Ficha Técnica Título original: VILLA SERENA Título: Cartas da Toscana Autor: Domenica de Rosa Capa: Maria Manuel Lacerda Imagem da capa: Susan Fox/arcangel-images.com Fotografia da autora: Jerry Bauer ISBN: 9789892317977 Edições ASA II, S.A. uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201 © 2007, Domenica de Rosa Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor edicoes@asa.pt www.asa.leya.com www.leya.pt
Para a minha mĂŁe e para Giulia e Sheila, as minhas irmĂŁs
PRIMEIRA PARTE
VERÃO
1 Cartas da Toscana por Emily Robertson
H
oje tenho estado a pensar sobre a hora de ponta. Sobre o trajeto que costumava fazer para ir trabalhar quando estava em Londres: o caminhar apressado por entre o fumo dos tubos de escape dos carros e os sacos do lixo; a luta breve mas violenta para conseguir entrar no metro e a «aconchegada» viagem encurralada debaixo de um sovaco alheio, pedir desculpa sempre que alguém me pisava, a multidão que inundava as escadas rolantes para sair da estação, e, por fim, a chegada à minha secretária, completamente exausta. Atualmente, o meu trajeto para ir para o trabalho é o seguinte: acordar com o operático cantar do novo galispo dos meus vizinhos, abrir as pesadas portadas de madeira das janelas, deixando o sol da manhã iluminar cada centímetro do quarto com vigas de madeira e chão de pedra, descer ao rés do chão para beber um espresso e comer uma talhada de melone bem maduro e uns quantos figos, tomar um duche na casa de banho servida por uma vista de cortar a respiração – hectare e meio de encosta toscana ininterrupta –, vestir uma saia de algodão fino e uma T-shirt, e, finalmente, dirigir-me lentamente para a minha mesa no terrazzo por baixo das oliveiras. Sentar-me. Pensar. Respirar. Em dias assim não me preocupo com a mais recente ideia do meu marido de comprar um porco e lançar-se na caça às trufas. Também não me preocupo com a predileção que a minha filha mais velha tem por ficar sentada na piazza a admirar os rapazes italianos que vão passando, nem com a recusa da minha filha mais nova em comer outra coisa que não uvas descascadas e chocolates Mars. Não me preocupo com o que nos disse o velho Romano, sempre tão querido: que a apanha da azeitona deve ser feita quando a lua estiver em Touro. Ou que a acqua minerale que,
espantosamente, jorra da nossa nascente privativa, diminuiu muito e agora é apenas um pingar amuado. Não, não me preocupo com nada. Sento-me e penso. E, quando penso na hora de ponta, sorrio. – Mãe. Estamos outra vez sem água. Emily Robertson olha para a sua filha mais velha, parada sob um foco dourado de luz do sol. Por detrás dela, o tom prateado do olival funde-se com o amarelo suave das colinas, passando a ocre junto à linha do horizonte; os pinheiros, de tão escuros, resultam quase hipnóticos, e a casa, com as suas fachadas de um tom de terracota sob a luz do entardecer, parece ter sido descolorada para um rosa muito suave. Tudo é de uma beleza quase excessiva e Emily não sente o menor prazer em contemplar aquela vista. – Oh, Céus – responde, num fio de voz. À sua frente, sobre a mesa, o computador portátil cintila e ela pressiona o botão «enviar». Mais uma das «Cartas da Toscana» que foi despachada. – Oh, Céus? É tudo? Oh, Céus? Não tens mais nada a dizer? – Siena, a transbordar de fúria indignada, parece prestes a subir pelos ares, qual Assunção da Virgem dos tempos modernos. – Vou encontrar-me com o Giancarlo daqui a uma hora e não posso acabar de lavar o cabelo. Não há água em lado nenhum nesta casa estúpida. Credo! Não admira que o pai nunca esteja aqui. – Ele vai voltar amanhã – responde Emily, assaltada por um ligeiro, ligeiríssimo receio. Siena ignora-a. – E o meu cabelo? – Há água na chaleira – diz Emily. – Eu vou buscá-la. Levanta-se da mesa, fazendo uma careta ao sair da sombra do terraço. É quase meio-dia e o sol está no máximo da força. Emily sente-o a martelar-lhe a cabeça enquanto atravessa a relva ressequida e sobe os pequenos degraus de pedra até à porta da cozinha. Siena segue-a, silenciosa e atenta, recusando-se a ser serenada. A cozinha está escura e fresca. Os pés descalços de Emily contraem-se de prazer ao pisar o frio chão de pedra. Os restos do pequeno-almoço – Corn flakes, Marmite e Coco Pops, tudo trazido de Inglaterra – continuam sobre a mesa. A chaleira, deixada sobre um dos bicos do fogão (é impossível
encontrar uma chaleira elétrica em Itália), ainda está meio cheia de água. Humildemente, Emily oferece-a a Siena. Contrariada, a rapariga resmunga um agradecimento e sai da cozinha em direção ao pequeno lanço de escadas que vai dar aos quartos. Chegando à porta, para. As despedidas azedas são a sua especialidade. – A propósito, mãe… – diz. – Tens a saia rasgada atrás. Não reparaste? A filha mais nova de Emily, Paris, escreve no seu diário: «Ó negrume, negrume, negrume, por entre as labaredas do meio-dia.» Detém-se um instante a contemplar aquelas palavras, aprazivelmente negras sobre a página vazia, e pensa que provavelmente não há mais nenhuma rapariga de treze anos no mundo inteiro capaz de citar Samson Agonistes de uma forma tão espontânea e ao mesmo tempo tão relevante. Afinal, ali está ela, com o horrível e escaldante sol italiano a irromper pela sua janela (é verdade que ainda não é exatamente meio-dia, mas todos os grandes escritores se permitem certas liberdades ao lidar com os factos), e o desespero que sente é, muito simplesmente, negro. Ligeiramente reconfortada pela ideia do negrume do seu desespero, Paris volta-se de costas na cama e fica a olhar para o teto. Tem vestidos apenas uns calções de futebol e uma camisola interior branca, mas está a assar, e o calor deixa-a mole e exausta. A mãe deu-lhe uma ventoinha para o quarto, mas o seu único efeito parece ser deslocar o ar quente de um sítio para outro. Os tetos da casa são o orgulho da sua mãe, alvenaria autêntica suportada por vigas arqueadas e escuras, como numa catedral, costuma ela dizer. Mas, fitando o teto, Paris sente-se como se estivesse no interior da caixa torácica de um monstro pré-histórico. Tudo original, diz a sua mãe, é como viajar para trás no tempo. E o problema é exatamente esse: vai-se viajando cada vez mais para trás, até que, por fim, se deixa de existir e se fica simplesmente a flutuar numa matéria escura e horrível. O sol brilha, os grilos cantam e nunca se passa nada, a não ser ela, Paris, que se vai sentindo cada vez mais infeliz sem que ninguém dê por nada. «Odeio esta casa», escreve, pelo que lhe parece a trilionésima vez. «Odeio a Toscana, odeio Itália e odeio não ter amigas nem nada para fazer para além de ficar deitada na cama à espera de que fique mais fresco, para depois poder, talvez, ir dar um passeio.» Faz uma pausa, pensando em como odeia a expressão «ir dar um passeio». A mãe costumava usá-la quando ainda viviam
em Londres: domingos à tarde, almoços com comida a mais, futebol na televisão, «Vamos dar um passeio». O pai estava sempre demasiado cansado depois de ter passado a semana a trabalhar, Charlie ainda era muito pequeno e nem valia a pena sugerir a Siena qualquer coisa que se parecesse com exercício físico. Por isso, de todas as vezes, iam apenas ela e a mãe. O passeio vagaroso, longo e entediante em que passavam pelas lojas entaipadas, e iam até ao parque, onde as famílias tentavam fazer voar papagaios de papel embora não soprasse vento algum, e rapazes de cabeça rapada jogavam futebol com o que parecia uma violência despropositada. Se tivessem um cão, talvez fosse diferente; um cão teria dado um sentido àqueles passeios, mas Charlie (só podia ser!) tinha asma. «Mais uma razão para nos mudarmos para um clima mais quente», dissera a mãe, toda entusiasmada. Mais uma razão para detestar Charlie. «Um passeio», escreve Paris. «Nem sequer podemos passear por estas colinas estúpidas porque estão cheias de horríveis pedras soltas e bocados de raízes de árvores, e, mal chegamos ao fundo de uma colina, encontramos logo outra pela frente. Não há um único bocado de chão plano na Toscana, e, se houvesse, os rapazes da escola faziam lá um campo de futebol, porque não pensam em mais nada a não ser no futebol.» Recosta-se, exausta de raiva, e então a porta abre-se (sem ninguém ter batido antes, claro) e Siena entra apressada, com o cabelo ensopado e colado aos ombros. – Paris, emprestas-me o teu elástico vermelho para o cabelo? – Não – responde ela, de olhos fechados. – Oh, por amor de Deus! – Siena fica furiosa, embora, bem lá no fundo, aquela resposta não a tenha surpreendido. – Para que é que precisas dele? Agora, com o cabelo tão curto, nem o podes usar. – Decidi guardá-lo como ornamento – responde Paris, ainda de olhos fechados. – Credo, és mesmo patética. – Siena recua para a porta, onde faz uma última e desesperada tentativa: – Olha que eu digo à mãe… Paris solta uma risada de desprezo. O seu objetivo é fazer Siena calar-se de uma vez – e resulta. Olimpia, a mulher a dias e ocasional babysitter de Emily, estaciona a sua
arquejante Ape junto à porta da cozinha, que está aberta. Depois, pega carinhosamente em Charlie, um menino de três anos, que adormeceu durante a vinda da creche – vai para lá três manhãs por semana, para aprender canções italianas e fazer pinturas com massa seca e cola brilhante. – Carissimo. – Olimpia beija-lhe os cabelos louros e despenteados. Charlie acorda e afasta-se, mal-humorado. Por vezes, quando está bem-disposto ou quer arreliar a mãe, senta-se no colo de Olimpia e deixa que ela lhe cante uma canção sobre uma grila e um gafanhoto que se vão casar. Noutras alturas, é frio e distante tanto para a mãe como para Olimpia. Apesar disso, as duas continuam a adorá-lo sem reservas. – Nem se pode dizer que ele seja especialmente interessante – queixam-se Siena e Paris em uníssono, mostrando-se unidas neste tema como em nenhum outro. – Ele não é nada de especial – observa Paris. – É pequeno, apenas isso. Os anões também são pequenos. – É um rapaz – responde-lhe Siena, sombria. Na cozinha, Emily remenda o seu vestido, desanimada. Como não se quis dar ao trabalho de se despir, torceu-o, e agora está a coser o rasgão com pontos largos e desiguais. Segurando Charlie nos braços, Olimpia observa-a com uma expressão crítica. – Uno strappo – explica-se Emily, num tom de desculpa. Tem a impressão de que as mulheres italianas jamais rasgariam a roupa, e de que, caso isso acontecesse, teriam mulherzinhas (albanesas, provavelmente) para os coser. Ainda assim, jamais uma mulher italiana se deixaria ver com um vestido florido de algodão pelos tornozelos. – Carlito é stanco – responde-lhe Olimpia. Em certas alturas, apenas fala com Emily em italiano, embora noutras demonstre uma considerável, ainda que coloquial, fluência na língua inglesa. – Charlie! Meu querido! – O rosto de Emily transforma-se completamente. Paris, parada à porta a observar aquela cena, acha que a cara da mãe fica descaída e inchada de cada vez que olha para o filho mais pequeno. Prefere vê-la de rosto esticado e animado, com cada emoção a ser anunciada antecipadamente, como acontecia nos tempos ditosos antes de Charlie ter nascido. Quando ainda viviam em Londres. – Quero chocolate – pede Charlie, naquele tom choramingas que passou a usar desde que descobriu que resulta nas duas línguas.
– Querido – responde-lhe Emily –, nós já tínhamos combinado: só um bocadinho pequenino depois do almoço. E agora, o que é que vamos almoçar? Queres pasta? Ou preferes um ovinho? Não resulta. De boca escancarada, Charlie começa a berrar para o teto recentemente restaurado, dizendo que quer chocolate e que o quer agora, quer, quer, quer. Nem ele nem Olimpia acham que valha a pena mencionar que ele já comeu metade de um Kit-Kat na Ape. Paris retira-se, tão silenciosa como um fantasma. Quando ela era pequena, só comiam chocolate em alturas especiais, nos aniversários ou no Natal. Ainda se lembra do sabor das moedas de chocolate que ela e a irmã encontravam nas meias, no Natal – um chocolate estrangeiro e leitoso, diferente dos chocolates normais. Agora que pensava no assunto, não era muito diferente do chocolate italiano. A mãe costuma dizer que o chocolate italiano é melhor do que o inglês porque contém menos aditivos. Para Paris, tornou-se óbvio que são os aditivos o que o torna tão bom. Pensa nos chocolates italianos, enfiados em saquinhos azuis ou prateados e enfeitados com laçarotes, e depois visualiza os chocolates Mars, tão sólidos e brilhantes na sua libré preta e vermelha como se fossem o próprio Deus da Guerra1. A sua boca enche-se de saliva. Parece-lhe que já foi há muito tempo que tomou o pequeno-almoço (três uvas perfeitamente peladas e um grissino), mas prometeu a si mesma que não comeria mais nada. Mais do que isso, trata-se de uma espécie de acordo. Se ela não comer, as coisas melhorarão: a sua mãe deixará de andar sempre de volta de Charlie e ignorar todas as outras pessoas, o seu pai passará a vir mais vezes a casa e Siena simplesmente desaparecerá. Tudo isso está ligado, de uma maneira complicada que ela não compreende muito bem, à desagradável sensação no seu estômago. Uma sensação que, por mais desagradável que seja, quase se tornou uma companhia, uma amiga. Quando Paris chega à porta da cozinha, aquele zumbir de mosquito de uma Vespa anuncia a chegada de Giancarlo. Magro e quase assustadoramente moreno, sorri-lhe antes de gritar por Siena. Não venhas a correr, diz Paris em pensamento à sua irmã, pelo menos, obriga-o a descer da porcaria da mota. Mas um grito extático – «Pronta!» – ecoa pela casa e, envolta numa nuvem do melhor perfume da sua mãe, Siena aparece. Enquanto a Vespa se afasta da casa a guinchar, Paris vislumbra o elástico de cabelo roubado. Na cozinha, Charlie está alegremente sentado à mesa a comer um
chocolate. Emily está sentada diante dele, a cortar tomates. Olimpia vai varrendo ruidosamente o corredor. – O que é que te apetece almoçar, Paris? E que tal uma boa salada? – Odeio salada. – Oh, querida. – Outra vez aquela cara. – Dantes gostavas tanto… Não te lembras de quando ias tomar chá a casa da Rebecca e lhe pedias salada? Eu sentia-me tão orgulhosa de ti. – Mãe, eu tinha cinco anos. – Era isso que tornava a situação tão invulgar – responde Emily com grande sinceridade. – Se pensarmos no que a maioria das crianças de cinco anos come. – Estou a tentar não fazer isso – responde-lhe Paris, olhando ostensivamente para Charlie, que tem a cara toda suja de chocolate. – E que tal uma pizza então? – insiste a mãe. É óbvio que não percebeu o comentário. – Mãe, simplesmente não tenho fome. Está demasiado calor para comer. – Ao menos bebe alguma coisa fresca. Para a calar, Paris aproxima-se do lava-louça do autêntico balcão de cozinha rústico (fabricado em Milão e encomendado pela Internet). Da torneira pinga um miserável fio de água acastanhada. – Mãe! Estamos outra vez sem água. Longe dali, embora provavelmente não tão longe como lhe parece, Petra McAllister está sentada na cozinha, na cave da sua casa em Brighton, a ler o jornal. Lá fora, uma chuva pardacenta e oblíqua fustiga a marginal deserta. Os poucos veraneantes que se aventuraram a ir até ao molhe encolhem-se debaixo dos toldos vitorianos de orla ondulada; as luzes das diversões, que mal se veem por entre o nevoeiro, e a música omnipresente do DJ de serviço no molhe, conferem a toda a cena uma atmosfera estranha e surreal. Das colunas vai saindo aos berros uma alegre canção de verão sobre diversão, riso e bebidas à borla. Entretanto, a chuva cai sem tréguas e o céu está escuro. Petra mal se apercebe da chuva ou dos turistas encharcados no molhe. Já está habituada a Brighton no verão. Além disso, da sua janela subterrânea apenas consegue ver pés a caminhar apressadamente. Pés molhados e frios, inapropriadamente calçados com sandálias, pés presunçosos, de galochas, e, ocasionalmente, os pés descalços do exército dos sem-abrigo que dormem na
praça ali perto. Servindo-se de mais café, abre o jornal sobre a mesa. Consegue ouvir os rapazes no quarto de brincar lá em cima e, embora estejam aos gritos, parecelhe que aquilo faz parte da brincadeira. «Como te atreves a destruir a minha pista?!», grita Jake, mas a interpretação nasalada do tema de Tomás e os Amigos feita por Harry não é interrompida. Isso quer dizer que está tudo bem. Por hábito, Petra avança diretamente para a página da coluna «Cartas da Toscana». Ao lado do texto vê-se um elegante esboço de uma villa toscana recortada diante de uma encosta e ladeada de uma oliveira absolutamente perfeita. Petra pousa a caneca sobre a casa toscana e nota satisfeita que algumas gotas de café salpicaram o telhado pitorescamente inclinado. O verão na Villa Serena tem um ritmo próprio, lê. Acordo às seis horas, rodeada da cintilante beleza da madrugada, como uma talhada de melancia fresquinha, faço as tarefas domésticas que me apetece fazer, e, a meio do dia, não consigo resistir a dormir a sesta. Estou convencida de que durmo melhor nessas poucas horas do que alguma vez dormi em Londres. É um sono profundo e perfumado, embalado pelos grilos lá fora e pelo ligeiro zunir da ventoinha no meu quarto. Acordo durante a tarde, e por fim, ao anoitecer, sentamo-nos todos no terrazzo para a primeira refeição do dia em conjunto, enquanto as estrelas vão surgindo no céu. Com um suspiro, Petra pousa a sua caneca de café. Não consegue lembrarse da última vez que teve uma boa noite de sono, fosse ele perfumado ou não. Pensa em Emily Robertson, sua amiga desde a universidade. Por um lado, sente-se feliz por Emily estar a gostar tanto de Itália, mas por outro apetecelhe dar-lhe uma bofetada com toda a força naquela sua cara bronzeada. Também está cheia de saudades dela. Põe-se a folhear o jornal com indolência. Trata-se da edição de domingo (embora seja terça-feira) e as folhas são enormes e difíceis de manejar. O seu gato, ao qual Harry deu o nome de Tomás, embora o resto da família lhe chame Chefe da Estação2, salta pesadamente para cima do jornal. Petra desvia-o com um empurrão e começa a ler um artigo sobre os perigos de se beber café em excesso. Mas então para. Afasta mais ainda o gato gordo e felpudo, e, por baixo da sua pata esquerda, vê a fotografia de um homem na casa dos quarenta, atraente e com um meio sorriso estampado na cara. «Dr. Michael Bartnicki», lê, «especialista em neurologia no King’s College, em
Londres…» Depois, torna a ler o nome. – Michael – diz em voz alta. – Com que então, é essa a tua vida. Na Toscana, Emily está a passar algumas horas frustrantes a tentar resolver o problema da água. Começou por ligar para a Idraulica, a empresa de fornecimento de água, cuja sede é um verdadeiro esplendor futurista a apenas algumas colinas de distância dali. No entanto, apesar de ter alinhavado cuidadosamente umas quantas frases em italiano na sua cabeça («Non abbiamo acqua»), a mulher do lado de lá da linha parece não fazer a mais pequena ideia do que ela está a dizer, mantendo um silêncio incrédulo e eletrónico. Por fim, Emily pega em Charlie ao colo (Olimpia já foi para casa) e sai porta fora, arrastando-se para o seu pequeno Fiat. – Paris! – chama. – Queres vir dar um passeio de carro? Segue-se novo silêncio incrédulo, seguido por um resfolegar que Emily toma (acertadamente) por uma resposta negativa. O carro está a ferver. Charlie guincha quando as suas pernas despidas tocam no forro do assento. Freneticamente, Emily desce os vidros das janelas. – Vai ficar melhor assim que começarmos a andar – garante. Sem erguer o rosto, Charlie lança-lhe um olhar amuado. O carro de Paul tem ar condicionado, mas está no aeroporto de Pisa, aguardando o regresso do seu amo e senhor. «Sê razoável, querida», argumentou ele. «Não podes esperar que eu vá visitar os meus clientes num Fiat Panda.» Emily cedeu imediatamente. Ele acabava de invocar a palavra começada por «C»; na sua família, os clientes são sagrados. Agora, enquanto vão descendo o caminho que liga a casa à estrada, o ar quente entra pelas janelas como se um secador de cabelo gigante lhes estivesse a ser apontado. Ao menos Charlie fica mais animado, sobretudo quando Emily põe a tocar a sua cassete preferida – canções infantis interpretadas por um trio incansavelmente animado e com um reconfortante sotaque do Norte. Em Inglaterra, Charlie tinha rejeitado aquela cassete por ser uma coisa para bebés, mas ali agarra-se a ela como se fosse o equivalente auditivo à sua mantinha. Talvez sejam as vozes, tão alegremente inglesas com as suas vogais abertas e entoação aspirada. Emily não gosta de admitir que também ela acha as vozes obscuramente reconfortantes. A Idraulica fica a apenas alguns quilómetros dali, mas, por se situar no alto
de uma colina (à semelhança da Villa Serena), é necessário descer uma colina e subir pelo menos outras três. Esta região tem o nome de Montanhas da Lua, ou Alpe della Luna. É uma zona de colinas cobertas de árvores, vislumbrando-se ocasionalmente o brilho da pedra branca, de planícies impossivelmente rasas e de povoações situadas no cimo das colinas e rodeadas de muralhas, como fortalezas. A povoação mais próxima da Villa Serena é Monte Albano, uma cidadela medieval erguida em volta de uma torre quadrada e de uma pitoresca piazza com chão empedrado. Emily guia com dificuldade pelas suas ruas estreitas, entrando por uma arcada de pedra baixa e dispersando turistas à medida que avança aos solavancos e em contramão por várias ruas assinaladas com tabuletas onde se lê «senso unico» (já está em Itália há tempo suficiente para saber que fazer isto é permitido, senão mesmo essencial). Sai por outra arcada no lado oposto, desce a colina por uma série de curvas muito fechadas e poeirentas, cada uma oferecendolhe uma breve e aterrorizante vista de espetacular beleza. Na cassete, vozes alegres vão cantando a respeito de autocarros de dois andares. Tudo aquilo parece uma realidade a milhões de quilómetros dali. De mãos transpiradas a segurar o volante, Emily atravessa várias povoações de semelhante beleza, cada uma com o seu fundo bíblico de ciprestes e montanhas, passando por incontáveis igrejas e grutas (grotti?) à beira da estrada, numa sucessão ininterrupta de paisagens perfeitas. Quando tinham acabado de chegar à Toscana, Emily costumava soltar uma exclamação de cada vez que deparava com um arco de pedra a cair aos bocados ou com uma madona em lazulite, até Siena e Paris começarem a imitá-la impiedosamente: «Oh, vejam! É um caixote do lixo. Que encantador! Oh, olhem, é um típico toxicodependente italiano. Che carina!» Paul rira-se e Emily mergulhara num silêncio magoado. Ainda hoje continua a achar tudo aquilo muito belo, embora se veja forçada a admitir que é possível habituarmo-nos à beleza de tal maneira que esta se converte em apenas mais uma tarefa quotidiana: fazer as camas, preparar o almoço, varrer o chão, admirar a vista. Como um castelo moderno, a Idraulica é visível a quilómetros de distância, com as suas paredes recém-pintadas de branco a brilhar, ofuscantes, ao sol. Numa tabuleta, em letras pequenas e nada convidativas, lê-se: «Azienda Idraulica Comunale». Emily passa por uma sucessão de camiões-cisterna e estaciona diante da grandiosa entrada em mármore. Quando tira Charlie do
carro, ele olha para cima, espantado. – É um palácio? – pergunta. Depois do calor da tarde, a área de receção da Idraulica parece gelada. «É tão estranho», pensa Emily a tremer, «como, no espaço de um segundo, o nosso corpo se pode esquecer de que estava com calor.» Atravessam o que parece ser uma extensão interminável de mármore alaranjado e param diante de um balcão grotescamente decorado com serpentes de bronze. A profusão de ornamentos e o frio extremo começam a fazer Emily sentir-se como se estivesse no interior de um túmulo. Uma rececionista muito bem arranjada, barricada por trás das serpentes, olha para eles sem qualquer interesse. Emily começa a falar, hesitante: – Scusi. Abito a Villa Serena. Non abbiamo acqua. – Pagaram a fatura? – responde a rececionista num inglês perfeito, com as suas unhas elegantes a tamborilar no balcão. – Sim – responde Emily, passando submissamente para inglês –, o pagamento é por débito dire… A rececionista insere os seus dados de cliente no computador. – O pagamento do mês passado está em atraso – informa sem sorrir. – Ai está? Mas o banco… – O melhor é pagar-me agora – corta ela num tom inexpressivo – e resolver depois o assunto com o banco. Emily esvazia a sua mala de mão já muito usada (consegue sentir o olhar horrorizado da rececionista, que provavelmente prefere um modelo minimalista da Gucci, feito da pele de uma espécie em vias de extinção), e, por fim, lá consegue encontrar o seu livro de cheques. Preenche um com uma quantia exorbitante e entrega-o à rececionista. Charlie assiste a toda a cena de boca aberta. A rececionista imprime um recibo. – Carino – diz, apontando para Charlie, e depois volta-se novamente para o computador. Parece não haver mais nada a dizer. De regresso à Villa Serena, a água jorra triunfalmente das torneiras. Encantada, Emily toma um duche e dá um banho a Charlie. Depois vai sentar-se lá fora no terraço, observando o filho a brincar na terra sob as oliveiras. Uma ligeiríssima brisa sacode-lhe os cabelos húmidos. Emily fecha os olhos; de alguma maneira, pensa, talvez aquilo seja realmente o paraíso. Só ao fim de alguns segundos se apercebe de que Paris está a falar com ela.
– Mãe? O teu telemóvel estava a tocar. Recebeste uma mensagem. Emily estende o braço e agarra no telemóvel. «Deve ser o Paul», pensa. «É completamente viciado em mensagens escritas. Aliás, é viciado em todas as variedades de comunicação eletrónica.» Espera que ele não traga algum cliente consigo quando regressar no dia seguinte. Não lhe parece que consiga aguentar horas e horas a preparar crostini e saltimbocca enquanto homens de negócios alemães bebem Montepulciano e discutem autoestradas. «Tenho de ser melhor esposa», diz a si mesma. «Tenho de saber acolher outras pessoas na minha bela casa, sempre acalentada pela comida caseira e pela vida em família. Ninguém se importa com um pouco de desarrumação. Não posso ser tão neurótica.» Seleciona o ícone das mensagens escritas. A mensagem é sucinta: «desculpa querida. não vou voltar para casa. vou deixar-te. p.» 1 Entre outros significados, a palavra inglesa Mars designa Marte, o Deus da Guerra. (N. do T.) 2 Referência à série de animação Tomás e os Amigos.
2 Cartas da Toscana por Emily Robertson
N
as noites de sexta-feira, o jantar é sempre pasta e fagioli. Em Itália, o costume de não se comer carne à sexta-feira continua muito enraizado. O pescivendolo local faz uma fortuna a vender gamberetti, vieiras e uns peixes pequenos e cinzentos, parecidos com sardinhas. Até alguns restaurantes se recusam a servir carne, o que, verdade seja dita, não constitui o menor sacrifício num país tão rico em outras delícias culinárias. A Itália é um autêntico paraíso para os vegetarianos. Até a minha Filha Número Dois, que, em Inglaterra, comia mal-humorada feijões estufados com torradas, agora devora pizza napolitana e spaghetti con aglio. Pasta e fagioli é um prato tradicional toscano (em Itália, os toscanos são conhecidos como os «comedores de feijão») que nos chega por mão da Olimpia, o nosso tesouro. A Olimpia é um anjo de avental e lenço na cabeça, que apareceu aqui no primeiro dia para nos «dar uma ajudinha» e entretanto acabou por se tornar um membro da família. Cozinha para nós, limpa a casa e está sempre a ralhar-nos, mas não conseguiríamos viver sem ela. Enriqueceu a nossa vida em vários aspetos, mas talvez a sua dádiva mais importante tenha mesmo sido a receita de pasta e fagioli, uma inebriante fusão de feijão, tomate, alho e ervas. Na verdade, a receita deveria incluir bacon – devotamente omitido pela Olimpia à sexta-feira, mas por vezes eu adiciono-lhe um pouco de pancetta sem dizer à Número Dois. Portanto, nas noites de sexta-feira, a pasta e fagioli é cozinhada em lume brando no fogão aqui de casa. Sobre a mesa de madeira já limpa colocamos um jarro de barro com Chianti local. Num cesto de vime fumegam ciabatte (a propósito, em italiano, esta palavra significa «chinelos») estaladiços, acabados de sair do forno. O meu marido, que esteve fora uma semana em negócios, para à entrada, cheira o ar apreciativamente e diz: «Agora sei que
estou em casa.» Para: Petra McAllister De: Emily Robertson Assunto: Nenhum O Paul deixou-me. Bolas. Para: Petra McAllister De: Emily Robertson Assunto: Obrigada Muito obrigada pelo teu telefonema de ontem à noite. Ouvir a voz de outro ser humano foi muito importante para mim. Quero dizer, eu sei que os meus filhos são seres humanos, mas não posso falar sobre isto com eles. Acabei de lhes dizer que o pai ficou retido no trabalho; Deus sabe que eles já estão habituados a isso. Acho que a Siena desconfia de alguma coisa. Não para de me fazer perguntas, o que não é nada habitual nela. De uma forma geral, está sempre totalmente concentrada na sua própria vida: o Giancarlo, a escola, as roupas, etc. Mas agora não para de me perguntar quando é que o pai vai regressar, porque é que não telefonou, que reunião tão importante era essa a que ele teve de ir e por aí fora. Está a dar comigo em doida. A Paris não diz nada, mas isso é o que ela faz sempre. Perguntaste-me se isto tinha sido uma surpresa e eu disse-te que sim, claro que tinha sido. Até me zanguei contigo por me fazeres semelhante pergunta. Mas, na verdade, acho que não foi. Quero dizer, nunca pensei que o Paul me fosse deixar desta maneira, sem nenhum aviso, mas há muito tempo que já sabia que alguma coisa se passava. Ontem à noite não conseguia dormir, e então fui sentar-me no terraço e fiquei lá até de manhã, a pensar e a pensar. A dada altura ouvi um uivar aqui muito perto (sabias que ainda há lobos em Itália?), e então veio-me esta ideia à cabeça: «Era bem feita para o Paul se eu agora fosse devorada por um lobo e a culpa fosse toda dele.» Mas, na verdade, não seria bem feita coisa nenhuma; isso apenas tornaria mais fácil para ele começar uma nova vida com a outra, seja ela quem for. E sim, tenho a certeza de que há uma «seja ela quem for». Conheço-o muitíssimo bem. Ele pode estar farto de mim, mas nunca se daria ao trabalho de me deixar se não tivesse à mão uma alternativa melhor. Lembro-me de que, quando nos conhecemos, ele tinha sempre qualquer coisa combinada para sábado à noite. Se surgisse qualquer coisa mais interessante, ele cancelava o primeiro compromisso, mas nunca o fazia se a alternativa não fosse melhor. Por isso, tenho a certeza de que ele não deixaria uma mulher a menos que tivesse outra melhor à espera. Livra, que e-mail tão comprido e deprimente. Se fosse a ti, apagava-o. Quem me dera poder apagar todo o dia de ontem, ou talvez os últimos cinco anos, se isso não significasse ficar sem o meu querido Charlie. Costumam dizer: «A vida é uma porra.» Lembras-te de como o Michael preferia dizer: «A vida é uma farra e depois vai-se desta para melhor»? Às vezes, a nostalgia é o que mais custa. Cuida-te Em xxxx
Na segunda-feira de manhã, Emily está sentado no seu terraço e tenta ignorar Olimpia, que, lá dentro, vai resmungando a respeito dos hábitos sujos
dos Ingleses. («O que é um bidé?», imita ela, numa sarcástica voz de falsete.) Emily está a olhar para o ecrã do portátil. No cimo do ecrã está um ficheiro intitulado «CartasToscana50». Aquela será a sua quinquagésima coluna sobre as delícias da vida toscana. Desanimada, escreve um título, «Noites de verão na Villa Serena», que depois sublinha. Suspira. Não lhe ocorre um único comentário a respeito das noites de verão na Villa Serena. Do interior da casa chega o som do aspirador de Olimpia. Na base do ecrã do portátil, a bandeira da Microsoft acena-lhe animadamente. Siena e Paris foram até à piscina ali perto (Paris juntou-se à irmã e a Giancarlo, mas sob protesto). Charlie está a dormir a sesta. O prazo de entrega do texto é no dia seguinte, mas a mente de Emily parece-lhe vasta e vazia, ocupada com um único pensamento, uma coisinha de nada: «O Paul deixou-me, o Paul deixou-me.» Por estar tão habituada a não ter Paul por perto, a ausência dele não afeta a sua rotina diária; não sente a falta dos sapatos dele debaixo da cama, do seu corpo no duche, da sua voz a sussurrarlhe à noite. É como se precisasse daquele pensamento ridículo, apenas para não se esquecer de como a situação é séria. «O Paul deixou-me, o Paul deixou-me.» Desesperada, Emily escreve de enfiada uma série de palavras ligadas à Toscana: luz, calor, azeite, seco ao sol, vinho, terracota, colinas, vinhas, piazza, antipasti, rústico, intacto, cappuccino. Em seguida, tenta organizá-las em frases elegantes e elegíacas: «Comemos antipasti sob as vinhas na piazza rústica.» «Tomates secos ao sol, salpicados com um pouco de azeite virgem, são o antipasti perfeito.» «Um cappuccino bebido no calor da manhã, na bela piazza local.» Com um gemido, apaga as frases. Em seguida escreve uma nova lista de palavras: merda, foda-se, porra, sacana, cabrão. Sentindo o calor do sol na nuca, desvia-se até ficar à sombra da bela, rústica, etc., etc., vinha. Cachos de uvas balançam-lhe diante do rosto, qual ilustração da abundância (embora ela saiba que, na verdade, ainda não estão boas para comer; estão rijas e azedas). Dois cães de caça com sinos ao pescoço enfiam-se pela vegetação rasteira a correr e desaparecem na esquina da casa, entretidos com os seus assuntos. Sobre uma das rochas escaldantes, um lagarto toma um banho de sol, fechando os olhos com uma calma préhistórica. Emily fecha também os olhos e pensa no marido. «Ele deixou-me, ele deixou-me.» – Não estou a deixar os miúdos – explicou ele delicadamente quando ela
finalmente conseguiu falar com ele por telefone, na noite de sexta-feira, já muito tarde. – Estou a deixar-te a ti. – Mas porquê? – perguntou ela pela centésima vez. – O nosso casamento chegou ao fim – declarou Paul, como se aquele fosse um facto inquestionável que Emily andasse teimosamente a negar há já algum tempo. – Como podes dizer uma coisa dessas? Nem sequer conversámos… – Emily – interrompeu Paul, num tom muito sério –, não quero discutir mais este assunto. – Ai não? Mas quero eu! Afinal de contas, acabas de me dizer que o nosso casamento de dezassete anos acabou. Não achas que tenho direito a uma explicação? – Não sejas histérica, Emily. – Eu não estou histérica – replicou ela. – Estou furiosa, porra. Bateu com o telefone e depois passou as duas horas seguintes a tentar ligarlhe de volta. O telefone dele estava desligado. Em pânico, telefonou para os pais dele em Portsmouth. «De momento, o Derek e a Anthea não podem atender», ouviu-se do outro lado. Em seguida, ligou para o irmão dele em Gravesend. – Mas estamos a meio da noite, Emily – não parava de lhe dizer Anthony. – Eu sei. O teu irmão acaba de me deixar. Tenho de falar com ele. Sabes onde ele está? – Mas estamos a meio da… Emily desligou a chamada e ficou sentada às escuras na sala de estar da Villa Serena (com as suas vigas à mostra e lareira gigante), tentando acalmar a respiração. Depois enviou uma mensagem de texto a Paul («cabrão!») e escreveu-lhe um e-mail. A seguir apagou aquele e-mail e escreveu outro, que enviou a Petra. Foi até à cozinha e serviu-se de um grande copo de vinho. Custava-lhe beber porque a sua garganta parecia ter-se fechado, mas ela insistiu, gole a gole. Porque a teria deixado Paul? Os dois tinham sido felizes, não tinham? Claro que a mudança para um país desconhecido causara alguma tensão, mas isso era de esperar, disse a si mesma. Sim, vir para Itália fora ideia dela, mas Paul devia-lhe pelo menos isso, depois da Traição, ou não? E aparentemente a solução agradara-lhe; parecia estar em consonância com a ideia que ele fazia do seu próprio estilo de vida (uma villa na Toscana, esqui em Klosters, idas a Nova Iorque para as compras de Natal). Até criara a sua
própria empresa, cuja atividade consistia em vender propriedades italianas a famílias inglesas sonhadoras. E ela arranjara um emprego a escrever sobre como tudo aquilo era maravilhoso. Paul fora um sortudo por a ter do seu lado. Ela cuidara das crianças, tornara a casa acolhedora e passara os dias ali enfiada. A autocomiseração era perigosa. Voltou a respirar fundo. O que iria ser dela agora? O telefone tocou e ela apressou-se pelo corredor para o atender. Naqueles poucos segundos imaginou toda a reconciliação: Paul, choroso, a pedir-lhe desculpa, ela muito compreensiva e amável, o êxtase do reencontro. Uma segunda (ou terceira) lua de mel nalgum lugar exótico (que não Itália), longe das crianças. Um novo começo. Talvez até um quarto bebé. Mas não era Paul, era Petra. Agora, Emily está sentada ao sol, incapaz de se mover, e pensa: «Talvez nunca mais volte a ver o Paul.» Mas claro que o vai tornar a ver. Ele ligou-lhe finalmente no sábado à noite e propôs vir de avião até Itália no fim de semana seguinte, para os dois poderem «discutir tudo de uma forma mais sensata». – Discutir o quê? – Bem, o direito de visita, os advogados, tudo isso. Emily ficara estupefacta. «Direito de visita» tinha um cunho tão vincado, tão legalista. Como podia Paul, que certa vez, num quarto de hotel em Siena, a comparara à Vénus de Botticelli, estar a falar-lhe em direito de visita? – Emily? Estás aí? – Sim. Não achas que estás a avançar demasiado depressa? Ontem eu não fazia ideia de que havia um problema e agora já me estás a falar em advogados e em direito de visita. – Emily. – Um longo suspiro. – Já devias saber há anos que havia um problema. – Na verdade, não sabia. Emily escreve o seu nome na poeira que cobre o muro do terraço e pensa: saberia realmente há já muito tempo que alguma coisa estava mal? Sim, tinham passado por aquilo a que ambos se referiam como o seu «período de turbulência». Siena tinha doze anos e Paris tinha dez, e Emily começava a resignar-se à ideia de que não iria ter mais filhos. Paul andava a trabalhar dia e noite na criação de uma empresa e ela sentia-se só e abandonada. Siena andava na escola secundária e Paris começaria no ano letivo seguinte. Emily
recorda como a ideia de perder a reconfortante rotina de esperar pelas filhas junto ao portão da escola a assustava. Mas então descobriu que Paul ainda iria sentir mais a falta disso, visto que estava a ter um caso com uma das professoras, uma mulher que ele conhecera durante uma reunião de encarregados de educação. Emily deixou-o, foi viver para Brighton e pediu o divórcio. Mas depois reconciliaram-se. Foi Paul a pedir-lhe isso, pensa ela agora com azedume; veio a correr atrás dela e implorou-lhe que voltasse para ele. Emily recorda como naquela altura se sentia tão forte e determinada a respeito do problema. Ia divorciar-se de Paul e iniciar uma nova vida com as duas filhas. Mas então Paul apareceu em Brighton, implorando-lhe que lhe desse uma segunda oportunidade, e ela cedeu. «Desta vez tem de resultar», disse a si mesma. E, durante algum tempo, tudo correu bem. Paul tratava-a com muito carinho, como se estivesse a fazer-lhe novamente a corte, e, com o tempo, ela tornou a amá-lo. De súbito, encheu-se de desejo de ter um terceiro filho e Paul acedeu, quase sem ter de ser persuadido. Nasceu Charlie, um menino encantador que deixou ambos embevecidos. E então Emily teve a sua grande ideia. Deviam ir para Itália e começar uma nova vida, só eles os cinco. Uma vida ao sol, nova e perfeita. Recorda como a ideia dessa vida nova e perfeita, com as crianças a brincar debaixo das oliveiras, as tardes tranquilas passadas na frescura do terraço e a vista das colinas ao nascer do sol, lhe deu alento durante vários meses e a ajudou a suportar os horrores práticos da mudança, a histeria das crianças, o enfado de Paul, o dela, e os sentimentos reprimidos de pânico e de não se conseguirem adaptar. Mas é só agora que ela se pergunta se o marido terá chegado a partilhar realmente a sua visão. Seja como for, a verdade é que ele adorou a casa. Ambos se enamoraram daquela villa, durante umas férias mágicas em Siena. Deixando as crianças com os pais de Emily, tinham embarcado numa segunda lua de mel: de dia visitavam propriedades decrépitas, ao entardecer jantavam na famosa piazza e à noite faziam amor, escutando em fundo os sons da Toscana (os sinos das igrejas, as motas a passar na rua e a gritaria dos jovens italianos na brincadeira). Num final de tarde depararam com a Villa Serena, rosa-pálida ao sol do entardecer, e perceberam que estavam em casa. Mas então deu-se a mudança propriamente dita para a Toscana, o que ditou o fim dos seus idílicos tempos de turismo. Emily lançou-se nos trabalhos de renovação, mas sabia que Paul estava entediado e irritado com todo o caos e a confusão
necessários para converter a Villa Serena num paraíso toscano. Passava cada vez mais tempo ausente, regressando apenas para se queixar dos trabalhadores e, cada vez mais, da própria Toscana. Emily compreendeu tarde de mais que Paul, o fura-vidas urbano, nunca chegara a adaptar-se realmente ao campo. Sim, claro que ela já sabia que alguma coisa estava mal. Emily suspira novamente e desvia o portátil da luz do sol. Torna a abrir o documento intitulado «CartasToscana50» e escreve: «As noites de verão na Toscana, a beber vinho branco gelado e a ver as estrelas a surgir por cima das colinas distantes…» Paris está sentada junto à piscina, na única sombra disponível (meio guarda-sol). Ajeita o chapéu e puxa a T-shirt para baixo, de maneira a taparlhe os joelhos. Não vai apanhar um cancro de pele; não é como aquela estúpida da Siena, que está deitada no betão a ferver, diretamente exposta ao sol, e que puxou as alças do biquíni para baixo, deixando os ombros à mostra. Está mesmo a pedir que lhe apareça um melanoma, pensa Paris com azedume; tem a certeza de que a irmã não tinha aquele sinal na semana passada. Siena chama-lhe um «sinal de beleza». «Bela é a zona de Lake District», pensa Paris. «Isso que tu aí tens, minha cara, é a Morte.» A recordação de Lake District é tão maravilhosamente fria e inglesa que ela se vê obrigada a fechar os olhos por um instante para não se sentir tonta de tantas saudades de casa. Siena aproxima-se vagarosamente, agora com o biquíni azul quase a cairlhe do peito. Paris ainda não se tinha apercebido de como a irmã está a ficar gorda. Está com umas mamas enormes, todas transpiradas e a reluzir de óleo bronzeador, e, acima da parte de baixo do biquíni, vê-se claramente um pneu. Na verdade, nem é bem um pneu; é quase uma boia. Paris fecha os olhos. – Paris! Queres um gelado? – Não, obrigada – responde ela, de olhos fechados. – Então uma bebida. Devias, está tanto calor… – Não, obrigada. – Devias – insiste Siena. – Está bem – responde Paris, para se livrar dela. – Água. – Con gas? – pergunta Siena, tentando imitar o sotaque italiano. – Não – responde Paris, de dentes cerrados.
Siena afasta-se na direção do café, e Giancarlo e os amigos vão ter com ela. E então começam com aquelas brincadeiras alarves e barulhentas em que os Italianos parecem envolver-se por tudo e por nada: berros guturais («Aiii! Ai!»), gestos extravagantes e muitos empurrões, cotoveladas e riso. «Mas que motivo têm eles para se rirem tanto?», pensa Paris. Giancarlo, o filho de um pasteleiro, está condenado a uma vida inteira a cozer biscotti num calor de noventa graus. Massimo é filho de um casal de camponeses que nunca pôs o pé fora da Toscana. A bela Francesca já está noiva de Mauro, um mecânico sempre macambúzio. Andrea é inteligente, mas o mais provável é não chegar a ir estudar Medicina para a Universidade de Pisa. Por que raio parecem todos tão satisfeitos, na brincadeira junto à piscina, com gotas de água a brilhar como pedras preciosas nas suas pernas e braços bronzeados? OK, são bem-parecidos, para quem for apreciador daquele ar arrogante e bem nutrido, e Paris não é. Mas será isso tudo? Será o suficiente? Se fossem ingleses, ela teria julgado que estavam todos bêbedos, como o pai e os amigos às vezes ficavam aos domingos à tarde depois de verem o jogo de râguebi. Mas os Italianos não parecem beber, álcool, pelo menos. Já ouviu a mãe comentar que é impossível uma mulher conseguir que lhe sirvam um segundo copo de vinho em Itália. Na verdade, isso até era uma vantagem. Detestava que a mãe bebesse vinho. Quando o fazia, o seu rosto ficava mais flácido e vago do que nunca. Se fossem os dois, a mãe e o pai, a beber vinho, era insuportável: ou começavam a discutir ou então punham-se com parvoíces e aos beijinhos. Mas Giancarlo e os amigos põem-se com parvoíces e aos beijinhos depois de beberem duas latas de refrigerante de limão e uma acqua minerale. É esquisito. Siena entrega-lhe uma garrafa de água mineral, ainda húmida do frigorífico. Paris abre-a e bebe um golinho muito pequeno. Anda a experimentar ingerir uma quantidade cada vez menor de comida e de bebida. Quase consegue sentir a água a passar gota a gota pela laringe e a deslizar-lhe pela garganta abaixo. – Ei, Parigi! – É Giancarlo, a usar uma versão do seu nome que ela detesta. Decide ignorá-lo. – Queres ir nadar? Está parado diante dela. O seu corpo é esguio e está muito bronzeado. Tem uns calções de banho largos e um colar de contas em volta do pescoço. «Como é que a Siena consegue achá-lo atraente?» – Não, obrigada – responde.
Giancarlo ergue as mãos num gesto operático de aceitação. Volta-se para Siena e Paris ouve-o dizer: – A tua irmã odeia-me. Não consegue ouvir a resposta de Siena, mas seguem-se risadinhas e sacudidelas de cabeça. Paris estende-se à sombra do guarda-sol e fecha os olhos. Na Villa Serena, Emily vai preparando ovos mexidos enquanto tenta organizar os pensamentos. «O Paul deixou-me», começa energicamente. «Coisas a fazer: 1. Vender a casa 2. Regressar a Inglaterra 3. Arranjar um emprego a sério 4. Arranjar quem tome conta das crianças 5. Divorciar-me.» Faz uma pausa porque está a chorar. Charlie, impassivelmente sentado à mesa à espera da comida, diz: – A mamã tem a cara molhada. – É de estar a cozinhar – responde Emily. Ele olha-a fixamente, como se aquela resposta não merecesse sequer o seu desprezo. Emily mexe os ovos com uma colher de pau e tempera-os com sal e pimenta. – Coisinhas pretas não – avisa Charlie rispidamente. Emily começa a catar os pedacinhos escuros de pimenta moída. «O Paul deixou-me», recomeça. «Tenho três filhos sem pai. Nisso não vai haver grande mudança», pensa. «O Paul estava fora quase todas as semanas, sempre a viajar para Londres ou para Frankfurt em negócios.» Está habituada a viver sem ele, diz a si mesma; quase nem vai dar pela sua falta. Mas então detém-se, de olhos fixos nos ovos que vão solidificando na frigideira, o amarelo-claro destacando-se do metal escuro. Há uma grande diferença entre um marido que está ausente a tratar de negócios e um marido que nos abandonou. Uma diferença vasta, abissal. Talvez Paul não tenha estado fisicamente com ela durante aquelas tardes longas e muito quentes, quando a máquina da roupa se avariou ou quando Paris partiu o braço ao saltar do terraço, mas Emily sentia-o por perto, à distância de um telefonema.
Alguém a quem ela podia ligar a queixar-se dos filhos, alguém seguro porque era a única outra pessoa em todo o mundo que os amava tanto como ela. Deprimida, Emily empurra os ovos mexidos para um prato do Carteiro Paulo. «Que aspeto repugnante», pensa, mas Charlie, a observá-la de olhar semicerrado, lá acede a engolir uma colherada. Emily está sem apetite. Na verdade, parece-lhe que nunca mais vai voltar a comer. Pelo menos assim vai perder algum peso. Bem lá no fundo, tem a certeza absoluta de que Paul a trocou por outra mais magra. Tem a certeza de que ele arranjou outra mulher, tal como tem a certeza, no mais fundo de si, de que a Traição com a professora não foi a única. Paul atrai as mulheres, com os seus hipnóticos olhos azuis e o seu hábito de se sentar um tudo-nada perto de mais. Emily testemunhou isso mesmo por várias vezes, com desconhecidas, com colegas e até mesmo com amigas, mulheres que criticavam Paul pelas costas («Ele não te merece, Emily»), mas que depois ficavam curiosamente animadas e brincalhonas na sua presença. Lenta e deliberadamente, Charlie faz tombar o seu copo. Inclinando-se para limpar a água, Emily diz animadamente: – O que é que vamos fazer esta tarde, meu ursinho? Queres brincar com o teu comboio? – Comboio não. – E que tal um passeio? Podíamos ir ver as galinhas da Anna-Luisa. – Passeio não. Galinhas feias. As tardes em Itália, sem parques públicos, áreas próprias para as crianças brincarem ou programas infantis na televisão, começam a assumir proporções monstruosas na mente de Emily. Hora atrás de hora de passeios sob um calor abrasador para ir ver galinhas, ou brincadeiras intermináveis com carrinhos de madeira sobre o chão de pedra. As milhentas ocasiões em que ela olhou para o relógio e descobriu que ainda só tinham passado dez minutos. Todas as lágrimas, birras e capitulações. Emily suspira. – E se víssemos um vídeo? Dez minutos depois estão sentados na sala de estar, uma divisão fresca e de teto alto, a ver O Livro da Selva. Charlie desvia o olhar do ecrã quando Mogli é adotado pela família de lobos. O Pai Lobo está em cima de um rochedo a ditar as regras a respeito de qualquer coisa e a Mãe Loba observa-o com apreensão. – Quando é que o papá vem para casa? – pergunta Charlie.
3 Cartas da Toscana por Emily Robertson
A
s noites de verão na Toscana, a beber vinho branco gelado e a ver as estrelas a surgir por cima das colinas distantes, são o que faz tudo isto valer a pena. Os dias de verão podem ser muito quentes e cheios de conflitos; as crianças discutem, o marido não para de falar da sua ideia brilhante para transformarmos o campo de baixo num terreno húmido (isto numa área em que a chuva de verão dará para encher aproximadamente um copo de iogurte) e o supermercato enche-se de turistas a comprar a variedade errada de salsichas para as omnipresentes churrascadas. As tardes podem ser lentas e opressivas, dominadas pelos remorsos de termos bebido um copo de vinho a mais ao almoço, mas as noites… as noites são a perfeição. O ar enche-se do perfume dos limoeiros e do odor penetrante do alecrim espalhado sobre as brasas do grelhador, e os pássaros regressam a casa, mergulhando pelos ares e desafiando a morte, para irem fazer o ninho na Torre Albano. Foi para isto que viemos para Itália. Segurando um copo de cerveja morna e já morta na mão, Emily está sentada no terraço a pensar no facto de estar encalhada num país estrangeiro com três filhos, sem marido, sem dinheiro e com uma mulher a dias psicótica. O perfume dos limoeiros não a faz sentir-se minimamente reconfortada. A noite toscana é escura, uma negrura pesada e pulsante que nada tem a ver com a ausência de luz, mas antes com a presença do escuro. O cantar áspero dos grilos soa como uma respiração profunda, rouco e regular. Por entre as oliveiras, Emily vislumbra o brilho branco de pedras, ali onde a piscina está a ser construída. O que vai ser agora daquilo, daquele símbolo da vida de expatriado que Paul tanto amava? Os trabalhadores parecem ter posto as ferramentas de parte durante o verão, mas o que acontecerá quando
regressarem no outono? Emily não se sente à altura da tarefa de supervisionar a construção de uma piscina ao estilo romano, decorada em mosaico e terracota. E terão eles dinheiro suficiente para pagar aquilo? Tem mesmo de conversar com Paul a respeito de dinheiro. Mais abaixo, uma brisa ligeira sussurra por entre as vinhas. Emily estremece de frio, mas não vai para dentro de casa. Depois do calor do dia, o frio é revigorante. Custa-lhe raciocinar durante o dia; o seu cérebro fica vagaroso e letárgico, preso num cansativo círculo vicioso de ideias, enquanto ela se vai arrastando pela casa e pelo jardim, avançando de sombra em sombra. Agora, quase consegue sentir a sua mente a fervilhar de energia. O que vai ela fazer? Vai mesmo vender tudo e regressar a Inglaterra? Por instantes, permite-se considerar essa perspetiva. Um apartamento em Brighton, com um chão de madeira clara e cheio de superfícies lustrosas. Vêse a sair do apartamento todos os dias, ocupada com um emprego exigente mas muito criativo. As crianças, felizes e seguras, saindo apressadamente de casa para irem para a escola secundária (que será daquele tipo que promove o desenvolvimento da personalidade, ao mesmo tempo que se mantém fiel aos princípios socialistas – ou seja, uma daquelas escolas que não existem). Consegue até visualizar o rosto achatado e muito branco da sua au pair dinamarquesa, a sua mão sardenta e capaz a segurar a de Charlie, levando-o até à praia depois de o ter ido buscar ao jardim de infância. Os dois apanham seixos, que depois trazem para casa para pintar, cobrindo a mesa de pinho da cozinha de Emily com folhas abertas do The Guardian. Deus, como ela sente a falta dos jornais ingleses! Nesta sua fantasia digna de um suplemento a cores não está presente um homem. Quererá isso dizer que ela pensa realmente que Paul a deixou em definitivo? Da outra vez, a da Traição, foi ela a fugir para Brighton, mas então ele veio atrás dela. Implorou-lhe que regressasse para ele. Emily recorda as lágrimas de Paul, tão surpreendentes nos seus olhos intensamente azuis. Lembra-se de passear pela praia com ele, da força do vento a empurrála para trás e de Paul a dizer-lhe: – Sem ti eu não seria nada. Tu és tudo para mim. Se me deixares, não sei como vou ser capaz de seguir em frente. Lembra-se nitidamente do café a saber a sabão que beberam num bar na praia, da chávena de porcelana grossa com vestígios de bâton, do sem-abrigo na mesa do lado a abrir lentamente os embrulhos de papel de jornal com as
suas coisas. Lembra-se daquele curioso suspiro que Paul deixou escapar quando ela disse: – Bom, de acordo, talvez possamos tentar outra vez… Consegue visualizar tudo isto sentada no terraço, com aquela paisagem estrangeira a toda a volta, mas não consegue visualizar Paul. Consegue ouvir a voz dele a dizer «O nosso casamento chegou ao fim», mas não consegue lembrar-se da cara dele. O homem com quem esteve casada durante dezassete anos (já formula esta ideia no passado), que lhe deu três filhos, que a amou e que fez amor com ela – não consegue visualizá-lo de todo. Recorda-se vagamente dos seus cabelos escuros, da cintura a alargar, dos dentes brancos, da aspereza do seu rosto pela manhã. Consegue sentir a cara dele a pressionar a sua quando se despediram pela última vez. – Não te esqueças de ligar ao Romano por causa do acesso da estrada principal até à casa – dissera ele. Teria Paul dito aquilo se estivesse a pensar deixá-la? Aquela rixa continuada com o seu vizinho camponês a respeito do direito de acesso teria sido assim tão importante para ele? Não houvera nenhuma pista ou indício de que aquela seria a última vez que se abraçariam assim, com aquela intimidade descontraída – um breve roçar da face, uma palmadinha ao de leve, ações feitas quase sem se dar por isso. Se ela tivesse sabido, poderia ter feito alguma coisa; poderia ter-se reinventado, poderia ter tentado ser mais eficiente e menos sonhadora. Claro que não ligara a Romano por causa do acesso da estrada principal até à casa. Será que o casamento acabou mesmo? Será assim que as coisas terminam? Recorda a separação de Michael, o grande amor dos seus tempos de estudante universitária, e a absoluta desolação que sentiu. Como iria ela algum dia conhecer outra pessoa como ele, alguém quase perfeito? E nessa altura tinha apenas vinte e dois anos, por amor de Deus. Agora tem quarenta e um, e, se Paul a deixou mesmo, não se consegue imaginar a envolver-se com outro homem. Não que deseje tal coisa. O passado – em que ela é eternamente jovem e corre pela praça da universidade ao encontro de Michael, com os longos cabelos a esvoaçar ao vento e as pernas esguias enfiadas numas calças de ganga desbotadas, praticamente sem tocar com os pés na relva – é bem mais atraente. Emily deseja poder abrir o seu computador portátil e regressar à sua juventude. Deseja poder voltar a esses tempos com o mero pressionar de uma tecla. Friends Reunited. Podia procurar o nome de Michael e, com
essa familiar combinação de letras, voltar atrás. O melhor é ir dormir, caso contrário amanhã sentir-se-á ainda mais estúpida. Mas talvez ainda possa enviar um último e-mail a Petra antes de ir para a cama. Talvez ainda possa dar uma olhadela ao site Friends Reunited. Está tão perto dele, à distância do mero pressionar de uma tecla. Mas então hesita. Não o vai trazer de volta à sua vida. Ainda não. No andar de cima, sob o teto alto e autêntico do seu quarto, também Paris está a recordar o passado. Pensa na loja de telemóveis Carphone Warehouse, no Bedford Arms, no Bilal’s Burgers, no supermercado Tesco Metro, nas lojas de conveniência Alldays, no Sinatra’s Wine Bar, no HSBC Bank. Lentamente, loja a loja, recria o caminho desde a sua casa de Londres até à estação de metro. Se se concentrar o suficiente, consegue ver as caixas descartáveis dos hambúrgueres espalhadas pela rua, os folhetos atirados fora («Perca peso em duas semanas! Pergunte-me como!»), as mesas cromadas à porta dos restaurantes, à espera desse mítico dia de sol. Vê os plátanos no parque, envoltos numa nuvem de poeira, e as janelas tapadas do escritório do serviço de táxis. Visualiza o café onde, certa vez, ela e Cassie viram um ator que tinha aparecido na série EastEnders. Vê a loja onde comprou a sua primeira bicicleta e lembra-se da triunfal viagem de regresso a casa, passando por cima de cocó de cão e de vidros partidos. Por fim, vê a estação do metro, com o seu familiar letreiro vermelho e azul, como uma seta a trespassar-lhe o coração. Clapham Common. Estendida na cama, chora em silêncio, cheia de saudades da Linha Norte. Mais adiante na Linha Norte, em Kennington, Michael Bartnicki veste-se rapidamente para sair para o trabalho. Em menos de uma hora estará a operar de urgência uma rapariga de dezoito anos que sofreu um acidente de viação. Embora já esteja a par da situação, Michael não deixa que isso o perturbe excessivamente enquanto veste uma camisola de malha grossa (as noites de verão são frescas) e se debruça para apertar os atacadores. Estas chamadas a meio da noite são habituais. Além do mais, um médico não se pode permitir pensar nos detalhes (uma vítima ainda tão jovem, os pais aterrorizados, a visão dantesca do sangue na estrada), devendo concentrar-se unicamente no procedimento cirúrgico, na incisão, na mesa de operações iluminada por luzes artificiais. Michael vai trauteando suavemente uma melodia enquanto
agarra no telemóvel e nas chaves do carro, que deixou na mesa de cabeceira. Ao colocar o relógio, olha para a sua mulher, que dorme profundamente. Será que a deve acordar para lhe lembrar a consulta de Jessica, marcada para o dia seguinte? Resolve não o fazer; isso apenas a deixará histérica, e então ela começará a dizer que ele não confia nela. De certeza que Jessica se vai lembrar. Usando a luz do telemóvel, Michael lê o mostrador do relógio. Três e quarenta e cinco da manhã. A hora mais sossegada da noite. A hora que inspira pavor a quase todos os médicos; a hora em que morre a maioria dos pacientes. A cozinha está às escuras e os eletrodomésticos trabalham quase sem fazer ruído. Michael tira uma garrafa de água mineral do frigorífico e bebe demoradamente. Não tem tempo para comer nada. A luz esverdeada do micro-ondas indica as 03h55. Por instantes, Michael fica completamente imóvel no escuro, olhando em frente. E, na Toscana, a apenas alguns quilómetros da Villa Serena, um homem chamado Raffaello contempla uma sepultura e sorri.
4 Cartas da Toscana por Emily Robertson
F
inalmente tenho o meu jardim de ervas aromáticas. Quando vivia em Londres, era uma entusiástica compradora daqueles pequenos vasos de manjericão que se vendem nos supermercados. Durante mais ou menos uma semana, as folhas conferiam um paladar genuinamente italiano às minhas saladas, e depois, inevitavelmente, a planta murchava e morria. Era como se todas aquelas pequenas plantas me estivessem a dizer: «Quem é que tu estás a tentar enganar? Estamos em Clapham, não em Chianti.» Pois bem, agora colho o meu próprio manjericão. Cresce em abundância mesmo à porta da minha cozinha. Quando estou a preparar uma salada, basta-me estender o braço e puxar umas quantas folhas aromáticas. Torneime uma esbanjadora. Polvilho de manjericão as minhas sopas, as batatas novas, as bruschette, os tomates acabadinhos de colher. O meu marido disseme que vive no temor de eu lhe temperar a cerveja com manjericão. Mas acho que jamais me cansarei do seu sabor. Para mim, é a essência de Itália. Desanimada, Emily vai arrancando as ervas daninhas da sua horta, mas então ouve o zumbido de uma Vespa a subir o caminho da estrada até à casa. Romano, o seu vizinho camponês, disse-lhe que as ervas daninhas devem ser arrancadas por causa dos incêndios. Toda a região interior do país está seca, e a relva descolorada desfaz-se-lhe nas mãos. Emily imagina todo aquele território a incendiar-se de uma vez só e as chamas a engolirem a Villa Serena, como numa representação medieval do Inferno. Diligentemente, arrasta a enxada pelo chão rochoso, sentindo a T-shirt colada às costas. Era Paul quem achava que eles deviam cultivar os seus próprios legumes. O lugar ideal era nas traseiras da casa, junto à cozinha. Trata-se de uma zona plana e ensolarada, que apanha a sombra dos ramos retorcidos das figueiras.
Romano disse-lhes que aquilo já foi um jardim de ervas aromáticas; de facto, ainda se podiam ver os ramos de alecrim e de tomilho por toda a parte, quais monstros verde-acinzentados, enormes e de cheiro intenso. Mas então Paul arrancou o alecrim e o tomilho e plantou alface e tomate, como se aquilo fosse uma horta urbana na zona sul de Londres. As alfaces atingiram um tamanho descomunal, mas, visto que nenhuma das crianças gosta de salada e Paul preferia variedades mais interessantes – que se podiam comprar na cooperativa, em vasos –, depressa as alfaces da horta foram comidas pelas lagartas. Os tomates eram uma beleza, pequenos, firmes e de folhagem cheirosa, mas depressa ela se cansou de os colher e conservar em frascos. Por fim, foram comidos pelos pássaros. Agora, Emily arranca mais uma alface apodrecida e lança-a para a fogueira. Por trás de si ouve uma voz, idosa mas surpreendentemente ressonante, uma voz que está acostumada a ser ouvida: – Basilico! – exclama. Depois, em inglês: – Tem de plantar manjericão junto à porta da cozinha. Para repelir as moscas. Emily endireita-se e olha para trás. Dá de caras com um padre, de camisa preta, colarinho branco e sapatilhas também brancas e sujas. Está sentado numa Vespa. É um homem idoso, de cabelo branco e abundante, como a cabeleira de um juiz, e tem um rosto sulcado de rugas, mas, ao saltar agilmente do motociclo e aproximar-se para a cumprimentar, os seus movimentos são os de um homem bastante mais jovem. E o seu aperto de mão, quando ele se apresenta, é suficientemente forte para ela se encolher. – Don Angelo – diz ele. – Emily Robertson – murmura ela, limpando a mão transpirada nos calções. – Está demasiado calor para trabalhar – observa ele com rispidez. – Precisa de descansar e beber qualquer coisa fresca. – Quer uma chávena de chá? – oferece Emily. Não sabe nada a respeito de padres católicos, mas o chá é, certamente, parte essencial de qualquer visita clerical, não? – Chá? Nunca! – Don Angelo estremece violentamente. – Acqua minerale, sempre. – Quer um copo de acqua minerale? – pergunta-lhe Emily obedientemente. – Grazie – responde Don Angelo num tom doce, como se a ideia não tivesse sido sua. Vão sentar-se no terraço, ao lado da horta descuidada. O padre Angelo
beberrica a sua água e, a dada altura, estende descontraidamente o braço para apanhar um pêssego branco de um dos ramos suspensos sobre as suas cabeças. – É servida? – pergunta educadamente. – Oh, não… Obrigada. Coma-o o senhor. O padre Angelo pede-lhe uma faca e começa a dividir o pêssego em segmentos perfeitos, como pequenas meias-luas cintilantes. Depois atira o caroço para o meio dos arbustos. – Assim fica com mais uma árvore, não é verdade? – Daqui por alguns séculos. – Alguns séculos? – O padre encolhe os ombros com eloquência. – Isso não é nada. – Para Deus talvez não seja – responde Emily com atrevimento. O padre ri com gosto. – Não! Para Deus não é mesmo. Emily nota que os seus dentes são magníficos. Quando acaba de comer o pêssego, Don Angelo fixa nela os seus olhos castanhos algo encovados. – Não é católica, presumo? – Não – responde Emily, desculpando-se. – Não costumamos ir à igreja. Lamento. – Pois não – concorda Don Angelo. – Ainda não a vi lá na igreja. A igreja de Monte Albano é tida como um magnífico exemplo da arquitetura medieval. Data, segundo Emily se recorda, do século XII, e diz-se que foi erguida sobre alicerces etruscos. – Sei que há lá um fresco da Anunciação muito bonito… Mas Don Angelo recusa-se a discutir os atrativos turísticos da igreja. – Sim. Bonito. Sim. Nunca vai à vila? – Oh, sim, vou – apressa-se Emily a dizer. – Vou todas as terças-feiras ao mercado… – O mercado! – repete Don Angelo com desprezo. – Isso é para turistas. Vá à cooperativa. É muito mais barato. Não, a senhora nunca vai à vila. Ao fim da tarde. Para uma passeggiata. A passeggiata é um ritual italiano. Todos os dias, ao final da tarde, quando fica mais fresco, os Italianos começam a sair das suas casas de portadas fechadas para andarem para cima e para baixo na praça da vila, a verem os
outros e a deixarem-se ver. Emily adora a forma como os mais idosos se sentam nas suas cadeiras de cozinha à porta de casa, pondo-se a olhar para toda a gente sem o menor embaraço. Ainda assim, nunca lhe passou pela cabeça experimentar fazer o mesmo. – Bem, é um pouco difícil ter os fins de tarde livres, por causa das crianças. – As crianças! Traga as crianças. Nós adoramos crianças. Emily não acrescenta que Charlie costuma ir para a cama às sete, visto que é costume as crianças italianas ficarem acordadas até à meia-noite. – Costumo ver a sua filha na piazza – continua o padre. – A Siena? – pergunta Emily, sentindo o coração apertado. – Sim. Calculo que sim. – É uma rapariga muito bonita – comenta Don Angelo, com bem mais entusiasmo do que mostrou pelo fresco. – Corteja o Giancarlo do pasticcere, não é verdade? – «Corteja»? Oh, suponho que sim. – Ele é bom rapaz. Um pouco rebelde, mas bom rapaz. – Sim – responde Emily sem entusiasmo. – Diga-me: virá até à vila para o ferragosto, não é verdade? O ferragosto. A festa da Assunção de Maria, a 15 de agosto, é celebrada em Itália com um fervor que nada tem a ver com a religião. É uma alegre e anárquica festança sem restrições morais, uma espécie de Noite de Reis3 em pleno verão. Há um ano, Emily escreveu um artigo de fundo de duas páginas sobre o tema. – Nunca veio ao ferragosto? – Oh, sim – responde Emily, bastante ofendida por esta altura. – Fomos no ano passado. – Recorda-se desse dia. Tinham visitas, clientes de Paul, e levaram-nos até à vila para verem o fogo de artifício. Helmut, um alemão, filmou duas horas de material com a sua câmara de vídeo, e sem dúvida que essas imagens ainda hoje servem para entreter os habitantes de Wiesbaden. – Não digo apenas por algumas horas. Com alguns stranieri – diz Don Angelo com uma fungadela depreciativa. Emily está espantada. Como pode o padre saber como passaram eles o último ferragosto? Seria um dos foliões mascarados, daqueles que andavam aos saltos debaixo de um estandarte medieval? E aquela palavra que ele usou, stranieri, que, literalmente, significa «estrangeiros», soou-lhe hostil. Como se
ele tivesse dito «estranhos». Se os alemães eram estranhos, então ela e a sua família eram o quê? Começa a reconsiderar o artigo que está a compor mentalmente («Don Angelo, um improvável anjo de sapatilhas brancas e sujas») e olha para o seu visitante com algo semelhante a medo. – O ferragosto dura dois dias – continua o padre. – Devia estar lá. A preparar a comida com as outras. Emily olha-o com ceticismo. Lembra-se da gigantesca grelha de churrasco na piazza, tão grande que dá para um porco inteiro. Lembra-se das mulheres a prepararem os bifes de porchetta com uma perícia descontraída. Sente-se honrada por o padre a ter convidado a juntar-se a elas, mas também ligeiramente insultada. – Eu… Eu não saberia o que fazer – diz por fim. – Sou uma… Sou uma espécie de escritora… A sua explicação é interrompida por um berro vindo da parte da frente da casa. – Charlie! – Ergue-se de um pulo. Siena, que, de má vontade, tem estado a tomar conta do irmão, surge ali repentinamente, segurando Charlie na anca. Ele está a gritar e tem a cara vermelha. – Charlie! Meu querido! O que foi? – Foi picado por um bicho qualquer – responde Siena, sem fôlego. – Não sei o que era aquilo. Emily apercebe-se vagamente de Don Angelo a correr pelos degraus do terraço abaixo e a abrir caminho por entre a horta selvagem. Regressa daí a alguns minutos, trazendo algumas folhas na mão. Agarrando firmemente a perna de Charlie, esfrega-lhe as folhas na pele. Faz-se um momento de silêncio espantado. Um cheiro pungente espalha-se pelo ar. Charlie, a meio caminho entre a mãe e a irmã, com a perna nas mãos de um desconhecido vestido de preto, para de chorar. – Basilico – explica Don Angelo. – Também é bom para picadas de inseto. – Hoje conheci o padre – conta Emily a Paris ao jantar. – Eu sei – responde-lhe a filha. – Vi-o da janela. – Agarra num quadradinho de pão e começa a cortá-lo em triângulos. Emily só se apercebe realmente do que ela disse ao fim de um instante. – O quê? Viste que o Charlie se tinha magoado e não desceste? Com um suspiro, Paris continua a cortar o pedacinho de pão, como se
estivesse a fazer um quebra-cabeças. – Ele não se magoou. Foi uma picada de um inseto. Seja como for, o bruxo curou-o. Emily ri-se, mas responde-lhe num tom sério: – Ele não é um bruxo, embora seja assustador. Parece saber tudo a nosso respeito. – Como o quê, por exemplo? – pergunta-lhe Siena, que escreve uma mensagem de texto no telemóvel com uma mão enquanto come com a outra. – Bom, por exemplo, que tu andas com o Giancarlo. E parece aprovar. – Ótimo. – Siena mostra-se satisfeita. – Então talvez possa falar com a mãe do Gianni. De certeza que ela me lançou um mau-olhado. – Ora, isso… As mães e os filhos – diz Emily num tom vago. – De certeza que eu vou fazer o mesmo com o Charlie. Siena e Paris trocam um olhar. Charlie só agora foi mandado para a cama, horas depois do que seria correto, horas depois da altura em que elas costumavam ser mandadas para a cama. Mas Emily continua a pensar no padre. – É um homenzinho com um ar muito peculiar – comenta. – Mas há qualquer coisa nele… Tem uns olhos muito escuros. É como se conseguisse ver-nos a alma. – Ele tentou convencer-te a começares a ir à igreja? – pergunta Siena. – Não. Nem por isso. Parecia mais preocupado por não irmos até à vila ao final da tarde. – Eu vou. – Sim, eu sei. E ele também vai. Quer que vamos ao ferragosto. Quer que eu ajude com os cozinhados. Siena e Paris riem-se indelicadamente. As tentativas de Emily para preparar pratos de cozinha rústica italiana nem sempre são apreciadas pela família. Esta noite estão a comer uma pizza comprada na cooperativa. Em jeito de desafio, Emily optou por comer uma salada, feita com uma das alfaces da sua horta, toda roída pelas lagartas. – Eu vou ao ferragosto – informa Siena. – A banda do Gianni vai tocar. Para além dos seus outros defeitos, Giancarlo é o baterista de uma banda de rock bastante barulhenta e quase completamente desprovida de talento. Emily deixa escapar um gemido. – Será que não podemos ouvir a bela música tradicional italiana? –
pergunta. Siena suspira. – Não, porque é chata e deprimente, mãe. – Levanta-se, fechando bruscamente o telemóvel. – Eu vou ver televisão. – Eu também – diz Paris de imediato. – Não acabaram a pizza – observa Emily. – Tem umas coisinhas esquisitas misturadas. – São ervas aromáticas. Depois de as duas raparigas saírem, Emily agarra na fatia de pizza de Paris e come-a. Tem de parar de comer tanto. E o mesmo se aplica à bebida, pensa, enquanto se serve de mais um copo de vinho tinto. A este ritmo, quando no sábado se encontrar com Paul, vai estar gorda que nem um pote. Tem de o impressionar com a sua silhueta esbelta e a sua recusa absoluta em culpar seja quem for pela crise do casamento. Vai ser compreensiva, sensata e um tudonada sexy. Dá mais uma dentada na fatia de pizza. Quando conheceu Paul, ele levava-a aos melhores restaurantes, mas ela estava sempre demasiado entusiasmada para comer fosse o que fosse. Era assim nesses tempos: tensa, sempre com os nervos à flor da pele, sempre com um nó no estômago, como aquelas pessoas que ficam enjoadas nos barcos. Estava a trabalhar tanto no jornal que geralmente não tinha tempo para almoçar. Sentada à sua secretária, bebia Coca-Cola e comia coisas bizarras como azeitonas ou pimentos picantes, que trazia em sacos de papel. E fumava vinte cigarros por dia, pelo menos. Só parou quando ficou grávida de Siena. Conheceu Paul em Brighton. Mudara-se para lá depois de terminar o namoro com Michael, em parte porque Petra, a sua melhor amiga da universidade, vivia lá, mas também porque sempre adorara aquela zona. Enquanto andavam a estudar, por vezes iam até ali depois de uma festa no carro muito velho de Petra, chegando às colinas na zona costeira mesmo ao nascer do sol, e então passavam a madrugada sentadas na praia a beber canecas de chá que iam comprar a um café aberto durante a noite. Brighton parecia-lhe um sítio otimista, imbuído de um certo charme desleixado e de certezas impetuosas. Depois do choque de ter perdido o homem com quem julgara que ia passar a sua vida, pareceu-lhe que estava a precisar de algum otimismo. Emily e Petra tinham alugado uma casa a cair de podre junto à orla marítima, onde as gaivotas passavam a voar por baixo das janelas do sótão e
os sons do mar as embalavam à noite. Ainda hoje, quando está a tentar adormecer, Emily por vezes recorda aquele sussurrar suave e efervescente da água nas rochas. Se alguém o pudesse patentear, faria uma fortuna. Conseguiu um emprego no jornal local, fez novos amigos, foi a festas e organizou churrascos na praia. Foi um período estranho, magnífico e terrível. Emily ainda chorava de cada vez que via o nome «Michael» (para ela, as lojas da Marks & Spencer eram uma verdadeira tortura), mas passara a ser também a rapariga que dançava na praia de roupa interior e nadava nua no mar. Era a rapariga que trabalhava arduamente para se tornar numa repórter, mas que, por vezes, aparecia no trabalho vestida com as roupas da noite anterior. Era a rapariga que tinha cinco apaixonados e se filiara no Partido Trabalhista, mas que continuava, de forma obsessiva, a sonhar ser a esposa de Michael Bartnicki. Conheceu Paul quando o foi entrevistar para o jornal. Ele era um empresário local com uma reputação bastante duvidosa. A sua última iniciativa fora adquirir uns quantos edifícios da década de 1930 reconhecidos como património público, que depois enchera de estudantes e deixara a apodrecer discretamente à beira-mar. Esta estratégia foi descoberta quando uma das casas quase ardeu num acidente envolvendo uma caldeira a gás em mau estado. Agora, as famílias dos estudantes ameaçavam processá-lo. Emily chegou à entrevista atrasada e nervosa. No percurso desde a paragem de autocarro, o salto de um sapato partira-se e ela tivera de fazer o resto do caminho a mancar. A tremenda ventania junto à orla marítima emaranharalhe o cabelo todo e sentia-se exausta após três noites de festa ininterrupta. Paul estava a viver num faustoso – mas bastante deprimente – bloco de apartamentos em Hove, e, ao pressionar o botão do intercomunicador, Emily receou que lhe fosse recusada a entrada devido à sua aparência nada respeitável. Não podia saber que Paul gostava de mulheres com penteados revoltos. Ou que gostava delas jovens. E ele revelou-se a personificação do charme. Consertou-lhe o sapato com supercola e, ao vê-lo debruçado sobre o sapato de pele castanha já desgastada, com um ar muito concentrado, Emily sentiu por ele uma inexplicável ternura. Paul ofereceu-lhe café e croissants. A seguir foram dar um passeio à beira-mar e atiraram as migalhas dos croissants às gaivotas. Paul levou-a a almoçar e a jantar e, entre uma coisa e outra, também a levou para a cama.
O sexo com Paul foi uma revelação. Depois de Michael, Emily julgara que jamais seria capaz de fazer amor com outro homem. Apesar disso, continuara a ter relações sexuais, com variado grau de sucesso, mas, a seguir a cada encontro, sentia sempre, com maior convicção do que nunca, que não seria feliz na cama com mais ninguém exceto Michael. Mas Paul era… Bem, não havia outra maneira de o dizer, Paul era melhor do que Michael. Nem sempre atingira o orgasmo com Michael, mas, com Paul, tinha-os com aquela mesma fiabilidade despachada que ele exigia em todas as áreas da sua vida. Depois, perguntara-se se chegaria ao orgasmo com ele exatamente por não o amar tanto como amara Michael. Mas ela amava Paul. Ele entusiasmava-a, fazia as coisas acontecerem; por ele, as gaivotas aproximavam-se, vindas do mar, e os empregados de mesa voltavam-se mal ouviam o som da sua voz. Paul conseguia transformar uma tarde pachorrenta num estonteante desfilar de possibilidades. Levou-a a França (descolaram do Aeroporto de Shoreham no avião de um amigo dele), levou-a para elegantes hotéis no campo, levou-a a andar de kart e ofereceulhe um boneco de peluche que ganhou numa feira de diversões no molhe de Brighton. Quando Paul a pediu em casamento, Emily não hesitou. – Tens a certeza? – perguntou-lhe Petra, em lágrimas, na noite anterior à ida ao registo civil. – Oh, sim – respondeu Emily num tom sonhador. Claro que tinha a certeza; as coisas com Paul eram assim mesmo. Ele achava que ela se devia casar com ele e ela assim fez. Emily termina o seu copo de vinho com um gole demorado. Depois levanta a mesa e põe a louça na máquina (até mesmo as casas italianas rústicas estão equipadas com máquinas de lavar louça). Da sala de estar chegam os sons da série Dad’s Army, que Siena e Paris estão a ver. A Villa Serena fica demasiado longe de tudo para se poder instalar televisão por satélite ou por cabo, e por isso têm de se desenrascar com cassetes de vídeo vindas de Inglaterra. Curiosamente, é das séries antigas que as suas filhas mais gostam: Dad’s Army, The Likely Lads, Fawlty Towers, Are You Being Served? Oh, o reconfortante barulho dos risos no estúdio, o lento aproximar do desfecho cómico, a eterna estupidez de Pike, a infindável presunção de Mainwearing. Ao escutar aquilo, Emily dá por si a sorrir enquanto lança o pão seco pela porta das traseiras. Sente que daria qualquer coisa, fosse o que fosse, para
avistar uma só gaivota que fosse a descer dos ares para comer as migalhas de pão, com aquele familiar guincho estridente e ávido. Emily sobe ao andar de cima para ver Charlie, que dorme tranquilamente. De alguma forma, o cheiro do manjericão parece ainda pairar no ar. Emily lembra-se do padre. Porque terá ele vindo visitá-la ao fim de todo aquele tempo? Afinal de contas, já estão a morar ali há quase dois anos. Terá ouvido rumores de que Paul se foi embora? Emily tem a certeza de que Olimpia já contou a novidade ao mundo inteiro. A antipatia da sua mulher a dias parece ter atingido novos máximos nos últimos tempos. Olimpia gostava de Paul; ele estava sempre a fazer-lhe elogios e tratava-a por signorina. Terá Olimpia dito a Don Angelo que Emily era uma cruel rompe-casamentos? Terá o padre ido até ali para ver qual a aparência da «mulher escarlate» (e ela estivera com a cara suficientemente vermelha depois de tanto tempo a cavar)? Quereria ele, de facto, apenas tentá-la a deixar o isolamento da sua villa para gozar a atmosfera acolhedora da piazza? Ou estará simplesmente a precisar de mais duas mãos para preparar a porchetta? Emily regressa ao rés do chão, mas, em vez de se ir sentar com as suas filhas na sala de estar, sai para o terraço e inspira o ar noturno. E recorda a primeira vez que Michael a levou ao Vittorio’s, e o instante em que se apaixonou, sem apelo nem agravo, por Itália. 3 Em Inglaterra, a noite de reis, conhecida como Twelfth Night, é uma grande festa, celebrada com muita comida, bebida e dança. (N. do E.)
5 Cartas da Toscana por Emily Robertson
I
r a um restaurante em Itália é uma experiência intimidante. Para começar, nos restaurantes da Toscana a cozinha fica na parte da frente, de tal maneira que temos de a atravessar para chegarmos à nossa mesa. A limpeza e o aspeto cintilante destas cozinhas são o suficiente para nos sentirmos seriamente constrangidas. As pizzas vão sendo enfiadas e retiradas dos grandes fornos, a pasta é cozida até atingir a consistência perfeita (al dente, o que significa ligeiramente rija), os pratos são polvilhados de ervas aromáticas e regados com um fio de azeite, e as fatias de carne são enroladas e temperadas com folhas de salva. Tudo é feito a alta velocidade, mas nada é apressado. Depois, quando chegamos à nossa mesa, somos recebidos como um muito estimado membro da família. Abrem uma garrafa de vinho e enchem-nos a mesa de bruschette, como se fôssemos o filho pródigo em pessoa. E a forma como acolhem as crianças! Sendo oriunda de Inglaterra, um país onde sermos vistos em público na companhia de alguém com menos de um metro de altura é praticamente um crime punível com a morte, a atitude dos Italianos para com as crianças é como um bálsamo celeste. Precisamos de uma cadeira alta? Não há problema. Queremos um prato de pasta sem molho? O prazer é deles. As crianças querem fazer desenhos na toalha? Com certeza. E o que dizer de alguns dos antipasti especiais com que o chef alicia a pequena bimba? – Quando é que vais ver o teu ex-marido? – pergunta Petra. – Ele não é o meu ex-marido. – Ainda não – replica Petra sem rodeios. – No sábado. Ele disse que vinha até aqui para discutirmos a situação.
– Bem, não cedas com demasiada facilidade. – Como assim? – pergunta Emily, melindrada. – Eu conheço-te, Em. Vais ficar naquele teu estado sonhador do «tudo o que quiseres». Lembra-te de que o Paul te deixou. Ele tem algumas explicações a dar-te. Não o deixes regressar facilmente, como aconteceu da última vez. – Achas que ele quer voltar para mim? – Meu Deus, sei lá. Tu quere-lo de volta? – Sim. Não. Não sei. – Bom, como eu já disse, não deixes que seja ele a decidir tudo. Eu sei muito bem como ele é. Nunca me hei de esquecer da maneira como ele pôs todos aqueles inquilinos na rua para poder vender as casas, que depois foram mandadas abaixo para ser construído um centro comercial. – Ele é impiedoso. Dantes eu achava isso muito atraente. – Deus te ajude. Petra fica em silêncio por instantes e na linha telefónica escuta-se apenas um ligeiro zumbido. Em seguida, Emily ouve-a inspirar lentamente. – Estás a fumar? – pergunta. – Oh, por amor de Deus, Em. É só um ou dois por dia. A seguir às refeições. – São dez da noite. – Jantei tarde. – O que é que levou a isso? – pergunta Emily. – Oh, nem sei bem. Preocupações com os miúdos, com o trabalho, com o dinheiro. – O Ed não ajuda com as despesas deles? – Nem sei onde é que o Ed está. A última comunicação dele foi um cartão pelos anos do Jake. Com um atraso de dois meses. – Mais uma passa no cigarro. E então Petra diz, subitamente: – Tenho uma foto do Michael. Emily dá por si a suster a respiração, como se tivesse estado à espera de ouvir aquilo, como se, de alguma forma, todos os acontecimentos da semana anterior tivessem sido um preâmbulo para aquilo. Michael. O seu primeiro amor. – Uma foto? – sussurra. – Sim. Saiu no jornal. Foi por causa de uma cirurgia cerebral extraordinária que ele fez. Queres que te mande o artigo?
