lhe aconteceria quando chegasse ao recinto. Foi a mulher mais velha de Karanja que a acolheu. A velha era uma matriarca temível mas não era insensível e Wanjiru ficou surpreendida ao descobrir que tinha conquistado uma aliada poderosa, que lhe oferecia protecção. Não havia sinais de Simon e ninguém falava dele. Disseram-lhe que, desde que trabalhasse arduamente e fosse discreta, não lhe aconteceria nenhum mal. Os últimos meses de gravidez foram quase felizes, esperando, numa expectativa ansiosa, pela chegada do filho. Pensou que haveria alguma maneira de Simon, ao regressar e ver o filho, voltar a ser o homem que já fora e de as coisas se resolverem pelo melhor. Teve um parto longo e doloroso. A parteira que foi assisti-la entoava encantamentos cada vez mais ansiosos à medida que as horas passavam. E depois terminou. Ouviu o filho soltar o seu primeiro grito e uma onda de felicidade invadiu o seu corpo exausto. A dor e o esforço foram logo esquecidos. Sentou-se para ver o bebé mas, quando ele foi levantado para lhe ser cortado o cordão umbilical, a parteira gritou de alarme e olhou em volta para as outras mulheres. Foi então que Wanjiru viu a deformidade da criança, o seu pé direito torcido para dentro num ângulo antinatural. As mulheres começaram a murmurar umas às outras que era um mau presságio, um mau sinal. A criança devia ser levada dali. Traria má sorte ao clã, à tribo. Wanjiru era um problema e o filho era um problema. Deviam ser ambos expulsos da reserva. Wanjiru arrancou o bebé aos braços da parteira e cortou ela própria o cordão. Apertou o bebé choroso contra o peito, desafiando-as a tirar-lho. Nos momentos de tensão que se seguiram, a mulher mais velha de Karanja foi a única que falou em defesa dela. E foi ela que salvou o bebé e também a mãe. Ninguém devia fazer nada precipitadamente, disse ela. Haveria uma reunião dos chefes do clã em que seria tomada uma decisão. Até lá, mãe e filho ficariam com ela e seriam tratados como os outros. Tinha expulsado todas as mulheres da cabana e tinha-se acocorado ao lado de Wanjiru, dizendo-lhe que ela devia cuidar do bebé e confiar que tudo se comporia. Era importante manter a criança tapada. Se as pessoas não lhe vissem o pé, tinha um ar perfeitamente saudável. Em seguida, saiu também da cabana e Wanjiru ficou sozinha com o filho. Ele pareceu olhar para ela, consciente dos seus primórdios atribulados, e ela jurou protegê-lo com a própria vida. Mas deitando-se, exausta, as lágrimas rolaram-lhe pelas faces, caindo na cabecinha do menino. Wanjiru sabia das adversidades que ele teria de enfrentar se o autorizassem a permanecer na reserva. E as piores seriam às mãos de Karanja. Não teve conhecimento do que foi dito na reunião dos chefes do clã, mas a mulher de Karanja devia ter apresentado uma poderosa defesa da sua causa porque a deixaram ficar com o filho. Talvez o velho tivesse pensado que ela não renunciaria à criança sem dar luta e não quisesse chamar a atenção sobre ela ou o marido ausente. Fossem quais fossem as suas razões, fez constar que a criança era ilegítima e que só a sua caridade permitira que Wanjiru permanecesse no recinto. Mas sempre que a via, o seu olhar era malévolo e ela sentia que, quando Simon voltasse, teria de encontrar maneira de o persuadir a arranjarem outro lugar onde viver, se bem que não fizesse ideia para onde poderiam ir. O seu maior receio era que o marido pudesse renegar o filho, se algum dia
regressasse. Nesse caso, teria de arranjar um sítio onde pudesse criá-lo sozinha. Mas, entretanto, foi ficando com a mulher mais velha de Karanja, sentindo-se grata pela sua protecção. Simon regressou seis meses mais tarde. Chegou noite avançada, o corpo manchado de suor e lixo e os olhos transbordantes da demência que ela tinha visto no dia em que ele a tinha atacado na floresta. Karanja sorriu maldosamente quando ela levou o bebé para o marido o inspeccionar. Mas Simon mal olhou para a criança. Parecia acometido de uma febre e respirava depressa e com dificuldade. Estava constantemente a enclavinhar e desenclavinhar as mãos, que tinham manchas de sangue seco, como tinha o resto do seu corpo. Disse que ia para a floresta e que lá ia passar algum tempo. Dentro de um ou dois meses, voltaria para ver o filho mas, entretanto, ela devia ter presente o juramento que fizera. Se dissesse que o tinha visto, ele mandaria matá-la, assim como ao bebé. Wanjiru baixou os olhos e murmurou que compreendia as suas palavras e que guardaria silêncio. Toda a compaixão que sentira por ele havia-se extinguido na sua alma e voltou para a cabana, determinada em escapar mal se apresentasse uma oportunidade. Já não estava em segurança com o marido. Mas, no seu âmago, sabia que era uma prisioneira. Com um filho aleijado, seria reconhecida onde quer que tentasse esconder-se e ninguém lhe daria abrigo pois diriam que estava amaldiçoada. E ela própria tinha acabado por acreditar que talvez estivesse. Até que Sarah e Lars apareceram na Reserva de Mwathe com David e ela se apercebeu de que aqueles wazungu podiam ser a sua última salvação. Assim, tinha partido da reserva, a coberto da noite, quando todos estavam a dormir, e caminhado através do mato até Langani. Quando acabou de falar, a expressão de Jeremy era grave. Se a rapariga estivesse a falar verdade, e não parecia haver razão para ter inventado a história, podiam deter Karanja para o interrogar. Mas teriam de avançar com celeridade. Hannah estava como uma estátua à porta. Estava a fixar o vazio, como fixara na noite da morte de Piet. Olhando para ela, Lars interrogou-se por um momento se isto a quebraria, se destruiria o seu ténue controlo sobre a realidade. O silêncio instalou-se na sala, enquanto esperavam que ela se pronunciasse ou desse alguma indicação de que tinha digerido o relato de Wanjiru. Lars pôs os braços à volta dela e Hannah permaneceu rígida, encostada a ele, o rosto branco, a sua imobilidade enervante. Quando finalmente falou, foi numa voz baixa e áspera. — Janni — disse ela. — O que foi, Han? — Lars afagou-lhe o cabelo, sem compreender. — Que tem o Janni? — Foi o papá — disse ela. — Foi o meu pai, na floresta, nesse dia. O Piet foi morto por causa do que o agricultor fez. Por causa do papá. Depois, estremeceu e olhou para o marido. — Tenho de falar com a Sarah — disse ela, em pouco mais que um sussurro. — Tenho de ser eu a dizer-lhe. E pedir-lhe desculpa. Dizer que farei tudo para compor as coisas entre nós. Mas, Lars, oh, meu Deus, Lars! Se a história da Wanjiru é verdade e o Simon voltou a Mwathe depois de matar o Piet… Compreendes as implicações, Lars? Quer dizer que o Simon Githiri está vivo.
CAPÍTULO 13
Quénia, Maio de 1967 pelo rádio, pontuada por estática e súbitos cortes na comunicação, tornou mais difícil Achamada explicar a Sarah o que tinha acontecido. E o esforço tinha esgotado os últimos vestígios de resistência e coragem em Hannah. — O Simon está vivo. — A repetição monocórdica das palavras por Sarah não expressava horror nem tão-pouco surpresa. — Era a minha convicção mas não podia exprimi-la. Seria demasiado penoso explicar o que sentia e tu ter-te-ias rido de mim. — Não devias ter guardado essa convicção para ti. — Hannah sentiu vergonha. — Contei ao Rabindrah — disse Sarah. — Mas depois reprimi a ideia porque não passava de um instinto e não servia de nada cismar nele. Falaste com o Jan ou com a Lottie? — Ainda não sou capaz. Não posso. — Que é que vai acontecer agora à Wanjiru? — Sarah pensou na rapariga e na criança deformada que era filha de Simon e sentiu uma onda de náusea. — O Dr. Markham vai tratar de levar a criança a um especialista. Mas não podemos manter a Wanjiru na fazenda — disse Hannah. — O Karanja pode aparecer à procura dela. Representa um risco enorme para todos nós. O Jeremy está a tentar organizar um lugar seguro sem a fechar na prisão. Não pode deixar que lhe aconteça nada nem que ela fuja. Caso contrário, perde uma testemunha-chave. — Podia ir para a missão. Para Kagumo — disse Sarah. — Tenho a certeza de que a acolhiam de boa vontade e a mantinham segura e escondida. Vou contactar o padre Bidoli. Amanhã tenho de ir a Isiolo e telefono-lhe de lá. — Sarah? Perdoa-me. Sinto saudades tuas. — Não te preocupes, Han. Fim de transmissão. — Ela não me perdoou — disse Hannah. — Para onde quer que me vire, é como se eu própria tivesse cometido um crime horrendo e estivesse permanentemente a pagar por ele em tudo o que faço. E o pior ainda está para vir. — Não, Han. O pior já passou. Hoje é o princípio de… — Não consegues imaginar o tribunal em Nyeri? — disse ela, inclinando-se sobre Lars, sentado na cadeira. — Não consegues ouvir o depoimento do Simon? E da rapariga também? O Jan van der Beer matou uma mulher indefesa. E depois pegou no marido dela, atou-o e assou-o nas chamas e ouviu-o gritar e gritar e… Tinha elevado a voz à beira da histeria e Lars agarrou-lhe nos pulsos e abanou-a. — Cala-te, Hannah. Cala-te imediatamente. O Simon pode ainda estar escondido na floresta, mas também pode estar morto. Não sabemos. E, se estiver vivo, o Karanja pode encontrá-lo primeiro e matá-lo para salvar a própria pele. Mas, aconteça o que acontecer, temos de ser fortes. Não te podes ir abaixo agora. Havemos de resistir a tudo isto juntos, porque nos temos um ao outro e à
Suniva. Vá, não percas agora o alento, senão o Simon sai vencedor. Vou tratar da Wanjiru e depois vou deitar-me. Lars preparou um colchão e cobertores na arrecadação, onde a rapariga passou a noite. Mas a presença dela incomodava-o. Tinha explicado a Mwangi e a Kamau o que ela ali estava a fazer e tinha-os visto abanar as cabeças, com medo de que ela e o filho aleijado trouxessem algum infortúnio à fazenda. Não se devia dar guarida ao filho de Simon Githiri em Langani. Era portador de um mau presságio. Recusaram-se a aproximar-se da arrecadação. Quando Wanjiru e a criança ficaram instaladas, Lars trancou a porta por fora e pôs David de guarda, com medo de que pudessem ter desaparecido quando voltasse de manhã. Era quase meio-dia quando o padre Bidoli telefonou a dizer que a jovem mulher e o bebé podiam ser levados para Kagumo. As freiras protegê-los-iam. — Vens comigo a Nyeri, Han? Vou levá-los pessoalmente, para não haver problemas. — Lars pensou que o padre podia confortá-la. — Pode ser boa ideia conheceres o padre Bidoli. A Sarah diz que ele é muito bondoso. — O filho de um assassino — disse Hannah, num tom duro. Não se tinha levantado à hora do costume para ir à vacaria nem tinha descido para tomar o pequeno-almoço, e Lars tinha-a encontrado ainda na cama. — Ele é filho de um assassino. Como eu. — Não digas nem penses uma coisa dessas. — Lars tentou abraçá-la mas ela repeliu-o, cega com a terrível percepção. — O meu pai era um assassino — repetiu ela. — Um homem que torturou e matou outros seres humanos. E nós estamos a pagar por isso. Primeiro o Piet, com a vida. E agora, eu, tu e a Suniva. — Em tempo de guerra, são muitos os homens que enlouquecem temporariamente — disse Lars, numa voz tranquilizadora. — Eu e tu nunca conhecemos senão a paz. Não somos capazes de compreender como a guerra afecta as pessoas que são apanhadas no meio dela. — Eu fui apanhada no rescaldo — disse ela. — Não feri nem matei ninguém, mas não posso escapar à guerra do meu pai. — Han, não serve de nada perderes a cabeça com acontecimentos do passado. Já assistimos aqui a demasiada violência e infelicidade e nunca poderemos esquecer. Mas temos de encontrar maneira de as superar. — Tentei pensar nesses termos. Tentei imaginar como o Piet teria reagido, se soubesse. Mas não sou capaz de atingir esse estado. E para onde quer que me vire, ele está lá. — O Piet estará sempre connosco, Hannah. A sua memória há-de… — Não estou a falar do Piet — disse ela rispidamente. — É o meu pai que vejo. Vejo-o à secretária ou no meio do trigo ou à espera ao fim do dia à lareira. O meu pai, que destruiu o que os pais e os avós dele construíram aqui, que privou os filhos de um futuro. Vejo-o para onde quer que olhe e não consigo perdoar-lhe. Porque a culpa de tudo isto é dele. Porque é responsável pela morte do Piet. — Pronunciou as palavras como se tivesse estado a repeti-las incessantemente a si mesma, imprimindo-as à força no coração. — Mas nós não morremos com o Piet — disse Lars calmamente. — Tentaste dar continuidade à obra dele e eu apoiei-te nisso. E agora havemos de encontrar uma maneira de tornar a nossa vida suportável. — Não me pregues sermões — disse ela. — Não aguento ouvir-te, quando falas comigo como se uma das minhas vacas estivesse doente. Estou deitada na cama que já foi a cama dos meus pais e é
agora a nossa. O sítio onde devem ter falado sobre o que ele fez. Sobre a maneira como assou um homem vivo. Como os criminosos nazis sobre quem lemos nos livros. E ela deve ter estado aqui deitada e deve tê-lo confortado. Por isso, não me fales como se eu fosse uma criança que caiu e esfolou um joelho. — Queres vir comigo a Nyeri? — Lars tentou novamente. — Não. Leva-os tu. Cumprimos a promessa da Sarah e devemos livrar-nos da rapariga e da criança o mais depressa possível. A partir de agora, não quero voltar a vê-los nem a ouvir falar deles. Hannah tinha-lhe então virado as costas e, durante três dias, fechou-se no quarto, deitada de olhos muito abertos, mexendo-se apenas para dar de comer à filha e passá-la a Lars ou a Esther. Os tabuleiros de comida preparados por Kamau ficavam por tocar e não deixou o Dr. Markham examiná-la. Lars achou imprudente levantar a questão de contactar Jan e Lottie. Mas sabia que mais cedo ou mais tarde seria preciso contar-lhes a terrível verdade a respeito de Simon e essa perspectiva pesava-lhe na consciência dia e noite.
— Hannah, preciso de ti — disse Lars. Estava determinado em trazê-la de volta ao mundo, em arrebatá-la à depressão. — Não posso tratar da fazenda sozinho. Tens de recomeçar a tua vida e vais ver como encontras aspectos positivos. Quero que te vistas e venhas tomar o pequeno-almoço. Vou dizer ao Mwangi e ao Kamau que vais descer. — Por favor, deixa-me em paz. — Escondeu a cara na almofada. Lars levantou-se. — Vais vestir-te já, Han — disse ele firmemente. — E vamos começar o dia juntos. Na sala de jantar, Mwangi apareceu, abatido e solene. — A memsahib Hannah vai descer para o pequeno-almoço — disse Lars. Não fazia ideia se ela ia aparecer e, se não aparecesse, faria figura de parvo. Mas a mudança em Mwangi foi instantânea e constituiu em si mesma uma recompensa. Quando Hannah desceu e ocupou o seu lugar à mesa, ele pôs-se de roda dela como uma velha ama, trazendo café fresco e doses suplementares de bacon e pairando ao lado dela até ela se virar e lhe apertar a mão. Comeram em silêncio, mas para Lars bastava a presença dela. Finalmente, começava a lutar. — Vens comigo à vacaria? — perguntou-lhe. — Há um vitelo novo que ainda não viste. É saudável e tens de lhe pôr um nome. Ela abanou a cabeça. — Não. Mas ele viu uma centelha de interesse nos seus olhos e aproveitou a vantagem. — Sei muito bem que queres ver o vitelo — disse ele. — Tem a tua cor favorita e já é tão teimoso como tu e cheio de raça. Ela baixou os olhos, puxando a toalha da mesa com os dedos. Quando lhe respondeu, ele mal conseguiu ouvi-la. — Há uma coisa que te quero pedir primeiro — disse ela. — E depois vou contigo lá para fora. Quero que a faças esta manhã porque eu não sou capaz. — Faço tudo por ti. — Quero que ligues ao papá. — Não acho que deva ser eu…
— Liga-lhes e conta o que aconteceu e porquê. Mas eu não quero falar com ele. Por enquanto, é impossível, Lars. Talvez nunca mais venha a ser possível. Ele sentiu o coração cair-lhe aos pés. A sala de jantar estava inundada de luz, mas ele sentiu frio. Ela não tinha mencionado Jan nem Lottie desde a tarde em que Wanjiru contara a sua história. E ele próprio tinha preferido ignorar o problema de informá-los por causa da dor que causaria. Agora sentia um aperto no peito ao imaginar a reacção de Lottie. — Talvez fosse melhor esperarmos que o Simon seja apanhado — disse ele, procurando uma possível razão para protelar. — Até termos a certeza de que a rapariga disse a verdade. — Sabes bem que ela disse a verdade — respondeu ela. — Sabes que foi o que aconteceu. É por isso que o Piet está morto e que podemos estar todos mortos em breve. Tu continuas a ser o feitor e genro do papá e deves contar-lhe a verdade. — Não acho que seja a melhor maneira de o fazer — disse ele. — Não lhe posso ligar, assim sem mais nem menos, e dizer-lhe que foi por causa do que ele fez que o filho foi morto. Pelo telefone, não. E o efeito sobre a Lottie é inimaginável. — Eu não sou capaz — repetiu Hannah. — Tens de ser tu. — Então vou lá pessoalmente — disse Lars. — Dizer-lhes cara a cara. Oferecer algum conforto com a minha presença. Vou tentar arranjar alguém que me substitua na fazenda por alguns dias. E vamos à Rodésia. — Faz como entenderes — disse Hannah. — Eu não vou. — A tua mãe vai precisar de ti — disse Lars. — Ela não veio quando precisei dela. Preferiu ficar com o papá. Como eu prefiro ficar em Langani apesar de ele ter feito com que a nossa terra se tornasse um banho de sangue. Agora vou para o escritório, tratar da correspondência e das contas. E, mais tarde, depois de falares com eles, vou contigo à vacaria. Não sou capaz de mais. Ele saiu para a fazenda, ocupando-se das suas rondas habituais e parando para falar com o vaqueiro e os watu que encontrou nos campos. Mas o seu ânimo estava abatido e pensou como todos reagiriam quando conhecessem a razão do assassínio de Piet e soubessem que Simon estava vivo. Pensou em Jan e Lottie e convenceu-se ainda mais de que não deviam saber da macabra história pelo telefone. Era evidente que teria de partir brevemente. As notícias circulavam depressa entre os expatriados do Quénia e os expatriados sitiados na Rodésia. Sabia que Lottie mantinha o contacto com velhas amigas e não fazia ideia por quanto tempo a verdadeira razão da morte de Piet podia continuar um segredo. Quando voltou para o escritório mais tarde, encontrou Hannah à secretária, a dactilografar com feroz concentração. Suniva estava no berço, a dormir tranquilamente, uma inocente no meio de uma guerra de atrito que dilacerava o coração da mãe. O sangue gelou nas veias de Lars. Era impossível saber se e quando haveria outro ataque à fazenda, à mulher e à filha. Simon estava claramente apostado em destruir tudo o que os van der Beer tinham criado, na sua sede de vingança. Se ao menos Hannah o acompanhasse à Rodésia… — Tiveste notícias da Sarah? — perguntou ele. — Nada — respondeu Hannah, sem levantar os olhos. — Mas falei com o Anthony. Não tem nenhum safári até Junho. Estava a planear vir cá falar connosco sobre o incêndio e eu pedi-lhe para vir já. Para passar alguns dias comigo. Para tu poderes viajar para sul. — Hannah… — Podes partir quando quiseres — disse ela, num tom neutro e objectivo. — O Anthony pode
ficar comigo uma semana. Talvez um pouco mais. Chega amanhã. Agora vou ver o vitelo.
Já era noite quando o feixe de um par de faróis varreu as paredes da sala de estar e acordou Hannah. Ela paralisou, o medo e a angústia subindo à tona enquanto os cães corriam lá para fora, ladrando histericamente. Lars pousou-lhe uma mão no braço para a tranquilizar. — É o Anthony de certeza. Vou ver. Os dois homens voltaram juntos e Hannah fez um esforço para acolher o amigo alegremente. Mas a sua expressão era tensa enquanto Lars o punha ao corrente dos pormenores do incêndio e dos resultados da visita a Mwathe. — Lamento saber tudo isso — disse Anthony. — Mas dá ideia de que se vai fazer finalmente justiça pelo assassínio do Piet. Só espero que tenham a rapariga bem protegida na missão. — Quanto a isso, o Jeremy tem algumas reservas — disse Hannah. — Foi contra a ideia de levar a Wanjiru para Nyeri e eu também. Mas não podíamos tê-la aqui e não lhe ocorreu melhor alternativa. — Estou certo de que as pessoas em Kagumo compreendem a situação — disse Lars. — Fui eu que a levei lá e falei com o velho padre e com as freiras que estão a olhar pela rapariga. Ela não tem mais nenhum sítio para onde ir, sem dinheiro e uma criança a cargo dela. E está aterrada que alguém de Mwathe a encontre e a leve de volta ao Karanja. Acho que se sente aliviada por estar num lugar seguro onde ninguém lhe quer fazer mais perguntas. Wanjiru tinha-se mostrado cada vez mais reservada quando Jeremy Hardy a pressionou para obter mais informações, obrigando-a a repetir várias vezes a história. Por fim, depois da renovada promessa de um refúgio seguro e tratamento para o filho, a rapariga fez-lhe uma descrição circunstanciada do trilho para a clareira e para a caverna onde tinha vivido tanto tempo. Foram despachados askaris mas, quando descobriram o sítio, este estava deserto, embora houvesse indícios de uma presença humana recente. Alguns pisteiros concordaram que o fugitivo se tinha embrenhado mais na floresta e arrepiado caminho por um dos muitos trilhos de búfalos que entrecruzavam a densa vegetação. Apesar de uma batida exaustiva, não encontraram traços do homem procurado. Na tarde do mesmo dia, dois agentes da polícia dirigiram-se ao recinto de Karanja em Mwathe mas nenhum dos membros do clã mungai admitiu conhecer ou ter visto Simon. E o próprio Karanja tinha desaparecido, escapando a coberto da noite, apesar da vigilância que Jeremy tinha montado. Quando ele apareceu para transmitir a notícia, Hannah reagiu com fria resignação. — Já sabia que isso ia acontecer — disse ela. — Ele e o Simon podem passar o resto da vida nas florestas ou nas encostas da montanha e podemos nunca mais os encontrar. Até decidirem atacar-nos outra vez. — Minha querida, não me parece que qualquer um deles volte — disse Jeremy. — Estão aqui askaris vinte e quatro horas por dia e andam mais a passar a zona a pente fino. Estamos perante uma caça ao homem em grande escala que envolve todos os homens disponíveis. Havemos de apanhá-los. — Mas as palavras soaram artificiais, mesmo aos ouvidos dele, e interiormente maldizia a ineficaz vigilância dos seus subordinados. Hannah tinha rodado nos calcanhares sem uma palavra, deixando o polícia de mão levantada num gesto de despedida a que ela não respondeu. E agora tinha passado mais um dia sem notícias.
— Não tenho qualquer fé na polícia — disse ela a Anthony. — Não sei se são simplesmente incapazes ou se é por se estarem nas tintas para o facto de ser uma fazenda de brancos que está sob ameaça. — Estás a ser um tanto injusta com o Jeremy — disse Lars. — Na minha opinião, ele está a fazer o que pode, mas hoje em dia não tem grande apoio. — Estou farta do assunto — declarou Hannah. — Vou deitar a bebé enquanto vocês tomam uma bebida. E depois jantamos. — Ela parece estar no limite — disse Anthony quando Lars lhe passou um whisky. — Percebi que não estava nada bem quando falámos ontem ao telefone. — Estamos em estado de sítio aqui — disse Lars. — E não me agrada nada a ideia de ir à Rodésia. Vou precisar de mais um dia para organizar tudo e tratar de meia dúzia de coisas com o Bill Murray para o caso de haver problemas enquanto estou fora. Mas estou convencido de que tenho de transmitir pessoalmente a notícia ao Jan e à Lottie. És um bom amigo, Anthony, ficares por cá nestas circunstâncias. — Não há-de acontecer nada — disse Anthony. — A fazenda está cheia de agentes da polícia, para além do vosso guarda-nocturno e dos guardas-florestais. E eu sou bom atirador. Vai descansado fazer o que tens a fazer e não te aflijas. Ao jantar, ninguém falou de Wanjiru e da criança dela nem da partida de Lars para a Rodésia. A noite foi pontuada de tensos silêncios, seguidos de uma torrente de conversa. Anthony transmitiu a única boa notícia. Ao cabo de vários dias de discussão com a companhia de seguros em Nairobi, tinha-os obrigado a aceitar pagar o custo da reconstrução do lodge. — Começaram por propor um valor absurdo — disse ele. — Discutimos durante algum tempo até eu dizer que estava preparado para segurar os meus safáris e veículos noutra companhia. A partir daí a conversa mudou de tom. Concordaram em pagar e podemos começar de novo. Quando e se vocês estiverem pelos ajustes. — Ainda não falámos sobre o lodge — disse Lars. — Mas acho que é demasiado cedo para… — Não, não é nada demasiado cedo. — Hannah dirigiu-se a Anthony. — Agora conhecemos a história toda, a verdade sobre o meu pai e o Simon, e o risco de tentar começar alguma coisa na fazenda. — Vai ser difícil tomar decisões — disse Anthony. — Mas não julgues o teu pai precipitadamente, Hannah, porque… — Porque o bom velho Jan van der Beer só quis proteger a família e a fazenda e os homens cometem loucuras em tempo de guerra. — Hannah não foi capaz de se conter mais. — Era isso que me ias dizer? O que toda a gente me quer dizer? Pois, mas eu poupo-te à maçada. Prefiro que consideres que, em resultado do ataquezinho de loucura do meu pai, o Piet está morto e a nossa casa está ameaçada dia e noite por esse assassino que está apostado em destruir tudo o que foi construído aqui. E onde está agora o meu pai? Está aqui para nos proteger das consequências dos seus pecados? Não! Qual quê! Fugiu antes da Independência, sabendo que Langani nos podia ser tirada por causa do passado dele. E até se esqueceu de mencionar que a fazenda estava quase na bancarrota. Foi o Lars que nos salvou da ruína. — Não estou a defender o Jan mas ele deve ter pensado que a partida dele lhes daria melhores… — Infelizmente, não lhe ocorreu contar-nos o segredozinho dele, avisar-nos ou preparar-nos de alguma maneira. — Hannah não o deixou terminar a frase. — Foi-se simplesmente embora e
deixou-me a mim, ao Piet e ao Lars a arcar com as consequências do que fez. Acho estranho que não vejas isso. — O que ele fez foi terrível, impossível de conceber — disse Anthony. — Se for verdade. Mas deves lembrar-te que os assaltos, os juramentos e as matanças dos Mau-Mau também foram horrivelmente bárbaros. — E isso justifica que tenhamos descido ao nível deles? — Levada pela fúria, Hannah deu um murro na mesa. — Não, claro que não — disse Anthony. — Mas deves considerar que o Jan encontrou o próprio irmão na floresta, feito em bocados e… — E abandonado à morte, como o filho mais tarde — disse Hannah. — E isso desculpa-o? — É uma razão, não é uma desculpa — disse Anthony. — O governo britânico, o exército e a polícia estavam empenhados em pôr fim ao movimento dos Mau-Mau a todo o custo. O combate a esses selvagens salvou a vida de muitos mais quicuios do que agricultores brancos. Mas agora acho que chegámos a um ponto em que o perdão é a única forma de avançarmos. Caso contrário, este problema prolonga-se por mais uma geração e depois outra e as pessoas envolvidas acabam por morrer da acrimónia, do ódio e das repercussões. — Não estou para ouvir mais sermões — disse Hannah, atirando com o guardanapo. — Temos de prometer um ao outro que não falamos deste assunto enquanto o Lars estiver ausente, Anthony. Caso contrário, pomos em risco a nossa amizade. Agradeço-te imenso por cá ficares. Mas não sou capaz de olhar para a situação do teu ponto de vista e tu não podes sentir a raiva, a vergonha e o tormento que me vão na alma. Por isso, assentemos numa coisa: não falamos mais nisto. Por muito tempo. Talvez para sempre. — Tens razão — disse Anthony. — Não consigo imaginar o que sentes. Falaremos de outras coisas a partir de agora. Hannah levantou-se. — Estou morta de cansaço — declarou. — E tenho imensas dificuldades em dormir. Com a Suniva ainda a mamar a meio da noite e tudo o mais que me atormenta no escuro, preciso de aproveitar todos os momentos sempre que posso. Até amanhã. — Pelo menos anda a pé e já conversa — disse Lars, quando os passos de Hannah deixaram de se ouvir. — Apesar de continuar assustada e revoltada. Acho que pode ser o princípio da resignação. Um ponto de viragem. E, neste momento, não posso esperar mais.
Quando Sarah regressou a Buffalo Springs, Dan estava sentado numa cadeira de lona no edifício principal, a corrigir o relatório diário das suas observações. Estava debruçado sobre as páginas dactilografadas com intensa concentração, murmurando sozinho. O seu casaco de safári estava coçado e semeado de borbotos e os óculos escorregavam-lhe do nariz, tortos e seguros na ponte com fita adesiva. Sarah sentiu um aperto no coração ao vê-lo. Considerava-se uma pessoa de sorte por ter conhecido aquelas pessoas, por trabalhar com elas e contá-las entre os seus melhores amigos. Ele levantou os olhos quando ela entrou na boma com uma expressão de deleite por ter chegado a casa. Teria tempo para ordenar as ideias, para recuperar a harmonia e a ordem, para se libertar da angústia que nunca a abandonava em Langani. E agora a rejeição e um medo renascido. Tudo isso passaria para segundo plano quando retomasse o trabalho que a apaixonava. — Espero que gostes tanto de whisky irlandês como da tua mixórdia do costume — disse ela,
correndo a abraçá-lo. — Ainda bem que estás de volta, miúda — disse ele com afecto. — Que tal correu o casamento? Como é que estão a aguentar-se em Langani? — O casamento foi cancelado — disse ela, vendo-se obrigada a sorrir do espanto dele. — E o incêndio no lodge foi um rude golpe. Mas vou guardar os pormenores para quando a Allie estiver presente. Assim, não precisas de ouvir a história duas vezes. Passou uma hora a ajudá-lo a actualizar os mapas, deslocando os alfinetes coloridos enquanto ele estudava os seus apontamentos, que registavam os trajectos seguidos pelos elefantes nos últimos dias. Na sua cabana, arrumou a bagagem, sentou-se à mesa tosca que lhe servia de secretária e começou a separar um monte de memorandos e cartas. Algum tempo depois, sentia-se calma, rodeada pelo cantar dos grilos na tarde tranquila e pelo palrar dos daimões que a observavam da sua posição privilegiada, num pequeno afloramento rochoso do lado de fora da vedação. O calor era intenso e ela sentiu que os sinais do mundo exterior começavam a dissolver-se, deixando-a com uma suavidade interior, uma sensação de purificação e frescura. Depois de ordenar a papelada e verificar as máquinas fotográficas, pediu água para a tenda do chuveiro. Sarah estava a enxugar a cabeça quando Allie apareceu, detendo-se à porta, à sombra do palhiço do telhado. O sol estava a afundar-se atrás do rendilhado dos espinheiros e os primeiros ruídos do crepúsculo entravam pela porta, juntamente com uma sugestão de ar fresco e aveludado. — Já despachaste os papéis quase todos? — Allie estava a sorrir. — Estou impressionada. — Estava mesmo a precisar de um duche — disse Sarah. — Estar debaixo daquele balde de água fria foi divinal. — Atravessou o quarto para abraçar Allie e estendeu-lhe um embrulho. — É linho irlandês — disse ela. — Calças e uma camisa. São sempre confortáveis, seja qual for a temperatura. E trouxe mais coisas, como compota de laranja caseira da minha mãe e… ouve, peço desculpa por me ter demorado mais dois dias. Sei que deve ter sido difícil andar em cima de tudo com uma pessoa a menos. Sinto muito, Allie. — Deixa-te disso. A propósito, as coisas por aqui não têm sido propriamente idílicas. Houve um ataque dos shifta há dois dias. Abateram quatro elefantes e, como sempre, ninguém sabe como eles puderam entrar sem ninguém os ver, com um camião enorme e barulhento e uma bateria de armas. Como atravessaram uma zona que é teoricamente patrulhada todos os dias. De certeza que subornaram alguém para fazer vista grossa. O Dan está tão furioso que até tem medo de falar no assunto. — Allie sentou-se na beira da cama. — Mas já soube que também tiveste problemas. Vim dizer-te que ele está a abrir a tua garrafa de whisky irlandês e pergunta se queres um copo. — Não consigo beber essa coisa — disse Sarah. — Mas devo dizer que uma Tusker fresca é irresistível. Dá-me cinco minutos. Entre o crepitar das candeias e a correria das osgas no telhado, Sarah distinguia lá fora, na noite africana, o brilho das estrelas na negra abóbada celeste e ouvia os sons dos noitibós, das rãs e dos daimões. Com o copo de cerveja na mão, descreveu a estadia em Londres, o desastre do casamento de Tim e o incêndio em Langani. Quando falou da perturbante visita à Reserva de Mwathe, Allie não conseguiu disfarçar o medo. — Espero que a segurança tenha sido reforçada na fazenda — disse ela. — A Hannah não está em segurança. No lugar dela, acho que partia antes que mais algum acontecimento terrível destrua tudo o que lhe resta. — Acho que está perto de tomar essa decisão — disse Sarah.
Sentiu-se aliviada por ter falado do irmão e dos problemas em Langani. Mas não foi capaz de mencionar o desabafo de Hannah da noite anterior nem a chamada confusa que tinha feito a Rabindrah. Eram momentos dolorosos e constrangedores e preferia enterrá-los, escapar à sua penosa lembrança.
De manhã, partiu do acampamento quando a alvorada espalhava filamentos de nuvem escarlates pelo vasto céu e as aves se entregavam aos seus coros. O Land Rover circulou pelos trilhos saibrosos, os pneus novos crepitando sobre galhos caídos, o ar fresco permeado da fragrância das flores silvestres. Erope ia ao seu lado, sorrindo quando ela lhe perguntou pelo postal que lhe tinha mandado de Londres. Ele tinha-o levado à sua manyatta, disse, e mostrado aos chefes tribais como exemplo da loucura dos wazungu no seu próprio país. Mas, no geral, achou que os homens e as mulheres brancos na imagem, com as suas roupas, missangas e plumas garridas, eram mais parecidos com o seu povo do que os formais oficiais britânicos com quem se tinha cruzado no Quénia, com as suas camisas e calças engomadas e sapatos que tinham de ser engraxados três vezes por dia por causa do pó. Sarah não demorou muito tempo a localizar o seu grupo de elefantes. Estavam junto de um embondeiro, cujo tronco colossal e delicados ramos apontavam para o disco ofuscante do sol. Não havia sugestão de chuva e a ameaça da seca não podia ser ignorada. — Já não há muito para o gado e as cabras comerem — disse Erope. — Está a secar tudo rapidamente. Já somos obrigados a ir buscar água muito longe e os shifta e o governo andam em cima de nós. Uns e outros estão sempre aqui, na nossa terra, a impedir-nos de viver como sempre vivemos desde que o mundo é mundo. — Que é que pensam os chefes tribais de ter menos filhos e menos gado? — Sarah viu os olhos dele arregalarem-se. — Isto é, na opinião do governo, as mulheres e as crianças seriam mais saudáveis e seria mais fácil arranjar comida para todos. — O governo quer que a gente tenha menos filhos para nos tirar as terras com mais facilidade — disse Erope. — As crianças e os animais são tudo o que temos. São a nossa vida e a nossa riqueza e não podemos perdê-los. Já sei que a surpreende que eu diga isto, Sarah. Mas nós não temos mais nada e não pedimos mais nada e ninguém tem o direito de nos tirar estas coisas. Nem os ingleses nem as tribos vizinhas, como os rendille ou os boran, que nos roubam o gado e a água. Nem os somalis, que não têm terra própria, agora que um bwana oficial qualquer, num país distante, traçou uma linha entre o país deles e o nosso, sem pensar em quem vive de cada lado. Esta guerra entre os somalis e o Quénia foi provocada por alguém que provavelmente nunca aqui pôs os pés, nunca conheceu um somali, um boran ou um rendille em toda a vida. — Relanceou para ela. — Acha que é a verdade? A Sarah é minha amiga e podemos falar destas coisas. — Sem dúvida que é verdade que as pessoas do extremo norte queriam fazer parte da Somália — disse ela. — E são diferentes em termos de aspecto e de crenças. Mas o governo, pelo menos, está a tentar encontrar uma solução. Estão em curso negociações para acabar com esta guerra. — Nunca mais há-de acabar — disse Erope. — É como o seu país. Ela olhou para ele, surpreendida. — O meu país? — Um dos professores explicou-me. Quando eu andava na escola. Era da Irlanda, como a Sarah, e disse que tinham traçado a linha errada a meio da sua terra. É por isso que compreende tão bem
este país. Porque o seu povo também sofre. Também luta por causa do sítio onde a linha foi traçada. — Tens razão — disse ela. — Não tinha pensado nisso nesses termos, mas é verdade. Como a maioria das coisas para que me chamas a atenção. Quem me dera que pudéssemos pôr fim às lutas e descobrir uma maneira de partilhar o que temos. Mas quando digo isto, toda a gente se ri de mim e me diz que sou idiota. — Sim, nisso é idiota — disse Erope, calmamente divertido. — Porque se esqueceu de que todas as criaturas nasceram para lutar pelo seu território. Olhe essa manada de búfalos que se aproxima do rio. Têm muitos lugares onde beber e, mesmo assim, tentam sempre usar o mesmo local que os elefantes escolheram. E estão também a repelir as zebras, mas não hão-de vencer porque os ndovus são mais fortes. E é o que nos acontece a todos. Ao fim de alguns dias no acampamento, Sarah escreveu aos pais. Contudo, não foi capaz de escrever mais do que uma formal mensagem de agradecimento a Camilla e não escreveu uma só linha a Tim. Estava a fechar o envelope para Raphael e Betty quando chegou a chamada pelo rádio. Esforçando-se por ouvir Hannah por sobre o ruído da estática, sentou-se numa cadeira de lona, ao ser atingida pela plena implicação da notícia, segurando o auscultador com as mãos trémulas. Parecia que o mundo estava a escapar ao seu controlo, destruindo a aparência de calma que recentemente construíra. Quando a intrusiva crepitação da linha e a conversa entrecortada terminaram, Allie afastou-a do rádio. — Que é que…? — A expressão nos olhos de Allie silenciou a pergunta de Dan. — Ele está vivo — disse Sarah, alguns momentos depois. — O Simon Githiri está vivo. Sempre senti que me teria apercebido do momento em que ele morreu embora parecesse irracional. A Camilla diz sempre que é bizarro quando tenho estes pressentimentos. Mas tinha razão. Estava tomada de premonição e sentou-se numa cadeira de campanha, como que paralisada, até que Allie estendeu a mão e lhe deu uma palmada enérgica no braço. — Fala — disse ela. — Vais ver que ajuda. — Um acto de vingança. — A explicação de Sarah foi crua e frontal. — O Janni fazia parte de uma patrulha que matou a mãe do Simon. Durante o estado de excepção. Mataram-na a tiro enquanto ela fugia de um acampamento Mau-Mau. O pai também foi assassinado, apesar de o Jan estar em posição de dar uma ordem para o impedir. Foi por isso que o Simon matou o filho do Janni. Matou o meu Piet. Foi um acto de vingança e só Deus sabe onde é que tudo isto vai terminar. Não era capaz de admitir, nem aos amigos, as circunstâncias exactas desse dia na floresta que haviam transformado as vidas de todos eles, pondo em marcha um ciclo que podia não se completar enquanto Langani não fosse restituída à terra selvagem da qual fora forjada. E sentia-se incapaz de negar a repulsa que já tinha começado a corroer as afectuosas recordações de Jan van der Beer que carregava dentro de si desde a infância. — Pelo menos o Hardy é amigo da família — disse Dan. — E agora que tem uma pista, há-de certamente encontrar esses dois homens. Mas agrada-me saber que a Hannah está a tentar ajudar a rapariga e o filho também. É o tipo de atitude que revela equilíbrio e compaixão. É o que é preciso neste tempo de transição difícil. — Sim — disse Sarah, no silêncio pesado que se seguiu à declaração dele. Mas, no fundo, sabia que as suas palavras eram as de um académico, um homem brando e privilegiado cuja vida pessoal nunca fora afectada por um assassínio nem pela vingança. — Acho que não consigo falar mais sobre isto. Pelo menos hoje.
— Deixa-me falar-te de algumas das novas ideias do Dan sobre os nossos amigos quadrúpedes — disse Allie, procurando trazer Sarah à parte da sua vida que ainda lhe podia proporcionar uma base sólida. — E podemos meditar sobre os ensinamentos deles que já esquecemos há muito.
Sarah passou a semana seguinte a seguir a manada, fotografando e tomando apontamentos. Ia diariamente com Erope no carro e caminhavam ambos sob o vento seco e quente que levantava remoinhos de poeira e transformava a terra numa miragem que levitava inquieta e se sumia na distância informe. Somente os trilhos ao longo do rio ofereciam algum alívio do calor tórrido e, numa tarde abrasadora e causticante, sentiu-se tentada a descer o talude e a molhar a cara e os braços com a água castanha. Mas Erope abanou a cabeça quando ela fez essa sugestão, apontando para o que parecia ser um tronco enterrado na margem oposta. Olhando melhor, distinguiam-se os dois pequenos olhos do crocodilo acima da linha da água. Uma hora depois, uma manada de zebras apareceu para beber e o comprido predador escamudo desapareceu sem fazer uma onda, irrompendo depois, com aterradora velocidade, no meio delas, estrebuchando desenfreadamente enquanto as zebras se dispersavam e a água lamacenta se cobria de vermelho com o sangue de uma vítima incauta. O mato retiniu com os relinchos estridentes das sobreviventes e espalharam-se gritos de alarme através da cobertura das árvores, transportados por macacos e aves. Sarah ficou chocada ao ver como os animais se tinham tornado magros e letárgicos, na sua inexorável busca de alimento e água. As carcaças dos que não eram capazes de suportar as duras condições juncavam os caminhos. Os elefantes abriam covas cada vez mais fundas em torno dos cursos de água secos mas sem grande sucesso. A poeira levantava-se em círculos ferozes e as ervas estalavam secas sob os pés, até parecer que se caminhava sobre lâminas. Era tremenda a frustração de observar a desesperada busca de alimento dos animais moribundos, os ossos desenhando-se sob a pele muito antes de finalmente tombarem no solo inclemente. Somente os animais necrófagos prosperavam. Hienas e chacais, raposas, abutres e enormes crocodilos espreitavam nos rios pachorrentos, aguardando que as presas se oferecessem às suas mandíbulas escancaradas, levadas pela sede. O clã de Erope tinha uma manyatta a menos de uma hora do acampamento dos Briggs e muitos dos seus animais tinham sucumbido à seca. Para os samburu, o gado representava a vida. Mais do que simples animais, representavam riqueza e estatuto no seio da comunidade e um prejuízo daquela dimensão era uma catástrofe. Erope possuía uma pequena manada e duas das suas preciosas vacas já tinham morrido. Sarah tinha visitado a manyatta em várias ocasiões, fotografando a família e os amigos dele, enquanto se ocupavam das suas tarefas quotidianas, e oferecendo-lhes mais tarde alguns dos retratos encaixilhados. Considerava-os entre os melhores que já tinha feito. Agora, pensava em alguma maneira de ajudar as crianças cujos rostos famintos e ventres dilatados indicavam malnutrição. O clã normalmente vivia do gado, alimentando-se com o leite das vacas, complementado com raízes e ervas. Só comiam a carne em ocasiões rituais ou quando a seca prolongada obrigava a matar para sobreviverem. Os samburu não cultivavam os campos, desdenhando dos quicuios e de outras tribos agrícolas. Os cereais e outros produtos secos vinham de uma duka na vila mais próxima e Sarah levou Erope a Isiolo para negociar com o comerciante indiano melhores preços. Quando levou a melhor sobre ele, dirigiu-se para a manyatta com um carregamento de posho, açúcar e sal.
— Ele é diferente dos outros, o seu mahindi — disse Erope. — Mas não sei como trata os criados em Nairobi. Estes indianos olham-nos com desprezo e um dia vão pagar por isso. Era uma conversa que Sarah não queria continuar. Nunca tinha visto Rabindrah lidar com o pessoal africano, mas não lhe tinha agradado a maneira como Indar gritava com alguns dos trabalhadores da sua garagem. Por outro lado, estava a treinar três mecânicos africanos que tratava bem e eles claramente gostavam dele e respeitavam-no. Era um tópico delicado sobre o qual ela pouco sabia e não queria generalizar. — É melhor discutirmos os elefantes e o rasto dos antílopes-pigmeus — disse ela a Erope, que sorriu, acenando com a cabeça em concordância.
A terra continuava crestada e ressequida quando Rabindrah apareceu numa nuvem de poeira. Sarah deixou-o a arrumar a bagagem nos aposentos dos hóspedes e a tomar um duche para se livrar da camada espessa de sujidade da viagem. Quando ele reapareceu, ficou exultante ao ver que tinha trazido uma cópia da paginação proposta pelo editor. Depois do jantar, sentaram-se debaixo das estrelas mas, mesmo à noite, o ar continuava quente e seco. — Está excelente, pessoal — disse Dan. — Quando é que sai? — A ideia é ser lançado na Primavera — disse Rabindrah na voz grave de que Sarah se tinha habituado a gostar. — Mais cedo do que estava previsto. — Concordo com o Dan — disse Allie, sorrindo a Rabindrah. — Fizeram os dois um óptimo trabalho. E nós estamos muito gratos pelos generosos donativos do teu tio. Espero que ele nos venha visitar um dia destes. — Está sempre a prometer — disse Rabindrah. — Mas é um homem muito ocupado. Sempre a construir. — A construir o quê? — perguntou Allie. — A construir veículos de safári, templos, lojas e casas — respondeu Rabindrah. — E a construir uma imagem de neutralidade. — Estarei a detectar um tom de censura? — Dan ficou intrigado. — Já sabem como nós, os asiáticos, somos hoje em dia — disse Rabindrah. — Esforçamo-nos por não dar muito nas vistas para cair nas boas graças dos políticos africanos e nos insinuarmos no novo sistema. Evitamos as questões controversas. A maioria da comunidade não quer tomar partido e faz tudo para passar desapercebida. — Eu sei que foi só uma pequena percentagem da comunidade indiana que adoptou a nacionalidade queniana e agora deve estar a pôr em causa a decisão — disse Allie. — Mas com certeza que os que não puderem ou não quiserem ficar têm direito a residir em Inglaterra. Sarah recostou-se na cadeira, distanciando-se mentalmente de mais uma discussão sobre os problemas raciais e históricos e pensando em Jasmer Singh e no seu refúgio geminado nas ruas cinzentas e pouco estimulantes de Southwark. — Não quero estar sempre a escrever sobre este tema — disse Rabindrah a Allie. — Mas, em Inglaterra, o Enoch Powell arranjou um rico deus-nos-acuda. Tecnicamente, os que de nós decidirem não adoptar a nacionalidade queniana continuam a ter o direito de ir viver para o Reino Unido. Ou voltar para a Índia. Mas «voltar para a Índia» é um conceito absurdo, neste contexto, porque muitos dos asiáticos mais jovens nasceram aqui e nunca puseram os pés na Índia. Nunca
seríamos capazes de construir uma vida naquele caos e sordidez. — Mas a maioria tem com certeza passaporte britânico? — perguntou Dan. — Sim, temos o passaporte — disse Rabindrah. — Mas há uma diferença entre os passaportes emitidos numa ex-colónia e os emitidos no Reino Unido. Neste momento, existe um medo real em Inglaterra de que o país seja inundado de asiáticos. Nos últimos dois anos, já chegaram mais de dez mil da África Oriental. E não passam de umas gotas que se hão-de transformar numa enxurrada. Dentro de pouco tempo, a africanização vai generalizar-se. Vai transformar muitos dos velhos duka wallahs em refugiados pobres e, ainda por cima, vão acabar apátridas. — Mas tu decidiste radicar-te aqui — disse Allie. — Fazer parte de uma comunidade em perigo de se ver privada de direitos civis pelos ingleses e pelo Quénia. — Sim. Não é uma perfeita loucura? — Rabindrah esboçou um sorriso torto, assumindo um tom conspirativo. — Mas em Inglaterra nunca me adaptei, nunca experimentei um sentido de lealdade nem defini uma imagem aceitável de mim mesmo. Sentava-me no meu quarto com o seu pequeno aquecedor eléctrico e chão de linóleo, com a cozinha escondida atrás de uma cortina frouxa e as ruas lá fora pardas e desoladas. E queria estar aqui. Numa terra cujo aspecto, sons e odores me são familiares. Mas não sou britânico nem indiano e ainda não descobri o que é ser queniano. Nem se vou ser autorizado a ficar no país onde nasci. Estou a caminhar numa corda bamba e devo dizer que gosto. — Tens convicções, pá — disse Dan. — E, pensando bem, também é tudo o que tenho. Mas chega. — E a seguir, agora que este livro está praticamente no prelo? — perguntou Allie. — Estou interessado nas negociações com vista a pôr fim à guerra com os shifta — disse Rabindrah. — O governo parece demasiado optimista a esse respeito. As pessoas a norte daqui são uma raça diferente. Em Wajir ou Garissa, basta olhar para os traços físicos e o estilo de vida delas ou ouvi-las falar ou rezar. As construções de telhados planos e as mesquitas podiam ser na península Arábica. Pode haver uma suspensão temporária das hostilidades, mas esses nómadas e bandidos somalis não vão mudar. São como senhores da guerra medievais e é assim que vão continuar. — Concordo — disse Dan. — Só que, hoje em dia, já não usam espadas, camelos e setas envenenadas quando se lançam em assaltos ao gado ou expedições de caça ilegal. Agora têm armas e camiões para defender o estilo de vida deles. — Têm medo, se entregarem as armas, que o governo lhes fique com as terras e os poços e os dê aos agricultores do Sul. Principalmente aos quicuios, porque são os mais influentes. Se isso acontecer, os territórios do Norte ficarão isolados e o estilo de vida dos nómadas tem os dias contados. É por isso que estou a planear passar alguns dias em Wajir, falar com os somalis e com os rendille e os boran da região. Ouvir a versão deles sobre o que se está a passar. — É uma região perigosa — disse Sarah, uma certa inquietação formando-se-lhe no espírito. — Não me vou demorar muito tempo por lá — disse Rabindrah. — E depois ando a congeminar outro projecto que gostava de discutir convosco. — Que é? — Allie ficou curiosa. — É uma ideia que consegui vender ao John Sinclair. Gostava de escrever um livro sobre as tribos nómadas do Norte do Quénia. As pessoas que ainda vivem segundo os antigos costumes, apesar da educação e da Independência e de todas as outras mudanças. Gostava de viver e viajar
com eles durante um ano, compreender os seus costumes, dieta, rituais, relações sexuais e familiares no seio da estrutura tribal. Esse género de coisa. São exóticos, belos, fotogénicos e a região que habitam é magnífica e selvagem. Nunca ninguém escreveu nada de sério sobre eles. Existem ensaios científicos antigos, mas não há livros ilustrados que possam conquistar um público mais alargado. — É uma ideia genial — disse Dan, erguendo o copo. — Brindemos a isso! — Um ano com os nómadas — disse Allie, pensativa. — Podes já deixar um depósito pelo uso do nosso duche. E há-de ser caro. Estou a imaginar-te a entrar por aqui adentro aos tombos, a tresandar a pele de camelo, coberto desses piolhos famintos e a cheirar a excremento de vaca. Espera para ver como é depois de uma semana a urina e leite coalhado… credo! Lá se vai esse impecável vinco nas calças e as camisas engomadas. — Esfregou a manga da camisa cara dele entre o indicador e o polegar, com olhos sorridentes. — Vais ser o escravo do Dan quando ele te perguntar se queres um whisky ou uma cerveja gelada. Ou mesmo um copo de água pura. Vai ter graça, meu lindo. — O problema é que preciso da vossa ajuda — disse Rabindrah. — Não sou antropólogo, como sabem. Quero que isto seja um retrato fiel da região, mas o texto será escrito para um público leigo. Como o nosso livro sobre os elefantes. E não pode passar sem ilustrações. Fotografias. — Ah — disse Allie —, agora estou a perceber. — Gostava que fosse a Sarah a fazer as imagens — disse Rabindrah. — Mas ela teria de se ausentar daqui de tempos a tempos, por vários dias de cada vez. Se houvesse uma grande celebração como uma circuncisão ou um casamento, por exemplo. Não sei se os compromissos dela aqui permitiriam uma coisa dessas. Mas aplicar-se-ia o mesmo acordo… uma parte das receitas de venda seria doada ao vosso fundo de pesquisa. Acham que seria viável? — Acho que a Sarah é que deve dizer-nos se quer fazer essas fotos — disse Allie. — Se vais andar ocupado nisso durante um ano, é capaz de funcionar. — Mas compreendeu pela expressão de Dan que ele tinha dúvidas. Tentou adiar a discussão, sabendo que o assunto exigia reflexão da parte de todos. — Já pensaste que podes não ter dinheiro para pagar os honorários dela? Depois de este primeiro livro ser publicado, quem sabe se ela não vai ser bombardeada com propostas? Os teus editores consideraram a questão? — Estão doidos com as suas imagens. — Rabindrah virou-se para Sarah. — Sabe muito bem. O John Sinclair viu os seus retratos de Dublin e as fotos da manyatta do Erope. Este é o tipo de livro que vai mostrar a beleza e o sofrimento deste povo. Que é que diz, Sarah? — É muito tarde agora para discutir isso e demasiado cedo para tomar decisões — disse ela, levantando-se. — Além disso, preciso de discutir o assunto aturadamente com o Dan e a Allie. Tenciona vir comigo e com o Erope de manhã? — Não, acho que não. — Rabindrah ficou desapontado com a reacção dela. — Quero deixar estas últimas correcções ao texto com o Dan para ver se ele aprova. E, enquanto ele se ocupa disso amanhã, vou dar um salto a Wajir. Parto muito cedo. Quero fazer o máximo possível da viagem antes de o calor me pôr a cabeça e o resto do corpo em água. — Não precisas de autorização para andar a deambular por lá? — perguntou Dan. — Organizei dois dias numa casa de hóspedes com segurança governamental, o que quer que isso signifique — respondeu Rabindrah. — E tenho um guia da região. Embora desconfie que às tantas vou ter de me livrar dele se quiser ouvir opiniões autênticas.
— Tem cuidado, é o meu conselho. — Dan abanou a cabeça. — Calculo que passas novamente por aqui no regresso a Nairobi? — Se não for inconveniente, passo. Dá-te tempo para anotares alguma coisa que não aproves no texto. E para os comentários da Sarah sobre a paginação. É que depois já não podemos fazer alterações. — Rabindrah hesitou, um pouco acanhado. — Houve alguma coisa que lhe tenha saltado imediatamente à vista, Sarah? — Vamos deixá-los à vontade para discutir isso — disse Allie, levantando-se da cadeira de campanha e fazendo sinal a Dan. — Tem cuidado, Rabindrah. Escrever sobre os problemas dos bandidos somalis não merece que arrisques a vida. — Não quero discutir essa ideia nova — disse Sarah, quando ficaram a sós. — Tenho passado muito tempo fora ultimamente e preciso de me concentrar no meu trabalho. Recuperar o tempo perdido e mostrar gratidão pela consideração que me demonstraram nos últimos dezoito meses. — Peço desculpa por ter abordado assim o assunto, sem reflectir sobre todas as implicações. Mas seria um projecto extraordinário para realizarmos juntos. — Estou-lhe muito grata — disse Sarah, um pouco constrangida. — Tem sido incrivelmente generoso e devo-lhe muito por me ter ouvido e… — Não me deve coisa nenhuma — disse Rabindrah. — Mas uma das tribos mais belas e coloridas está à mão de semear e estava a pensar se o Erope podia arranjar maneira de eu falar com alguns dos samburu daqui. Talvez pudéssemos começar… eu, quero dizer… por falar com as pessoas da manyatta dele. — De manhã pergunto-lhe — disse Sarah, contente por poder dar um contributo. — Se ele gostar da ideia, talvez possa visitar os chefes do clã e a família dele.
Sarah não ouviu Rabindrah partir antes de amanhecer, mas ele tinha deixado uma mensagem de agradecimento e arrancado para norte. Erope estava à espera quando ela saiu da cabana, pronta para o dia de trabalho. — Pensei que o mahindi ia connosco — disse ele, olhando para ela de soslaio quando Sarah pôs o carro a trabalhar. — Pensei que ele tinha vindo vê-la e passar uns tempos por cá. — Foi a Wajir — disse ela, levemente irritada com o tom insinuante dele. — Falar com camelos em lugar de elefantes. — Mau plano. — Erope cuspiu no pó para reforçar a sua reprovação. — Precisa que a sorte o acompanhe por essas paragens, caso contrário não tarda a juntar-se aos outros esqueletos no deserto. E são muitos. Sarah carregou no acelerador para expulsar do espírito a arrepiante imagem. O desapontamento por a estadia de Rabindrah ter sido breve tinha-a apanhado desprevenida. — Ele quer escrever um livro sobre as tribos do Norte — disse ela. — Incluindo os samburu. Pode ser útil, Erope. Ajudaria as pessoas a compreender o vosso estilo de vida e a respeitá-lo. E pediu-me para tirar as fotografias. Queria saber se podes levá-lo lá para conhecer a tua família. O teu clã. — Vou perguntar aos chefes. — Erope não pareceu muito entusiasmado. — Se a Sarah for com ele, não devem recusar porque estão gratos pelos alimentos que lhes levou. Mas, três dias mais tarde, Rabindrah não tinha dado sinais de vida. No fim da semana, já Sarah
tinha começado a sentir-se ansiosa e, por fim, confidenciou os seus receios a Allie. — Não achas que já devíamos ter tido notícias dele? — perguntou ela. — Uma mensagem pelo rádio ou assim? — Quando não há notícias é porque está tudo bem — disse Allie alegremente. — Se lhe tivesse acontecido alguma coisa, já tínhamos sido informados. Que é que vais fazer a respeito da proposta do novo livro? — Não sei — disse Sarah. — Ainda não estou preparada para pensar nisso. — Bem, eu e o Dan temos estado a pensar — disse Allie. — Porque tu tens um talento admirável para a fotografia, minha linda. E nós não queremos inibir-te. Por isso, se achares que queres partir para outra, dedicar-te a uma actividade puramente criativa, tens o nosso aval, é essa a nossa posição. — Não! — Os olhos de Sarah transbordavam de consternação. — Não, Allie, quero continuar a estudar os elefantes. Ficar aqui contigo e com o Dan. É o meu trabalho e a minha casa e não consigo imaginar-me noutro lado. Se for possível passar algum tempo, no próximo ano, a tirar fotografias para o Rabindrah, então sim, gostava muito. Mas a minha vida é neste acampamento. — É melhor reflectires sobre isso — disse Allie, troçando dela. — Continuar aqui com dois cientistas caquécticos, a dormires sozinha na tua cabana e a conduzires o teu Land Rover não tem comparação com um abrigo infestado de pulgas e andar de camelo com o pimpão do Rabindrah. — Estava a rir-se com gosto quando se afastou no carro para ir procurar o seu grupo de elefantes, não dando a Sarah hipótese de responder. Durante o dia, a temperatura subiu e o único refúgio que Sarah encontrou foi no duche. Mas durou pouco. Dan tinha começado a racionar a água e a sensação de frescura foi breve. Mesmo o ar nocturno estava inexoravelmente quente e seco. Sarah continuava acordada às primeiras horas da manhã, deitada nua na cama, o mosquiteiro e o lençol afastados para o lado enquanto se debatia para arranjar uma posição mais fria e uma ponta de ar fresco. Lá fora, ouvia um coro de rãs e, à distância, um leão a chamar pela companheira. O ruído pouco habitual no telhado de palhiço fê-la sentar-se na cama, sentindo um formigueiro na nuca ao tentar analisar o som e o cheiro à sua volta. O odor de poeira a ser levantada, o som de grandes gotas de água a tamborilar sobre o solo seco e a percutir no palhiço, correndo pela caleira de metal e respingando no barril de água ao lado da cabana. Chuva! A chuva tinha chegado. Sarah levantou-se da cama e abriu a porta. Lá fora, uma cascata de água obscurecia-lhe a visão e, meia hora depois, a primeira pequena poça tinha-se transformado num lago que avançava para a soleira. Perscrutou as bátegas de chuva e viu o brilho de uma candeia. Dan estava a gritar e ela enfiou um par de calções e uma camisa e correu para a chuva torrencial quando o ribombar de um primeiro trovão abanou o acampamento. No escritório, Allie estava já a deslocar caixas e arquivos, arrastando a mobília para o meio da sala, descendo os estores de lona e prendendo-os aos caixilhos da janela. O pessoal do acampamento apareceu, encharcado até aos ossos e a sorrir radiosamente, os seus rostos escuros reluzindo, molhados, à luz artificial. Foram buscar oleados com que cobriram as cadeiras, com as almofadas já húmidas, assim como a velha máquina de escrever, o radiotelefone e a confusão de papéis ainda na secretária. Por fim, quando parecia que não tinha escapado nada, foram todos plantar-se debaixo do dilúvio, estendendo os braços e deixando a doce água correr-lhes para a boca e para os olhos e sobre o cabelo e a pele, rindo, batendo palmas de contentamento e saltando nas poças como crianças.
Foi Allie quem primeiro recuperou o bom senso. — Estou com frio — disse ela, estreitando os braços em redor do corpo pequeno. — Isto está muito bem para totos na costa, mas eu prefiro um whisky e uma toalha seca e depois cama. Voltaram para o caos do edifício principal e Dan serviu whisky em copos de metal. — À estação das chuvas — disse ele. — Esperemos… Mas o resto das suas palavras foi abafado por um som que começou como um ribombar grave e se tornou num rugido à medida que o rio cheio transbordava das margens, cobrindo as planícies arenosas, galgando as terras, impelindo troncos de árvore na noite negra, derrubando ramos mais baixos, dispersando pequenas criaturas, destruindo os delicados ninhos dos tecelões e os refúgios dos servais nos troncos, enchendo as depressões circulares dos buracos dos javalis e desfazendo os montes dos formigueiros. Todas as coisas se desmoronavam e caíam perante a investida da água espumosa, indefesas ante a sua força imparável. Do outro lado da vedação, soou um ruído áspero quando parte do talude desabou na torrente e foi transportado, alterando para sempre a forma e o relevo do terreno. Os relâmpagos rasgavam a cortina de chuva, seguidos de uma pressaga acalmia na tempestade e logo por outro trovão tonitruante. Com água pelos tornozelos, Sarah sentiu de súbito qualquer coisa a atacar-lhe os pés e deu um salto, gritando de susto. Seguiram-se risos quando Dan apontou a lanterna para o chão e iluminou o recheio da cabana da cozinha, à deriva na água lamacenta. Tachos e panelas, chaleiras, coadores e tigelas, tudo estava a boiar e uma batata ou uma cenoura ocasionais passavam à tona até que, por fim, o ruído diminuiu e a água parou de subir. — É melhor dar uma vista de olhos aos veículos — disse Dan, desaparecendo na noite. Allie e Sarah ficaram à espera de uma exclamação de consternação ou de um som de alívio, assustando-se quando Dan estacou subitamente e lhes indicou com a lanterna que deviam aproximar-se. Em pé, do outro lado da vedação, olhando para o acampamento com os pequenos olhos sábios, estavam dois dos elefantes de Sarah. Ela caminhou na direcção deles, muito lentamente, esperando que reconhecessem o seu cheiro e tentando não os assustar. Foi Lily quem projectou primeiro a tromba, enrolando-a nas estacas de madeira, a curva da sua boca sugerindo um sorriso ao soprar suavemente sobre a mão esticada de Sarah. A jovem cria aproximou-se então e tocou-lhe no braço. Por um momento interminável, ficaram juntas sob as gotas de chuva e depois a mãe barriu uma mensagem e recuou, afastando-se silenciosamente na escuridão. Quando amanheceu, o céu estava coberto de nuvens, pesadas e cinzentas, e o ar estava mormacento. Sarah trabalhou ao lado de Allie em silêncio, limpando superfícies, secando livros e registos, colocando a mobília afastada das janelas e das portas, para o caso de se abater outro dilúvio. Os preciosos mapas de Dan tinham sido arrancados das paredes e havia vários pionés coloridos espalhados pelo chão, lembrando dolorosamente a tempestade a quem, incauto, caminhasse pela sala de pés descalços. Sarah apanhou os papéis destruídos e colou-os cuidadosamente. Em seguida, meteu os pionés numa pequena lata, para que Dan voltasse a pô-los nos seus lugares. Não seria tão cedo. O pessoal do acampamento assobiava e cantava enquanto varria a lama da cabana da cozinha e dos celeiros, tentando decifrar fragmentos de etiquetas de papel anteriormente coladas às latas e aos frascos. Dan verificou os veículos e declarou que estavam em condições mas o rádio não estava a funcionar. Depois do pequeno-almoço, partiram no Land Rover dele, procurando apurar a extensão dos estragos causados pela tempestade e localizar alguns dos seus elefantes. Mas os trilhos estavam
inundados de detritos e as estradas traiçoeiramente molhadas e escorregadias. Depois de empurrarem o veículo para fora de duas covas e as primeiras gotas de chuva respingarem no párabrisas, desistiram da expedição e voltaram ao acampamento. — Tiveste uma visita e tanto ontem à noite — disse Dan, enquanto derrapavam sobre o caminho enlameado. — Acho que vieram ver se estavas bem, miúda. — Nem pareces tu, com esses rasgos de imaginação — disse Sarah alegremente mas o seu coração encheu-se de deleite, pois as palavras dele confirmavam os seus próprios sentimentos a respeito dos elefantes. — Está a amolecer — disse Allie, piscando o olho a Sarah. — A chuva empapou-lhe o cérebro. Esperemos que seja para durar… não me dava mal com este pendor romântico. Choveu durante três dias e não tardou que tudo ficasse molhado e bolorento. Insectos que Sarah nunca tinha visto emergiam do palhiço e entravam do exterior, alojando-se nas suas prateleiras, armários e sapatos. A rabugice de Dan ia aumentando, ao tentar em vão reparar o rádio e secar os apontamentos, praguejando ao ver as folhas encharcadas desfazerem-se. — E se tentássemos dar um salto a Isiolo esta tarde? — sugeriu Allie. — A estrada não deve estar muito má e há coisas que o pessoal diz que são indispensáveis. — Eu e a Sarah podemos tentar — disse Dan. — Dá-me a lista que eu vejo até onde conseguimos chegar. A viagem decorreu sem grandes incidentes e conseguiram chegar à vila depois de uma única paragem para colocar ramos debaixo das rodas e retirar o Land Rover de uma vala. — Tenho estado a tentar contactá-los pelo rádio — disse o comissário da polícia local. — Está aqui um indivíduo indiano que diz que é vosso amigo. Um jornalista que se pode dar por feliz por estar vivo. — Que é que lhe aconteceu? — Dan franziu a testa. — Dois dos meus askaris encontraram-no, atolado a norte de Wajir com alguns buracos de bala no carro. Sem nada para comer e beber e um gari amolgado. Ao que parece, andava a seguir um camião cheio de shifta. Conseguiu falar com eles durante algum tempo, antes de um deles se irritar e disparar contra ele. Não sei como escapou sem um tiro na cabeça. — Mas está magoado? — Sarah tentou mostrar-se calma. — Tem vários cortes. — O comissário virou-se para Dan. — Não nos agrada muito ter jornalistas por aqui, a agitar assim as coisas. Se o tivessem matado ou mandado pelos ares, estaríamos a braços com um incidente sério e já nos chegam os problemas que esses somalis nos dão. Espero que não falte muito para um acordo de paz qualquer e acho que seria boa ideia se a sua equipa se cingisse ao estudo dos elefantes e deixasse os bandidos connosco. — Ele não faz parte da minha equipa — retorquiu Dan, irritado. — E não fazíamos ideia onde ele estava, nem do que andava a fazer. Não sou responsável pelas acções absurdas da imprensa de Nairobi. E não me agrada a ideia de o meu centro de investigação ser usado para outro fim que não seja estudar elefantes. — Virou-se para Sarah. — É melhor veres se encontras o teu amigo, Mr. Singh, enquanto eu avio a lista da Allie.
— Tenho de deixar o meu carro aqui — disse Rabindrah, quando Sarah o encontrou. — Tem buracos em pontos vitais e o tio Indar vai cá mandar um mecânico.
