Elizabeth adler viagem a capri pt

Page 1


Título: Viagem a Capri. Autor: Elizabeth Adler. Título original: Sailing to Capri. Dados da edição: Oficina do Livro, Alfragide, 2011. Género: romance policial. Digitalização: Dores Cunha. Correcção: Edith Suli. Estado da obra: corrigida. Numeração de página: rodapé.

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.


Contracapa: Todos estão convidados para bordo deste cruzeiro decadente pelo Mediterrâneo... onde nada é o que parece, ninguém diz a verdade e o homicídio paira nas mentes dos passageiros... "Um mistério que viaja em primeira classe. (fim da contracapa)

Para Ricardo - ele sabe porquê...


PARTE I O MISTÉRIO PRINCIPIA NO SOLAR DE SNEADLEY, NO YORKSHIRE, EM INGLATERRA Nenhum homem é suficientemente rico para comprar o seu passado. OSCAR WILDE Neva, grandes flocos brancos em forma de estrela que se colam ao meu cabelo ruivo como uma tiara de princesa, pelo espaço de um minuto, antes de se derreterem e me escorrerem em gotas geladas pela nuca. A minha mãe, muito preocupada com a conduta correcta de jovens senhoras, diria que a culpa era minha, que deveria ter usado um chapéu no funeral por respeito para com o falecido. Claro que tinha razão, mas como não possuo um chapéu apropriado para um funeral decidi passar sem ele. Assim, cá estou eu, no meio de um pequeno grupo de pessoas enlutadas junto à campa de Robert Waldo Hardwick, magnata moderno, criador e perdedor de várias fortunas e orgulhoso detentor de um título de cavaleiro, outorgado por sua majestade a rainha, que o transformou para toda a eternidade, presumo, em Sir Robert Hardwick. Encontramo-nos no cemitério da igreja gótica de pedra cinzenta da aldeia de Lower Sneadley, no Yorkshire, em Inglaterra. É uma tarde de Abril, está um frio glacial e o vento silva através dos Peninos, enregelando o sangue dos que, entre nós, ainda pertencem ao mundo dos vivos. Pelo menos acreditamos pertencer, porque, por esta altura, todas as sensações parecem entorpecidas. Até o cão de Bob, um pequeno e entroncado Jack Russell deitado a meu lado preso à trela, parece ter congelado na sua quietude. Nem sequer pestaneja, apenas fita o buraco na terra. Estremecendo, os meus pensamentos estão com ele e com as pobres irmãs Bronté, que viviam num presbitério gélido numa aldeia semelhante, a não muitos quilómetros daqui. Quando penso nelas em noites frias, à luz das velas, nas suas pobres e pequenas mãos gretadas protegidas por mitenes a passar para o papel as ideias que se transformaram nos seus


famosos romances, não posso deixar de admirar a estamina que as animava. Observo o meu pequeno grupo de colegas enlutados e sei que a maior parte deles se está a questionar sobre a minha presença, o que fará Daisy Keane, uma americana de trinta e nove anos, no funeral de um grande magnata do Yorkshire. Sinto os olhares curiosos que me lançam de soslaio, mas mantenho os olhos resolutamente fixos no caixão de Sir Robert, forrado a veludo, fingindo escutar os últimos pensamentos e orações do pastor. Porque, pergunto-me, não podia o pastor ter despachado isto dentro da sua igreja quase tão gélida como aqui? Não se aperceberá que cai um nevão primaveril e que estamos todos a morrer de frio lentamente? Sinto as lágrimas a deslizarem-me pelas faces. Tenho tanto frio que, egoisticamente, por um instante, esqueci a razão da minha presença neste cemitério. E não é seguramente por causa do dinheiro de Bob. Estou preparada para trabalhar e ganhar a vida e não tenho nenhuma necessidade de esmolas de ricos. E foi exactamente o que declarei a Robert Hardwick a primeira vez que o vi, embora nessa altura não correspondesse exactamente à verdade. Foi durante um cocktail, um desses eventos sociais em Londres, onde toda a gente se conhecia. Excepto eu. Não conhecia uma única alminha. E, além disso, olhando em volta, nem sequer tinha a certeza de querer conhecêlos. Os homens vestiam fatos de Savile Row, usavam os cabelos penteados suavemente para trás ao jeito dos rapazes ingleses de boas famílias, eram ricos e falavam de negócios para poderem ficar ainda mais ricos. As mulheres eram mais velhas e tentavam parecer mais novas, vestidas de forma demasiado sexy com modelos Cavalli e Versace, muito ocupadas a mexericar sobre outras mulheres ausentes. Umas bruxas, pensei, surripiando um segundo copo de horrível vinho branco e um canapé estranho que consistia numa minúscula vagem de ervilha recheada com o que parecia ser carne de caranguejo castanha. Embora cheia de fome, farejei-o desconfiada. - É caril - disse uma voz atrás do meu ombro esquerdo. - E não o recomendo.


Virei-me demasiado depressa e entornei vinho por cima de um dos homens mais altos e mais feios que já encontrara. Limpei em vão o casaco escuro de risquinhas com o meu guardanapo de cocktail. - Peço imensa desculpa - lamentei. - Assustei-a, a culpa foi minha. - Como sabe que não é bom? - perguntei. Lançou-me um desses olhares de "ora vamos lá, rapariga". - Já os provei, claro - retorquiu numa voz forte que exprimia a sua exasperação face a uma pergunta tão tola. - Muito estúpido da minha parte - admiti. - Atribua-o à companhia. Olhe para eles, todos a falarem sobre dinheiro e sexo, quem o tem e quem anda a desfrutá-lo. Os olhos do homem, de um azul pálido sob sobrancelhas grisalhas, apresentavam um brilho duro. Calculei que não apreciara os meus comentários impertinentes de rapariga americana, ou talvez não gostasse de ruivas. - E então porque não está a falar de dinheiro? Encolhi os ombros. - Tenho o suficiente. Não muito, mas não sinto necessidade de mais. Mentia, claro. Possuía exactamente quinhentos dólares e nenhum emprego. E era por essa razão que estava nesta festa, à caça de alguma perspectiva, embora fosse difícil imaginar o que uma anterior dona de casa suburbana americana, divorciada e com um diploma universitário, encontraria aqui, mesmo para uma optimista como eu. Fitámo-nos de novo em silêncio. - Muito bem - continuou ele -, então porque não está a falar de sexo Lancei-lhe um olhar frio. - Mesma resposta. Sorriu com ironia, de lábios cerrados. - Nesse caso, está a detestar esta "função" tanto quanto eu? Tinha um sotaque que não conseguia identificar, vagamente Beatles, mas não propriamente, com os "a" menos pronunciados e uma entoação mais áspera. - Não me diga que reparou? - Então porque está aqui exactamente? Encolhi os ombros.