Emily sente o seu coração a bater tão depressa que o facto de Petra não o ouvir, em Brighton, a quilómetros e quilómetros dali, chega a ser surpreendente. – Sim – responde. – Faz isso, por favor. Conheceu Michael em Londres, na faculdade. Estava a tirar o curso de Inglês na UCL4 e Michael era estudante de Medicina. Era uma noite de verão e ela fazia parte do elenco de uma encenação inacreditavelmente pretensiosa de A Tempestade, em Gordon Square, uma daquelas pequenas praças de Londres cercadas por enormes edifícios universitários e que quase ninguém conhece. Se fechar os olhos, ainda consegue cheirar os velhos plátanos e escutar o barulho suave do trânsito londrino. Consegue ver, com absoluta nitidez, os reflexos metalizados dos cabelos louros de Michael, quando ele se voltou para ela e lhe perguntou: – Também fazes parte desta merda? Como, naquele preciso momento, ela estava vestida com um modelo isabelino muito mal concebido e lhe estendia uma simbólica taça com água para ele se «purificar», aquela pergunta era bastante redundante. Mas recorda perfeitamente o patético anseio que sentiu por se distanciar da peça. – Oh, mais ou menos – respondeu, apoiada numa perna por baixo das pesadas saias. O papel de Miranda, pelo qual ela tivera de bater a dura concorrência de uma dúzia de raparigas mais bonitas e mais confiantes do que ela, pareceu-lhe subitamente sem a menor importância e até mesmo embaraçoso. «Ó admirável mundo novo, onde habitam semelhantes pessoas!» Depois do espetáculo daquela noite (o encenador não os deixara regressar ao palco para receber os aplausos, sustentando que isso «distrairia o público do feitiço da linguagem»), Emily tornou a ver Michael. O público estava a sair do parque, largando beatas de cigarro na taça purificadora, mas Michael continuava ali sentado, sozinho na segunda fila, sorrindo daquela maneira que acabaria por se tornar tão familiar para Emily, com um misto de ironia e de genuína ternura. – Parabéns – disse ele solenemente. – Fui péssima. – Foste excelente. Péssimo foi o Ferdinand. – O coitado não conseguiu evitar esquecer-se das falas.
– Não, mas podia ter evitado mostrar-se mais interessado no Ariel do que em ti. – A personagem do espírito Ariel era desempenhada («de forma a confundir as expectativas», explicara o encenador) por um musculoso jogador de râguebi oriundo de Salford. Michael acertara em cheio nas inclinações de Ferdinand. Emily lembra-se de estar de pé no jardim cheio de sombras, sentindo a última luz do sol no rosto e escutando as vozes do público que ia saindo a ficarem cada vez mais distantes, até nada mais serem do que um suave coro para a ação principal. Lembra-se de estar ali parada, com o seu absurdo vestido de tecido brocado (onde teria Miranda encontrado semelhante traje?) e sentindo-se estonteante e ridiculamente feliz. Não disse uma única palavra porque sabia que Michael estava prestes a dominar completamente a sua vida. Era uma sensação maravilhosamente tranquila. Michael pôs-se de pé e, inclinando-se para ela, afastou-lhe suavemente da testa alguns fios de cabelo. – Posso? – perguntou educadamente. O que teria acontecido, pergunta-se agora Emily, se ela lhe tivesse respondido «não»? Se lhe tivesse dito que ele não a podia beijar porque ela tinha um namorado com cem quilos de músculo à sua espera no dormitório da faculdade? Se lhe tivesse dito que não, porque fizera um voto de celibato até ao casamento? Se tivesse regressado a correr para a festa que se seguiu ao espetáculo, para ouvir o encenador recitar um dos seus poemas experimentais? Mas, claro, não fizera nada disso. Quando, no sábado, Paul chega à Villa Serena, revela-se inicialmente um anticlímax. Ao sair do carro, impecavelmente vestido com um polo e umas calças de sarja (Paul é um daqueles homens que só está realmente confortável quando está de fato), tem o mesmo aspeto de centenas de outros homens de meia-idade, com os cabelos a ficarem grisalhos e com a cintura no limite do apresentável, que podem ser vistos em qualquer ginásio ou estação de comboios, ou numa das muitas filas de embarque em qualquer aeroporto. Como pode ele ter-lhe causado tanta infelicidade? Mas então ele sorri – aquele seu sorriso vulpino e de dentes muito brancos – e Emily sente o coração apertado. Ela conhece-o, conhece-o tão bem; sabe que ele é alérgico ao mel, que o filme The Railway Children o faz chorar, que ele acha que Luigi Riva era melhor jogador que Pelé. Como é possível que ele esteja
prestes a deixá-la? Deve ser um engano, tem de ser um engano. Paul aproxima-se da porta, esmagando pinhões debaixo dos pés. Em geral, quem visita a Villa Serena entra pela cozinha, porque essa porta fica mais perto do acesso da estrada à casa, mas, de alguma maneira, aquela visita requer a formalidade da porta da frente. Emily está parada no corredor, exibindo um vestido branco e esvoaçante. Penteou-se com cuidado e passou uma hora a maquilhar-se. Até aplicou verniz nas unhas dos pés (embora se tenha esquecido de se calçar). – Olá, Paul. – Emily. – Paul faz menção de lhe dar um beijo, mas depois, obviamente, reconsidera. Pousa a mala no chão de pedra. – Vieste para ficar? – pergunta Emily, indicando a mala e ciente da ambiguidade das suas palavras. – Está vazia – responde Paul. Sente-se tenso e desconfortável. Porque vestiu Emily aquele ridículo vestido branco e por que raio não calçou uns sapatos? – Onde estão os miúdos? – pergunta, depois de uma pausa. – Foram até à quinta. Regressam daqui a pouco. – Ótimo – diz ele num tom pesado. – Senti muito a falta deles. Emily fica em silêncio. Antes morrer do que dizer-lhe que eles também sentiram a falta dele. Vão para a sala de estar. Costumavam sentar-se na cozinha, que é confortável e acolhedora com a sua mesa de madeira e cadeiras de assento fofo, mas, de momento, Emily sente a necessidade de estar desconfortável. Senta-se num sofá e Paul no outro, com a gigantesca lareira a separá-los. Do corredor chega o tiquetaque de um enorme relógio de pé alto. – Bem – diz Emily, não o ajudando minimamente –, sobre o que é que querias conversar? Paul experimenta falar num tom compreensivo: – Emily, já sabes qual é o assunto que temos de discutir. – Não, não sei. Qual é? – Não tornes isto mais difícil do que já é. – E porque é que não havia de fazer isso, porra?! Segue-se um longo silêncio. Lá fora, os grilos cantam e as abelhas zumbem pela horta a necessitar de uma poda. O relógio continua a bater pesadamente. – Emily – diz Paul finalmente –, sabes que há já muito tempo que o nosso casamento não funciona.
– Não, não sei – responde ela de imediato. – Bem, já sabes, desde que… desde que… – Desde que tu tiveste um caso. Paul mostra-se magoado. – Bom, se é dessa maneira que queres pôr as coisas. – É. – Desde que nós… nos distanciámos… deves ter percebido que alguma coisa não estava bem. – Mas depois reconciliámo-nos! – Aquilo sai-lhe quase como um lamento. – Reconciliámo-nos, tivemos o Charlie e mudámo-nos para aqui… – Agora Emily está a chorar, lágrimas enormes e nada românticas, que a fazem engolir em seco e fungar. Limpa os olhos na orla da sua saia esvoaçante. Paul abre as mãos num gesto de impotência, mas não se aproxima para a reconfortar. Parece pregado ao outro lado da sala, como se estivesse separado dela por quilómetros e quilómetros de ladrilhos toscanos autênticos. – Lamento – diz por fim. – Tu lamentas… – repete Emily, fungando e engolindo em seco. – Tu lamentas. Céus! Naquele momento, as crianças entram na sala a correr. Pestanejando na escuridão da sala de estar, apercebem-se subitamente da presença do pai e atiram-se para os braços dele. Emily, abandonada no seu sofá, torna a limpar os olhos. Se ao menos os filhos não gostassem dele, pensa. – Papá! Vieste passar o fim de semana a casa? – pergunta Siena. – Vais connosco ao ferragosto? – pergunta Paris. – Não me importo se quiseres levar alguns clientes – acrescenta corajosamente. – Presente! – exige Charlie, sentando-se no colo de Paul. – Presente para o Charlie. – Na verdade – intervém Emily, falando num tom endurecido –, o papá não vai ficar por muito tempo. – Fita Paul, que desvia o olhar. – O que se passa é o seguinte… – começa ele a dizer, muito desconfortável. – Já sabem que o papá vai gostar sempre muito de vocês… «Ele vai mesmo dizer-lhes», pensa Emily. Até àquele instante, pensou que talvez nada daquilo fosse verdade, que fosse apenas uma partida elaborada ou uma forma de a castigar por ela só pensar nos filhos e na casa. Ainda não consegue acreditar que Paul está realmente prestes a dizer aos filhos que os pais se vão divorciar. Mas, quando ele disser estas palavras, as palavras que,
embora sugeridas, sempre ficaram por dizer nas suas muitas discussões, não haverá volta atrás. O seu casamento estará terminado. Porém, antes que Paul possa continuar a falar, Siena afasta-se dele com uma expressão nauseada. – Oh, meu Deus – diz. – Isto é uma daquelas conversas do tipo: «O papá e a mamã ainda gostam muito um do outro, mas vão passar a viver em casas diferentes»? Emily e Paul entreolham-se. De repente, Emily sente a fúria a abandoná-la por completo, restando apenas a tristeza e um enorme cansaço. – Suponho que é – diz por fim. Paris olha para um e para outro, horrorizada. – Não – diz. – Não! Não! Não! – Paris, minha querida… – Emily avança para ela. – Não me toques! – grita Paris, saindo da sala a correr. Ao fim de um instante, Siena vai atrás dela. – Papá – diz Charlie. – Onde é que está o meu presente? O primeiro contacto de Emily com Itália foi num restaurante em Londres. Há seis inebriantes semanas que saía com Michael; e ainda estava naquela fase em que tinha de estar constantemente a tocar-lhe, só para se certificar de que ele era mesmo real. Caminhavam abraçados por Charlotte Street, desviando-se dos grupos de estudantes estrangeiros e dos velhotes de letreiro ao pescoço que queriam salvar-lhes a alma, quando Michael sugeriu: – Vamos almoçar ao Vittorio’s. – Ao Vittorio’s…? – Deves conhecer o Vittorio’s. Toda a gente conhece o Vittorio’s. – Emily não disse nada. Desde que começara a sair com Michael, já descobrira várias coisas que «toda a gente conhecia» e ela não. Não queria que Michael pensasse que ela era uma idiota qualquer. Michael cortou subitamente por uma rua lateral e ali estava o Vittorio’s, com as mesas a ocuparem o passeio e a bandeira italiana pendente, visto estar uma tarde sem vento. – Não podemos ir comer ali – disse Emily. Tinha dado uma olhadela ao menu, protegido por um vidro como um santo num relicário, e sabia que não tinha dinheiro nem para um grissino. – Claro que podemos – replicou Michael, empurrando-a na direção das
grossas portas de vidro. – Não nos vai custar um tostão. Emily recorda como ficou parada na súbita escuridão do interior do restaurante, ao lado do elaborado bengaleiro vitoriano, e de ouvir Michael a gritar: – Mãe! Mama! Chegou o teu filho favorito. Mãe?! Uma figura emergiu do escuro. Os seus cabelos eram de um ruivo intenso, vestia um enorme avental branco e exibia um feroz sorriso de boas-vindas. – Michele! Meu anjo! Porque é que demoraste tanto? Michael soltou-se dos braços da mulher de cabelos ruivos e puxou Emily para junto dele. – Mãe, esta é a Emily. É a minha namorada. Gina olhou para Emily e um sorriso foi-se abrindo lentamente no seu rosto de tez escura. – Encantadora – disse por fim. – É encantadora, Michele. Escolheste bem. «Escolheste bem?», pensou Emily enquanto se sentavam numa mesa a um canto e Gina estalava os dedos, chamando um empregado. O que quereria aquilo dizer? Sabia perfeitamente que, com o seu cabelo descuidado e roupas desmazeladas, não estava minimamente à altura do atraente Michael. A anterior namorada dele, uma jovem com título de nobreza que andava a estudar Línguas Clássicas no King’s College, essa sim era um troféu digno de se trazer ao Vittorio’s. Tê-la-ia ele realmente trazido ali? Seria aquilo alguma espécie de rito de passagem, uma espécie de «teste do risotto»? – Trazes aqui todas as tuas namoradas? – perguntou-lhe enquanto comiam pão mergulhado em azeite e bebiam um copo de Prosecco bem gelado. – Claro que não – disse-lhe Michael. – Tu és a primeira. – Porquê? – Porque eu sabia que a minha mãe ia gostar de ti – respondeu ele, esvaziando o copo e estendendo-o para um empregado de mesa que passou por ali. – Vai-te lixar – disse-lhe o empregado. – Vai buscá-lo tu. Abrindo um sorriso rasgado e resmungando qualquer coisa em italiano, Michael foi até ao bar e regressou com a garrafa. – Não posso – protestou Emily. – Tenho uma aula prática às duas. – Não vás – sugeriu Michael. – No Vittorio’s é proibido comer à pressa. – A tua mãe é a dona deste restaurante?
– É a gerente. O dono é o meu avô, o nonno Vittorio. Tem outro em Londres. – Mas eu julgava que tu eras polaco. – O meu pai é polaco. A minha mãe é italiana. Os meus avós maternos vieram para cá antes da guerra. Ela nasceu em Londres. – Então na verdade ela é inglesa. – Emily – retorquiu Michael num tom muito sério, enquanto lhe enchia o copo –, nunca, em circunstância alguma, digas isso à minha mãe. Mais tarde, Emily nunca conseguiu recordar exatamente o que tinham comido nessa primeira refeição. Os pratos sucediam-se com uma profusão desnorteante, mas sem uma ordem particular. Algumas colheres de risotto nero, três pedaços de pasta recheada com um delicioso molho cremoso, carne enrolada à volta de ervas aromáticas e alho, pão com reluzentes fatias de fígado, uma tenra e carnuda costeleta, que Michael lhe disse ser de coelho, azeitonas recheadas com anchovas, tomates recheados com alcaparras, ravioli recheado com trufas. – Não posso comer tudo isto – não parava Emily de dizer. – Claro que podes – respondia-lhe Michael, de olhos a brilhar sob a luz das velas. – Só tens de moderar o ritmo. – Estendendo o braço, tornou a encherlhe o copo de vinho. Passaram as duas da tarde. Depois as três, as quatro e as cinco. Por fim, Gina veio sentar-se à mesa enquanto eles bebiam café escuro e amargo em pequenas chávenas douradas. Michael pegou fogo ao invólucro do biscoito amaretto de Emily e os dois ficaram a vê-lo subir no ar em direção ao teto, espalhando cinza em redor. – Se caírem em cima de ti, trazem-te sorte – explicou ele, e Emily lembrase de ter ficado ligeiramente aborrecida por as cinzas não terem caído em cima dela, mas sim nos cabelos brilhantes e nas mãos cheias de joias de Gina. A mãe de Michael estava a servir-lhes licor vermelho e espesso de uma garrafa coberta de pó. Aquilo era como uma bebida de um encantador e, por aquela altura, Emily já estava absolutamente encantada. – Então gostas do meu filho? – perguntou Gina, afagando os cabelos de Michael. – Oh, sim – respondeu Emily, muito feliz. – Gosto de verdade. – Isso é bom – replicou Gina – porque significa que eu também vou gostar de ti.
4 University College London, uma das faculdades que integram a Universidade de Londres. (N. do T.)
6 Cartas da Toscana por Emily Robertson
N
ão há uma palavra inglesa para festa. Trata-se de uma peculiar invenção italiana, uma espécie de cruzamento entre uma celebração religiosa durante o dia e uma festa de arromba à noite. Por vezes, na Toscana, também usam a palavra sagra. A sagra della bistecca, ou a «festa dos bifes», a sagra della lumaca, ou a «festa dos caracóis». Só mesmo os Italianos para dedicarem um dia de festa a cada comida. O ferragosto, que acontece em agosto, é a maior festa de todas. Supostamente foi criada para celebrar a festa da Assunção de Maria, a quinze de agosto, mas acaba por durar quase todo o mês de agosto. Toda a Itália para para férias em agosto e o país inteiro não faz mais do que divertir-se alegremente dia após dia. Este ano, pediram-me que ajudasse com os cozinhados para os festejos do ferragosto na nossa pequena vila. E, de pé junto ao gigantesco grelhador, debaixo de um calor abrasador, apercebo-me de que, por fim, sou realmente mais um membro da família. – Porchetta per favore. – Aspetta uno momentino. Emily, com o cabelo a pingar suor, está a tentar transferir os bifes de porchetta para um pão gigantesco. Mas a carne torna a cair na grelha, silvando sobre as brasas. Ao seu lado, uma mulher de cabelos pretos que ainda não lhe dirigiu uma palavra, transfere os bifes para o pão com gestos hábeis, polvilha-os com sal e pimenta e deixa cair a sanduíche no prato à espera. – Grazie – diz-lhe Emily num fio de voz. A mulher ignora-a. São dez da noite, no dia do ferragosto, e as pessoas ainda não pararam de
comer. Puseram mesas na piazza, debaixo de um toldo gigante, e estão ali várias famílias a rir, a conversar e a comer à luz de centenas de lanternas colocadas a toda a volta da praça. A família de Emily, no entanto, está dispersa. Charlie está com Olimpia, sentado no seu colo a comer gelado de avelã. Siena está supostamente algures na companhia de Giancarlo. «Estou com a banda», anunciou antes, num tom apenas parcialmente irónico. E Paris? Emily não a tornou a ver desde que ela recusou a porchetta com um estremecimento, desaparecendo em seguida na noite barulhenta e saturada de fumo. Emily, cheia de calor, desconfortável e a cheirar a banha de porco, está farta daquilo. Está prestes a tirar o avental e a ir à procura de Paris quando uma voz lhe diz: – Brava, Mrs. Robertson. Obrigado por se ter juntado a nós. É Don Angelo. Segura na mão uma garrafa de vinho (sem rótulo, obviamente não veio de nenhuma loja) e uma dúzia de copos de plástico. A mulher ao lado de Emily empertiga-se e começa a sacudir os cabelos pretos como uma adolescente. – Don Angelo! Troppo gentile. Don Angelo serve dois copos de vinho e entrega-os a Emily e à outra mulher. À cautela, Emily prova o seu. Trata-se de um vinho tinto novo e ligeiramente gaseificado. – É buono – diz. – Fui eu que o fiz – revela o padre com satisfação. – Buonissimo – lança a outra, que não vai deixar-se ficar para trás. Uma terceira mulher reivindica a atenção de Don Angelo e, por um minuto, Emily fica simplesmente ali parada a beberricar o vinho frio e a ouvir distraidamente a conversa. Já não há fila para comer – a maioria das famílias parece estar sentada na praça a beber vinho enquanto as crianças correm ali em volta que nem doidas. Emily consegue ver Charlie a perseguir uma menina de tranças e tem de se firmar na parte lateral do grelhador para se impedir de estender a mão para o segurar. Sabe que Olimpia está a tomar conta dele em condições (consegue ouvi-la a gritar constantemente: «Carlito! Fai attenzione!»); é exatamente isso o que lhe custa. E então escuta as palavras «Villa Serena» e concentra-se novamente no que Don Angelo está a dizer. Outra mulher veio ter com ele e agora estão todos a conversar animadamente, com Don Angelo a entornar vinho enquanto
gesticula entusiasmado. – Scusi – diz Emily. Eles ignoram-na. – Desculpem – diz depois em inglês. O padre Angelo volta-se para ela. – Estavam a falar sobre a minha casa? – pergunta Emily. – A sua casa? Oh, sim. Estávamos a falar sobre as escavações. – As escavações? – A… qual é a palavra…? A arqueologia. – Arqueologia…? – Sim, andam a fazer escavações nos campos por trás da sua casa. Julgam que aquilo ali é um campo santo etrusco… um cemitério. – A sério? Que excitante! Don Angelo fita-a, desconcertado. – Alguns de nós não acham isso nada excitante, Mrs. Robertson. Os mortos devem ser deixados em paz. – Mas e se for alguma coisa de interesse histórico? – Interesse histórico! – Don Angelo abre os braços num gesto de absoluto desprezo. – De que serve a História? Emily não sabe o que lhe responder. Felizmente, uma das outras mulheres inclina-se e chama a atenção do padre. Emily apenas consegue distinguir o nome «Raffaello». Julgando que se trata do artista, pergunta, entusiasmada: – Raffaello?! Encontraram um Raffaello? Don Angelo volta-se para ela com um sorriso carregado. – Estamos a falar de Raffaello Murello, o arqueólogo. É um homem bastante conhecido por estas bandas. – Ele é um demónio – diz a mulher de cabelos pretos, começando de forma desconcertante a falar em inglês. Paris está para lá de farta. Está morta de tédio. Sentada a uma mesa ao fundo da piazza, ao lado de uma família a empanturrar-se, os seus pensamentos são sombrios. A mãe ainda está a cozinhar aquela carne repugnante, toda ensanguentada, com glóbulos de gordura e tendões brancos e asquerosos. Paris não comeria aquilo nem que lhe dessem um milhão de libras, embora a família ao seu lado pareça estar deliciada, salpicando a toalha de um molho repulsivo enquanto continuam todos a enfardar aquilo. Paris lança-lhes um olhar fulminante.
Siena anda por ali algures com o estúpido do Giancarlo, que não para de falar de testes de som e de solos de bateria como se fosse o Robbie Williams ou outro como esse. Charlie está a ser estragado com mimos por Olimpia; Paris consegue ouvi-lo no outro lado da praça, a exigir gelado com queixumes estridentes e bilingues. Ela é a única que está cansada, faminta e sozinha. Tira um chocolate Mars do bolso e começa a comê-lo lentamente. Se se esforçar, consegue fazer aquilo durar-lhe uma hora. E pensa: «Já medi a minha vida em chocolates Mars.» Deus do Céu! Os seus talentos estão a ser completamente desaproveitados ali. Quem mais lê T. S. Eliot apenas por distração, como ela faz? Siena só se mostrou interessada quando ela lhe disse que o nome do poeta era um anagrama para «casas de banho»5. Deus do Céu! A ignorância da sua família! – Ciao, Paris. Ergue o olhar, fazendo uma carranca. É Andrea, o filho da professora, aquele que quer ir para a Universidade de Pisa. De todos os amigos de Giancarlo, Andrea sempre foi o seu preferido. É louro e muito calado. Tem também a distinção de vir de uma família monoparental, o que o torna invulgar na Toscana e, ao mesmo tempo, reconfortantemente parecido com os amigos dela em Londres. – Ciao – responde-lhe, com um quase sorriso. – Porque é que estás aqui sozinha? – pergunta-lhe Andrea em italiano. Paris, cujo italiano é bastante melhor do que o de Emily, responde: – Estou entediada. – Entediada? Porquê? – Não sei. Estou, simplesmente. – E para seu horror, Paris sente os olhos a encherem-se de lágrimas. Baixa a cabeça para Andrea não ver. O rapaz fita-a por instantes e depois pousa uma mão no braço dela. – Queres que eu te leve a casa? – Sim – responde Paris. – Sim, por favor. Quase se vai embora sem dizer nada a Emily, apenas para lhe dar uma lição. Consegue ver a mãe junto do grelhador, a rir e a conversar com o padre. Ele está a beber vinho e a esbracejar. Francamente! Um vigário inglês jamais se comportaria daquela maneira. Seria bem feita para a sua mãe se ela simplesmente desaparecesse. Mas então desiste dessa ideia. Vendo Olimpia ali ao pé, segurando ternamente nos braços um Charlie agora cheio de sono,
resolve deixar um recado para Emily. Será que Olimpia lhe pode fazer o favor de dizer à sua mãe que ela se estava a sentir cansada e que foi para casa? Um amigo vai dar-lhe boleia. Grazie. A viagem até casa, sentada atrás na mota de Andrea, é muito empolgante. Consegue sentir no rosto a frescura do ar noturno, e, apertada contra o blusão de pele do rapaz, não sente necessidade de falar. Quando chegam à Villa Serena, o céu explode em fogo de artifício. Ficam parados um instante nos degraus do terraço, a admirar o espetáculo. – Que bonito – diz Andrea. – O fogo de artifício em Clapham Common é melhor – responde Paris. Lembra-se daquela Noite de Guy Fawkes no parque em que ela pôs um daqueles estúpidos colares fluorescentes e pregou um susto a Charlie com um foguete dos pequenos. Quase consegue sentir o cheiro das cebolas fritas. Nessa altura, a comida não a fazia sentir-se tão nauseada. – Ficas bem aqui sozinha? – pergunta Andrea quando ela empurra a porta de casa, que está destrancada. Por um instante, Paris pondera pedir-lhe que fique ali com ela. A casa parece-lhe muito escura e o tiquetaque do relógio ressoa pelo corredor, como na banda sonora de um filme de terror. Mas então ele poderá pensar que ela gosta dele, poderá (que ideia horripilante!) saltar-lhe para cima e tentar beijála. Observa o corpo sólido de Andrea, com o seu blusão de motoqueiro, e imagina-o a imobilizá-la no chão, e os seus próprios gritos enquanto tenta soltar-se. Imagina o rosto pálido e inteligente do rapaz a ficar lívido, com aquela mesma horrível intensidade que ela por vezes vê no de Giancarlo, quando ele beija Siena. Nunca, nunca, nunca. Preferia arriscar a sorte com os lobos. – Eu fico bem – responde-lhe. – Va bene – diz Andrea, muito sereno. Não é rapaz para discussões. Paris vê-o descer os degraus a correr e escuta o roncar da sua motoreta. Por um breve instante, o farol dianteiro ilumina as figueiras e depois fica tudo às escuras. Paris fecha a porta. Depois, por algum motivo, agarra na pesada chave de ferro e roda-a cuidadosamente na fechadura. Porém, em vez de isso a fazer sentir-se mais segura, deixa-a mais assustada do que nunca. Não é exatamente o que acontece em todos os filmes de terror? Uma rapariga deixada sozinha numa casa grande tranca-se lá dentro e, ao voltar-se, depara
com um maníaco encapuzado parado mesmo atrás dela. Paris volta-se repentinamente. Não está ali ninguém, só o enorme relógio com o seu tiquetaque espectral e o bengaleiro com os seus casacos sem cabeças, horripilantemente pendurados nos seus ganchos. Lembra-se de uma história de origem desconhecida que era muito popular na sua antiga escola em Clapham. Uma babysitter sozinha em casa atende o telefone e ouve um louco a dizer-lhe que a vai matar, e depois percebe que se trata de uma linha interna. O horror está no interior da casa. O louco está no sótão. «Para», diz a si mesma. «Tiveste a nota mais alta no trabalho sobre Lógica que fizemos na aula de Mr. Dixon. Tu não acreditas realmente que está um louco com um machado à tua espera ali em cima. Estás perfeitamente calma e completamente controlada.» Com algum esforço, volta costas à porta e, num passo decidido, vai para a sala de estar. É melhor ficar ali. Um dos sofás foi empurrado para mais perto da televisão e as cassetes de vídeo estão convidativamente empilhadas no chão. Paris acende todas as luzes e seleciona uma das cassetes da série Dad’s Army. Depois senta-se no chão, tira do bolso o Mars que deixou a meio e corta uma fina camada de chocolate com os dentes da frente. No instante seguinte, a voz trémula que ela tão bem conhece pergunta: «Quem é que o senhor julga que está a enganar, Mr. Hitler?», e Paris é transportada para Warmington-on-Sea e para o maravilhoso mundo da carrinha de talhante de Jones, do cachecol vermelho de Pike e das constantes idas à casa de banho de Godfrey. Paris estende-se no chão de pedra, com uma almofada debaixo da cabeça, e vai trincando pedacinhos de chocolate cada vez mais pequenos. Depois, sem aviso prévio, Fraser, Jones e Godfrey resolvem que parecem demasiado velhos para a Home Guard e Fraser leva-os até à sua agência funerária para os rejuvenescer. No seu sinistro sotaque escocês, Fraser convida-os a deitarem-se na mesa dos cadáveres. A tremer, Paris ejeta a cassete do leitor de vídeo. Põe-se a examinar as outras cassetes. Tem de encontrar alguma coisa que a ponha a milhas da Toscana, de casas desertas e de maníacos com machados à sua espera no andar de cima. Insere outra cassete no aparelho e torna a deitarse no chão. Um louco de bigode surge no ecrã, a dar pontapés no ar e a gritar histericamente a respeito dos Alemães. Paris descontrai-se, aliviada pela fúria do preconceituoso Basil Fawlty.
Cada vez mais em pânico, Emily tenta encontrar Paris. Avista Siena, a dançar como uma morta-viva diante da banda, com os cabelos louros a formarem uma cortina diante do seu rosto. Emily agarra-a pelo braço. – Viste a Paris? Siena aponta numa direção vaga. – Está para ali. Numa das mesas. Amuada. – Onde? Mas Siena limita-se a continuar a dançar, com o cabelo às voltas. No palco, também Giancarlo sacode os cabelos freneticamente, as baquetas nas suas mãos agitando-se numa mancha indistinta. De ouvidos a zumbir, Emily sai dali. Põe-se a andar de mesa em mesa, a perguntar pela filha a toda a gente. As pessoas vão apontando para Siena (é impossível não a ver, a dançar sozinha diante do palco) e para Charlie, que dorme nos braços de Olimpia. Mas, ao que parece, ninguém viu Paris. Uma mulher até se mostra surpreendida ao saber que ela tem outra filha. «Una tipa differente», explica alguém, indicando Siena com um aceno. Mas Emily já foi a correr para a mesa seguinte. Tem o coração aos pulos; aquilo é o seu pior pesadelo, estrondosamente materializado. Perdeu um dos filhos. É uma péssima, péssima mãe. Paul jamais lhe perdoará se alguma coisa acontecer a Paris (a sua parceira para ver jogos de futebol, a sua adorada maria-rapaz) e ela tãopouco perdoará a si mesma. O mundo torna-se um caleidoscópio de cenas de pesadelo: Paris morta, o seu pequeno caixão branco, o seu quarto desocupado, ela própria a gritar de horror, o olhar gélido e cheio de ódio de Paul. Pede a Deus que a ajude a encontrar a filha. Por fim chega à mesa de Olimpia. A mulher a dias olha-a impassivelmente, de braços cruzados sobre o peito. Decerto terá visto Emily a andar freneticamente de mesa em mesa, a perguntar pela filha, mas não faz nada para a tranquilizar. «Ela odeia-me, odeia-me em absoluto», pensa Emily. – Olimpia – começa a dizer, num tom suplicante –, viu a Paris? Não a encontro em parte nenhuma. Acho que ela se perdeu. – A voz falha-lhe e Emily tem de se apoiar na mesa para parar de tremer. – Oh, a Paris – responde-lhe Olimpia placidamente, em italiano, depois de beber um gole de vinho. – Foi-se embora há já algum tempo. Com o Andrea. – Com o Andrea…?
– Sim, o filho da professora. É bom rapaz, mas a mãe dele, enfim… Lembro-me dela em criança. Era bonita mas caprichosa. O miúdo não tem pai, sabe. – Para onde é que eles foram? – interrompe Emily. Olimpia encolhe os ombros. – Para a sua casa, parece-me. Sem dizer uma palavra, Emily agarra em Charlie, que continua a dormir, e, com a cabeça dele tombada no seu ombro, corre para junto de Siena. – Vamos para casa – diz, ofegante. – Eu não – responde Siena calmamente, balançando o corpo e sacudindo os cabelos. – O Gianni leva-me depois. Emily tem de ceder. Não pode discutir com Siena estando ela naquele transe, não quando Charlie é um peso-morto nos seus braços e Paris anda desaparecida na noite com o misterioso Andrea. Depois de obrigar Siena a prometer-lhe que estará em casa à meia-noite, afasta-se a correr na direção do carro. A vila está tão cheia de gente para o ferragosto que teve de estacionar do lado de fora da muralha, quase no cimo da colina a seguir. Quando chega ao Fiat Panda já quase não tem força nos braços e mal consegue respirar com o esforço. Depois de prender Charlie na sua cadeirinha, senta-se ao volante e roda a chave na ignição. «Por favor, trabalha», pede mentalmente. O «deus dos Fiats» está do seu lado e o motor emite um ronronar presunçoso. Enquanto ela dá a volta com o carro na estrada, começa o fogo de artifício e o céu enche-se de luzes vermelhas e douradas. O barulho é insuportável, e Emily pensa que deve ter sido exatamente aquela a sensação dos londrinos durante os bombardeamentos dos Alemães. Desorientada e cada vez mais em pânico, põe uma cassete a tocar. As amistosas vozes com sotaque do Norte começam a cantar uma canção sobre as rodas dos autocarros. Emily inspira profundamente. Tem de se concentrar, não pode sofrer um acidente. Três canções infantis mais tarde, passa os portões enferrujados da Villa Serena com um guinchar de pneus. Graças a Deus está uma luz acesa. Segurando em Charlie, que continua a dormir, sobe o caminho de acesso aos tropeções. A porta está trancada. Oh, Céus, terá trazido consigo uma chave? Equilibrando Charlie na anca, começa a revistar a sua mala de mão. A embalagem de Tampax, o dinheiro e o bâton caem ao chão, mas Emily mal
dá por isso. Encontrou a chave, que ainda tem a etiqueta do agente imobiliário: «Villa Serena, ao pé de Sansepolcro.» Ao entrar, escuta a voz enfurecida de um homem. Fica paralisada por um instante, mas então reconhece a voz e descontrai. Entrando na sala de estar, depara com Paris a dormir no chão enquanto Basil Fawlty vai berrando na televisão. Deitando Charlie no sofá, deixa-se cair no chão e segura nos braços o corpo magricela da filha. – Oh, minha querida – diz. – Graças a Deus que não te aconteceu nada. Enquanto Basil Fawlty escavaca um bolo em busca de pato assado, Emily embala a filha nos braços. 5 Toilets no original. (N. do T.)
7 Cartas da Toscana por Emily Robertson
É
muito difícil descrever, a um italiano, os hábitos dos Ingleses à beiramar. Recentemente, um italiano meu conhecido perguntou-me por que razão os Ingleses levavam um termos para a praia. «Para poderem beber qualquer coisa quente (Bovril, de preferência) depois de nadarem», respondi eu. «È vero? Porque haveriam os Ingleses de querer beber qualquer coisa quente num dia de calor?» Então eu expliquei-lhe com delicadeza que nas praias inglesas não faz, necessariamente, calor. Entrar no mar gelado exige níveis olímpicos de estoicismo. Caminhar aos tombos sobre pequenas pedrinhas afiadas requer um domínio da mente sobre o corpo igual ao de um faquir indiano. E quando a seguir nos vamos sentar na areia, fustigados por uma ventania desgraçada e com uma toalha húmida em volta dos ombros, temos de forçar uma bebida quente a descer por entre os nossos lábios a tiritar de frio. «O que é isso do Bovril?», perguntou ele. «É melhor nem entrarmos por aí», respondi-lhe eu. Diário de Paris, 20 de agosto de 2004: Estou a escrever isto em Inglaterra. Em Brighton, para ser mais exata. Estou sentada no quarto do sótão da casa da Petra, a ver um homem à janela do quarto do sótão da casa em frente a praticar malabarismo. Estar aqui é ESPETACULAR. Quando o avião sobrevoou Inglaterra comecei a chorar. A sério. Chorei mesmo. Pareceu-me tudo tão bonito, tão incrivelmente verde, com todas as casinhas rodeadas por campo – campo a sério, plano, em vez de socalcos estúpidos nas encostas das montanhas. OK, OK, já sei que é tudo verde porque está sempre a chover, a Siena já mo disse pelo menos um milhão de vezes. Mas eu gosto de chuva. Gosto de usar lã e de me sentir aconchegada,
em vez de estar sempre morta de calor. Gosto de não ter de pôr protetor solar. Gosto de me aconchegar no meu edredão à noite e de sentir as orelhas frias e o corpo quente. Gosto das manhãs em que tudo parece ter sido lavado pela chuva. Adoro falar sempre em inglês. A Siena não gosta de nada disto. Está mega-amuada porque teve de se separar do chatarrão do Giancarlo. Passou o caminho todo até ao aeroporto a chorar. É mesmo patética! Afinal de contas, vai tornar a vê-lo daqui a uma semana. Mas não se cala com a conversa de que só faltavam duas semanas para o fim das férias e que o G a ia levar até ao apartamento dele em Forte dei Marmi. A minha mãe disse-lhe logo: «De qualquer maneira, eu não teria deixado que fosses.» Já reparei que a minha mãe desengraçou um bocado com o G. Além disso, anda muito mais brusca com toda a gente. Até com o seu Queridinho Charlie. Hurraaa! Seja como for, a Petra veio buscar-nos a Gatwick e a minha mãe atirou-se para os braços dela e desatou a chorar sem parar. Eu e a Siena ficámos muito envergonhadas. A Petra (gosto mesmo dela) acalmou a minha mãe e tratou da nossa bagagem e de tudo. Tinha levado os filhos com ela: o Jake, de quem eu me lembro mais ou menos, e o Harry, que é da idade do Queridinho Charlie. A minha mãe tem andado a dizer que o Harry e o seu QC podem brincar juntos, e que vai ser tão bom para ele ter outra criança com quem brincar, etc. etc. De qualquer maneira, a primeira coisa que o Harry fez foi dar uma canelada ao Charlie e a segunda foi morder-lhe a perna. Acho que vou gostar do Harry. Na primeira noite, a minha mãe e a Petra fartaram-se de falar. Eu e a Siena perguntámos se podíamos ir até ao molhe, e, espantosamente, a minha mãe deixou. Foi espetacular, aquelas luzes todas e o barulho dos carrosséis. Havia centenas de pessoas por toda a parte, todas diferentes. Mods, roqueiros, punks, gays, heteros. Não é como em Itália onde toda a gente parece igual: todos bronzeados e sempre muito limpinhos, com camisas brancas e mocassins de enfiar sem meias. Aqui toda a gente tinha um ar desmazelado e, ao fundo do molhe, havia um grupo todo bêbedo a cantar karaoke. Adoro Brighton. Vários fatores levaram Emily a tomar a decisão de ir a Inglaterra de uma
forma tão repentina. Em primeiro lugar, depois do grande susto na noite do ferragosto, sentiu que tinha de sair da Toscana por algum tempo. A recordação de ter andado a correr pela praça segurando nos braços o corpo adormecido de Charlie (que, na sua imaginação, praticamente se transformara num corpo sem vida), desesperadamente à procura de Paris, ainda tinha o poder de a deixar gelada de medo. A viagem de carro pelo meio da escuridão, com o fogo de artifício a explodir no céu a toda a volta, parecera-lhe um pesadelo consumado, mesmo se, por fim, fora encontrar Paris a são e salvo, na companhia de Basil Fawlty. Além disso, o insuportável Giancarlo andava a rondar a villa mais do que nunca e agora Siena queria ir com ele para a sua casa de férias (até mesmo os italianos mais pobres parecem ter apartamentos de férias, geralmente na praia ou nas montanhas). Emily pôs logo cobro a essa ideia. Já não confiava em Giancarlo em Monte Albano; ainda confiava menos nele num apartamento de férias, a quilómetros e quilómetros da sua vigilância. Era melhor para Siena ficar longe dele por algum tempo. Em segundo lugar, tinha de se encontrar com o seu contabilista e com a advogada, e ambos estavam em Londres. Em terceiro lugar, queria muito tornar a ver Petra. E, em quarto… em quarto lugar, havia o recorte de jornal amachucado que Petra lhe enviara, com uma nota rabiscada: «Aqui está a fotografia do M. Ainda é giraço, não? A Izzy e a Ruth vão fazer uma festa de reunião de turma no dia 22. Há alguma hipótese de poderes vir?» Na manhã de 16 de agosto, Emily estava sentada ao seu computador, com uma chávena de café forte ao seu lado, a marcar as passagens para Gatwick. Foi magnífico tornar a ver Petra. Estava exatamente igual, talvez até mais magra, ali de pé como uma cegonha, vestindo umas calças de ganga desbotadas, a espreitar por cima da multidão. Jake, que se tornara num rapaz de ar sério e que herdara de Petra as pernas compridas e os cabelos louros, estava a empurrar um carrinho para a bagagem. Harry, de cabelos escuros e olhos azuis (como Ed), estava parado junto de Petra, de mãos nos ouvidos. – Pete! – Emily abraçou a amiga. Petra manteve-se muito hirta e tensa, como se não estivesse habituada a que a abraçassem, mas deu um beijo na face de Emily, e exclamou, com genuína afeição: – Em! Que bom ver-te! E Emily desfez-se em lágrimas. Enquanto Petra e Jake tratavam da bagagem, Emily apresentou as crianças:
– Lembras-te da Siena e da Paris, claro. E este é o Charlie. – Harry deu um passo em frente, tirou as mãos das orelhas e pontapeou Charlie com toda a força nas canelas. Charlie ficou tão chocado que nem sequer gritou. – Harry! – admoestou Petra num tom fatigado, não se mostrando realmente zangada ou sequer surpreendida. Instintivamente, Emily puxou Charlie mais para si. Harry ficou a olhá-los impassível e a seguir tornou a tapar os ouvidos. – Ele não gosta do barulho, sabes – explicou Petra, conduzindo apressadamente o grupo para o parque de estacionamento. – Compreendo – replicou Emily num fio de voz. – Ele odeia aviões – acrescentou Jake, ainda a empurrar o carrinho com a bagagem. – Só gosta do Tomás. – Quem é o Tomás? – O comboio. – Ah. Já no carro (um monovolume a cair de podre), Emily sentou-se no banco do meio, com Charlie no seu colo. Petra concedeu a Siena o privilégio de ir no banco da frente, e Paris sentou-se lá atrás com Jake. O detestável Harry estava na sua cadeirinha, ao lado de Emily. Charlie estendeu a sua perna bronzeada para tocar no banco da frente. Harry inclinou-se para diante e mordeu-a. Desta vez, Charlie gritou. Petra voltou-se. – Harry! – avisou, no mesmo tom de antes. – Desculpa – disse depois a Emily. – Não faz mal – respondeu ela, sem emoção. Estava furiosa com Siena e com Paris por as duas se terem começado a rir. A marca da dentada era visível na perna de Charlie. A casa de Petra fica em Kemp Town, um pouco mais adiante na estrada costeira onde as duas partilharam um apartamento (e que agora, segundo Petra lhe contou, foi renovado e convertido em «apartamentos de luxo»). É uma casa alta e estreita, com dois andares e chão de madeira inclinado; é como se estivessem a bordo de um navio. Siena e Paris ficam encantadas por ficarem no sótão, onde, das suas camas, conseguem ver o céu nublado. Os guinchos das gaivotas fazem Emily estremecer com algo que quase se assemelha a medo. Emily e Charlie ficaram instalados no andar abaixo. Vão dormir numa
cama de casal e Emily sente-se ligeiramente envergonhada por estar tão ansiosa por se aconchegar, à noite, no corpinho de Charlie, morno e a cheirar a bebé. Será que alguma vez ansiou da mesma maneira aconchegar-se no corpo de Paul à noite? Apenas se recorda dos seus hábitos irritantes, como puxar o edredão todo para si ou acender as luzes do teto às cinco e meia da manhã quando tinha de apanhar um avião de manhã bem cedo. A verdade é que já não se recorda do prazer carnal de ter um corpo humano junto ao seu; tais sentimentos passaram a estar confinados aos seus filhos. Apenas se recorda de se enroscar neles à noite, como uma gata com as suas crias. Mas isso só acontecia nas noites em que Paul não estava na villa; ele sempre se recusou a deixar as crianças dormirem na sua cama. Os dois rapazes de Petra estão instalados no mesmo andar de Emily, onde também há um terraço ajardinado. – Temos de o manter trancado, por causa do Harry – explicou Petra, descontraída. Ela vai dormir no escritório do rés do chão, ao lado da sala de estar. – Não posso ficar com a tua cama! – protestou Emily, horrorizada. – Oh, não há problema – respondeu-lhe Petra. – Eu não durmo muito. Na cave, Emily observa a amiga a andar de um lado para o outro na cozinha, a preparar chá, a aquecer uma pizza, a dar de comer ao gato e a tirar delicadamente das mãos de Harry os objetos afiados. Petra não lhe parecia cansada, mas sim verdadeiramente esgotada, quase transparente, com o cabelo sem cor e os ossos a verem-se por baixo da pele. Quando se voltou para pôr a mesa, a luz difusa do exterior, que entrava pela janela ao nível da rua, quase pareceu atravessá-la, como se ela fosse feita de vidro. – Posso ajudar? – perguntou Emily, sentada com Charlie no colo (ele estava com medo de sequer se aproximar de Harry). – Sim – retorquiu Petra. – Podes abrir o vinho. Depois do jantar, Siena e Paris quiseram ir até ao molhe e Emily estava demasiado cansada para recusar o pedido. – Não há problema – disse-lhe Petra num tom reconfortante. – Brighton é um lugar surpreendentemente seguro. Todos os seus defeitos estão à superfície, por assim dizer. – Não falem com nenhum estranho – gritou Emily quando as filhas se encaminhavam para a porta. – Estamos em Brighton, não te esqueças. Aqui, toda a gente é estranha –
gracejou Petra. As duas amigas foram sentar-se junto da janela aberta, a beber vinho e a ouvir a cidade a ganhar vida, preparando-se para a noite: a incessante batida musical vinda do molhe, os gritos das pessoas a caminharem pela marginal, os ruídos do tráfego automóvel, e, em fundo, o murmurar contínuo das águas do mar. – Senti falta do mar – comentou Emily. Petra bebeu um gole de vinho. – Julguei que na Toscana fosse tudo uma maravilha – disse. – Com todo aquele sol e comida, e os seus encantadores e rústicos habitantes. Emily pensou na Villa Serena, nas suas figueiras e no terraço. Pensou em Don Angelo a cortar um pêssego e em Giancarlo na sua Vespa. Pensou na mulher de cabelos pretos a preparar sanduíches de porchetta sem trocar uma única palavra com ela, e nos rostos sem expressão das pessoas na praça quando ela lhes perguntou se tinham visto Paris. Pensou em Olimpia segurando Charlie ao colo e em Paris a dormir no chão de pedra. – Nem tudo é assim por lá – respondeu finalmente. – Mas é sobre essas coisas que as pessoas querem ler. É essa a Toscana que desejam conhecer. Por baixo da superfície, as coisas não são assim. – E como é que são as coisas por baixo da superfície? – perguntou Petra. – Não sei. Ainda não estive por lá tempo suficiente. – De súbito, surgiu-lhe na mente a imagem das mulheres no ferragosto a sussurrarem a respeito do misterioso Raffaello: «Ele é um demónio.» – Há coisas que não consigo entender – continuou. – Coisas ocultas. O meu italiano não é suficientemente bom para compreender tudo o que se passa. – Julguei que, por esta altura, o teu italiano já seria bastante bom. – É razoável. O da Siena e da Paris é melhor. Especialmente o da Paris. Mas, mesmo que o meu italiano fosse perfeito, eu continuaria a ser uma forasteira. Nem imaginas como as coisas são por lá. Até mesmo as pessoas da aldeia a três quilómetros dali são consideradas forasteiras. Stranieri, é como eles lhes chamam. Estranhos. – E as raparigas? Também se sentem como forasteiras? – A Siena não, possivelmente porque tem um namorado italiano. Mas a Paris sim. Ela diz que detesta isso. Preocupo-me muito com ela. Nunca diz nada, limita-se a escrever no diário. E está tão magrinha… – Talvez seja o tipo de pessoa que simplesmente não engorda – sugeriu
Petra, estendendo um braço fino como uma vara para agarrar no seu copo. – Sim, é possível. Tal como tu. E ao contrário de mim. Devo ter engordado uns seis quilos nas últimas semanas. A tristeza só me dava vontade de comer. E de beber. A vida no paraíso. Se as pessoas soubessem a verdade! – Devias escrever a verdadeira história – aconselhou Petra. – Em vez de todas essas parvoíces sobre pores do sol e orvalho matinal. Emily suspirou. – Não posso. As pessoas iam deixar de ler a coluna e, de momento, essa é a minha única fonte de rendimento. – Mas o Paul deve estar bem de finanças, não? Ele não te vai deixar sem nada. – Não sei. É por isso que quero ir falar com o meu contabilista. Já sabes como o Paul é. Aquilo são só aparências, ele anda sempre a pedir dinheiro emprestado aqui e ali. Parece um empresário de sucesso, mas não sei se realmente o é. Petra reconheceu que de facto sabia como Paul era, e recordou como ele costumava andar em carros desportivos e vestir fatos de marcas caras. Os punhos das suas camisas, lembrou, estavam sempre imaculadamente brancos. E sempre com botões de punho, acrescentou Emily. Sim, com botões de punho, concordou Petra. Inclinando-se, pegou em Harry, que adormecera no sofá. Emily interrogou-se porque não teria ido a amiga pôr Harry na cama quando ela o fizera com Charlie. Jake fora deitar-se por iniciativa própria e de bom grado, dizendo que ia ficar a ler até ser altura de apagar a luz, mas Harry fora autorizado a ficar ali em baixo a brincar até adormecer agarrado a um pequeno modelo de Tomás, a locomotiva. As rodinhas do brinquedo tinham deixado leves marcas na sua bochecha. Quando Petra regressou à cave, Emily perguntou-lhe. Com tato, esperava. Petra serviu-se de mais vinho antes de responder. – O Harry é uma criança com necessidades especiais – disse. – Decerto já deves ter notado. Emily, que até ali apenas pensara em Harry como sendo uma ameaça para Charlie, apenas conseguiu repetir, num fio de voz: – Necessidades especiais…? – Autismo – respondeu Petra sucintamente. – Não! – Sim. – Petra ajoelhou-se no chão e começou a desmontar a pista de
comboios. Quando falou, a sua voz soou fatigada, como se já tivesse tido aquela conversa muitas vezes. – Ao que parece, a sua obsessão com a locomotiva Tomás é praticamente um diagnóstico positivo de autismo. Os médicos explicaram-me que é por causa das caras muito grandes e sem expressão. As crianças autistas acham-nas fáceis de entender. Pelo menos, mais fáceis de entender do que as caras das pessoas. Emily não sabia o que dizer, por isso ajoelhou-se também e começou a separar os carris e a guardar as carruagens nas caixas. – Certifica-te de que as pões nas caixas certas – avisou Petra. – Ele fica perturbado se estiverem mal. Esse é outro dos pormenores do Tomás e dos seus amigos. Tudo tem o seu lugar, um nome e um número. Os autistas gostam disso. – Há quanto tempo é que sabes? – perguntou Emily, tirando apressadamente a carruagem Annie da caixa da carruagem Clarabel. – Há uns seis meses. – Porque é que não me disseste nada? – Bem, não é o tipo de coisa que se conte por telefone, não é verdade? Ou por e-mail. – Eu contei-te a respeito do fim do meu casamento. – Isso é diferente. Há sempre casamentos a terminar. Aconteceu com o meu. Não que aquilo fosse um casamento, mas enfim. Com os filhos é diferente. Toda a gente quer que os seus filhos sejam perfeitos. Os melhores, os mais inteligentes, os mais bonitos. Ainda me lembro de como me senti tão orgulhosa do Jake quando ele aprendeu a ler com quatro anos. O Harry nem sequer sabe qual é a primeira letra do seu nome. – Mas, por vezes, as crianças autistas não são… – Emily deteve-se, não sabendo como terminar a frase, desejando reconfortar a amiga mas sem se mostrar condescendente. – …espertas? – Petra sorriu com azedume. – Boas com números? Por amor de Deus, só te peço: não me fales no Encontro de Irmãos. – Não ia fazer isso. – Ótimo – retorquiu Petra, num tom ligeiramente mais amistoso. – Na verdade, o Harry até tem muito jeito para os números. E é muito afetuoso, comigo, pelo menos. Portanto, podia ser pior. Emily, sentada no chão e rodeada de caixas impecavelmente etiquetadas, não disse uma palavra.
– Só que… oh, Em… são as complicações. Quando penso em todas as complicações que o Harry vai encontrar pela frente, e nas que eu mesma vou enfrentar, só me apetece chorar. É mesmo o que me apetece fazer. Emily levantou-se, e, agarrando na garrafa de vinho, tornou a encher o copo de Petra. Pela primeira vez em três semanas, não tinha vontade de chorar.
8 Cartas da Toscana por Emily Robertson
U
ma das alegrias de viver na Toscana é convidar amigos a ficar em nossa casa. Em Inglaterra, via os meus amigos com bastante regularidade. Encontrávamo-nos para almoçar, para jantar ou para ir ao cinema; arranjámos sempre tempo para um café a meio de um dia muito ocupado ou falávamos por telefone à noite. Ocasionalmente, íamos jantar a casa uns dos outros, embora essas ocasiões, ainda que agradáveis, terminassem inevitavelmente numa nota de desilusão. O meu marido lançava-se numa interminável conversa a respeito dos preços das casas, alguém bebia demasiado e adormecia no zabaglione, e depois, por volta das onze, a temida chegada do táxi ensombrava o serão. Mas aqui, na Toscana, os meus amigos podem ficar a dormir na minha casa. No terrazzo, podemos tomar juntos um pequeno-almoço de fatias de melão e cornetti dourados. Podemos almoçar à sombra das vinhas, acompanhando o queijo mozzarella e os tomates cortados às fatias com um vinho branco gelado. E, ao fim da tarde, podemos jantar juntos enquanto as crianças brincam à nossa volta e as sombras se vão alongando. De repente, temos todo o tempo do mundo para saborear a nossa amizade. * Emily está no comboio, a caminho de Londres. Vai encontrar-se com o contabilista e deixou as crianças em Brighton, com Petra. Sente-se ligeiramente preocupada com Charlie; anda sempre agarrado a ela e tem pavor de Harry. Mas é uma delícia estar sozinha, para variar. Olha pela janela (o comboio fez uma paragem imprevista pouco depois de ter deixado uma estação) e pergunta-se quando foi a última vez que pôde descontrair daquela maneira, de cabeça encostada ao vidro encardido e sem pensar em nada em
particular. Mas depois, claro está, as preocupações regressam rapidamente. O que irá ela fazer em Itália sem Paul? Terá de vender a casa? Terá de se instalar novamente em Inglaterra? O comboio recomeça a andar, mas as preocupações de Emily acompanham-no sem problemas, correndo paralelas à linha, saltando por cima de chulipas e das casas geminadas nos arredores de Londres. Terá ela realmente de regressar a Inglaterra? Paris ficaria encantada, mas, apesar das suas fantasias quanto a viver em Brighton, Emily sente que isso seria em grande parte como uma derrota; estaria a correr de volta a casa com o rabo entre as pernas. Ela e Paul falaram tanto sobre «A Mudança», sobre deixarem para trás a sua vida antiga e iniciarem uma nova aventura… Como poderá ela admitir que a aventura resultou num horrível fracasso? Mas terá dinheiro para permanecer na Toscana? Tem de se certificar de que ouve o seu contabilista sem deixar que os seus pensamentos divaguem, como geralmente lhe acontece sempre que o tema da conversa é dinheiro. Londres é um choque. O Tamisa brilha intensamente e há uma série de novos e modernos apartamentos junto ao ancoradouro de Battersea. A London Eye, uma descomunal roda-gigante, ergue-se acima de toda a cidade, criando uma atmosfera festiva e descontraída. Embora Emily tenha estudado numa universidade de Londres e vivido em Clapham durante quase vinte anos, há muito que não vinha ao centro, à zona turística. Os autocarros vermelhos e os táxis pretos quase parecem demasiado pitorescos para serem verdadeiros, e quando, do andar de cima do seu autocarro, ela avista o Big Ben e o Palácio de Westminster, tem de se beliscar para ter a certeza de que tudo aquilo é real. Quase lhe parece que entrou num postal ilustrado. Ou talvez esteja numa miniatura dentro de uma bola de vidro e dentro em breve comece a nevar. Ou então alguém está prestes a escrever «Saudações de Londres» no céu incrivelmente azul. O escritório do seu contabilista, por trás de Oxford Street, trá-la de volta à realidade. Trata-se de um edifício castanho e lúgubre, com vários sacos de lixo pretos amontoados nos degraus da entrada. O ar condicionado está avariado, e Dermot, o contabilista de Emily, passa a reunião a abanar em vão uma cópia da revista Accountancy Today, tentando refrescá-los. Emily conheceu Dermot na universidade. Agora ele é um dos sócios da firma, e, na verdade, o seu estatuto já é demasiado elevado para este tipo de trabalho, mas ele aceitou-o por ser amigo dela. Ou pelo menos é o que ele
diz, sorrindo charmosamente – apesar da transpiração – por trás da sua secretária, mas Emily sente que não sabe nada daquele homem de cabelo ralo e fato bege amarrotado. Continua a achá-lo com cara de adulto, de pai, de professor. Não consegue acreditar que ela própria já está para lá dos quarenta («quarenta e um», acrescenta para si mesma na defensiva). Não consegue acreditar que, algures em Londres, não irá cruzar-se com o seu «eu jovem», aquela rapariga com cinquenta quilos e o cabelo pela cintura, vestida com calças de ganga e uma T-shirt do Live Aid, a passear de mãos dadas com Michael. Falam da universidade, de amigos mútuos e das respetivas famílias durante tanto tempo que quase parece indecente regressar ao tema das finanças. Por fim, num tom contrito, Emily diz: – E a respeito da minha situação financeira…? Dermot remexe na papelada e abana a Accountancy Today umas quantas vezes. – Sim – diz. – A tua situação financeira… – Segue-se um longo silêncio, durante o qual Emily se interroga se Dermot terá noção de que ela foi até ali para tratar de negócios, e não veio de propósito da Toscana só para trocar dois dedos de conversa. Sente-se transpirada e peganhenta, e apetece-lhe desesperadamente um copo de água. – A casa na Toscana – diz Dermot por fim. – Está em teu nome? – Sim – responde Emily, aliviada por lhe estar a ser feita uma pergunta, sobretudo uma cuja resposta ela sabe. – O Paul achou que era melhor. Claro que a casa de Londres está no nome dele. – A casa de Londres vai ser penhorada – informa Dermot sem a olhar nos olhos. – O quê? – Segundo apurei – continua Dermot, falando rapidamente e sem erguer o olhar –, o teu marido fez uma segunda hipoteca sobre a casa para financiar o seu último empreendimento. – Dá uma olhadela aos documentos que tem na mão. – A Italian Property 4 You. Emily fica sem palavras. – Eu não sabia – acaba por dizer. – Não – concorda Dermot. – Parece que a empresa de imóveis italianos do teu marido tem estado em dificuldades financeiras… – Tossica delicadamente. – …há já algum tempo.
– Eu não sabia – torna Emily a dizer. – E as outras imobiliárias – prossegue Dermot – também estão em dificuldades. – Em dificuldades? – Entraram em liquidação. – Meu Deus. – Emily está sem palavras. Embora saiba que a riqueza ostentada por Paul é maioritariamente uma fachada, não consegue digerir a ideia de que, na realidade, ele não tem um tostão. Estranhamente, tem mais facilidade em ver-se a si mesma nessa situação do que a ele. – O que devo fazer? – pergunta. Dermot mostra-se revigorado ao ouvir aquilo, como se tivesse estado à espera daquela pergunta. Chega mesmo a sacar uma nova pasta, com as palavras «Emily Robertson» impecavelmente impressas na etiqueta. – O meu conselho – diz-lhe ele – é que conserves a casa em Itália. Como está em teu nome, não poderá ser incluída em nenhum processo de bancarrota. Para além disso, é um bem em valorização constante. Poderás ser pressionada a vendê-la, dadas as circunstâncias… – O Paul quer que eu a venda – interrompe Emily. – Eu aconselho-te a não fazeres isso, pelo menos não até o processo de bancarrota estar terminado. Está em causa a tua segurança e a dos teus filhos. – Olha para baixo, e a sua cabeça careca fica avermelhada. – Devo depreender que te vais divorciar…? – Sim. – Bem, nessas circunstâncias, devias optar por conservar a casa em vez de receberes uma pensão de alimentos, que, de qualquer modo, duvido que viesses a receber. Têm outros bens? – Bens? – Emily pensa no Fiat Panda, a enferrujar lentamente por baixo das figueiras. – Não, não se pode dizer que tenhamos. – E a tua escrita? – A minha escrita? – Qual é o destino dos pagamentos pela tua coluna de jornal? – Oh, isso – responde Emily. – Gasto quase tudo em comida, roupa para as crianças e outras coisas desse género. – Portanto, vão diretamente para a tua conta. – Sim. – Ótimo – diz Dermot num tom algo sombrio. Depois, quando os
pensamentos de Emily começam a fugir para a casa na Toscana, agora, ao que parece, tudo o que ela tem no mundo, o contabilista diz-lhe subitamente: – Leio sempre a tua coluna. Para mim, é a essência de Itália. Siena está na praia. Estão todos: Paris, Charlie, Jake, Harry e Petra. Paris está a ajudar Harry a fazer um castelo de areia sem areia (a praia de Brighton é inteiramente feita de seixos cinzentos e macios). Nenhum dos dois parece especialmente preocupado com os efeitos desse pequeno contratempo no seu projeto; o rosto de Paris exibe uma concentração terna que Siena não se recorda de alguma vez lhe ter visto. Além disso, vestiu uma T-shirt cor de laranja, tão grande a rotura com a sua habitual indumentária preta que, por várias razões contraditórias, os olhos de Siena lhe doem ao olhar para a irmã. Jake e Charlie estão parados de mãos dadas à beira da água, como se estivessem num anúncio de moda infantil. Petra, vestida com uma saia de ganga de bainha desfiada e um top sem mangas, está sentada ali perto, a vigiá-los. Siena admira o estilo de Petra (a sua mãe jamais ficaria bem com uma saia assim tão curta, e o mais certo era estragar o efeito calçando umas horríveis sandálias de saltos curtos e fininhos), mas sente-se intimidada por ela. Naquela mesma manhã, Petra interrompeu o seu monólogo sobre como estava cheia de saudades de Giancarlo, dizendo bruscamente: – Por amor de Deus, Siena, não é o fim do mundo só porque tens de ficar longe do teu namorado por alguns dias. Paris deu uma gargalhada, mas Siena ficou magoada. É claro que sabe que não é o fim do mundo, mas qualquer um pode ver que aquilo lhe está a custar muito. Ela ama Gianni de verdade; não se trata de uma mera paixoneta de adolescente. O mais provável é Petra já nem se lembrar de como é o verdadeiro amor, isto se alguma vez o conheceu. Siena lembra-se de quando Emily falou sobre Ed, o pai de Jake e de Harry, dizendo que ele tinha «pavor de compromissos». Aí está a prova; Petra não faz a mínima ideia de como conservar um homem. Siena não vai deixar Gianni fugir, disso tem a certeza. Tenta visualizar os seus olhos escuros, a sua pele macia e bronzeada, o seu sorriso de dentes extraordinariamente brancos, mas apenas consegue ouvir a sua voz a dizer «Sien-na» daquela sua maneira tão particular. Até ir para Itália, odiava o seu nome. «Porque é que eu e a Paris temos nomes de sítios?», costumava perguntar num tom lamuriento. «É tão injusto.» Naquele momento apercebe-
se de que Charlie não foi contemplado com um nome idiota. Mas, em Itália, ter o nome de uma cidade italiana já não lhe pareceu assim tão mau. Para começar, lá sabem pronunciá-lo, não lhe chamam «Sá-ina», como os seus amigos de Londres, e, de algum modo, ter o nome de um lugar na Toscana, sobretudo um lugar belo na Toscana, fê-la sentir-se integrada. Ter-se apaixonado por Gianni também ajudou a isso. Lembra-se da primeira vez que o viu, a fazer a entrega do pão na sua Vespa. Ele assobiou e chamou-a, mas ela já estava habituada a manifestações desse tipo; todos os rapazes faziam o mesmo. «É por seres loura», dizia toda a gente, mas Siena achava que talvez houvesse outra razão. Por algum motivo, em Itália todos pareciam ser capazes de apreciar a «verdadeira» Siena, todos conseguiam ver como ela era especial. Sempre soube que a mãe e o pai não a achavam tão inteligente como Paris, e, depois de Charlie nascer, pareceu-lhe que já ninguém lhe ligava minimamente. Mas em Itália ligavam, e como! Certa vez, ao atravessar a rua vestida com um top rosa justo, quase fez parar o trânsito em Sansepolcro. – Para de chamar a atenção – sussurrou-lhe Paris com irritação. – Não posso fazer nada – limitou-se ela a responder. Assim, quando Gianni lhe gritou que ela era uma bambola, uma boneca, ela limitou-se a sacudir os cabelos e continuou a andar. Ficou tão satisfeita consigo própria por ter reagido com tanta descontração que só alguns segundos depois se apercebeu de que a Vespa de Giancarlo estava agora a bloquear-lhe o caminho. Ele estava simplesmente ali sentado a sorrir-lhe. Era muito moreno, mesmo para um italiano; tinha as sobrancelhas pretas e uns olhos que pareciam dois poços sem fundo, e sorria-lhe como se, pensou Siena mais tarde, já soubesse tudo quanto havia a saber a respeito dela. – Permesso – pediu ela num tom afetado. Gianni continuou ali sentado a sorrir, e, apesar de ela poder simplesmente ter contornado a Vespa, não o fez. E então ele estendeu a mão e disse-lhe, imitando na perfeição o sotaque do príncipe Carlos: – Estou absolutamente encantado por conhecê-la. Mais tarde, Siena descobriu que Giancarlo apenas sabia algumas frases de inglês básico, que pronunciava com a entoação da cassete da BBC pela qual as aprendera; mas, naquela altura, pareceu-lhe um milagre ouvir um inglês perfeito, ao melhor estilo da BBC, saído da boca daquele desconhecido moreno e sorridente.
– Como é que soubeste que eu era inglesa? – perguntou-lhe ela dez minutos mais tarde, quando já estavam os dois sentados na piazza a beber refrescos de limão. Giancarlo encolheu os ombros. – Toda a gente sabe. Uma família inglesa mudou-se para a Villa Serena. Dois pais, três filhos, uma bambola. Toda a gente sabe. Siena suspira, mudando de posição sobre os seixos. Foi uma sensação inebriante, ouvir Giancarlo dizer que, na vila, ela era a figura «importante» da família. Ali em Londres é diferente. Observa Paris e Harry a escolher os seixos, ambos muito concentrados. Sabe que Petra está encantada com Paris por ela ter manifestado interesse por Harry. Vê Jake a encorajar Charlie a saltar sobre as ondas. Ela gosta de Charlie, de certa forma, só que ela e Paris não aprovam a forma como a mãe o estraga com mimos, e, para demonstrarem o seu desacordo, geralmente combinam ignorá-lo. Agora, Siena fica espantada ao perceber que está com ciúmes de Jake e de Petra, que, naquele momento, se foi juntar aos dois rapazes na água, não parecendo importar-se por ficar com a roupa ensopada. Siena deita-se sobre as pedras (são estranhamente confortáveis, como aquelas cadeiras de massagem muito caras) e fica a escutar os gritos deliciados de Jake e de Charlie quando as ondas geladas lhes salpicam as pernas. Mais atrás, consegue ouvir a ténue, trágica e hipnotizante música do carrossel. Há pouco andou naquilo. Fingiu que era por causa de Charlie, mas, na realidade, estava a adorar a sensação de cortar o ar acima da multidão no seu cavalo sorridente – que, segundo a inscrição nos arreios, se chamava Josie – enquanto ouvia aquela melodia tão animada quanto melancólica. Senta-se. Um grupo de rapazes desafiam-se uns aos outros para saltar do molhe. Um deles salta mesmo, esperneando pelos ares até mergulhar com um chapão, quase salpicando de água os seus risonhos amigos, que estão debruçados da guarda de ferro enferrujado lá no alto. Um salva-vidas aproxima-se a correr. Os rapazes começam a descer do pontão. Siena volta-se para olhar para o passeio da marginal, com os seus guardasóis e lojas onde se vendem adornos feitos com conchas e com pedacinhos de madeira que deram à praia. Um homem montado num monociclo vai acenando pelo meio das pessoas. Um grupo de raparigas em plena despedida de solteira passa por ali; todas têm postas orelhas de coelho e vão dando risadinhas e agarrando-se umas às outras enquanto tentam caminhar sobre os
seixos com sapatos de salto alto. «Que cena tão continental», costumam dizer as pessoas. «Tal e qual como em Itália.» Mas não é; não é de todo. Siena torna a deitar-se e sonha com o seu casamento com Giancarlo. Petra senta-se à beira da água e fica a ver os rapazes a saltarem por cima das ondas. Supostamente, todas as sétimas ondas são grandes, mas, na verdade, as pequenas são as mais traiçoeiras, aquelas que os apanham de surpresa. Aquele remoinhar da água, o súbito rebentar de espuma… Os rapazes riem-se, deliciados, mas Charlie parece estar um pouco nervoso. Jake enfrenta corajosamente a água, ou não fosse ele um verdadeiro rapaz de Brighton, mas Charlie habituou-se ao Mediterrâneo, que é calmo e sem ondas. «Foi estragado com mimos», pensa Petra, enfiando os dedos por entre os seixos à beira da água, molhados e de cores vivas como pedras preciosas. Embora não se dê conta, Emily está a sufocá-lo completamente. Além disso, tornou-se um choramingas; vê-se bem que Harry não o está sempre a magoar de propósito. Está preocupada com Emily. A sua amiga é tão crédula, tão fácil de enganar. Petra recorda o passado, a forma como, mal conheceu Michael, Emily passou a achar que tudo o que ele dizia e fazia era perfeito. Da noite para o dia, Emily deixou de ser uma sossegada rapariga inglesa do Surrey e transformou-se numa «italianófila» em último grau, a dizer que fora um italiano a inventar o telefone antes de Alexander Graham Bell sequer pensar nisso, e a tratar toda a gente por simpatico. Petra simpatizou com Michael, embora recorde que o olhar dele a arrepiava ligeiramente. Eram uns olhos bonitos mas estranhamente vazios, como os de uma boneca de porcelana. Mas Emily adorava-o. Michael e a sua família tornaram-se o centro da vida da amiga. Petra recorda as incontáveis histórias sobre Gina: a sua magnífica comida, as suas magníficas roupas, a sua bondade, a sua simpatia, a sua generosidade. Mas toda aquela conversa produziu um único efeito em Petra: fê-la ter vontade de ir até ao presunçoso e careiro restaurante de Gina e cuspir na comida. Mas então Michael e Emily romperam e teve de ser ela a apanhar os cacos. Fora mesmo isso que acontecera: a vida de Emily tinha-se estilhaçado em mil fragmentos minúsculos e ali andava ela, Petra, de joelhos no chão, a tentar apanhá-los e dar-lhes uma forma mais ou menos coerente. Todas aquelas intermináveis conversas pela noite dentro, em que Emily acabava
invariavelmente por se convencer de que a culpa era toda dela («Eu andava sempre agarrada a ele»), e todas as vezes em que Emily simplesmente se foi abaixo e rompeu em soluços, dizendo: «Mas eu amo-o!» Mesmo durante o período excitante da sua nova vida em Brighton, a sombra de Michael estivera sempre presente, fazendo Emily chorar amargamente se outro homem a convidava para sair, porque não era, nem nunca poderia ser, Michael. «Esquece-o!», dizia-lhe Petra. «Ele já se foi. Esquece-o!» E Emily fitava-a com os olhos a transbordar de lágrimas, resoluta e irritantemente leal. «Não sou capaz», dizia. E então Emily conheceu Paul e tudo mudou. Paul era uma novidade, era diferente, era absolutamente seguro de si. De início, Petra desaprovou em absoluto aquela relação. Paul, para além de ser um porco capitalista, era também demasiado velho para Emily. Mas então conheceu-o e percebeu de imediato qual era a atração. Paul podia ser um porco capitalista, mas era um porco capitalista que transbordava charme, que ouvia com toda a atenção as opiniões dos outros e se ria até mais não poder das suas piadas. Embora tenha achado que Emily era doida por se casar com ele, conseguiu compreender a amiga. Claro que conseguiu. As duas viviam num mundo de quartos alugados miseráveis, de estudantes de Sociologia escanzelados e com barbas descuidadas, de lençóis baratos e de leite azedo para o pequeno-almoço. Paul era atraente e rico, e cheirava melhor do que qualquer outro homem que Petra alguma vez conhecera. Claro que compreendia a amiga. Ficou ainda mais preocupada quando, depois de se terem casado, Emily e Paul foram para Londres e Emily engravidou quase de seguida. Mas, por essa altura, Petra conhecera Ed, que era professor na universidade. Ed era casado e os dois mantiveram uma relação turbulenta durante vários anos, cheia de rompimentos e de reconciliações, até que, finalmente, Ed deixou a mulher e foi viver com Petra. Foi por volta dessa altura que Emily lhe apareceu à porta, com as miúdas a reboque, anunciando que tinha deixado Paul. Petra recorda, com um ligeiro sentimento de culpa, que a sua primeira reação foi sentir-se aborrecida por, agora que finalmente tinha Ed todo para si, ter de o partilhar (e também o seu apartamento) com mais três pessoas. Mas então chegou Paul, todo ele charme e arrependimento, e Emily tornou a desaparecer. Logo a seguir, Petra foi informada de que eles iam viver em Itália. «Teria ela voltado para ele se eu a tivesse recebido melhor?», interroga-se Petra. Naquele momento, desejava poder voltar atrás no tempo, para se sentar
com Emily e lhe perguntar o que achava ela realmente do seu casamento e se ainda amava Paul. Mas, na altura, sentiu-se tão aliviada por ficar a sós com Ed que, antes de ter tempo para lhe perguntar «Tens a certeza?», já a estava a ajudar a fazer as malas para Emily partir com Paul rumo ao pôr do sol. Mas, mesmo que lhe tivesse dito alguma coisa – debate Petra no seu íntimo, fazendo os pés deslizar por entre os seixos húmidos –, ter-lhe-ia Emily dado ouvidos? As pessoas nunca ligam aos conselhos; enquanto professora, foi essa umas das primeiras verdades que aprendeu. E, se não se tivesse reconciliado com Paul, Emily nunca teria ido viver para Itália. Ou tido Charlie. Portanto, talvez tenha sido o destino. Petra faz uma careta. Não acredita no destino. Como poderia, atendendo à condição de Harry? Pondo-se de pé, acena aos rapazes. – Vem para aqui, mãe! – grita Jake. Petra sente o coração apertado; percebe como Jake se sente feliz por poder estar algum tempo longe de Harry e ter alguns minutos de atenção da parte dela. Ocorre-lhe um rápido e amargo pensamento dirigido a Ed, que vê os filhos apenas um punhado de vezes por ano e depois não hesita em culpá-la pelas «dificuldades» de Harry. «Estás a torná-lo num mariquinhas», foi o que lhe disse certa vez, ele, o professor de Sociologia sempre tão politicamente correto. Ele, cuja mãe ainda tricota meias para lhe oferecer no Natal e que não foi capaz de se lembrar uma única vez do nome de Petra corretamente. «Os homens são uma dor de cabeça», pensa; se, para ser lésbica, lhe bastasse calçar um par de botas Doc Martens, resolveria o problema num piscar de olhos. – Vem para aqui, mãe! – torna Jake a gritar. Com um sorriso, Petra entra na água cintilante. À porta do escritório de Dermot, Emily tira o telemóvel da mala e marca o número que Paul lhe deu da última vez que estiveram juntos. É estranho ter de ligar para um novo número para falar com ele. 0207 – algures no centro de Londres. «Uma zona cara», pensa ela, furiosa. Tem a certeza de que nem mesmo a bancarrota fará Paul abdicar do conforto a que se acostumou. O telefone toca, e depois a chamada é encaminhada para um atendedor automático. «De momento, o Paul e a Fiona não estão disponíveis…» Pensativa, Emily termina a chamada. Charlie está a abrir uma vala com Jake. É muito importante fazer tudo bem,
porque depois o mar vai enchê-la até acima. Pelo menos, é isso o que Jake diz. Ali, mesmo à beira da água, há areia; tudo o resto são seixos, duros, curvos e escorregadios. Charlie gosta da forma como o mar abre pequenos riachos por entre a areia molhada. É como se ele fosse um gigante a fazer uma vala gigante. Se deixasse cair ali uma pedra muito grande, esmagaria todas aquelas pessoas minúsculas, mas é claro que ele jamais faria uma coisa dessas. Não é mau, como Harry. Harry é como o Gruffalo, mas pior, porque é impossível enganá-lo, mesmo que se seja um rato muito, muito esperto6. Como nunca olha diretamente para ninguém, é impossível enganá-lo. Toda a gente sabe que, para se enganar uma pessoa, é preciso fazê-la olhar para nós. Charlie enfia os braços por entre os seixos. No fundo há água. As suas mãos agarram pequenas pedras brilhantes. Têm um cheiro salgado, como as batatas fritas. Ele adora batatas fritas. Vai pedir à mamã que lhe compre um pacote grande, mas a mamã não está ali, apenas aquela senhora chamada Petra. Se fosse o papá, de certeza que lhe comprava batatas fritas. O papá adora hambúrgueres e batatas fritas, e todas aquelas comidas deliciosas que a mamã diz que nos fazem mal. Porque não está o seu papá ali? No dia anterior fez esta pergunta a Siena, mas ela limitou-se a responder-lhe: «Vais vê-lo em breve», naquele tom de voz que se usa para dizer adeus. Será que ele disse «adeus» ao papá da última vez que o viu? Será que lhe deu um beijinho como deve ser e um abraço? Não se lembra. Uma lágrima cai na areia e Charlie vêa desaparecer. – Bom trabalho, Charlie! – grita Jake. Charlie recomeça a escavar. As suas lágrimas sabem a sal, como o mar. Gostava que Jake fosse o seu irmão. Gostava muito, muito. Pede-o com muita força. E continua a escavar, até ao fundo do mundo. * Paris vai organizando os seixos por tamanho, sem pensar em nada. Tal como uma criança, pensa unicamente na tarefa que tem entre mãos. Sempre gostou de organizar coisas. No seu diário vai fazendo minuciosamente listas com os seus livros, filmes e músicas preferidos, atualizando-as de poucos em poucos meses. Mantém os seus livros e CD arrumados por ordem alfabética e fica furiosa quando Siena leva alguma coisa sem lhe pedir primeiro. Harry parece-lhe ser a companhia ideal; também gosta de escolher e de organizar
coisas, sem conversa pelo meio. Por vezes ela passa-lhe um seixo para as mãos e ele examina-o com muita atenção, como se o estivesse a avaliar. Na sua coleção apenas têm lugar os seixos perfeitamente redondos. Paris respeita esse critério. Enquanto continua a organizar os seus seixos, começa a trautear uma melodia. Num passo apressado, Emily percorre Oxford Street, abrindo caminho por entre estudantes que lhe estendem folhetos a anunciar aulas de Inglês e cientologistas americanos que lhe querem fazer testes de personalidade. Como se estivesse num sonho, mete-se pelas estreitas ruas laterais, com os seus parques verdejantes e secretos, que a fazem recordar os seus tempos de estudante universitária. Turistas com mochilas vistosas estão parados pelas esquinas e Emily passa por um grupo de Hare Krishnas, vestidos com túnicas cor de laranja esfarrapadas e a cantar com pouca convicção. Caminhando como uma sonâmbula, vai escolhendo o seu caminho naquele labirinto de ruas até encontrar aquilo que procura: um letreiro de mogno, cheio de motivos dourados, no qual se lê «Vittorio’s». Na praia, estão a almoçar. Petra trouxe todo o tipo de coisas para comerem: azeitonas, frango assado e salada em pequenos recipientes de plástico, mas Harry só quer comer sanduíches de Marmite cortadas em triângulos. Paris admira a escolha dele: ela também gosta de Marmite, mas apenas uma fina camada barrada no pão e sem manteiga, que é gordurosa e horrível. Deita-se novamente, deliciada por não ouvir uma voz a dizer-lhe: «Paris, não comeste nada! Experimenta só um pedacinho disto, prova aquilo, come só umas quantas colheres de…» Odeia todas aquelas palavras relacionadas com a comida: provar, experimentar, mastigar, engolir, mordiscar. Mordiscar! Essa é a pior delas todas, parece uma mistura de «mamilo» e «Bíblia»7. Duas coisas muito pouco atraentes. Sorrindo para consigo, Paris aceita uma azeitona sem dar por isso. Emily fica parada à porta do Vittorio’s, a observar o menu com aqueles rabiscos que parecem aranhas e os cantos dourados e curvos. Linguine con vongole, costolette alla milanese, scaloppini con marsala, bistecchine alla pizzaiola. Deixa que aquelas palavras a envolvam como um encantamento, enquanto recorda as incontáveis refeições no Vittorio’s e na casa de Gina em
Highgate: a espessa pasta recheada, os molhos lustrosos, os muitos copos de vinho, um diferente para cada prato. Em nenhuma parte de Itália encontrou comida assim. A comida toscana tende a ser simples, confecionada com ingredientes locais e frescos. Nunca lhe transmitiu a mesma sensação da cozinha de Gina, que era como uma velha gruta de tesouros, onde os cachos de alho pendiam do teto como enormes colares de contas. Michael costumava dizer, na brincadeira, que a sua mãe jamais teria de recear os vampiros. «Oh, Michael, com a tua bata branca e o teu estetoscópio, por onde é que andas agora?» Sob o seu olhar, grupos de homens de negócios, todos de suspensórios, sentam-se nas mesas cá fora, transpirados e sorridentes. Os empregados começam a servir-lhes vinho. Emily sabe que não vai ter coragem para entrar. * Como não podem ir para o mar logo a seguir ao almoço, Siena leva as crianças até ao molhe. Jake, Paris e Charlie correm para os carrinhos de choque, mas Harry grita e cobre os ouvidos com as mãos. Depois, graças a Deus, encontra uma réplica do comboio Tomás e sobe lá para cima, todo contente. Siena vai introduzindo na ranhura as moedas de cinquenta pence (trocar o dinheiro foi quase como ganhar numa das máquinas de jogo; todas aquelas moedas a caírem-lhe nas mãos foi uma sensação deliciosa) e fica a vê-lo. O rapazinho faz uma expressão solene e concentrada enquanto a locomotiva azul vai oscilando para a frente e para trás, e a música de timbre metálico se repete interminavelmente. Porque gostará ele tanto daquele boneco? Porque será que não sente, nem de perto nem de longe, a mesma atração pelo Carteiro Paulo ou por Bob, o Construtor? Há réplicas dos dois mesmo ali ao pé, ambas desocupadas. – Quero andar no Tomás! – É Charlie, de olhos semicerrados, ponderando fazer uma birra. – Podes andar na carrinha do Carteiro Paulo. – Não quero. Quero o Tomás. Porque é que tem que ser sempre ele a andar no Tomás? – Porque ele só gosta do Tomás. – Siena empurra Charlie para dentro da carrinha vermelha e insere mais uma moeda de cinquenta pence na ranhura. A música alegre do Carteiro Paulo começa a tocar, juntando-se à do Tomás.