— Óptimo. Mas desde já lhe digo que o Dan não está nada satisfeito. O rosto de Rabindrah apresentava cortes de vidros e o carro estava crivado de buracos de bala. Sarah sentiu uma reviravolta no estômago ao aperceber-se de como ele tinha estado perto da morte. Não disseram nada até chegarem ao acampamento ao fim da tarde e descarregarem as provisões. Dan dirigiu-se então a Rabindrah. — A nossa situação aqui é especial — disse ele. — Ninguém põe restrições aos nossos movimentos enquanto seguimos as manadas e realizamos a nossa investigação. Não quero ver o meu trabalho comprometido por um espertalhão que usa esta base para escrever artigos políticos. O Comissário Distrital, a polícia e o Departamento da Vida Selvagem aceitam plenamente a nossa presença aqui porque somos cientistas e não nos envolvemos na política. Não permito que nenhum visitante use este acampamento para outra actividade que não seja o estudo dos elefantes. E, se queres começar a escrever sobre a situação política da região, é melhor arranjares outro sítio. Porque isto aqui não é ponto de partida para conversas com os shifta. Entendido? — Não tive intenção de implicá-los em nada do que fiz — respondeu Rabindrah. — E muito menos sugeri que fazia parte da vossa organização. Disse simplesmente a um dos askaris que tinha de voltar a Buffalo Springs para pegar nas minhas coisas e, infelizmente, eles deduziram que eu era um dos investigadores. — Pois, mas devias ter tornado mais claro que não tinhas qualquer ligação com o meu acampamento — disse Dan. — Os somalis não têm criado aqui senão o caos, matando, ferindo e estropiando pessoas e animais. Mesmo que haja um acordo político, não acredito que estas escaramuças acabem num futuro próximo. Os shifta são ladrões e assaltantes de gado por natureza e tradição e, por mais folhas de papel que sejam assinadas, não vão mudar. — Mas têm uma história que merece ser contada — contrapôs Rabindrah. — É verdade que alguns deles são bandidos violentos que matam por marfim e chifres de rinoceronte sem a mais leve hesitação. Mas há vaqueiros e comerciantes normais, casados e com filhos, e velhos com necessidades modestas. E em breve vão começar a morrer à fome porque se tornaram um povo espoliado, desde que os ingleses traçaram uma fronteira arbitrária no mapa. O governo queniano apoderou-se de parte das pastagens que eles usaram durante séculos e deram-nas a agricultores de outras tribos. E com o tempo vão apoderar-se de mais. Os somalis não são autorizados a integrar-se aqui no Quénia e também já não fazem parte da Somália. Ninguém os quer. Ninguém se esforçou seriamente por perceber quem eles são nem onde pertencem. Os quenianos comuns estão a pagar esse preço e acho que o vão pagar durante muito tempo, a não ser que se faça alguma coisa a este respeito. — Caramba, homem, os somalis já lutavam por pastagens e água com os boran, os rendille e outros nómadas, muito antes de os ingleses aqui chegarem — disse Dan, impacientemente. — Não tentes dizer-me que os chefes deles alguma vez se sentaram diante de uma chávena de chá ou de um gin tónico a tentar descobrir onde pertenciam. — Não, mas nunca pretenderam assumir uma posição de superioridade moral. Partiram simplesmente para a luta com lanças e escudos pelo que consideravam ser o seu território, e os mais fortes venceram. Nós, contudo, apresentámo-nos como uma autoridade moral em termos de ordem social. Tentámos transformar irracionalmente a maneira de viver deles, ao ponto de ser irreconhecível, e agora ficamos surpreendidos com o resultado. — És capaz de ter razão nesse aspecto — disse Dan, fatigadamente. — Mas não me compete
tomar partido nisso. Não passo de um velho cientista chato que procura arranjar uma maneira de proteger parte do que resta deste frágil habitat. — Lamento muito se criei problemas — disse Rabindrah rigidamente. — Já contactei o meu tio e ele vai mandar um mecânico amanhã para reparar o meu carro. Entretanto, vou pegar nas minhas coisas e alojar-me na hospedaria ou banda mais próxima, se a Sarah não se importar de me dar boleia. — Não há necessidade disso — disse Dan. — És muito bem-vindo aqui até o teu transporte chegar. Desde que respeites as regras da casa. Encontramo-nos para uma bebida antes do jantar. Afastou-se em largos passos em direcção à zona residencial, deixando Rabindrah e Sarah mergulhados num silêncio constrangedor. Foi Sarah quem o quebrou. — Dispararam contra si? — Dispararam. Estava com eles há dois dias, num acampamento improvisado depois de Wajir. Dormia numa das cabanas, se é que se lhe pode dar esse nome. Umas esteiras entrançadas presas a uns paus. Tinham cabras, meia dúzia de vacas escanzeladas e uns camelos. Mas estavam dois camiões estacionados no mato a alguns metros de distância, carregados de armas automáticas. Russas. É de onde lhes vem o armamento… dos soviéticos, entrando pela Somália. — Este governo não tem hipótese de patrulhar essa fronteira — disse Sarah. — Toda a situação é desesperada. — Adiante, parecia que estava a correr tudo bem entre mim e eles, se bem que andassem muito nervosos. Até que estalou uma briga entre dois dos homens por causa de uma pergunta que eu fiz sobre as armas. Seguiu-se uma luta e eu percebi que era tempo de partir. Sem demora. Larguei a toda a velocidade e eles desataram aos tiros ao carro. Furaram um pneu e destruíram as janelas de trás e o radiador. Por pouco acertavam-me na cabeça. Mas não me seguiram e, alguns quilómetros mais à frente, dei um jeito ao carro e conduzi mais um bocado até ele dar o berro e aparecer uma patrulha. E aqui estou. Foi pena a reacção do Dan, sinto muito. — Também eu — disse Sarah. — Mas ele tem razão. Está hospedado aqui connosco para escrever sobre elefantes. Devia ser suficiente. — E que quer dizer suficiente? — perguntou ele, numa voz baixa mas intensa. — Essa gente tem uma história e está numa situação desesperada. As coisas não são tão simples como imagina. — Não me interessa que sejam simples ou não — disse Sarah. — Já vi os resultados dos ataques dos shifta quando caçam ilegalmente. Vi elefantes mortos com lanças ou a tiro e deixados a apodrecer, depois de lhes cortarem o marfim das cabeças. Os shifta matam homens e castram-nos, roubam e violam mulheres de outras tribos e levam o gado também. São um bando de assassinos sanguinários e não me deixo comover por circunstâncias atenuantes. — Que é que acha então que um jornalista deve ser? Um escritor de contos de fadas? Alguém que assiste a histórias de fome, práticas injustas e preconceitos e pinta tudo com bonitas pinceladas no papel porque o poder dominante diz que deve ser assim? — Debruçou-se e pegou-lhe no braço, a sua pressão magoando-lhe a pele. — Pensei que fosse uma pessoa diferente. Quando a conheci em Nairobi, vi qualquer coisa em si que me pareceu excepcional. Vi a sua coragem, a determinação em não deixar que a corrupção e a ganância vencessem a justiça. E agora está a dizer-me que eu não devo procurar denunciar esses mesmos males, seja em que situação for. — Não estou a sugerir nada disso. — Sarah levantou-se, confusa e defensiva. — Não tenho nada com as suas ideias nem com aquilo que escreve e não tenho razões para tecer comentários. Com
licença. Vou tomar um duche. Até logo. Deixou-o a dizer mal da vida dele, sentado num silêncio irritado e subitamente consciente de que estava extremamente cansado. E com frio. Tiritou e esfregou energicamente os braços com as palmas das mãos, tentando aquecer-se. Depois, foi à procura de água quente para tomar um duche. O ambiente antes do jantar era tenso. O ar formigava de mosquitos e insectos voadores que tinham surgido em nuvens depois da chuva. Rabindrah estava calado. Os seus olhos, normalmente iluminados de interesse por tudo à sua volta, pareciam baços e inexpressivos. Estava com uma camisa de manga comprida e um casaco de safari e tinha um cachecol ao pescoço. — Está vestido para a montanha — comentou Sarah. — Está terrivelmente quente e abafado para esses agasalhos todos. — Deve ser porque não comi por lá muitas refeições de jeito — disse Rabindrah. — Tenho o corpo todo moído de dormir no chão. — Isto deve ajudar — disse Dan, passando-lhe um whisky bem servido e sorrindo radiosamente, na tentativa de ultrapassar a acrimónia anterior. — Desconfio de que também não bebeste por lá whisky como deve ser. Mas Rabindrah não terminou a bebida nem comeu grande coisa do jantar. Imediatamente depois da refeição, retirou-se, alegando que a estadia no Norte o tinha deixado derreado. — Sou capaz de ter sido um tanto precipitado esta tarde — disse Dan. — Vendo bem as coisas, todos temos os nossos métodos de tentar encontrar um equilíbrio entre o homem e o meio ambiente. Entre as exigências do progresso e os antigos costumes nómadas. — E podemos falhar — disse Allie. — Porque não pensamos duas vezes quando se trata de criar um sistema rígido que obriga as pessoas a alterar os seus costumes e a viver para um futuro incerto, definido principalmente pelos políticos. E o Rabindrah compreende a necessidade de denunciar tudo isso. — Virou-se para Sarah. — Que é que pensas? — Quando ele começou a fazer perguntas sobre este projecto, fiquei impressionada. Mas depois tudo se tornou pessoal e já não me agradou tanto. Pensei que ele andava atrás de escândalo e sensação. Mas agora acredito que é uma pessoa íntegra. — Sarah reflectiu por um momento, querendo usar as palavras correctas. — Ele não é do tipo que opta pela solução mais fácil ou segue a linha oficial, só para agradar aos patrões ou aos leitores. Acho que está genuinamente a tentar chegar à essência do que está a acontecer neste país. E não tem medo de o fazer. Retiraram-se cedo. Sarah apagou a candeia assim que ficou pronta para se deitar, numa tentativa de mitigar a invasão de insectos que andavam pelo palhiço do telhado e se infiltravam pelas frinchas da porta e das janelas, atraídos pela luz. Adormeceu rapidamente e, a princípio, não ouviu as pancadas na porta. Mas, alguns minutos depois, penetraram no seu sono e ela sentou-se na cama, tensa e ansiosa. — Sarah? Levantou o mosquiteiro e enfiou os pés nas sandálias. Rabindrah estava à porta, muito agasalhado e com uma toalha pelos ombros, como se fosse uma capa. Ela olhou-o, surpreendida. — Acho que estou doente — disse ele, a bater os dentes. — Sim, tenho a certeza. E estou cheio de frio. — Tenho aqui um cobertor no armário — disse ela. — Há-de estar outro numa caixa em cima do roupeiro na sua cabana. Há mais na arrecadação, mas devem cheirar a mofo. Pegando na lanterna, procurou a chave da arrecadação. Pouco depois, estava na cabana dos
hóspedes, munida de mais três cobertores. Rabindrah meteu-se debaixo da roupa, a tremer e a bater os dentes. — Malária — disse Sarah. — Já vi o meu pai com ela várias vezes. Foi por isso que ele deixou o Quénia… os médicos disseram que não podia voltar a apanhá-la. Apesar dos débeis protestos dele, ela sentou-se ao seu lado, dobrando os cobertores e vendo-o enterrar-se dentro do monte que tinha criado. Mas as tremuras não paravam. — Vou chamar a Allie — disse ela ao cabo de uma hora. — De certeza que ela tem dawa para isso. — Não, por favor, não a acorde — disse Rabindrah. — Já dei maçada que chegue. Mas Sarah já se tinha afastado. Voltou com mais cobertores e uma caneca de chá quente e insistiu para que ele tentasse beber. As mãos dele tremiam e ela viu-se obrigada a segurar-lha contra os lábios e a limpar-lhe a cara quando lhe escorreram da boca algumas gotas de líquido. Momentos depois, ele vomitou tudo no chão e deitou-se de novo, sussurrando desculpas. Allie chegou com um termómetro. — Oh, meu Deus — exclamou. — Quase trinta e nove. E é capaz de subir mais. O rádio está avariado, não podemos chamar ninguém. Mas eu tenho medicamentos, apesar de não me agradar nada dar-tos sem o aval de um médico. O mais certo é termos de te levar ao hospital mais próximo de manhã. Entretanto, temos de tentar manter-te agasalhado. E já vamos tentar baixar a temperatura. Era uma tarefa impossível e, em várias ocasiões, ele tremia tão violentamente que Sarah teve de imobilizá-lo. Tinham passado três horas quando os arrepios pararam e Rabindrah ficou mole e exausto, respirando superficialmente. Depois a febre subiu e ele começou a transpirar, dando voltas na estreita cama de lona, afastando os cobertores e falando numa língua que Sarah não reconheceu. Mudaram-lhe várias vezes os lençóis até esgotarem as mudas secas. Dan apareceu quando os arrepios recomeçaram e ajudou a envolvê-lo em toalhas. A certa altura, ele tentou levantar-se e dirigir-se à tenda da sanita mas estava demasiado fraco para andar, mesmo com o apoio de Dan. Allie foi buscar um penico e Rabindrah desviou a cabeça, envergonhado, o que levou as mulheres a saírem. Quando amanheceu, ele estava a entrar e a sair de um sono agitado. Dan tirou-lhe a temperatura e disse que eram horas de transportá-lo ao hospital. Mas Allie discordou. — Está demasiado doente para viajar — disse ela. — Sou a favor de lhe darmos uma dose forte de cloroquina. Mas às tantas é melhor começar com uma injecção, porque o mais certo é ele não conseguir reter comprimidos. Sarah, temos de lavá-lo outra vez. Pode ajudar a baixar-lhe a febre. Lavaram-no com água fria e polvilharam-lhe as costas com talco, embora a sua pele estivesse tão sensível e febril que o mais leve toque o fazia gemer. Allie tentou dar-lhe a beber pequenos goles de água mas ele não conseguia reter quase nada no estômago. À medida que o dia ia aquecendo, Rabindrah começou novamente a tiritar e Sarah correu a buscar os cobertores e os lençóis que estavam a secar ao sol. Dan partiu do acampamento em busca do médico missionário reformado que vivia perto de Isiolo e regressou com provisões de quinino. — Se ele não reagir à cloroquina nas próximas três ou quatro horas, temos de enchê-lo com isto — disse ele. — Caso contrário, pode ficar com problemas de respiração. O ciclo recomeçou ao fim da tarde e os lençóis ficaram encharcados, sendo mudados e encharcando-se mais uma vez. Quando anoiteceu, Rabindrah estava desfeito, deitado na cama de lona, cheio de dores nas pernas e nos braços e com a cabeça a latejar de febre. Mas Allie insistia em virá-lo e em passar-lhe amiúde uma esponja, secando-o em seguida. O velho médico
missionário chegou e o seu cerrado sotaque escocês e modos suaves acalmaram-nos a todos. — Se a febre não tiver diminuído de manhã, têm de levá-lo a Nanyuki — disse ele. — Ou arranjar maneira de ele ser levado de avião de Isiolo ou Samburu. Quer-me parecer que têm à vossa frente uma noite difícil. Já lhe administrei o quinino e vamos ter de esperar para ver. Mas ele é novo e forte e estou convencido de que amanhã já terá passado o pior. Mais seis ou oito horas hão-de fazer toda a diferença. Rabindrah continuou ora a tiritar, ora a transpirar e Sarah dava-lhe a beber água por um contagotas e mantinha-lhe os lábios humedecidos com vaselina. Estava a sentir dificuldades em manterse acordada, começando a sentir os efeitos da noite, e doíam-lhe as articulações, de fadiga, revezando-se com Allie para amontoar sobre ele cobertores e tirá-los quando a febre voltava a subir. Enchiam bacias de água, torciam os panos macios e as esponjas usados para o arrefecer, punham os lençóis a secar e iam buscar mais roupa de cama. Durante todo o dia e toda a noite, fizeram-lhe companhia à vez, esperando que as tremuras recomeçassem. Pouco antes de amanhecer, Sarah tinha adormecido na cadeira, a cabecear, o corpo descaído de lado, quando Allie a abanou suavemente. — A febre diminuiu — sussurrou ela. — Ele está um farrapo, mas o pior já passou. Vou-me deitar durante duas horas e acho que podes fazer o mesmo. Sarah acenou com a cabeça, invadida por um estranho sentimento de exultação que a submergiu, enquanto se espreguiçava para desemperrar os braços e as pernas. Doía-lhe o pescoço e não conseguia compreender por que razão lhe apetecia chorar e rir ao mesmo tempo. Ficou a olhar para Rabindrah, para os seus olhos fechados e pestanas pretas. Ele tinha o cabelo espetado em tufos negros contra a almofada e o seu rosto parecia coberto de uma palidez mortal, por baixo de uma barba escura de vários dias. Sobre o lábio superior, tinha uma linha de gotas de suor e ela achou que a sua boca tinha a aparência cinzelada e perfeita de uma estátua clássica. Quando lhe pousou a mão na testa, a sua pele estava fria e levemente húmida. Baixou-se, inclinando-se sobre ele até sentir a sua respiração, leve mas regular, contra a face. Ele tinha os olhos fechados e Sarah achou que ele não se apercebeu quando o beijou, lenta e suavemente, nos belos lábios. À porta, sem ser vista, Allie acenou com a cabeça consigo mesma, meteu as mãos nos bolsos e foi à procura de Dan.
CAPÍTULO 14
Rodésia, Maio de 1967 cintilava com a poeira que reduzia a visibilidade a poucas centenas de metros e Aestrada obscurecia a abóbada azul e baça do céu. Há mais de uma hora que Lars não se cruzava com outros veículos e esse agradável sossego permitia-lhe ir sozinho com as suas reflexões. Tinha passado a noite anterior em Salisbury, onde o bar e a sala de jantar do hotel estavam cheios de pessoas a beber gin com limão, whisky e canecas de cerveja, prontas para a sucessão de festas no clube e em casa umas das outras. Mostraram-se hospitaleiras e cordiais, interessadas em conhecer um estrangeiro na cidade e um pouco efusivas de mais na sua visão optimista a respeito do futuro do seu país. Uma rapariga de cabelo comprido escuro e uma boca convidativa instalou-se num banco adjacente no bar e começou a seduzir Lars com um entusiasmo declarado que o fez sorrir. O facto de ele ser do Quénia tornou-se tópico de conversa e seguiu-se uma acesa discussão sobre a maneira como o país e a comunidade branca tinham sido traídos pelo governo britânico. — Faz bem em vir para sul. — Um homem jovial, de faces vermelhas e olhos como limalhas de granito, colocou um gin tónico diante de Lars. — Aqui as coisas hão-de durar, não vamos baixar os braços como cobardes e entregar tudo aos cafres. Olhe à sua volta nos próximos dias, homem. Vai ver como este país prospera e as coisas continuam em boas mãos. De certeza que arranja trabalho, se quiser ficar. Não faltam aqui pessoas que deixaram o Quénia e encontraram um novo futuro na Rodésia. Neste país, temos tudo… cobre, ouro, tabaco, chá, algodão, café, açúcar e gado excelente. O Ian Smith há-de levar-nos a bom porto. Há-de chegar a um acordo qualquer com os pretos. E o governo britânico, no fim, não vai fazer muito barulho porque não quer os comunas a controlarem tudo aqui. Mas Lars achou as suas visões políticas de África alarmantemente isolacionistas e, pouco depois do jantar, recolheu ao quarto. Tinha tentado contactar Jan van der Beer, ao princípio da noite, mas ninguém atendera o telefone. Quando falou com a operadora, esta confirmou que o número estava correcto. Era uma avaria na linha, disse ela, mas não lhe soube explicar porquê nem indicar quando estaria novamente a funcionar. Lars ligou para Hannah em Langani. — Logo de manhã vou partir para a propriedade do Kobus — disse ele. — Não consegui contactar os teus pais por telefone… o telefone está avariado, o que, pelos vistos, é frequente. A Lottie está em casa de certeza, mesmo que o Jan ande na fazenda. Só quer dizer que posso não poder contactar-te lá de casa quando chegar. E tu, estás bem? E a Suniva? — Estamos bem. O Anthony está cá e está tudo calmo. Detectou o ligeiro tremor na voz dela. — Boa-noite, Han. Amo-te — disse ele. Dormiu mal. De manhã, saiu do hotel, alugou um carro e comprou uma pequena geladeira com água, cerveja e sanduíches. Às dez horas, já estava a atravessar a toda a velocidade os subúrbios da cidade em direcção às zonas rurais, focado no seu destino. Ainda não tinha uma ideia clara do que ia dizer a Jan e a Lottie quando chegasse. Qual seria a reacção de Jan quando fosse confrontado
com a verdade sobre a morte do filho? E, quanto a Lottie, não era capaz de imaginar como ela ia suportar esta nova revelação e continuar a perseverar. Lars desejava agora não ter insistido em vir falar com Jan. O homem que conhecera e admirara era responsável por um crime medonho. A vingança pelo assassínio e mutilação do irmão às mãos dos Mau-Mau não podia desculpar a selvajaria de assar um ser humano vivo num espeto. Mesmo que, no início, como Wanjiru tinha dito, tivesse protestado. O assassínio da mãe de Simon dificilmente podia ser levado à conta de um custo de guerra aceitável. Mas o outro… só a ideia enchia Lars de repulsa. E depois Jan tinha abandonado o Quénia e a fazenda, inesperadamente, permitindo assim que o filho fosse morto em seu lugar e deixando a filha a braços com um futuro envenenado pelo terror e pelo ódio. Que espécie de homem faria uma coisa dessas à família? Ele devia saber ou, pelo menos, suspeitar do que estava por detrás dos ataques a Langani. E, contudo, tinha preferido calar-se, mesmo depois da morte de Piet. Se tivesse falado então, podiam ter descoberto Karanja mais cedo. Agora teria de enfrentar as consequências desse acto horrendo do passado na floresta. O tempo de fuga tinha chegado ao fim. Lottie reagiria mal à notícia. Lars não sabia de que modo podia confortá-la nestas circunstâncias e pensou se ela teria bons amigos que pudessem dar-lhe apoio. Pelo que tinha ouvido, o primo, Kobus van der Beer, era um bruto violento que pouco ou nada ajudaria. Talvez Lottie também tivesse conhecido desde sempre a verdade, embora Lars achasse que não. Queria não ter de ser ele o portador da notícia mas continuava convicto de que não era uma notícia que pudesse ter sido transmitida pelo telefone. Os seus pensamentos viraram-se para Hannah. Imaginou-a, sentada no escritório com a sua pele brilhante e o espesso cabelo louro atado atrás, debruçada sobre o livro das contas ou os livros de encomendas, o cenho ligeiramente cerrado e a língua a tocar no lábio superior enquanto percorria com o dedo o registo dos movimentos. Ou a pegar na pequena Suniva, risonha, ao colo. Hannah, com a sua encantadora boca larga e o seu corpo forte e bem torneado e a sua maneira de falar musical e melodiosa. Teria concluído as suas tarefas na vacaria e estaria de volta a casa, provavelmente a acabar o trabalho administrativo do dia para poder passar parte da tarde a brincar com a filha. Oxalá não lhes acontecesse nada na sua ausência. Se lhe acontecesse alguma coisa ou à bebé… Deu um murro no painel de instrumentos, gritando contra o mal que transformara a sua casa num lugar sitiado. Foi catapultado para a realidade quando uma forma surgiu inesperadamente à sua frente. Guinou, quase acertando no homem de bicicleta. Agarrou com força o volante, sentindo o carro fugir-lhe, e repreendendo-se pela sua falta de cuidado. A derrapar, parou na poeira asfixiante, o veículo inclinado na vala pouco funda na berma da estrada. O ciclista solitário levantou-se do chão pedregoso, voltou a montar e dirigiu-se para ele. — Peço desculpa — disse Lars, apeando-se do carro. — Não o vi a tempo. É da poeira. — Não sabia que mais dizer. Provavelmente o homem também não falava inglês. — Não faz mal, nkosi. Às tantas bebeu cerveja e agora precisa de dormir e só voltar a conduzir quando ficar mais fresco. — Não. Foi da poeira. Mas tenho cerveja aí atrás e posso dar-lhe umas garrafas já que o fiz cair da bicicleta. — Preferia que me desse uma boleia, nkosi. — Os dentes brancos reluziram no rosto escuro. — Mas ia na direcção contrária — frisou Lars com um sorriso.
— Pois ia, nkosi. Mas agora estou a pensar que, quando acabar de ajudá-lo a tirar o carro da vala, é tarde de mais para chegar ao meu destino. Não somos autorizados a circular na estrada durante o recolher obrigatório. A minha bicicleta pode ir amarrada no tejadilho e eu posso voltar para casa. — Onde é a sua casa? — perguntou Lars, apercebendo-se da futilidade da pergunta. Não reconheceria o nome de nenhuma aldeia local. Mas o indivíduo parecia querer cooperar e não estava a exigir dinheiro nem a ameaçar criar problemas. Era o mínimo que podia fazer para ser agradável. Abriu a mala do carro e procurou uma corda com que prender a bicicleta. — Não é longe. — O ciclista fez um gesto por cima do ombro. — Eu digo-lhe quando lá chegarmos. Tem alguma fazenda onde haja trabalho, nkosi? Ando à procura de emprego. Sou forte e faço tudo. Trabalho bem para um bom patrão. — Os olhos miraram-no esperançados e depois reconheceram outra oportunidade. — Também tem cigarros no carro? Além da cerveja? — Não sou de cá — disse Lars, estendendo um cigarro e baixando a cabeça para acender o seu. — Vim visitar um amigo. Sabe onde fica a fazenda do Kobus van der Beer? Vou lá ficar, talvez possa perguntar-lhe se ele precisa de trabalhadores. Não houve resposta e Lars, intrigado, levantou os olhos. O seu potencial companheiro de viagem tinha voltado a subir para a bicicleta e já ia a pedalar com extraordinária velocidade. Ao fim de cem metros mais ou menos, enfiou abruptamente no mato e desapareceu de vista. Lars encolheu os ombros e tirou cerveja e uma sanduíche da geladeira. O pão com queijo e fiambre era fresco e ele bebeu pela garrafa, saboreando a frescura na garganta. Depois de arrumar a corda, voltou a sentarse ao volante e ligou a ignição, aliviado por conseguir sair da vala em marcha atrás sem problemas. Novamente na estrada, retomou a viagem. Tinham passado menos de cinco minutos quando a primeira pedra atingiu a janela do passageiro, partindo o vidro e fazendo os estilhaços chover-lhe no regaço e nas pernas. Lars carregou a fundo no acelerador e passou através da saraivada de pedras arremessadas contra o carro, amaldiçoando o grupo de homens na berma da estrada. Ao passar por eles, ouviu os seus insultos e aumentou a velocidade até chegar a uma curva na estrada onde perdeu os atacantes de vista. O pára-brisas tinha-se estilhaçado e o carro estava cheio de pó. Lars sentia pequenos pedaços de vidro a descer-lhe por entre as pernas e a cair no chão do carro. Apesar de não estar ninguém à vista, continuou até se afastar bastante do local da emboscada. Depois parou e saiu do carro, deixando por precaução a porta aberta e o motor a trabalhar. Demorou algum tempo a remover os restos do pára-brisas dos bancos da frente, dando por si a olhar frequentemente por cima do ombro e a perscrutar o mato de ambos os lados da estrada. Quando se pôs de novo em marcha, sentiu um enorme alívio. A hora seguinte decorreu sem incidentes até que, finalmente, deixou a estrada principal e enfiou por um caminho tosco que desembocava num poste e numa barreira. Estava um guarda de serviço, sentado à sombra da cabana de adobe e palhiço, ao lado da barricada. — Venho falar com Mr. van der Beer — disse Lars. O homem não respondeu, mas olhou demoradamente para ele com olhos soturnos antes de levantar a barreira de madeira. Lars ergueu a mão num gesto de saudação e seguiu em frente, rodeado de ambos os lados de um emaranhado de mato, durante os dois ou três primeiros quilómetros, e depois por carreiras de plantas do tabaco, entrechocando-se e rumorejando sob a impiedosa luz intensa do sol. Quando atingiu uma bifurcação na estrada, calculou que seria melhor tomar o caminho mais estreito à esquerda. Momentos depois, viu uma placa com um nome pintado,
pregada ao tronco de uma árvore. Jan van der Beer. O acesso era curto. À sua frente, erguia-se um pequeno bangaló com um alpendre abaulado que parecia prestes a ruir. O telhado era de chapa ondulada e ele ouviu-o estalar e mover-se sob o calor tórrido. Os degraus para o alpendre estavam bordejados por arbustos cobertos de pó, os ramos pendendo apática e pesadamente. Diante da casa havia um canteiro de flores, cercado de uma tira de relva que, apesar dos cuidados, sobrevivia com dificuldade. A inconfundível assinatura de Lottie. Estava a sorrir quando se apeou do carro, deparando-se com um silêncio arrepiante. Foi como se os pássaros e os insectos tivessem sustido a respiração em pleno canto quando ele chamou. — Jan? Lottie? É o Lars. Tentei telefonar, mas o vosso telefone está avariado. Agora que estava mais próximo da casa, tomou consciência de um cheiro forte e estranho que pairava no ar. As janelas da frente estavam partidas e as paredes exteriores estavam escuras em vários pontos, como se tivessem sido queimadas. Voltou a chamar no silêncio ressonante e depois rodou a maçaneta da porta e entrou dentro de casa. Uma vez no interior, sentiu um cheiro a fumo e o odor familiar de pano chamuscado e madeira queimada. Havia um monte de mobília partida à toa no centro da sala. Livros e revistas boiavam num charco de água estagnada. Tinham sido derrubadas estantes e cadeiras. Pedaços de vidro, alguns ornamentos e porta-retratos estavam espalhados pelo chão do que tinha sido uma sala de estar. Num canto, a máquina de costura de Lottie estava tombada de lado, a capa desfeita em retalhos, a manivela arrancada à roda, bobinas de linha desenroladas a brilhar como teias de aranha nos escombros difusos do espaço. Assaltaram o espírito de Lars visões da oficina em Langani e da carcaça carbonizada do lodge, enquanto atravessava lentamente a casa, a sua pele arrepiando-se com uma terrível premonição. Aterrado, abriu as portas uma a uma, espreitando nos exíguos quartos e na casa de banho, que davam para o corredor principal, esperando a todo o momento deparar-se com um corpo queimado. Mas os quartos estavam vazios. Não restava nada de valor em nenhum lado e era evidente que o fogo não tinha atingido o centro da construção. Dois tachos de alumínio estavam no fogão a gás na cozinha, mas também esta tinha sido saqueada. As gavetas estavam abertas, o seu conteúdo espalhado pelo chão, e havia pratos partidos em todas as superfícies. A porta das traseiras da casa estava aberta, rangendo um pouco numa brisa que anunciava o fim da tarde asfixiante. Lars imobilizou-se por um momento, à escuta de algum som, alerta ao mais leve movimento no mato emaranhado que rodeava o quintal de trás. Mas só havia silêncio e o cheiro nauseabundo do incêndio extinto. Os restos de um galinheiro de rede estavam carbonizados e retorcidos por terra. Por sobre os corpos mirrados e ardidos das aves, uma nuvem de cinzas e penas vogava sobre a sebe que cercava uma pequena horta. A luz começava a suavizar-se com a chegada do crepúsculo e Lars compreendeu que não havia nada que pudesse fazer ali, além de pôr a sua própria vida em risco. Contornou o exterior do bangaló dilapidado e pôs o carro a trabalhar, carregando no acelerador e indo de marcha atrás até à bifurcação no caminho, onde enveredou por um segundo trilho, que serpenteava por entre os campos de tabaco. Ao cabo de alguns quilómetros, pensou que teria de voltar à barreira na estrada principal para perguntar o caminho. Abrandou e estava à procura de um local conveniente para fazer inversão de marcha quando captou uma centelha de luz à distância. Minutos mais tarde, estacionou o carro em frente de uma sólida casa de pedra e subiu os degraus do alpendre. Surgiu uma mulher pequena, fechando a porta de entrada a uma horda de cães que ladravam e esgaravatavam as janelas atrás dela. Olhou para Lars com olhos estafados, um cigarro à dependura
no canto na boca e o rosto alquebrado por anos de adversidade e desilusão. — Ando à procura do Jan van der Beer — disse ele. — Sou o genro. Do Quénia. — A casa deles ardeu. Uma bomba de petróleo há duas noites. Estão em casa do meu filho. Em casa do Faanie. — Aconteceu-lhes alguma coisa? A Lottie… — Quem está aí? Que é que estás aí a fazer, Ellie? Não sabes que é perigoso sair a esta hora do dia, caramba? A porta abriu-se, revelando um homem corpulento que Lars deduziu ser Kobus van der Beer. Tinha parecenças com Jan, mas a sua expressão era soturna e os seus olhos não denotavam qualquer sombra de interesse ou simpatia ou sequer curiosidade quanto à identidade do visitante. — Sou Lars Olsen de Langani. Vim falar com o Jan. — Acolá. — Kobus estendeu um braço na direcção da noite que caía. — Contorna este lado da casa e hás-de ver outro acesso à direita. Ele está em casa do meu filho até se resolver a situação. — Os seus olhos pousaram no carro de Lars. — Tiveste um acidente? — Atiraram-me pedras. — Lars encolheu os ombros. — Deve ter sido porque quase atropelei um homem. Ele arranjou alguns amigos e atacaram-me mais à frente na estrada, mas não me magoei. — Onde é que foi? Quando é que aconteceu? Lars descreveu o incidente. Não estava preparado para a reacção imediata. — Não admito que um maldito bando de munts atire pedras a ninguém na minha estrada — disse Kobus. — Aposto que sei quem é o responsável. Um cabrão madraço que costumava sentar-se a coçar os tomates até eu o despedir há uma semana. Podes dizer ao Jan que vamos dar caça à pandilha completa. Logo à noite vou lá buscá-lo. Havemos de apanhar esses estafermos quando menos esperam. — Diz à Lottie que pode fazer-me companhia amanhã, se não lhe apetecer estar sozinha. — Ellie falou numa voz hesitante e desviou os olhos quando Kobus se virou para ela. — A Lottie pode ficar onde está — disse ele, pegando no braço da mulher e puxando-a para dentro de casa. — Deviam estar gratos por lhes termos dado um tecto, em casa do nosso filho. — Voltou a olhar para Lars. — Morreu, o nosso filho. Morto por esses cafres selvagens. Diz ao Jan que estou lá daqui a algumas horas e que ele precisa de estar alerta. Que não se meta nos copos, eh? — Acho que o que aconteceu foi, em parte, culpa minha. — Lars tentou aliviar a tensão. Não queria precipitar mais violência. — A emboscada foi muito antes de cruzar a barreira para a sua propriedade. — Esta zona inteira está cheia de cafres que precisam de levar uma ensinadela. Eu vou buscar o Jan depois do jantar. Kobus desapareceu dentro de casa e Lars voltou para o carro, contornando a desolada casa até à propriedade adjacente. A segunda casa era mais pequena mas possuía a mesma aparência sombria, com grades grossas nas janelas e um grande letreiro a avisar da existência de cães ferozes. Quando bateu, não obteve resposta imediata mas viu a luz de um candeeiro atrás das cortinas fechadas e levantou a mão para bater outra vez. Antes de tocar na porta, esta foi aberta de rompante e ele deu por si perante o cano de uma espingarda. — Lars! Caramba, homem! Que diabo estás aqui a fazer? — Jan baixou a espingarda e afastou-se para o lado, abanando a cabeça de espanto. — Há algum problema em Langani? Com a Hannah? Porque é que estás aqui?
Antes que Lars pudesse responder, ouviu passos e viu-se nos braços de Lottie, que exclamou de surpresa e o puxou para dentro de casa. Ficou a olhar para os dois, à luz do candeeiro, consternado com a cara inchada e os olhos injectados de Jan e com a expressão apreensiva de Lottie. — Está tudo bem em Langani — apressou-se ele a dizer, querendo tranquilizá-los. — A Hannah está óptima e a Suniva está mais bonita de dia para dia. — Estendeu a mão a Jan. — Já não o vejo desde… enfim, já lá vai muito tempo. Espero que tenha recebido as minhas cartas. E os relatórios mensais. O Piet era o meu melhor amigo e sinto falta da companhia dele e de tudo o que ele era. Não passa um dia em que não sinta saudades dele. — Então tiraste finalmente umas férias? — perguntou Lottie. Olhou ansiosamente para o rosto carregado de Jan. — Estamos muito felizes por te ver — disse ela. — Mas foi um choque. Não estávamos à espera. A Hannah não disse… Calou-se, instintivamente consciente de que devia haver uma razão importante para a presença dele ali. Lars não era homem para agir por impulso. Nunca deixaria de repente a fazenda e a mulher e a filha. Pensou se ele teria vindo para tentar fazer as pazes entre Hannah e o pai e talvez persuadir Jan a voltar para casa. Por momentos, sentiu-se esperançada. — Toma… precisas disto depois da viagem. De onde quer que venhas. — Jan estendeu um copo de whisky e uma caneca de água. A sua mão tremia ao servir. — Quando chegar diz. — Isso é um tanto forte para mim. Prefiro com água até cima, por favor — disse Lars. — Vim hoje de Salisbury, de carro. Lars observou Jan a servir-se de uma dose ainda mais generosa de whisky puro para si e sentarse pesadamente numa poltrona, a espingarda apoiada contra o joelho. Lottie colocou-se na ponta do sofá e debruçou-se com impaciência. Estava pálida e rugas de tensão haviam traçado uma história em todo o rosto. Nenhum deles tinha falado na casa incendiada e Lars preparava-se para perguntar, quando Lottie quebrou o silêncio. — Conta-nos tudo sobre Langani e a Hannah e a Suniva. E como está a fazenda? E o Mwangi, o Kamau e o Juma como estão, e tudo o resto por lá? Estamos ansiosos por ouvir notícias, Lars. — O seu sorriso era de encorajamento, mas os olhos denotavam apreensão. Não há nenhuma maneira fácil de fazer isto, pensou Lars. O melhor é arrumar depressa com o assunto. Começou por falar da destruição da oficina e depois do incêndio do lodge. Mas antes de passar a Karanja e à subsequente chegada de Wanjiru a Langani, Jan tinha esvaziado o copo e estava a fixá-lo numa atitude beligerante. — Então que estás aqui a fazer, homem? — perguntou. Tentou levantar-se da cadeira, deitando a arma ao chão aos seus pés. Baixou-se vacilante para apanhá-la e encostá-la ao aparador. Lars desviou os olhos, consciente dos olhos de Lottie sobre ele transmitindo-lhe um apelo mudo. Jan serviu-se de outro whisky, ignorando o murmúrio de protesto da mulher. — Que é que aconteceu à minha filha? Não pode ser seguro para a Hannah ter ficado sozinha na fazenda. Não a devias ter abandonado. — Foi a Hannah que me pediu para vir. Há um assunto de que preciso de falar convosco. Lars captou a interrogação no olhar de Lottie, mas ela não disse nada. — A Hannah está bem e a bebé também — disse ele. — O Anthony Chapman ficou em Langani durante a minha ausência e os Murray vão visitá-la com frequência. — Diz-me então se estou enganado — disse Jan, o álcool ateando a fúria alojada dentro dele. —
Depois de dois ataques violentos, desapareces da fazenda e abandonas a tua mulher e um bebé pequeno. Deixa-la à frente da fazenda com um tipo que não sabe nada de agricultura? — A pergunta estava carregada de desprezo. — Claro que ele não desapareceu assim — protestou Lottie. — De certeza que o Lars tem muito boas razões para ter feito esta viagem. Sabes muito bem que ele nunca deixaria a Hannah e a menina sem protecção. E sempre olhou pela fazenda com competência. — É a minha fazenda, porra. Mesmo que esteja impedido de lá ir. — Jan olhou para o genro com hostilidade. — Tenho perfeita consciência disso. — Lars estava a ter dificuldade em manter a calma. — Se bem que um dia destes seja necessário considerar a posição da Hannah e se lhe vai ou não entregar Langani. Já que parece que não tem planos para regressar ao Quénia. Mas não é isso que eu… Jan aproximou-se de Lars, num passo inseguro, o rosto vermelho de fúria. — Ela quer ver-se livre de mim, é isso? Ou és tu que queres deitar a unha à fazenda, agora que conseguiste casar com ela? Era o que tinhas em mente desde o princípio? Lars sentiu a raiva ferver-lhe dentro do peito. — Jan, pára com isso! — implorou Lottie. — Como é que podes dizer uma coisa dessas? O Lars adora a Hannah e sabes bem que foi a única razão por que se casou com ela. Temos de ouvir o que ele nos veio dizer. Mas por enquanto não. — Levantou-se. — Acho que deves acalmar-te agora. Vou preparar um quarto para ele e depois vamos jantar e ele pode contar-nos tudo. Sobre a fazenda, a nossa filha e a nossa neta. E tu vais ouvir, Jan. Sem te lançares em mais um dos teus ataques de mau génio inúteis. Jan bufou e voltou a sentar-se, com a garrafa de whisky na mão. — Que aconteceu à vossa casa? — perguntou Lars, adiando o momento da verdade. — Fui lá primeiro. Vi a destruição. — Foi um maldito grupo de munts que apareceu e atirou uma bomba de petróleo pela janela. Foi uma sorte não estarmos em casa, senão não estavas agora aqui a falar connosco. — O tom de Jan era azedo. — Eu tinha saído com o Kobus numa patrulha nocturna e a Lottie tinha ido passar a noite com uma amiga que vive a quinze quilómetros daqui. Quando estava a voltar para casa, viu o fumo e as chamas. A casa estava a arder e as malditas galinhas e o armazém e o telheiro a mesma coisa. E os criados, claro, tinham fugido. Provavelmente foram eles os responsáveis. — Não me parece. — Lottie estacou à porta que dava para o corredor e dirigiu-se a Lars. — Acho que foi um dos bandos locais que tem andado por aí a destruir propriedades. Há muitos agora, açulados pelos terroristas que atravessam ilegalmente a fronteira vindos da Zâmbia. Recentemente tentaram atacar o Kobus e a Ellie duas vezes e aqui há tempos o filho deles, o Faanie, foi assassinado numa emboscada. O Janni também quase perdeu a vida nesse dia. — A situação parece difícil por cá — disse Lars. — Apesar da determinação do Ian Smith e da população branca. Pessoalmente, acho demasiado tarde para tentar governar um país africano sem direito de voto para todos. Esse tempo já passou. — As coisas estão a ir de mal a pior — concordou Lottie. — Com as sanções e a falta de bens e as divisões políticas cada vez mais acentuadas entre os negros e os brancos, não vejo motivos para optimismo. Acho que os brancos se estão a iludir e os africanos estão a ser reprimidos e espancados, quase como aconteceu durante o movimento Mau-Mau. Só que aqui é mais sofisticado. Os jovens estão a ser obrigados a integrar os partidos políticos negros que lhes prometem tudo e os
despacham depois para se tornarem bandidos e máquinas de morte. Consta que alguns são mesmo mandados para a Rússia e para a China. A violência aumenta diariamente. Estou sempre a dizer ao Jan que devíamos partir. — Não comeces a bater na mesma tecla. — Jan fulminou-a com os olhos, levantando a voz ao mesmo tempo que voltava a encher o copo. — Seja como for, a situação no Quénia também não está muito melhor. Também andam a matar pessoas por lá. O nosso próprio filho foi feito em bocados. E ninguém apanhou os assassinos. Acho que estamos todos conscientes disso. Demasiado conscientes disso. — A sua voz tremeu e limpou a cara às costas da mão. — Anda comigo — disse Lottie, fazendo sinal a Lars. O seu movimento não escondeu completamente a fugidia expressão de desespero que ele detectou no seu rosto, enquanto ela ouvia as divagações do marido. — Deixa-me mostrar-te a casa de banho e o teu quarto e depois podes ir buscar as tuas coisas e refrescar-te. Falamos ao jantar. — Quase me esquecia. — Lars virou-se para Jan. — Estive com o seu primo. Diz que o vem buscar mais tarde. Um grupo de pessoas atirou-me pedras ao carro e ele diz que sabe quem são. Quer ir à procura deles. — Oh, meu Deus. — Os ombros de Lottie descaíram. — Não passa de uma desculpa para outra patrulha, para outro espancamento ou matança. Ou os dois. O Kobus é um bruto, não é melhor que um rufia vulgar, e está obcecado com a vingança. — Pousou a mão no braço de Lars e ele sentiu a insistência na pressão dos seus dedos. — Desde que mataram o filho, usa todos os pretextos para dar caça aos negros e matá-los. — Está a defender a propriedade e a família dele, como milhares de outros rodesianos brancos — disse Jan, furioso. — Mas tu ganhaste-lhe pó e, faça ele o que fizer, nunca está bem para ti. Podias ter morrido por causa daquela bomba de petróleo ou na estrada para aqui, no outro dia à noite. Precisamos de patrulhas e temos de nos defender, Lottie, porque ninguém de fora nos vai ajudar. Aqui na Rodésia estamos a braços com uma chusma de cafres ignorantes em que estão a inculcar a ideia de que serão donos de todos os torrões de terra, de todas as casas, carros e bicicletas, se continuarem a atacar-nos por tempo suficiente. Se assassinarem mais alguns agricultores e lançarem mais bombas de petróleo, acham que os brancos vão fugir de rabo entre as pernas e deixar-lhes tudo o que construíram. — Nós não construímos nada aqui — disse Lottie gelidamente. — Esta não é a nossa terra nem a nossa guerra e não devíamos envolver-nos sequer nela. Não devíamos dormir com armas debaixo das almofadas e com as janelas fechadas e engradadas à noite, sobressaltando-nos ao mais pequeno ruído. Há meses que não tenho uma noite de sono decente. Nunca, em momento nenhum, me sinto segura. E não quero ser morta nem queimada nem violada em nome do Kobus e da fazenda dele. — Deve ser penoso para os dois — interpôs Lars, mas estava a olhar para Jan e a pensar no seu talento para se auto-iludir. Que é que ele tinha feito em Langani senão fugir com o rabo entre as pernas? E, pior ainda, tinha deixado os filhos a arcar com as consequências. — Tenho a impressão de que a situação na Rodésia não vai melhorar. A não ser que todas as facções aqui cheguem a um compromisso, o que não me parece iminente. Talvez seja tempo de partir, Jan. Isto não é lugar para si nem para a Lottie. Está de acordo, com certeza. — Sim — concordou Lottie desesperadamente. — Por amor de Deus, Lars, ajuda-me a convencêlo. Temos de sair daqui antes que seja tarde de mais e o que resta de nós seja mandado de volta para o Quénia em caixões.
— De volta para o Quénia, onde o meu filho foi chacinado e a minha filha me odeia e a exploração da minha fazenda está nas mãos de outra pessoa? É para onde queres ir? É essa a alternativa mais segura que estás sempre a apregoar? — Jan falou numa voz entaramelada e aproximou-se de Lottie num passo ligeiramente trôpego, agitando-lhe o punho. Ela afastou-se para o lado com um rápido movimento ditado pela prática. — Não pode passar o resto da vida a fugir do passado. — Lars agarrou em Jan pelo casaco e interpôs-se entre ambos, chocado por ele ser capaz de levantar a mão à mulher. Não foi capaz de dominar a explosão verbal que se seguiu. — Grandessíssimo idiota! Não se pode enterrar para sempre nesta terra miserável e deixar o resto da sua família sofrer o castigo pelos seus pecados! — Que é que estás a dizer? Que diabo queres dizer com isso? — Jan estava a berrar a plenos pulmões. — Quem és tu para me falares assim? Um moço de lavoura que casou com a filha do patrão e agora quer ficar com o bolo todo! Tu é que deixaste a tua mulher e a tua filha à mercê de um bando de bandidos cafres para vires aqui tentar convencer-me a dar-te a minha fazenda. Que outra coisa estás aqui a fazer, quando devias estar em casa a protegê-las e não a azucrinar-me os ouvidos? — Estou aqui por causa do que fez na floresta naquele dia — disse Lars, falando muito calmamente, o seu corpo forte absolutamente imóvel, os braços caídos numa postura repleta de tristeza e da noção de futilidade. — No dia em que matou a mãe do Simon Githiri e o pai foi assado vivo num espeto. Ele era criança e viu tudo. E é por isso que o seu filho está morto e que a sua fazenda está sob ataque e que a sua filha vive num terror constante. É por isso que ela tem medo, por ela, pela Suniva e por mim. A Hannah vive com as consequências dos seus actos, enquanto o Jan se esconde aqui e descarrega a sua culpa sobre a sua mulher. Enquanto dá caça a africanos com o seu primo Kobus. Lottie soltou um som estridente, como um animal ferido, e depois tapou os ouvidos com as mãos e caiu sentada no chão. Jan fixou os olhos do genro, vendo neles a acusação e a repulsa. Depois, o seu corpo amoleceu e encostou-se à parede, tapando a cara. Lars desviou-se, incapaz de olhar para o homem escalavrado em cuja força e integridade acreditara um dia. Fatigadamente, terminou a narrativa, descrevendo a visita a Mwathe e o encontro com Karanja, acabando com a história de Wanjiru e a descoberta de que Simon estava vivo. Quando lhes contou tudo, ouviu a respiração áspera de Jan no silêncio da sala. Lottie continuava sentada no chão, protegendo-se com os braços cruzados sobre a cabeça e, ao vê-la, Lars encheu-se de remorsos. Não era assim que tinha planeado contar-lhes a verdade. E agora, olhando de novo para Jan, a sua fúria esbateu-se e deu por si a sentir piedade do lastimoso farrapo bêbado à sua frente. Jan virou-se para Lottie e estendeu uma mão para ajudá-la a levantar-se. Mas ela abanou a cabeça e pôs-se de pé sem a sua ajuda, afastando-se dele, os braços firmemente cruzados sobre o peito. Vendo-a assim, à luz crua da lâmpada do tecto, Lars sentiu tristeza pela forma como ela envelhecera, pelas rugas de desilusão que haviam consumido a sua bondade luminosa. — Sinto muito, Lottie. Mais do que posso exprimir por palavras. — Procurou imprimir suavidade à voz, para que ela compreendesse que a amava. — Lamento tudo o que aconteceu e a maneira como tive de lhes transmitir. Não queria ter sido tão brutal. Lamento imenso. — Vou buscar os lençóis e as toalhas para o Lars — disse Lottie, numa voz inexpressiva, o seu rosto branco como cal. Não olhou para o marido. — E depois vou preparar o jantar. — Não. Eu vou buscar as coisas dele — disse Jan. Estava de olhos baixos e moveu-se lenta e
tropegamente. — Vai para a cozinha fazer o jantar, Lottie. O maldito do cozinheiro não voltou porque está cheio de medo e é um inútil. O Lars vai buscar a bagagem dele. Toma, leva a minha espingarda. Nunca se sabe se não está um par de terroristas lá fora à espera para te darem cabo do canastro. Entregou a arma a Lars e depois dirigiu-se pelo corredor para o armário da roupa do lado de fora da casa de banho. Com mãos trémulas, abriu a porta, procurando a garrafa de whisky que tinha escondido ali antes. Lottie andava sempre atrás de garrafas de álcool, mas ele tinha raciocinado que ela não iria ao roupeiro durante um ou dois dias. Os seus dedos tremiam ao tentar encontrar o sítio onde tinha metido a garrafa, no meio de uma pilha de toalhas. Tinha de beber qualquer coisa. Depressa. Antes que as palavras de Lars penetrassem no nevoeiro do seu cérebro e a dor se tornasse insuportável. Tentou duas vezes sem sucesso e estava a praguejar em voz baixa quando voltou a enfiar a mão e tocou em algo. Não era o whisky. Parecia papel. Agarrou no pequeno maço e retirou-o para a luz. Cartas. Cartas dirigidas a Lottie. Envelopes com selos italianos. Não lhe ocorreu quem pudesse escrever-lhe de Itália e tirou uma das cartas e meteu-a ao bolso do casaco de safári. Voltou a colocar o maço no armário e sentiu-se aliviado quando os seus dedos tocaram no vidro frio da garrafa, na camada de toalhas por baixo. Retirou-a e sorveu um trago antes de a enfiar dentro do casaco. Depois, pegou na roupa da cama e levou-a para o quarto de hóspedes. Lars apareceu à porta. Os dois homens permaneceram imóveis no pequeno quarto, incapazes de olhar um para o outro. — Não há falta de água quente — disse Jan. — Podes lavar-te e depois tomamos uma bebida antes do jantar. A Lottie continua a ser a melhor cozinheira que hás-de provavelmente encontrar. Foi uma refeição em que nada de verdadeiramente importante foi dito durante uma hora de longos silêncios e rituais tensos. — Lamento, mas não temos vinho — desculpou-se Lottie. — Não tive oportunidade de repor o que foi roubado e destruído na outra casa depois da bomba e do incêndio. De qualquer maneira, não sabemos quanto tempo vamos aqui ficar, em casa do Faanie, e por isso não quero comprar para já muitas provisões. Até sabermos… — O Kobus diz que tem outra casa para nós. Perto da bomba de água e dos armazéns. Precisa de ser arranjada, o que vai demorar uma ou duas semanas. Mas estive lá hoje e não é má. Nada má mesmo. — Jan não era capaz de olhar frontalmente para a mulher e dirigiu esta observação a Lars. — Não falta lá água e a Lottie pode começar um jardim novo, que há-de medrar muito melhor do que os anteriores. — Não quero começar outro jardim. — Os olhos de Lottie cintilavam e o seu rosto estava crispado de desespero. — Quero ir para casa. Quero ver a Hannah e a minha neta. Quero sair daqui. Lars pousou a faca e o garfo e pigarreou. — Podia voltar para Langani, Lottie. A Hannah precisa de si. Jan fixou Lars do outro lado da mesa, talvez contando ser incluído. Mas quando nada mais foi dito, afastou a cadeira, levantou-se e dirigiu-se ao aparador, para se servir de outra bebida. — Não bebas mais, Janni. Por favor. Sobretudo se o Kobus te vem aí buscar e vais andar a conduzir toda a noite. Por favor. — Lottie também se tinha levantado da mesa e estava a aproximarse dele, mas ele afastou-a para o lado. — Senta-te e acaba de comer — disse ele. — Tu e o Lars. Eu bebo o que me der na gana, sempre
que quiser. Porque não há aqui ninguém que me dê apoio. Só recebo queixas. Quando eu sair, tu e o Lars podem discutir a tua filha e o teu regresso a Langani. Podes dizer-lhe como morres por voltar para o sítio onde o teu marido lutou para proteger a fazenda e a família dele, onde o meu irmão e alguns dos nossos amigos morreram pelas suas terras. Onde eu paguei o preço com pesadelos e infelicidade durante semanas e meses a seguir. Langani é o lugar onde o Lars deixou a nossa filha sozinha e indefesa, correndo o risco de ser assassinada. Langani levou-nos o nosso filho. Para mim, não passa agora de um lugar de morte, seja ou não eu o culpado. Porque este tipo de ódio é irracional. Basta o desejo de matar. E há-de continuar indefinidamente. Por isso, quando eu voltar de manhã, podes informar-me das conclusões a que chegaram. Sim. Bebeu o álcool de uma assentada e saiu da sala a cambalear. Lars permaneceu sentado em silêncio, ouvindo Jan, através das paredes finas, no quarto ao lado a abrir armários e gavetas e a praguejar enquanto procurava agasalhos e munições. — Sinto muito. — Lottie estava de cabeça baixa, tomada de infelicidade. — Ele já não é o mesmo homem. Eu sei que deixaste a Hannah bem protegida. Mas preferia que ela não tivesse ficado… — Eu quis trazê-la comigo — disse ele. — Mas ela não era capaz de encarar o Janni. Pensei que conseguia convencê-la a pegar na Suniva e a ficar com a Sarah até eu voltar. Mas ela recusou-se a deixar a fazenda. Felizmente, o Anthony tem sido um verdadeiro amigo e tenho a certeza de que ela está em segurança com ele. Dentro da segurança que é agora possível. Mas não me posso demorar por cá. — É uma pessoa voluntariosa, a Hannah — disse Lottie. — Desde que o Piet foi… desde que morreu, levantou-se uma barreira entre nós que eu não consegui transpor. E agora isto! Oh, minha pobre filhinha. Pobre Hannah. Antes de Lars ter tempo de responder, Jan reapareceu, atravessando a sala num passo incerto e parando junto da mesa de jantar ao lado deles. — Vou sair agora — declarou. — Vou de carro a casa do Kobus para partirmos imediatamente. De manhã falamos, Lars. Tu e eu, de homem para homem. Quando a minha mulher sair para fazer compras e entregar a obra de costura. Bateu com a porta e, lá fora na escuridão, ouviram o ruído da carrinha a fazer marcha atrás no caminho. Os faróis entraram por uma fresta nas cortinas e depois instalou-se o silêncio. Lottie continuou à mesa, a cabeça erguida num gesto de desafio e ressentimento. — Isto é muito difícil para si — disse Lars. — E talvez o Jan tenha razão. Não devia ter deixado a Hannah ficar na fazenda. Chegámos mesmo a pôr a hipótese de partir de vez se os ataques continuarem. Mas ela não é capaz de encarar uma partida definitiva. Tudo o que temos está investido em Langani e ficou quase tudo destruído no incêndio. Não foi só a construção mas todo o equipamento e mobília. Teríamos grandes problemas em encontrar outro sítio. Seja como for, não consigo aguentar esta situação muito mais, Lottie. Sempre pensei que era suficientemente forte para lidar com o que desse e viesse, mas o risco de acontecer alguma coisa à Hannah ou à Suniva… A sua voz era tão triste que Lottie abandonou a cadeira à mesa e lhe pegou na mão. — Anda — disse ela com um leve sorriso. — Não há melhor homem que tu. Admiro o teu amor pela Hannah, a tua constância, a maneira como aceitaste a menina como se fosse tua. Anda, Lars, vamos tomar um conhaque. Escondi-o para o pobre do Janni não lhe deitar a mão. Porque às vezes eu própria preciso de uma bebida… quando fico sozinha à noite. Tenho medo de ser atacada e de ninguém
saber nem se importar e receio que ele nunca mais volte ou que apareça estropiado ou completamente alquebrado. Hoje em dia, o medo está sempre presente Lars, e não vejo maneira de me libertar dele. Sentaram-se em silêncio durante algum tempo. Depois Lars olhou para ela e fez a pergunta que o atormentava desde que ouvira a história de Wanjiru. — Ele sabia? — perguntou. — O Janni compreendeu que o assassínio do Piet e os problemas em Langani tinham a ver com o facto de esse homem ter sido queimado vivo? — Acho que nos recessos da sua memória, sabia, sim. Depois de voltar da luta contra os MauMau, teve pesadelos durante muito tempo. Tinha medo de fechar os olhos e adormecer. Percebi que se tinha passado qualquer coisa de terrível. Que ele tinha matado alguém. Mas era uma guerra e ele não foi o único. Tentei ajudá-lo durante esse período. Muitas das mulheres tiveram de fazer isso pelos maridos. — Levou o punho à boca, tentando compor-se, mas Lars viu o seu corpo tremer. — Ouvi o que disseste esta noite. Sobre a maneira como o pai do Simon morreu. Mas nunca mais quero ouvir falar disso. Porque passaria o resto dos meus dias a pensar como podia viver com um homem responsável por um acto tão bárbaro. — Que vai acontecer agora? — perguntou Lars. — Agora vamos ter de encarar a razão por que o Piet foi assassinado. Tanto quanto ele é capaz de enfrentar a realidade da morte. A maior parte do tempo, entorpece os sentimentos com o álcool. — Crispou os lábios. — Já se tortura por não ter voltado no ano passado. Por ter deixado passar a oportunidade de ver o filho com vida. Culpa-se por a Hannah se ter ido embora daqui. Ela aguentou muito tempo, fez o que podia para acabar o curso comercial, deu-me todo o amor e apoio que podia dar. Mas, no fim, foi de mais. Quase me senti aliviada quando ela fugiu. Quando voltou para Langani, para junto do Piet. Tinha de escapar deste lugar sem futuro e de um pai bêbado. E o Janni também está convencido de que foi responsável pela morte do sobrinho, o Faanie. Mas nunca me explicou porquê. — Lottie fez um gesto de desdém. — Seja como for, o mais certo era o Faanie já estar morto a estas horas. Era igual ao pai… tacanho, ignorante e intolerante. E um dia o Kobus háde ser responsável pela morte do Jan, se ficarmos muito mais tempo aqui. — Lottie, tem de partir — disse Lars. — Eu sei que a decisão tem de ser sua e não quero interferir. Mas se continuar aqui, também vai ser destruída. Se voltar para Langani ou for passar um tempo a casa do seu irmão em Joanesburgo, pode ser que o Janni a siga e até volte a ser o homem que era. Ela abanou a cabeça, a sua boca formando um traço duro na sua tentativa para não dar vazão às lágrimas. Lars observou-a com compaixão enquanto ela procurava um lenço no bolso. — O Janni tem razão a respeito de Langani — disse ela finalmente. — Transformou-se num lugar de morte e não o imagino a regressar. E, quanto a mim, nunca iria para Joanesburgo. Já discutimos muitas vezes essa possibilidade. — Então outro país — disse Lars. — Há boas terras de lavoura em Natal e… Lottie levantou-se. — Não sei se quero que ele me acompanhe — disse ela. — A partir de agora, não sei nada. — Compreendo que se sinta assim. Deu-lhe apoio, ficou do lado dele todos estes anos, aturou o alcoolismo dele. É uma pessoa excepcional, Lottie. Por isso… — Não! — Viu a expressão de espanto de Lars e apercebeu-se de que tinha gritado. — Não me pintes com as cores de uma santa, Lars. Não sou esse tipo de pessoa. Não sou a esposa perfeita que
sofre em silêncio e sem esperança. Não sou nenhuma mártir. Estava agora a chorar, soluçando descontroladamente, e ele passou-lhe o braço pelos ombros, tentando acalmá-la. Mas ela não conseguia conter a torrente de mágoa que se lhe derramava da alma. Há muito tempo que não desabafava com ninguém, que não se permitia pensar para além da sombria necessidade de sobreviver mais um dia nesta terra odiosa. — Cometi erros terríveis — disse ela. — Estou aqui porque sou uma cobarde. Devia tê-lo deixado há muito tempo e voltar para te ajudar e ajudar a Hannah. Devia ter ficado em Langani depois de o Piet morrer e ter lá estado quando a Suniva nasceu. Mas não conseguia enfrentar o fantasma do meu filho. E assim abandonei a minha filha, apesar de ela precisar desesperadamente de mim. Porque não tive a coragem necessária. — Não se censure, Lottie. A Hannah ficou zangada durante algum tempo, é verdade. Mas agora compreende, acredite. Ambos sabemos que deu tudo o que podia dar, que está sozinha e sem ajuda há demasiado tempo. É a pessoa mais corajosa que eu conheço. Há muito que não tem quem a ame e cuide de si e não há nenhum ser humano no mundo que sobreviva sem amor. — Mas até isso deitei a perder — disse ela. — Deitei tudo a perder. — Não é verdade — disse Lars. — Nós amamo-la muito, eu e a Hannah, e não há nada que não fizéssemos para… — Tive uma ligação extraconjugal — disse ela. Lars olhou para ela em silêncio, ligeiramente boquiaberto. A crueza da sua declaração deixou-o sem fala. — Não quero que penses que sou uma santa — repetiu ela. — E não sou hipócrita. Quero que saibas a verdade porque, de outro modo, sentes pena de mim e o teu amor baseia-se num mito. Noutra mentira. Já tivemos a nossa conta delas. — Só posso esperar que lhe tenha trazido felicidade — disse Lars. — Sim, fui feliz. Durante pouco tempo. Aconteceu quando fui visitar o meu irmão à África do Sul no ano passado. Conheci um homem bom e apaixonei-me por ele. É viúvo e quer que eu deixe o Janni e vá viver com ele em Itália. Mas eu voltei porque o Janni ficou ferido numa das patrulhas do Kobus. Não podia abandoná-lo. Deixá-lo com os demónios e os pesadelos dele. Não teria suportado a culpa. Tive medo de lhe virar as costas e partir com o Mario. Medo de que a Hannah nunca me perdoasse, de ser vilipendiada por ter deixado o meu marido quando estava gravemente doente no hospital. Tive medo de que Deus não me perdoasse. — A sua expressão era incomensuravelmente triste. — Tivemos uma vida boa durante anos, Lars, quando o Janni trabalhava duramente e era um bom marido e um bom pai. — Mas não foram todos anos bons, Lottie. — Estás a pensar nele como um assassino — disse ela. — Mas antes do estado de excepção ele não era assim. O governo britânico tratou o problema dos Mau-Mau como uma situação de guerra e mobilizou todos os homens capazes. Reforçaram o contingente de forças policiais e mandaram um exército para nos apoiar. Depois, os Mau-Mau mataram o irmão do Janni. Esquartejado, desmembrado e feito em pedaços como o Piet. Com a barriga aberta e as entranhas espalhadas pelo chão e os testículos na boca. Sabíamos que alguns dos watu na nossa fazenda tinham prestado juramento. A maioria foi obrigada, com medo de perder a vida, se recusasse, mas nunca podíamos ter a certeza de quem permanecia leal. A nossa vida e as nossas fazendas estavam sob ameaça. E sim, houve incidentes e abusos terríveis de ambos os lados, sobretudo entre os africanos. Foram
eles os que mais sofreram. — Eu sei o que se passou nesse tempo — disse Lars. — O meu tio já estava a viver no Quénia. Houve problemas na plantação de café dele, perto de Kiambu. — Deve ter havido — disse Lottie. — Eram tempos diferentes e alguns dos métodos usados pelos ingleses seriam hoje questionados. Depois de tudo acabar, o Jan sofreu durante muito tempo, com remorsos e pesadelos. Era como muitos homens que combateram nas trincheiras e no campo de batalha, em lugares escuros e celas de prisão fortemente iluminadas, onde tiveram de espancar ou matar outros seres humanos com as próprias mãos para sobreviver. Ele sabia que o que tinha feito era errado. E quando o estado de excepção foi levantado, esforçou-se por ser um marido e um pai extremoso e um patrão justo. — Era assim quando eu cheguei a Langani — disse Lars. — Toda a gente na região dizia bem dele. Ainda diz. — Mas não adianta, pois não? — disse ela com desespero. — Agora não conta e ele nunca há-de deixar de pagar pelo que fez nesse único dia. Pensa que eu nunca lhe perdoarei a morte do nosso filho, a clivagem com a Hannah, a perda da nossa casa. Sabe que as pessoas que ama já não o respeitam. E assim alinha com o Kobus e acompanha-o nas patrulhas, encharcado em whisky, e sem a mais pequena esperança no coração. Obedece cegamente ao primo porque não vê outra saída. — Mas a Lottie não vai conseguir nada se ficar aqui — disse Lars. — Estou convicto de que devia voltar para Langani e levar o Jan consigo. Mesmo no estado em que ele está. — Voltar a Langani. — A gargalhada de Lottie soou dura e áspera. — Oh, não sonho com mais nada. Por vezes, digo-o em voz alta, só para me torturar. Mas qual seria a realidade? Ele saberia que a Hannah não o quer lá, na fazenda. Viveria com o fantasma de Piet a persegui-lo dia e noite em todos os sítios familiares. Continuaria a beber. E, se apanharem o Simon Githiri, vai haver um julgamento e o que o Janni fez tornar-se-á público. És muito bondoso, corajoso e leal ao considerares acolher-nos. Mas é impossível, Lars, essa é a verdade. — Lamento muito, Lottie. — Não ocorreram outras palavras a Lars. — És um homem compassivo e a Hannah tem muita sorte — disse ela. — Mas agora não posso falar mais. Acho que tenho de me ir deitar, querido Lars. Há várias noites que não durmo e, hoje, contigo aqui, posso fechar os olhos e não me sentir sozinha e assustada neste mundo horrível. É uma dádiva pela qual me dou por muito feliz. Encostou-se a ele de olhos fechados e Lars apertou-a nos braços, esperando que ela sentisse a profunda afeição e a compaixão que nutria por ela e pela sua infelicidade. Depois de duplamente aferrolhadas e trancadas todas as portas e janelas e de apagadas as luzes, Lars ficou acordado na cama, à escuta de qualquer som que pudesse indicar a presença de um assaltante à espera lá fora. Interrogou-se onde Jan estaria e relembrou o agricultor franco e afável que conhecera quando chegou a Langani. Tinha ficado impressionado com a escola que Jan tinha fundado na fazenda e com o número de crianças que ele tinha mandado para Nanyuki para receberem educação. Visualizou mentalmente a clínica de Lottie e as mulheres a fazer fila à porta dos celeiros para levarem as rações mensais de arroz, açúcar e carne que recebiam para além dos salários dos maridos. Jan van der Beer tinha sido um patrão firme mas justo. Um homem decente, respeitado na comunidade. Um homem que tinha torturado e matado. Lars apagou a luz e pensou na fazenda dos pais na Noruega e nos vizinhos que nunca foram capazes de compreender o seu amor pela beleza caótica e pelos perigos ferozes e incessantes de
África. Tentou imaginar-se de volta às terras de cultivo ordenadas da Europa e à vacaria luminosamente ladrilhada do pai, com a sua maquinaria reluzente, convivendo com prósperos trabalhadores agrícolas que possuíam rádios, máquinas de lavar e carros, que mandavam os filhos para escolas gratuitas com livros escolares novos e carteiras polidas, que esperavam viver vidas estáveis e seguras até ao fim dos seus dias. Mas nunca seria capaz de voltar a viver na Noruega. Tinha de ficar e olhar por Hannah e pela filha, as duas pessoas que eram tudo no mundo para ele. Tinha de encontrar uma maneira de salvar a fazenda e tudo quanto ela representava. E de ajudar Jan e Lottie também. Tinha de ser possível criar uma vida que fosse tolerável para todos eles.
A trinta quilómetros na estrada, Jan estava deitado de bruços, sobre um rochedo saliente, o corpo escondido sob a protecção da vegetação circundante. Estava certo de que se tornara invisível na noite sombria em que até o brilho das estrelas era intermitente sob a densa cobertura das nuvens e das árvores. Kobus tinha estacionado a uma certa distância do lugar onde Lars tinha sido emboscado ao início do dia, cobrindo o veículo com um oleado e ramos que levara nas traseiras do camião. Os oito membros da patrulha saíram do veículo com as caras enfarruscadas e roupas escuras, avançando a passo de caracol, furtiva e cautelosamente, parando com regularidade para se agacharem e identificarem todos os sons. Demoraram quase duas horas a chegar à elevação de onde podiam observar o círculo de cabanas em baixo. Ardia e crepitava um fogo para cozinhar à porta da habitação maior e vários homens com fardas militares esfarrapadas estavam sentados, com espingardas automáticas, em redor da fogueira. Estavam a arengar aos aldeãos com tiradas violentas, mostrando mãos-cheias de notas de banco, incitando-os a aderir à revolução, garantindolhes riqueza e a libertação do trabalho escravo e prometendo a posse de vastas extensões de terra que agora pertenciam aos brancos. — Malditos idiotas… treinados do outro lado da fronteira e despachados para aqui pelo Nkomo e comparsas — murmurou Kobus. — E o que está à direita da fogueira é o estúpido do munt que eu despedi. A gente deita-lhes a mão a todos. Matamos os cabrões e penduramo-los nas árvores de onde eles vieram. — Estão mulheres e crianças ali em baixo. — Jan estava cansado do desejo obsessivo do primo de matar indiscriminadamente e sem razão. — Devemos esperar um pouco que elas deixem os homens sozinhos junto da fogueira. Não há-de demorar, porque eles já acabaram de comer e as mulheres não têm nenhum pretexto para ficar. — Não estás a ficar molengão, pois não? Matam-se todos, que diferença faz? — sussurrou Kobus. — Quantos mais despacharmos, melhor, homem. Olha para aquela grávida, prestes a dar à luz outro desordeiro. Matamo-los todos, porra! Que diferença é que faz? — Acho que devemos esperar — insistiu Jan. — Se esperarmos um pouco mais, temos hipótese de apanhar os cabecilhas. Quando houver menos gente. Não devemos disparar enquanto não mandarem as mulheres e as crianças para as cabanas. Se desatarmos agora aos tiros, instala-se a confusão, com gente a mais por todo o lado, e os terroristas aproveitam isso para escapar. — Se esperarmos, fogem para o outro lado para se esconder — disse Kobus. — Nesse caso, é melhor separarmo-nos — disse Jan. — Fica aqui com três dos rapazes e eu levo os outros três pelo meio das árvores até ao outro lado do recinto. Quando estivermos em posição, faço-te sinal com a lanterna e tu podes começar a disparar contra os terroristas. Quando eles
começarem a fugir, a gente apanha-os dos dois lados. Kobus olhou para Jan, sentindo-lhe o cheiro a whisky no hálito e procurando um sinal de fraqueza. Depois acenou com a cabeça. — Certo. Eu aguardo o teu sinal. Mas espero bem que não demores muito. Passou uma hora até Jan tomar posição num ponto estratégico, voltado para o grupo à volta da fogueira. A luz era mais intensa ali e as nuvens tinham-se aberto, revelando uma lua pálida. Ele recuou para a protecção do mato e uma onda de medo percorreu-lhe as entranhas. Fechou os olhos e pensou em Lottie, voltando a ver o seu rosto fechado e a expressão de piedade nos olhos de Lars. As suas mãos começaram a tremer e, quando pegou no frasco de whisky, os seus dedos tocaram na carta que tinha tirado de entre a roupa no armário. Retirou-a lentamente e abriu o envelope, olhando para as páginas de olhos semicerrados na luz ténue. Querida Carlotta, Todos os dias sinto o teu desespero, a tua solidão e o teu sofrimento. E todos os dias te amo mais e tenho mais a certeza de que o teu lugar é ao meu lado. Desde a primeira noite em Joanesburgo que sei que devemos estar juntos, que fomos feitos para partilhar as nossas vidas. Não há qualquer razão para desperdiçares a tua beleza e o teu amor e os dias que te restam por esse homem lastimoso. Já fizeste o suficiente, minha querida, meu amor, e estou à tua espera aqui em Itália. Quero mostrar-te a minha casa. A nossa casa. Quero ver o teu prazer e o teu deleite perante as mudanças que esta velha casa já sofreu e quero que sintas a minha felicidade quando fizeres as tuas primeiras sugestões sobre o nosso futuro. Desejo ardentemente tocar-te, beijar-te, possuir-te novamente e proteger-te.
Eram três páginas ao todo, mas Jan não conseguiu lê-las. Voltou a meter a carta no bolso, tentando controlar as tremuras que se tinham apoderado do seu corpo transpirado. Lottie estaria a prepararse para trocá-lo por um homem desconhecido em Itália? Pensou nela como se ela já fosse passado, viu o seu rosto luminoso ao cortar rosas no jardim de Langani, ao pegar orgulhosa no filho ao colo, no hospital, no dia do nascimento de Piet. Recordou-a a entrançar o cabelo espesso e dourado de Hannah e a beijar pai e filha quando ele a levava à escola. Lottie, que se deitara ao seu lado à noite e o amara através de tudo o que acontecera nas suas vidas. Estava agora em casa de Faanie, a conversar com Lars, a confidenciar a sua infelicidade, a descrever a existência inútil e alcoolizada do marido naquele vespeiro que ele tinha escolhido para se esconder como um cobarde. Admitindo aquilo que tinha feito. Devia-lhe demasiado. Devia-lhe tudo. Noutro tempo, fora capaz de a defender. Tinha feito tudo ao seu alcance para proteger a casa de ambos, rastejando, faminto e enregelado, através das florestas negras e altas dos Aberdares, combatendo ao lado dos oficiais britânicos que nunca tinham considerado o agricultor africânder como um dos seus, apesar de ser um cidadão nascido no seu país. Mas só tinha levado a família à beira da destruição. Tinha perdido o filho e alienado a filha e a mulher ia deixá-lo. A captura de Simon Githiri reabriria o processo que tinha sido arquivado como parte de uma amnistia no fim do estado de excepção. Via o ódio e a repulsa no rosto de Hannah, sentia a vergonha dela quando os pormenores dos seus actos fossem lidos em
público no tribunal. E quem mais sofreria seria Lottie. Lottie, a quem amava. Lottie, que merecia a felicidade e a segurança que ele já não podia dar-lhe. Lottie, a quem tinha de dar a liberdade. Jan levantou-se abruptamente. Os companheiros olharam para ele, surpreendidos, mas ele nem sequer os viu ao avançar em largos passos para a clareira, disparando à sua frente contra as figuras de fardas militares e vendo um ou dois tombar fulminados. Experimentou uma sensação de selvajaria triunfante, uma certeza de que aqueles eram os homens que tinham tentado arrasar a sua casa pelo fogo e matar a sua mulher. Um estranho grunhido escapou-se-lhe da garganta e saiu-lhe dos lábios, crispados num esgar terrível de dentes arreganhados e olhos sem brilho enquanto avançava. Sentiu apenas alívio quando as primeiras balas lhe trespassaram o peito e o ombro e lhe acertaram seguidamente nas pernas, obrigando-o a parar e a olhar com surpresa quando os seus joelhos cederam e caiu ao chão. Fechou os olhos e começou a perder a consciência, embora tivesse continuado a ouvir, por momentos, sons de tiros e gritos e os gritos das mulheres e das crianças. Depois caiu o silêncio e ele largou a espingarda, vendo Lottie caminhar para ele e depois Hannah, de mãos estendidas com a longa trança baloiçando-lhe sobre o ombro. E, ao ser transportado para a luz, viu o seu belo filho, jovem, pujante e vivo à sua espera. À espera para ajudá-lo a recomeçar.
Lottie estava acordada quando ouviu o camião no caminho mas foi Lars quem abriu a porta, empunhando a arma dela e fazendo-lhe sinal para se deixar ficar dentro de casa. Kobus estava lá fora, gesticulando por cima do ombro para os outros três homens para que trouxessem o corpo. Pousaram-no sobre a mesa de jantar, embrulhado num cobertor cinzento e ensanguentado. Os olhos de Jan estavam fechados e a sua expressão era doce. Quase infantil. Lottie olhou para o corpo do marido à distância e depois saiu a correr da sala sem uma palavra. — Apanhámos os cabrões. Todos. Lamento muito o que aconteceu ao Jan, mas ele avançou sem dar o sinal. Sem apoio. Não sei que bicho lhe mordeu. — Kobus encolheu os ombros. — Dá os meus pêsames à Lottie. Amanhã de manhã falo com ela. Ainda bem que cá estás, homem. É melhor começares a limpá-lo e a gente organiza o funeral assim que conseguirmos contactar o agente funerário. Com este calor, não pode haver atrasos. Saiu de casa, batendo a porta atrás dele. Lars ficou ao lado do corpo, ouvindo o pranto de Lottie atrás da porta fechada do quarto, pensando em Hannah e Suniva, que amava e tinha de proteger a todo o custo. Encontrando uma grande bacia na cozinha, encheu-a de água morna, tirou vários panos da louça de uma gaveta e procurou uma tesoura. Quando a pousou no aparador, dirigiu-se ao armário da roupa de casa e tirou um lençol lavado. Limpou os respingos de sangue da cara de Jan e começou a cortar-lhe a camisa. Havia uma carta no bolso de cima e Lars retirou-a, pensando que podia ser uma última mensagem para Lottie. Começou a ler, o seu rosto empalidecendo com a mágoa. Depois de ler o primeiro parágrafo, tirou o isqueiro do bolso e viu a chama consumir a derradeira tragédia da vida conturbada de Jan van der Beer.