- Um amigo ofereceu-me um convite. Não podia vir. Sou editora de uma página de crónicas da sociedade - menti com desembaraço. - Para a revista americana People Like Us. Conhece? - Não, graças a Deus. Sorri, adivinhando que fora vítima de colunistas de fofocas demasiadas vezes para seu gosto. No entanto, não conseguia classificá-lo. Estava aqui em território novo, não conhecia ainda as minudências da sociedade britânica, mas este tipo era rude e directo, do género implacável. - Está no sítio errado - declarou com firmeza com o seu sotaque estranho. - As pessoas aqui estão-se borrifando para as revistas americanas. Vivem no seu pequeno mundo fechado. Para elas, tudo o resto é de segunda classe. Aquilo soava-me muito ao rapaz impedido de entrar no grupo mais popular da escola. Fitei-o com curiosidade. Tinha talvez mais de um metro e noventa, era um homem muito alto, robusto mas não balofo, nem com barriga, e vestia um fato bem talhado e muito amarrotado. Teria sessenta e poucos anos, calculei, bem barbeado, uma testa forte cheia de sulcos, nariz largo, lábios finos, uma pele rosada e o pior corte de cabelo que eu já vira. Era uma trunfa grisalha, emaranhada e espessa. Eu tinha a certeza que nenhum barbeiro se aproximava dela há anos e estava disposta a apostar que era ele próprio que cortava o cabelo. Fez-me lembrar o ogre dos feijoeiros mágicos do João. A mão sólida agarrava um copo de vinho e os olhos pálidos e glaciais interiorizavam-me, desde o meu cabelo ruivo comprido e rosto sardento até aos sapatos de salto muito alto, bicudos e com presilha no tornozelo. A avaliar o meu valor intrínseco, pensei, irritada. - Chamo-me Bob Hardwick. Fez uma pausa, como se à espera da minha reacção. Apertei-lhe a mão, mas mantive a calma. Claro que sabia quem era: o homem que subira a pulso na vida, de rapaz pobre, descarado e pouco culto do Yorkshire, a famoso magnata internacional; mas não o dei a entender. - O que me diz a sairmos daqui? Pago-lhe o jantar - anunciou abruptamente.


Se pretendia o que eu pensava que pretendia, estava muito enganado a meu respeito. Atirei-lhe aquele olhar céptico por baixo das pestanas que me habituara a lançar aos homens naquele último ano. - Não preciso que ninguém me pague o jantar - retorqui. - Óptimo. Nesse caso, paga você. Vamos. Pegou-me no cotovelo e conduziu-me para fora da sala antes de eu ter sequer tempo de reagir. Um Bentley cinzento-metalizado estava estacionado mesmo em frente. Para minha surpresa, não havia nenhum motorista. Ao contrário, estava um cão sentado no assento do condutor, um rechonchudo Jack Russell, branco com uma mancha castanha por cima de um olho e um queixo com bigodes. - Este é o Rats - disse Sir Robert, empurrando o cão para o lado. Rats veio equilibrar-se no meu colo, embora não estivesse obviamente à procura de afecto. Ignorou-me, fitando com atenção os carros que passavam como se fossem coelhos que estivesse ansioso por caçar. Sir Robert guiava demasiado depressa, embora com perícia. Não me dirigiu uma única palavra durante o percurso, apesar de ter muito para dizer, na realidade rosnar seria uma palavra melhor, ao complicado tráfego londrino e aos seus condutores, nenhum dos quais, segundo a sua opinião, devia ter sido autorizado a andar na estrada. - Nesse caso teria a estrada só para si - comentei, farta das suas reclamações. - E seria bem melhor - retorquiu desenvolto. Rats oscilou no meu joelho quando Sir Robert virou, muito acelerado, para uma rua sossegada de Mayfair. Parou abruptamente em frente de uma casa de tijolos vermelhos ornamentada com flores, há muitos anos a morada do famoso restaurante Lê Gavroche. Movendo-se com rapidez para um homem tão alto, abriu a porta e deu-me a mão para me puxar para fora antes de eu ter tempo sequer para pestanejar. Pensei que para um ogre se encontrava em muito boa forma. Eu sabia que o restaurante se classificava na categoria de muito chique, o tipo de lugar caro onde se comemoram aniversários de casamento, encontros de amantes e grandes negócios. Inspeccionei a minha vestimenta. Era uma noite fresca de Outono e eu envergava uma saia


preta de pele, que tinha uns seis anos, e uma blusa de lã com botões, de tecido leopardo, polvilhada de lantejoulas cor de bronze. Prendera a gola larga de imitação de pele com um alfinete de peito enorme cor de limão em forma de estrela e usava brincos de vidro pendentes, cor de âmbar. O meu pesado cabelo ruivo-escuro estava penteado para cima, dos lados, ao estilo dos anos quarenta, caindo a direito sobre os ombros. E nos pés tinha o par de elegantes sapatos muito altos de camurça preta mais sexy alguma vez inventados pelo homem para tortura da mulher, apertados com tiras largas de cetim mesmo acima dos tornozelos. Muito sadomasoquista, pensara quando avistara as pontas muito bicudas no Bergdorf, em promoção, de um preço astronómico por tuta-e-meia, obviamente porque ninguém no seu perfeito juízo quereria usá-los. Excepto eu, muito saloia, acabada de chegar dos subúrbios e de um mau casamento. E, de qualquer modo, o preço era bom. Vendo bem as coisas, eu nem estava muito mal para um restaurante caro com estrelas Michelin, embora talvez a blusa de lã fosse um pouco "vistosa". Mas, por outro lado, estava a fugir ao molde suburbano e à procura de amor em todos os lugares errados. E, além disso, como é que alguma vez arranjaria um emprego se não atraísse as atenções? Com a mão de Sir Robert solidamente por baixo do cotovelo, subi os degraus da entrada, passei as flores e desemboquei num pequeno vestíbulo acolhedor. Sir Robert não esperou por ninguém, nem sequer pelo chefe de mesa, que se precipitou atrás de nós quando descemos uma escada minúscula e avançámos pela sala de jantar apinhada. De novo antes que alguém nos pudesse alcançar, Bob conduziu-me a uma mesa de canto. A sala era pequena, íntima, tipo clube, iluminada por candeeiros com abat-jours de seda. As paredes de um vermelho-escuro estavam salpicadas de quadros encantadores e havia flores por todo o lado. O ambiente era chique e julguei que para os comensais suficientemente ricos para poderem pagar este tipo de mundo de elegante casa de campo deveria representar um pouco a sensação de regressar a casa. Adequavase na perfeição a Sir Robert Hardwick. Apostava que era um homem à moda antiga. A decoração fria e a cozinha de fusão do último restaurante da moda não eram para ele. Trouxera-me a um lugar onde era evidente