– Siena…? – chama Charlie subitamente, olhando-a do lugar do condutor. – Onde está o papá? – Está a trabalhar – apressa-se Siena a dizer. – Já sabes como é. – Sim, mas… – Charlie faz beicinho, esforçando-se por fazê-la entender. – Onde é que ele está? Porque é que não está connosco? – É complicado – responde-lhe Siena. Desde aquele dia horrível em que o pai apareceu de repente em Itália e lhes disse que ele e a mãe sempre os iriam amar muito, mas que simplesmente não iam continuar a viver juntos, que não se consegue livrar da horrível sensação de que nunca mais vai tornar a ver o pai. Claro que os divórcios são perfeitamente comuns. Ela sabe disso. Não vai ficar histérica, como aconteceu com Paris. Simplesmente não tinha percebido como tudo isto lhe iria parecer estranho. Está habituada a que o pai esteja fora, mas desta vez é uma sensação diferente, como se ele os tivesse realmente deixado e já nem sequer pertencesse à família. «Vão vê-lo em breve», costuma a mãe dizer, mas percebe-se facilmente que ela não sabe quando irá isso acontecer. Siena volta-se para Charlie. O que lhe poderá dizer? Como poderá tranquilizá-lo quando ela própria não sabe as respostas? – Vais vê-lo em breve – responde por fim. – Prometo. Mas Charlie já está entretido com a buzina da carrinha e não parece ouvila. Paris e Jake estão no carrossel. Quando parece que o mesmo já não pode girar mais depressa, um rapaz cheio de tatuagens aproxima-se e aumenta a velocidade ainda mais; agora o carrossel está a girar tão depressa que a cabeça dela vai contra o assento almofadado do seu carrinho e o ar lhe foge dos pulmões. – Mais depressa! Mais depressa! – grita Paris, embora na verdade deseje que aquilo pare. – Mais depressa! – grita Jake. Está a odiar cada minuto daquilo, mas prefere morrer a deixar que Paris se aperceba disso. Petra saboreia uns raros minutos de paz. Não para de imaginar que está a ouvir Harry a chamar por ela. A voz dele, grave mas penetrante, parece ter-se imprimido nas suas ondas cerebrais. Obriga-se a permanecer deitada. Ele está bem com Siena. Ela é uma rapariga bastante capaz, muito mais do que ela,
Petra, era aos dezasseis anos. Petra pensa em si mesma aos dezasseis anos, vestida de preto e a ler O Tambor. Jamais teria ficado a cuidar dos filhos de alguém, mas também é verdade que as probabilidades de isso lhe ser pedido eram nulas. Os vizinhos achavam-na esquisita e não tinha nenhuns familiares que vivessem por perto. Ela e a mãe apenas se tinham uma à outra. Petra sorri ao recordar como as duas eram diferentes – a sua mãe sempre tão empertigada e correta, ela tão desejosa de chocar toda a gente. Terá herdado essa característica do pai, que morreu quando ela tinha seis anos? A mãe não costumava falar muito dele; Petra sabe que ele esteve no Exército e que foi morto na Irlanda do Norte. Sempre supôs que, sendo ele um soldado, provavelmente era um canalha, mas por vezes parece-lhe que se consegue recordar de uma voz suave com sotaque escocês a ler-lhe um livro. Seria o seu pai? O que estava ele a ler? Winnie-the-Pooh, parece-lhe; tem uma vaga lembrança dele a fazer a voz do burro Igor. Petra ri-se ao recordar a adorável voz triste do Igor e depois fecha os olhos. Emily afasta-se do Vittorio’s, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. «Controla-te», diz a si mesma com firmeza. Entra num café e compra um pão e uma garrafa de água. Para para comer em Fitzroy Square, ficando a ver os pombos de volta dos turistas que caíram na asneira de lhes dar comida. Porque estará a chorar? Bem, está a chorar porque o seu casamento chegou ao fim, porque não tem um tostão e porque Paul está a viver com uma galdéria qualquer, de seu nome Fiona. Não serão motivos suficientes?, pergunta a si mesma, deixando cair o resto do pão num cesto de lixo a transbordar. Os pombos afastam-se imediatamente dos turistas e aglomeramse aos pés dela, competindo entre si pelos restos. Fazem-na lembrar os filhos. Ainda assim, Emily sabe que as suas lágrimas não são apenas por Paul. São também por Michael, pelo Vittorio’s e por Gina. São pela sua juventude perdida. Siena regressa da praia, arrastando Charlie pela mão. As crianças estão cansadas e cheias de calor, e não param de se queixar da caminhada, porque lhes doem os pés. Siena sente a pele dos ombros tensa do escaldão que apanhou; também lhe doem os pés, calçados com uns chinelos de lantejoulas novos. Mas há algo agradável, algo de tradicional, em todas estas queixas e
na sensação de se regressar pesadamente a casa depois de um dia passado ao sol. Em Itália, ninguém caminha a arrastar os pés. As pessoas ficam em casa durante as horas de maior calor e saem para a rua, refrescadas e revigoradas, ao entardecer. Siena sabe que, ao anoitecer, os ombros lhe vão doer e só vai ter vontade de tomar um banho frio e passar a noite regalada a ver a televisão inglesa. – Anda, Charlie – diz. – Já estamos quase lá. – Leva-me ao colo – choraminga o irmão. – Quero a mamã. – Eu conto-te uma história – responde-lhe Siena, esforçando-se por se lembrar de alguma coisa. Charlie fica em silêncio, a fazer beicinho, esperando que ela se lembre de alguma coisa. – Era uma vez um menino chamado Charlie… – E Harry – diz Harry inesperadamente. Está a caminhar com Paris e Siena não se tinha apercebido de que ele a estava a ouvir. – E Harry – diz ela. – E Jake – resolve acrescentar, para os incluir a todos. – Um dia os três foram até à praia e encontraram uma pedra mágica. A princípio não sabiam que era mágica, mas depois, quando a examinaram à luz, a pedra começou a reluzir e a cintilar. O Charlie começou a esfregar a pedra, e então ouviu uma vozinha a dizer-lhe: «Lança-me de volta ao mar e eu concedo-te três desejos…» Embalados pela sua voz lenta e ritmada, sobem os degraus, deixando a praia. Avançando por entre a multidão que se passeia indolentemente, seguem rumo a casa. – E depois fiquei ali parada, a olhar para o restaurante. Li o menu como se fosse uma carta de amor. Devo estar a ficar maluca. – Emily bebe um gole de vinho e depois leva à boca uma colher de arroz frito. Ela e Petra estão na cozinha, na cave, a terminar a sua refeição de takeaway chinês. As crianças estão no piso de cima a ver o Scooby-Doo (um dos poucos programas que parecem satisfazer todas as faixas etárias). Harry, que, por aquela altura, normalmente já estaria a berrar pelo Tomás e os Amigos, está alegremente sentado no colo de Paris a imitar as vozes das personagens. Charlie está quase a dormir, sentado no sofá entre Siena e Jake. – Não estás a ficar maluca coisa nenhuma – diz Petra, tornando a encher o copo (embora, nota Emily, não se sirva de mais comida). – É a atração pelo passado. Todos sentimos o mesmo. Queremos regressar a uma época em que
éramos felizes. – E jovens – acrescenta Emily melancólica, bebendo mais um gole de vinho. Apercebe-se de que está ligeiramente embriagada. – Por vezes não consigo suportar o facto de já não ser jovem. Porque é que nunca ninguém nos disse que, quando chegássemos aos quarenta, íamos continuar a sentirnos exatamente iguais a quando tínhamos dezoito? – Porque nós não teríamos acreditado – responde-lhe Petra. – Eu sempre pensei que, quando chegasse aos quarenta, já teria… assentado. Sabes o que eu quero dizer. Já estaria resignada a ficar em casa, a levar uma vida chata e a nunca mais me tornar a apaixonar. Mas, cá bem no fundo, ainda acho que me vão acontecer coisas empolgantes. – Bem, se calhar vão mesmo – diz Emily, muito leal. Petra dá uma curta gargalhada. – Sou uma mãe solteira com dois filhos, um deles autista. Sou professora numa escola pública. Que coisas empolgantes é que me vão acontecer? – Nunca se sabe – responde-lhe Emily. – Talvez o George Clooney seja admitido como professor substituto. Petra ri-se. – Acho melhor ter um plano alternativo, caso descubra que não estou a viver num filme americano de má qualidade. – Depois, sem olhar para Emily, diz: – O que terias feito se ele tivesse surgido à porta do restaurante? – Quem? – pergunta Emily, ainda a pensar em George Clooney. – O Michael. E se ele tivesse saído do restaurante e te tivesse visto ali parada? O que terias feito? Emily considera aquela pergunta enquanto vai apanhando os últimos grãos de arroz, dispersos pelo prato. – Não sei – responde finalmente. – Teria rido. Ou chorado. Teria dito «olá». Ter-me-ia atirado para os braços dele. Não sei. Não cheguei a pensar nisso. Ainda estava a pensar que gostava de voltar a ter dezoito anos. Que queria tornar a sentar-me ali no restaurante com o Michael, enquanto a Gina nos trazia as suas comidas deliciosas. Meu Deus, a Gina! Dava tudo para tornar a vê-la. – Sempre me pareceu um pouco assustadora, com todas aquelas joias e o cabelo pintado. E a maneira como ela se punha de volta do Michael! – Eu adorava-a – diz Emily num tom sonhador. – Ela costumava dizer que eu era a única namorada do Michael de quem ela alguma vez gostara. Fez-nos
a carta astral e disse que íamos casar-nos, ter cinco filhos e viver felizes para sempre. – Bem, parece que estava enganada, não achas? – pergunta Petra com brusquidão, limpando os restos dos pratos. Sente que é sua obrigação introduzir um pouco de realismo na conversa. – Sim, estava – concorda Emily com um suspiro. – Ainda falas com ela de vez em quando? – Não. Durante alguns anos ela ainda me mandou cartões de boas-festas, mas isso acabou quando eu me casei. Não fazia sentido, percebes? Ela nem sequer chegou a ser minha sogra. – Eu nunca tive uma sogra – comenta Petra. – É uma das vantagens de nunca ter sido casada. Como era a mãe do Paul? – Oh, era simpática. Muito formal e convencional. Na verdade, era parecida com a minha mãe. Não entendo como foi ter um filho como o Paul. Ficam as duas em silêncio, a pensar em Paul. Petra recorda aquela vez em que ele tentou seduzi-la, numa noite em que Emily tinha ido deitar-se e os dois ficaram a beber brandy. Lembra-se dos seus olhos muito azuis e, curiosamente, genuínos, e do seu sorriso desavergonhado. «Porque não?», foram as palavras dele. «Surpreende-te.» Petra recorda que, por um segundo, chegou a sentir-se tentada. Emily, por sua vez, pensa na misteriosa Fiona. Talvez seja rica. É um nome de pessoa rica, um nome da classe alta. O nome de uma daquelas mulheres que usa bandoletes de veludo e tem uma casa de campo. – É estranho – diz em voz alta. – Não sinto ciúmes da nova mulher do Paul, mas tenho ciúmes da mulher do Michael. Ainda, ao fim de todos estes anos. – Bem – diz Petra, tornando a encher os copos. – Talvez amanhã a vejas. E a ele. Em carne e osso. 6 No original, nibble (mordiscar), uma palavra que parece formada por outras duas: nipple (mamilo) e Bible (Bíblia). (N. do T.) 7 No original, nibble (mordiscar), uma palavra que parece formada por outras duas: nipple (mamilo) e Bible (Bíblia). (N. do T.)
9 Cartas da Toscana por Emily Robertson
A
s festas em Itália são diferentes. Para começar, nunca passaria pela cabeça de ninguém levar uma garrafa de vinho. Levar uma garrafa de vinho para uma festa em Itália seria como insinuar que os anfitriões são alcoólicos e que achamos que eles não têm bons vinhos na adega, um insulto imperdoável em Itália. Embora, em comparação com os Ingleses, a maioria dos italianos beba muito pouco, para eles o fabrico do vinho é uma arte sagrada. Por exemplo, o Prosecco, o delicioso vinho espumante aqui da zona, tem de ser engarrafado entre a lua nova e a lua cheia. Por toda a Toscana, os fabricantes de vinho consultam o calendário lunar com a mesma naturalidade com que usam equipamento científico do mais moderno. Até o encantador padre local, Don Angelo, engarrafa o seu vinho com um olho na lua e o outro em Santo Giacomo, o santo padroeiro do vinho. Quando vão a uma festa, os Italianos levam um bolo ou outro doce qualquer. Toda a gente se veste a rigor: as mulheres com vestidos floridos e os homens de fato. Já as crianças, veem-se embrulhadas em tantas camadas de cetim e de renda que até admira que se consigam mexer. As raparigas vestem vestidos de algodão muito bem engomados, apertados na cintura com um grande laço; os rapazes vestem calções escuros e calçam meias brancas até aos joelhos. Quando a festa começa, tem lugar uma rigorosa separação dos sexos: os homens discutem futebol e política, enquanto as mulheres falam sobre os filhos e sobre a moda. Os homens poderão beber dois ou três pequenos copos de vinho. As mulheres já vão com muita sorte se lhes for oferecido um segundo. «Basta, basta», dizem elas, muito decorosas, cobrindo o copo com a mão. «Um é suficiente.» Certa vez, desesperada, tornei eu própria a encher o meu copo, e desde aí passei a ser conhecida como «Aquela inglesa que bebe».
– Emily! – Izzy! Emily abraça a sua amiga de longa data à porta da sua casa em Londres. Ela e Petra saíram do autocarro no lado errado de Green Lanes, e parece-lhe que tiveram de andar vários quilómetros para chegar ali. Não estando habituada a andar de saltos altos, Emily sente os pés doridos. Petra, que calçou umas sandálias de couro rasas, veio a saltitar na frente, como uma adolescente, parando nas esquinas à espera da amiga, sem lhe dar tempo para recuperar o fôlego. Levou horas a decidir o que iria vestir para a festa de reunião organizada por Izzy e por Ruth. Não queria ir demasiado arranjada. Não queria que pensassem – que ele pensasse – que ela estava desesperada. Mas também não queria ir demasiado informal. Já não tem idade para aparecer de calças de ganga e sem maquilhagem. Em vez disso, passou horas a maquilhar-se, recorrendo à técnica de esbater ligeiramente a maquilhagem, de maneira a parecer que não pôs nada. Acordou mais cedo para lavar o cabelo sob o temperamental chuveiro de Petra. Tentou secá-lo com o secador, mas então Charlie acordou e exigiu o seu pequeno-almoço. Quando tornou a ver-se ao espelho, já o seu cabelo tinha secado numa confusão de caracóis revoltos, em lugar do suave ondulado que ela tencionara fazer. «Ora, ao menos não tenho nenhum cabelo branco», pensou. Emily jurou a si mesma que pintará os cabelos mal surja o primeiro fio branco. Nisso está de acordo com as italianas: em matéria de cabelo, o natural não é necessariamente o mais desejável. Quem observa um grupo de italianas de meia-idade vê um verdadeiro caleidoscópio de cores de cabelo: podem ser arroxeados, arruivados, louros, castanho-claros ou pretos. Mas nunca, jamais, grisalhos. De repente, Emily lembra-se dos cabelos de Gina, de um ruivo orgulhosamente artificial que brilhava na escuridão do restaurante, parecendo ter vida própria. «No ano em que a seleção italiana perdeu com a da Coreia do Norte», costumava ela dizer, «fiquei ruiva de desgosto.» Emily acabou por escolher umas calças pretas justas e um top branco largo (o dia está frio e nublado), mas depois Petra deu cabo de tudo ao surgir vestida com as suas calças de ganga desbotadas e uma T-shirt sem mangas. Tem uns braços tão tonificados e quase tão morenos como os de Giancarlo. – Ainda tenho de pegar muitas vezes no Harry ao colo – disse ela com um encolher de ombros. – Isso faz maravilhas pelos bíceps.
«Ela deve vestir 36», pensou Emily, notando como o rabo de Petra era pequeno quando a amiga desceu as escadas. Quanto a si, ainda se lembrava de como fora humilhante deixar de usar cuecas de tamanho 38-40 para passar a usar o 40-42. Agora, possivelmente, esperava-a o horror silencioso do 4244. Encolheu a barriga e aplicou mais um pouco de bâton. Naquele momento, Izzy abraça Petra e solta uma exclamação ao notar como ela está magra. – Estás com um aspeto fantástico, Pete! Olha, Ruth, a Pete não está fantástica?! – Emily segue-as com passos hesitantes, sentindo-se a mulherelefante. Conheceu Izzy no seu primeiro dia na UCL. Foi na receção ao caloiro, uma festa no Union Bar que deveria ter sido animada mas que se revelou um verdadeiro suplício. Todas as bebidas eram a cinquenta pence e os caloiros tinham sido encorajados a usar um autocolante ao peito com o nome, a idade e os passatempos favoritos. No de Emily lia-se: «Emily Robertson, 18, ler, nadar e pintar.» Na altura desejou, acima de tudo, ter-se lembrado de algo mais interessante. Ler! Quem viria falar como uma rapariga que referia a leitura como um dos seus passatempos?! E pintar! Esse então nem sequer era verdade; em pequena fora obcecada por livros de colorir (adorava as pequenas caixas de aguarelas e todos aqueles desenhos complicados e seccionados por incontáveis linhas, cada área marcada com um número que correspondia a uma cor), mas não pintava nada há anos. A verdade era que tivera uma dificuldade tremenda para se lembrar de um terceiro passatempo, mas parecera-lhe que indicar apenas dois seria demasiado patético. Estava certa de que todos os outros caloiros tinham centenas de passatempos empolgantes: asa-delta, montanhismo, mergulho, maratonas, cirurgia cardiovascular… – Olá. – Emily rodou nos calcanhares e os seus olhos fixaram-se num autocolante em que se lia: «Izzy Goldsmith, lesbianismo, canibalismo e fazer bordados.» Algo aparvalhada, ergueu o olhar e deparou com uma rapariga baixa e de cabelos escuros, vestida com umas calças da tropa largueironas. – Tu não és lésbica, pois não? – perguntou ela. – Não – respondeu Emily. – Lamento – acrescentou depois. A rapariga sorriu. – Não vale a pena lamentares. Nem eu sou lésbica a tempo inteiro. Para Emily, Izzy era uma criatura de outro planeta: alguém que não tinha
medo de nada e que a iria orientar pelos mistérios da vida universitária, conduzindo-a triunfalmente ao seu «novo eu», mais adulto e muito mais «fixe». Nessa noite, enquanto jantavam num restaurante indiano, Izzy revelou a Emily que era bissexual, que vivera num kibbutz durante um ano e que tinha uma tatuagem na nádega esquerda. Emily não disse uma palavra, aterrorizada com a possibilidade de, ao descobrir que ela nascera e fora criada em Addlestone, no condado do Surrey, e que o seu feito mais ousado até ali fora faltar a uma lição de violino para ir até ao parque com um rapaz, Izzy se evaporasse numa nuvem de fumo, deixando-a sozinha e sem amigos durante os três anos seguintes. Ao longo daqueles três anos, durante os quais ela conheceu Michael e deixou de se sentir tão perdida e incapaz de enfrentar a vida, Izzy tentou ser heterossexual e depois bissexual, mas acabou por não achar grande piada a nenhuma das duas opções. E então conheceu Ruth, uma estudante de Direito loura e tímida que viera de Edimburgo, e o seu futuro ficou traçado. Tal como Petra costumava dizer, tratava-se de uma daquelas relações que simplesmente resultam, independentemente do sexo de cada uma das partes. E agora, vinte anos depois, Ruth é advogada, Izzy é professora universitária e as duas vivem numa invejável casa em Stoke Newington com lareiras vitorianas, sofás brancos muito fofos e estantes com livros a perder de vista. Seguindo Petra e Izzy até à sala com cozinha integrada, Emily sente uma pontada de pura inveja: não só Izzy e Ruth continuam juntas como têm uma cozinha minimalista e um frigorífico de aço inoxidável. Ela já nem sequer tem uma casa – a menos que se conte com a Villa Serena, algo que, de momento, ela não faz. Ruth, que já não é tímida mas continua loura (terá feito madeixas?) cumprimenta-a afetuosamente. – Emily, como é bom ver-te. Estás com bom ar. Petra! – Inconscientemente, a sua voz enche-se de genuína surpresa. – Que aspeto fantástico! Como é que consegues? – Era o que eu estava a dizer – diz Izzy. – Ela está tão magra! – Não comer ajuda – responde Petra sarcasticamente. – Estás incrível. E agora digam-me: preferem Pimm’s ou champanhe? Optando pelo Pimm’s (a possibilidade de se manter sóbria é ligeiramente maior), Emily afasta-se para dar uma olhadela pela sala. Ali está Jack, que antes era roqueiro mas agora tem falta de cabelo e veste um fato caro.
Também vê Bella, outrora uma iconoclasta com uma cabeleira digna de Ticiano, que entretanto cortou, convertendo-se numa mãe de dois rapazes cujas fotos vai mostrando orgulhosamente a toda a gente. Ali está Martin, que nunca conseguia arranjar namorada, muito agarrado a uma loura sorridente, como se para provar que finalmente mudou a sua sorte. Também vê Jenny e Tim. «Meu Deus», pensa, «aqueles dois não continuam juntos, ou continuam?» A resposta é negativa, a julgar pelos sorrisos pesarosos e pela linguagem corporal exagerada; estão a ter uma conversa civilizada, ainda que ligeiramente tensa, sobre como tudo poderia ter sido. E, Deus do Céu, também ali está Chad. Chad, o melhor amigo de Michael. Chad, com quem ele partilhava um apartamento miserável em Balham. Chad, que costumava tratá-la por «Emmy Lou» com um sotaque texano, e que certa vez, numa passagem de ano, a beijou. Chad, com quem ela falou pela última vez quando lhe ligou a meio da noite, implorando-lhe que lhe desse o número de Michael. «Peço-te muita desculpa, Emmy, mas não posso fazer isso. O Mike quer… sabes como é, estabelecer alguns limites.» Apertando na mão o seu copo de Pimm’s como se fosse um escudo, Emily atravessa a cozinha moderna, uma ilha no meio da sala, e aproxima-se de Chad. Nos tempos da faculdade ele tinha um ar selvagem, com um bigode à Che Guevara e os cabelos pretos todos emaranhados. Agora usa-os penteados para trás e presos num rabo de cavalo, e parece um jogador de casino a gozar o seu dia de folga. Embora comece a ficar demasiado velho para usar rabo de cavalo, tem bom aspeto, muito melhor do que o de qualquer outra pessoa naquela sala. Além disso, de T-shirt branca e calças de ganga apertadas, dá para ver que está em boa forma. Tal como Petra, não tem de se vestir melhor para compensar os atributos físicos entretanto perdidos. Tem um copo de sumo de laranja na mão e, com um ar sério, conversa com um homem que Emily não reconhece. – Chad. – Tem a boca seca. Ele volta-se. – Meu Deus. Emmy Lou. A alcunha é quase insuportável. Para seu horror, parece-lhe que está prestes a começar a chorar. Mas, em vez disso, responde-lhe numa voz nítida e dura que a princípio não reconhece como sendo a sua: – Olá, Chad. É bom ver-te. Ele inclina-se para a beijar na face. É o que todos têm estado a fazer uns
aos outros. «Olá. Que bom tornar a ver-te.» Beijo. Beijo. É engraçado, não costumavam cumprimentar-se com beijos nos velhos tempos da UCL, quando eram mesmo amigos. Os lábios de Chad apenas roçam a sua face. – Deves lembrar-te do Gary – diz Chad, indicando o homem com quem tem estado a conversar. – Gary! Claro. – Emily fica pasmada. Lembra-se de Gary magro, afetado e com vinte e um anos. Agora é um homem gordo, afetado e com quarenta e um anos, mas, incrivelmente, casado e com dois filhos. – E tu, tens filhos? – pergunta pouco depois a Chad. Parece-lhe menos intrusivo do que perguntar se é casado. – Sim – responde ele com um sorriso. – Três raparigas. Estou em desvantagem numérica. – Eu tenho duas miúdas e um rapaz – diz Emily, embora ninguém lho tenha perguntado. Pelo menos, quando a conversa é sobre filhos, ela não se sente inferior. Decerto ninguém ali tem uma filha tão bonita como Siena, ou tão inteligente como Paris, ou um rapazinho tão adorável como Charlie. – A Izzy diz que tu vives na Toscana – comenta Gary. – Sim. Na verdade, é na fronteira com a Úmbria. Num lugar chamado Montanhas da Lua. – Uau. Belo nome. – É, não é? Fica um pouco à margem dos destinos turísticos. Muito perto de Sansepolcro, sabes? Onde nasceu Piero della Francesca. – Tenho lido a tua coluna – interrompe Chad. Não acrescenta que gosta dela, o que deixa Emily bastante irritada. – Oh, de verdade que escreves uma coluna? – pergunta Gary. – Sim. No News on Sunday. – Nunca te tomei por um leitor do News on Sunday, Chad – diz Gary com uma risadinha. Será que ele é mesmo mesmo casado? – Lê a minha mulher – revela Chad. – Obviamente uma mulher com bom gosto – comenta Emily secamente. – Obviamente – concorda Chad com um sorriso dengoso. – E onde é que tu estás a trabalhar agora? – pergunta ela, cerrando os dentes. – No Maudsley. Sou psiquiatra. – Oh – replica Emily num fio de voz. Não consegue imaginar Chad, que no passado afirmava ter sido perseguido por um extraterrestre em Glastonbury,
enquanto psiquiatra. Haverá mesmo quem se deite no divã do seu consultório e lhe conte os seus sonhos? A ideia que Emily tem da psiquiatria baseia-se sobretudo no que viu nas repetições da série Os Sopranos. Mas parece-lhe que até mesmo um chefe da Máfia ficaria de pé atrás ao ver aquele rabo de cavalo. – Adorava que alguém me analisasse – confidencia Gary. – Talvez conseguisse curar a minha claustrofobia. Chad força um sorriso. – Parece-me que estás a pensar num psicoterapeuta. – Qual é a diferença? – pergunta Emily. Está morta por desviar o tema da conversa para Michael. Como poderá perguntar o que anda ele a fazer agora? Talvez, dentro de um minuto ou dois, o veja ali. Talvez ele esteja, naquele preciso instante, a andar de um lado para o outro em Green Lanes, no seu lustroso carro italiano, à procura de lugar para estacionar. Não, por esta altura ele já deve ter filhos. O mais provável é conduzir um monovolume, um modelo prateado e com uns faróis enormes. Não consegue imaginar Michael a preocupar-se com a emissão de gases e o efeito de estufa. – É complicado de se explicar – começa Chad a dizer, mas então, felizmente, Bella chama-os para irem ver umas fotografias. É com alívio que todos eles deixam o divã do psiquiatra. Ver as fotografias é uma experiência agonizante. Olhos com maquilhagem à anos 80, camisas com folhos e perneiras de lã. Chinelos e calções numa praia na Grécia. Emily, com um vestido cor-de-rosa sem alças, segurando o braço de Michael. Ele tem um cigarro na mão e voltou-se para olhar para alguém fora de campo, mas Emily olha em frente, de olhos muito abertos e inocentes. – Oh, Emily, estás tão querida – comenta alguém. – E ali está o Michael – diz outra. – O que andará ele a fazer por estes dias? – Eu convidei-o – replica Izzy –, mas ele não me respondeu. Emily sente toda a esperança a abandoná-la. Não o vai reencontrar ali. Talvez nunca mais o veja. Alguém passa a página do álbum de fotografias. Ali estão eles os dois, no quarto de alguém. Michael tem uma guitarra nas mãos e Emily parece estar a cantar. Chad está em primeiro plano, vestido com o que parece ser um tutu de bailarina. Deus proteja os seus pacientes. Emily e Petra, vestidas de empregadas de mesa numa ação de angariação de fundos («A Petra não mudou nada. Continua tão magra!»). Izzy a preparar
spaghetti. Um grupo de estudantes de Medicina no Huntley Street Bar. Uma festa de togas. Emily julga reconhecer-se embrulhada num lençol lilás. Um braço rodeia-lhe a cintura. Será Michael? Outra festa. Jenny e Tim a dançarem de rostos colados. Gary com uma peruca loura. Emily de vestido preto, outra vez com aquele seu olhar esbugalhado. Bella, a sua farta cabeleira a cobrir-lhe os ombros, de braço dado com um homem do qual ninguém se recorda. Chad e Michael, de smoking, a dormirem em Gordon Square. Emily, Petra e Izzy no Jardim Zoológico de Londres. Michael com uma T-shirt de Itália, à porta do Vittorio’s. – Meu Deus! O Vittorio’s! – exclama Bella. – Algum de vocês alguma vez lá foi? A comida era fantástica. – A gerente era a mãe do Michael, não era? – pergunta Izzy. – Era um bocado excêntrica. Aquele cabelo ruivo e aquelas roupas malucas… Parecia capaz de pôr veneno na nossa pasta se não gostasse de nós. Tipo Lucrécia Bórgia. Ninguém pergunta a Emily a respeito de Gina, embora ela tenha chegado a ser mais próxima dela do que da sua própria mãe. Recorda a casa de Gina em Highgate, gloriosamente caótica, a transbordar de livros, de crianças e de animais de estimação, e onde nunca faltavam o vinho e a boa comida. Lembra-se de estar sentada no terraço a saborear um spaghetti vongole e a atirar as cascas das amêijoas para o jardim porque Gina diziam que eram boas para as plantas. Lembra-se daquela vez em que esteve doente e Gina lhe deu o minestrone à boca enquanto lhe contava episódios da sua vida em Nápoles. Lembra-se de torcer o tornozelo a jogar futebol no jardim com Michael e os seus irmãos (Enrico e Mario, o que será feito deles?). Michael agarrou nela ao colo e levou-a para dentro de casa, como se ela fosse uma criança. Deus do Céu, como desejara ter um filho com Michael. Afastando-se na direção das portas envidraçadas, sai para o pátio. Petra está no jardim, sentada num banco, a conversar com Ruth. Emily acena-lhes mas não se vai sentar com elas; as fotografias não lhe saem da cabeça. Sente-se como que anestesiada. É como se tivesse ficado aprisionada entre as folhas do álbum. Naquelas páginas, Michael ainda a amava. – Emily! – É Chad quem a chama. Emily tem dificuldade em acreditar que ele possa estar à procura dela, e olha em redor do jardim, para ver se há por ali outro motivo de interesse. Mas, à exceção de Petra e de Ruth, está vazio. É um típico jardim londrino, comprido, estreito e escurecido pelos plátanos.
Pelo pátio veem-se móveis caros e também um daqueles aquecedores que costuma haver nas esplanadas dos restaurantes. Chad traz uma garrafa de vinho e dois copos. Pousa-os cuidadosamente numa mesa de ferro forjado e enche-os de vinho. – Toma. – Estende um a Emily. – Obrigada. Olham-se por um momento. Sob a luz do dia, Chad já não lhe parece tão novo. Veem-se madeixas grisalhas no seu rabo de cavalo e rugas vincadas em torno dos lábios. – Meu Deus – diz ele –, aquelas fotografias… – Sim. – Tu e o Michael. Tinha-me esquecido. – Não me digas… – Aquilo era mesmo a sério, não era? Tu e o Mike. As defesas de Emily caem por terra. Esquecendo a sua dignidade, esquecendo os seus belos filhos e a sua casa na Toscana, agarra Chad pelo braço e quase grita: – Por favor, Chad! Diz-me como é que ele está.
SEGUNDA PARTE
OUTONO
1
A
o regressar à Villa Serena, Emily depara com um amontoado de pedras a bloquear o acesso da estrada principal à sua casa. A Villa Serena fica no cimo de uma colina, a cerca de dois quilómetros de Monte Albano, junto a uma estrada não pavimentada. Emily recorda-se de quando ela e Paul leram as indicações para chegar ali pela primeira vez, o que lhe parece ter sido há séculos. «Ao deixar Monte Albano, saia em direção a Sansepolcro. Ao fim de cerca de dois quilómetros vai passar por um santuário dedicado a Santa Maria della Montagna. Corte à esquerda entre o santuário e os pinheiros mansos, e então encontrará um caminho de terra batida com um letreiro a dizer: ‘Perigo de Derrocada’. Siga pela direita e encontrará a villa no cimo da colina.» «Corte à esquerda entre o santuário e os pinheiros mansos» fora o slogan de ambos durante todo aquele verão. Agora o caminho de acesso está bloqueado por um amontoado de terra e de pedras. Terá sido uma derrocada? A pilha parece-lhe demasiado arrumada para isso. Junto à estrada estão duas valas impecavelmente abertas; uma até foi tapada com uma lona alcatroada. Emily para o Alfa cinzento e fica a olhar para aquilo sem saber o que fazer. No banco de trás, Charlie acorda e começa a chorar. Aquele carro foi o seu único golpe de sorte durante todo o dia. Ao chegarem ao minúsculo aeroporto de Forlì, descobriram que estava em curso uma greve geral e que, portanto, não havia táxis, autocarros ou comboios. Emily ficou ali parada durante dez minutos, rodeada de bagagens, perguntando-se o que raio iria fazer. Um homem que poderia ter feito o papel do Corcunda de Notre-Dame no teatro sem precisar de caracterização aproximou-se com um arrastar de pés e ofereceu-se para lhes dar boleia. Emily declinou nervosamente a oferta. Charlie estava a choramingar, Paris estava de auscultadores nos ouvidos, cortando qualquer comunicação com o exterior, e Siena estava a ler as mensagens no telemóvel. Procurando o número de telefone de Olimpia na sua mala de mão (uma medida de último recurso a uma escala sem precedentes), os seus dedos encontraram um objeto
frio ao toque. Tirou-o para fora. O logotipo da Alfa Romeo cintilou diante dos seus olhos. A chave de reserva do carro de Paul! Esquecera-se completamente do Alfa, ali abandonado, qual cavalo sem cavaleiro, aguardando o regresso de Paul. Emily soltou uma exclamação de felicidade. – Venham daí, crianças! Vamos regressar a casa em grande estilo. No luxuoso interior com ar condicionado do Alfa, todos eles se sentiram um pouco mais animados. Siena, frenética ante a perspetiva de rever Giancarlo (Porque não fora ele esperá-los ao aeroporto?), estava cheia de pressa. Charlie gritou «Iupiii!» quando arrancaram em direção à autostrada. Até Paris, que andava assustadoramente reservada desde que tinham deixado Inglaterra, recuperou o suficiente para gritar «Isso querias tu, palhaço!» a qualquer carro cujo condutor tivesse a infeliz ideia de os tentar ultrapassar. Mas agora parece que a sorte os abandonou antes mesmo de chegarem à porta de casa. – Porque é que parámos? – pergunta Siena, de modo irritante. Em silêncio, Emily aponta para a pilha de terra. – Aquilo é o quê? – Não sei. – Talvez tenha havido um tremor de terra – sugere Paris, soando mais animada do que se mostrou durante todo o dia. Charlie começa a chorar a sério. Desejando escapar aos filhos, nem que seja apenas por um minuto, Emily sai do carro. Depois do conforto do ar condicionado, o calor envolve-a como um cobertor. Está um dia abafado e não corre uma aragem; o céu está branco e as árvores absolutamente imóveis. Emily contempla aquela pilha de terra avermelhada e custa-lhe respirar. O que estará aquilo a fazer ali? Terão os trabalhadores ido até ali e cortado a água? Terá de desembolsar milhões para tornarem a ligar o fornecimento? Já ouviu falar em casos desse género. O que irá encontrar ao virar da esquina? Terá a Villa Serena desaparecido num buraco ainda maior? – Suponho que podemos ir a pé. – É a voz de Siena, junto ao seu ouvido. Emily suspira. – Acho que sim. Levando apenas um pequeno saco com os produtos de higiene e alguns artigos essenciais para Charlie, Emily junta os filhos para subirem a colina. Os três seguem-na com lentidão e relutância: Charlie a chorar baixinho, Paris
com a paciência exausta de um mártir e Siena ainda vibrante de excitação (talvez ele esteja à sua espera na villa). A subida – por entre oliveiras de tonalidade prateada e fileiras e fileiras das vinhas de Romano – parece-lhes interminável. Embora já passe das seis, o sol continua a brilhar impiedosamente no céu de um branco leitoso; nem os pássaros ou os insetos se movem. Depois do que parece um período de várias horas, passam pelo poço em ruínas e pelas figueiras, e lá está a villa, ainda de pé, com as suas paredes em terracota refletindo um tom rosado sob a luz do sol. As crianças correm para a sombra do terraço e Emily fica ali parada um minuto, com a alça da mala a magoar-lhe o ombro, e pensa: «Será aqui o meu lar? Será que estou satisfeita por estar de regresso?» – Porque é que vais voltar para lá? – perguntou-lhe Petra. – É onde vivemos. É o meu único bem – respondeu Emily, repetindo as palavras de Dermot. No dia anterior ao da partida tinha ido falar com Jane, a sua advogada, que lhe confirmou que Paul já metera os papéis para o divórcio, invocando «divergências irreconciliáveis». «Ele não vai disputar a custódia dos vossos filhos», informara Jane gentilmente, mas, na sua opinião, a mediação era inútil. «As soluções de compromisso», pensara Emily amargamente, recordando o episódio dos inquilinos expulsos, «nunca foram o forte do Paul.» – Então, vende a casa e compra uma em Brighton – sugeriu Petra. – Aquilo lá deve valer uma pipa de massa. – Mas nós agora vivemos em Itália. Mudámo-nos para lá. As crianças adoram aquilo. – A Paris não. – Adora, sim senhor! – retorquiu Emily bruscamente; começava a ficar farta da preferência de Petra por Paris. – Aquilo é só fita. Quando disse às crianças que iam regressar à Toscana, Paris desfez-se em lágrimas. – Oh, por favor, deixa-me ficar com a Petra. Posso ir à escola em Brighton. Há uma boa escola secundária em Hove. Por favor! – Nem pensar – respondeu-lhe Emily, sentindo-se tão culpada quanto ciumenta. – O teu lugar é com a tua família. Agora que está parada a olhar para a sua casa de sonho na Toscana, pensa: «O que é que nós estamos aqui a fazer?»
De muito longe chega um ligeiro rumorejar de trovoada. – Venham – diz. – Vamos para dentro. Já em casa, Emily faz torradas e barra-as com Marmite. À vinda parou na cooperativa para fazer compras, mas o Marmite vem de Inglaterra. No seu frasco preto com tampa amarela, parece tão britânico como um guarda da Torre de Londres – e tão deslocado naquela cozinha toscana com chão de pedra e vigas de madeira como o dito guarda teria parecido. Revigorado pela torrada, Charlie enche-se de boa disposição e vai à procura dos seus carrinhos de brincar. Siena vai estender-se no sofá para ler as suas mensagens em privado. Só ali fica Paris, esmigalhando a sua torrada em partículas infinitesimais com um ar ausente. – Paris – diz Emily subitamente –, odeias mesmo isto? Paris ergue o olhar, surpresa. O seu rosto mostra-se estranhamente vago, como se ela tivesse deliberadamente eliminado toda a expressão da cara. Os seus olhos azuis, bastante afastados um do outro, fitam Emily com inocência. Em pequenina, Paris, com o seu corpinho magricela e os cabelos castanhos muito finos, parecia muitas vezes cómica ao lado de Siena, com aquele seu ar de boneca loura, mas agora, apercebe-se Emily, a sua filha mais nova adquiriu uma beleza singular. Tem uma pele muito branca, quase translúcida (não exibindo o menor efeito do sol da Toscana ou de Brighton), cabelos escuros curtos e uns magníficos olhos orlados de pestanas pretas. Parece uma daquelas heroínas shakespearianas que se veem obrigadas a disfarçar-se de rapaz – Viola, por exemplo, ou Rosalind. O tipo de rapariga que nunca parece um rapaz, por mais curto que use o cabelo ou mais apertadas que sejam as calças. – Odeias mesmo isto? – repete Emily. – Sim – é tudo o que Paris lhe responde. – Mas porquê? – quase grita Emily, ciente de que já tiveram esta conversa muitas vezes. Aquilo já é terreno mais do que batido; na verdade, é tão batido que já deviam ter encontrado um cemitério etrusco ali escondido. – Isto aqui é tão bonito… E tu falas italiano tão bem. É uma grande oportunidade, sabes? – Uma oportunidade para fazer o quê? – pergunta Paris, como se estivesse a deixar cada palavra cair numa piscina gelada e muito funda. Mas agora Emily já se lançou num dos seus monólogos: – Meu Deus, quando eu tinha a tua idade teria adorado fazer algo assim – conta. – Estava encalhada em Addlestone e não tinha nada para fazer. Só aos
dezanove é que fui pela primeira vez ao estrangeiro. Faz-se silêncio. Emily está a pensar na primeira vez em que foi ao estrangeiro. Uma viagem a Itália, claro. Ficou na casa de férias de Gina em Positano. Lembra-se do mar azul e cintilante, das casas que pareciam empilhadas umas sobre as outras, casas amarelas, azuis e cor-de-rosa, em equilíbrio precário sobre as rochas. Fora como vislumbrar o Paraíso. Paris, por seu lado, pensa no molhe em Brighton, no bar de karaoke, na caravana cigana onde leem a sina, nas diversões estridentes e nas máquinas de jogo. – Nesse caso – responde finalmente Paris, num tom muito educado –, é uma pena não podermos trocar. Eu ficaria radiante se nunca mais tornasse a pôr o pé no estrangeiro. Na verdade, viver em Addlestone não foi assim tão mau. Quando Emily recorda esses tempos – algo que ultimamente faz com muita frequência – tem a esmagadora impressão de que tudo estava ligado a tudo: estradas pequenas iam dar a outras maiores, os acessos particulares muito bem arranjados vinham desembocar nos passeios, e, de resto, abundavam os semáforos, as minirrotundas que pareciam miniaturas, as passadeiras, as pontes e as vias pedonais. Na sua imaginação não havia ruas sem saída ou ruas de sentido único; tudo estava ligado a alguma outra coisa. Uma ideia deveras reconfortante. Emily lembra-se de, em criança, brincar demoradamente e a sós com uma pista de comboios, tentando em vão que todas as peças se unissem, que todas as pontes tivessem carris a passar-lhes tanto por cima como por baixo, que todos os cruzamentos oferecessem a possibilidade de avançar em quatro sentidos, que todos os círculos se completassem. Nunca foi bem-sucedida neste seu projeto, mas lembra-se de passar horas absorta a tentar executá-lo. Para ela, Addlestone era como uma pista de comboios com todos os pontos ligados – uma sensação confortável e até algo presunçosa. Era impossível alguém perder-se ali. Mas também era impossível, apercebese agora, ir dali para outro lugar qualquer. A pista de comboios devia ser de Alan ou de David, os seus irmãos, porque os seus pais não eram o tipo de pessoas que pusesse em causa os estereótipos associados aos sexos. Alan e David eram, respetivamente, dez e doze anos mais velhos do que Emily, e ela não se lembra de ter brincado com eles. Na verdade, os dois pareciam pertencer a uma família completamente diferente. Quando ela entrou para a escola secundária, já os dois a tinham concluído (ao
que parecia, sem que tivessem causado grande impressão aos professores). Recorda-se vagamente de uma mota no corredor, do equipamento de râguebi a secar em cima dos radiadores e de enormes corpos masculinos a circularem pela casa com movimentos furtivos e deselegantes, mas, por mais que se esforce, não consegue recordar-se de alguma vez ter tido uma verdadeira conversa com algum dos irmãos. Certa vez, Alan ofereceu-lhe uma boneca vestida com o traje nacional galês (o que estivera ele a fazer no País de Gales?), e David levou-a ao parque de diversões (Emily lembra-se do medo que sentiu da roda-gigante), mas, tirando isso, não recorda mais nada. Alan casou-se aos vinte e agora vive na Austrália. David foi casado duas vezes mas agora vive com uma mulher de quem os seus pais não gostam. Ambos costumam enviar-lhe cartões de boas-festas nos quais invariavelmente escrevem mal o nome de Siena. Emily lembra-se de ouvir continuamente o comentário: «Ela não é como os irmãos, pois não?» Nunca conseguiu compreender se aquilo era um elogio ou um insulto. Porém, uma coisa é certa: os seus pais sempre souberam em que pé estavam com os dois filhos rapazes (nenhum dos dois ligava aos estudos, gostavam de carros e dos desportos mais violentos); já com Emily, a conversa era outra. – Porque é que estás sempre a ler? – costumava a mãe perguntar-lhe, fazendo um ar preocupado. (Agora, Emily sente-se culpada de cada vez que se ouve a perguntar o mesmo a Paris.) Não se lembra do motivo por que achava que tinha de estar sempre a ler: no autocarro, na casa de banho, enquanto lavava a roupa, no caminho para a escola, e até, embaraçosamente, numa ocasião em que devia estar à defesa numa partida de rounders8. Dickens, Orwell, Jilly Cooper: o que escolhia para ler não parecia fazer muita diferença, mas tinha de estar sempre a ler, caso contrário algo de terrível poderia acontecer. Lembra-se de caminhar por todas aquelas pequenas ruas interligadas de olhos nas páginas, com um medo de morte de observar o mundo à sua volta. Foi um professor que sugeriu pela primeira vez que ela deveria ir para a universidade. A princípio, os seus pais, que tinham tendência a sentirem-se embaraçados com as boas notas da filha a Inglês, tentaram dissuadi-la. – Mas o que é que vais fazer por lá? – perguntou-lhe a mãe. – Vou ler, vou estudar, vou participar em peças de teatro… – respondeu
Emily alegremente. Não fazia a menor ideia, claro está. – Participar em peças de teatro? – repetiu a sua mãe, horrorizada. Ninguém da sua família alguma vez participara numa peça de teatro, tirando uma desastrosa aparição de David como José na peça de Natal da escola primária, durante a qual pisou o manto que cobria a cabeça de Maria e a fez chorar. Mas Emily acabou mesmo por ir para a universidade, onde participou em peças de teatro e conheceu Michael Bartnicki em Gordon Square; apaixonouse por ele, ele deixou-a e agora toda a sua vida é diferente. Descendo as persianas do quarto de Charlie enquanto a trovoada ribomba pelo vale, Emily pergunta-se se terá sido a universidade a afastá-la da sua família, ou se esse processo já se teria iniciado muitos anos antes, em Addlestone. A verdade é que a universidade em nada ajudou. Pelo menos foi para Londres, e não para Oxford ou Cambridge, mas, mesmo assim, estranhou a UCL, com a sua sólida fachada clássica, a biblioteca e as colunatas. Lembrase do seu pai parado na biblioteca, de olhar erguido para as incontáveis estantes cheias de livros com encadernação de pele. – Todos estes livros! – sussurrou ele. – O que é que eles fazem com tudo isto? – Leem-nos, pai – respondeu Emily com impertinência, mas, para Doug, a biblioteca não poderia ter parecido mais exótica, nem que os livros fossem escritos em sânscrito ou Linear B. Doug não tinha nada contra os livros (recebia sempre um policial de Dick Francis pelo Natal), mas havia algo de excessivo e doentio em toda aquela erudição. Se os seus pais não entendiam o seu desejo de frequentar a universidade, ela própria não se sentiu à vontade com os aspetos mais pretensiosos da UCL (por exemplo, o costume que os estudantes de Literatura Clássica tinham de se sentar em volta da praça da universidade, fingindo que estavam em Balliol College9). Foi Michael quem finalmente a resgatou ao mundo dos seus pais e lhe deu a conhecer uma nova e cintilante existência. Emily recorda-se muito bem de tentar descrever Gina à sua mãe e de esta simplesmente não entender o portentoso glamour da italiana. – Ela é gerente de um restaurante, dizes tu? – Bom, não é apenas um restaurante; é mais uma espécie de experiência. – Compreendo, querida. Suponho que ela deve ganhar bastante bem, não? Era escusado, pura e simplesmente.
Torna a ouvir-se um trovão, agora mais próximo. Emily fecha a porta do quarto de Charlie, rezando para ele não acordar. Paris surge ao cimo das escadas, vestida com uma camisa de dormir do Snoopy. – É uma tempestade? – pergunta. – Parece que sim – responde Emily. – Não tenhas medo. Estamos em perfeita segurança. Vai ser divertido ficar a ouvi-la. – Esforça-se por falar num tom animado, mas, na verdade, sente-se bastante apreensiva. Nunca esteve na Villa Serena durante uma tempestade e está desconfortavelmente ciente de quão isolados estão ali. Quem escutaria caso eles fossem atingidos por um relâmpago? A casa de Romano fica ao fundo da colina, mas ele costuma ir para a cama às oito, com as galinhas. – Eu não estou com medo – diz Paris, desdenhosa. Mas, ainda assim, desce ao rés do chão. – Queres ver um episódio de Dad’s Army? – sugere Emily. Paris assente. Vão as duas para a sala de estar, onde Siena está enroscada num dos sofás, agarrada ao telemóvel. – Ele ligou? – pergunta Emily. Sem qualquer tato, apercebe-se. – Não tenho rede – responde Siena. – Então porque continuas agarrada ao telemóvel? – interroga Paris. Siena não diz nada, limitando-se a enroscar-se ainda mais no sofá. Parece preocupada e na defensiva, mas, pelo menos, não se afasta quando Emily se senta ao lado dela. Paris instala-se do outro lado da mãe, e, por um momento, Emily saboreia a sensação de estar no sofá com as suas filhas. Se não se mover, se não estragar o momento, consegue sentir os corpos das duas a pressionar o seu. O leitor de vídeo começa a trabalhar. O capitão Mainwaring e o seu pelotão treparam por uma torre de igreja e agora vão-se enredando no mecanismo do relógio. Um tremendo relâmpago ilumina o céu. No ecrã, Jones sobe para cima de um cavalo mecânico e exorta os homens a não entrarem em pânico. O trovão ressoa por toda a casa, numa avassaladora onda sonora. Paris chega-se mais para junto de Emily. Agora, os relâmpagos e os trovões vão surgindo quase em simultâneo. – Estamos mesmo no centro da tempestade – comenta Siena. – Não é empolgante? – pergunta Emily, nada convincente. Em Warmington-on-Sea, uma lança mecânica está a picar repetidamente o
traseiro de Mainwaring. Ouve-se outro trovão, mais forte do que todos os anteriores, e a Home Guard desaparece do ecrã. A casa mergulha na escuridão. Siena grita. – O que foi? – sussurra Paris. – Ficámos sem eletricidade – responde Emily. – O cabo deve ter sido atingido. Eu vou buscar fósforos. – Mamã! – Paris agarra-se a ela. – Não vás! – Então venham comigo. – As três encaminham-se para a porta, agarradas umas às outras. O corredor, que não tem janelas, está totalmente às escuras. Emily tateia em volta, procurando a mesa, onde tem a certeza de ter deixado os fósforos. E então consegue vislumbrá-los, dentro de uma pequena tigela chinesa. Estende a mão para lá. Ouve-se um estrondo que poderia muito bem ser uma tigela chinesa a cair num chão de pedra. – Merda! – exclama Emily. – Onde estão os fósforos? – geme Siena. – Deixei-os cair. E então, enquanto Emily tateia freneticamente pelo chão ali em volta, escutam-se pancadas fortes na porta. As três ficam paralizadas, incapazes de admitir que, de forma súbita e aterrorizante, a sua situação acaba de piorar. – O que foi aquilo? – sussurra Paris. Mais pancadas. Pesadas e sinistras, como as trombetas do Juízo Final. Cada uma delas debate-se com o seu demónio pessoal, imaginando o que poderá estar do outro lado da porta, lá fora, na tempestade. Emily pensa no conto «A Mão do Macaco» e naquela terrível presença que não chega a ser vista, Siena pensa em vampiros e em lobisomens, e pergunta-se por que raio costumava achar que a Buffy era fixe. E, para Paris, aquilo é como um concentrado de todos os seus medos. É a Itália a vingar-se dela. É a própria Morte. – Quem é? – pergunta Emily em inglês. Escuta-se um grito indistinto em italiano, e depois um som tão apavorante que Emily e as suas filhas apenas conseguem entreolhar-se, mudas de terror. É um cruzamento entre um gemido e um uivo, um queixume como os que só se ouvem nos filmes. Estranhamente, é este caráter tão artificial, tão de «terror a fingir», que dá alguma coragem a Emily. Lentamente, aproxima-se da porta. – Mãe! Não! Em transe, Emily ergue o trinco e puxa a pesada porta. Atrás dela, as filhas
choramingam. Um novo clarão luminoso rasga o céu de alto a baixo, e então ela vê, parado à porta, um homem alto e sombrio, segurando um corpo nos braços. 8 Jogo inglês semelhante ao baseball. (N. do E.) 9 Uma das faculdades que integram a Universidade de Oxford, a mais antiga escola de Inglaterra e também uma das mais afamadas. (N. do T.)
2
A
s duas raparigas gritam. Surge um novo clarão, iluminando a sombra grotescamente deformada. Emily também tem o impulso de gritar, mas, de alguma maneira, consegue controlar-se. Em vez disso, recua, protegendo instintivamente as filhas. Pensa em Charlie, inocentemente adormecido no andar de cima. Será que, depois de as assassinar, a ela e às suas filhas, o monstro subirá lá acima para ir buscar Charlie? E então a sombra fala. – Desculpe – diz, em italiano –, mas esta é a única casa por aqui. O cão está ferido. E então Emily vê que aquele fardo sinistro nos braços do homem não é um cadáver, mas sim um cão com uma pata toscamente ligada. Também vê que o homem é enorme e tem uma barba escura, veste roupas de trabalhador e tem o cabelo ensopado devido à chuva. Mas a sua voz é educada, e, quase de forma inconsciente, Emily dá por si a desviar-se para lhe dar passagem. Mais tarde, Raffaello dir-lhe-á que esta é uma reação tipicamente inglesa a um animal em apuros. – Um italiano ter-me-ia dito para levar o cão sarnento para o canil mais próximo. – Mas onde encontraria um canil aberto a meio da noite? E, com um encolher de ombros, Raffaello responde-lhe: – Isso não seria um problema deles. O desconhecido entra no vestíbulo, salpicando o chão de pedra de água da chuva. Nesse mesmo instante, Paris encontra os fósforos e consegue acender um. Emily vê a sua cara muito branca e assustada à luz da minúscula chama; Siena está por trás dela, apertando com força o braço da irmã (se está a tentar proteger Paris ou a si mesma, Emily não chega a perceber). – Vê se encontras uma vela – diz-lhe. – Lanterna – é tudo o que o homem diz, agora em inglês. – No bolso da frente. – Para seu espanto, Emily dá por si a aproximar-se do estranho e a enfiar a mão no bolso do seu casaco para tirar dali a lanterna; está tão
próxima dele que consegue cheirar-lhe o cabelo e a pele. Tal como esperado, encontra uma lanterna grande e prática no bolso da frente do impermeável do desconhecido. No vestíbulo, escuro como um túmulo, o feixe de luz parece tão potente como o de um holofote. Emily aponta-o para a porta da cozinha. – É melhor trazer o cão para aqui – sugere. O homem deita o cão sobre a mesa da cozinha. – Magoou a pata – explica. – Encontrei-o numa das grutas. – Fala inglês fluentemente, com um ligeiro sotaque americano. Emily pondera perguntar-lhe o que estava ele a fazer na gruta, mas depois conclui que o melhor é concentrar-se no animal magoado. Na verdade, sentese curiosamente calma, quase triunfante. Enfrentou os seus piores medos, o monstro parado à porta, o chamamento a meio da noite, e parece-lhe que afinal ninguém vai ser assassinado. Fazendo a luz incidir na pata escura e enlameada do animal, tira-lhe a ligadura, que parece ser um pedaço rasgado da camisa do desconhecido. O cão solta um ganido, mas não tenta mordê-la. – Não parece estar muito mal – diz ela num tom confiante, embora nunca tenha tido um animal de estimação na sua vida, e, em geral, tenha bastante medo de cães. – Vou buscar uma ligadura lavada. – Não! – exclamam Paris e Siena em uníssono. – Não vás. O homem ri-se, revelando uns dentes espantosamente brancos. – Não se preocupem. Não sou um assassino. Chamo-me Raffaello Murello. Sou arqueólogo. Com absoluta nitidez, Emily recorda as palavras da mulher no ferragosto: «Ele é um demónio.» – Sim – diz calmamente. – Já ouvi falar de si. Enquanto Raffaello, de pé, vai afagando o cão, Siena põe-se a procurar uma caixa de velas num dos armários da cozinha. São daquelas perfumadas e decoradas com laçarotes de serapilheira – um presente de Petra. Emily acende três e fixa-as em volta do cão, como se o animal estivesse prestes a ser sacrificado num altar. Depois, miraculosamente, encontra a caixa de primeiros socorros, e então desinfeta a ferida do cão e cobre-a com uma ligadura limpa. O demoníaco Raffaello observa-a em silêncio. Quando ela termina de atar a ligadura, Raffaello ergue o cão da mesa. É um cão grande, um pastor-alemão, julga Emily, mas, mesmo assim, o arqueólogo sustém-no nos braços sem dificuldade. – Vai ter de limpar a mesa – observa.
– Eu sei – responde-lhe Emily com brusquidão. Os Italianos estão sempre a ensinar a toda a gente como se deve limpar; são obcecados pela higiene. De repente, Siena fala. – Mãe? Queres que eu ponha chá a fazer? Raffaello inclina a cabeça para trás e dá uma gargalhada. – Chá! Agora sim, sei que estou entre ingleses. Mas é exatamente isso o que fazem. Emily ferve a água no fogão (graças a Deus que não tem uma chaleira elétrica) e prepara o chá. Também faz sanduíches de Marmite para ela e para as filhas. Ao pôr os olhos no Marmite, Raffaello mostra-se, pela primeira vez, desconcertado. – Isso come-se?! Deus do Céu! Antes morrer à fome. Sentam-se em volta da mesa da cozinha, à luz das velas, a comer e a beber. Com aquela iluminação e o cão deitado aos seus pés, a atmosfera é curiosamente acolhedora. Emily recorda as alturas, em criança, em que não conseguia dormir e a sua mãe a levava até ao andar de baixo, para uma ilícita chávena de chocolate quente. Fazer algo de ilícito não era nada o estilo da sua mãe; talvez seja por isso que aquela recordação persistiu. – Então diga-me, signor Murello, o que é que estava a fazer nessa tal gruta? Raffaello sorri. Agora que os seus cabelos estão secos, armaram-se em caracóis revoltos em volta do seu rosto. Não tem cara de assassino, mas parece-se perturbadoramente com um pirata. – Sou o responsável por uma escavação aqui perto – explica. – Temos andado a escavar junto às grutas… «Então és tu o responsável pelo amontoado de pedras», pensa Emily, zangada. – Quando a tempestade começou – continua Raffaello –, achei que era melhor ir ver como estava a escavação e certificar-me de que as valas não tinham desabado. Ouvi um queixume vindo das grutas e fui investigar. – Não ficou aterrorizado? – pergunta Siena. Raffaello encolhe os ombros. – Não. Porque haveria de ter medo? Tratava-se obviamente de um animal. Então entrei na gruta e encontrei este nosso amigo. Acho que é pouco maior que um cachorrinho. Tinha a pata ferida e parecia estar cheio de medo da tempestade. Tencionava levá-lo para o meu carro, mas tinha-o deixado muito longe. E então vi a vossa casa. Já tinha ouvido dizer que vivia aqui uma família inglesa, e pensei: «Talvez eles queiram um cão.» – Ao dizer estas
palavras, sorri desavergonhadamente para Emily. O rosto de Paris ilumina-se instantaneamente. – Oh, mãe! Podemos ficar com ele? – Não sejas pateta – responde-lhe Emily. – De certeza que tem dono. – Não me parece – intervém Raffaello. – Acho que tem estado a viver nas grutas. Provavelmente nunca foi de ninguém. – Nós não queremos um cão que andou perdido – diz Emily. – Provavelmente é meio selvagem. – Os quatro olham para o cão, deitado no chão ao lado de uma tigela com água e com um ar muito manso. – Sim – comenta Raffaello. – Parece um perfeito mastim dos infernos, não parece? O cão abana a cauda. Como a tempestade ainda não amainou, Emily sente que é seu dever oferecer, tanto a Raffaello como ao cão, dormida por aquela noite. A luz ainda não voltou e a chama das velas vai tremeluzindo com o vento que entra pelas janelas não vedadas (e autênticas). – Não preciso de uma cama – diz Raffaello. – Posso dormir no sofá, com o mastim dos infernos. Siena lança-lhe um olhar algo cético. O arqueólogo parece ser boa pessoa, mas, ainda assim, preferia que ele parasse de mencionar o Inferno. Quando Emily lhe entrega um cobertor e uma almofada, ele sorri para Siena. – Não se preocupe, Miss Siena. Vou fazer os possíveis por não matar nenhuma de vocês durante a noite. Emily acorda com uma manhã excecionalmente bela. Levanta as persianas e verifica que o vale lá em baixo ainda está coberto de névoa, da qual espreitam os cumes das árvores, como animais pré-históricos vindos da alvorada dos tempos. O céu está azul-pálido, lavado pela chuva da véspera, e do olival chega uma brisa adocicada. Emily apercebe-se de que ainda é muito cedo. Embrulhando-se no seu velho robe chinês, desce ao rés do chão em bicos de pés. Aquela é praticamente a primeira vez, desde que Charlie nasceu, que ela acorda antes dele, e não quer perturbar a paz. Detém-se à porta da sala de estar e depois empurra suavemente a porta. Deitado no chão, num cobertor tirado da cama de Paris, está o jovem
pastor-alemão; as suas patas, uma delas cuidadosamente ligada, estremecem um pouco enquanto dorme. Ao seu lado, a dormir estirado no sofá, está Raffaello. O sofá é enorme, mas, ainda assim, o corpo dele não cabe ali, de tal forma que tem os braços por cima da cabeça e as pernas fletidas, como se tivesse estado a correr enquanto dormia, uma a tocar no chão e a outra estendida sobre o braço do sofá. Emily observa-o por instantes, recordando a noite anterior. Ainda não compreende como foi capaz de se manter tão calma. Para alguém que geralmente entra em pânico com as crises domésticas mais triviais (por exemplo, quando o leite se acaba ou quando se esquece de uma consulta com o dentista), lidou sem dificuldade com uma situação que parecia tirada de um dos episódios da série Hammer House of Horror. Emily nunca se considerou uma pessoa calma. Michael achava-a doce, ingénua e sonhadoramente idealista (isto até passar a achá-la irritante, estúpida e irritantemente idealista). Inicialmente, Paul achou atraente aquele seu ar distraído, mas, ao fim de alguns anos de casamento, passou a achá-lo exasperante. Por que razão não era ela capaz de ler um mapa? Porque nunca chegava a horas a nenhum compromisso? Porque parecia ela encarar a vida como um jogo de tabuleiro cujas regras nunca se dera ao incómodo de aprender? Se tudo isso era verdade, então onde foi ela arranjar o sangue-frio para acolher um estranho em sua casa no meio de uma tempestade? E para deitar um cão ferido na mesa da sua cozinha e tratar-lhe das feridas? E para oferecer, ao homem e ao cão, um sítio para passar a noite e depois dormir tranquilamente durante dez horas, sem sonhos nem pesadelos? Emily observa o corpo adormecido de Raffaello e conclui que o facto de ele não a conhecer e de talvez nunca mais se irem ver é uma ajuda. O arqueólogo não sabe que ela é uma despistada sem remédio. Não está a par da famosa ocasião em que ela pretendia ir até Maidenhead e acabou por ir parar a Maidstone. Para aquele homem, ela é uma inglesa excêntrica e desenrascada. Do tipo que provavelmente tem um batalhão de cães achados na rua a dormir no seu quarto, aos quais deu os nomes dos cavaleiros da Távola Redonda. Emily sorri; esta ideia de si própria agrada-lhe. De súbito, o cão acorda e abana a cauda de modo frágil e enternecedor. Emily suspira. Tem a sensação de que vai ficar com aquele cão a seu cargo para o resto da vida. Raffaello também se mexe. Depois boceja, espreguiça-se e quase se
estatela no chão. Apoiando-se num braço, os seus olhos fitam Emily através de uma cortina de cabelos pretos encaracolados. – Bom-dia, Mrs. Robertson. Já é hora do pequeno-almoço inglês completo? Michael teria ficado surpreendido com a sua calma e o seu talento para lidar com aquele cão, pensa Emily enquanto prepara o café e põe na mesa o pão, a compota e o Marmite (decidiu que um pequeno-almoço inglês completo seria de mais). Lembra-se daquela ocasião em que o cão de Gina, um galgo italiano chamado Picchi, desenvolveu uma tal paixão por ela que passou a noite a dormir à porta do seu quarto, e, de manhã, Emily se sentiu demasiado assustada para sair do quarto. E aquele cão era uma coisinha minúscula e assustadiça, «um cão a pilhas», nas palavras de Michael; não era um enorme e peludo pastor-alemão. Com um suspiro, Emily acrescenta queijo e fiambre à mesa do pequeno-almoço. Ao longo dos anos tem tentado racionar o número de vezes que pensa: «O que diria o Michael se estivesse a ver isto?» Ou: «Se o Michael me pudesse ver agora, teria pena de me ter deixado.» Sente-se amargamente envergonhada pelo facto de um dos seus primeiros pensamentos após o nascimento de Siena ter sido: «O que diria o Michael se me visse com um bebé?» Até se lembra da sua mórbida crença de que a bebé, tão loura e com uns olhos tão azuis, se parecia mais com Michael do que com Paul. «O Michael desapareceu da minha vida», diz a si mesma, pousando as facas na mesa. «Pertence ao passado.» O seu presente está cheio de desconhecidos barbudos e animais feridos. Ainda assim, consegue ver, claro como o dia, o estreito jardim londrino de Izzy, e ouve-se a perguntar a Chad: «Como é que ele está?» – Está bem – respondera-lhe Chad bruscamente. – Vive na zona sul de Londres, em Stockwell. Trabalha no King’s. A mulher dele é escultora. Sabias que ele se tinha casado? – Sim – respondeu Emily. Ainda se lembra da intensa dor física que sentiu, literalmente no coração, ao ouvir que Michael se tinha casado menos de um ano depois de os dois terem terminado o namoro. Menos de um ano depois de ter dito que uma das razões por que queria acabar com ela era a necessidade de «espaço», o desejo de «estar sem ninguém, com toda a solidão que isso acarreta». Cristo. E achava ele que ela era pretensiosa. – Chama-se Mara. É americana. Tirou o curso de Medicina, mas agora faz
umas esculturas esquisitas a partir de televisores velhos e bocados de papel higiénico. Não posso dizer que entenda o significado daquilo, mas ela parece fazer bastante dinheiro. – Têm filhos? – perguntou Emily, sentindo-se novamente a oscilar à beira do precipício. Como uma criança que pensa na vida amorosa dos pais, se eles não tivessem filhos, então ela não teria de aceitar que eles alguma vez tenham feito amor. – Uma filha. A Jessica. Tem dezassete anos. – Depois de uma pausa, Chad acrescentou sucintamente: – Tem paralisia cerebral. Acho que tem sido uma pressão terrível para eles. Ela é uma miúda encantadora. – Que horror. – E era, de facto, horrível, mas não era o que ela desejava saber. O que lhe interessava saber, claro, era se, no decorrer da sua nova vida, ele alguma vez pensava nela. Raffaello entra na cozinha com o cabelo molhado do duche e começa a interrogar Emily a respeito da sua vida. – O que é que faz durante todo o dia, aqui metida no meio do nada? – Escrevo – responde Emily em ar de desafio, servindo-se de café escuro. – Escreve? Livros? – Não. Artigos. Para um jornal inglês. – O romance que começou a escrever enquanto andava na faculdade continua lá em cima, enfiado numa caixa juntamente com o seu diploma e as cartas de amor de Michael. É uma história de amor ao estilo do realismo mágico, passada em Itália na viragem do século XX, e só de pensar nela, sente-se agoniada. – Que espécie de artigos? – insiste Raffaello, mastigando pão com fiambre. – Como perder peso em duas semanas comendo apenas chocolate? Como transformar o dia em noite com um vestidinho preto? – Não – responde Emily com dignidade, embora não possa evitar perguntar-se como consegue Raffaello satirizar o género com tamanha exatidão. Será que ele lê revistas femininas inglesas? Talvez a sua mulher seja inglesa. – Escrevo sobre Itália – esclarece finalmente. – Sobre como é viver na Toscana. – Ah – diz Raffaello, observando-a com interesse. – Portanto, agora é uma perita na Toscana? – Bem, vivo aqui, não é verdade? – Há pessoas a viver aqui há milhares de anos – replica Raffaello, terminando o resto do fiambre –, e, mesmo assim, estas colinas continuam a
ocultar segredos. – Claro. O senhor é arqueólogo. Para si, quem quer que tenha vindo para cá a seguir aos Romanos deve ser um recém-chegado. – Os Romanos! – Raffaello ri com desprezo. – Essa gente era um bando de arrivistas. Charlatães. Bárbaros. Os Etruscos sim, são a minha gente. Os Etruscos. Emily sente-se fascinada com a forma como ele expressa a sua convicção, «Os Etruscos sim, são a minha gente», quase como se pertencessem à sua família, como se ainda existissem e continuassem a habitar a região cujo nome deriva do seu. Tudo o que Emily sabe a respeito dos Etruscos é que existiram antes dos Romanos. Antes que Raffaello possa dizer mais alguma coisa, as crianças entram a correr na cozinha, acompanhadas pelo cão. – Um cão! – Charlie está radiante de excitação. – O meu cão! – Ele não é o teu cão – replica Paris com brusquidão. – Nem sequer estavas acordado quando ele chegou. – Pois não – concorda Siena, de olhos esbugalhados e falando num tom sepulcral. – Foi assustador. Houve uma tempestade terrível, só se viam relâmpagos, e depois ouvimos umas batidas pavorosas na porta, absolutamente pavorosas… – Bate com o punho fechado na mesa da cozinha. Com um guincho, Charlie corre a esconder-se atrás de Emily. – Não lhes ligues, meu ursinho – diz Emily. – Se queres saber a verdade, elas estavam com tanto medo que nem se conseguiam mexer. Raffaello está refastelado na sua cadeira, entretido com aquela cena. A coxear, o cão aproxima-se imediatamente dele e deita a cabeça no seu colo. – Vês? – diz Raffaello a Charlie. – O cão é meu. – Quem é ele? – pergunta Charlie rudemente, apontando para Raffaello. – Parece um pirata. À luz do dia, o arqueólogo parece ainda mais pirata. Até tem um brinco de ouro numa orelha, nota Emily. Raffaello ri, muito divertido. – Sou o pirata Barba Negra – diz. – O meu navio está lá fora. – A sério? – Charlie corre para ir ver. – Não sejas parvo, Charlie – diz-lhe Paris. – Nem sequer estamos ao pé do mar. – Ah – replica Raffaello –, mas há lugares, vilas e aldeias, que outrora estavam cobertos pelo mar. Antigamente, todo o vale do Pó estava submerso. – Isso foi há milhares de anos – objeta Paris.
– Ah! Para mim, milhares de anos não são nada. – Raffaello estala veementemente os dedos. Emily recorda-se vagamente de outra pessoa lhe ter dito o mesmo há pouco tempo. – Mr. Murello é um arqueólogo – explica Emily aos filhos, pousando a embalagem de Coco Pops diante de Charlie. – Suponho que é a si que devo agradecer pelo amontoado de pedras que está a bloquear o acesso à casa? – pergunta-lhe depois. – Peço desculpa – responde-lhe Raffaello com um ar muito sério. E depois estraga tudo ao acrescentar: – A propósito, belo Alfa. – É do meu marido – replica ela, castigadora. Raffaello não diz nada, mas lança-lhe um olhar interrogador. Os seus olhos são de um castanho muito escuro, quase pretos, mas muito brilhantes, como os olhos de um animal, talvez uma ave de rapina. – Disse que andava a fazer escavações aqui perto? – pergunta Siena, afagando o cão. – Sim. Estou convencido de que nesta área viveu uma comunidade etrusca. – As comunidades etruscas não ficavam todas mais para os lados de Arezzo e de Cortona? – pergunta Emily. Lembra-se de ela e Paul terem ido até Cortona para verem os túmulos. – Bem, encontrou-se muito pouca coisa tão a este – reconhece Raffaello –, mas eu estou convencido de que eles estiveram aqui. Afinal, os Romanos estiveram aqui e eles costumavam erguer as suas cidades onde já houvesse comunidades etruscas. – É com um ar de desprezo que refere este comportamento parasita. – Quem eram os Etruscos? – pergunta Siena. Paris resfolega, carregada de desdém, mas Emily tem a certeza de que ela também não sabe. – Eram um povo maravilhoso – diz Raffaello com uma expressão solene. – Viveram aqui, na Toscana, na Úmbria e em Latium, há cerca de dois mil anos. Nessa altura, toda esta região chamava-se Etrúria. – Nunca tinha ouvido falar neles – declara Siena candidamente. – Isso não me surpreende – comenta Raffaello. – Muitas das suas cidades desapareceram. Muito pouco dos seus escritos chegaram até nós. E, como não foram encontradas traduções diretas, ainda hoje não compreendemos totalmente a sua língua. – Do que anda à procura? – pergunta Paris. – De uma cidade perdida? – Uma das doze cidades da Etrúria? – interroga Raffaello, com um ligeiro
sorriso. – Não me parece. Mas estou convencido de que havia alguma espécie de comunidade aqui perto. Infelizmente, os Etruscos faziam as suas construções em madeira, e portanto não deve restar grande coisa. – Então, o que acha que vai encontrar? – insiste Paris. – Aquilo que eles construíram em pedra – revela Raffaello, de olhos a brilhar. – Os seus túmulos. – O que é um túmulo? – pergunta Charlie, erguendo o rosto da sua tigela de cereais, com leite a pingar-lhe do queixo. – Uma campa – responde-lhe Paris, na sua voz mais aterrorizante. Charlie olha para Emily, não sabendo se há de chorar ou não. – Parece-se mais com uma casa – explica-lhe Emily, lançando um olhar carregado a Paris. Raffaello ri-se. – A tua maravilhosa mãe tem toda a razão. Os túmulos etruscos eram muito parecidos com casas. Havia gravuras nas paredes, estatuetas de bronze e objetos de uso diário. É incrível. – Encontrou alguns vestígios? – pergunta Emily, servindo-se de mais café. – Encontrámos aquilo que julgo serem degraus – diz Raffaello. – É bastante entusiasmante. Mas, antes de prosseguirmos, temos de conseguir uma autorização da Soprintendenza Archeologiche. – Esta perspetiva parece deprimi-lo bastante. Paris inclina-se para a frente. – Quando encontrar o túmulo, podemos ir visitá-lo? – Claro que sim. Serás uma das primeiras pessoas a fazê-lo. – Fixe! – exclama Paris, cheia de alegria. Agarra num pedaço de pão e começa a comê-lo. Emily fica tão satisfeita por ver Paris com aquela expressão normal e interessada que só daí a alguns segundos se apercebe de que a sua filha mais nova está a falar com ela. – Mãe – diz Paris –, podemos ficar com o cão? – Por favor! – acrescenta Siena, ainda ajoelhada junto do animal, a afagarlhe as orelhas. – Por favor! – grita Charlie, saltando para se abraçar ao cão. – Mas os cães provocam asma ao Charlie… – começa Emily a dizer, mas então vê o filho com a cara junto ao focinho peludo do cão. Não está a respirar com dificuldade nem a asfixiar; na verdade, parece radiante de
felicidade. – Por favor – torna Siena a dizer. Emily observa o rosto de cada um dos filhos – naquele momento, estão todos com a mesma expressão; os três estão unidos por um desejo simples e fácil de satisfazer. Por algum motivo, isso faz os seus olhos encherem-se de lágrimas. – Oh, está bem – diz.
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Diário de Paris, 7 de setembro de 2004:
Ontem regressei à escola. Acho que podia ter sido pior. Ter o cão muda as coisas. Ainda não lhe demos um nome porque a minha mãe diz que tem de ser escolhido democraticamente e as ideias dos outros são muito estúpidas (o Charlie queria chamar-lhe Mogli!). Seja como for, o Cão dorme na minha cama, embora a mãe diga que não quer. Consigo ver que é de mim que ele gosta mais. Por exemplo, põe-se a saltar à volta da minha mãe quando acha que ela lhe vai dar de comer, mas salta para mim sem nenhum motivo em especial, apenas porque gosta de mim. Claro que sou quase sempre eu que o levo a passear porque a Siena é demasiado preguiçosa e a minha mãe está sempre a escrever aqueles artigos estúpidos, embora diga que isso se tornou mais difícil depois de o pai se ter ido embora. Não percebo porquê; os dois mal se viam. De qualquer maneira, ontem levei o Cão até ao sítio onde o R está a fazer as escavações. Não há muito para ver, só uns pedaços de fita esticados e a formar quadrados, mas, quando falamos com o R, de alguma forma ele faz tudo aquilo parecer real. Disse-me que talvez a entrada do túmulo esteja decorada com gravuras a representar o mundo dos mortos: cobras, monstros e pessoas a serem torturadas. Eu contei isto ao Charlie e ele começou a gritar e fugiu para o pé da minha mãe. Típico. De qualquer maneira, a escola não é má de todo. A Silvia e a Paola disseram que estavam contentes por me verem lá, mas isso é a maneira de ser dos Italianos, dão beijinhos e dizem che carina, o que não quer necessariamente dizer nada. Mas a Silvia não é assim. Veste-se de preto e ouve Metallica. Gosto bastante dela. A Siena está a estudar para a sua licenza classica, por isso não a vejo muito. Continua
sempre agarrada ao Giancarlo, o que me dá vontade de vomitar. Tive esperança de que tivessem terminado o namoro quando ele não lhe telefonou ao regressarmos de Inglaterra, mas, há dois dias, ele apareceu aqui na sua mota estúpida e começou a dizer que tinha perdido o telemóvel em Forte dei Marmi. E a Siena – dá para acreditar? – abraçou-se a ele e agora estão outra vez juntos. Querido diário, é humilhante ter uma irmã assim tão estúpida. Na escola, o Andrea veio falar comigo. Não sei porquê. Aproximouse quando eu estava junto aos cacifos e perguntou-me se eu me tinha divertido nas férias e mais não sei quê. Foi simpático da parte dele, parece-me. Não é que goste dele nem nada assim. Mas foi simpático. Emily está no desprezado mercado de terça-feira, com o cão (que agora se chama Totti, em homenagem a Francesco Totti, o jogador de futebol) ao seu lado. O pastor-alemão está a ser um incómodo: põe-se a ofegar muito alto sempre que vê outro cão e de vez em quando tenta escapar-se, acabando por enrolar a trela nas pernas de idosos rabugentos, mas sem dúvida que tê-lo consigo faz Emily sentir-se mais incluída na comunidade. Sabe que continua a ter ar de turista, com o seu italiano formal e o seu cesto de vime demasiado limpo, mas uma turista não andaria por ali com um jovem e delinquente pastor-alemão preso por uma trela. Assim, enquanto vai pedindo desculpa e puxando o Totti, que começou a ganir ao passar pelo balcão do talho, fica contente por poder trocar olhares solidários com outros donos de cães, sorrir modestamente quando comentam como o cão é grande ou revirar os olhos, bem-humorada, quando ele tenta aproximar-se novamente da cadelinha pequinesa da florista. – È un donnaiolo. – Si! – Abre um enorme sorriso, mas é só ao chegar a casa e consultar o dicionário que fica a saber que aquela palavra significa «mulherengo». Claro que os Italianos teriam uma palavra para isso; o surpreendente é haver um equivalente na língua inglesa. – Mrs. Robertson! Que bom vê-la. Voltando costas à florista, Emily depara com Don Angelo a sorrir-lhe. Embora anteriormente se tenha mostrado tão desdenhoso em relação ao mercado, não parece nada embaraçado por ser visto ali; no seu (genuinamente desgastado) cesto estão duas beringelas e um queijo embrulhado em papel
vegetal. – A viagem a Inglaterra foi boa? – pergunta ele em inglês. – Sim, obrigada. – Emily já deixou de se surpreender por o padre saber sempre por onde ela anda. – Esteve com a sua família? – Don Angelo faz uma festa ao Totti, cuja cabeça lhe chega à cintura. – Bem… – Emily fica furiosa ao sentir que está a corar. – Os meus pais estavam fora. De férias. Mas visitei muitos amigos. Segue-se uma pausa, durante a qual ela sente a reprovação silenciosa do padre por haver pais capazes de ir de férias quando a filha está de visita, e também a sua convicção de que é absolutamente impossível que meros amigos ocupem o lugar da genuína e sagrada famiglia. Mas, quando Don Angelo fala, o seu tom de voz é simpático: – E o seu marido? – Oh, sim. Estive com ele. – No último dia da sua estadia em Brighton, Paul foi até lá de carro para ver os filhos. Emily teve exatamente dez minutos a sós com ele na loja de doces no molhe de Brighton. Ali, por entre as guloseimas às risquinhas e os enormes chupa-chupas a dizer «Amigos para Sempre» em letras muito redondas, discutiram o facto de não terem dinheiro e de Paul estar a viver com uma personal trainer de Cirencester de apenas vinte e dois anos. – Ela tem algum dinheiro. – Sim, suspeitei que seria esse o caso – diz Emily, olhando para um grotesco bebé feito de açúcar. – Lamento – disse Paul desajeitadamente, a revolver as moedas e sem a olhar nos olhos. – Não há problema – retorquiu Emily. Mas claro que havia. Faz-se novo silêncio e então Don Angelo diz, num tom animado: – Esta noite há uma reunião. No palazzo comunale. Por causa das scavi. – Scavi? – Emily passa freneticamente em revista o seu escasso dicionário mental de termos italianos. Inicialmente, apenas lhe ocorre a palavra «Pompeia», e então lembra-se. Scavi. Ruínas. – As escavações? Aquelas ao pé da nossa casa? – Sì. – Don Angelo sorri-lhe encorajadoramente. – Há muitas pessoas descontentes com a situação. Devia vir. Afinal de contas, os trabalhos estão a ser feitos praticamente no seu jardim. Já conheceu Mr. Murello?
– Sim, conheci-o. O padre torna a sorrir. – Venha à reunião, Mrs. Robertson. É às oito horas. Salve! – Ergue a mão num aceno de despedida, mas depois detém-se e exclama, por cima do ombro: – É um belo cão! – Aponta para o Totti, que está de língua de fora, como um palerma. – Obrigada – responde Emily num fio de voz. Dirige-se ao balcão dos queijos, atrapalhada pelo Totti, que agora só quer ir atrás de Don Angelo enquanto o padre vai abrindo caminho por entre os seus paroquianos, em direção a uma tenda onde se vendem animais de peluche feitos de pele verdadeira. Em Brighton, também Petra está a braços com o começo de um novo ano letivo. Pousando o seu esfarrapado saco de desporto cheio de livros na mesa da sala de professores, pensa que os professores nunca crescem. Ainda se teme o começo de cada ano letivo, o outono não é sinónimo de castanhas e de andar a pontapear as folhas pelo chão, mas sim de novos livros, de novas turmas e de um novo começo. Ainda dá por si a comprar sapatos novos para estrear em setembro, tal como fazem os alunos. Olha para baixo, para as suas reluzentes botas Doc Martens, e sorri. Desde que se separou de Ed que não usa saltos altos. Ainda assim, há algo de empolgante no facto de estar outra vez de regresso. Petra gosta da sala de professores, da camaradagem que ali se sente, o único lugar onde estão a salvo do inimigo. A sua amiga Annie acena-lhe da outra ponta da sala. Tal como os alunos, também ela vai rever os seus amigos e regressar às mesmas rotinas. Por causa de Harry, não costuma socializar muito durante as férias. Foi por isso que gostou tanto de estar com Emily e com os seus filhos. Tem saudades de todos eles, sobretudo de Paris, mais do que gostaria de admitir. Petra nunca quis ter uma filha («Eu simplesmente não gosto de cor-de-rosa», costumava dizer), mas Paris é diferente: é esperta, é inconformada, tem uma língua afiada e é uma observadora atenta. Lembralhe ela própria, e tem de fazer um esforço para não pensar que devia ser ela, e não Emily (tão branda e flexível, tão cheia de timidez e de outras duvidosas virtudes femininas), a educar Paris. Com um suspiro, Petra dirige-se ao armário dos livros para contar os exemplares de Skellig (tal como as estações do ano, os livros que fazem parte
do programa nunca mudam). Quando sai do armário, sacudindo a poeira das mãos, vê Annie à conversa com um homem que não reconhece. Annie sorrilhe encorajadoramente por cima do ombro dele (é muito alto), mas, quando ele se volta, Petra dá por si sem conseguir respirar. «Oh, meu Deus», pensa. «É o George Clooney.» Depois de enfiar o Totti e o seu cesto no Alfa (encara-o como um refém, não tendo qualquer intenção de voltar a conduzir o Panda), Emily segue para a scuola materna. Durante o próximo período, está decidida a ser ela a ir buscar Charlie e a não delegar essa tarefa em Olimpia. Quando comunicou esta decisão à mulher a dias, ficou chocada com a súbita expressão de ódio que surgiu no rosto dela. – Sì, signora Robertson – foi tudo o que ela disse, mas aquele súbito lampejo de malignidade não saiu da cabeça de Emily durante muito tempo. Claro que já sabia que Olimpia adora Charlie, mas ainda não se apercebera do quanto esse amor era possessivo. Pois bem, agora vai reivindicar o seu filho. Será ela mesma a ir buscá-lo, no seu carro italiano, com o seu cão italiano e o seu saco cheio de produtos italianos: beringelas, radicchio e cavolo nero, couve preta. Para celebrar esta sua decisão, põe a tocar um CD de Puccini, em vez das habituais canções infantis. Aquela música arrebatadora transporta-a numa vaga de som, e o carro cinzento avança pelas estradas sinuosas como se Emily estivesse no meio de um anúncio a Itália. A scuola materna fica na orla da vila. Trata-se de um edifício moderno e baixo, com as paredes brancas revestidas de murais coloridos. Um elefante azul e uma girafa cor-de-rosa vigiam uma entrada muito bem protegida por um intercomunicador e um sistema de videovigilância (no que aos seus bambini diz respeito, os Italianos não estão dispostos a correr riscos). A porta é aberta e Emily encontra Charlie a brincar, com algumas das crianças mais velhas, na sombra do pátio. Por um breve instante, fica ali parada a observálos, segurando firmemente o Totti pela coleira. Charlie, com a sua camisa azul e jardineiras vermelhas, não é diferente das outras crianças italianas, todas vestidas de cores vivas, que correm em volta da estrutura de trepar como se fossem libelinhas. Ouve-o gritar qualquer coisa num italiano monossilábico mas perfeito, e, por alguns segundos, fica com o coração apertado e quase chora. A correr pelo pátio com os seus pequenos ténis brancos calçados, parece-lhe muito feliz, totalmente envolvido na brincadeira
e completamente seguro de si. Emily não quer chamar por ele e estragar o momento – não quer arrastá-lo de volta para o seu claustrofóbico mundo maternal. Mas Charlie vê-a e aproxima-se a correr, embora abrace primeiro o Totti. As outras crianças também se aproximam e rodeiam o cachorro, que é mais popular do que Emily alguma vez será. Charlie, possessivo e mandão, agarra na trela do Totti e leva-o por entre as árvores, com todos os outros atrás dele a implorar-lhe que os deixe segurar também no cane lupo. A diretora, uma mulher muito elegante chamada Monica, que tem estado a observar a cena da entrada, aproxima-se para falar com Emily, que se encolhe, à espera de ouvir um sermão por ter trazido o cão para dentro da escola. Monica intimida-a, com aqueles seus óculos de armações pretas finas que a fazem parecer ao mesmo tempo uma intelectual e alguém a par das últimas tendências da moda – duas qualidades que, somadas, fazem Emily sentir-se irrevogavelmente inferior. – Desculpe ter trazido o cão… – começa a dizer. Monica silencia-a com um gesto. – Não há problema. Ficamos contentes por o podermos conhecer. O Charlie tem falado muito nele. – Ainda bem – responde-lhe Emily. – Isso quer dizer que o italiano dele está a melhorar? – O italiano dele é muito bom – responde Monica. – Melhor que o meu. Monica encolhe os ombros. – É sempre assim. – O inglês dela é quase perfeito. Naquele momento o Totti regressa aos saltos para junto de Emily, arrastando Charlie. Monica diz-lhe que vá arrumar as suas coisas (Emily fica espantada ao ver a rapidez com que ele obedece à diretora), mas continua ali parada, como se tivesse mais alguma coisa para dizer. Começando a sentir-se bastante desconfortável, Emily põe-se a desembaraçar a trela do Totti das pernas. Terá Charlie feito alguma asneira? Estará prestes a ser expulso da scuola materna? Por fim, quando o filho se aproxima, trazendo nas mãos uma série de desenhos de cores vivas, Monica diz: – Estive a falar com a minha amiga Antonella a seu respeito. «Meu Deus», pensa Emily, «anda tudo a falar de mim. Sou aquela inglesa
estúpida que não sabe falar italiano e que foi abandonada pelo marido.» Provavelmente, Don Angelo disse a todas que rezassem por ela. Mas então ergue o olhar e apercebe-se da expressão inteligente e alerta da diretora. Não parece o tipo de pessoa que se ponha na coscuvilhice com os padres. – A Antonella é professora na escola primária – esclarece. – Pertencemos a um clube de leitura. – Um clube de leitura? – repete Emily, por nenhum motivo em especial. – Sim. Encontramo-nos e lemos livros. – Monica sorri. – E bebemos vinho e criticamos os homens. – Parece divertido. – É, de facto. Pensámos que talvez gostasse de se juntar a nós. Guiando de volta a casa sob o sol do meio-dia, com Puccini a tocar no leitor de CD (para enorme desagrado de Charlie) e com o Totti a arfar no banco de trás, Emily recorda as conversas que teve com Monica e com Don Angelo. Teria tido aqueles encontros há um ano? Não, teria estado presa no seu belo «ninho» restaurado, a escrever sobre as delícias da vida toscana. Ao cortar à esquerda na estrada, entre o santuário e os pinheiros mansos, repara nos sacos pretos que foram colocados sob as oliveiras para apanharem as azeitonas que forem caindo. Os campos de girassóis começam a ficar acastanhados. Embora esteja tanto calor como sempre, Emily julga sentir qualquer coisa no ar, algo intenso e revigorante, um discreto anunciar do outono. Um novo começo. E, a muitos quilómetros dali, Michael Bartnicki está a ler um e-mail de Izzy Goldsmith. Vai abrindo as fotografias enviadas em anexo e fica a olhá-las durante muito tempo, tamborilando ao de leve com uma caneta de ouro nos dentes.