CAPÍTULO 15
Quénia, Maio de 1967 tarde, quando os cães começaram a ladrar e Hannah ouviu o som de um carro. E ra—o fimÉ odaLars! — gritou ela a Anthony, descendo a correr os degraus do alpendre. — Lars! Ainda bem que chegaste. Quando recebi o telegrama, não sabia o que… — Parou em plena frase quando uma segunda figura emergiu no crepúsculo. — Mamã? Mamã? És tu? Mamã! Ah, que felicidade! Correu a abraçar Lottie, que ficou parada no caminho, deixando-se envolver firmemente nos braços da filha. Hannah estava a rir de deleite. Lars tinha conseguido o impossível. Tinha levado a mãe à fazenda para ver a neta. Querido Lars, maravilhoso Lars! — És fantástico — disse-lhe ela, ainda a segurar na mão de Lottie. — Como é que a convenceste a vir, a deixar… As suas palavras morreram ao notar a estranha imobilidade da mãe. — Que se passa? Que aconteceu? — Depois as suas mãos voaram para a boca. — Aconteceu alguma coisa ao papá? — Minha querida. — Lars abraçou-a. — Morreu, Hannah. Foi morto numa emboscada. A tiro. Foi tudo muito rápido, não sofreu. O telefone lá estava avariado e não pude contactar-te. Ia ligar do telefone de um vizinho, mas depois eu e a tua mãe achámos melhor que eu estivesse aqui quando recebesses a notícia. Foi por isso que o telegrama só dizia que eu ia voltar. Trouxe a Lottie para casa para podermos todos ajudar-nos uns aos outros num momento destes. — O papá morreu? Não pode ser. Eu nunca… Mamã? Oh, mamã, não posso acreditar. — É verdade. — Lottie lançou os braços em volta de Hannah. — Achei que seria demasiado penoso suportares a notícia sozinha, com o Lars ausente. — Meu Deus, oh, meu Deus. Mamã, não o deixaste nessa terra horrível, pois não? Ele não havia de querer ficar lá sozinho. — Afastou-se de Lottie, elevando a voz. Lars tomou-lhe o rosto nas mãos e falou com os lábios junto do seu ouvido. — Foi cremado anteontem — disse ele. — Era a única coisa a fazer, dadas as circunstâncias. — Não tivemos alternativa — disse Lottie. — Com o calor e o tempo que tinha passado, não havia outra solução. Trouxe as cinzas dele para casa. — Vamos para dentro agora, Han — disse Lars suavemente. — Olha, aí está o Mwangi e o Kamau para receber a tua mãe. Afastaram-se para o lado enquanto os dois homens avançavam e pegavam nas mãos de Lottie, murmurando as suas condolências, as lágrimas correndo-lhes pelos sulcos das faces envelhecidas ao ouvirem a notícia. O bwana Jan tinha sido um bom homem. Lamentavam muito a sua morte. Pole sana. Após alguns momentos, retiraram-se para a cozinha, Kamau abanando a cabeça grisalha. Quando acabaria aquela maldição? Não haveria magia mais potente, encantamento que contrariasse o poder da perfídia de Simon Githiri? Agora o bwana Lars era o único que tinha ficado para cuidar das mulheres. Seria ele a próxima vítima?
— Lottie? Minha querida Lottie. — Anthony apareceu no alpendre e abraçou-a. — Anthony, meu velho. — Lars apertou a mão ao amigo. — Agradeço-te teres tomado conta de tudo aqui. E vê só quem voltou para casa. Mas, infelizmente, trazemos más notícias. Depois de Lottie se instalar numa poltrona, junto do fogo crepitante, Lars chamou Hannah à parte e beijou-a na cara, passando o braço à volta dela e apertando-a contra si. — A tua mãe está à beira da ruptura — disse ele. — Está exausta. Mas vamos agora sentar-nos para eu explicar o que aconteceu. E depois vais buscar a Suniva. Porque a Lottie há-de sentir alguma esperança e felicidade quando a vir. Já passou por demasiado sofrimento. Lars relatou a história em termos simples, mas numa versão caridosa de que omitiu pormenores que considerava desnecessariamente dolorosos. Não falou do alcoolismo de Jan nem do seu comportamento violento. Nem repetiu a informação de Kobus de que Jan tinha avançado para a linha de fogo, indiferente e sem protecção. E a carta que tinha encontrado e destruído nunca seria mencionada. Já tinha havido demasiado sofrimento. Concentrou-se antes nas coisas boas que recordava do sogro e tentou passar a ideia de que Jan tinha morrido corajosamente numa emboscada imprevista. Lottie estava a fixar o fogo, pensando na sua última visão do caixão de madeira a deslizar para o interior do crematório. Quando tinham fechado o caixão de Janni, tinha sentido o seu próprio espírito fechar-se ali com ele. Sufocando num lugar escuro, sentindo como se as chamas estivessem a queimá-la também. Tinha esperado um fim, uma sensação de paz. Mas ainda não tinham chegado. Nos últimos meses, tinha quase começado a odiar o homem em que o marido se tornara. Por vezes, quando ele saía de casa depois de uma cena de insultos alcoolizados, dava por si a desejar que ele não voltasse. Depois a culpa consumia-a por querer mal ao pai dos seus amados filhos, por mais que ele se tivesse transformado. Mas, à medida que as desoladoras semanas e meses se arrastavam, apenas quebrados pelos ataques de fúria de um homem desesperado, era assaltada pela fadiga e por um anseio de escapar. Tinha rejeitado a sua oportunidade de amar e ser amada, de uma nova vida, e sentia-se uma prisioneira naquela sinistra casa, infestada de formigas, pela crueldade e sordidez em que vivia. Ansiava por estar num lugar limpo e tranquilo, por estar sozinha. Agora, tinha tudo acabado mas ela não sabia se haveria libertação do sofrimento, apesar da irreversibilidade da morte de Janni. Quando pensava nele, via o seu rosto vermelho e transpirado, o seu punho erguido, e ouvia a sua voz ribombante de fúria e recriminação. Naquela noite, depois de Lars ter limpo o corpo e o ter deitado no catafalco improvisado, Lottie tinha entrado na sala para contemplar o marido. Um cadáver inchado, crivado de ferimentos de bala, estendido sobre uma mesa naquela casa miserável, sob a luz intensa de uma lâmpada nua. Era ao que tinha chegado. Olhando para a ruína do homem a quem tinha dado os seus melhores anos, apenas vira o desperdício da sua vida que o levara àquela última indignidade. Descobriu que não era capaz de tocá-lo e sentiu vergonha da sua incapacidade para lhe oferecer uma última bênção de amor e compaixão. Na manhã jubilosa e brilhante do seu casamento, tinha jurado que nunca o abandonaria, acontecesse o que acontecesse. Mas agora interrogava-se se o preço dessa promessa teria sido demasiado elevado. Porque não restava nela mais nada para dar a ninguém. De volta à velha casa, com a única filha viva, sentia-se paralisada. Incapaz de se libertar das amarras do desespero em que se encontrava desde a morte de Janni. Encolhida e sozinha entre os outros, não conseguiu falar nem tocar na comida que lhe foi servida. Foi a visão da neta que começou a operar a transformação em Lottie. Pela primeira vez, em
muitas semanas, sorriu de puro deleite. A menina, com o seu sorriso radioso e feliz, recordava-lhe Hannah com a mesma idade e suscitava memórias de uma vida familiar que lhe fora arrebatada. Queria falar da felicidade de pegar na bebé ao colo pela primeira vez, mas estava sem fala. Assim, ficou sentada a embalar a criança, apertando com força esse único símbolo de esperança num mundo de caos. Anthony aliviou a tensão do serão, relatando uma expedição que tinha feito com Piet nas Montanhas da Lua, relembrando surtidas de pesca e caça que fizera com Jan, procurando convencer Lottie a comer um pouco e insistindo para que ela bebesse um golinho de conhaque, ligando o rádio para ouvir o familiar registo do World Service da BBC. Lottie finalmente levantou-se e abraçou cada um deles. — Preciso de me deitar — disse ela. — Foi um dia extenuante. Lars, não sei que teria feito sem ti. E a Hannah deve sentir o mesmo a teu respeito, Anthony. São ambos jovens excepcionais e os melhores amigos que alguém pode desejar. — O Lars põe a Suniva no berço — disse Hannah. — Eu ajudo-te a preparares-te para a cama, vou ver se te falta alguma coisa. — Boa-noite, Lottie, minha querida — disse Lars. — Anthony, obrigado mais uma vez por teres tomado conta da casa. Até amanhã. — Tive muito gosto em ajudar. Na próxima semana parto na minha viagem promocional e conto arrancar logo a seguir ao pequeno-almoço. Tenho muito que fazer no escritório antes de partir. — A gente fala-se ao telefone antes de ires — disse Lars, pegando na bebé. — Vou deitar a minha filha. Um prazer de que senti falta nestes últimos dias.
Hannah não tardou muito a abrir a porta e a entrar no quarto. — A Lottie já se deitou? — perguntou Lars, olhando para o rosto fatigado da mulher. Ela sacudiu afirmativamente a cabeça e ele estendeu-lhe a mão. — Han — disse ele —, deixa-me abraçar-te. Senti tantas saudades tuas. Todos os momentos do dia e da noite. Ela deitou-se ao lado dele, pousando a cabeça no seu peito. — Disseste-lhe? — perguntou ela, após um longo silêncio. — Ficou a saber porque é que o Simon matou o Piet? O papá sabia quando saiu em patrulha? — Sim, sabia. Sabiam os dois. Foi um momento terrível, ter-lhes dado essa notícia. Acho que fui um pouco desastrado mas… fiz o que podia. Não podia fazer mais nada. — Não falei com ele. Não me reconciliei com ele — sussurrou ela. — E agora é tarde de mais. Morreu a pensar que eu o odiava. E era verdade. Culpava-o pelo que aconteceu ao Piet. Mas devia ter tentado compreender, porque era o meu pai. — Ele lutou durante anos com a sua consciência. Acho que nunca se perdoou a si mesmo. — Lars afagou-lhe o cabelo. — Com o tempo, terias arranjado uma forma de fazer as pazes com ele. — A mamã é quem mais sofre. Quatro longos anos naquela terra sem ninguém para a amar ou olhar por ela. — A voz de Hannah embargou-se. — No quarto, abraçou-me e eu senti-a tremer nos meus braços. E, quando tentei falar sobre o assunto, ela abanou a cabeça e não disse nada. Ajudei-a a meter-se na cama e depois ela virou simplesmente a cabeça para a parede. Fiquei uns momentos com ela e depois vim-me embora. Não sei que fazer. — Sê paciente, Han. O importante é ela estar aqui. Vai precisar de tempo para fazer o luto e
depois há-de começar a recuperar as recordações dos bons tempos. E vai encontrá-las aqui. — Mas estão profundamente enterradas. Tens de nos ajudar a encontrá-las. — Sentia-se grata por ter este homem extraordinário que era a sua vida, o seu refúgio e a sua felicidade. — Paciência — repetiu ele. — É do que precisamos. Amanhã, vamos sentar-nos juntos e planear uma despedida ao teu pai. Organizar um serviço religioso, aqui na fazenda, com o pastor. Os velhos amigos e vizinhos do Jan podem vir prestar um último tributo. Recordar o que ele tinha de bom. Porque o outro lado… foi uma parte muito curta da vida dele. Temos de pensar no lado bom, Han. De manhã, Anthony partiu cedo para Nairobi e para a sua viagem promocional. Ninguém abordou o assunto de Camilla, relutantes em trazer mais discórdia e tristeza à já tensa situação. Mas Hannah abraçou-o com afeição, grata pela sua lealdade e apoio incondicionais. Lottie dormiu até ao meio-dia. Quando acordou, demorou alguns segundos a compreender onde estava. Do outro lado da porta, ouvia os sons familiares da sua velha casa: Mwangi a assobiar enquanto encerava o chão, os latidos dos cães, Kamau a instruir o toto da cozinha sobre o que devia ir colher à horta. E o chilrear dos pássaros. Levantou-se e dirigiu-se lentamente à janela para abrir as cortinas. Lá fora, o jardim refulgia com flores e o relvado estava aveludado e verdejante, estendendo-se até à bordadura de arbustos que ela tinha plantado muitos anos antes. Inalou a fragrância do jasmim debaixo do peitoril da janela e virou-se para passar os olhos pelo quarto de infância de Hannah, contente por não estar no quarto que tinha partilhado com Jan. Aqui não havia recordações dolorosas, apenas os ecos do crescimento da filha. Seria penoso enfrentar a sua antiga vida, lidar com as memórias mais sombrias. Mas o passado não podia ser desfeito e ela tinha de encontrar maneira de seguir em frente. Por agora, ajudaria Hannah e Lars a construir o futuro deles e da criança e, entretanto, talvez o seu próprio caminho se clarificasse. Tomou um duche e vestiu-se com esmero, partindo em seguida à procura da filha. À tarde, discutiram os preparativos do serviço fúnebre. Lars tinha contactado o pastor e fixado uma data para o fim-de-semana, o que deixava tempo para os anúncios no jornal e para os velhos amigos organizarem a viagem, se necessário. Hannah ficou espantada com a extraordinária transformação da mãe desde o dia anterior. Lottie tomou decisões sobre o serviço, os convidados e a comida, socorrendo-se de uma reserva de energias escondidas que Hannah invejou. — Há uma coisa importante que quero desde já resolver — disse Lottie. — Preferia que fôssemos só nós os três a espalhar as cinzas dele. Acho que não era capaz… — A sua voz vacilou e ela levou uma mão aos olhos. — Não quero que ninguém assista a esta última viagem, excepto a família. Gostaria de fazer isso amanhã. Pode ser? — Onde é que queres espalhá-las? — perguntou Hannah. — Na crista? Ao lado do montículo do Piet? — Não! — exclamou Lottie. Tapou, por um momento, a cara antes de continuar. — Não. Não suportaria isso. Acho que no rio. Onde é mais profundo e há as trutas que ele gostava de pescar. Lars acenou com a cabeça. — E o rio levá-lo-á através da propriedade dele. Ja. É uma boa decisão. — Levantou-se. — Agora vou verificar o trigo e passar revista às vedações com o Juma. Hannah, talvez fosse boa ideia tu e a tua mãe levarem a bebé a passear. Mas levem o David convosco. Não quero que vão a nenhum lado sozinhas. No fim, a chuva confinou-as à casa, onde ficaram a ver a bebé a rebolar e a gatinhar no tapete e a brincar com os cães. Lottie olhou para Hannah, notando os sinais de tensão que ela tentava esconder.
— Queres desabafar comigo? — perguntou Lottie. — Contar-me o que sentiste quando essa rapariga quicuia chegou aqui com a criança, o que ela disse? Quando o Lars nos visitou, não tive oportunidade de falar com ele sobre isso. A nossa casa tinha sido incendiada pouco antes de ele chegar. Uma bomba de petróleo atirada pela janela. Acontece com muita frequência agora nas fazendas dos brancos. E o teu pai não queria pensar no que o Lars nos estava a dizer. — Estava bêbado, não estava? — disse Hannah. — Para ficar entorpecido ao ponto de não sentir nada. Não, mamã, não negues. Já não podes protegê-lo. Para quê? Ele morreu. Não te esqueças de que também vivi com isso. Sinto muito se te deixei a enfrentar a situação sozinha, mas tinha de viver a minha vida. Queria muito estar aqui na fazenda com o Piet, fazer parte dos planos do Piet. — Fizeste bem em partir — disse Lottie. — Nunca pensei de maneira diferente. — Estou convencida de que o papá estava embriagado nessa última noite — disse Hannah. — Não queria compreender o que o Lars lhe disse. Por isso bebeu até perder a consciência e depois saiu e ofereceu-se às balas. — Percebeu pelo olhar de Lottie que tinha acertado na verdade. — É com isso que temos de viver. Que mais podemos fazer? — Temos de esperar que o Simon e o Karanja Mungai sejam detidos. E depois reconstruímos o que resta das nossas vidas. E esta fazenda. — É a tua fazenda agora, mamã. Vais ter de decidir o que queres fazer com ela e se queres ficar. — Minha querida, Langani não me pertence. — Lottie pegou na mão da filha. — O teu pai fez testamento. Fui eu que insisti para que fizesse, se tencionava continuar a sair naquelas patrulhas. Nunca sabíamos o que podia acontecer. Fui com ele a um advogado e ele fez o testamento. Meti-o num envelope e mandei-o pelo correio para o teu tio Sergio em Joanesburgo, para ele o guardar em segurança. Langani é tua, Hannah. Hannah ficou sentada em silêncio, digerindo o que a mãe lhe tinha dito. Apesar do afastamento entre ambos, o pai tinha confiado nela o suficiente para lhe deixar a fazenda. Tinha nascido naquela terra, sempre tinha trabalhado para preservá-la, embora nunca lhe tivesse verdadeiramente pertencido. Mas a sua dádiva era um cálice envenenado porque agora, mais do que nunca, estava amarrada a ela. Estava igualmente consciente de que Jan nada tinha deixado a Lottie. E ainda não tinham discutido as implicações de um processo em tribunal, em que a defesa de Simon Githiri faria abater-se a desgraça sobre os van der Beer, e a possibilidade de mais vingança. Hannah pousou a cabeça no regaço da mãe, como uma criança pequena. — Esta fazenda também é tua, mamã. É a tua casa. Já sabes que eu e o Lars ficaríamos muito felizes… — Eu sei que posso sempre voltar aqui e passar tempo contigo e o teu maravilhoso Lars — disse Lottie. — Mas acho que não seria capaz de voltar a viver aqui. Vou ficar algum tempo para te ajudar. Devia ter feito isso há muito tempo, Hannah. Não devia… — Ele precisava mais de ti. Não sei como pudeste ficar ao lado dele. Mas agora estamos juntas. E isso é bom, não é? Lottie olhou ao longe, pensando no resplandecente campo italiano e no homem que queria que ela fosse ter com ele. Mario. O seu romance em Joanesburgo tinha sido muito breve mas tinham compreendido imediatamente que podiam ter um futuro a dois. Desde então, ele tinha-lhe escrito regularmente, cartas de amor que ela acarinhava e lia vezes sem conta para manter a sua alma viva. Mas era demasiado cedo para pensar nele. Ou demasiado tarde. Agora tinha de olhar por Hannah. Recuperar o tempo perdido.
— Sim — disse ela. — Estamos novamente juntas e isso é bom. — Levantou-se, alisando o cabelo e ganhando coragem. — Vou ligar agora ao Sergio. Disse-lhe que o informava quando decidisse o que ia fazer. Quero que ele venha ao serviço fúnebre se puder ausentar-se. Devias também contactar a Sarah. E a Camilla. O Lars contou-me tudo o que ela tentou fazer aqui. Disse que ela tinha voltado para Inglaterra porque o Anthony a magoou. — Eu escrevo à Camilla — disse Hannah. — Aposto que já esqueceu o Anthony. É bela, famosa e bem-sucedida e não deve demorar muito tempo a aparecer alguém que lho apague da memória. Conheci o produtor dela, o Tom, quando ele veio à gala de moda. Acho que está apaixonado por ela, apesar de ela não ter notado. E a Sarah disse que o médico que a operou à cara também é louco por ela. — Por fora, a Camilla é vulnerável — disse Lottie. — Sempre foi uma rapariga frágil e solitária que se magoava facilmente. Tenho pena que as coisas não tenham resultado com o Anthony. Ele é boa pessoa, desde que não se trate do sexo oposto. Fala-me da Sarah. — Também vai ser famosa. Com o livro dela. É lançado na Primavera. — Hannah hesitou, mas acabou por decidir contar a verdade. — Tivemos uma briga. Disse-lhe coisas que não devia ter dito e não sei se ela me perdoou. Falei com ela pelo rádio mas mais nada. — A Sarah não é rancorosa — disse Lottie. — Tem um espírito demasiado generoso. Se ela vier ao serviço, talvez possas tirar uns dias e voltar com ela para Buffalo Springs. Fazia-te bem. — Beijou a filha na testa. A ideia de ir para Buffalo Springs era cativante. Mas Hannah pensou que talvez não fosse desejada lá. Saiu à procura de Lars. — Importavas-te se eu fosse passar uns dias com a Sarah? Isto é, se ela vier ao serviço fúnebre do papá, talvez possa voltar com ela. Lars fez imediatamente a ligação por rádio e a reacção de Sarah foi palpável como a estática no aparelho. Estaria presente no serviço. E levaria Hannah com ela. — Era melhor se deixasses a Suniva aqui comigo — disse Lars. — Fazia-te bem teres algum tempo para ti e a Lottie ficaria deliciada por tomar conta dela. Mas Hannah recusou-se a considerar essa hipótese. Em Langani não. Enquanto Simon Githiri continuasse a monte. A ideia de se separar da filha era assustadora. Impossível. Quando Lars viu o pânico nos olhos dela, não insistiu mais.
Na manhã seguinte, o céu desanuviou por breves momentos. Dirigiram-se em silêncio à margem do rio. O solo estava húmido da chuva e um odor forte e margoso elevava-se das marcas dos seus pés. Cintilavam na água veloz estrelas-do-mar, ressaltando na ondulação que o vento agitava à superfície. À sua volta soava a música do mato, os assobios e zumbidos do canto dos pássaros, o fretenir dos insectos e o relinchar distante das zebras nas planícies. Um guarda-rios mergulhou à caça de peixes de água doce, a plumagem azul-cobalto, laranja e turquesa reluzindo, e as pedras ao longo da margem brilhavam como mármore. Uma ilha rochosa quebrava o fluxo da corrente, criando pequenos remoinhos e canais, que reflectiam o matizado da folhagem pendente. O som da água enchia o ar luminoso e uma truta emergiu de súbito num arco prateado para apanhar uma mosca e voltar a mergulhar. Lottie parou no cascalho, segurando na urna que tinha transportado até ao destino final de Jan.
— Quer dizer alguma coisa, Lottie? — perguntou Lars, com o braço pelos ombros de Hannah. — Só isto — disse ela. — Agora estás em casa, Janni. Esta terra que tanto recebeu de ti deve agora dar-te descanso. Rezo para que a tua presença aqui ponha fim à vingança e ao ódio. A tua dívida foi paga. E se estiveres a ver-nos de um lugar melhor, peço-te que implores protecção para a tua família. E paz. Desejo-te paz. Abriu a tampa e entornou as cinzas no remoinho do rio. Partículas cinzentas ficaram por momentos a pairar à luz do sol e depois caíram na água e desapareceram como um suspiro. Hannah encostou-se ao marido. — Adeus, papá — disse ela, de mansinho. — Amei-te sempre. Adeus. Deu meia-volta, os olhos repletos de lágrimas, e começou a subir o caminho em passos largos. Lottie permaneceu alguns momentos de cabeça baixa. Depois passou a urna a Lars. — Atira-a o mais longe que puderes — disse ela. — Para a parte mais funda do rio. Está vazia. Não quero levá-la para casa. Afastou-se dele e não olhou para trás. Lars pegou no pequeno cálice de metal, que era tudo quanto restava de uma vida. Somente o interior manchado testemunhava a morte de Jan. — Sinto muito, velho amigo, que tenha acabado assim — disse ele. — Que Deus nos conceda paz a todos. Com uma despedida final murmurada, segurou na urna com a palma da mão. Levando o braço atrás, arremessou-a, ficando a vê-la rasgar o ar e cair com um chape num remoinho de espuma, a uma grande distância a jusante.
Na paisagem árida em redor de Buffalo Springs, o campo estava semeado de uma massa de flores silvestres e o restolho de nova erva. Sarah andava em expedição, seguindo os elefantes naquele novo paraíso abundante em água, observando e fotografando o seu comportamento, agora que as pastagens eram de novo fartas. Rabindrah continuava no acampamento. O carro dele tinha sido rebocado para Isiolo e o tio Indar tinha mandado um mecânico de Nairobi. Mas eram necessárias mais peças sobresselentes e a reparação estava demorada. Os dias adicionais permitiram-lhe recuperar parte das energias de que a doença o tinha privado. No dia depois de a febre ter passado, Sarah tinha discutido com ele por causa da sua insistência em partir para Nairobi. — Tenho de partir amanhã — tinha ele dito, quando despertou do seu primeiro sono sem febre. — O Dan e a Allie já me aturaram que chegue. E se a Sarah fica aí a olhar por mim, estou a prejudicar o seu trabalho. — De maneira nenhuma — disse ela. — Neste momento, não posso conduzir até muito longe. A maioria dos trilhos foram apagados pela chuva ou reduzidos a lamaçais e todas as luggas estão cheias de água. Eu e o Erope estamos cansados de tirar o Land Rover de buracos e valas. Tenho andado a fazer excursões breves perto do acampamento e a pôr a papelada em dia. Quase todos os mapas do Dan foram levados pelo vento ou ficaram ensopados e temos estado a tentar reconstituílos a partir do que resta. Os cadernos de apontamentos da Allie também ficaram molhados. Tenho estado a secá-los ao sol e a bater à máquina o que ainda se consegue ler. — A tempestade apanhou-os então desprevenidos — disse Rabindrah. — Foi. Não prestámos atenção suficiente às nuvens. Andavam a ameaçar há tanto tempo que tínhamos deixado de vigiar o céu.
Sentou-se na beira da cama dele e deu-lhe um copo de água com cevada. A mão dele tremia de fraqueza ao levar o copo aos lábios e ela teve vontade de lha parar mas não se mexeu. Era um alívio que ele não estivesse consciente quando ela teve aquele gesto tonto. Tinha sido um impulso, disse ela a si mesma, ditado pelo alívio de ele ter aguentado a noite. Lidar com uma doença grave tinha esse efeito: quebrava a reserva natural. — Foi muito generosa. — Ele estava a olhar frontalmente para ela e a sua voz era áspera. Provavelmente era resultado da febre e dos vómitos, pensou Sarah. — Sempre que acordei, vi-a ao pé de mim. Deve ter passado o dia e a noite acordada. — Não foi maçada nenhuma. — Sorriu. — O meu pai tinha muitos ataques de malária e eu habituei-me a olhar por ele. E a Allie também ajudou, a mantê-lo quente ou a refrescá-lo. Ainda bem que o pior já passou. Estávamos preocupados consigo. — Não é uma experiência que eu queira repetir — disse ele. — Mas agora já recuperei e não devo dar-lhes mais trabalho. Sarah olhou para ele, para o rosto magro e cansado, para o branco dos olhos ainda amarelado da malária e dos medicamentos. Todos os seus instintos protectores se agudizaram. Sabia que queria que ele ficasse para poder cuidar dele. Mas achava que não podia exprimir esse desejo. Era absurdo e ele ficaria decerto embaraçado. A ideia embaraçava-a também. — Ainda não está em condições de fazer a viagem — disse ela. — As estradas estão perigosas… quilómetros de lama escorregadia que exigem concentração e força física. É preciso avançar sempre e não parar para não ficar atolado. — Sou bom condutor — disse ele. — Já conduzi com o tio Indar no Rally Safari da África Oriental. Não pode haver piores condições do que essas. — Neste momento, não tem nguvu suficiente para desatolar o carro — disse ela com firmeza. — Seja como for, o mecânico do seu tio voltou para Nairobi para ir buscar mais peças. Partiu na camioneta de Isiolo hoje de manhã. Foi uma aventura e tanto em que se meteu, Rabindrah. Agora está preso aqui enquanto as peças sobresselentes não chegarem e depois o mecânico leva-o para a cidade. — Mas posso apanhar boleia em Samburu num avião ou num carro de safári ou… — Não há mas nem meio mas. — Sarah inclinou-se e tirou-lhe o copo das mãos, pousando-lhe o dedo nos lábios para silenciar os seus protestos. — Esteve gravemente doente e precisa de repousar. — Os seus patrões não devem ver com bons olhos o facto de eu ainda cá estar — disse ele. — O Dan ficou zangado por causa da associação do episódio com os shifta com este acampamento — disse Sarah. — Mas isso já pertence ao passado e eles simpatizam consigo. Vá, relaxe e durma um pouco. Ele estendeu a mão e cobriu a dela e depois levantou-a e encostou os lábios ao pulso de Sarah. Ela sentiu como que uma onda eléctrica percorrê-la quando ele lhe tocou na pele. Ele estava com os olhos fechados. — E a Sarah? — disse ele. — Que pensa de mim? Ela olhou para ele em silêncio, alvoroçada com o contacto da sua boca e chocada com o desejo de se debruçar e passar os braços à volta dele e beijá-lo de novo. Há muito tempo que não experimentava aquela sensação. Desde o tempo de Piet. Com uma ponta de culpa, retirou a mão e atarefou-se a arranjar-lhe a roupa da cama.
— Acho-o extraordinário — disse ela. — Possui integridade, coragem e visão e é um bocadinho doido. Uma boa mistura. Mas, sobretudo, é um homem doente que precisa de descansar. E de comer. Vou arranjar-lhe qualquer coisa para comer. Levantou-se, apressando-se a sair do quarto antes de fazer alguma figura triste. Antes de se ver forçada a analisar aquilo que sentia. Rabindrah ficou de olhos fechados, inalando o perfume dela e a recordação do beijo que ela lhe dera. Estava tomado de febre, mas não lhe parecia que o tivesse imaginado. Era um bom karma que não estivesse em condições de viajar agora. Dar-lhe-ia uma oportunidade de se certificar. Recomeçou a chover, a água respingando no solo molhado e pingando do palhiço do lado de fora da janela. Só esperava que o tio Indar estivesse com falta de peças sobresselentes. — Como está o doente? — Dan levantou os olhos dos papéis quando Sarah entrou a abrigar-se do aguaceiro. Allie lançou-lhe um sorriso cúmplice e ela corou. Não havia nada que escapasse aos olhos perspicazes de Allie. — A febre passou — disse Sarah. — Se a temperatura subir esta noite, não há-de ser muito. Tem estado a dormir, mas agora vou levar-lhe qualquer coisa para comer. Depois pode sentar-se durante algum tempo. Vai sentir-se muito fraco nos próximos dias. Não me parece capaz de conduzir para Nairobi. Dan recostou-se na cadeira e tirou os óculos. — Não há pressa nenhuma na partida do Rabindrah — disse ele. — A não ser que esteja desesperado para entregar o artigo sobre o perigo que correu de ser assassinado pelos shifta. Sarah riu-se. — Está um pouco aflito por estar aqui. Sente que está a tomar tempo e espaço. — Hum. Imagino que levou a peito a descompostura que lhe dei. — Dan sorriu-lhe. — Bem, podes dizer-lhe que temos todo o gosto em tê-lo cá enquanto quiser. Desde que se mantenha afastado de bandidos e funcionários do governo. Não quero essa gente a visitar-nos. Sarah pegou num prato de sopa e em pão na cozinha e levou-os para a cabana dos hóspedes. Rabindrah estava fora da cama, pesadamente apoiado às costas da cadeira, o rosto macilento e coberto de suor. Sarah atravessou o quarto em passos largos e ajudou-o a meter-se novamente na cama. — Que diabo está a fazer a pé? — perguntou ela, alarmada com a sua palidez. — Pensei em pedir água quente e tomar um duche. Mas as minhas pernas não me querem obedecer. — Não, idiota, claro que não. Neste momento, não está em condições de ir a lado nenhum excepto entre esse penico e a cama. — Viu-o corar e apercebeu-se de que tinha falado demasiado abertamente. As raparigas indianas provavelmente não discutiam assuntos tão delicados com homens que não fossem seus parentes. — Desculpe se fui rude. Mas sou filha de um médico e o Rabindrah é meu doente. Vá, tem aqui sopa e pão para se fortalecer. Há dias que não come nada. Não admira que se sinta tão fraco. Viu que a mão dele continuava a tremer e sentou-se na beira da cama, pegando na colher e dandolhe de comer. — O Dan há-de cá vir mais tarde — disse ela. — Não tenciona deixá-lo partir enquanto não achar que está em condições. Ele acenou com a cabeça e terminou a refeição em silêncio. Quando ela lhe limpou as mãos e a cara com um pano fresco, ele agradeceu-lhe e voltou a fechar os olhos, emitindo um pequeno som
de frustração. Sarah interrogou-se se ele se sentiria embaraçado por estar tão dependente, incapaz de fazer sozinho as coisas mais simples. E estava com um aspecto terrível, pegajoso, por barbear e a precisar de se lavar. Durante o período pior da febre, ela e Allie tinham-lhe dado banho com frequência. Mas era melhor não falar disso. Foi buscar uma bacia de água e pousou-a na cadeira ao lado da cama. Deixou-o então entregue às suas abluções e voltou para o seu trabalho. Na noite do dia seguinte, Rabindrah fez-lhes companhia no edifício principal, um pouco inseguro nas pernas mas claramente satisfeito por estar a pé. — Seria possível usar o rádio? — perguntou. — Queria perguntar ao meu tio quanto tempo vai demorar a arranjar as peças sobresselentes para o carro. — Neste momento estamos sem rádio — disse Dan. — Desde a tempestade que não consigo pôr o diabo do aparelho a trabalhar. — Já fui radioamador — disse Rabindrah. — Talvez possa dar uma olhada lá dentro. Não sou nenhum especialista mas, em Inglaterra, tinha uma série de receptores e equipamento. Um monte de ferro velho, por sinal. Mas na altura era um entusiasta. Ao fim da tarde, quando Sarah chegou ao acampamento com Erope, o rádio estava a estalejar e Dan arvorava um sorriso deleitado. — Olha só para isto, miúda — disse ele. — Voltámos ao convívio do mundo. Grande trabalho aqui do Rabindrah. Queres uma bebida? — Não dizia que não a uma cerveja fresca — disse Sarah, sentindo o sangue incendiar-se quando Rabindrah lhe enfiou o copo nas mãos. Passaram o serão a ouvir as histórias de Dan e Allie sobre os primeiros tempos do seu trabalho de pesquisa quando viviam numa tenda no Parque Nacional de Tsavo. O precário abrigo era frequentemente derrubado por hienas que tentavam roubar-lhes as minguadas provisões de alimentos frescos e uma vez foi espezinhado por um elefante que tomou um atalho. Riram-se com vontade das recordações extremamente dramáticas de Dan e das correcções que Allie secamente fazia às histórias do marido. De vez em quando, Rabindrah aproximava-se de Sarah para partilhar uma reacção, tocando-lhe ao de leve o braço com os compridos dedos. Mas ela não dava sinal de reparar nas suas investidas e ele sentia-se intrigado e frustrado. Allie observava-os, via a maneira como Sarah por vezes olhava de relance para ele. Achou que havia uma ligação especial entre ambos e uma vulnerabilidade comovente. Mas, após cada olhar dissimulado, Sarah retesava os ombros e distanciava-se resolutamente de um contacto mais próximo.
A chuva caía intermitentemente, mas não houve mais enxurradas. No segundo dia fora da cama, Rabindrah insistiu que já estava em condições para sair no Land Rover e Sarah decidiu que fariam uma visita à manyatta de Erope. Os samburu tinham tirado dois dias para ajudar a reparar os estragos da tempestade no recinto onde a família dele residia. A viagem foi difícil, em terreno alagado, e ela não tardou a começar a arrepender-se de levar Rabindrah tão longe. Ele ainda exibia más cores e ela receou que ele estivesse a fazer um esforço excessivo, mas Rabindrah garantiu-lhe que estava com forças suficientes para a expedição. A manyatta era um mar de lama. A chegada das chuvas tinha sido recebida com alegria e as pastagens para o gado tinham beneficiado delas. Todavia, duas das cabanas tinham ruído parcialmente e, nas condições chuvosas, a reconstrução avançava lentamente. A água tinha-se
infiltrado nas rachas e fissuras das estruturas térreas e a lenha para as fogueiras em que cozinhavam estava molhada. As divisões interiores tresandavam a fumo que se desprendia da madeira húmida. Sarah e Rabindrah começaram a engasgar-se e o ar acre aguou-lhes os olhos. Várias crianças estavam adoentadas e a tossir e o cheiro a excremento molhado permeava tudo. Para Rabindrah, foi uma revelação e Sarah notou que ele estava abalado com as condições primitivas e as tribulações a que estava a assistir. Ela foi percorrendo o recinto, fotografando a desolação, procurando nos bolsos rebuçados, lápis e papel que tinha levado para as crianças. Vendo o estado actual do lugar, pensou se Rabindrah mudaria de ideias a respeito de viver com os nómadas do Norte durante um ano. Talvez optasse por um projecto diferente e depois não voltaria a vê-lo. A possibilidade encheu-a de desolação e afastou-se dele para fotografar do outro lado da manyatta. — Vou escrever um artigo para o jornal — declarou Rabindrah quando deixaram a manyatta. — Se me deixar usar um par de fotografias suas. O Erope acha que os chefes não poriam objecções e podia trazer alguma ajuda humanitária à região. Deve haver mais bomas como esta ou ainda piores. E acho que sou capaz de conseguir alimentos e medicamentos para as crianças. Um dos meus primos é médico em Nairobi. Gostava de ajudar. Erope ficou surpreendido. Não estava habituado a que um indiano lhe oferecesse o que quer que fosse. Os duka wallahs nas vilas não eram famosos pela sua generosidade. Não tinham respeito pelos Samburu e, em momentos de crise, o mais certo era cobrarem preços exorbitantes pelos seus produtos, sabendo que os membros das tribos não tinham mais nenhum sítio onde comprar provisões essenciais. Mas este estava a oferecer ajuda. Era diferente. Sarah tinha explicado a finalidade do livro e frisado que o Land Rover em que viajavam tinha sido mandado de Nairobi pelo tio wahindi. Erope inclinou-se e estendeu a mão a Rabindrah. — Asante — disse ele e esse momento marcou o princípio de um respeito e amizade recíprocos. Sarah sentiu-se deleitada por os dois homens, ambos tão importantes na sua vida, se terem finalmente aceitado um ao outro. O seu sorriso era caloroso quando tocou fugidiamente no braço de Rabindrah e ele lhe agarrou na mão por breves momentos. Mas, quando chegaram ao acampamento, já ele estava a tremer de fadiga. Insistiu que um curto repouso e um duche antes do jantar o poriam como novo e Sarah acompanhou-o à cabana. Quando entraram, ele fechou a porta e puxou-a para si, vacilando um pouco com a fraqueza, mas mantendo-a apertada contra o peito. Ela sentiu o corpo dele sob o tecido da camisa de algodão. A malária tinhao privado da delicada cobertura de carne sobre os ossos, mas ela parecia encaixar perfeitamente na sua figura. Ele sentiu-a estremecer e, por um momento, convenceu-se de que ela o deixaria beijá-la. Susteve a respiração, apercebendo-se com espanto de que se tinha apaixonado perdidamente por aquela pequena rapariga, bela e determinada. — Sarah — disse ele, num voz suave, apertando-a contra si. — Pequena Sarah… Nesse instante, quando ele pronunciou as palavras ternas que Piet usava sempre, o corpo dela tornou-se rígido e afastou-se dele. Depois saiu do quarto, deixando-o siderado, trespassado pela dor da sua rejeição. A atracção entre ambos era poderosa. Rabindrah tinha a certeza de que ela também a sentia. Não compreendia o que tinha destruído esse maravilhoso e frágil momento. À mesa do jantar, Sarah pouco falou, deixando-o descrever as condições da manyatta. Depois da refeição, retirou-se imediatamente e Dan pegou numa candeia e voltou a concentrar-se nos seus mapas. Allie ficou com Rabindrah. — Uma gotinha de conhaque é capaz de pôr o teu sistema a carburar outra vez — disse ela.
— Quero agradecer a tua generosidade. — Aceitou a dose substancial que ela lhe serviu. — Assim que for possível, vou-me embora, mas espero voltar dentro de dois meses com as provas finais do nosso livro, agora que a Sarah aprovou a paginação. — Há-de ser um dia memorável — disse Allie. — Saúde. — Esta ideia das tribos nómadas no Norte vai exigir pelo menos um ano de pesquisa — disse Rabindrah, encorajado pelo entusiasmo dela. — Continuo a ter esperança de que a Sarah se encarregue das fotografias sem ter de se ausentar muito daqui. É uma actividade que só há-de ocupar uns dias de cada vez, ao longo de um período de tempo dilatado. — Fez-lhe bem ter preparado este primeiro livro. Depois de tudo o que aconteceu. E tu foste habilidoso ao conseguires interessar o teu editor pelos nómadas do Norte. Uma sorte. — Lançoulhe um olhar perscrutador e, à luz da candeia, pareceu-lhe vê-lo corar. Mas ele encarou-a frontalmente. — É verdade — disse ele. — O John Sinclair está interessado em publicar mais trabalhos da Sarah. Ela seria ideal para fotografar a vida dos nómadas porque vê e compreende mais do que qualquer fotógrafo que conheço. — Ora, ora, Rabindrah. Não julgues que me enganas — disse Allie. — Não é só o talento dela como fotógrafa que te interessa. — És uma mulher perspicaz, Allie. — Fez rodar o copo de conhaque suavemente. — Eles estavam perdidamente apaixonados um pelo outro, o Piet e a Sarah, era um amor absolutamente perfeito — disse ela, vendo-o estremecer. — Ela esperou muito tempo por ele e depois, quando tudo se tinha transformado num conto de fadas, ele foi-lhe levado da maneira mais brutal. É difícil para ela esquecer. Pode levar muito, muito tempo porque ela é esse tipo de pessoa. Precisas de ser paciente, meu rapaz, caso contrário ela fecha-se e podes perdê-la de vez. E arruínas quaisquer hipóteses que tenhas. — Posso esperar — disse Rabindrah. Mas temia que já pudesse ter cometido um erro irreparável. — Entretanto, podemos reforçar a nossa amizade. — Bem, desejo-te felicidades — disse Allie. — Nós nutrimos uma enorme afeição pela Sarah e ela não pode continuar a viver com a ideia do que poderia ter acontecido. Mas tu tens de avançar com pezinhos de lã. Durante os dois dias seguintes, ele mostrou-se casualmente cordial, saindo com Erope e Sarah, tomando notas e evitando qualquer intimidade. Mas sentia a tensão de não exprimir o que lhe ia na alma. Contudo, aos olhos de Dan, subiu alguns pontos quando conseguiu congeminar uma peça sobresselente para o velho frigorífico de querosene onde eram esfriadas as cervejas. — Bom trabalho — disse Dan, abrindo duas Tuskers frescas. — Nós, os siques, somos supostamente bons mecânicos — disse Rabindrah. — Se bem que o meu pai não seja capaz de montar uma anilha numa torneira. Mas eu aprendi alguns truques com o tio Indar que se têm revelado muitos úteis. Foram interrompidos por uma explosão de estática do rádio. Sarah escutou, horrorizada, as notícias de Lars. — Foi o Jan van der Beer — disse ela mais tarde. — Foi assassinado numa emboscada na Rodésia. O Lars foi lá e trouxe a Lottie para Langani. O serviço fúnebre é depois de amanhã. — Olhou para Allie e depois para Dan. — Vou ter de lá ir, fico só de um dia para o outro. Sinto muito, mas tenho mesmo de lá estar.
— Claro que tens — disse Allie e Dan indicou a sua concordância. — Pobre rapariga… que rosário de desastres. Sim, vai apoiá-la. A sério. Não faz diferença. — O Lars perguntou… — Sarah hesitou. Rabindrah já estava no acampamento e agora ia pedir para trazer outro hóspede. — Acho que ele quer que a Hannah venha passar aqui alguns dias depois da cerimónia — disse ela. — Podia ficar na minha cabana. Mas provavelmente traz a Suniva e às tantas nenhum dos dois quer ter aqui um bebé. — Disparate. É maravilhoso ter cá um bebé, não é, Dan? — Ignorou a expressão de alarme nos olhos dele e olhou directamente para Sarah. Trá-los contigo. Temos muito gosto em receber a Hannah por quanto tempo ela quiser. — Não vai ter problemas em conduzir sozinha com este tempo? — perguntou-lhe Rabindrah, no dia seguinte. — Vou partir muito cedo e esperar que não chova durante toda a viagem — respondeu ela. — Gostava muito de ir consigo, mas acho que a minha presença não seria muito indicada — disse ele. — Mas posso ficar num hotel em Nanyuki. Aliás, pensando agora nisso, posso continuar para Nairobi e deixar o mecânico levar-me o carro quando estiver reparado. — Não, não faça isso. — Sarah teve noção da ênfase que pôs nas palavras. — Ainda não está recuperado. Sinceramente. — Então espero que regresse — disse ele. Tinha-se apercebido de um brilho nos olhos dela e achou que ela queria que ele ficasse. Passoulhe levemente os braços pelos ombros e ela virou a cabeça, pousando-a no ombro dele e fechando os olhos. — Só queria que tudo isto acabasse — disse ela. — Que a vida recomeçasse sem o sofrimento, as más recordações e a culpa. — Há-de acabar — disse Rabindrah, tocando-lhe no cabelo com o coração aos saltos. — Em breve será assim.
Sarah partiu de madrugada no dia do serviço fúnebre, conduzindo muitos quilómetros sobre um piso escorregadio e parando várias vezes quando os fortes aguaceiros reduziam a visibilidade a zero. Contudo, foi quase sempre avançando a passo de caracol, tentando manter um andamento regular, receosa de ficar atolada, sozinha, durante horas. A viagem parecia interminável. Ultimamente, tinha a sensação de estar sempre a dirigir-se ou a afastar-se de mais uma tragédia. Quando se apeou rigidamente do carro, Hannah estava à espera dela. O seu cabelo estava preso atrás numa meia trança, mas tinha a camisa amarrotada e os olhos baços. — Sinto muito, Han. — Sarah abraçou-a. — Sinto muito. Quando aconteceu? — Há seis ou sete dias. Oh, não me lembro ao certo, é tudo uma confusão. O Lars estava lá. Foi lá falar-lhes da Wanjiru. Para desgraça, já bastava. E o meu pai saiu com o Kobus nessa noite e mataram-no. Ainda bem que a minha mãe não estava sozinha. Calou-se, incapaz de continuar a falar do pai. Depois respirou fundo e exalou lentamente antes de falar. — Foi morto numa patrulha aos terroristas. Morreu por esse rufia do Kobus, que nunca quis saber dele. Perdeu a vida por uma fazenda de tabaco que não era dele e com que nunca se preocupou. Que fim, eh?
— Coitado do Janni. Foi uma figura tão importante da minha infância. — Já nem me lembro do que foi ser criança — disse Hannah. — Estou exausta, há semanas que mal durmo. Anos, talvez. Vamos para dentro, ver onde está a minha mãe. Está morta por te ver. — Sarah, minha querida. Ainda bem que pudeste vir — disse Lottie. — Anda daí almoçar depois dessa viagem cansativa, sozinha ainda por cima. E depois podes descansar um pouco. O serviço é só às quatro horas. O meu irmão Sergio chega esta tarde. Voou ontem de Joanesburgo e neste momento vem a caminho. À hora do almoço, Lottie comeu muito pouco. Ficou sentada, a desfazer um pedaço de pão no prato, fixando o lugar onde, noutro tempo, Jan presidia à mesa. Ainda era muito bonita, pensou Sarah, e sempre seria. Havia agora um lado majestoso nela e a sua coragem transparecia, iluminando os olhos grandes e escuros e o sorriso generoso que não tinha mudado. O seu rosto estava pálido do esforço de estar sentada à mesa, tentando não pensar no serviço fúnebre e na imagem de Janni que teria de transmitir aos velhos amigos dele. A sua cadeira vazia sugeria-lhe aparições. Como Banquo a cismar na festa de Macbeth, pensou. Piet e agora Janni, cobertos de sangue e presentes, no limite da sua visão. Não espereis pela ordem de sair. Ide imediatamente… Tinha-se esforçado por convencer Hannah a deixar a fazenda depois da morte de Piet. Talvez devessem ter abandonado todos a loucura que se apoderara deles. Talvez fosse isso que Hannah e Lars deviam fazer agora, antes que aquilo que restava da Fazenda de Langani se esboroasse na poeira africana. Mais tarde, da janela do quarto, Sarah viu Lottie no jardim. Levava um cesto no braço e uma tesoura de poda na mão e começou a cortar flores para a cerimónia como que em transe. Somos todos como autómatos, pensou Sarah. A executar mecanicamente os movimentos. Neste lugar, o passado não era uma coisa que se deixasse para trás. As recordações amontoavam-se em cada esquina, em cada sala, as mais felizes tão difíceis de suportar como as tragédias porque continham, por um instante fugaz e tentador, a felicidade que fora negada. Para onde quer que Sarah olhasse, dentro ou fora de casa, os fantasmas surgiam ao seu encontro. Fatigada, cobriu os olhos com as mãos, ansiando por escapar. A chuva tinha parado mas o céu estava encoberto e a montanha tinha um ar ameaçador, uma mancha azul-escura coberta de nuvens tristonhas, velando sobre a paisagem. A ideia do serviço fúnebre acabrunhava-os, assim como a tensão de preservar o bom nome de Jan junto das pessoas que vinham despedir-se dele. E, se Simon Githiri fosse apanhado e levado perante a justiça, que seria então do legado de Janni e do futuro da fazenda? A ideia do jovem quicuio encheu Sarah de repulsa. Se a polícia o capturasse, ele seria provavelmente executado, e quem podia discordar de tal veredicto? Contudo, os oficiais brancos que tinham matado o pai dele nunca tinham sido considerados culpados. É certo que, no fim do estado de excepção, tinha havido uma amnistia. Milhares de combatentes Mau-Mau tinham saído das florestas em liberdade, após anos de matanças indiscriminadas. Mas, mesmo assim, assar um homem vivo? Eram vítimas de guerra, decretou a lei, como o irmão de Jan assassinado. Jan deve ter temido toda a vida que o ajuste de contas chegasse um dia. Mas não tinha imaginado que a vingança viesse a abater-se sobre o filho. Sobre o seu amado Piet. Os pensamentos de Sarah transformaram-se num turbilhão e ela saiu de casa para se afastar das suas meditações solitárias. Uma cossifa cantava e o sol tinha começado a espreitar das nuvens, transformando as imensas planícies num lugar de beleza matizada, como uma pintura impressionista. Talvez a pintura mais valiosa jamais cobiçada ou possuída.
Sergio chegou quando ainda estavam no jardim e o alívio e gratidão de Lottie foram palpáveis quando cumprimentou o irmão. Mas Sarah interrogou-se se ele conheceria toda a verdade por detrás da tragédia. Por volta das quatro horas, as pessoas começaram a chegar, quando o sol desaparecera e a chuva mais uma vez ameaçava cair. Jeremy Hardy apareceu com a mulher e o velho Dr. Markham era uma presença reconfortante. Grande parte da comunidade de agricultores locais compareceu, incluindo os Murray, que eram os vizinhos mais próximos. Velhos amigos apresentaram constrangidos votos de condolências, formando grupos à parte. Hannah sentiu-se aliviada por o tempo estar demasiado agreste para que o serviço fúnebre tivesse lugar no relvado. A última cerimónia ali realizada tinha sido o seu casamento e, ao recordar esse dia repleto de felicidade e promessa, não foi capaz de suportar a sombra da vida e da morte do pai lançando uma onda de tristeza sobre uma recordação tão preciosa. O serviço realizou-se na sala de estar. Lottie tinha preparado uma mesa, adornando-a com flores e uma fotografia encaixilhada de Jan. Ele estava em pé, na margem do rio, olhando directamente para a objectiva. Um homem afável e alto, com a mulher pelo braço, e o filho e a filha ao seu lado. Era a imagem preferida de Lottie, a que tinha procurado preservar contra as amargas lembranças subsequentes. Ao lado da fotografia, a velha Bíblia africânder de família estava aberta na página que registava o seu nascimento. Duas velas tremeluziam em castiçais de prata, conferindo laivos irrequietos à imagem da fotografia, quase como se o homem estivesse a mover-se, a sorrir, a levantar um braço para saudar os amigos reunidos. Foi uma cerimónia simples. O pastou convidou-os a recordar o amigo e vizinho e a rezar por ele e pela família enlutada, nas circunstâncias da sua trágica morte. Depois de ditas as preces fúnebres, foi dada uma bênção e o grupo cantou o hino escolhido por Hannah. Bill Murray falou em nome dos presentes. — Tive o privilégio de conhecer o Jan van der Beer e a sua família desde o dia em que aqui cheguei há muitos anos. Trabalhámos lado a lado, eu e o Jan, nas nossas fazendas, partilhando os tempos bons e os maus e ajudando-nos um ao outro quando era necessário. Ele era um bom homem… em todas as acepções da palavra. Um homem com um grande coração, um amigo leal. Um homem determinado que trabalhava arduamente para sustentar a família e para proporcionar condições de vida justas aos trabalhadores da sua fazenda. É profundamente triste que tenha morrido tão longe da terra que amava. Para a Lottie, para a Hannah, para o Lars e para todos nós. Que tenha acontecido tão cedo depois da morte do Piet intensifica essa tristeza. Nós, vossos vizinhos, não podemos fazer ideia da dor que devem sentir mas queremos que compreendam que estamos do vosso lado como verdadeiros amigos. Que faremos tudo para aliviar o fardo da vossa dor. Hoje estamos aqui para vos manifestar o nosso apoio e para vos ajudar a defender a vossa casa e família. Espero que encontrem consolo no facto de não estarem sós. Que o Jan descanse em paz agora. Lembrá-lo-emos sempre com bondade e respeito. Que Deus esteja com a Lottie e convosco, Hannah e Lars e a vossa bonita filha. E oremos para que, doravante, Langani não conheça senão a paz e a prosperidade. Ámen. Lottie fechou os olhos, desejando que tudo acabasse depressa, temendo os momentos em que teria de relatar a versão combinada da morte do marido e ouvindo as palavras de simpatia. Tudo o que fora dito era simultaneamente verdade e mentira e a distinção entre ambas já pouco lhe importava. Hannah sentiu o desespero da mãe e pegou-lhe na mão. Mas, mais tarde, cercadas pelos velhos
amigos, ansiosos por oferecer toda a ajuda que pudessem, Lottie começou a sentir os efeitos positivos da reunião. Muitos demoraram-se até tarde, partilhando recordações e contando histórias que suscitaram risos de afecto e um sentido particular de paz.
A viagem para norte trouxe a Hannah uma sensação de libertação embora se tivesse sentido culpada, durante a primeira hora, por ter abandonado Lars e a mãe. — O Sergio fica por cá mais uma semana — tinha dito Lottie, em resposta ao convite de Sarah para as acompanhar. — Veio de muito longe e quero passar algum tempo com ele — disse ela. — Além disso, é um prazer ter novamente um jardim e vou adorar estar na vacaria e ajudar o Lars. Minha querida Hannah, aproveita bem estes dias de férias. E não te preocupes com nada. Nós ficamos bem e tu podes contactar-nos do acampamento. Hannah tinha-se debruçado na janela para acenar a Lars e à mãe até a distância esbater as suas formas. Durante algum tempo não falou, esgotada pelo turbilhão de emoções em que tinha andado nas últimas semanas. Agora que o serviço fúnebre tinha terminado, era como se tivesse chocado contra uma parede. — Não sou grande companhia — disse ela por fim. — Mal consigo respirar. Até isso é um esforço. — Então concentra-te em respirar, Hannah. E descomprime. Sabe-se lá há quanto tempo não consegues relaxar. Olha para a Suniva… domina a técnica na perfeição! A bebé estava profundamente adormecida na alcofa, no banco de trás, indiferente ao calor, ao pó, à felicidade ou à dor. Hannah estendeu o braço atrás para lhe tocar na face e depois sorriu e deixou a paisagem desfilar como que num sonho. A certeza de que Simon Githiri estava vivo, seguida de tão perto da notícia da morte do pai, tinha explodido como um meteoro dentro das frágeis defesas que tinha lutado para erigir em redor da família. No seu subconsciente, não parava de ver imagens da sua infância. Visões do pai, sorridente, risonho, a pegar nela ao colo, a ensiná-la a montar, a nadar, a pescar e a caçar, a confortá-la quando caía e esfolava os joelhos. Uma parte de si queria bloqueá-las e nunca mais pensar nelas. Mas temia aquilo que se precipitaria para tomar o seu lugar. Tinha medo da outra parte secreta da vida de Janni e das suas fatídicas consequências. Havia um acordo tácito para não falar de Langani. Foi Hannah quem abordou o tópico de Tim. — Não sei o que ele anda a fazer — disse Sarah. — O meu pai diz que retomou o trabalho, mas que está muito deprimido. E a Deirdre não voltou a aparecer. Mas há uma coisa que tu não sabes. Contou a Hannah toda a história, descrevendo a sua própria fúria e confusão perante a descoberta de que Tim estava em Londres e do segredo entre ele e Camilla do qual tinha sido excluída. — O Tim é um caso desesperado mas, ao mesmo tempo, é astuto — disse Hannah. — Que queres dizer com isso? — Não sei, tem sempre um ar muito desarranjado e terno. Sempre que se mete numa alhada, põe aquela expressão indefesa e confusa. E de repente as pessoas largam tudo e começam a resolver-lhe os problemas. — É, suponho que é verdade — disse Sarah, esboçando um sorriso. — Nunca o tinha visto sob esse prisma. Mas já o safei de muitas trapalhadas. E, às tantas, esse papel calhou agora à Camilla. Mas ela devia ter tentado explicar. Deviam os dois. — A Camilla nunca conta nada a ninguém — disse Hannah. — Remete-se ao silêncio ou
desaparece completamente. Não percas tempo a esperar uma explicação dela. Não choveu durante a viagem e Sarah sentiu-se aliviada por não ter de desatolar o carro da lama com um bebé a bordo. Fizeram duas paragens para uma bebida fresca e para comer as sanduíches que Kamau tinha preparado. Dan e Allie ainda andavam no mato quando chegaram ao acampamento, à tarde. Sarah tirou a alcofa com a criança adormecida do Land Rover e levou-a para a cabana. Tinha sido montada outra cama no seu quarto e ela olhou para o espaço com novos olhos, esperando que Hannah o visse à mesma luz e retirasse conforto da sua simplicidade. — Acho que vou ficar aqui até a Suniva acordar. — Hannah deixou-se cair na cama de campanha. — Claro. Queres que vá arranjar qualquer coisa de comer ou uma chávena de chá? — Para mim, não, obrigada. Credo, estou estourada. Sou capaz de dormir um bocado. Não consigo manter os olhos abertos. Sarah pegou em alguns apontamentos da secretária e instalou-se à sombra da acácia com uma bebida fresca. — Como é que correram as coisas? Ao ver Rabindrah, sentiu uma onda de prazer. Tinha-se interrogado se ele ainda ali estaria quando voltasse. — Acho que a Hannah está à beira da ruptura. De cada vez que recomeça, que volta a sentir alguma felicidade, as esperanças dela são novamente destruídas. Meu Deus, como as nossas vidas mudaram! — Reclinou-se na cadeira. — Às vezes acordo com a sensação de que me bateram na cabeça, que estou a ser castigada não sei porquê. Fomos todos assaltados por forças sinistras, acabámos noutro lugar em que nunca pensámos que estaríamos. Parece absolutamente irracional. — Os grandes desígnios de Deus. Muitas vezes são inescrutáveis — disse ele. — Hoje em dia, quase odeio lá voltar — disse Sarah, quase como se falasse consigo mesma. — Éramos muito felizes em Langani quando andávamos na escola, eu, a Hannah e a Camilla. Mas as fundações foram arrancadas, juntamente com gerações de amor, dedicação e trabalho árduo. Primeiro o Piet, depois o Janni. Não faço ideia do que a Lottie vai fazer agora nem do que vai ser da Hannah e do Lars.
A chegada de Dan e Allie da expedição da tarde, despertou Hannah, que foi ter com eles com uma Suniva acordada. — Agradeço-vos a amabilidade de me acolherem aqui — disse ela. — Olá, Rabindrah. Está com ar de quem já recuperou. A Sarah não sabia se ainda cá estaria. — A malária, os bandidos e a chuva fizeram dele nosso prisioneiro — disse Allie. — Se bem que não por essa ordem. Bem-vinda, Hannah. Sinto muito o que aconteceu ao teu pai. Hannah acenou com a cabeça. Ainda era demasiado penoso falar dele. — Já acabaram o livro? — Dirigiu-se a Rabindrah. — Quando é que podemos ver uma prova ou lá como se chama? — Dentro de dois meses mais ou menos, quando as bonitas chapas da Sarah estiverem prontas — disse ele. — Também lamento muito a morte do seu pai. A situação na Rodésia só pode piorar. Na minha opinião, vai degenerar numa guerra em grande escala. Ele pertencia a um dos regimentos rodesianos? — Não estava a combater guerra nenhuma — disse ela friamente. — Era um simples agricultor que tentava cultivar alguns hectares de tabaco. Não era ninguém de especial importância. Foi
apanhado no fogo cruzado, pode dizer-se assim. Sem nenhum interesse com certeza para um artigo de jornal. — Bem, sinto muito que tenha perdido a vida — disse Rabindrah, consciente da animosidade dela. Abespinhava-se com facilidade, esta amiga de Sarah. Teria de ser cuidadoso. — Vai uma bebida, pessoal? — Dan estava numa disposição efusiva. — Tenho um cocktail especial para jovens mães. Tomem um agora antes de irem para o duche. É reconhecidamente infalível. — Infalível, como? — perguntou Sarah, a rir. — Vá lá então, Dan. Vamos experimentar. Sentaram-se em cadeiras de lona, a saborear uma potente mistura de rum, lima e Cointreau, preparada para a ocasião. Hannah sentiu a tensão dissolver-se enquanto saboreava a bebida e fazia perguntas a Allie sobre o trabalho. Mais tarde, Sarah ouviu-a trautear no duche e sorriu para si mesma enquanto dava o biberão a Suniva. Hannah nunca conseguia cantar afinada. Depois do jantar, sentaram-se debaixo das árvores, recostando-se a contemplar o céu cintilante, a aquecer os pés esticados nas cinzas da fogueira. À distância, ouviram um leão rugir e depois um forte rosnido antes de ele rugir novamente. — Ora aí está um tipo à caça do jantar — disse Dan. — Espero que não fique nisso toda a noite. — Acho que não vai conseguir manter-me acordada — disse Sarah. — Nem sei se consigo chegar à cama. Mais tarde, quando estavam deitadas no escuro a ouvir as correrias das osgas no telhado, Hannah soergueu-se sobre um cotovelo. — Sarah? Lembras-te da última vez que estivemos aqui juntas? Foi no Verão em que fizemos vinte e um anos e tínhamos prometido passar os nossos aniversários juntas. Tu chegaste da Irlanda e a Camilla de Londres. E eu tinha fugido da Rodésia e regressado à fazenda para trabalhar com o Piet. Lembras-te de como éramos felizes e dos sonhos que tínhamos nesse tempo? — Lembro. — Não achas que devíamos escrever à Camilla? Contar-lhe o que aconteceu? — Sim, suponho que sim. — Não serve de nada estares zangada com ela por causa do Tim — disse Hannah. — Não deves cometer o mesmo erro que eu, quando pensei que tu e o Lars tinham um segredo. — Não. Não se pode dizer que o Tim seja perito a enganar ninguém — disse Sarah. — E a Camilla é o tipo de pessoa que provavelmente me diria se andasse a dormir com o meu irmão. Quer eu quisesse saber ou não. — E então? — Escrevemos-lhe amanhã. Agora dorme, por amor de Deus, senão vais arrepender-te quando eu te tirar da cama às cinco e meia da manhã. — Já estou a dormir — disse Hannah. Ficou de olhos abertos, habituada agora à escuridão e conseguindo distinguir as formas e as sombras dos objectos à sua volta. Estava esgotada mas tinha chegado ao ponto em que, ao fechar os olhos, as imagens a submergiam como uma maré. — Sarah? — A resposta não passou de um murmúrio, dando debilmente a entender que tinha ouvido. — O Piet sabe que estamos aqui? Está a olhar para nós de um lugar qualquer? — Acho que sim. Sei que me protege. Que nos protege a todos. — E o meu pai? — perguntou Hannah. — Se o que aprendemos na escola é verdade, se aquilo em que as freiras e o pastor acreditam é correcto, então está a arder num inferno eterno e terrível e
nunca há-de escapar. — Não acredito em nada disso — disse Sarah. — Acho que o Janni pagou por tudo o que fez muito antes de morrer. Pagou a dívida dele em vida. E agora está em paz. — Espero que tenhas razão. — Hannah deitou-se de novo na escuridão, pensando no pai como o conhecera, antes de o seu mundo inocente e ordeiro ter sido arrasado. Por algum tempo, ficou suspensa nas fímbrias da sua consciência e ainda se debatia para ver o rosto dele quando adormeceu.
O ar estava fresco quando Sarah acordou ao nascer do dia. Abanou Hannah levemente e observou-a a dar de mamar e a mudar a fralda à bebé, metendo-a depois na alcofa. Em seguida, levaram-na para o Land Rover, a gorgolejar e a agitar os bracinhos e as pernas. Não havia sinais de Rabindrah. — Amanhã acompanha-nos? — tinha-lhe perguntado Sarah na noite anterior. — Acho que amanhã fico por aqui — tinha ele respondido, consciente de que Hannah podia não apreciar a sua companhia na viagem e não querendo intrometer-se na sua tristeza. — Devem ter coisas sobre que conversar que dispensam bem a presença de um terceiro. Afastaram-se, embrenhando-se nos zunidos, chilreios e palração das aves e dos insectos. Sarah apontou para um órix camuflado nas ervas altas e penugentas e avistou gerenuks e girafas muito antes de Hannah os ver. Quando chegaram ao rio, uma pequena manada de elefantes estava a beber e a molhar-se com as trombas cheias de água. Sobre eles, na fila de árvores, uma trupe de babuínos guinchava, dando caça uns aos outros, competindo por bagas e folhas, saltando e correndo através dos ramos ou sentando-se em grupos compactos e catando as pelagens uns dos outros. Uma águiapesqueira patrulhava o rio e foi pousar num pedaço de madeira flutuante e esbranquiçada na margem, a sua chamada de caça reverberando no ar suave. — Quanto tempo é que o Rabindrah vai ficar? — perguntou Hannah. — Espero que não torne a abordar o assunto do meu pai. Nem comece a espiolhar os pormenores da morte dele. — Só cá está até o carro dele ficar reparado. E não me parece que lhe passe sequer pela cabeça fazer isso. Não é justo partir do princípio de que ele escreve tudo o que ouve sobre as tragédias pessoais dos outros. Ele não é assim. — Desculpa — disse Hannah. — É evidente que te tornaste bastante amiga dele e que o Dan e a Allie também têm muito boa impressão dele. Suponho que começámos mal quando ele apareceu em Langani naquele dia. — Também fiquei aborrecida quando ele lá apareceu — disse Sarah. — Mas tenho gostado de trabalhar com ele. — Vão escrever outro livro juntos? — Não sei — disse Sarah. — Eu gostava, se for possível conciliar com o meu trabalho aqui. Seria interessante fotografar os nómadas e as tribos pastorícias entre esta região e a Somália. — É difícil ver as coisas com objectividade, não é? Credo, Sarah, espero que possamos todos voltar a viver como gente normal num futuro próximo. Incluindo a minha pobre mãe. — A Lottie é muito forte. O Janni teve sorte por ela ter ficado ao lado dele durante tantos anos. — Mas ela já não o amava. Como podia, quando ele se tinha transformado num bêbado? — Hannah estava a falar com brutal honestidade. — Deve ter vivido numa solidão desesperada e ele
era por vezes violento. Nunca compreendi por que razão ela não o deixou. No meu caso, acho que nunca seria capaz de fazer esse tipo de sacrifício por alguém que me tratasse mal. Não tenho assim tão bom coração. Ainda me custa a acreditar no que ele fez, Sarah. O meu próprio pai. — Ele pagou um preço terrível, Han. — Quem pagou o preço foi o Piet — retorquiu Hannah. — Com a vida. E não sou capaz de perdoar ao meu pai por isso. Ele devia ter ficado na fazenda ou ter-nos avisado pelo menos. Talvez assim tivesse salvo o Piet do Simon Githiri. Sabes, ganhei-lhes um ódio igualmente intenso, ao Simon e ao papá, quando compreendi pela primeira vez o que se tinha passado. Nem sabia dizer qual deles odiava mais. — O seu tom de voz revelava uma infinita tristeza. — Devia ter mandado uma mensagem ao meu pai pelo Lars. Qualquer coisa. Mas não mandei e agora é tarde de mais. — Ele sabe, Hannah. Ele sabe tudo agora.
Decorreram dois dias e as feições de Hannah começaram a adoçar-se à medida que se ia habituando à rotina do acampamento. Sorria mais e com mais frequência e começou a recuperar o aspecto da rapariga forte e optimista que era antes da morte de Piet. — Não nos acompanha esta manhã? — perguntou ela a Rabindrah no segundo dia. — Ou perdeu o interesse pela Sarah e pelos elefantes agora que terminou o livro? — Claro que não — disse ele, mordendo o isco. — Ah, se o olhar matasse — disse Hannah, rindo com gosto. — Espero que não tenha um daqueles punhais escondidos na roupa. — A Camilla quis saber a mesma coisa. — Sarah estava a sorrir, aumentando o embaraço dele. — Estás em boa posição para saber — disse Hannah. — Tu e a Allie tiveram-no à vossa mercê vários dias, a olhar por ele como se fosse um bebé. — Agora definitivamente não quero acompanhá-las — disse Rabindrah, começando também a rir. — Seja como for, fui promovido a mecânico do acampamento. O Dan pediu-me um favor esta manhã. Uma surpresa. E, por falar em mecânicos, o meu carro deve ficar pronto amanhã ao fim da tarde. Sarah sentiu um desânimo profundo. Agora que ele estava de partida, havia coisas que lhe queria dizer. Mas não estava inteiramente certa do que eram e tinha medo de analisá-las ou de tentar encontrar as palavras. Ele estava a observar o rosto dela com uma expressão inescrutável. Sarah desviou os olhos, confusa, desejando poder explicar. Mais do que isso, queria lançar os braços à volta dele, pedir-lhe que fosse paciente, que não desistisse dela. Mas não via como teria essa oportunidade, com Hannah presente. Quando voltaram ao fim da tarde, Allie estava sentada à sombra da acácia, a escrever. Levantou os olhos e revirou-os. — Quase pegaram fogo aos celeiros esta tarde — disse ela. — Espero que gostem dos resultados. Era uma peça de equipamento crucial, explicou Dan, quando se reuniram antes do jantar. Ele e Rabindrah tinham-na concebido e montado, usando uns tubos velhos e um maçarico. A estrutura quadrada parecia uma pequena gaiola, mas tinha uma plataforma de madeira com uma série de parafusos e porcas de orelhas fixados. — É para as tuas máquinas fotográficas — disse Dan. — Esta parte pode ser fixada ao tejadilho
do Land Rover e podes aparafusar as máquinas em cima para as manter estáveis. Que achas, miúda? Vá, vamos montá-las imediatamente. Sarah deu por si à beira das lágrimas, olhando para ele esgazeada, tão sensível ao seu bem-estar, tão ansioso por vê-la feliz. Rabindrah estava a olhar para ela com a mesma intensidade que a tinha enervado quando se tinham conhecido, mas havia um sorriso nos seus olhos salpicados de dourado. Abraçou Dan e Rabindrah, e Allie apertou-lhe o braço com profundo afecto enquanto observavam os homens a montar a estranha engenhoca no seu veículo. — Isto pede uma celebração — anunciou Dan. — E é uma festa de despedida também. O Rabindrah parte amanhã. — Importa-se de me levar até Nanyuki? — perguntou-lhe Hannah ao jantar. — Evitava assim ter de apanhar a camioneta de Isiolo. É tempo de voltar ao trabalho. — Levo-a com todo o gosto — disse Rabindrah, mas interiormente não ficou lá muito satisfeito com a ideia de três ou quatro horas sozinho com Hannah num carro. Pouco depois do jantar, dispersaram-se, apesar dos protestos de Dan. Hannah declinou uma terceira bebida com a desculpa de que tinha de fazer as malas. Pegou na bebé e dirigiu-se para a cabana de Sarah enquanto Allie pegava firmemente no marido pelo braço e o arrastava para o quarto. Quando Rabindrah se levantou, Sarah pôs-se também de pé. Ele hesitou um momento antes de lhe pegar na mão. Dentro da cabana, ela ficou imóvel e tomada de timidez, sem saber o que fazer ou dizer a seguir. A porta fechou-se com um leve rangido e ele puxou-a para si e beijou-a. Sarah pôs os braços à volta dele enquanto os dedos dele lhe exploravam a pele. Rabindrah conduziu-a para a cama estreita e deitaram-se juntos, frente a frente, olhando um para o outro e cobrindo-se de beijos. As sandálias dela caíram com um baque no chão e ele enfiou a mão na espessa massa do seu cabelo. Ela encostou-se ao seu corpo, sentindo as mãos dele percorrer-lhe as costas e enfiar-se por baixo da sua camisa de algodão, inflamando-lhe a pele. — Não sei — sussurrou ela. — Não sei se… — Não faz mal — disse ele, afastando-se dela. A expressão dele já era distante quando ela se sentou e pousou os pés no chão. — Sinto muito — disse ela com tristeza. — Vais dizer-me que precisas de tempo para pensar. E precisas. Precisas de decidir o que queres, se alguma vez vais abrir o teu coração a outra pessoa. E se essa pessoa posso ser eu, um jornalista indiano, um homem com uma cor de pele diferente, de uma cultura diferente. — Não tem nada a ver com quem tu és — disse ela, magoada com a sua insinuação. — Tem a ver com quem eu não sou. — Rabindrah reclinou-se e fixou o tecto. — Porque eu não sou o Piet van der Beer e nunca estarei ao nível dele. Por isso, tens de decidir se és capaz de te libertar dele. Caso contrário, qualquer homem que te ame estará para sempre a competir com um fantasma. — Endireitando-se, acrescentou: — Quando decidires, já sabes onde me encontras. — Sinto muito — repetiu ela, relutante em deixar as coisas entre eles neste pé. Mas não sabia o que podia dizer ou fazer para alterar a situação. Levantou-se. — Boa-noite, Rabindrah — disse. — Boa-noite, Sarah. Ela sentou-se durante algum tempo ao relento, pensando na forma como ele a tinha tocado e no seu desejo ardente por ele. Mas como podia pôr de lado a memória de Piet, a quem amara desde a infância? Ele estava morto mas o seu amor por ele tinha de continuar vivo, de algum modo, e ela
não sabia como. Havia qualquer coisa de autêntico e estimulantemente vivo no que sentia por Rabindrah e desejava desesperadamente que ele a beijasse, que fizesse amor com ela. A culpa invadiu-a ao pensar em Hannah. Hannah, que era sua amiga de infância, que era irmã de Piet, que ainda desconfiava de Rabindrah. Hannah, que ficaria chocada à ideia de alguém tomar o lugar do irmão. Sarah suspirou e levantou-se. Se continuasse ali fora, Hannah podia pensar que ela estava com Rabindrah. Quando abriu a porta, não ouviu qualquer som. Hannah parecia estar a dormir ou não queria conversar. Foi um alívio e Sarah preparou-se para se deitar e enfiou-se sob o mosquiteiro, onde só os seus sonhos lhe faziam companhia.