que o conheciam bem e o tratavam como um rei. Ou, pelo menos, como um homem poderoso com dinheiro. - Sir Robert, boa noite e bem-vindo. - O chefe de mesa alcançara-nos por fim. - Obrigado. - Obviamente Sir RoHert não era pessoa para conversas de circunstância. - O costume por favor. - Ergueu uma sobrancelha inquiridora na minha direcção. Eu não costumava beber, mas era manifesto que se esperava que pedisse qualquer coisa. Recordei todas aquelas longas noites solitárias em frente da televisão com apenas O Sexo e a Cidade e Sarah Jessica Parker por companhia. - Um cosmopolitan - disse. Nunca provara nenhum, mas tinha uma bonita cor rosada e Sarah Jessica estava sempre a bebê-los. - Faça-o com vodea Grey Goose - ordenou Sir Robert. Virou-se para mim. Claro que são os franceses que fazem a melhor vodca. - Claro - concordei, como se soubesse tudo sobre esse tipo de coisa. Os empregados giravam à nossa volta. Guardanapos brancos engomados foram dispostos nos nossos colos; ementas apresentadas com um floreado; canapés, ou amuse-bouches, como Sir Robert lhes chamou, apareceram. Chegou uma garrafa de água. Li o rótulo. Era francesa. Parecia que Sir Robert era um francófilo: restaurante francês, vodca francesa, água francesa. Só lhe faltava uma mulher francesa. Observei-o, espantada, a demolir o seu amuse-bouche de uma só dentada e depois a fazer sinal a pedir mais. - Tarte de cogumelos selvagens - explicou-me satisfeito. - Bate aquelas malditas vagens de ervilha com carne de caranguejo enlatada e molho de caril de pacote que estavam a servir na festa. É sempre a mesma coisa nesses eventos: vinho branco barato e a irmã de alguém que quer iniciarse no catering com algumas comidas mal amanhadas feitas à pressa. Caramba, podíamos arranjar uma intoxicação alimentar com aquela coisa. Aposto que vai haver uma quantidade de pessoas maldispostas esta noite! E bem feito - acrescentou, desdobrando a ementa e estudando o seu conteúdo. - Aqui isso nunca acontecerá. Venho a este sítio há vinte anos. Não há aqui falhas, rapariga, por isso escolha o que quiser.


Como se em resposta o meu estômago roncou alto. Desferi um olhar preocupado a Sir Robert por baixo das pestanas, na esperança de que não tivesse ouvido. Comera uma taça de cereais ao pequeno-almoço e isso fora há doze horas. Se não o tivesse encontrado estaria a dirigir-me para casa, se é que o meu lúgubre estúdio em Bayswater podia ser chamado casa, para uma segunda taça ao jantar. Estava a atravessar um período de verdadeira penúria pela primeira vez na vida e não era nada divertido. Quando o meu marido fugiu com outra mulher levando com ele todos os bens do nosso casamento de dez anos, fui, de súbito, confrontada com a pobreza. Sendo advogado, pusera inteligentemente a nossa casa e os nossos pequenos investimentos em seu nome, deixando-me sozinha com as bancadas de granito e os chuveiros luxuosos e um letreiro de "Vende-se" numa casa que já não me pertencia. Mais a lembrança de uma louraça gira de vinte anos sentada a seu lado no "nosso" carro quando arrancou pela última vez. E fora por isso que viera para Londres. Fugira era uma palavra que se aproximava mais da verdade. Pensara que a distância atenuaria as más recordações, mas até agora a minha teoria não estava a funcionar. O sofrimento do passado agigantava-se como a pobreza no meu futuro sem homem. O empregado recitava os especiais, mas Sir Robert fez-lhe sinal para parar. - Esta rapariga está com fome - disse, lançando-me um olhar penetrante. Vai comer a sopa de lagosta para começar e depois o vosso frango francês, assado com legumes. E traga muito pão com manteiga. - O poulet de Bresse, com certeza, senhor. O empregado apontou o pedido, aparentemente indiferente ao facto de Sir Robert ter arbitrariamente encomendado por mim. Na realidade eu também estava. Naquele preciso momento, frango assado parecia-se com algum tipo de sétimo céu. Para ele, Sir Robert pediu o confit de pato envolto em massa e depois rosbife. Ah, então era um homem de carne e batatas, pensei, sorrindo. - De que se está a rir? - inquiriu ele. - Do prazer de aqui estar - menti com rapidez porque ainda não tinha muita certeza sobre o factor prazer.


- Comigo, hum? - Ergueu uma sobrancelha farta com cepticismo. Virei-me e fitei directamente os seus duros olhos azuis. Poderia estar a pôr em risco o meu frango assado ao fazer-lhe esta pergunta, mas precisava de saber: - Porque me escolheu na festa? Recostou-se para trás, beberricando a sua vodca francesa simples com gelo, a pensar. Depois disse: -Tinha cabelo ruivo. Tinha boas pernas. Estava sozinha. - Bebeu outro pequeno gole e pensou mais um pouco. - E estava com medo. Chocada, comecei a protestar, mas ele ignorou-me. - Não se incomode a perguntar-me como é que sei. Sabe que é verdade. Não consegui responder. Fitámo-nos em silêncio durante um momento. Bebi um pouco do meu cosmopolitan. Gostei. - Afinal, quantos anos tem? - perguntou. - Tenho trinta. Fiz figas com a mentira, embora não percebesse muito bem porque mentira. Estava a tornar-se uma acção instintiva, como se um par de anos aqui e ali fizesse realmente alguma diferença neste mundo de empregos destinados à juventude. Tinha, na verdade, trinta e quatro anos na altura e ia rapidamente a caminho dos trinta e cinco. - Está a mentir. Senti-me corar e ripostei: - Mas, afinal, o que é? Vidente? Apoiou os cotovelos na mesa, as mãos juntas, um sorriso superior no rosto. - Digamos apenas que sou um bom avaliador de carácter. Espalhei manteiga num pedaço de pão, energicamente, sem dizer nada. A minha sopa de lagosta e o conftt de pato dele chegaram. Sir Robert pediu uma garrafa de bordéus branco ao escanção. A sopa era deliciosa. - Então como se chama? - perguntou por fim, pousando a faca e o garfo. Fitei-o de boca aberta, espantada. Estava a jantar com um homem que nem sequer sabia como me chamava! - Daisy Keane - respondi com rapidez. - Daisy? Que tipo de nome é esse para infligir a uma miúda? - A minha mãe tinha uma espécie de mania da jardinagem. Deu às três filhas nomes de flores do campo: Daisy, Lavender e Violet. Era uma questão de saudosismo porque a porta da nossa casa abria-se