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E
mily chega atrasada à reunião, depois de ter tido um ataque de pânico no último minuto por estar prestes a deixar Charlie com Siena e com Paris. – Mas ele está a dormir, mãe. – Eu sei. Mas e se acorda? – Eu vou aconchegá-lo e ele torna a adormecer. – E se não adormecer? – Nesse caso, estará acordado quando tu chegares. Francamente, mãe! – Siena fitou-a com aquela confiança inabalável que é típica dos dezasseis anos. Afinal de contas, o que poderia correr mal? – Seja como for – acrescentou Paris, que vem da cozinha a comer um chocolate Mars –, temos o Totti. A imagem do Totti a ressonar na sua cama não encheu propriamente Emily de confiança, mas não queria irritar as filhas, sobretudo numa altura em que se estavam inesperadamente a revelar tão prestáveis e positivas. A verdade é que Siena se ofereceu para cuidar de Charlie e mesmo Paris não fez nenhum dos seus habituais comentários a respeito de venderem Charlie à primeira família cigana que lhes batesse à porta. Mesmo assim, Emily sentiu-se tão indecisa e demorou-se tanto que só conseguiu sair da villa às sete e meia; quando arranjou lugar para estacionar na sinuosa rua medieval, já eram quase oito da noite. O palazzo comunale está cheio. É um enorme e belo edifício na praça central de Monte Albano, usado para encontros comunitários e reuniões públicas – que acontecem com surpreendente frequência. Há muitas pessoas no salão, todas bem-dispostas e ansiosas por passar a noite a discutir a questão dos vestígios etruscos. Emily tenta – sem sucesso – imaginar uma reunião daquele género em Inglaterra a atrair mais do que um punhado de académicos bafientos e um homem que só entrou para se abrigar da chuva. Senta-se num lugar ao fundo do salão. No meio da multidão avista os seus vizinhos mais próximos, Romano e Anna-Luisa, um casal de camponeses que raramente é visto na vila, bem como Olimpia, que está com cara de poucos
amigos, e Monica, com uma expressão muito séria. Ao lado de Monica está uma mulher loura. Emily pergunta-se se aquela será Antonella. Na dianteira, de frente para a assistência, está uma mesa de armar. Don Angelo está ali sentado, a ler a Gazetta dello Sport. Ao lado dele está o presidente da Câmara de Monte Albano, um comunista de modos amáveis chamado Umberto Biagotti. Ao lado de Biagotti está uma mulher que Emily não reconhece, vestida com um fato preto e com o mesmo tipo de óculos de aspeto intimidante que Monica usa. Pergunta ao vizinho do lado quem é aquela mulher e é-lhe dito que se trata da soprintendente archeologica, uma professora da Universidade de Bolonha, responsável por todas as escavações arqueológicas naquela área. De súbito, há alguma agitação junto às portas pricipais e toda a assistência se põe a olhar em volta e a sussurrar. Emily volta-se e vê Raffaello a entrar em passo confiante. Traz uma pilha de documentos nos braços e tem o sobrolho carregado de concentração. Está vestido mais formalmente do que quando Emily o viu pela última vez – um fato azul e uma camisa aberta no colarinho –, mas o seu cabelo está igualmente despenteado e continua com aquele seu ar de quem não se sente à vontade em espaços fechados. As portas batem atrás dele e uma rajada de ar frio atravessa o salão. A vizinha de Emily estremece e aconchega o casaco de peles nos ombros. Com a chegada de Raffaello, a reunião pode finalmente começar. O presidente da Câmara Biagotti é o primeiro a falar, mas o italiano de Emily não é suficientemente bom para lhe permitir entender tudo o que ele diz, e, além disso, Biagotti tem um sotaque regional bastante carregado. Lá consegue perceber que ele está a apresentar Raffaello como um arqueólogo mundialmente reconhecido e um perito na civilização etrusca. Diz que os achados ali nas montanhas são de grande importância, tanto a nível cultural como comercial. Ao dizer esta última palavra, os seus lábios contraem-se num esgar; afinal de contas, é um comunista. Sublinha que as escavações devem ser realizadas «com tato» e incumbe Don Angelo de ser o porta-voz da comunidade. Torna a sentar-se, sob escassos aplausos. Emily espera que Don Angelo se mostre ressentido por ter sido apresentado por um comunista sem fé, mas ele aperta a mão a Biagotti com genuína simpatia, tratando-o por «Umbertino». Depois volta-se para a assistência, suspira e abre os braços. – Che peccato – começa por dizer. – Que pena. Que pena ter sido um
assunto tão controverso a reunir-nos aqui esta noite, meus queridos amigos. Que pena ser a controvérsia a fazer um amado filho de Monte Albano regressar à sua terra natal. (Emily fica surpreendida ao escutar aquilo. Não fazia ideia de que Raffaello tinha nascido ali.) Que pena que um arqueólogo tão eminente se concentre num local tão pouco importante e numa demanda tão mesquinha, quando podia claramente ocupar-se de coisas tão mais importantes. – E, quanto mais longe dali, melhor, parecem sugerir as suas palavras. – Que pena que ele deseje perturbar o descanso de almas que, embora vindas de tempos pagãos, são de compatriotas nossos, de companheiros toscanos, de irmãos nossos. A sua intervenção é um verdadeiro tour de force. Don Angelo mostra-se humilde, comove a assistência e exerce sobre a mesma um estranho magnetismo. Observa Raffaello como um pai em sofrimento, pisca o olho à assistência como um vizinho malicioso a coscuvilhar por cima da vedação, interpela Biagotti com uma dignidade sem artifícios e sorri à soprintendente com charme. Embora Emily só entenda uma palavra em cada dez, não tem qualquer dificuldade em compreender que Don Angelo não quer que as escavações prossigam, e que usará todos os seus poderes – terrenos e celestiais – para as impedir. A soprintendente é a oradora seguinte a erguer-se. Emily esperava que ela defendesse as escavações, mas afinal parece que está contra. – As ruínas deveriam ser deixadas tal como estão – explica ela. – Se forem escavadas, ficando expostas ao vento, à chuva e, pior que tudo isso, aos olhares curiosos do mundo, acabarão por ser destruídas. As reservas arqueológicas são um recurso finito. Só no futuro teremos os recursos necessários para proceder a escavações sem danificar os artefactos. Tudo o que podemos fazer agora é registar a existência deste local e deixá-lo para as futuras gerações de arqueólogos. – Com um sorriso glacial, torna a sentar-se. Emily olha para Raffaello e vê-o enterrar a cabeça nas mãos. Chegou a vez de o arqueólogo falar. Emily vê-o inspirar profundamente e endireitar os ombros ao voltar-se para a assistência. Para sua surpresa, dá por si a inclinar-se para diante, apertando as mãos uma na outra. Por que raio estará do lado dele? Ele é o indivíduo que quer esburacar a sua propriedade e transformá-la num estaleiro de obras, e o mais provável é que encontre um cemitério enorme e assustador no sítio exato onde ela tenciona plantar os seus novos pessegueiros. Na verdade, deveria tomar o partido daquela
soprintendente arrogante que quer que tudo continue como estava. Mas, apesar de tudo isto, dá por si a desejar que Raffaello conquiste a assistência. Ele faz o seu melhor. Trouxe consigo diapositivos, artefactos e também aquele seu charme pirata. Sublinha a importância das escavações e o estatuto que isso trará a Monte Albano. É raro, diz ele, encontrar vestígios etruscos numa zona tão a este, tão próxima do Alpe della Luna. Sugere as possibilidades comerciais da vinda de grupos de turistas à vila (Biagotti remexe-se na cadeira). Fala demoradamente sobre os conhecimentos e brilhantismo da civilização etrusca e recorda à assistência que todos eles são descendentes daquela. Recorda-lhes os túmulos em Cortona, os enormes tetos abobadados, os cavalos de barro, as pequenas estatuetas de bronze. – Sabemos tão pouco sobre este povo… Deixem-nos descobrir mais – suplica. – Deixem-nos conhecer o passado. Conhecer e entender o passado é, no fim de contas, a melhor forma de compreender o futuro. Tornando a sentar-se, Raffaello passa a mão pelos cabelos revoltos. Biagotti ergue-se novamente. Com um ar fatigado, convida a assistência a fazer perguntas aos oradores. Emily não fica muito surpreendida ao ver Monica erguer-se, calma e confiante. – Gostaria de perguntar ao nosso padre – diz ela – porque se opõe ele desta maneira ao enriquecimento da sabedoria da humanidade. Don Angelo faz um enorme sorriso. – Ah! – exclama, erguendo os braços. – A sabedoria da humanidade! – Emily aguarda expectante, mas tudo indica que aquela é a única resposta que Monica vai ouvir. O padre sorri beatificamente e Monica senta-se, furiosa mas, Emily percebe, não muito surpreendida. Uma mulher idosa ergue-se e lança-se numa diatribe sobre os males trazidos pelos turistas. Don Angelo vai assentindo entusiasticamente. Raffaello força um sorriso. Outra mulher pergunta se os túmulos etruscos estão assombrados. – Possivelmente – responde Don Angelo com enorme astúcia. Raffaello ri. Depois, para surpresa de Emily, é Olimpia a erguer-se. Calma e imponente no seu vestido às flores, dirige-se a Raffaello sem emoção percetível: – Dottor Murello – diz –, estamos surpreendidos por vê-lo de regresso a um lugar que, para si, deve guardar memórias muito trágicas. – Um tremor atravessa o salão. Emily vê Romano a segredar algo a Anna-Luisa e repara no cintilar dos óculos de Monica quando ela ergue repentinamente o olhar. – O dottor Murello não acha – pergunta Olimpia num tom adocicado – que os
mortos devem ser deixados em paz? – Diz estas palavras com tal veemência que Emily fica chocada. Olhando para Raffaello, constata, surpreendida, que também ele ficou abalado. Tornando a passar a mão pelo cabelo, começa a falar e depois para. Olha para Don Angelo, quase como se numa súplica. O padre faz um gesto discreto para Olimpia (um misto de pesar e censura) e depois afirma, em voz baixa: – De certeza que o signor Murello está bem ciente das muitas memórias que há neste lugar. Tenho a certeza de que podemos contar com o seu sentido do que é certo. – Obrigado – diz-lhe Raffaello num tom sincero. Biagotti põe-se de pé e dá a reunião por terminada. Emily experimenta uma sensação de anticlímax. O que ficou decidido? As escavações vão ou não continuar? Irá Raffaello alguma vez remover aquele amontoado de pedras do acesso à sua casa? Porque se opõe Don Angelo de uma forma tão veemente às escavações e porque saiu em socorro de Raffaello daquela maneira? E por que raio se mostrou Olimpia tão perturbada? Emily anseia colocar a alguém todas aquelas questões, mas sabe que o seu italiano não chega para tanto. Por isso, limita-se a sorrir e a acenar a Romano e a Anna-Luisa, e depois volta-se para deixar o salão. Don Angelo avança pelo meio da assistência, a rir e a gesticular, mas Raffaello permanece no estrado, sentado a recolher os seus documentos. As suas mãos estão perfeitamente firmes, mas Emily apercebe-se de um músculo a latejar no seu rosto. Terá coragem de ir até lá falar com ele? O que lhe diria? Enquanto continua embrenhada naquele conflito, ouve alguém a chamá-la: – Emily! – É Monica, de óculos a reluzir e segurando uma mala de mão obviamente cara. – Gostaria de lhe apresentar a Antonella di Luca. – Com um gesto, indica a mulher loura. – Piacere. – Piacere. – Creio que o meu filho e a sua filha são amigos – comenta Antonella com um sorriso. – A Siena? – Emily sabe que qualquer rapaz ali da vila com sangue a correr-lhe nas veias é amigo de Siena. Pergunta-se qual será a sensação de se ser tão popular. Já examinou a fundo os seus sentimentos e sabe que não sente ciúmes, como acredita que por vezes acontece com as mães. Na verdade, teme por Siena. Sabe que a beleza tem um preço.
– Não. A Paris. – Oh. – Fita Antonella com interesse. Paris diz-lhe frequentemente que não tem amigos na vila, muito menos amigos rapazes. Os rapazes italianos são patéticos, costuma afirmar. – Então – interrompe Monica –, o que achou da diversão desta noite? – Receio não ter compreendido tudo. Monica deixa escapar uma risadinha. – Não, seria preciso passar a vida inteira numa pequena vila toscana para compreender tudo. – Porque se opõe Don Angelo tão fortemente às escavações? Monica encolhe os ombros. – Por superstição. Por simples e tacanha superstição católica. O que mais quer que eu lhe explique? – E a Olimpia. A minha… aah… a minha collaboratrice domestica… parece guardar sérios ressentimentos ao Raffaello… ao signor Murello. É Antonella a responder-lhe, num tom delicado: – Bom, muitas pessoas aqui da vila não gostam do signor Murello. – Porquê? – Estão convencidos de que ele assassinou a mulher – responde-lhe Monica.
5
–E
le está aqui – diz Petra. – Ele quem? – pergunta Emily, confusa. É muito cedo e ela foi acordada pela voz de Petra, que, naquela enevoada manhã italiana, lhe soa muito estridente e muito britânica. Emily está sentada na sua cama, de cabelos revoltos, e o Totti está estendido aos seus pés a abanar a cauda em êxtase. Lá fora escuta-se o cantar do galispo de AnnaLuisa. – O George Clooney. Está aqui, na minha escola. – O quê? – Bem, claro que não é exatamente ele. – Emily ouve Petra a dar uma passa no seu cigarro. – Mas é o novo professor de Informática e é lindo de morrer. Nem parece uma pessoa da vida real. Emily, tenta ver as horas no relógio, mas este caiu ao chão. – Petra… Que horas são aí em Inglaterra? – Oh – responde Petra vagamente –, para aí umas seis… Tinha de te ligar antes de os miúdos acordarem. O Harry detesta quando eu me ponho a falar ao telefone. Emily volta o relógio com o pé. Cinco para as sete. Resignada, deixa-se cair nas almofadas. O Totti ergue-se de um salto e olha esperançosamente para a porta, ganindo baixinho. –Totti, caluda! – diz Emily. – Estás a falar com quem? – Com o cão. – Tens um cão? – Sim – responde Emily, muito orgulhosa. – Um pastor-alemão. – O quê? Estarei a falar com a mesma mulher que uma vez atravessou a rua para não se cruzar com um caniche? – Era um caniche bastante grande – defende-se Emily. – Em todo o caso, o Totti é um amor, não mete medo nenhum. – Como é que ele se chama? – Totti. Em homenagem a um jogador de futebol italiano. – Céus. – Faz-se silêncio por instantes, e depois Petra diz, num tom
sonhador: – Seja como for, só queria contar-te a respeito do George. – É fantástico! Nem acredito. – Emily tenta injetar uma nota de entusiasmo na voz. Ao ouvir aquilo, o Totti põe-se aos saltos pelo quarto. – E ele não é casado? – Não. Nem sequer é divorciado. – Gay? – Parece que não. Acaba de romper com a namorada. – Como é que sabes tudo isso? – Fomos tomar um copo ontem à noite, depois das aulas. – Pete! Tiveste um encontro romântico! – Bem, não exatamente. Quero dizer, inicialmente estavam lá mais pessoas. – E no fim não? – Não – admite Petra. – No fim éramos só os dois. – E? – E nada. Ficámos só a conversar e depois eu tive de ir buscar os miúdos à ama. – Vais vê-lo outra vez? – Sim. Todas as manhãs, na sala de professores. – Sabes muito bem que não é isso o que eu quero dizer. Novo silêncio e mais uma passa no cigarro. Mesmo a milhares de quilómetros de distância, Emily sente a garganta apertar-se por solidariedade. – Não sei – responde Petra finalmente. – É difícil. Quero dizer, ele disse coisas como… Estávamos a falar sobre o Woody Allen e ele disse-me que queria ver o novo filme dele, e eu disse que também queria, e depois ele disse: «Bem, então porque é que não vamos os dois?» – Parece-me que ele te estava a convidar para sair. – Mas depois começámos a falar sobre outra coisa qualquer. Não foi como se ele tivesse tirado a agenda do bolso e dito: «Vamos marcar um dia.» – Acho que vais ter de ser tu a telefonar-lhe para combinar. – Não sei, Em – diz Petra. – É uma trabalheira. Não sei se estou para isso. – Pelo George? É claro que estás. Petra ri-se. – Na verdade, o nome dele é Darren. – Oh, meu Deus. – Eu sei. – Mesmo assim, vale a pena. Quero dizer, um homem solteiro, atraente,
com quarenta e poucos… – Por acaso tem trinta e nove. – Ainda melhor. Um homem mais novo. Petra ri-se novamente. – Vou pensar no assunto – diz. – E tu, como estás? Há alguma novidade? – Está tudo bem – responde-lhe Emily lentamente. Relata a Petra o episódio da tempestade e como Raffaello apareceu ali com o cão nos braços. Não lhe conta a respeito da reunião de terça-feira à noite. Estão todos convencidos de que ele assassinou a mulher. – Meu Deus! Parece uma cena tirada de O Monte dos Vendavais. Como é que ele é, esse arqueólogo? – É normal. Não é o meu tipo. Tem o cabelo preto encaracolado e barba. – Barba? Que nojo. Ainda assim, pode sempre tirá-la. – Talvez, mas, mesmo assim, não é homem para mim. – Como andam os miúdos? Que tal está a Paris? – A Paris está bem. Na verdade, anda um pouco mais alegre desde que ficámos com o cão. Adora-o. A Siena ainda anda com aquele seu namorado insuportável. O Charlie é um amor. A asma desapareceu completamente e parece que já não é alérgico a tanta coisa. – Bem, dá-lhes beijinhos da minha parte. Olha, é melhor eu ir. Estou a ouvir o Harry às voltas lá em cima. Adeus, Em. – Adeus. É só mais tarde, quando já desceu ao rés do chão e deixou o Totti sair para a sua primeira corrida desenfreada por entre as figueiras, que Emily se apercebe de que não perguntou a Petra como estava Harry. Ou Jake. Siena é acordada pelo som do Totti a ladrar entre as figueiras. «Que cão mais estúpido», pensa, deitada a observar as primeiras faixas de luz do sol que entram pelas suas persianas. O Totti está a revelar-se quase tão embaraçoso como Paris. O que chamou ela a Giancarlo da última vez que o viu? Ah, sim, um libertino. Que palavra tão ridícula. Na verdade, teve de a ir consultar ao dicionário porque a princípio não a entendeu. Tem de reconhecer que Paris tem muito vocabulário. E, felizmente, Gianni não fazia ideia do que aquilo queria dizer. Mas… libertino. «Uma pessoa moralmente dissoluta», é a definição que vem no dicionário. A seguir, teve de consultar o significado de «dissoluto».
Siena está deitada na sua cama, muito consciente do seu corpo por baixo do lençol e de um único cobertor. Na noite anterior, pela primeira vez em meses, precisou de um cobertor. O verão deve estar quase a chegar ao fim. Estremece, embora naquele momento esteja com calor, já que o sol está a incidir na sua cama. Um arrepio percorre-lhe todo o corpo, mesmo até às pontas dos pés, cujas unhas estão pintadas de prateado. Tem perfeita consciência de tudo: do calor do sol, da frescura do lençol, das abelhas a zumbirem junto ao beiral, do Totti a latir no jardim. Será esta consciência, esta desconfortável e incómoda perceção do seu próprio corpo, um sinal de que está pronta para o sexo? Gianni diria que sim, aliás, já o disse, e sem dúvida que o repetirá naquela noite e também na seguinte. «Se gostasses de mim, dormias comigo», diz ele, com o lábio inferior ligeiramente saliente e uma expressão acusadora nos olhos escuros. Mas ela ama-o; quase morreu quando regressou a Itália e pensou que o tinha perdido. Não acreditou realmente na história do telemóvel perdido. Tomá-la-á ele por parva? Mas compreendeu isto: fora-lhe dada uma nova oportunidade. Se dormir com ele, isso significa seguramente que ficarão juntos para sempre. Não que toda a gente se case com a primeira pessoa com quem faz amor, Siena sabe disso. Até a sua mãe já lhe contou uma história francamente embaraçosa a respeito do seu primeiro namorado, um estudante de Medicina chamado Michael. Embora não tenha chegado a dizê-lo explicitamente, Siena sabe que ela lhe quis dar a entender que tinha dormido com esse tal Michael. «Achei que ele era o tal», justificou-se depois, com um sorriso breve e triste. Sim, mas é só ver o que a sua mãe percebe a respeito de homens. Deixou fugir o tal Michael e agora deixou fugir o pai deles. E Siena sabe – embora Paris não saiba – que o pai já tem outra. Telefonou-lhe uma vez e foi a tal mulher a atender. Tinha uma voz simpática e refinada, e parecia ser jovem. Em todo o caso, perguntou à mãe e ela disse-lhe que sim, que o pai tinha uma namorada, mas pediu-lhe que não contasse aos irmãos porque eles não iam entender. Siena ficou contente com isto (de facto, Paris não compreende nada), mas sentiu uma certa pena da mãe. Coitada, agora já é demasiado velha para arranjar outro homem. De qualquer maneira, tem o Totti, e toda a gente sabe que os cães são uma boa companhia. Portanto, não lhe serve de nada discutir o seu dilema com a mãe. Até já desejou poder falar com Petra, porque, de uma certa forma, Petra parece ser mais moderna que a sua mãe. Compreende o funcionamento do mundo, não
apenas por usar roupas mais na moda, mas também porque parece levar uma vida mais moderna, porque é professora, mãe solteira e tudo o mais. Já a sua mãe, parece estar parada no tempo, a flutuar de um lado para o outro naquela casa velha, a fazer compras no mercado, a tentar dedicar-se à jardinagem e a escrever artigos lamechas. Há dois dias, tentou conversar com ela sobre Giancarlo. – Já sei que gostas muito do Giancarlo – disse-lhe – e ele é muito bemparecido… – Tu disseste à Paris que ele parecia um lagarto com calças de sarja. Emily teve a decência de corar. – A Paris citou-me fora do contexto. O que interessa é que eu sei que tu gostas dele e tenho medo de que ele te pressione para fazeres alguma coisa para que talvez não estejas preparada. – Como o quê, por exemplo, mãe? – Siena não estava disposta a facilitarlhe a vida. – Como, tu sabes… O sexo e essas coisas. – O sexo e essas coisas? Que «coisas»?! – Oh, tu sabes – replicou Emily, irritada. – Tenho medo de que ele te pressione para dormires com ele e de que depois te arrependas. – E se eu dormir com ele e não me arrepender? – perguntou Siena. Mas agora vê-se obrigada a admitir que está preocupada com o facto de aquilo ser irrevogável. Se ela dormir com ele não haverá volta atrás, já não terá nenhum poder de negociação. E se, a seguir, ele a deixa à mesma? Meu Deus, se ao menos fosse possível perder a virgindade por SMS, ela fá-lo-ia num piscar de olhos. Mandava uma mensagem escrita a Gianni a dizer «Fode-me» e pronto. Mas, depois disso, tornaria ele a ligar-lhe? No duche, sentindo a água quente e abundante a cair-lhe no corpo, pensa que sim, vai fazê-lo, sem dúvida. Parece-lhe estúpido dar tantas voltas à cabeça por causa daquilo. Pelo amor de Deus, dentro em breve terá dezassete anos. E uma parte de si quer muito dormir com ele. O problema é que, na verdade, isso é literalmente o que ela quer fazer: dormir. Quer deitar-se com a cabeça sobre o belo peito bronzeado de Gianni e sentir a respiração dele. Quer que ele a aperte nos braços a noite inteira e que a acorde com um beijo no pescoço. Se ao menos ele se satisfizesse com isso… Mas ele quer ter relações sexuais, e agora, de cada vez que a beija, Siena sente-se como se o estivesse a dececionar. Está a ser estúpida, infantil e – o pior de tudo –
tipicamente inglesa. «As raparigas inglesas são muito cruéis», disse-lhe ele na noite anterior. Claro que ela percebeu o que ele lhe estava realmente a dizer. Mais cedo ou mais tarde vai encontrar outra rapariga, uma que não seja tão cruel ou tão inglesa. Uma rapariga que não se importará minimamente de ter relações sexuais com ele. Outra rapariga. Descendo lentamente ao rés do chão, Siena pensa: «Se ele me amasse não me pressionava.» Mas então afasta rapidamente esse pensamento. Ela sabe – soube-o quando ele não a contactou durante aqueles dois dias – que se deu uma transferência de poder na relação entre os dois. Sabe-o de cada vez que ele se põe com risos e piadas com Angela, a rapariga do café. Sabe-o de cada vez que ele comenta que Paris está a ficar muito bonita. Sabe-o de cada vez que ele não responde a uma das suas mensagens escritas, de cada vez que ele perde o telefone, de cada vez que ele diz para ela ir ter com ele à piazza em vez de a vir buscar ali a casa. Sabe que ele não a ama, e, estranhamente, assustadoramente, isso não parece fazê-la deixar de o amar. Apenas a faz sentir-se mais determinada a não o deixar fugir. Custe o que custar. Tomam o pequeno-almoço no terraço. As folhas da hera estão a ficar amarelas, mas o calor do sol continua a fazer-se sentir por entre o toldo de folhas de videira. As uvas já estão boas para serem colhidas e Siena puxa uma e come-a com o seu Weetabix. – Devíamos fazer vinho – comenta Emily num tom vago. – Odeio vinho – responde Paris, previsivelmente, enquanto vai dando pedacinhos de côdea de pão ao Totti. – Não lhe dês comida – pede Emily. – Está a ficar demasiado gordo. – Mas ele está com fome – protesta Paris, com aquela vozinha de bebé que agora faz sempre que o assunto é o Totti. – Não estavas, fofinho? – Porque é que a Paris fala assim com o Totti? – pergunta Charlie, que seguramente nunca ouviu a irmã usar aquele tom adocicado com ele. – Porque é maluca – responde-lhe Siena bruscamente, recostando-se na sua cadeira e deixando que o sol seque o seu cabelo molhado. – Olha quem fala – riposta Paris. – Não fui eu quem perdeu um filme com o Johnny Depp, em inglês, para ir assistir a um ensaio da horrível banda do Giancarlo. – Eles não são horríveis – responde-lhe Siena. – Estão quase a conseguir um contrato discográfico.
– Sim, e eu sou quase o Papa. – Meninas… – avisa Emily, embora não esteja a prestar grande atenção à conversa. Está a ler o seu artigo daquela semana e a pensar no quão chato soa. Será que alguém se interessa realmente pela receita de torta della nonna? Isto é, alguém tirando a própria nonna. – Mãe. O Raffaello – diz Paris. – O quê? – O Raffaello. Vem ali, a subir a colina. Emily ergue-se da cadeira e vê Raffaello a aproximar-se por entre as oliveiras. Vai afastando para o lado os ramos prateados, como um explorador a abrir caminho pelo meio da selva. Traz um boné de baseball na cabeça e parece cheio de calor e mal-humorado. – Olá – saúda Emily. – Quer um café? – Apenas água, por favor – responde Raffaello, chegando ao terraço. Tira o boné da cabeça e o seu cabelo levanta-se em todas as direções. Tem os braços cheios de arranhões e a T-shirt rasgada. Deixa-se cair no banco de pedra e o Totti vai imediatamente ter com ele, pousando a cabeça no seu colo. – Menino bonito – diz Raffaello, sorrindo a Paris. – Sabe quem é o seu verdadeiro dono… – Ele agora é nosso – replica Paris. – Arranjámos-lhe uma coleira. – E já lhe puseram um nome? – Totti. Por causa do Francesco Totti. – O Totti! Esse amador! Têm alguma coisa contra o Alessandro del Piero? – Esse nome não soa bem para um cão. – Bem visto – admite Raffaello. Emily estende-lhe um copo de água e pergunta: – O que veio fazer aqui tão cedo? Raffaello bebe um gole. – Acho que encontrei alguma coisa – revela. – Junto às grutas. – Esvazia o copo e estende-o para Emily o tornar a encher. – O que é? – pergunta Paris, empolgada. – É um túmulo? – Não me parece – responde-lhe Raffaello. – Mas encontrei uns corpos.
6
L
igeiramente nervosa, Emily está a caminho de Monte Albano, para a noite do clube de leitura. E se Monica a tiver convidado apenas para lhe fazer perguntas a respeito de Paul e do seu casamento fracassado? Qual será a tradução italiana de «sacana infiel»? E se todas elas forem aquele tipo de mulher italiana de uma beleza inacreditável, de unhas perfeitamente arranjadas e roupa de estilistas famosos? As mãos de Emily, agarradas ao volante, ainda estão um pouco sujas depois de ter estado a apanhar azeitonas. E está de calças de ganga (tamanho 42, recorda a si mesma com desespero). Tem a certeza de que nenhuma das outras mulheres do clube sequer sabe que existe o tamanho 42. O apartamento de Monica fica no último andar de um palazzo em pleno centro de Monte Albano. Quando Emily chega ao cimo da sinuosa escadaria, está sem fôlego. – Trouxe-lhe estas flores – lá consegue arquejar, quase esfregando o ramo de rosas meio murchas na cara de Monica (pelo menos lembrou-se de não comprar lírios; em Itália, são um sinal de azar). – Grazie – diz Monica. – Foi muito atencioso da sua parte. – Encaminha Emily para uma comprida sala que parece estar a abarrotar de flores e de antiguidades. Ao fundo, as portas abrem-se para uma pequena varanda com vista para a piazza. A luminosidade de fim de tarde projeta sombras alongadas sobre um piano, um sofá de madeira entalhada, uma mesa cheia de comida vistosa e várias pequenas mesinhas a transbordar de fotografias em molduras de prata. – Os meus nipoti… – explica Monica, ao ver Emily a olhar para as fotografias. – Como é que se diz? Sobrinhos. Emily, a quem nunca passou pela cabeça que Monica pudesse ter qualquer coisa tão comum como sobrinhos, solta pequenas exclamações de admiração. Antonella, que está sentada no sofá, rodeada de almofadas de veludo, comenta: – A Monica é a tia perfeita. Quem me dera que o Andrea tivesse uma tia
como ela. – É como se tivesse – diz Monica, aproximando-se com um tabuleiro cheio de reluzentes crostini. – Lá isso é verdade. É um sortudo. Monica apresenta Emily à quarta mulher que está na sala, e que se chama Lucia. Emily fica aliviada ao constatar que, embora seja muito bonita, Lucia não é uma aterrorizante virago trajada com roupas de alta-costura. Ali está de calças de ganga – embora, pelo aspeto, sejam de um número deprimentemente pequeno. Lucia é arquiteta e está a trabalhar no restauro da igreja de São Francisco, em Assis. – Que desperdício de dinheiro! – exclama Monica, que, obviamente, tem um ódio muito pessoal à Igreja. – Devias era estar a construir hospitais e escolas para as crianças. – Ora, trata-se da nossa herança – defende-se Lucia num tom indulgente. – Todos aqueles belos frescos… – Os frescos! A Itália já tem frescos a mais. Não podemos dar um passo sem encontrar mais uma estúpida pintura da Sagrada Família. – Emily lembra-se de Don Angelo a apoucar o fresco da Anunciação, mas não menciona esta comparação a Monica. – Isso é de facto um problema – admite Lucia. – De cada vez que se fazem escavações para construir os alicerces de um novo edifício, encontra-se mais um lote de vestígios romanos. Isso faz tudo andar mais devagar. «Também se encontram corpos», pensa Emily, recordando a arrepiante descoberta de Raffaello. Por um segundo, tem uma visão dantesca de Itália: um país construído sobre restos humanos – etruscos, romanos, nobres renascentistas e expatriados ingleses a erguerem as suas vangloriosas estruturas, cada vez mais altas, sobre os ossos dos mortos. Em voz alta pergunta: – O que acontece quando se encontram esses vestígios? A obra tem de ser interrompida? – Só se o achado for realmente significativo – responde-lhe Lucia, trincando delicadamente um grissino. – Em geral, limitamo-nos a registar a descoberta e a fotografá-la, e depois construímos por cima. – Emily recorda a reunião no comune e a posição defendida pela soprintendente: deixar tudo como está. – Portanto, todos os nossos parques de estacionamento de vários andares
têm anfiteatros romanos metidos lá por baixo – graceja Antonella. – É onde eles estão melhor – replica Monica. – É uma questão de camadas – explica Lucia. – Se todas as camadas estiverem no devido lugar, os futuros arqueólogos saberão diferenciá-las. Por essa altura, a tecnologia terá evoluído de tal maneira que talvez nem seja necessário proceder a escavações. O livro que estão a ler, uma obra bastante xaroposa intitulada Vai Aonde Te Leva o Coração, não as ocupa por muito tempo. Do ponto de vista de Emily, o melhor do livro é o facto de ser curto e relativamente fácil de ler. Conversam brevemente sobre os temas da obra – o casamento, a infidelidade e a importância da família –, antes de se envolverem numa discussão bem mais absorvente a respeito dos homens, do trabalho e da importância do sexo. Para Emily, a conversa nem sempre é fácil de seguir (é-lhe mais fácil ler do que falar em italiano), mas consegue acenar vigorosamente com a cabeça quando Monica diz que prefere estar sozinha a estar com o homem errado e suspirar solidariamente quando Antonella comenta que não tornou a ter notícias do pai de Andrea desde que lhe anunciou, há dezasseis anos, que estava grávida. Para seu alívio, ninguém lhe faz perguntas a respeito de Paul. Monica está a falar sobre o seu ex-namorado, um pintor que lhe disse que precisava de estar livre para a sua arte, mas que agora é casado e tem quatro filhos. Emily pensa em Michael e recorda como ficou de coração despedaçado ao saber que ele era casado. – Ainda penso no meu antigo… amico speciale – diz então – e há vinte anos que não sei dele. – Vinte anos! – exclama Monica. – Deve ter sido mesmo especial. – Era, de facto – responde-lhe Emily, bebendo um gole de vinho. – Foi o meu primeiro… vocês sabem. Todas elas respondem com um aceno compreensivo. Mais tarde, Emily fica a saber que Lucia é casada mas que o seu marido está a trabalhar em Roma («Por aqui não há empregos»), pelo que as quatro estão unidas no seu estado solitário. – É difícil conhecer alguém novo – comenta Monica –, sobretudo quando se mora numa terriola como esta. E especialmente quando se trabalha com crianças. Semana após semana, os únicos homens que vejo são aquele padre maluco e o homem que me vem trazer a pizza nas sextas à noite.
– Oh, o Gennaro. É um borracho – diz Antonella. – Eu sei – concorda Emily. – O único homem que vi recentemente é o Raffaello, mas só lhe interessa falar sobre gente morta. Visto estar fatigada e um pouco bêbeda, a princípio não se apercebe do impacto do seu comentário. Bebe mais um gole de vinho (tem de parar de beber, ainda tem o regresso a casa pela frente) e, ao erguer o olhar, vê as outras três a fitá-la. – O Raffaello Murello? – pergunta Monica. – O arqueólogo? – Sim. – Quando é que o costumas ver? – Bem, ele anda a fazer escavações ao pé da minha casa – responde Emily, agora na defensiva. – Pensava que isso não tinha sido autorizado – observa Lucia. É um facto e Raffaello já o admitiu. A sua desculpa para ter prosseguido com os trabalhos é que, se fosse ficar à espera da autorização oficial, a raça humana desaparecia antes de ele poder dar início às escavações. – Gostas dele? – pergunta Monica, cheia de curiosidade. Emily pensa por um minuto antes de responder. Recorda como Raffaello surgiu à porta da sua casa, imponente e sinistro, a sua figura delineada contra a tempestade. Recorda-o sentado na sua cozinha, a beber café e a provocar Paris a respeito do Totti. Recorda-o na reunião, isolado no estrado, e na expressão estranhamente vulnerável no seu olhar ao ser atacado por Olimpia. – Sim – responde finalmente. – Gosto dele. – Ele é bastante sexy, tenho de admitir – reconhece Antonella. – Mas toda aquela história com a Chiara faz-me ter algum medo dele. – Quem é a Chiara? – pergunta Emily, embora faça uma ideia. – A mulher dele – responde Monica após uma pausa. – Era de Monte Albano, sabias? Na verdade, era sobrinha da Olimpia, a tua mulher a dias. Namoravam desde pequenos e depois casaram-se, mas o Raffaello passava muito tempo fora, sempre em escavações aqui e ali, entendes…? Bom, a Chiara acabou por adoecer e não saía de casa, até que, por fim, bem… – Morreu – conclui Antonella. – Morreu à fome. – O quê? – exclama Emily. As palavras de Antonella parecem demasiado horripilantes, demasiado góticas para aquele cenário. Não combinam com as antiguidades, com as flores na varanda ou com os pratos cheios de refinados aperitivos. Nos tempos atuais, as pessoas não morrem à fome. Pelo menos
não em Itália. – Só a encontraram passadas várias semanas – conta Monica. – Quando o Raffaello voltou do sítio onde andava a fazer escavações. – Então foi ele quem a encontrou? – Sim. – Deve ter sido horrível. – Sim – concorda Monica, descascando um pêssego com uma expressão absorta. Depois diz: – Mas muitas pessoas culparam-no, sabes. Por ela estar tão doente e ele não ter procurado quem a ajudasse. Alguns até disseram… – Bem, quem disse foi a Olimpia – corrige-a Antonella. – Sim, não se pode dizer que a Olimpia tenha sido uma grande fã do Raffaello ao longo de todos estes anos. Bom, ela disse que ele mantinha a Chiara fechada à chave. – O quê? – torna Emily a exclamar. – A Olimpia gostava muito da Chiara. Bem, ela era uma rapariga encantadora. Lembro-me dela na escola. Em todo o caso, a Olimpia diz, e muitas pessoas acreditam, que o Raffaello levou a Chiara à loucura e depois a trancou em casa e a abandonou à morte. – Porque faria ele uma coisa dessas? – interroga Emily. Monica encolhe os ombros. – Não sei. Talvez tivesse outra mulher. A maioria deles tem. – A maioria dos arqueólogos? – A maioria dos homens. Emily pensa em Paul e na sua fuga para os braços de uma independente e abastada personal trainer de Cirencester. – É espantoso que ele tenha regressado – comenta em inglês. – O Raffaello, quero dizer. – Oh, ele voltou por causa dos Etruscos – diz Monica. – Está obcecado com a descoberta desses vestígios. – Mas na reunião tu estavas do lado dele – observa Emily. – Bem, sim, eu estou sempre do lado da ciência contra a religião – afirma Monica, cheia de orgulho. – Acho que a última coisa de que esta cidade precisa é de mais um amontoado de pedras velhas, mas se aquele velho maluco do Don Angelo está contra, então eu sou inteiramente a favor. – Mas sabes – diz Antonella naquele seu tom de voz suave –, Don Angelo sempre acreditou na versão do Raffaello. Não acha que tenha sido ele a matar
a Chiara. Emily lembra-se de Don Angelo a vir em auxílio de Raffaello na reunião e da gratidão silenciosa no olhar do arqueólogo. – Mas as pessoas parecem acreditar na Olimpia – comenta, recordando os rostos dos habitantes da vila quando Olimpia se pôs de pé para interpelar Raffaello. Lembra-se da mulher no ferragosto: «Ele é um demónio.» – Bom, ela é uma mulher muito influente, sabes. O filho dela é o médico aqui da vila e o pai foi chefe dos guerrilheiros da Resistência durante a guerra. Muita gente respeita a família dela. – A guerra já foi há muito tempo. Monica solta uma gargalhada seca. – Não para os Italianos, acredita. Siena e Paris estão a jogar às cartas. Pela segunda vez em duas semanas, Emily deixou-as a tomar conta de Charlie e é uma sensação bastante agradável. Siena tem os seus próprios motivos para se submeter a uma ocupação tão insípida num sábado à noite, mas, por alguma razão, já nenhuma delas se importa de ficar sozinha ali na villa. A presença do Totti, a ressonar diante da televisão, é uma ajuda, mas, embora nenhuma das duas fale sobre isso, ambas sentem que, se conseguiram sobreviver à noite da tempestade, então são capazes de sobreviver a tudo. Puseram uma cassete de vídeo da série Dad’s Army, mais por hábito do que por outra razão qualquer, mas, visto que ambas já conhecem os episódios de cor e salteado, tiraram o som à televisão e agora estão a jogar às cartas na enorme mesa ao fundo da sala de jantar. Por uma pequena janela com grades conseguem ver o vale escuro, e o candeeiro (moderno e muito caro) projeta uma luz conspirativa sobre a mesa. Paris pousa as suas cartas com modos de jogadora experiente. – Acabei. – Paris! Como é isso possível? – Sou melhor jogadora do que tu – responde Paris, como se fosse evidente. – Jogamos outra vez? – Está bem – aceita Siena, embora já tenha perdido três jogos de seguida. Começa a baralhar as cartas e então apercebe-se de que Charlie pintou de verde o ás de copas. Isso vai ajudá-la a reconhecê-lo, pensa. Seria um fracasso como jogadora profissional.
– Porque é que tu achas que ela já não pede à Olimpia para tomar conta do Charlie? – pergunta à irmã enquanto vai dando as cartas com gestos rápidos. Paris encolhe os ombros. – Bom, ela não gosta muito da Olimpia, não é verdade? E talvez ache que nós as duas já somos suficientemente crescidas para tomar conta do seu queridinho Charlie. Siena faz um sorriso. – O Charlie é tão querido. – Aquilo é o princípio de uma das suas brincadeiras favoritas. – É tão meiguinho. – É um perfeito anjinho. – Não dá trabalho nenhum. – O meu bebé! – É tão perfeitinho! Pronto, ainda usa fraldinha, apesar de já ter três anos, e faz uma birra desgraçada se não lhe fizerem as vontades todas, mas, a sério, é absolutamente perfeito! – Quem diz isto é Paris, sempre com queda para exagerar. – Mas, falando a sério – replica Siena, semicerrando os olhos ao ver as cartas que lhe calharam –, acho que ele está um pouco melhor. – De que maneira? – Bem, não fez birra quando não o deixámos ficar acordado agora à noite. E é muito carinhoso com o Totti. – Se tu o dizes… – responde-lhe Paris, pousando as cartas na mesa com um gesto afetado. – Acabei. * Charlie está deitado na sua cama, mas não está a dormir. Consegue ouvir as irmãs lá em baixo entretidas com um dos seus estúpidos jogos de cartas. Nunca querem fazer coisas interessantes com as cartas – por exemplo, construir casinhas e esconder soldadinhos de plástico por baixo. Só querem dizer palavras estúpidas que inventaram e que acham que são muito inteligentes, como «trunfo», «batota» e «copaspausourosespadas». A mamã está sempre a dizer para elas o ensinarem a jogar, mas Paris diz que ele é demasiado estúpido para aprender. Mas Charlie sabe que não é estúpido. Sabe todo o género de coisas. Sabe que, na verdade, é dele que o Totti gosta
mais, sabe que, por vezes, a mamã chora durante a noite, sabe que Paris esconde chocolates Mars no velho forno e sabe que, naquele preciso instante, está um homem ali em casa a observá-los. Já passa da meia-noite quando Emily sai do apartamento de Monica. Não percebe como se fez tão tarde. Por outro lado, pelo menos assim teve tempo para ficar um pouco mais sóbria. Bebeu três espressi e tem a cabeça a zunir. No vestíbulo, atravancado com ainda mais antiguidades – incluindo um bengaleiro ornamentado que a faz recordar o Vittorio’s –, Emily despede-se de Monica com um abraço. – Foi uma noite ótima. Obrigada. Monica sorri de forma ligeiramente sardónica. – Não tem de quê. Guiando de volta a casa pela noite escura como breu, há muito que Emily não se sentia tão feliz. Finalmente arranjou amigas italianas. Claro que jamais poderão substituir Petra e as suas amigas inglesas (e consegue entender apenas uma palavra em cada sete que elas dizem), mas, ainda assim, é um começo. Apercebe-se da falta que lhe tem feito ter amigas com quem conversar. Os e-mails dão muito jeito, mas estava a faltar-lhe o prazer aconchegante de estar sentada com um grupo de amigas a falar descontraidamente. Chiacchierata – é essa a palavra italiana para «cavaqueira». É maravilhosamente onomatopeica, e adequada também, porque os Italianos passam mais tempo na cavaqueira do que qualquer outro povo que ela conheça. Pelas esquinas, sentados em esplanadas, a impedir o trânsito nos semáforos, debruçados da janela, a gritarem de uma varanda para a outra. Chiacchierata, chiacchierata, chiacchierata. Mas, embora se tenha divertido muito, a conversa também teve os seus momentos sombrios. Ficou perturbada com a história de Raffaello e Chiara. Possui todos os ingredientes mais perturbantes de um conto de fadas. A bela princesa trancada numa torre, a fiar o silêncio e a transformá-lo em ouro10. O maléfico rei, o barão larápio, afastando-se a cavalgar pelas colinas, abandonando-a. Acreditará ela realmente que Raffaello seria capaz de algo assim? Não sabe dizer, apenas sabe que deseja desesperadamente mantê-lo sob uma luz benigna: o salvador de cães, o portador de um tão necessário alívio para a sua família, o único homem em todo o mundo que a considera
organizada. Emily quer muito que ele permaneça do lado dos anjos. Ao cortar para a estrada de terra depara com o amontoado de pedras, agora desviado para a berma da estrada, fantasmagórico sob a sua lona, e então pergunta-se o que andará Raffaello exatamente a fazer ali nas colinas. A escavação parece muito bem organizada, com equipas de estudantes de ar inexperiente a virem diariamente da Universidade de Bolonha, com as suas pás, colheres de pedreiro e rádios portáteis. Quem lhes estará a pagar o serviço?, pergunta-se Emily. Ou estarão a trabalhar ali apenas para «o enriquecimento da sabedoria da humanidade»? A Villa Serena está mergulhada em escuridão, com os grilos a «chiacchieratarem» que nem doidos. Emily detém-se ali um minuto a inspirar o perfume do manjericão, da erva-cidreira e do tomilho, do jardim. Apercebese então de que já se resignou a deixar que as ervas cresçam por onde bem entenderem e de que nunca terá o perfeito jardim de ervas aromáticas. Ao aproximar-se da porta das traseiras, ouve o Totti a ladrar como um doido. Que cão estúpido! De certeza que sabe que é ela. Porque se terá posto a fazer aquilo? – Chiu, Totti! – sussurra, abrindo a porta, que, tal como de costume, está destrancada. O Totti recebe-a em êxtase, saltando-lhe para cima e lambendolhe a face, mas depois afasta-se de imediato pelo corredor, dirigindo-se à porta da frente, onde recomeça a ladrar. – Totti! – Emily corre atrás dele. – Está calado! Vais acordar as crianças. – O pastor-alemão para de ladrar, mas continua a fitar a porta, agora a ganir e com a cabeça inclinada para o lado. – O que foi? – pergunta-lhe Emily. A porta da frente está trancada (é ridículo, ela sabe, tendo em conta que a das traseiras está aberta) e o vestíbulo está às escuras. O escuro mobiliário de madeira parece avultar-se, ameaçador. Emily recorda a noite da tempestade e a sua busca frenética por fósforos. Rapidamente, acende a luz do teto. A casa fica logo com melhor ar e a mobília regressa ao normal, mas o Totti continua a olhar para a porta e a ganir. Exasperada, Emily levanta o pesado trinco de ferro e abre a porta da frente. O Totti sai disparado e desaparece no escuro a ladrar, mas não se vê nada exceto o caminho de acesso, com o seu carro ali estacionado, e os ciprestes – apenas negro sobre negro. – Estás a ver, Totti? – diz Emily, saindo de casa para chamar o cão de volta. – Não há nada aqui fora. – É só quando dá meia-volta para regressar ao interior da casa que vê a caveira nos degraus da entrada.
10 Referência à princesa do conto dos irmãos Grimm «rumpelstilzchen». (N. do T.)
7
N
essa noite, Emily sonha com Michael – facto que, por si só, nada tem de surpreendente; depois de terem rompido o namoro, ela sonhou com ele todas as noites durante quase um ano. Eram sonhos horríveis e dilacerantes, em que eles tinham reatado o namoro, e então Emily acordava, envolta numa aura de felicidade (fora um engano, apenas isso!), e sentia a realidade regressar aos poucos, com a primeira luz fria da madrugada. Desta vez, porém, acorda sentindo-se estranhamente assustada. O quarto parece-lhe frio e vazio, e o sol da manhã projeta agressivos feixes de luz sobre as paredes brancas. Uma mosca – uma das últimas moscas do verão – zumbe, indefesa, junto às vigas do telhado. Tudo está como deve ser. Mas então porque se sente ela tão nervosa, como se estivesse à espera de alguma coisa? Os sinos da igreja começam a tocar do outro lado do vale, sobressaltando-a. Claro, é domingo. Lentamente, começa a recordar os acontecimentos da noite anterior. A reunião do clube de leitura, o prazer de conversar e de rir com outras mulheres, a viagem de carro de volta a casa, a casa sossegada ao luar, o Totti a ladrar à porta, a caveira nos degraus da entrada. Por momentos, não soube o que fazer. Não queria trazer aquela coisa para dentro de casa e não queria que as crianças a encontrassem de manhã. Por fim, agarrou na caveira e levou-a para o terraço, onde havia um grelhador tapado com um oleado. O grelhador – preto, reluzente e caro – foi comprado por Paul, mas Emily nunca o usou. Ali fora há um forno para pizze que é bem mais fácil de usar e que não é necessário estar sempre a limpar e a olear. Assim, Emily agarrou na caveira (era surpreendentemente leve), colocou-a sobre a grelha, cobriu-a com o oleado e regressou à casa, com o Totti alegremente a seu lado. Quem poderá ter posto aquilo ali? Não estava nos degraus quando ela saiu para o clube de leitura, caso contrário tê-la-ia visto ao entrar no carro. Resta a hipótese verdadeiramente aterrorizante de alguém ter vindo até à villa já de noite, com as crianças sozinhas ali dentro, e ter deixado a caveira nos
degraus. Porquê? Terá sido um aviso? E, sendo esse o caso, qual será o objetivo? De repente, Emily lembra-se de Raffaello. Ele acha que encontrou corpos. Estará a referir-se a esqueletos? Fará a caveira parte dessa recente e arrepiante descoberta, ou será de algum etrusco? Emily não imagina como se poderá saber se uma ossada é antiga ou recente. É bem verdade que a caveira, a reluzir na escuridão, lhe pareceu limpa e branca. Deverá contar o que aconteceu a Raffaello? Consegue ouvir nitidamente a voz de Monica dentro da sua cabeça: «O Raffaello levou-a à loucura e depois trancou-a em casa e abandonou-a à morte.» Até que ponto confia em Raffaello? A tremer, Emily levanta-se e vai tomar um duche quente. Enquanto está no chuveiro, Charlie entra de rompante na casa de banho e exige tomar duche com ela. Segurando o seu pequeno corpo molhado e escorregadio sob o jato de água, Emily pensa: quem a odiará o suficiente para tentar pregar-lhe, a ela e aos seus filhos, um susto de morte? Olimpia? É certo que aquela mulher a detesta, mas não lhe parece que quisesse assustar o seu adorado Charlie. E porquê uma caveira? Terá algum significado sinistro que ela desconhece? Paul era um grande fã da trilogia O Padrinho, e Emily lembra-se de uma personagem num dos filmes receber um embrulho com um peixe morto – uma mensagem que aparentemente significava que um mafioso qualquer estava a «dormir com os peixes». Será a caveira uma mensagem a anunciar que ela está prestes a morrer? «És pó e em pó te tornarás?» «Que disparate», pensa Emily, secando Charlie com movimentos vigorosos; está a deixar-se levar por sinistras fantasias mafiosas. Afinal de contas, estão na Toscana e não na Sicília. O mais provável é aquilo ter sido uma partida a propósito dos trabalhos arqueológicos em curso na sua propriedade. Não uma partida especialmente engraçada, pensa Emily com irritação, descendo ao rés do chão com Charlie, mas, ainda assim, uma partida. Dá o pequeno-almoço ao filho, e depois, enquanto ele está entretido a brincar com os seus carrinhos, sai apressadamente para o terraço. As filhas ainda estão a dormir e o Totti anda pelo olival a perseguir coelhos. Está uma manhã bonita, calma e dourada; ainda é visível um resto de névoa a cobrir o vale e sente-se no ar aquela frescura que anuncia o outono. Os sinos tocam alegremente enquanto Emily se acerca do sinistro oleado verde. Talvez já ali não esteja. Talvez tudo aquilo tenha sido apenas um sonho. Muito devagar, começa a erguer o canto do oleado.
– Mrs. Robertson! Com um grito, Emily larga o oleado. Raffaello está parado sob as videiras, com um sorriso de orelha a orelha e com o Totti a seu lado. – Que reação foi essa? – pergunta. – Tem a consciência pesada? – Assustou-me, apenas isso – responde-lhe Emily, tentando recuperar o fôlego. – Julguei que já estávamos todos de acordo quanto a eu não ser um homicida maníaco. Emily ri-se alto. – Não seja ridículo. Só fiquei surpreendida por o ver por aqui tão cedo. Raffaello consulta o relógio. – Não é assim tão cedo. Desde as oito que estou a trabalhar. – Hoje é domingo – observa Emily. – Dia de descanso e tudo o mais. – Se quer saber a minha opinião, dá-se demasiada importância ao descanso – replica o arqueólogo. – E agora vai dizer-me o que tem debaixo desse oleado? Com um encolher de ombros, Emily puxa o oleado, revelando a caveira, que sorri maleficamente sob o sol da manhã. – Dio mio – sussurra Raffaello. – Onde arranjou isso? – Alguém a deixou à minha porta ontem à noite. – Meu Deus. – O arqueólogo aproxima-se e inspeciona demoradamente a caveira; depois, agarra no objeto e roda-o nas mãos. Parece um Hamlet italiano e cabeludo. – É etrusca? – pergunta Emily. Raffaello ri-se. – Etrusca? Deus do Céu, não! É moderna. Tem cem anos, no máximo. Emily sente-se novamente maravilhada com a definição de «moderno» do arqueólogo. – Então é dos… você sabe… dos outros corpos? Daqueles que encontrou? Raffaello acena negativamente. – Como é que sabe? Já foi ver? Em jeito de resposta, Raffaello ergue a caveira para ela ver. Carimbado na base, em algarismos muito pequenos, vê-se um número: «192.» – O que é isso? – pergunta Emily, estremecendo ao pensar nos prisioneiros dos campos de concentração, com um número tatuado no braço. – Julgo que quer dizer que isto é um objeto de estudo. Pode ter vindo de
uma faculdade de Medicina ou de um museu. Costumam numerar os vários ossos que fazem parte dos esqueletos, sabe? – Mas como é que isso veio parar aqui?! – pergunta Emily, quase a gritar. – Não sei – responde-lhe Raffaello –, mas tenho uma ideia. * É o final da tarde. Emily está sentada no terraço, de costas para o oleado, a tentar redigir mais uma das suas «Cartas da Toscana». «Aos domingos de manhã, na Villa Serena…», escreve, parando depois para beber um gole de água. Deus do Céu, como se sente desidratada! Deve ser de todos os espressi que bebeu na noite anterior, para além de todo vinho. Por baixo do terraço, consegue ouvir Charlie a brincar com os seus animais de peluche. Está a fazer o tigre comer o Mogli, algo que ela considera deveras preocupante. Siena saiu com Giancarlo e Paris foi dar um passeio com o Totti. «Aos domingos de manhã, na Villa Serena», escreve, «ouvem-se os sinos a tocar do outro lado do vale…» «E quase me racham a cabeça em dois porque estou de ressaca», acrescenta sarcasticamente em pensamento. O que diabo poderá ela dizer sobre os domingos em Itália? Que os sinos tocam o dia inteiro, que a cooperativa está fechada, que o pão se acaba e que os seus filhos amuam porque não podem comer sanduíches de Marmite? Não, nada disso é lírico que chegue. Terá ela mencionado o pôr do sol ultimamente? Já vai sendo altura de tornar a descrever um belo pôr do sol. – Mamã! – Charlie surge de repente ao lado dela, com as pernas bronzeadas à mostra e o cabelo despenteado. Emily baixa-se para o abraçar, mas ele esquiva-se habilmente. – Mamã! Estou chateado! – Porque não brincas mais um bocadinho com os teus animais? – Já foram todos comidos. Pelo tigre. – Oh, que horror. – Não é nada, eles gostam de ser comidos. Com um suspiro, Emily fecha o seu computador portátil. – E se fôssemos dar um passeio? – sugere. – Queres ir dar de comer às galinhas? – Anna-Luisa deixa as suas galinhas andarem à solta pelo jardim, e por vezes até se empoleiram nas oliveiras, como deselegantes aves canoras. Também tem uma manada de vacas brancas, espécie pela qual as Montanhas da Lua são afamadas. Emily acalenta continuamente a esperança de Charlie
jamais lhe perguntar o que é que acontece a todos aqueles bezerrinhos brancos tão adoráveis. – Está bem – acede Charlie, algo contrariado. Emily bebe mais um pouco de água e agarra em algumas côdeas de pão para dar às galinhas. Charlie põe o seu capacete de polícia e diz que é um astronauta. Juntos, descem o caminho inclinado e pedregoso que conduz à quinta de Romano e de Anna-Luisa. – Mamã – diz Charlie, conversador, enquanto descem a colina, revolvendo as pedras soltas com os pés –, acreditas na Fada Dentinho? Emily olha para ele. Charlie perdeu recentemente um dente, e ela deixoulhe, debaixo da almofada, um euro e um bilhetinho das fadas. Será que Paris lhe disse que a Fada Dentinho não existe? Por vezes, a sua filha é demasiado maldosa. – Claro que acredito – apressa-se Emily a dizer. – Como é que ela entra em nossa casa? – Por magia, claro. – E fica a ver-me dormir? Emily para. – Como assim? – pergunta. Charlie mostra-se tranquilo. – Nada. Da próxima vez será que posso receber dois euros? Emily pensa na beleza e na morte, na caveira sob a pele. Será que os moradores locais lhe guardam rancor por ela viver nesta casa tão bela enquanto eles vivem nos minúsculos apartamentos de Monte Albano? Mas sabe que, para a maioria dos italianos, um apartamento moderno vale mais do que uma centena de ville a caírem aos bocados. Os Italianos gostam muito de viver em comunidade (até os Antigos Romanos viviam em edifícios de apartamentos com três andares) e de casas de banho modernas. Não consegue imaginar que alguém a possa invejar, atendendo a que foi abandonada pelo marido e que está obviamente a ter dificuldade em cuidar dos filhos sozinha. Será que a caveira foi outra espécie de aviso? Et in Arcadia ego. Também aqui há morte. Ao chegarem à cancela da quinta, Emily escuta vozes vindas do lado de lá da sebe de alfazemas. – Tens de ter cuidado – diz alguém. – Dá-lhe só um bocadinho de comida de cada vez.
– Eu dou-lhe a minha comida – responde outra voz. – Gorda já eu sou. – É Paris. Paris e Raffaello. Segue-se uma pausa, e depois Raffaello diz, numa voz que Emily nunca o ouviu usar antes: – Paris, essa conversa é perigosa. Tens de te alimentar e tens de alimentar o teu cão. Compreendes? Paris resmunga qualquer coisa em resposta, e depois o Totti ladra e Charlie corre pela quinta adentro, gritando: – O meu cãozinho! O meu cãozinho! Paris e Raffaello estão de pé junto a uma vala impecavelmente escavada a toda a extensão da sebe de alfazemas. Raffaello segura uma colher de pedreiro em forma de diamante e Paris tem na mão uma pequena pedra. O Totti segura um osso nos dentes; deve ser por isso que eles estavam a discutir os seus hábitos alimentares. – Tem a certeza de que aquilo não é um osso etrusco? – pergunta Emily num tom animado. Em sincronia, Raffaello e Paris erguem o olhar para o céu. – Aquilo é um osso da pata de uma vaca – responde Raffaello. – Não lhe há de fazer mal. – Mãe – diz Paris –, o Raffaello diz que temos que alimentar muitas vezes o Totti e dar-lhe poucochinho de cada vez. – Em vez de lhe darmos muita comida – diz Emily. – É capaz de ter razão. – Geralmente tenho – diz Raffaello. Emily ignora-o. – Vais atirar essa pedra para o Totti a ir buscar? – pergunta Emily à filha. – Isto não é uma pedra – esclarece Paris num tom compadecido. – É uma ponta de seta. Raffaello confirma a informação meneando a cabeça. – Provavelmente é do Neolítico. Há exemplares de pedra trabalhada dispersos por todas estas colinas. Charlie está a tentar tirar o osso ao Totti. – Mamããã – choraminga –, quero ir à quinta. Emily entrega-lhe o saco com côdeas. – Vai com a Paris – diz. De repente, Paris abandona a sua expressão de enfado. – Anda! – grita para o irmão. – Vamos fazer uma corrida! Enquanto Paris, Charlie e o Totti correm pela encosta abaixo – o cão a
ladrar e as duas crianças de cabelos a esvoaçar ao vento –, Raffaello sorri para Emily. – Encontrou mais alguma caveira? – pergunta. – Não – responde-lhe Emily. – Não me vai dizer quem é que acha que a deixou à minha porta? – Não até ter a certeza – diz Raffaello. – Mas não se preocupe; não acho que corra algum perigo. – Para si é fácil dizê-lo – replica Emily, amuada, fazendo o pé deslizar pela borda da vala. Raffaello dá uma gargalhada. – Eu protegê-la-ei, Mrs. Robertson. Faz-se silêncio por breves instantes e Emily apressa-se a dizer: – Já descobriu mais alguma coisa a respeito dos seus esqueletos? Dos modernos, quero dizer. – Não – responde-lhe Raffaello, agarrando na ponta de seta, que Paris, com a pressa, deixou cair ao chão. – Não quero prosseguir com as escavações naquela área até descobrir mais a respeito dos corpos. Mas quero que sejam examinados por um perito, para as várias camadas do solo se manterem intactas. Para isso, preciso da ajuda de um arqueólogo forense. Vou amanhã a Badia Tedalda falar com um. Emily nunca tinha ouvido falar em «arqueólogos forenses». Fica com a impressão de que tal especialidade combina duas disciplinas igualmente desagradáveis: abrir corpos e desenterrar o passado. Raffaello está a olhar para lá dela, para o fundo do vale. Conseguem ouvir as vozes das crianças pontuadas pelos resmungos toscanos de Romano. – Pode vir comigo, se quiser – diz Raffaello subitamente. – A Badia Tedalda? – Sim. É uma viagem agradável. – O arqueólogo sorri. – Ao coração das Montanhas da Lua. – E as crianças? – Podemos ir até lá e estar de volta antes de o Charlie sair da escola. Emily não sabe o que dizer. Parece-lhe que uma viagem às montanhas fará aquela relação passar a outro nível – longe da segurança da Villa Serena e das piadas a respeito do cão. Em vez de lhe responder, opta por fazer uma pergunta em que ultimamente tem pensado. – Sabe – diz –, nunca perguntei isto a ninguém: porque é que lhes chamam
Montanhas da Lua? – Bem – começa Raffaello a responder lentamente –, a explicação mais usual é que a rocha branca que há nas montanhas brilha ao luar, fazendo a encosta parecer-se com a superfície da Lua. Mas há outra versão. – Faz uma pausa. – Qual é? – Há muitos séculos, uma condessa costumava encontrar-se com o seu amante nas montanhas. Encontravam-se ao luar. E então, uma noite, ele não apareceu. Ela saltou de lá e morreu. – Suicidou-se? – Sim. Ficam os dois em silêncio. Desconfortável, Emily começa a pensar em portas trancadas e na princesa a morrer na sua torre. Para quebrar a tensão, diz-lhe: – Obrigada pelo que disse à Paris. – O quê? – A respeito de comer. Preocupo-me com ela. Está tão magra. – E faz bem em preocupar-se – responde Raffaello sem rodeios. – Ela está magra de mais. Longe de ficar ofendida, Emily sente-se muito aliviada. Está tão acostumada a que pessoas como Petra lhe digam que Paris está ótima e que é naturalmente magra, e a sentir-se embaraçada, como se quisesse compensar o seu aumento de peso criticando Paris, que é extremamente reconfortante ouvir alguém dizer-lhe que sim, que ela tem razão ao sentir-se preocupada. Sem olhar para Emily, e com o rosto mergulhado na sombra, Raffaello prossegue: – E também está com um problema de autoestima. Como lhe falta confiança, exerce o único poder de que dispõe: recusa-se a comer. Emily fita-o, boquiaberta. É a segunda vez que ele a surpreende com tiradas típicas de uma revista feminina. – O que é que sabe a respeito dessas coisas? – interroga. A pergunta soa mais rude do que ela pretendia. Com um encolher de ombros, Raffaello volta-se e encara-a. – A minha mulher morreu de anorexia – revela. – Bem, então o que me diz a respeito da viagem às montanhas? Emily olha-o demoradamente. Consegue ouvir Paris e Charlie a
regressarem, discutindo sem grande convicção enquanto sobem a colina. Ao longe, os sinos começam novamente a tocar. – Sim – responde. – Gostava de ir.
8 Cartas da Toscana por Emily Robertson
A
os domingos de manhã, na Villa Serena, ouvem-se os sinos a tocar do outro lado do vale, e sinto-os ressoar na minha cabeça porque estou de ressaca. Ontem à noite estive acordada até tarde, na companhia de uma espécie que acabo de conhecer: mulheres italianas que não são mamma nem madona. São mulheres com profissões: duas delas são professoras e a outra é arquiteta. As três são solteiras (por escolha ou devido às circunstâncias), e, apesar de adorarem o seu trabalho e a sua família, também gostavam de um dia conhecer um homem. Suponho que se pode dizer que são minhas amigas. Como fiquei acordada até tarde, a conversar e a beber vinho com estas amigas, pensei na minha vida e nas escolhas que fiz. Queria vir viver para Itália; era um sonho meu e de mais ninguém. Julguei que aqui, neste lugar tão belo, teria uma vida perfeita, que a minha família seria feliz e muito unida; que eu e o meu marido redescobriríamos o nosso casamento. Em vez disso, a minha filha do meio, imersa no verdadeiro esplendor culinário que é Itália, está a braços com uma anorexia. Não chega a pesar quarenta quilos e o seu crânio é visível sob a pele. Tem uma penugem muito fina e clarinha nos braços – a última e desesperada tentativa do seu corpo para conservar o calor. Recusa-se a ir ao médico, mas lá consente em comer qualquer coisa, por pouco que seja, sempre que o cão come. E o nosso cão come muito. A minha filha mais velha está apaixonada por um traste. Talvez esta palavra soe tipicamente inglesa11, mas o género é universal. Tem um olhar sabedor e um sorriso matreiro, e eu sei que ele quer dormir com ela. Será que a minha filha lhe vai resistir? Um olhar sabedor e um sorriso matreiro são bastante atrativos quando se tem dezasseis anos. Será ela capaz de ver como ele realmente é? Claro que não. Eu não fui. E vocês?
O meu filho mais pequeno é mimado até mais não. Ainda só tem três anos, mas já consegue fazer birras em duas línguas. Está sempre a chorar pela nossa mulher a dias, a monstruosa Olimpia, mas eu não a deixo tomar conta dele porque ela me odeia. E eu? Sento-me no terraço e tento escrever a minha coluna. Tenho quarenta e um anos e doze quilos a mais. O meu marido deixou-me por uma mulher mais nova e não tenho dinheiro. Os meus únicos bens são esta casa, um Alfa Romeo cinzento e uma súbita crença na minha capacidade para sair desta alhada. E as minhas amigas. 11 «Rotter», no original. (N. do E.)
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uanto mais vão subindo pelas montanhas, mais avançado se mostra o outono. Enquanto o jipe já velhote de Raffaello percorre a estrada irregular que leva a Badia Tedalda, Emily nota que as folhas nas árvores vão ficando mais amarelas a cada curva sinuosa da estrada. Por fim, chegam a uma avenida de árvores de folhagem completamente amarela; é como se tivessem viajado não só no espaço, mas também no tempo. Emily distrai-se a olhar para os mesmos três sinais na beira da estrada, que surgem de poucos em poucos quilómetros. O primeiro é aquele que se assemelha a um par de enormes e pneumáticos seios, e que indica a proximidade de colinas. Depois há o outro com um floco de neve muito festivo e natalício, e Emily calcula que aquilo só poderá ser um aviso de nevões no inverno. Por fim, há um encantador desenho de um veado, que parece estar a saltar-lhes alegremente ao caminho. Seios, floco de neve, veado; as três imagens acabam por se fundir na sua cabeça, formando um monstruoso veado com mamas de silicone e coberto de neve. Emily fecha os olhos. Sente os ouvidos tapados; devem estar a uma grande altitude. – Já estamos a chegar? – pergunta, soando como uma paródia dos seus filhos. Raffaello olha-a de relance. – Mais dez minutos. Esta estrada é muito lenta. – Visto que ele guia como se fosse Michael Schumacher depois de ter tomado estimulantes, ela parte do princípio de que isto se trata apenas de força de expressão. As montanhas estão cobertas de árvores, vislumbrando-se ocasionalmente o reverberar de rochas brancas. Aqui e ali, Emily avista o solo muito escuro de terrenos cultivados, ou um rebanho de vacas brancas a pastar numa encosta com uma inclinação vertiginosa. Mais abaixo, consegue ver o lago, um afluente do Tibre, que vai de Sansepulcro a Pieve Santo Stefano. – Parece uma região selvagem – comenta ela com Raffaello. – Quase consigo imaginar bandidos escondidos na floresta. Raffaello ri-se.
– Isto por aqui é território de bandidos, sem dúvida. – Depois acrescenta: – Durante a guerra, chamavam a estas colinas a linea gotica, a última linha de defesa entre os guerrilheiros e os nazis. Diz-se que havia um guerrilheiro escondido por trás de cada árvore. A linea gotica, a linha gótica. O nome desperta em Emily uma estranha sensação, um misto de medo e de fascínio. – Houve muitos combates por aqui? – pergunta. – Sim – responde-lhe Raffaello, acelerando para ultrapassar outro veículo antes de chegarem à curva. – Os guerrilheiros contra os nazis, os bersaglieri contra os guerrilheiros, por vezes guerrilheiros contra guerrilheiros. Entretanto, Emily fechou os olhos para não ver a estrada. Quando os torna a abrir, estão a aproximar-se de uma vila situada mesmo no cimo da colina. Os seios, o floco de neve e o veado tornam a passar velozmente por eles. – Quem eram os bersaglieri? – Tropa especial italiana. Mantiveram-se resolutamente pró-fascismo. Os outros não. O meu avô era comunista, tinha combatido em Espanha. Pode imaginar o quanto isto tornava a minha família popular. Emily já se tinha esquecido por completo de que Raffaello nasceu em Monte Albano. O seu sotaque americano, o jargão arqueológico, aquela sua expressão divertida e abstraída – tudo isso, combinado, fá-lo parecer um forasteiro. Alguém que surgiu do nada. Como se trazido por um relâmpago. – O que aconteceu à sua família? – pergunta Emily. – Bem, os meus bisavôs eram donos de uma trattoria… – O quê? Raffaello fita-a, surpreendido. – Um restaurante. O que tem isso de tão estranho? A princípio, os Alemães costumavam ir lá comer todas as noites. Eram muito amistosos, apesar de saberem que os proprietários tinham um filho comunista. Deixavam sempre gorjetas muito generosas. Sabe, os Alemães tinham… monete di guerra… dinheiro de guerra, que só podia ser gasto em Itália. Por isso, eram muito generosos com as gorjetas. Mas então esses Alemães foram-se embora e chegaram as SS. Nessa altura, tudo mudou. – O que aconteceu? – Muitas pessoas deixaram a vila e foram esconder-se nas colinas. – Com um gesto, Raffaello indica a floresta que se ergue, escura e impenetrável, de ambos os lados da estrada.
– E onde é que se escondiam? – Bem, algumas pessoas tinham pavilhões de caça, ou apenas abrigos para os animais. Outras ficaram a viver em grutas. – A sério? Raffaello ri-se. – Sim, a sério. Eram tempos desesperados. Podia-se ser executado por dar alojamento a um guerrilheiro. Na verdade, podia-se ser executado por tudo e mais alguma coisa. Certa manhã, as SS juntaram todos os jovens, incluindo os dois irmãos mais novos do meu avô. Queriam executá-los na praça central da vila. Mas então receberam ordens de cima e libertaram-nos. Era assim mesmo: num dia os Alemães podiam estar a comer e a beber com os moradores da vila e no seguinte matavam-nos a tiro. – O que aconteceu aos irmãos do seu avô? – Um deles juntou-se à divisão de Chichero, o melhor grupo de guerrilheiros em todas estas colinas. Foi morto na insurreição de Génova. O outro tratou de não levantar ondas e acabou por enriquecer. – Nunca ouvi falar na insurreição de Génova. Raffaello dá uma gargalhada. – Isso não me surpreende. A História é escrita pelos vencedores e os Ingleses gostam especialmente de apagar todo e qualquer exemplo de heroísmo por parte dos Italianos. Emily tenta lembrar-se de algum argumento com que refutar aquela acusação, mas, ao pensar nos Italianos durante a guerra, apenas lhe ocorrem imagens de prisioneiros de guerra de olhar triste, na ilha de Man, ou então a de Mussolini pendurado de cabeça para baixo ao lado da sua amante. Relativamente ao exército italiano, apenas se consegue lembrar daquela velha anedota sobre tanques em que todas as mudanças são de marcha-atrás. Não lhe parece que deva partilhar essa piada com Raffaello. – E o seu avô? – pergunta. – Foi morto em Espanha. O meu pai não chegou a conhecê-lo. – Os seus pais ainda são vivos? – Não. O meu pai morreu há mais ou menos cinco anos, e a minha mãe no ano passado. E os seus pais? – Oh, ainda são vivos. Vivem em Inglaterra, numa pequena vila chamada Addlestone. – É uma mulher de sorte.
– O quê? Oh, sim, suponho que sou. – Emily nunca tinha pensado nisso assim. No seu mundo, os pais ainda estão vivos, distraem-se a ir ao bingo ou em viagens de cruzeiro; talvez até tenham um apartamento em regime de time-sharing em Espanha. Parece-lhe que essa realidade está a milhões de quilómetros dos guerrilheiros a combater desesperadamente nas colinas, de fascistas contra comunistas ou da Guerra Civil de Espanha. O pai do seu pai combateu na guerra – Emily julga que ele chegou a participar na Batalha da Normandia –, mas isso parece um acontecimento pertencente aos livros de História e não à vida real. Recorda-se vagamente de uma fotografia do seu avô com mais alguns soldados, todos de pé junto a um tanque alemão capturado, e de lhe terem contado que ele tinha um fragmento de granada alojado no joelho («Subiu-lhe até ao estômago», costumava dizer a sua avó, «e ficou alojado no intestino delgado.») Chegam à vila e Raffaello estaciona obliquamente o jipe na praça central. Veem-se por ali algumas lojas e um café com esplanada. Os três velhotes que estão sentados em silêncio às mesas fitam-nos com um ar desconfiado. No vão da entrada de uma casa em frente, um mulher depena uma galinha. – E se bebêssemos um café? – sugere Emily. – Um café – imita-a Raffaello. – Só os Ingleses é que dizem isso. «Vamos tomar um cappuccino.» – Entoa esta última frase numa voz aguda e com um sotaque inglês muito afetado. Emily considera aquele comentário bastante ofensivo. Passam pelo café num passo resoluto (os três homens seguem-nos com o olhar, como se hipnotizados) e dirigem-se para um edifício moderno com um letreiro onde se lê «Informações». Lá dentro há um pequeno posto de turismo com as paredes cheias de mapas emoldurados e de fotografias; à entrada foi colocado um lobo empalhado. Raffaello tem uma breve e ininteligível conversa com a rapariga por trás do balcão e em seguida ela sai da sala. Raffaello volta-se para Emily. – Foi chamar a Stine. Está na biblioteca. – A Stine? – A minha amiga. A arqueóloga forense. Stine é uma bela loura dinamarquesa de um metro e oitenta. Emily, que estava à espera de um homem barbudo e de meia-idade, fica muda de choque por alguns instantes.