Rabindrah partiu depois do pequeno-almoço, com Hannah ao lado no banco do passageiro do Peugeot e Suniva na alcofa atrás. Parecia satisfeito com a perspectiva de regressar a Nairobi e estava bem-disposto. Não revelava sinais da doença recente, excepto o facto de ter emagrecido. As despedidas foram rápidas e depois arrancaram, o carro dobrando a curva no caminho saibroso na direcção de Isiolo e da principal estrada para sul. — Compreendo porque é que a Sarah sempre encontrou consolo neste lugar — disse Hannah. — Já cá devia ter vindo. Mas fizemos um safári aqui, alguns meses antes da morte do Piet, e achei demasiado penoso estar cá sem ele. — Está com um ar diferente — disse Rabindrah, surpreendido com a confidência. — Há três dias que a sua cara já não revela tensão e tem um aspecto repousado. — E o Rabindrah também está com melhor aspecto — disse ela, sorrindo-lhe. — Onde é que mora em Nairobi? Tem um apartamento? Ou uma casa? — Não, estou a viver com o meu tio. Mas, se este livro tiver sucesso, gostava de comprar uma casa. — Planeia então ficar permanentemente no Quénia? — Sou queniano — disse ele simplesmente. — Nascido e criado aqui. Como a Hannah. — Sim — disse ela. Mas não se sentiu inteiramente à vontade com a comparação. — A minha família está cá desde a viragem do século. O meu bisavô chegou a Langani em 1906, quando ainda só era mato. A maioria dos africânderes foi mais para norte e oeste. Mas a minha avó estava muito doente quando chegaram a Thika e o velhote pensou que a filha predilecta ia morrer. Assim, três das carroças pararam por lá durante um mês. E um inglês que conheceram ofereceu-lhes a terra que é hoje Langani. Acho que, durante algum tempo, pensaram que tinham feito mal em não ter continuado com os outros bóeres que tinham vindo da Cidade do Cabo no mesmo barco. Mas aguentaram e eu pertenço à terceira geração na fazenda. — A família da minha mãe dedicava-se à agricultura — disse ele. — No Punjabe. — Pensei que os siques fossem todos soldados — disse Hannah. — Uma espécie de classe guerreira na Índia que chegou aqui com o exército britânico. — Foi um mito que se desenvolveu à nossa volta — disse Rabindrah. — Muitos siques são agricultores. A parte militar do siquismo só começou no fim do século XVII e os que se alistaram nas fileiras do exército chamavam-se «Singhs» ou Leões. Quando os ingleses chegaram à Índia, esses siques tornaram-se uma parte importante do exército britânico e foram depois trazidos para aqui, como soldados, polícias e guardas do caminho-de-ferro. O meu avô chegou em 1898. E, mais tarde, mandou vir a mulher e dois irmãos. Só morreu no ano passado, com noventa e três anos.
— Então a sua família era diferente dos trabalhadores humildes que assentaram a via-férrea? — Os siques que trabalharam no caminho-de-ferro eram, sobretudo, operários qualificados. Ferreiros, pedreiros e carpinteiros, Ao que parece, os leões devoradores de homens em Tsavo apreciavam particularmente os siques e comeram uns quantos. Mas há muitos siques proprietários de serrações, cultivadores de sorgo e pessoas com grandes garagens, como o meu tio. — É verdade que as pessoas de todas as religiões são bem-vindas nos vossos templos e podem comer nos centros comunitários? — Hannah tinha ouvido isto mas nunca tinha confirmado. — Absolutamente verdade — respondeu Rabindrah. — Da próxima vez que estiver em Nairobi, levo-a a um dos templos, se quiser. Conheceu a minha prima Lila, na gala de moda. Ela teria muito gosto em fazer uma visita aos templos consigo e levá-la ao mercado e às lojas de especiarias. — Gostava muito — disse Hannah, fascinada com a ideia. Nunca tinha entrado numa casa ou num local de culto indiano. — Não consigo imaginar o nosso pastor a acolher na igreja dele hindus ou muçulmanos ou mesmo católicos e a dar-lhes de comer. — Nós não somos assim tão maus como nos pintam, sabe? — disse Rabindrah, com um sorriso retorcido. — Nem todos nós somos duka wallahs que tratam mal o pessoal africano e obrigam os filhos a casar à força. — Não sou ignorante ao ponto de acreditar nisso — disse Hannah, corando. — E sinto muito que tenhamos começado mal no ano passado. Depois dos artigos todos nos jornais sobre a morte do meu irmão, tornei-me extremamente desconfiada dos jornalistas. Fiquei assustada quando o vi aparecer de repente na fazenda porque pensei que ia desenterrar tudo outra vez. Mas sei que é a si que devemos a descoberta desse homem, o Karanja. E que se tornou um grande amigo da Sarah. — É uma honra poder contar-me entre os amigos dela — disse ele. — Sim. E há outra coisa que queria dizer, apesar de ser difícil. — Hannah hesitou e depois atirou-se. — Estou-lhe grata por não ter voltado a abordar o assunto do meu pai e por não me ter tratado como se eu fizesse parte do acto horrendo que ele cometeu. Sei que, se o Simon for apanhado e tudo vier a lume em tribunal, há-de continuar a ser amigo da Sarah. E de mim, espero bem. Rabindrah sacudiu afirmativamente a cabeça, mantendo uma expressão calma mas mentalmente confuso. Que é que Jan van der Beer tinha feito? Hannah assumia que ele estava ao corrente. Mas Sarah, obviamente, não tinha confiado nele o suficiente para lhe confidenciar essa informação aparentemente penosa. Ia desanimado, ao conduzir para sul, para longe da rapariga que amava. Sabia que não tinha qualquer hipótese com ela. A ideia de ela poder apaixonar-se por ele tinha sido um sonho irracional, ditado pela febre. Ainda bem que não se veriam agora por algum tempo.
Nem o nascimento de uma nova cria captou inteiramente a atenção de Sarah, seguindo a manada através do terreno que amava. Hoje, a forma dos montes e a beleza agreste da paisagem quase não a afectavam. As horas arrastavam-se e ela interrogou-se se Rabindrah já teria chegado a Nairobi e quando voltaria. Se é que ia voltar. Não lhe ocorria nenhuma razão para que regressasse e não podia, de maneira nenhuma, ir a correr atrás dele para Nairobi. Dirigiu-se cedo para o acampamento, a pretexto de anotar as observações desse dia. Allie estava sentada à secretária, a praguejar quando o carreto da máquina de escrever encravou pela quinta vez consecutiva. — Não pareces muito bem — disse ela. — Vamos tomar um chá.
Sentaram-se juntas à sombra das árvores; Sarah estava calada e distante. — Estás com saudades dele — disse Allie. — Não sei. — Claro que estás, minha querida. — Allie debruçou-se. — Só vou dizer isto uma vez. Porque não é nada comigo, tirando o facto de seres uma pessoa muito especial para mim e para o Dan. Sabemos que amavas muito o Piet e que ainda o amas. Que ainda choras a morte dele. Mas, em lugar de pensares apenas na morte dele, talvez fosse melhor considerares que ele representou uma dádiva bela e perfeita que te foi dada por um curto período de tempo. Uma visão brilhante de como um jovem devia ser. E, na tua memória, nunca poderá alterar-se, nem ficar destruído ou maculado, nem envelhecer. Foi uma parte maravilhosa da tua vida, um tesouro pelo qual deves sentir-te grata. Estou certa de que ele gostaria que te recordasses do que foram um para o outro. Mas acho que também quereria que continuasses a ser a rapariga afectuosa e viva que ele conheceu. Que vivesses a tua vida da maneira que ele tanto admirava e que reconhecesses e celebrasses as outras dádivas que te são oferecidas. — Obrigada, Allie. — A resposta de Sarah foi quase inaudível. — Obrigada do fundo do coração. Uma hora mais tarde, o rádio deu sinais de vida e Dan carregou no botão de recepção. — Acabámos de receber uma chamada do Jeremy Hardy — disse Lars. — O Simon Githiri apresentou-se na esquadra da polícia em Nyeri há uma hora e entregou-se.
CAPÍTULO 16
Londres, Junho de 1967 planos para amanhã? — Edward soou tenso ao telefone. — Não. Tenho alguns dias de –Tens folga e estou determinada em manter a minha agenda de trabalho livre — disse Camilla. — Precisas de alterar o jantar? — Tenho de viajar para Barbados amanhã — disse ele. — São só três ou quatro dias. Uma doente com queimaduras. Estava a pensar se querias acompanhar-me. Ficou surpreendido quando ela concordou. Durante o longo voo, Camilla sentiu-se despreocupada e descontraída, cheia de expectativa em relação aos prazeres que a esperavam. Seriam umas verdadeiras férias e ela sonhava com as horas que passariam a andar a pé pela praia e a nadar no mar azul. — Vão mandar um carro para me levar para o hospital — disse Edward quando se registaram no hotel. — Preciso de passar algum tempo com o anestesista e com a equipa de cirurgia e, claro, com a doente. Volto assim que me despachar, querida. A tempo de um banho ao fim da tarde. Com a diferença horária, ganhámos uma tarde. É o que tem de bom voar para oeste. E olha para esse areal branquíssimo e para a cor da água. Camilla passeou pela praia e boiou no mar e depois voltou para o quarto, onde dormiu uma hora. Estava a jantar sozinha no restaurante quando Edward ligou a pedir desculpa pelo atraso. Era quase meia-noite quando voltou e, atirando-se para o sofá na suíte, mandou vir um grande whisky. — Esta vai ser complicada — disse ele. — É uma rapariga negra de dezasseis anos com o lado esquerdo da cara gravemente danificado e queimaduras de terceiro grau no pescoço e num braço. Vai ser um milagre, se não perder a visão no olho esquerdo. Está sedada, naturalmente, mas os pais estão consumidos de dor e medo. E fúria. — Foi um acidente? — O namorado atirou-lhe um tacho de óleo a ferver. Ao que parece, ela tinha combinado um encontro com outro rapaz que conheceu quando levava as cabras a pastar de manhã. O rapaz, louco de ciúmes, decidiu dar-lhe uma lição. — Que horror, que barbaridade. Quando é que operas? — Logo de manhã cedo. Infelizmente, vou passar várias horas no hospital. Vão estar dois médicos locais a assistir e espero ensinar-lhes um novo procedimento. Agora vou deitar-me, porque tenho de sair por volta das seis.
Camilla sentou-se na varanda, ouvindo a rebentação e o ruído das frondes das palmeiras no ar suave. A luz das estrelas reflectia-se no mar e ela contemplou o movimento da luz, deixando-se inundar pelo assombro da sua misteriosa beleza. Assaltaram-na imagens inesperadas, enquanto descia os degraus que levavam à praia, visões do ondular e rumorejar do oceano Índico, as formas
alongadas das ngalawas com as suas delicadas guigas e proas pontiagudas e as bóias redondas de atracação a dançar nas ondas. Foi invadida por uma saudade intensa de África enquanto caminhava pela borda da água, enfiando os pés nos pequenos remoinhos e deixando-os perpassar-lhe pelos dedos dos pés. Sabia que era uma sensação de isolamento apenas temporária. No dia seguinte, passaria a manhã no mar e, quando a operação terminasse, levaria Edward ao mercado, fá-lo-ia mergulhar no choque das cores tropicais, dos sons e dos aromas que, inevitavelmente, a faziam rejubilar por estar viva. À distância avistou um par de namorados, abraçados um ao outro, as cabeças próximas, risos suaves vogando na sua direcção, levados no vento nocturno. A visão apertou-lhe o coração e ela voltou para a suíte, caminhando rapidamente e fechando as portas de vidro e as cortinas para se separar do seu mundo de prazer partilhado. Em geral, as longas horas que Edward passava com os seus doentes e colegas não a incomodavam. Era frequente ele ficar a trabalhar até tarde num dos hospitais e já por várias vezes tinha acabado por jantar sozinha, numa mesa posta para dois, quando ele não podia ou não queria abandonar um doente em estado crítico. O seu próprio trabalho era exigente, frequentemente na mira do público, e não objectava a dias ou a noites passados sozinha. Mas, aqui ao luar, queria partilhar estes momentos com ele. Desejava que ele pudesse pegar-lhe na mão, sentir o odor a maresia e o vento salgado do mar e ver as luzes irrequietas dos barcos, das casas e das cabanas de pesca tropicais reflectidas na água, seguindo a curva da praia, num eco das suas recordações da costa africana que estava agora tão distante. Depois de passar mais um dia sozinha, ligou para o hospital com uma sugestão que surpreendeu Edward e encantou a enfermaria inteira. Saindo do hotel, parou pelo caminho para comprar vários ramos de flores numa barraca no mercado. Dentro do edifício caiado de branco, conversou com o pessoal, com os doentes e com os parentes e amigos destes, arranjou as flores, deu de comer aos internados mais novos na unidade de pediatria e autografou cartões desencantados à pressa, que mais tarde seriam orgulhosamente colados em livros de autógrafos e nas paredes das casas da ilha. Não tardou muito a chegar um fotógrafo do jornal local e a doente queimada de Edward e os pais dela acabaram na primeira página. Começaram a chegar presentes e dinheiro e, no segundo dia, uma companhia de seguros despachou uma secretária para organizar os cartões e os donativos. A rapariga transformou-se numa causa célebre e, quando a limusina chegou para os transportar para o aeroporto, Camilla sentiu-se aliviada por escapar. — O que fizeste foi maravilhoso — disse Edward, quando o avião descolou e ela esticou a cabeça para um vislumbre final do mar azul-turquesa. — Uma autêntica inspiração. Agora a rapariga tem dinheiro suficiente para o próximo enxerto de pele e um especialista de oftalmologia em Nova Iorque ofereceu-se para a tratar. — Estava farta de passeios solitários na praia — disse ela. — Não, não precisas de te desculpar. Vieste salvar uma pessoa de uma desfiguração horrível e não tenho nenhum problema com isso. Mas não quero que se torne um hábito viajar assim. Em Londres, lançou-se de novo ao trabalho. O Daily Mail tinha noticiado as suas visitas ao hospital. Tom Bartlett ligou-lhe a felicitá-la pela publicidade gerada e não ouviu sequer os protestos dela. Estava um novo contrato à espera de ser assinado com a Harper’s Bazaar. Saul tinha criado novos modelos para a estação de Inverno e pedia-lhe que os aprovasse. Havia uma sessão fotográfica em Marrocos e a proposta de um lucrativo trabalho em Paris. Havendo
documentos para estudar e assinar, Camilla sugeriu que seria melhor Tom Bartlett acompanhá-la a França. Ele organizou a sessão de uma série de fotografias para uma das casas de alta-costura durante esse período e orientou-a nas negociações financeiras mas nenhum deles apreciou a viagem. — Caramba, foram os piores dias da minha vida, andar com esses franciús arrogantes — disse Tom, levando-lhe as malas para o apartamento de Knightsbridge. — A propósito, não podias arranjar uma casa com elevador? Ou livrar-te desse porteiro caquéctico e arranjar alguém que te carregue a bagagem para cima? — É um bom exercício — disse ela. — Depois de todos esses charutos e conhaque. — Quando o avião se atrasou, pensei que íamos ficar presos em França para sempre. — Foram só duas horas. — Pareceu uma eternidade — disse Tom. — Vai uma bebida, querida? Apetece-me uma taça de champanhe. Mesmo francês. — Os franceses são sempre complicados — disse Camilla. — E o fotógrafo detestou-me, o que não facilitou as coisas. Abre o frigorífico e tira as taças do aparador enquanto eu dou uma olhada a este monte de correspondência. Viu imediatamente os selos do Quénia. O envelope tinha sido endereçado por Lars e Camilla sentiu-se de imediato inquieta. Era sempre Hannah quem escrevia. Pôs a carta de lado para ler mais tarde, depois de tomar uma bebida e não se sentir tão culpada pelo facto de não ter escrito. Tinha mandado os cheques através do escritório de Tom e organizado a entrega de novas máquinas de costura e tecidos. Mas não foi capaz de pegar numa caneta e passar ao papel aquilo que sentia nem explicar por que razão não tinha feito planos para voltar. Admitir que era uma cobarde. Cada dia que passava tornava a situação mais difícil. — Tom? Mandaste outro cheque para Langani antes de partirmos para Paris? — Mandei. Embora só Deus saiba para quê. A oficina não abriu e tu estás a fazer aqui as roupas, dez vezes mais caras. A tua amiga Hannah não está a contribuir com nada e eu não sei porque é que continuas a mandar-lhe dinheiro. Se queres saber, é um disparate completo. — Pois, mas não quero saber. — Camilla aceitou uma taça de champanhe. — Por amor de Deus, pára quieto e senta-te. Estás a pôr-me nervosa. Também estou cansada, não sei se sabes. Aquilo em França não foi divertido, dançar na borda de um parapeito com um vestido que nem no Sara me aquecia. E ninguém se deu ao incómodo de me perguntar se eu sofria de vertigens. — Sofres de vertigens? — Tom sentou-se na outra ponta do sofá. — Não. Mas de que é que adianta perguntar agora? — Olhou para ele com os olhos franzidos. — Porque é que não me massajas os pés antes de ires para casa? Faz-me sempre sentir melhor. — Não quero ir para casa — disse ele. — Está fria e enche-me de tédio e solidão. Prefiro ficar aqui e embebedar-me contigo. Ou pedrar-me. — Não tenciono fazer nem uma coisa nem outra — disse ela. — A tua bonequinha loira não está à tua espera com um empadão de vaca e rim e a melhor camisa de dormir vestida? — Acabou — disse ele, com um ar desolado. — Não sei porquê, mas não resultou. Camilla desatou a rir. — Não podia resultar. Arranjas sempre essas groupies desmioladas que só servem para uma coisa. E depois admiras-te que não durem. Ele pegou-lhe num pé e começou a fazer habilidosamente pressão na planta. — O Tarzan massajava-te assim quando estavas cansada? — perguntou ele, tentando magoá-la. — Não comeces, Tom. — O seu tom foi frio e libertou-se dele. Apesar da traição de Anthony,
não conseguia deixar de pensar nele e guardava-lhe ressentimento pelo poder que tinha, apesar da distância que tinha criado entre ambos, para lhe causar dor. — Desculpa, querida — disse Tom, não desejando um confronto. — Descontrai que eu vou preparar uns ovos mexidos. — Não penses que, lá por fazeres o jantar, te vou deixar cá ficar — disse ela. No entanto, estava deprimida e satisfeita com a companhia dele. Foi bebendo o champanhe, ouvindo-o a fazer barulho na cozinha. Tom cozinhava bem, mas parecia incapaz de preparar uma tigela de cereais sem fazer um chinfrim como um comboio expresso e deixar a cozinha como se por lá tivesse passado um furacão. Quando apareceu na sala de estar com um tabuleiro, ela soprou-lhe um beijo nas pontas dos dedos. — No fundo, és um amor de pessoa — disse ela. — E nada feio, com esses olhos castanhos e sensuais e esse sorriso cómico. Gosto desse teu penteado actual, com a franja, e das engrenagens todas a funcionar dentro dessa cabeça inteligente. — Mas não te sentes atraída por mim — disse ele, com alguma esperança. — Pois não. E nunca sentirei. Vá, come e depois vemos se há alguma coisa na televisão. — Como está o Edward? — Está para fora — disse ela. — Tiveste notícias da Sarah? E que aconteceu ao Dr. Tim? Chegou a descobrir a noiva? — Tom sentia-se curioso. — Abandonado no altar. Mas afinal que é que aconteceu ao certo? — Não tive notícias do Tim — respondeu Camilla. — A Sarah também não escreveu, tirando uma curta mensagem a agradecer. E eu fui tão estúpida que prometi não lhe dizer que ele estava em Londres. Camilla ligou a televisão para evitar mais discussão. Mas não conseguiu concentrar-se no programa e a letra de Lars saltava-lhe aos olhos do envelope na mesa baixa. Pegou nela e abriu-a e tudo o resto se sumiu para segundo plano. — Passa-se alguma coisa? — Tom debruçou-se. — O quicuio que matou o Piet provavelmente ainda está vivo — disse Camilla. — E o pai da Hannah morreu na Rodésia. — Ligou para a operadora internacional a pedir uma chamada para Langani e depois cancelou-a, apercebendo-se de que, com a diferença horária, seria demasiado tarde lá. — Com mil diabos — disse Tom. — Até parece que há uma maldição sobre essa família. — Às tantas há — disse ela pensativamente. — Se bem que ninguém pareça capaz de descobrir o que é nem por que razão. Continuava a não se saber do paradeiro de Simon, escrevera Lars. Viajara até à Rodésia, onde Jan tinha sido morto numa emboscada, e levado Lottie com ele para Langani. Hannah estava a reagir mal. As novas máquinas de costura tinham chegado, mas a oficina ainda não estava a funcionar por causa dos tristes acontecimentos ocorridos nas duas últimas semanas. Havia uma nota de Hannah na última página: Estás melhor longe daqui. Se fosse a ti, nunca mais voltava porque já não resta nada aqui, excepto coisas que seria preferível nem sequer sabermos. Passei alguns dias com a Sarah, que está bem. A minha mãe está connosco mas não sei quanto tempo vai ficar. Ainda não decidimos o que vamos fazer nem se podemos continuar aqui. Sempre quis lutar pela nossa
fazenda, em memória das esperanças do Piet e para prestar tributo à vida dele. Mas agora simplesmente já não sei. — Devia voltar — disse Camilla, passando a carta a Tom. — Podia fazer alguma coisa para ajudar. Abrir a oficina, instilar alguma esperança na Hannah. E podia rectificar a situação com a Sarah. — És doida? — Tom lançou-lhe um olhar hostil de incredulidade. — Ou completamente estúpida? Anda por lá um assassino a monte e toda a gente nessa fazenda é um alvo fácil. E se não fores retalhada em bocadinhos, dás de caras com aquele bicho do mato desmiolado. Não há-de passar meia hora até ele te pôr num farrapo e deixares de ser a mulher bela, inteligente e desejável que és. Quando não estás com ele, naturalmente. — Podia ir por pouco tempo e… — Porra, Camilla, não vais a lado nenhum. — Tom estava a gritar com ela, as veias salientes na testa e a latejar-lhe no pescoço com a fúria. — Obrigaste-me a prometer que não contratava a galdéria somali em Nairobi senão desligavas-te da minha agência. Pois digo-te eu agora que, se voltares, cancelo o nosso contrato e podes dizer adeus à tua carreira. Porque não trabalho com pessoas que brincam comigo, querida. Ponto final. — Não percebo porque é que estás tão furioso — disse ela, puxando-lhe pela mão quando ele se levantou. — Vou para casa — disse ele, ignorando-a. — Quando caíres em ti, avisa-me. Mas não demores muito tempo, Camilla, senão sou capaz de já ter apagado o teu nome da merda dos meus ficheiros.
Durante dois dias, Camilla debateu-se com a ideia de regressar a Nairobi. Chegou uma carta de Sarah, a descrever concisamente o serviço fúnebre na fazenda. O telefone tocou, interrompendo as reflexões de Camilla sobre se havia de marcar passagem de avião para Nairobi. — Tenho uma surpresa para ti. — Tom não conseguiu esconder a excitação na voz. — Vão começar os ensaios de uma produção de A Gaivota. Convenci-os que devias fazer uma audição para o papel da Masha. — Eu? No palco? — Parecia ter passado uma eternidade desde as suas provas de admissão falhadas na escola de teatro. Mas Camilla tinha superado essa rejeição e enveredado por uma carreira de sucesso alternativa. Agora, mais uma vez, o seu sonho de criança renascia. Olhou, incrédula, para o auscultador na mão e olhou para o seu radioso reflexo no espelho. — Oh, meu Deus! Quando é a audição? Tom, acho que não sou capaz de entrar numa peça. De fazer uma audição. Sinto-me nervosíssima. Não faço ideia como… — É o que sempre quiseste ou não é? — perguntou ele. — Eis a tua oportunidade. Combinei tudo para a próxima terça-feira e vou contigo para te dar apoio. É bom que não te enganes no texto, querida. Quando conseguiu o papel, Camilla rejubilou. Cancelou tudo, excepto as sessões de fotografia mais importantes, e instalou-se a estudar o papel. Tinha a sala de estar cheia de tudo a que conseguiu deitar a mão sobre Tchekhov e a história e literatura da época. Ficou noites seguidas até tarde, mergulhando no mundo crepuscular da aristocracia russa em extinção e das suas propriedades em decadência. Duas semanas mais tarde, chegou de um ensaio que não tinha corrido
bem. Os ânimos tinham estado exaltados e tinha havido altercações entre o encenador e dois dos actores e, por fim, Camilla não tinha conseguido arranjar táxi num dia frio e chuvoso. O convite estava em cima do monte de correspondência. Abriu o envelope e olhou para o nome dos seus potenciais anfitriões no papel timbrado. Chad e Ruthie Parker. Como os nomes não lhe diziam nada, pousou o envelope numa pilha destinada a uma cortês rejeição. Todos os dias, recebia dezenas de cartões como aquele, normalmente de caçadores de celebridades que tinham falado com ela numa recepção ou numa festa de caridade. Depois de tomar banho e mudar de roupa, apanhou um táxi para o apartamento de Edward, onde a governanta tinha acendido a lareira e ele estava a ouvir Mozart na estereofonia. — Recebeste um convite dos Parker? — perguntou ele. — Recebi. Quem são? Conhece-los? — Camilla ficou surpreendida. — Camilla, às vezes és incrivelmente distraída — disse ele. — Não te lembras? Vieram cá jantar quando a Sarah cá estava. Deram-lhe um donativo para os elefantes. — Pois deram — disse ela. — Ó diabo, suponho que quer dizer que vou ter de fazer o frete. Eram simpáticos, mas de uma seriedade atroz. Ela é um moinho de palavras. — Têm uma casa sumptuosa em Mayfair — disse ele. — Pejada de quadros impressionistas e de um par de Picassos e de toda a tralha chinesa que os decoradores nova-iorquinos tanto adoram. Acho que devíamos dar um salto à festa, nem que seja de fugida. Podemos jantar a seguir sozinhos, se nos apetecer. A casa dos Parker era imponente. Uma criada de uniforme pegou-lhes nos casacos e um criado ofereceu-lhes champanhe. — Que maravilha que tenham podido vir. — Ruthie cumprimentou-os efusivamente à entrada. — Temos um convidado de honra. Pensei em dizer-lhes, mas depois decidi que era mais divertido assim. Conduziu-os à sala de estar e Camilla preparou-se para uma hora de conversa de chacha. Mas, nesse momento, o choque paralisou-a. Anthony Chapman estava de pé, de costas para a lareira, alto e musculado, um pouco distante do resto das pessoas. Tinha uma bebida na mão e sorriu-lhe do outro lado da sala. Chad Parker avançou para cumprimentá-la e, a seguir, Anthony beijou-a na face enquanto Ruthie continuava a gargantear sobre o romantismo dos caçadores brancos, dos safáris e das noites em tendas no mato africano. — Estamos muito gratos à sua amiga por nos ter posto em contacto com o Anthony — disse Chad. — Organizámos um grande grupo de amigos para Setembro graças à Sarah. — Anthony. Que surpresa! Estás cá há muito tempo? — Camilla recompôs-se. — Cheguei hoje de manhã. Estou na minha habitual viagem de promoção e os Parker pediram-me para passar por Londres. Camilla interrogou-se se ele se teria dado ao trabalho de contactá-la, se não tivesse sido convidada para a festa. Viu Edward a observá-la do outro lado da sala, onde um dos convidados o tinha retido. Lançou-lhe um sorriso deslumbrante. — Vais apresentar-nos, querida? — Edward tinha atravessado a sala e estava a segurá-la ao de leve pelo cotovelo. — Claro que sim — disse ela. — Apresento-te… — Sou Edward Carradine — disse Edward a Anthony, sem esperar pelas formalidades. — Tenho ouvido falar muito de si. Vai demorar-se por Londres muito tempo?
— Cheguei no avião desta manhã. Fico dois dias em Londres e depois sigo para Nova Iorque, Chicago e a costa oeste antes de regressar a Nairobi — disse Anthony, apertando a mão de Edward e virando-se de novo para Camilla. — Para onde quer que me vire, estás a olhar para mim das montras das lojas, dos placares publicitários e das capas das revistas. E agora soube que também vais entrar numa peça. Deves estar radiante. — Mais do que radiante — disse ela. — Se bem que esteja apreensiva com os críticos. São capazes de arrumar com uma peça com um par de críticas virulentas e posso ser eu a responsável, se não me mostrar à altura. — Estava a falar demasiado depressa e não conseguia acalmar-se nem impedir a sensação de secura que ameaçava obstruir-lhe a garganta. — Isso não vai acontecer com certeza — disse Edward. — Claro que não. — Anthony estava a fixá-la, os seus olhos perturbando a sua compostura. — Soube do que aconteceu ao Janni — disse Camilla. — E que o Simon está vivo. — É muito duro para a Hannah — disse ele. — E para a Sarah também, depois do que já passaram. Não sei como nem quando tudo isto vai acabar, esta série de tragédias. Mas Camilla não queria persistir no tópico de Langani e da sua incapacidade para prestar verdadeiro apoio às amigas. Ficou aliviada quando outro casal se aproximou e a conversa evoluiu fluidamente para o mato e para a vida num país africano independente. Foi fácil cativar o homem corpulento com um sotaque arrastado sulista, que integraria o grupo de safári dos Parker, com histórias da sua infância no Quénia. O champanhe fluía a rodos e a sala estava cada vez mais quente. Camilla sentia-se claustrofóbica e, quando a anfitriã se afastou com Anthony, pousou o copo e perguntou onde ficava a casa de banho. Demorou-se ali dez minutos, inalando o ar mais fresco e distanciando-se do burburinho crescente da festa e do alvoroço que lhe ia no estômago. Estava de regresso ao salão quando Anthony apareceu no corredor, barrando-lhe a passagem. — Preciso de estar contigo — disse ele em voz baixa. — Estás comigo agora. — A sós — disse ele, pegando-lhe no braço. — Estou muito ocupada — disse ela. — Não estou disponível. Dás-me licença? Estou de saída. Passou a noite no apartamento de Edward e, depois do pequeno-almoço, dirigiu-se para casa, satisfeita por não ter nada na agenda para esse dia. À entrada, encontrou um envelope que tinha sido enfiado por baixo da porta. Abriu-o e leu a nota lá dentro: Camilla, Preciso de falar contigo. Por favor. Liga-me para o Chesterfield Hotel. Estou no quarto 14. Anthony.
Ela atirou a mensagem para o cesto do lixo e fez um café. Quando o telefone tocou, sabia que seria Anthony. — Gostava de dar aí um salto — disse ele. — Há coisas que tenho de te dizer. Por favor, dá-me essa oportunidade. — Podes dizê-las ao telefone — respondeu ela.
— Por amor de Deus, Camilla, quero estar contigo. E, se não estiveres aí quando eu chegar, acredita que me planto à porta até chegares. — Está muito frio aqui para te plantares à porta — disse ela, tentando dar pouca importância à ameaça. Mas sabia que tinha de falar com ele. Que queria desesperadamente falar com ele. Procurou lembrar-se de um lugar neutro e seguro onde pudessem conversar durante uma hora. Nunca mais que uma hora. — Encontramo-nos na Royal Academy. Está lá uma exposição que ando para ver há semanas. Ao meio-dia.
— Ainda bem que vieste — disse ele, quando Camilla empurrou a porta giratória. — Embora preferisse um sítio mais calmo. Quero que saibas que me comportei como um idiota. Como um canalha. Não passa um dia em que não me sinta arrependido. Quero saber como tens passado. — Estou óptima. Já te disse isso ontem à noite. Não achas melhor falarmos de outra coisa? — Tenho estado com o teu pai em Nairobi com muita frequência — disse ele, com medo de que ela se afastasse. — Estamos a trabalhar juntos em vários projectos. Ele está a fazer uma obra meritória nos parques e nas reservas. O George é uma das poucas pessoas que obtêm resultados porque sabe lidar com os políticos e os funcionários locais. Usa de um charme enorme mas não se compadece com a estupidez de ninguém. Tem o Johnson Kiberu do lado dele. Bom tipo. — Muito bom tipo. — Camilla apertou os lábios para não se rir. — Os três juntos criámos todo o tipo de controlos e equilíbrios para impedir que os fundos desapareçam nos bolsos errados. E, no mês passado, o George conseguiu entregar cinco Land Rovers novinhos em folha aos directores dos parques para patrulhas contra a caça ilegal. Acho que está a planear uma visita a Londres para breve. — Que bom! — disse Camilla. — Olha para esta paisagem magnífica com o seu halo malva. É francesa, mas é exactamente como a luz crepuscular no interior do Quénia. Não é espantosa? — Percebeu que ele não estava minimamente concentrado nas pinturas. — Como é que vai a actividade dos safáris? Já tens a agenda preenchida para a próxima estação? Ele ignorou a pergunta dela. — Camilla, não sei como te hei-de convencer do meu arrependimento. Fui de um egoísmo atroz. Infantil, pode dizer-se. Envolvi-me simplesmente num jogo de sedução com a rapariga e não teve qualquer significado além disso. Nunca foi minha intenção magoar-te. Por favor, ouve-me. — Agora não tem importância — respondeu ela, com medo de reabrir um problema que traria dor e recriminações. Fosse como fosse, era tarde de mais. — Parece que já se passou há muito tempo e as coisas entretanto mudaram radicalmente. — Mudaram? — Sim. As nossas vidas retomaram os seus caminhos normais como tu sempre pensaste que ia acontecer. — O sorriso seco não lhe contagiou o olhar e percebeu que não devia ter concordado em encontrar-se com ele. — Estás apaixonada por ele? — perguntou Anthony. — Dormes com ele? — Não é da tua conta. — Estava a perder o controlo. — Vou-me embora. Tenho coisas marcadas em que ainda nem sequer pensei e tenho de estar no teatro às duas. — Olha para mim e diz-me que o amas. — Deixa-me em paz, Anthony. A minha vida está bem organizada agora. Sou boa no que faço e
vivo satisfeita com isso. Por favor, deixa-me em paz. — Cometi um erro terrível — disse ele. — Não, não cometeste nada. Fala-me da Hannah. E da Lottie. — Tem sido um período mau para todos eles. O choque de descobrir o motivo do Simon. De saber o que o Jan tinha feito. E o Simon e o tio, claro, ainda andam a monte e representam uma ameaça séria para a fazenda. Um tumulto apoderou-se do espírito de Camilla. Ninguém lhe tinha falado do motivo por detrás do assassínio de Piet. E que é que Jan tinha feito? Sentiu-se agoniada. Hannah tinha-a excluído do centro dos acontecimentos em Langani. Não tinha aí lugar, já não pertencia ao círculo acarinhado da sua infância, apesar do esforço que tinha feito com a oficina e os cheques que mandava. Olhou para Anthony, com um profundo desalento mas demasiado orgulhosa para admitir que não conhecia toda a história. Num laivo de lucidez, compreendeu que devia ser isto que o pai sabia desde o princípio. Era essa a razão por que Jan tinha abandonado a fazenda antes da Independência. — Não quero falar sobre a Hannah — disse Anthony. — Quero falar sobre nós. — Encarou-a, de pé diante de uma grande tela mas sem a observar, apenas vendo Camilla com o seu belo rosto voltado para ele e os seus olhos azuis a brilhar. Havia várias pessoas a olhar para eles e ele percebeu que a tinham reconhecido. — Vamos embora daqui — disse ele, pegando-lhe na mão. — Anda. Vamos atravessar a rua e tomar um café em qualquer lado. Ou dar um passeio pelo parque. Está um dia bonito e ainda tens muito tempo. Ela seguiu-o em silêncio, determinada em recuperar o controlo das suas emoções. Quando atravessaram o parque e encontraram um café, já se sentia calma. — Na carta dela, a Hannah não me deu todos os pormenores sobre o Simon e o Janni — disse ela. — Nesse tipo de circunstâncias, há um limite para o que se pode passar ao papel. Podes contar-me toda a história? Ouviu então a verdade, enquanto tomava café e tentava disfarçar o choque que sentiu quando Anthony lhe contou o que Jan tinha feito e as suas trágicas consequências. — Coitada da Hannah — disse ela. — Mas pelo menos tem o Lars e a bebé, ao passo que a Sarah não tem ninguém para ajudá-la a aguentar isso. — Regressou ao trabalho. É a única coisa que a mantém a funcionar — disse ele, estendendo o braço sobre a mesa e pegando na mão de Camilla. — Mas agora temos de falar sobre nós. — Não existe nenhum «nós». Passámos bons momentos. Tivemos um romance e foi óptimo mas já acabou. — Magoei-te e o remorso nunca mais me largou. — Magoaste-me duas vezes. E eu quero-te longe de mim porque já me refiz de tudo isso e nunca mais quero pensar no assunto. — Foi o ciúme. Daquela gente toda de Londres e da excitação à tua volta e de me ver excluído dela. A Hannah fez-me ver com a maior das simplicidades como fui egoísta. Imaturo. E o Lars também. Não me pouparam e com toda a razão. — Todos crescemos a ritmos diferentes. A minha vida agora mudou, Anthony. Tenho a oportunidade de fazer aquilo que sempre sonhei fazer desde criança e estou muito excitada com a perspectiva. E é o mais importante agora. — És feliz? — Apertou-lhe as mãos. — Com esse teu médico? — Feliz? Que raio de pergunta é essa? A vida corre-me bem. E ele não podia tratar-me melhor.
— Tem idade para ser teu pai — observou Anthony. — Tem mais vinte anos que eu — disse Camilla friamente. — E não se parece em nada com o meu pai. Além disso, não é da tua conta. — Ouve, quando partiste senti-me um canalha. Fiquei destroçado. Destruído. — Aposto que não demoraste nada a encontrar consolo. — Estás a falar dessa americana — disse ele, presumindo que a história lhe tinha chegado aos ouvidos. As más-línguas em Nairobi eram cruéis e não perdiam tempo e George tinha decerto sabido do romance. — Não significava nada para mim e eu nada para ela. — Não se apercebeu da expressão chocada de Camilla ao desviar os olhos. — Pobre rapariga — disse ela azedamente. — Outro brinquedo sexual a cujas investidas não foste capaz de resistir. Exactamente como eu. — Ela tinha acabado de romper o noivado e estávamos os dois a lamber as feridas. Não vale sequer a pena falar disso. — E o mesmo se aplica às outras raparigas que entretanto conseguiram consolar-te ou penetrar as tuas defesas. — Camilla estava a transbordar de uma raiva gélida, mais furiosa consigo mesma do que com ele. O estômago tinha começado a revolver-se-lhe e deu por si a rodar a chávena sem parar com dedos desajeitados e trémulos. — Camilla… — Vou-me embora, Anthony. Acho melhor ficarmos por aqui. — Levantou-se, olhando para ele com olhos tristes. — Volta para o hotel comigo, Camilla. Vamos começar de novo. Ela abanou a cabeça, demasiado insegura para falar. Depois afastou-se, num passo enérgico, concentrada em arranjar um táxi, concentrada em tudo excepto em Anthony Chapman. No refúgio do seu apartamento, meteu-se debaixo do chuveiro, deixando que o jacto de água lavasse a memória dele do seu sistema. Mas experimentava uma dor íntima, como se ele a tivesse esfaqueado no peito. * Quando regressou do teatro, ele estava no patamar, com um abundante ramalhete de rosas no chão ao seu lado. Baixou-se para apanhá-las. — Por favor — disse ela, desviando-se dele e enfiando a chave na fechadura com mãos trémulas. — Vai-te embora, por favor. — Diz-me que estás apaixonada por esse Edward. Diz-me que não sentes nada por mim. Jura-me que não queres que eu te beije. Porque eu desejo-te tão loucamente que mal consigo respirar. Dentro da sala de estar, Camilla recuou com as mãos estendidas em protesto. Ele seguiu-a rapidamente, atirando as flores para a mesa baixa e cingindo-a nos braços. Quando ela o afastou, ele apertou-a com mais força, desapertou-lhe a camisa e cobriu-a de beijos. Ela começou a desferir-lhe murros no peito mas ele apenas a cingiu mais, gemendo suavemente e murmurando-lhe ao ouvido, e o sopro dele encheu-a de estremecimentos. Caíram no sofá, Camilla envolvendo-o com os braços e as pernas, e fizeram amor como animais. Mais tarde, quando o telefone tocou, ela tirou-o do descanso. A intromissão despertou neles um novo desejo e Anthony abraçou-a e voltou a fazer amor com ela. Jantaram vagarosamente e em silêncio quase total, contemplando-se, sorrindo, tocando nos dedos um do outro. Depois de
levantarem a mesa, deitaram-se no tapete diante da lareira, explorando o novo e o familiar em cada um e conversando por frases intercaladas por longos beijos. Em seguida, foram para o quarto e adormeceram, de mãos dadas e os rostos tão próximos que sentiam o bafo um do outro. Quando Camilla abriu os olhos de manhã, ele já estava acordado. Pousou-lhe a mão ao de leve na pele sedosa do seu estômago e o desejo trespassou-a novamente. — Vou-me embora esta noite — disse ele, em voz baixa. — Já sei que queres fazer a peça. Mas depois voltas para Nairobi e ficaremos juntos. A não ser que queiras realizar o sonho de alguma actriz substituta e viajar comigo amanhã. Ela estudou-o em silêncio, pensando se ele ouviria o seu coração estalar de dor. — Não vou voltar para Nairobi — disse ela. — É tarde de mais. Já não tenho lá lugar. Não sou suficientemente corajosa para viver essa vida, para renunciar a tudo aqui e para passar o meu tempo numa casa e num jardim poeirentos em Karen ou Langata, à espera que voltes dos teus safáris por um ou dois dias. Não sou capaz. — Camilla — disse ele —, há anos que te amo mas suponho que tive medo da ideia de um compromisso e das mudanças que traria à minha vida. — A tua vida nunca há-de mudar — disse ela. — O teu trabalho e a tua vida são uma e a mesma coisa. E eu não quero uma vida em que o meu principal papel é verificar armazéns e provisões, encomendar bebidas e hortaliças frescas, fazer reservas em hotéis para o teu safári seguinte e entreter os teus clientes enquanto tu estás envolvido em jogos de sedução inofensivos ou fodes com as mulheres e as filhas. Tinhas razão da primeira vez. Não fomos feitos para viver um com o outro. — Nunca faria essas coisas se fosses minha — disse ele desesperadamente. — Vais ver que fazemos a nossa relação funcionar. Sabes bem que sim. Podíamos montar acampamentos de um tipo diferente, em que tu serias a anfitriã, pondo a tua marca pessoal em tudo. Podíamos transformar isso num sucesso estrondoso e estaríamos quase sempre juntos, partilhando os lugares que ambos amamos. — Não. — Não sentia segurança para dizer mais do que uma palavra. — Faríamos viagens à Europa e aos Estados Unidos pelo menos duas vezes por ano. Além disso, há uma série de outras coisas que podias fazer em Nairobi com as peças lindíssimas que estavas a produzir em Langani. Somos pessoas privilegiadas, Camilla, criadas entre duas culturas e capazes de ter um pé em cada uma delas. Podemos construir uma vida maravilhosa que nos preencheria aos dois. Ela desviou a cabeça, enchendo-se de forças para resistir a todas as formas que o seu poder de persuasão pudesse tomar. — Vou ficar aqui — disse ela. — Não tenho coragem para fazer o que estás a pedir. Não era capaz de lidar com a incerteza dessa vida. — Claro que tens coragem — disse ele com impaciência. — Tens é medo que eu te desiluda. Mas isso não vai acontecer, Camilla. Nunca mais te vou desiludir enquanto vivermos, meu amor. Vou olhar por ti e proteger-te sempre. Viveremos juntos num mundo cheio das coisas assombrosas que só eu te posso mostrar. Conheço-te nesse mundo e sei que o amas tanto como eu. É o único lugar para nós os dois. Camilla sacudiu negativamente a cabeça. — Não. — Não podes passar a tua vida com esse homem só porque pensas que é uma solução segura — disse ele com insistência. — Não o amas, Camilla. Estás a diminuir-te e também não é justo para
ele. — Amo muitas coisas nele — disse ela. — Posso confiar nele e sei que há-de estar sempre presente quando precisar dele. Já assisti às consequências de as pessoas se lançarem em situações unicamente levadas pela paixão. Não vou repetir esse erro. Pegou no roupão e vestiu-o. — Agora vou para a casa de banho — disse ela. — Quando sair, não te quero ver aqui. Hás-de arranjar uma boa rapariga e não hás-de tardar muito a ter meninos quenianos, louros e bronzeados, a correr pelo jardim. E, um dia, quando tiver passado tempo suficiente, voltaremos a encontrar-nos e seremos bons amigos. Ele não disse nada, o rosto crispado com o choque da rejeição dela. Camilla entrou na casa de banho, trancou a porta e abriu completamente as torneiras para não ouvir os movimentos dele lá fora. No banho, deu largas a um pranto silencioso e carregado de tamanha tristeza que teve de aproximar os joelhos do peito, na tentativa de mitigar a dor. Por fim, embrulhou-se numa toalha e abriu a porta, deparando-se com o quarto vazio.
Eram sete da tarde quando Edward chegou ao apartamento. Camilla sorriu-lhe, mas desviou a cara para ele não a beijar na boca ainda túmida e sensível. Tinha os olhos ligeiramente vermelhos, mas esperou que as suas hábeis tentativas para o disfarçar bastassem. Ele aceitou a bebida que ela ofereceu e sentou-se no sofá enquanto era servido. — Estiveste com o Anthony Chapman — disse ele, sem preâmbulos. — Não negues porque só pioras as coisas. Liguei-te e tu não atendeste e depois tiraste o telefone do descanso. Sei que ele estava aqui contigo. O meu coração não se engana. E agora a tua cara confirma-o, os teus olhos. A relação entre os dois não acabou. Ela permaneceu em silêncio, o sangue pulsando-lhe na garganta e sufocando qualquer resposta que lhe ocorresse. Quando serenou, respondeu num tom comedido. — Esteve aqui mas já partiu. Já não existe nada entre nós, Edward. Tivemos um romance no Quénia quando voltei no ano passado. Mas ele não quis que evoluísse para uma relação diferente. Esteve aqui para me dizer que lamentava ter-me ferido, nada mais. Pusemos de lado o passado e espero que possamos vir a ser bons amigos no futuro. Não existe mais nada, acredita. Edward pousou a bebida na mesa e inclinou-se para ela, colocando os olhos ao nível dos olhos dela. — Acho que não podes falar com essa segurança toda — disse ele. — Se falas, não estás a ser honesta, nem comigo nem contigo. E eu sei que ele esteve cá antes. A caminho dos Estados Unidos. Porque vi restos de um pequeno-almoço para dois na tua cozinha. Por irónico que pareça, foi na noite em que te pedi em casamento. Na altura, interroguei-me sobre quem teria aqui estado na noite anterior. E por que razão não me tinhas dito nada. — Não, não. Não foi… — Acho melhor estarmos uns tempos sem nos ver, Camilla. Por sinal, parto em viagem amanhã, tenho de operar em Marrocos, e a seguir tenho uma conferência em São Francisco. Quando chegar, contacto-te e talvez possamos conversar. Se ainda aqui estiveres e se essa bateria de rosas já se tiver esbatido da tua memória. — Claro que estou aqui — disse ela, forçando um sorriso. — Sinceramente, consegues ver-me a passear por Nairobi numa carrinha amassada à espera que um cowboy queniano apareça de mês a
mês para me levar a jantar um pernil de elande com cerveja? — Ele pediu-te então para voltares para o Quénia? Para ires viver com ele? — O que ele me pediu não interessa — respondeu ela. Uma sombra de medo insinuou-se-lhe nas veias e ouviu o tom de súplica na sua voz. — Estou aqui para ficar e tu vais ter de te resignar a esse facto. Por favor, Edward, vamos jantar fora e ao cinema a seguir. E depois tenho de me deitar cedo porque tenho ensaio amanhã de manhã e à tarde tenho uma sessão de moda que, provavelmente, vai ser ao frio e à chuva e extremamente aborrecida. Edward levantou-se. — Não estou interessado em ser a opção mais segura — declarou. — Preciso de muito mais do que isso e é claro para mim que não és capaz de mo dar. Vamos separarnos por uns tempos. — Olhou-a demoradamente antes de se dirigir para a porta e a abrir. — Adeus, Camilla — disse ele. Ela ficou sozinha.
CAPÍTULO 17
Londres, Junho de 1967 ter ficado em minha casa — disse Camilla ao pai. — Tenho um quarto de hóspedes –Podias perfeitamente decente. — Agradeço a simpatia — disse George. — Mas o clube fica mais perto dos sítios onde tenho encontros marcados. Além disso, vou-me demorar por cá algumas semanas e não quero acabar associado à teoria dos hóspedes e da pescada. Camilla sentia-se um pouco culpada por não o ter convidado antes mas o seu pesado horário com ensaios e sessões fotográficas impediam-na de dar atenção a um hóspede, mesmo sendo o pai. E, subconscientemente, sabia que não queria conhecer os pormenores da sua vida privada. Pensou se ele tencionaria encontrar-se com o ex-amante, que inesperadamente tinha ficado em Londres quando George se tinha fixado no Quénia. Em Nairobi, enquanto Camilla esteve alojada em casa dele, não houve sinais de ninguém na vida de George, nenhum homem que aparecesse regularmente para jantaradas ou almoços de fim-de-semana. Talvez ele tivesse medo da má-língua, de destruir a sua reputação de diplomata viúvo de sucesso, transformado em executivo de uma organização humanitária. Provavelmente, estava rodeado de pessoas como ela que aceitavam a sua homossexualidade, desde que não tivessem de a confrontar. Sentia vergonha de admitir que era tão hipócrita como o resto das pessoas. Ele estava com bom aspecto, pensou ela. Era evidente que se dava com a vida no Quénia e estava bronzeado e em forma graças às frequentes viagens de campo. George era conhecido pela sua insistência em conhecer pessoalmente cada projecto financiado pela sua organização. Ao contrário de muitos responsáveis humanitários, não se fechava no seu luxuoso gabinete de Nairobi, fazendo raras visitas-relâmpago ao mato. Preferia passar vários dias consecutivos numa determinada região que tinha solicitado o seu apoio. Tão-pouco instalava escritórios temporários sob os auspícios dos governos locais. Pelo contrário, passava o seu tempo a conversar com os directores dos parques e os guardas-florestais, com agricultores e homens de negócios locais de todas as raças e com os chefes tribais que viviam nas terras ou as usavam como pasto para os seus animais. Gostava de andar pelo mato, de escalar íngremes afloramentos rochosos, para observar corredores de migração usados pelos animais selvagens, ou de sobrevoar, em voos desconfortáveis e turbulentos, áreas que já não suportavam as exigências de uma população humana crescente e da sua vida selvagem residente. — Há séculos que não vinha ao teu clube — disse Camilla. — É reconfortante estar num sítio que nunca muda, onde se pode pedir empadão de carne ou ovo cozido. Onde ninguém me come com os olhos nem me reconhece sequer. — São demasiado discretos — disse George. — Mas conhecem-te. O velho Alfred, na recepção, perguntou-me esta manhã como estava a minha famosa filha. Tinha lido que agora és actriz, além de modelo.
— Só sou actriz por mais dez dias. Um teatro pequeno e uma carreira curta. Embora se fale numa transferência para o West End no Outono. — Achei a tua interpretação ontem à noite fantástica — disse ele. — A minha bela e talentosa filha… encheste-me de orgulho. — O orgulho anda de mãos dadas com o preconceito. — Estava tão absurdamente feliz com o elogio dele como quando tinha seis anos. — Trouxeste as críticas? Li a do The Times, mas tu disseste que tinhas mais. — E tenho. — Camilla tirou um maço de papéis do saco. — São quase todas sobre a produção e os outros actores principais que foram, sem excepção, tão meus amigos e pacientes que até os meus piores lapsos acabaram por sair bem. Mas recebi uma menção honrosa. — Mais do que isso — disse ele. — Melhor actriz revelação. Presença luminosa e vulnerável. Interpretação inteligente. — Não sei porque é que o público presume que as modelos não têm cabeça — disse ela, com uma certa indignação. — A imprensa ficou mesma atónita por eu ser capaz de falar, quanto mais representar. Mas é esgotante. Estes espectáculos todos… dois às quartas e aos sábados. E vários compromissos fotográficos de que não consegui libertar-me. Quando isto chegar ao fim, preciso de férias. — Lembras-te do dia em que foste rejeitada na escola de teatro? — Sorriu-lhe afectuosamente. — Ficaste devastada. Disseste que nunca mais ias tentar. Estávamos aqui, nesta mesma sala. E agora, sem qualquer formação, entraste numa peça que recebeu boas críticas. É um grande feito. — Nem todas as críticas são boas — disse ela. — Houve um crítico que escreveu que eu era bela mas transparente e outro que detestou a minha voz. Disse que eu era como as estrelas que eram deslumbrantes no cinema mudo, mas que nunca deviam ter passado ao sonoro. Que é que vamos beber com esta comida caseira? — Há um St. Julien excepcional de que és capaz de gostar — disse George. — Mas diz-me, querida, como é que estás? — Ocupada — disse ela. — Como toda a gente que conheço nesta cidade. — Tens estado com o Edward? — Não. Ele foi ver a peça ontem à noite mas eu não tenho tempo para o social e ele também não. — Limpou a boca com um guardanapo e tentou pôr um ar aborrecido. — Que é que isso quer dizer? — George conhecia-a muito bem. — Decidimos não nos vermos com regularidade. — Isso tem a ver com a visita do Anthony? Não, não te feches em copas, Camilla. — Papá, não consigo imaginar uma vida em Nairobi à espera enquanto o Anthony anda a caçar leões e búfalos e outras mulheres. Ou elas a caçarem-no a ele. Não tenho alma para isso. Falemos de outro assunto. — Não, falemos disso — disse ele firmemente. — Ele portou-se muito mal na noite da tua gala. Mas até esse momento, dava-me ideia de que estavas muito apaixonada. Que estavam os dois. Depois partiste precipitadamente e… — Ele foi igual a ele mesmo — disse ela. — E sei que não perdeu muito tempo a ir para a cama com uma rapariga americana. Além disso, tenho compromissos aqui. Fosse como fosse, teria sempre partido. — Sim, por pouco tempo. — Ele fez uma pausa. — Falaste no Edward nas tuas cartas.
— De vez em quando estou com ele — respondeu ela. — Querida, olha que eu leio os jornais ingleses. Mesmo em Nairobi. Podem chegar um ou dois dias atrasados, mas li a história da rapariga queimada em Barbados e do dinheiro que angariaste para ela. — Não angariei dinheiro para ela. Só… — Estiveste lá com o Edward, é onde quero chegar — disse George. — Sei também que o Anthony tinha esperança de estar contigo em Londres. E agora já não estás envolvida com o Edward. É por isso que te pergunto se ainda amas o Anthony Chapman. — Andei embeiçada por ele durante algum tempo. Caí completamente na esparrela… o esplendoroso caçador branco, os leões a rugir, ocasos flamejantes, tendas sob o céu estrelado. Mas não vai funcionar porque nunca mais serei capaz de confiar nele. Magoou-me profundamente. E não foi só uma vez. Nunca mais quero sentir-me assim vulnerável. — Não quero de maneira nenhuma desculpá-lo, mas… — Então não desculpes, papá. Acabou e eu parti para outra. — Não te podes proteger de todos os riscos da vida, Camilla. Alguns deles são o que faz com que ela valha a pena. — Nesse capítulo, pareces um entendido. — Queria magoá-lo, impedir mais críticas. — Cometi erros terríveis. — Para surpresa dela, ele reagiu à farpa sem hesitar. — Magoei a tua mãe, magoei-te a ti e magoei-me a mim mesmo, fingindo ser alguém que não era. Não te quero ver a fazer a mesma coisa. Acho que devias ser honesta contigo própria, Camilla. — Estou a tentar ser honesta. Pensei que tinha ficado claro. — Diz-me então sinceramente, que aconteceu entre ti e o Edward? — Ele convenceu-se de que as coisas não estavam acabadas entre mim e o Anthony. E por isso rompeu o nosso… a nossa coisa. — E que sentes tu em relação a isso? — Podemos pedir a sobremesa, papá? Adoro o pudim de melaço — disse ela, exasperada com a insistência dele. — Gostava que parasses de me interrogar. E dá-me mais vinho. Por favor. — A vida nunca se desenrola por linhas direitas, minha querida — disse George. — Há muitos caminhos à espera para nos confundir e todos viramos em sítios errados. Por vezes, temos de reconhecê-lo. Arrepiar caminho e avançar de novo. — Fez rodar o vinho no copo. — Por vezes voltar atrás é a única maneira de encontrar a felicidade. — Não me parece que queira meter marcha atrás na minha vida. E estás a ser pomposo. Moralista, aliás, que é bem pior. — Se calhar, devias ir passar um tempo a Nairobi — disse ele, apercebendo-se de que tinha de mudar de assunto. — Escapar por uma ou duas semanas. Ver como realmente te sentes. — O que realmente sinto é que o Anthony Chapman me humilhou e traiu e, neste momento, não posso sair de Londres por mais de meia hora — retorquiu Camilla. — E o Tom Bartlett tem-me preenchido a agenda dia e noite. — Não deixes o Tom tomar conta da tua vida toda — advertiu-a George. — É um rapaz ambicioso que há-de tentar espremer-te as energias até à última gota. — É um bom agente e um amigo leal — disse Camilla. — Estiveste com a Hannah? O seu coração pulsava violentamente ao fazer a pergunta que tinha procurado evitar. — Não. Ultimamente não tenho tido tempo para visitar Langani. O Lars parece ter as patrulhas de
conservação na fazenda bem organizadas e por isso… — Sabes o que aconteceu ao Janni e o que ele fez? — Falou numa voz baixa mas feroz. — Sabes porque é que o Piet foi assassinado? George abanou a cabeça com uma expressão sombria. — Sei que remonta ao tempo dos MauMau. — O Jan matou os pais do Simon. A mãe foi morta a tiro pelas costas, enquanto fugia, para tentar proteger o filho. Esconder o Simon. — Foi a Hannah que te contou? — Ele ficou chocado com o que ela disse e não reparou que ela não confirmou a sua suposição. — Infelizmente, são coisas que acontecem. As mulheres levavam muitas vezes comida aos homens na floresta e ocasionalmente eram apanhadas no fogo cruzado. — E depois o Jan e os outros homens amarraram o pai do Simon e assaram-no vivo numa fogueira. Para lhe arrancar informações. Assaram-no num espeto até ele morrer. E eu acho que tu sempre soubeste disto. — Não. Meu Deus, nunca ouvi coisa tão horrível. Sabia que o Jan tinha matado um homem e que havia uma irregularidade qualquer. Mas, nesse tempo, não era anormal. O irmão dele tinha sido brutalmente assassinado, muito à semelhança do Piet o ano passado. Teria havido uma investigação mas o estado de excepção terminou pouco depois e houve uma amnistia. Os processos foram destruídos… milhares deles, descrevendo os crimes de ambos os lados. As coisas foram abafadas, encobertas. Mas, pouco antes da Independência, o nome do Jan apareceu numa lista. Vi-o quando me pediste para me inteirar da situação em Langani, para saber se a fazenda estava destinada a ser adquirida pelo governo e redistribuída. Alguém se tinha lembrado evidentemente. O Jan sabia que qualquer pedido de cidadania ou de autorização para ficar lhe seria negado e partiu. — Sabias que a morte do Piet tinha sido um acto de vingança. — Desconfiava, sim — disse ele sombriamente. — Mas pensei que a violência tinha terminado aí. Especialmente porque o Simon também estava morto. Até ter visto a tua oficina, estava convencido de que tudo tinha acabado. — Está longe de ter acabado — disse ela, relatando-lhe a história de Wanjiru. — O Simon está vivo e a Hannah vive aterrorizada. Está também com medo de que, quando a história do Jan vier a lume, todos os trabalhadores abandonem Langani e haja mais ataques. Mais vingança. — Minha querida, estou horrorizado com o que me contaste hoje. Tenho a certeza de que hão-de encontrar o Simon mas, como dizes, os depoimentos num processo legal podem causar ainda mais danos. A longo prazo, talvez fosse melhor o Lars e a Hannah partirem. Irem talvez para a Noruega onde os pais dele têm uma fazenda. Recomeçar aí. — Uma parte dela quer ficar. E porque não havia de ficar? O avô dela e o Janni nasceram naquela terra e a Hannah também e até a Suniva. É queniana. Porque é que havia de entregar a fazenda só porque a lei não é capaz de protegê-la do terror? — Teoricamente, não. É trágico. Mas não acredito que haja nenhuma terra que valha aquilo por que ela tem passado. E, perante o que acabas de me contar, acho que será melhor não voltares ao Quénia por agora. E muito menos a Langani. — Estás enganado — disse ela. — É em Langani que eu devia estar neste momento. Ao lado da Hannah, a lutar pelo que é dela e por todos os anos de felicidade que lá passei. E, quando a carreira desta peça terminar, acho que é precisamente o que vou fazer. Separaram-se num clima de constrangimento e Camilla dirigiu-se para o teatro. Quando chegou à
tranquilidade e segurança do seu apartamento depois do espectáculo, passava da meia-noite, mas não conseguiu dormir. Tentou ler um livro mas não era capaz de se concentrar, tomada de uma sensação de futilidade. Sentia-se miserável, privada de amor e verdadeira compreensão. Pensou em Anthony e o seu coração começou a bater a um ritmo diferente. Interrogou-se onde ele estaria nesse momento. Provavelmente a consolar-se com alguma nova rapariga que tinha conhecido em Nova Iorque ou em Chicago. E fora ela própria que o empurrara por esse caminho ao rejeitá-lo. Queria que ele voltasse e a levasse para o Quénia, sem lhe perguntar se queria ir. Devia ter adivinhado isso, ignorado os seus protestos, compreendido que ela queria que tomasse a decisão por ela. Não era uma ideia realista mas, na sua solidão e mágoa, agarrou-se a ela. Do lado de fora da janela, uma lua ténue derramava a sua luz sobre a praça e a chuva pintalgava as vidraças. Tinha sido uma crueldade da parte dele ter aparecido a tentá-la, a fazer-lhe sentir que a sua vida era banal, os dias preenchidos com o flash das câmaras e os intermináveis fatos e jóias usados por um breve instante, antes de serem abandonados e esquecidos. Fazia parte integrante da vibrante sofisticação londrina, era uma imagem familiar, um ícone. Mas não sentia empenhamento nesse estilo de vida. A sua pequena oficina em Langani tinha-lhe enchido muito mais as medidas. Mas não tinha sido suficientemente corajosa para regressar e, como sempre, tinha partido para outra. Não tinha lutado por aquilo a que dava verdadeiramente valor, como não tinha lutado por Anthony. Na infância, tinha ouvido com frequência os pais a discutir, ouvido Marina a chorar atrás da porta fechada do quarto enquanto George punha o carro a trabalhar e abandonava a casa fria e tristonha. Camilla dirigia-se em bicos dos pés ao seu quarto, tremendo de medo, receosa de que o pai pudesse não voltar, de que a mãe, bela e espectral, a deixasse à guarda de mais uma ama ou governanta ou, simplesmente, desaparecesse da sua vida. Tinha prometido a si mesma, durante esses anos de solidão, que nunca brigaria com ninguém, que deixaria a vida seguir o seu curso e tiraria o máximo partido do que ela lhe oferecesse. Mas, nesse dia da infância, quando tinha posto, pela primeira vez, os pés na fazenda dos van der Beer, Camilla tinha encontrado em Langani, junto de Jan e de Lottie, o lar por que sempre ansiara. O lugar onde devia estar agora.
O telefone acordou-a e ela levantou-se a custo do sofá, apercebendo-se de que tinha passado a noite na sala de estar. Estava a tiritar com o ar frio da manhã quando levantou o auscultador. — Estou a ligar-te para saber como te sentes com a notícia — disse Tom Bartlett. — Que notícia? — Camilla esfregou os olhos e pôs uma manta pelos ombros. — Sobre o homem que matou o irmão da Hannah. Entregou-se à polícia — disse Tom. — Saiu um artigo no Telegraph. Seja como for, está nas mãos das autoridades. Deve ser um alívio. — Há alguma referência a um julgamento? Se for a tribunal, tenho de lá estar com a Hannah e com a Sarah. — Não, Camilla, não tens nada. Não entremos por aí. — O tom de Tom tornou-se imediatamente hostil. — Vou para lá, Tom. Tenho de ir. Não se trata de um julgamento simples. Há provas que podem mudar radicalmente a vida da Hannah. Ironicamente, pode ser o julgamento do Simon a levá-la finalmente a perder a fazenda. — E tu podes mudar isso tudo, partindo para lhe dar apoio no tribunal? — perguntou ele. — E suponho que estás a planear reconciliar-te com o teu rapaz da selva enquanto lá estás. Já agora,
esqueceste-te de que estás a trabalhar numa peça neste momento? — É só mais uma semana. Posso tornar realidade o sonho da minha substituta. — Não acredito que estejas a pensar seriamente em partir agora. — Estou. Vou ligar à Hannah assim que pousar o telefone. — Camilla, quero que ouças com muita atenção — disse Tom. — Se partires para Nairobi, vou ter de arranjar alguém que te substitua pelo menos para três sessões que concordaste em fazer. — É uma situação que está sempre a acontecer — disse ela. — As modelos adoecem, aceitam papéis no cinema ou no teatro ou ficam demasiado pedradas ou bêbadas ou partem de férias à última hora com os namorados músicos ou actores. É raro eu desmarcar uma sessão. Sou conhecida no ramo por ser de confiança e não ser temperamental. — Camilla, se partires agora da cidade, tiro-te dos meus ficheiros — disse Tom. — A nossa relação termina aqui. Ela ficou surpreendida e furiosa. — Então, porra, que termine — disse ela. — Adeus, Tom. Vestiu-se e saiu para comprar o jornal. A coluna estava na página quatro e ocupava pouco espaço, mas o título saltou-lhe à vista: POLÍCIA DO QUÉNIA ACUSA QUICUIO DE HOMICÍDIO DE AGRICULTOR BRITÂNICO O artigo dizia que Simon Githiri estava detido e fornecia os horrendos e bárbaros pormenores do assassínio de Piet. Uma torrente de recordações bombardeou-lhe o espírito e, com elas, submergiua o antigo medo reprimido ao reviver a noite do assalto, a chegada dos cinco homens com as facas, a sensação do sangue a escorrer-lhe pela testa. Pensou em Sarah e em Hannah, cara a cara com Simon, a prestar depoimento contra ele numa sala de tribunal, sabendo que nada do que dissessem traria Piet de novo à vida ou diminuiria o horror da sua morte. Não havia a mais leve dúvida no seu espírito de que devia lá estar. Passaram várias horas até conseguir negociar o abandono da peça e organizar a viagem. Tinha acabado de falar com Hannah, informando-a de que estava de partida, quando a campainha tocou. — Tenho estado a tentar ligar-te — disse George. — Mas tens o telefone ocupado desde as oito da manhã e eu tive duas reuniões pelo meio. Leste o Telegraph? — Vou para Nairobi — disse ela. — Esta noite. — És uma amiga valorosa e leal — disse ele seriamente. — Dentro de dez dias também regresso. Podes usar a minha casa o tempo que quiseres e as chaves do carro estão na minha secretária. Telefono já ao criado, se quiseres, para ele preparar tudo. — Obrigada, papá. Apanho um táxi para lá no aeroporto, para descansar antes de conduzir para Langani. Abraçou-o com gratidão e, depois de ligar para Nairobi, George deixou-a, já atrasado para a sua reunião seguinte. Camilla serviu-se de uma bebida e levou-a para o quarto. Tinha acabado de tirar a mala de cima do armário quando o telefone tocou. Por um momento, ignorou-o, quase certa de que seria Tom. Mas decidiu atender, pensando que ele já se teria entretanto acalmado. Não valia a pena partir sem pôr água na fervura. — Camilla? — Quem fala? — A voz era familiar, mas não foi capaz de identificá-la. — É o Giles. Giles Hannington.
— Deus do céu — disse ela, pouco satisfeita. — Que surpresa! — Sei que o George está em Londres — disse ele, e ela detectou a tensão na sua voz. — Deixei mensagens no clube dele, mas ele não me contactou. Pensei por isso se a Camilla… — Se ele não o contactou, não é nada comigo — disse ela. — Fez a sua escolha e ele foi sozinho para Nairobi, ponto final. — Que escolha? Nunca me foi dado nada a escolher. — Todas as pessoas podem escolher, Giles — disse ela. — E, no seu caso, decidiu que seria demasiado penoso viver lá. — Não, não foi nada disso que aconteceu — disse ele. — O George não quis que eu fosse para Nairobi. Disse-me que estava tudo acabado. Que eu não devia tentar levá-lo a mudar de ideias. Foi só dois dias antes de partir. Fiquei completamente arrasado e nunca mais tive notícias dele mas queria… — Esse assunto não é nada comigo — disse ela. — E não me agrada que me telefone. Se o meu pai quiser contactá-lo, contacta, quando entender. Seja como for, estou de partida esta noite. Vou sair do país. Mesmo que quisesse, não podia ajudá-lo. Tenho muita pena, Giles. — Claro. — Falou num tom resignado de derrota. — Também eu tenho pena. Não devia tê-la incomodado. Adeus, Camilla. Ela desligou e tentou concentrar-se a fazer a mala, mas as palavras dele não lhe saíam da cabeça enquanto escolhia e dobrava a roupa. Era uma história diferente da que George lhe tinha contado. Tinha ficado com a impressão de que Giles não tinha querido mudar-se para Nairobi, continuar a ligação, ou o que quer que se chamasse, entre eles. Mas, no fundo, não era nada com ela e não queria envolver-se. Afastou a ideia do espírito e fechou a mala. Ainda dispunha de três horas antes de ir para o aeroporto e, sentando-se, acendeu um cigarro, nervosa e impaciente. Quando o telefone tornou a tocar, levantou rapidamente o auscultador, desejosa de dissipar a atmosfera pressaga que se tinha abatido sobre o dia. — Acabo de ler o artigo sobre os teus amigos no Telegraph. — Edward falou numa voz suave. A sua voz reconfortante do consultório. — Pensei que talvez estivesses um pouco deprimida, se bem que aliviada porque finalmente se vai fazer justiça. Queres jantar comigo? Posso tentar distrair-te por algumas horas. — Estou de partida esta noite — disse ela. — Vais estar muito tempo ausente? — perguntou ele. — Não faço ideia — respondeu ela. — Estou a ver. Bem, boa sorte. Ela ouviu a condenação nas suas palavras. E o desapontamento. — Obrigada por ligares, Edward. Por pensares em mim. Adeus. — Adeus, Camilla. O estalido ao desligar fê-la sentir que estava a separar-se da última amarra que a ligava à vida que construíra em Londres. Uma hora mais tarde, estava a caminho do aeroporto.
CAPÍTULO 18
Quénia, Junho de 1967 Hardy reclinou-se na cadeira e espreguiçou-se. À sua frente, uma montanha de cartas e J eremy relatórios continuava na secretária, lançando-lhe uma crítica muda. Consultou o relógio. Seis horas. Talvez passasse pelo Outspan Hotel para tomar uma bebida antes de ir para casa. Descomprimir um pouco. Pensou se já seria velho de mais para aquele ofício. Ou se o ofício se tinha tornado de mais para ele. O caso Langani era uma complicação, agravada pelo facto de os van der Beer serem amigos pessoais há quase dez anos. O serviço fúnebre de Jan tinha sido uma ocasião terrivelmente melancólica, com os velhos amigos reunidos para recordar o homem, sem conhecerem a verdadeira tragédia da sua vida e morte. Jeremy ainda era perseguido pela expressão no rosto de Lottie quando ela lhe tinha perguntado se tinha feito algum progresso. Precisava de resultados, por ela e pela família dela. E queria provar que era um oficial da polícia competente. Pegou no cachimbo, limpou-o, encheu-o, calcou o tabaco e acendeu-o, o ritual dando-lhe tempo para pensar. Demorou alguns minutos a consciencializar o ruído na recepção. O agente de serviço estava a falar em voz alta, chamando por um segundo askari. Ora, eles que tratassem do assunto. Pegou no casaco e vestiu-o, preparando-se para sair antes que lhe pedissem ajuda. Bateram à porta. — Karibu — disse ele com resignação. — Inspector, está um homem na recepção que quer falar consigo. — O sargento Adongo, o seu assistente recentemente nomeado, estava à porta. — Diz que só fala com o inspector-chefe. Mandeio voltar manhã, mas ele diz que sabe que o senhor está aqui. — Quem é? — perguntou Hardy, com uma certa irritação. Não queria passar uma hora a ouvir um shauri qualquer sobre gado roubado ou uma disputa entre famílias que podia perfeitamente esperar pelo dia seguinte. Fosse como fosse, era exactamente esse tipo de problemas que queria passar ao polícia africano. — Recusou-se a dar o nome — disse o sargento Adongo. — Diz que só fala consigo. O inspector resmungou de frustração, percorrendo o corredor até à recepção e surgindo atrás do balcão de atendimento. A sala estava pintada de verde oficial, iluminada por lâmpadas fluorescentes no centro do tecto. Estava um homem sentado num dos bancos encostados às paredes. Tinha um sobretudo comprido e coçado vestido e não usava sapatos. A luz áspera relevava que ele estava em más condições físicas, o cabelo longo e empastado e as faces encovadas, quase esqueléticas. A sua pele exibia uma palidez doentia e acinzentada. Estava curvado, a cabeça baixa, as mãos agarradas ao banco, como se pudesse cair. — Sou o inspector-chefe Hardy. Querias falar comigo. O homem não levantou os olhos. Quando respondeu, a sua voz era roufenha como se tivesse dificuldade em falar. — Chamo-me Simon Githiri — disse ele num inglês estudado. — Venho entregar-me. Pelo
homicídio do meu patrão, Piet van der Beer. Hardy estudou-o, atónito, sem acreditar. Simon Githiri. Tinha visto o rapaz em Langani, em várias ocasiões. Mas a figura à sua frente estava a tiritar, as feições e o corpo consumidos. Tinha os olhos vidrados e ausentes e tinha ar de estar esfomeado. Há muito tempo que andava a monte, escondendo-se no frio e na humidade da floresta de Aberdare. Mas sim, era Simon Githiri. — Trá-lo para a sala de interrogatório — ordenou Hardy. — Arranja-lhe de comer e prepara-te para recolher o depoimento dele. Dirigiu-se ao gabinete e telefonou para Langani, aliviado por ter sido Lars a atender o telefone. — Entrou na esquadra de livre vontade. Não faço ideia porquê nem de onde veio — disse Hardy. — Volto a ligar quanto tiver mais informações. Na sala de interrogatório, tinha sido pousada na mesa, diante do prisioneiro, uma tigela de posho com um pouco de carne e uma caneca de chá doce com leite. Mas Simon recusou a comida, desviando a cara descarnada dos alimentos. — Água — pediu. Pegou no copo que lhe foi estendido e a sua mão tremia ao levá-lo aos lábios, esvaziando-o em silêncio. O sargento de serviço entrou e sentou-se, pronto para tomar notas. Hardy aclarou a garganta. — Para que fique registado, estamos na sala de interrogatório na Esquadra da Polícia de Nyeri, onde Simon Githiri se entregou de livre vontade e confessou ter assassinado Piet van der Beer da Fazenda de Langani. O sargento leu a Simon Githiri os seus direitos em inglês e em quicuio e explicou-lhe que ele teria de prestar um depoimento formal e assinar a sua confissão. Simon acenou com a cabeça em sinal de concordância. — Venho entregar-me pelo homicídio de Piet van der Beer — repetiu em voz baixa. — E também admites que estiveste implicado na chacina de gado em Langani e num assalto à mão armada, em Setembro do mesmo ano? Assim como na destruição da oficina em Dezembro do ano passado e no fogo posto na propriedade chamada Lodge de Langani? Diz-nos agora os nomes das outras pessoas envolvidas nesses incidentes. Mas a resposta do prisioneiro foi um silêncio impenetrável. O seu rosto estava desprovido de expressão e era quase como se se tivesse ausentado da sala. Por fim, após repetir várias vezes as perguntas, o inspector perdeu a paciência com ele. — Simon, compreendes que podes agora enfrentar a pena de morte por causa da confissão que fizeste? — Não suscitando qualquer reacção, Hardy fez uma pausa antes de mudar de táctica. — Já sabemos que foste ajudado nestes crimes pelo teu tio, Karanja Mungai — disse ele. Inclinou-se então para o rapaz e pronunciou as palavras seguintes num tom suave e de confidência. — Conhecemos a tua mulher, Wanjiru. E o menino que é teu filho. Simon levantou bruscamente a cabeça e olhou directamente para o polícia pela primeira vez. Todavia, continuou sem dizer nada. — O velho, Karanja, já não te pode fazer mal — disse Hardy. — Será detido e acusado porque estou convencido de que te persuadiu a cometer esses crimes terríveis. Mas a tua mulher e o teu filho estão inocentes. Se os queres proteger, deves contar-me a verdade. — A morte do homem foi uma questão tribal. Uma questão de honra. — Simon quebrou o silêncio. — O meu filho foi marcado porque eu não agi mais cedo para pagar a dívida. Agora
cumpri o meu juramento. O Piet van der Beer está morto e soube que o Jan van der Beer também está morto. Está acabado. Foi por isso que vim entregar-me. Simon tornou a baixar a cabeça contra o peito e pareceu entrar numa espécie de transe. O polícia tentou novamente arrancar-lhe mais respostas, mas os lábios do prisioneiro não voltaram a abrir-se. Estava visivelmente num estado de exaustão ou talvez alguma forma de histeria. Hardy já tinha visto homens assim, pessoas que pensavam que tinham sido condenadas à morte por um curandeiro ou cujo raciocínio tinha sido alterado pelo uso de drogas potentes. Chamou o sargento ao corredor. — Leva-o para uma cela — disse ele. — Fica com ele e fala com ele em quicuio durante algum tempo. Com calma e compaixão. Insiste no tópico do filho. E vê se consegues que ele coma. Talvez a comida o sacuda daquele transe e depois podemos interrogá-lo de manhã com mais sucesso.