directamente para o passeio de uma rua de Chicago. Não havia nenhum prado à vista. O escanção serviu um pouco de vinho a Sir Robert. Ele provou-o e aprovou-o. O empregado encheu os copos. - Experimente. Foi o que fiz. Era delicioso. - Uma espécie de relva acabada de cortar num dia de Verão observei. - Para condizer com o seu nome, não diria? Sorriu-me e o rosto largo e achatado iluminou-se com uma animação que não lhe detectara antes. - Sei que devíamos beber vinho tinto com carne de vaca - explicou -, mas acontece que este vinho é um dos meus favoritos. E, além disso, vai comer frango. Por esta altura eu estava quase a ronronar de prazer. - E o melhor frango que já provei - comentei, mas Sir Robert atacava o seu rosbife. Não há outra maneira de descrever a forma como comia. Era como um homem a contas com a sua última refeição, apostado em saborear todos os pedacinhos. Nas suas mãos enormes os talheres pareciam mais pequenos do que o normal e o contentamento suavizara-lhe o semblante carregado do rosto. Havia aqui mais do que uma ténue semelhança com o Shrek, pensei. - Então o que está a fazer em Londres? - perguntou de repente. - Já lhe disse, trabalho para uma revista americana. Oh, meu Deus, as mentiras surgiam com tanta facilidade que era assustador. Até agora fora honesta durante toda a minha vida. "Pois, e vê só onde isso te levou", sussurrou uma pequena voz fria dentro da minha cabeça. - Ah! Não é mais colunista social do que eu. São uma raça à parte, reconhecíveis a cinquenta passos em qualquer festa. E nenhuma delas alguma vez se pareceu consigo. Enfureci-me. Pousei com cuidado a minha faca e o meu garfo no prato. - Oh? E com que é que me pareço então? - Preparei-me mentalmente para o ataque.


- Com uma mulher que se perdeu algures a meio do caminho. Apanhoume de surpresa e abalou-me por completo. Estaria o meu passado escrito de forma tão clara no meu rosto, como cicatrizes após um acidente grave? - Não se preocupe - disse numa voz mais suave. - Também já passei por isso, já me encontrei no fundo do turbilhão emocional. Oh, bem sei que, olhando para mim e lendo a meu respeito nos jornais, nunca pensaria que este velho canalha feio, impertinente e vulgar tivesse sentimentos. Mas... sou um homem... Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer a este perfeito desconhecido. -Bem? Estava a olhar para mim, sobrancelhas erguidas, à espera de uma resposta. Lancei uma olhadela aos meus dedos, enroscados como cabos de alta tensão. Aqui estava a minha oportunidade para contar a minha história, mas não conseguia. Era demasiado humilhante. Abanei a cabeça. Não podia confessar a minha situação difícil a este homem. Simplesmente não podia. Ele chamou o empregado e pediu o café. A garrafa de vinho, apenas meio bebida, repousava desnecessária, no seu banho de gelo num balde prateado. O fulgor desaparecera da noite. Recordei-me de súbito do cão. Preocupada, perguntei se Rats não precisaria de ir dar um passeio. - Eles terão tratado disso. Mas obrigado por pensar nele. Encolhi os ombros. Pelo menos entendia o seu amor pelo cão. Fez sinal ao empregado a pedir a conta. Quando esta chegou, empurrou-a por cima da mesa na minha direcção. - Um acordo é um acordo, certo? Oh, céus, tinha-me esquecido que ele dissera que seria eu a pagar. Estava a viver de flocos de cereais e sanduíches de queijo há duas semanas. Se pagasse, duvidava que conseguisse comer mais alguma coisa. Fite entorpecida, os números de cortar a respiração, com o orgulho em alta, pesquei o meu último dinheiro da carteira e contei a soma correcta. - Não pode esquecer a gorjeta - observou ele com um pequeno sorriso paternalista. - Pessoalmente, aqui deixo sempre vinte e cinco por cento, cria boas relações com o pessoal.


- E, pessoalmente, nunca deixo mais do que vinte - retorqui com brusquidão. O homem estava a tentar controlar-me, divertia-se com o meu desconforto face à enormidade da conta. Pegou no dinheiro, contou-o. - Não parece estar a apreciar cumprir o seu acordo. Porque não? Esteve outra vez a mentir? - Nunca minto - repliquei formalista. Ele riu-se, uma gargalhada alta e áspera que fez virar cabeças na nossa direcção. - Lá está você a fazer a mesma coisa outra vez. Guardou o dinheiro no bolso, enfiou um cartão de crédito na bolsa de pele que continha a conta e entregou-a ao empregado. - De facto, parece uma mulher a precisar que eu lhe arranje um emprego. Fulminei-o com os olhos. - O que se passa? - perguntou, ainda a sorrir. - Está com medo de estragar as suas mãos macias a matar-se a trabalhar? com medo de as sujar? com medo de sobrecarregar o seu pobre e pequeno cérebro? Afinal de contas, qual é a sua verdadeira história? Durante um longo momento, fitei-o como que paralisada; depois, fui-me de súbito abaixo com a sua investida. Pedi desculpa por mentir. Contei-lhe a minha história. Contei-lhe da minha mãe, uma irlandesa da pequena aristocracia. - Acredite ou não, sou realmente uma senhora nobre. Bem, quero dizer, a minha mãe era. Casou com um lorde irlandês e tornou-se Lady Keane e pobre. Ficou ainda mais pobre quando ele morreu e então emigrou para os Estados Unidos, para uma grande cidade, Chicago, onde tinha parentes. Os irlandeses estão por todo o lado nos Estados Unidos, sabe. Bem, vivíamos num pequeno apartamento e ela arranjou um emprego na restauração. - Era chef. - Na realidade, empregada de mesa. Nunca falou a ninguém do seu título nobre; era uma mulher tão modesta que não teria sabido como o usar para melhorar de vida. Lá sobrevivemos de algum modo, estudámos, crescemos, casámos. - E divorciaram-se.


- Só eu. Lavender ainda está casada, tem três filhos. Vi é solteira, trabalha no canal National Geographic. Está sempre em sítios como Bornéu ou Mato Grosso. - Os nossos olhares cruzaram-se. - E já sabe tudo sobre mim. - Tudo propriamente não. As suas sobrancelhas fartas ergueram-se de interesse e, de súbito, as recordações que eu mantivera deliberadamente escondidas nos recessos mais escuros da minha mente transbordaram, provocando-me um sofrimento relembrado. E contei tudo a Bob Hardwick. Como chorara lágrimas amargas quando o meu marido me deixara, levando com ele tudo o que possuíamos, afastando-se no seu carro com uma jovem esplendorosa pelo braço para iniciar uma nova vida. Como gritara e gemera. Como dissera a mim mesma, sem parar, que a culpa devia ser minha. Não era suficientemente atraente, não era suficientemente sexy, não era uma companhia divertida. Não era uma boa esposa. Por outras palavras, tinha a certeza que a culpa devia ser minha. Ainda agora, não sabia o que fizera de errado e estava demasiado ferida para considerar sequer se seria ele o culpado de todas estas coisas. Contei a Bob que, quando por fim me recompusera um pouco, rechaçara essas más recordações. Escondi-me delas e do meu passado, decidida a descobrir um novo eu, uma mulher que já não fosse vulnerável a homens predatórios e envolvera o meu coração romântico numa carapaça que nunca mais se partisse. - A partir de agora, assumirei o papel do homem - disse a Bob Hardwick, que beberricava o seu vinho, cotovelos em cima da mesa, os páiidos olhos azuis fixos, concentrados, em mim. - E é por isso que estou aqui em Londres - concluí com um encolher de ombros final. - Agora já sabe tudo. Bob manteve-se em silêncio. Envergonhada, agarrei no meu copo e bebi um gole de vinho, desejando não ter desnudado a minha alma a este completo desconhecido. - Acabou - declarou ele por fim. - O tipo era um canalha. Nunca devia ter confiado nele, mas as mulheres são umas trouxas quando vêem uma bela embalagem. E bom sexo. - Nem sequer isso - deixei escapar.