– É um prazer conhecê-la – diz Stine em inglês, estendendo a mão. – Você é a senhora dos esqueletos. Emily não gosta muito deste epíteto, mas consegue sorrir e cumprimentar a arqueóloga. – Em rigor, os esqueletos não são meus – esclarece. – Mas julguei que estavam na sua propriedade – observa Stine. Emily volta-se para Raffaello, que desvia o olhar. Ainda não se tinha apercebido de que, oficialmente, a área da colina com as grutas e os esqueletos faz parte da sua propriedade. Interroga-se se terá sido por esse motivo que Raffaello quis que ela viesse consigo. – Estão nos limites da sua propriedade – apressa-se Raffaello a explicar. Depois, voltando-se para Stine, diz: – Acho que são modernos. É a primeira vez que Emily o ouve dizer aquilo. – Como é que sabes? – pergunta Stine. Raffaello olha para ela. – Não os desenterrei, mas havia uma maxila. Acho que vi um chumbo num dente. – Mas então têm de ser muito modernos – diz Emily, recordando a sua caveira, a que tinha o número 192, e que Raffaello levou consigo. Não é de admirar que ele tivesse concluído tão rapidamente que aquilo não tinha nada a ver com os esqueletos dele. – Não devia ter chamado a polícia? Raffaello recusa aquela sugestão com um encolher de ombros. – Quis que a Stine os visse primeiro. Não quero o local contaminado. Emily compreende que ele está a pensar nos seus etruscos. Na sua mente, têm prioridade em relação aos mortos mais recentes. Mas então Raffaello diz: – Há outra coisa: parece-me que foram enterrados. Stine sobressalta-se, mas Emily não compreende a importância daquele facto. – Como assim? – pergunta. – Acho que foram enterrados deliberadamente – explica Raffaello. – Aquilo não é uma sepultura e não há sinais de um ritual fúnebre, mas não acho que tenham morrido de causas naturais. Os seus corpos foram colocados numa posição específica e foram cobertos de terra. E a vegetação naquela porção de terreno é diferente. – O que quer isso dizer? É Stine a responder-lhe:
– Uma sepultura é uma perturbação – explica no seu inglês perfeito e cadenciado. – Algumas pessoas dizem que é como uma pegada. Quando abrimos uma sepultura, deslocamos as várias camadas, a terra, a argila e por aí fora. E, quando tornamos a fechar a sepultura, as camadas misturam-se e a vegetação cresce de forma diferente. As urtigas, por exemplo, atingem maior altura. – É por isso que eu preciso da Stine – explica Raffaello. – Esta é a sua especialidade. – Está a dizer que é possível que as pessoas nessas sepulturas possam ter sido assassinadas? – interroga Emily. – Exatamente – responde-lhe Raffaello com um sorriso. Por um segundo, parece exatamente igual ao lobo que está na entrada do edifício. Paris está sentada na sala de aula, a ler. Como é uma aula de Inglês, e ela não tem a menor necessidade de aprender inglês, é-lhe permitido a ler em silêncio. Devia estar a ler um livro de Primo Levi, mas em vez disso está a reler O Monte dos Vendavais. Adora aquela atmosfera fria e desolada, tipicamente inglesa. No entanto, imagina-se como Heathcliff, e não como Catherine; costuma identificar-se sempre com as personagens masculinas. Durante anos teve uma identidade secreta: Renny, o herói dos livros da saga Jalna12. Antes disso foi William Brown13. Paris afunda-se na sua cadeira, de tal forma que só a sua cabeça é visível acima do tampo da secretária. Está desconfortável e sente uma estranha dor persistente no estômago. É um pouco como aquelas dores que quase chegam a dar prazer – como as do período, às vezes. No entanto, já passaram seis meses desde a última vez em que lhe veio o período. Não contou isto à mãe, embora a despreze por ela não ter reparado. Se lhe contasse, talvez a mãe fizesse aquela sua horrível cara de preocupação e lhe perguntasse se ela estaria grávida. Ao imaginar isto, Paris sente um arrepio na espinha. Não se consegue imaginar a alguma vez, jamais, fazer sexo. Para os homens – Heathcliff ou Renny, por exemplo – não há problema: podem fazer sexo de uma maneira brincalhona e exuberante, como se fosse um desporto. É como se estivessem a andar a cavalo ou a fazer canoagem. Já para as mulheres, o sexo parece mais uma atividade para se fazer dentro de casa, uma experiência desagradável, húmida e embaraçosa, pejada de conotações relativas à perda
de algo. Lembra-se de ter lido frases escrevinhadas na porta da casa de banho da sua escola em Londres. «A virgindade é como um balão, basta uma estocada e adeusinho.» É claro que os rapazes também perdem a virgindade. Mas, para os homens, não se trata de perder alguma coisa. É antes uma questão de conquistar, é um feito, mais uma marca na coluna da cama e toda essa conversa. Paris jamais será uma marca na coluna da cama seja de quem for. Será que Siena já dormiu com Giancarlo? Paris espera que não. Não que se importe minimamente com a virgindade da irmã, ou que deseje negar a Giancarlo qualquer espécie de triunfo. Já viu aquela expressão no rosto dele quando está com Siena. É como se dissesse: «Olhem para mim, sou um espertalhão, arranjei uma namorada inglesa e loura.» Se conseguir convencer a sua namorada inglesa e loura a dormir com ele, tornar-se-á ainda mais insuportável. «Estás a ficar muita gira», disse-lhe ele há dias. Palhaço. «Quem me dera poder dizer o mesmo a teu respeito», foi o que ela lhe respondeu. Torna a mudar de posição na cadeira. Quem lhe dera estar em casa, deitada de barriga para baixo. Mas acontece que, quando regressar a casa, vai ter de levar o Totti a passear. A mãe vai estar demasiado cansada depois da sua misteriosa ida «ao coração das montanhas» com Raffaello. Falou daquilo como se se tratasse de uma expedição polar, isto apesar de as montanhas não serem mais que colinas grandes (embora fiquem cobertas de neve no inverno, Paris tem de admitir). Não se importa realmente de levar o Totti a passear. O pastor-alemão é sempre tão entusiástico, saltando para ela mal a vê entrar e segurando a trela nos dentes como se fosse um troféu; além disso, é uma companhia excelente, melhor do que qualquer ser humano que ela conheça. O pior é que tem de lhe dar comida antes de saírem e prometeu à mãe que nessas alturas também ela comerá alguma coisa; se não o fizer, a mãe começa a falar sem parar de transtornos alimentares, de médicos e de outras coisas desse género, e, sempre que pensa nesses assuntos, Paris fica furiosa e agressiva. É tudo tão embaraçoso. Dolorosamente embaraçoso. Consegue sentir a dor horrível e nauseante de tudo aquilo às voltas no seu estômago. Odeia falar sobre aquele assunto. No entanto, foi o que prometeu, e vai cumprir o prometido. Paris orgulha-se de cumprir sempre as suas promessas. Talvez possa comer apenas uma fatia de melão ou algo assim. Tenta concentrar-se na morte de Catherine. Na verdade, aquela personagem
é um bocado irritante. Nos livros, as raparigas estão sempre a morrer de coisas estúpidas como resfriados e tosses (chamam-lhe tísica, mas não passa de uma tosse feia). O mesmo não se passa com os homens; esses nunca morrem de coisas assim. Com um suspiro, Paris cruza as pernas por baixo da cadeira, tentando ficar numa posição mais confortável. Já identificou aquela dor esquisita no seu estômago: é fome. Siena está sentada no café da piazza e sabe que Giancarlo não vai aparecer. Mandou-lhe uma mensagem de texto e ele tem o telemóvel desligado. Tinham combinado encontrar-se à uma da tarde e já é quase uma e meia. Siena costuma ter as tardes livres; em teoria, devia ocupá-las com um emprego qualquer, mas geralmente usa-as para se encontrar com Giancarlo, que deveria estar nas aulas, na escola técnica de Sansepolcro. Está a prepararse para ser padeiro de primeira categoria. Siena bebe o resto do seu refrigerante de limão e pondera beber outro, mas tem vergonha de o pedir a Angela, a empregada de mesa de figura curvilínea que, entre outras coisas, é amiga de Giancarlo. E é mesmo ela que agora se aproxima, rebolando as ancas numa provocação mecânica. – Finito? – pergunta. – Sì – responde Siena. – Grazie. – Levantando-se, desliga o telemóvel e sai lentamente para o sol intenso. Charlie está a fazer um desenho. Tentou desenhar o Totti, mas só conseguiu fazer as orelhas. – Que bonito! – disse-lhe a «Monica dos óculos». – São montanhas? Montanhas, patranhas, montanhas da lua. A mamã foi subir uma montanha com o «Raffaello das barbas». Ele gosta do «Raffaello das barbas». Consegue andar só com as mãos e sabe assobiar com dois dedos metidos na boca. Gosta mais dele do que do outro homem, aquele que fica parado a olhar. Talvez lhe comprem um presente. O papá trazia-lhe sempre presentes. Por exemplo, aqueles tubos grandes de Smarties, com um brinquedo de plástico em cima. Apetece-lhe um Smartie. Os melhores são os cor de laranja. A «Monica dos óculos» dá-lhes sempre fruta ao lanche. Ele detesta fruta. Fá-lo ficar enjoado. Tão enjoado que só se sente melhor depois de beber limonada. Mas tem de ser limonada a sério; não pode ser aquela coisa que a mamã faz, com uns bocados horríveis de limão a flutuar dentro do jarro. Só pode ser limonada
verdadeira, daquela que se compra nas lojas. Charlie começa a fazer outro desenho. Vai fazer outra vez o Totti. Não vê o interesse de desenhar muitas coisas diferentes. Talvez haja uma loja de guloseimas lá na montanha. * Stine leva Raffaello e Emily a ver os achados que ela anda a investigar em Badia Tedalda. Sobem uma colina íngreme que vai dar à igreja, um edifício românico de linhas simples colado à encosta. Embora a vista seja espetacular, Emily está tão ofegante que mal dá por isso. O nome da igreja é San Michele Arcangelo. Stine destranca a porta e Emily vê-se no interior de uma curiosa mistura de igreja e fortaleza. As paredes são grossas e as janelas são pequenas, mas as paredes estão adornadas por frescos pintados em cerâmica, tal como os do palazzo comunale em Monte Albano. Emily fica surpreendida ao ver Raffaello benzer-se com a água benta. Por algum motivo, nunca pensou que ele fosse católico. – Esta igreja foi construída onde antes havia um templo romano – explica Raffaello enquanto avançam rapidamente pelo corredor central, em direção a uma porta ao lado do altar. – Os frescos são muito belos. – São da escola de della Robbia – informa-a o arqueólogo com indiferença. A porta conduz a um pequeno aposento cheio de paramentos de sacerdote e material de limpeza. Ali, incongruentemente arrumada no meio das esfregonas, está uma grande secção de uma arcada de pedra, magnificamente decorada com baixos-relevos de folhas. – Che bello – sussurra Raffaello. – É de origem romana? – Sim – responde-lhe Stine. – Julgo que é. Foi encontrada quando estavam a construir uma casa nova para uns estrangeiros. Raffaello sorri para Emily. – Por vezes, esses estrangeiros com as suas casas e as suas piscinas podem dar muito jeito. – As folhas são encantadoras – comenta Emily, ignorando-o. – São folhas de carvalho – diz Raffaello. – São um símbolo desta região. Emily sempre pensou no carvalho como uma árvore particularmente
inglesa, mas, ao observar o baixo-relevo mais de perto, nota que há bolotas por entre as folhas. E então apercebe-se de que, na verdade, as Montanhas da Lua estão cheias de carvalhos. Quando deixam a igreja, Stine convida-os a ficarem para almoçar, mas Emily diz que tem de regressar para ir buscar Charlie. Raffaello parece ficar algo aborrecido com aquilo, o que ela considera injusto da parte dele porque deixou bem claro que teria de ir buscar o filho ao jardim de infância. Começa a sentir-se inquieta; sempre teve horror de se atrasar para ir buscar os filhos. – Va bene – diz Raffaello. – Stine, será que podes vir dar uma olhadela aos nossos esqueletos? – Se a Emily não se importar – responde Stine. Emily, que tem estado a sentir-se ligeiramente surpreendida por os ouvir descrever a descoberta como «os nossos esqueletos», diz que sim, claro. Stine concorda ir até à villa dentro de duas semanas, depois de terminar o seu trabalho em Badia Tedalda. Trocam apertos de mão à porta do café, onde continuam sentados os mesmos homens de antes, imóveis, cada um com a sua chávena de espresso à frente. Raffaello quase não fala durante a viagem de regresso a Monte Albano. Emily inclina-se para a frente, preocupada com as horas. – Não se preocupe – tranquiliza-a Raffaello, lançando-lhe um olhar rápido. – Você preocupa-se demasiado. – Não consigo evitá-lo. O Charlie fica de cabeça perdida se eu me atraso. – O Charlie é um mimado. – Não é nada! – exclama Emily, furiosa. Depois contra-ataca com um golpe baixo: – Você não compreende. Não tem filhos. – Pelo contrário – replica Raffaello, muito calmo –, tenho uma filha na América. – Mas eu pensava que a sua mulher tinha… Raffaello ri-se. – Oh, não sou casado com a mãe dela. Mas estivemos juntos durante muito tempo, e, dessa relação, nasceu a Gabriella. – Gabriella… – diz Emily por fim. – É um nome bonito. – Ela é uma rapariga bonita. Sai à mãe, graças a Deus. Emily observa os cabelos despenteados de Raffaello e o seu nariz curvo e aquilino, e pensa que ele tem razão. Numa rapariga, as suas feições seriam infelizes. Num homem, no entanto, parecem-lhe perfeitamente bem.
– Deve sentir a falta dela – comenta. – Que idade tem a Gabriella? – Sete – responde Raffaello. – Sim, sinto a falta dela. Estou com esperanças de a ver para o mês que vem. – Vai à América? – Sim. Trabalhei lá durante muitos anos, sabe? Fui professor na Universidade Estadual da Pensilvânia. «Isso explica o seu sotaque americano», pensa Emily. – Vai ficar lá por muito tempo? – pergunta depois. – Isso depende. – De quê? Raffaello ri-se, mas não lhe responde. Permanecem em silêncio pelo resto da viagem montanha abaixo. 12 Série de dezasseis livros assinados por Mazo de la Roche, uma autora canadiana. (N. do T.) 13 O protagonista da saga Just William, uma série de 39 livros do autor inglês Richmal Crompton. (N. do T.)
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or alguma razão, Emily tem dificuldade em sossegar nessa noite. O Totti também não está a ajudar: de pelo eriçado, pôs-se a fazer a ronda da casa sem parar e salta de cada vez que vê uma sombra. – Tu devias fazer-me sentir mais segura – diz-lhe Emily, arrastando-o para fora da sala de estar, onde o pastor-alemão passou os últimos dez minutos a rosnar na direção da mesa – e não agir como se houvesse um assassino escondido por trás de cada móvel. Recorda as palavras de Raffaello: «Diz-se que havia um guerrilheiro escondido por trás de cada árvore.» Ter-se-á a sua casa transformado subitamente na linha de frente de uma qualquer guerra não declarada? «Parvoíces!», diz a si mesma, levando o Totti para a segurança da cozinha. «A caveira foi um acontecimento isolado. Alguém que se quis divertir. Não vai voltar a acontecer.» O Totti retesa o corpo e começa a rosnar para o frigorífico. – Sossega, Totti – diz Emily, dando-lhe comida. A gula e o medo lutam no olhar do cão durante alguns segundos, mas, por fim, a gula sai vencedora. O pastor-alemão aquieta-se para comer, começando a bater com a musculosa cauda na parede. Emily sobressalta-se com o barulho. «Credo, como estou assustadiça esta noite!» Vai à porta das traseiras e espreita lá para fora. Escuta-se o piar de uma coruja vindo do olival, mas, de resto, o silêncio é total. Emily fecha a porta com força, e, depois de pensar por um instante, tranca-a. Charlie está a dormir. Siena está no seu quarto, de auscultadores nos ouvidos, incomunicável. Paris saiu com umas amigas da escola, o que é bastante encorajador. («São amigas chegadas, querida?» «Nem por isso.» «Queres convidá-las cá para casa um dia destes?» «Não, obrigada.») Emily devia estar a trabalhar na sua próxima «Cartas da Toscana», mas a subida às montanhas, o encontro com Stine, a extrema beleza da igreja, com a sua vista prodigiosa, e, acima de tudo, a perturbante conversa com Raffaello durante o regresso, não param de remoinhar na sua mente. «Chamavam a estas colinas
a linea gotica… Diz-se que havia um guerrilheiro escondido por trás de cada árvore… Cada sepultura é como uma pegada… Pelo contrário, tenho uma filha na América…» De súbito, as colinas toscanas (tão apaixonadamente descritas em várias das suas colunas) parecem-lhe estar a abarrotar de guerrilheiros desesperados, de caveiras, ossadas e esqueletos, de etruscos mortos há séculos, de inimizades enterradas há muito tempo e lealdades parcialmente recordadas. E o próprio Raffaello: será ele o seu guia através de toda aquela paisagem desconcertante, o seu protetor? Ou fará parte do mistério, o homem que abandonou a esposa, que tem uma filha a meio mundo de distância e que se interessa mais pelos mortos do que pelos vivos? Com um suspiro, Emily liga o seu computador portátil. Gostaria que a vida fosse tão simples como uma coluna de jornal. Nervosa, pergunta-se o que Giles, o seu editor, terá achado da sua última contribuição. Depois de andar às voltas durante alguns minutos, de modo exasperante, o Totti acaba por se deitar diante do fogão e Emily abre o documento «CartasToscana60». Ao fazê-lo, o ícone do Friends Reunited pisca no ecrã. «Que mal poderá fazer?», pensa ela. «Vou ver se o encontro no Friends Reunited só mais esta vez. É só uma pesquisa rápida no Google.» Está prestes a escrever «Michael Bartnicki» no campo de pesquisas, quando vê um pequeno marcador na parte de baixo do ecrã: «1 mensagem não lida.» Seleciona a caixa de entrada, perguntando-se quem lhe poderá ter enviado um e-mail. Será Petra, a contar-lhe as últimas sobre «George»? Será o seu irmão, Alan, a escrever-lhe da Austrália? Lê a morada na caixa de entrada: chad.buchanan. Chad! Emily não se recorda de lhe ter dado o seu endereço de e-mail. Na verdade, lembra-se de ele ter deixado a festa sem tão-pouco lhe pedir o número de telefone. Abre a mensagem. É breve. Emily, No mês que vem vou estar em Bolonha para uma conferência. Queres combinar um encontro? Chad.
Emily hesita por longos instantes, com o dedo a pairar sobre a tecla de apagar.
Paris sente-se quase bem-disposta. Está na casa de Silvia e estão a ouvir a banda The Darkness. – Eles vêm de um sítio próximo da minha casa em Inglaterra – diz. Os The Darkness são oriundos das Midlands, mas não espera que as outras duas saibam disso. – Fixe – dizem Silvia e Paola com respeito. As cortinas estão corridas e as três estão vestidas de preto. A única luz provém de três velas cuidadosamente colocadas diante de um cartaz dos Metallica. Paus de incenso a arder conferem ao quarto uma atmosfera antiga e onírica, que faz lembrar Brighton a Paris. Aqueles sinais de rebeldia, todos muito suaves – usar roupa preta, queimar incenso, ouvir música tocada por travestis estrangeiros – são encarados com grande alarme pelos pais de Silvia. Por um lado, aprovam a amizade da filha com Paris, porque esta é inglesa e acham isso chique, porque a sua mãe é escritora e porque a sua irmã é muito bonita. Mas, por outro, acham que Paris deve ser uma má influência, já que, antes de ela aparecer ali na escola, Silvia era uma típica menina italiana que usava saias de pregas e sapatos rasos. Chegaram mesmo a ir aconselhar-se com Don Angelo. «Que bom que a Silvia tem uma nova amiga», foi o comentário do padre, sem compreender minimamente a situação. «É maravilhoso aprendermos coisas novas com os nossos amigos.» – Tens saudades de Inglaterra? – pergunta-lhe Paola. Está a pintar as unhas de preto e o cheiro do verniz, misturado com o do incenso, resulta particularmente tóxico. – Sim – responde-lhe Paris. É sempre essa a sua resposta. – A Inglaterra é tão fixe. Podemos usar e fazer o que quisermos. Ninguém fala sobre futebol. Aliás, a maioria dos homens são gay. – Fixe! – diz Silvia, mas depois acrescenta, num tom hesitante: – Mas os rapazes, quero dizer, aqueles que não são gay, não são assim lá muito giros, pois não? – Não – admite Paris. – São feios. – Os rapazes italianos são todos uns estúpidos – comenta Paola, concluindo a pintura das unhas com um floreado. – Mas alguns são muito giros. – Pois é – diz Paris, inclinando-se para pegar no verniz preto. – Alguns são muito giros. Há alguma coisa que se coma? – De repente, ficou cheia de fome.
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E
mily não tenciona dormir com Chad em Bolonha. A sua ideia é, muito simplesmente, descansar um pouco dos filhos e interrogá-lo a respeito de Michael. Decidiu passar lá a noite, mas não com Chad, claro. Reservou um quarto num pequeno hotel perto da estação, que não chega a ter tempo de ir ver. Monica aceitou passar a noite em casa dela e cuidar dos seus filhos, já que Emily entende que uma noite inteira é responsabilidade a mais para Siena e para Paris. Como adora Monica, Charlie ficou doido de entusiasmo. Mas, infelizmente, Monica tem uma conferência logo pela manhã, e, por isso, Emily viu-se forçada a pedir a Olimpia que a rendesse. Em todo o caso, ela não vai voltar tarde, sobretudo porque ficou combinado Stine ir examinar os esqueletos precisamente naquele dia. As crianças estão muito excitadas com a possibilidade de mais descobertas macabras. Emily disse a Raffaello que ia estar fora uma noite porque ia «ver uma pessoa amiga». Raffaello sorriu sardonicamente. Ela tem a certeza de que ele sabe que é um homem. Emily gosta de Bolonha. É uma cidade toda em terracota, com os edifícios em várias tonalidades de amarelo, cor de laranja e cor-de-rosa. É uma cidade de colunatas e de incontáveis passeios cobertos, cheia de gente nova a conversar e a rir descontraidamente. Acima de tudo, trata-se de uma cidade jovem, cheia de estudantes, bastante mais multicultural do que a maioria das vilas italianas e também com um ambiente muito mais alternativo. Em lugar das omnipresentes calças de ganga passadas a ferro e camisas brancas, Emily vê blusões de pele, piercings e rastas. Paris ia adorar viver ali, pensa. Como saiu de casa já atrasada, segue diretamente para o hotel de Chad. Mesmo antes de sair recebeu um telefonema de Giles, o seu editor no jornal. A voz dele, por vezes tão afetada que chega a ser praticamente ininteligível, quase soou plebeia de tão irritada. – Emily, que merda é aquela da tua última coluna? – Achei que, para variar, podia ser um pouco mais honesta. – Pois bem, não varies. Os nossos leitores gostam de pasta caseira e de
Chianti ao luar. Não querem saber da anorexia da tua filha, por amor de Deus. – Mas é verdade – replica Emily, amuada. Um suspiro do outro lado da linha. Em fundo, Emily consegue ouvir outros dois telefones a tocar. – Pois bem, lamento muito por ti – diz Giles finalmente. – Ajudo-te no que puder e tudo isso. Mas, entretanto, sê uma boa menina e escreve-me uma coluna sobre cogumelos porcini e a apanha da azeitona. O hotel de Chad fica próximo da piazza Maggiore e é bastante elegante. No átrio – todo em superfícies cromadas e de mármore –, aguardando que Chad desça, Emily sente-se desmazelada. Vestiu uma saia vermelha comprida e uma T-shirt branca. Quando se viu no espelho do seu quarto, manchado de antiguidade (autêntico), pareceu-lhe que estava bem, mas ali, naquele hotel, as suas roupas parecem-lhe um tanto ou quanto simples; falta-lhes elegância. A mulher por trás do balcão da receção veste um fato de linho verde-azeitona com um corte perfeito. Emily dá por si a desejar que as duas pudessem trocar de roupa, como Siena costumava fazer com as amigas. – Emily! – Chad desce as escadas vestido com um fato escuro «risca de giz» e uma camisa rosada, o que a faz sentir-se ainda pior a respeito das suas roupas. Beijam-se desajeitadamente na face. Na verdade, Emily sente-se por instantes tão embaraçada que só lhe apetece sair a correr pelas portas douradas do hotel e nunca mais tornar a ver Chad. De alguma forma, toda aquela situação lhe parece errada – estar com Chad numa cidade estrangeira, ter-se maquilhado e usar sapatos de salto alto para se ir encontrar com ele, sujeitar-se a ser descrita, não sem uma certa malícia, como «a sua visita» pela rececionista. – Chad… – começa a dizer. Nem sequer sabe o que lhe há de dizer. «Acabei de me lembrar de que talvez tenha deixado o forno ligado»? «Acabo de me lembrar de que nunca gostei realmente de ti; para mim, eras apenas o amigo de alguém por quem eu estava apaixonada»? «Vamos esquecer que isto aconteceu, eu vou voltar para a minha casa e não nos vamos contactar durante os próximos vinte anos»? Mas Chad agarra-lhe o cotovelo numa atitude dominante e condu-la na direção das portas vaivém. Olha para um lado e outro da rua, de modo prático e eficiente.
– Reservei mesa num restaurante – informa-a. – Foi-me recomendado por um dos participantes na conferência. Para sua surpresa, Emily dá por si a achar o restaurante careiro e pretensioso. Talvez esteja finalmente a converter-se numa verdadeira italiana. Não há menus, apenas uns rabiscos arredondados num quadro preto. Por outro lado, a carta de vinhos é tão grossa como a Bíblia, e vem com uma fita para marcar a página, como os livros de orações. Chad pede um tinto caro. – Vais incluir isto nas despesas? – pergunta Emily num fio de voz. – Claro – responde-lhe Chad. – As farmacêuticas que paguem. Enquanto saboreiam um risotto nero com trufas, ele fala-lhe do seu trabalho («sobretudo privado hoje em dia»), da sua mulher («é exímia a andar a cavalo»), as suas filhas («andam todas no ballet e cada uma toca dois instrumentos, é um pesadelo»). Emily vai comendo e quase não diz nada. Começa a contar-lhe a respeito dos corpos que foram encontrados na colina, mas ele faz uma careta e diz: – É um bocado repugnante, não achas? E ela a pensar que os médicos estavam habituados a gente morta. Enquanto comem vitela (ele) e robalo (ela), Chad fala-lhe da sua casa no Wiltshire, do seu barco em Chichester e do seu chalé nos Alpes Franceses, para onde costuma ir esquiar. Emily come sem dizer uma palavra. Ele diz-lhe que gosta de Itália, mas que a ineficiência o põe fora de si. Diz-lhe que, no seu entender, a aromaterapia, a terapia de regressão a vidas passadas e o catolicismo não passam de intrujices. Diz-lhe que já teve como paciente um ministro. Finalmente, enquanto comem tiramisù (ele) e sorvete (ela), Emily pergunta-lhe se teve recentemente notícias de Michael. Chad ergue o olhar, o seu rosto de jogador escuro à luz das velas. – Ele está cheio de problemas – é a sua resposta. – Esquece-o. Paga a conta, enfia o recibo no bolso e condu-la para a saída. Na rua encontra-se uma verdadeira multidão de jovens; alguém está a tocar guitarra à porta da gelateria em frente e três raparigas passam por ali de braço dado, sob um coro de assobios. Chad leva Emily pelo meio da multidão vagarosa e descontraída, e, quando ela começa a interrogar-se se não será melhor apanhar um táxi de volta ao hotel, atendendo ao muito que bebeu (trouxe consigo o novo romance de Marian Keyes e talvez consiga ver as notícias na CNN), Chad puxa-a subitamente para um beco escuro e beija-a
violentamente. Emily fica espantada, horrorizada e excitada, tudo ao mesmo tempo. É inegável que o novo e apaixonado Chad, aquele que a encostou à grade de uma loja, de tal forma que ela sente o metal a pressionar-lhe as costas, é uma melhoria em relação à versão anterior – aquela que, sentada diante de um risotto, falava do seu barco. Mas também é verdade que Chad é casado, que ela não está apaixonada por ele e que tudo aquilo continua a parecer-lhe, pura e simplesmente, errado. – Chad… – Lá consegue afastá-lo. – O que foi? – Ele fita-a, ligeiramente ofegante. – O que estás a fazer? Ele sorri. – O que te parece? – Convidaste-me para vir até aqui só para dormir comigo? Chad encolhe os ombros. – Qual é o mal? Sempre te achei gira. Embora saiba que não devia, ainda assim Emily fica ligeiramente amolecida com aquele elogio. Parece-lhe que já passou muito tempo desde que alguém a considerou gira e Chad é muito atraente. Além do mais, a palavra «sempre» recorda-lhe o seu lugar favorito, o passado. – Queres dizer que gostavas de mim enquanto eu namorava com o Michael? – Claro – responde Chad. – Ele andava sempre a provocar-me com isso. – E torna a beijá-la. Ao fim de algum tempo, puxa-a para longe da montra da loja e, caminhando de braço dado, os dois regressam ao hotel. Emily sente-se num transe; não deseja particularmente ir para a cama com ele, mas como resistir? Não é assim que noites como aquela costumam terminar? E é agradável, muito agradável, sentir o braço dele em volta do seu corpo, e, de vez em quando, os seus lábios a roçar-lhe os cabelos. Para se ir embora e regressar à segurança e ao romance de Marian Keyes, seria necessária mais força de vontade do que a que tem naquele momento. Já no quarto de hotel, Chad cai-lhe em cima como um tarado. Por alguma razão, Emily espera que ele seja um amante sofisticado e criativo. Michael era um verdadeiro mestre na arte de alongar os preliminares (Emily tem de admitir, que, por vezes, ele os alongava tanto que ela já só queria que ele se
despachasse de uma vez). Imagina que todos os médicos devem ter uma sintonia semelhante com o corpo humano. Mas então lembra-se de que Chad acha os corpos humanos ligeiramente repugnantes. Em todo o caso, ele coloca um preservativo e, depois de algumas dentadinhas e lambidelas de rotina, põe-se em cima dela e penetra-a. No fim – por alguns segundos, Emily tem dificuldade em acreditar que ele disse mesmo isto – pergunta-lhe: – Que tal foi para ti? – Oh, fantástico – responde-lhe sarcasticamente, mas ele não percebe. Com um ar presunçoso, vira-se para o outro lado e adormece. Deitada ao lado dele, ouvindo o trânsito lá fora e o barulho dos jovens de Bolonha a divertirem-se, Emily pensa: «Dormi com o melhor amigo do Michael», e pergunta-se por que razão isso não a fará sentir-se pior. Não sente que tenha sido infiel a Paul. Afinal de contas, ele está muito feliz nos braços da sua jovem e rica personal trainer. Tão-pouco sente que tenha sido infiel a Michael. Ele deixou-a há anos. Na verdade, sente-se bastante triunfal relativamente a Michael. «Vês?», diz-lhe mentalmente. «Não estou assim tão obcecada por ti. Sinto-me igualmente feliz a dormir com o teu melhor amigo. O que me dizes disso?» Reprime a sensação de que Michael não se importaria caso soubesse (e, a propósito, a que espécie de problemas estaria Chad a referir-se?). Não, a pessoa relativamente a quem ela se sente mal é Petra. Petra ficaria horrorizada se soubesse que ela dormiu com Chad. Nunca lhe poderá contar. Com este pensamento, adormece. De manhã, tudo parece diferente. Emily sente-se tranquila e no controlo da situação, sente-se uma mulher vivida. Conversa animadamente com Chad enquanto se vestem e recusa a sua proposta de tomarem juntos o pequenoalmoço. – Como qualquer coisa durante o regresso. Chad fica surpreendido, a ponto de se mostrar ligeiramente embaraçado. – Ei, Emmy Lou – diz, já no átrio do hotel. – Quando é que te torno a ver? Emily estica-se para o beijar na face. – Eu mando-te uma mensagem – diz. Mas depois apercebe-se de que nem sequer tem o número de telemóvel dele. Regressa pela autoestrada sentindo-se estupidamente animada. Para numa estação de serviço para tomar um café e comer um cornetto (que, em Itália, não é um gelado mas sim uma espécie de croissant). Compra chocolates para
Monica e para Olimpia, revistas para Siena e para Paris, e um carrinho de brincar para Charlie. Também compra um dístico com um «L» para a parte de trás do carro, indicando que o condutor é inexperiente. Siena vai fazer dezassete anos em novembro e Emily tenciona ensiná-la a conduzir. Chega a Monte Albano às onze e às onze e vinte está a passar pelo monte de cascalho. Estaciona com uma derrapagem, levantando uma nuvem de pó, e entra vagarosamente em casa. Encontra-a vazia. Nem filhos, nem Olimpia, nem o Totti a correr excitadamente às voltas. Por um momento, quase fica em pânico, mas depois vê um bilhete escrito na letra de Siena, colado ao frigorífico com um íman do Action Man. «Fomos até às grutas para ver os esqueletos. S» Parando apenas para deixar os presentes na mesa e beber um pouco de água, Emily sai em direção às grutas. É uma longa caminhada e o dia está quente e húmido. O céu está encoberto e não sopra vento. Parece-lhe que se aproxima nova tempestade. A primeira pessoa que vê é Raffaello. Vestido com uma camisa vermelha, está sentado numa rocha, inclinado para diante, com o sobrolho franzido de concentração. Siena e Paris estão paradas atrás dele, com Paris a segurar o Totti pela coleira. Olimpia e Charlie estão ligeiramente afastados. Com irritação, Emily constata que Olimpia pegou em Charlie ao colo. Os cinco estão a olhar para a vala à entrada de uma das grutas. Dentro da vala está Stine, descontraidamente vestida com uma camisa azul e calças de ganga; tem calçadas luvas de cirurgião e está a peneirar um pouco de terra. A terra extraída da vala foi guardada em sacos de plástico e Stine vai dispondo outros itens sobre um oleado estendido no chão. Emily não consegue ver exatamente que itens são esses, mas parecem-lhe pedras. De vez em quando, Stine detém-se e tira uma fotografia, focando e disparando a máquina calmamente, como se estivesse a tirar fotografias durante umas férias. Sente-se uma estranha atmosfera expectante, quase de mau presságio. O céu escuro emite uma luz estranha, como um cenário, projetando sombras alongadas sobre as rochas, a relva áspera e os carvalhos mirrados. Ninguém fala. É isso o mais estranho. A alegre saudação que Emily tinha reservada para os filhos morre-lhe nos lábios, e, embora erga um braço para lhes dizer «olá», acaba por parar e ficar também em silêncio, ao lado de Olimpia, observando enquanto Stine vai peneirando, escavando e fotografando. Não imagina há quanto tempo estarão naquilo, mas então, de súbito, sente-se uma
alteração brusca na atmosfera. Stine agacha-se para examinar algo. Afasta a terra com as mãos e inclina-se mais para tirar uma fotografia. Raffaello, do seu ponto de observação privilegiado, também se inclina mais para diante, mas não diz uma palavra. Depois, lenta e meticulosamente, Stine ergue algo branco da vala, que depois coloca sobre o oleado. Permanecem todos em silêncio. Stine recolhe mais ossos e pedaços de tecido. Raffaello solta uma exclamação abafada, mas depois fica outra vez em silêncio. Mais ossos são retirados da vala e colocados sobre o oleado. E então Stine aproxima-se, afasta mais terra, e, muito devagar e com todo o cuidado, desenterra qualquer coisa, dois objetos, que brilham ligeiramente sob a funesta luminosidade. Volta-se para a sua assistência com as palmas das mãos abertas e estendidas, mostrando-lhes o que está a segurar. Emily apenas tem consciência de Charlie a cair para o chão e a começar a chorar, ao mesmo tempo que Olimpia cobre a cara com as mãos e começa a gritar sem parar.
TERCEIRA PARTE
INVERNO
1 s corpos encontrados nos limites da Villa Serena são efetivamente os de Carlo Belotti e Pino Albertini. Belotti, o chefe da brigada local de guerrilheiros, desapareceu em 1944, e julgava-se que teria sido assassinado pelas tropas nazis que então ocupavam toda a área. Albertini era o seu delegado. Em novembro de 1944, o general alemão Wolfgang Ramm ordenou que fossem tomadas medidas enérgicas contra as atividades de guerrilha naquela área, depois de ter sido intercetado um carregamento de rádios e de armas lançado de paraquedas. Foi por volta dessa altura que se deu o desaparecimento de Belotti e de Albertini, e julgou-se que ambos tinham sido executados. O corpo de Belotti foi identificado pela sua filha, Olimpia Gazzi. A signora Gazzi afirmou ter reconhecido o anel de ouro que o seu pai usava sempre, que foi encontrado junto ao corpo. O relatório da autópsia indica que os dois homens foram mortos a tiro, com disparos apontados à cabeça. Os indícios colhidos pela arqueóloga forense Stine Nielson confirmam que os corpos foram deliberadamente enterrados na encosta, sendo depois colocadas pedras pesadas sobre as duas sepulturas. Os corpos foram desenterrados durante uma escavação arqueológica levada a cabo por…» Fazendo uma pausa, Monica pousa o jornal, cuja notícia tem estado a traduzir para Emily. – Deve ter sido um momento impressionante – comenta. – Foi horrível – diz Emily. Recorda como Olimpia se deixou cair de joelhos, a gritar pelo pai. «Mio babbo», soluçava ela. «O meu papá.» Emily achou aquilo insuportavelmente triste: uma mulher idosa, vestida com a sua decorosa bata às flores, a gritar pelo pai como se fosse uma menina. E, realmente, devia ser apenas uma menina quando ele desapareceu, percebe naquele instante. – Ela reconheceu imediatamente o anel?
«…O
– Sim, mal o viu começou aos gritos. Também ali estava um crucifixo, mas ela não ligou a isso. Só começou a gritar que aquele era o anel do seu pai. – E tu, fizeste o quê? – Bom, tentei consolá-la, mas ela afastou-me. Agarrou-se ao Charlie e pôsse a chorar com o rosto escondido no cabelo dele, e então é claro que ele também começou a chorar. Até as miúdas ficaram assustadas. Na verdade, foi a Stine a dar conta da situação. Aproximou-se da Olimpia e disse-lhe: «Agora já pode fazer o funeral.» Aquilo pareceu acalmá-la. Mas então tínhamos de tirar os ossos dali de alguma maneira, por isso liguei ao Romano e pergunteilhe se não podia trazer o trator. – Ligaste ao Romano? – Sim. Porque não? Ele é o nosso vizinho mais próximo, como tu sabes. – O Romano é filho do homem que foi presidente da Câmara durante a guerra. Um fascista zeloso. – Não! A sério? – Sim. É fácil saber porque a dada altura, todos os fascistas punham o nome Romano ou Romana aos filhos. Quando encontrares um italiano de idade avançada chamado Romano, já sabes. Quem desse aos seus filhos o nome de um dos filhos de Mussolini recebia um prémio em dinheiro, por isso há muitos Romanos, Vittorios e Eddas por aí. – Mas o Romano mostrou-se muito respeitoso ao deparar com os corpos. Até se benzeu e tudo. Monica deixa escapar uma risada irónica. – Isso é apenas um reflexo supersticioso. Todos fazem isso nesta região: benzem-se, rezam à Virgem Maria e depois continuam como se nada fosse. Estão sentadas na piazza a beber café. Charlie está sentado à frente de Emily, a terminar um gelado com um ar solene. É o final de outubro, mas ainda faz calor suficiente para as pessoas se poderem sentar nas esplanadas. Dali vê-se o apartamento de Monica, do outro lado da praça: um oásis de flores. – Suponho que tiveram de chamar a polícia – diz ela. – Sim, claro, embora o Raffaello não quisesse. Estava preocupado com a sua preciosa escavação, mas a Stine insistiu. Monica sorri. – O Raffaello tem uma tremenda aversão à autoridade. – Tal como todos os italianos – replica Emily.
Monica sorri com presunção. – Sim, é verdade. O que disse a polícia? – Oh, fartaram-se de fazer perguntas. O Raffaello não mencionou o facto de já saber há várias semanas que os corpos estavam ali. Fingiu que tinham acabado de os descobrir. Pareceu-me que conhecia um dos polícias; tratava-o por Tino. – Deve ser o Agostino Pieri. Os dois andaram juntos na escola. – Meu Deus, Monica, conheces toda a gente. Monica suspira. – É o pior de se continuar a viver no mesmo sítio onde se cresceu. Bem, é um dos aspetos piores, pelo menos. – Em todo o caso, a polícia levou os corpos. Por essa altura a Olimpia já se tinha acalmado um pouco, e então eu ofereci-me para a levar a casa, mas ela disse que queria ir à igreja. – Típico! Espero que lhe tenhas dito para não ser tão ridícula. – Claro que não lhe disse isso. Levei-a de carro até à igreja. Como Don Angelo estava lá, deixei os dois sozinhos. – Aposto que o maluco do velho não cabia em si de excitação. – Na verdade, pareceu-me bastante abalado. Naquele momento apercebime de como ele é mesmo idoso. – Oh, esse não há de morrer nunca, esses fanáticos religiosos aguentam-se sempre por muito tempo. – Bem, ele vai realizar o funeral para a semana. Vai haver uma missa. Decerto vou encontrar-te por lá. Monica abana a cabeça. – Antes enterrarem-me a mim. Não me digas que vais? Emily sente-se desconfortável. – Bem, achei que era a minha obrigação. – Emily! – explode Monica. Charlie termina ruidosamente o gelado e olha para a mãe para ver se ela reparou. Não, está demasiado entretida a conversar. Blá-blá-blá. Blá, chá, cá, lá14. As palavras inglesas são engraçadas quando as fazemos rimar. As palavras italianas rimam todas. Bello bimbo. É isso o que toda a gente lhe diz. Paris ri-se mas ela é uma parva. O namorado de Siena aparece ali na praça. Charlie não gosta dele, apesar de Giancarlo uma vez lhe ter dado uma
pastilha elástica, algo que a mãe nunca o deixa comer. Tem-na bem guardada num lado qualquer; não consegue lembrar-se onde. O namorado de Siena está a conversar com aquela rapariga simpática que lhe costuma dar palhinhas especiais. Ela costuma dizer que ele, Charlie, é o seu namorado especial. Ele e não o namorado de Siena. Esse é um malcheiroso. Malcheiroso, guloso, ranhoso. – Aquele não é o namorado da Siena? – pergunta Monica. – Não – responde-lhe Emily. – Romperam. Ela diz que não quer falar sobre isso. * Ao regressar a casa, Emily encontra tudo em silêncio. Siena saiu e Paris parece ter levado o Totti a dar um passeio. Depois do calor da manhã, o ar está mais fresco e sopra um vento frio (a que os locais chamam a tramontana). Emily prepara o almoço para Charlie e para si, e liga o aquecimento central. Na verdade, em Itália é proibido ligar o aquecimento central antes do primeiro dia de novembro, mas toda a gente ignora esta lei. Emily ouve a caldeira começar a trabalhar ruidosamente e decide aconchegarse com Charlie no sofá a ver um vídeo. Vai oferecer esse presente a si mesma. Talvez até durma dez minutos. Na sala de estar, vê qualquer coisa brilhante a reluzir sobre a pedra da lareira. Achando que talvez seja dinheiro (nunca tem moedas para o carrinho, no supermercado), vai até lá, e então descobre que se trata de um crucifixo, o mesmo que foi encontrado no corpo de Carlo Belotti. A polícia deve tê-lo deixado ali. Lembra-se de os agentes terem perguntado a Olimpia se ela o queria, e de ela lhes ter respondido que não, que desejava conservar apenas o anel. Durante alguns minutos, Emily fica ali de pé com o crucifixo na mão. É pequeno e, aparentemente, fazia parte de uma peça maior, talvez um rosário. Obviamente não é valioso – o metal está enferrujado e perdeu parte do revestimento de esmalte. Ainda assim, Emily pergunta-se por que razão Olimpia, que segurava o anel do pai como se aquilo fosse a relíquia de um santo, se terá mostrado tão desinteressada em relação ao crucifixo. Os católicos dão importância a objetos daquele tipo. E Olimpia é mesmo muito católica; Emily já a viu a caminho da missa, toda equipada com lenço na
cabeça, missal e um rosário gigante. Porque não terá dado valor àquela prova da fé religiosa do seu pai? Emily examina novamente o crucifixo. Cabe-lhe perfeitamente na palma da mão e tem um desenho muito bonito. Tem as extremidades arredondadas, um pouco ao estilo das cruzes cópticas, mas de resto não tem nenhum adorno. (Emily recorda uma história inglesa em que duas raparigas comparam os crucifixos e se perguntam porque é que «aquele com o homenzinho» é mais caro.) Na cruz que agora tem na mão, não está nenhum «homenzinho» a sofrer e a morrer. Ainda assim, Emily considera que aquele objeto merece algum respeito. Coloca-o numa prateleira alta, onde nem Charlie nem o Totti lhe possam chegar, ao lado de uma fotografia das filhas tirada em Hampton Court. Quando O Livro da Selva já vai a meio, a porta abre-se de rompante e o Totti entra na sala a correr, saltando para cima do sofá. – Para baixo! – ordena Emily, tentando soar ríspida. Mas o Totti limita-se a fitá-la de língua pendente. Charlie abraça-se ao animal. – Ele gosta do sofá, mamã. – Tem ali a cama dele, que é perfeitamente decente. – Mas ele gosta de estar aqui. – Charlie e o Totti instalam-se confortavelmente para verem o resto do filme. Alguns minutos depois chega Paris. – Olá, querida – diz Emily. – Deste de comer ao Totti? Paris fita-a de olhar semicerrado. – Sim – responde. – E também comeste alguma coisa? – pergunta Emily, tentando desesperadamente soar casual. – Sim – replica Paris. – Comi pão. – E que tal uma fatia de pizza fria? Está no frigorífico. – Já comi pão – repete Paris, sem qualquer alteração na voz. Emily decide não insistir. Paris anda a alimentar-se bastante melhor nas últimas semanas. Emily atreve-se mesmo a acalentar a esperança de que a filha esteja a aumentar de peso. – O passeio foi bom? – pergunta. – Sim – responde Paris, deitando-se no chão para ver o filme. – Encontrei o Raffaello.
– Ai sim? O que é que ele estava a fazer? – Andava a inspecionar o sítio da escavação. Disse-me que queria avançar mais um pouco com os trabalhos antes de vir a chuva, mas que vai para fora na próxima semana. – Na próxima semana? – Emily não sabe exatamente por que motivo aquilo a deixa tão chocada. Já sabia que Raffaello tencionava ir à América; só não sabia que ia ser tão cedo. Para além disso, sente-se vagamente ofendida por ele não lhe ter dado a conhecer os seus planos, limitando-se a deixá-la receber a notícia em segunda mão, de Paris. – Sim. A seguir ao funeral. O funeral dos nossos famosos esqueletos. Tanto Siena como Paris adotaram uma atitude semi-irónica de posse sobre os esqueletos que foram encontrados na sua propriedade. Chamam-lhes «Luigi» e «Mario», em homenagem a duas personagens da televisão. – Fiquei hoje a saber os nomes verdadeiros deles… – diz Emily, falando à filha do artigo de jornal. Paris fica impressionada. – Fixe. Isso quer dizer que eram verdadeiros resistentes. – Sim, suponho que eram. – Se eu tivesse vivido nessa altura teria feito qualquer coisa assim. Emily suspira. – Eu tenho a certeza de que me sentiria demasiado assustada. É impossível imaginarmos qual é a sensação de vermos a nossa terra ocupada dessa maneira. – Os londrinos sobreviveram aos bombardeamentos dos nazis – observa Paris. Já deu a Segunda Guerra Mundial na escola, quando ainda viviam em Inglaterra. – Isso também deve ter sido horrível. Mas parece-me pior termos o inimigo a viver na nossa cidade e não sabermos quem é nosso amigo e quem nos vai trair. Não sabermos se havemos de colaborar ou de lutar. – Se fosse eu, lutava. – Imagino que sim. – Emily receia que ela própria se revelasse uma colaboradora nata. – Lutar é feio – afirma Charlie num tom virtuoso, sem desviar o olhar do ecrã. – Sim, Charlie, tens razão – responde Emily. – Mas acontece que, por vezes, as coisas são um bocadinho mais complicadas do que isso.
Siena está na igreja. Não sabe ao certo como isto aconteceu. Apenas sabe que não queria ir para casa depois das aulas e que sobretudo não queria ir até à piazza, onde o mais provável seria encontrar Giancarlo a babar-se para cima de Angela. Ainda pensou em ir dar um passeio, mas de repente começou a fazer muito frio e ela nunca foi grande adepta do exercício físico, não como Paris. Apetecia-lhe ir para um lugar sossegado e quente, e então, por algum motivo, deu por si a subir os estreitos degraus que ligam a piazza à igreja. O interior da igreja cheira a flores e a velas. Uma luz vermelha brilha no altar e Siena pensa que aquilo deve ter algum significado importante, embora não imagine qual. A igreja está às escuras e vazia, tirando um velhote ajoelhado junto à divisória do altar. Siena senta-se num dos bancos de madeira. Não se ajoelha; mesmo estando sozinha, seria demasiado embaraçoso. Limita-se a ficar ali sentada, embrulhada no seu casaco vermelho, a pensar em Giancarlo e no vazio assustador que tem dentro de si, onde antes estavam os sentimentos por ele. Isso quase acaba por ser o pior de toda a situação. Quando Giancarlo a deixou pendurada no café, ela saiu para a piazza e de repente, sem mais nem menos, deixou de o amar. A praça continuava igual, com o seu chão empedrado, as lojas com fachada de madeira e os cartazes a anunciar a Festa dei Porcini, mas ela, Siena, sentia-se completamente diferente. Por alguns instantes ficou em pânico e desejou, mais do que qualquer outra coisa, poder regressar ao café e continuar apaixonada por Giancarlo. Mesmo que ele continuasse a faltar aos encontros e a tratá-la mal, se ela continuasse a amá-lo ainda saberia quem era. Mas foi-lhe impossível. Siena ficou ali parada, com as Vespas e os Fiats a passarem ao seu redor, e percebeu que aquilo era o fim. O amor morrera. Giancarlo foi ter com ela no dia seguinte, pediu-lhe desculpa e disse-lhe que ainda estava apaixonado por ela. Mas Siena manteve-se perfeitamente calma. – Lamento – disse-lhe –, simplesmente já não te amo. Giancarlo chegou mesmo a chorar, mas ela manteve-se de olhos limpos e estranhamente distante. Olhou para ele, com as suas calças de ganga à última moda, penduradas do seu corpo magro, e perguntou-se como teria conseguido sequer pôr a hipótese de dormir com ele. Naquele momento, ao olhar para Giancarlo, teve de fazer um esforço para não estremecer de repulsa. E, ao fim
de algum tempo, ele compreendeu a mensagem. Paris ficou encantada. – Boa! – disse, invulgarmente calorosa. – Nunca pensei que fosses capaz. Mas Siena não consegue sentir-se triunfante. Já não estar apaixonada continua a parecer-lhe um fracasso. Afinal de contas, o mais importante da vida é exatamente isso, não é? Estar-se apaixonado por alguém. Tem dezasseis anos e sabe que é bonita. Devia estar apaixonada por alguém. Devia estar a dar um passeio pelo campo na mota de algum rapaz, com o vento nos cabelos e o coração cheio de uma deliciosa expectativa. Mas agora apenas se sente apática. Apática, cheia de frio e bastante envelhecida. E se nunca mais se apaixonar por ninguém? E se Giancarlo tiver sido a sua única chance e ela tiver estragado tudo? Vai morrer uma solteirona, os filhos de Paris e de Charlie vão tratá-la com condescendência e jamais usará um vestido de noiva. Põe-se de pé. Sente-se ligeiramente perra depois de ter estado sentada durante tanto tempo, mas parece-lhe que a sua visita à igreja merece um gesto formal. Uma espécie de símbolo. «Os católicos têm jeito para os símbolos», pensa, observando as estações da via-sacra a toda a volta da igreja (reluzentes quadros a óleo com tenebrosas cenas de sofrimento), as estátuas, o fresco algo desbotado na parede do altar principal, a água benta e as velas. É isso. Vai acender uma vela. Em passos lentos e hesitantes, Siena aproxima-se do altar lateral, onde há uma estatueta em gesso, uma Virgem Maria com uma expressão amigável, vestida de branco e coberta com um manto azul, e, surpreendentemente, com cabelos louros. Na verdade, parece-se ligeiramente consigo. Siena acende uma vela (parece uma daquelas velinhas que a mãe costuma espalhar pela casa) e fixa-a num dos suportes vazios. Estão ali outras quatro ou cinco velas a arder. Quem as terá acendido?, pergunta-se. Erguendo o olhar para a Virgem Maria, Siena fala-lhe em pensamento: «Querida Maria, ajuda-me a apaixonar-me outra vez um dia. Obrigada.» Maria sorri-lhe serenamente. Numa mão segura um rosário, e Siena nota que um dos seus pés descalços está a pisar firmemente uma serpente. «Ámen», acrescenta. Pergunta-se porque estará Maria a espezinhar um animal selvagem. De alguma forma, aquilo não lhe parece uma atitude lá muito ecológica. Ao voltar-se para sair, passa pelo homem ajoelhado junto à divisória do altar. É só quando está na rua – já a escurecer –, que compreende quem ele
era. Era Don Angelo. E estava a chorar. Nessa noite, Emily recebe dois telefonemas bastante inesperados. O primeiro é de Petra, a contar-lhe que nessa noite vai sair com «George»/Darren. Emily fica surpreendida. Nas suas últimas conversas, Petra deu-lhe a impressão de ter desistido de «George»/Darren por causa das enormes dificuldades logísticas que sair com alguém envolve. Não consegue encontrar uma babysitter capaz de lidar com Harry, é impossível arranjar lugar para o carro no centro da cidade, não tem dinheiro para andar de táxi e não está para fazer a depilação. Mas, apesar de tudo isso, ali está ela a anunciar-lhe que os dois vão ver uma peça ao Theatre Royal e que a seguir vão comer qualquer coisa. – Foi ele a tratar de tudo – acrescenta, na defensiva. – Não pude recusar. Emily diz-lhe que claro que ela tem de ir, que se divirta, que não faça nada que ela própria não faria e por aí fora. Ao pousar o telefone sente-se ligeiramente – apenas ligeiramente – invejosa. Ainda não contou a Petra a respeito da sua noite com Chad. O segundo telefonema é da sua mãe, o que é ainda mais invulgar. Emily telefona sempre à mãe nos domingos de manhã; sabe que a sua mãe gosta da rotina e costuma telefonar no fim do compacto da série radiofónica The Archers. Mas ali está a mãe a ligar-lhe a uma terça-feira, apenas dois dias desde a última vez que falaram. Alguma coisa não deve estar bem. – Há algum problema? – são as primeiras palavras de Emily. – Não – responde-lhe a mãe, indignada. – Tenho direito a telefonar à minha filha, ou não? – Claro que tens. Fico contente por te ouvir. Há algum problema? É claro que há um problema. Os seus pais tinham combinado passar o Natal com David e Kelly, a sua companheira. Mas Kelly fez asneira com as combinações (claro) e também convidou os pais, que moram em Newcastle. – Não podem ir todos? – pergunta Emily com grande falta de tato. – Bem, não se pode dizer que haja espaço para todos naquela casinha minúscula, ou pode? – A mãe de Emily culpa integralmente Kelly pela falta de sucesso material de David, apesar de David ter andado igualmente «apertado» enquanto vivia com a sua primeira mulher, Sue (uma rapariga lá da zona), e depois com a segunda, Linda (a melhor amiga de Sue). É verdade
que ficou pior das finanças desde que trocou Linda por Kelly, mas Emily não consegue entender porque será isso inteiramente culpa dela. Gosta bastante de Kelly, que é esteticista e que está sempre a prometer que lhe vai arranjar as sobrancelhas. – É ela – diz a mãe de Emily. – Ela não nos quer lá. – De certeza que isso não é verdade… – Claro que é verdade. Ela prefere ter lá os pais com aquela sua maquineta de karaoke e os seus cocktails de cores esquisitas. E também vão levar aquela irmã dela… Sabias que está grávida? – A Kelly? – Não, a irmã. Acho que o nome dela é Leanne. – Julgava que a Leanne ainda andava na escola. – E anda. Eles são esse tipo de família. – Falaste com o David? – pergunta Emily sem grande esperança. Sabe que a sua mãe não costuma falar com nenhum dos dois filhos. Apesar disso, dá-se melhor com eles do que com ela. – Não serve de nada falar com ele. O David toma sempre o partido dela. – Bem, trata-se da mulher dele. – Ela não é mulher dele – replica a mãe, a silvar de raiva. – A sua parceira de facto, então. Uma fungadela. – Isso diz tudo. – Mãe! A Kelly é boa pessoa. Ama o David e é excelente com os filhos dele. A mãe fica em silêncio, um silêncio cheio de zumbidos e bastante caro. Por fim, diz: – Não posso esperar que compreendas. Tu, que vives aí na tua grande casa em Itália. E então Emily diz, como talvez a mãe estivesse à espera que ela dissesse desde o início: – Porque é que não vêm passar o Natal connosco? 14 No original, «Chat, chat, chat. Chat, cat, fat, bat.» (N. do E.)
2
A
igreja encheu-se de gente para o funeral de Carlo Belotti e de Pino Albertini. Para além disso, é Dia de Todos os Santos, um dia de festa a que, até agora, Emily nunca ligou nenhuma (em Inglaterra, sempre lhe pareceu que o dia mais importante era o anterior, o Dia das Bruxas), mas que, claramente, é de grande significado em Itália. Todas as estatuetas foram limpas e a única relíquia que possuem ali na igreja (uma das unhas de Santo António) foi colocada em exibição, resplandecente na sua caixa de ouro. Grandes arranjos de flores enchem a igreja de um perfume enjoativo e inebriante e as velas ardem intensamente no altar. Até Don Angelo vestiu esplendorosos paramentos de cor púrpura, que, na opinião de Emily, parecem mais adequados a um imperador do que a um padre. Senta-se num dos bancos pretos. As filas da frente parecem estar totalmente ocupadas pela família de Olimpia. Ela também ali está, vestida de preto da cabeça aos pés, incluindo um véu, ladeada do marido, os dois filhos e respetivas famílias. Emily sabe que Olimpia é a mais nova de sete irmãos e a única rapariga, supondo por isso que alguns dos homens idosos nas filas da frente sejam seus irmãos, embora decerto já não estejam todos vivos. Também ali estão vários jovens: crianças muito excitadas vestidas com a roupa de domingo, bebés cujos guinchos repentinos são rapidamente silenciados, e adolescentes de cabelos compridos, blusões de pele e ar taciturno. Não há sobreviventes na família de Pino Albertini, exceto um primo afastado que, sentado ao lado da mulher, parece nervoso por estar cercado pelo clã Belotti. Monica contou a Emily que a família de Olimpia pagou tudo – um funeral de herói para o seu falecido pai. Os caixões, ambos cobertos por bandeiras de Itália, são trazidos para a igreja por homens da agência funerária vestidos de preto. Faz-se um silêncio absoluto, entrecortado apenas pelo ruído dos passos no chão de pedra. O silêncio surpreende Emily; esperava ouvir música, os costumeiros hinos religiosos para elevar o espírito. O silêncio, a quietude da congregação, as
luvas pretas dos homens que trazem os caixões – tudo aquilo lhe parece profundamente sinistro. Dá por si – ela, que é, provavelmente, a pessoa ali na igreja que menos ligação pessoal tem com a tragédia – com vontade de dar um berro, de fazer qualquer coisa que quebre aquela horrível tensão. Baixando o olhar, fica surpreendida ao ver que as suas mãos se fecharam sobre as costas do banco da frente. Por fim, Don Angelo fala. Asperge água benta de um recipiente de prata e convida Olimpia e o primo de Albertini a aproximarem-se e a colocarem Bíblias e crucifixos sobre os caixões. Olimpia fá-lo com o tempero dramático da praxe; já o primo parece apenas embaraçado. E então começa o funeral. Emily fica bastante aliviada ao constatar que o serviço é igual à habitual missa católica, embora com alguns salamaleques adicionais. O coro canta em latim, muito bem, e um dos jovens taciturnos ergue-se para fazer uma longa leitura (uma das epístolas de São Paulo, parece-lhe). Em seguida, Don Angelo dirige-se ao púlpito para fazer o sermão. Emily não pode deixar de admirar o estilo do padre. Durante um minuto completo, limita-se a ficar ali parado, de paramentos purpúreos a brilhar à luz das velas. Depois, ergue uma mão e diz: – Queridos fiéis… Emily recorda a sua performance quando incitou os moradores da vila a não permitirem que Raffaello fizesse as escavações. – Queridos fiéis – repete Don Angelo –, este é um dia de tristeza para todos nós. Este é um dia em que as feridas do passado têm de ser reabertas. Não pode deixar de trazer à memória um tempo de que alguns de nós ainda se lembram e do qual já todos ouvimos falar. Um tempo de vizinhos contra vizinhos, em que um medo e uma agitação enormes reinavam nos nossos corações. Mas também é um dia feliz. É um dia em que podemos acolher de volta na nossa comunidade os nossos queridos irmãos já falecidos. É um dia em que os recordamos com enorme respeito e afeto, um dia em que podemos rezar pelas suas almas e encomendá-las a Nosso Senhor Jesus Cristo. É um dia em que podemos enterrar os nossos queridos irmãos no chão consagrado do nosso cemitério, ficando com um lugar onde os poderemos recordar e também continuar a rezar por eles e a encomendar as suas almas a Deus. Às suas famílias, que, bem sei, têm rezado pelos seus entes queridos diariamente ao longo dos últimos sessenta anos, este dia oferece um lugar para o derradeiro repouso. Um lugar onde poderão descarregar o pesado fardo de
dor que têm carregado. Escuta-se um violento soluço vindo do banco da frente e Emily tem a certeza de que foi Olimpia a sua autora. Tem a cabeça inclinada para baixo e os seus ombros tremem. Com visível hesitação, o marido conforta-a com palmadinhas nas costas. Don Angelo prossegue. Fala num tom tão lento e ponderado que, por uma vez, Emily consegue entender cada palavra do que ele diz. – Queridos fiéis: estes foram dois homens extraordinários. Numa altura em que a filiação numa brigada de guerrilheiros era punível com a morte, estes homens lideraram e organizaram a resistência armada ao inimigo. Eram dois homens sem medo, sem… – Detém-se um segundo, olhando para a família de Olimpia. – … sem as habituais dúvidas que afligem os seres humanos. – Fazendo nova pausa, torna a olhar para baixo, e, pela primeira vez, parece vacilar. Passa uma mão pela testa. A congregação permanece absolutamente imóvel, aguardando. Partículas de pó dançam no ar. Emily observa o desfiar de contas do rosário nas mãos da sua vizinha. Clique, clique, clique. E então Don Angelo ergue a cabeça. – Eu conheci estes dois homens – diz. – Não muito bem. Era apenas um rapaz, mas conhecia-os de reputação, conhecia as suas famílias e sabia os riscos que eles corriam. E presto-lhes a minha homenagem. Após estas palavras, há uma ligeira agitação no interior da igreja. Emily olha em volta e vê Romano e Anna-Luisa, sentados algumas filas à sua esquerda. Porque terá Romano, que é filho de um fascista, vindo ao funeral de um líder dos guerrilheiros? Não sabe a resposta, mas o rosto de Romano, calmo e respeitoso, não deixa transparecer o menor desconforto. A sua expressão é a mesma de quando se benzeu antes de levar os dois corpos da propriedade dela. Superstição, diria Monica. Mas a Emily parece que naquele dia, na igreja, está em jogo algo mais forte do que a superstição. Talvez seja algo igualmente obscuro e indeterminável, mas é algo que une aquela comunidade – uma memória coletiva, crença coletiva ou talvez mesmo um medo coletivo. Está ali, nas velas e nas relíquias dos santos. É visível no rosto de Don Angelo enquanto ele se dirige à congregação com os seus paramentos roxos, sentiu-se na voz do jovem taciturno enquanto ele lia uma das epístolas de São Paulo, sente-se nas mãos juntas de Romano enquanto o camponês reza pelo inimigo do seu pai, e também estava presente, apercebe-se então Emily, nas palavras de Raffaello quando ele lhe falou dos guerrilheiros escondidos
pelas colinas. Don Angelo continua o seu sermão, agora numa voz mais forte, de tal maneira que as suas palavras ecoam no fundo da igreja: – Presto-lhes a minha homenagem – diz –, não só pela sua coragem, que era inegável, mas também pela sua convicção. Nenhum dos dois foi atormentado pelas dúvidas e pelos medos que, nessa altura, assaltaram tantos de nós. Tinham as suas convicções e por isso conservaram a sua integridade até ao fim. Hoje rezamos, queridos fiéis, rezamos a Nosso Senhor Jesus Cristo, que também viveu num território ocupado, rezamos a pedir-Lhe para jamais tornarmos a passar por tempos assim. Rezamos para nunca mais termos de enterrar os nossos irmãos, os nossos camaradas, em circunstâncias parecidas. Rezamos para que não sejamos testados. Rezamos para que os anjos conduzam as almas dos dois aos Céus, onde se sentarão à direita do Pai. E rezamos para que nos possamos juntar a eles quando a nossa hora chegar, quando todos os males forem curados e o mundo ficar em paz. – Acrescenta mais qualquer coisa, mas fá-lo num tom tão baixo que, a princípio, Emily não percebe o que ele disse. Mas depois, como se estivesse a rebobinar uma cassete, o seu cérebro reconhece as palavras e repete-as, primeiro em italiano e depois em inglês. «Rezamos», disse Don Angelo, «para que sejamos capazes de esquecer.» Don Angelo baixa a cabeça e Emily não percebe se ele já terminou ou não. E então ele ergue os braços e diz: – Credo… Em uníssono, a congregação põe-se de pé e entoa, repetindo a oração que ele vai entoando: – Credo in un solo Dio… Algo vacilante, Emily põe-se de pé. Jamais se acostumará àquela maneira que os católicos têm de fazer tudo em sincronia. A oração parece interminável e a sua vizinha do lado, de olhos cerrados, vai oscilando para trás e para diante. Voltando-se para trás, Emily vê Antonella de pé ao lado do seu filho Andrea. Antonella sorri-lhe, o que faz Emily sentir-se bastante melhor. Seguem-se mais hinos e orações em coro. O ar está saturado de incenso e Emily começa a ficar com dor de cabeça. Recorda que, em Oxford, um padre costumava dizer-lhe: «No Além há apenas dois odores: o do enxofre e o do incenso.» Naquele momento, Emily pergunta-se se o do enxofre não será
preferível. Depois, obedecendo a um sinal invisível, a congregação põe-se de pé e começa a formar uma fila para a comunhão. Para comungarem, têm de passar pelo meio dos dois caixões, que foram colocados no corredor central. Quando Romano e Anna-Luisa passam por ela, Emily observa-os atentamente. Ao chegarem junto das bandeiras italianas, Romano pousa uma mão sobre o caixão de Carlo Belotti e os seus lábios movem-se silenciosamente. Impassível, Anna-Luisa observa o marido. Emily nota que Antonella é praticamente a única pessoa que não vai comungar. Terá sido excomungada por ser mãe solteira? Uma coisa dessas já não deve ser possível nos tempos atuais, ou será que é? Emily lembra-se da primeira vez que foi à igreja com Michael. Ele persignou-se quando passaram pelo altar e ela pensou em como isso o fazia parecer tão reservado, tão italiano, e mesmo, de certa forma, fascinante. Pensar que aquele homem, o seu namorado, pertencia àquela religião sombria e secretista… Pensar que ele partilhava um misterioso ADN católico com Graham Greene, Evelyn Waugh e o poeta Gawain… Lembra-se de ter ficado muito impressionada e também de se sentir profundamente inferior a ele. Os seus pais só iam à igreja quando havia algum casamento ou funeral, e nunca tinham sofrido de algo tão romântico como a dúvida. O pecado, os sacramentos, a dúvida, a salvação – Emily sente que tudo isso continua para além da sua compreensão. A dúvida. Don Angelo falou muito a respeito da dúvida – o que talvez seja um tema estranho para uma missa fúnebre. Prestava homenagem aos dois homens pela sua convicção, afirmou. Convicção em quê? Convicção na vida após a morte? Mas Don Angelo, sendo um padre, decerto partilha de tal convicção. Convicção de que lutar contra os Alemães estava certo? Mas decerto toda a gente pensava isso, não? Isto é, toda a gente menos os fascistas. Emily observa Romano a passar pelos bancos onde está sentada a família de Olimpia. Parando, abraça-a carinhosamente. Anna-Luisa faz o mesmo. Emily começa a sentir a cabeça turva. Depois de mais um hino, os caixões são erguidos e levados da igreja. As pessoas vão baixando a cabeça à sua passagem e Emily fica atónita ao ouvir palmas (mais tarde Antonella explicar-lhe-á que, nos funerais italianos, aplaudir é uma demonstração de respeito). Emily junta-se à congregação para sair da igreja. Tenta parar e localizar Antonella, mas é levada na multidão, saindo para o cemitério. Lá fora sopra um vento forte e os paramentos de Don Angelo esvoaçam
como um estandarte. A grande cruz é sacudida violentamente para trás e para diante. As palavras de Don Angelo, parado diante das duas sepulturas abertas, são levadas pelo vento. Mas, cá atrás, Emily ouve um suspiro como mais uma rajada de vento perpassar a multidão quando Olimpia e os irmãos lançam terra sobre o caixão do pai. As bandeiras italianas já foram recolhidas e um dos ajudantes de Don Angelo (Emily não tem a certeza do nome que lhes é dado) dobra-as e entrega-as aos familiares com uma expressão reverenciosa. E então o funeral termina e as pessoas começam a afastar-se, subitamente a rir, a trocar piadas e a acender cigarros. O feitiço foi quebrado. Com a multidão a dispersar, Emily é surpreendida pela visão de Raffaello, parado entre as sepulturas, invulgarmente elegante num casaco preto comprido. Emily aproxima-se dele, evitando olhar para as duas sepulturas novas, que os coveiros já começaram a fechar. – Não o vi na igreja – comenta. Raffaello encolhe os ombros. – Não entrei. Eu… não gosto muito de funerais. Emily está prestes a responder-lhe que ninguém gosta de funerais, mas então recorda-se. A mulher dele. Raffaello deve ter visto a sua esposa ser sepultada com vinte e poucos anos. Não admira que não goste de funerais. – Esperei cá fora – explica ele após uma pausa. – Queria apresentar as minhas condolências. Afinal de contas, pertenci à família Belotti por afinidade. Claro, Chiara, a mulher de Raffaello, era sobrinha de Olimpia. Portanto, Carlo Belotti era seu tio-avô. – É tão estranho… – diz Emily por fim. – O quê? – Tudo isto. O funeral. Aqueles homens morreram há sessenta anos, mas tudo parece estar ainda… fresco, tanto sofrimento… – Sessenta anos. – Raffaello encolhe os ombros. – Isso não é nada. – Para um arqueólogo. – Não apenas para um arqueólogo. – Raffaello detém-se e aponta para o cemitério, onde Olimpia e os seus irmãos ainda se encontram, junto à sepultura do seu pai. – Para estas pessoas. Ainda há muita gente viva que se recorda da guerra. Lembram-se de quem estava de que lado e de quem traiu quem. E, quando eles morrerem, as suas famílias recordar-se-ão. – Don Angelo diz que devemos rezar para esquecermos.
– É um homem sábio. Chegaram junto aos degraus que descem até à estrada. Emily vê Antonella e Andrea a conversar com os pais de Giancarlo. Antonella ergue a mão, fazendo sinal a Emily para se aproximar. – A Antonella di Luca. É uma mulher encantadora – comenta Raffaello. – Sim, pois é. – Emily hesita, não sabendo exatamente o que dizer a seguir. Por fim, diz: – A Paris diz que vai partir para a América. – Sim. Daqui a alguns dias. – Quando é que regressa? – Mal profere estas palavras, Emily amaldiçoase. Como pode ela ter-lhe perguntado semelhante coisa? Mas Raffaello apenas sorri. – Regresso a casa no Natal – responde. Vendo Raffaello descer a estrada a passos largos, com o casaco preto a esvoaçar nas suas costas, Emily pensa no que ele disse. Casa – foi essa a palavra que usou. «Regresso a casa no Natal.» Qual será para ele a sua casa? Monte Albano, onde metade dos habitantes acha que ele é a encarnação do Diabo? Ou as colinas, com os seus túmulos etruscos? Emily sacode a cabeça para se livrar daquela imagem e, em passo vagaroso, vai ter com Antonella.
3
T
rês dias depois é o décimo sétimo aniversário de Siena. Ultimamente a sua filha mais velha tem andado a comportar-se de uma forma tão estranha que Emily nem sabe como há de sugerir que celebrem a ocasião. No ano passado, Siena fez uma festa lá em casa e Giancarlo partiu o precioso espelho veneziano de Emily (pelo que ela lhe deseja sete anos de azar contados até ao último dia), mas quando pergunta à filha se quer juntar alguns amigos, ela responde-lhe que não. Quererá ir até algum sítio, talvez Florença ou Pisa? Não, obrigada. Por fim, Siena lá lhe diz que o que lhe apetece mesmo é ir comer fora. «Com as tuas amigas?», pergunta Emily. «Não», responde-lhe Siena. «Contigo e com a Paris.» Emily fica espantada. Por um instante, receia começar a chorar. Siena, que em geral a trata como se ela fosse a irmã menos inteligente do idiota da aldeia, quer passar tempo com ela. Siena, que costuma estar sempre no centro de um grupo de amigos risonhos e confiantes, prefere sair com a mãe e com a irmã (embora não tenha incluído o irmão). E então, quase de imediato, começa a ficar preocupada. Quererá isso dizer que Siena cortou relações com todos os seus amigos italianos? Significará o fim do namoro com Giancarlo que a partir de agora ela vai ser ostracizada em Monte Albano? Com um esforço sobre-humano, Emily consegue não dizer nada disto à filha. – Isso seria ótimo, minha querida – responde. – Onde é que queres ir? Siena encolhe os ombros. – Não importa – responde, no habitual tom indiferente em que costuma falar com a mãe. Ao ouvi-lo, Emily fica mais aliviada. Há três restaurantes em Monte Albano. O primeiro é uma grande pizzeria, onde costumam ir os jovens. Há mesas na rua e, lá dentro, um grande forno a lenha. Pode-se comprar um jarro de vinho por três euros e as pizze são do tamanho de tabuleiros de chá. É um estabelecimento acolhedor e animado, e Emily já ali foi várias vezes com os filhos. Mas, para o aniversário de Siena, parece-lhe que devem ir a um lugar especial. Além disso, é provável que Giancarlo esteja na pizzeria.
O segundo restaurante fica escondido ao fundo de uma ruela escura à saída da piazza central. Vem mencionado em diversos guias turísticos e, supostamente, o pato com figos é qualquer coisa de divinal. Mas há apenas seis mesas e, sempre que lá come, Emily tem a impressão de estar em exibição. A mulher do chef vai trazendo prato atrás de prato, e os fregueses têm de soltar muitos «Oh!» e «Ah!» e comentar como tudo está tão bom. É inegável que a comida é excelente, mas a experiência acaba por ser esgotante. Da primeira vez que ela e Paul lá foram, Emily teve a mórbida sensação de que não iam conseguir sair dali com vida. Sentindo-se cheia a ponto de rebentar, começou a temer o claque-claque dos saltos altos da mulher do chef, já que esse som anunciava a chegada de mais um prato. Comer deixou de ser um prazer e converteu-se numa tortura. Emily só conseguia lembrar-se de João e Maria a serem empanturrados pela bruxa. E, ao pensar na história infantil, notou que aquela sala de jantar, com as suas paredes cor de morango e as suas cadeiras arredondadas como chupa-chupas, até se parecia com a casa da bruxa. Quando finalmente foram autorizados a sair, a mulher do chef forçou-os a aceitar um pacote de biscoitos caseiros, não fossem eles sentir fome durante o regresso a casa. No guardanapo de papel via-se a marca de bâton de um beijo. O terceiro restaurante, o La Foresta, é bastante popular entre as famílias de Monte Albano. É um lugar tradicional, com o interior em madeira escura com aplicações douradas, e cá fora, sobre um estrado de madeira, há algumas mesas. Não vem mencionado em nenhum guia turístico, mas Emily já ouviu dizer que a comida é boa, por isso decide que será lá que irão no aniversário de Siena. Não lhe parece que tenha de ligar a reservar mesa para uma quintafeira à noite. Este restaurante também fica na piazza, em frente à pizzeria, pelo que poderão começar por fazer uma passeggiata. Só espera que Paris não comece a queixar-se da comida. No dia de aniversário de Siena chove durante toda a manhã. As chuvas de novembro, informa-a Olimpia, com uma satisfação diabólica. Continua a ir lá a casa duas vezes por semana para fazer as limpezas, embora a sua relação com Emily tenha mudado desde que os corpos foram encontrados. Não que tenha ficado a gostar mais dela (na verdade, Emily já a surpreendeu a fitá-la com algo muito parecido a ódio), antes parece que agora a detesta de igual para igual, e não como detestaria uma qualquer estrangeira estúpida. Agora dirige-se-lhe sempre em italiano, o que, embora dê azo a
desentendimentos uma vez por outra, parece um primeiro passo para a aceitação, considera Emily. E, embora Olimpia continue a desaprovar a sua chaleira e a sua propensão para acumular toalhas sujas no bidé, a expressão «tipicamente inglese» já não se ouve com tanta frequência. Siena abre os presentes ao regressar da escola. Esclareceu antecipadamente que preferia assim e Emily fica contente ao ver que ela veio com vários embrulhinhos e cartões que os amigos lhe deram na escola. Também ficou contente quando, alguns dias antes, receberam uma encomenda com o nome de Siena escrito na caligrafia de Paul. E Emily nem sequer teve de lhe lembrar a data. Talvez afinal a personal trainer seja uma boa influência. Os presentes de Paul são um cheque e uma mala de mão (pequena e chique, mais uma prova do bom gosto da sua nova mulher). Emily oferece-lhe umas calças de ganga e uma pulseira, e Paris oferece-lhe sais de banho («Não foram testados em animais»). Siena declara-se satisfeita com os seus presentes, veste as calças de ganga, põe a pulseira e guarda o telemóvel na mala de mão. Até agora, está tudo a correr bem. Até a chuva parou quando saem de carro rumo a Monte Albano. Charlie ficou muito contente por ficar com Monica, e mesmo o Totti só ganiu por alguns minutos (ou pelo tempo que Monica demorou a abrir uma lata de comida para cão). Emily estaciona junto à muralha da vila e as três caminham pelas ruas ao escurecer, em direção à piazza. Emily adora as noites de inverno em Itália; as montras iluminadas parecem pequenas joias e as ruas empedradas brilham com a água da chuva. Além disso, as lojas italianas parecem não embarcar em exageros por causa do Natal. Embora já seja novembro, as montras ainda exibem as grinaldas das colheitas, os amontoados de nozes e de castanhas e os cestos com pequenas clementinas. E, mesmo em dezembro – Emily já o sabe –, as decorações natalícias resumir-se-ão aos panettoni dentro de caixas coloridas, e também, claro está, ao omnipresente presépio. Na piazza, as luzes de Natal brilham nas árvores e há uma banda a tocar. Siena chega ao ponto de apertar o braço de Emily. – Não é bonito, mãe? – É lindo – concorda Emily, apertando-lhe também o braço. Até Paris admite que a música é agradável. – Pelo menos é melhor do que aquilo que o Giancarlo toca. – Ora, se não é a signora Robertson, com as suas duas encantadoras filhas!
Emily volta-se. Ali, sentado na esplanada de um dos cafés, está Raffaello, de cabelos revoltos e brinco a reluzir. Está com um grupo de homens, um deles Tino, o polícia que foi investigar a descoberta dos corpos. – Olá – cumprimenta-os Emily, algo nervosa. – A que deve Monte Albano esta honra? – Raffaello parece muito satisfeito consigo mesmo, pensa Emily. Os outros homens riem. Estão obviamente a apreciar o seu talento para manter conversa com a inglese. – É o aniversário da Siena. – Ah, muitos parabéns, Miss Siena. – Obrigada – responde ela, com um ar tímido. – Fazes dezasseis anos? – Dezassete! – Siena não está disposta a tolerar confusões. – Desculpa, dezassete. Ainda melhor. Vão jantar? – Sim, vamos ao La Foresta. Tino ri-se e diz qualquer coisa em italiano. Mas Raffaello limita-se a assentir com um ar sério. – É uma boa escolha. – É melhor irmos andando – diz Emily. – Buon appetito. – Obrigada. Ao afastar-se, Emily julga ouvi-los a rir novamente. De facto, os Italianos conseguem ser muito irritantes. Do outro lado da piazza, a pizzeria está cheia. Emily julga ver Giancarlo sentado a uma das mesas, no meio de um grupo ruidoso e agitado. Não sabe se Siena o terá visto. Embora a chuva tenha recomeçado, a praça vai-se enchendo de gente e de Vespas, e até se veem um ou dois carros, que ali são proibidos. A passeggiata está no auge. Emily fica bastante aliviada quando finalmente mergulham no acolhedor ambiente sombrio do La Foresta. Mas então dá-se o desastre. O restaurante está cheio. Ao que parece, está a decorrer uma convenção de cacciatori (caçadores) e as mesas estão a abarrotar de homens barbudos que discutem armas e munições. Embora se mostre solidário, o empregado de mesa ergue as mãos abertas, num gesto de impotência. – Mil desculpas, signora, mas o que é que eu posso fazer? Emily fica parada à entrada, sem saber o que fazer. Paris começou a resmungar entredentes e Siena parece mergulhada em desespero. Como
podem voltar à piazza e enfrentar o riso da multidão, com Giancarlo sentado na pizzeria? E está a chover. «Oh, por que diabo não reservei eu uma mesa?», pensa Emily. – O que fazemos, mãe? – pergunta Paris. – Vamos ter de voltar para casa – responde Siena. – Que belo aniversário. – Desculpem… – diz Emily, pelo que lhe parece ser a milionésima vez na sua vida. Mas então ouve uma voz atrás delas: – Posso ajudar? É Raffaello, ocupando por completo o vão da porta e sacudindo a água da chuva do cabelo. Emily começa a explicar-lhe a situação com os cacciatori, a pizzeria e a inexistência de uma reserva, mas então apercebe-se de que Raffaello está a olhar para o empregado e não para ela. – Signor Raffaello! – exclama o empregado, visivelmente encantado. – Porque não nos disse que vinha? – Eu não vou jantar – esclarece Raffaello. – Mas não tem uma mesa aqui para as minhas amigas? – Sì, sì – responde o empregado, com muito à-vontade. – Se esperarem um minuto, eu arranjo-lhes uma mesa. E afasta-se apressadamente para resolver o problema. Ao que parece, vai desencantar uma mesa do nada. Emily volta-se de boca aberta para Raffaello. – Como é que conseguiu uma proeza destas? Raffaello sorri-lhe. – Lembra-se de eu lhe ter dito que a minha família tinha um restaurante? – É este? – Sim. Há já várias gerações que o La Foresta está nas mãos da família Murello. Emily recorda a história dos alemães jantarem ali e deixarem gorjetas chorudas. Olha em redor para as mesas cheias de gente e imagina-as ocupadas por homens vestidos de uniforme nazi, e depois pensa na bisavó de Raffaello, enfiada na cozinha, a cozinhar para salvar a pele. – Então a sua família ainda gere o restaurante? – Sim. Não se lembra de eu lhe ter dito que um dos meus tios-avós tratou de não levantar ondas e acabou por enriquecer? – Sim. – Pois bem, foi ele quem herdou o restaurante.
– Ainda é vivo? – Perfeitamente. É o zio Virgilio. Já vai a caminho dos oitenta, mas mantém-se rijo como um pero. Supostamente, é o seu neto Renato a gerir o negócio, mas continua a ser o zio Virgilio quem toma todas as decisões. O Renato é aquele ali. – Raffaello aponta para um homem novo e de cabelos escuros, que está à conversa com alguns dos caçadores. O homem de cabelos escuros ergue a mão numa saudação, mas não se aproxima. É mais baixo de que Raffaello, e, de alguma forma, parece menos robusto. O empregado de mesa aproxima-se em passo apressado. – Preparei-lhes uma mesa muito bonita – informa, cheio de orgulho, apontando para uma pequena mesa que surgiu miraculosamente junto à janela. Outros empregados andam ali de volta, colocando os copos e os talheres. – Muito obrigada – diz Emily. – Bem, obrigada a si – acrescenta depois, voltando-se para Raffaello. – Não quer jantar connosco? – Não, trata-se de uma refeição em família. Mas, se me permitir, junto-me a vocês para o café. – Inclinando-se para o empregado, segreda-lhe qualquer coisa, e depois, erguendo a mão num gesto de despedida, sai porta fora. A refeição é estupenda. De alguma maneira, aquela ameaça de desastre ao início da noite acaba por tornar tudo ainda mais empolgante. As três adoram o restaurante, com as suas cabeças de veado empalhadas e fotografias emolduradas das Montanhas da Lua a decorar as paredes. Até adoram os caçadores, que estão sempre a irromper em cantorias estridentes e a lançar olhares simpáticos a Siena. Adoram a comida, que é simples e saborosa – pratos tradicionais toscanos, como ribollita e tortellini in brodo. Emily e Siena comem com apetite e até Paris lá consente em comer quase todo um prato de risotto. Quando chegam aos dolci, Emily já não tem espaço no estômago para mais nada, mas Siena convence-a a dividirem uma dose de profiteroles («Vá lá, mãe, é o meu aniversário»). O empregado de mesa, agora todo sorrisos, retira-se prontamente, e Emily está prestes a voltar-se para Paris para lhe perguntar se tem a certeza de que não quer uma fatia de bolo de chocolate quando todas as luzes se apagam. Siena dá um grito e Paris interroga, num tom enfastiado: – O que foi agora? – Parabéns a você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de
vida, hoje é dia de festa, cantam as nossas almas, para a menina Siena, uma salva de palmas! Ao inglês de sotaque carregado do empregado juntam-se as vozes robustas dos cacciatori, enquanto ele vai abrindo passagem por entre as mesas, trazendo um bolo com dezassete velas acesas. Seguem-se risos, aplausos e o (deliciado) embaraço de Siena. Quando ela sopra as velas do bolo, todo o restaurante dá vivas. Os caçadores recomeçam a cantar. – Mas como é que ele sabia? – pergunta Emily. – Disse-lhe um passarinho – responde uma voz atrás dela. É Raffaello, claro. – Foi o senhor que lhe disse que era o meu aniversário? – pergunta-lhe Siena, de faces coradas. Raffaello ri-se, mas não lhe responde. Quando se senta com elas, surgem na mesa copos de espumante, como se por magia. – Detesto espumante – diz Paris. Mas fala em voz baixa, quase em devaneio. – Eu bebo o teu – replica Siena, que, por esta altura, mal cabe em si de excitação. – Você é como um mágico – diz Emily a Raffaello. Também ela está muito excitada. – Porquê? Porque faço aparecer mesas? – Mesas, bolos de aniversário e espumante. – E cães – acrescenta Paris. – E esqueletos. – E cães e esqueletos – repete Raffaello. – De facto, sou um necromante. «Não um necromante», pensa Emily mais tarde. «Ele é mais um metamorfoseador.» De alguma maneira, a vida de todos eles assumiu outra forma com a chegada de Raffaello. Agora são uma família com um cão e com amigos. Estão no centro de uma descoberta e de um mistério que ainda parece ressoar por toda a vila. Emily tornou-se uma mulher capaz de dormir com um homem que não ama sem se sentir envergonhada. Siena tornou-se uma mulher (agora que fez dezassete anos, já é uma mulher, não?) capaz de deixar o namorado e de sair para jantar sem olhar para trás. E Paris tornou-se uma rapariga – quase – capaz de comer uma refeição em condições num restaurante. Claro que nem tudo isto se deve a Raffaello, mas a sua chegada parece ter tornado muitas coisas possíveis. Ele abriu portas, não só a do seu
restaurante mas também a do passado. Fez Emily ver a Toscana não apenas como o perfeito refúgio de férias da classe média, mas também como um lugar de segredos, de ossos há muito enterrados e de passagens espalhadas pelas colinas. Fê-la ver a morte, a traição e o homicídio, e, de alguma maneira, tudo isso em vez de a deixar aterrorizada, fortaleceu-a. Durante a refeição no restaurante, com os empregados a tratá-las como família, as bebidas oferecidas e a impressão de estar em casa num lugar público, Emily pergunta-se porque não terá pensado em Michael mais vezes. Quando ele a levou ao Vittorio’s foi como um rito de passagem, como se lhe estivesse a entregar a chave para entrar num mundo secreto. Mas, embora fascinada por Michael e por Gina, ainda assim nunca chegou a sentir que aquele fosse o seu lugar. Michael podia sentar-se e brincar com os empregados, mas ela continuava preocupada com as suas aulas. Michael podia estender-se ao sol na casa de Gina em Positano, mas, ainda assim, Emily continuava a sentir-se demasiado embaraçada para fazer topless. Mas Raffaello também é um forasteiro. É verdade que é um forasteiro nascido e criado ali na vila, alguém que pode sentar-se a beber um copo com um dos polícias dali e cuja família é proprietária do restaurante. Mas ainda assim é um forasteiro, o homem que se casou com a beldade local e a abandonou à morte, o homem com um sotaque americano e uma filha americana. Raffaello ofereceu o La Foresta a Emily como um presente de um forasteiro para outro. Em resultado disso, Emily sentiu-se não inferior, mas antes poderosa. A dada altura, o próprio Renato vem até à mesa deles e Raffaello apresenta-lhe Emily e as suas duas filhas. – É inglesa? – pergunta Renato num inglês fluente. – Vivi alguns anos na costa sul de Inglaterra. – Eu vivia em Brighton – diz-lhe Emily. – Brighton! Conheço bem. – Renato é um homem charmoso e hospitaleiro (pede a um empregado que lhes traga cafés e digestivi e pergunta a Paris se lhe apetece outra Coca-Cola), mas Emily fica com a impressão de que ele não gosta de Raffaello, e, o que talvez seja mais surpreendente, que o teme. Terminado o jantar, Raffaello leva-as até ao carro. Ficam parados a conversar na sombra das muralhas antigas, com a chuva a cair em volta deles, como um coro amistoso. – Obrigada por tudo – diz-lhe Emily. – Não tem de quê. Fico satisfeito por terem gostado desta noite.
– Foi muito agradável. A Siena teve um aniversário maravilhoso. – Ainda bem. Depois de uma pausa, Emily apressa-se a dizer: – Talvez possa ir jantar a nossa casa uma destas noites. Raffaello responde-lhe, com um peculiar inclinar de cabeça: – Infelizmente, parto amanhã para a América. – Amanhã? – Sim. Dia 5 de novembro. Noite de Guy Fawkes em Inglaterra. – Com aquele seu sorriso de pirata, ergue a mão em jeito de despedida e desaparece na noite. Diário de Paris: Aniversário da Siena. A noite foi OK. A S foi muito simpática em relação ao meu presente (e tinha de ser, custou-me 10 euros!) e pelo menos não tivemos de aturar aquele repugnante Giancarlo a babar-se para cima dela. Ainda nem acredito que a S teve o bom senso de lhe pôr os patins. Ela diz que não sente a falta dele, mas não quer falar sobre isso. Não vi se ele lhe enviou um cartão. Mas o Andrea sim. Fomos comer fora. Detesto restaurantes (toda aquela gente horrível a mastigar sem parar, a lambuzar-se e a fazer barulhos nojentos) mas este até nem era mau. Para começar, estava tão escuro que não se conseguia ver as pessoas a comerem, e depois estava lá uma data de caçadores a fazer um estardalhaço tão grande que não se conseguia ouvir nada. Comi um bocado de arroz e a minha mãe não me chateou muito. A princípio disseram que o restaurante estava cheio e eu pensei que a minha mãe ia fazer daquilo uma grande tragédia, mas depois o R apareceu e resolveu tudo. Parece que o primo dele é o dono do restaurante ou qualquer coisa assim. Depois o primo veio até à nossa mesa e fez-se de simpático. O R teve muita piada, pôs-se a picá-lo, a dizer que o restaurante é antiquado e que o primo devia pôr ali uma máquina de karaoke e servir hambúrgueres. Deu para ver que o outro ficou mesmo chateado. Quando voltámos para o carro, a minha mãe e o R ficaram a falar à chuva durante uma eternidade. É uma estupidez. A minha mãe não fala com ele quando tem oportunidade para isso e depois fica ali, com
um frio de rachar, a falar que nunca mais se cala. Eu e a Siena estávamos sempre a gritar-lhe que se despachasse e que entrasse no carro, mas ela não nos ligava. No caminho para casa, disse-nos que a avó e o avô vêm passar o Natal connosco. Vai ser horrível.