Sarah estava sentada, extremamente pálida, a olhar para o radiotelefone. Levantou os olhos para Dan. — Ele entregou-se. Entrou na esquadra da polícia e confessou. Até custa a crer. — Queres lá ir? — perguntou Dan. — Não! — A palavra saiu explosivamente. — Não — repetiu com mais calma. — Não há nada que eu possa fazer. Absolutamente nada. Mas obrigada na mesma. Jantou em silêncio, engolindo a comida com dificuldade. Allie observava-a e lançou um olhar de advertência a Dan quando ele voltou a abordar o assunto. — A Sarah tem razão — disse Allie. — Neste momento, não é sensato ela ir onde quer que seja. Vá, vamos decidir que trajecto vamos tomar de manhã. É que uma parte dos meus paquidermes fez um desvio e agora não sei que grupo hei-de seguir. No refúgio da sua cabana, Sarah deitou-se na cama. Devia sentir-se aliviada por Simon estar finalmente preso mas não, sentia-se doente. Haveria um julgamento e teria de prestar depoimento porque era a única que o tinha visto na crista. Teria de enfrentar Simon Githiri do outro lado da sala do tribunal, teria de encarar o assassino de Piet e relatar a uma sala cheia de estranhos o que ele tinha feito ao homem que amava e como o tinha encontrado prostrado por terra. Quando fechou os olhos, o pesadelo desenrolou-se à sua frente e imaginou-se sentada no banco das testemunhas, com os olhos de Simon a brilhar quando se virasse para olhar para ela do banco dos réus. Como a tinha olhado nessa noite na crista. Afastou a recordação do espírito mas ela continuou a pairar nas fímbrias da sua consciência como um fantasma nas escadas de um torreão. Acabou por se levantar e foi sentar-se à secretária, arrumando os seus apontamentos e pastas e tentando enterrar o futuro na avalanche da normalidade quotidiana. Começou uma carta à família mas, não sendo capaz de lhes contar, de um modo coerente, o que estava a acontecer, rasgou as folhas e deitou-as ao lixo. Quando o dia nasceu, tomou o seu chá, lavou-se no lavatório de lona no exterior da cabana e vestiu-se. Ardiam-lhe os olhos e doía-lhe a cabeça da falta de sono. Dirigiu-se à cozinha, encheu uma garrafa-termos com café e embalou um pequeno cesto com fruta e pão. A ideia de uma discussão e conversa animada ao pequeno-almoço era insuportável e, quando viu Erope pronto e à espera ao lado do Land Rover, sentiu-se aliviada. Partiram em busca dos elefantes, mas a ideia de que era apenas uma questão de tempo até ter de enfrentar Simon não a largava e não conseguiu mergulhar no mundo das grandes criaturas que estudava. A luz intensa do disco amarelo do sol era inexorável e, ao fim de duas horas, Sarah encontrou uma zona ensombrada e parou o veículo no cume de um pequeno outeiro coberto de tufos. Em baixo, a manada encaminhava-se através de uma
secção de floresta ribeirinha, os seus corpos colossais produzindo uma série de sons que lembravam disparos de espingarda ao avançarem pelo meio das árvores e do mato denso. Saiu do Land Rover e tirou as máquinas fotográficas para registar o horizonte cintilante a norte, com a sua orla de montes vulcânicos e recortados erguendo-se como dentes afiados da terra fulva. Erope estava perto, descontraidamente apoiado sobre uma perna à lança de que nunca se separava. À sua volta, os sons de África elevavam-se no ar tórrido. No centro do rio, Sarah avistou um crocodilo submerso, a sua forma escamosa criando uma ilhota cercada por uma nuvem de borboletas esvoaçantes. Nas árvores, saltitavam e faiscavam calaus e os guinchos ensurdecedores de babuínos próximos chegavam-lhes aos ouvidos. Sarah sentou-se e serviu café, deitando três colheres cheias de açúcar na caneca de Erope. Um movimento captou-lhe a atenção. Numa moita a poucos passos de distância, viu um par de antílopes-pigmeus na defensiva, de olhos húmidos e narizes e orelhas trémulos. Pôs-se de pé, pegando na máquina, mas o seu gesto brusco pôs os minúsculos animais em debandada, afastandose aos saltos sobre patas finas e dispersando um grupo de gazelas-de-thomson que pastavam perto. Erope fez estalar a língua perante a sua falta de cautela. — Desculpa. Não estava a pensar — murmurou ela. — É pesado o fardo que carrega — disse ele. — Pesado de mais — respondeu Sarah. Então, de súbito, sentiu-se desesperadamente cansada de guardar tudo dentro de si. — Erope, tenho um problema — disse ela. — Quando se partilham os problemas, eles tornam-se mais toleráveis. — O Simon Githiri entregou-se ontem à noite. — O homem que matou o Piet. — Erope cuspiu no chão em sinal de desprezo. — Agora há-de pagar pelo crime dele. O governo vai enforcá-lo? — Não sei. Sim, é possível. — Estremeceu. — Mas primeiro haverá um julgamento. Erope cuspiu novamente, desta vez de satisfação. — E depois há-de morrer. Nesse momento, acaba tudo, Sarah. — Não, porque o tio do Simon ajudou-o a fazer o que fez em Langani. Foi uma questão de vingança. E eu vou ter de prestar depoimento em tribunal, mas tenho medo de o confrontar. — Fechou os olhos perante o calor implacável. — Podem executá-lo, Erope, mas na minha cabeça não vai morrer. Há-de estar sempre presente nos meus pensamentos. — Foi então uma vingança? — quis saber Erope. — Sim, pode dizer-se que sim. Durante o tempo dos mau-mau, o pai do Piet matou o pai do Simon. É possível que para ele fosse uma questão de vingança. O samburu fixou a distância, ponderando o problema. — Sarah, se uma fisi espera por uma pessoa na noite, é melhor dar-lhe caça com a lança do que esconder-se dela — disse ele finalmente. Sarah sentiu a pele arrepiar-se à recordação da hiena na crista. Quase sentia o cheiro da sua pestilência fétida nas narinas, via a pesada mandíbula da criatura e sentia a sua sede de sangue. Tinha sido atraída por Piet, cujo corpo desfeito jazia por terra. O odor do sangue dele pairava no ar e ela tinha-a impedido de rasgar o que restava dele. E, nesse momento, Simon arremessara a lança e o animal tombara, caindo pela vertente da crista. — Não passa de um animal cobarde — disse Erope, erguendo a lança. — Pode ser perseguido e morto, exactamente como um homem. Depois, o cheiro e o medo desaparecem. — Puxou o braço atrás e a lança elevou-se numa esfuziada de ar quente, a lâmina enterrando-se com um baque surdo
no tronco de uma acácia. Ficou ali a abanar. Sarah olhou para ela, hipnotizada, recordando a lança que Simon lançara para lhe salvar a vida, apesar de ter assassinado o homem que amava nessa mesma noite iluminada pela lua. À medida que o calor da tarde se intensificava, Sarah continuava a sentir a cabeça a latejar e estava demasiado cansada para se concentrar nos movimentos da manada. — Vou voltar para o acampamento — declarou. — Vou passar o resto do dia a trabalhar nos meus apontamentos e voltamos a sair amanhã de manhã. Arrancaram pelo trilho, emergindo do mato denso num dos caminhos mais largos que levavam à nascente. Meia hora mais tarde, viram um miniautocarro cheio de turistas de um dos lodges de safári. Tinha parado na estrada de terra batida mais à frente. Ao seu lado, estava uma viatura do Departamento da Vida Selvagem. Tinha rebentado uma discussão acalorada entre um guardaflorestal de uniforme e o condutor do autocarro. Quando se aproximou, Sarah viu o oficial estender a mão e aceitar um maço de notas, metê-las ao bolso e arrancar. Parou ao lado do autocarro e cumprimentou os passageiros que eram italianos. — Teve algum problema? — perguntou ela ao condutor. Ele fez má cara. — Pagámos a entrada no parque em Samburu — disse ele. — Mas hoje decidimos sair da reserva porque ontem um dos guias viu um leopardo por aqui. Agora esse indivíduo disse-me que tinha de lhe pagar mais vinte xelins por cada passageiro e cinquenta xelins pelo autocarro para estar nesta área. Diz que é que uma tarifa especial para cobrir as patrulhas de segurança. Por causa dos bandidos shifta. Nunca ouvi falar de tal tarifa, mas ele disse que não podíamos passar se não pagássemos. E que da próxima vez reconhecia o meu autocarro. — Deu-lhe um recibo? — perguntou Sarah, conhecendo já a resposta. — Estava muito zangado, a gritar pelo dinheiro. — Um dos turistas debruçou-se na janela e dirigiu-se a Sarah num inglês hesitante. — Sentimo-nos… um pouco assustados. Até pensámos se seria um bandido. Se não iria fazer-nos mal. Estava a dizer que podíamos ser atacados se não pagássemos. — É um problema de corrupção local — disse Sarah. — Por favor, não se sintam ansiosos a respeito de segurança. Estão numa zona bastante segura e ninguém vai atacá-los. Infelizmente, esbarraram com um oficial corrupto e eu vou daqui directamente à sede do Departamento da Vida Selvagem apresentar queixa dele. — Virou-se para o condutor. — Também deve apresentar queixa deste homem. Ele não tinha o direito de lhe cobrar mais e o dinheiro foi direitinho para o bolso dele. O condutor encolheu os ombros. — Ninguém põe cobro a isto — disse ele. — Estou constantemente a vir aqui com grupos diferentes. Não posso discutir com um tipo destes. E é melhor pagar-lhe do que cair numa emboscada dos bandidos, comparsas dele, e sermos degolados ou levarmos um tiro. Se ele pagar aos shifta para nos deixarem em paz, tanto melhor. E o chefe dele provavelmente recebe uma parte do dinheiro. Bem, agora tenho de ir. Temos de chegar a Samburu antes do pôr-do-sol. Sarah afastou-se, a espumar de raiva. Tencionava ir imediatamente ao gabinete do director dos parques em Isiolo para apresentar queixa. O condutor do autocarro era claramente demasiado poltrão para actuar. Alguém tinha de pôr cobro àquelas situações. Erope não fez qualquer comentário. Ia ansiosamente agarrado ao assento, enquanto Sarah conduzia pelo caminho acidentado a uma velocidade louca. Quando ela entrou na sede do Departamento da Vida Selvagem,
ficou no carro. O oficial de serviço reconheceu-a imediatamente. Não estava preparado para o ataque dela e ficou completamente impassível. — Como é que se chama esse homem que viu? — perguntou ele, pegando lentamente num bloco de notas e numa folha de papel químico e lambendo a ponta do lápis. — Tem de preencher este formulário, Mama, e é preciso indicar o nome dele e a matrícula do automóvel. — Não fiquei com o nome dele — disse ela furiosamente. — E não tomei nota da matrícula. Ele arrancou a toda a pressa quando me viu. Não podem andar muitas viaturas em patrulha. Deve saber perfeitamente quem ele é. — Não sabemos de que homem está a falar — respondeu o guarda. Reclinou-se na cadeira e mirou-a com um olhar insolente. — Tem de indicar o nome dele e a matrícula da viatura. E a matrícula do autocarro de safári com o nome do condutor para podermos interrogá-lo. Nesse momento, alguns samburus que estavam à porta espreitaram para o gabinete, curiosos com o shauri e a memsahib branca e interessados em ver quem levaria a melhor. — Sabe muito bem quem é esse guarda-florestal. — Sarah estava prestes a explodir de raiva. — E o condutor do safári está no Lodge de Samburu. Pode perfeitamente localizá-lo, se averiguar. Quero falar com o director. Já. — Está para fora. Já não volta hoje. Não temos ninguém que possa ir ao Lodge de Samburu. Temos muito que fazer aqui no escritório. — O oficial de serviço não tencionava receber ordens de uma mzungu e muito menos diante de espectadores. Estes brancos deviam perceber que já não mandavam. Pôs de lado o bloco de notas e o lápis e Sarah ouviu um riso sarcástico vindo do pequeno grupo atrás dela. — Raios vos partam, são todos iguais! — Estava praticamente aos berros. — Só queria saber quantos estão metidos nesta rede de extorsão! As pessoas que abusam do poder não merecem trabalhar aqui. Esse guarda-florestal devia ser despedido e toda a gente que aceita dinheiro ilegal dos turistas ou dos shifta. E vou comunicar ao director quando falar com ele que não fez nada para me ajudar. Absolutamente nada. Saiu como um furacão do gabinete e voltou para o carro. Erope olhou de relance para a sua cara vermelha e expressão sombria e refugiou-se nas suas reflexões. Sarah pressentiu a reprovação. — Que foi? Qual é o problema? — O tom dela era beligerante e Erope não fazia tenções de ser arrastado para o conflito. Abriu os braços num gesto de indiferença. — Já que aqui estamos, talvez seja melhor levantar o correio do Dan — limitou-se a dizer. Sarah foi buscar o maço de correspondência à estação dos correios. Havia uma carta para ela, com selo da Irlanda e a letra quase indecifrável de Tim. Meteu as cartas no estojo da câmara e arrancou para o acampamento. Dan estava no escritório, debruçado sobre a velha máquina de escrever, a transpirar com o calor da tarde e a tartamudear consigo mesmo. Acenou-lhe distraidamente, mas não levantou os olhos. — Trouxe o correio de Isiolo — disse Sarah. Mas não explicou o que tinha ido lá fazer e ele não pareceu dar-se conta. — Obrigado, miúda — disse ele. — Isto hoje aqui está um forno. Vai descansar. Mais tarde, pomos a conversa em dia quando a Allie chegar. A cabana dela estava irrespiravelmente quente e ela levou a carta de Tim lá para fora, para ler à sombra de uma árvore. Ele tinha escrito finalmente a explicar as circunstâncias da partida de Deirdre e a sua visita a Camilla em Londres.
É difícil explicar por palavras o pânico total em que eu estava, a vergonha que sentia e como estava humilhado com o que tinha acontecido. Não podia falar do assunto à família. Amor-próprio descabido, suponho. Senti-me um idiota completo por a Deirdre nunca ter sido capaz de me contar a coisa mais importante da vida dela. Um médico incapaz de reconhecer um problema tão grave na rapariga que afirmava amar. Sinto muito, Sarah. Sei que terias compreendido e tentaste dizer-me isso mesmo antes de partires. Mas, nessa altura, eu não estava a pensar direito. Estou agora a escrever para rectificar a situação, sobretudo entre ti e a Camilla. Ela ficou furiosa por eu a ter colocado numa posição tão delicada e espero bem que possas perdoar a trapalhada toda que criei. Disseste que eu devia visitar-te no Quénia. E, um dia destes, sou bem capaz. Talvez até regresse aí para trabalhar se o papá arranjar alguém que me substitua aqui. Tenta perdoar a minha estupidez crassa e dá-me a oportunidade de me redimir. Entretanto, compõe as coisas com a Camilla. Ela é uma amiga preciosa. Não a percas por minha causa. Por causa de ninguém. Beijos, Tim
Sarah leu e releu a carta, sentindo-se tão estúpida e culpada como o irmão. Tinha muito que reparar. Era custoso admitir como tinha sido preconceituosa e imbecil e estava a debater-se com a sua consciência quando ouviu o som do carro de Allie a aproximar-se do complexo. — Olá — disse Sarah, sorrindo-lhe. — Está de morrer aqui. — O director dos parques de Isiolo vem mesmo atrás de mim — disse Allie. — Quer falar contigo. Diz que tem a ver com um incidente qualquer com um dos guardas-florestais. O director apertou-lhe a mão, mas mostrou-se claramente hostil e irritado. Dan apareceu e conduziu-os para o escritório, onde se sentou sem dizer nada. Mas Sarah percebeu que ele estava aborrecido. — Soube que apareceu no gabinete a acusar o meu pessoal de aceitar subornos — disse o director. — É uma queixa muito séria. — Aconteceu diante dos meus olhos — disse Sarah, projectando provocadoramente o queixo. — Um dos seus guardas-florestais aceitou dinheiro de um grupo de turistas italianos. O condutor disse que foi obrigado a pagar uma quantia avultada, caso contrário teria problemas da próxima vez e talvez o autocarro dele fosse atacado. Os turistas também estavam assustados. É muito negativo para esta reserva e para o turismo em geral. — Falou com esse guarda-florestal? Qual é o nome dele? — Não. Ele arrancou antes de eu poder falar com ele. Mas vi o que se passou. Ele aceitou dinheiro dos turistas, alegando que era para fins de segurança. Pode facilmente descobrir quem era. — Mas, se esse guarda-florestal arrancou antes de ter parado, não poderá identificá-lo. Podia mesmo não ser guarda-florestal nenhum. — Estava de uniforme. Estava num veículo oficial. Vi isso perfeitamente. — Qual era então a matrícula do veículo? Ou a do autocarro de safári? — Já expliquei tudo isso ao seu funcionário. — Sarah sentia a fúria a crescer de novo.
— Ao meu funcionário. — O sorriso do director foi extremamente desagradável. — Ele contoume que uma mulher mzungu entrou no gabinete, a berrar diante de membros do público que os guardas-florestais eram todos corruptos e deviam ser despedidos. — Ouça — disse Sarah, fulminando-o com os olhos —, tem ao seu serviço um funcionário corrupto, talvez mais que um. E se não está disposto a fazer nada a esse respeito, então… Dan levantou-se. — Parece que há aqui um mal-entendido — disse ele, agarrando no braço de Sarah para silenciar qualquer protesto. — Nós compreendemos que as queixas têm de ser apresentadas através dos canais correctos e, naturalmente, a minha assistente não quis sugerir que todos os seus funcionários são corruptos. Estou certo de que há-de agora investigar o incidente sem demora. E Miss Mackay vai preparar um relatório circunstanciado do que viu e deixar o assunto nas suas mãos competentes. Sarah ficou boquiaberta enquanto Dan e Allie acompanhavam o director à saída. Quando voltaram, não foi capaz de conter a fúria. — Como é que o deixaram safar-se assim? Se fizermos vista grossa aos guardas-florestais que aceitam luvas, que esperança é que existe para este lugar? Há pessoas nos parques que estão feitas com os caçadores furtivos. Deixam inclusivamente os shifta entrar aqui com armas e camiões. Este comportamento vai deitar por terra tudo aquilo para que temos trabalhado. Sei muito bem o que vi! Esse guarda-florestal cometeu extorsão e eu merecia o vosso apoio há pouco… — Sarah! — A voz de Dan interrompeu a diatribe dela e cortou cerce. — Há uma maneira correcta e uma maneira incorrecta de lidar com este tipo de problema. Entrar pelo gabinete do director dos parques adentro como um furacão, a disparar acusações a tudo e todos… não resolve o problema, miúda. Não duvido que esse tipo esteja a receber luvas, mas não é assim que vamos apanhar esses vigaristas. Devias ter tirado a matrícula do veículo do parque, os nomes da agência de safári e do condutor e a matrícula do miniautocarro. E devias ter-me dito, quando chegaste esta tarde, que tinhas estado em Isiolo. — Mas eu… — Temos consciência do teu empenhamento no trabalho aqui. Não há qualquer dúvida de que a questão da corrupção é grave e está a agravar-se. Mas tu revelaste um péssimo discernimento, ao entrares de rompante no gabinete do director sem reflectir primeiro. Essa atitude só serve para alienar as pessoas com quem temos de trabalhar e não resulta em nada. — Sim. Sim, suponho que tens razão. — Ouve, miúda, andas sob uma grande pressão — disse Dan. — A notícia de o Simon se entregar e a perspectiva de um julgamento devem custar muito a aceitar. Eu e a Allie já conversámos sobre a pressão em que estás e temos uma sugestão. Achamos que deves ir passar uns tempos a Langani. Ou tirar umas férias em qualquer lado. Na costa, talvez. Andas demasiado nervosa, menina, e não queremos que cometas erros que não se possam reparar. Sarah olhou para ambos, horrorizada. Estavam a mandá-la embora. Era a maneira de lhe dizerem que tinha perdido o emprego. — Isto é… estás a dizer-me que não querem que eu continue a trabalhar aqui? — Tapou a cara com as mãos. — Estão a despedir-me? Allie passou-lhe um braço pelos ombros. — É claro que não te estamos a despedir. Sempre fizeste um excelente trabalho aqui, Sarah. Mas, neste momento, a tua cabeça não está concentrada no trabalho. Ambos compreendemos isso e achamos que deves tirar umas férias. E quando esta
tragédia toda estiver acabada, temos todo o prazer em que voltes. — Vá, não fiques transtornada. — A expressão de Dan era compassiva. — Há algum tempo que andamos preocupados contigo, com tudo o que se está a passar aqui e em Langani. A tua visita hoje ao gabinete do director dos parques foi ditada por um bom motivo, mas foi a táctica errada. Pareceme claro que precisas de um tempinho para te acalmares. Guardamos-te o lugar porque és a melhor investigadora que alguma vez tivemos. Entretanto, eu e a Allie desenvencilhamo-nos com o Erope. Ensinámos-lhe muita coisa e os apontamentos que ele toma são bons. Podes tirar algum tempo para ti. Já te tenho avisado de que não é fácil sobreviver num lugar destes. — Porque é que não te metes no Land Rover e partes para Langani amanhã? — sugeriu Allie. — Se precisarmos do carro ou se decidires ir para a costa ou para outro lado, eu vou com o Dan buscá-lo. E não te aflijas, Sarah. Em breve, hás-de estar fina e então regressamos todos à normalidade. Vamos contactar a Hannah e o Lars pelo rádio a dizer-lhes que vais para lá. De certeza que o teu apoio numa altura destas os há-de encher de satisfação.
O jantar decorreu sob uma certa tensão e Sarah foi deitar-se assim que terminou. Na manhã seguinte, fez a mala, pegou nas máquinas fotográficas e nos blocos de apontamentos e fechou a porta da cabana que fora a sua casa e refúgio. — Boa viagem — disse Dan. — Ainda bem que vais estar em Langani. A polícia há-de estar agora a interrogar o Githiri e tu hás-de querer saber em primeira mão o que o teu amigo inspector tem a comunicar. Nós por aqui também ficamos ansiosos por saber notícias. — Dan, eu… — Tudo bem, miúda. A sério. Vai lá. Tens as tuas notas e tudo isso. Não te falta papelada para tratares. A gente fica em contacto. Sarah conduziu a toda a velocidade, as lágrimas distorcendo o já empoeirado pára-brisas. Tinha sido posta na rua, despachada sem ter sido ouvida. Tinha posto o seu trabalho em pantanas. E Dan tinha razão, não andava a pensar direito. Recentemente, tinha-se pegado com Hannah e Camilla e tinha perdido o contacto com Rabindrah, recusando enfrentar o que sentia por ele. Precisava de se acalmar antes que cometesse mais erros. Quando chegou a Langani, Lars pegou-lhe no braço e levou-a para a sala de estar onde Jeremy já estava instalado, ladeado por Lottie e Sergio. Hannah levantou-se para a cumprimentar e voltaram a sentar-se para ouvir o que o polícia tinha a dizer. — O Simon está num estado lastimoso — disse Jeremy. — Num estado agudo de malnutrição. Sabia perfeitamente o que estava a fazer quando confessou ter assassinado o Piet. Desde aí, tenho passado horas a interrogá-lo, mas ele recusa-se a prestar mais informações, além de repetir a declaração inicial. — Não conseguiste mesmo arrancar-lhe mais nada? — quis saber Hannah. — Ontem passei o dia todo com ele e quase toda a manhã de hoje — disse Jeremy. — E pus um dos meus melhores quicuios na cela com ele, a abordar subtilmente a questão, a conversar com ele em quicuio, a fazer-lhe perguntas sobre o clã e a família dele. Até agora, sem resultados. — Mas ele confessou inequivocamente que matou o meu filho? — Os olhos de Lottie transbordavam de mágoa. — Sim. Sem margem para dúvidas. O problema é que se recusa a implicar o Karanja ou qualquer
outro. Nem diz nada sobre o primeiro ataque à casa ou ao gado ou sobre os incidentes na oficina e no lodge. — Tem a certeza de que o tio esteve por trás disso tudo? — perguntou Sergio. — As declarações da Wanjiru apontam para aí. O Simon parece ter sido um jovem normal até o estafermo desse velho malévolo lhe ter feito a cabeça. Estou convencido de que o Karanja o levou deliberadamente para a reserva para planear a morte do Piet. Contava com o choque que o Simon ia sentir quando soubesse o que tinha acontecido ao pai, explorou propositadamente as emoções do rapaz e depois encheu-o de drogas e obrigou-o a prestar juramento. — Pelo menos, o Karanja foi obrigado a esconder-se — disse Lars. — Deve ser suficiente para não pensar em Langani por agora. Sobretudo se souber que o Simon se entregou. — É claro que o Simon pensou que a deformidade do filho era um castigo por não ter agido mais cedo — disse Jeremy. — Podia ter matado o Piet muito antes. Saíam os dois juntos com frequência. Não havia razão para ele ter esperado tanto tempo, a não ser que andasse a debater-se com a sua consciência. Acho que o Karanja planeou a chacina do gado da Hannah e o assalto à casa, para lembrar ao sobrinho que continuava à espera que a vingança fosse infligida. Mas, enquanto o Simon se remeter ao silêncio, só temos a palavra da Wanjiru. Não estou seguro de que ela se aguente no banco das testemunhas e, de qualquer modo, parte das afirmações dela será considerada conjectura. — Quer dizer que o Simon vai ser condenado por homicídio porque confessou. Mas o Karanja e os outros implicados safam-se. É o que estás a dizer? — Hannah tinha os olhos fixos em Hardy. — O Simon vai ser enforcado. Disso não tenho dúvida. Admitiu ter assassinado o teu irmão e não há outra sentença possível. Mas não podemos tocar no Karanja, se o Simon não falar. — Tens de arranjar alguma maneira que o obrigue a dizer a verdade. — Havia um registo selvagem na voz de Hannah. — Ele agora não tem nada a perder — disse Lottie com resignação. — Foi por isso que se entregou. Sabe que já é um homem morto. — Nesse caso, isto nunca terá fim — disse Hannah —, porque o Karanja não há-de descansar enquanto não nos privar de tudo. Tens de quebrar o silêncio do Simon, Jeremy. Custe o que custar! — Tinha levantado a voz e Lars estendeu o braço para lhe pegar na mão. — Hannah, vou fazer tudo ao meu alcance mas… — Mas esperas que a gente fique aqui pacientemente de braços cruzados, à espera que faças mais algumas perguntas ao Simon com bons modos. Enquanto o Karanja anda aí a monte a ameaçar-nos. — A sua expressão era sombria. — Temos de esperar até morrermos todos? É isso? — Hannah — disse Lottie, suavemente —, assim não vamos a lado nenhum. O Jeremy está a fazer por nós tudo o que pode. — Que é que ele fez exactamente por nós? — perguntou Hannah. — Como é que ele nunca descobriu a razão da morte do Piet? — Virou-se para encarar o polícia. — Ou estavas a proteger o bom nome do meu pai? Foi isso? — Hannah, sabes bem que não foi esse o caso — disse Lars. — Não existe qualquer registo do incidente na floresta — disse Jeremy rigidamente. — Só posso presumir que qualquer referência a ele em processos oficiais foi destruída na altura da amnistia. Seja como for, garanto que não tinha conhecimento do que o Jan tinha feito. Nem de que a morte do Piet pudesse ter sido um crime ditado por vingança. — O Simon disse que a dívida estava paga — disse Hannah. — Mas eu continuo a lutar pela
minha família e pela minha terra. — Virou-se para Lottie. — Depois de o Piet morrer, quem ficou aqui fui eu. Tu partiste para sul por causa do papá. E agora ele também está morto e a única coisa que resta da história da nossa família é esta fazenda. Já pensei em abandoná-la, é evidente que sim. Porque vivo no terror do que me pode acontecer, a mim, ao Lars e à Suniva. Mas porque é que havíamos de partir? Estamos a criar empregos, receitas, impostos e alimentos e a contribuir o máximo que podemos. Que é que vai acontecer a este país se bandidos como o Karanja podem expulsar as pessoas das suas terras pelo terror? Onde está a lei, se o Karanja continua em liberdade? — É verdade. — Sarah falou pela primeira vez. — O Simon tem de assinar uma declaração que indique o papel do tio no que se passou. — A polícia tem formas de arrancar informação mesmo aos piores criminosos. — Hannah dirigiu esta observação ao polícia. — Métodos de interrogatório especiais. Toda a gente sabe. Porque é que não os usas? — Hannah, tenho de proceder dentro dos limites da lei — disse Jeremy. — Caso contrário, não sou melhor que o Karanja e os outros como ele. Se a confissão do Simon for obtida sob coacção, ele pode retractar-se em tribunal. E então todas as outras provas seriam contaminadas e podíamos acabar sem nada. — Quem vai acabar sem nada é esta família. — Hannah levantou-se, agitando-lhe o punho. — Enquanto a lei proteger um assassino e um criminoso. Nós sabemos que tens maneiras de levar um prisioneiro a confessar, Jeremy. E o Simon é um bárbaro. Não merece clemência. Lottie levantou-se e colocou-se à frente da filha, olhando para o seu rosto revoltado. Eram como duas leoas, preparando-se para um combate, pensou Sarah. Sentiu medo por ambas e pelo mal que, na sua raiva, podiam fazer uma à outra. — Sabes quem pareces? — perguntou Lottie. — O teu pai. Esta terra está a pôr-te exactamente como ele. Que é que queres que o Jeremy faça? Que espanque o Simon? Que o ameace e aterrorize? Que o prenda a um espeto e acenda uma fogueira por baixo dele? — Lottie… — Lars inclinou-se para ela, mas ela ignorou a sua mão estendida. — É o que queres, Hannah? — perguntou ela. — Recomeçar todo este ciclo de vingança até tu própria teres de fugir e esconder-te do que fizeste? — Recuou um passo, abanando a cabeça. — Vais ficar aqui até haver também um mar de sangue aos teus pés, só para afirmares o teu direito a esta fazenda? Não vale a pena. Nunca valeu. Quero que sejas forte, mas não empedernida. Quero que tenhas visão, que não sejas cega. És agora esposa e mãe, como eu. Temos de saber quando devemos dizer «basta». E, se pensas que te desiludo porque quero afastar-me disto, paciência. — Afasta-te, então. — As palavras saíram antes de Hannah conseguir dominar-se. — Esquece que existimos… a tua filha e a tua neta. Foge e esconde-te, como o papá fez. Volta para Joanesburgo com o tio Sergio. Seguiu-se um silêncio chocado e Hannah imobilizou-se, horrorizada com o que acabara de dizer. Mas era demasiado tarde para se retractar. Lars debruçou-se e enterrou a cabeça nas mãos. — Eu disse que ficava aqui enquanto precisasses de mim — disse Lottie. — Mas quando este processo terminar, vou-me embora. Não para fugir e me esconder, mas para viver. Não aguento mais ódio. Vou porque não tenho qualquer desejo de ver a única filha que me resta destruir-se e destruir todos à sua volta por um pedaço de terra. Deu meia-volta e saiu da sala. Passado um momento, Sergio saiu atrás dela.
Hannah deixou-se cair numa cadeira, o rosto deformado pelo remorso. — Oh, não olhes para mim assim — disse ela a Sarah. — Tu e eu perdemos o Piet. E agora estou em risco de perder a terra que ele amava. A terra onde nascemos. Onde teriam os dois construído uma vida juntos. Achas que ele teria baixado os braços e abandonado a fazenda? Virou-se para Jeremy. — Tens de usar a criança — disse ela friamente. — O filho do Simon. Dizlhe que ele pode ser operado para corrigir a deformidade. A maldição ou o que ele pensa que é. Mas, sem uma declaração sobre o Karanja, não haverá tratamento e a criança nunca será normal. Será toda a vida um aleijado. Um proscrito do clã, como o Simon foi. Não terá futuro. Seguiu-se um longo silêncio. O polícia continuou sentado, fazendo rodar o cassetete nas mãos, sem olhar frontalmente para Hannah. — Porque é que não lhe dizes a verdade, Jeremy? — disse Sarah. — Diz-lhe que o filho nasceu com uma deformidade porque o Karanja espancou a mãe quando ela estava grávida. O Simon estava presente quando o velho levou a Wanjiru de volta, no dia em que ela fugiu. Viu o que lhe tinha acontecido, se bem que não se tenha importado muito… aos olhos dele, ela não passava de um objecto. Mas um filho tem algum valor. Se o Simon compreender que o filho foi lesado pelo Karanja, talvez fale. Hardy estudou-a atentamente e levantou-se. — É uma possibilidade — disse ele. — Talvez funcione se o Simon sentir alguma coisa pela criança. Mas estou a pensar que a pessoa que devia dizer-lhe isso, que pode exercer alguma influência sobre ele, é o antigo mentor dele, o padre Bidoli. — Posso pedir-lhe — disse Sarah. — Posso ir a Nyeri amanhã falar com ele. E talvez também com a Wanjiru. Vou ligar primeiro ao Dr. Markham, para saber se conseguiu marcar uma data com o especialista. — Fez uma pausa. — Continuas a achar que ela deve estar na missão? Com o Simon preso na mesma cidade? — Não é ideal, mas prefiro tê-la debaixo de olho — respondeu Jeremy. — Informa-me sobre o que o padre disser. Amanhã entro em contacto. Lars acompanhou o polícia ao carro e não voltou para casa. — Está furioso comigo. — Hannah estava tristemente encolhida numa cadeira e Sarah foi sentarse no braço. — Oh, Sarah, porque é que não consigo ficar calada? A minha mãe tem razão. Transformei-me numa cabra empedernida. Não quero ser assim, juro que não. O Simon pode estar na prisão mas continua a ser uma ameaça para nós e eu sinto-me aterrada. Apetece-me gritar de raiva por causa do que vejo e ouço constantemente na minha cabeça. — Eu sei. Eu também ouço e vejo as mesmas coisas. E quanto à raiva, não és a única. Fui mais ou menos suspensa do meu trabalho porque tive uma altercação com um dos oficiais locais em Isiolo e conduzi tudo mal. Até estou com medo de que o Dan comece a procurar outra investigadora… alguém que não desatine, que esteja com a cabeça exclusivamente no trabalho. Ultimamente não tenho conseguido concentrar-me em nada. Custa ver uma saída desta situação. — Levantou-se e puxou por Hannah. — Mas, pelo menos, podemos ir ter com a Lottie e fazer as pazes com ela. Não deves deixar que isto vos separe outra vez. Ouviram Lottie antes de a verem, sentada com o irmão sob a árvore-do-fogo. O céu era uma massa de nuvens plúmbeas e o vento que se levantara transportava as suas vozes na direcção do alpendre. Hannah deteve-se na beira dos degraus, pensando se devia interrompê-los. As palavras de Sergio fizeram-na estacar.
— Escreveste ao Mario? — perguntou ele. — Não. — Lottie sacudiu negativamente a cabeça. — É cedo de mais. Não sei o que lhe hei-de dizer. — Ele ama-te, Carlotta. Pelo menos, deves contar-lhe o que aconteceu. — Eu sei, eu sei. — Tenho a certeza de que ele se metia num avião para Joanesburgo. Podias ir e ficar connosco. Reatar a relação e talvez ir passar uns tempos a Itália para conhecer a casa dele. — Sergio, o Janni ainda agora morreu… — O Jan foi um bruto durante esse tempo todo na Rodésia. Vi perfeitamente como estavas quando nos visitaste. Eu e a Elena ficámos preocupados. E o que se passou entre ti e o Mario deu-nos muita alegria. Se tivessem tido mais tempo um com o outro, acho que não terias regressado. Deus sabe, Carlotta, que o Jan não te mereceu nos últimos tempos e quase te destruiu. Mas agora estás livre dele. Livre para ires para onde quiseres. Sarah fez sinal de que deviam afastar-se, mas Hannah estava siderada. Imóvel, procurou ouvir tudo o que Lottie dizia. — Por agora vou ficar em Langani — disse Lottie. — Em breve escrevo ao Mario, mas entretanto a Hannah precisa de mim aqui porque está com medo. Se não encontrarem o Karanja, tentarei persuadi-la a partir. Mas vai ser difícil. E, de certo modo, a culpa é minha por causa do testamento do Janni. Obriguei-o a deixar-lhe a fazenda. Disse-lhe que era a única coisa a fazer. Mas agora que lhe pertence de facto, é capaz de lhe custar ainda mais abandoná-la. Receio bem ter-lhe criado um fardo acrescido. — A tua Hannah é uma rapariga obstinada. Mas tem um bom marido que a adora e uma filha maravilhosa. Não está sozinha como tu. Ganhaste o direito de viver a melhor vida que puderes, cara. Não podes existir só para a tua filha e para a tua neta. — Tenho de compensar o tempo em que estive ausente. Como é que posso dizer à Hannah que quero partir para estar com um homem com quem tive um romance enquanto o pai ainda era vivo? Ouviste o que ela disse há pouco, o que pensa de mim. Mas vou escrever ao Mario e ele há-de estar preparado para esperar. Pelo menos até depois deste julgamento. Hannah afastou-se, apressando-se a entrar em casa e fazendo sinal a Sarah para que a seguisse. — Ela teve uma relação extraconjugal. — Hannah estava atónita com o que tinha ouvido. — Mas ficou com o Janni até ao fim — disse Sarah. — Por mais penoso que tenha sido. — E se esse homem aparece aqui? A pedir-lhe que parta com ele, talvez até que se case com ele? — Hannah começou a dar voltas no alpendre. — Se for um bom homem e a amar, só podes sentir alegria por ela. O Sergio tem razão. Ela merece ser feliz depois de tudo o que passou. — Mas vai-se embora. Ele vive em Itália! — Hannah, ela vai-se embora de qualquer maneira. Não é por não te amar, mas porque Langani e todas as suas associações são demasiado terríveis para ela. Não a imagino a viver aqui dependente de ti. Além disso, pensar que a Lottie está apaixonada é fantástico. Como tu e o Lars. Não concordas? — Sempre o teu lado romântico! As pessoas fortes e pacientes como tu e a minha mãe fazem-me sentir horrivelmente mal. Eu só faço asneiras, disparo em todas as direcções, sem conseguir explicar nada a ninguém. Embora tenha conversado com o Anthony quando ele cá esteve. Não sei
porquê, mas foi mais fácil abrir-me com ele. Fiquei surpreendida a que ponto ajudou. — É mais difícil abrirmo-nos com as pessoas mais chegadas a nós. É demasiado doloroso — disse Sarah. — Suponho que foi por isso que o Tim não foi capaz de falar comigo. Depois mostrote a carta dele. E talvez possamos redigir uma carta conjunta à Camilla. Porque também temos de lhe contar do Simon. Permaneceram à janela de braço dado, alongando os olhos até à silhueta da crista de Piet, de um profundo azul na paisagem nublada, ainda marcada pelo incêndio que destruíra o seu último sonho. — Vamos lá ouvir a explicação do irmão indefeso — sugeriu Hannah. — E depois vamos ter com o Lars e a Suniva para irmos dar uma volta, antes de a noite nos fechar no estado de sítio em que vivemos.
No dia seguinte, era quase meio-dia quando Sarah se sentou com o padre Bidoli. Embora a sua aparência fosse frágil, ela achou que a sua fraca saúde não o impediria de visitar a prisão. Mas concordaria em pressionar Simon para que prestasse um depoimento a implicar Karanja? Se fosse falar com Simon, iria na qualidade de pastor. E de certeza que não aprovaria a sugestão de Hannah de fazer chantagem com a criança. O Dr. Markham tinha confirmado pelo telefone que um ortopedista de Nairobi examinaria a criança dali a uma semana. Seria uma boa notícia, pelo menos para Wanjiru. O padre exibia um ar espectral ao pegar-lhe na mão e dirigir-lhe o seu bondoso sorriso. — Como passa, padre? — Vivo cada dia como Deus mo dá — disse ele. — Mas não me parece que tenha vindo aqui para se inteirar da minha saúde. — Vim por causa do Simon — disse ela. — Entregou-se e está preso. Aqui em Nyeri. O padre ficou visivelmente chocado com a notícia. Mas escutou pacientemente e sem comentários enquanto ela descrevia todos os acontecimentos desde o último encontro entre ambos. Terminou com a reunião em Langani no dia anterior, demorando-se sobre o sofrimento de Hannah e Lottie e os seus receios a respeito do homem preso do outro lado da rua. — Quer que eu vá falar com ele? — perguntou ele. — Acho que ele é capaz de lhe dar ouvidos. Confia em si. — E que acha que eu posso convencê-lo a dizer? — Foi o tio que o levou a fazer grande parte do que ele fez. Acho que todos aceitamos que assim foi. Mas, se o Karanja escapar impune, a vendetta vai continuar até ele conseguir pôr a Hannah fora da fazenda. Ou matá-la também. Ela já está perto de um colapso debaixo dessa ameaça. Mas o Simon recusou-se a apontar o dedo ao tio. — Minha filha, se eu for à prisão, não é seguro que ele aceite falar comigo nem que diga nada que seja útil à polícia. E, se falar comigo como seu confessor, já sabe que nunca poderei repetir o que ele disser, nem a si nem a ninguém. — Fez uma pausa, olhando para a cabeça baixa de Sarah. — Mas vou — disse ele. — Tentarei salvar o lado bom que ele já teve. E far-lhe-ei um apelo, por si, pela Hannah e pela família dela. — Compreendo que é pedir muito — disse Sarah. — Não. É a minha missão. Quando uma criança é entregue aos meus cuidados, fica aos meus cuidados para sempre. Quando falar com ele, informo-a. Dê-me o nome do seu amigo polícia que
eu trato de tudo com ele. Mas não alimente demasiadas esperanças, Sarah. Esse homem que está na prisão não é o rapaz que eu conheci em Kagumo. Distanciou-se muito das convicções que tinha nesse tempo e só podemos confiar na bondade e redenção divinas. Seja como for, o Simon deve ter tido uma razão para se entregar. Talvez esteja preparado para a expiação. — Acho que ele se entregou quando soube que o homem que tinha matado o pai estava morto. Mas não acredito que isso baste ao Karanja. Receio bem que ele não pare enquanto a Hannah não abandonar a fazenda. — Talvez não. Vai então para Langani agora? — Vou visitar primeiro a Wanjiru. Quero dizer-lhe que o especialista vai examinar o bebé e operá-lo dentro de alguns dias. — É uma cristã verdadeiramente boa e generosa. Conheci o marido da sua amiga quando ele a trouxe aqui. — O Lars? — Sim. Um bom homem. A Hannah tem muita sorte, não tem? — Muita, padre. — Sarah falou num tom melancólico. — E a Sarah?
Sarah fitou-o nos olhos sábios e remelosos e começou a falar-lhe sobre a chegada de Rabindrah Singh à sua vida, destruindo todas as suas certezas. — É uma loucura, padre. Nunca imaginei… Mas o problema é que nunca amei ninguém além do Piet, desde o primeiro momento em que o vi. Era uma criança nessa altura e ele era o irmão mais velho da Hannah. Mas apaixonei-me por ele, nesse primeiro dia em que ele saltou para o rio ao meu lado, a rir e a atirar-me água. — Os seus olhos brilhavam, rememorando-o nessa gloriosa manhã, com o cabelo louro e a água da montanha a correr-lhe pela pele dourada. — O meu amor por ele cresceu embora, durante muito tempo, ele não me desse atenção. E, quando por fim começou a amar-me e me pediu em casamento, foi o culminar de todos os meus sonhos. Fiquei completa e delirantemente feliz. Permaneceu em silêncio por alguns momentos e o padre fechou os olhos e esperou. — Na véspera do dia em que o Simon o matou, eu e o Piet deitámo-nos lado a lado na crista, que era o lugar predilecto dele na fazenda. Estávamos a olhar para o céu, a fazer planos maravilhosos para o futuro. Era profunda a paixão entre nós, mas queríamos esperar. Pela nossa noite de núpcias. Íamos passá-la ali em cima, acampados no topo do nosso mundo. Era tudo perfeito. E depois ele morreu. Foi-me arrebatado, arrancado do coração e da vida. Nunca mais quis nem esperei voltar a sentir o mesmo. Foi demasiado belo e demasiado torturante. — Mas agora começa a renascer com outra pessoa. E sente que está a trair a memória da pessoa que amava? — É assustador. E tenho medo de que seja errado, de que seja um erro absoluto e total. — Fale-me desse homem que voltou a despertar o seu coração. Porque é que acha que é um erro? Sarah passou os dedos pelo cabelo, procurando uma forma de descrever Rabindrah e o efeito que ele tinha sobre ela. — É indiano. Um sique. É o jornalista que se apercebeu de que a polícia nunca o tinha entrevistado a respeito do Simon. Quando começámos a colaborar num livro sobre os elefantes, não
engracei muito com ele. Pensei que só estava interessado no dinheiro e em ganhar nome. Mas quando entrei em crise, ele foi bondoso e descobri que podia confiar nele. E depois, passado algum tempo, senti vontade de lhe fazer mais confidências. De lhe falar de mim, de… sinceramente, não sei. Houve uma mudança. Talvez tenha sido quando ele adoeceu com malária que me apercebi. Fiquei então cheia de medo de perdê-lo. Compreendi que queria mais dele do que uma simples amizade. — E ele deseja o mesmo? — O velho padre sorriu-lhe. — Acho que sim. Não, sei que sim. Enfim, desejou. Beijámo-nos. E foi a primeira vez que experimentei esse sentimento profundo que se tem por… — Calou-se abruptamente. — Seja como for, entrei em pânico e fugi. Pensei que estava a virar as costas ao Piet, esquecendo as promessas que tínhamos feito um ao outro. Senti-me culpada. E terrivelmente mal. Porque queria que o Rabindrah me desejasse. Continuo a querer. Mas que é que isso faz do amor e dos anos que pertenceram ao Piet? Não sou capaz de esquecê-los e continuar em frente. Não sou. — Sarah, ter perdido uma pessoa que amava não significa que o seu coração nunca mais se abra para outra pessoa. Somos humanos, minha filha, e Deus abençoou-nos com uma capacidade infinita para o amor. Foi a dádiva que nos deu. Olhe para uma mãe e um pai com os filhos. — É uma espécie de amor diferente — disse ela, ainda perturbada. — E o que começou a sentir por esse novo homem é diferente do que sentia pelo Piet. Porque agora é outra pessoa. Pronta a amar mais uma vez. A fidelidade faz parte da sua natureza, Sarah, o que é bom. Mas o Piet abandonou a sua existência terrena. Um dia voltarão a encontrar-se, noutra vida. Mas, por agora, deve aceitar esta nova dádiva que Deus lhe apresentou e viver nela e com ela. Já chorou tempo de mais e o próprio Piet não havia de querer que vivesse infeliz até ao fim dos seus dias. Se já amou um dia, com intensidade e lealdade, pode amar de novo. Deve amar, aliás. — Mas vai haver problemas. Religiosos, raciais, familiares… — Vão ter de considerar seriamente todas essas questões à medida que se forem conhecendo, é certo. O casamento com alguém de outra raça e credo pode causar infelicidade, se não se esforçarem ambos por ultrapassar as diferenças. O mais das vezes são as famílias que criam problemas, se se opuserem. — Acho que a família dele não gostou muito de mim. E a Hannah não se dá bem com o Rabindrah. É complicado porque ela é a minha melhor amiga e é irmã do Piet. É por isso que esta atracção pelo Rabindrah é quase como uma dupla traição. — Sarah, Sarah. — O padre Bidoli estendeu a mão e fez-lhe uma festa na face. — Não se pode decidir amar um homem porque ele convém aos amigos, por mais chegados que sejam. E, se forem verdadeiramente seus amigos, querem acima de tudo a sua felicidade. — E se não passar de uma paixão passageira? Nos dois casos? O padre riu-se, o seu rosto bondoso crispando-se de divertimento. — Se não passar de uma paixão passageira, não durará. E a Sarah terá dado mais um passo em direcção a uma nova vida. Experimente. Só assim é que saberá. Porque, se não experimentar, pode vir a descobrir que o motor da sua vida paralisou. Ela debruçou-se e abraçou-o com cuidado, receosa de lhe partir um dos velhos ossos quebradiços. — Obrigada. Obrigada por me ter feito ver a luz. Agora, é melhor ir ter com a Wanjiru e falar-lhe sobre a operação do bebé.
Wanjiru estava a trabalhar na cozinha com uma das freiras, com o bebé a dormir às costas, amarrado na kanga. Estava nervosa quando se sentou com Sarah à mesa da cozinha. Uma das freiras italianas fez-lhes companhia para explicar em quicuio o que ia acontecer à criança durante e depois da cirurgia. Wanjiru mostrou-se grata mas aterrada quando soube que o marido estava na prisão. — Ele há-de vir agora buscar-me — disse ela. — O Karanja vai-me matar, a mim e ao bebé. — A polícia protege-te e nem o Simon nem o Karanja sabem onde estás — disse Sarah. — O Karanja disse que, se eu fugisse, se falasse com algum wazungu, me matava e lançava o meu bebé às hienas. — A rapariga estava a torcer as mãos e a gemer. — Ouve, podes ver a esquadra da polícia aqui desta janela — disse Sarah. — Se o Karanja aparecer, os askaris prendem-no imediatamente. Ele não há-de vir aqui porque não quer ser apanhado. Wanjiru estremeceu, olhando para o edifício da polícia do outro lado da praça. E Sarah experimentou a mesma sensação agoniante. Simon estava demasiado perto. Levantou-se rapidamente. — Não tenhas medo — disse ela. — O inspector Hardy vai apanhar o Karanja. Quando o bebé for operado, volto para te visitar. Vai correr tudo bem a partir de agora. Quando chegou a Langani, fazia tenções de se escapulir para o quarto e tentar ordenar o caos em que o seu espírito estava. Mas Hannah estava à espera, com uma expressão animada. — Acabo de falar com a Camilla — disse ela. — Saiu um parágrafo hoje nos jornais ingleses a dizer que o Simon se tinha entregado. Ela vem no avião desta noite. Quer estar aqui connosco até este assunto se resolver. Disse que devíamos passar por isto juntas. O George está em Londres, mas ela vai directamente para casa dele para se arranjar e descansar e depois pega no carro e vem para aqui. — É uma longa viagem depois de tantas horas no avião — disse Sarah, enquanto a notícia se insinuava a conta-gotas no seu cérebro turvado. — Não será melhor pedir ao Rabindrah que a vá buscar ao aeroporto e a traga para aqui? — O Rabindrah? — Hannah ficou surpreendida. — Porquê ele? — Temos algumas correcções finais a discutir. Ele pode trazer a Camilla e aproveitávamos para fazer isso. — Sarah esperava que a bênção do padre Bidoli cobrisse uma pequena mentira inofensiva. — Já te falo do encontro com o padre Bidoli. Mas primeiro vou ligar ao Rabindrah, se não te importas. Encaminhou-se para o telefone e ficou aliviada ao encontrar Rabindrah no escritório do jornal. Não queria contactá-lo para a residência de Indar Singh. — Sarah. Que surpresa! Posso ajudar em alguma coisa? — A voz dele era fria. Quase gélida. Sarah pôs-se de imediato na defensiva. Porque é que ele estava a assumir que ela só lhe tinha ligado porque queria alguma coisa dele? — O Simon Githiri entregou-se — disse ela. — Sim, já soube — respondeu ele. Sarah ficou espantada. Ele sabia, mas não a tinha contactado. Calou-se, desconcertada. — Falei com o Dan quando soube da notícia — disse ele. — Ele disse que tinhas ido para Langani. Que tencionavas passar algum tempo com a Hannah. — Ouve, Rabindrah, há uma coisa que não te expliquei antes. Sobre os ataques a Langani e a
razão do assassínio do Piet. Não por não querer contar-te mas… — Sarah, daqui a nada tenho de sair. Talvez seja melhor ligar-te para Langani mais tarde. O tom dele foi neutro e, de súbito, ela compreendeu que tinha de levá-lo a perceber por que razão tinha guardado silêncio. Não podia agora perdê-lo, no momento em que tinha aceite que ele podia ser uma parte importante da sua vida. Lançou-se na narrativa antes de ele ter hipótese de interrompê-la. — Não te podia contar o que o Jan tinha feito — disse ela quando chegou ao fim da história. — Por causa da Hannah. Ninguém sabia, a não ser os familiares mais próximos, e estavam a tentar conformar-se com esses factos terríveis. Achei por isso que não podia explicá-los a ninguém. — Mas estás a contar-mos agora. — Porque vai haver um julgamento. E toda a história será em breve do conhecimento público. — De repente, percebeu que estava a transmitir a ideia errada. Estava a informá-lo porque, de qualquer modo, não tardaria que toda a gente soubesse. — Não. Não é por isso que te estou a contar — apressou-se a acrescentar. — É porque tenho pensado em ti. E no que disseste antes de partires de Buffalo Springs. E quero que saibas que confio cegamente em ti, que sei que nunca trairias qualquer revelação que pudesse ser feita sobre mim e os meus amigos e qualquer pessoa minha conhecida. É que preciso de estar contigo, Rabindrah. — Silêncio. — Rabindrah? — Estou a ouvir. — A Camilla vai chegar de Londres — disse ela, sentindo-se agora uma idiota. — E lembrei-me se te importarias de a ir buscar ao aeroporto. Talvez mesmo trazê-la a Langani, se tiveres tempo. Porque gostava de falar contigo e… enfim, achas que podes fazer isso? Por favor? — A que horas? Qual é o número do voo? Ela deu-lhe o número do voo e a hora de chegada e esperou, ansiosa. — Agora tenho de sair — disse ele, num tom sacudido. — Tenho de estar presente numa reunião de família e estão todos à minha espera. Conta comigo, eu levo-a. Adeus. Sarah ficou com o auscultador na mão, ouvindo o estalido do corte da chamada e o zunido de uma linha silenciosa e sentindo uma onda de prazer e expectativa. O dia seguinte pareceu interminável e Sarah mal conseguia conter-se. Receou que Hannah se apercebesse da sua inquietude e quisesse saber a razão. Passou o tempo a trabalhar com Lottie no dispensário e a ajudar a preparar o quarto de Camilla. Ninguém perguntou se Rabindrah ia precisar de uma cama e Sarah estava relutante em sugeri-lo. Finalmente, desapareceu no quarto para trabalhar nos seus apontamentos de pesquisa. Não queria que Dan e Allie pensassem que se tinha esquecido dos elefantes. Se Allie viesse buscar o carro, Sarah queria mostrar que tinha os relatórios em dia e que o seu contributo continuava a ser valioso. Ao meio-dia, já estava em brasas. Rabindrah não tinha feito nenhum comentário sobre o seu desejo de estar com ele mas, pelo menos, tinha concordado em aparecer. Era o mais importante. Quanto ao resto, teria de descobrir quando ele chegasse. Sempre que os cães ladravam ou lhe parecia ouvir o som de um carro a aproximar-se, levantava-se de um salto e corria para os degraus da frente. — Que diabo é que se passa contigo esta manhã? — perguntou Hannah. — Andas por aí aos saltos como um daimão num rochedo! Por amor de Deus, senta-te ou vai dar um passeio. Estás a pôr-me nervosa. — Desculpa. — Sarah reabriu o livro que estava a tentar ler há uma hora. Lars apareceu para
tomar uma cerveja gelada antes do almoço. — Ainda não chegaram? Espero bem que não tenham tido nenhuma avaria. Mal tinha acabado de falar quando Sarah ouviu o cascalho estalar sob os pneus de um carro. Agora que o momento tinha chegado, ficou colada à cadeira. Foi Hannah quem saiu e logo se ouviram as saudações ofegantes de Camilla e gargalhadas alegres e estridentes. — Onde está a Sarah? — As primeiras palavras de Rabindrah foram repetidas por Camilla. — Sim, onde é que ela está? Camilla estava ao lado do carro, rodeada pelos cães a abanar as caudas. Estava com um braço à volta de Lottie e a segurar na mão de Hannah enquanto Lars abria o porta-bagagem para tirar as malas dela. Rabindrah estava um pouco afastado, com a mão ainda na porta do condutor. Sarah surgiu no alpendre, apenas consciente dos olhos dele fixos nela. Retribuiu-lhe o olhar, registando a sugestão de um sorriso nos seus lábios cinzelados e vendo o brilho do seu cabelo negro sob a luz do sol. Instalou-se um momento de absoluto silêncio e depois ela desceu os degraus a correr e lançou-se nos braços dele, apertando-o com força, enterrando a cara no seu casaco, sentindo a mão dele no seu pescoço e levantando a cabeça para murmurar num beijo. — Tive saudades tuas. Tantas saudades. Estou tão feliz por estares aqui. Ficaram abraçados, indiferentes ao espanto nas expressões de todos à sua volta. Foi Mwangi quem quebrou o feitiço. — Iko simu, memsahib Sarah — disse ele. — Telefone. É um padre de Nyeri. Sarah olhou para ele, atordoada, e afastou-se então de Rabindrah e dos circunstantes incrédulos. — O telefone — disse ela tolamente. — Uma chamada para mim. Encaminhou-se para o pequeno recesso à entrada da sala de jantar e levantou o auscultador. — Estou? Padre Bidoli? O seu coração batia descompassado, esperando que o padre respondesse. A respiração do outro lado da linha era pesada e custou-lhe ouvir as palavras dele. — Falei com ele — disse o padre simplesmente. — Só tem bebido água e não come nada desde que se entregou. Quer morrer. A princípio recusou-se a falar comigo. Mas eu disse-lhe que também estava a morrer. Nesse momento, olhou para mim e compreendeu que eu estava a falar verdade. — Disse alguma coisa sobre o Karanja? — Inicialmente não. Disse-lhe que o filho ia poder caminhar normalmente porque ia ser operado. Que o estado da criança era um defeito físico e não uma maldição. — Ele sabe onde está a Wanjiru? — Eu não lhe disse e ele não me perguntou. Mas quando soube que a Sarah tinha tratado da operação, apesar de ter assassinado o seu Piet, começou a chorar. — Mas está disposto a implicar o Karanja? — Está apanhado entre dois mundos. Entre a sua herança tribal, em que a morte do pai tem de ser vingada, e a sua educação na missão, em que pregamos o perdão de Cristo. Compreende que agiu mal ao entregar-se a práticas maléficas de magia. — O padre Bidoli fez uma pausa e Sarah compreendeu a sua extrema fadiga, mas ele esforçou-se por continuar. — Disse que o Karanja o obrigou a prestar juramento. — Oh, graças a Deus que admitiu. Graças a Deus — disse Sarah. — Estava cheio de medo quando a cerimónia teve lugar — disse o padre. — O Karanja deu-lhe uma bebida feita de ervas e forçou-o a comer o coração cru de uma cabra e a proferir as palavras.
Mais tarde, o Simon sentiu medo do que lhe poderia acontecer se não cumprisse a sua promessa. O poder da superstição continua a ser poderoso no seio destas comunidades, apesar do que temos tentado ensinar-lhes. É uma triste ironia, minha filha, mas estou convencido de que o Simon ganhou afeição e respeito ao Piet. Não queria cumprir a promessa que fez. — Mas, mesmo assim, matou o Piet — disse Sarah. — O Karanja ameaçou matar o Piet e a Hannah e todos os antigos trabalhadores da fazenda, se o Simon não honrasse o juramento. E quando, apesar disso, o Simon continuou a protelar, o tio mandou homens para chacinar o gado e os animais e para assaltar a casa. Por fim, o Simon tomou uma droga potente que o Karanja lhe deu e, com ela, ganhou a determinação necessária para executar o que tinha jurado fazer. Mais tarde, adoeceu gravemente. — Ele não está doente, padre. É um animal. — Ele sabe que cometeu um acto terrível que não o fez sentir-se melhor a respeito da morte do pai. Não encontrou qualquer paz. Eu disse-lhe que a perfídia do Karanja só trouxe a desgraça ao clã dele. Disse que, se o velho permanecesse em liberdade, encontraria a Wanjiru e a mataria, porque ela podia falar contra ele. — Ele concordou em prestar declarações à polícia? Sobre o Karanja? — perguntou Sarah. — Não é assim tão simples. Depois do assassínio, o Simon voltou para o seu esconderijo na floresta. Pensou que era o fim. Mas o Karanja queria ajustar outras contas. Ameaçou matar o Simon e mandar assassinar o filho, se ele não obedecesse. Segundo os velhos costumes tribais, a dívida estava paga… a vida do seu Piet pelo pai do Simon. Mas o Simon compreendeu que nunca haveria um fim e que nunca escaparia ao poder do Karanja, que o velho era agora dono e senhor da alma dele. — E por isso entregou-se — disse Sarah. — Sentiu que o Karanja tinha ordenado a morte dele e, como tal, manteve-se escondido na floresta à espera da morte. E então houve alguém que lhe levou lá comida e lhe disse que o Jan van der Beer tinha morrido. Que tinha vindo nos jornais. Nesse momento, o Simon decidiu entregar-se. Para pôr fim a tudo. — Mas não haverá fim nenhum se ele não assinar a declaração — disse Sarah, desesperada. — O que ele lhe disse não é suficiente em tribunal. — Talvez venha a encontrar coragem. Está preparado para morrer mas teme pela vida do filho se o Karanja o encontrar. Foi o que me disse. — O padre Bidoli foi acometido de um acesso de tosse. Quando conseguiu voltar a falar, a sua voz era débil e fatigada. — Pediu-me para estar junto dele quando morresse e eu disse-lhe que, se Deus me poupasse, lá estaria. Ou que estaria à espera dele do outro lado. — Não. Ainda faz falta aqui, padre — disse Sarah. O velho padre havia-se tornado seu amigo, um elo ténue entre ela e o inexplicável Deus em quem outrora depositara uma fé inabalável. O padre Bidoli riu-se. — Sou um velho doente. Os meus dias estão contados. Seria uma estupidez não reconhecer isso. — As suas palavras seguintes pouco mais foram do que um sussurro. — Sarah? — Sim, padre? — Ele pediu que o visitasse. Uma vez, antes de ser executado. — Não! Oh, não, padre. Não posso. Não sou capaz. — Uma onda de medo e repulsa fez Sarah estremecer e virar-se à procura de uma cadeira ou de alguma coisa a que apoiar as pernas trémulas.
— Eu sei que custa encarar uma coisa dessas. Mas as coisas mais penosas podem ser também as mais preciosas, porque nos libertam do medo. Peço-lhe que reconsidere. Por agora, é tudo quanto tenho para lhe dizer, minha filha. Deus a abençoe. É muito corajosa… mais do que imagina. Rezo por si todos os dias. Sarah pousou o auscultador com mãos transpiradas e foi para o quarto sentar-se. Uma coisa era diligenciar para que uma criança inocente recebesse tratamento. Mas ninguém podia pedir-lhe ou esperar que ela visitasse na prisão o monstro que tinha mutilado e assassinado o homem que amava. Tirou um lenço do bolso e limpou o suor que lhe tinha rebentado por todo o rosto. Sentia-se agoniada. Era impensável. Não o visitaria, em circunstância absolutamente nenhuma.
CAPÍTULO 19
Quénia, Junho de 1967 varreu os olhos pela sala de estar de Langani, apaziguada pelo calor do espaço e pelo C amilla seu amor por ele. Passou os dedos pelas capas desbotadas do sofá e das poltronas, pela pele de macaco colobo que ainda se encontrava nas costas da enorme poltrona que era o lugar especial de Janni. As paredes estavam decoradas com pinturas a óleo de paisagens e animais selvagens africanos, aguarelas de flores nativas, fotografias sépia de austeros antepassados em poses formais, uma selecção de troféus de caça, com olhos de vidro, e um escudo cerimonial e lanças masai. Os bisavós de Hannah tinham trazido consigo várias peças de mobília pesada do Cabo Ocidental na carroça de bois que transportara os seus bens mais preciosos para as terras ermas onde viriam a radicar-se. Nas mesas, no aparador e nas estantes de madeira polida havia candeeiros com quebraluzes descoloridos, livros e discos de gramofone, taças de flores e recordações que Hannah tinha distribuído para dar um toque pessoal à casa. Havia fotografias em porta-retratos de prata do seu casamento e do baptizado da filha, de Jan e Lottie em tempos mais felizes. Sobre o aparador, estava uma fotografia de Sarah, com o cabelo revolto a emoldurar um rosto risonho. Ao seu lado, havia um retrato de Piet que ela tinha tirado poucos meses antes da morte dele. Ele tinha sido apanhado desprevenido pela objectiva e estava com uma expressão de surpresa, desconcertada, o sol poente dourando o seu rosto apaixonado e cabelo louro. As feições de um jovem cheio de vitalidade que nunca envelheceria. Seria sempre recordado como era naquele momento, a transbordar de sonhos, planos, optimismo e a expectativa de uma longa vida para os realizar. Na estante, Camilla deparouse com uma fotografia de si própria com Anthony, no acampamento samburu dele. Estava apoiada nele, a sua expressão repleta de inconfundível amor. Sentindo um aperto no coração, desviou os olhos, incapaz de olhar para a imagem. Tinham desistido da ideia de almoçar, após o momento constrangedor no caminho de acesso em que Sarah se tinha separado de Rabindrah e ido atender o telefone. Lars tinha sido o primeiro a falar. — Vamos para dentro, Hannah, e comemos umas sanduíches com cerveja ou café em lugar de almoçarmos — tinha ele dito. — Rabindrah, dá-me uma mão com as malas da Camilla. Quer-me parecer que ela traz aqui uma colecção de pedras. Não percebo esta coisa das mulheres com a bagagem. — Não critiques de mais — tinha dito Camilla. — Trouxe uma série de coisas de Londres para ti e para a Hannah. Além de brinquedos para a Suniva e cremes e loções faciais novos para nós, raparigas. Quando vires o que aí está, metes logo a viola ao saco. Estavam todos conscientes da voz de Sarah em segundo plano a falar com o padre e a ouvir depois as suas palavras. Hannah suspirou. — Espero que ele tenha convencido o Simon a assinar uma declaração — disse ela depois de ter explicado a situação a Camilla. Tocou à campainha para chamar Mwangi e depois sorriu. — A
minha mãe está cá, como sabes. Foi almoçar com a Barbie Murray mas não deve demorar. — O Rabindrah deve estar a precisar de uma cerveja gelada depois dessa viagem poeirenta. — Lars tinha voltado para a sala de estar com Rabindrah no encalço. — Com certeza — disse Hannah. — Vou levar a Camilla para ela se arranjar. Há aí uma casa de banho na entrada, Rabindrah, se quiseres usá-la. O Lars trata já da cerveja. No quarto de hóspedes, fechou a porta e levou as mãos à cabeça. — Santo Deus! Que é que achas daquilo? Ainda não me refiz, a maneira como ela se lhe atirou literalmente para os braços. É inacreditável! Não sei que pense. É estranhíssimo. Custa a… — Sentou-se na cama e olhou para Camilla, à espera de uma reacção. — Apercebi-me de umas vibrações entre eles em Londres — disse Camilla. — Mas acho que, na altura, nem eles estavam conscientes disso. — Custa a crer — Hannah repetiu. — Sabes, sempre pensei na Sarah e no Piet como um casal inseparável, apesar de ele ter demorado imenso tempo a compreender que estavam talhados um para o outro. E quando ele a pediu em casamento, parti do princípio de que ficaríamos por aqui anos e anos, a explorar a fazenda e o lodge, a criar os nossos filhos juntos. Temos passado por tanto sofrimento desde a morte dele e, por qualquer razão, nunca pensei que ela… — Alguma vez olhasse para outro homem — Camilla terminou a frase. — É um choque. Se bem que não seja justo para ela eu estar tão surpreendida — disse Hannah. — Mas ele é indiano. Tenho de confessar que esse aspecto não me agrada. É difícil aceitar que um jornalista sique tome o lugar do meu irmão na vida dela. — Mas não é nenhum duka wallah. É um homem com boa educação e inteligente e é oriundo de uma família tão culta como a tua e a minha e a dela. — É um tipo de cultura diferente — retorquiu Hannah. — Não tratam as mulheres da mesma forma. — Os siques têm a reputação de serem tolerantes em relação às outras raças e religiões. Supostamente também consideram os homens e as mulheres como iguais, o que é uma ideia que a maioria dos homens brancos ainda parece incapaz de aceitar. Devo dizer que gostei do que vi dele. — Talvez — disse Hannah, mas não soou convicta. — Aqui há pouco tempo, vim de carro com ele de Buffalo Springs e ele fez-me compreender um lado da minha personalidade de que me senti envergonhada. — Que lado? — Chamou-me a atenção, com cortesia mas firmeza, para o facto de as nossas famílias serem muito semelhantes. Percebeu que eu considerava a maioria dos indianos no Quénia como descendentes de trabalhadores manuais analfabetos que vieram construir o caminho-de-ferro e que acabaram como lojistas que mascam bétel. Mas a família do Rabindrah chegou aqui antes da minha e eram militares, polícias e agricultores instruídos. Provavelmente mais letrados e mais refinados que o avô van der Beer, que nunca lia nada além da bíblia e não pensava em nada senão na fazenda. — A tua família dava-se bem com os outros agricultores brancos da região? — perguntou Camilla. — Os africânderes não eram conhecidos por conviver socialmente com outras pessoas, fosse qual fosse a cor de pele, a não ser que precisassem de alguma coisa para a agricultura que não pudessem fornecer eles. Ou, mais tarde, a não ser que houvesse jogos de râguebi. O espírito de clã era muito forte. Quando o meu pai casou com uma rapariga italiana que tinha conhecido numas
férias no Sul, a princípio a união foi vista com maus olhos. Mas os meus avós não demoraram muito a tomar-se de amores pela Lottie. A minha família convivia mais com os britânicos do que a maioria dos africânderes por causa da minha mãe e porque não há muitos yaapies, como nós, nesta área. Não fazíamos parte de um pequeno grupo unido, como as comunidades de reformistas holandeses na região de Trans Nzoia. Mas também não estávamos no centro da cena social europeia. O Piet jogava râguebi em Nanyuki e pertencíamos ao clube por causa do ténis. Mas, se bem te lembras, eu era a única rapariga africânder na escola secundária. — Pensei que era porque os reformistas holandeses não aprovavam a frivolidade dos católicos e a sua iconografia bizarra — observou Camilla. — Os reformistas holandeses não aprovam nada que tenha um ar demasiado alegre — disse Hannah. — Aliás, os asiáticos do Quénia compreendiam a cultura britânica muito melhor do que nós. E tiraram o máximo partido da educação inglesa e dos empregos que lhes eram oferecidos apesar de os ingleses, em geral, os olharem com desprezo. — Os indianos já estavam habituados à nossa presença no país deles — disse Camilla. — E os marajás eram em tudo tão pomposos como a mais pomposa elite britânica. — É verdade — disse Hannah. — Mas é estranho como os ingleses e os africanos detestam os indianos e os africânderes em igual medida. Isso devia ter criado um laço qualquer entre as duas comunidades, se não fosse a nossa incapacidade para ultrapassar as diferenças de cor. Há-de ser interessante assistir ao que acontece na próxima geração, agora que temos passaportes a dizer que somos, primeiro que tudo, quenianos, independentemente da cor da nossa pele. — Bateu com o punho na palma da outra mão, frustrada com o seu preconceito inato. — Sabes, compreendo tudo isso e defendo boas relações entre as raças. Mas a ideia da Sarah e do Rabindrah… ainda me custa a aceitar. — Conheci vários casais de raça mista em Nairobi, em jantares a que fui com o meu pai — disse Camilla. — Não estou a dizer que neste caso vá chegar a esse ponto. — Credo! Achas que ela era mesmo capaz de se casar com ele? — Quem sabe? — Camilla levantou as mãos pálidas. — Hoje em dia, há homens europeus que namoram com raparigas indianas e africanas ou que até casam com elas — disse Hannah. — Mas o contrário continua a ser raro. E no caso dos filhos não sei. Como seriam aceites? Quero que ela seja feliz. Mas confesso que a situação me deixa apreensiva. — Olhou para Camilla com um apelo à compreensão no olhar. — Claro que deixa — disse Camilla. — Como dizes, é difícil imaginar alguém a ocupar o lugar do Piet. Ele foi o primeiro e único amor dela, desde a nossa infância. Depois de ele morrer, receei que a vida dela mirrasse e também acabasse. Ou que se tornasse numa dessas cientistas excêntricas que envelhecem isoladas, a calcorrear o mato. Uma velha solteirona rabugenta e encarquilhada, com roupas pingonas e pernas peludas, incapaz de falar com quem quer que seja, excepto animais selvagens e outros cientistas. Não havíamos de querer que isso lhe acontecesse, pois não? — Não, de maneira nenhuma. — Hannah tinha começado a sorrir. — Admito que ele pode ser encantador. Mas não deixa de ser indiano. A Betty e o Raphael não vão achar graça nenhuma. A Betty pelo menos não. — Desconfio que a família do Rabindrah também não — disse Camilla. — Apesar da tolerância dos siques. — Porque é que as pessoas não se cingem aos da sua raça? — perguntou Hannah. — É muito
melhor para todos não misturar demasiados ingredientes numa ligação amorosa ou num casamento. — Razão por que tiveste um romance escaldante com um polaco maluco e acabaste casada com um norueguês — disse Camilla com complacência. — Belo conselho, Han.