Depois corei, desejando mais uma vez não ter dito aquilo. Fora sempre assim; as palavras saíam simplesmente, antes de ter tempo de as controlar. Além disso, nunca admitira aquilo antes, nem sequer a mim mesma, nem à minha melhor amiga, Bordelaise. E agora Bob ria-se de mim. - Demasiado bem-educada para apreciá-lo, hum? Sabia que Bob estava a dizer aquilo como piada para ver se ultrapassávamos o momento sombrio que eu infligira à nossa noite, mas agora que pensava naquilo talvez ele tivesse razão. Talvez nunca me tivesse deixado ir o suficiente, talvez nunca me tivesse dissolvido na paixão do momento, nunca tivesse sentido o que as revistas femininas diziam que devia sentir. - Talvez tenha razão - retorqui, finalmente honesta. - Assim é snobe então, apesar das aparências em contrário. Indignei-me de novo. - Tem uma certa maneira de implicar com as pessoas, não tem? - Funciona sempre. - Sorriu triunfante. - De qualquer modo, agora vem trabalhar para mim. Certo? - A fazer exactamente o quê? - Estava desconfiada. No final de contas, tratava-se de um homem a falar com uma mulher. Ele encolheu os ombros. - A minha assistente pessoal deixou-me para ir tratar da mãe doente. Tenho uma casa em Nova Iorque, bem como uma penthouse aqui, em Park Lane, e uma casa em Capri. Depois há o solar de Sneadley, no Yorkshire. Dão todas muito trabalho. Será o meu mordomo, se quiser. Bem como minha assistente pessoal, secretária social, relações-públicas e um sexta-feira rapariga para todo o serviço... qualquer papel que precisar que desempenhe no dia em questão. Vai descobrir que sou um capataz duro. É difícil trabalhar para mim, ou assim me dizem. - Encolheu os ombros largos, exasperado. - E só porque gosto das coisas bem feitas e na maior parte das vezes não o são, a não ser que seja eu próprio a fazê-las. Mas pagar-lhe-ei mais do que alguma vez pensou ganhar. Portanto, acha que consegue estar à altura do emprego? Era de cortar a respiração. Este homem era uma força da natureza, maior do que a vida, um Shrek com miolos. Estava a lançar-me um desafio e eu


estava a sentir-me seduzida pela oferta. Claro que era uma tábua de salvação, mas no fundo da minha mente ainda estava desconfiada. Ficou, muito calmo, a ver-me pensar. - Escute, querida - disse com suavidade. - Há muito tempo fui jovem como você. Estava falido. E estava apaixonado. Agora não sou nenhuma dessas coisas, mas por vezes pergunto-me, se tivesse essa oportunidade, qual das três gostaria de recuperar? Seria a juventude? Para poder regozijar-me outra vez com a força pura do meu corpo, o tipo de sensação que os jovens aceitam como facto adquirido? Ou talvez o poder? Para ter a hipótese de me desenterrar daquele buraco fundo da pobreza, sentir o prazer de alcançar os meus êxitos todos de novo? Ou então o amor? Ah, o amor! - Os olhos fecharam-se e gemeu baixinho, reflectindo naquilo. Essa emoção por excelência. Não, isso nunca. O amor é demasiado doloroso. Isso acabou tudo. Nada mais me resta senão o trabalho duro. E depois mais trabalho duro. E a única coisa que me dá satisfação. Isso e o amor de um bom cão. Amoleci, ouvindo-o inesperadamente revelar-me os segredos da sua alma, a mim uma perfeita desconhecida. Tal como eu, estava sozinho, embora não pelas mesmas razões. Estava sozinho por sua própria escolha. Então ele disse: - Claro que teria de vir viver comigo. Devia ter percebido que era demasiado bom para ser verdade. Lancei-lhe de novo aquele olhar céptico de soslaio, sobressaltando-me quando ele bateu com o copo com tanta força que o vinho entornou para cima da toalha. Um empregado acorreu, mas ele fez-lhe sinal para se afastar. - Escute-me, rapariga - disse Sir Robert com uma voz baixa, rouca e zangada. - E nunca se esqueça disto. Sou um homem rico. As mulheres perseguem-me. Belas mulheres da sociedade, jovens actrizes, modelos; perseguem-me e detecto-lhes a cobiça pelo meu dinheiro no olhar. Mulheres que nunca conheci telefonam-me a dizer-me quanto me admiram e a convidar-me para jantar. Entenda isto, sua tola ruiva sardenta, posso ter qualquer mulher que deseje. - Espetou-me um dedo no peito forrado com a imitação de pele. - E não a quero a si. O meu alfinete de peito em forma de estrela abriu-se com aquela investida picando-o. Inspeccionou o sangue que lhe gotejava do dedo.


- Bem - exclamou com um sorriso -, começámos bem, não começámos? E foi esse o início dos meus cinco anos de emprego e da minha amizade com Sir Robert Waldo Hardwick. Muito simplesmente o homem mais autoritário, mais exigente, mais exasperante, que já conheci. Bem como o mais bondoso, o mais compreensivo e o mais terno. Como é que ele conseguia ser todas essas coisas ao mesmo tempo? Esse era o grande mistério de Bob Hardwick. E foi também sobre esses alicerces que se construiu a nossa relação. Fúrias, birras, lágrimas - minhas, claro. Diálogos glaciais, calma indiferença - dele. Mas o que foi nosso também, e que muito estimávamos, foi o amor. Éramos semelhantes. Éramos uma equipa. Éramos amigos. E, caso estejam a pensar nisso, não, nunca foi meu amante. Naquela noite no Lê Gavroche, Bob Hardwick aceitou o meu dinheiro porque, contou-me mais tarde, queria ver se eu era honesta. Claro que adivinhara que eu estava falida e a fingir, contudo, cumprira a minha palavra. Ou antes a palavra dele. Não teve importância porque ele era igualmente honesto. E devolveu-me o dinheiro no carro, a caminho de casa. Deu-me também, de imediato, um adiantamento sobre o meu salário muito generoso e aconselhou-me a ir a um bom cabeleireiro cortar o cabelo e comprar algumas roupas decentes. Mudei-me para a sua vida e para o seu mundo e ele ensinou-me tudo o que pôde até eu me tornar indispensável ou, pelo menos, ele deixou-me acreditar que era, mas no íntimo eu sabia que era verdade. Bob salvou-me. Deu-me uma segunda oportunidade e eu amava-o por isso. E é por isso que estou aqui no seu funeral, no meio desta neve, com as lágrimas a rolarem-me pelas faces geladas, a despedir-me dele porque era o meu melhor amigo e sentirei saudades suas até ao fim dos meus dias. Ao mesmo tempo, pergunto-me por que razão as outras pessoas enlutadas de rostos enregelados - que incluem uma bela ex-mulher francesa e uma deslumbrante ex-amante italiana, bem como vários tipos inexpressivos da cidade, do mundo dos negócios de Bob - estão aqui também, porque não se poderia dizer que nenhuma delas fosse sua amiga.