4
O
s pais de Emily chegam ao aeroporto de Forlì a 23 de dezembro. Emily está lá à espera deles, tristemente ciente do atraso do voo, o que para a sua mãe, já fará das férias um desastre. Serão um desastre que ela irá suportar estoicamente, mas, ainda assim, um desastre. Emily trouxe Charlie consigo (vê-lo devia animar qualquer pessoa, não?) e as suas filhas ficaram em casa com instruções para prepararem um jantar de boas-vindas. Dado que, quando as viu pela última vez, Siena estava a ouvir o seu iPod enquanto esticava o cabelo e Paris estava a dar os retoques finais na meia de Natal do Totti, Emily não está muito confiante quanto à refeição. Mas ao menos a casa está com uma aparência magnífica. Há grinaldas de heras em todas as portas, uma árvore de Natal gigante na sala de estar e velas perfumadas em todas as superfícies. Há ramos de pinheiro pendurados dos tetos e Emily preparou um verdadeiro bolo de Natal toscano. Com certeza os seus pais ficarão impressionados. Quando eles finalmente surgem na porta das chegadas, empurrando as suas malas com rodinhas, Emily muda de ideias. É claro que eles não vão ficar impressionados. Como pode ela ter sequer pensado que isso era possível? As primeiras palavras da sua mãe são: – Cinquenta e cinco minutos de atraso e nem sequer nos ofereceram uma chávena de chá. E o seu pai diz: – Trouxemos os nossos próprios saquinhos de chá. Estão na bagagem de mão. – Estou tão contente por vos ver! – replica Emily, beijando um e outro. – Olhem só, o Charlie também veio. Não está tão crescido? Os seus pais examinam-no com um olhar pessimista: – Não está tão crescido como a Ashley – diz finalmente a mãe de Emily. Ashley é a filha mais nova de Alan. Os seus pais foram à Austrália no ano anterior, visitar Alan e Debbie. – Pois não – responde Emily num tom brusco. – Bem, a Debbie é
praticamente uma gigante, não é verdade? Venham. Vamos para o carro. A mãe de Emily, Virginia (Ginny), é o tipo de mulher para o qual foi inventada a palavra «feminina». É baixa e franzina, e adora dizer a toda a gente que tem sempre de comprar roupa nos tamanhos mais pequenos. Emily também é baixa, mas, ao lado da mãe, sente-se imediatamente desmazelada, uma camponesa grosseira de cabelos desgrenhados e com a blusa cheia de nódoas de comida. As roupas de Ginny Robertson estão sempre imaculadas. Quando vai de viagem, embrulha as camisolas de malha em papel protetor e coloca os sapatos em sacos especiais. Pinta os cabelos de louro-cinza e usa sempre saltos altos. Caminha vacilante agora, procurando aceitar com coragem o facto de a sua mala ter ficado riscada no tapete das bagagens e pensando para consigo que a filha não devia andar sempre de calças de ganga. Emily acompanha-a a passos largos, sentindo-se masculina e pouco atraente ao lado da mãe. É ela quem puxa a malinha absurda, enquanto Ginny se vai lamuriando discretamente. Charlie tem de correr para os acompanhar; ainda não dirigiu uma palavra aos avós. Quando chegam ao Alfa, Doug, o pai de Emily, lança-se numa verdadeira palestra sobre a forma correta de guardar as malas no porta-bagagens. – Gostas do carro, pai? – pergunta-lhe Emily. – Um Alfa – responde-lhe ele num tom dúbio. – Ouvi dizer que não são de confiança. – Na verdade – replica Emily –, é o melhor carro que já tivemos. Foi carro do ano em 2000. – Está sempre a dar informações deste tipo ao pai. Doug Robertson nasceu em Glasgow. Conheceu Ginny enquanto estava a tirar um curso de formação profissional em Guildford (os dois trabalhavam num supermercado, ele como estagiário na gerência, ela no balcão de farmácia). Ela depressa o convenceu a pedir transferência para o Surrey, a pedir um empréstimo ao banco para comprar uma pequena moradia em banda e a casar com ela. Claro que o mais provável é ele não ter sido difícil de convencer; Ginny era uma rapariga bonita aos dezoito anos, no auge da sua famosa feminilidade. E Doug não se importou minimamente de trocar Glasgow pela calma do Sul. Atualmente, as suas únicas concessões às suas origens escocesas são uma preferência moderada pelo whisky e a forma como pronuncia os erres. Em criança, Emily adorava passar tempo com o pai. Era a sua princesinha,
a filha que ele tanto desejara depois de dois rapazes, e, embora na altura não o conseguisse articular por palavras, talvez sentisse, mesmo então, que era uma desilusão para a sua mãe. «Eu queria uma filha», costumava Ginny dizer, «para lhe poder entrançar o cabelo.» Mas os cabelos de Emily eram muito encaracolados e difíceis de pentear em trança, e ela depressa aprendeu a fugir e a esconder-se sempre que via a mãe aproximar-se de escova, pente e laçarotes cor-de-rosa nas mãos. Ginny matriculou-a no ballet, mas Emily preferia ler. Ginny comprou-lhe uma casa da Barbie, mas Emily preferia brincar com a velha pista de comboios dos irmãos. Ginny fazia-lhe bonitos vestidos cheios de franzidos, folhos e bordados, mas Emily preferia calças de ganga. Já nessa altura. Na sua juventude, Emily interpretava os silêncios de Doug como um sinal de companheirismo. De vez em quando ele chamava-lhe «hinny15» (mais uma relíquia das suas origens escocesas) e fazia-lhe bonecos com limpacachimbos. Porém, ao crescer, Emily começou a desejar ter alguém com quem falar, e nesse aspeto Doug era-lhe tão inútil como a sua mãe. «A nossa Emily podia falar por toda a Inglaterra», costumava ele dizer, mas Emily sabia que, embora o seu pai dissesse aquilo num tom afetuoso, não se tratava de um elogio. Supõe que foi nessa altura que começou a memorizar pequenas curiosidades para lhe contar, compreendendo que ele preferia os factos à ficção. Mas, ao serem contadas, aquelas informações perdiam de algum modo o seu poder de agradar e Doug nunca parecia muito interessado no número de países que há em África ou nas luas de Saturno. Gradualmente, também Emily começou a remeter-se ao silêncio, refugiando-se quase por completo num mundo de livros. Quando, ocasionalmente, tentava partilhar com os pais o seu entusiasmo crescente pelos livros, nunca parecia conseguir fazê-los compreender. Lembra-se de, certa vez, ter tentado explicar o enredo de Não Matem a Cotovia a Ginny: – E Boo Radley também era uma espécie de cotovia, compreendes? Se o trouxessem para a luz, seria como matá-lo… – Boo Radley? – interrogou Ginny, detendo-se nas escadas de espanador em riste. – Que raio de nome é esse? Doug e Ginny permanecem em silêncio enquanto Emily circula pelas estradas em volta do aeroporto até finalmente entrar na autoestrada. Sentado ao lado dela, o seu pai está hirto, de punhos cerrados sobre os joelhos, e, pelo
retrovisor, Emily consegue ver a mãe sentada no banco de trás, de olhos fechados. – Está tudo bem aí, mãe? – Estas estradas! Como é que aguentas? – Aguento o quê? – Todos aqueles carros a seguirem pelo lado errado da estrada. – Bom, para eles é o lado certo, compreendes? Habituamo-nos ao fim de algum tempo – explica Emily, acelerando para ultrapassar um camião. – Por acaso, os Italianos são ótimos condutores. Aqui há menos acidentes de viação do que em qualquer outro país da Europa. Aquela afirmação é recebida com um silêncio incrédulo. E então Doug diz: – Talvez eles simplesmente não participem os acidentes… – Sim – interrompe Emily, desejosa de aproveitar aquela oportunidade para partilhar com ele mais uma curiosidade. – Parece que sessenta por cento dos acidentes sem gravidade não são participados… – Aí tens – replica Doug com satisfação. No banco de trás, Ginny encolhese de medo quando um Ferrari os ultrapassa pela direita. Quando chegam à Villa Serena já começou a anoitecer. Os pais de Emily já visitaram a casa há dois anos, quando terminaram as obras de restauro. Nessa altura era verão e Ginny não parou de se queixar do calor e dos mosquitos. Doug adormeceu ao sol e apanhou um escaldão tão grande na cara que teve de ir às urgências. Emily está ansiosa para que eles possam ver a casa sob os benéficos efeitos do frio. Sobem aos solavancos pela estrada de terra («Esta estrada, Emily! Não podes fazer queixa à Câmara Municipal?!»), passam pelo amontoado de pedras de Raffaello e, por fim, aproximam-se da casa, acolhedora sob a pálida luminosidade sépia do entardecer. Emily tira as malas do portabagagens e depois vai buscar Charlie, que adormeceu na sua cadeirinha. – Queres levá-lo tu, mãe? – Da maneira como tenho as costas, ele é muito pesado para mim. «E eu a pensar que ele era pequeno em comparação com a Ashley», pensa Emily, irritada, erguendo Charlie e amparando-o no seu ombro, enquanto com a outra mão agarra na mala da mãe. – Tem cuidado com essa mala, Emily. Os meus medicamentos estão todos aí. – Ginny é diabética e está constantemente a mencionar a sua medicação. Quando os filhos saíram de casa, começou a trabalhar em part-time como
rececionista num consultório clínico e agora considera-se praticamente qualificada para exercer Medicina. Nunca está constipada, mas sim com uma «faringite estreptocócica», e refere-se sempre à doença como «condição clínica». Siena e Paris saem da casa para os receber e Ginny alegra-se visivelmente. Siena é a sua neta favorita. É loura e muito bonita, e por vezes até entrança os cabelos. – Siena! Deixaste crescer o cabelo. Está lindo. – Olá, avó. – Olá, Paris. Deus do Céu, pareces muito magra. – Obrigada, vovó – diz Paris, silenciando habilmente Ginny, cuja intenção não foi fazer-lhe um elogio. Para além disso, detesta que lhe chamem «vovó». Ao entrarem em casa, são recebidos por um glorioso perfume a agulhas de pinheiro e lasagne. Infelizmente também são recebidos pelo Totti, cuja presença ainda não foi explicada aos pais de Emily. O pastor-alemão empinase alegremente para Ginny, com a língua de fora e as enormes patas nos ombros dela. – Tirem esta coisa de cima de mim! – guincha ela. – Para baixo, Totti! – diz Emily, agarrando o cão pela coleira e puxando-o. – Oh, as minhas costas, os meus nervos… – Ginny deixa-se cair no banco de madeira do corredor. – De quem é essa criatura? – pergunta Doug num fio de voz. – É nosso – informa Paris. – O nome dele é Totti. – Não nos tinhas dito que tinham um cão – diz Ginny em tom de censura. – Já sabes que eu sou alérgica. – Não sabia que eras realmente alérgica – explica-se Emily, empurrando o Totti para a cozinha. – Pensei que simplesmente não gostavas de cães. – Não, sou alérgica – replica Ginny num tom firme. Orgulha-se muito das suas alergias, que se tornam mais numerosas a cada dia que passa. – E também sou asmática, sabes? – Bem, o ar por estas bandas é ótimo para a asma – informa Emily, ajudando a mãe a pôr-se de pé. – O Charlie ainda não teve nenhum ataque desde que chegámos a Itália e de certeza que te lembras como ele costumava andar quando vivíamos em Londres.
* O jantar é um sucesso moderado. Siena e Paris puseram a lasagne no forno, mas não fizeram uma salada nem aqueceram o pão. Ginny come muito pouco, culpando ora as suas alergias, ora a exaustão nervosa, ora a experiência traumática que sofreu às patas do Totti. Doug, por sua vez, anima-se ao fim de vários copos de Chianti e diz que a casa tem um aspeto encantador, que Emily é uma mulher cheia de talento e que Paul deve ser doido. – Ora, ele não é má pessoa – responde Emily, servindo-se de mais lasagne. – Agora arranjou uma namorada. Ginny deixa escapar um ténue gemido. Ela gostava de Paul; ele correspondia à sua ideia do genro perfeito – bem-parecido, charmoso e rico. Desconfia que Emily só pode ter feito algo verdadeiramente horrível para o afastar daquela maneira. Paris ergue o olhar, interessada. É a primeira vez que ouve falar na namorada. – E tu, Siena? – pergunta Doug. – Continuas a partir o coração a todos os rapazes italianos? – Não. Tinha um namorado mas entretanto rompemos. – Há muitos mais de onde esse veio – replica Doug num tom complacente. – E tu, Paris? – Para dizer a verdade – responde ela –, eu sou lésbica. Diário de Paris: Este foi um daqueles dias assim-assim. A manhã foi ótima. Decorámos a árvore e eu fiz uma meia para o Totti com todas as suas coisas favoritas: biscoitos Bonio, uma bola de borracha e uns collants velhos da minha mãe. Depois ela foi buscar os avós e eu e a Siena jogámos às cartas e vimos o episódio especial de Natal do Dad’s Army. A seguir chegaram os avós, e então começou aquela conversa: «Oh, Siena, és perfeita. Oh, Paris, és uma magricela.» Mas eu desforrei-me. Ao jantar disse-lhes que era lésbica. Foi espetacular! Pensei que a minha avó ia ter um ataque. A minha mãe gritou «Claro que não é!», o que me pareceu uma coisa muito homofóbica de se dizer. Acho que o avô nem sequer percebeu o que isso é. Se calhar, em
Glasgow não há lésbicas. Tenho quase a certeza de que não sou lésbica. É mais o oposto. Não gosto lá muito de mulheres. Estão sempre a falar de coisas patéticas como roupa, cabelo e quem disse o quê a quem. E, quando chegam mais ou menos aos dezasseis, passam a recusar-se a fazer qualquer coisa que seja divertida, como correr, nadar ou andar a cavalo. «Oh, não posso. É aquela altura do mês.» «Oh, não posso. Ainda me cai uma perna.» «Oh, não posso. Sou alérgica ao cloro, à relva, aos cavalos e à diversão.» Petra é a única mulher que conheço que é diferente. Vai correr todas as manhãs e também nada no mar. «Não está horrivelmente fria?», pergunta-lhe a minha mãe. Francamente! Às vezes até tenho vergonha dela. Seja como for, ao jantar a minha mãe deixou escapar uma informação interessante: o meu pai tem uma namorada! Já tinha mais ou menos adivinhado, por causa de umas coisas que a Siena disse, mas agora quero mesmo saber mais. Quem é ela? Será que a vou conhecer quando formos passar o Ano Novo com o meu pai? Amanhã tenho de apanhar a minha mãe a jeito e fazê-la contar-me tudo. Não sei dizer exatamente o que sinto por o meu pai ter uma namorada. Por um lado, compreendo que ele precise de alguém para cuidar dele. Sozinho não é capaz, só faz asneiras. Mas, por outro, porque é que não ficou aqui e deixou a minha mãe cuidar dele? Ela é boa com essas coisas todas. Suspeito que a resposta tem alguma coisa a ver com sexo, dinheiro e todas essas coisas que supostamente sou demasiado nova para entender. Mas eu entendo perfeitamente. Acho que é triste, patético e completamente egoísta. Mas entendo. 15 Variante de «honey», «querida» em português. (N. do E.)
5
A
véspera de Natal começa bem. Está uma manhã gelada e as Montanhas da Lua estão cobertas de neve. – Neve! – sussurra Charlie, em êxtase, debruçando-se da janela do quarto de Emily. – Aquilo não é neve, é gelo – diz Paris, parada à porta, destruindo a ilusão. – O gelo é tão bom como a neve, não é, meu ursinho? – diz Emily, abraçando-o e sentindo as suas bochechas macias muito frias. – Tenho os pés gelados – queixa-se Paris, observando os seus pés descalços sobre o chão de pedra. – Posso ir ligar o aquecimento? – Primeiro calça umas meias – recomenda Emily, enfiando uma camisola de malha. – De qualquer maneira, o aquecimento já está ligado. Mais tarde acendemos a lareira. A casa vai ficar quentinha e natalícia. Paris deixa escapar uma fungadela carregada de desprezo, à melhor maneira do avarento do conto de Charles Dickens, mas, ao regressar ao quarto, traz calçadas umas meias vermelhas com pequenos pais natais. – Meias de Natal – anuncia. – Também quero! – choraminga Charlie. – Quero meias com o Pai Natal! Emily observa as meias festivas de Paris, e, de repente, fica com vontade de chorar. Por esta mesma altura, no ano passado, a sua filha não teria calçado meias com pais natais por mais frio que estivesse a sentir. Tão-pouco teria enchido uma meia com presentes para o Totti ou ajudado a decorar a árvore. Por esta mesma altura, no ano passado, estava ela embrulhada nas suas roupas pretas a queixar-se de que em Itália não há cartões de Natal como deve ser. Mas também é verdade que por esta mesma altura, no ano passado, Paul estava com eles e ainda eram uma família igual às outras. É tudo muito confuso. Ginny e Doug aparecem para o pequeno-almoço e começam a queixar-se do frio. – Não sabia que podia fazer tanto frio em Itália – diz Ginny num tom incomodado, cobrindo os ombros com uma pashmina cor-de-rosa.
– São estas casas – explica Emily voltada para o fogão, onde está a fritar bacon (já sabe que um pequeno-almoço inglês completo é um requisito indispensável). – É por terem paredes grossas e chão de pedra. – Tens de o alcatifar – aconselha Doug. – Eu posso ajudar-te, se quiseres. – Em Itália nem sequer há uma palavra para «alcatifa» – responde-lhe Emily. Lembra-se de ter ficado a saber isto nas suas aulas noturnas em Clapham. – Só têm tappeto, que quer dizer «tapete». Siena entra na cozinha com o cabelo húmido, e Ginny põe-se a discorrer preocupadamente sobre as constipações. – Não há problema, avó – diz ela. – Ainda não me constipei desde que viemos para Itália. – Emily tenta não se mostrar triunfante. Serve ovos, bacon e pão frito aos pais, e dá um ovo cozido a Charlie e uma sanduíche de bacon a Siena. Em silêncio, vê Paris barrar uma fatia de pão com Marmite. – Come um pouco de bacon com ovos, Paris – pede Ginny. – Deus sabe que não te fazia mal engordares um bocadinho. Paris pousa o pão e o frasco de Marmite e sai da cozinha num passo altivo. Emily fica furiosa. – Mãe! Estás a ver o que fizeste? – O que foi que eu disse? – interroga Ginny num tom queixoso, voltando-se para Doug em busca de apoio. – Será que alguém me pode dizer o que foi que eu disse? – Nada – responde-lhe Emily, colocando os pratos sujos na máquina de lavar louça com gestos bruscos. – Nada, nada. – Parece-lhe que aquele vai ser um dia longo. Depois do pequeno-almoço vão até Monte Albano para verem as montras. Emily fica bastante surpreendida por Siena e Paris resolverem ir com eles, apertando-se no banco traseiro do Alfa com Charlie sentado no joelho de Siena («Isso é legal aqui?»). O Totti tem de ficar para trás por causa das alergias de Ginny e os seus ganidos seguem-nos até ao fundo da estrada de terra. Monte Albano está a abarrotar de gente. Parece que todos resolveram esperar pelo último minuto para fazerem as suas compras de comida de Natal. Há uma série de barraquinhas alinhadas na piazza, onde se vendem castanhas, azeitonas, panettoni e um sem-fim de carne ensanguentada: peru, pato, ganso
e carne de vaca de todos os tamanhos e feitios. Apesar da multidão, a atmosfera é alegre. De uma das lojas chega uma melodia tradicional que parece estar a ser tocada num carrilhão – «Viva, viva Natale arriva» –, mas não se escutam musiquetas de Natal, aquelas horríveis compilações de bandas como os Mud, os Slade ou os Wombles, que Emily recorda dos dias passados a fazer compras de Natal em Inglaterra. As pessoas vão parando amiúde para trocarem votos de boas-festas: «Auguri! Auguri! Buon Natale!» Todos vestiram as suas melhores roupas e as estreitas ruas medievais transformaram-se num fervilhante mar de peles, com as mulheres a exibirem os seus casacos de pele de marta e de raposa (tal como nenhuma mulher italiana deixa os cabelos ficarem grisalhos, também nenhuma mulher italiana de uma certa idade se deixaria ver no inverno sem o seu casaco de peles). Ginny fica fascinada com os presépios que se veem nas montras das lojas. Na padaria há uma madona feita de pão e um bebé num cestinho feito de massa entrançada. Na montra da loja de pronto-a-vestir veem-se três reis envoltos em compridas peças de tecido e uma Virgem Maria vestida de rosachoque. Num dos talhos vê-se um amontoado de animais peludos postados em adoração diante de um estábulo feito de chupa-chupas, o que revela uma enorme falta de tato. – Vê só aquilo, Emily! – Ginny aponta para uma loja de artesanato, onde uma Virgem Maria feita integralmente de conchas contempla um Menino Jesus tricotado. – Quem quer que tenha feito aquilo tem jeito para os trabalhos manuais. – Agrada-me – diz Doug. – Não é como em Inglaterra, com todos aqueles brinquedos barulhentos nas montras. – As crianças italianas costumam receber a maior parte dos presentes em janeiro, na Festa da Epifania ou no dia de Santa Lúcia – explica Emily. – Aqui, o Natal é sobretudo um dia religioso. – Mas nós vamos receber os nossos amanhã, não é? – interroga Paris, ansiosa. Charlie faz beicinho. – Quero presentes! – Sim, sim – apressa-se Emily a dizer. – Vão receber os presentes amanhã. – Não há como os seus filhos para a fazerem passar por mãe desnaturada. Depois de duas voltas completas à piazza, resolvem ir beber café e chocolate quente. As janelas do café estão embaciadas e a atmosfera ali
dentro é acolhedora e confortável. – Porque é que está tudo de pé? – pergunta Ginny. – Há muitas mesas livres. – Aqui o café é mais caro se nos sentarmos – explica Emily. – Quase todos os italianos o tomam de pé. – Ao dizer isto, escuta a voz de Raffaello: «Só os Ingleses é que dizem ‘um café’.» Onde estará Raffaello? Ele não disse que regressava a casa no Natal? Sentam-se e Angela, resplandecente numa camisola de caxemira vermelha, traz-lhes as bebidas. Siena cumprimenta-a educadamente e elogia a sua camisola. Ginny queixa-se de que o café está frio, embora com menos veemência do que é costume. O seu bom-humor é notável. – Emily! – Olhando por entre os casacos de peles, Emily vê Antonella a aproximar-se da sua mesa. Traz vestido um bonito casaco de camurça e tem as faces rosadas do frio. Está muito bonita. – Antonella! – Beijam-se nas duas faces e Emily apresenta-lhe os seus pais, apercebendo-se do olhar aprovador que a sua mãe lança tanto ao casaco como às botas de salto alto de Antonella. – Não queres sentar-te connosco? – convida Emily. – Só por um segundo, obrigada. – Doug, dando mostras de uma cortesia impressionante, traz uma cadeira e Antonella agradece-lhe com charme. Doug fica muito vermelho. – Queria encontrar-me contigo – diz Antonella, passando ao inglês em atenção a Ginny e a Doug. – Tenho um pequeno… regalo… para ti. – Tira da mala de mão uma pequena caixinha com um laçarote muito bonito. – Oh, a sério… não era preciso… – balbucia Emily, embaraçada por não lhe ter ocorrido comprar um presente para Antonella. – Por favor! Isto não é nada. E o Andrea… o meu filho… pediu-me que desse isto à Paris. – E entrega outra caixa, não tão bem enfeitada, a Paris. Paris fica vermelha como um Ferrari. – Paris! – Ginny é exímia a notar o embaraço alheio. – Tens um admirador? Paris baixa a cabeça e resmunga, furiosa: – Não! Claro que não! – É de um amigo da escola – explica Siena, vindo em auxílio da irmã. – Por aqui é mais ou menos uma tradição. – Ah, bom – diz Ginny, embora não pareça convencida. Antonella volta-se para Emily.
– Recebi hoje um cartão de boas-festas do Raffaello – conta. – Ai sim? – pergunta Emily, sentindo a boca ficar seca sem razão aparente. – Sim. Vai passar o Natal na América, mas volta para o Ano Novo. Mandate cumprimentos. – OK – diz Emily. Mas, durante a conversa que se segue, enquanto Antonella, muito divertida, vai tentando fazer perguntas sobre as tradições natalícias inglesas e os seus pais vão manifestando a sua evidente admiração por aquela atraente mulher italiana, enquanto Paris se mostra cada vez mais embaraçada e Charlie se contorce de aborrecimento, ela, Emily, só consegue ouvir a voz de Raffaello: «A Antonella di Luca. De facto, é uma mulher encantadora.» Tão encantadora que até merece receber um cartão de Natal, enquanto ela não recebe nada. Tão encantadora que até tinha um presente para ela; e, ao que parece, o seu filho também é suficientemente encantador para fazer Paris corar durante vinte minutos. É tão encantadora que, pelo resto do dia, Emily é assaltada por pequenas mas violentas pontadas de puro ciúme. Petra está a fazer empadas de frutos secos. Embora os dois filhos as detestem, ela acha que as deve fazer, visto ser Natal, e, para além disso, a sua mãe vai chegar durante a tarde. Petra não se dá bem com a mãe, uma mulher voluntariosa do Yorkshire que foi diretora de uma escola e para quem o problema de Harry é, no seu parecer profissional, «mimos a mais», mas, apesar de tudo isso, Petra entende que devem passar juntas aquele dia. Na verdade, passar o dia de Natal só com os filhos parece-lhe demasiado deprimente. Jake e Harry também não gostam de peru, por isso no ano passado comeram massa com atum e gelado. Os seus filhos limparam os respetivos pratos com óbvio deleite, mas Petra, ao levantar a mesa, achou que tudo aquilo estava errado, e que deveria estar antes a cobrir uma carcaça de peru com película aderente e a queixar-se de que iam passar uma semana inteira a comer peru frio, e a apanhar papel de embrulho amarrotado e aquelas pequenas tirinhas de papel com anedotas que saem nos crackers (mas estes também estão proibidos ali em casa porque assustam Harry). Em suma, devia ter preparado uma celebração de Natal a sério, como qualquer outra mãe do planeta. Por isso, este ano, ela e a mãe vão comer um belo peru comprado na Marks & Spencer e raios a partam se não vai fazer empadas de frutos secos. O telefone toca e Petra levanta o auscultador com uma mão suja de farinha.
Tem a vaga suspeita de que é Ed a telefonar para desejar feliz Natal aos miúdos. E ela espera que seja mesmo ele, porque isso vai deixar os filhos contentes, mas não está nada ansiosa pela inevitável batalha que será fazer Harry vir ao telefone. Ele detesta o telefone, mas Ed nunca consegue entender isso e acaba invariavelmente por acusar Petra de estar a virar o filho contra ele. Pelo menos, Jake não vai levantar nenhum problema. Adora o pai. «Só Deus sabe porquê», pensa Petra com azedume. – Estou? – Olá, Petra. Daqui fala o Darren. Darren. O «George Clooney». Petra afasta o cabelo da cara, sujando-o de farinha e deixando pedacinhos de massa pendurados da franja. Desta é que não estava mesmo à espera. Depois da ida ao teatro, e com toda a agitação do final do período letivo, ela e Darren mal se falaram. Ele nem sequer lhe deu um cartão de boas-festas. Como, na escola, a modalidade de troca de presentes é a do «Pai Natal secreto» (cada um compra um presente por cinco libras, juntam-nos todos e depois cada um tira um do cesto; a ela saíram-lhe umas meias de rede), Petra não estava à espera de que ele lhe desse um presente. Na verdade, não espera absolutamente nada dele. A noite em que saíram foi ótima. Ficaram sentados no segundo balcão do teatro, com a plateia lá em baixo, em tons de dourado e carmesim, e a peça (de Alan Ayckbourn) era divertida e foi bem interpretada; seguiu-se um delicioso jantar num restaurante italiano, onde brindaram e Darren lhe disse o quanto estava a gostar daquela noite. E depois – nada. Para lá de a ajudar a despir e a vestir o casaco, nem sequer lhe tocara. Será ele homossexual ou julgará que ela é lésbica? Devia ter calçado sapatos de salto alto, só desta vez. Ele acompanhou-a a casa e estendeu um braço, não chegando a tocar-lhe. «Boanoite», disse-lhe. «E obrigado.» E mais nada. – Darren! Olá. – Feliz Natal e tudo o mais. – O mesmo para ti. – Petra vê Harry entrar na cozinha e fica imediatamente desanimada. Se há coisa que ele detesta mais ainda do que o telefone, é vê-la a falar ao telefone. – Estava a pensar se não gostarias de vir a uma festa hoje à noite. – Uma festa? – Petra não teria ficado mais surpreendida se ele a tivesse convidado para um sacrifício humano seguido por uma dança ritual. – Sim. O Alan, do Departamento de Ciências, organizou uma festa de
Natal. Apetece-te ir? Petra quase começa a rir. Alan, do Departamento de Ciências, tem uma barba que lhe tapa a cara quase toda e coleciona bonecos da saga Guerra das Estrelas. Não lhe ocorre nada que lhe apeteça menos. Harry começa a puxarlhe a manga. – Mãe! – resmunga. – Na verdade, não posso – responde. – A minha mãe chega hoje. Vai ficar connosco uns dias. – E o que me dizes a uma bebida? Só uma, e rápida? – Desculpa, acho que não vou poder. – Mãe! – berra Harry, com os olhos dilatados de fúria. – E um passeio pela praia? Às dez horas. Eu levo champanhe. – Mamãããã! – OK – diz Petra, por fim. – Parece-me excelente. E pousa o telefone com muito cuidado, como se tivesse medo de o partir. Emily e Paris estão num dos anexos da villa, a montar uma bicicleta para Charlie. Esta é uma daquelas ocasiões em que Emily mais sente a falta de Paul. Ele tinha muito jeito para todas as tarefas tradicionalmente masculinas: colocar as luzes de Natal, trocar fusíveis, tapar buracos na parede, dormir com mulheres com metade da sua idade… Mas Emily tem de admitir que Paris é uma substituta bastante competente. Há muito que Emily foi relegada para a função de ajudante: apenas tem de segurar na chave de fendas, de manter a bicicleta imóvel e de murmurar algumas palavras de encorajamento cuidadosamente escolhidas. – É um mimado, o Charlie – resmunga Paris, com a boca cheia de parafusos. – Quando eu tinha três anos ninguém me deu uma bicicleta. – Querida! Claro que demos! – Deram-me a que a Siena já não queria. É diferente. – Mas depois comprámos-te uma nova – replica Emily na defensiva. – Aquela vermelha com as rodinhas. – Pois foi – diz Paris, recordando-se. – Eu adorava essa bicicleta. – Não te lembras de que a querias levar contigo para a cama? – Até lhe tricotei um cachecol para o inverno. – Chamavas-lhe Malcolm. – Pois era. Nem sei porquê.
Ficam em silêncio por um minuto. Emily recorda a casa em Clapham, com os soalhos rangentes e todos aqueles recantos bizarros, com o colorido vitral na porta da frente e, nas traseiras, a vista para os telhados das outras casas. Costumava dizer que aquilo era uma verdadeira casa de família (sobretudo quando queria justificar tanta desarrumação, toda aquela tralha que cobria todas as superfícies, e que se acumulava, como lodo, na cave). Quando Charlie nasceu já tinham dado todos os brinquedos velhos de Siena e de Paris. Charlie foi o seu bebé não planeado. «Não terá sido um erro?», perguntaram-lhe a medo umas quantas amigas, mas não foi, de todo. Depois de Paul ir a correr atrás dela até Brighton, declarando-lhe o seu amor eterno e prometendo fazer tudo o que ela quisesse, qualquer coisa desde que ela voltasse para ele, Emily disse-lhe que queria vir morar para Itália. Tinha de se afastar de Clapham, onde a Outra vivia a apenas duas ruas deles. Emily queria um novo desafio, um novo começo, e, mesmo ao fim de todos aqueles anos, continuava enamorada de Itália. E então ela e Paul vieram até à Toscana, subiram de carro pela estrada de terra e depararam com a Villa Serena. E nessa noite, num hotel em Siena, Charlie foi concebido. Segurando o guiador da bicicleta, Emily estremece. Está muito frio no anexo – que, no passado, foi uma leitaria (ainda tem o chão de ladrilhos e as janelas com ripas de madeira). Ela e Paul planeavam converter os anexos em apartamentos independentes, que depois poderiam arrendar por uma fortuna. Mas o dinheiro acabou-se antes mesmo de concluírem as obras na casa principal e os apartamentos independentes, tal como a piscina, permanecem inacabados – um testamento à ingenuidade de ambos. – Mãe? – O tom acusador de Paris interrompe os seus pensamentos. – Porque não me disseste que o pai tem uma namorada? – Desculpa – responde-lhe Emily. – Eu queria contar-te. – Como é que ela é? – Não cheguei a conhecê-la. Chama-se Fiona. É personal trainer. – Fixe. – Eu desconfiei que eras capaz de gostar – comenta Emily secamente. Paris fica irritada com a expressão humilde da mãe. – Por amor de Deus! – explode. – Eu só disse que era «fixe», não que ela ia passar a ser a minha melhor amiga ou algo desse género! Só quis dizer que talvez seja bom conhecer alguém que também goste de praticar desporto, apenas isso!
– Eu sei. Desculpa. – Ela vai estar lá quando formos passar o Ano Novo com o pai? Paul pediu para ela deixar os filhos irem passar uma semana a Inglaterra em janeiro. Emily não vê como pode recusar deixar que as filhas vão, visto que ele é o pai delas e tudo o mais, mas não quer, de maneira nenhuma, que Charlie também vá. Como poderia ela deixar o seu bebé querido ao cuidado de uma betinha de vinte e dois anos que usa fatos de treino desenhados por estilistas? «Quem vai cuidar dele sou eu», defendeu-se Paul. «Estás a dizer que não confias em mim para cuidar do meu próprio filho?» Bem, na verdade era exatamente isso o que ela estava a fazer, mas já aprendeu a não dizer tais coisas em voz alta. Além do mais, há os custos. Apesar de ter declarado bancarrota (ou será por causa disso mesmo?), misteriosamente, Paul parece ainda ter dinheiro. Mas quem vai pagar as passagens de avião, já para não falar nas despesas das três crianças durante uma semana? Consegue perfeitamente imaginar Paul a deixá-los encherem-se de hambúrgueres do McDonald’s e de refrigerantes. O mais certo seria Charlie ter uma gastroenterite. – Não sei – responde a Paris. – Ias importar-te se ela estivesse? A filha encolhe os ombros. – Nem por isso. Não consigo imaginar o pai a viver sozinho. E tu, consegues? – Não – responde-lhe Emily. – Não consigo. A bicicleta já está montada? E se a deixássemos aqui e viéssemos embrulhá-la depois de o Charlie ir dormir? Emily fica surpreendida quando Ginny se oferece para ir com ela à Missa do Galo, e ainda mais quando, alguns minutos depois, Siena faz o mesmo. Doug diz que vai ficar em casa para tomar conta das crianças, mas, atendendo a que às dez da noite já está a ressonar na sua cadeira, Emily resigna-se a confiar nos duvidosos talentos de vigilância do Totti – que, depois de ter engolido duas decorações de Natal e devorado cinco empadas, se sentou diante da lareira com uma satisfação quase insultuosa. Emily enche a meia de Natal de Charlie (as meias das filhas terão de ficar para mais tarde), põe mais um pedaço de lenha na lareira e obriga Paris a ir para a cama. Depois, ela, Ginny e Siena aventuram-se pelas estradas cobertas de gelo até Monte Albano. O céu está limpo e cheio de estrelas. Sob o luar, as
vacas brancas no terreno de Romano, envoltas nas nuvens esbranquiçadas do próprio bafo, parecem fantasmas. – Achas que se ajoelham à meia-noite? – pergunta Siena, inclinando-se para a frente do banco de trás. – Como diz o poema? – Não sei – responde-lhe Emily. – Logo vemos quando voltarmos. – A mim, parecem-me perigosas – comenta Ginny, aconchegando-se no casaco. – De certeza que não são touros? – Em Itália há búfalos, avó – informa Siena. Ginny dá um grito. Diário de Paris, 24 de dezembro de 2004: Véspera de Natal. Estou sentada na cama a tentar sentir-me outra vez uma criança. Lá fora está tudo coberto de gelo e por isso a paisagem parece um cartão de Natal. Antes de a Siena sair para a Missa do Galo, eu e ela fomos buscar o guizo da antiga coleira do Totti (aquela que ele já não usa por causa do barulho) e tocámo-lo do lado de fora da janela do Charlie, para ele pensar que eram as renas do Pai Natal. Foi só uma piada, mas enquanto estávamos lá fora ao frio foi como se as renas do Pai Natal estivessem mesmo ali. Quero dizer, eu sei que éramos nós quem estava a fazer os barulhos, e sei que o que estava a tocar não eram os guizos de um trenó, mas, de alguma maneira, tudo aquilo me pareceu mágico por ser véspera de Natal e tudo isso. Olhei para a Siena e de certeza que ela sentiu o mesmo, mas depois disse uma estupidez qualquer acerca do Andrea e eu voltei a desprezá-la. Não sei porque é que o Andrea me deu um presente. Será que gosta de mim? E eu, será que gosto dele? Não se pode dizer que ele seja atraente, mas tem uma cara gira. Tem cabelo louro, o que é um alívio, depois de tanta gente morena. E tem uns olhos azuis mesmo bonitos. Quando olha para nós é como se estivesse mesmo a ouvir-nos. A Siena diz que ele é muito inteligente, o que pode não querer dizer nada porque, para a Siena, qualquer pessoa capaz de soletrar «quarta-feira» é muito inteligente. Mas por acaso eu acho que ele é mesmo inteligente, porque às vezes diz coisas que dão vontade de rir e ninguém percebe onde está a piada. Mas ele não se importa, só diz aquilo por dizer. Consigo compreendê-lo, às vezes faço o mesmo. É
como se estivéssemos a dizer: «Sei uma coisa que vocês não sabem», só que o fazemos em pensamento e não em voz alta. Mas ele não faz os outros sentirem-se estúpidos, como quando a Francesca não sabia o que era um ginecologista. Ele podia tê-la feito sentir-se burra como tudo (sobretudo tendo em conta a espécie de médico que é), mas não o fez. E eu gostei disso. O que será o presente? Charlie permanece imóvel na sua cama. Ouviu-as, ouviu-as mesmo. De certeza que Paris não vai acreditar, mas ele ouviu-as. Foi uma espécie de tlim-tlim mágico. Eram os guizos de um trenó, qualquer pessoa teria percebido logo. Mesmo junto à sua janela. Talvez o Pai Natal esteja agora ali, a parar as renas debaixo das árvores e a subir o caminho com o seu saco cheio de presentes. Virá diretamente até ao seu quarto, como o outro homem fez uma vez? Levou um dedo aos lábios, fazendo sinal a Charlie para não dizer nada. É engraçado: ele pareceu muito amistoso quando fez aquilo, como quando a «Monica dos óculos» lhes diz que não façam barulho, lá no infantário. E Charlie não disse nada. Fechou os olhos, e, quando os tornou a abrir, o homem já ali não estava. Foi por isso que ele pensou que o homem era mágico, como a Fada Dentinho. Ou como o Pai Natal. Charlie não quer realmente que o Pai Natal venha ao seu quarto. Por um instante, pensa que até prefere nem receber presentes, embora queira muito uma bicicleta. Talvez o Pai Natal espere até estarem todos a dormir e depois suba as escadas sem ruído, como um ladrão. Charlie pensa que não se devia ter lembrado da palavra «ladrão». É uma palavra que lhe dá medo, como «fantasma» ou «assassino». Uma vez até ouviu Olimpia dizer que o «Raffaello da barba» era um assassino. Charlie não sabe o que a palavra quer dizer, mas tem um som duro, assustador e horrível. Consegue ouvir Paris às voltas no quarto, e, de alguma maneira, isso fá-lo sentir-se mais seguro. Até um assassino teria medo de Paris. Na igreja faz um calor de morte. O aquecimento está no máximo e as mulheres estão todas a derreter nos seus casacos de peles. Emily vê Olimpia lá na frente, resplandecente com o que parece ser um vison. Siena é imediatamente puxada para o meio de um grupo de jovens, todos vestidos com as suas melhores roupas. Com um ar contrito, olha por cima do ombro
para Emily, que lhe responde com um aceno compreensivo. Está encantada por ver que a filha continua a ser popular apesar de ter terminado o namoro com Giancarlo (que também ali está, de mão dada com Angela e com um ar embaraçado). Lembrando-se de como correu bem o passeio a ver as montras das lojas nessa manhã, Emily leva Ginny a ver o presepio. Ali, a tónica é no realismo. Uma gruta de montanha, feita com pedras ali da zona, alberga uma Sagrada Família quase em tamanho natural. A iluminação foi feita com esmero, projetando longas sombras, e o burro e a vaca espreitam dos lados com um ar desconfiado. – Porque é que os puseram numa gruta? – pergunta Ginny. – Bem, se calhar era mesmo uma gruta – responde-lhe Emily. – Por aqui, nas colinas, alguns camponeses ainda usam as grutas como abrigo para os seus animais. – Lembra-se desconfortavelmente da gruta na sua propriedade, aquela que, durante tantos anos, albergou os corpos de Carlo Belotti e Pino Albertini. A missa agrada a Emily. A igreja está escura e a única luz é a das velas, que projetam sombras dramáticas no rosto de Don Angelo enquanto ele faz um breve sermão sobre ser-se caridoso com quem busca refúgio e transformam os seus acólitos em presenças sinistras enquanto eles vão andando para lá e para cá, na escuridão do fundo do altar. A música é encantadora, embora não se escutem os alegres hinos cantados em coro que Emily recorda das missas em Inglaterra. Sabe que as cantigas de Natal não fazem parte da tradição de Natal em Itália, mas tem a impressão de que o silêncio da congregação tem um significado mais profundo. Certa vez, um padre (o mesmo do enxofre e do incenso) disse-lhe que, em Inglaterra, os católicos costumam estar calados na igreja porque no passado a missa tinha de ser realizada em segredo. Mas isso não explica o silêncio nas igrejas italianas, onde, tanto quanto ela sabe, os católicos nunca foram perseguidos. Pensando para consigo, interpreta aquilo como uma atitude hostil. É como se as congregações italianas dissessem: «Vá lá, entretenham-nos, elevem-nos o espírito, mas não esperem nenhuma colaboração da nossa parte.» E assim, enquanto o coro canta impecavelmente, a congregação vai-se remexendo nos seus casacos de peles. Emily sente falta de cantar a plenos pulmões: «Nascido para cuidar dos filhos da terra, nascido para lhes dar uma segunda vida», mas, ainda assim, não deixa de apreciar aquele pomposo dueto em latim entre
o padre e o coro. É bem mais fácil ter pensamentos cheios de espiritualidade quando não se percebe nada do que está a ser dito. A seguir à missa, a congregação é convidada para beber um café ou um copo de vinho na cave por baixo da igreja. Emily recorda-se de como ficou chocada ao ver pela primeira vez aquela divisão subterrânea, que, basicamente, é uma taverna completamente equipada, não faltando sequer um bar. O calor ali em baixo é ainda mais sufocante e Ginny vai-se abanando com o programa da missa enquanto Emily tenta abrir caminho por entre os casacos de pele para conseguir chávenas de café para as duas. Quando regressa, Romano, o vizinho, está envolvido numa conversa intensa com a sua mãe, que parece ligeiramente hipnotizada. – Estou só a dar dois dedos de conversa com a sua encantadora mãe – explica Romano cordialmente quando ela se aproxima. Emily já percebeu que ter os pais hospedados na sua casa é um método infalível para conseguir a aprovação da comunidade. – Esperamos que venham tomar uma bebida a nossa casa no Boxing Day16 – continua Romano. – Até temos cerveja inglesa. – Íamos gostar muito – responde Emily educadamente. Não está com o menor apetite para uma noite de converseta tensa e de cerveja morna, mas sabe que aquele convite é uma grande honra. Nunca esteve na casa de Romano. Siena, flanqueada por duas raparigas muito maquilhadas, surge ao lado dela. – Mãe! Posso ir para casa da Francesca? Ela vai dar uma festa. – E depois, como é que vais para casa? – pergunta Emily, ignorando a expressão horrorizada de Ginny. – Eu levo-a – diz uma das raparigas. – Tenho carro. – Bem, só até às duas, OK? – Obrigada, mãe. Feliz Natal! O leve toque dos lábios de Siena, e, mais do que isso, a sua expressão de felicidade despreocupada, acalenta Emily durante a fria viagem de regresso a casa, enquanto aguenta a indignação de Ginny perante a forma demasiado permissiva como está a educar a filha. – Deixá-la voltar para casa às duas da manhã! De certeza que a rapariga que a vai trazer vai estar embriagada. – Ninguém bebe muito nas festas em Itália – responde Emily, desviando-se
para evitar uma raposa. – Ficavas surpreendida. – Ficava mesmo! – replica Ginny com o que julga obviamente ser grande destreza. – Não tenho a menor dúvida. Quando chegam a casa, está escuro como breu. Olhando para o céu, Emily vê uma finíssima lasca de lua nova, com um ténue sorriso fantasmagórico. – Mãe! – Agarra Ginny pelo braço. – Está lua nova. Faz um desejo. – De súbito, compreende que, durante os últimos vinte anos, fez sempre o mesmo desejo de forma automática, fossem luas, ossos da sorte, empadas de frutos secos, moedas lançadas a fontes ou ouvir o primeiro cuco da primavera. Desejou sempre tornar a ver Michael. Mas agora decide que é altura de mudar. Fitando a lua com um olhar determinado, deseja: «Quero ser feliz.» E em Brighton, na praia, Petra e Darren abraçam-se enquanto o fogo de artifício explode no céu noturno. 16 Feriado celebrado no primeiro dia útil a seguir ao dia de Natal no Reino Unido e outros países anglófonos. (N. do T.)
6
N
a tarde do Boxing Day, Emily está com ainda menos vontade de atravessar os campos gelados e escuros para ir tomar uma bebida com Romano e Anna-Luisa. Na sala de estar, a lareira está acesa e as crianças estão enroscadas no sofá a ver os seus novos DVD (o leitor de DVD foi um presente de Emily para si mesma). Não há nada que lhe apeteça mais do que sentar-se ali com eles a comer chocolates e a ver a série Fawlty Towers do primeiro ao último episódio, mas sabe que tem de honrar o convite (em Itália, a hospitalidade é sagrada); além do mais, por alguma razão desconhecida, Ginny e Doug querem ir com ela. Até agora, pensa Emily com cautela enquanto calça as botas, o Natal tem sido um sucesso. Todos gostaram dos respetivos presentes (até o casaco de malha que Ginny fez e ofereceu a Siena afinal é o máximo do retro chic) e as crianças tomaram o pequeno-almoço a correr para se irem entreter com tudo o que receberam. Emily e os pais beberam um civilizado copo de Prosecco, e ela e a mãe prepararam o almoço com menos fricção do que seria de esperar. Emily cedeu à vontade da mãe em todas as decisões culinárias e esta, por sua vez, descontraiu a ponto de dizer que a filha se tinha tornado numa cozinheira «bastante razoável». Nem mesmo um telefonema de David e Kelly arruinou o bom humor de Ginny; aliás, ficou encantada ao saber que ao meio-dia Kelly ainda nem sequer tinha começado a descascar as batatas e que a nova PlayStation de Leanne não estava a funcionar na televisão deles («Mas que pena, querido. Temos uma a preto e branco de que não precisamos, se quiseres?»). A seguir ao almoço, Emily e Paris saíram com o Totti para dar um passeio pelo olival. Por essa altura já tinha escurecido e Emily levou uma lanterna para verem o caminho (a lanterna de Raffaello, compreendeu ela com um sobressalto, exatamente a mesma que ela tirou do seu bolso na noite em que ele apareceu na Villa Serena com o Totti nos braços). – É tal como em Clapham – disse Paris, a tiritar na sua nova saia preta. – Como assim?
– Bem, lá também éramos sempre só nós as duas a sair para dar um passeio. Eu costumava desejar que tivéssemos um cão para os passeios serem mais interessantes. Emily estava à espera de um comentário a respeito de os parques londrinos serem superiores aos olivais toscanos, mas, espantosamente, a filha não disse nada do género. Emily tropeçou em algumas pedras soltas e Paris amparou-a. – Tem cuidado, mãe. É bom agora termos um, não é? – Um quê? – perguntou Emily estupidamente. Parecia-lhe que alguém lhe tinha virado o tornozelo ao contrário. – Um cão, claro. – E Paris largou-a para abraçar arrebatadamente o Totti, acabado de regressar. Apesar disso, sem dúvida que foi um bom momento. Agora, Paris, Siena e Charlie mal desviam o olhar do ecrã quando Emily se despede deles. – Não demoro muito. Se precisarem de alguma coisa liguem-me para o telemóvel. – Sim, está bem – responde Siena num tom vago, de olhos postos em Basil, que está a tentar esconder um morto. Lá fora está muito escuro e Emily aponta cuidadosamente a lanterna de Raffaello para o caminho em frente de Ginny, uma vez que a sua mãe está, como é óbvio, de saltos altos. Enquanto vão avançando pelo caminho rochoso por entre as oliveiras, Ginny, agarrada ao braço de Doug, vai soltando guinchinhos. – O melhor era mandares pavimentar isto, Emily – sugere mais do que uma vez. – Hum – responde Emily, sem realmente a ouvir. Está a pensar em Basil Fawlty, no Natal, em Paris a comer uma perna de peru inteira e na expressão de Raffaello ao dizer-lhe que ia à América. «Regresso a casa no Natal.» Emily tem a horrível impressão de que nunca mais o vai ver. Ao fundo do olival há uma pequena cancela branca que dá acesso à propriedade de Romano. A casa dele é relativamente nova, feita em pedra branca e com um telhado baixo e inclinado. Outrora a Villa Serena era a casa da quinta, rodeada de estábulos e de celeiros, para além de uma leitaria, mas agora Romano gere a quinta a partir da sua modesta casinha. Alugou quase toda a propriedade de Emily, pagando-lhe muito pouco por isso, mas é bem verdade que lhe fornece garrafas de azeite – feito com as azeitonas dela, turvo e esverdeado como a poção de uma bruxa – e de vinho, feito com as uvas das
suas vinhas. Na opinião de Emily, é o acordo perfeito. Já Paul, ficava doido com aquilo. Batem à porta, que é aberta quase de imediato por Anna-Luisa, magnífica num roupão bordado. Romano, espreitando por trás do ombro dela, está em mangas de camisa e suspensórios. Cumprimentam os pais de Emily como se estes fossem realeza e convidam-nos a sentarem-se nas melhores cadeiras da sala. Emily olha em volta com interesse. Nunca esteve em nenhum lugar que se parecesse menos com uma casa rurral, pensa. Durante as obras de renovação na Villa Serena, teve o cuidado de preservar o forno de lenha, as ferramentas agrícolas, os cestos de vime e os ganchos para pendurar e conservar a carne. Deixou os tijolos à mostra e não alterou os tetos baixos nem as irregularidades no chão. Mas ali, a tónica é no conforto e no modernismo: sofás de veludo, mobiliário de freixo negro, uma gigantesca televisão de ecrã plano, candelabros e incontáveis armários com portas de vidro, cheios de fotografias e de bibelôs. Filas e filas de bibelôs, quase todos de natureza religiosa: madonas, crucifixos de marfim, rezas emolduradas, presépios de madeira, água benta de Lurdes, terra sagrada de Jerusalém, madeira consagrada do caixão de Santa Francisca Romana (com renda a toda a volta e colocada numa caixinha com moldura de ouro). Prometendo-lhes um chá inglês «a preceito», Anna-Luisa chega à sala com um tabuleiro tão cheio de parafernália para preparar chá que é praticamente impossível localizar o chá propriamente dito: chávenas e pires de porcelana fina de osso, tenazes para os torrões de açúcar, um coador de chá numa caixinha própria, um bule ornamental, «colheres dos apóstolos» e três variedades de torrões de açúcar, cada uma da sua cor. Ginny está encantada. Emily consegue senti-la a comparar tudo aquilo com as suas canecas lascadas e uma única colher de chá com o cabo torto (as crianças não param de as atirar para o lixo juntamente com os copos de iogurte). Anna-Luisa também lhes oferece bolo caseiro, biscotti e amoretti especiais de Natal. Por entre murmúrios de prazer, Ginny não para de fazer elogios, incumbindo Emily de os traduzir: – Que chávenas tão bonitas. Diz-lhe, Emily. As chávenas são muito bonitas! Adoro estes biscoitos de amêndoa, não é verdade, Emily? Emily, diz-lhe que eu adoro estes biscoitos. – Emily faz-lhe a vontade, com um sorriso tão rasgado que quase nem consegue trincar a sua fatia de bolo. AnnaLuisa resplandece de satisfação, não parando de encher os pratos deles com
uma regularidade mortífera, enquanto ela própria não come absolutamente nada. Em fundo, Romano vai fazendo perguntas a Doug sobre Tony Blair. Emily fica apreensiva. O seu pai seria capaz de ficar eternamente a falar sobre as iniquidades do primeiro-ministro britânico; ela só espera que não lhe seja pedido para fazer a tradução. De qualquer maneira, como se dirá «sacana convencido» em italiano? – Preferia… como é que ela se chamava… a Margaret Thatcher? – pergunta Romano, mergulhando um biscoito no chá. – Sim, sem dúvida – responde Doug, abençoadamente alheio ao facto de o seu pai, construtor naval de profissão, estar naquele momento a dar voltas na tumba. – Ora aí está uma mulher forte. – Forte. Sì – concorda Romano. – Do que Inglaterra precisa – continua Doug, usando um argumento que cai sempre bem nos encontros do Rotary Club – é de um ditador. Não poderia ter previsto o efeito deste seu comentário. Romano pousa bruscamente a chávena e põe-se de pé. Atravessando a sala, vai apertar a mão de Doug. – Sì, caro amigo, sì. Um ditador. O meu amigo é sábio, muito sábio. Em que altura foi a Itália mais forte? Em que altura foi a Itália mais temida? Em que altura foi a Itália mais próspera? Quando tivemos Il Duce, pois claro. Quando Mussolini estava no poder. – Mussolini – repete Doug num fio de voz. – Sì, sì. Ele drenou os pântanos. Ele fez as estradas. Ele derrotou a Máfia. Ele tomou de volta o nosso império. Os outros povos temiam-nos. Roma ergueu-se novamente. Doug lança um olhar confuso a Emily. O que foi que ele disse? Toda a gente sabe que Mussolini era um palhaço que nem sequer inspirava o respeito amedrontado de que gozavam verdadeiros monstros como Hitler ou Estaline. Além disso, não foram os próprios Italianos a matá-lo? Porque estará aquele tipo ali a louvá-lo daquela maneira, chegando ao ponto de ir buscar uma fotografia do badocha do fascista montado a cavalo? – Ele era um magnífico cavaleiro. Sì, sì. Um excelente esgrimista. Um dotado linguista. Sim, era um homem maravilhoso. E sabe quem mais pensava assim? – N-não – balbucia Doug.
– O vosso Churchill! Winston Churchill, em pessoa. Admirava muito Mussolini. Aliás… – Romano baixa a voz para criar efeito dramático – …ele até disse à esposa: «Mussolini é um dos homens mais notáveis do nosso tempo.» Churchill queria ter um amigo do lado do Eixo, para o caso de as potências do Eixo ganharem a guerra. Oh, sim, a verdade é mesmo esta, meu amigo. Doug está atónito. – Churchill? A sério? – Oh, sim, meu amigo. Emily tenta acudir ao pai. – Deve ter algumas histórias fantásticas para contar sobre Monte Albano durante a guerra – diz a Romano. – Hah! – exclama ele. Detém-se com a fotografia na mão e depois beija-a reverencialmente, tornando em seguida a colocá-la na prateleira. Parece ter ficado subitamente deprimido. O entusiasmo com que recordou Mussolini desaparece. – Decerto é demasiado novo para se lembrar – sugere Ginny, à laia de elogio. Romano faz um sorriso desdentado. – Não, eu lembro-me. Era apenas uma criança, mas lembro-me. O meu pai era o presidente da Câmara. Era leal a Il Duce. Sim, até ao fim. Mas os outros! Num dia estão a gritar «Duce! Duce!» e no seguinte estão a cuspir-lhe na campa. – Havia muita atividade de guerrilheiros nesta área, não é verdade? Romano regressa à vida com uma explosão de indignação: – Os guerrilheiros! Pfff! Cuspo em todos eles! A Itália mudou de campo, e, de repente, todos os homens, mulheres e crianças estavam contra o regime. Mas o meu pai não. Não. Ele disse: «Serei fiel a Mussolini até ao dia da minha morte.» Os Americanos encarceraram-no. Todos os outros disseram: «Não, não, eu estou com os guerrilheiros. Deus abençoe a América.» Pfff! – Conheceu o Carlo Belotti? – pergunta Emily, cheia de uma súbita curiosidade, não se apercebendo do olhar perdido de Ginny ou do desconforto de Doug. – Sì – responde-lhe Romano. – Sim, conheci-o. Admito que era um homem corajoso. Conheço bem a sua família. A Olimpia é minha amiga. Sim, o Carlo Belotti era um homem corajoso, mas, no fim, agia a soldo dos
Americanos. Da força ocupante. Por isso, para mim, ele foi um traidor. Deus dê descanso à sua alma – remata num tom piedoso. Anna-Luisa, que tem estado a ouvir toda a conversa com uma expressão calma e inescrutável, põe-se de pé e oferece bebidas. Alguém quer um copo de Prosecco? Grappa? Cerveja inglesa? Emily e a mãe aceitam um copo de Prosecco (embora Emily saiba que isso apenas irá dificultar mais ainda o regresso a casa) e Doug bebe uma cerveja. Romano, que bebe grappa, remete-se ao seu anterior silêncio cordial. Anna-Luisa mostra-lhes fotografias dos filhos e dos netos. Têm um filho chamado Benito (ah!) que ajuda a gerir a quinta, mas vive em Monte Albano e agora está fora, de visita aos sogros, e têm uma filha chamada Italia, que vive em Roma. Seguem-se imagens dos seus muitos netos, numa sucessão de batismos e primeiras comunhões. Depois de meia hora nisto, Emily faz menção de se ir embora. Já é tarde e ela quer voltar para junto de Charlie. Além disso, sente-se ensonada devido ao vinho e ao calor ali na sala, e quer sair antes que Romano tenha oportunidade de regressar ao tema de Il Duce. Os seus pais põem-se de pé lentamente, com Ginny ainda a elogiar as fotografias e os bolos. Anna-Luisa sorri afavelmente. Emily percebe que a sua mãe causou uma excelente impressão. Param no vestíbulo atravancado a trocar elogios algo desajeitados num italiano aldrabado. Ali há mais objetos religiosos: pias batismais, estatuetas de santos em gesso e um enorme retrato a óleo do Papa. Anna-Luisa aponta para uma pequena madona em madeira que veio de Midjugorje, uma cidade na Croácia onde várias crianças testemunharam com regularidade aparições de Maria («todos os dias, às seis e vinte»). Ginny e Doug voltam-se obedientemente para ver a estatueta, mas Emily está focada noutro objeto. Em volta da base da estátua foi pendurado um rosário. Um rosário de cerâmica com uma cruz de pontas arredondadas, ao estilo cóptico. – Que rosário tão bonito – comenta. Romano fica agradado. – Ah – responde. – Quando eu era rapaz, todas as crianças que andavam na escola recebiam um assim. Sabe quem os dava? Emily julga ser capaz de adivinhar. – Il Duce! – exclama ele. – Mussolini oferecia um rosário a cada criança que andava na escola. Foi ele a reintroduzir o crucifixo nas salas de aula. Cada sala de aula tinha um crucifixo e cada criança tinha um rosário. Igual a
este. No caminho para casa, Ginny e Doug falam incansavelmente sobre Romano e Anna-Luisa. Estão fascinados, e um pouco atordoados, com aquela introdução à vida em Itália. – Pensar que ela fez todos aqueles bolos! – Claro que ele é um fascista consumado. Viste-o a beijar aquela foto? Mas Emily caminha em silêncio, enquanto vai pensando que, se cada criança que andava na escola recebia um rosário, então a cruz que foi encontrada junto ao corpo de Carlo Belotti não pode ter pertencido ao próprio. Devia ser de alguém muito mais novo do que ele. Alguém que andou na escola durante a guerra. Alguém que andou na escola com Romano.
7
B
uona fine, buon principio. Bom fim, bom princípio. Nos dias que antecedem a véspera de Ano Novo, Emily escuta esta frase por toda a parte, e, de cada vez, sente infalivelmente um ligeiro sobressalto de surpresa e de reconhecimento. De repente, parecelhe que a sua vida se encheu de começos e de finais, e também as suas emoções parecem oscilar entre extremos de felicidade e de tristeza. Frequentemente sente as duas em simultâneo, como se estivesse a tentar equilibrar-se num arre-burrinho esquizofrénico. Os seus pais regressaram a Inglaterra há dois dias. Ao abraçá-los, já no aeroporto, Emily sentiu-se novamente dividida entre a tristeza de os ver partir e o enorme alívio de se ver livre deles. Na verdade, não foi muito mau. Pelo menos desta vez Ginny e Doug pareceram gostar genuinamente de Itália. Ginny, particularmente, adorou as lojas e as pitorescas povoações no cimo das colinas. Fez-se grande amiga de Anna-Luisa, as duas passaram uma manhã juntas a preparar gnocchi e Ginny regressou a casa com um saco cheio de pasta, bolos e salame, tudo caseiro. Doug evitou Romano, não desejando ver-se arrastado para mais uma conversa de camaradagem fascista, mas deu vários passeios com Paris e os dois falaram sobre futebol. Além disso, e para sua enorme satisfação, também consertou o chuveiro e a portada que batia e os deixava loucos à noite. Até começou a simpatizar mais com o Totti, brincando com ele e chamando-lhe «canzarrão molenga» com todo o esplendor do seu sotaque escocês. Ainda assim, foi com inegável alívio que Emily se despediu deles. Começava a temer as «pequenas conversas» da sua mãe a respeito da magreza de Paris, da falta de asseio do Totti (a atitude de Ginny para com o pastor-alemão não se alterou; continuou a evitá-lo como se ele fosse o cão dos Baskerville) e das probabilidades de Emily se reconciliar com Paul. – Mas eu não quero reconciliar-me com ele! – acabou Emily por exclamar em desespero. Ginny franziu os lábios em desaprovação.
– Bem, tenho muita pena. Tentei ensinar-te que o casamento é para a vida. Emily não se recorda de David ter ouvido sequer metade desta ladainha quando trocou Sue por Linda (ou Linda por Kelly). Também as crianças ficaram aliviadas por verem os avós dali para fora. Em geral, portaram-se muito bem. Claro que, para Siena, isso foi fácil. Será sempre a preferida de Ginny e basta-lhe sorrir e exibir a sua beleza para conservar tal posição. Já Paris foi, na verdade, muito paciente com os constantes comentários a respeito do seu peso, dos seus amuos e dos seu misterioso «admirador». Aqui, mas uma vez, o Totti ajudou. Sempre que Ginny começava a aborrecê-la em excesso, Paris podia simplesmente agarrar no cão e ir dar um passeio. Quando alguém sai para dar um passeio sozinho, está a ter um ataque de mau humor; se for com um cão, trata-se apenas de uma boa ação. Também Charlie estava sempre a ouvir a mesma pergunta, «Qual é a palavra mágica?», e a ser comparado desfavoravelmente com Ashley. Mas ele não se importava. Estava demasiado ocupado a andar na sua bicicleta (até já nem precisa das rodinhas) e a brincar com um enorme dinossauro Barney falante, um presente profundamente irritante da parte de Paul. Paul é o único incómodo. Emily teve de concordar que as crianças ficassem com ele durante uma semana, em finais de janeiro. Ao que parece, vai ser ele a pagar tudo; nem sequer lhe perguntou de onde virá esse dinheiro. Emily sente-se muito relutante com aquele acordo. Paul prometeu vir buscar os filhos a Forlì, mas, ainda assim, ter de se despedir deles (ainda que apenas fique uma semana sem os ver) vai ser cem vezes pior do que despedir-se dos pais. Aí, os seus sentimentos são muito claros. Quando regressou depois de os levar ao aeroporto, Emily encontrou mais um final à sua espera. Tratava-se de uma mensagem para contactar Giles na redação do jornal (ou, nas palavras de Paris: «Um palhaço convencido qualquer telefonou-te, podes ligar-lhe de volta?»). Emily assim fez, recebendo a desagradável – se bem que não totalmente inesperada – notícia de que o jornal ia suspender a sua coluna. – Mas porquê? – perguntou ela. «Não te ponhas a chorar», disse a si mesma com rispidez. – Para ser honesto, minha querida, perdeste a mão. – Perdi a mão? – Sim, tu percebes. A coluna parece ter perdido um pouco da magia.
Emily percebia, de facto. Tentara, com todas as forças, continuar a discorrer em tom lírico sobre cogumelos porcini e pores do sol sobre o olival, mas a realidade teimara em intrometer-se. – Por exemplo – prosseguiu Giles –, quando escreveste sobre o teu divórcio. – Bem, não podia fingir que não se estava a passar nada, pois não? Ou querias que continuasse a escrever sobre o meu marido como se ele fosse um tipo adorável, inócuo e indefeso, e ele a passear com a namorada nova durante todo esse tempo? – Não vejo porque não. É o que fazem muitos colunistas. – Pois eu não seria capaz. – Seja como for, minha querida, acho que essa coisa da Toscana já passou ligeiramente de moda. Hoje em dia as pessoas só querem saber da Eslováquia. Espero que não leves a mal. Levar a mal. Emily supunha que não, não ia levar a mal. Ultimamente, estava a ser-lhe cada vez mais difícil escrever a coluna, agora que já tirou de uma vez por todas os seus óculos de lentes cor-de-rosa. Repetidamente, dá por si com vontade de escrever sobre os corpos encontrados na colina, sobre a procura desesperada de Monica por um homem e sobre os problemas das mulheres anoréticas na terra da abundância. Ser-lhe-ia difícil continuar a escrever aquelas patranhas típicas de um suplemento de domingo, quando só lhe apetece escrever sobre a vida em Itália tal como realmente é; muito mais rica, profunda e sombria do que ela alguma vez imaginava quando começou a escrever a coluna «Cartas da Toscana», há dois anos. O verdadeiro problema é o dinheiro. Aquela coluna era a sua única fonte de rendimento. Para limpar a consciência, Giles propôs-lhe escrever umas quantas críticas e um artigo intitulado «A Vida na Toscana, Dois Anos Depois», mas isso foi tudo. Emily tem dez mil libras no banco, que lhe darão para seis meses se for cuidadosa com os gastos (a Villa Serena já foi paga na íntegra, mas as contas da água, da luz e do gás são altíssimas). A sua segunda resolução de Ano Novo (logo a seguir a perder peso) terá mesmo de ser arranjar um novo emprego. E depressa. Emily está diante do espelho, a preparar-se para a festa de Ano Novo em casa de Antonella. Parece-lhe que já passou muito tempo desde a última vez em que realmente olhou para si, isto sem contar com as horrorizadas olhadelas de fugida nas montras das lojas, sempre com o cabelo selvagem e
saias do comprimento errado. Agora estuda o seu reflexo com um interesse quase científico. Os seus cabelos continuam escuros; supõe que, dado ter quarenta e um anos, deveria sentir-se grata por isso, mas a verdade é que o tem todo despenteado e a precisar desesperadamente de um corte. Para além disso, aquela sua cabeleira escura e abundante acaba por criar um indesejado contraste com a sua cara branca de expressão ansiosa. Como ficou tão pálida? No verão estava com uma tez bastante acastanhada (em matéria de bronzeado, Emily é antiquada; para ela, trata-se de algo extremamente desejável). Mas agora parece um fantasma. Tem uns olhos muito escuros, mas, infelizmente, o mesmo se passa com as olheiras. De onde terá surgido aquilo? Costumava orgulhar-se do seu aspeto sempre fresco e saudável e do facto de nunca precisar de muita maquilhagem – apenas um pouco de rímel e de bâton. Mas agora parece-lhe que precisa da linha Elizabeth Arden completa e de um frasco inteiro de Oil of Ulay. Tem a pele seca e sem brilho, e apareceram-lhe novas rugas em volta dos lábios e nos cantos dos olhos. «Meu Deus», pensa, aproximando mais o rosto do espelho, «finalmente transformei-me na minha mãe.» Mas, ao afastar-se alguns passos, tem um choque ainda maior. Como é que se deixou engordar tanto? Há já algum tempo que se vem apercebendo vagamente de que precisa de fazer uma dieta, mas, visto não ter nenhuma balança ali na villa, pôde simplesmente fechar os olhos à terrível verdade. Tem autênticos rolos de gordura a toda a volta do estômago. Rolos! E tem gordura pendurada dos braços. Os seus seios – que sempre foram o seu melhor atributo – continuam razoavelmente arrebitados, mas agora, em vez de agradavelmente curvilíneos, parecem-lhe enormes. Monstruosos. Vai precisar de um daqueles soutiens com armação de aço. Emily põe-se a fazer poses diante do espelho, imitando as modelos da Playboy. Uma grotesca mulher de meia-idade devolve-lhe o olhar, com um ar lascivo. – Mammããã! – berra Charlie do rés do chão. Emily começa a vestir-se apressadamente. Afinal, não quer que Charlie ganhe aversão a mulheres para o resto da vida. Como foi ela capaz de dormir com Chad? Ou, o que talvez seja mais pertinente, como foi Chad capaz de dormir com ela? (Para sua grande surpresa, já recebeu vários e-mails de Chad desde aquele seu encontro em Bolonha. Ele até lhe enviou um cartão de boas-festas dizendo que esperava tornar a vê-la em breve. Emily não lhe respondeu.) Enfim, pensa depois, talvez o melhor seja abdicar dos homens para sempre e resignar-se a
engordar mais e mais, até só poder sair da Villa Serena com a ajuda do velho guindaste ali da propriedade. Senta-se outra vez diante do espelho e começa a aplicar cuidadosamente a maquilhagem. Ainda não está pronta para tal coisa. Enquanto vai disfarçando os círculos escuros por baixo dos olhos, pensa na festa de Antonella. Pôs os brincos (pequenos discos de âmbar) que a amiga lhe deu como presente de Natal. Sente-se culpada por a sua gratidão ter sido contaminada por uma emoção que ela se sente relutante em reconhecer como sendo ciúmes. O que poderia ser mais natural do que Raffaello sentir-se atraído por Antonella, uma mulher bonita e solteira da sua terra natal? Há que encarar os factos: ele não vai interessar-se por uma inglesa com excesso de peso e três filhos indisciplinados. Obviamente, ele apenas se mostrou amigável porque queria deitar as mãos aos vestígios etruscos na propriedade dela. «Apareça lá por casa que eu mostro-lhe as minhas gravuras e tudo o mais.» No caso de Raffaello, a verdade é que ele apenas está interessado nas gravuras. «Mas», diz uma voz teimosa dentro da cabeça de Emily, «o que me dizes de ele te ter arranjado uma mesa no aniversário da Siena? E quando encorajou a Paris a comer?» «Vá lá», diz outra voz (que soa vagamente como a de Petra), «ele estava apenas a ser simpático, nada mais. Esse é o tipo de coisas que um amigo faz por nós. Afinal de contas, ele nunca deu o menor sinal de se sentir atraído por ti, ou deu?» «Não», responde Emily a si mesma com tristeza, enquanto aplica um pouco de rouge nas faces, «não deu.» Em todo o caso, já passou tanto tempo desde a última vez em que alguém se mostrou atraído por ela que o mais certo era ela nem sequer ser capaz de reconhecer os sinais. Não está a contar com Chad. No Boxing Day recebeu um surpreendente, e ligeiramente perturbante, telefonema de Petra: – Adivinha a melhor…? – No meio dos tristes despojos do dia de Natal (sacos cheios de papel de embrulho, decorações e pratos com restos de comida), o sussurrar de Petra soou-lhe incongruente. – Fui em frente! – Foste o quê…? – Dormi com o Darren. Tu sabes, o «George Clooney». – A sério? – Sim – replicou Petra num tom triunfal. – Em Brighton, na praia. Fomos dar um passeio na noite de véspera de Natal, bebemos champanhe, começámos a falar, ele beijou-me e aconteceu. – Como assim, «aconteceu»?
– Oh, tu sabes. – Petra deu uma risadinha. – Foi fantástico. Sabes aquele tipo de sexo que costumávamos fazer na adolescência? Selvagem, ligeiramente perigoso. Foi assim. Foi fantástico. Emily tentou soar entusiasmada, mas, na verdade, aquela confidência abalou-a bastante. Na sua adolescência não teve sexo perigoso e selvagem. Michael foi o seu primeiro e nessa altura ela já tinha dezanove anos – praticamente já não era uma adolescente. O sexo com Michael foi maravilhoso, claro, mas não foi selvagem. Ela era demasiado inexperiente, e, de alguma maneira, nunca teve coragem suficiente para interromper as magistrais performances de Michael com pedidos específicos. Já no caso de Paul, bem… com Paul, a princípio o sexo foi selvagem. Emily lembra-se do seu espanto ao descobrir o quanto podia abandonar-se na cama com alguém que não amava realmente. Mais tarde, quando começou a amá-lo, o sexo tornou-se menos excitante. E, depois de terem filhos, tornou-se em algo parecido a uma partida amigável de ténis – divertido e bom para a saúde, mas nada de fazer a terra tremer. Emily não se consegue imaginar, nem mesmo na sua promíscua fase pós-Michael, a fazer sexo na praia em Brighton. Com um suspiro, começa a vestir-se. Está demasiado deprimida para usar algo demasiado elegante e por isso opta pelas suas calças pretas favoritas e uma camisa com folhos. Pelo menos as calças fazem-na parecer mais magra e a camisa é decotada, o que lhe permite exibir a única parte do corpo em que a gordura a mais é aceitável. Borrifa-se com um pouco de perfume e torna a ver-se ao espelho. Está com bom aspeto, desde que ninguém se aproxime demasiado. «Ora aí está uma expectativa realista», pensa com tristeza, descendo para ir chamar Paris e Charlie. Siena saiu com um grupo de amigos, mas Paris e Charlie vão com ela à festa. Vai haver lá muitas crianças, garantiu-lhe Antonella. Emily tem de admitir que Paris aceitou aquilo de forma exemplar; praticamente não se queixou. Paris também se está a ver ao espelho. Trata-se de algo que ela faz tão raramente que nem sequer tem um espelho no seu quarto. Teve de ir ao quarto de Siena (uma pavorosa confusão de almofadas felpudas e fotografias idiotas dos amigos dela a fazerem caretas, apertados naquelas máquinas de fotos tipo passe). Agora está parada a ver-se no espelho da cómoda de Siena (uma cómoda, haverá coisa mais triste?). Cabelo castanho curto, tez pálida, olhos azuis. Será que é bonita? A sua mãe diz-lhe que sim, mas outra coisa
não seria de esperar, não é verdade? Ela também acha que Charlie é uma beleza e o puto parece um duende. Paris sabe que Siena é bonita, mas, no caso da irmã, não há lugar para grandes dúvidas. Siena parece uma daquelas raparigas das revistas: cabelo louro, pele amorenada, ancas, mamas e tudo o mais. Já ela, por contraste, parece uma tábua: peito liso, pernas escanzeladas, nenhuma curva. Antes, quando se olhava ao espelho, via uma rapariga gorda. Embora, bem lá no fundo, soubesse que não estava gorda, era isso o que via. Supõe que já ultrapassou essa fase (o que quer que essa fase tenha sido; Paris recusa-se a dar-lhe um nome). Agora, tudo o que vê é uma rapariga magra e de cabelo curto. A pergunta é: o que irá ele ver? – Até logo à noite – disse-lhe Andrea quando se encontraram no mercado nessa manhã. Estava com os amigos e não veio ter com ela nem nada parecido. Limitou-se a acenar-lhe, a sorrir e a dizer aquilo. Paris sentiu que estava a corar; foi como se a sua pele estivesse a arder. Teve de fingir que estava a olhar para umas calças de ganga horríveis, daquelas cheias de estúpidas florzinhas bordadas. Quando tornou a erguer o rosto, já ele ali não estava. Não é que vão sair só os dois nem nada do género, mas vai encontrá-lo lá e passar algum tempo com ele. Ainda não sabe o que sente por Andrea. O presente de Natal que ele lhe deu, um livro que ensina a treinar pastoresalemães, não é nada romântico, o que a tranquilizou bastante, mas o facto de ele lho ter oferecido ainda tem o poder de a deixar subitamente ansiosa. Aquele presente deve querer dizer que ele anda a pensar nela. Deve querer dizer que ele se lembra de ela lhe ter contado a respeito do Totti e de como era difícil treiná-lo. Paris tenta imaginar Andrea a entrar numa loja, a escolher aquele livro e a escrever o nome dela no cartãozinho («Para a Paris com beijinhos do Andrea»). «Com beijinhos.» O que quererá isso dizer? Por um segundo, quase põe a hipótese de discutir o assunto com Emily, mas depois reconsidera. Coitada da sua mãe, por esta altura já se deve ter esquecido dessas coisas. De qualquer maneira, nunca deve ter sabido muito. Antonella vive num apartamento moderno, logo à saída da muralha da vila. Visto de fora, o edifício é bastante deprimente – grades de ferro forjado, o estuque manchado –, mas o interior é espaçoso e confortável, com chão de madeira envernizado e estantes pintadas de branco. Antonella, deslumbrante num vestido preto de veludo, recebe-os afavelmente, senta Charlie a ver um
vídeo e diz a Paris para ir jogar computador com Andrea. Emily fica surpreendida ao ver a filha voltar-se para trás e lançar-lhe um olhar suplicante. Julgava que Paris gostava de Andrea. Ele sempre lhe pareceu ser um rapaz bem-educado e com boas maneiras. Talvez a filha o ache aborrecido. Seja como for, não há nada que possa fazer para a salvar; Andrea já a está a encaminhar para a porta do que só pode ser o seu quarto. Se fosse Siena naquela situação, Emily teria ficado muito preocupada. A festa está muito animada. Ouve-se jazz (Emily detesta jazz; detesta nunca saber quando é que as músicas vão acabar) e todas as divisões estão cheias de gente. Vê Monica na cozinha, embrenhada numa conversa com um homem de cabelos grisalhos e vestido com uma camisa de um rosa quase assustador, e Lucia no sofá, de mãos dadas com um tipo moreno que, supõe Emily, só pode ser o marido da amiga. Antonella traz-lhe uma bebida e começa a apresentá-la às pessoas. – Esta é a Emily. É inglesa. E é escritora. Emily vai sorrindo para toda a gente, mas está com dificuldade em seguir a conversa, e, logo que compreendem que ela não é J.K. Rowling, os convidados parecem deixar de ter interesse em falar com ela. Emily sorri e vai bebendo o seu vinho depressa de mais. Vê as pessoas a olharem por cima da sua cabeça, em busca de alguém mais interessante com quem conversar, mas, apesar do desânimo que sente, mantém-se firme. – Há muito que vive em Monte Albano? – pergunta, novamente a sorrir, a uma loura elegante que está ao seu lado. – Toda a minha vida – responde a mulher num tom frio. – E você? – Só há dois anos. Eu e o meu marido comprámos uma casa… – Ah, Alberto! – A mulher loura avista alguém que acaba de entrar na sala. – Dê-me licença. – E Emily, ainda a sorrir, é abandonada. – Está tudo bem, Emily? – pergunta Antonella, que, com uma garrafa de vinho em cada mão, está a dar a volta a toda a sala. – Sim, tudo ótimo, obrigada. E obrigada pelos brincos. São lindos. – E sacode a cabeça, para os exibir. – Ainda bem que gostaste. O teu Natal foi bom? – Sim. Bem, foi e não foi. – Foi e não foi? Emily sorve mais um pouco de vinho. – Foi bom ter cá os meus pais. Parte do tempo que cá estiveram, pelo
menos. Mas acabo de perder o meu emprego. – Oh, não. – Antonella mostra-se genuinamente preocupada. – Lamento muito. – Bem, não é assim tão mau. Seja como for, estava a ter cada vez mais dificuldade em escrever aquela coluna. Mas tenho de arranjar outra coisa qualquer. – Porque é que não dás aulas de Inglês na minha escola? – sugere Antonella. – Andamos à procura de alguém. Não devem pagar muito, mas sempre é alguma coisa. – Mas eu não tenho experiência nenhuma de ensino. – Não é preciso. São crianças muito pequenas. Basta que lhes ensines canções inglesas ou algo parecido. – Vou considerar essa proposta, sem dúvida – responde-lhe Emily. Naquele momento ficou com a cabeça vazia; a única canção inglesa de que se lembra é o hino nacional do Reino Unido. Na versão dos Sex Pistols. Uma senhora idosa aproxima-se, reclamando a atenção de Antonella, e Emily vai à procura de Monica, que continua na cozinha à conversa com o homem da camisa cor-de-rosa. – Emily! Já conheceste o Emilio? Trabalha na universidade. – Parece que toda a gente trabalha na universidade. – Não – responde Emilio, muito sério. – Só metade, mais ou menos. Emily ri sonoramente, encantada por ter percebido uma piada em italiano. Simpatiza com Emilio, que lhe parece aquele tipo de pessoa cortês e ligeiramente antiquada que ela associa mais a Brighton do que à Toscana. Emilio lança-se numa descrição das suas aulas práticas, nas quais tenta ensinar Dante a jovens indolentes e obcecados pelo desporto. Tal como muitos italianos, também ele parte do princípio de que ela está totalmente a par da obra de Dante. – Receio não ter chegado a ler a Commedia – diz Emily num tom arrependido. – Mas eu pensei que tu tinhas estudado Literatura – comenta Monica. – E estudei, mas só os escritores ingleses. – Emily sente que as universidades inglesas acabam de descer na consideração daqueles dois. É bem verdade que, enquanto todos os italianos que andaram na escola conhecem Shakespeare, Emily estaria disposta a apostar que a maioria dos seus contemporâneos na UCL não sabe nada a respeito de Dante; ou então só
conhece aquele primeiro verso a respeito de estarmos a meio caminho da jornada da nossa vida. Estará ela também a meio caminho da jornada da sua vida?, pergunta-se. Charlie entra na sala, já farto do vídeo, e Emily torna-se subitamente muito mais popular: os italianos rodeiam o seu filho, comentando como ele é tão louro e bonito. Pergunta-se como estará Paris, mas não quer invadir o santuário adolescente. Decerto está bem, caso contrário já teria vindo lamuriar-se para junto dela. À medida que os ponteiros do relógio se vão aproximando da meia-noite, mais pessoas se concentram na cozinha, forçando Emily, Monica e Emilio a saírem para o corredor. – Em Inglaterra – conta Emily –, costumamos dizer que um desconhecido alto e misterioso passará a soleira da porta à meia-noite, trazendo consigo um pedaço de carvão. – Carvão? – interroga Emilio. – Porquê carvão? – Não sei. Talvez seja para nos mantermos aquecidos durante o inverno. – Ouvi dizer que em Inglaterra faz muito frio – replica Emilio, solidário. Antonella liga a televisão, para poderem ver a contagem decrescente para o Ano Novo em Roma. «Dez, nove, oito, sete, seis…» Emily dá por si junto à porta de entrada, com Charlie agarrado à sua perna e a tentar não entornar o seu copo de champanhe. Emilio está a falar-lhe do mito do Homem Verde e ela tenta fazer uma expressão adequadamente inteligente. «Cinco, quatro, três…» De repente, alguém bate vigorosamente à porta. Emily sobressalta-se e depois estende a mão para a abrir. «Dois, um…» No preciso instante em que o Ano Novo começa, numa excitada confusão de vozes e riso, Emily abre a porta, deparando com um homem alto e misterioso, mas que não lhe é desconhecido. – Raffaello – diz ela. Buona fine, buon principio.