— Ora, és sempre muito esperta — disse Hannah, soltando uma gargalhada. — E já que estamos a falar de romances, descobri que a minha mãe tem tido uma relação com um italiano que conheceu em Joanesburgo. Mas não sei nada sobre ele. Até pode ser um gigolô, tanto quanto sei. Tiveram uma ligação amorosa, mas depois ela voltou para o meu pai até ele morrer. — Os nossos pais surpreendem-nos com frequência, apesar das nossas inocentes expectativas — disse Camilla, com uma sugestão de amargura. — Estou ansiosa por ver a Lottie. Achas que é um romance que pode continuar? — Dá-me ideia que sim — disse Hannah, insegura. — Eu e a Sarah ouvimo-la por acaso falar com o tio Sergio sobre o assunto. Ele partiu ontem e não tive oportunidade de interrogá-lo sobre esse homem, e ainda não arranjei coragem para abordar directamente a minha mãe. — Se fosse a ti, não lhe dizia nada — opinou Camilla. Pegando numa camisola, pô-la pelos ombros. — Há coisas que os pais não devem saber sobre os filhos e vice-versa. Vamos comer qualquer coisa com o Lars e o Rabindrah enquanto esperamos que a tua mãe chegue. Às tantas não está nada a almoçar com a Barbie Murray — disse ela, maliciosamente. — Se calhar, o namorado italiano tem vinte e cinco anos e está escondido num hotel no Safari Club no monte Quénia onde estão a passar uma tarde tórrida. — Iam as duas a rir-se quando Camilla abriu a porta do quarto e a fechou imediatamente. — Que é que se passa? — perguntou Hannah. — É a Sarah. Acaba de sair para o relvado com o Rabindrah. Acho talvez melhor darmos-lhes alguns momentos a sós. — Eu também preciso de alguns momentos a sós para pensar bem no que lhe hei-de dizer. — Hannah estremeceu, observando-os a atravessar o jardim de mãos dadas. — Fala-me de ti e do Anthony enquanto esperamos. — Estive com ele em Londres — disse Camilla, encolhendo os ombros. — Mas não pode dar certo. Vou estar aqui contigo e com a Sarah para o julgamento e para quaisquer problemas que possam surgir. E podemos começar alguns modelos novos na oficina, se quiseres ir avante com o projecto. Mas depois vou voltar para Londres. Sou capaz de conseguir outro papel no teatro. Foi o que sempre quis fazer e adoro o lado criativo da moda. As coisas que fizemos aqui venderam-se imediatamente e estou cheia de ideias novas. Mas não posso viver aqui. Não posso correr mais riscos com o Anthony. — Ele ama-te — disse Hannah. — É o que toda a gente me diz. Mas devo dizer que não entendo a maneira como ele o demonstra. — Está envergonhado pela forma como se comportou naquela noite — tentou Hannah novamente. — Foi estúpido ter-se atirado à rapariga assim mas acho que foi por se ter sentido excluído de tudo. Eclipsado pelo teu sucesso e pelas pessoas de Londres e tudo isso. — Não foi só atirar-se a ela. Apanhei-os aos beijos à porta do camarim. Além disso, não posso enterrar o melhor de mim, deixar de brilhar, só para ele não se sentir inseguro — disse Camilla. — Preciso de um homem que seja capaz de me amar e ter orgulho no que eu faço sem se sentir
diminuído. Não quero viver com uma pessoa que precisa de seduzir outra mulher sempre que não é o centro das atenções por um dia ou dois. Acima de tudo, preciso de um homem em quem possa confiar. Vá, agora dá-me de comer e uma bebida forte, senão não aguento até ao fim do dia.
— Que é que ele disse? — Rabindrah registou a palidez de Sarah, a leve tremura na sua boca e os punhos muito cerrados. — Conta-me. Mas as palavras estavam-lhe presas na garganta. Lambeu os lábios secos, incapaz de formar as frases. — Anda apanhar um pouco de ar fresco — disse ele, pegando-lhe na mão. Encostaram-se ao lado um do outro ao portão que abria sobre a planície rasa, inalando o ar fresco e rarefeito do alto veldt. — Ele quer que eu vá visitá-lo — disse Sarah. — Na prisão de Nyeri. — O padre Bidoli pediu-te para… — Não. Foi o Simon. O Simon quer que eu o visite. Foi ele que… — Sarah! — Abraçou-a com força e pousou os lábios na sua testa.
— Não posso entrar naquela prisão. Olhar para a cara dele, falar com ele, ouvir a voz dele. Não sou capaz. Ninguém deve esperar que eu faça isso. Rabindrah não disse nada, dando-lhe tempo para explicar o que o padre tinha dito, para encontrar um sentido no pedido terrível que lhe tinha sido feito. — São os meus pesadelos a realizar-se — disse ela. — Porque ele está vivo, vê e fala, ao passo que o Piet… Não. Não, não sou capaz. Vou já ligar ao padre Bidoli. Dizer-lhe de uma vez por todas que não vou. — Não precisas de fazer nada agora — disse Rabindrah. — Tenho a certeza de que o padre é o primeiro a compreender que precisas de tempo para pensar. Queres falar sobre isso com a Hannah e o Lars? Ou com a Camilla? — Não. O problema é meu e tenho de ser eu a lidar com ele — respondeu ela. — Já vai ser doloroso enfrentá-lo no tribunal, mas é uma coisa que não posso evitar. Entretanto, recuso-me a permitir que me obriguem a pensar que devo ir à prisão. Que Deus espera que eu seja clemente a esse ponto. — Afastou-se dele. — É melhor entrarmos. Ainda nem cumprimentei a Camilla como deve ser. — Não me parece que ela se importe — disse ele, levantando a mão para lhe afastar uma farripa solta de cabelo da cara. — Não se importa com certeza. — Ela disse-te que estava zangada comigo? — perguntou Sarah. — Não. Só disse que queria acima de tudo estar aqui contigo e com a Hannah. — Mas está. Zangada, digo eu. Porque eu pensei que ela tinha convencido o meu irmão a não se casar. Seja como for, enganei-me redondamente e ela ficou justificadamente irritada com a minha suposição. Foi uma hipocrisia da minha parte, porque nunca gostei da noiva dele. Aliás, estraguei tudo. Provavelmente arruinei a nossa amizade. — Não me parece que tenha sido o caso — disse ele. — Afinal ela está cá, não está? Se veio de tão longe para estar contigo e com a Hannah, não parece provável. Quantas pessoas abandonariam
uma peça em Londres a uma semana do fim para viajar milhares de quilómetros para apoiar as amigas? E além disso devia ter outros compromissos. — Não sabia que ela tinha deixado a peça mais cedo — disse Sarah. — Mas sei que o laço que nos une às três é raro e precioso. — Ficou calada por alguns momentos, sem olhar directamente para ele. — Quero agradecer-te por teres largado tudo tão em cima da hora. Por teres ido esperar a Camilla e a trazeres aqui. — Não foi nada. — Ele quis beijar-lhe o rosto ansioso, adoçar a sua expressão crispada, tocarlhe as orelhas, a garganta e a cara sardenta. Beijá-la sem fim. Mas não se mexeu, recordando as palavras de advertência de Allie e a própria reacção de Sarah quando a tinha pressionado de mais em Buffalo Springs. — Queria estar contigo — disse ele simplesmente. Ela levantou os olhos para ele. — Quando é que tens de voltar? — perguntou. — Gostava que passássemos algum tempo juntos. — Eu também — disse ele, o coração alvoroçado. — Vou passar a noite em Nanyuki, marquei quarto no Sportman’s Arms. Um bom estabelecimento indiano com quartos deprimentes, um sistema de canalização muito estranho e bom caril, não é? — Disse as palavras com um forte sotaque indiano, revirando os olhos e abanando a cabeça, e fazendo Sarah rir. — Talvez pudéssemos passar parte do dia de amanhã juntos. — Sim — disse ela, o rosto iluminando-se-lhe de prazer. — Claro que podemos. Mas agora quero que me beijes. Quero muito que me beijes, Rabindrah. Ele passou-lhe os braços pela cintura e ela encostou-se a ele e abriu um pouco a boca para aprender a saboreá-lo. Estava a sorrir quando se separaram por um momento e se olharam antes de ele a beijar de novo. — Estou apaixonado por ti — disse ele. — Espero que não seja o momento errado para to dizer. — Não, é o melhor momento — disse ela. — Porque preciso do teu apoio para aguentar tudo isto. Estava demasiado assustada para o admitir. Para ultrapassar o medo paralisante que tenho sentido desde a noite em que encontrei o Piet esquartejado. Mas agora sei que sou capaz de seguir em frente, se me ajudares. — Não posso imaginar como foi nem como é — disse ele, beijando-a, exultante com a doçura da confiança que ela revelava nele. — Mas estarei ao teu lado para onde quer que vás. Se me quiseres. — Quero — disse ela. — Acho que a partir de agora te hei-de querer sempre. O sorriso dela era a coisa mais bela que ele alguma vez vira e desejou que pudessem ficar para sempre naquele bonito jardim, sob o olhar da montanha, sós e indiferentes às exigências do mundo. — Vamos — disse ela finalmente, puxando-lhe pela mão. — Estão todos à espera de uma explicação e são horas de encarar os factos. A chegada de Lottie proporcionou um adiamento. Camilla correu para ela e Lottie cingiu-a imediatamente nos braços, abraçando-a com amor e afastando-a, em seguida, para a sujeitar a um exame afectuoso. — Minha querida — disse Lottie. — Que coisa maravilhosa voltares a Langani. Um sinal de amor e lealdade que nenhum de nós esquecerá. — Lottie. — Camilla pronunciou o nome dela várias vezes à medida que um dilúvio de recordações lhe perpassava pelo espírito e os olhos se lhe enchiam de lágrimas. — Estamos de novo juntas e isso é o mais importante. Ainda bem que voltou para casa. Estou radiante por vê-la. Lottie acenou com a cabeça. — Tenho novamente as minhas filhas comigo — disse ela. — As três
meninas que fizeram parte da vida em Langani durante tanto tempo. E, mesmo não sabendo o que vai acontecer amanhã ou dentro de uma semana, esta noite quero celebrar. Acho que devemos esquecer os nossos problemas por uma noite e regozijar-nos com este reencontro. — Abraçou Sarah e estendeu a mão a Rabindrah. — É o amigo da Sarah. Tenho muito prazer em conhecê-lo — disse ela. — Soube do livro e sinto-me muito orgulhosa dela e feliz por ter encontrado alguém que desse voz ao seu magnífico trabalho. Faz-nos companhia esta noite? Fica para jantar? — Teria muito gosto — disse ele, simpatizando com a mulher vibrante, de pele cor de azeitona e cabelo preto liso, enrolado num carrapito na nuca. Os seus grandes olhos escuros estavam implantados sobre um nariz direito e uma boca generosa e as suas origens sul-europeias eram inconfundíveis. A ossatura mais larga de Hannah e o seu cabelo e pele claros vinham claramente do lado do pai. — Óptimo. — Lottie dirigiu-lhe um sorriso. — Da última vez que aqui esteve, a deixar a Hannah depois da visita dela a Buffalo Springs, eu não estava. Os meus velhos amigos têm sido estupendos desde que regressei, sempre a levarem-me para aqui e para ali e a convidarem-me para almoçar e jantar. Mas hoje vamos aproveitar para conversar. Agora vou à cozinha falar com o Kamau e preparar uma noite muito especial. Hoje não vamos pensar nas coisas tristes e más. De maneira nenhuma. Sarah sentiu um ímpeto de gratidão. Estava a pensar se poderia escapar, por uma ou duas horas, com Rabindrah, sem ofender Hannah nem parecer abandonar Camilla, que tinha vindo de tão longe. Mas Lottie tinha solucionado o problema num instante embora Sarah soubesse que acabaria por ter de responder a algumas perguntas. — Vou buscar a Suniva e levá-la à vacaria — disse Hannah. — Se gatinhar mais hoje, vai esfolar a pele daqueles joelhos gorduchos. E adora ver as minhas vacas. Alguém quer vir comigo? — Eu acompanho-te — disse Camilla. — Com tantas horas sentada em aviões e carros, preciso de exercício. — Acho que vou a Nanyuki deixar a mala no Sportman’s Arms — disse Rabindrah, duvidando que fosse bem-vindo na vacaria de Hannah. — A que horas devo voltar para jantar? — Não precisas de ir agora à cidade. — Lars tinha aparecido do escritório. — Lamento muito não termos nenhum quarto livre para ti, com a Lottie, a Camilla e a Sarah cá. Vou inspeccionar um campo de trigo e, se quiseres vir, tenho muito gosto. Está tudo bem, Sarah, depois do telefonema? — Está. Não há novidades — disse ela num tom seco, não querendo revelar o pedido do padre Bidoli. — Óptimo. — Lars apercebeu-se de que ela não estava a contar tudo. Pensou que o padre devia ter dito qualquer coisa que a tinha perturbado. Ou talvez fosse simplesmente a ideia de Simon Githiri e do julgamento. Deu-lhe um apertão reconfortante. — Queres vir comigo e com o Rabindrah ou preferes ir falar com essas bezerras mimadas da Hannah? — Ela vem connosco — disse Camilla firmemente, pegando no cotovelo da amiga e rindo interiormente ao ver o olhar trocado entre Sarah e Rabindrah. — Até logo. Pegaram na bebé e partiram pelo caminho, virando à esquerda alguns metros à frente e seguindo o carreiro para a vacaria. Juma, que trabalhava em Langani há trinta anos, estava a conduzir as vacas leiteiras para o estábulo e Suniva começou a sorrir e a gorgolejar, assim que viu o gado com os seus olhos doces e narizes húmidos. — Então, conta lá o que se passa entre ti e o Rabindrah — disse Camilla.
Sarah corou imediatamente, tentando pensar numa resposta desenvolta. Viu o divertimento e a simpatia nos olhos de Camilla mas a expressão de Hannah era ambígua. Ia ser difícil mas sentiu que tinha de ser honesta agora. Não servia de nada esconder o que quer que fosse. — É uma relação que se desenvolveu a partir da nossa colaboração no livro — respondeu. — Aconteceu… naturalmente. Começámos como colegas e depois tornámo-nos amigos. E recentemente tudo se alterou. Sem que eu desse conta. Não quis reconhecer que pudesse ser mais alguma coisa mas, quando o vi hoje, tive de admitir que o que existe entre nós é mais do que amizade. — Apelou a Hannah com o olhar. — E acho que ele sente o mesmo. Não acho, sei. Sim. — E tens razão — disse Camilla. — Acho fantástico. — Ninguém pode controlar por quem se apaixona. — Hannah tinha feito um esforço para sorrir. Percebeu que o comentário não era o ideal e tentou de novo. — Quero dizer que tens de andar com a tua vida para a frente e fico muito feliz por ti. A sério. Sejam quais forem as tuas opções, serás sempre minha irmã e minha amiga. Tu e a Camilla. — Fiéis à nossa promessa, contra ventos e marés, até ao fim do mundo — disse Camilla, abrindo os braços num gesto grandioso. — Sem olhar à cor e à raça, sempre e para sempre. Que acontece agora? — Não faço ideia — respondeu Sarah. — Havemos de encontrar um caminho, o melhor possível. Ver como as coisas se desenrolam. Ficaram a olhar para as zonas de ordenha, observando Juma a pegar em Suniva de maneira a que as mãozinhas dela tocassem os flancos macios das vacas e as suas franjas enroladas, vendo os olhos dela arregalar-se de deleite quando os animais viraram a cabeça e lhe sopraram suavemente na pele. — Oh, o importante é sabermos estar gratos pelas dádivas que recebemos, tenham elas que forma tiverem — disse Hannah, abraçando a filha. — Devia lembrar-me disso mais vezes. Que é que o padre Bidoli te disse? Já pensou em visitar o Simon? — Amanhã vai-me contactar outra vez — disse Sarah. — Entretanto, vamos passar uma noite feliz e celebrar o nosso reencontro. Como a Lottie disse. — Virou-se para Camilla. — Devo-te desculpas sérias. Escrevi-te uma carta quando finalmente tive notícias do Tim, mas foi na véspera da minha viagem para aqui e não cheguei a pô-la no correio. Mas dou-ta mais tarde, porque as palavras escritas fazem mais sentido do que tudo o que eu possa dizer-te. — O Tim escapou por pouco. — A expressão de Camilla era sarcástica. — E eu não sou tão má como pensas. — O Rabindrah disse-me que abandonaste a tua peça antes de acabar para vires para cá. É mais do que… — Uma pessoa tem de provar a si mesma que pode escapar à prisão do sucesso — interrompeu-a Camilla com desenvoltura. — Os disparates que tu dizes! — Hannah tapou a boca com a mão e todas se lembraram desse seu gesto na escola, para abafar o riso quando Sarah tinha soltado uma cobra-d’água na sala de aula. — Eu empurro o carrinho da Suniva para casa — disse Camilla. — Ela pode ver-nos a prepararnos para a noite especial da Lottie. Como nos bons velhos tempos.
Foi uma noite de renascimento em que emergiram das longas sombras da tragédia, entregando-se
ao simples prazer de uma refeição partilhada com familiares e amigos. O rosto de Lottie brilhava à luz das velas, passando os olhos pela mesa. As rugas de tensão e infortúnio haviam começado a esbater-se e experimentava a felicidade de trabalhar no jardim e na cozinha a que tinha presidido durante tantos anos. Quando Lars se levantou para servir o vinho, tocou na nuca da mulher e Hannah olhou para ele, a sua pele arrepiando-se de prazer. Rabindrah apertou a mão de Sarah debaixo da mesa, consciente do monstruoso pedido que atormentava o subconsciente dela e sensibilizado pela certeza de que era o único em quem ela tinha confiado. Para Camilla, o lugar que quase fora destruído pela dor e pela angústia enchia-se mais uma vez de amor. E sentiu que, de algum modo, todos sobreviveriam e que a força das pessoas sentadas à mesa venceria o sofrimento porque a afeição entre elas era profunda. Só faltava Anthony, criando um vazio dentro dela que resolutamente ignorou durante aquela noite maravilhosa. Era tarde quando recolheram aos quartos, deixando Sarah e Rabindrah a sós diante da lareira. — Vais conseguir dormir? — perguntou ele, afagando-lhe o cabelo e beijando-a nos lábios. — Espero que sim. Estou no mesmo quarto da Camilla, como quando éramos crianças. Recostou-se contra ele, de olhos fechados, sentindo os dedos dele no seu rosto, ao longo da linha do seu ombro e descendo para lhe acariciar o pescoço e os seios. Ela produziu um ténue gemido de desejo e depois endireitou-se abruptamente, abrindo muito os olhos e olhando-o frontalmente. Ele retraiu-se de imediato. Agora que não duvidava do desejo dela por ele, podia ser paciente. E, fosse como fosse, ela tinha razão. Estavam apenas a começar a explorar os seus sentimentos recíprocos. — É melhor ir andando — disse ele. — Passo a manhã em Nanyuki mas, ao fim da tarde, tenho de estar no escritório em Nairobi. Porque é que não me ligas depois do pequeno-almoço para me dizeres o que queres fazer? Ela seguiu-o para o alpendre, uma sombra de desapontamento turvando a sua felicidade. Ele puxou-a para si e voltou a beijá-la e ela lançou os braços à sua volta, não querendo largá-lo. Agora que ele a ia deixar, o dilema do pedido de Simon subiu mais uma vez à sua consciência, trazendo consigo o medo de não conseguir dormir. Armou-se de coragem para se afastar dele, esticando-se para lhe dar um último beijo. — Até amanhã — disse ela, tentando retirar algum conforto das palavras. — Boa-noite. Viu-o afastar-se no caminho e permaneceu um instante imóvel, olhando para a caverna oca do céu da meia-noite e para a cintilação das estrelas. Há muito tempo que não contemplava a beleza da noite africana sem tristeza e queria partilhar este momento. — Piet — disse ela docemente. — Acredito que guardas os meus passos e penso que queres que eu encontre a coragem de voltar a amar. Porque sabes que continuarei a amar-te até ao meu último suspiro. Mas queria muito saber se aprovas o que estou a fazer. — Nesse instante, viu a estrela cadente, imprimindo no céu cor de tinta o seu longo rasto ofuscante num arco glorioso, antes de desaparecer no infinito. Estava a sorrir quando entrou silenciosamente no quarto às escuras, tendo o cuidado de não fazer barulho para não acordar Camilla. Quando se deitou e fechou os olhos, adormeceu imediatamente e a ameaçadora incerteza de Simon e do seu pedido não lhe assombrou os sonhos.
— Vamos fazer um piquenique no rio — disse Hannah ao pequeno-almoço. — O Lars vai ter
connosco à hora de almoço. Entretanto, podemos tomar banho com a Suniva. E talvez pescar. O Rabindrah não quer vir connosco? Partimos por volta das dez. Aproximaram-se da margem do rio através de uma plantação de oliveiras africanas, cujos troncos estavam retorcidos com a idade e as folhas reluziam verdes e cinza sob a luz do sol. À superfície da água volitavam e mergulhavam borboletas e o canto das aves enchia a manhã. Estenderam mantas no talude relvado e pousaram a bebé. Durante algum tempo conversaram sobre a fazenda, discutiram a política regional e as questões da conservação e ouviram o relato da primeira experiência de Camilla no teatro londrino. Mas Sarah não conseguia concentrar-se. As palavras do padre estavam agora no primeiro plano da sua consciência e não conseguia afastá-las. Nem a presença de Rabindrah, o ocasional contacto dos seus dedos, a curva dos seus lábios quando sorria, eram suficientes para mitigar a sua crescente ansiedade. — Podíamos ir dar um passeio — disse ele, apercebendo-se da sua inquietude. — A não ser que penses que posso ser devorado por alguma criatura assim que desaparecermos de vista. — Isso depende da companhia — disse Camilla, divertindo-se com o imediato e evidente embaraço de Sarah quando começaram a afastar-se. — Esta tarde volto para Nairobi — disse Rabindrah, levantando o rosto de Sarah para a beijar. — Há alguma hipótese de lá ires em breve? Nem que seja por dois dias. Pode ser que te ajude a tomar uma decisão a respeito do Simon. Sabes como és meiga e bela? — Não sei se devo deixar Langani neste momento — disse ela. — Mas sinto-me tentada. — Gostava de te levar a minha casa, para o almoço de caril de domingo com o tio Indar e a tia Kuldip. A minha tia é uma excelente cozinheira. E os meus primos e muitos mais membros da numerosa tribo reúnem-se para almoçar ao fim-de-semana. Às vezes, é preferível uma pessoa atirar-se de cabeça. — São capazes de não achar muita graça quando descobrirem que eu não sou só a fotógrafa que ilustra os teus livros — disse ela. — É mais que certo que vamos encontrar pessoas que não vão gostar de nos ver juntos. — Alongou os olhos sobre a corrente veloz do rio. — Falei de ti ao padre Bidoli. Disse-lhe que nós… que eu… Enfim, ele encorajou-me. Mas não podemos esquecer que vimos de culturas diferentes e acho que nos vamos deparar com atitudes de reprovação. — Estou preparado para isso, se acontecer — disse ele. — Porque te amo. E isso dá-me forças para ultrapassar todas as dificuldades que tiver de ultrapassar para não te perder. Ela hesitou, querendo dizer-lhe que também o amava mas sentindo acanhamento em pronunciar as palavras pela primeira vez. Contudo, o som da chegada de Lars e Lottie com o piquenique penetrou no seu mundo privado e sentiram-se obrigados a juntar-se ao resto do grupo. Lars chamou Sarah à parte imediatamente. — O padre Bidoli telefonou — disse ele. — Disse-lhe que voltavas depois do almoço. Não te quis pressionar ontem, com a chegada do Rabindrah e da Camilla e a bonita celebração da Lottie. Mas há alguma coisa que queiras conversar comigo? — Para já não — disse ela, grata pela sua preocupação. — Assim que chegar a casa, telefono-lhe e depois sou capaz de ter de te pedir um conselho muito sério. — Estou sempre pronto a ajudar — disse ele. — Ah, olha para esta minha filha, um querubim transformado num peixinho gordo naquela água gelada. A tarde ia a meio quando arrumaram as coisas e regressaram a casa. Mwangi estava à espera com uma mensagem.
— O bwana inspector ligou há cerca de meia hora — disse ele. — Queria falar com a memsahib Sarah. Sasa hivi. Urgente.
Sarah estava aterrada quando marcou o número da operadora e pediu ligação para a Esquadra da Polícia de Nyeri. — Minha querida, peço desculpa se estou a perturbar o teu dia, mas quero informar-te que o Simon Githiri está gravemente doente. O médico da prisão visitou-o duas vezes nas últimas vinte e quatro horas. Na opinião dele, o Simon talvez não chegue vivo ao julgamento. O padre Bidoli está com ele porque ele não quer falar com mais ninguém. — Que doença é que ele tem? — perguntou Sarah. — Está num estado catatónico — disse Jeremy. — A definhar, sem comer nada. O homem desistiu de viver. Não me admira nada que morra em breve. E se bate a bota agora, estamos seriamente tramados. Desculpa, mas já sabes o que quero dizer. O que ele possa dizer ao padre não nos serve de nada. É testemunho de ouvido e não é admissível em tribunal. — Eu sei — disse Sarah. — Mas o padre Bidoli está a tentar que ele assine um documento. Háde conseguir de certeza. — Entretanto, coloquei um askari de plantão na Missão de Kagumo. Para o caso de o Karanja ter descoberto que a Wanjiru e a criança lá estão. Amanhã, vou transferi-la para outro sítio porque os rumores correm demasiado depressa por aqui, por mais que se tente guardar segredo das coisas. O diabo do homem deve estar cheio de medo de que o Simon assine uma declaração que nos permita prendê-lo. E, nesse caso, a Wanjiru seria uma testemunha vital. — Oh, meu Deus — disse Sarah. — Quando é que este pesadelo vai acabar? — Ouve — Hardy hesitou. — O padre Bidoli disse-me que o Simon pediu para falar contigo. — Não quero falar disso. Por favor. — Sarah, acho que és a única pessoa que pode conseguir agora que o Simon assine um depoimento. És a nossa última esperança. Fez-se um silêncio enquanto Sarah se preparava para o que sabia que estava para vir. — Eu sei que é um pedido terrível — disse Hardy finalmente. — Mas se considerasses vir à prisão… não necessariamente à cela dele mas… — Acho que não… — Sarah quis protestar, mas as palavras morreram-lhe nos lábios. Pensou no que Erope tinha dito. Não adiantava esconder-se. Era melhor confrontar o pior dos seus medos. O padre Bidoli tinha-lhe dito que ela era mais corajosa do que imaginava. Mas seria capaz de encontrar esse tipo de coragem? O polícia voltou a falar, a sua simpatia quase esboroando a sua determinação. — Não faz mal — disse ele. — Não se pode esperar tal coisa de ti. Nem de ninguém. Compreendo perfeitamente. Sarah recuperou a voz. — Eu vou — disse ela. — Posso estar em Nyeri amanhã de manhã cedo. — Seria melhor esta noite. — Detectou o alívio no tom de Jeremy. — Menos watu a repararem na tua chegada. O problema é que o Simon pode não durar até amanhã. Todos os momentos são vitais. — Seja então. — O pânico e a náusea invadiram-na ao pronunciar as palavras. — Quando chegares a Nyeri, leva o carro para as traseiras do edifício da polícia. Há-de lá estar
um askari à espera para te abrir o portão. Sarah pousou lentamente o telefone no descanso. As paredes à sua volta pareciam mover-se e deixou-se cair numa cadeira, com medo de desfalecer. — Sarah? — Ouviu a voz de Camilla penetrar o clamor que rugia nos seus ouvidos. — Quem era? Que é que te perturbou? Apercebeu-se da presença de Hannah e Lars ao seu lado e de que tinha agora de lhes contar. Depois tinha de viajar para Nyeri enquanto a sua determinação se mantivesse. Se conseguisse mexer as pernas. Olhou para os amigos, que precisavam dela para garantir a segurança da sua casa e família. Levantou-se. — Ontem, o padre Bidoli disse-me que o Simon tinha pedido para falar comigo. — Ouviu Hannah suster a respiração e apressou-se a continuar. — E quando estávamos no rio, o Jeremy telefonou e deixou uma mensagem. Foi por isso que lhe liguei. — Estava a sentir dificuldade em respirar. — O Simon vai morrer em breve. Talvez até esta noite. E o Jeremy acha que eu posso ser capaz de convencê-lo a assinar uma declaração. — A náusea atacou-a mais uma vez. — E eu concordei em tentar. — Não precisas de fazer isso. — Os olhos de Hannah estavam marejados de lágrimas. — Não deves ir, Sarah. Tem de haver outra maneira. — Não. Quanto mais cedo partir, melhor. — Não podes ir sozinha — disse Lars. — Eu levo-te. — Não. — Camilla falou com firmeza. — Fica com a Hannah e a Lottie que eu acompanho a Sarah. O Rabindrah também vai connosco com certeza. Correu lá para fora, onde Rabindrah estava no caminho ao lado do carro a conversar com Lottie, à espera de se despedir antes de arrancar para Nairobi. A explicação dela foi sucinta. — Claro que vou contigo — disse ele, no momento em que Sarah apareceu nos degraus. — Não há ninguém no mundo mais corajoso do que tu. Mais ninguém consideraria sequer fazer uma coisa destas. O teu amor é infinito. Mas vais chegar ao fim mais forte e estará tudo bem. — Minha querida, bebe um pouco deste chá doce e forte antes de ires — disse Lottie, registando as mãos trémulas e o rosto pálido de Sarah. — Vamos pôr uma garrafa-termos no carro. Estás em estado de choque e ajuda-te a aguentar a viagem. Sarah assentiu com a cabeça, desejosa de partir, de se pôr a caminho, para chegar ao seu destino e concluir o que prometera fazer. Hannah estava a fazer um esforço para se manter calma, mas o seu espírito debatia-se tumultuosamente contra a fúria e a incredulidade. — Ele não tem o direito de te chamar ao leito de morte dele — disse ela. — De te causar mais sofrimento e mágoa. — Não compreendes, Hannah? — disse Sarah. — Tenho de ir. Por ti, pelo Lars e pela Suniva. Pela Lottie e pelo Jan. Pela Camilla, que ama esta fazenda e está a tentar construir a oficina dela aqui. E por mim. Estou a fazer isto por todos nós. Hannah tapou a cara com as mãos. — Eu sei. E devia ir contigo mas não sou capaz. Não sou. Não tenho a tua coragem e não seria capaz de me controlar. Se o visse, cara a cara, ia gritar com ele e bater-lhe. Matá-lo com as minhas próprias mãos. Não consigo ser como tu. Não tenho a… — Chiu. — Sarah sorriu-lhe. — Não faz mal. Vai dar tudo certo. — Vai com a Camilla no carro — disse Rabindrah a Sarah. — Eu vou logo atrás. O caminho todo.
— Não vais estar sozinha — disse Camilla, passando a Sarah um cachecol de lã e um casaco. — Toma, põe isto que está a arrefecer e, quando chegarmos a Nyeri, deve estar bastante frio. Hannah, a gente liga-te mais tarde da esquadra. — Não. Não se preocupem comigo. Vou contactar o Jeremy a dizer que estão a caminho. Abraçaram-se, murmurando palavras de conforto e encorajamento antes de se separarem, os dedos ainda entrelaçados, relutantes em quebrar o laço que as unia. Mwangi e Kamau apareceram da cozinha e estenderam as mãos para tocar em Sarah, falando com ela como se ela fosse uma criança necessitada de consolo. — A Mama Lottie disse-nos onde ia — disse Kamau, colocando a mão na cabeça dela num velho gesto de bênção. — Que Deus a acompanhe, nós ficamos à espera do seu regresso sã e salva. Camilla ofereceu-se para conduzir, mas Sarah sentia a necessidade de ir ela ao volante. Era um alívio concentrar-se no ruído do motor e nas curvas e irregularidades da estrada. Estava grata por não ir sozinha embora pouco falassem durante a viagem. O Land Rover era robusto e funcional mas não era uma viatura confortável. Camilla não tardou a sentir o corpo moído e perro dos bancos duros e do ar frio que entrava pela lona que cobria as traseiras. À medida que o momento do confronto se aproximava, o medo terrível de Sarah de não ser capaz de aguentar a tortura crescia. A realidade de entrar na cela fazia-a sentir-se doente de tensão e, pela primeira vez desde a morte de Piet, começou a rezar. Era uma tentativa desesperada de comunicar com o desconhecido, uma busca da força para fazer o que prometera. Pensou na beleza selvagem de Buffalo Springs e no tempo passado no mato com Erope a seguir os elefantes. Mais uma vez recordou o que ele tinha dito sobre as fisi. Desde o trauma da morte de Piet, as imagens de Simon e da hiena tinham permanecido inextricavelmente fundidas numa monstruosa manifestação de perfídia, lançando-a no horror do sacrifício. Era o lugar onde os seus pesadelos sempre começavam. O cume da crista, o odor do animal associado às suas espáduas descaídas e mandíbulas pesadas. Via o brilho do corpo besuntado do homem, o focinho baboso e os dentes arreganhados do animal ao atirar-se contra ela. Os olhos do guerreiro estavam pousados nela quando caiu e depois tudo se fundiu com o rosto destruído de Piet, a fixar cegamente o céu. Sentia o cheiro do seu sangue nas narinas e no corpo, ao ser arremessada para a cova ao lado dele. Encolhida sobre o volante do Land Rover, ouviu a esfuziada da lança, o baque surdo e molhado que produziu ao acertar na hiena, segundos antes de ela cair. Simon tinha-lhe salvo a vida. Cerrou os dentes, permitindo-se recordar. No rescaldo imediato, não tinha desejado sobreviver. Tinha odiado Simon por tê-la deixado viver para ver o que ele fizera. Mas, apesar da longa agonia do seu sofrimento, tinha chegado um momento em que se regozijara por estar viva, por poder realizar um trabalho válido durante o resto da vida que lhe fora concedida, por ter encontrado um novo amor tão inesperadamente. Tinha de olhar para Simon Githiri uma última vez e sobreviver também a isso. Os seus músculos entraram em tensão ao inclinar-se sobre o volante, em mais uma curva apertada, e os seus lábios esboçaram uma oração, avançando velozmente pela estrada para Nyeri. Quando parou no portão do edifício da polícia, o ar nocturno parecia sinistro e sôfrego. O largo da vila estava cercado de cedros e castanheiros e das construções baixas do mercado e da estação rodoviária local. A Missão de Kagumo, que dera guarida a Wanjiru, ficava nas proximidades. Sarah estremeceu de apreensão. Era perigoso para a rapariga estar tão perto, mesmo sob guarda da polícia no convento. Mas Jeremy estava convicto de que a sua proximidade da esquadra da polícia
fazia daquele o último sítio em que Karanja a procuraria. Estava tudo mergulhado em escuridão mas, sob as árvores, Sarah distinguiu uma dezena ou mais de figuras adormecidas. Um grupo de pessoas, com velhos sobretudos militares, camisolas e chapéus de feltro, estava embrulhado em cobertores grossos para se proteger do frio, rodeado de sacos com pertences e aguardando as primeiras camionetas ou a abertura do mercado pela manhã. Dirigiu-se às traseiras da esquadra da polícia onde Jeremy estava à espera, o seu rosto registando surpresa com a presença do jornalista indiano, embora não tivesse tecido qualquer comentário. No seu gabinete, tirou uma declaração dactilografada da gaveta da secretária e entregou-a a Sarah. — Trata-se do registo de tudo o que o Simon contou ao padre Bidoli — disse ele. — Se conseguires convencê-lo a assinar, podemos deitar a mão ao Karanja mesmo que o Simon morra antes do julgamento. Sem esta folha de papel, não há provas para condenar o velho. Sinto muito termos-te pedido uma coisa destas, Sarah, mas não nos resta mais nenhuma esperança. És o nosso último recurso. Admiro a tua coragem. — Virou-se para os dois companheiros dela. — Vou mandar vir café se quiserem esperar aqui no gabinete. Camilla tinha notado a hesitação de Sarah e os seus dedos trémulos ao pegar no documento das mãos do polícia. — Eu e o Rabindrah vamos contigo até onde nos deixarem ir — disse ela. — Lembra-te de que te amamos, bela e maravilhosa Sarah, e quer entres nessa cela ou não, amar-te-emos sempre. Hardy chamou o sargento de serviço e encaminharam-se para o bloco prisional nas traseiras do recinto. Era um edifício de betão desolador, cercado por uma vedação de rede e encimado por rolos de arame farpado. Uma única lâmpada fluorescente estava acesa na porta principal. Círculos de insectos voavam contra a malha de arame, como meteoritos penetrando os anéis de energia de um planeta distante. Todas as janelas estavam fortemente gradeadas. Um askari armado estava à entrada e outro guarda patrulhava a vedação, com um pastor alemão pela trela ao lado. Não iam correr o risco de Simon ser raptado pelo tio ou liquidado antes de fazer declarações. À porta, o askari pôs-se em sentido quando o sargento de serviço destrancou a porta. Lá dentro, um ordenança estava sentado a uma pequena mesa diante das celas. Levantou-se quando o inspector entrou. Um cheiro fétido de latrinas e de corpos por lavar permeava o ar, misturado com o odor intenso de desinfectantes. Agora que ali estava, Sarah foi invadida pelo medo e sentiu o suor a rebentar-lhe em todo o corpo. A sala começou a sacudir-se, como o carro na viagem de Langani. Tropeçou, sentindo vontade de vomitar. Depois sentiu a mão de Rabindrah no braço, ajudando-a a sentar-se numa cadeira, consciente de que a declaração estava a escorregar-lhe dos dedos, caindo ao chão. Mas não foi capaz de a apanhar. — Baixa a cabeça. — Ouviu a voz sussurrada de Rabindrah soar sobre ela, remota e desencarnada. — Fecha os olhos e respira fundo várias vezes. Vais ver que a náusea passa. Estás a portar-te muito bem. Quando Sarah levantou novamente a cabeça, deparou-se com os olhos bondosos do padre Bidoli. O seu rosto estava macilento, respirava com dificuldade e a sua sotaina pendia-lhe do corpo como uma mortalha. Estremeceu. Havia demasiada morte à sua volta. Sempre demasiada morte. Quis correr para o exterior, fugir da sensação asfixiante de putrescência e desolação que enchiam o lugar. Insegura, pôs-se de pé, olhando por cima do ombro para localizar Rabindrah e Camilla, querendo assegurar-se de que ainda ali estavam. Tinham prometido ficar com ela. No seu pânico, não viu ninguém senão o padre.
— Não adianta, padre. Não sou capaz de lá entrar. Não sou. — Tinha a garganta seca e ouviu as palavras saírem arranhadas como lixa. — Sarah. Ele pronunciou o seu nome e, quando lhe pegou nas mãos, ela sentiu uma força espantosa começar a apoderar-se de si. Olhou para ele, vendo a miríade de rugas de sofrimento e experiência que lhe sulcavam o rosto. Mas os seus olhos transbordavam de vida e compaixão e uma coragem radiosa que a fez sentir vergonha da sua própria fraqueza. Sabia que também ele poderia morrer em breve e que também ele estava a sofrer. Mas não era consigo que se preocupava. Era com ela e com o prisioneiro por quem tinha estado a velar. — Ajude-me — disse ela. — Ajude-me a ir até ao fim porque não sei por que razão aqui estou. — Ele precisa do seu perdão — disse o padre Bidoli e ela soltou um leve grito de consternação. — O Simon vai ser submetido a um julgamento que teme muito mais do que tudo a que os tribunais terrenos possam condená-lo. Vai morrer e precisa de saber que Deus pode perdoar-lhe. Precisa de saber que a Sarah pode perdoar-lhe. E é por si, tanto como por ele, Sarah. Confie em mim, minha filha. É a única maneira de se libertar. Alguém lhe entregou a declaração por assinar. Sarah pegou nela e cerrou os dentes para impedir que batessem, deixando que o padre Bidoli a conduzisse à porta da cela. Uma lâmpada pendurada no tecto da sala baloiçava e uma janela alta de grades revelava a noite maligna e negra no exterior do recinto. Num canto estava uma cama de ferro. O prisioneiro estava deitado de lado num colchão de lã, parcialmente coberto por um fino cobertor. Ao lado da cama havia uma cadeira e, no canto do outro lado, um balde para as necessidades. De resto, o espaço exíguo estava vazio. Sarah deteve-se a olhar para o homem que destruíra a sua vida, que lhe levara o seu amado, a felicidade. A aparência dele era absolutamente patética. O seu corpo estava descarnado, a pele baça e ressequida, os olhos leitosos. Cegos. Sarah não era capaz de ver naquela criatura escalavrada à sua frente o jovem entusiástico que trabalhara em Langani nem o luzidio selvagem besuntado de óleo que esventrara Piet na sua sede de vingança. Que acontecera ao ser maléfico que habitava os seus sonhos? Não via agora mais do que a casca mirrada de um homem, vacilando à beira da eternidade. Por um momento infinito, foi acometida de uma raiva gélida. Por que razão havia de perdoar as acções daquele animal abjecto? Que pagasse pelos seus pecados, que pagasse pela dor e pelo desespero que lhe infligira e que infligira às pessoas que amava. Seria a sua vingança. Por que razão havia ele de receber, no seu leito de morte, o consolo e a compaixão que negara a Piet? Enquanto a cela rodopiava à sua volta, pensou nas palavras de Hamlet, observando o assassino Claudius a orar. Deveria mandar aquele vilão para o céu já purificado, revigorado na sua partida pelo seu perdão? Ou deveria virar as costas para que a alma fosse tão maldita e negra como o inferno a que estava destinado? Sarah sentiu vontade de agarrar num instrumento qualquer e agredilo, desferir um golpe que o desfigurasse como ele tinha destruído Piet. A náusea voltou a subir-lhe na garganta e ela procurou às cegas qualquer coisa a que se agarrar. Encontrou a mão do padre. Não soube como acabou sentada na cadeira ao lado da cama. O padre Bidoli ficou de pé atrás dela, com os dedos levemente pousados sobre os seus ombros, e de súbito tudo paralisou. Quando voltou a olhar para Simon Githiri, viu um rapazinho, agachado na floresta, à espera de que a mãe se levantasse do chão, assistindo à morte agonizante do pai. E agora era Simon Githiri, o prisioneiro, enroscado como uma criança na cama, nas garras do medo, das trevas e do desespero. Sentiu
unicamente piedade. Como podia julgá-lo pelo que tinha feito na loucura da sua dor? Que Deus fosse o seu juiz. Devia libertá-lo ou deixar-se ela própria devorar pela mesma raiva que o destruíra. — Simon. — Ouviu a sua própria voz, rouca, chegando de um ponto distante. Aproximou a declaração dele. — O teu filho vai ser curado em breve. Vai ser capaz de andar como as outras crianças. Compreendes? — Ele não fez qualquer sinal. — Simon, preciso que assines este papel. É o que disseste ao padre Bidoli. Deves assiná-lo pela segurança do teu filho. Caso contrário, o Karanja… Nesse momento, apercebeu-se, com um choque, de que ele não era capaz de a ver. Os seus olhos estavam cobertos por uma espécie de película, uma membrana esbranquiçada. No seu rosto mortiço e vácuo, contemplavam um abismo de nada. Estendeu o braço, com uma última oração pedindo forças, e tocou-lhe na mão. Os lábios dele mexeram-se e ela debruçou-se e baixou a cabeça para ouvir o que ele estava a tentar dizer. — Samahani. — Não passou de um débil murmúrio. — Samahani, Sarah. Samahani. Perdão. Repetiu a palavra vezes sem conta, até não conseguir articulá-la mais. Em seguida, virou a cabeça de modo que ela não via mais do que um lado do seu rosto. — «Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados.» — Foi tudo quanto lhe ocorreu dizer. Uma única lágrima formou-se no olho aberto e cego de Simon e rolou-lhe pela face. Sarah procurou um lenço no bolso e limpou-a, apertando-lhe a mão. Os olhos fecharam-se e ela ouviu-o suspirar. Momentos depois, o padre Bidoli ajudou-a a levantar-se da cadeira e conduziu-a ao corredor. Sarah sentiu os joelhos ceder, mas a agonia, o medo terrível e avassalador tinham-se dissipado. O padre tocou-lhe na face. — Agora ele vai ficar em paz, minha filha. O que fez foi generoso e magnânimo. — Que é que ele tem nos olhos, padre? — Cataratas. Por vezes são causadas por um profundo trauma, por vezes pela falta de comida. Aconteceram-lhe as duas coisas. Já não é capaz de comer. — Que é que lhe vai acontecer agora? — Vai a caminho de uma vida melhor. E a Sarah fez com que isso fosse possível. Ela captou um movimento ao fundo do corredor e viu Jeremy Hardy à sua espera. — A declaração! — disse ela. — Oh, meu Deus, ele não a assinou. Não podia ver para assiná-la. — Compreendeu que tinha fracassado, que nunca mais seriam livres. Não sabia como ia encarar Hannah. Ou Jeremy, que se encaminhava para ela. — Desapontei-os a todos. Sinto muito. — Começou a soluçar convulsivamente. — Fizeste o que podias. Foi um acto de grande coragem entrar ali dentro — disse Jeremy, pousando-lhe a mão no ombro. Embora as palavras fossem caridosas, ela compreendeu o seu desapontamento. — Verá que a generosidade de Deus é infinita. — O padre queria apaziguá-la com estas palavras, mas Sarah apenas sentia desolação. — Aí estão os seus amigos para a levar para casa. Quando o padre se virou para cumprimentar Camilla e Rabindrah, a luz áspera revelou as terríveis marcas que os últimos dias haviam deixado na sua débil saúde e Sarah registou a sua cor macilenta. — Padre, está com um ar doente — disse ela. — Agora precisa de descansar.
— Não se aflija comigo. — O seu sorriso foi um misto de humor e resignação. — Tenho a eternidade toda para descansar. Acompanham-me até à missão? As boas irmãs prepararam qualquer coisa para comerem e a Wanjiru quer falar consigo. — Ela sabe que estou aqui? — Sarah ficou surpreendida. — Eu disse-lhe que vinha visitar o Simon. Ela pediu para o ver, mas o inspector achou que seria demasiado perigoso. — O padre Bidoli virou-se para o polícia. — Faz-nos companhia? Jeremy sacudiu negativamente a cabeça. — Agradeço muito mas tenho assuntos burocráticos para terminar. Podes deixar o carro no parque, minha querida. Se passares pelo gabinete antes de partires, ainda me encontras. Deixaram o bloco prisional e atravessaram o recinto iluminado por projectores. O askari abriu o portão e saíram para o largo. Sarah ainda levava a declaração por assinar numa mão e, com a outra, apoiava o padre Bidoli, que caminhava devagar, parecendo prestes a desfalecer. Rabindrah encaminhou-se para eles mas Camilla reteve-o, pensando que Sarah talvez quisesse alguns momentos para falar com o padre sobre o que tinha acontecido na cela. Ao aproximarem-se do edifício da missão, uma figura surgiu subitamente do grupo de homens adormecidos e avançou para eles. Quase tarde de mais, Camilla apercebeu-se da cintilação da panga erguida e lançou um grito de aviso. Sarah rodou nos calcanhares, empurrando o padre para o lado e esbracejando para tentar afastar o assaltante que se engalfinhou com ela. Sentiu o seu hálito fedorento, viu o ódio brilhante nos seus olhos quando ele a atirou para o chão e lhe arrancou a declaração da polícia das mãos. Teve consciência de gritos e do som de passos pesados vindos da esquadra. Soou um tiro e, quando o atacante levantou a panga para desferir o golpe mortal, ela deu por si a fitar os olhos malévolos de Karanja Mungai. Sarah ergueu os braços no momento em que o padre Bidoli se lançou entre ambos. Soou um ruído de metal contra osso e ela sentiu o frágil corpo dele amolecer contra si. Como que vindo do nada, ouviu um guincho estridente de raiva quando as portas da missão se abriram de rompante e outra figura correu para eles. Wanjiru estava aos gritos em quicuio, lançando-se contra Karanja. Ele virou-se para a encarar e ergueu mais uma vez a panga, fazendo-a descer num arco que lhe rasgou o pescoço e os ombros e lhe penetrou no peito. Mas ela não o largou, emitindo um uivo de gelar o sangue, ao enterrar a lâmina de uma faca de cozinha no seu abdómen. Com um urro de surpresa, ele fitou o rosto do instrumento da sua vingança e tombou por terra, com a faca ainda enterrada no corpo até ao cabo. Wanjiru caiu de joelhos, agarrando-se ao pescoço, o sangue jorrando-lhe por entre os dedos, ao debruçar-se sobre o velho e ao cuspir-lhe nos olhos mortos e esgazeados. Depois, caiu por terra ao lado dele. Rabindrah surgiu junto de Sarah, levantando e afastando o padre, chamando por ela para saber se estava ferida enquanto Camilla se ajoelhava no solo poeirento ao lado da rapariga quicuia. — Não estou ferida — ofegou Sarah. — Olha pelo padre Bidoli… acho que ficou gravemente ferido. Rastejou até Wanjiru e levantou-lhe a cabeça, tentando estancar o sangue que brotava da ferida aberta para o chão, sujando-lhe a roupa e os sapatos. Mas era inútil. O corte da panga era demasiado profundo e extenso e não havia nada que pudesse fazer para parar o fluxo de sangue da artéria. A voz de Wanjiru saiu num gorgolejo ao tentar falar. — O Karanja? — Está morto, Wanjiru. Não pode fazer mais mal. — O meu menino. — Os seus olhos começavam a vidrar-se, mas o apelo continuava presente
neles. — Vou fazer tudo para que fique bem — disse Sarah. — Prometo-te, Wanjiru. Prometo-te do fundo do coração. A rapariga soltou um último suspiro borbulhante e a vida abandonou o seu corpo. Sarah permaneceu sentada, segurando nela, vendo o sangue acumular-se à sua volta na poeira e pensando na criança que estava agora à espera na missão pela mãe que nunca mais voltaria. À espera, como Simon tinha esperado. Levantou os olhos e viu que tinha chegado uma ambulância. Colocaram o padre Bidoli numa maca e duas freiras saíram da missão para envolver o pequeno corpo de Wanjiru num lençol branco e levá-la. Durante o resto da noite, que pareceu interminável, Sarah esperou no hospital, dormitando com Camilla em cadeiras desconfortáveis, enquanto Rabindrah ia e vinha com chávenas de café. Estava a romper o dia quando Jeremy Hardy lhes fez companhia. — O Karanja está morto — disse ele. — Creio que é seguro dizer que, sem ele, os problemas chegaram ao fim. Está tudo acabado, minha querida. — A Wanjiru — disse Sarah. — Deve ter um funeral decente. Suponho que as freiras se ocuparão disso. — Essa pobre rapariga salvou-te a vida. E a vida do padre também. — Passou a mão pelos olhos inflamados e pela barba por fazer. — Sabe Deus há quanto tempo o Karanja andava a rondar à porta da prisão ou porque é que escolheu aquele momento para atacar. — Deve ter-me visto sair da prisão com o papel na mão — disse Sarah. — Talvez tenha pensado que era a declaração assinada de que precisávamos. Estremecendo, fechou os olhos. O torpor começava a esbater-se e o frio invadiu-a. Vendo-a tiritar, Rabindrah tirou o casaco e pôs-lho pelos ombros. — Prometi à Wanjiru que o bebé dela receberia cuidados — disse ela. — Não o podem mandar para a reserva com a história e a deformidade dele. — Tenho a certeza de que olham por ele na missão — disse Jeremy. — Por agora, é o lugar mais seguro para estar. Deves ir para casa, tu e a Camilla. Ou aluga um quarto no Outspan Hotel para passarem algumas horas. Não podes fazer mais nada aqui. Sarah preparava-se para protestar, para dizer que não se ia embora enquanto não visse o padre Bidoli, quando o cirurgião apareceu na pequena sala de espera. A sua expressão era grave. — Perdeu muito sangue — disse ele. — Mas o seu estado é estável. Como sabem, já é um homem doente e os próximos dias serão críticos. Agora está consciente e perguntou se ainda cá está. Pode visitá-lo, se quiser, mas só por alguns momentos. Ele estava nos cuidados intensivos, envolto em ligaduras, com fios e tubos por todo o lado. Sarah sentou-se à sua cabeceira e chorou, pegando-lhe na mão, implorando-lhe que não morresse agora e dizendo-lhe que ele lhe restituíra a vida, a fé e a esperança no futuro. — Sarah. — A palavra pouco mais foi que um sussurro, mas ele abriu os olhos e apertou-lhe debilmente a mão. — Digo sempre aos meus paroquianos: «Kama Mungu na mwita wewe, hawezi kusema ngoja mpaka keshu.» Compreende? Se Deus vos chamar hoje, não adianta dizer «espera até amanhã». Se tiver chegado a hora, irei em paz. — Não, por favor, não. Não morra agora. — Não chore, minha filha. Já passou por demasiado sofrimento. O seu rapaz ama-a, Sarah. Vi-o nos seus olhos. Agora deve partir e abraçar a felicidade.
Não foi capaz de dizer mais nada e Sarah continuou sentada a ouvir a sua respiração difícil e irregular, até que a enfermeira entrou e lhe disse ternamente que eram horas de sair. Se houvesse alguma mudança, informá-la-iam. Lá fora no corredor, Sarah caiu nos braços de Rabindrah, que a conduziu ao carro onde Camilla estava à espera. Depois beijou-a e afastou-se no carro. Telefonarlhe-ia mais tarde, disse. Durante muito tempo, Sarah e Camilla ficaram paradas, abraçadas uma à outra, antes de entrarem para o velho Land Rover. Eram horas de voltar para casa, para Langani.
Simon Githiri morreu dois dias mais tarde, de madrugada, numa manhã de domingo, como que respondendo à chamada do sol nascente através da janela gradeada da cela. Quando o telefonema chegou, Hannah, Sarah e Camilla meteram-se no carro e foram à crista. No montículo de Piet, depositaram flores do jardim sobre as pedras brancas e sentaram-se no largo assento natural da pedra de onde ele adorava estender os olhos sobre o esplendor fulvo da sua terra. — Quero dizer-lhes uma coisa enquanto estamos aqui com o Piet — disse Hannah, ao fim de uns momentos. Falou em voz baixa, com uma expressão suave. — Estou grávida. Eu e o Lars vamos ter um bebé. Tive medo de falar antes. Medo de trazer outra criança a um mundo onde tudo parecia estar contra nós. Mas agora recuperei a esperança. Posso fazer planos para o futuro. E há outra coisa que decidi fazer, embora possa não ser fácil. — O quê? — Sarah pegou-lhe na mão. — O que é, Hannah? Podemos ajudar-te? — Tenho pensado na outra criança — disse Hannah. — No filho do Simon. — A expressão no seu rosto pálido era de determinação. — Tenho um marido maravilhoso e uma filha linda e outro filho a caminho. Mas esse menino perdeu tudo. Estava por isso a pensar que talvez pudesse viver connosco. Partilhar a nossa casa e tudo o que temos. É o procedimento correcto, não é? Uma espécie de reparação, finalmente. Pôr fim ao ódio e ao sofrimento do passado. Sarah e Camilla olharam para ela e depois abraçaram-na, prometendo-lhe amor e apoio, chorando juntas e fazendo planos para o futuro. Passados alguns momentos, calaram-se e permaneceram juntas, cada uma delas mergulhada no seu próprio mundo de recordações, contemplando o novo mundo à sua frente e escutando o chamamento das planícies africanas.
CAPÍTULO 20
Quénia, Julho de 1967 convidada para almoçar em Nairobi este domingo — disse Sarah. — Mas não sei. É uma –F uiocasião de família normal. Sinto-me nervosa. Estavam na margem do rio, os cavalos mordiscando a erva tenra que surgira com a chuva da última semana. Réstias de sol espreitavam pela ramagem densa, oferecendo vislumbres de um céu branqueado pelo calor do meio-dia. — Não é a primeira vez que vais estar com os parentes dele — disse Camilla. — Conheceste o tio e a tia na entrega do novo veículo. Alguns dos primos foram ver a Lila na gala de moda… deviam ser pelo menos dez. Todos encantadores e cordiais. — Sim, mas agora é diferente — disse Sarah, reparando na involuntária mudança de expressão de Hannah. Hesitou, apercebendo-se de que continuava a ser um assunto sensível. Não tinham voltado a abordar a questão do novo papel de Rabindrah na sua vida, mas agora ela precisava de apoio. — Recebi uma carta dos meus pais — disse ela. — Escrevi-lhes a falar do Simon e de tudo o que aconteceu em Nyeri. E do Rabindrah. A resposta tinha chocado Sarah. A carta continha algumas linhas quase indecifráveis de Raphael, bondosas mas prudentes. Era bom que ela sentisse interesse por alguém novo, dizia ele. Mas não havia necessidade de precipitar as coisas. Tinham esperança de que ela pudesse ir a casa mais para o fim do ano, talvez passar o Natal, e então podia contar-lhes tudo. Entretanto, devia ter cuidado. Era uma notícia maravilhosa saber que Langani podia agora voltar a ser o lugar pacífico que ela sempre tinha amado e que considerava a sua segunda casa. A carta de Betty era mais longa e muito diferente. Sarah tirou-a do bolso do casaco de safári e passou as folhas a Hannah e a Camilla. Ainda estás demasiado vulnerável e indefesa. Sobretudo depois dos acontecimentos recentes. Trabalhas em estreita proximidade com esse rapaz há quase um ano e, em Buffalo Springs, há muito poucas pessoas com quem possas conversar. Ninguém da tua própria geração. O encontro com o Simon exigiu uma atitude mental extraordinária e uma enorme coragem da tua parte e eu e o teu pai admiramos-te profundamente. E depois o terrível ataque ao teu amigo, o padre Bidoli, e a morte da pobre rapariga quicuia. Não consigo pensar no perigo e na possibilidade de tu própria teres ficado gravemente ferida sem sentir vontade de chorar. Ainda te deve custar terrivelmente contextualizar de algum modo todos estes acontecimentos trágicos, juntamente com as recordações da morte do Piet. Compreendo que possas sentir gratidão para com o Rabindrah Singh, por ter estado presente a apoiar-te, por te ter acompanhado nesses momentos dolorosos. E porque sofreste com tamanha coragem, pode ser fácil confundir essa gratidão com outro sentimento, minha querida Sarah. Especialmente no estado emotivo em que ainda deves estar. Fazes bem em considerar que uma determinada parte da tua vida chegou ao fim, agora que o Simon está
morto e que a ameaça a Langani acabou. É um abençoado alívio saber que podes e deves recomeçar. Atravessaste literalmente vales tenebrosos e o teu amigo Rabindrah deve parecer a pessoa ideal para continuar a viagem contigo em direcção a um lugar e a um tempo mais alegres e melhores. Mas, minha querida, os problemas seriam muitos. Eu e o teu pai educámos-te na abertura de espírito, para que convivesses sem preconceitos com outras raças e religiões. Sempre abrimos as nossas portas a pessoas de outras origens, independentemente da sua cor e credo. E tivemos muitos amigos no seio da comunidade asiática no Quénia — católicos de Goa, ismailis, hindus e muçulmanos — todos fizeram parte da nossa vida aí. Mas os nossos costumes são muito diferentes quando se trata das questões do dia-a-dia que se levantam entre um homem e uma mulher. Não seria boa mãe se não te dissesse a que ponto os teus sentimentos por esse jovem sique me preocupam. Não tenho dúvida de que é culto e inteligente. Um homem bom e sincero, como tu dizes. E compreendo que, ao longo do tempo, te tenhas tornado dependente dele, sobretudo durante um período em que sofrias e te sentias só. Mas este tipo de situação apresenta outros problemas. Não sei se te recordas da Angela Patel, que era uma das minhas melhores amigas em Mombaça. Era uma enfermeira de Monaghan, que conheceu e se casou com um médico indiano do Quénia quando ele estava a estudar Medicina em Dublin. Sempre o considerámos um homem agradável e inteligente e eu sei que ela se esforçou imenso para que o casamento fosse um sucesso. Mas acabou por voltar à Irlanda depois de um esgotamento nervoso. A família do marido pura e simplesmente não a aceitava. Tornaram a vida dela impossível com uma série de crueldades, perante a indiferença dele à humilhação a que a mãe e as irmãs, em particular, a sujeitavam. A pobre da Angela aguentou durante anos por causa dos filhos. Mas, enquanto mulher de um hindu, não tem quaisquer direitos. Só vê o filho e a filha duas vezes por ano e vive amargurada. Ele não os deixa vir à Irlanda e, quando ela os quer ver, é obrigada a viajar até Kericho, onde ele exerce agora, e a alojar-se num hotel. Ele tem uma nova mulher e a Angela já não se sente adaptada aí. Mas a casa dela também não é na Irlanda. As pessoas consideram-na estranha por se ter casado com um indiano e desprezível por ter aparentemente abandonado os filhos. A vida dela aqui é desoladora. Não está em posição de voltar a casar num país católico como este e a pensão que o marido lhe dá é irrisória. E, no entanto, quando se casaram, estavam profundamente apaixonados. Não é a única rapariga que conheço com uma história destas. Infelizmente, são muitas as que começaram corajosas e confiantes, na certeza de que o seu amor ultrapassaria todos os obstáculos, para descobrirem que séculos de costumes e convicções diferentes eram mais fortes do que os seus esforços mais heróicos. No fim, são estas diferenças aparentemente insignificantes que corroem a base do casamento e desgastam as suas fundações ao ponto de as fazer ruir. Por isso, penso que deves ser extremamente cautelosa com este rapaz. Pode parecer ideal à superfície, mas a sua religião e cultura estão tão enraizadas nele como as tuas. Uma relação íntima entre os dois pode não proporcionar a nenhum verdadeira felicidade depois de os primeiros tempos gloriosos e estonteantes de romance darem lugar às exigências da rotina quotidiana e ser necessário substituí-los por uma relação de outro tipo. Dizes que ele não é um sique tradicional, que não frequenta o templo nem usa turbante. Do mesmo modo,
ele e a família não te consideram provavelmente uma católica tradicional porque não vais à missa ao domingo nem recebes os sacramentos, vivendo como vives em Buffalo Springs. Mas isso não significa que as vossas diferentes religiões não sejam uma parte vital de vós. E, se se casassem e tivessem filhos, como era? Como iam educá-los? Em que sociedade e cultura? Em que género de escola? Teriam ambos de jurar que seriam educados na fé católica para poderem casar pela Igreja. E, mais tarde, poderás descobrir que este entendimento inicial causa dificuldades à tua vida doméstica. Talvez nenhum dos dois tenha ainda pensado em casamento. Mas eu conheço-te muito bem. Eu e o teu pai sempre nos orgulhámos da tua lealdade e da tua noção do bem, mesmo quando a tua vida se tornou penosa por causa disso. Pelo tom da tua carta, compreendo que os teus sentimentos pelo Rabindrah são intensos e não és o tipo de pessoa que se contente com um romance passageiro. É, pois, muito importante que ponderes todas estas questões mesmo que ainda não as tenhas discutido com ele. E a família dele? A comunidade sique no Quénia é muito unida e, geralmente, não vê com bons olhos os casamentos entre um deles e os hindus ou pessoas de diferentes castas nem as uniões com indianos muçulmanos e muito menos com cristãos e europeus. Sei que supostamente os siques são tolerantes e eu e o teu pai fomos bem recebidos em casa de siques e fomos a um casamento sique. Sei também que esperam que as pessoas que se casam com os seus o façam no seu templo e no contexto das suas convicções. Minha querida, esta situação é extremamente séria e requer cuidada reflexão. Como tua mãe que te adora, sugiro que voltes agora para Buffalo Springs e reflictas sobre este assunto por algum tempo. Talvez fosse boa ideia passares alguns meses sem ver o Rabindrah. Dar-lhes-ia a possibilidade de porem à prova os sentimentos que nutrem um pelo outro. Eu e o teu pai amamos-te de todo o coração e queremos que encontres alguém com quem possas partilhar a tua vida de uma forma que tu, mais do que ninguém, verdadeiramente mereces. Já ultrapassaste tantas dificuldades, minha querida, e assististe a tanta tristeza. Não queremos que voltes a sofrer na vida. Entretanto, tens a Camilla e a Hannah contigo. O laço que vos une é extraordinário e ajudar-te-á a prosseguir. E estou certa de que os teus maravilhosos amigos, os Briggs, estão ansiosos por que voltes para o acampamento. Lembramos a nossa estadia lá com grande prazer e sabemos que estás em segurança, protegida pela sua amizade. Eu e o teu pai amamos-te mais do que podemos exprimir por palavras e rezamos para que tudo corra pelo melhor. Ficaríamos deliciados se arranjasses maneira de vir passar uns tempos a casa. E o Tim também. Ele está a fazer tudo o que pode para seguir em frente mas, numa comunidade pequena como a nossa, ainda é difícil. Se quiseres vir passar o Natal, nós mandamos-te a passagem de avião. Estamos desejosos de te ver e de te receber de novo em casa. Por favor, escreve depressa e conta-nos como tens passado. A tua mãe.
— Bem, bem — disse Camilla, passando a última folha a Hannah, que estava a ler mais lentamente com uma expressão compenetrada. — Suponho que a família dele há-de sentir o mesmo — disse Sarah. — Quer dizer, só agora
começámos a… enfim, ainda não tivemos oportunidade de falar dos nossos sentimentos e já as tropas se enfileiraram de armas em riste. — Acho que deves ir ao almoço em Nairobi — disse Camilla. — Se não persistires, nunca saberás o que a família dele pensa nem como o Rabindrah lida com a oposição. — Mas não te precipites. — O rosto de Hannah estava encoberto pela aba do chapéu e ela virou a cabeça para que Sarah não visse a sua expressão perturbada. — Pode haver profundas diferenças que não se tornam aparentes no princípio e não é bom caíres numa situação em que… — Então concordas com a minha mãe? — Os olhos de Sarah chisparam. — Achas que devo precaver-me contra o estrangeiro de pele escura e religião bizarra que me pode abandonar ou fechar-me a sete chaves ou tratar-me como um mero objecto. — Eh! Não te atires assim a mim — disse Hannah. — Estou a esforçar-me ao máximo por aceitar esta situação. Claro que quero ver-te dar andamento à tua vida. Voltares a apaixonar-te, como qualquer pessoa da nossa idade. Sabes muito bem que quero a tua felicidade. Mas, neste caso, pode vir a revelar-se mais difícil do que pensas. — Quando foi a última vez em que fomos todas felizes? — perguntou Camilla, endireitando-se e lançando um olhar de advertência a Hannah. — Apercebes-te de que nenhuma de nós voltou a sentir-se verdadeiramente alegre, despreocupada e feliz desde o Verão em que fizemos vinte e um anos, antes de o Piet morrer? Não achas que faz pouco sentido? Não devíamos tentar ser agora felizes, acima de tudo? Desfrutar a vida, as pessoas que amamos, sejam elas quem forem? E porque é que estamos obcecadas com a questão do casamento? Porque é que a Sarah não há-de começar por um romance e ver o que dá? — Tens razão — disse Hannah. — Estamos a ir longe de mais. O amor deve ser um sentimento pleno de excitação e de novas descobertas. — Deve tornar as pessoas belas, sensuais, impacientes e famintas — disse Camilla. — Deve divertir. Caramba, o amor não deve ser ensombrado pela responsabilidade, pela religião e pela culpa. Pensei que já tinhas ultrapassado o medo católico e a condenação dos prazeres físicos, Sarah. Deves ceder às investidas do Rabindrah e o tempo dirá se estão feitos um para o outro. Sarah rolou sobre a barriga e ficou deitada de bruços, a cabeça enterrada nos braços, para que não vissem o seu desapontamento. Era impossível que não soubessem que uma aventura casual não se coadunava com ela. Até a mãe tinha compreendido isso. Apertou os lábios, sentindo-se tola e humilhada, reprimindo o desejo de defender acaloradamente os seus ideais. Não havia dúvida de que era antiquada, mas não fazia parte da sua personalidade desculpar ou abandonar os seus mais preciosos princípios. — Vamos todas para Nairobi. — Camilla debruçou-se e abanou Sarah ao de leve. — Passar um longo fim-de-semana, alugar um chalé no Norfolk, ver uma peça ou um filme ou as duas coisas. Fazer compras para o novo bebé. O meu pai deve voltar de Londres hoje e, no mínimo, pode levarnos a jantar. — Virou-se para Hannah, rindo. — Ou pode levar-nos às duas a almoçar ao Muthaiga para o caril de domingo enquanto a Sarah se submete ao exame do tio Indar e do resto do comité de inspecção. E quando ela voltar estamos à espera para lhe dar apoio. Que é que dizem? — Pode ser que o Lars também queira ir — disse Hannah. — Há meses que não vamos a Nairobi. Se o Anthony estiver por lá, entre safáris, podíamos falar com ele sobre o lodge. Sobre a reconstrução. O sorriso de Camilla deu lugar a uma crispação da boca. — Não quero estar com o Anthony —
disse ela. — Se tu e o Lars quiserem encontrar-se com ele, façam-no quando eu não estiver presente. — Ele ligou várias vezes nas duas últimas semanas — disse Hannah. — Incluindo na noite em que tu e a Sarah foram visitar o Simon. O Lars falou com ele há dois dias. Estava em Tsavo com uns clientes, mas acho que o safári deve estar quase a terminar. — Não me disseste nada disso — disse Camilla. — Achei que não querias saber. — Hannah encolheu os ombros. — Mas um dia destes vais-te cruzar com ele. É inevitável. — Não tenho de me cruzar com ele para nada. — A voz de Camilla saiu tensa. — Estou muito feliz aqui, a pôr em marcha os novos modelos na oficina. Estou muito bem em Langani, onde não há a hipótese de esbarrar com ele. E, se ele planeia aparecer para discutir contigo e com o Lars, vou passar um ou dois dias com o meu pai na cidade. Mas não quero voltar a ver o Anthony. Nunca mais. — Chamo a isso hipocrisia — disse Hannah. — Incitas a Sarah, dizes-lhe que se atire de cabeça num romance, mas nem sequer pensas em dar uma segunda oportunidade ao Anthony, ah? Se calhar devias pensar nisso... enquanto estás a distribuir conselhos tão experientes. — Nada disso me agrada — disse Sarah. — Além disso, tenho andado a pensar que é tempo de contactar o Dan e a Allie. Devia retomar o trabalho antes que eles decidam que não lhes faço falta ou arranjem outra pessoa para o meu lugar. O Rabindrah pode dar um salto a Buffalo Springs dentro de uma semana ou assim. — Não. — Camilla levantou-se e dirigiu-se ao cavalo para pegar nas rédeas. — É evidente que ele quer apresentar-te oficialmente à família e mais vale enfrentares isso. Vamos voltar e ver se a ideia de Nairobi agrada ao Lars. Saber o que o grandalhão diz. Ele é muito mais sensato e clarividente do que qualquer uma de nós. — Meteu o pé no estribo e saltou com ligeireza para a sela. — Adoro o ritmo mais lento que a Hannah adoptou, agora que está novamente grávida. Sempre tive medo de galopar nesta planície, a tentar acompanhá-las às duas, agarrada à sela ou até à crina do cavalo, receosa de que o pónei caísse no buraco de um javali e mais receosa ainda que vocês vissem a minha figura de parva! Partiram através de uma vasta secção de ervas penugentas, os cavalos resfolegando e esticando as rédeas, impacientes por lhes ser dada rédea solta na cavalgada para casa. Um sol omnipotente batia impiedosamente sobre elas e os sons do mato crepitavam e rumorejavam na cintilação do ar sufocante. Passado algum tempo, iniciaram um galope curto e, nos estábulos, entregaram os cavalos transpirados e encaminharam-se para casa para saciar a sede. Lottie tinha preparado limonada fresca e enchido um balde com gelo e sentaram-se com ela no jardim, contemplando o ressalto azul da montanha e o banco de nuvens da tarde que se aproximava. — A Sarah tem de ir a Nairobi este fim-de-semana — disse Hannah. — E estávamos a pensar que talvez fosse boa ideia se fôssemos todos passar lá duas noites. O Lars também. E tu, mamã, claro. — Eu fico aqui. — A resposta de Lottie foi tão rápida que Hannah olhou de relance para ela, surpreendida. — Preciso de estar de olho em algumas mulheres e totos no dispensário. E quero acabar de coser as novas capas para o sofá e para as cadeiras. Adoro usar as máquinas da Camilla enquanto não está ninguém na oficina. Baixou a cabeça enquanto falava e olhou para as mãos pousadas no regaço. Hannah reparou que
ela as tinha amaciado com creme e cortado as unhas em ovais perfeitas. Com um choque, notou a marca de pele branca num dos dedos de Lottie e apercebeu-se de que a mãe tinha deixado de usar a aliança. O último símbolo do seu casamento desaparecera e Hannah interrogou-se sobre o que ela teria feito ao anel de ouro que Janni lhe dera tantos anos antes e por que razão decidira tirá-lo agora. — Será que se pode almoçar? — Os passos discretos de Lars levaram-nas a virar a cabeça. Ele baixou-se para beijar Hannah, colocando a mão por um breve momento sobre o ventre dela, num gesto de ternura que a emocionou. Suspirou, agudamente consciente da sua boa sorte e sabendo, ao mesmo tempo, que não tinha sido suficientemente sensível e generosa com Sarah. — Há um acontecimento importante em Nairobi este fim-de-semana — disse ela, levantando os olhos para Lars. — A família Singh convidou a Sarah para almoçar e ela precisa de apoio. Achas que podíamos ir todos passar o fim-de-semana? — Eu fico — repetiu Lottie. Havia uma suavidade no seu rosto que Hannah notou mas não foi capaz de analisar. — Vai lá, Lars. És homem para levar estas três raparigas num passeio. Precisam de um pau-de-cabeleira. E eu tenho uma coisa para vos dizer a todos. — Fez uma pausa, consciente de que estavam todos de olhos nela, de que tinham captado qualquer coisa no tom da sua voz. — No fim do mês, vou-me embora — disse ela. — Quero passar algum tempo com o Sergio em Joanesburgo. Ele vai telefonar amanhã quando tiver marcado a minha passagem aérea. Preciso de pensar nos meus planos a longo prazo. É maravilhoso estar aqui e gostava muito de voltar e ajudar quando o bebé estiver para nascer. Mas agora preciso de algum tempo para mim. De tempo para reflectir. É uma boa altura para tirarem uns dias em Nairobi enquanto aqui estou a olhar pelas coisas. E adorava ficar com a Suniva, se quiserem deixá-la com uma avó enlevada. O seu anúncio foi recebido em silêncio e Lars notou que a expressão de Hannah se havia ensombrado. — Acho que Nairobi é uma excelente ideia — disse ele. — Obrigado pela sua oferta, Lottie. Deixamos a Suniva consigo e eu aproveito para levar a Hannah numa curta lua-de-mel. Parece ter passado uma eternidade desde a última. Foi recompensado com a breve pressão dos belos seios da mulher contra si, quando ela lhe passou os braços pela cintura e lhe sussurrou uma promessa ao ouvido que o fez sorrir e repensar o programa dessa tarde.