Havia, no cemitério, outro homem completamente diferente dos demais; alto e esguio, com um sobretudo preto comprido, a neve a instalar-se na sua cabeça escura com um cabelo muito curto. Encontrava-se sozinho atrás do pequeno grupo de pessoas enlutadas. Os olhos escuros semicerrados, sob sobrancelhas pretas severas, cruzaram-se com os meus por cima das cabeças e acenou-me uma saudação. Acenei em resposta, cumprimentando-o, embora, na verdade, não tivesse a mínima ideia de quem era. Chegara ao fim. Terminara. As pessoas da cidade estavam a virar costas, fugindo do vento gelado para o conforto dos seus carros, dirigindo-se para a estação da vila a quinze quilómetros e para o comboio rápido para Londres. Um grupo de habitantes da aldeia ainda se congregava debaixo dos seus guarda-chuvas. Alguns trabalhavam no solar: o jardineiro, a governanta, as mulheres-a-dias. Depois havia Ginny Bunn, a empregada do pub Rams Head, vestida de preto, com o chapéu também preto de aba larga que costumava usar na festa anual nos jardins do solar. E Reg Blunt, o dono ao pub, quadrado e entroncado, e bom amigo de Bob. Blunt medira cervejas com Bob muitas noites de sábado, com Bob sentado no seu banco duro de madeira favorito, perto da lareira. Estas pessoas da região conheciam-no, consideravam-no um dos seus e vinham agora oferecer-me as suas mãos e a sua compaixão, algumas limpando uma lágrima. - Era um homem realmente bom e um bom amigo - disse Ginny, engasgando-se -, apesar do que as outras pessoas possam dizer. Assenti, desejando muito conseguir sorrir ou encontrar as palavras certas, mas não havia nenhuma. - O Senhor disse "Abençoados os mansos" - observou Blunt. Mas, se quer saber, são os homens fortes como Sir Robert que são a nossa bênção. Vamos sentir muita falta dele por aqui. Pois, vamos sentir na realidade a falta daquele homem. E, para minha surpresa, pegou na minha mão e levou-a aos lábios frios. - Cuide de si, Daisy. E recorde-se que toda a gente aqui em Sneadley olhará por si. Comovida, vi-o afastar-se. Em apenas cinco anos tornara-me parte desta aldeia, um membro de uma pequena comunidade onde as pessoas ainda


"olhavam" umas pelas outras. Reg Blunt estava a dizer-me que, se eu precisasse de ajuda, estariam ali para isso e senti-me grata. Estava de novo sozinha num mundo frio e cheio de neve, não protegida por Bob Hardwick. E também, percebi, de novo desempregada, embora desta vez tivesse pelo menos uma conta bancária que ascendia a muito mais do que os quinhentos dólares que tinha na carteira quando conhecera Bob. Rats ainda fitava o buraco escuro onde, de algum modo, sabia que jazia o seu dono. - Vamos, rapaz - disse, puxando-lhe a trela. Ele não se mexeu. Rats, vem lá, querido. Mas ele continuava deitado na neve. Inclinei-me para o agarrar, mas colou-se à terra gelada. Os habitantes da aldeia tinham partido e eu via as outras pessoas a entrarem nos seus carros. Nem sequer olharam para trás. Ninguém queria saber. Era apenas o cão velho de Hardwick. Lágrimas amargas escorreram-me pelas faces quando tentei passar as mãos por baixo da barriga de Rats, mas ele agarrava-se como uma lapa a uma rocha. - Deixe-me ajudá-la. Ergui os olhos marejados de lágrimas. Era o desconhecido. - Os animais sabem, de alguma maneira - explicou em voz baixa. - Não quer deixar o dono. - Nem eu - retorqui, antes de poder controlar-me. Os olhos escuros do desconhecido cruzaram-se com os meus, um olhar penetrante e compassivo. A seguir, virou-se para o cão, passando-lhe a mão ao longo do pêlo branco e áspero do lombo. - Vamos lá, rapaz - disse com suavidade. - Está na hora de ir embora. Agora vai ficar tudo bem. O cão ergueu a cabeça para o encarar durante um segundo; depois pôs de novo o focinho com firmeza entre as patas e soltou um suspiro que lhe abanou o corpo entroncado. - Ora escuta cá, camarada - exclamou o desconhecido em voz firme -, tens de cuidar da senhora Keane, portanto, deixa-te disso. Vamos, está na hora de ir embora. Fosse o tom pragmático do desconhecido, fosse a menção do meu nome, ou simplesmente o jeito que ele tinha para os cães, alguma coisa fez Rats


levantar-se. Espirrou alto e, a seguir, abanou-se todo, salpicando-nos aos dois de lama; de súbito estávamos a rir-nos. - Assim é melhor - comentou o desconhecido, ainda a sorrir. Agora vou tirar-vos a ambos daqui deste frio. Com a sua mão no meu cotovelo e com Rats a arrastar-se atrás na sua trela, deixámos Bob Hardwick na sua última morada. Descemos o caminho escorregadio do cemitério onde as pegadas da gente da cidade já tinham sido obliteradas pela neve que caía, intensa, e passámos o portão com o alpendre que, no Verão, estaria coberto de glicínias roxas. A rua da aldeia encontrava-se vazia, à excepção do meu Mini Cooper vermelho e de um elegante Jaguar preto, ambos com uma camada de neve por cima. Olhei pela primeira vez, como deve ser, para o desconhecido. Tinha quarenta e poucos anos e era muito alto, cerca de um metro e noventa, tinha ombros largos, um sobretudo preto folgado e comprido abotoado até ao pescoço e botas pretas. O rosto magro era do género que falava de experiências, e não todas boas, todo ângulos e rectas, com um toque azulado de princípio de barba. O nariz era ligeiramente adunco e os estreitos olhos cinzentos fitavam-me por baixo de sobrancelhas pretas direitas. Era mais ou menos atraente, de uma forma excêntrica, um pouco sinistra até, com sulcos na testa e rugas que lhe irradiavam dos olhos; o cabelo estava cortado quase rente ao crânio, deixando apenas uma névoa escura na cabeça bem modelada. - Não sei quem é, mas agradeço-lhe - declarei. - Mas eu sei quem você é. Bob contou-me tudo a seu respeito. Fiquei espantada. Pensava conhecer todas as relações profissionais de Bob e os seus conhecidos a nível social. - É Daisy Keane, colaboradora, directora social, confidente e boa amiga. Fez-me uma ligeira vénia. - E eu sou Harry Montana. Apertei-lhe a mão. Só mais tarde percebi que, embora me tivesse dito como se chamava, não me dissera quem era. - Ouça - retorqui, sacudindo os flocos de neve do cabelo -, deve estar com tanto frio como eu. Não vai haver nenhuma recepção após o funeral. Bob disse que nunca quereria nada do género, mas porque não vem comigo