8
–M
amã! Não vás! É horrível. É pior do que ela tinha esperado. É como se lhe estivessem a arrancar o coração. Custa-lhe respirar, tem o corpo praticamente dobrado pela cintura e sente-se como se estivesse prestes a morrer. E tudo começou tão bem. As crianças mostraram-se empolgadas enquanto iam levando as malas para o carro. Paul apareceu no aeroporto para os levar, fez um enorme sorriso quando os filhos correram para ele e ergueu Charlie nos braços. «Vai correr tudo bem», disse Emily a si própria, «eles tiveram saudades do Paul e precisam de passar algum tempo com ele.» Entretanto, pensou, ela também iria gostar de passar algum tempo a sós; poderia realizar pequenas tarefas por toda a casa e tratar de escrever a sério (o seu artigo sobre a vida na Toscana ao fim de dois anos já está mais do que atrasado). Paul estava com bom aspeto: mais magro, vestido com uma camisola de fecho e umas calças de ganga. Estava com um ar vagamente desportivo, algo que, julgou Emily, só pode ter sido influência de Fiona. Não lhe pareceu um homem que acaba de ficar na bancarrota. – Emily – saudou ele. – Olá, Paul. – Estás com boa cara. – Ela sabia que isso não era verdade, mas supôs que ele estava a tentar ser simpático. – Tu também. Emily entregou-lhe uma lista de instruções em relação a Charlie: as horas de deitar, o que fazer em caso de um ataque de asma, quais os seus livros e vídeos favoritos, a sua necessidade de ter constantemente à mão o dinossauro Barney falante. Paul guardou a lista no bolso sem a ler. – Vais lê-la, não vais? – Sim – replicou Paul com um suspiro. É o resultado de uma centena de conversas do mesmo género enquanto foram casados. Esperaram num café até começar o embarque no voo e Emily conseguiu não fazer nenhum comentário quando Paul foi comprar Coca-Cola para os
filhos. «O importante é que eles estejam felizes», disse a si mesma. Charlie sentou-se ao colo de Paul, a brincar com o dinossauro Barney e a cantarolar baixinho. As duas raparigas puseram-se de auscultadores nos ouvidos, mas pareceram-lhe razoavelmente felizes. Paris chegou mesmo a dizer que ia ter saudades do Totti e de Emily (por essa ordem; a sua lista de instruções para cuidar do Totti é ainda maior do que a de Emily relativamente a Charlie). Os problemas começam na porta de embarque. Mal percebe que Emily não irá com eles, Charlie recua. – Mamã! – guincha. – Meu querido. – Emily acocora-se, ficando da altura dele. – Desta vez eu não vou convosco. Vão ter umas férias muito boas só com o papá e vemo-nos dentro de muito pouco tempo. – Não! – grita Charlie, agarrando-se à perna dela, num abraço forte e desesperado. – Anda lá, Charlie. – Com alguma dificuldade, Paul consegue separá-lo da mãe. – Nós vamos divertir-nos. Podemos ir ao jardim zoológico. Tu lembraste do jardim zoológico. Podemos ir ao parque de diversões. Podes comer algodão-doce. – Quero a mamã! – berra Charlie, contorcendo-se nos braços do pai. – Daqui a poucos dias tornas a ver a mamã. Quando chegarmos a Inglaterra telefonamos-lhe. O que dizes? – Não! Não! Telefone não! Quero a mamã! Com as lágrimas a correr-lhe pelas faces, Emily beija as filhas e pressiona os lábios sobre a bochecha avermelhada de Charlie. – Até daqui a uns dias, meu amorzinho. A mamã adora-te. – Não! Não! – Toma bem conta deles – recomenda a Paul, sentindo-se horrivelmente infeliz. – É claro que vou tomar – responde-lhe ele, impaciente e com dificuldade em segurar Charlie. – Olha, isto só está a piorar as coisas, o melhor é nós irmos. – E afasta-se com passos largos, segurando Charlie, ainda aos berros, nos braços e com as duas raparigas a caminhar rapidamente atrás dele. Emily espera até eles desaparecerem e depois dirige-se para um banco, onde se senta a chorar amargamente. Sabe que está a ser ridícula (só vão estar fora por pouco mais de uma semana), mas não consegue controlar-se. Enroscando-se no banco, chora e chora sem parar.
– Mrs. Robertson! Emily! Só ao fim de alguns minutos se apercebe de que alguém está a chamar o seu nome. E então, erguendo lentamente o olhar, vê umas botas de trabalho muito gastas, umas calças de ganga desbotadas, uma camisola vermelha e um rosto moreno de pirata. É Raffaello. – Qual é o problema? – pergunta ele, acocorando-se e ficando com o rosto ao nível do seu, tal como ela fez com Charlie. – As crianças. Foram-se embora. O Charlie… – soluça. – Foram passar as férias com o seu marido? – Sim. – E Emily começa a fungar horrivelmente. – Bem, nesse caso de certeza que não vão estar fora por muito tempo. Uma semana? – Dez dias – soluça Emily. – Pronto, pronto. – Raffaello estende-lhe uma mão e ajuda-a a levantar-se. Emily limpa os olhos com uma mão, pensando que deve estar com um aspeto horrível, com o rosto todo inchado e sulcado de lágrimas. Raffaello oferecelhe um lenço, um a sério, de linho, impecavelmente branco e com as suas iniciais bordadas. – Vamos – diz ele, não sem certa preocupação. – Limpe os olhos. Emily faz isso, não podendo deixar de se assoar também, mesmo sabendo que deve ser uma imagem repugnante. Raffaello segura-a por um braço e começa a conduzi-la para fora do aeroporto, para lá dos turistas a andar de um lado para o outro e dos polícias a mascar pastilha elástica e de metralhadora ao ombro. – Trouxe o carro? – pergunta ele quando chegam ao pé da porta que dá para o parque de estacionamento. – Sim. – Nesse caso, vá para casa, a conduzir com cuidado, e trate de descansar um pouco. Mais tarde eu passo por lá e levo-a a jantar fora. Emily assente, mal registando as palavras dele. E então ocorre-lhe algo e pergunta-lhe: – O que veio fazer ao aeroporto? – Vim buscar algum equipamento de geofísica – diz Raffaello. Sorri-lhe, não o habitual sorriso ligeiramente trocista, mas outro cuja intenção é difícil de descortinar. – Vemo-nos mais logo. Passo por sua casa por volta das oito. – Com estas palavras, dá meia-volta e desaparece na multidão.
Quando Emily viu Raffaello parado à porta de Antonella, na noite de Ano Novo, o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que algo nele estava diferente. O segundo foi que devia aproveitar aquele momento para o beijar, aproveitando o álibi do relógio em fundo a anunciar o começo do novo ano. Mas então Antonella chamou-o de lá de dentro e a oportunidade esfumou-se. Raffaello foi puxado para o meio da festa, fazendo apenas uma ligeira pausa para lançar um sorriso a Emily ao passar por ela, tão perto que ela pôde tocarlhe no casaco, molhado da chuva noturna. Quando Raffaello passou por ela, Emily compreendeu qual era a diferença: ele tinha tirado a barba. – O que aconteceu à sua barba? – perguntou-lhe mais tarde, quando os dois se sentaram no sofá, ao lado de um Charlie adormecido. Paris continuava desaparecida. – Cortei-a – respondeu ele. – A Gabriella não gostava. Disse que lhe arranhava a cara. – Que tal está ela? – Ótima. Fala sem parar, Tem um cão imaginário chamado Peter. E acha que a Itália deve ficar ao pé da China porque os noodles são quase iguais à pasta. – Tem lógica. Aliás, não foi Marco Polo a trazer a pasta da China? – Disparates! A pasta é italiana. Tudo o mais que se diga é pura heresia. – Julguei que defendia o rigor histórico. – Não quando se trata de pasta. Naquele momento, Monica e Emilio aproximaram-se e a conversa passou para a América, para a estupidez de George Bush e para a possível retirada das tropas italianas do Iraque. Ao fim de algum tempo, Paris apareceu ali com um ar cansado, e, algo relutante, Emily resolveu que era altura de irem para casa. Raffaello levou Charlie ao colo para o carro, dizendo que a veria em breve. Tudo isto aconteceu há dez dias. Agora Emily conduz de volta a casa, sentindo-se tonta depois de ter chorado tanto. Está a chover e a estrada para Monte Albano é cheia de túneis – pequenas aberturas traiçoeiras na encosta, mal iluminadas e cheias de esquinas perigosas. Emily sabe que a condução requer toda a sua atenção, mas os pensamentos estão continuamente a fugir-lhe para os filhos (Será que Charlie já parou de chorar? Irá Paul lembrar-se de lhe dar um rebuçado para chupar durante a descolagem e, mais tarde, durante a aterragem?), e, o que é
mais perturbante, para Raffaello. Em que sentido irá ele «levá-la a jantar»? Será que apenas ficou com pena dela? E como foi capaz de se assoar no lenço dele daquela maneira? Ainda está a chover quando chega à villa. Consegue ouvir o Totti a ladrar como um doido lá dentro e, enquanto anda pela casa invulgarmente silenciosa, fica aliviada por ter ali o pastor-alemão. O tiquetaque do relógio parece-lhe muito alto e consegue ouvir os próprios passos a ecoar pelo chão de pedra. A bicicleta de Charlie, abandonada no corredor, fá-la chorar durante alguns minutos, mas a verdade é que está demasiado enervada para chorar. Sente-se inquieta, desestabilizada, perturbada, com os nervos à flor da pele. O Totti a roçar-se contra ela é como um choque elétrico, e, quando bebe um copo de água, imagina que consegue sentir o líquido a descer-lhe gota a gota pelo corpo, como se estivesse estendida numa mesa de operações, aberta ao meio e pronta a dissecar. Põe-se a andar de um lado para o outro, a arrumar isto e aquilo, a levantar os pratos sujos do pequeno-almoço. Siena deixou um livro de Jilly Cooper aberto sobre a mesa da cozinha. As botas pretas de Paris estão no corredor. Emily vai arrumando tudo, aproveitando para abraçar disfarçadamente as botas, apesar da lama. De cauda a abanar, o Totti vai observando todo e cada gesto seu. Emily não tem coragem para almoçar, mas força-se a comer uma maçã, mastigando-a sem chegar a sentir-lhe o sabor. Atira o caroço pela janela. Talvez daqui por cem anos tenha crescido ali um pomar. Ouve a voz de Don Angelo: «Cem anos? Isso não é nada.» A casa está em silêncio, tirando o Totti a arranhar freneticamente a porta da frente. Vai ter de sair com ele para dar um passeio. A lista de Paris (1. Passear o Totti TODOS OS DIAS) parece repreendê-la da porta do frigorífico. O seu computador portátil está aberto em cima da mesa. Devia mesmo trabalhar no artigo. Em vez disso, senta-se e abre indolentemente a página do Google. Por hábito, começa a escrever «michael b…», mas depois para. Fecha o computador. Lá fora, a chuva vai batendo ruidosamente no telhado baixo. Emily só espera que o algeroz aguente mais aquele inverno; de momento não pode arcar com mais nenhuma despesa. Aceitou o emprego a dar aulas de Inglês na escola primária, mas o salário é muito baixo. Podia aproveitar agora e sentar-se a planear a sua primeira aula. Mas então, tomada de um súbito acesso de energia, levanta-se. Decide arrumar o andar de cima e a seguir tomar um banho. Na sua sumptuosa casa de banho, toda em pedra natural e em mármore (foi
a casa de banho que finalmente os deixou na bancarrota), fica mergulhada num banho de água perfumada, a pensar em Raffaello. Não pensava tanto num homem desde os tempos em que andou atrás de Russell Edwards, um rapaz que tinha aulas de Química com ela, seguindo-o até à casa dele todas as noites durante uma semana. Com Michael, o seu súbito e explosivo romance simplesmente aconteceu. Nem chegou a ter tempo de andar obcecada por ele. Michael simplesmente apareceu ao anoitecer, numa praça de Londres, e tomou conta da sua vida. Já no caso de Paul, foi ele a ficar obcecado por ela e a persegui-la com determinada convicção. Para ela foi tudo muito tranquilo. Mas agora parece ter todo este tempo nas mãos para se interrogar: será que ele gosta de mim, será que eu gosto dele, será que ele está apaixonado pela Antonella, será que ele está apaixonado pela mãe da Gabriella, será que ele continua apaixonado pela sua primeira mulher, a trágica Chiara? Tudo isto a deixa bastante inquieta; são muitas perguntas, mas tem de admitir que isso torna a sua vida mais interessante. Com o dedo grande do pé, abre a torneira da água quente. O telefone toca e ela vai atendê-lo, avermelhada e a pingar água pela casa. É Paul. Fizeram uma boa viagem e as crianças estão bem. Sim (num tom impaciente), até Charlie. Está muito contente e entretido com o brinquedo que saiu na sua Happy Meal. Isso quer dizer que foram ao McDonald’s? Sim (num tom defensivo). Será que ela pode falar com as filhas? Siena vem ao telefone. Sim, o voo foi bom. É bom estar de volta a Inglaterra, faz frio mas está sol (fica encantada ao saber que está a chover em Itália). O pai levou-os ao McDonald’s e a seguir vão às compras. Para comprar o quê? Oh, já sabes, isto e aquilo. Quer falar com Paris? A sua filha mais nova é breve e direta. Como está o Totti? Emily já o levou a passear? Sim, a Inglaterra é OK, mas parece-lhe um bocado suja em comparação com Itália. E detesta as batatas fritas do McDonald’s, cheiram a vomitado. Tchau, mãe. Também te adoro. Ao pousar o telefone, Emily tem uma sensação muito estranha. Como se estivesse mais alguém ali com ela, a observá-la. É uma sensação tão forte que, mesmo depois de se voltar lentamente e constatar que não está mais ninguém no seu quarto, apenas o Totti, a olhá-la com um ar esperançado, a sensação persiste. Fica com os cabelos da nuca arrepiados e, de súbito, sentese demasiado exposta, envolta numa toalha de banho e com o cabelo a pingar. Liga o rádio e, de imediato, começa a ouvir-se uma musiqueta europop – uma perfeita monstruosidade açucarada. Perfeito; ninguém pode sentir-se
assustado enquanto ouve: «Bim bim bim, bom bom bom, ti voglio bene, he he he.» Veste-se apressadamente; não vale a pena usar nada revelador numa noite como aquela, e, seja como for, apetece-lhe ter o corpo completamente escondido pela roupa. Calças pretas, camisola cinzenta de caxemira, botas pretas. Isso mesmo. Assim estará preparada seja para o que for. Desce as escadas com passos sonoros, com o Totti a segui-la. Abre a porta para o pastor-alemão sair, mas fica aliviada ao ver que ele não se afasta muito. – Amanhã levo-te a dar um passeio como deve ser – promete-lhe. Ele abana a cauda com força e derruba um candeeiro de uma pequena mesa. São sete e meia, hora de beber um copo de vinho. Sente-se muito calma e controlada, e é com surpresa que verifica que a sua mão treme ao servir um copo de vinho. «Vê se te acalmas», diz a si mesma. Vai trabalhar no artigo durante algum tempo e, mais tarde, quando entrar ali, Raffaello encontrá-la-á serenamente sentada diante do seu computador portátil – o exemplo consumado de uma mulher calma e segura de si. Na verdade, ao chegar daí a meia hora, entrando pela porta que Emily deixou aberta, Raffaello encontra-a a limpar o vomitado do Totti. O pastoralemão, obviamente enfastiado dada a ausência de Paris, empanturrou-se com uma caixa de bombons com recheio de licor que tinha sobrado do Natal. O vomitado cheira repugnantemente a crème de menthe. – Ah, Mrs. Robertson – saúda Raffaello, observando-a da porta. – Não se devia ter dado a tanto incómodo. – Cale-se e traga-me o balde e a esfregona – responde-lhe Emily com os dentes cerrados de irritação. Dez minutos mais tarde, depois de ter ido trocar de roupa, Emily sai de casa e dirige-se para o jipe de Raffaello. Chove intensamente e pela encosta da colina vai correndo uma cascata bege e lamacenta. – Que invulgar – comenta Raffaello, abrindo a porta do jipe para ela subir. – Não costuma chover tanto no começo do ano. Deve ser por a temperatura estar tão amena. – Amena? – Subindo desajeitadamente para o jipe, Emily estremece. – Está um gelo. – Costuma fazer muito mais frio em janeiro – replica Raffaello, batendo a porta do lado dele e correndo para a porta do lado oposto. Apesar da chuva, não tem um chapéu nem um capuz, por isso os seus cabelos pretos estão
ensopados e colados à cabeça. Sem os caracóis parece diferente, mais perigoso, de certa forma. Emily não teve a menor dúvida de que Raffaello a levaria ao La Foresta. Tal como Michael, parece estar convencido de que o restaurante da sua família é a sua cozinha particular. Na verdade, comporta-se como se tivesse sido ele próprio a preparar o jantar, pedindo que tragam a Emily pratos complicados que nem sequer constam do menu, mas que, aparentemente, o chef terá todo o prazer em confecionar para ela. – A nossa ribollita já é famosa – diz Raffaello. – Tem de a experimentar. – Em seguida, começa a descrever em detalhe a preparação da sopa, mas Emily duvida que ele seja capaz de cozinhar seja o que for. – Adoro este tipo de comida – diz ela. – É a chamada cucina povera – explica Raffaello com um sorriso arreganhado. – A comida dos pobres. Pão e pasta, com um pouco de azeite e de alho. Nada de exótico ou de refinado. Não é como a cozinha francesa. Emily assente, pensando no Vittorio’s, com o seu elaborado menu gourmet. Antes estava convencida de que o Vittorio’s representava a verdadeira essência de Itália, mas, desde que veio viver para ali, descobriu que a dita essência é algo muito diferente. E Michael? Talvez, pensa então, com um ligeiro sobressalto de reconhecimento, também ele não tenha sido um amor verdadeiro. E, nesse caso, ela está finalmente livre. Um pouco tonta, bebe um gole de vinho. Sabe-lhe a bosque, a bagas e a inverno. – Que vinho magnífico – comenta. – Qual é? Raffaello encolhe os ombros. – Não sei. É de produção local. – Sorri maliciosamente. – Não comece a fazer como todos aqueles turistas ingleses que estão sempre a falar de vinhos. – E então, fazendo um péssimo sotaque inglês, começa a imitá-los: – «Oh, veja, que magnífico Montepulciano de 1982. Vamos levá-lo connosco para depois podermos falar sobre o tema até deixarmos toda a gente aborrecida.» Emily dá uma gargalhada. – A comida e o vinho são uma parte muito importante da experiência das pessoas na Toscana – comenta. – Li algures que o facto de os turistas não falarem muito (porque geralmente não entendem a língua) torna mais apurados os outros sentidos: o paladar, o toque e a visão. – Deve ser por isso que dizem sempre que vão «ver» isto e aquilo – responde Raffaello. – Ver é tudo.
– E tiram fotografias para provarem que viram mesmo todas essas coisas – acrescenta Emily, sentindo-se arrogantemente distanciada dessa espécie de turistas, ali sentada num restaurante italiano com o sobrinho do dono, a beber um vinho delicioso que nem sequer vem mencionado na carta de vinhos. – Isso quer dizer que você não é uma turista? – interroga Raffaello num tom provocador. – Não – responde-lhe Emily, ofendida. – Eu vivo aqui. – Eu nasci aqui – replica Raffaello, recostando-se na cadeira quando o empregado coloca na mesa dois fumegantes pratos de ribollita –, mas não me sinto em casa. Continuo a ser o «Raffaello Americano». Continuo a ser o arqueólogo maluco. – Mas é o arqueólogo maluco daqui – sublinha Emily, tentando não atacar a comida com demasiada voracidade. A ribollita, uma espécie de sopa feita com pedaços de pão, está inacreditavelmente saborosa. – Talvez – replica Raffaello. – Mas continuo a ser o homem maléfico que matou a própria esposa. Agora que aquele tema foi abordado, Emily sente-se bem mais aliviada. A mulher morta, bela e amaldiçoada como uma personagem de um conto de fadas, já não é um obstáculo entre eles. – Decerto que ninguém acredita realmente nisso. – Não? Todos os anos, no aniversário da morte da Chiara, alguém me manda uma fotografia dela. Em baixo vem escrito: «Chiara Belotti, assassinada por R. Murello em 1992.» – Não! – exclama Emily, chocada. – Quem faria algo assim? Embora Raffaello responda com um encolher de ombros, Emily acha que ele desconfia de alguém em concreto. E, pensando no assunto, ela também. Raffaello suspira, bebe um gole de vinho e depois diz: – A princípio eu não sabia que ela era anorética. Agora isto parece uma estupidez, mas a verdade é que não sabia mesmo. Claro que ela era muito magra, mas o mesmo acontece com muitas raparigas. E sempre me pareceu que comia bem. Quando saíamos, parecia-me sempre que ela gostava da comida. – Trouxe-a aqui? – pergunta Emily, sabendo qual vai ser a resposta. Raffaello acena afirmativamente. O seu olhar é sombrio e imperscrutável. – Ela adorava vir aqui. E os empregados adoravam-na também. Costumavam fazer uma sobremesa especial para ela, uma torta de
framboesas. Como podia eu saber que ela ia vomitar tudo mal chegava a casa? – E depois de se casarem? Nessa altura não desconfiou? – Não a princípio. Mas depois comecei a suspeitar. Ela costumava sangrar das gengivas e tinha um hálito esquisito. Comecei a ler livros e artigos em revistas, tentando descobrir mais sobre o assunto. Mas não conseguia falar com ela. – Porquê? – Ela recusava-se a discutir o assunto. Bem sei que isto soa ridículo, mas era como se tivesse eliminado por completo o tema da sua mente. Recusavase simplesmente a admitir o que estava a acontecer. Tinha-se tornado um esqueleto ambulante, mas teimava em dizer que não havia qualquer problema. Eu não sabia o que fazer. Se a mãe dela fosse viva talvez pudesse ter feito alguma coisa, mas morreu alguns meses antes do nosso casamento. Agora percebo que talvez tenha sido isso a originar o problema. A Chiara era muito chegada à mãe. – E convenceu-a a ir ver um médico? – Mais tarde. Por fim, consegui fintá-la. Ela queria desesperadamente ter um filho. Meu Deus! Pesava trinta quilos, há meses que deixara de ter a menstruação, mas, ainda assim, não conseguia entender por que razão ainda não tinha conseguido engravidar. E então eu disse-lhe que tinha marcado uma consulta com um especialista em fertilidade. Claro que se tratava de um especialista em distúrbios alimentares. Bastou olhar para ela e internou-a de imediato. – Devem ter sido tempos difíceis. Raffaello ri com amargura. – Ela ficou furiosa. Disse que eu a tinha traído e que me odiava. Recusouse a ver-me durante vários dias. Mas melhorou. E isso era o mais importante. A pouco e pouco, foi melhorando. Quando regressou a casa continuava horrivelmente magra, mas tinha voltado a comer. Pensei realmente que tudo iria ficar bem. – E depois, o que aconteceu? – Fui para fora – conta Raffaello, fitando o seu copo de sobrolho franzido. – Ofereceram-me um trabalho na Austrália, uma escavação usando uma técnica nova, e eu fui. Sabia como ela estava fraca, mas, mesmo assim, fui. – Olha para Emily com uma expressão irada, como se a culpa fosse dela. – O
nosso apartamento era no quinto andar. Um dia ela subiu as escadas até lá acima, entrou em casa, deitou-se na nossa cama e o seu coração parou. Tinha todos os órgãos afetados, compreende? Encontrei-a ao regressar a casa uma semana depois. – Que horror. – Sim, foi um horror. A família dela nunca me perdoou. – Mas, Raffaello – diz Emily, expressando algo em que já pensa há muito tempo –, a família não podia ter ficado a tomar conta dela enquanto você estava para fora? Na minha opinião, a culpa é tanto deles como de outra pessoa qualquer. Raffaello ri amargamente. – A família dela não nos visitava. Como não gostavam de mim, não vinham ao nosso apartamento. Ela podia ir vê-los, mas eles não a vinham visitar. – Nesse caso, parece-me que a culpa foi deles – afirma Emily resolutamente. Com uma risada, Raffaello pousa a sua mão sobre a dela. – Você é uma rapariga encantadora, Emily, sabia? Ela também se ri, embaraçada. Olha para as mãos de ambos, pousadas sobre a toalha de mesa vermelha, a dele muito grande, com pelos escuros nas costas, a dela branca, de aspeto delicado e com as unhas roídas. O empregado de mesa traz-lhes o segundo prato, e, de repente, Raffaello pergunta-lhe: – Sente a falta do seu marido? Tem saudades de Mr. Robertson? – Ele não se chamava Robertson. O nome dele era Paul Hanson. Ainda é, claro. Raffaello sorri. – Uma vez Hanson, sempre Hanson. – Exatamente. – Emily esvazia o seu copo e Raffaello torna a enchê-lo de imediato. «Não te embebedes», avisa Emily a si mesma. – Sim – continua, depois de uma pausa. – Às vezes sinto a falta dele. Tenho saudades de ter alguém comigo naquela casa, alguém com quem possa discutir os problemas dos meus filhos. Mas… não sei. Tenho saudades de nós os dois, juntos. Estou sempre a recordar o período em que fomos felizes, logo depois de nos termos casado, quando as nossas filhas ainda eram pequenas. Mas dele não tenho saudades, não realmente. Na altura em que nos separámos já não se podia chamar um casamento à nossa relação. Quero dizer, vivíamos juntos quando
ele não estava fora em trabalho, mas nunca conversávamos realmente. Apenas discutíamos coisas relacionadas com as crianças e com a casa. Éramos como dois mecânicos a fazer a manutenção de uma máquina gigantesca, e não como duas pessoas apaixonadas. – É a primeira vez que Emily admite isto seja a quem for. – E as crianças? Sentem a falta dele? – Acho que as minhas filhas sentem. O Charlie ainda é muito pequenino, verdade seja dita. Em teoria, o Paul adorava-o por ele ser rapaz, mas, na prática, não lhe ligava muito. Mas parece-me que a Siena sente muito a falta dele. E a Paris também. Está sempre a dizer-me que o pai precisa de alguém que tome conta dele, e provavelmente tem razão. – Sim, provavelmente tem. É uma rapariga muito inteligente. – Pois é. Raffaello está prestes a acrescentar qualquer coisa, mas então, por trás deles, gera-se um enorme rebuliço. Raffaello volta-se e Emily vê um homem idoso, impecavelmente vestido com um fato cinzento-claro, a avançar por entre as mesas. Parece um monarca a caminhar pelo meio dos súbditos; os comensais vão estendendo a mão para o cumprimentar, para lhe tocar. Ele vai acenando, como se os estivesse a abençoar, ora trocando algumas palavras com este, ora abraçando aquele. Os empregados do restaurante pairam em redor dele como acólitos, aguardando ansiosamente as suas instruções. Ele avança lentamente, apoiando-se numa bengala com punho de ouro. Raffaello volta-se novamente para a mesa e sorri para Emily. – É desta que vai conhecer o zio Virgilio – anuncia. O senhor idoso aproxima-se da mesa deles. Não se mostra surpreendido com a presença de Raffaello ali. O arqueólogo põe-se de pé. – Zio! – E abraça o velhote, beijando-o em ambas as faces. – Permita-me apresentar-lhe a Emily Robertson. – Emily também se põe de pé e Virgilio estende-lhe a mão, que, frágil devido ao avançar da idade, tem a textura de uma folha de árvore. – Não quer juntar-se a nós? – pergunta Raffaello. Tal como da primeira vez que ali jantou, Emily vê um empregado fazer aparecer uma cadeira, como se por artes mágicas. Virgilio senta-se e entrega a sua bengala a outro dos empregados que andam a pairar de volta dele. – Champanhe – pede. – Traz-nos champanhe. – Sì, signore Virgilio. – Os empregados desaparecem num ápice. Virgilio
volta-se para Emily. Tem um rosto extraordinário, que mais parece um retrato pintado por El Greco: magro e de feições singularmente belas, com um olhar sombrio e perigoso. O mesmo olhar de Raffaello. – Portanto, é esta a senhora que mora na Villa Serena? – pergunta ele num inglês de sotaque carregado mas fluente. – Sim. – Ouvi falar muito a seu respeito. – Coisas boas, espero – replica Emily com certo nervosismo. – Claro que sim – diz Virgilio com um peculiar inclinar de cabeça. – Ouvi dizer que era muito bonita e que tinha duas filhas encantadoras e um rapazinho adorável. E também ouvi dizer que o meu sobrinho-neto vos anda a atormentar, a esburacar a vossa propriedade e a encher-vos a casa de esqueletos. O empregado traz o champanhe e, com um salamaleque, coloca-o diante de Virgilio. Este, com um gesto impaciente, faz-lhe sinal para os servir. Raffaello ri-se. Parece bastante descontraído na presença intimidante do seu tio-avô. – Sim, é verdade que eu tenho sido um enorme tormento para Mrs. Robertson. – Não – balbucia Emily. – Tem sido muito gentil. – Gentil? – Virgilio lança um olhar trocista a Raffaello. – Diz-me que ele tem sido gentil? – Muito gentil. – Então deve ter mudado – responde Virgilio laconicamente. Depois, ergue o seu copo à luz. – Salute! – Salute! – repetem Raffaello e Emily em coro. É como se, de repente, estivessem num filme; as velas sobre a mesa projetam sombras dramáticas no rosto de Virgilio e brilham no vidro facetado das flûtes de champanhe. «Só falta a música de O Padrinho», pensa Emily. Virgilio volta-se para Raffaello. – Alguma notícia a respeito dos esqueletos? – Bem, já sabes que os sepultámos com todas as honras. – responde o arqueólogo com um sorriso irónico, ao que o seu tio-avô responde com um breve assentimento. – Sim. Eu não fui ao funeral, mas o Giovanni e o Renato estiveram lá. Dizem que foi uma cerimónia digna de ser ver. O Angelo deixou-nos a todos
muito orgulhosos. – É o que ouvi dizer – responde Raffaello com uma expressão sisuda. – Conheceu o Carlo Belotti? – pergunta Emily. Virgilio faz um largo sorriso, mas não lhe responde durante alguns minutos. Quando finalmente diz algo, fá-lo num tom mais suave do que o que usou até ali. – Sim. Conheci-o. Todos nós o conhecíamos. Era um homem corajoso, embora tenha colocado em risco a vida de todos nós. Emily pensa que, embora digam sempre que Carlo Belotti era corajoso, toda a gente – Romano, Virgilio e até mesmo o próprio Don Angelo – acrescenta alguma ressalva logo a seguir. – Corriam risco de vida por esconderem os guerrilheiros? – pergunta. Virgilio assente, com o rosto parcialmente escondido pelas sombras. – Sim. Ramm, o general nazi, era um homem terrível. Dizem que em Lucca, como retaliação por uma sublevação de guerrilheiros, ordenou que um bebé fosse atirado para dentro do forno que havia na praça central da terra. Ordenou que fosse queimado vivo sob o olhar da sua família. – Meu Deus! – exclama Emily, horrorizada. – Sim – replica Virgilio com um sorriso irónico. – Julga que foram tempos fáceis para nós, ensanduichados entre os nazis, os guerrilheiros e os Americanos? Quando os guerrilheiros deixaram o Monte Battaglia livre para os Americanos, Ramm ordenou que toda a aldeia fosse destruída. Eu próprio sei qual é a sensação de sermos levados para a praça central com o nosso irmão, para sermos mortos por um pelotão de fuzilamento. «Digam as vossas orações», foram as palavras deles. Lembro-me de pedir a Nossa Senhora que cuidasse da minha mãe. Mais tarde senti-me orgulhoso disso, do facto de os meus últimos pensamentos terem sido para a minha mãe. – Mas, no fim, foram poupados? – Tal como pode ver. – Virgilio indica a sua pessoa com um gesto, e também o restaurante, todo aquele espaço resplandecente, decorado com galhos de veado e fotografias das montanhas cobertas de neve. «E também isto», parece estar a dizer, «sobreviveu aos nazis, mesmo se primeiro teve de servir para os alimentar.» – Porquê? – Quem sabe? Dizem que Ramm recebeu ordens vindas de cima. Jamais saberemos. Fomos poupados, eu e o meu irmão Severino. Ele foi morto um ano depois, na insurreição de Génova.
– O seu outro irmão, o avô do Raffaello, foi morto em Espanha, não é verdade? – Sim. – Virgilio estende afetuosamente uma mão para Raffaello. – Sim, pobre Amadeo. A culpa foi toda dele, claro. Nós éramos os irmãos do «Comunista». Era por isso que Ramm nos odiava tanto. Ainda hoje, algumas pessoas da vila chamam a este estabelecimento o «restaurante vermelho», il ristorante rosso. Tudo por culpa do Amadeo, Deus dê paz à sua alma. – Os nazis comiam aqui, não é verdade? – pergunta Emily, pensando que, provavelmente, o «restaurante vermelho» não terá mudado grande coisa nos últimos sessenta anos. – Sim. Não os soldados das SS, mas os primeiros alemães que foram enviados para cá. Esses eram cavalheiros, a minha mãe sempre o disse. Havia um de quem ela gostava muito, e foi ele quem nos avisou que as SS vinham aí e nos aconselhou a escondermos os nossos objetos de valor e a fugirmos para as colinas. Sim, a minha mãe gostava desses primeiros alemães. Tirando a questão das batatas. Ela dizia sempre que eles comiam demasiadas batatas. Comiam-nas da mesma maneira que os Italianos comem pão. – E, por falar em pão – comenta Raffaello –, a sua ribollita está melhor do que nunca. – E, com esta observação, a conversa é elegantemente encaminhada para o tema da comida. Mas Emily, seguindo o gesto de Virgilio quando ele aponta na direção das cozinhas, elogiando a mestria do seu chef, repara subitamente em algo que antes escapou à sua atenção. Numa prateleira, entre uma fotografia da equipa de futebol de Monte Albano e uma fileira de garrafas de Chianti empoeiradas, está uma caveira humana. A viagem de regresso a casa é feita debaixo de uma chuva apocalíptica. Nenhum dos dois diz uma palavra e o único som que se ouve é o ritmo incessante do limpa-para-brisas. Ao escutar o girar furioso dos pneus enquanto sobem a estrada não pavimentada, Emily sente-se agradecida por estarem num jipe. Por baixo do terraço da sua villa formou-se um lago e os algerozes vergaram sob o peso da água. Raffaello desliga o motor, mas nenhum dos dois faz qualquer movimento. Por um instante, os faróis dianteiros iluminam a villa de terracota, uma aparição vaga por entre a chuva, mas então Raffaello pressiona um interruptor e ficam mergulhados na escuridão. – Obrigada por uma noite encantadora – balbucia Emily repentinamente. –
A comida estava ótima e foi fascinante conhecer o seu tio… – Chiu. – Raffaello inclina-se para ela. – A altura da conversa já passou. Emily abre a boca para discordar, para se despedir dele, para se mostrar muito calma e composta e tudo o mais. Mas, em vez disso, dá por si a abraçar-se ao arqueólogo e a beijá-lo num frenesim desesperado, enquanto a chuva bate furiosamente no tejadilho do jipe.
9
A
o acordar, Emily constata que já parou de chover. O sol de inverno entra pelas persianas abertas e o Totti está deitado na cama a ressonar. Não há nem sinal de Raffaello. Um bilhete sobre a sua almofada, escrito numa folha arrancada de um caderno, diz: «Querida Mrs. Robertson, fui ver o que a chuva fez às minhas escavações. Volto daqui a pouco. R.» Emily sorri; a ideia de Raffaello ainda ser capaz de a tratar por Mrs. Robertson (depois do carro, do corredor, das escadas e do quarto) parece-lhe irresistivelmente cómica. Abre uma janela e inspira o ar leve e frio. Tudo emana um cheiro húmido – é um odor a relva, a terra e a folhas molhadas. «Estou viva», pensa Emily tolamente, deliciada. A atmosfera de frenética expectativa da noite anterior deu lugar a um contentamento pesado e algo aturdido. «Quem poderia imaginar», pensa Emily para consigo, fechando a janela e dirigindo-se para a casa de banho, «que era isto o que eu queria? Ir para a cama com o Raffaello.» Foi para a cama (e para as escadas, e para o corredor e tudo o resto) com Raffaello e aconteceu tudo de uma maneira absolutamente espontânea e fantástica. Não sente a menor culpa (já se sondou cuidadosamente, procurando todos os sintomas habituais), nem embaraço ou angústia. Depois, dormiu o seu sono mais profundo em muitos anos, um sono pesado que juntou o passado, o presente e o futuro num único borrão indistinto, e que obliterou (Deus a perdoe) os seus filhos, o seu ex-marido, a personal trainer de Cirencester, a esposa falecida, os esqueletos na gruta e a expressão de Virgilio ao falar-lhe sobre a guerra. Emily toma rapidamente um duche, veste-se e desce ao rés do chão com o Totti a colar-se ansiosamente aos seus calcanhares (inexplicavelmente, a dona esqueceu-se da sua refeição na noite anterior, pelo que agora quer certificarse de que o mesmo não torna a acontecer). Emily põe a cafeteira ao lume e começa a grelhar fatias de bacon. «Hoje», pensa alegremente, «é dia para um pequeno-almoço inglês completo.» Dá comida ao Totti (finalmente!) e põe os pratos do pequeno-almoço na
mesa. Deve aparentar descontração, diz a si mesma; não pode mostrar-se demasiado afetuosa logo a seguir a terem dormido juntos, senão ainda o assusta. Mas, mesmo enquanto tem estes pensamentos, ao mesmo tempo que espreme laranjas com tanto entusiasmo que as grainhas saltitam pela mesa, não acredita em nada disso. «Desta vez não vou estragar tudo», pensa. «Desta vez, tudo vai ser perfeito.» Por fim, quando já são quase dez horas, ouve passos de corrida (ele vem a correr!) a subir os degraus que dão para o terraço. A porta da cozinha abre-se de rompante, batendo contra a parede. Raffaello para no vão da porta, com o rosto resplandecente de felicidade – com um júbilo (Emily é obrigada a admitir) que ultrapassa tudo o que ela viu na noite anterior. – Encontrei-os! – grita ele. – Encontrei os meus etruscos!
QUARTA PARTE
PRIMAVERA
1
F
oi da chuva, dizem eles. Da chuva que caiu intensamente durante toda a noite, arrastando pedras e terra e desnudando a montanha. Quando Raffaello deixou a cama de Emily naquela manhã de janeiro para ir dar uma vista de olhos às escavações, descobriu que metade da encosta tinha sido levada numa enxurrada lamacenta que continuava a correr pela colina abaixo várias horas depois de ter parado de chover. Restavam as rochas brancas das Montanhas da Lua e um gigantesco buraco negro na encosta que deixou Raffaello com o coração aos saltos. Caindo de joelhos, o arqueólogo começou a afastar a lama e as pedras com as mãos. A chuva tinha feito um trabalho mais apurado do que algum arqueólogo alguma vez seria capaz de fazer, deixando à mostra várias pedras, enormes e cinzentas. Por baixo destas via-se uma abertura com quase um metro de altura, tratando-se, sem dúvida, de uma passagem qualquer. Esquecendo Emily, esquecendo tudo, Raffaello foi escavando e removendo lama durante quase uma hora, e a abertura foi-se tornando maior e mais profunda, à medida que iam ficando expostas mais pedras, colocadas a intervalos regulares como blocos de construção. Depois, com enorme cuidado (afinal, não queria morrer soterrado num arrastamento de lamas), Raffaello enfiou a cabeça e o torso pela abertura que ele mesmo fizera. Posteriormente lembrou-se das palavras de Howard Carter ao ver pela primeira vez o túmulo de Tutankhamon. «O que está a ver?» «Coisas maravilhosas.» Raffaello perscrutou a escuridão no interior da colina e soube que o trabalho mais importante da sua vida estava concluído. Soube que nada tornaria a ser igual. Correndo de regresso à cozinha de Emily, meio a rir, meio a chorar, gritou: «Encontrei-os! Encontrei os meus etruscos!» Agarrou-a por uma mão e quase a levou dali arrastada, subindo a colina lamacenta com o Totti a saltitar freneticamente de volta dos seus calcanhares (Um passeio! Finalmente!). No cimo da colina, Raffaello apontou majestosamente para as pedras recémexpostas, brancas sob a pálida luz do sol.
– Meu Deus – disse Emily lentamente. – Uma torrente de lama. – E não é tudo – replicou Raffaello. – Olha. Olha só ali para dentro. Toma a minha lanterna. Relutante, uma vez que vestira as suas melhores calças de ganga, Emily ajoelhou-se e espreitou para a estreita abertura entre as pedras. Para sua absoluta surpresa, deu por si a observar uma sala, uma sala subterrânea quadrada e toda em pedra, a que não faltavam bancos e cadeiras escavados na parede. A luz vacilante da lanterna incidiu em pilares, em gravações e em intrincados frescos. – O que é isto? – sussurrou por fim. – É um túmulo etrusco – respondeu Raffaello, praticamente a dançar sem sair do lugar. – Mas parece uma casa em ponto pequeno. Há assentos e uma série de objetos. – Esses assentos destinam-se aos antepassados mortos – explica Raffaello. – Julgo que também deve haver aí um altar para sacrifícios. Talvez haja mais túmulos, talvez tudo isto seja um cemitério. Tenho de chamar quem me ajude. E, com estas palavras, deu meia-volta e desceu a encosta a correr, deixando Emily de joelhos no solo lamacento. Agora é de noite e Raffaello e os seus voluntários passaram todo o dia a escavar. Trata-se de uma equipa bastante eclética: estudantes universitários, Stine, vinda de Badia Tedalda, Tino, o polícia, e não falta sequer uma pequena multidão de observadores da qual fazem parte Umberto, o presidente da Câmara, e Benito, o filho de Romano. Gritando ordens sem parar, traçando marcações no solo e dispondo os achados sobre oleados, Raffaello contagiou toda a gente com o seu entusiasmo frenético. Agora, com a ajuda do irmão de Tino, que é eletricista, está a instalar focos luminosos a toda a volta do perímetro da escavação. Evidentemente, os trabalhos vão continuar pela noite fora. Também Emily passou quase todo o dia nas escavações. Doem-lhe as costas, tem os pés gelados e está coberta de lama, mas não se importa. Os etruscos foram encontrados, e na sua propriedade! Em rigor, os túmulos estão logo a seguir à linha que delimita a sua propriedade, mas Emily ainda não o sabe. Naquele momento pensa naqueles mortos como se fossem seus familiares, um pouco como aconteceu com «Mario» e «Luigi», algum tempo
antes. E é inacreditavelmente empolgante ver o chão abrir-se sob os seus pés para revelar tesouros quase inimagináveis. A meio da manhã já puseram a descoberto a entrada de um segundo túmulo. Raffaello está convencido de que há muitos outros. – É como uma «rua dos mortos»! – grita, e Emily sente um ligeiro arrepio na espinha. Quererá ela realmente viver ao lado de uma «rua dos mortos»? De tarde, a equipa já deixou a descoberto uma estrada afundada que parece conduzir diretamente ao coração da colina. Ao anoitecer já encontraram um terceiro túmulo, mais pequeno. – Porque pertencia a uma família menos importante – explica Raffaello. – Essa gente era muito snob – comenta Emily. As costas começam a doerlhe a sério e já não vê os construtores de túmulos com a mesma simpatia de antes. – Eram um povo organizado – contrapõe Raffaello. – Tudo é regular e controlado. Este lugar revela-nos muito a respeito do seu modo de vida. – Emily! – grita uma voz do meio da multidão. É Monica. – Monica! – Emily fica aliviada com aquele pretexto para escapar da sua vala. Aquilo é trabalho duro. Sempre imaginou que a arqueologia fosse uma atividade muito meticulosa e feita com enorme cautela, que a terra tinha de ser afastada para o lado muito delicadamente e que tinham de escavar cuidadosamente, usando colheres minúsculas. Mas os voluntários passaram o dia inteiro a manejar enormes pás e a levar dali a terra em carrinhos de mão. Tino, o polícia, está de tronco nu, como um operário da construção, empurrando carrinhos de mão cheios de terra por uma rampa improvisada. Raffaello, de camisa rasgada e suja de terra, está literalmente enfiado na encosta, atirando lama e pedras para trás das costas. – Anda – diz Emily a Monica. – Vou fazer café para trazer para aqui. – Meu Deus – comenta Monica. – Isto transformou-se numa escavação arqueológica a sério! Na cozinha, o Totti recebe-as em histeria. Não o deixaram ir com eles para o sítio das escavações, o que o obrigou (na sua opinião) a passar um intervalo de tempo nada razoável trancado ali em casa. Emily põe o café ao lume e Monica começa a fazer panini al salame. Emily compreende que, pelo menos naquela noite, terá de ser ela a dar de comer aos voluntários. – Meu Deus, como o Raffaello está entusiasmado com tudo isto – comenta Monica, mordiscando distraidamente uma fatia de salame.
– Bem, era por isto que ele esperava, não é verdade? – responde-lhe Emily. – Estava convencido de que havia um grande achado arqueológico etrusco aqui e tinha razão. – Mas, na verdade, não passou de um golpe de sorte, não é ? – interroga Monica. – Se não tivesse chovido, jamais o teria encontrado. – Decerto acabaria por acontecer, mais cedo ou mais tarde – replica Emily, animada de uma estranha lealdade. – Acho que o problema é estarem tão afastados da muralha original. Segundo percebi, os túmulos costumavam ser construídos nos lados norte e este da cidade. Mas estes estão no lado oeste. – Pareces saber muito sobre o assunto – observa Monica com curiosidade. – O signore Murello anda a aborrecer-te com a sua converseta arqueológica? Emily roda a cabeça para Monica não ver como ela ficou corada. – Não – responde. – É só porque passei o dia ali com eles. Acabamos sempre por ouvir alguma coisa. – Quanto tempo é que aquilo vai durar? Não podes ficar indefinidamente a servir café e panini a vinte pessoas. – Não sei. Tudo depende de eles conseguirem algum apoio. Aquela mulher da universidade virá aqui em breve. Se a escavação for oficializada, a partir daí poderão ser eles a tratar do próprio jantar. Com um suspiro, Emily enche um termos de café. Está a pensar na noite anterior, na chuva a fustigar as janelas e na surpreendente ternura com que Raffaello a olhou. «Meu Deus, Mrs. Robertson», disse ele, num tom apenas meio irónico, «como é bela.» – Pareces cansada – comenta Monica. – Devias ir deitar-te. Eles que se amanhem. – Mais logo – responde-lhe Emily. – Só quero ir dar uma última olhadela à escavação. No escuro, os túmulos parecem menos acolhedores e mais ameaçadores. As pedras brancas avultam-se na noite e as silhuetas dos voluntários, recortadas contra as luzes dos holofotes, transformaram-se em formas grotescas. Emily começa a pensar nos etruscos menos como familiares e mais como espectros que irão assombrar-lhe a casa e projetar as suas sombras alongadas sobre a família dela. Raffaello está ligeiramente afastado do grupo, parado de pé a examinar alguns dos achados dispostos sobre um oleado. Ao ver Emily, faz-lhe sinal
para se aproximar. – Vê só – diz, indicando umas elaboradas peças de metal enferrujado, enleadas umas nas outras, formando círculos fantásticos. – Isso é o quê? Um colar? – Acho que é um freio para cavalos. Estava num dos túmulos. Provavelmente indica que o morto era rico e que tinha muitos cavalos. Emily pensa naqueles outros achados – o anel e a cruz encontrados na sepultura de Carlo Belotti. Seria bom se a presença desses dois objetos pudesse ser explicada com a mesma facilidade. Observando as espirais metálicas esverdeadas, fica momentaneamente absorta nos seus pensamentos. E então, Raffaello olha rapidamente por cima do ombro e beija-a nos lábios. Emily fica tão surpreendida que mal consegue falar. E então, tentando soar descontraída, pergunta-lhe: – Isso foi para quê? – Temos assuntos pendentes, Mrs. Robertson – responde-lhe ele. Emily não tem outro remédio senão satisfazer-se com aquela resposta. Nessa noite, quando finalmente se vai deitar, ainda consegue ver a luz dos holofotes na colina e os pequenos vultos escuros, recortados em contraluz, andando de um lado para o outro. Diário de Paris, 25 de janeiro de 2005: Bem, já voltámos e está tudo diferente. A casa está cheia de gente – arqueólogos, estudantes e toda a espécie de pessoas esquisitas – e o Raffaello anda de um lado para o outro como se isto fosse tudo dele. Nem acreditei quando a minha mãe me disse que ele tinha finalmente encontrado os seus etruscos. Enquanto nós estávamos fora! Que descaramento! Ele próprio admitiu. «Desculpa, Paris», disse-me. «A minha intenção era esperar por ti, mas nem mesmo eu consigo controlar o tempo.» «Nem mesmo eu»! Quem é que ele julga que é? O rei Canuto? A minha mãe também está diferente. Quero dizer, ficou muito contente por nos ver e tudo isso, disse que tinha tido muitas saudades nossas e que este lugar não era o mesmo sem nós, mas não me pareceu tão emocionada como eu estava à espera que ela ficasse. Tinha-a imaginado completamente arrasada por não estarmos aqui com ela
(para dizer a verdade, até me senti bastante mal por causa disso), mas parece que perdeu peso, e também cortou o cabelo e comprou roupa nova. Eu e a Siena reparámos logo que ela estava com umas calças de ganga novas, um pouco abertas em baixo, muito mais giras do que as outras que ela tinha. E tinha posto perfume. Dantes só punha perfume quando ela e o meu pai iam sair à noite. Foi ótimo ver o meu pai. Mesmo. Estou a falar a sério. Ele levounos a uma data de sítios fixes e comprou-me um blusão de pele. Mas, não sei, agora ele vive com a Fiona e tem uma vida diferente. Ela também é porreira, parece-me. É verdade que fala de uma maneira muito afetada («Oh, assssééérioo?!»), e eu e a Siena quase rebentámos a rir da primeira vez que a ouvimos, mas afinal até é porreira. Foi muito atenciosa com o Charlie, estava sempre a levá-lo ao jardim zoológico, a ver filmes da Disney e sei lá mais o quê. A mim e à Siena deixou-nos andar à nossa vontade, e suponho que era mesmo isso o que nós queríamos. A princípio só nos apetecia passar o dia a ver televisão. Meu Deus, a televisão inglesa é espetacular! A Pequena Grã-Bretanha, o The X Factor e todas as repetições do Friends. E o meu pai (claro) tem uma data de outros canais e por isso passámos horas a ver a MTV e a UK Gold. Ficávamos o dia todo sentadas em frente à televisão, a comer Pringles. Foi o máximo. Mas depois, não sei, aquilo começou a chatear-me um bocado. Estava sempre a pensar na minha mãe e no Totti. Queria estar a passear com o Totti. A Fiona levou-me ao seu ginásio ultraespetacular, mas não era a mesma coisa. Detesto aqueles lugares, todos cheios de espelhos e com toda a gente com roupa desportiva de marca. Só me apetecia andar pelas colinas a passear com o Totti. Aconteceu uma coisa boa, se bem que esquisita. Comecei a ter outra vez o período. Isto deixou-me um bocado chocada. Estava a vestir-me depois de ter estado a nadar na piscina do ginásio e vi sangue muito vermelho na minha roupa. Claro que eu sabia o que aquilo era (ainda antes de ter o primeiro período já a minha mãe se tinha fartado de me falar disso, por isso não foi exatamente uma surpresa) mas já me tinha esquecido de como aquele sangue é vermelho e de como se parece com sangue a sério, como se nos tivéssemos ferido. Seja como for, pedi à Fiona para me emprestar dinheiro e comprei tampões numa
máquina automática. Na verdade, foi uma sensação bastante boa, dizer à Fiona que me tinha vindo «a história» e como era uma chatice, etc., etc. Fez-me sentir igual a toda a gente. Não que eu queira ser igual a toda a gente, é claro. Mas, só de vez em quando, não é mau de todo. No geral, estar em Inglaterra foi bom. Fico contente por o meu pai ser feliz com a Fiona. Estão sempre aos beijinhos e aos apertões, o que é nojento – ela chama-lhe Paulie! Blaargh! Mas, ao fim de algum tempo, já só queria vir para casa. Não parava de pensar na escola e nos amigos que tenho aqui. Está bem, eu admito: estava a pensar no Andrea. Quando ele me beijou, na noite de Ano Novo, fiquei muito surpreendida. E, para ser honesta, também fiquei um bocado assustada. Quero dizer, também o beijei e isso tudo, mas a seguir não sabia como havia de me comportar, se devia dar-lhe a mão, falar com ele de outra maneira ou simplesmente fingir que aquilo não tinha acontecido. A meio, ele perguntou: «Não te importas, pois não?», e eu respondi-lhe «Claro que não», mas não percebi muito bem o que ele queria dizer. Não me importei que ele me beijasse, na verdade foi espetacular. Andava com medo de não saber como se beija, mas afinal não custa nada! Tinha medo que o meu nariz dificultasse, mas foi como se nenhum de nós tivesse nariz! E não sabia muito bem o que devia fazer com a língua (se devia deixá-la quieta ou mexê-la de um lado para o outro, de uma maneira nojenta), mas, no fim, não pareceu ter grande importância. Limitei-me a fazer o que me deu vontade e o Andrea pareceu achar que eu tinha feito tudo bem. Claro que ele é um Homem Mais Velho (tem 16). Provavelmente, isso fez alguma diferença. O Andrea mandou-me uma mensagem escrita enquanto eu estava em Inglaterra e amanhã, depois das aulas, vamos encontrar-nos no café. Mas agora estou outra vez sem saber o que fazer. Nós os dois andamos? Não sei. É patético, claro, mas nunca andei com ninguém antes. Não sou como a Siena, que, na minha idade, já tinha tido uma tonelada de namorados. Mas eu nunca gostei realmente de nenhum rapaz até agora. Sei que isto parece estúpido, mas percebi que gostava do Andrea quando o vi a comer uma fatia de pizza no ferragosto. Em geral, ODEIO a maneira como as pessoas comem. O meu pai sorve a
sopa, a Siena come de boca aberta, a minha mãe põe-se a apanhar bocadinhos de comida de uma maneira muito irritante, e o Charlie… bem, o Charlie é simplesmente nojento. Mas o Andrea limitou-se a comer a sua fatia de pizza de uma maneira muito simples e limpa, sem fazer estardalhaço. Foi mais ou menos como os animais comem. Não estou a dizer que ele se baba e faz barulhos, como o Totti. Simplesmente, limitou-se a COMER, sem fazer daquilo uma grande coisa. Sem dar nas vistas. Aquilo era comida e ele comeu-a. Isso agradou-me. Seja como for, será que andamos? De certa maneira, quero que isso seja verdade, mas, por outro lado, tenho medo. Não sei ser a namorada de ninguém (provavelmente, a Siena já NASCEU a saber) e não quero fazer tudo mal. Talvez o melhor seja ser apenas amiga dele. Quero dizer, isso eu sei fazer. Mas, por outro lado, quero beijá-lo outra vez. Talvez possamos ser amigos que dão beijos. Não me importava nada.
2 Toscana, dois anos depois Artigo de fundo para o Suplemento de Viagens, por Emily Robertson
H
á dois anos, eu e o meu marido apaixonámo-nos por uma casa em terracota, de planta quadrada, construída no Leste da Toscana. Esta região é conhecida por «Montanhas da Lua». Trata-se de uma zona estranha, de alguma forma menos sofisticada do que o Oeste da Toscana – em Siena, destacam-se as pequenas colinas; em San Gimignano, os pitorescos telhados. As montanhas são inóspitas, cheias de vegetação densa e com os picos cobertos de neve – uma derradeira linha de defesa antes do mar e das hordas bárbaras de Rimini. Foi aqui que, durante a guerra, os Alemães organizaram a sua linha de defesa, a linea gotica, ou linha gótica. Nestas florestas escuras e rochosos passos de montanha, os guerrilheiros italianos combateram desesperadamente para libertarem o seu país dos invasores alemães. Sem dúvida que muitos italianos sentem hoje o mesmo a respeito dos turistas de rosto avermelhado e máquina fotográfica em riste, que, a cada verão, entopem as suas ruas, queixando-se alto e bom som do calor e da impossibilidade de se encontrar chá inglês decente. Portanto, apaixonámo-nos por uma casa e esse amor sobreviveu às amplas renovações, à solidão, à alienação e aos traumas, tanto pessoais como profissionais; no fim, o mesmo não aconteceu com o amor que nos unia. Inicialmente, a casa, que se chama Villa Serena, não era nada de encher o olho. Erguida no cimo de uma colina, com quatro ciprestes negros como breu em fundo, tinha uma aparência bastante intimidante, parecendo mais uma fortaleza do que uma casa de família. Trata-se de uma antiga casa rural, sólida e de planta quadrada, a que não faltam anexos, estábulos e celeiros, mas que estava vazia há mais de dez anos; o agricultor que a ocupou vive atualmente numa casa moderna ao fundo da estrada. A Villa
Serena tinha decaído bastante – havia morcegos escondidos pelo meio dos tetos altos, o estuque estava a cair das paredes e parte do telhado abatera, permitindo vislumbrar o céu toscano, de um azul que chega a ser chocante. Mas, ali parados, naquele luminoso dia de primavera, por entre o entulho e os excrementos de morcego, os dois sentimos, sem sombra de dúvida, o amor a nascer. Comprar a propriedade foi um pesadelo. O terreno era vendido separadamente da casa e, nos primeiros tempos, não tínhamos sequer direito de usar o caminho de acesso da estrada à nossa casa. Tratava-se de um edifício de interesse histórico, e, inicialmente, a administração local recusou dar autorização para as obras de renovação. Mas o nosso arquiteto (um florentino encantador, de seu nome Massimo) continuou a insistir até que, por fim, nos tornámos proprietários da Villa Serena. E assim começou um segundo e mais demorado pesadelo – o das renovações. O canalizador só trabalhava à quarta-feira, o carpinteiro não trabalhava de todo, o ladrilhador tinha um temperamento tão artístico que se desfazia em soluços se alguém o criticasse e o estucador detestava os Ingleses – e, sobretudo, as inglesas. Mas, a seu tempo, a nossa casa de sonho começou a ganhar forma. Os quartos escuros encheram-se de luz, surgiram sumptuosas casas de banho, e uma iluminação subtil realçou as vigas baixas e o intrincado trabalho de alvenaria em ziguezague, típico da região. Foi mais ou menos por esta altura que, sendo agora a orgulhosa proprietária de uma casa toscana de sonho, comecei a perceber que não sabia nada da região onde tínhamos feito o nosso lar. Oh, claro que lera todos os livros. Na verdade, talvez soubesse mais a respeito dos costumes regionais da Toscana do que a maioria dos toscanos, mas, muito simplesmente, não pertencia a este lugar. As minhas filhas, sim: começaram a frequentar escolas aqui na zona e depressa se tornaram fluentes na língua. Uma delas odiava profundamente a Itália, mas, ainda assim, estava integrada. A forasteira era eu, com o meu italiano para principiantes e as minhas «autênticas» receitas toscanas de sopa de feijão. E então aconteceram duas coisas. A primeira foi que o meu marido me deixou. Agora percebo que devia ter calculado que isso estava para acontecer. Ele vinha a casa com cada vez menor frequência e por vezes nem se dava ao incómodo de desfazer a mala. E, enquanto aqui estava, era como um estranho. Recebia mensagens escritas e e-mails misteriosos, que apagava
de seguida. Esqueceu-se do meu aniversário, mas parecia lembrar-se da letra de qualquer melosa canção de amor alguma vez escrita. Cantava-as no duche ou quando estava sozinho no terraço. Quando eu me aproximava, ele calava-se. Mas o pior de tudo era que ele parecia ter-se esquecido da sua paixão por Itália e andava sempre a queixar-se por os bancos abrirem tarde e os habitantes da região estacionarem mal os carros. Se eu não pertencia a Itália, ele pertencia ainda menos. Não compreendia a mais básica frase em italiano e insistia em pronunciar o «g» em tagliatelle. Obviamente, o nosso casamento estava condenado ao fracasso. A segunda foi eu ter feito alguns amigos: duas mulheres muito inteligentes, ambas professoras, um arqueólogo maluco, e, o que é mais estranho para uma eterna agnóstica como eu, o padre local. As professoras apresentaramme a outras mulheres e então fiquei a saber que, para uma mulher italiana instruída, levar uma vida independente resulta numa luta constante com a família, as tradições e a Igreja. Também descobri que a maioria consegue dar conta do recado. O arqueólogo andava à procura de vestígios etruscos mesmo nos limites da minha propriedade. Foi ele quem me ensinou que os Etruscos eram um povo altamente organizado – viviam em cidades muito bem estruturadas, veneravam a família tradicional, praticavam a adivinhação e acreditavam na conscrição. Até aqui são tal e qual como o Partido Conservador, mas o meu amigo arqueólogo garantiu-me que não eram maus de todo. Para começar, também acreditavam na educação para as mulheres. E o padre? Bem, por estranho que possa parecer, com o padre descobri que é perigoso pensarmos demasiado no passado. E agora aqui estou eu na Toscana, dois anos depois. Consegui um emprego a ensinar Inglês numa escola primária. As crianças a quem dou aulas são como as crianças de outro lugar qualquer – cheias de vida, afetuosas, exigentes e, amiúde, completamente desconcertantes. Quanto aos meus filhos, parecem-me agora totalmente integrados na sociedade toscana; as duas raparigas já tiveram namorados italianos (um era encantador, o outro era imprestável) e o meu filho de quatro anos agora fala com sotaque toscano e tem uma camisola da Juventus. Temos um cão. Vamos a casa dos nossos amigos e eles vêm à nossa. No próximo Carnaval, vamos todos mascarar-nos de anjos (embora o meu filho se recuse a usar asas). Podemos não ser membros da família, mas, pelo menos, somos convidados bem-
vindos. Terminada a revisão ortográfica, Emily envia o artigo por e-mail. Desde o primeiro momento, pensou nas suas colunas sobre a Toscana como mensagens, como cartas enviadas em garrafas a pessoas com quem ela já não podia comunicar de outra forma. Escreveu-as a pensar em antigos colegas de escola, em conhecidos dos tempos da universidade e em pessoas com quem ela trabalhara em redações, que abririam o jornal com um sorriso de satisfação e diriam: «Emily Robertson! Esta deve ser a mesma Emily Robertson que eu conheci. Vejam só como ela se saiu bem!» Mas, na realidade, depressa descobriu que quase nenhum dos seus conhecidos lia as suas colunas, ou admitia que o fazia. E teve de reconhecer que o mais provável era ficarem todos a ranger os dentes de fúria devido à sua inabalável presunção, em lugar de sorrirem ternamente e lhe desejarem felicidades. Mas, mesmo assim, não conseguia deixar de imaginar que algures, fosse onde fosse, havia alguém que lia as suas colunas e compreendia que se tratavam de mensagens privadas destinas unicamente a si. Estava, é claro, a pensar em Michael. Agora imagina Michael a ler o seu artigo, a descobrir que ela se divorciou e a vir ter com ela a correr. Durante muitos anos foi esta fantasia a dar-lhe ânimo: Michael a declarar-lhe o seu eterno amor, a admitir que o seu casamento foi um erro terrível e a jurar-lhe que jamais tornará a deixá-la partir. Algo hesitante, começa a analisar esta sua fantasia. Ainda terá o poder de a deixar com as pernas bambas de ansiedade? Tem a perfeita noção de que se «esqueceu» de mencionar que, para além de lhe falar dos Etruscos, o seu arqueólogo maluco também fez amor com ela, cheio de abandono e de paixão. Não mencionou o facto de estar quase sempre a pensar nele e de, mal ouve a sua voz ao telefone, ficar a arder de desejo. Nesse caso, porque será que ainda quer que Michael pense que, sem ela, a sua vida não tem qualquer sentido? Por que razão não será ela capaz de ficar feliz por ele ter uma vida preenchida e bem-sucedida? Porque será que ele ainda é importante? Porque, supõe, Michael foi mais do que um namorado. Foi a sua juventude. O tempo que passaram juntos, desde que ela tinha dezanove anos até fazer vinte e dois, foram os anos em que deixou de ser aquela Emily que «não se parecia nada com os irmãos» e se tornou numa mulher de personalidade e opiniões próprias. Todos os seus gostos – seja em matéria de música
(profundamente infeliz, na opinião de Siena), comida, vinho, livros ou outra coisa qualquer – formaram-se durante esses anos. É por isso que, ainda hoje, ela tem uma fraqueza secreta pelos Soft Cell e pelo vinho doce alemão. E por Itália. Foi durante esse período que se apaixonou por Itália, por intermédio do amor que sentia por Michael. E por Gina, claro. Gina encorajou-a a acreditar que se casaria com Michael e que os dois teriam cinco filhos. Ainda hoje acredita que Gina desejava que isso acontecesse. Recorda que, quando Michael terminou o namoro com ela, Gina lhe telefonou, furiosa. «Eu quero que vocês os dois fiquem juntos», declarou. «Garanto-te que vocês os dois vão acabar juntos.» Emily lembra-se de como depositou todas as suas esperanças naquelas palavras, de como acreditou na promessa de Gina. Mas as semanas foram passando e então começou a compreender que aquela conversa tinha sido apenas isso mesmo: conversa. Naquele aspeto, pelo menos, Michael não ia fazer a vontade da mãe. Eliminara Emily da sua vida. Ela jamais o tornaria a ver. O problema também é esse, compreende agora. Michael partiu de uma forma tão definitiva, desaparecendo no mundo secreto do hospital, que foi como se nunca tivesse chegado a existir. Ela mudou-se para Brighton, conheceu Paul e casou-se. Mas, mesmo quando os dois se mudaram para Londres, ela nunca se cruzou por acaso com Michael na rua, nunca o viu a entrar no metro, nunca leu nada a seu respeito no jornal nem viu a sua fotografia no boletim dos antigos alunos da universidade. Apenas o restaurante continuou presente. O Vittorio’s, imutável no seu menu escrito em letras góticas e no seu interior de veludo e de ornamentos dourados. Nunca mais lá tornou a entrar, mas parou à porta várias vezes, lendo o menu até ser capaz de o recitar a dormir (prosciutto melone, risotto milanese, saltimbocca alla romana), e, de alguma forma, sempre pensou que um dia empurraria as pesadas portas de vidro e o encontraria lá dentro. À sua espera. E assim, a cada episódio de «Cartas da Toscana», estava na verdade a escrever a Michael. A falar-lhe da sua vida, a dizer-lhe que era feliz e bemsucedida, e que vivia num lugar maravilhoso. E, agora que a realidade já não é assim tão invejável, Emily compreendeu que continua a desejar que ele saiba o que se passa com ela. – Mãe! – Paris entra no seu quarto, vestida com umas calças de ganga e com uma camisola de râguebi, e com um par de asas de anjo nas costas. Está amuada, irritada e muito bonita. – Mãe! Esta roupa é ridícula!
– Bem, as calças de ganga não fazem parte do conjunto. – Não vou usar aquele vestido branco horrível. Faz-me parecer uma demente. – Temos todos de os usar no cortejo. Estamos a fazer de coro celestial. – Coro celestial – repete Paris com uma fungadela de desprezo, ajoelhandose para afagar o Totti. – Se queres saber a minha opinião, acho que a Monica pirou de vez. Monica ficou responsável pelo carro alegórico da escola para o cortejo de Carnaval daquele ano, e, como tema, escolheu os anjos. Sendo ela uma ateia empedernida, tal escolha parece algo estranha, mas Monica argumentou que os fatos eram fáceis de fazer e que as crianças iam ficar adoráveis de asas douradas e de auréola na cabeça. Alguns adultos, incluindo Emily e respetiva família, foram recrutados à força para ajudar. Em Itália, o Carnaval é um acontecimento muito importante. Originalmente encarado como uma derradeira festa de arromba antes das privações da Quaresma (aliás, tal como Emily observou numa das suas «Cartas da Toscana», o termo italiano carnevale significa «pôr a carne de parte»), acabou por se metamorfosear numa extravagância que dura toda a semana, e a que não faltam os cortejos de carros alegóricos, os engolidores de fogo, os acrobatas, as máscaras e os trajes. Em Cento, uma pequena povoação a norte de Bolonha, o Carnaval está até ligado ao famoso Carnaval do Rio de Janeiro, e, todos os anos, o carro alegórico vencedor do cortejo é enviado para o Brasil. Em Viareggio, a festa prolonga-se por quatro semanas. O Carnaval de Monte Albano é mais modesto, mas, ainda assim, parece ter obrigado a várias semanas de organização. Haverá um desfile ao crepúsculo, com carros alegóricos, malabaristas e mimos. Mais uma vez, haverá o famoso churrasco de porchetta na piazza central, e será oferecido queijo e vinho a toda a gente. Os festejos culminarão com um espetacular fogo de artifício à meia-noite, na Terça-Feira Gorda. Emily está muito empolgada porque o Carnaval vai coincidir com a visita de Petra. A amiga vai tirar três dias de férias, por uma vez sem os filhos (Ed, o pai, vai levá-los à Disneylândia de Paris – «Pior para ele», foi o comentário de Petra). Emily está desejosa de rever a amiga, e, há que admitir, de lhe falar de Raffaello. Finalmente já se pode vangloriar de também ter feito sexo selvagem. Paris sai do quarto a arrastar os pés e de asas a cintilar. Emily fecha o computador, veste o casaco e decide ir com o Totti até ao sítio das
escavações. Não vai poder soltá-lo da trela, mas parece-lhe que, ainda assim, será bom para o pastor-alemão sair de casa. Não que ela queira ir até lá só para ver Raffaello; não é, de todo, esse o caso. Quando lá chega, compreende de imediato que algo de estranho se está a passar. Raffaello está de pé junto da vala principal, de pernas afastadas e de braços cruzados. Mesmo a cem metros de distância, Emily apercebe-se da tensão e da hostilidade daquela postura. Diante dele, incongruente no seu fato de bom corte e sapatos lustrosos, está Renato, o seu primo. Aproximando-se mais, puxada por um Totti ofegante, Emily ouve Raffaello a exclamar: – Tu não te atrevias! – Achas que não? – replica Renato, dando uma risada estridente e desagradável. – Não achas que a tua amiga da universidade ia gostar de saber que encontraste dois mortos neste lugar e nem sequer te deste ao incómodo de chamar a polícia?! – Eu chamei a polícia – replica Raffaello, de maxilares cerrados. – Oh, o teu compincha, o Tino. Muito conveniente. – Sai daqui! – Raffaello dá um passo na direção do primo. Todo sujo de lama e de punhos cerrados, parece um doido varrido. Emily não fica surpreendida ao ver Renato recuar apressadamente. – Hei de voltar! – exclama. Voltando-se e deparando com Emily, acrescenta azedamente: – Boa-tarde, Mrs. Robertson – antes de começar a descer a colina em passo apressado. – O que foi aquilo? – pergunta Emily. – Nada – responde-lhe Raffaello, com a respiração acelerada. – Raffaello, eu ouvi-o. Ele estava a ameaçar-te. – Oh, é só o meu primo a querer arranjar sarilhos. – Raffaello inspira profundamente e força um sorriso. – Está a ameaçar informar a soprintendente a respeito dos corpos. – Mas ela já deve estar a par. A notícia foi dada nos jornais. – Sim, mas desconhece que eu soube da existência dos corpos duas semanas antes de chamar a polícia. – E como é que o Renato sabe disso? Raffaello encolhe os ombros. – Sei lá. Una bustarella. – Emily já está em Itália há tempo suficiente para reconhecer aquela palavra. Um pequeno envelope. Um suborno.
– Foi o Tino? – Não, o Tino jamais me denunciaria. Mas há muitos outros capazes disso. Os dois voltam-se e dirigem-se para o pré-fabricado onde Raffaello tem estado a armazenar os artefactos encontrados. Emily fica surpreendida ao ver Siena sair de lá de dentro acompanhada por um rapaz vestido com um casaco de camuflado (quase todos os voluntários andam vestidos com camuflados; é como ter ali um exército). Siena acena-lhe, como se dizendo «Não te aproximes», e, por isso, Emily não lhe acena de volta. – Mas Raffaello – diz-lhe por fim –, não estou a entender. Porque quer o Renato interromper os trabalhos de escavação? Raffaello suspira. – Ele quer que eu deixe Monte Albano. – Mas porquê? – Ele sabe que eu sou o favorito do zio Virgilio. Tem medo de que ele me deixe o restaurante. – Mas o Renato é neto dele. É ele quem gere o estabelecimento. – Eu sei. Estou convencido de que o zio Virgilio tenciona deixar-lhe o La Foresta, mas, sendo um velho astuto, gosta de o manter em sentido. Provavelmente tem andado a dizer-lhe como é reconfortante ter-me por cá e outras coisas do género. – O que acontecerá se ele for realmente falar com a soprintendente? – Não sei. Se ela se virar contra mim, acho que seria preciso eu encontrar a Atlântida para ela autorizar oficialmente a escavação. – Raffaello – diz Emily de repente –, achas que foi o Renato quem deixou a caveira à minha porta? Raffaello olha-a com curiosidade. – Porque é que dizes isso? – Porque vi uma caveira no La Foresta, numa das estantes. Raffaello ri-se. – Essa caveira pertenceu a um amigo do Virgilio que era artista. Costumava pintar uns quadros esquisitos, flores enfiadas em caveiras e outras coisas desse tipo. Não é do Renato. – Talvez haja outra caveira. – Uma já é suficiente, não te parece? – Não sei – responde Emily, cética. – Continuo a achar que pode perfeitamente ter sido ele. Talvez estivesse a tentar assustar-me para ser eu a
travar a escavação. Afinal de contas, os trabalhos estão a decorrer na minha propriedade. – Ele não faria nada contra ti – responde-lhe Raffaello. – É comigo que ele tem uma desavença. Daqui por diante vai tentar alguns golpes sujos, vais ver; vai tentar complicar-me a vida. – E tu, vais fazer o quê? – interroga Emily. Raffaello lança-lhe um sorriso, a extrema brancura dos seus dentes a contrastar com o seu rosto salpicado de lama. – Não vou desistir sem dar luta. Disso podes ter a certeza.
3
O
primeiro pensamento tanto de Emily como de Petra é que a outra está com uma aparência fantástica. Emily está com menos cinco quilos e também cortou o cabelo e fez madeixas (ao estilo italiano). Petra, por sua vez, engordou um pouco e o seu cabelo, a tocar-lhe nos ombros, está mais comprido do que Emily alguma vez o viu. – Como é bom ver-te! – exclama Emily, abraçando-a. Petra, como de costume, retrai-se ligeiramente. – E eu a ti! Estás com ótimo aspeto! – Tu também. Sorriem uma para a outra, intuindo que ambas têm mais para contar. Mas, de início, concentram-se nos filhos (Jake começou a jogar na equipa de futebol da sua escola e Harry anda num terapeuta da fala) e no extraordinário facto de estarem as duas sozinhas em Itália. Em vez de seguir diretamente para casa, Emily leva Petra até Arezzo e as duas almoçam num minúsculo restaurante na zona mais antiga da cidade, com casas aglomeradas a toda a volta da piazza, que tem a forma de um leque. – Durante o verão fazem-se aqui duelos de cavaleiros – comenta Emily. – Fazem parte do palio17. – Julguei que o palio era em Siena – responde Petra, enrolando uma garfada de pasta. – Cada cidade italiana tem o seu palio – informa Emily. – Até Monte Albano. Toda a gente veste trajes medievais. É incrível. – Fala-me lá do Carnaval – diz Petra. – Vamos mesmo ter de ir mascaradas? – Só se quiseres. Mas nós, eu e os miúdos, prometemos ir no carro alegórico e vão estar todos vestidos de anjos. – Deus do Céu. Não te tornaste religiosa, pois não? – Não – responde Emily, molhando um pedaço de pão no molho da pasta. – Embora me tenha feito muito amiga do padre lá da zona. – Deus do Céu – repete Petra, embora não esteja realmente chocada. Parece
espantosamente descontraída e a sua voz não tem aquela habitual mistura tensa de humor e desespero. – E agora – diz Emily, quando já estão a beber o café –, fala-me do Darren. Petra ri-se, depois suspira e torna a rir. – O que há para dizer? Vamos sair a um lado qualquer, depois vamos para casa dele e fazemos amor, e depois eu vou para a minha casa e finjo que não aconteceu nada. Na escola tentamos não falar um com o outro. É como ter um caso, só que nenhum dos dois é casado. – Gostas dele? – Se gosto dele? É claro que gosto dele. Sinto-me muito atraída por ele. Mas, se me estás a perguntar se o amo, não sei. Sinceramente, não sei. – Os miúdos já o conheceram? Petra ri-se, mas não de forma divertida. – Credo, não. Quero ver se o mantenho interessado em mim por mais algum tempo. – E ele… – começa Emily a dizer, calando-se de seguida. Ia perguntar «Ele sabe do problema do Harry?», mas então compreendeu que assim daria a impressão de encarar Harry como uma espécie de obstáculo, o que seria, no mínimo, falta de tato. Mas Petra responde a uma pergunta diferente: – Oh, sim, ele quer conhecê-los, claro. Não se cala com isso. Mas, não sei, eu sou uma pessoa diferente quando estou em casa com os miúdos. Sou uma mãe. Não sei se quero que ele veja esse meu lado. Ele conhece-me enquanto professora, enquanto pessoa. Quero que as coisas se mantenham assim. – Não és uma pessoa quando estás com os teus filhos? – pergunta Emily, embora saiba exatamente o que Petra quer dizer. – Não – responde a amiga de imediato. – Sou uma coisa. Sou uma cadeira onde eles se sentam, um lenço a que eles se assoam, um leitor de cassetes que toca histórias para eles ouvirem e uma máquina que faz o almoço. Não quero que o Darren veja a Petra que assoa os narizes dos filhos, que faz sanduíches e que anda de mau humor. Ele acha realmente que eu sou fixe. – Tu és fixe. E também és uma mãe fixe. – Oh, obrigada, minha querida – responde Petra, dengosa, terminando o seu café. – E agora fala-me de ti. Porque é que estás luzidia como uma árvore de Natal? Emily cora.
– Para dizer a verdade… tive uma espécie de namorico. – Dá uma risadinha nervosa ao aperceber-se de como aquele termo é inapropriado. Um namorico. Parece o nome de uma dança esquisita num bailarico de província. Puxem o vosso par para a pista e vamos lá ao namorico à moda toscana! – Um namorico? – repete Petra. – Com quem? – Com o Raffaello. Aquele arqueólogo de quem te falei. – Julguei que ele tinha barba. – Tirou-a. Seja como for, tem andado a trabalhar numa escavação arqueológica ao pé da nossa casa e tornámo-nos amigos. Ele é fantástico com os meus filhos e deu-nos um cão, não te lembras de eu te ter contado isso? – Sim, é um grand danois ou algo do género. – Um pastor-alemão. Bem, quando os miúdos estavam em Inglaterra com o Paul, o Raffaello levou-me a jantar e… bem, as coisas aconteceram. – Foste para a cama com ele? – Sim. – Emily pensa em como aquela expressão é tão pouco adequada para descrever o desespero faminto com que fizeram amor, enquanto a chuva fustigava as janelas. – Sim, fui. E foi incrível. – Raios me partam, Em! – exclama Petra. – És cheia de surpresas. Isso quer dizer que agora estão juntos, tu e o «não sei das quantas»? – Raffaello. Não sei. Quero dizer, fomos para a cama e foi fantástico, mas desde essa noite que ele tem andado completamente obcecado com a escavação. Descobriu um túmulo etrusco, sabes…? – Portanto, prefere estar a desenterrar mortos do que na cama contigo? – Bem, se queres pôr as coisas nesses termos… – Emily pensa em todos aqueles mortos, primeiro os dois esqueletos e depois os misteriosos Etruscos (embora não haja corpos nos túmulos; ao que parece, os Etruscos cremavam os seus mortos). Será que Raffaello gosta mais deles do que dela? Será que gosta dela de todo? Emily recorda a expressão dele ao dizer-lhe que não ia desistir sem dar luta. Será ela apenas parte da luta que ele está a travar para concretizar as suas ambições? – Não sei – diz em voz alta. – Não sei o que está a acontecer. Mas alguma coisa se passa. Petra sorri – um sorriso desconfortavelmente sabedor. – Então, quando é que eu vou conhecer esse tal Raffaello? – Não vai ser no Carnaval – responde-lhe Emily. – Ele não tem grande simpatia por anjos.
Mas a verdade é que Raffaello aparece no Carnaval. A princípio, Emily não o vê, de tão ocupada que está com o carro alegórico e o respetivo coro de anjos hiperativos; não pode perder Charlie de vista e tem de impedir Paris de se escapulir para ir ter com Andrea. A noite é um caótico tumulto de música ruidosa, de homens vestidos com trajes medievais segurando estandartes, de máscaras monstruosas e clarões luminosos. Quando o desfile termina, Paris e Siena desaparecem e Emily agarra em Charlie e os dois vão comprar uma sanduíche de porchetta. Encontra Petra junto à banca, a beber sangria por um copo de plástico. – Olha – diz esta. – Aquele ali não é o teu arqueólogo? Emily volta-se nessa direção. – Sim – responde. – Como é que adivinhaste? – Está todo sujo de lama. De facto, Raffaello está enlameado da cabeça aos pés. Tem calçadas botas de trabalho e está a usar um colete refletor, do tipo que os homens do lixo costumam usar em Inglaterra; deve ter vindo diretamente da escavação. Está a observar a cauda do desfile com aquele seu meio sorriso irónico. – Raffaello! – Emily ergue um braço. – Mrs. Robertson. – Avançando para elas a passos largos, obriga um pequeno grupo de crianças, vestidas de animais selvagens, a dispersar. – Queria apresentar-te a minha amiga Petra. – É um prazer conhecê-la – afirma ele, muito sério. – Fala inglês muito bem – responde-lhe Petra. – Infelizmente, aprendi na América. A Emily diz-me que tenho um sotaque horrível. Emily fica tão surpreendida por ele lhe chamar «Emily» e não «Mrs. Robertson» que dá um pulo, sobressaltada. – Ela é uma snob do piorio – concorda Petra. – Eu não sou uma snob! – protesta Emily, picada. – Tu é que não deixas os teus filhos verem o EastEnders. Naquele momento, o filho de Emily reconquista a sua atenção ao puxá-la furiosamente na direção da banca de porchetta. Quando regressam, Petra e Raffaello estão embrenhados numa grande conversa. Emily consegue apanhar algumas palavras soltas: «achados extraordinários» (Raffaello), «comida magnífica» (Petra). Emily fica aliviada por Petra se estar a entender com
Raffaello (caso contrário, sendo como é, a amiga não teria ficado a conversar com ele durante tanto tempo), mas começa a sentir-se posta de parte. Além disso, está cheia de frio. É uma noite gelada de fevereiro e ela tem apenas um lençol branco por cima de umas calças de ganga e de uma camisola de malha. Observa as mãos, que seguram uma sanduíche de porchetta; estão roxas de frio. – Toma – diz a Petra. – Comprei-te uma. São deliciosas. – E para mim? – pergunta Raffaello. – Não te comprei uma – responde-lhe Emily. Raffaello dá uma gargalhada. – Como é cruel, Mrs. Robertson. – Em seguida despe o casaco. – Toma – diz. – Pareces congelada. – E põe-lhe o casaco grosso em volta dos ombros. Emily fica tão surpreendida que lhe faltam as palavras. – Vou buscar qualquer coisa para bebermos – diz ele, desaparecendo por entre a multidão vestida de cores vivas. – Emily, sua sortuda de um raio – diz Petra lentamente. Mais tarde, vão até à piazza para verem os bobos medievais a fazerem malabarismo com fogo. Raffaello, com Charlie às cavalitas, está entretido a conversar com Tino, o polícia. Petra conversa com Monica. As duas simpatizaram uma com a outra instantaneamente. É engraçado, pensa Emily, como só agora notou que as duas são muito parecidas. Interroga-se por que motivo sentirá maior afinidade por temperamentos sarcásticos como os de Monica e de Petra do que por alguém de natureza doce, como Antonella. Vê Paris e Andrea do outro lado da praça; ele tem o braço em volta dela, e, mesmo àquela distância, Emily consegue ver que a filha está feliz. Um pouco antes, Antonella perguntou-lhe se se importava que Paris namorasse com um rapaz dois anos mais velho. «Importar-me?», teve Emily vontade de dizer. «Estou quase a dar pulos de alegria.» Mas limitou-se a sorrir e a responder «Claro que não», acrescentando que Andrea era um rapaz muito simpático. Não lhe parece que Andrea seja totalmente responsável pela mudança operada em Paris (há que dar também crédito ao Totti e aos Etruscos), mas é óbvio que foi uma tremenda ajuda. Assistindo à exibição dos malabaristas (muito bem pensada, mas cansativa ao fim de algum tempo; todas aquelas habilidades são difíceis de fazer, mas, também, porque haveria alguém de querer fazer tal coisa?), ouve alguém a
chamar o seu nome. É Don Angelo, com um chapéu russo na cabeça, o que lhe dá um ar de espião. Como de costume, está rodeado de mulheres idosas que o olham cheias de admiração, entre elas Olimpia. Emily aproxima-se. – Está a gostar do Carnaval? – pergunta Don Angelo. – Muito – responde-lhe Emily educadamente. – Não está a ser tão bom como o do ano passado – opina uma das mulheres. – O ano passado não vim – responde-lhe Emily. Onde foi que esteve no ano anterior? A receber uns clientes de Paul, parece-lhe, ou então estava a escrever uma coluna sobre as delícias de se viver numa comunidade toscana. – Como estão a correr as escavações? – pergunta Don Angelo. Apesar das suas objeções iniciais, o padre parece agora razoavelmente resignado com os trabalhos arqueológicos, tendo mesmo chegado ao ponto de ir visitar o local certo dia (aspergindo água benta sobre a estrada afundada e rezando em voz alta pelos mortos, para grande divertimento dos voluntários). – Muito bem, parece-me – responde-lhe Emily. – Já conseguiram a autorização oficial? – pergunta Olimpia num tom insinuante. – Está quase – replica Emily em jeito de desafio. – Se quiser, pode perguntar ao Raffaello. Ele está ali. Com o Charlie. – Pobre criança – resmunga Olimpia. Olhando para trás, Emily vê que agora Raffaello está a falar com Renato. Está demasiado afastada para ver as expressões de ambos, mas Renato parece-lhe vagamente conciliatório, descrevendo grandes arcos com as mãos, como se arrependido. Está vestido com um comprido sobretudo preto e tem um vistoso lenço vermelho ao pescoço – muito elegante, como é seu apanágio, e até um pouco formal. A seu lado, Raffaello parece um operário da construção. Tossicando polidamente, Don Angelo interrompe-lhe os pensamentos. – Com sua permissão, gostaria de a visitar em sua casa num dia da semana que vem – pede. – Aqui a Olimpia gostaria que eu dissesse algumas orações. Está preocupada com o espírito do pai. – Senti-o – esclarece Olimpia subitamente. – Senti-o a rondar aquele lugar. O seu espírito não está em repouso. – Que disparate! – exclama Emily com rispidez. Não lhe agrada a ideia de o espírito de Carlo Belotti andar a passear-se pela sua casa sem que ninguém o tenha convidado.