— Importas-te de ficar comigo? — Camilla olhou para Sarah quando estavam a registar-se no Norfolk. — Podemos ficar num chalé e os pombinhos ficam à vontade do outro lado do pátio. — Óptimo — disse Sarah. — O meu pai vem-nos buscar aqui por volta das sete para nos levar ao teatro e a jantar a seguir — disse Camilla. — Convidaste o Rabindrah? — Não pode jantar connosco — disse Sarah. — Está a cobrir uma conferência. Mas é capaz de aparecer para uma bebida mais tarde, conforme as coisas correrem. — Atiramos a moeda ao ar para ver quem usa a casa de banho primeiro — disse Camilla. — Que é que tens vestido? Isto não parece familiar? Ficou satisfeita ao ouvir Sarah cantar enquanto tomavam banho, se vestiam e especulavam sobre o anúncio de Lottie.
— Achas que ela vai visitar o admirador italiano? — Camilla desenhou traços impecáveis ao longo das pálpebras com um lápis escuro, realçando os olhos azuis. — Ou estará ele à espera dela em Joanesburgo, ajoelhado ao fundo das escadas quando ela sair do avião e a cantar uma ária? Achas que é parecido com o Mario Lanza? Ou será mais como o Dean Martin? — Espero que a Hannah reaja a tudo calmamente — disse Sarah, rindo-se da imagem. Não temos muito jeito para compreender os nossos pais, pois não? — Nenhum — disse Camilla, pensando na aparente rejeição de Giles Hannington e nas falsas suposições que tinha feito sobre essa relação. — Suponho que chegámos a uma altura em que cada geração tem de tentar aceitar o que a outra faz. Mas não é fácil. Aos pais e à tolerância geral!
— Tenho o carro estacionado lá fora. Com um velho amigo que está desejoso de te ver, Camilla. — A filha não recebeu bem as palavras de George. — Oh, não. — Camilla ficou consternada e furiosa. Ele sabia que ela não queria voltar a estar com Anthony. Não acreditava que se tivesse esquecido da conversa que tinham tido em Londres. — Não é justo, papá. Não devias ter… — É o Saidi — apressou-se ele a dizer. — O nosso antigo motorista. Não te lembras como ele tratava bem de ti quando andavas na escola? Como foi estupendo com a tua mãe? Viu o meu nome no jornal e procurou-me e resolvemos contratá-lo outra vez. Camilla, extremamente aliviada, apertou a mão a Saidi, perguntou-lhe pela família e recordou-lhe que também já conhecia Sarah. George estava calado, um pouco magoado por ela não ter confiado o suficiente que ele respeitasse os seus desejos. Era um mau começo de noite e a situação não melhorou com a peça medíocre no Teatro Donovan Maule. Camilla sentiu-se desanimada quando se viu obrigada a posar para fotografias no New Stanley Hotel. — Sinto muito — disse George. — Devia ter avisado o Oscar que ias cá estar quando marquei a mesa. Como os melhores hoteleiros, sabe livrar-se dos jornalistas e de outros intrusos indesejáveis. Mas quando chegarmos ao Grill, já ninguém nos incomoda. — É incontornável. — Camilla lançou um sorriso deslumbrante ao fotógrafo do Standard e depois inclinou-se e segredou-lhe ao ouvido. A cara dele registou surpresa, acenando com a cabeça e agradecendo-lhe antes de se afastar apressadamente, com máquinas e fotómetros a chocalhar contra o seu corpo escanzelado. — Foi à procura do James Stewart — disse ela, respondendo ao olhar interrogativo do pai. — Disse-lhe que ele tinha acabado de chegar ao Norfolk. — Como é que descobriste? — Hannah arregalou os olhos. — Se soubesse, tinha lá ficado só para tentar ouvir a voz dele, nem que fosse uma vez. — Bem, acho que chega esta noite — disse Camilla. — Mas pode bem ser na próxima semana. Ou no próximo mês. Mas é em breve, definitivamente. Ainda estavam a rir quando chegaram à mesa. George distribuiu os lugares e pediu bebidas e não tardou que estivessem a conversar despreocupada e animadamente. Olhou para a filha e para os amigos e sentiu-se comovido com a sua felicidade. Foi Lars o primeiro a ver Anthony. Estava sentado diante de uma mulher de cabelo escuro cujo vestido era um pouco justo de mais e mal continha os seus transbordantes seios. Estava a gesticular com as mãos, inclinando-se para sublinhar uma ideia, e a luz da vela captou as pulseiras de missangas e cobre que trazia sempre no pulso, a linha curva da sua boca e as rugas de riso que lhe
marcavam as feições. — O Anthony está cá. — Lars decidiu-se por uma abordagem directa. — Vou lá dizer jambo. George praguejou entre dentes ao aperceber-se da tensão imediata no corpo de Camilla. Ela pegou na taça de champanhe ao ver Anthony levantar-se e dirigir-se à mesa deles. — Mais alguém tem esta sensação incrível de déjà vu? — disse ela com uma gargalhada estridente. — Mas que prazer ver estas três sereias novamente juntas — disse Anthony, cumprimentando Hannah e Sarah com efusiva afeição e beijando Camilla ao de leve na face. — Parto num novo safári para a semana. Passo por Langani no caminho, se acharem bem, e conversamos sobre o lodge. Entretanto, estou em Nairobi nos próximos dias. Quanto tempo vais ficar, Camilla? — Ainda não decidi — disse ela friamente. — Há muitos assuntos pendentes. — Eu telefono-te — disse Anthony. — Estás em casa do George? — Não. Passamos todos a noite no Norfolk, mas amanhã provavelmente vou-me embora. — Camilla desviou os olhos, cortando deliberadamente a conversa. — Gosto muito de te ver por cá. — Anthony virou-se para Sarah. — É um alívio que as desgraças tenham acabado. Estava acampado em Amboseli quando soube do que aconteceu. Não podia escapar mas liguei do hotel em Namanga. A Hannah disse-te com certeza. Como o meu próximo safári vai ser novamente no Norte, dou um salto ao acampamento dos Briggs. Espero encontrar-te lá. — Tenho a certeza de que vão gostar muito de te ver — disse Sarah. — Já quase acabámos de jantar. — Anthony indicou a sua mesa com um gesto de cabeça. — George, importa-se que lhes façamos companhia para uma bebida mais tarde? A expedição de helicóptero continua em pé para terça? — Continua. — George estava cada vez mais atrapalhado, consciente da mal disfarçada irritação de Camilla e ansioso por pôr fim ao contacto. — Eu ponho-te a par dos pormenores na segundafeira. — Infelizmente, não vou poder acompanhá-lo no voo. Ia ligar amanhã de manhã a informá-lo. E por hoje acabou a conversa sobre a vida selvagem, prometo. — Anthony sorriu, os seus olhos castanhos fixos em Camilla. — Mas já venho para tomarmos uma bebida. Voltou para a mesa e, momentos depois, a sua companheira estava a acenar com a cabeça com evidente entusiasmo. Debruçou-se para pousar a mão no braço dele, permitindo-lhe uma visão mais desimpedida do seu colo. Sarah cerrou os dentes. Camilla transmitia uma impressão de serenidade que contradizia a sensação interior de ter sido achincalhada. Estava com um medo terrível de começar a chorar, mas determinada em não se deixar afectar pela presença dele e em não fazer figura de parva. Não era como se tivesse havido qualquer traição da parte de Anthony. Em Londres, tinha-lhe dito que não podia partilhar a vida dele e agora parecia ter tomado a decisão correcta. Em poucas semanas, ele já estava noutra, encontrando facilmente consolo noutra mulher. Em mais do que uma, provavelmente. Era evidente que a sua decisão não o tinha afectado muito. Engoliu em seco, o estômago contraindo-se-lhe de dor e humilhação. — E tenho dito — disse ela, passando os olhos pela mesa, numa voz maliciosa, as sobrancelhas erguidas e a boca formando um sorriso perfeito que não lhe iluminou o olhar. — Vamos saborear a noite e mostrar-nos encantadores quando eles nos fizerem companhia mais tarde. Entretanto, que
história é essa de um helicóptero, papá? Sempre detestei helicópteros até o Saul nos ter ido buscar num em Nova Iorque. — Adorava que conhecesses este projecto — disse ele. — É uma operação de salvamento para transferir rinocerontes de lugares que foram destinados a povoamento humano e relocalizá-los num dos Parques Nacionais. É um projecto para que estou a contribuir financeiramente. — São tão perigosos e temperamentais. — Camilla estava intrigada, satisfeita com a distracção. — Não se pode convidar um rinoceronte a dar um passeio até à reserva mais próxima nem pôr-lhe uma corda ao pescoço e levá-lo para outro lado. — Neste esquema, são transferidos por ar. Inicialmente seguimos o animal de helicóptero e o piloto comunica a posição dele a um camião do Departamento da Vida Selvagem. O programa foi posto em marcha por um veterinário extraordinário. Aperfeiçoou um tranquilizante, chamado M99. Dispara um dardo tranquilizante contra o rinoceronte do helicóptero, se bem que me espante sempre como consegue acertar no alvo. Depois, tentamos continuar a sobrevoar o animal até ele perder os sentidos. Quando cai, o camião aproxima-se e o rinoceronte é içado para as traseiras, ainda adormecido. Mas é extremamente difícil porque essas criaturas enormes e pesadas têm o hábito de correr para o mato mais denso e para o coração da floresta e, por vezes, não se consegue localizar o ponto em que finalmente caem. E é mais difícil ainda lá chegar. — Adorava assistir — disse Camilla. — Posso ir contigo? — Gostava imenso que fosses. — George ficou radiante. — Seria fantástico — disse ela. — Se formos só os dois e o veterinário. — E somos — disse ele, pousando a mão na mão dela. Era impossível ignorar a visão de Anthony, agora a dançar com a jovem voluptuosa. Camilla passou um guardanapo pelos lábios e levantou-se para ir à casa de banho. George viu-a atravessar a pequena sala apinhada e suspirou. — Não compreendo — disse ele, sombriamente. — Estavam talhados um para o outro. Sou capaz de apostar que o Anthony ama sinceramente a minha filha. — Acho que tem razão — disse Lars. — Mas ele tem medo. Não tanto do compromisso mas de possuir uma criatura tão bela que se pode esboroar a qualquer momento. E ela é terrivelmente famosa. Ele não é homem para caminhar na sombra dela. — Talvez haja uma explicação para a rapariga — disse Hannah, observando a pista de dança. — Ele não está a apertá-la muito nem nada. — Mas ela está bem agarrada a ele — disse Sarah. — O Lars tem razão. Acho que a beleza da Camilla e do Anthony e o reconhecimento que gozam em dois mundos diferentes se viram contra eles. Ela vê-o como uma dessas imagens gregas de perfeição física. Elegante quando se move. Como um animal, magro, poderoso e fluido. E olhem para o perfil dele… o nariz aquilino, a forma perfeita da boca. E aquelas maçãs do rosto parecem esculpidas. Já o fotografei muitas vezes e aquelas feições sempre me espantaram. Mas não me parece que seja assim tão seguro de si mesmo. — Exacto — disse Lars. — E ela é como porcelana… delicada, pálida e loira. Mas é uma mulher forte. Mais forte do que ele. — Espero que seja verdade — disse George. — Não a quero ver magoada outra vez. — Felizmente ela tem em si um apoio sólido — disse Sarah, sorrindo-lhe, quando Camilla regressou, ziguezagueando por entre as mesas. — E há-de ser isso que a vai ajudar a aguentar. Oh, meu Deus, aí vem ele.
A banda tinha feito uma pausa e Anthony chegou para se juntar a eles. — Apresento-vos a Charlene Moore — disse ele. — É agente de viagens em San Antonio. A empresa dela especializa-se em férias equestres. Acho que vamos colaborar bastante a partir de agora. — Sensacional, não há dúvida — disse Hannah, entre dentes. A rapariga estava visivelmente encantada com Anthony. Falava com um sotaque texano arrastado e sentia-se exultante por estar em tão sofisticada companhia. — Oh, nunca imaginei que viesse a ter a oportunidade de a conhecer — disse ela a Camilla. — Já a vi em todas as revistas, claro, mas ao vivo é muito mais espectacular que nas fotos. — Lançou um sorriso radioso a George. — Vejo pelo seu pai onde foi buscar a sua fantástica figura. — Sou uma cópia a papel químico da minha mãe — disse Camilla, com um sorriso gelado. — A minha irmã era rainha de beleza. Ganhou todos os desfiles e sempre sonhou ir para Nova Iorque e ser uma celebridade. Mas agora é casada e tem seis filhos e dirige um óptimo salão de beleza. Suponho que deixou passar a oportunidade de ser famosa. A rapariga passou a meia hora seguinte regalando-os com descrições das suas recentes experiências em safári. Anthony estava sentado ao lado dela, mudo e sério, de olhos colados em Camilla. — Decidi não dizer que era agente de viagens quando marquei a minha excursão — disse Charlene. — Apesar do desconto que este simpático homem me teria feito. Mas queria vir incógnita. Assim, marquei a viagem e vim com um pequeno grupo de amigos. Ver como ele trabalhava. E posso garantir que é muito competente. Não há nada no acampamento dele que pudesse ser melhor e os meus clientes vão ficar encantados com ele. Sobretudo as mulheres! Caramba, quando lhes mostrar as minhas fotografias vão ficar loucas por vir para andar a cavalo com Mr. Chapman! E cheias de ciúmes de mim! Podem crer. — Acho que são horas de irmos embora. — George levantou-se da mesa. — Anthony, falamos na próxima semana se estiveres por cá. Boa-noite, Miss Moore. Espero que goste do resto da sua estadia em Nairobi. — Vou gostar com certeza — disse ela, irradiando prazer. — Mas foi óptimo conhecê-los e conversar com pessoas tão interessantes. — Que tal encontrarmo-nos para a semana? — A voz de Anthony continha uma certa tensão ao dirigir-se a Lars. — Eu e a Hannah regressamos na segunda de manhã — disse Lars. — Eu vou com eles — acrescentou Sarah. — Correndo tudo bem, a caminho de Buffalo Springs. É tempo de retomar o trabalho. — Eu entro em contacto — disse Anthony a George. Virou-se para falar com Camilla, mas ela já estava a sair do restaurante. — Boa-noite. No Norfolk, pegaram nas chaves dos quartos e combinaram encontrar-se ao pequeno-almoço. — Não contem comigo — disse Hannah. — O pequeno-almoço na cama é uma parte essencial desta viagem. Uma coisa que não faço há muito tempo. — Livra! — disse Sarah, quando se deitaram. — Não há dúvida de que o ambiente fica explosivo quando tu e o Anthony estão na mesma sala. Vê-se bem que ele está a contar as horas até arranjar maneira de te apanhar. — Consegues imaginar os pontos altos da nossa vida comum? — Camilla tentou ser irónica sem
conseguir. — Vês-me em Nairobi, semanas a fio sozinha, a pensar se ele teria caído desesperadamente nos braços de alguma mulher que se atirou a ele, numa noite de luar no mato? — Pode ser que já se tenha emendado — disse Sarah. — Pode estar preparado para a grande paixão da vida dele. Que és definitivamente tu. O resto é de certeza para matar o tempo. Não significa nada. — Devias tentar escrever guiões para Hollywood — disse Camilla, causticamente. — Acho que ainda o amas — disse Sarah. — Caso contrário, não tinhas tanto medo de estar com ele. Mas não chegou qualquer resposta. Sarah virou-se e viu que Camilla tinha fechado os olhos e estava a fingir que dormia.
— Não aguento isto. Tinha amanhecido, no domingo, um dia de sol, azul e repleto de gorjeios de aves, e Sarah tinha entrado em pânico. Sentou-se a tremer na beira da cama, ainda de camisa de dormir. O seu rosto estava tenso e exibia olheiras escuras. — Conseguiste dormir alguma coisa? — perguntou Camilla. — Toma, põe isto nessas crateras debaixo dos olhos e veste-te. De certeza que o almoço com a família corre melhor se estiveres vestida. E toma o pequeno-almoço. Há-de acalmar-te. Era meio-dia quando ligaram da recepção do hotel a informar que Mr. Singh estava no átrio. — Oh, meu Deus — disse Sarah. — Nunca devia ter concordado com isto. Rabindrah estava com uma camisa às riscas com as mangas arregaçadas, calças informais bem brunidas e um casaco de safári. Parecia desencorajadoramente normal e relaxado. — Desculpa não ter aparecido ontem à noite — disse ele, beijando-a na face com lábios quentes. — Os discursos arrastaram-se e não consegui escapar. Sabias que os teus olhos são da cor de uma floresta na Primavera? Sentes-te bem? — Não — disse ela. — Por acaso, não. Estou nervosíssima. Aliás, acho que vou vomitar. — Foi mais ou menos assim que te sentiste quando visitámos os meus pais — disse ele. — Se a minha família continuar a ter este estranho efeito sobre ti, sou capaz de ter de acabar com as visitas. Entretanto, temos tempo para um desvio. — Fechou a porta do carro depois de ela entrar. — Há um sítio onde gosto de ir quando preciso de me acalmar. Vamos até lá se bem que, ao domingo, talvez esteja mais concorrido. Sobretudo famílias indianas numerosas, por sinal. Dez minutos mais tarde, tinha estacionado diante do portão do Arboreto de Nairobi. Levou-a pela mão para o meio da sua verdejante tranquilidade. À sua volta, as árvores e os arbustos formavam uma cortina protectora que os escondia do calor do dia e do ruído do trânsito nas avenidas principais para fora da cidade. Pouco depois, encontraram-se sozinhos e Rabindrah parou, pousando-lhe um dedo nos lábios para a silenciar. Murmurou-lhe ao ouvido, afagou-lhe o cabelo, beijou-lhe o pescoço, a garganta e a boca macia e redonda. — Pára — disse ela por fim, afastando-o, sorridente e ofegante. — Não me estás a acalmar nada. E estragaste-me o cabelo e o bâton e a roupa. — Amo-te — disse ele, voltando a enfiar as mãos no cabelo espesso dela. — Amo-te, Sarah Mackay, pequena rapariga irlandesa com um grande coração. Amo-te porque és bela e corajosa e tens uma profunda noção do bem. Basta lembrares-te disso quando estivermos com a minha família.
Agora vamos sentar-nos cinco minutos neste banco e pensar nisso. E depois vamos para casa da tia Kuldip saborear os excelentes cozinhados dela. A residência dos Singh era uma grande estrutura de betão, com uma varanda curva no primeiro andar e um telhado plano. Havia uma vedação de metal à roda da casa e as janelas estavam gradeadas no exterior. Toda a fachada parecia necessitada de pintura nova. — Cá estamos — disse Rabindrah, ficando surpreendido ao ver Sarah corar. — Que é? Que foi? Mas ela não podia contar-lhe que estava a lembrar-se da mãe, anos antes, a observar com uma certa reprovação que os indianos nunca se davam ao trabalho de tratar das fachadas das casas. Não teve tempo para se demorar na questão. Indar Singh tinha aparecido no caminho privado, de mão estendida, sorridente sob um turbante cor-de-rosa vivo. — Entre, entre — disse ele. — É muito bem-vinda em nossa casa, Sarah. Estamos muito felizes por vê-la. Como vai o Land Rover? E o antigo que foi reparado ainda anda? Espero bem que sim. Sarah foi conduzida para o interior fresco e sombrio da casa, impelida por soalhos encerados pela mão de Indar, penetrando num mar de cores, sons e aromas. O contraste com a casa dos pais de Rabindrah em Londres constituiu um choque, ao recordar a sala de estar despida e formal em Southwark, os silêncios pontuados pelo tiquetaque do relógio e o som da chave de Jasmer Singh na fechadura. Aqui, havia um remoinho de pessoas a tagarelar, com roupas, turbantes e jóias garridos. Lila foi a primeira a cumprimentá-la. — Bons olhos te vejam, Sarah — disse ela. — Já conheces a minha tia, Kuldip. Esta é a minha mãe e esta é a minha irmã. E estes são os meus irmãos mais novos, que são uns tolos. Meteram na mão de Sarah um copo de sumo de laranja enquanto ela apertava a mão a uma variedade confusa de pessoas cujo nome sabia que não ia memorizar. Os membros mais velhos da família estavam sentados em cadeiras e sofás estofados a veludo vermelho, encostados às paredes da espaçosa sala. Uma ventoinha de tecto criava uma corrente de ar fresco pela sala, em que pairava uma mistura de perfumes. As mães vigilantes observavam os filhos e as filhas, procurando ligações que talvez se revelassem convenientes. Os homens mais velhos tinham-se quase todos reunido num lado da sala, a discutir críquete, negócios e política. Alguns estavam com o traje tradicional punjabi, mas outros envergavam fatos ou calças informais com casacos. Todos usavam turbantes de vários estilos e cores. — Foi Miss Mackay que fez aquelas fotografias esplêndidas para o livro do Rabindrah — disse Kuldip, apresentando Sarah a uma senhora idosa, sentada um pouco à parte, numa poltrona de veludilho vermelho que lembrava um trono. — Esta é a minha mãe, Lakhbir Kaur Singh. A velha senhora ofereceu uma mão mole. Os seus braços roliços estavam carregados de pulseiras de ouro e ela inspeccionou Sarah com olhos de lince. — É a rapariga que vive no mato, não é? — Exacto — respondeu Sarah. — Perto de Isiolo. Estou a estudar os elefantes da região para uma organização científica. — Mas não é casada? — Não. Não sou casada. — Sozinha no mato, uma rapariga solteira. — A avó Singh abanou a cabeça. — Os tempos mudaram, minha querida. Seguiu-se um longo silêncio enquanto Sarah pensava numa resposta. Passou os olhos pela sala, mas não viu sinais de Rabindrah.
— Anda, o almoço está pronto. — Lila veio em seu socorro. — Espero que estejas com fome. Fala-me da Camilla e de como tem passado. Foi pena não ter vindo contigo hoje. — Pois foi — disse Sarah, logo se arrependendo das palavras, receosa de que pudessem ser consideradas rudes. — Li nos jornais que voltou para Nairobi. Espero bem que organize outro desfile de moda. Foi tão divertido. O Rabindrah contou-me o que aconteceu em Nyeri. Olha, aí vem ele com a tia Kuldip para se ocupar de ti. Na sala de jantar, tinha sido servido um almoço tipo bufete. Andavam criados africanos numa correria dentro e fora da cozinha, com pratos de espinafres e queijo cremoso, cenouras, ervilhas, iogurte, dal e lentilhas, servidos com chapattis e uma salada de cebolas com os tomates mais doces que Sarah alguma vez tinha provado. Quase toda a comida era vegetariana, embora ela tivesse reparado que alguns dos homens se tinham servido de um caril de frango que tinha um aspecto e um aroma deliciosos. Mas não viu nenhuma das mulheres comê-lo e decidiu cingir-se aos pratos de legumes para não dar nenhum passo em falso. Um prato de arroz amarelo, que ela pensou ser um acompanhamento para o caril, estava afinal condimentado com amêndoas e uvas-passas e era bastante doce. Havia sobremesas feitas com um tipo de massa embebida em xarope e fritas, mas ela achou-as enjoativas e um pouco pesadas. Uma hora depois, estava a olhar desesperadamente à sua volta, tentando arranjar maneira de se esquivar a mais pratos sem parecer indelicada. Rabindrah ia e vinha, apresentando-a a mais pessoas cujos nomes não era capaz de captar. A hospitalidade era opressiva e o seu constante sorriso estava a causar-lhe dores no maxilar. Dava por si a responder a uma torrente de perguntas simpáticas sobre o seu trabalho e a história da família no Quénia ou à procura de qualquer coisa com que pudesse preencher um demorado e constrangedor silêncio. Decorridas duas horas, estava com vontade de se enroscar num lugar escuro e nunca mais falar com ninguém. Doía-lhe a cabeça e pensou nos grandes espaços abertos e na tranquilidade do mato, interrogando-se quando seria possível partir. Mas Rabindrah estava a conversar com um pequeno grupo de homens mais velhos, do lado oposto da sala, e não conseguiu captar-lhe a atenção. — Está um pouco quente aqui, não acha? — Kuldip estava a sorrir, pegando no prato de Sarah. — Venha até lá fora que eu mostro-lhe o meu roseiral. Não sou nenhuma especialista, mas já ganhei alguns prémios e sou uma entusiasta. O amplo jardim ficava nas traseiras da casa e Sarah ficou espantada com a profusão de rosas em canteiros perfeitos e com a gama de cores e perfumes que constituíam a grande paixão de Kuldip. — É extraordinário — disse ela. — A minha mãe adora jardinagem. Tinha muito orgulho no jardim que fez em Mombaça e continua a ter no que agora criou na Irlanda. Mas nunca se imaginou capaz de conceber nada assim. — É aqui que passo uma grande parte do meu dia — disse Kuldip. — Sendo uma esposa sique, sou obrigada a passar grande parte do dia em casa. Já sabe como são os maridos… gostam de uma rotina certa, das refeições à mesma hora e de tudo em ordem em casa. São todos iguais, estes homens, seja qual for a idade. — Acho que a minha mãe era capaz de dizer a mesma coisa. — Sarah percebeu instantaneamente que esta conversa tinha uma finalidade. Pressionou as mãos transpiradas contra a saia e rezou por orientação. — O Rabindrah é muito bom rapaz. — O sorriso de Kuldip era tão doce como os seus pudins de
leite. — Tem sido um tanto estouvado, como todos os jovens da sua geração. Sempre inquieto, a querer experimentar tudo, a namoriscar com as raparigas estrangeiras. Claro, passou muito tempo em Inglaterra, onde as coisas são diferentes e isso trouxe outras influências à vida dele. Mas agora deixou de andar com a hospedeira sueca e as raparigas italianas e francesas. Finalmente assentou e está pronto a adoptar a tradição da família. Estamos muito felizes com isso. — Acredito que sim — disse Sarah. — Imagino que os seus pais continuam com esperança de que um dia destes volte para a Irlanda? Devem afligir-se por viver tão longe de casa. — No fundo, já não considero a Irlanda a minha casa — disse Sarah. — Cresci aqui e é aqui que quero ficar. — Mas a sua família deve ter esperança de que se case em breve com um bom marido e lhes dê lindos netos, não? Não quer certamente viver muito mais tempo sozinha, nestes lugares agrestes e perigosos. Sarah abriu a boca para responder, mas Kuldip tinha-se afastado com uma leve exclamação de surpresa. — Ah, aqui está a Anoop — disse ela. — Também devia estar a precisar de uma lufada de ar fresco. Deixo-a nas mãos dela, podem voltar juntas para dentro. Afastou-se em largos passos, virando a cabeça para lhes lançar um último e gracioso sorriso. Exactamente como Ava Gardner, pensou Sarah, com o longo cabelo preto e os lábios carnudos a fazer beicinho. — Sou uma velha amiga do Rabindrah — disse Anoop, estendendo a mão. — Conhecemo-nos desde crianças. As nossas famílias sempre se deram muito bem e fizeram muitas coisas juntas. O Rabindrah mostrou-me um esboço do livro dele e algumas das suas fotografias. Parece um livro esplêndido. — Obrigada — disse Sarah. — Gostei muito de trabalhar com ele. — Sim. É muito inteligente e merece ter sucesso. Estamos todos muito felizes por ele ter voltado para cá em lugar de ficar em Inglaterra. — Sim, acho que foi uma boa decisão. — Passámos algum tempo juntos em Inglaterra, sabe? Estudei algum tempo em Londres, quando ele lá estava, e fiquei alojada em casa dos pais dele durante uma parte desse período. — A sua família ainda está no Quénia? — Sarah sentia curiosidade a respeito da rapariga. Parecia ter vinte e poucos anos. Embora fosse um pouco anafada, a cor do seu rosto era pálida e era atraente, bonita até. Os seus olhos amendoados eram belíssimos e muito escuros, com longas pestanas, e possuía mãos e pés delicados e uma bela figura. Estava com o tradicional salwaar kameez e joalharia discreta mas bonita. — Ah, deve ter-lhes sido apresentada — disse Anoop. — Mas quando se é apresentado a vinte pessoas ao mesmo tempo é impossível lembrá-las todas. A minha mãe é a melhor amiga da Kuldip. Fazem tudo juntas. Decidem o que acontece em casa, vão ao templo, fazem compras e trocam receitas, combinam os casamentos dos filhos. Sabe como é. — Nem por isso — disse Sarah. Uma ponta de inquietação instalou-se na sua consciência. — É casada? — Eu? — A rapariga fez um sorriso coquete. — Ainda não. Só regressei há meses. — Que é que estudava em Inglaterra? — perguntou Sarah. — Tenciona trabalhar aqui em Nairobi,
agora que está de volta? — Estudei Economia — respondeu Anoop. — Mas não sei se quero arranjar emprego. Depende. — Baixou a voz para fazer uma confidência. — A tia Kuldip está optimista, compreende? E a minha mãe também. Sobretudo agora que o Rabindrah vai ganhar dinheiro com o livro dele. Pode ter assim uma boa base e nós sentimo-nos todos muito gratos à Sarah por tê-lo ajudado nisso. Não admira que o Indar e a Kuldip a tenham recebido tão bem hoje. Pessoalmente ainda não decidi se vou ficar a trabalhar em Nairobi, embora tenha a certeza de que um marido moderno não se importa que eu tenha um emprego, mas veremos. — Bem, espero que lhe corra tudo bem. — Sarah sentia a cabeça a andar à roda. — Gostei muito de conversar consigo mas agora acho melhor voltar para dentro. Na sala de estar, Rabindrah estava a falar com o tio e ela dirigiu-se imediatamente para eles, já não querendo saber que a considerassem mal-educada por interromper a conversa. — Peço desculpa por interromper — disse ela. — Mas infelizmente tenho de me ir embora. Tenho um compromisso logo à noite com uma pessoa de uma das organizações para a vida selvagem. São horas de partir. Viu Rabindrah franzir a testa por momentos antes de acenar com a cabeça e lhe colocar a mão sob o cotovelo. — Vamos lá então — disse ele. — Vamos despedir-nos da minha tia e eu levo-te ao Norfolk. Tinha-me esquecido completamente desse teu compromisso. No carro, Sarah não sentiu confiança em si mesma para falar e ele não lhe fez perguntas. Passaram alguns momentos antes de ela se dar conta de que não iam na direcção do centro da cidade. — Para onde é que vamos? — perguntou num fio de voz. — Até Limuru, tomar um chá no hotel. O jardim é muito bonito e podemos contemplar as plantações de chá numa tranquilidade total. Ninguém nos interrompe lá. O ar estava consideravelmente mais fresco, ao atravessarem os relvados verdejantes, escolhendo uma mesa escondida atrás de uma plantação de fúcsias. — Que é que te incomodou? — perguntou Rabindrah. Como ela não respondeu, pegou-lhe na mão e beijou-a no interior do pulso e nos dedos. — Não te lembraste, no meio daquela gente toda, de que te amo? — Nunca me hão-de aceitar. — As palavras saíram num impulso e retirou a mão para limpar as primeiras lágrimas. — A tua tia arranjou maneira de me apresentar a rapariga que escolheu para ti. E eu entendi a mensagem com toda a clareza. Ele lançou a cabeça para trás e soltou uma sonora gargalhada. — Ela nunca desiste — disse ele. — Mas não passa de uma brincadeira entre nós e, lá no fundo, ela sabe muito bem. — Que diabo, não te rias de mim — disse ela, levantando-se tão repentinamente que a cadeira caiu na relva. — Já devias saber que ia ser assim. Que tinham percebido que a nossa relação era mais do que trabalho. E deixaste-me por minha conta enquanto representavas o papel do sobrinho charmoso, do jornalista inteligente, do herói conquistador que volta ao seio do clã. E agora ris-te da minha humilhação e chamas-lhe amor. Como te atreves? Como te atreves a tratar-me assim? — Sarah! Lamento muito. A sério. Por favor. Não me apercebi… — Não, pois não — disse ela. — Porque as nossas culturas são demasiado diferentes. Levasteme lá e largaste-me como um alvo. Não acredito que tenhas pensado que a tua tia e o teu tio me
aceitariam. Eu não sou uma namorada sique tradicional da Idade das Trevas. Sou uma cientista irlandesa branca e uma fotógrafa excelente com vida própria e uma carreira que adoro e tenciono perseguir. Calou-se e baixou os olhos para ele antes de continuar mais calmamente. — Não adianta. Eles têm razão. A tua tia, a minha mãe, toda a gente à nossa volta. A nossa relação nunca daria certo. Já tive sofrimento e contrariedades que cheguem na minha vida e não aguento mais. — Voltou a sentarse e alongou os olhos sobre as verdes plantações de chá e a beleza dourada do sol poente. — Quero paz — disse ela por fim. — Não sou capaz de lidar com mais desconfiança e infelicidade. Quero uma vida normal. Continuaram sentados em silêncio, enquanto um empregado lhes servia chá, e Rabindrah virou-se então para ela. — Amas-me? — perguntou ele. — Nunca chegaste a dizer que me amavas. — Ela baixou a cabeça, não querendo responder, mas ele estava determinado em arrancar-lhe as palavras à força. — Amas-me, Sarah Mackay? — perguntou numa voz muito baixa. — Amo. — Então eu dou-te toda a paz de que precisas. Vou criá-la para ti e à tua volta e vou proteger-te e nunca mais vou sair da tua beira quando precisares de mim. Nunca mais. Prometo. Ela abanou a cabeça, receosa de falar. A tarde tinha arrefecido e os primeiros farrapos de nevoeiro tinham começado a pairar sobre as filas perfeitas das plantações de chá. Terminaram o chá em silêncio e depois Rabindrah levantou-se. — Eu levo-te ao Norfolk — disse ele. — Não quero ir para o Norfolk. — Sarah não estava preparada para enfrentar perguntas sobre o dia. — Não aguento outra investida de perguntas, nem das minhas melhores amigas. — Ficas comigo? — Rabindrah pegou-lhe na mão. — Se fico contigo? Que queres dizer? Onde? — Passas a noite aqui comigo? Se houver um quarto? — O seu coração batia aceleradamente e tinha a boca seca. Sentia um medo desesperado de perdê-la. — Podíamos conversar calmamente, jantar juntos, saborear a companhia um do outro. Nunca saboreámos verdadeiramente a companhia um do outro e fazia-nos bem. — Mas que é que iam dizer na recepção? Isto é… — Estava confusa, assustada com o passo que daria, se passassem a noite no hotel. — Eu conheço muito bem a dona, Mrs. Lloyd. O marido é jornalista, trabalhamos juntos. E venho aqui com uma certa frequência. — Trouxeste para aqui outras raparigas. — Sarah sentiu-se agoniada. — Passaste aqui a noite com outras mulheres. — Não. — Rabindrah pegou-lhe no braço e sacudiu-a. — Não. Juro que nunca te embaraçaria dessa forma. Juro que nunca fiz isso. Meu Deus, Sarah, não podes acreditar que eu te poria nessa posição. — Estava agora irritado. Seguiu-se um silêncio longo e tenso entre eles e depois Sarah respirou fundo. — É melhor ires ver se têm quarto — disse ela. — Se bem que não saiba como me vou arranjar sem escova dos dentes. — Eu tenho uma pequena mala que trago sempre no porta-bagagem do carro — disse Rabindrah. — Para o caso de ser inesperadamente despachado para algum lado em reportagem. Podes usar a
minha. É nova e é tua.
O quarto tinha uma lareira, cortinas de chita e vigas no tecto, e dava para o relvado e para a extensão das plantações de chá na encosta acentuada da colina por baixo do hotel. Depois de o fogo ser ateado, sentaram-se em duas poltronas de cada lado da lareira. Sarah fixou os olhos nas chamas laranja e púrpura. Já estava arrependida da decisão, pensando como podia explicar as suas acções a Hannah e a Camilla. Foi Rabindrah o primeiro a levantar-se. — Queres ligar à Hannah ou à Camilla? Dizer-lhes onde estás? — Não — respondeu Sarah. — Sou senhora da minha vida. Não tenho de dar desculpas nem explicar nada a nenhuma delas. — Vejo que não estás à vontade — disse Rabindrah. — Mas não queria que fosses para junto das tuas amigas e esquecesses o dia de hoje. Ou que me esquecesses a mim. Amo-te, Sarah. Não te posso perder e não há nada que não faça para te fazer feliz. Estendeu-lhe a mão e ela levantou-se e deixou-se abraçar, apanhada numa enxurrada de contradições mas incapaz de lhe resistir. Quando ele a beijou na boca com profunda ternura, sentiu uma onda de emoção e desejo que a levou como uma sonâmbula para a cama. Deitaram-se lado a lado, beijando-se e sussurrando meiguices. Passado algum tempo, ela começou a descrever os seus medos, à medida que as recordações desse dia se sucediam no seu espírito e se traduziam em palavras. — Não sabia que fazer com todo o sofrimento que arrastava comigo — disse ela. — Quando o Piet foi morto, também quis morrer porque a minha vida era um martírio. Uma torrente constante de pesadelos, quer estivesse acordada ou a dormir. E depois conheci-te e fiquei cheia de medo. De esquecer o Piet. Mas há um limite para a angústia e compaixão que se pode aguentar e eu sei que ele havia de querer que eu voltasse a ser feliz. — Farei tudo ao meu alcance para te fazer feliz — disse Rabindrah. — E o nosso amor há-de vencer tudo o que nos aparecer pelo caminho. — Mas não quero que nos tornemos num campo de batalha entre as nossas famílias e os nossos amigos — disse ela. — Amo os meus pais e somos uma família unida. Querem proteger-me de um desgosto, de cometer um erro ou de me lançar numa coisa que parece ser um risco enorme. — Por um momento deixou-o e dirigiu-se à cadeira, onde tinha a carteira, da qual tirou a carta dos pais. — Lê isto — disse ela. — Porque eles pensam da mesma maneira que a tua família. E têm razão em relação ao futuro. Agora compreendo isso. Rabindrah leu as folhas sem comentar e pousou-as. — Amo-te — disse ele por fim. — Deixa-me mostrar-te a intensidade do meu amor. O que existe entre nós é exclusivamente connosco e só nós podemos decidir o que devemos fazer. Ela olhou para ele e a mensagem nos seus olhos silenciou-a. Ele desabotoou-lhe a camisa e beijou-lhe os seios, fazendo-a ofegar de prazer. Mas, quando começou a desapertar-lhe a saia, ela retraiu-se com uma expressão perturbada. — Ainda é o Piet? — perguntou ele, rolando de costas e desviando os olhos dela para olhar para o tecto e tentar acalmar o seu desejo. — Não. É outro obstáculo estúpido no nosso caminho. No meu caminho. E não sei explicá-lo logicamente, excepto dizer que tenho uma educação católica e...
— E não queres que eu faça amor contigo enquanto não formos marido e mulher — disse ele, tocando-lhe nos seios e beijando-a mais uma vez na boca. — Não sei se sabes, mas isso não é exclusivo dos católicos. Consegues imaginar o que os meus pais diriam, se uma das minhas irmãs tivesse deixado o marido fazer amor com ela antes de se casarem no templo? O que eu teria dito, hipócrita como sou? Ela viu-se obrigada a rir, deixando que ele lhe pousasse a cabeça sobre o peito e a afagasse tranquilamente, sem se moverem mais. — Sarah? — Sim? — Casas-te comigo? — Se me caso contigo? — Casas-te comigo, para o melhor e para o pior, apesar de todas as nossas diferenças? Casas-te comigo, Sarah? — Sim — disse ela — Caso.
CAPÍTULO 21
Nairobi, Julho de 1967 diabo é que ela se meteu? — Os olhos de Hannah estavam arregalados de alarme. — –O nde Que achas que devemos fazer? Ligamos para a polícia ou para os hospitais ou quê? — Acho que isso seria um erro. — Lars mexeu o café. — Se tivesse sofrido um acidente, já teríamos sido informados. — Pode estar em coma — disse Hannah. — Tenho a certeza de que está em algum lado com o Rabindrah — disse Camilla. — Caso contrário, ele estaria no escritório. Mas disseram-me que ele não tinha aparecido esta manhã. — Estás a dizer que passou a noite com ele? Onde? Tanto quanto sei, ele vive em casa do tio. — Hannah estava escandalizada. — Ela não fazia uma coisa dessas. Nunca. — Estão perdidamente apaixonados — objectou Camilla. — Temos de aceitar isso. Ainda há dois dias concordaste que ela devia ter um romance com ele. Esquecer a cautela, a religião e a culpa e optar por sexo apaixonado, foi o que dissemos. Lars soltou um resmungo claramente reprovador. — Ela pode sair magoada desta história — disse ele. — Não é uma situação fácil e a Sarah não é do género de ter ligações passageiras. — Pois, mas ela sabe que voltamos para Langani esta manhã — disse Hannah, furiosa. — Não podemos passar o dia todo à espera dela. Já passa das onze e dissemos à minha mãe que voltávamos para almoçar. — Vão vocês então — disse Camilla. — Eu espero para a levar. Mas só será na quarta-feira, porque amanhã vou com o meu pai no voo de helicóptero. Fiquem descansados, ela vai comigo. — Sentia-me melhor se soubesse que ela está bem — disse Hannah. — Se soubesse onde está. — A ideia da Camilla é boa — disse Lars, pondo-se em pé. — Vamos, Han. Convém ir andando. E não te preocupes. Tenho a impressão de que a Sarah não corre perigo nenhum. — Vemo-nos dentro de dois dias. — Camilla abraçou a amiga. — Começamos pelo corte dos novos moldes. Entretanto, mais logo vou dar uma volta pelo mercado a ver se descubro novas guarnições. Estou morta por começar. Dirigiu-se novamente para o chalé e decidiu passar a manhã na piscina. Quando estava a tirar um biquíni da mala, o telefone tocou. — Estou no átrio — disse Anthony. — Não quero estar contigo. — Podias tomar um café comigo. No Lord Delamere — disse ele. — Já tomei o meu café da manhã. Não preciso nem quero mais. — Então dou aí um salto ao chalé. — Eu vou ter contigo ao Lord Delamere — apressou-se ela a dizer. Sentaram-se em silêncio. Ele acendeu-lhe o cigarro e pediu limonada fresca para ela e café para si próprio. A leve pulsação na cavidade da garganta de Camilla foi visível quando ele pronunciou o
nome dela. — Camilla. — Pegou-lhe na mão. Ela sentiu um arrebatamento. A excitação tornou a sua pele extraordinariamente sensível ao contacto dos dedos dele. Sentiu-se tonta e imponderável. As pernas pareciam estar a derreter e viuse presa entre uma expectativa alvoroçada e o medo. Já tinha errado duas vezes antes e não podia errar outra vez. Em Londres, tinha controlo sobre a sua vida, uma carreira de deslumbrante sucesso. E, apesar do facto de terem estado muito pouco tempo juntos, tinha a certeza de que Edward continuava a amá-la e a desejá-la. Em breve, deixaria de trabalhar como modelo, excepto em ocasiões especiais, e consolidaria o seu modesto êxito inicial no teatro e a sua reputação como uma estilista de qualidade. Seria uma loucura trocar o seu crescente sentido de segurança por outra tentativa com Anthony. Mas o problema era que sabia que o amava. — Camilla. — Anthony inclinou-se mais, o seu bafo queimando, como uma chama, a consciência dela. — Fica comigo. Pertencemos um ao outro. Não te vás embora, Camilla. Vais viver a vida errada se me abandonares. — Já passámos por isto antes — disse ela. — Além disso, ontem à noite vi que não te falta entretenimento. — Não sejas absurda — disse ele. — Essa rapariga é agente de viagens. A nossa relação só tem a ver com reservas de safáris. Anthony hesitou. Charlene estava hospedada na casa dele em Karen. Tinha ficado mais três dias em Nairobi, para definir itinerários para uma nova brochura sobre os safáris equestres de Anthony e uma série de anúncios ao programa para revistas. Ele estava satisfeito com o acordo que tinham estabelecido. Aumentaria as receitas da empresa e abrir-lhe-ia um mercado lucrativo nos Estados Unidos. Mas o Pan Afric Hotel não pôde prolongar a estadia dela. Havia uma conferência internacional em Nairobi e estava superlotado. Num impulso, Anthony tinha-lhe dito que podia ficar no seu quarto de hóspedes até partir. Ela era a sua melhor agente e era mais simples do que pôr-se ao telefone a tentar arranjar-lhe outro hotel. Pensou em explicar isto, mas decidiu imediatamente que não. O diabo da rapariga tinha sido muito explícita, na noite anterior, sobre o que sentia por ele e, se admitisse que Charlene estava em sua casa, Camilla tiraria de certeza as conclusões erradas. De qualquer modo, daí a dois dias ela ia-se embora e não valia a pena empolar o assunto. — Nós amamo-nos um ao outro — disse ele. — Tu sabes e eu sei. Nenhum de nós há-de voltar a amar ninguém assim. Fomos feitos um para o outro. Não podes negar. Ela levantou-se, deixando a bebida por tocar. — O sofrimento é demasiado — disse ela, consciente de que a sua determinação começava a esbater-se. Sentia a inescapável força da necessidade que sentiam um do outro e sabia que, se não se afastasse agora, seria a sua perdição. — Estás com medo — disse ele. — Desiludi-te no passado, mas nunca mais te hei-de desiludir. Amo-te, Camilla. Ela baixou os olhos para ele, grandes olhos repletos de incerteza. — Camilla. — Outra voz quebrou o seu momento de indecisão. Sarah estava a poucos passos, os olhos verdes e brilhantes a transbordar de doçura, a boca revirada num sorriso pleno de assombro. — Onde é que estiveste? Ficámos preocupados contigo ontem à noite — disse Camilla. — O Lars e a Hannah partiram para Langani, mas eu posso dar-te boleia na quarta-feira. — O Rabindrah leva-me hoje à tarde — disse Sarah, no momento em que ele apareceu ao lado
dela, passando-lhe o braço pelos ombros. — Queremos dizer-te uma coisa. — Olhou para ele e respirou fundo. — Vamos casar-nos. Camilla fixou-a, sem fala, o seu espírito num turbilhão de ideias. A sua primeira reacção foi de espanto mas logo se seguiu uma ponta de alarme. Mentalmente, imaginou o que Hannah diria e a consternação dos pais de Sarah. Uma sombra de ciúme agitou-se-lhe no estômago no momento em que Anthony se levantou de um salto, estendendo a mão a Rabindrah antes de cingir Sarah num abraço entusiástico. — Grande notícia — disse ele. — Que é que achas, Camilla? — Apanhou-me completamente de surpresa — disse ela. — Espantoso. Parabéns aos dois. — Tenho de ir buscar as minhas coisas ao quarto — disse Sarah, beijando Rabindrah ao de leve na cara. — Fica com o Anthony. Eu não me demoro. — Eu vou contigo — disse Camilla e atravessaram juntas o átrio em direcção ao pátio. — Ficaste chocada — disse Sarah quando entraram no chalé. O seu coração transbordava de felicidade, mas a reacção de Camilla tinha-a decepcionado. — Foi tão rápido — disse Camilla. — É fantástico teres-te apaixonado de novo e isso enche-me de alegria. Juro. Mas o casamento é um passo gigantesco. Não seria mais prudente esperares mais algum tempo? E não posso deixar de pensar no Raphael e na Betty e também na Hannah. Vão precisar de tempo para se adaptar à ideia. — E se pensasses em mim? — Os olhos de Sarah chispavam. — Depois de tudo o que passámos, das mortes e da tristeza, porque é que não podemos todos regozijar-nos com o amor e a felicidade? Não é o mais importante? Porque é que não te sentes feliz por mim? — E sinto — disse Camilla, abraçando Sarah. — Mas também estou um pouco assustada. — Porque não tens coragem de te entregar incondicionalmente à felicidade — disse Sarah, metendo a roupa no saco de lona e puxando furiosamente pelo fecho. — Preferes projectar as tuas próprias dúvidas sobre mim em lugar de veres a minha sorte por ter encontrado o Rabindrah. Em lugar de ficares feliz pelos dois. — Não estás a ser justa — disse Camilla. — Só quero que sejas prudente. Que tenhas a certeza. Que não saias magoada. — Ele nunca me há-de magoar — disse Sarah. — Porque eu acredito nele. Amamo-nos e vamos passar o resto da nossa vida juntos. Só tenho pena de que não tenhas confiança suficiente em ti própria ou noutro ser humano para tornares a tua vida tão rica como a minha vai ser. Mas quem fica a perder és tu, não sou eu. — Sarah… — Até um dia destes — disse Sarah, pegando no saco e encaminhando-se para a porta. — Se tiveres o bom senso e a coragem de ficar por aqui, que é o teu lugar. Tens de deixar de passar superficialmente pela vida das outras pessoas, Camilla. É tempo de dares uma oportunidade ao amor e de tentares acreditar em mais qualquer coisa do que o instinto de sobrevivência. Camilla sentou-se na borda da cama, as mãos agarradas à armação e os ombros a tremer, chorando perante a sua própria estupidez. Momentos depois, levantou-se e foi à casa de banho molhar a cara com água fria e retocar a maquilhagem. Pondo um par de óculos de sol para encobrir os olhos vermelhos, foi à procura de Anthony, mas ele tinha partido. Havia uma mensagem para ela na recepção mas era do pai. Estava com uma agenda totalmente preenchida no escritório mas queria saber se ela gostaria de ficar em casa dele enquanto estava em Nairobi. Se telefonasse, mandaria
Saidi buscá-la. — Vou deixar o hotel — disse ela ao recepcionista. — Pode mandar alguém buscar a minha mala dentro de meia hora. No chalé, ligou a George. — Quero dar uma volta pelo mercado e pelo bazar indiano antes de ir para tua casa — disse ela. — Óptimo. O Saidi leva-te onde quiseres — disse George. — Encontramo-nos em casa por volta das cinco. Camilla passou a tarde a vasculhar nas lojas e a comprar missangas, lantejoulas e fita e uma selecção de pedras semipreciosas e prata que podia usar nas novas criações. Quando finalmente chegou a casa do pai, sentiu-se aliviada por escapar à pressão das multidões e ao calor da tarde nas ruas citadinas. Depois de tomar um duche, sentou-se no alpendre com o jornal, mas não conseguia concentrar-se. Interrogou-se sobre o que teria acontecido a Sarah e como Hannah reagiria à notícia do noivado. Por fim, pegou no telefone e ligou para Langani. — Ela não esteve aqui — disse Hannah. — A que horas saiu de Nairobi? Porque é que não vem contigo? Que transporte é que arranjou? — Foi com o Rabindrah. Hannah, eles estão noivos. Vão casar-se. — Noivos? — O choque de Hannah foi audível na linha. — Oh, meu Deus! Não estava a contar com isso. — Ouve, Han, eu também não reagi muito bem à notícia — disse Camilla. — Ela saiu daqui zangada comigo. Temos de usar de mais tacto. De sensibilidade. Acima de tudo, mostrar-lhe que nos sentimos felizes por ela. — Sentimos? — Eles amam-se — disse Camilla. — Ela está segura de que o amor deles há-de resistir a tudo e imagino que ele pensa o mesmo. Acho que não devemos minar essa convicção. — Bem, obrigada pelo aviso — disse Hannah. — E tu, quando é que vens? — Amanhã vou fazer esse voo dos rinocerontes e vou para aí na quarta. Telefono-te antes de partir. E vais ficar espantada com as coisas que encontrei no mercado hoje. Camilla desligou e ficou a olhar para o telefone por alguns momentos. Em seguida, pegou no auscultador e voltou a marcar. Como ninguém atendeu em casa de Anthony, ela ligou-lhe para o escritório. Sentindo-se sem forças ao ouvir a voz dele na linha, sentou-se num banco. — Voltei à tua procura esta manhã mas tinhas desaparecido — disse ela. — Só tenho três dias em Nairobi antes do próximo safári. — O tom de Anthony foi defensivo. — Um dos meus camiões está com problemas e tenho de conseguir que fique reparado hoje. E tenho um monte de papelada na secretária. — Sim — disse ela. — Eu sei que deves estar ocupado. Mas pensei que podíamos… enfim, passar algum tempo juntos. Ele não respondeu de imediato e o silêncio na linha dilatou-se, causando-lhe ansiedade. Puxou pelo colar de missangas ao pescoço e o fio partiu, as contas espalhando-se pelo chão e rolando para debaixo da mobília. — Merda — disse ela. — Acabo de partir o colar. Ouve, vou passar duas noites em casa do meu pai. Já sabes onde me podes encontrar. — Sim — disse ele, amaldiçoando o facto de não lhe ter falado da hóspede que tinha em casa e
do facto de ter de passar o serão com ela. Mas dentro de dois dias a rapariga ia-se embora e agora havia qualquer coisa na voz de Camilla que lhe transmitia uma onda de esperança. Ela tinha-lhe telefonado. Queria estar com ele. Agora tinha de ter o cuidado de não a pressionar. — Amanhã à noite ligo-te — disse ele. — A saber como correu o salvamento dos rinocerontes. Salaams ao George. Ela pousou o auscultador e pôs-se de gatas à procura das missangas. Mas o desânimo tinha sido terrível e sentou-se de pernas cruzadas, sentindo-se infeliz e à beira das lágrimas. Não era a resposta que tinha esperado. Se ao menos tivesse a coragem de lhe dizer que o amava, de fazer esse esforço de confiança que os unisse de novo. Passou o resto do dia inquieta e, depois de um jantar sossegado com George, foi-se deitar, usando a desculpa da partida de manhã cedo para não se demorar mais. Quando adormeceu, viu Anthony em sonhos.
Rabindrah tinha conduzido depressa na estrada para norte, com a ideia de chegar a Langani ao princípio da tarde para terem hipótese de estar em Buffalo Springs antes de anoitecer. — Não estejas preocupada — disse ele a Sarah. — Têm de se habituar à ideia. Vai levar algum tempo. Tu tens sido a pedra angular da amizade entre as três e agora deste um passo que não te é característico. Surpreendeste toda a gente. Precisam de tempo para se adaptar. — Não percebo porque é que precisam de tempo para se adaptar — disse Sarah. — A Camilla normalmente não demonstra o tipo de preconceito e medo que a Hannah herdou do lado africânder da família dela. E, se a Camilla teve aquela reacção, imagina como não será em Langani. — Nós aguentamos — disse ele. — Não — disse Sarah. — Acho que nem devemos tentar. Olha, estamos quase a chegar a Nyeri. Vamos fazer uma visita ao padre Bidoli na missão. Ele saiu ontem do hospital, porque fica muito melhor com as enfermeiras na missão de Kagumo. Podemos ir só cumprimentá-lo e ir directamente para Buffalo Springs. Posso ir buscar as minhas coisas a Langani noutra altura. — Na minha opinião, devias falar com a Hannah — disse ele. — Dar-lhe a notícia. Não é nada de que devas ter medo ou envergonhar-te. — Lá estás tu! — exclamou ela. — Estás a usar as palavras «medo» e «vergonha» em relação à coisa mais bela que alguma vez nos há-de acontecer. Não faz sentido e não podemos deixar que os outros nos façam pensar assim. — Pode ser esse o preço que tens a pagar por te casares com um pagão de pele escura — disse ele, sorrindo-lhe. — Por adoptares o título de «Mrs. Singh», não é? — Vamos parar em Kagumo — disse ela. — E se for demasiado tarde para continuar para Isiolo e Buffalo Springs, ficamos aqui no Outspan. — Ai, minha Nossa Senhora — entoou ele, no seu exagerado sotaque hindi. — Agora estás a deixar um rasto de reservas de hotel escandalosas por todo o país e, mais cedo ou mais tarde, vais ter de o admitir, acredita. — E eu estou a dizer-te que tenho uma razão para ir agora a Kagumo. Tenho um plano que há-de compor as coisas — disse ela, inclinando-se para o beijar na cara. — Vira aqui e confia em mim. O padre Bidoli estava instalado numa sala arejada, com vista sobre a horta cercada por uma fila de árvores-do-fogo cujas flores escarlates flamejavam sob o sol da tarde. Ainda estava fraco e tinha de fazer um esforço para falar, mas deu as boas-vindas a Rabindrah com um aceno de cabeça
e pegou nas mãos de Sarah com um sorriso beatífico. — Estão com um ar feliz, meus filhos — disse ele, dirigindo-se a Sarah. — Que é que estão a fazer aqui em Nyeri? — Viemos visitá-lo — disse ela, sentando-se ao seu lado. — Estava ansiosa por confirmar que estava a registar melhoras. E porque lhe quero pedir um favor. Tirou a carta dos pais do bolso e passou-lhe os óculos que estavam pousados sobre um livro de orações ao seu lado. Ele olhou para ela com os seus olhos mortiços e aguados e voltou a sorrir. Depois começou a ler, passando concentrada e lentamente as páginas, sem levantar os olhos nem fazer comentários antes de terminar. — A família do Rabindrah tem os mesmos receios e objecções — disse ela. — E os meus amigos mais chegados também. Como o senhor padre disse. Mas ontem ele pediu-me em casamento e eu aceitei. — São os dois jovens e fortes — disse ele. — E se se amam um ao outro, aos olhos de Deus, a vossa vida em comum e a vossa união serão abençoadas. Tenho a certeza disso e é evidente que se passa o mesmo convosco. E, com o tempo, as vossas famílias e amigos acabarão por compreender que estão talhados um para o outro e haverá um casamento de alma e espírito em que todos participarão. — Não — disse Sarah. — Não queremos tentar convencer ninguém a aceitar o nosso amor. A acreditar em nós. E não podemos sujeitar-nos a uma cerimónia maculada pelas suspeitas e pelas dúvidas dos outros. O nosso dia de núpcias é nosso. Será o dia mais memorável das nossas vidas, o dia em que começamos juntos a consolidar o nosso amor e a construir uma família. Não pode haver sombras que entristeçam esse dia. E por isso… — Fez uma pausa. — E por isso? — O padre Bidoli tinha juntado os dedos em pirâmide. — E por isso queríamos que nos casasse — disse Rabindrah, com uma expressão de deliciada surpresa, compreendendo a ideia de Sarah. — Meus queridos filhos, dar-me-ia muita felicidade casá-los. Se têm a certeza de que é aquilo que desejam. — Virou-se para Sarah, com um ar grave. — Se estão convictos de que é o melhor procedimento. — É o melhor procedimento — disse ela. — Nenhum dos dois tem dúvidas. — Nesse caso, vamos já publicar os banhos hoje e cumprir as restantes prescrições. E eu tenho de falar com este jovem sobre a necessidade de lhe permitir viver de acordo com a sua fé e de criarem os vossos filhos no catolicismo. — Então fale com ele agora — disse Sarah, inclinando-se e pegando na mão do padre. O padre Bidoli virou-se para Rabindrah. — Vejo que se amam um ao outro. Mas antes de falarmos sobre o sacramento do matrimónio, tenho de pedir-lhe que faça uma promessa solene. — Sim — disse Rabindrah —, a Sarah disse-me que seria necessário. — Promete que a deixará praticar a sua fé e criar os seus filhos nessa mesma fé, apesar das pressões a que a sua família o possa sujeitar? — Prometo que farei tudo para que ela seja feliz, padre Bidoli — respondeu Rabindrah. — Tem a minha palavra de que nunca me oporei à fé dela e de que os nossos filhos podem ser criados de acordo com as crenças da Igreja dela. O padre fixou o rapaz em silêncio, durante vários minutos, e Rabindrah devolveu o olhar, sereno
e calado. — Deixem-me então tornar claro aquilo que pretendem de mim — disse ele, sorrindo aos dois jovens diante de si. — Porque o bispo está cá, compreendem? No seu gabinete. Querem que o informe? — Gostaríamos de casar o mais depressa possível — disse Rabindrah. — Sem famílias, sem convites, sem banquetes formais, nem convidados ou presentes. Porque somos nós os presentes que daremos um ao outro e não precisamos de mais nada. Gostaríamos que nos casasse, padre Bidoli, apenas na presença das testemunhas necessárias. — Então vou tratar de organizar a cerimónia. Mas levará tempo a organizar os processos de… — Padre Bidoli, há maneiras de conseguir uma autorização especial, sobretudo numa terra pequena como esta — disse Sarah. — Foi pela sua mão que ultrapassei a raiva e a tristeza e recuperei a minha fé. E trabalha com o bispo de Nyeri há mais de vinte anos. Ele confia no seu discernimento. Só lhe pedimos que nos case discretamente… em segredo, se preferir dizer assim. Amanhã.
Camilla e George saíram de casa, quando a cidade despertava para a luz rósea da alvorada, e dirigiram-se de carro para norte, para o ponto de encontro onde o helicóptero aguardava. George apresentou-a ao piloto e a John King, o veterinário especialista na imobilização de animais de grande porte. Para surpresa de Camilla, Johnson Kiberu também se encontrava no local. Mas tinha decidido ir no camião que localizaria o rinoceronte depois de este ser atingido pelos dardos e drogado. Não lhe agradou o movimento baloiçante e sacudido do helicóptero, assim que deixaram o maciço de colinas, rasando as copas das árvores, ao chegarem à floresta, e agitando as ramagens que se abriam e abanavam sob eles. Sobrevoaram o camião, estacionado na orla de uma clareira, à espera do sinal. George ia sentado ao seu lado e, à sua frente, o piloto ia debruçado, perscrutando a densa cobertura das árvores através da neblina matinal. John King levava a pistola de dardos pousada no regaço e espreitou pela porta que tinha ficado aberta, dando a Camilla vontade de lhe agarrar no casaco de safári e de o puxar para trás. Segurando na espingarda, inspeccionava o terreno, esperando que o ruído do helicóptero espantasse um dos grandes e couraçados animais e o fizesse sair da floresta em direcção a terreno descoberto, onde se tornaria um alvo relativamente fácil. O estrépito da hélice martelava-lhe na cabeça. Começava a arrepender-se de ter ido quando o piloto soltou um grito excitado e o helicóptero começou a mergulhar num vertiginoso voo picado, pairando sobre o enorme animal pré-histórico. Este encontrava-se debaixo deles numa clareira, confuso e furioso, lançando o corno comprido e curvo para cima em direcção ao intruso. O helicóptero abrandou e, por um momento, Camilla pensou que tinha parado, mas logo se precipitaram para baixo, o trem de aterragem quase tocando as copas das árvores. Ela viu o pequeno dardo voar em direcção ao alvo e admirou a pontaria quando ele atingiu o rinoceronte no peito. O animal hesitou, levantou os olhos para o céu e sacudiu a pesada cabeça, afastando-se a trote para a densa protecção do mato circundante. Para surpresa de Camilla, o veterinário lançou um rolo de papel higiénico branco do helicóptero e, em seguida, levantou o polegar para assinalar a missão cumprida. — Funciona como um marcador para os pisteiros — gritou ele por cima do ombro, sorrindo à surpresa dela. — Vamos lá descer e fazer companhia às tropas em terra firme.
Quando desembarcou, Camilla sentiu os joelhos fracos e estava a tremer. George pegou-lhe na mão para estabilizá-la e começou a falar mas foram interrompidos pelo estrebuchar do rinoceronte, que avançava ruidosamente a cambalear na direcção deles, através da vegetação densa. — Deve estar a uns quinhentos metros daqui — disse King. — Mantenham-se atrás de mim e façam o que eu disser. Espero que consigam trepar a uma árvore. Ela esperou, ofegante de excitação, assustada com o resfolegar do colosso que se aproximava, perseguido pelo camião do Departamento da Vida Selvagem. Soou então um ruído de queda, seguido de um breve silêncio. Momentos depois, Johnson Kiberu e dois dos guarda-caças apareceram a pé. — Está adormecido — disse ele. — É um macho enorme. Deve pesar mais de uma tonelada e o corno tem mais de sessenta centímetros de comprimento. Abriram caminho por entre as árvores até ao local onde o rinoceronte estava caído de lado com os pequenos olhos fechados. O director do parque transmitiu instruções ao pessoal que saltava do camião. O veterinário examinou o animal, retirou o dardo e prendeu-lhe uma etiqueta à orelha. Foi posicionada uma rampa de madeira e instalado um cadernal, permitindo ao pelotão de homens içar o gigantesco animal para a plataforma do camião. Demoraram mais de uma hora, entre berros, ordens gritadas e gemidos de esforço, a colocar o rinoceronte dentro do veículo. Depois voltaram a partir no helicóptero para ver o animal cativo ser transferido para um estábulo na sede do parque. — Quanto tempo vai ficar aqui? — perguntou Camilla, espantada com a constituição e a estranha vulnerabilidade do rinoceronte entorpecido. — Este tem um ar bastante forte e saudável — disse George. — A não ser que surjam complicações, deve ser levado para o Parque Nacional de Nairobi dentro de uma semana a dez dias. — Sem os financiamentos do seu pai, isto não seria possível — disse Kiberu. — E, se não pudermos continuar este trabalho, não me parece que haja rinocerontes no Quénia para a próxima geração ver. — Porquê? Não se reproduzem bem? — Estão a ser abatidos por causa do avanço humano e da necessidade de mais terras de cultivo — disse George. — E os caçadores furtivos serram os cornos e vendem-nos para cabos de punhais ou trituram-nos num pó que é alegadamente afrodisíaco — acrescentou Johnson. — Ainda na semana passada vi em Tsavo uma destas pobres criaturas. Uma carcaça decomposta, intacta à excepção da cabeça com o corno cortado. Era uma mãe em aleitamento e não sabemos o que aconteceu à cria. Não tenho qualquer hipótese de pagar aos meus guardas-florestais mais do que os caçadores furtivos lhes pagam para fazer vista grossa. Ou até para lhes mostrarem o paradeiro dos animais. E as áreas são demasiado extensas… só Tsavo tem vinte mil quilómetros quadrados. É impossível patrulhar eficazmente uma área tão vasta. — Compreendo porque é que cá estás — disse Camilla a George, depois de o rinoceronte ter sido seguramente fechado no estábulo. — É muito mais gratificante estar no centro da acção do que a passar cheques e a tratar de papelada em Londres. — É um privilégio trabalhar com pessoas como o John King — disse ele. — É um homem extraordinário, como o Bill Woodley, que conheceste hoje, e todos os outros directores dos parques. Mas receio bem que sejam uma raça em extinção, como os rinocerontes que estamos a
tentar salvar. É bom termos o Johnson do nosso lado. É uma das poucas pessoas genuinamente interessadas em proteger a herança da vida selvagem deste país, mas tem de enfrentar uma combinação terrível de inércia, ganância e corrupção. E ignorância, pura e simples. Estavam sentados à sombra, ao lado do estábulo do rinoceronte, ouvindo os primeiros sons do seu despertar, um resfolegar e patear irascíveis e as pancadas da couraça do animal contra as paredes. Camilla desembrulhou um piquenique de ovos cozidos, sanduíches e cerveja gelada que tinham levado de Nairobi. Pôs-se de pé. — Vou fazer uma visita ao mato — disse ela, sorrindo a George. — Não tentes roubar as minhas sanduíches enquanto estou de costas. Depois desta excitação toda, estou esfomeada. Estava a voltar para o estábulo quando ouviu por acaso o piloto a rir. Estava a contar uma história a um rapaz do Departamento da Vida Selvagem de Nairobi. — Porra, não sei como o Chapman consegue — disse o piloto com mal disfarçada inveja. — Esta é uma modelo famosa de Londres, não sei se sabes. A fotografia dela está em todas as revistas que um tipo abre, mas ouvi dizer que era doida por ele. Já o vi acompanhado por brasas de todo o género na cidade. Uma de cada safári. Até tem uma mulher alojada em casa dele neste momento. Uma rapariga americana com umas mamas espectaculares, disse-me alguém ontem no Long Bar. Muito gostava de saber qual é o segredo dele. Camilla paralisou, o estômago contraindo-se-lhe com o choque. Por um momento, pensou que ia vomitar. Limpou com a mão as gotas de suor que se lhe tinham formado na cara. Depois respirou lentamente, inalando uma grande golfada de ar, mantendo-a nos pulmões para se acalmar e contando à medida que exalava. Já tinha ouvido falatório e comentários destes antes, na sua maioria ditados pela inveja, por parte dos ávidos celibatários da cidade. Todos os caçadores e guias de safári tinham de entreter os seus clientes em Nairobi e Anthony sempre tinha dito que era a parte do seu trabalho de que menos gostava. Mas não tinha mencionado que a rapariga americana estava em casa dele e ela tinha de acreditar que não era verdade. Camilla tapou a cara com as duas mãos. Sarah tinha razão. Agora tinha de acreditar nele. Dominando o medo, relegou-o para o mais fundo do seu subconsciente e voltou para a sombra da árvore ao lado do estábulo. Mas não foi capaz de comer. Pouco passava das quatro da tarde quando regressaram a Nairobi. — Vou deixar-te em casa e dar um salto ao escritório — disse George. — Preciso de assinar alguns papéis urgentes. Mas espero não me demorar muito. — Tudo bem — concordou ela, aceitando as chaves. — Podes contar com um jantar caseiro. Por mais modesto que seja. De volta a casa de George, Camilla tomou um duche e mudou de roupa, fazendo um esforço determinado para não pensar em Anthony. Anthony, que não lhe tinha telefonado como tinha prometido na noite anterior. Dirigiu-se à cozinha em busca de ingredientes para o jantar. Passava das seis mas o pai continuava sem aparecer. Sentou-se, procurando serenar, e ligou para casa de Anthony. — Está lá? — Era uma voz de mulher. Uma americana com um sotaque arrastado do Texas. — O Anthony Chapman stá? — Camilla imitou um sotaque francês cerrado. — Neste momento não está. — Era definitivamente Charlene. — Quer deixar recado? — Mais oui, se não for muita maçada — disse Camilla. — Vai estar aí quando ele voltar? — Claro que sim — disse Charlene. — Estou cá hospedada. Ele acaba de ligar a dizer que não demora muito para o jantar e eu estou a preparar-lhe uma refeição. Que recado quer que lhe
transmita? — Sou jornalista do Le Figaro de Paris — disse Camilla. — Mas volto a contactá-lo amanhã. Merci beaucoup. Boa-tarde. — Desligou e serviu-se de meio copo de vodka com gelo, acrescentou sumo de um quarto de lima e bebeu-o de um trago. Em seguida, serviu-se de outro.
— Sentes-te bem? — perguntou George a Camilla ao jantar. — Sinto. Foi um dia estupendo. Mas um pouco cansativo. — Ainda bem que gostaste — disse ele. — A propósito, o Saidi vai levar-me para a cidade de manhã, mas tu podes usar o carro que cá deixaste no princípio do ano. — Obrigada. Sou capaz de ir até ao Parque de Nairobi ver se encontro alguns dos teus rinocerontes transferidos. — Acho que o Anthony te levava se lhe ligasses. No outro dia à noite, estava mortinho por isso, na esperança de te apanhar sozinha por algum tempo. Sabes, minha querida, acho que ele sente genuinamente uma grande… enfim, uma grande afeição por ti. — São horas de deitar — disse ela, cortando cerce. — Se não estiver a pé quando saíres de manhã, ligo-te para o escritório. Acordou, sentindo-se completamente deprimida. A voz da rapariga americana ressoava-lhe na cabeça e arrependeu-se de não ter falado da chamada ao pai. Desde criança que guardava as suas inseguranças para si mesma e tentava resolver os seus problemas ou recusava-se a confrontá-los, esperando que passassem. Nesse tempo, tudo parecia preferível a abrir-se com a mãe e George raramente estava em casa. Decidiu que ia tentar almoçar com o pai. Desabafaria com ele, pedir-lheia conselho. E tentaria que ele falasse mais abertamente sobre a sua vida. Ficou satisfeita quando a secretária dele não encontrou na sua agenda nenhum compromisso para o meio-dia. — Diga-lhe que me encontro com ele à uma hora — disse Camilla, indicando o nome de um restaurante indiano que ambos apreciavam. Decidiu sair imediatamente de casa e passar a manhã na cidade, com medo de fazer uma figura triste, se Anthony lhe telefonasse. Ele tinha-a enganado de novo e Camilla compreendeu que não era capaz de lidar com a experiência sozinha. Se a rapariga americana era uma relação puramente profissional, porque é que ele não lhe tinha dito que ela estava hospedada em casa dele? Camilla soltou um pequeno som angustiado e abriu a porta da rua, deparando-se com um jovem. Era um somali, com feições excepcionalmente belas e um corpo alto e esbelto, roupa imaculada e pulsos delicados, decorados com pulseiras feitas de cobre, prata e missangas, — Queria falar com Mister George — disse ele, com uma expressão soturna. — Não está em casa — disse Camilla. — Posso ajudar? — Quero o meu dinheiro — disse ele, com um sorriso manhoso. — Ele não me pagou. — Trabalha aqui em casa? Ou no jardim? — perguntou Camilla. Ele abanou imediatamente a cabeça. — Não, não trabalho aqui — respondeu. — Diga-me o seu nome — disse ela —, que eu digo-lhe que passou por cá. — Mister George conhece o meu nome. — A expressão do rapaz era quase de desdém. — Só quero o meu dinheiro. Havia qualquer coisa nele que lhe causou desconforto, qualquer coisa de ameaçador. Afastou-se dele, dirigiu-se para a garagem e preparava-se para abrir a porta do carro quando ele cuspiu.