até ao solar? Deixe-me, pelo menos, oferecer-lhe um café quente antes de voltar para... - Não sabia para onde é que ia e ele não me esclareceu. - Obrigado, gostaria muito - foi tudo o que disse. - Bem, não fica longe. O solar de Sneadley fica mesmo à saída da rua principal da aldeia, passando os grandes portões de ferro à direita. Não há que enganar. - Entrei no Mini, que fora sempre demasiado pequeno para a minha altura. - Siga-me. Apercebi-me de súbito que, como eu, Harry Montana era americano. Tinha um sotaque sulista qualquer, texano talvez? De qualquer modo, estava muito longe de casa. Guiando com cuidado pela rua coberta de neve, pensei, mais uma vez, no que estaria a fazer num pequeno funeral, numa aldeia do Yorkshire a meio de um nevão. O solar de Sneadley pertencera à família Oldeastle durante cinco gerações antes de Bob Hardwick o adquirir. Era um grande edifício de estilo georgiano construído na pedra cinzento-escura típica do Yorkshire, com uma alameda direita e comprida que conduzia a um pórtico com colunas. As janelas eram altas e a porta de entrada tinha duas compridas bandeiras de vidro e uma clarabóia em arco por cima. Não era uma casa bonita, mas a sua solidez quadrada adequara-se à personalidade de Bob. - Todos os donos desta propriedade estavam no negócio da lã contara-me quando me levara pela primeira vez a Sneadley. - Havia ovelhas nestes montes, tão longe quanto a vista alcançava e mais ainda. A lã constituía a riqueza do Yorkshire e no dia em que se passou das ovelhas para o acrílico foi a ruína de muitos negociantes de lã e proprietários de fiações para estes lados. Foi enriquecer do dia para a noite e depois de volta à pobreza mais depressa do que se teria julgado possível. E agora são homens como eu, os cobóis do mundo financeiro, os oportunistas, os tipos realistas, determinados e frios, que possuem casas como o solar de Sneadley. Ouvi os pneus do Jaguar a esmagarem a gravilha atrás de mim quando passei os portões de ferro forjado ainda embelezados com o da família Oldeastle. A Sra. Wainwright, a governanta e cozinheira, abriu a porta antes sequer de eu ter estacionado.


- Ora, entre, senhora Keaton. Estávamos a ficar preocupados por tê-la deixado ali sozinha no cemitério. Estava prestes a mandar o senhor Stanley buscá-la. Stanley era o jardineiro. Vivia na casa do portão com a mulher, ao passo que a Sra. Wainwright tinha o seu próprio apartamento confortável no anexo. - Não havia necessidade de se preocupar, senhora Wainwright, já cá estou - respondi, subindo os degraus até ao pórtico. Atrás de mim, ouvi Montana estacionar. - E trouxe um amigo de Sir Robert. O senhor Montana ajudou-me com Rats. O pobre cão não queria vir. A Sra. Wainwright soltou um suspiro. Era uma mulher alta com o corpo em forma de pêra e um peito generoso, cabelo encaracolado de um cinzento de ferro, uma mandíbula quadrada e penetrantes olhos azuis que não deixavam escapar nada. Incluindo o homem que trepava agora os degraus da frente atrás de mim, com uma mala de computador portátil na mão. - Vão querer sem dúvida café - retorquiu energicamente. - Embora, na minha opinião, uma bela chávena de chá caía muito melhor, em especial quando se está mal disposto. E fiz o meu pão-de-ló recheado com compota, sei que é o seu preferido. Virou-se, mas chamei-a. Intrigada, olhou para mim. Corri para ela e lanceilhe os braços em volta num grande abraço. - Obrigada. Obrigada por tudo. Obrigada por se preocupar murmurei-lhe no cabelo crespo. - Ora, então, não tem de quê. - Sorriu embaraçada quando a soltei. Os abraços não faziam parte do seu vocabulário do Yorkshire, embora o amor sim. - Está a pingar água no meu soalho acabado de encerar - admoestou. - Vou mandar a nossa Brenda com um pano. A "nossa" Brenda era a filha casada, que vivia na aldeia e que também trabalhava no solar. - Desculpe, senhora Wainwright - retorqui com um sorriso pesaroso. Depois recordei-me do homem que convidara para o café. Harry Montana mirava, com ar de aprovação, as paredes apaineladas e os soalhos de castanho encerados, as janelas altas com as pesadas cortinas douradas, que cortavam em parte a visão da neve, o lume que ardia na imponente lareira de pedra.


- Quase esperava ver cães de caça à raposa a descansar em frente à lareira e ouvir a caçada a passar. Todos aqueles homens de casacos vermelhos montados em grandes cavalos pretos. - Nunca encontraria cães de caça dentro de casa; estariam no canil perto dos estábulos - respondi. - De qualquer modo, já não se permitem cães nas caçadas. - Mesmo assim, está a ver o filme. Não é isso que nós, os americanos, pensamos sempre sobre a vida inglesa no campo? - Suponho que sim. - Sorri. - Aprendi muito nos últimos cinco anos sobre essa vida inglesa no campo. Mas, por favor, dê-me o seu casaco. Ele pousou a mala de pele do portátil e despiu o sobretudo preto que lhe chegava quase aos tornozelos. Era tão leve como uma pena, caxemira, calculei, com uma etiqueta italiana cara, mas por baixo daquele casaco encontrava-se um homem diferente. Calças de ganga estreitas coçadas, botas pretas, uma camisola preta de gola alta. Os ombros debaixo da camisola eram largos, as ancas nas calças de ganga estreitas e, no pulso direito, usava uma pulseira de prata e couro, cravejada de pedras turquesa. Senti uma palpitação na boca do estômago. com a cabeça quase rapada e aspecto esguio devia estar a fazer uma audição para o papel do mau num western de Hollywood e não a assistir ao funeral de um magnata do Yorkshire. Pendurei-lhe o casaco no armário do vestíbulo junto com o meu, peguei na toalha velha que ali se guardava para aquele fim e fui secar Rats que já se aconchegara em frente da lareira. - Lindo cão - murmurei. - Lindo cão, Rats. Vai ficar tudo bem, prometo. E prometo que não te deixo. - Então herdou o cão? - perguntou Harry Montana atrás de mim. - Não herdei nada. - Voltei a erguer-me. - Sou apenas uma empregada. Mas claro que tomarei conta de Rats, porque seria isso que Bob quereria. De qualquer maneira, agora sinto que é o meu cão, embora saiba que para ele nunca existirá senão um dono. Senti os olhos de Montana a observar-me enquanto guardava a toalha. Recordei-me que não sabia ainda quem era ou por que razão aqui estava. Sugeri que passássemos à sala e ele segurou a pesada porta para me deixar entrar.