– Disparate, é? – replica Olimpia, sombria. – Então ouça só isto, signora Robertson. Um dia, enquanto estava a varrer o vestíbulo, ouvi distintamente alguém a assobiar o «La Donna è mobile». O que me diz a isto? Emily tem muito pouco a dizer, mas então é Don Angelo a responder, num tom delicado: – Ah, como o Carlo gostava dessa ária… Ouvi-o cantá-la ou assobiá-la vezes sem conta. Olimpia aperta a mão dele nas suas, profundamente comovida, mas Emily dá por si a questionar-se como terá Don Angelo ficado a conhecer tão bem os gostos musicais de Carlo Belotti, atendendo a que, tal como ele próprio afirmou, mal o conhecia. Antes de começar o fogo de artifício já Charlie adormeceu nos braços de Raffaello e Emily está a tiritar de frio, apesar do casaco grosso do arqueólogo. Perdeu Paris de vista e Siena está no centro de um grupo de jovens muitíssimo animado que se reuniu na esplanada da pizzeria. Petra e Monica continuam entretidas na sua conversa; agora estão a discutir como os homens têm medo de mulheres fortes e parecem estar com vontade de passar a noite inteira naquilo. Raffaello pousa uma mão no braço de Emily. – Queres ir para casa? – pergunta-lhe. – Adorava – responde Emily com um suspiro. – Mas e a Petra e as miúdas? – A Petra pode levá-las mais tarde no teu carro. Eu levo-vos, a ti e ao Charlie, no meu jipe. Mas, surpreendentemente, Petra mostra-se nervosa por ter de conduzir um carro com volante à esquerda. – Está tão escuro… – argumenta. – De certeza que não dava com a estrada para a tua casa. – Não te preocupes – intervém Monica. – Eu levo-as a casa. Vai com o Raffaello. – Ao dizer estas palavras, lança a Emily um olhar carregado de intenção. – Oh, obrigada, Monica. É só porque o Charlie está exausto. – Não há problema nenhum. Podes deixar o carro aqui e vir buscá-lo de manhã. – Está bem – aceita Emily, agradecida. – Não te importas, Pete? – Claro que não – responde-lhe Petra. Embora esteja com frio, parece
também cheia de energia, de olhos a faiscar sob um gorro étnico. – Não perdia o fogo de artifício por nada. – O mais provável é a Francesca dar boleia à Siena. – Francesca é agora a melhor amiga da sua filha mais velha. Todos os dias, passam horas a enviar mensagens escritas e a telefonar uma à outra, e, o que é mais espantoso, depois disso ainda têm muito de que falar quando se encontram em pessoa. Ter uma melhor amiga, diz Siena, é muito melhor do que ter namorado. Encontra Paris junto da banca de porchetta, na companhia de Andrea, a assistir a um concerto de uma banda de jazz. Emily não lhe recorda que, no ferragosto, ela afirmou que o cheiro da porchetta a fazia sentir-se agoniada. Ela própria não se quer lembrar do ferragosto, quando, em vários sentidos, pensou que tinha perdido Paris. – Não te importas, querida? – pergunta, depois de lhe explicar quais são os planos. – Sim, pode ser – responde Paris num tom vago. – Não me quero ir embora já. – Eu tomo conta dela, Mrs. Robertson – diz Andrea, muito sério. Paris dá-lhe um murro na brincadeira, mas forte na mesma. – Eu sei tomar conta de mim mesma – declara. Subindo a colina com Raffaello, Emily recorda novamente a noite do ferragosto. Lembra-se de correr pelo meio das pessoas, com Charlie feito um peso morto nos seus braços, procurando freneticamente Paris. Recorda como o barulho do fogo de artifício lhe pareceu assustador – como se fossem tiros ou uma ofensiva militar. Lembra-se do alívio que sentiu ao encontrar Paris em segurança na villa, adormecida diante do tresloucado proprietário de um hotel em Torquay. Agora, é Raffaello a levar Charlie ao colo e o seu passo descontraído quase não é afetado pelo peso da criança. Emily não sabe muito bem o que terá Raffaello em mente ou por que razão não se importou minimamente de deixar a festa antes do fim. Apenas sabe que a escuridão da noite, a multidão aos berros e o barulho do fogo de artifício que começou a rebentar na piazza já não lhe parecem hostis, mas sim amigáveis – tranquilizadores, até. – Do que estavas a falar com o Renato? – pergunta, acelerando o passo para apanhar Raffaello. – Oh, ele queria saber o que é que já encontrámos. Estava a fingir-se interessado. Está com esperanças de que não consigamos descobrir nada de
muito importante. Caso contrário, nunca mais me vê daqui para fora. – Mas não fizeste já uma descoberta muito importante? – Sim – admite Raffaello. – Mas descobrir alguns túmulos não é propriamente uma novidade. O que eu queria mesmo era encontrar qualquer coisa absolutamente nova. Alguma coisa que mudasse o mundo. – A Atlântida? – pergunta Emily na brincadeira. Raffaello ri-se. – Qualquer coisa desse género. Olhando para o arqueólogo, o seu rosto absorto ao luar, Emily sente uma pontada do mesmo instinto protetor que nutre pelos seus filhos. Adora a maneira como Raffaello se mostra tão apaixonado pelos seus Etruscos, um povo misterioso que desapareceu há quase dois mil anos. Mas, no fundo, parece-lhe que ele está a pedir demasiado. Como pode alguma descoberta ser assim tão avassaladora? Como podem umas quantas pedras antigas mudar o mundo? Chegam ao jipe. Emily ergue Charlie dos braços de Raffaello, e, ao fazê-lo, um pequeno papel cor-de-rosa voa da sua mão. – Oh meu Deus – diz ela. – Agora já não vou poder ganhar no sorteio das rifas. O sorriso de Raffaello é iluminado pelos faróis de um carro a passar. – Ganhaste-me a mim – diz ele. – O primeiro prémio sou eu. Nessa noite o ato amoroso é diferente. A intensidade febril da primeira vez não se repete. Ficam nos braços um do outro, sem pressas, a saborear o momento. Por uma ou duas vezes, Emily dá por si prestes a dizer «Eu amo…», mas detém-se mesmo a tempo. «Eu amo isto», diz a si mesma com firmeza. «E ponto final.» Raffaello vai-se embora antes de Siena e Paris regressarem, mas, por muito tempo após a sua partida, Emily fica deitada, absolutamente imóvel, a sorrir no escuro. 17 Corrida de cavalos de inspiração histórica, organizada anualmente em Itália. (N. do T.)
4
A
carta pela qual Emily espera há vinte anos chega uma semana depois da Quarta-Feira de Cinzas. O dia começa igual a tantos outros. Ela vai buscar o correio, como de costume, à pequena caixa onde o mesmo costuma ser deixado, ao fundo da estrada não pavimentada – à maneira dos Americanos. Larga a correspondência no banco do lado e, voltando-se para Charlie, que está sentado no banco de trás, pergunta-lhe, antes de seguir para a scuola materna: – Está tudo bem, meu ursinho? Pôs a tocar a cassete de canções infantis e, de vez em quando, deita uma olhadela à correspondência dispersa sobre o elegante assento de pele do Alfa. O envelope de cima é uma conta; por baixo está um postal de Petra, com uma vista do Pavilhão de Brighton. Não consegue ver o resto. Guia alegremente, parando para dar passagem a um gato alaranjado que atravessa a estrada num passo lento e cheio de desprezo, escolhendo cuidadosamente o caminho, visto a estrada ainda estar coberta de gelo. – Já não gosto dessas canções – informa Charlie. Ao deixá-lo à porta da scuola materna, Emily nota como ele vai de imediato juntar-se às outras crianças, rindo e gritando alegremente com elas. Acena a Monica, que está a tentar fazer aquele grupo sorridente e barulhento sentar-se silenciosamente em círculo, e regressa ao carro. Não vê a correspondência porque só tem dez minutos para chegar à scuola elementare, a escola primária onde dá aulas de Inglês. A escola primária é um velho edifício em pedra, mesmo no centro de Monte Albano. Emily deixa o carro no minúsculo estacionamento e vai tirar a sua sacola à bagageira. No último momento, guarda a correspondência na sacola. Talvez tenha tempo de ver tudo aquilo durante o intervalo. A sua primeira turma é um grupo de crianças com seis anos. Cantam uma canção sobre peixinhos – Emily escolheu-a porque é boa para lhes ensinar os números. Uma menina chamada Sharon (os pais inspiraram-se em Sharon Stone, um nome que, de momento, é muito popular em Itália) insiste em ficar
de mão dada com ela durante a aula toda. Um rapazinho chamado Kevin (em homenagem a Kevin Costner) põe-se a correr à volta do círculo, a fingir que é um carro. Emily ignora-o enquanto lhe é possível e depois fá-lo sentar-se ao seu lado. Ele fixa nela uns olhos castanhos derretidos. – Gosto de ti, signora Roberts – declara, num tom que não admite refutação. Sentadas em círculo, as crianças fingem ser um animal à sua escolha e vãose apresentando em inglês. «Eu sou o gato. Como ratos.» Emily adora as crianças, mas também as acha esgotantes. Não consegue entender como pessoas como Antonella conseguem passar o dia naquilo. Quando termina a aula, a meio da manhã, está tão cansada que quase nem consegue falar. Ao intervalo acaba por se esquecer da correspondência, porque a diretora – a irmã Caterina, uma freira muito simpática – quer que ela a ajude a traduzir para inglês uma canção sobre a Páscoa. Emily ajuda-a com alguma dificuldade, em parte porque não se lembra de nenhuma palavra inglesa que corresponda a novena. Frequentemente sente-se um pouco desconfortável com os aspetos mais católicos das atividades ali na escola, embora a irmã Caterina lhe tenha assegurado que o facto de ela não ter fé religiosa não constitui um problema. «Queremos que se sinta em casa com a nossa família escolar.» E ela sente-se em casa, de facto. Adora os comentários que as funcionárias trocam, tão idealistas quanto cínicos. Adora o entusiasmo inocente com que as crianças se juntam para cantar na missa matinal, pronunciando as palavras como se tivessem a boca cheia de bolo. Adora ser parte de tudo aquilo, ser a «signora Roberts», com a sua sacola cheia de contos de fadas e de canções populares inglesas. A seguir à missa tem uma aula com uma turma de crianças de dez anos, onde estão a escrever uma história em inglês. Trata-se de um esforço coletivo, e o título é «Robin dos Bosques joga pelo Manchester United». Agrada-lhe aquela mistura de ícones culturais do passado e da atualidade (David Beckham aparece como o irmão gémeo, há muito desaparecido, de Robin dos Bosques). Esta é a sua última aula daquele dia, e, ao terminá-la, corre para o seu carro. Tem de ir buscar Charlie ao meio-dia e meia e não quer ficar presa no engarrafamento turístico de sexta-feira. Está com sorte. As estradas estão vazias e chega à scuola materna dez minutos antes da hora. Só então se lembra da correspondência. Vai buscar a sacola à bagageira e procura os envelopes no meio da confusão de cassetes
com a fita a desenrolar-se e fantoches para os dedos. Ignora as contas e sorri ao ler o postal de Petra («Cheguei a casa sã e salva. O meu lanche foi ‘Darren com batatas fritas’. Dá os meus cumprimentos aos miúdos e ao sexy R.») E então o seu coração parece parar por instantes. A última carta foi-lhe reencaminhada da redação do jornal. Trata-se de um envelope de cor creme e obviamente caro, no qual a sua morada foi escrita com uma caneta preta de ponta grossa. No verso lê a informação do remetente: «Mrs. Gina Bartnicki». Com as mãos a tremer, abre-o. No seu colo cai uma carta e um folheto publicitário. Minha querida Emily, Espero que não te importes por eu te estar a escrever ao fim de todo este tempo, mas acontece que tenho pensado muito em ti ao longo de todos estes anos. Tal como podes ler no folheto, vou abrir um novo restaurante em Bolonha e ficaria muito feliz se pudesses vir à inauguração. Há já algum tempo que desejava voltar para Itália, e, depois da morte do meu querido Nick no ano passado, resolvi atirar-me de cabeça. Espero sinceramente que esteja tudo bem contigo. Costumava ler a tua coluna todas as semanas e senti-me muito feliz ao saber que a vida te tratou tão bem. Com todo o meu amor, como sempre, Gina
P.S.: Por favor vem à inauguração. O Michael também vai lá estar. Agora vive em Itália e eu sei que ele gostaria de tornar a ver-te. Emily lê o folheto. Impresso a preto e a dourado em papel brilhante, informa que, em março, um novo restaurante chamado Vittorio’s vai abrir em Bolonha. A inauguração será no primeiro sábado a seguir à Páscoa. No verso vê-se uma fotografia de Gina segurando uma travessa de bruschette. Está praticamente igual: cabelo ruivo, brincos de ouro e um sorriso rasgado e desafiador. Emily recorda como se sentiu nervosa ao conhecê-la. Como se sentiu ridiculamente grata ao ser aceite por ela. Como lhe pareceu milagroso que Gina, tão deslumbrante e glamorosa, a aprovasse como possível esposa de Michael.
Michael. Ao fim de todos aqueles anos, vai realmente tornar a vê-lo. Ou seja, teve razão desde o início. Um dia abriria a porta do Vittorio’s e ele estaria lá dentro. Sim, trata-se de um Vittorio’s diferente, mas o resultado é o mesmo. Vai ver Michael novamente. Aquele P.S. devastador: «Agora vive em Itália e eu sei que ele gostaria de tornar a ver-te.» Michael. Em Itália. E ela a pensar, durante todo este tempo, que ele estava muito longe, quando afinal estava ali mesmo, em Itália. Será que Chad já sabia? E, nesse caso, porque não disse nada quando os dois estiveram juntos em Bolonha? Emily imagina Michael a aproximar-se lentamente dela, como uma das setas no genérico da série Dad’s Army, atravessando inexoravelmente toda a Europa. Estremece. Mas o que raio se passa consigo? Este devia ser o dia mais feliz da sua vida. – Mãe! – Sobressaltada, ergue o olhar. Charlie, furioso, está parado do lado de fora da janela, com Monica atrás dele. – Querido! – Emily sai apressadamente do carro. – Desculpa! – O Charlie ficou preocupado quando não te viu no portão – diz Monica. – Mas eu já tinha visto o teu carro, por isso sabia que estavas aqui. – Desculpem – torna Emily a dizer. – Estava a ler uma carta. – Estavas noutro planeta – graceja Monica. – Não são más notícias, espero? – Não – responde-lhe Emily. – Não são más notícias. Não muito longe do Pavilhão de Brighton (geograficamente, pelo menos), Petra está no supermercado. Harry está com ela, instalado no assento para crianças do seu carrinho de compras e a protestar. Normalmente, Petra evita andar às compras com ele porque as luzes, a multidão e aquela confusa abundância de produtos o deixam agitado. Mas hoje não teve escolha; amanhã é o aniversário de Jake e ela teve de vir fazer algumas compras de última hora para a festa. Dispõe de meia hora antes de ter de o ir buscar ao clube para onde ele vai depois das aulas, e a pressa de tudo aquilo está a deixá-la nervosa, sentimento que está a contagiar Harry. Petra tenta respirar fundo e forçar-se a acalmar. – Ora bem – diz ao filho, numa voz falsamente animada. – O que se segue? Guloseimas para os saquinhos de oferta para os convidados. O que achas que devemos comprar? – O terapeuta da fala recomendou-lhe que fizesse perguntas sem resposta óbvia ao filho. – Queijo! – responde ele, tão alto quanto lhe é possível. – Queijo! O
Tomás! – Quanto a questões sem resposta óbvia, estão conversados. – Daqui a um minuto – responde-lhe Petra, ligeiramente menos animada, fazendo o carrinho guinchar ao dobrar uma esquina e quase derrubando um expositor de ovos de Páscoa. – Queijo! O Tomás! – Está bem, está bem. – Petra recua e agarra num pacote de aperitivos de queijo, que dá a Harry. Costumava desprezar as mães que faziam coisas deste género (não poderiam ao menos esperar até saírem da loja?), mas agora nem pensa duas vezes; está disposta a tudo para manter o filho sossegado. Enquanto ela vai deixando cair embalagens de cores vivas no carrinho, umas atrás das outras, tudo aquilo carregado de aditivos E, Harry mastiga, misericordiosamente silencioso. Doces, sumos de fruta, guardanapos de papel, balões, uma toalha de mesa com motivos futebolísticos. Harry começa a gemer baixinho, o que é muito mau sinal. – Está quase – diz ela a ofegar, enquanto empurra velozmente o carrinho de compras para o corredor das bebidas. O álcool não pode faltar, para deixar as mães contentes. Vinho tinto? Branco? Terebentina? Os gemidos de Harry tornam-se mais audíveis. Petra vê algumas pessoas a olhar na sua direção e murmura «chiu!», mais por elas do que por achar que aquilo fará alguma diferença. E então, pelos altifalantes, alguém berra: «Assistentes à caixa central!» Harry grita. Os gritos de Harry são o som mais estridente do mundo; ele só grita naquelas alturas em que se sente muito ansioso e Petra já sabe que, depois de começar, não parará por nada. – Chiu, chiu – implora. Harry continua a gritar. Mais olhares horrorizados voltam-se na sua direção. – Ele já é muito crescido para se pôr dessa maneira – comenta alguém num tom desaprovador. Petra tem vontade de gritar: «Talvez seja crescido, mas também é autista. Deixem-nos em paz!» Empurrando o carrinho, com o seu ocupante aos berros, corre pelo supermercado, passando por mais um expositor de ovos de Páscoa e quase chocando com Darren. Por instantes, ficam parados a olhar um para o outro. Darren, que nunca se pareceu tanto com George Clooney como naquele momento, segura um cesto
de compras cheio de produtos típicos de um homem solteiro: vinho tinto, bifes, batatas fritas. Está de fato de treino e, obviamente, acaba de vir do ginásio – ainda tem o cabelo húmido do duche e traz um saco de desporto ao ombro. Naquele instante, o contraste entre as suas vidas deixa Petra agoniada. – Petra – diz ele finalmente. – Olá, Darren – responde-lhe ela. – Deixa-me apresentar-te o Harry. Emily faz todo o caminho para casa completamente atordoada. Vai tornar a ver Michael. Será que devia escrever a Gina para lhe dizer que irá à inauguração? Deus do Céu, o que há de vestir? Graças a Deus que perdeu alguns quilos. Ainda terá tempo para levar umas injeções de botox? – Mamã – diz Charlie, do banco traseiro –, hoje aprendi uma canção nova. Queres que a cante? – Sim, por favor. Enquanto o filho canta desafinado, Emily pensa em Michael. Estará muito mudado? Ou continuará arrogante, generoso, impaciente e gloriosamente cheio de certezas? Continuará bonito como antes? Emily sabe que ela própria já não é bonita, não que alguma vez tenha sido, mas de certeza que Michael continua tão atraente como sempre. Não conseguiria suportar se ele tivesse engordado ou começado a perder o cabelo. No banco de trás, Charlie vai cantando a respeito de um cuco e do regresso da primavera. «A primavera regressa», pensa Emily, «mas não o meu amigo.» De onde é aquela frase? Mas, no fim de contas, ele sempre vai voltar, não vai? Afinal, os milagres acontecem. O inverno chegou ao fim, a neve derreteu e o verde começa a despontar. E ela vai tornar a ver Michael. Quando chegam à villa, Raffaello está parado à porta. Segura um machado numa mão, e, por instantes, parece saído de um conto de fadas – o lenhador que salva o Capuchinho Vermelho. – Lembrei-me de te cortar alguma lenha – diz ele, apontando para um tronco de árvore que caiu com as cheias de janeiro, e que agora ficou reduzido a uma pilha de cavacos para queimar na lareira. – Obrigada – diz Emily, sem qualquer emoção na voz. – Foi muito simpático da tua parte. – Aprendi uma canção nova! – exclama Charlie quando Raffaello o tira do carro. – Posso mexer no machado?
– Nem penses, Carlito. Mas podes ajudar-me a carregar a lenha. – Muito obrigado por a teres cortado – repete Emily, seguindo-os ao interior da casa. – Não era preciso. – Não custou nada – replica Raffaello, naquele sotaque americano exagerado que costuma fazê-la rir. – Foi muito simpático da tua parte – torna ela a dizer. Raffaello olha-a, intrigado. – Estás bem? – Sim, estou ótima. Queres um café? – Não, obrigado. Tenho de voltar para a escavação. Hoje vamos fazer análises ao solo. Oh, a propósito, tenho um convite para te fazer. – Um convite? – repete ela estupidamente. – Sim, para a festa dos oitenta anos do zio Virgilio. Vai ser no La Foresta, no sábado a seguir à Páscoa. Vens? – Desculpa, Raffaello – responde ela lentamente. – Acho que não vou poder.
5
O
frio de gelar os ossos de fevereiro dá lugar às chuvas de março, mas aquele não é o alegre regresso da primavera de que falava a canção do cuco de Charlie. A escavação está completamente alagada e imunda; os voluntários vagueiam pelo terraço da Villa Serena, espezinhando as ervascidreiras. Emily está constipada e Charlie passou as últimas quatro noites a tossir. Mas o pior de tudo é que Raffaello se ausentou. Foi a Roma para assistir a uma conferência. Quando ela lhe disse que não poderia estar presente no aniversário do zio Virgilio, ele perguntou-lhe qual o motivo. – Anda lá – disse ele. – Vai ser divertido. – Não posso – respondeu ela. – Vou à inauguração de um restaurante em Bolonha. À inauguração de um restaurante? Quem é que ela conhecia que fosse proprietário de um restaurante?, perguntou ele. A mãe de um amigo da universidade, explicou ela. Deus do Céu, não era aquele namorado estúpido de quem ela lhe falara, aquele que tinha sido estudante de Medicina…? Sim, por acaso era ele mesmo; simplesmente agora era um neurocirurgião mundialmente famoso. – Nesse caso, talvez sirvam vísceras – rosnou Raffaello, antes de sair com passos furiosos para regressar à escavação. E essa foi a última ocasião em que se falaram. Emily viu-o ao longe umas quantas vezes, a escavar ou a berrar ordens. Chegou mesmo a vê-lo a jogar futebol com Charlie e com o seu amigo Edoardo. Mas, quando ergueu a mão para lhe acenar, ele ignorou-a. Ela quis ir ter com ele e pedir-lhe desculpa, mas de quê? Decerto tinha o direito de sair sem ele, ainda que fosse para ir ver um ex-namorado, ou não? Afinal de contas, Raffaello tinha partido airosamente para a América no Natal e ela não ficara com ciúmes, ou ficara? Bem, ficara ligeiramente, mas nunca lhe falara nisso. Tenta concentrar-se na gloriosa perspetiva do reencontro com Michael, mas é-lhe difícil tornar a sentir o enlevo daquele instante em que leu o nome de
Gina no verso do envelope. Anda cada vez mais irritável e esquecida. Frequentemente, o Totti fica um dia inteiro sem sair para um passeio, e já foram duas as vezes em que Emily se esqueceu de ir buscar Paris a casa de Andrea (não que a filha pareça ter ficado muito ralada com isso). Assim, é com resignação que um dia sobe o caminho de acesso até à sua casa, depois de ter ido deixar Charlie à scuola materna, e encontra Olimpia e Don Angelo à sua espera nos degraus da entrada. Deus do Céu, esqueceu-se que aquele vai ser o dia do Grande Exorcismo. Só espera ter biscoitos ou algo do género para lhes oferecer. Tem a certeza de que Don Angelo não estará disposto a expulsar demónios de estômago vazio. – Peço muitas desculpas – diz, saindo rapidamente do carro. – Estão aqui à espera há muito tempo? – Non fa niente – responde-lhe Don Angelo, com um régio aceno de mão. Sob o sol da primavera, o seu aspeto é bastante frágil; o casaco preto que traz vestido parece demasiado largo para os seus ombros. Não há nem sinal da sua Vespa; deve ter vindo com Olimpia na sua Ape. Olimpia, apesar daquela cara de quem tem muito mais a dizer sobre o assunto, também sorri educadamente enquanto Emily os conduz ao interior da casa. O Totti recebe-os ruidosamente, oferecendo-lhes a sua bola, na esperança de que algum deles a queira atirar. – É um cão muito bonito – comenta Don Angelo, fazendo-lhe festas. – Está muito sujo – acrescenta Olimpia num tom desaprovador. – Devia mantê-lo lá fora. Emily faz café e prepara apressadamente um prato com alguns biscoitos de manteiga partidos. Quando regressa à sala de estar, encontra Olimpia a fitar o machado com uma expressão acusadora. – É muito perigoso ter isto aqui, com uma criança pequena à solta pela casa – diz. – Oh, sim – responde-lhe Emily. – Ia arrumá-lo agora mesmo. O Raffaello andou a cortar lenha para nós, sabe. Olimpia mostra-se mais desaprovadora do que nunca, mas Don Angelo diz: – Ah, o meu querido Raffaello. Como deve estar contente por ter encontrado os seus vestígios etruscos… – Mas o senhor estava contra a escavação – recorda-lhe Emily. Com um gesto vago, Don Angelo apouca o passado. – Isso era então. Preocupava-me que… Mas agora tudo parece estar a
correr bem. Os mortos estão a ser tratados com dignidade. – Com um suspiro, dá algumas palmadinhas afetuosas na mão de Olimpia. – E agora, Olimpia, ocupemo-nos dos mortos mais recentes. O espírito do teu pai. Dizes-me que sentiste a sua presença? Olimpia estremece. Chegou o seu momento de brilhar. – Muitas, muitas vezes – principia, com grande dramatismo. – Por vezes, nesta mesma sala em que agora estamos, senti-o muito próximo, quase a tocar-me. Ouvi um respirar, embora a sala estivesse vazia. Noutras vezes vislumbrei uma presença pelo canto do olho, a sua camisa vermelha (ele era um grande admirador de Garibaldi, como o senhor decerto se lembra, Don Angelo), os seus cabelos pretos, aquele boné que ele costumava usar… E a música! «La Donna è mobile», materializando-se no ar. Acho que ele está a tentar dizer-me alguma coisa, padre. Acho que a sua alma não está em repouso, como deveria estar. Emily fica espantada ao ver o quanto Don Angelo se mostra perturbado ao escutar aquela carrada de disparates supersticiosos. Supõe que os padres sejam obrigados a levar a sério o sobrenatural, mas esperava que Don Angelo conservasse ao menos uma réstia de saudável ceticismo. Em vez disso, ficou branco como a cal, parecendo agora, ele próprio, um fantasma. Erguendo uma mão ligeiramente trémula, diz: – Vou dizer as orações do exorcismo. Temos de rezar em conjunto pela sua alma. – Oh, não – protesta Emily. – Decerto não me querem aqui convosco, pois não? Eu não sou… Bem, a verdade é que eu não… – Claro que a queremos aqui, signora Robertson – interrompe Don Angelo. – A casa é sua. – Talvez não tenham fantasmas lá em Inglaterra – sugere Olimpia, num tom irritado. Aquele comentário atinge Emily no seu orgulho patriótico. – Claro que temos fantasmas! – replica, exaltada. – O que me diz de Ana Bolena? O fantasma dela vagueia por Hever Castle. E pela Torre de Londres. – De súbito, o seu olhar fixa-se numa fotografia colocada numa prateleira alta. – E Hampton Court? – pergunta triunfalmente. – Lá há carradas de fantasmas. – Pega na fotografia de Siena e Paris em Hampton Court, tirada há vários anos, quando Paris ainda só tinha cinco anos. Ao tirá-la da estante, arrasta qualquer coisa que acaba por cair ao chão. É a cruz. A cruz que foi
encontrada junto ao cadáver de Carlo Belotti. Don Angelo apanha-a do chão. – Toma – diz a Olimpia. – Vais querer ficar com isto. Deve ser precioso para ti. O que se passa a seguir acontece de uma forma tão rápida e inesperada que Emily só será capaz de recordar a sequência completa vários dias depois. Mas, quando finalmente consegue organizar os pensamentos, descobre que aquele acontecimento vai ficar para sempre gravado na sua memória. Olimpia fita Don Angelo. Ele ergue o olhar para ela, primeiro com uma leve preocupação e depois com um horror que se vai intensificando aos poucos. – Assassino! – grita ela subitamente. – Assassino! – Não – diz o padre, a recuar e de mãos erguidas num gesto de súplica. – Não… Eu juro-te… – Assassino! – torna Olimpia a gritar. E então pega no machado. – Não! – grita Emily. Mas já é demasiado tarde. Olimpia avança para Don Angelo. – Não… – repete ele, mas a sua voz soa estranhamente desprovida de esperança. – Não… Ela ergue o machado. Ele cai pesadamente ao chão. – Don Angelo! – Emily corre para junto dele. O padre está caído de lado; tem um braço estendido numa posição estranha e o rosto frouxo, como se fosse de borracha. Só ao fim de alguns segundos Emily compreende que o machado não chegou a tocar-lhe. – Ataque cardíaco – diz Olimpia numa voz desprovida de emoção, parada no centro da sala. – Por amor de Deus! – grita Emily. – Chame uma ambulância! Mas Olimpia continua ali parada, de machado na mão, como se fosse a avó de Lizzie Borden. Emily agarra no telemóvel (graças a Deus que o tem no bolso) e liga para as emergências. – Ambulância. Villa Serena. Depressa! Atrapalha-se de tal maneira a explicar o caminho que chega a temer que Don Angelo morra antes de ela acabar de dar as direções. Mas, quando pousa o telemóvel, ele ainda está a respirar – arquejos roucos, horríveis. De Olimpia, nem sinal. – Emily… – balbucia Don Angelo.
– Estou aqui – responde ela. – Não se preocupe. Vai ficar bom. Não tente falar. Ao ouvir aquilo, Don Angelo sorri – um sorriso sofrido e melancólico, que se estende pelos seus lábios arroxeados. – Tenho de… – arqueja. – Tenho de… contar a alguém. Eu matei-os, compreende? Matei o Carlo e o Pino. Não… – diz, vendo que Emily está prestes a interrompê-lo. – Deixe-me terminar. Oh, não fui eu a puxar o gatilho, mas matei-os. Eu era o vigia. Tinha quinze anos. Costumava… fazerlhes recados, levar as mensagens para a brigada e coisas desse género. Eu sabia… todos os seus segredos… A sua respiração torna-se mais fraca e as suas pálpebras tremem devido à dor. Emily tenta dizer-lhe novamente para sossegar e não se preocupar, mas ele pede-lhe silêncio com um gesto frouxo. – Estou a morrer – diz. – Sei disso. Estou às portas do reino do meu Pai. Tenho de contar a alguém ou não poderei entrar… De súbito, Emily compreende que está a ouvir a confissão de um padre. – Eu sabia onde eles estavam escondidos – conta Don Angelo. – Eu e mais ninguém. Sabia que eles estavam nas grutas. O meu pai costumava trazer as ovelhas a pastar para estas colinas. Eu conhecia cada palmo de terra. Ramm, o general nazi, reuniu todos os moradores da vila e disse-nos que… ou lhe entregávamos os guerrilheiros ou então morríamos todos. Eu sabia que ele era capaz disso. Sabia o que ele tinha feito àquele bebé em Lucca. Sabia que Ramm nos mataria a todos sem um segundo de hesitação. Ele era um monstro. Don Angelo fica em silêncio por um minuto. Emily ouve a chuva a começar a cair lá fora e o Totti a derrubar qualquer coisa na cozinha. Mentalmente, ordena à ambulância que chegue naquele instante. – E então eu disse-lhe – conta Don Angelo, numa voz ligeiramente mais firme. – Fui ter com ele na manhã seguinte e disse-lhe onde eles estavam escondidos. Ele obrigou-me a levá-lo até lá. E disse-me: «Chama-os.» Sabia que tínhamos uma senha, compreende? E então eu chamei-os. A nossa senha era: «O Dante morreu.» Eles saíram do esconderijo e Ramm matou-os a tiro. Assim, sem mais, à queima-roupa. Mas, mesmo antes de morrer… o Carlo olhou para mim. Ele sabia. – Faz-se silêncio novamente. O vento sopra por entre os pinheiros. Do local da escavação chegam sons fugazes: risos, um rádio a tocar. Vozes vindas de outro mundo.
– Fui eu quem os enterrou – continua Don Angelo, agora numa voz mais fraca. – Não podia deixá-los ali, toda a gente ia perceber o que tinha acontecido. Enterrei-os e coloquei o meu rosário na sepultura. Tinha-me sido dado na escola, davam um a cada aluno. Coloquei o meu rosário na sepultura e foi então que decidi… – Torna a ficar em silêncio e Emily debruça-se mais para ele. – O que foi que decidiu? – pergunta-lhe. Sabe agora que ele tem de terminar a sua história. E também sabe que já não lhe resta muito tempo. – Tornar-me padre… – sussurra Don Angelo por fim. – Para emendar o que tinha feito. – E emendou – assegura Emily num tom perentório. – O senhor viveu uma boa vida. – Não tem a certeza de ele a ter escutado. – Foi difícil – continua Don Angelo, sorrindo ligeiramente. – Foi difícil abdicar de tudo. Eu tinha uma namorada… a Olimpia… – O que é que tem a Olimpia? – Era ela a minha namorada. A filha do Carlo. Foi uma dupla traição. Era por isso que não queria que o Raffaello fizesse escavações por aqui. Já sabia o que ele ia encontrar. – Mas o senhor sepultou o Carlo – diz-lhe Emily com gentileza. – Ele está em paz. Don Angelo suspira. – Fiz aquilo que julguei ser correto – diz, ao fim de algum tempo. – Queria salvar a vila. Mas traí-os. Foi um pecado terrível. – Ouça-me – diz Emily, chegando-se muito perto, para ele a ouvir. – O senhor salvou esta vila, de facto. Não foi Don Angelo a matar aqueles dois homens, mas sim o general Ramm. O senhor fez aquilo que julgava estar certo. Era apenas uma criança. De olhos fechados, Don Angelo fica em silêncio por muito tempo. Quando torna a falar, fá-lo numa voz tão ténue que Emily quase não o consegue ouvir. – Lamento – diz ele. Emily sabe aquilo que tem de dizer. Inclinando-se até os seus lábios roçarem o ouvido dele, responde-lhe: – Está perdoado. Um sorriso muito, muito ligeiro perpassa o rosto do padre. Quando a ambulância chega, já está morto.
6
D
on Angelo é enterrado na Sexta-Feira Santa; o simbolismo da data é assombroso para Emily. A igreja, com as estatuetas cobertas por mantos de cor púrpura para a vigília pascal, parece vergada sob o peso de tanto sofrimento. Ainda por cima, chove durante todo o dia – o céu está carregado de lágrimas cinzentas, caindo sem cessar. Dies Irae, Dies Illa, dia de luto, dia de pranto. Nas terríveis semanas após a morte de Don Angelo, Emily dá por si a relatar aquela história várias vezes: a Tino, o polícia, ao juiz de instrução, a Antonella e às incontáveis mulheres chorosas com quem se cruza no mercado. Os detalhes nunca se alteram: o súbito ataque cardíaco, a morte em paz, a ambulância que por pouco chegou tarde de mais. «Che peccato», dizem as mulheres. «Deus dê paz à sua alma, ele era um homem bom, um homem santo.» Apenas conta o que realmente se passou a Monica. Na noite de véspera do funeral de Don Angelo, as duas sentam-se a beber um copo de vinho e Emily relata à amiga toda a história – como o momento em que Don Angelo compreendeu que aquele crucifixo viera da sepultura de Carlo Belotti o denunciou como o seu assassino. – Porque a Olimpia não reconheceu a cruz quando a viu pela primeira vez. Nunca a tinha visto entre os pertences do pai. A única pessoa capaz de a reconhecer seria quem a colocou na sepultura. Há muitos anos. Monica mostra-se surpreendentemente compreensiva. – Pobre homem – diz. – Que fardo tão pesado. Uma vida inteira a recordar que, aos quinze anos, matou dois homens, um deles o pai da sua namorada. – Mas ele achava que, se não os traísse, todos os habitantes da vila morreriam. – E provavelmente tinha razão. Já ouviste falar em Sant’Anna di Stazzema? Trata-se de uma pequena aldeia não muito longe daqui. Os nazis mataram mais de quinhentas pessoas por lá, homens, mulheres e crianças, por darem abrigo a guerrilheiros. Os corpos foram encontrados em estábulos e celeiros,
onde os soldados das SS os tinham fechado como gado. O mais novo de todos era um bebé com apenas vinte e um dias. – O mesmo podia ter acontecido em Monte Albano. – Sim, e, nesse, caso, nenhum de nós aqui estaria hoje. Ficam em silêncio durante alguns minutos. Não se ouve um som na cozinha. As crianças estão todas a dormir. Na sala, diante da lareira, o Totti ressona alto e bom som. Emily torna a encher o seu copo e o da amiga. – Bem achei que se passava algo de estranho no funeral do Carlo Belotti – diz, por fim. – Pareceu-me que havia algum segredo, embora não soubesse concretamente o que poderia ser. Não conseguia parar de pensar numa coisa que Don Angelo tinha dito. As suas palavras foram: «Rezamos para que não sejamos testados.» Como pode alguém saber como se teria comportado em tais circunstâncias? A Paris diz que teria lutado, mas eu não estou tão certa de que faria o mesmo. Talvez os chamados colaboradores estivessem a agir da melhor maneira que conseguiam. – Talvez – concorda Monica. – Eu sei que o Virgilio se sente culpado porque se foi esconder nas colinas e não combateu como os seus irmãos, mas foi ele a sustentar a família do Raffaello. Ajudou muita gente, incluindo a minha avó. O meu avô estava preso no Norte de África. O Virgilio costumava levar comida à minha família. É possível que lhes tenha salvado a vida. – Mas, ainda assim, sentia-se culpado. – Sim. Trata-se de uma especialidade católica, a culpa. – Monica diz isto com tristeza e sem rancor. – Don Angelo sentiu-se culpado durante toda a sua vida – observa Emily. – Espero que agora tenha encontrado a paz. – Está a pensar nas últimas palavras que segredaram um ao outro: Lamento. Está perdoado. – Também eu – responde Monica, sombria. – Na verdade, não era má pessoa. Sempre defendeu o Raffaello quando a Olimpia se punha a falar mal dele. – A Olimpia! Ela tentou matá-lo. Nunca me hei de esquecer do seu olhar quando avançou para ele de machado em riste. Parecia louca. – Tornaste a vê-la desde esse dia? – Não, ou, pelo menos, não nos falámos. Vi-a na vila uma vez, mas ela fingiu que não me tinha visto. – Deve estar a perguntar-se o que terás dito a respeito dela. – De que serviria dizer fosse o que fosse a alguém? Ela não o matou.
– Mas talvez tenha sido ela a provocar o ataque cardíaco. – Talvez. Nunca ficaremos a saber. – Emily pensa em Don Angelo por instantes, não apenas nos últimos minutos de sofrimento que ele passou na Terra, mas também no seu rosto durante o funeral, ao rezar pelos dois homens que tinha traído, e naquela primeira vez em que ele apareceu no jardim dela, como um improvável anjo de sapatilhas sujas. – Acho que ele sabia – diz depois. – Acho que sabia que já não ia viver por muito mais tempo. – É bem verdade que sofria do coração – concorda Monica. – Já tinha tido um princípio de ataque cardíaco. – Como sabes isso? – Contou-me o Fabio – responde Monica com uma risadinha. Fabio é o seu novo namorado, um cirurgião cardiovascular de Pádua. Emily também se ri, pensando em Monica e Fabio, e nela e Michael. Só espera que o «romance médico» de Monica tenha melhor fim que o seu. – Dá para acreditar que a Olimpia namorou com Don Angelo? – interroga. – Essa deve ser mais outra razão por que ficou tão irada. – Ouvi dizer que o Romano também estava apaixonado por ela. Devia ser uma miúda toda gira. Emily visualiza Olimpia, com aquele seu corpo sem curvas e os cabelos pintados de preto. É-lhe difícil imaginá-la em rapariga, cheia de confiança nos seus encantos. – O Romano foi muito amável – observa. – Ele e a Anna-Luisa tomaram conta dos meus filhos enquanto eu fui para o hospital com… com Don Angelo. – Para um fascista convicto, o Romano até que não é mau tipo. – Continua apaixonado pelo meu pai. Mandou-lhe um livro sobre Mussolini. Monica ri-se, esvaziando o seu copo. – Ainda há muito disso por aqui: fascistas, comunistas e memórias do passado. É de admirar que consigamos viver com isso, mas é o que fazemos. O funeral é celebrado pelo irmão mais novo de Don Angelo, que é padre em Nápoles. Que espécie de mãe, pensa Emily, cria dois filhos para serem padres? Olhando para Charlie – que, sentado ao seu lado, não para quieto –, pensa que a sua família parece não ter herdado o gene religioso. Siena e Paris
também ali estão – Siena a saborear todo aquele drama, não sem um ligeiro sentimento de culpa, e Paris amuada, apenas se animando quando vê Andrea. A igreja está apinhada e já só há lugar de pé. Parece que toda a vila compareceu para se despedir do padre da sua paróquia: o zio Virgilio, muito elegante num fato preto, ladeado do filho Giovanni e do neto Renato; Romano e Anna-Luisa, acompanhados por Benito, o seu filho, e respetiva família; todos os professores da escola de Emily, com a irmã Caterina em lágrimas; Angela, do café, Giancarlo, Antonella, Tino, o polícia, e Umberto, o presidente da Câmara (que se debulha em lágrimas a meio do seu próprio elogio fúnebre). Até Monica compareceu para prestar uma última homenagem ao «velho maluco». Estão todos ali, menos aquele que Emily tenta localizar repetidamente, continuando a olhar em volta por muito tempo mesmo depois de se tornar óbvio que ele não virá. E, apesar de tudo, não fica surpreendida ao ver Olimpia, majestosa no seu véu de renda preta, a avançar para os bancos da frente. Emily troca um olhar com Monica, que lhe responde com um sorriso sinistro. Para além do irmão de Nápoles, estão, pelo menos, mais dez padres no altar. As velas estão acesas e o fresco esbatido da Anunciação parece observar toda a congregação lá do alto. Quando as crianças da escola primária acabam de cantar um hino em que é dito que todos pertencemos à família de Deus, está toda a gente em lágrimas. As leituras sucedem-se num miasma de emoção. Depois, a congregação forma uma fila para a comunhão, a missa termina e o caixão é levado da igreja por uma triunfal guarda de padres. Lá fora continua a chover e os guarda-chuvas erguidos assemelham-se aos estandartes empunhados por um exército. O cemitério, num terreno inclinado por trás da igreja, está todo enlameado e caminhar por ali revela-se traiçoeiro. Avançando lentamente pelo solo encharcado, Emily fica bastante desconcertada ao ver-se lado a lado com Olimpia, que a cumprimenta com um gélido aceno de cabeça. Debaixo de um guarda-chuva preto segurado por um acólito, o irmão de Don Angelo recita as preces finais numa voz trémula. Duas crianças (sobrinhas-netas de Don Angelo, fica Emily a saber mais tarde) lançam rosas vermelhas para a sepultura. Outros membros da família fazem o mesmo – uma mulher idosa que talvez seja irmã de Don Angelo e jovens que parecem desconfortáveis nos seus trajes formais. Um padre não pode ter família realmente próxima – filhos, filhas e netos –, apenas aquela multidão
sussurrante, a sua família substituta, a comunidade cujas vidas Don Angelo salvou há tantos anos, pagando por isso um terrível preço. E então, antes de os coveiros começarem a tapar o buraco lamacento, Emily sente uma ligeira e súbita agitação ao seu lado. É Olimpia, que vai abrindo caminho pelo meio dos enlutados – que se desviam para lhe darem passagem –, até ficar à beira da cova aberta. Emily estica o pescoço para ver o que se passa. Olimpia estende o braço sobre a cova e larga qualquer coisa. Algo que cai sobre a tampa do caixão com um ligeiro ruído surdo. «O que era aquilo?», perguntam várias pessoas. «O que era aquilo?» Emily sabe a resposta. Sabe que se trata da cruz de um rosário, um daqueles que, em tempos passados, todas as crianças italianas receberam de Mussolini.
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Diário de Paris, 25 de março de 2005, Sexta-Feira Santa:
Hoje foi o funeral do padre. Uma cena muito esquisita. Muita gente a chorar, tudo a dizer que ele era um santo. Até a Monica estava na igreja e ela está sempre a dizer que odeia padres, que a religião organizada oprime as mulheres e por aí fora. Não conhecia Don Angelo muito bem, mas sempre me pareceu fixe. Uma vez, quando eu e a Siena estávamos na piazza e fazia um calor de morte, ele até nos deu dinheiro para irmos comprar um gelado. O Giancarlo estava connosco, mas ele (Don Angelo) disse que ele podia muito bem pagar o seu. Devo admitir que teve muita piada. O Andrea disse-me que Don Angelo foi muito bom para a mãe dele quando ela se tornou mãe solteira, porque os Italianos, ainda hoje, consideram chocante uma mulher ter um bebé sem ser casada. Eu disse ao Andrea que, em Londres, eu era a única da minha turma cujos pais não eram divorciados e ele achou inacreditável. É engraçado, dantes eu sentia-me bastante embaraçada por os meus pais ainda estarem juntos, mas, quando eles se separaram, detestei que isso tivesse acontecido. Agora já não tenho nenhum problema com a situação, mas claro que já sou bastante mais velha e já sei muito mais a respeito da Vida. A minha mãe ficou muito emocionada durante o funeral porque Don Angelo morreu aqui, nesta casa. Eu e a Siena achamos que é um bocado sinistro. Ao que parece, ele estava a conversar com a minha mãe e com a Olimpia, teve um ataque cardíaco e caiu morto no chão. A minha mãe chamou uma ambulância, mas já era demasiado tarde. Não consigo decidir se gostava de ter assistido a tudo ou não. Nunca vi um morto e talvez devesse. O Andrea diz que não tem pressa
nenhuma em ver um, mas que, quando for médico, vai ter de andar a abri-los. Que nojo. Não consigo imaginá-lo a fazer isso. Até o cheiro da ração do Totti o deixa agoniado. Eu e a Siena até dissemos, só na brincadeira, que se calhar agora o fantasma de Don Angelo vai andar a assombrar-nos, e a minha mãe passou-se. Não se zangou; antes parecia que tinha perdido o juízo. Riu-se como se fosse maluca, depois engoliu em seco e respondeu: «Oh, não, outro não.» Não faço ideia do que ela quis dizer com aquilo, mas talvez tudo isto a tenha deixado um bocado desequilibrada. Ultimamente tem andado muito esquisita, até mesmo para o que é costume. Volta e meia, põe-se a vaguear pela casa e a espreitar das janelas, e depois senta-se diante do portátil durante horas e não escreve nada. No outro dia apanhei-a a chorar agarrada a uma lanterna! E anda sempre vestida com um ridículo colete fluorescente. Parece uma daquelas polícias sinaleiras que costuma estar à porta das escolas (mais uma coisa que não têm aqui em Itália), mas demente. Durante o funeral, a minha mãe não parou de olhar em volta, como se estivesse à procura de alguém. Só Deus sabe quem seria. Talvez fosse o fantasma de Don Angelo. E, no fim, nem quis ir beber qualquer coisa com as outras pessoas. Não, disse ela, tinha de vir a correr para casa porque o Totti estava sozinho. Foi como se, de repente, tivesse passado a ser a melhor amiga do Totti. Não, ela pirou, sem dúvida. Talvez seja por causa da mudança na sua vida. Li sobre isso na Cosmopolitan, portanto estou a falar com conhecimento médico. Emily saiu para dar um passeio com o Totti. Depois de toda a chuva, ficou uma tarde belíssima; o céu está limpo e de um azul intenso, e os vultos escuros dos ciprestes recortam-se contra o pôr do sol. Emily solta o Totti; depois de ter passado o dia todo fechado em casa, o pastor-alemão corre aos saltos pela colina acima, em direção à área da escavação. Com um suspiro, Emily segue-o. Depois da chuva, toda aquela área parece um pântano, e as suas botas afundam-se na lama com um chapinhar repugnante à medida que ela vai avançando a custo, no encalço do Totti. Reza para que o pastoralemão não se tenha posto a desenterrar artefactos preciosos, mas faltam-lhe as forças para o chamar.
Não está ninguém na escavação porque é véspera de Páscoa. Os voluntários estão nas suas casas ou então a brindar a Don Angelo no bar na cave da igreja. Onde estará Raffaello? Num jantar romântico com a soprintendente, num qualquer restaurante chic em Roma? Ou estará a rir, com os seus colegas arqueólogos, de alguma piada hilariante a respeito da Pedra de Roseta? Emily pensou que ele regressaria para o funeral de Don Angelo; na verdade, só esse pensamento lhe deu ânimo durante as horas terríveis que se seguiram à morte do padre. Depois de Don Angelo ter sido declarado morto e de os seus familiares terem sido contactados, chamou um táxi, com ideias de regressar à sua villa. Mas depois, num impulso, acabou por pedir ao taxista que a levasse ao centro de Monte Albano e, depois, que parasse à porta do La Foresta. Era o fim da tarde e os empregados começavam a pôr as mesas. Emily estava com esperança de encontrar Renato por ali, mas, para seu espanto, foi dar com o zio Virgilio sentado a sós numa mesa a um canto, a ler o jornal e a beber um copo de grappa. – Mrs. Robertson! – exclamou ele, erguendo-se galantemente, apesar da artrite. – Signor… – Emily não sabia como o devia tratar. – Por favor – replicou ele com um gesto vago –, trate-me por zio Virgilio. Emily hesitou. De certa forma, pareceu-lhe que soaria presunçosa, mas por fim lá conseguiu. – Zio Virgilio, sabe como posso entrar em contacto com o Raffaello? Ele fitou-a demoradamente. – Sim, tenho o número de telemóvel dele apontado num lado qualquer, mas queira sentar-se, Mrs. Robertson. Parece-me muito pálida. Emily assim fez. Mal deu por isso quando um dos empregados de mesa «invisíveis» colocou na mesa um segundo copo de grappa, para ela. – Qual é o problema? – perguntou gentilmente o zio Virgilio. – Don Angelo… Don Angelo morreu. Emily recorda como o zio Virgilio não se mostrou surpreendido, ou, sequer, chocado. Limitou-se a pousar a sua mão sobre a dela. – Sim – disse finalmente. Emily ficou surpreendida ao sentir as lágrimas correrem-lhe pelas faces. – Ele morreu – repetiu. – Achei que o Raffaello devia saber. Jamais esquecerá a expressão do zio Virgilio, o seu rosto mergulhado nas sombras, quando ele disse, mais para si do que para ela:
– Pobre Angelo. Peço a Deus que ele possa finalmente pousar o seu fardo. – Naquele momento, Emily compreendeu que o zio Virgilio sabia a verdade, que sempre soubera. Acabou por não dar a notícia a Raffaello. Em breve ele ficará a saber do sucedido pelo zio Virgilio, e, de qualquer modo, de que serviria? É óbvio que Raffaello não a quer ver. E não regressou a casa, nem mesmo para o funeral, embora Monica tenha comentado que ele enviou flores. «Ele não gosta de funerais», diz Emily a si mesma, mas não consegue deixar de pensar que ele tinha uma desculpa para regressar e não a aproveitou. Talvez nunca mais o torne a ver. O Totti afastou-se da área central da escavação e agora está alegremente a abrir um buraco junto das grutas onde os corpos foram encontrados. Emily consegue ver a sua cauda felpuda a abanar enquanto ele se enfia cada vez mais no solo macio. – Totti! – grita ela. Deus do Céu, o bicho ainda vai acabar por encontrar outro morto qualquer e depois terão de passar outra vez pelo mesmo horror. Quantos segredos estarão enterrados naquelas colinas? – Totti! Ele ergue alegremente o olhar para ela e depois continua a cavar. É óbvio que o treino de Paris não está a dar resultado. Ofegante, Emily aproxima-se do pastor-alemão e puxa-o pela coleira. Ali, exposta pela chuva e pelo frenético esgravatar do Totti, está uma laje quadrada. Emily acaba de encontrar a Atlântida.
8
É
o primeiro sábado a seguir à Páscoa e Emily prepara-se para ir a Bolonha. Paris saiu com Andrea e Siena vai dormir em casa de Francesca. Emily vai levar Charlie para casa de Monica e de lá seguirá para a inauguração do Vittorio’s. Para lá disso, não pensou em mais nada. Irá encontrar-se com Michael? Deixar-se-á cair nos seus braços a chorar, como tantas vezes imaginou? Aparecerá ele de braço dado com a mulher, uma mulher muito descontraída e americana? E, se isso acontecesse mesmo, ela importar-se-ia? Nem sabe dizer ao certo. Está a avançar como se estivesse debaixo de água. Os acontecimentos das últimas semanas deixaram-na como que aturdida. Raffaello partiu, Don Angelo morreu, e, lá fora, ainda enterrado na lama, encontra-se aquele que talvez seja o maior achado de sempre no que toca à civilização etrusca. Mas parece-lhe que tudo o que ela pode fazer é tratar muito lentamente dos preparativos para aquela noite e não se pôr a pensar. Diante dela, na mesa, está a sua mala de mão mais elegante, e também o convite para a inauguração do restaurante e um antigo recorte de jornal sobre Michael. Ele observa-a do papel, os seus olhos claros e tão confiantes como sempre. «Dr. Michael Bartnicki, especialista em neurologia no King’s College, em Londres…» Será que vai mesmo vê-lo outra vez? Com um suspiro, Emily vai lá fora chamar Charlie. Deixou-o no terraço, a brincar com os seus carrinhos. Ele quer levá-los quase todos para a casa de Monica. O melhor é ela começar a fazer os preparativos. Quando Charlie vai de viagem, leva mais bagagem que o Rei-Sol. – Charlie! – chama. O Totti, que também vai ficar na casa de Monica, ladra algures do olival. Tirando isso, o silêncio é absoluto. As árvores agitam-se sob uma brisa súbita, tornando depois a imobilizar-se. Com um suspiro, Emily sobe os degraus até ao terraço. Os carrinhos de brincar estão ali, estáticos numa desastrosa sucessão de choques em cadeia, mas Emily não vê o filho em parte nenhuma.
– Charlie! Corre para a parte da frente da casa, espezinhando a horta abandonada de Paul – o sítio onde viu Don Angelo pela primeira vez. O seu carro está ali, mal estacionado no cascalho. De Charlie, nem sinal. – Charlie! – A voz de Emily tornou-se rouca de histeria mal contida. Corre de volta ao interior da casa, com os seus passos a ecoar no chão de pedra. Atravessa a sala de estar, ao som do tiquetaque do monstruoso relógio, depois o corredor e, por fim, entra na cozinha. Charlie está sentado à mesa da cozinha, a olhar para o recorte de jornal. – Charlie! Graças a Deus! Para onde é que foste? – Abraça-o com força, inspirando o seu agradável aroma rústico a relva e madeira queimada. Charlie afasta-se dela bruscamente. – Mamã – diz, apontando para a fotografia no jornal. – Este é o homem que está sempre a olhar para mim. Paris e Andrea estão no cemitério. A sua intenção não era irem para ali, mas acontece que, muito simplesmente, não tinham outro lugar para onde ir. Já estiveram no café durante uma hora, tentando fazer durar os dois refrigerantes de limão que pediram, mas então Angela começou a olhar para eles de uma forma estranha e nenhum deles tinha dinheiro para mais nada. – Este verão vou arranjar um trabalho qualquer – afirma Andrea, avançando a passos largos por entre as campas. – E então poderemos ir a outros lugares. Ao cinema, a restaurantes… Talvez até dê para irmos a Florença. – Também tens de estudar, não te esqueças – recorda-lhe Paris. Não vai deixar que Andrea esqueça o seu sonho de ser médico, ainda que ele o faça. Quanto a ela, atualmente a sua ambição é ser arqueóloga, embora tenha ideias de se especializar nos Egípcios. Parece-lhe que construíram mais edifícios do que os Etruscos. Andrea sorri. – Pareces a minha mãe. – Obrigadinha. – É um elogio – protesta Andrea. – Escuta, eu também adoro a minha mãe. Simplesmente não quero soar como ela. – E não soas – assegura Andrea, sentando-se numa lápide coberta de hera.
– O teu italiano é muito melhor do que o dela. – Eu sei. Coitada da minha mãe, em Itália há três anos e ainda não consegue dizer bem os erres. Paris senta-se ao lado de Andrea na lápide. Está a começar a escurecer e as lápides projetam sombras alongadas e bizarras pela relva. Um pássaro levanta voo por entre o escuro arvoredo e, algures ao longe, um cão ladra. Paris sente-se grata pela presença sólida de Andrea. Ao lado da igreja, no espaço reservado aos padres (uma categoria à parte; uma espécie de «clube eclesiástico») está a sepultura recente de Don Angelo. A lápide ainda não foi colocada, mas a relva em volta da campa está coberta de flores: elaboradas coroas, bouquets baratos envoltos em plástico, flores simples, girassóis de plástico e até uma ou duas camisolas de futebol (Don Angelo era um fervoroso apoiante da Juventus). Em contraste, as sepulturas de Carlo Belotti e de Pino Albertini, mais acima na colina, parecem solitárias e esquecidas. Mas houve alguém que não as esqueceu. Voltando-se para lá, Paris vislumbra salpicos vermelhos, brancos e verdes. Levanta-se e aproxima-se, para ver melhor. Encostada à lápide, nova e muito branca («Carlo Belotti, patriota, 19021944»), está uma grande coroa de rosas brancas e vermelhas, entremeadas de folhagem verde. As cores da bandeira italiana. Paris agacha-se. – Há qualquer coisa escrita. – E lê: – «Meglio vivere um giorno da leone che cento anni da pecora.» – Lentamente, traduz a frase para inglês: – «Mais vale viver um dia como leão do que cem anos como cordeiro.» O que é que isto quer dizer? Andrea para junto dela. – É uma citação famosa de Mussolini. Suponho que queira dizer que mais vale morrer novo, mas tendo alcançado qualquer coisa, como aconteceu com estes dois, do que envelhecer em paz e sossego. Paris estremece. – Essa ideia não me agrada – afirma com veemência. – Eu quero viver cem anos como leão. Andrea passa um braço em volta dela. – E vais viver, Paris – responde-lhe. – Vais viver. – Como assim? – sussurra Emily. – O homem que está sempre a olhar para
ti? Charlie faz beicinho, frustrado por não estar a ser compreendido. – Este homem. – E espeta um dedo sobre o retrato do Dr. Michael Bartnicki, especialista em neurologia. – Este homem. Ele costuma estar a olhar para mim. – Ele olha para ti? Como? Onde? – Aqui! – exclama Charlie. – Nesta casa. Ele fica a olhar para mim. Emily sente todo o seu corpo ficar gelado, como se tivesse descido a um túmulo subterrâneo. – Porquê? – pergunta, mais para si própria. – Porque se poria ele a olhar para ti? – Não sei – responde-lhe Charlie, muito animado. – Porque é que não lhe perguntas? Emily volta-se e ali, de pé na sua cozinha, mostrando-se tão calmo e confiante de que é bem-vindo ali como naquela noite em Gordon Square, está Michael. Com um grito, Emily agarra em Charlie. – Não tenhas medo, Emily – pede Michael gentilmente. – Sou eu. – O que estás a fazer aqui? – sussurra Emily, ainda a apertar Charlie nos braços, com tanta força que o pequeno solta um queixume. – Vim ver-te – responde Michael muito naturalmente. Está com o mesmo aspeto de antes. Talvez pareça um pouco mais velho, com o cabelo louro menos abundante, rugas ao canto dos olhos e uma sugestão de grisalho junto às fontes. Mas continua irresistivelmente atraente e autoconfiante. Parado na cozinha dela, vestido formalmente com um smoking e de laço ao pescoço, parece vindo de outro mundo. – Pensei que talvez quisesses boleia para a inauguração do restaurante – diz. – Vais, não vais? Emily olha de relance para a mesa, onde o convite brilha tenuemente ao lado da sua elegante mala de mão. – Sim… ia – responde lentamente. – Ótimo. Podemos ir juntos. – Michael – responde-lhe Emily, escutando uma nota estranha, quase suplicante, na sua voz. – Como assim, «podemos ir juntos»? Há vinte anos que não te via. Não podes simplesmente entrar por aqui adentro como se nada fosse e levar-me a sair.
– Pois não – replica Michael com um sorriso. – Mas eu tenho-te visto. – O quê? – Já tinha estado aqui, muitas vezes. Vi a Paris e a Siena a jogarem às cartas e vi o Charlie a brincar com os carrinhos. Vi aquela tua velha empregada maluca. Até me pus a assobiar excertos de árias, só para a sobressaltar. Vi aquele teu namorado bronco a andar por aqui com as suas pás e picaretas. Até vi os teus pais. A querida Ginny. Ela sempre gostou de mim. Emily começa a recuar. – Portanto, tens andado a espiar-me. Michael ri-se. – Eu não ando a espiar-te! Tu ainda me amas, eu sei. Todas as noites pesquisas o meu nome no Google. Eu ligo o teu computador e o meu nome está sempre ali, no histórico de navegação. Tu sabes que devemos ficar juntos. – Mas tu és casado – replica Emily, ainda a recuar e puxando Charlie consigo. Por uma vez, ele está em silêncio, de olhos muito abertos, e vai olhando para um lado e para o outro, como se estivesse a assistir a uma partida de ténis. Michael encolhe os ombros. – As coisas não resultaram. Tem sido um período muito difícil para mim. Para dizer a verdade, tenho andado um bocado deprimido. E então, quando vi aquelas tuas fotografias na casa da Izzy, foi como um relâmpago. Não tinhas mudado minimamente. Soube, sem margem para dúvidas, que tinha de vir ver-te. A minha querida Emily. A única mulher que alguma vez me amou. Tirando a minha mãe, claro. – Porque não me telefonaste, simplesmente? – pergunta Emily, tentando alcançar a porta das traseiras. – Não sei – responde-lhe Michael. – Só queria ver que tal te estavas a sair. Sei tudo a teu respeito. Mesmo enquanto estava em Inglaterra, lia sempre as tuas colunas. Sabia que as escrevias para mim. As colunas! Envergonhada, Emily recorda como realmente as escreveu para Michael. «Vê só como eu me estou a divertir por aqui», queria ela dizerlhe. «Vê só como a minha vida é maravilhosa sem ti.» – Parece que tudo te está a correr na perfeição – observa Michael, como se lhe tivesse lido os pensamentos. – Dantes eu achava que tu não sentias minimamente a minha falta e isso deixava-me triste. Mas depois, tudo
mudou. Tu livraste-te daquele teu marido ridículo e então eu soube que precisavas de mim. E não é demasiado tarde, minha querida. Eu regressei. – Dizendo isto, Michael dá um passo na direção dela. – É demasiado tarde! – responde-lhe Emily com brusquidão. – O meu namorado vai chegar dentro de um minuto. – Não, não vai – replica Michael calmamente. – Ele deixou-te. Eu vi-o sair daqui no jipe há dias, de má cara. Foi para Roma. Pelo menos, é o que dizem na vila. Tive uma conversa muito interessante com aquele rapaz que gere aquela ridícula amostra de restaurante. Como é que aquilo se chama? La Foresta. Ele diz que o teu namoradinho te deixou. Aliás, também me disse que o único interesse dele, desde o começo, eram os Etruscos. E tu que estavas completamente apanhada, coitadinha… Embora não queira, Emily dá por si a acreditar nas palavras de Michael. Raffaello nunca a amou, apenas estava interessado nos Etruscos. Jamais regressará. Pergunta-se se alguma vez se terá sentido tão só na sua vida como naquele momento. – Seja como for – continua Michael, cheio de vivacidade –, o que é que isso te interessa? Tu também não o amas. – Amo, sim – responde-lhe Emily com tristeza. – Amo, sim. – Disparates. É a mim que tu amas. Vamos formar uma família muito feliz: tu, eu, a Siena, a Paris, o Charlie e a minha filha Jessica. Vais gostar da Jessica. A minha mãe também pode vir viver connosco. Ela sempre gostou de ti. – A tua mãe… – Emily recorda a carta de Gina com aquele P.S. tão delicado e tentador: «O Michael também vai lá estar… Sei que ele gostaria de tornar a ver-te.» Estará Gina a par dos planos do seu filho tão adorado? Terlhe-á escrito aquela carta para a atrair para a armadilha de Michael? – A tua mãe sabe o que tu tens andado a fazer? – Como assim? – pergunta Michael, mostrando-se genuinamente confuso. Avançando alguns passos, agarra no convite deixado sobre a mesa. Emily recua mais, puxando Charlie consigo. Se ao menos conseguissem alcançar a porta das traseiras… – Ela sabe que tens andado a entrar às escondidas na minha casa e a espiarme? – A espiar-te? – repete Michael num tom indignado. – Eu não tenho andado a espiar-te. Tenho andado apenas a tomar conta de ti e a assegurar-me de que
está tudo bem contigo, minha querida. Sentindo-se culpada, Emily recorda todos os serões que passou a olhar para o nome de Michael no site Friends Reunited ou a pesquisar desesperadamente o seu nome na Internet, tentando encontrar uma fotografia recente dele e desejando, de alguma forma, ser parte da sua nova vida. Pensa em como guardou cuidadosamente o recorte de jornal que Petra lhe enviou e em como escutou avidamente cada pequena informação que Chad ia deixando escapar. Será ela assim tão diferente dele? Mas então pensa: «Bem, eu não entrei na casa dele à socapa e não estou a tentar pregar-lhe um susto de morte, ou à sua família. Afinal de contas, há limites.» – Queria ver-te – explica Michael num tom sonhador. – Não parava de pensar em como as coisas eram quando nos conhecemos. Nós os dois éramos felizes, não éramos? Passeávamos por Londres de mãos dadas, ouvíamos músicas horríveis e achávamos que íamos ser jovens para sempre. Emily recorda esses tempos e descobre que, pela primeira vez, o passado a abandonou. Por mais que se esforce, não consegue recordar-se minimamente de como foi ser jovem e estar apaixonada por Michael. Apenas consegue pensar no presente: ela e Charlie encurralados na cozinha com aquele novo Michael, que soa como um doido, com Raffaello a quilómetros dali e ninguém para a ouvir caso ela grite. – Eu devia ter-me casado contigo – continua Michael. – A minha mãe sempre me disse que era o que eu devia ter feito, mas não estava pronto para assentar. Queria ser livre. – E então ri-se amargamente. – Livre! Com a Mara nunca fui livre, nem por um segundo. A minha mãe tinha razão acerca dela. Ela nunca me amou. Aliás, nem sequer ama a Jessica. Estava sempre a esquecer-se das consultas dela e da medicação. Sem mim, a minha filha já teria morrido umas cem vezes. E agora a Mara quer a custódia dela, dá para acreditar? Desejando mentalmente sorte à ex-mulher de Michael na sua batalha pela custódia da filha, Emily acerca-se da porta das traseiras. Graças a Deus que nunca a tem fechada. Estendendo um braço, agarra o puxador. A porta está trancada. – Eu tranquei-a – informa Michael. – Esse teu hábito de nunca trancares as portas é perigoso. Isso vai ter de mudar quando eu vier viver para cá. Também resolvi o problema do cão. Aquele animal é muito incómodo, não é? – O que foi que lhe fizeste? – Emily recorda como ouviu o Totti a ladrar do
olival, há pouco. Deve ter sido quando Michael o apanhou. Pobre Totti, pobre cão de guarda palerma, adorável e inútil. O que lhe terá acontecido? Michael ri-se. – Não te preocupes com isso. Não gosto de cães. Não sei se te lembras, mas nunca gostei daquele estúpido cão mariconso da minha mãe, com aquele seu casaco aos quadrados. E agora é melhor irmos indo. A inauguração começa daqui por uma hora e a viagem até Bolonha é demorada. Emily obriga-se a falar num tom calmo. Decerto alguém virá salvá-la, ou não? Mas quem? Paris está em casa de Antonella e Siena está com Francesca. Romano, o seu vizinho mais próximo, é surdo que nem uma porta e provavelmente já adormeceu em frente à televisão, a ver o canal fascista. – Michael – diz então –, eu não vou contigo. – Claro que vens – responde ele. – Precisas de um homem para tomar conta das coisas por aqui. – Michael… – Emily tenta soar firme e autoritária. Na verdade, está a tentar imitar o modo de falar de Gina. – Por favor, sai imediatamente da minha casa. Em resposta, Michael estende repentinamente os braços para a agarrar. Emily grita e tenta passar por ele a correr, levando Charlie meio ao colo, meio arrastado. Michael bloqueia-lhe a passagem, ainda a sorrir, os seus olhos azuis muito abertos e com uma expressão inocente. – Michael! Por amor de Deus! Deixa-me ir embora! Sorrindo ternamente, Michael ergue o braço para a deixar passar. Emily esgueira-se por baixo dele e sai para o corredor. A porta da frente está apenas alguns metros mais adiante. Correndo às cegas, acaba por tropeçar na mesinha onde antes havia uma jarra chinesa e alguns fósforos. Charlie grita quando ela cai para cima dele. Erguendo-se atabalhoadamente, Emily estende a mão para o filho. Mas Michael chegou primeiro. – Eu levo o Charlie – diz com firmeza. – Somos velhos amigos, não é verdade, Charlie? Eu costumava ir dar uma espreitadela ao quarto dele à noite. Mas ele nunca contou a ninguém. Foi um bom menino. Guardou o nosso segredo. O Charlie quer que eu me mude para cá, não queres, Charlie? Este miúdo precisa de um pai. Vem comigo, rapazote, vamos lá meter-te no carro. – Mamã! – grita Charlie. – Ajuda-me! Michael avança a passos largos para a porta, segurando Charlie pelo
cachaço. Com um grito, Emily corre atrás ele. Só depois se apercebe de que está a empunhar uma faca, que provavelmente trouxe da cozinha. O que vai fazer com aquilo? Matar Michael? Sabe que seria capaz de o fazer para salvar o seu bebé. Mas no mesmo instante em que Emily, impulsionada por uma fúria maternal, se lança sobre o seu namorado de há muitos anos, a porta da frente abre-se de par em par e, primeiro o Totti, arrastando uma corda partida, e depois Raffaello, lançam-se sobre o desprevenido neurocirurgião. Michael cai ao chão e solta Charlie, que corre para Emily e se agarra a ela como um pequeno macaco – usando os braços, as pernas e tudo o mais que lhe pareça que poderá ajudar. O Totti, geralmente tão manso, abocanha a perna de Michael enquanto vai rosnando furiosamente. Michael afasta-o e põe-se de pé, caindo inconsciente logo de seguida, derrubado por um murro de Raffaello. Ofegante, o arqueólogo aproxima-se de Emily. – Está magoada, Mrs. Robertson? Em resposta, Emily lança-se nos seus braços – uma proeza bastante difícil, tendo em conta que ainda está a segurar Charlie ao colo. Apesar disso, Raffaello não tem qualquer dificuldade em envolver os dois num abraço apertado. – Está tudo bem – diz-lhes. – Já está tudo bem. – Ele morreu? – pergunta Charlie, esperançado. – Não – responde-lhe Raffaello. – Apenas perdeu os sentidos. Quem é ele? – O meu ex-namorado – informa Emily com uma gargalhada nervosa. – Dio mio! – comenta Raffaello. – Interrompi alguma reunião de turma? – Não faz mal – diz Emily. – Estávamos só a recordar tempos passados. – Já podes largar a faca – replica ele. Apenas algumas horas depois, Emily, Charlie e Raffaello estão no «restaurante vermelho», a celebrar o aniversário do zio Virgilio. Charlie recusou-se a separar-se de Emily e até o Totti veio com eles, estando agora tranquilamente deitado debaixo da mesa. Michael, por sua vez, foi levado da villa por Tino, o polícia. – Vais apresentar queixa? – pergunta Raffaello. – Não sei – responde Emily. Por um lado, quer ver Michael preso, de preferência nalgum lugar muito longe dali, mas, por outro, não quer a chatice nem a publicidade de comparecer em tribunal, de ser obrigada a reviver todo
aquele pesadelo – a aterrorizante presença de Michael na sua cozinha, vestido para ir a uma festa formal, a noção de que ele a andava a espiar há meses ou aquele terrível instante em que pensou que Charlie corria perigo. – Também posso pedir ao Tino para lhe pregar um susto – sugere Raffaello. – Quero-o fora de Itália. Nunca mais o quero ver. Será que o Tino o consegue assustar a esse ponto? Raffaello responde-lhe, com uma risada sinistra: – Deixa isso comigo. Um dos «mágicos» empregados de mesa aparece junto à mesa para tornar a encher-lhes os copos. Emily bebe um demorado gole de champanhe, mas não fica embriagada. Pelo contrário, sente-se maravilhosamente alerta, como se estivesse a ver tudo pela primeira vez: a longa mesa cheia de copos cintilantes, o restaurante decorado com os galhos de veado, as fotografias e uma única caveira sorridente, a família de Raffaello, o seu tio-avô, resplandecente num fato de veludo vermelho, o seu primo Renato, impecável no seu smoking preto, a observá-los do outro lado da mesa. – Raffaello – diz Emily –, o que te fez ir lá a casa esta tarde? – O Renato disse-me que um tipo inglês tinha andado a rondar por aqui e a fazer muitas perguntas a teu respeito. Depois o Tino disse-me que tinham avistado o carro dele perto da tua casa. Por isso, achei que o melhor era ir investigar. Além disso… – Raffaello faz um sorriso largo e os seus olhos pretos brilham à luz das velas – …fui buscar-te para virmos a esta festa. – Mas eu disse-te que não vinha. – Achei que talvez conseguisse persuadir-te. Achei que talvez quisesses vir. Tinha razão? – Sim – admite Emily. Compreende agora que já há muito tempo que está apaixonada por Raffaello, possivelmente desde o dia em que foram a Badia Tedalda. – Raffaello, o que aconteceu em Roma? – pergunta-lhe depois. – Vais conseguir salvar a escavação? – Chiu! – sussurra Raffaello. – O zio Virgilio vai falar. Don Virgilio põe-se de pé. Na sumptuosa e escura atmosfera do restaurante, a sua aparência é curiosamente régia – um rei vermelho no restaurante vermelho. Elegante e composto, agradece a todos por estarem ali, agradece a Renato, o seu neto, por ter organizado aquela maravilhosa
refeição, agradece ao seu querido sobrinho-neto e à sua encantadora namorada por estarem presentes, e deseja a todos saúde e felicidade. – Só mais uma coisa antes de me sentar – diz depois. – Hoje, neste restaurante, que testemunhou tantos momentos felizes e tantos momentos de perigo, gostaria de nomear oficialmente o meu neto Renato como meu herdeiro. Quando eu partir, será ele a ficar com o restaurante. A notícia é recebida com murmúrios e aplausos dispersos. Do outro lado da mesa, Renato fita Raffaello com uma intensa expressão de triunfo. O arqueólogo ergue o copo à sua saúde. – Portanto, o Renato fica com o restaurante – diz Emily. – E tu, vais herdar o quê? Raffaello olha para ela. – Já tenho aquilo que quero – responde-lhe, com uma expressão muito, muito séria. – Tenho-te a ti. Embora também não me calhasse mal um tremendo achado arqueológico – acrescenta, num tom mais parecido ao que costuma usar. – Ah! – replica Emily. – Nesse aspeto, acho que posso dar-te uma ajuda. Debaixo da mesa, o Totti abana a cauda, demonstrando o seu acordo.
EPÍLOGO
É
verão e a relva que cobre a sepultura de Carlo Belotti já cresceu bastante. À sombra dos ciprestes, a Villa Serena parece dormitar sob o calor do sol. O único detalhe incongruente é uma tabuleta de aspeto oficial, a indicar as scavi – as ruínas. Alguns turistas sobem a estrada de terra e param a contemplar a estrada afundada e as lajes sepulcrais, mas, sem ninguém para explicar tudo aquilo, é difícil fazer o passado ganhar vida, e, frequentemente, voltam para trás, desapontados e desanimados com o longo e abrasador caminho de regresso. A laje encontrada pelo Totti acabou por se revelar mesmo o equivalente à descoberta da Atlântida. Mal chega aos vinte centímetros de largura, e estão ali gravadas apenas cinquenta palavras – mas são de valor incalculável. A Pedra do Totti (tal como Raffaello insiste que deve ser chamada) contém uma frase em etrusco e a respetiva tradução em latim – a única tradução literal da língua etrusca que se conhece em todo o mundo. A escavação arqueológica de Raffaello tornou-se mundialmente famosa e a soprintendente aprovou-a mal viu a laje, ainda coberta com as pegadas enlameadas do Totti. Ao deixar a laje enterrada no chão, Emily tomou a decisão mais acertada. – Deixei aquilo assim porque não sabia se ias regressar – explicou ela a Raffaello – e não queria que regressasses por causa dos Etruscos e não por mim. – Oh, mulher de pouca fé! – gracejou o arqueólogo. – Eu não te tinha dito que não desistiria sem dar luta? – «E é mesmo verdade», pensa Emily. «Ele lutou com o Michael, embora tenha sido tudo muito breve.» Mas ela sabe que, mesmo que não tivesse sido apanhado de surpresa, Michael não teria conseguido levar a melhor sobre Raffaello. Chad, contactado por Emily, contou-lhe que Michael tinha tido um esgotamento nervoso no outono anterior, quando a sua filha tivera uma recaída. Viera para Itália para tentar recuperar. – Estou surpreendido por ele não te ter procurado – confessou. – Ele parecia andar ligeiramente obcecado contigo.
Emily não fez nenhum comentário, mas pensou: «Obrigadinho pelo aviso, Chad.» Michael, diligentemente assustado por Tino, regressou a Inglaterra. Emily ficou a saber disso por uma carta que lhe enviou Gina, onde também lhe contava que tinha vendido o restaurante de Bolonha. «Não faz sentido nenhum eu ficar aqui sem o meu menino querido», escreveu. Ocorre a Emily que sempre houve, desde o primeiro instante, algo de esquisito na relação daqueles dois. O Vittorio’s foi comprado por Renato, que está firmemente determinado a expandir o seu império. Na opinião de Emily, estabelecimento e proprietário merecem-se. Graças à Pedra do Totti, Raffaello foi convidado para trabalhar na (só podia ser!) Universidade de Bolonha. Raffaello diz-lhe que, quando as crianças acabarem a escola, deviam mudar-se todos para Bolonha. Também acha que eles os dois se deviam casar. Emily não está muito preocupada com isso. Agrada-lhe a situação atual; gosta de ter Raffaello na sua cama, com aquele seu grande e reconfortante corpo de pirata. Adora o momento em que o espaço vazio diante dela é subitamente preenchido por ele, com o seu cabelo escuro, aqueles olhos pretos e maliciosos e aquele sorriso irónico que Emily tão bem conhece. Adora até a sua presença barulhenta e aquela sua pontaria para entrar em casa sempre que ela está num ponto crucial do seu livro, trazendo lama e ar frio consigo e pedindo alto e bom som um pequenoalmoço inglês. Emily está a escrever um livro. Está finalmente a escrever o livro que sempre quis escrever; trata do lado negro da vida numa vila toscana, de segredos há muito enterrados, de lealdades encobertas e de inimizades silenciosas. Não sabe se alguém vai querer ler aquilo, mas tem ideias de o enviar, depois de terminado, para Giles, cuja companheira trabalha numa editora; na sua opinião, ele está a dever-lhe um favor. Paris ainda namora com Andrea. Embora agradada com isso, Emily não cai no erro de pressupor que aquela relação é para durar. Quem sabe o que irá acontecer? Tanto um como o outro ainda têm a vida inteira pela frente, e quem melhor do que ela para saber que é uma loucura dar demasiada importância ao primeiro amor? Siena começou a namorar com o Rapaz do Camuflado, que, afinal, é um estudante do segundo ano de Medicina na Universidade de Bolonha. Emily sente-se ligeiramente apreensiva, visto ele ser três anos mais velho do que a sua filha, e, sobretudo, por ele ser estudante
de Medicina, mas guarda para si estes receios. Além disso, agora Siena quer converter-se ao catolicismo. «É repousante», diz ela. Emily não sabe muito bem o que pensar daquilo, mas sente que Don Angelo teria aprovado. Petra também está feliz. Agora vive com Darren. Os rapazes, sobretudo Harry, adoram-no. Quanto a Petra, jamais esquecerá o momento em que Darren ergueu Harry nos braços e saiu com ele do supermercado a passos largos, levando-o para longe de todos aqueles olhares de censura e dedos acusadores, como um verdadeiro cavaleiro dos tempos modernos, num cintilante fato de treino. Ao contrário de Emily, a ideia de um dia se casar agrada a Petra. «Mas não vai ser um casamento normal», diz. «Hoje em dia até se podem fazer no molhe.» Desde aquele terrível dia em que a cruz caiu ao chão, denunciando a traição de Don Angelo, Emily não tornou a falar com Olimpia. Tem a certeza de que foi a sua antiga mulher a dias quem deixou a caveira à sua porta. Afinal de contas, ela tem um filho médico; facilmente poderia ter deitado a mão a uma das caveiras de uma faculdade de Medicina. Mas, apesar de tudo, pareceu-lhe que Olimpia merecia saber a verdade acerca de Don Angelo, que devia conhecer a razão por que ele achou, há tantos anos, que tinha de trair o pai dela. Emily acredita que talvez tenha sido por isso que Don Angelo lhe revelou toda a verdade – a ela, uma estrangeira que nada tinha a ver com o caso: para que ela pudesse garantir que a sua história fosse ouvida por aqueles que deviam ficar a conhecê-la. Por isso, a dada altura sentou-se e escreveu uma carta a Olimpia, explicando tudo o melhor que lhe era possível. A sua antiga mulher a dias nunca acusou a receção da carta, mas certo dia, ao chegar a casa, Emily encontrou um presente para Charlie nos degraus da entrada: um pião muito bonito, pintado à mão. «Para o Carlito», lia-se no cartão. «Foi do meu pai.» Por trás do olival, Charlie sobe a montanha. Disseram-lhe que aquilo é uma colina, mas ele sabe que é uma montanha, é uma das Montanhas da Lua, tão alta que quem chegar lá acima consegue ver a lua e as estrelas e o sol. Tão alta que, por vezes, fica totalmente tapada pelo nevoeiro e parece que se fundiu com as nuvens. É duro fazer a escalada ao sol, mas trata-se de uma expedição e ele está determinado a levá-la até ao fim. Ele e Edoardo são partigiani e vai ser ali que vão ficar de vigia. Os partigiani estiveram ali durante a guerra, e eram
muito valentes, e escondiam coisas e levavam mensagens e subiam colinas. O trisavô de Edoardo era um partigiano e chamava-se Carlo – o mesmo nome dele, Charlie, só que em italiano. Ao chegar lá acima, a vista tem quilómetros e quilómetros. Consegue ver a vila situada no topo de outra montanha. Aquilo é como estar num navio daqueles com velas muito altas. Um navio de pirata. Se não se tornar partigiano quando for grande, vai ser um pirata. Ou então um homem que desenterra coisas, como Raffaello. Raffaello diz que o Totti é melhor do que ele a fazer isso, mas Charlie acha que aquilo é só uma piada. Há muitas pedras ali no cimo da colina, muitas delas pequeninas e brilhantes, com arestas aguçadas. São de um tom rosado – uma cor de rapariga –, mas, ainda assim, engraçadas. Parecem um tesouro de piratas. Charlie decide apanhá-las todas e guardá-las numa caixa, que depois enterrará num lugar qualquer; a seguir vai marcar esse lugar num mapa, com um grande X, para mais tarde as pessoas saberem onde cavar. O mapa vai ser todo castanho, como aquele que Monica fez na escola; manchou-o todo com chá e depois escreveu lá com uma caneta vermelha para parecer que aquilo era sangue. Charlie senta-se e fica a brincar com as pedras durante algum tempo. E, por algum motivo, recorda aquele dia na praia de Brighton e a história que Siena lhe contou. «Era uma vez um rapazinho chamado Charlie (na versão dela também entrava Harry, mas ele não o quer na sua história). Um dia foi até à praia e encontrou uma pedra mágica. A princípio não sabia que era mágica, mas depois, quando a examinou à luz, a pedra começou a reluzir e a cintilar. O Charlie começou a esfregar a pedra, e então ouviu uma vozinha a dizer-lhe: Lança-me de volta ao mar e eu concedo-te três desejos… E o Charlie pediu os três desejos. Pediu muitos tesouros, um navio de pirata e uma trotinete igual à de Edoardo. Ou melhor, primeiro pediu mais três desejos, e depois então pediu os tesouros, o navio de pirata, a trotinete, um cão, um amigo chamado Edoardo, uma casa muito grande em Itália, com pedrinhas brilhantes no jardim. Um, dois, três, quatro, cinco… Quantos é que já tinha pedido? Por fim, pediu que todos fossem felizes e que vivessem felizes para sempre. Fim.» E Charlie começa a descer lentamente a montanha.
AGRADECIMENTOS
Q
uero agradecer ao gabinete de turismo de Badia Tedalda, especialmente ao Fulvio. Badia Tedalda existe, de facto, tal como o gabinete de turismo e a igreja de San Michele. Trata-se de uma vila bonita que vale muito a pena visitar. Já Monte Albano é ficcional. Estou particularmente grata ao Fulvio por me ter dado um livro intitulado Nonno, Nonna Raccontami, no qual as experiências dos habitantes da vila durante a guerra são narradas em detalhe. Obrigada à Roberta Battman por ter corrigido o meu italiano e à Patricia Tombolani por me ter aconselhado a respeito dos nomes. Devo acrescentar que Michael Bartnicki não tem qualquer semelhança com qualquer membro da família Bartnicki! Como sempre, obrigada à minha agente Tif Loenhis, à minha editora, Mary-Anne Harrington, e a todo o pessoal da Headline Review. Agradeço carinhosamente ao meu marido Andrew e aos nossos filhos, o Alexander e a Juliet. E devo um agradecimento especial ao Andrew, o meu arqueólogo favorito, pelo seu apoio constante.