Directamente nos ladrilhos do pavimento, acertando-lhe no pé direito. — Saia imediatamente daqui — disse ela, furiosa —, senão chamo a polícia. — Mister George não havia de gostar — disse ele, agora com declarada insolência. — Diga-lhe que volto amanhã. Amanhã volto só para receber o meu dinheiro. Mais nada. Não lhe dou mais nada. Só quando enfiou a chave na ignição é que Camilla se permitiu admitir a plena implicação do encontro. Abriu a porta do carro e precipitou-se para fora da garagem, vomitando no canteiro de flores e soluçando convulsivamente. Depois, voltou para dentro de casa e fez a mala. Deixou uma mensagem ao pai, pousando-a na pequena mesa polida, onde se encontrava o telefone, ao lado de uma fotografia dela e de Marina, num porta-retratos de prata. A secretária dele ainda não o tinha visto para lhe transmitir os pormenores do almoço e Camilla cancelou-o. Chamou um táxi e registou-se num hotel medíocre onde ninguém se lembraria de a procurar. No estojo de toilette, tinha os calmantes que tomava em voos longos. Ao fim de uma hora, sentiu-se suficientemente calma para contactar a companhia aérea. Havia um lugar no avião que ela reservou, soletrando o nome. Minutos mais tarde, a telefonista do hotel estabeleceu a ligação com Londres. Quando Edward atendeu o telefone, submergiu-a uma onda de alívio. — Estou em Nairobi — disse ela. — Mas não vai haver julgamento porque o Simon Githiri morreu e está tudo acabado. Vou apanhar o voo desta noite para Londres. Achas que me podes ir buscar ao aeroporto amanhã? — Voltas para ficar? — Sim, Edward — disse ela. — Volto para casa. Volto para casa para ficar. Espero estar contigo amanhã de manhã. Seguiu-se uma longa pausa antes de ele falar novamente. — Lá estarei — disse. — Com uma condição. — Que condição? — Quero que me jures que nunca mais aí voltas e que nunca mais estás com o Anthony Chapman nem falas com ele. As lágrimas rolavam-lhe pelas faces ao pronunciar a palavra. — Juro. À medida que o céu se cobria dos tons da noite, devorando o calor, as cores estonteantes, o ruído e a poeira do dia, Camilla dirigiu-se para o aeroporto e fez o check-in no voo para Londres.
EPÍLOGO
Nairobi, Setembro de 1970 nunca tinha vencido o seu terror dos hospitais. Recordavam-lhe a sua mais tenra infância, E laquando o pai a levava a visitar Marina, que tinha sempre um aspecto particularmente belo nos quartos transbordantes de flores que ocupara, reclinada contra grandes almofadas brancas, pálida, delicada e frágil. Os pais falavam em tons sussurrados e, nessas ocasiões, nunca pareciam zangados. Mas Camilla sempre receara que a mãe nunca mais voltasse para casa, que morresse e que não houvesse então mais nada senão a grande casa silenciosa à sua espera. O leve toque-toque das sandálias de salto alto de Marina, o seu riso ofegante e o seu perfume permeando o ar, tudo isso desapareceria. O pai ficaria só, estaria sentado, com uma expressão distante nos olhos e um sorriso triste, quando a ama levasse Camilla, dizendo-lhe que não incomodasse o pai, que ele iria dar-lhes as boas-noites ao quarto. Já era quase uma adolescente quando finalmente compreendeu que Marina voltaria sempre para casa. Os corredores desinfectados, a chiadeira dos sapatos de borracha das enfermeiras, os médicos que lhe despenteavam o cabelo e lhe sorriam, dizendo-lhe que era uma menina bonita — estas visões e estes sons eram familiares mas temporários. Um refúgio para a mãe que normalmente se seguia a uma crise de soluços abafados atrás da porta fechada do quarto. Camilla tinha, ela própria, sobrevivido com dificuldade à sua hospitalização na clínica, na sequência da operação para remover a cicatriz na testa. O despertar da anestesia fora acompanhado de uma sensação seca e sufocante mas tinha-se debatido para não voltar a adormecer, receosa de vaguear por um mundo sombrio onde via rostos cruéis e a lâmina da panga erguida a cintilar sob a luz eléctrica. Edward passara horas sentado ao seu lado e uma vez ela abrira os olhos, deparandose com ele a dormir, com um livro no regaço e os óculos de leitura sobre a colcha da cama. Sentirase grata pela sua presença constante, que lhe transmitira conforto. Mas deixara o casulo tranquilo da clínica mais cedo do que ele recomendara. Odiava hospitais. — Mr. Chapman está aqui. — A enfermeira-chefe interrompeu as suas recordações, sorrindo radiosamente quando pararam à porta do quarto 34. Sarah e Hannah apertaram-lhe as mãos e escaparam para uma sala de espera anónima. Camilla pausou à porta e abriu a carteira, retirando um bâton, que aplicou sem nexo. Era uma forma de retardar, de tentar encontrar palavras adequadas. Nada lhe ocorreu. A sua mão era como um peso morto que ela levantou com esforço, batendo suavemente e empurrando a porta pesada. Ele estava deitado, de olhos fechados, na cama branca. Uma estrutura semelhante a uma gaiola retinha os lençóis, para que ele não sentisse o seu peso no corpo. Tinham-lhe dito que ele estava fortemente sedado, que precisava de dormir durante os primeiros dias de dor e choque. Havia qualquer coisa de quase religioso na tranquilidade do quarto e nas baterias de flores em jarras estranhamente desirmanadas. Um monte de cartões fora colocado na mesa-de-cabeceira. Ela deteve-se ao lado da cama, baixando os olhos sobre a figura imóvel. O seu rosto estava virado para o outro lado e ela não sabia bem se podia tocar nele, mas estendeu a mão a medo e pousou-lha no
ombro. — Anthony. Tinha passado muito tempo desde que Camilla pronunciara pela última vez o seu nome. Prometera esquecê-lo, enterrara-o nos recessos mais profundos do seu espírito, porque não podia acender a luz da memória sobre a sua imagem. Ele não pareceu tê-la ouvido e ela puxou por uma cadeira e sentou-se em silêncio, preparada para esperar. Havia tubos ligados ao seu corpo e ela viu a infusão intravenosa de um fluido analgésico que gotejava para dentro do seu corpo a partir de um frasco pendurado sobre a cama. De súbito, ele abriu os olhos e olhou para ela. O seu rosto estava extraordinariamente bronzeado, com um aspecto saudável e quase desprovido de marcas. Somente os seus olhos reflectiam a verdade. — Sinto muito — disse ele, num murmúrio estalado. — Sinto muito. — Depois as suas feições crisparam-se e fechou a boca, para não soltar qualquer som que o traísse. A debilidade da voz dele e a forma como o quarto silencioso distorcia as palavras que ele procurava articular assustaram-na. Camilla inclinou-se para poupá-lo a esse esforço sobre-humano. — Não consegui salvá-lo. — Os seus lábios moviam-se com dificuldade. — Havia chamas por todo o lado. Combustível a derramar-se no solo. Havia gente a gritar. A correr em todas as direcções e a mandar-me sair dali. A dizer que ia explodir. — A sua boca estava seca, com uma partícula de uma substância branca no canto. Mas os seus olhos brilhavam ao tentar explicar. — Chiu — disse ela. — Não tentes falar. Vim só fazer-te um pouco de companhia. Não fales. Podemos conversar mais tarde. Pegando num copo de água, ajudou-o a beber. O seu pescoço e parte do peito e dos ombros estavam cobertos com compressas e a única zona visível de pele estava empolada e marcada por pisaduras escuras. Os seus braços estavam envoltos em ligaduras brancas. — Conversamos mais tarde — repetiu ela, pousando-lhe a mão na testa para o acalmar. — Quando te sentires com mais forças. Eu sei que tentaste. — Ele não estava consciente. Não sentiu nada. — Anthony estava determinado em continuar, no mesmo murmúrio rouco e desesperado. — Tentei desapertar o cinto de segurança mas estava encravado. Cortei-o com uma faca e voltei a puxar, mas ele era muito pesado. Tinha as pernas presas no metal retorcido. Sentia o cheiro do fumo e toda a gente estava a gritar mas pensei que ainda havia tempo, apesar do calor terrível. As chamas atingiram-me quando me debrucei sobre ele para o agarrar melhor, para tentar tirá-lo para fora. Mas não consegui movê-lo. — Tinham-se formado lágrimas nos olhos de Anthony. — Eu sei. Eu sei que fizeste tudo o que podias — disse Camilla. — Disseram-me que ele não estava consciente por causa do impacto, do fogo, do vidro e do metal que se enterraram no corpo dele. — Estremeceu, tentando não imaginar. — Não podias ter feito mais nada. Terias ficado queimado. Terias morrido. — Uma parte de mim morreu — disse ele, fechando os olhos. — Não sei quem é a pessoa que sobreviveu. Não sei o que sou agora nem o que posso ser. Ele tentara salvar o pai dela e falhara. Não sabia se ela compreendia realmente e era penoso encontrar forças para explicar. Quando o helicóptero tinha entrado em descontrolo e se tinha despenhado, ele tinha corrido para ele e aberto violentamente a porta, puxando com força, gritando e praguejando ao tentar arrancar George do banco da frente, ao lado do piloto morto. Mas George estava preso com o cinto, a cabeça descaída sobre o peito, as pernas encarceradas sob o peso da
fuselagem esmagada. O odor do combustível e o fumo denso tinham sufocado Anthony e turvado a sua visão. Ouvia sirenes e pessoas a gritar-lhe, a tentar arrastá-lo do helicóptero. As suas roupas estavam rasgadas, chamuscadas e cobertas de sangue. As chamas aproximavam-se, transformandose numa cortina de fogo. Ele ouviu a explosão e, de um salto, pôs-se a salvo. Soou um rangido áspero de metal estraçalhado quando parte da estrutura da cauda se distorceu e lhe caiu sobre as pernas, imobilizando-o por completo. Todo o seu corpo foi percorrido por uma dor agonizante. Viu que a sua perna direita se transformara num rio escarlate de sangue, jorrando continuamente através das calças e criando uma poça à sua volta no chão. Depois disso, não se recordava de mais nada. — Sinto muito — repetiu. Os seus olhos estavam fechados com a exaustão. Quando ela não respondeu, pensou que ela se tinha ido embora. Talvez a tivesse imaginado, juntamente com as inúmeras visões que visitavam o seu cérebro confuso. Lambeu os lábios e voltou a falar, embora a sua boca estivesse seca e se sentisse terrivelmente cansado. — Camilla? Camilla, estás aí? — Estou aqui — sussurrou ela. Ela pousou a cabeça na almofada dele e ele levantou desajeitadamente um braço ligado e passouo à volta dela enquanto choravam juntos. Ao fim de algum tempo, Anthony adormeceu. O corpo de Camilla estava torcido e desconfortável, ali deitada, mas não se mexeu com medo de o perturbar. Não fazia ideia de quanto tempo tinha assim ficado quando uma enfermeira entrou no quarto, arvorando um sorriso radioso e profissional. — Ele não acorda tão cedo. Pode fazer-lhe companhia, se quiser, mas acho que vai dormir pelo menos duas horas. Camilla libertou-se cuidadosamente para não o despertar e levantou-se, afastando o cabelo da cara. — Volto mais tarde — disse ela. — Estou no Norfolk. Chalé número dois. Agradecia que me ligasse se ele precisar de alguma coisa. Ou se acordar e perguntar por mim. — Fique descansada. — A enfermeira levantou com suavidade as mãos de Anthony e colocou-as debaixo dos cobertores. — Pode ligar para a enfermaria sempre que quiser — disse ela. — Vou estar de serviço mais seis horas. Chamo-me Mary Thorpe. — Obrigada — disse Camilla fatigadamente. — Muito obrigada. — As suas amigas estão lá fora — disse a enfermeira. — O carro está à espera nas traseiras. Infelizmente, estão lá em baixo jornalistas, na porta principal, e imagino que prefere evitá-los. Camilla encontrou Sarah e Hannah na sala de espera. Sentindo-se insegura para falar, deteve-se à porta com uma expressão tensa. Abraçaram-se em silêncio e ela sentou-se por um momento, tentando recompor a cara, que estava inchada das lágrimas que tinha derramado e queria agora conter. — O cirurgião disse que ele é muito forte, física e mentalmente — disse Sarah. — Vai conseguir resistir. Vai sair disto ainda mais forte. Só precisa de ajuda. — Há alguém…? — Camilla não quis acabar a pergunta. Sarah sacudiu negativamente a cabeça. — A mãe chega dentro de dois dias. Não a conheço. Partiu daqui há anos, quando o pai foi morto num safári de caça, e nunca mais quis voltar. Não se têm visto muito um ao outro nos últimos anos, mas ela pode ser uma ajuda. Ele não tem mais ninguém. Que queres fazer agora? Podemos ficar aqui ou levar-te para o hotel por algum tempo. — Ele está a dormir. A enfermeira de serviço telefona-me se acordar ou se pedir alguma coisa. Se perguntar por mim — disse Camilla. — Entretanto, tenho de tratar dessa papelada horrorosa e
de uma série de formalidades. Acho melhor tratar disso enquanto posso e voltar aqui mais tarde. — As suas palavras seguintes foram hesitantes, quase um apelo. — Acham que podemos passar esta noite juntas? Só as três? Eu sei que talvez não caia muito bem e seja terrivelmente egoísta mas… — Eram também os nossos planos — disse Hannah. — O Lars só traz as crianças amanhã de manhã. — E o Rabindrah está no Uganda — disse Sarah. — Está a cobrir uma conferência sobre vida selvagem, mas volta amanhã cedo para estar presente no funeral. — Também devias ter ido a essa conferência — disse Camilla. — Obrigada, Sarah. Por teres ficado. — Ia só fazer uma breve comunicação — disse Sarah. — E o Edward? — Vai jantar com um médico que conhece aqui. Alguém que quer falar com ele sobre crianças com deformidades faciais — disse Camilla. — Percebeu que queríamos passar algum tempo juntas. Saíram pela entrada de serviço nas traseiras do hospital, conseguindo evitar os dois jornalistas no átrio principal, e conduziram pelas largas avenidas de buganvílias, hibiscos e jacarandás em direcção ao centro da cidade. Camilla estava fatigada e nervosa quando chegou ao chalé. — Acho que te fazia bem, se dormisses uma hora — disse Edward. — Estás com um ar estourado. Se queres aguentar o ritmo, deves aproveitar estes momentos de tranquilidade. Mas ela sabia que não seria capaz de relaxar, com os preparativos do dia seguinte de que tinha de se ocupar. Havia documentos para assinar e chamadas para fazer. Um representante do Alto Comissariado britânico apareceu para oferecer assistência e apresentar condolências. O agente funerário chegou e partiu, discreto e obsequioso. Ela recusou atender chamadas e decidiu pedir ao serviço de quartos um almoço tardio. Edward levou-lhe chá, serviu bebidas, ajudou-a a preencher formulários. Inicialmente, não fez quaisquer perguntas directas sobre Anthony, mas a apreensão nos olhos dele não lhe passou despercebida. — Ele vai ficar bem? — perguntou ele por fim. — Bem? Que é isso, bem? — perguntou ela, a sua mágoa reavivando-se. — Ele tem trinta e dois anos e passa a maior parte da vida no mato, à procura de animais, a montar tendas, a andar a pé e a escalar montes, a conduzir carrinhas e carros de safári e a andar a cavalo. E agora tem metade do corpo queimado e perdeu uma perna e não sei que mais ferimentos tem. Mas, descontando isso tudo, sim, está muito bem. Enterrou a cabeça nos braços e cedeu a uma torrente de soluços convulsivos, as lágrimas deixando borrões nos formulários que tinha preenchido tão cuidadosamente. Ele estava a tentar ajudá-la, mas não havia consolação possível no tumulto negro do seu cérebro. — Desculpa — disse ela. — Foi terrível vê-lo assim e não sei se ele já compreendeu o verdadeiro significado do que lhe aconteceu. Edward não tentou tranquilizá-la nem dizer-lhe que Anthony sobreviveria. Havia muitas definições de sobrevivência, nem todas simples ou desejáveis. Não tinha querido que ela fosse ao hospital nesse dia e ainda não sabia bem que efeito poderia ter sobre ela. Quando Camilla se inteirara da extensão dos ferimentos de Anthony, o seu rosto tornara-se branco como a cal e começara a tremer, a gemer e a enclavinhar as mãos, e ele achou que o seu inabalável autodomínio de sempre se tinha desmoronado. Já estava a debater-se com o impacto da morte do pai, procurando uma resolução que lhe permitisse viver em paz com a sua memória. Agora tinha de encarar o horror e o desespero que a amputação e as sequelas físicas deixariam no homem que amara no passado.
Que talvez ainda amasse. Edward bloqueou mentalmente a questão, o seu treino permitindo-lhe pôla de lado até chegar o momento certo para lidar com ela. — Organizei um carro e condutor para esta tarde — disse ele, observando-a com grave preocupação. — Para o encontro com o agente funerário e tudo o resto. — Não sou capaz — exclamou ela em protesto. — Não quero vê-lo, todo composto e cosido como um cadáver. Tenho de recordá-lo como ele era. — Compreendo — disse ele, sentando-se ao lado dela e pegando-lhe na mão. — Vou eu. Não há necessidade de ires pessoalmente. Basta assinares o resto dos papéis que eu trato de tudo o que faltar. Mas Camilla acabou por acompanhá-lo e ficou grata pela sua presença reconfortante, enquanto olhava para o caixão e para o homem que fora seu pai. O seu cabelo grisalho estava penteado como ele o usava e os cortes no seu rosto tinham sido competentemente disfarçados. Jazia entre paredes acolchoadas de seda, num esquife de carvalho, com os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o peito. Alguém tinha ido buscar um dos seus fatos de linho e uma camisa azul-clara, com uma gravata que Marina lhe comprara em Roma. Camilla pensou quem teria escolhido a roupa e quando. Era evidente que a sua cara fora maquilhada, pois exibia uma vaga aparência luzidia e cerosa. Ao contemplá-lo, sentiu um peso de chumbo no lugar do coração. Tinha-o julgado e abandonado, afastado a sua imagem juntamente com as suas recordações repulsivas da vida secreta que ele vivia. Este homem dera-lhe a vida e ela não reconhecera que o seu amor incondicional por ela era a única parte importante da relação que os unia. Nos últimos três anos, evitara estar com ele a sós. Nas suas infrequentes visitas a Londres, não fizera perguntas nem quisera saber nada sobre a sua vida em Nairobi nem se era feliz. Por seu turno, ele nunca se referira ao incidente que a levara a deixá-lo e, com o tempo, os seus encontros foram-se tornando cada vez mais raros. E agora era tarde de mais. — Tudo o que eu fiz foi errado — disse ela a Edward, enquanto tomava um duche e se vestia para a noite. — A minha visão sobre as coisas, as minhas conclusões… foi uma sucessão de erros. — Isso não é verdade. Olha para a tua carreira. Não há cara mais conhecida na Europa e na América, mesmo que já não faças muitas sessões fotográficas. A tua marca de roupa tem tido um sucesso estrondoso e as colecções são cada vez melhores. Tens recebido boas críticas do teu trabalho no teatro e agora tens a possibilidade de um papel no cinema. Alcançaste tudo o que ambicionaste. És um ícone, Camilla, um exemplo fantástico de determinação e sucesso. — Não, não sou — disse ela, a sua voz tão triste como a noite que rapidamente caía lá fora. — Tudo o que fiz foi por acaso. Tive sorte. Nunca tive de subir a pulso e nunca lutei por nada ou por ninguém que realmente amasse. Este é o único lugar que amo verdadeiramente e virei-lhe as costas. Sem pensar no meu pai nem nas minhas melhores amigas. — Estiveste com a Sarah em Londres várias vezes — disse ele, falando pacientemente como se ela fosse uma criança. — E a Hannah tem tido imenso sucesso com a oficina que montaram juntas. — Nunca tive a coragem de ficar — disse ela. — De levar as coisas até ao fim como elas. — Partiste daqui num estado de choque terrível — recordou-lhe ele. — Não devia ter fugido. Nunca fui corajosa ao ponto de tentar compreender quem ele era. — Não se apercebeu da inquietação crescente de Edward. — Desde criança que tenho medo. Medo do que estava a acontecer entre os meus pais, aterrada com a ideia de qualquer rejeição ou recusa ou de alguma coisa que envolvesse um confronto mais sério. Sou uma cobarde. Todas as decisões que
tomei foram ditadas pela minha própria segurança, pela necessidade de me sentir segura, de me defender. Não quero continuar a ser assim. Acho que não devo viver o resto da minha vida assim. — Camilla, fui eu que insisti para que não viesses agora — disse ele. — Obriguei-te a jurar que nunca mais estarias com o Anthony, que nunca mais voltarias ao Quénia, porque não queria que ele voltasse a magoar-te. E estou convicto de que tinha razão. Não podias ter-te sentido segura nem feliz aqui. Quando estes dias trágicos passarem, querida, e voltarmos para casa, verás que a vida que construímos juntos é onde deves estar. — Não me tinha apercebido das saudades que sentia das minhas amigas. — Tens muitos bons amigos em Londres. — Não. Como a Sarah e a Hannah, não. Não são amizades assim. Elas são a minha única família, as minhas irmãs. E em Londres sinto-me frequentemente só. — Todas as pessoas passam por períodos de solidão, querida. Se te serve de consolo, vou fazer tudo para que isso não torne a acontecer. A morte súbita do George foi uma lição para mim. Fez-me compreender que nunca sabemos quanto tempo nos resta. — Pegou-lhe na mão e encostou-lhe os lábios aos dedos. — Amo-te, Camilla, e temos uma boa vida juntos. Prometo-te que a partir de agora vou passar mais tempo contigo. — Eu sei que estás a ser sincero — disse ela. — Mas o teu trabalho há-de estar sempre em primeiro lugar e eu admiro isso. Precisas de dedicar tempo a todas essas pessoas arruinadas a quem tens restituído a vida, refazendo-as fisicamente. Mas eu já não sei o que estou a fazer nem para onde vou. Só sei que sinto que a minha vida é oca e vazia. — Estás profundamente perturbada com a morte do George e com a ideia dos problemas que o Anthony vai ter de enfrentar. Tudo se virou às avessas, causando-te ansiedade e insegurança. Mas nós ajudamo-lo em tudo o que pudermos. Posso conseguir que os melhores especialistas o examinem e um tratamento no estrangeiro, se ele precisar e quiser. Daqui a um ou dois dias, quando voltarmos para casa, vamos com a consciência de que fizemos tudo ao nosso alcance. — Não podes ir dando baixa das coisas de que ele vai precisar para viver a vida dele como se fosse uma lista de compras — disse ela, incomodada com o pragmatismo da sua afirmação. — Não sei que fazer. Nunca me senti tão desesperada na vida. Tão absolutamente inútil. — É o choque. Não uma, mas duas tragédias. Ninguém é capaz de absorver acontecimentos tão terríveis sem reagir como tu agora. Mas esta noite vais poder conversar com a Sarah e a Hannah e isso vai ajudar. — Tocou-lhe no rosto. — Vou ter agora com o Dr. Channing. Ligaram da recepção quando te estavas a vestir. Está à minha espera no bar. Estás muito bonita, querida, apesar de tudo isto. Enches-me sempre de orgulho e já sabes que estou aqui para te apoiar. — Beijou-a ao de leve na testa e saiu do chalé. Camilla sentou-se ao toucador, olhando para o espelho e reflectindo sobre as palavras dele e a promessa de tentar passar mais tempo com ela. Tinha-se esforçado por se adaptar às suas longas ausências, por preencher as noites solitárias quando ele era chamado para operar de urgência ou quando tinha de estar com doentes em estado crítico, como se a sua simples presença instilasse vida e esperança nesses corpos destruídos. Tinha havido momentos em que lhe tinha perguntado por que razão não podia começar a abrandar a sua actividade, a atender menos doentes, a tirar mais tempo para si próprio. A passar mais tempo com ela. Não era claramente uma questão de dinheiro. Muitas vezes, ele aceitava doentes de um dos grandes hospitais públicos e não cobrava nada. Mas era motivado por um desejo obsessivo de ser o melhor e tornara-se uma lenda na sua especialidade.
A princípio, as ausências dele não a incomodavam. Tinha a sua própria vida e uma variedade de lugares onde ia, se quisesse companhia ou distracção. Mas, depois de se ter mudado para o apartamento dele, achava que não conseguia saltar de discoteca em discoteca ou de festa em festa sozinha, e ficava em casa à espera. E à espera. Sabendo que as pessoas que mais amava estavam a milhares de quilómetros, afastadas dela, mercê do tempo e da distância e da sua própria inércia e falta de honestidade. Nunca tinha arranjado coragem para lhes explicar a razão da sua partida inesperada e do facto de nunca mais ter regressado. O sentimento de solidão foi-se agudizando com o tempo e as suas recordações do Quénia enchiam-na de tristeza. Quando Sarah e Rabindrah tinham visitado Londres, tinha vivido o tempo passado com eles com deleite quase obsessivo e, após a sua partida, caído numa profunda e muda depressão. Durante mais de um ano, tinha esperado que Hannah e Lars também a visitassem e tinha feito mentalmente planos para os levar a todo o lado e apresentar a amiga aos donos das boutiques que vendiam as roupas confeccionadas em Langani. Mas Hannah não tinha podido fazer a viagem. A gravidez e o nascimento do filho, as exigências da oficina, a decisão de reconstruir o lodge em parceria com Anthony, as pressões de gerir a fazenda, num contexto político cada vez mais hostil e corrupto, combinaram-se para a impedir de viajar. Lars tinha ido à Noruega ver os pais mas nem então Hannah o tinha acompanhado. Não compreendia por que razão Camilla não viajava até ao Quénia. Um fosso que não passava pela geografia tinha-se aberto entre elas e, no último ano, não haviam sequer trocado cartas nem telefonemas. — Ela está aborrecida porque o teu contabilista manda cheques e relatórios financeiros impessoais e nunca recebe uma mensagem tua — tinha dito Sarah. — Nem quando envias novos desenhos ou instruções sobre o corte e a aplicação de missangas para a estação. — Tive de devolver algumas carteiras e cintos — tinha dito Camilla. — Não estavam bem acabados. A Hannah acha que eu devia ir lá ensinar as mulheres a confeccionar os novos modelos, mas eu não tenho podido sair daqui. E isso criou uma clivagem entre nós. — Então porque não vens passar uma ou duas semanas? — tinha perguntado Sarah. — Estou demasiado ocupada aqui. — A voz de Camilla tinha sido seca, eliminando qualquer possibilidade de continuar o diálogo. Tinha visto Sarah suspirar de frustração, mas ainda não se sentia capaz de revelar as razões da sua abrupta partida de Nairobi. Não suportava arrancar a traição de Anthony e o horror que sentira com o jovem prostituto à porta de casa do pai do poço escuro da memória para onde os relegara. Tinha esquecido tudo, bloqueado essa recordação, quando fizera a sua promessa a Edward, e não aguentava a ideia de a revelar. Mas não estava sobrecarregada de trabalho. Renunciara a todos os contratos como modelo, salvo os mais prestigiantes, e estava focada na criação de roupas e acessórios que eram agora fabricados na Índia, em Hong Kong e nas Filipinas. E a sua participação em duas produções do West End tinha recebido boas críticas, embora as suas actuações não lhe tivessem dado a satisfação que esperara. Contudo, preenchiam o tempo que, de outro modo, teria passado sozinha, as horas em que talvez se tivesse sentido tentada a mergulhar na sua consciência e reavaliar as suas opções. Em geral, não tinha razões de queixa. Era capaz de aceitar que Edward nunca mudaria. O seu vício no trabalho era-lhe tão vital como respirar. Por vezes, ele deixava-se submergir pelo ruído e cor do mundo exterior mas eram breves mergulhos, estimulantes apenas por momentos fugazes.
Depois retomava as suas publicações médicas e apontamentos de pesquisa e os seus doentes, e voltavam ao ponto de partida. Mas amava-a. Tinha razão ao supor que ela se sentia segura sob os seus cuidados, apesar da sua ocasional sensação de isolamento. E nem por um momento tinha pensado em obrigá-la a cumprir a sua promessa quando a terrível notícia do acidente chegara. Camilla olhou para a sua imagem no espelho e encolheu os ombros, num gesto de impotência e resignação. Era impossível ter tudo. Assim que Edward saiu para se encontrar com o seu colega de profissão, ela telefonou para o hospital pela quarta vez. Mr. Chapman estava a dormir. Tinha passado uma tarde relativamente confortável. Não, não tinha perguntado por ela. Não tinha perguntado por ninguém nem pedido nada. — Amanhã estou aí — disse ela. — Depois do funeral. Importa-se de lhe deixar uma mensagem com essa informação? Para quando ele voltar a acordar. Hannah e Sarah estavam à sua espera no átrio do hotel. — Vamos jantar em casa do Anthony — disse Sarah. — Não, não protestes. É sossegado e podemos ficar a conversar o tempo todo que quisermos. Eu e a Hannah vamos passar lá a noite. Camilla ia calada e tensa no carro, olhando pela janela à medida que as luzes brilhantes da cidade davam lugar a zonas em que grandes jardins e sebes aparadas bordejavam a estrada e se via atrás de cortinas fechadas a luz ténue de candeeiros e lareiras. Contraiu os lábios com força, engolindo a mágoa. Na casa, subiu os degraus e entrou na sala de estar, onde Joshua estava à espera para a receber. O seu rosto iluminou-se com um sorriso de orelha a orelha, ao cumprimentá-la, indicando orgulhosamente os resultados do seu trabalho. Camilla sentiu um baque no coração ao passar os olhos pelo espaço familiar. Ele tinha acendido velas na prateleira do fogão de sala e no aparador, afofado as almofadas, posto a mesa com os copos e as pratas que ela tinha escolhido e dobrado os guardanapos em forma de flor, tal como ela lhe tinha ensinado. Foi com um opressivo nó na garganta que tentou agradecer-lhe, mostrar o seu apreço. Ele desapareceu na cozinha para preparar o jantar e elas sentaram-se diante da lareira e sorriram umas às outras, um pouco constrangidas, agora que estavam sozinhas ao fim de tanto tempo. — Só queria que tivesses vindo por outra razão. — Hannah quebrou o silêncio desconfortável. — Quem me dera que tivesses vindo quando o Piet nasceu. Queria que tivesses estado presente no baptizado. — Não pude — disse Camilla, de olhos baixos. — Não consigo imaginar como é ser-se tão famosa — disse Hannah. — A Sarah também lhe tomou o gosto com os livros e as palestras dela. Eu sou a única que não mudou… uma rapariga do campo yaapie para quem as luzes da cidade são a baixa de Nairobi. Mas deve ser difícil teres as horas do dia todas tomadas sem a liberdade de ires onde queres, com jornalistas a seguir todos os teus movimentos… — Ouve — Camilla interrompeu —, porque quero que fique tudo claro entre nós. Não podia voltar. Fiz uma promessa. — Que promessa? — Sarah franziu a testa. — Quando parti do Quénia da última vez, o Edward obrigou-me a jurar que nunca mais voltava. — Camilla baixou os olhos, envergonhada por não lhes ter contado antes. — Era incapaz de viver com o risco de o Anthony reaparecer de repente e pôr a minha vida às avessas como antes. E a vida dele também. E depois desaparecer. — Mas porque é que partiste sem nos dizer? — O tom de Hannah foi brusco. — Já sei que a
Sarah te fez essa pergunta, mas tu nunca lhe deste uma resposta directa. Se queres que tudo fique claro entre nós, acho que é tempo de te explicares. Porque, um dia, querias ficar e ajudar-me com a oficina, ias voltar para Langani para cortar novos moldes e fazer amostras e ainda amavas o Anthony… era claro para todos… e, no dia seguinte, tinhas partido. Sem uma nota, uma palavra de explicação. Nada. Camilla ficou em silêncio, procurando as palavras e a coragem de as proferir. — Ele disse-me que te tinha pedido para ficares — disse Hannah. — Tivemos uma longa conversa sobre isso quando ele foi à inauguração do lodge. Disse a mesma coisa à Sarah. — E tinha decidido ficar — disse Camilla, apertando o copo com força na mão e fazendo-o rodar. Recordar era uma provação. — Tive esperança de que ele voltasse a pedir-me em casamento, sobretudo depois de a Sarah e o Rabindrah dizerem que se iam casar. Mas depois soube que a rapariga americana estava em casa dele. A texana que todos conhecemos. E ele não tinha dito nada. — Soltou uma risada áspera. — Tinha uma hóspede escondida em casa e, por qualquer razão, esqueceu-se de a mencionar. — Essa rapariga estava aqui nesta casa? Tens a certeza? — Hannah estava incrédula. — Tenho. A certeza absoluta porque lhe liguei e ela atendeu. Disse-lhe que era uma jornalista francesa e ela disse que estava aqui hospedada. Por sinal, a preparar o jantar para os dois. — Mas por que diabo não questionaste o Anthony sobre isso? — Hannah estava com dificuldade em acreditar. — Não acredito que houvesse qualquer ligação entre eles. Ele só tinha olhos para ti, naquela noite no Grill. Eu tinha-lhe perguntado de caras. Não achas que era o que ela devia ter feito, Sarah? — Já não era a primeira vez, não se esqueçam. — Camilla sentiu-se ressentida com a falta de compreensão das amigas. — Tínhamos ideias diferentes sobre a lealdade. Sobre a fidelidade. Achei que não adiantava persistir, porque ele nunca ia mudar. Por isso, parti. E depois prometi ao Edward que nunca mais cá voltava. — Concordo com a Hannah. Devias ter pedido uma explicação ao Anthony — disse Sarah. — E as promessas todas que me fizeste a mim? — quis saber Hannah. — Disseste que ias voltar para Langani e depois desapareceste sem uma satisfação porque uma rapariga atendeu o telefone do Anthony. Quando tornei a ter notícias tuas foi por uma mensagem anexa a um conjunto de instruções, moldes para corte e esquemas de cor. E nem uma palavra sobre a razão da partida, nem sequer um telefonema a dizer adeus. — Não foi só o Anthony. — A voz de Camilla pouco mais foi que um sussurro. — Espero bem que essa explicação agora seja boa — disse Hannah. Preparava-se para fazer outro comentário, mas Sarah lançou-lhe um olhar de advertência. — Foi o George. — Camilla sabia que agora tinha de contar toda a verdade. — No dia seguinte de manhã, saí de casa dele. Estava um rapaz somali à entrada. Não podia ter mais de catorze ou quinze anos e andava a rondar a porta. Um prostituto que queria ser pago. Ali à minha frente, para pedir dinheiro ao meu pai. Hannah fixou o fogo, branca e sem fala. — Oh, meu Deus. — Sarah levou as mãos à cara. — Nunca imaginei que ele se estivesse a referir a uma coisa concreta que tivesse acontecido. — Que é que estás a dizer? — perguntou Hannah. — O George visitou-nos, a mim e ao Rabindrah, quando estávamos a trabalhar na área de Wajir
— disse Sarah. — Queria ver os poços na região e a maneira como os somalis e os camelos partilhavam a água com as girafas e a vida selvagem local. Tínhamos passado o dia no mato e o Rabindrah foi-se deitar cedo depois do jantar. Eu fiquei à conversa com o George. Ele embebedouse bastante. Nunca o tinha visto assim. Disse que queria fazer as pazes contigo, Camilla. Que te tinha desiludido, magoado seriamente. Que tinha sido por causa dele que tinhas partido. — Pegou na mão de Camilla. — Começou a chorar, a soluçar como uma criança, dizendo-me que não podia deixar de ser quem era, mas que o amor dele por ti era inabalável. — Tu escreveste a contar-me isso — disse Camilla. — Mas não podias saber do que ele estava a falar e eu não fui capaz de te contar. Nunca contei a ninguém. Todos sabíamos que ele era homossexual. Mas quando me deparei com aquele rapaz, pouco mais que uma criança, não consegui lidar com a situação. Ficava doente sempre que pensava nisso. No fundo, nunca mais voltei a falar com o meu pai. — Não devias ter carregado esse fardo sozinha — disse Hannah. — Nunca tive coragem de dizer as palavras — disse Camilla. — E agora ele está morto. Partiu para sempre. Quando o vi no caixão esta tarde, apercebi-me de que nunca tentei compreender as pessoas que mais amo. Tenho tido medo de ver os seus defeitos e procurei esconder as minhas próprias deficiências, mantendo toda a gente à distância. Ou fugindo. Sou uma cobarde. E agora é tarde de mais para mim e para o meu pai. — Levantou-se e soltou uma risada estridente raiando a histeria. — E aqui estou eu, uma triste orfãzinha. Não tenho mais família. Excepto vocês. — Hás-de ter-nos sempre — disse Sarah, pegando-lhe na mão e voltando a sentá-la no sofá. — Mas não há razão nenhuma para não constituíres a tua própria família. Tencionas casar-te com o Edward? Ter filhos um dia? — Ele não quer ter filhos — disse Camilla, num tom defensivo. — E, de qualquer modo, não sei se daria uma boa mãe. Casar com o Edward é uma questão que, no fundo, não se põe. — Virou-se para Hannah. — Estou ansiosa por ver as crianças. Trouxe roupas que fiz para o meu único afilhado. Nem preciso de perguntar se tu e o Lars são felizes. Está-te estampado na cara e nos olhos. — Vê-se facilmente porque estou cada vez mais parecida com uma das minhas vacas — disse Hannah, rindo. — Ja, tenho um bom homem e amo-o perdidamente. O pequeno Piet é a cara chapada dele. — Bebeu um pouco de vinho e levantou os olhos, com um sorriso maroto. — E a Suniva é a minha cara. Felizmente. — Desataram todas a rir. — E depois há o James. — O seu tom alterou-se. — Nunca pensei que acabasse por amar aquele menino. Parecia impossível. Adoptei-o porque achava que a minha família era responsável pelo que lhe tinha acontecido e que não devia ser abandonado como o pai. Mas, antes que me canonizem, devo dizer que também me senti assustada. Pensei que, se ele ficasse na missão ou com estranhos, todo o ciclo de ódio e vingança podia um dia recomeçar. Não foi, como vêem, por puro amor que o levei para Langani. Aliás, bem no fundo, estava com medo de vir a odiá-lo por causa do passado. — Fizeste uma coisa extraordinária — disse Camilla. — Ele foi um rapazinho corajoso — disse Hannah. — Havias de ter visto a determinação dele, depois da operação, em pôr-se de pé e andar. Em correr, aliás. Nunca se queixou de nada e olhava para mim com aqueles grandes olhos confiantes e sorria; conquistou-me completamente. E é esperto e ávido de aprender. Ele e a Suniva são inseparáveis. — É uma criança notável — disse Sarah.
— Sabes, vejo fotografias tuas e da Sarah em revistas e leio sobre as tuas interpretações no palco e sobre os teus modelos e sobre os livros e as conferências dela por todo o mundo — disse Hannah. — E por vezes sinto inveja, confesso. Mas depois olho para a nossa fazenda e para o lodge e para a minha família maravilhosa e compreendo a sorte que tenho. Sarah levantou-se e dirigiu-se ao aparador, onde o vinho estava num balde de gelo. Serviu um copo a cada uma, demorando o seu tempo, pensando em Camilla e na sua propensão para fugir dos sentimentos que despertava, incapaz de estender a mão e estabelecer contacto, sempre receosa de ser ferida ou atraiçoada. — Como está a Lottie? — Camilla virou-se para Hannah. — Está em Itália. Trabalham imenso, ela e o Mario, mas o hotel dele só está aberto seis meses por ano e, durante o Inverno, viajam. No ano passado, foram à América. Nova Iorque, Chicago, São Francisco e sabe-se lá mais onde. Esteve cá em Fevereiro porque gosta de passar tempo com as crianças. — Que tal é o Mario? Ela vai casar-se com ele? — perguntou Camilla. — Tem vinte e cinco anos. É parecido com o Mario Lanza — disse Sarah, com uma expressão divertida. Camilla olhou para ela, atónita, até que Hannah rompeu a rir e logo as três se lançaram nos braços umas das outras, lágrimas de riso rolando-lhes pelas faces, apagando a distância, a separação e a tristeza e transportando-as no tempo até à infância, até ao dia em que se haviam tornado irmãs de sangue e jurado manter-se fiéis à sua amizade. — Custa a crer que já fomos três raparigas num internato conventual que pensaram que nunca mais se iam separar — disse finalmente Camilla. — Nós não nos separámos — disse Sarah. — Estamos aqui juntas, a falar das nossas vidas como fazíamos no passado. O laço que nos une foi posto à prova até ao limite mas nunca foi quebrado. Acho que continuamos a poder dizer que a nossa amizade é a melhor que existe. — E o Rabindrah? E as duas famílias? — Foi um percurso atribulado mas já aceitaram. Mais ou menos — disse Sarah. — A minha mãe e o meu pai ainda estão aborrecidos por não terem estado no nosso casamento. Por não terem sido sequer informados. — A Betty sonhava com uma cerimónia tradicional, com um vestido de noiva branco a arrastar pelo chão e um copo-d’água no relvado em Sligo — disse Camilla. — Esperava que não nos casássemos, ponto final — disse Sarah. — Sobretudo depois da trapalhada com o casamento falhado do Tim. Escreveu-me uma carta terrível depois de nos casarmos. Um perfeito horror. Suponho que foi merecida. Ela ficou extremamente ferida. E o meu pai também, embora não se tivesse manifestado muito. — Admito que não te dei muito apoio na altura — disse Hannah. — Agora, olhando para trás, sei que fui estúpida e egoísta. Não admira que não me tivesses dito nada de antemão. — Realmente, não mostraste grande entusiasmo — disse Sarah. — E a Camilla tinha desaparecido do mapa. Assim, tornámos o nosso casamento numa ocasião intensamente privada. — Quando apareceste em Langani e anunciaste que te tinhas casado no dia anterior, espumei de raiva — disse Hannah. — Mas mereci que me tivesses excluído. Devia ter estado do teu lado desde o princípio. — Não queríamos passar o dia do nosso casamento vítimas da má vontade das outras pessoas
nem queríamos ser alvo de dúvidas e reprovação — disse Sarah. — No fim, era só comigo e com o Rabindrah e tinha de ser o dia mais feliz e mais importante da nossa vida. Um dia para ser vivido só pelos dois. — E agora, como está a situação familiar? — Camilla preferia discutir a vida das outras pessoas. — De certa maneira, acho que os Singh aceitaram melhor que os meus pais — disse Sarah. — O facto de não termos começado a viver com eles, como a maioria dos recém-casados da comunidade sique, ajudou. Passámos o primeiro ano nos confins do mundo, sem ninguém a moer-nos a paciência. Acho que não me teria saído muito bem com uma matriarca indiana a estalar a língua de reprovação perante os meus hábitos domésticos e a tentar impor-me os costumes dela. — Mas a Betty já começou a aceitar — disse Camilla. — Os meus pais ainda não conhecem muito bem o Rabindrah — disse Sarah. — Passámos dez dias em Sligo, alguns meses depois de nos casarmos. Foi muito agradável e o Tim fez um esforço enorme para aplainar as dificuldades. Mas o tempo não deu para eles criarem uma relação mais profunda e o Rabindrah estava surpreendentemente nervoso. Nunca o tinha visto assim e ainda o amei mais por isso. — E então, onde estão os bebés? — perguntou Camilla. — Estás deliberadamente a adiar? Receosa de os alimentares a leite de camelo e ensopado de cabra? — Não é por não tentar. — O sorriso de Sarah encerrava uma ponta de tristeza. — Todos os meses mantenho a esperança e depois sofro uma desilusão tremenda quando vejo que não aconteceu. E, claro, os familiares do Rabindrah abanam a cabeça e olham para nós com um ar de censura porque eu não produzi o filho e herdeiro, nem sequer uma filha. Tenho a certeza de que acham que ele estava muito melhor com uma boa rapariga sique que ficasse em casa e só se concentrasse em dar-lhe bebés. — Mas passam bastante tempo separados — disse Hannah. — Se fosse eu, acho que não era capaz. Odeio estar longe do Lars mais de alguns dias mas o Rabindrah, por vezes, passa meses fora. Ou então és tu que partes, durante semanas, num dos teus périplos de conferências. Como é que aguentas? — Tentámos conciliar o trabalho o melhor possível. O primeiro ano foi maravilhoso. Praticamente não estivemos com ninguém da família dele e da minha. Tínhamos o nosso Land Rover e a nossa tendazinha e deambulámos pelo país entre Garissa e Wajir e viajámos pelo rio Tana de canoa. Depois fomos para oeste, seguindo os nómadas e o gado deles. Vaqueiros borana e rendile e gabra também. Atravessámos o deserto de Chalbi e vivemos e pescámos com os el molo no lago Rodolfo. Andámos de camelo e escalámos a montanha em Marsabit e acampámos na orla da cratera sobre o lago Paradise. Foi um ano em lua-de-mel e eu só queria que nunca mais acabasse. Os olhos de Sarah cobriram-se de uma expressão distante ao rememorar os dias e as noites perfeitos em que ela e Rabindrah tinham vivido num mundo que parecia inteiramente deles. Tinham tido tempo para conversar sobre as suas vidas e trabalho, para se conhecerem, para planearem o futuro e se maravilharem com o milagre do seu casamento. Pensou nos dias em que tinham tomado banho no mar de Jade, atirando água um ao outro como crianças, e nas noites no deserto em que tinham feito amor sob o olhar vigilante da lua, rejubilando com a felicidade de estarem vivos e juntos. A sua tenda tinha sido levada pelo vento numa tempestade e tinham fugido de ladrões de gado. Rabindrah tinha sido mordido por um escorpião e Sarah tinha caído ao rio Tana, a poucos metros de um crocodilo refastelado ao sol. Tinham aprendido com os membros das tribos a pescar,
a caçar e a acender uma fogueira com dois paus, a sentir o cheiro de uma tempestade a aproximarse e onde procurar sombra para se abrigarem do calor devorador do meio-dia. O livro descrevendo as suas viagens tinha sido um sucesso instantâneo. — Voltar para Nairobi foi terrível — disse Sarah. — Viver num apartamento alugado e trabalhar em cima um do outro, com o manuscrito do Rabindrah e as minhas fotos espalhados por todo o lado. Estavam sempre a aparecer pessoas da família dele, a tentar convencer-nos a ir viver com o tio Indar para a Kuldip me poder ensinar a governar a minha casa. Tentei adaptar-me, ser bemeducada, mas eram inoportunos e estavam sempre a fazer comentários contundentes sobre a importância de eu engravidar. Achava que o Rabindrah não os desencorajava com firmeza suficiente, porque entretanto ele começou a viajar, a trabalhar noutras reportagens e deixou-me à mercê da família. Houve alguns meses em que as coisas não correram lá muito bem. — Há uma coisa chamada divórcio para esses casos — disse Camilla, sorrindo. — O Rabindrah tem sorte por ter casado com uma católica fervorosa. — E depois o padre Bidoli morreu do cancro de que sofria e eu senti-me completamente isolada — disse Sarah. — Foram o Dan e a Allie que nos salvaram. Deixaram-nos usar a minha velha cabana porque construíram outra no complexo para os dois investigadores novos que contrataram. Íamos lá passar alguns dias sempre que o Rabindrah voltava de uma viagem ou depois de eu terminar uma dessas horríveis digressões. Ainda vamos. Temos uma vida ocupada. E rica. — Calou-se e fitou a distância. — Mas? — Camilla instigou-a suavemente a continuar. — Queria muito ter um filho. Mais do que tudo no mundo. Quando vejo os teus, Hannah, fico profundamente triste. — O seu riso não soou muito natural. — Seja como for, temos um casamento fantástico, mesmo que não seja o que as nossas famílias sonharam para nós. — Tu também deves ter de conciliar o teu trabalho e a tua vida privada — disse Hannah, olhando para Camilla com curiosidade. — Não achas difícil, com todas as tuas aparições públicas, parar um momento e lembrar-te de que o amor é o mais importante? O olhar de Camilla era triste. — Não sou a melhor pessoa para falar de amor e do que se deve ou não fazer a respeito dele. — É diferente para todas as pessoas. — Sarah continuava na mesma veia. — Talvez eu engravide de repente quando menos esperar. Exactamente como aconteceu no momento em que percebi que amava o Rabindrah. A princípio, quando me senti atraída por ele, não conseguia ultrapassar a memória do Piet. Sentia-me culpada por ser possível amar outro homem. Mas chegou um momento em que fui capaz de tomar a decisão, na certeza de que era a decisão certa. O que eu e o Rabindrah temos é maravilhoso. Já não o vejo como um ser separado de mim. Cada um de nós se tornou uma parte vital do outro e, por vezes, a felicidade que nos une assusta-me. Depois de tudo o que perdi. — Tiveste a inteligência e a coragem de reconhecer que o Rabindrah era o homem certo para ti — disse Hannah. — Ao contrário de mim, idiota que fui, quando me envolvi naquela ligação escaldante com o Viktor e afastei o Lars da minha vida. Imaginem que ele não tinha voltado, que não tinha sido generoso ao ponto de casar comigo e aceitar a Suniva. — Cada uma de nós perdeu mais nos últimos cinco anos do que a maioria das pessoas perde numa vida — disse Camilla. — Assistimos a doenças e a mortes, quase fomos destruídas pela violência, vimos os nossos sonhos despedaçarem-se. Mas, pelo menos, podemos dizer que ainda nos temos umas às outras. E eu posso também dizer que a Sarah Singh tem mão pesada com esse
vinho. Já estou consideravelmente embriagada. Era tarde quando terminaram a refeição e Camilla não conseguiu disfarçar o cansaço. — Vá, volta para o Norfolk antes que caias redonda — disse Hannah. — Precisas das tuas forças amanhã e ainda não descansaste desde que saíste do avião hoje. — Vou ligar para o hospital — disse Camilla. — Se houver alguma mudança, talvez possamos passar por lá a caminho. Mas a enfermeira de serviço informou que Mr. Chapman estava a dormir. Não havia qualquer alteração do seu estado e não adiantava muito visitá-lo naquele momento. Camilla passou os olhos pela sala de estar de Anthony e pensou nas noites que tinham passado juntos quando ele regressava de um safári, faminto dela, feliz por bloquear o mundo exterior, por conversar com ela e fazer amor diante da lareira. — Posso pedir um favor às duas? — perguntou ela. — O que quiseres. — Sarah não hesitou. — Quero ligar ao Edward a dizer que vou passar a noite aqui convosco para não terem de me levar até à cidade a estas horas. Pode ser? — Claro que sim — disse Hannah. — Tens aí o telefone. Mais tarde, deitada na cama de Anthony, Camilla ficou a escutar o vento nocturno a fustigar o telhado. Uma hiena uivou e riu à distância e ela ouviu um som, talvez o ruído arranhado de um leopardo, ao fundo do jardim. Tinha passado muito tempo desde que tinham dormido na tenda dele em safári, os corpos entrelaçados, a respiração suave dele contra a sua face, deitados na estreita cama de campanha. Ele tê-la-ia amado sempre? Virou-se para o outro lado e procurou às apalpadelas o interruptor da luz, os olhos turvos com lágrimas inesperadas. Não havia lenços na mesinha-de-cabeceira e ela abriu a gaveta à procura deles, deparando-se com o seu próprio rosto a fitá-la. Era uma fotografia dos dois que Sarah tinha tirado. Anthony estava em pé atrás dela, a cabeça inclinada sobre o seu ombro, sussurrando-lhe qualquer coisa ao ouvido que a fez sorrir. Camilla tirou a fotografia da gaveta e ficou a olhar para ela durante muito tempo. Depois, meteu-a debaixo da almofada e apagou a luz. Apesar do zunido de um mosquito solitário e persistente, sucumbiu a um sono sem sonhos.
Passava das dez quando chegou ao Norfolk Hotel. Edward andava às voltas na sala de estar. — Sabes que horas são? — perguntou ele, irritado. — Temos de sair daqui dentro de menos de uma hora. Já começava a duvidar que aparecesses. Acho que foi uma péssima ideia teres pernoitado em Karen. — Não vejo que diferença possa ter feito — disse ela. — Mandei passar a minha roupa a ferro ontem e já tomei banho. Só falta vestir-me. Fico pronta em dois tempos. — Voltaste ao hospital? — Ele estava a tamborilar com os dedos no aparador. — Voltei. Passámos por lá pelo caminho. Não há mudanças. Ele estava a dormir. Achas que podias mandar vir café? O carro funerário foi buscá-los pouco antes das onze e Sarah fez-lhes companhia na viagem silenciosa até à catedral. Edward olhava pela janela e Camilla fechou os olhos para se esquivar à possibilidade de conversa. A limusina preta e luzidia transpôs o portão de All Saints, estacionando debaixo das torres que flanqueavam as portas maciças. O bispo e o preboste desceram os degraus
para os receber. Um grupo de jornalistas e fotógrafos rodeou Camilla, disparando flashes, e ela apercebeu-se, com um choque, de que tinha afluído um grande número de pessoas à cerimónia. O alto-comissário britânico cumprimentou-a e Edward pegou-lhe no braço. Enquanto ele a conduzia para a catedral, Camilla ouviu um toque de sirenes e olhou para trás, vendo um Mercedes estacionar, flanqueado por duas motorizadas da polícia. O ministro do Turismo, Johnson Kiberu, tinha chegado. Ele apeou-se do carro, acompanhado pela mulher e rodeado por assistentes e guarda-costas. No cimo dos degraus, inclinou-se sobre a mão de Camilla e, mais uma vez, as câmaras detonaram à sua volta. Em seguida, entraram na catedral, sob uma abóbada de pedra cinzenta cinzelada, para ocuparem os seus lugares nos bancos. Ela parou junto de Lars e Hannah, que estavam do lado de dentro da porta com os dois filhos loiros. E um rapazinho africano. James Githiri. Camilla fez-lhes um gesto para que se sentassem com ela no primeiro banco vazio ao cimo da longa coxia. Lugares reservados à família que ela não tinha. A luz do sol matinal entrava a jorros através da rosácea, banhando-os num padrão cruciforme de vitral. A congregação avançou para os seus lugares e o órgão deu início às cadências declinantes da Tocata e Fuga de Bach, no momento em que o bispo e os prelados que o acompanhavam entraram em procissão solene em direcção ao altar-mor. Subiam volutas de incenso, enchendo o ar de um fumo aromático. O coro levantou-se do seu cadeirado e vozes graves ecoaram num hino de ressurreição. Rabindrah sentou-se ao lado da mulher e estendeu a mão a Camilla para lhe apertar os dedos. Ela fixou o caixão, envolto num pano mortuário branco, com uma coroa de rosas vermelhas em cima. Bruxuleavam velas nos altos castiçais de bronze que se erguiam como sentinelas à cabeça e aos pés do féretro. A catedral estava cheia. Não se tinha apercebido de que o pai era tão conhecido e respeitado. Mais importante ainda, nunca tinha conhecido os seus amigos. Estavam ali pessoas que tinham trabalhado com ele, que se tinham rido com ele, que tinham talvez até ouvido as suas confidências e conheciam parte das suas esperanças e receios. À excepção de referências ocasionais que tinham chamado a sua atenção nos jornais londrinos, pouco sabia da sua obra mais recente. Agora experimentava uma profunda tristeza pelo pouco que conhecia dos seus últimos anos de vida. Viu Johnson Kiberu e a comitiva dele, sentados no banco da frente do outro lado da coxia. Estavam presentes funcionários do Departamento da Vida Selvagem, dos Parques Nacionais e dos inúmeros organismos administrativos com os quais ele tinha colaborado. Reconheceu Erope das fotografias que Sarah lhe tinha enviado. Ele era agora guarda-caça principal numa das reservas do Norte e tinha conhecido bem o pai. Deviam também estar ali outras pessoas, pensou, que tinham sido uma parte importante da vida dele. Homens e mulheres que se tinham ido despedir de um amigo. Mas que eram estranhos para ela. À medida que a cerimónia se desenrolava, foi ouvindo as leituras da Sagrada Escritura, os responsos da congregação, os hinos, a homilia do bispo. Levantava-se, sentava-se e ajoelhava-se mecanicamente, guiada por Edward, vagamente consciente da mão dele no seu braço a conduzi-la ao longo da liturgia. O caixão de George estava diante dela mas os seus olhos fitavam-no sem o ver, atentos noutro lugar. O rosto de Anthony ocupava o seu espírito e, mais uma vez, viu o desespero e a dor nos seus olhos. Quase perdera a vida para tentar salvar o pai. Pensou nele a caminhar em passos largos à sua frente, na savana crestada de Samburu, a escalar um kopje para se sentar nas pedras com os braços
à sua volta, a saltar para a sela da sua égua favorita com as compridas pernas à procura dos estribos. Ouviu o seu riso, recordou-o a conduzi-la para a pista de dança em Nairobi, fazendo-a rodopiar até ela ficar tonta. Agora, era um homem marcado; perdera uma perna. Quebrado e mutilado, ser-lhe-ia quase impossível encarar um futuro que prometesse verdadeira realização, Camilla pensou se haveria outra mulher na sua vida que o ajudasse agora, que o salvasse, que tentasse levá-lo a recuperar a alegria e a confiança. Caiu de joelhos, enterrando o rosto nas mãos, e Sarah debruçou-se, perguntando-lhe se precisava de ajuda. Ela abanou a cabeça e voltou a levantarse. Seguiu-se mais um hino e então sentaram-se, quando Johnson Kiberu subiu ao púlpito para proferir o seu elogio fúnebre. Camilla levantou a cabeça para ouvir. — Meus amigos — começou o ministro —, estamos aqui reunidos para prestar tributo ao nosso bom amigo e colega George Broughton-Smith, por ocasião do seu falecimento. Um homem que amava o nosso país e o seu povo e que serviu o Quénia de inúmeras formas. Chegou aqui, nos anos anteriores à Uhuru, para prestar assistência na transição da nossa grande nação para a liberdade. E voltou depois da Independência para servir no campo da conservação e do desenvolvimento, angariando fundos e trabalhando com o nosso governo, dando apoio aos parques e ao meu próprio ministério do Turismo nos nossos esforços para proteger o nosso maior bem. Teve sempre consciência da necessidade de encontrar um equilíbrio entre a protecção da vida selvagem do Quénia e a provisão de terras e alimentos para o nosso povo. Tivemos frutuosas conversas e passámos muitas horas a conceber uma estratégia que garantisse o alcance destes objectivos cruciais. Ele era um homem hábil na política e na administração. Mas era também um homem que apreciava andar no mato, activamente envolvido nos projectos por que era responsável. E foi aí que perdeu a vida. Num trágico acidente de helicóptero, durante uma missão de conservação na Reserva dos Masai Mara. «Na última ocasião em que estive com ele, disse-me que contribuir para o futuro do nosso grande país era a sua paixão e a sua vocação. Que continuaria a canalizar todas as suas energias para ajudar os quenianos a construir um futuro próspero, a tornar o seu santuário de vida selvagem no melhor de toda a África. E deu a vida por esse ideal. Agora devemos chorar, com a sua filha, Camilla, e os seus amigos e colaboradores, a perda de um grande homem. E devemos fazer a promessa de que o seu amor pelo Quénia e o seu sacrifício serão lembrados, continuando a valiosa obra em que se envolveu. Assim, apelo hoje a todos para que se juntem a mim, num símbolo de unidade, em que o povo do Quénia trabalhará em conjunto para a harmonia e prosperidade de todos os cidadãos. — Levantou o braço com o punho cerrado e gritou a última palavra a plenos pulmões. — Harambee! Após breves segundos de silêncio, todos os homens e mulheres presentes se puseram em pé e o grito elevou-se até à alta abóbada da catedral: — Harambee! Harambee! Quando as vozes se calaram, o órgão soou de novo e o coro começou a cantar o hino final. Os portadores do caixão avançaram e colocaram-no sobre os ombros e o cortejo começou a descer lentamente a coxia. Edward conduziu Camilla para o forte sol tropical e ela deteve-se nos degraus da catedral, recebendo condolências dos presentes e agradecendo a todos quantos tinham participado na cerimónia. Seguiu-se mais uma explosão de flashes quando Johnson Kiberu fez as suas despedidas. Em seguida, Camilla viu-se na paz tranquila do cemitério, olhando para a profusão de tributos florais que estavam a ser retirados do carro funerário. Viu uma coroa enorme de rosas brancas, com uma mensagem presa numa letra grande e cheia: «Profundos pêsames. Sabes
onde me encontrar se precisares de mim. O teu amigo de sempre, Tom Bartlett.» Baixou-se e tocou nas flores perfumadas com gratidão. Depois das orações e bênçãos finais e de o caixão ser descido à terra, abateu-se sobre Camilla um peso terrível de futilidade. Fechou os olhos e encostou-se a Edward. — Preciso de voltar para o hotel — disse ela. — Preciso de me deitar. Quero passar algum tempo sozinha. No chalé, tentou acalmar-se mas estava à beira das lágrimas, desmoronando-se por detrás do colete-de-forças emocional que impusera a si própria. Numa das salas de jantar privadas, os amigos estavam à sua espera e não podia desiludi-los. Trémula, respirou profundamente e, pela primeira vez em muitos anos, rezou a pedir forças, terminando com um apelo ao pai. — Ajuda-me, papá — sussurrou. — Acompanha-me neste terrível momento e ajuda-me, por favor. Quando finalmente entrou na sala, os primeiros a cumprimentá-la foram Dan e Allie. — Ele era um grande homem com uma grande visão — disse Dan. — Vamos sentir amargamente a sua falta, tanto como amigo pessoal, como pelo seu contributo para a vida selvagem no Quénia. — Passámos bons momentos juntos — disse Allie. — Ele amava-te profundamente e só queria que pudesses ter partilhado alguns deles connosco. — Eu também. — As palavras de Camilla estavam carregadas de remorso. — Bem, talvez um dia nos possas visitar no acampamento — disse Dan. — Talvez com o Rabindrah e a Sarah quando eles nos visitarem. Dar-nos-ias muito prazer. A recepção foi uma ocasião constrangedora e foi difícil manter a conversa ligeira e normal em atenção às crianças. Lars apresentou-as com orgulho. — Lembras-te da tua afilhada, a Suniva — disse ele a Camilla. — Já está uma senhora, vai fazer quatro anos. Este tigre aqui é o Piet. E este é o James Githiri. Camilla olhou para o filho de Simon. Era de constituição franzina, muito tímido, e manteve-se afastado, os seus pequenos dedos agarrando a manga do casaco de Lars. Olhou para Hannah e viu o terno encorajamento na sua expressão ao empurrar o rapaz para a frente. Ele olhou para ela com grandes olhos redondos e assombrados. — Porque é que estás com esse chapéu grande e preto? — perguntou Suniva. — Porque é que estás tão triste? Posso experimentar o teu chapéu? — Claro que podes — disse Camilla. — Fazemos isso depois do almoço e, se não te estiver muito grande, podes ficar com ele. Durante a refeição, as crianças observaram Camilla com olhos interrogativos, visivelmente fascinadas com a bela senhora de vestido preto e cabelo dourado claro. Ela reparou na retracção inicial de Lars e atribuiu-a à reprovação do seu súbito desaparecimento. Estava provavelmente zangado por ela ter afligido Hannah. Mas, passado algum tempo, voltou a ser caloroso com Camilla e ela sentiu-se sensibilizada com as pequenas cortesias e amabilidades com que a cumulou. Conversaram sobre Langani, o lodge e o livro sobre o Rift Valley em que Sarah e Rabindrah estavam a trabalhar. A conversa recaía repetidamente no tema da vida selvagem e do extraordinário contributo que George Broughton-Smith dera a tantos aspectos da conservação. Quando o café foi finalmente servido, Camilla levantou-se e chamou Edward à parte. — Vou até ao hospital — disse ela. — A Sarah leva-me e a Hannah vem connosco. O Lars vai ficar aqui com as crianças, podem ir para a piscina. Também te fazia bem passar uma ou duas horas
na piscina. Ou dormir a sesta no chalé. — Quanto tempo vais demorar? — perguntou ele. — Queres que reserve uma mesa para todos para o jantar? — Não sei — disse ela. — Neste momento, não consigo pensar em reservas de mesas. — Também temos de tratar da reserva das passagens aéreas. Preciso de estar em Londres no fimde-semana, porque tenho consultas na segunda-feira. — É demasiado cedo para decidir quando viajamos — disse ela. — Só quero chegar ao fim do dia de hoje. Não sou capaz de planear mais do que isso. — Camilla, todos nós vamos fazer tudo o que pudermos por ele — disse Edward. — Mas é mais fácil organizar as coisas a partir de Londres. Toda a ajuda de que ele precisar pode ser organizada de lá. Temos de voltar para casa, querida. Estava até a pensar na hipótese de partirmos esta noite. Há lugares disponíveis na companhia aérea em primeira classe. Já verifiquei. — Não sei. — Meu amor, eu sei que é uma situação extremamente complicada. Mas ficares aqui, muito ou pouco tempo, não te vai ajudar em nada. Não te vai trazer paz nem… — Como é que sabes o que é que me vai trazer? — perguntou ela. — Ou onde vou encontrar paz? A expressão dele alterou-se e o seu tom tornou-se frio e reprovador quando voltou a falar. — São horas de ir para casa, Camilla. — Não sei — repetiu ela. — Não devias pedir-me para decidir agora. — Estou a pedir-te — disse Edward, agarrando-a pelos ombros. — Quero que me digas que vais nesse avião comigo. Se não for hoje, amanhã. Sei o que é melhor para ti, meu amor. Sabes isso com certeza. Ela viu que a dúvida começara a ensombrar-lhe o olhar e afastou-se rapidamente, antes que ele pudesse continuar a insistir. — Agora vou ao hospital — disse ela. — Não faço ideia a que horas volto e não há mais nada que possa dizer agora. Telefono-te quando puder.
Quando entraram de mansinho no quarto de Anthony, ele estava acordado, os olhos ligeiramente desfocados. — Todas juntas. — A sua voz saiu áspera. — Que visão divinal! Abraçaram-no, cada uma delas tocando-lhe no rosto com ternura e sorrindo-lhe, compondo pequenas frases de afecto e apoio. Pouco depois, ele sentiu-se cansado, começando a perder a concentração. — Se quiseres ficar mais algum tempo, nós esperamos lá em baixo — disse Hannah. Camilla sentou-se e pousou a mão no braço ligado de Anthony. — Acabou — disse ela. — O funeral e o resto. Ele agora está em paz e acho que posso tirar lições disso. — Quando é que partes? — sussurrou ele, de olhos fechados. Ela não respondeu, mas levantou-se e inclinou-se sobre ele, pousando os lábios na sua testa para o beijar suavemente. Depois colocou-lhe os dedos na boca e traçou os seus contornos antes de beijá-lo novamente. Ficou chocada com a força com que ele lhe afastou a mão. — Não — disse ele. — Não tenhas pena de mim agora porque sou um aleijado. Não me tornes ainda menos homem, sentindo piedade de mim porque, em lugar de uma perna, tenho um coto
repugnante. Porque estou queimado e marcado. Não faças isso. Vai-te embora. Por amor de Deus, vai. — Não se trata de piedade — disse ela. — As tuas queimaduras hão-de sarar. Os médicos vão enxertar nova pele nos pontos afectados e elas vão sarar naturalmente. Eu sei porque conheci muitas pessoas que estavam a recuperar de queimaduras quando sofri o corte na cara. E vais poder caminhar, Anthony. Vai levar tempo e requer prática mas vais conseguir. Ouviu um som e, a princípio, não quis acreditar na sua origem, um uivo que começou no mais fundo das suas entranhas e lhe saiu dos lábios como um longo e contínuo gemido. Esbracejando desesperadamente na cama, chorava, gemia e gritava. A porta abriu de supetão e num relâmpago as enfermeiras puseram-se ao lado dele, acalmando-o e falando com ele em tons bondosos mas firmes. Camilla recuou para o canto mais afastado do quarto, tomada de tremuras, enquanto o arrepiante som esmorecia e se extinguia. Mas, ao fim de alguns minutos, ele voltou a gritar, um berro desalmado, insistindo que tinha a perna a arder, que não aguentava a dor agoniante. Por fim, soergueu-se, debatendo-se contra a pressão calmante das enfermeiras, dirigindo a sua dor a Camilla, gritando-lhe que queria morrer, que ela devia deixar de o torturar, que devia partir e nunca mais voltar. Ela fugiu do quarto, doente e abalada, e esperou no corredor, encostando-se à parede com os braços à volta do corpo. — Foi alguma coisa que eu fiz? — Camilla estava à porta quando a enfermeira Thorpe apareceu. — Não, minha querida. Infelizmente, há momentos em que ele não consegue controlar tudo. Quando as recordações o assaltam. — E a dor na perna? Não se pode fazer nada? — É um problema difícil. Chama-se dor-fantasma. Não existe senão na mente da pessoa. Quase todos os amputados acabam por experimentá-la. Amputados. A palavra atingiu-a com força, debilitando a sua determinação. Emitiu um som estridente de angústia, como um pio, e rodou nos calcanhares, correndo pelo corredor como uma louca até à sala de espera e lançando-se nos braços das amigas. Das irmãs. A única família que tinha, a sua única fonte de coragem e conforto. Sentaram-se as três enquanto ela descrevia a raiva e o medo de Anthony e a desolação dos gritos que ele tinha soltado. — Ele pensa que eu estou aqui por piedade. Mandou-me partir e nunca mais voltar. Só piorei as coisas para ele — disse Camilla, baloiçando-se para trás e para a frente, tomada de angústia. — Não sei como hei-de confortá-lo, o que dizer e fazer. Oh, meu Deus, pensei que podia ajudá-lo e afinal só lhe causei dor e sofrimento. Não sei como lidar com isto. — Camilla. — Sarah segurou nela pelos ombros. — Camilla, o que é que queres fazer? — Quero ajudá-lo. — Porquê? — perguntou Sarah. — Diz-me porquê. Camilla abanou a cabeça. Levantou-se e aproximou-se da janela, sem olhar para nenhuma das amigas. — Ouve, Camilla. Não o desiludas agora. Se amas este homem, diz-lhe que o amas porque talvez não tenhas outra oportunidade. Eu nunca tive oportunidades suficientes para dizer ao Piet que o amava e precisava dele. A Hannah não o abraçou naquela manhã quando ele nos deixou pela última vez. Não lhe disse, mais uma vez, que também o amava. E nunca se despediu do pobre Janni nem ele dela. Tu perdeste a Marina e não foste capaz de dizer ao teu pai que ele era um bom homem. — Não há certezas nesta situação — disse Camilla. — Não posso estar certa de um futuro.
— Todo o amor é um risco — disse Sarah. — Mas, se não corrermos esse risco, a oportunidade pode escapar para sempre. Eu tive de dar esse passo com o Rabindrah e estou grata por tê-lo dado. Se amas o Anthony, volta lá acima, Camilla. Vai dizer-lhe que o amas. Fica com ele, diga ele o que disser. Toma a decisão de nunca mais fugires, de nunca mais deixares passar um só momento em que lhe possas dizer o que ele significa para ti. Porque não sabes se terás a dádiva de mais um dia, ou até de mais uma hora, para partilhares com ele. As lágrimas corriam-lhe agora pelo rosto. Pelo rosto das três. Sarah recuou, posicionando-se ao lado de Hannah. Estendendo a mão, deu um leve empurrão a Camilla e ficaram as duas a vê-la afastar-se no corredor, não a perdendo de vista até ela erguer a mão para bater à porta e entrar no quarto de Anthony.
GLOSSÁRIO
africânder – pessoa de origem bóer, da África do Sul asante – obrigado(a) askari – polícia ou guarda banda – bangaló ou casa pequena bhang – marijuana bibi – mulher, esposa boma – cerca vedada para habitações e gado bundu – mato bwana – tratamento de respeito para com um homem branco ou patrão cafre – termo pejorativo para um negro dawa – medicamento debbi – recipiente de metal para líquidos domkopf – idiota, parvo duka wallah – lojista fisi – hiena gari – veículo, carro hapana – não haraka – depressa harambee – esforço conjunto hodi – olá, está alguém em casa? Iko simu – Há um telefonema jambo – viva, olá kali – feroz, zangado, brusco kanga – tecido de cores vivas, usado por mulheres karibu – bem-vindo(a), entre Kirinyaga – deus quicuio, que se julga habitar no monte Kirinyaga ou monte Quénia kitenge – uma peça de tecido de cores garridas kopje – afloramento rochoso kuni – lenha lekker – maravilhoso, fantástico lugga – leito de rio seco
mahindi ou mealie – espiga de milho manyatta – habitação tradicional das tribos Masai e Samburu Mau-Mau – violenta insurreição da tribo dos quicuios, inicialmente contra os colonos brancos memsahib – tratamento de respeito para com uma mulher branca mpishi – cozinheiro munt – termo pejorativo para um africano mzee – tratamento de respeito para com uma pessoa de idade o Mzee – tratamento dado a Jomo Kenyatta que se tornou presidente do Quénia mzungu – estrangeiro (geralmente branco) ndio – sim ngalawa – canoa esculpida num tronco ngombe – vaca nguvu – vigor ou genica nkosi – patrão, senhor nyoka – cobra panga – grande faca de lâmina chata como uma machete pole – lentamente ou peço desculpa pole sana – muito lentamente ou peço muita desculpa pombe – álcool ilegal de fabrico caseiro posho – refeição de milho moído usado como passadio rafiki ya zamani – velho amigo rungu – pau grande salaams – saudações, como olá, por exemplo salwar kameez – tipo de túnica com calças samahani – perdão sasa hivi – já, imediatamente shamba – pequena propriedade, jardim shauri – problema ou discussão ou pomo de discórdia shifta – bandidos somalis shitani – demónio, espírito maligno shuka – cobertor vermelho tradicional usado pelos guerreiros Masai e Samburu sijui – não sei sukuma – empurra toto – criança (abreviatura de mtoto) tsotsis – insurgentes terroristas na Rodésia Uhuru – liberdade, o termo político para Independência veldt – savana herbácea watu – homens, serviçais wazungu – brancos
yaapie – termo para uma pessoa de origem africânder