Era a minha divisão preferida na casa. Mesmo a meio de um nevão parecia soalheira. Paredes de um ocre-claro, sofás de brocado dourado com almofadas esborrachadas de muito encosto ao longo dos anos, tapetes de tons suaves um pouco coçados do uso, candeeiros que projectavam um brilho dourado cálido e as chamas a faiscarem na lareira. De facto, pensando bem, não se afastava muito das comodidades típicas de uma casa de campo, em que reparara pela primeira vez no restaurante Lê Gavroche, quando pensara como devia ser agradável regressar a casa, a um sítio como este. Em breve, pensei, teria de me ir embora. A Sra. Wainwright entrou com ar afadigado a empurrar um carrinho de chá vitoriano, de mogno, cheio de pratos com pequenas sanduíches e bolachas e o famoso pão-de-ló recheado de compota, mais as coisas do café. Cumprimentou Harry Montana e deixou-me fazer as honras da casa. Servi o café a ferver para as frágeis chávenas de porcelana Wedgwood azuis e brancas e estendi uma ao meu cobói. Ele estava completamente à vontade, joelhos abertos, as pernas compridas cruzadas nos tornozelos, as mangas puxadas para cima, revelando um pouco de uma tatuagem à volta do antebraço que se parecia com caracteres chineses. Comi um bocado do bolo. Em geral, sabia a morangos de Verão. Hoje sabia a pó. - Então como sabe que não herdou? - Mexeu dois cubos de açúcar no café preto. - Os advogados já leram o testamento? Franzi o sobrolho, de súbito alerta. Convidara um perfeito desconhecido para casa de Bob. Podia ser qualquer pessoa! Um rival dos negócios a tentar obter informações. Um jornalista atrás de uma boa história. Algum parente há muito perdido interessado no dinheiro. Fitei-o de novo. Parecia uma versão moderna de um marine, com aquele corte de cabelo, as calças de ganga coçadas, a pulseira, a tatuagem. Empurrei o meu cabelo pesado, e ainda húmido da testa, afogueada de ansiedade. Deixara inadvertidamente o inimigo franquear os portões da morada de Bob? - Quem diabo é afinal - cortei - para me fazer todas essas perguntas pessoais? - Sou uma espécie de amigo de Bob.


- Isso de "uma espécie de amigo" não existe - repliquei com acrimónia. Um amigo é um amigo e é tudo. Como é que o conheceu? - Conheci Bob há dez anos. Estava com alguns problemas pessoais na altura. Ouvira falar de mim a um seu conhecido. Telefonou-me para Dallas e apanhei o avião para Nova Iorque para me encontrar com ele. Pensou que eu pudesse ajudá-lo. Pensei quais seriam os "problemas pessoais" a que Montana se referia, mas decidi que era melhor não perguntar. Havia algumas coisas que Bob não quisera que eu soubesse e eu respeitava isso. Mesmo assim, precisava de saber quem era na realidade o homem que se sentava diante de mim na casa de Bob. Estava prestes a perguntar-lho outra vez, mas ele antecipou-se. Levantou-se, tirou uma carteira do bolso traseiro das calças de ganga, retirou um cartão-de-visita e estendeu-mo. - Harry Montana - li. - Gestão de risco. Segurança. Investigador particular. Havia um endereço de Nova Iorque e outro de Dallas, números de telefone e a habitual indicação do e-mail. Não fiquei surpreendida com a profissão, apenas intrigada. Bob usara investigadores particulares quando precisara de desenterrar informações sobre os seus rivais nos negócios, mas pelo que Montana dissera não parecia ser o caso desta vez. - Alguma vez cismou na forma como Bob morreu? - indagou. - Claro que sim. Ainda o faço... constantemente. Ia a guiar, sozinho, à noite, numa estrada de montanha que não conhecia bem e despenhou-se. Devia lá ter estado com ele, devia ter sido eu a guiar... - Se estivesse, estaria morta também. Senti o rosto bambo de choque. Fitei inexpressivamente o desconhecido. - Não, não está a entender - disse com prontidão. - Bob guiava sempre demasiado depressa. Esperava que os outros carros saíssem do seu caminho. Eu não o teria deixado conduzir naquela estrada de montanha, mas estava com gripe. Estava na cama, no apartamento de Manhattan. Deveria ter estado com ele. Devia lá ter estado... - E agora está a afogar-se num mar de culpa. O sítio do meu coração que estivera adormecido reanimou-se de súbito e a força da dor avassalou-me. Os meus ombros vergaram-se e a minha cabeça tombou, ao mesmo tempo que ondas sucessivas de soluços me


arrasavam. O desconhecido não se mexeu. Ficou sentado a observar-me até que parei; depois disse, em voz baixa: - O sentimento de culpa não o vai trazer de volta, Daisy Keane, sabe-o bem. E reconheça isto também: somos todos, em última análise, responsáveis pelas nossas acções. Bob Hardwick não morreu porque você não estava lá; morreu simplesmente porque ele estava. Foi o momento errado, o sítio errado, a hora errada. Ouvi o tiquetaque do relógio. Um toro de madeira caiu na lareira e as chamas tremeluziram e reflectiram-se, cor-de-rosa, na cafeteira de prata. À mercê do meu sofrimento, estava marginalmente consciente das pinturas antigas de paisagens, dos tons desbotados de coral e verde dos tapetes, do guarda-fogo de bronze e pele que rodeava a lareira, do respirar sonolento de Rats a virar-se em frente das chamas... todas as coisas e sons familiares. Mas éramos apenas eu e o desconhecido agora no silêncio de súbito implacável. Sobressaltei-me com a batida na porta. A Sra. Wainwright entrou. Afastando apressadamente o olhar do meu rosto devastado pelas lágrimas, declarou: - Não vai conseguir sair daqui esta noite, senhora Keane. O senhor Stanley diz que todas as estradas estão cortadas e os limpa-neves não aparecerão senão amanhã, contanto que esta tempestade de neve termine, claro. O solar ficava recuado da estrada da aldeia, em jardins salpicados de árvores. Olhando pela comprida alameda abaixo e através da neve torrencial conseguia entrever com dificuldade o brilho amarelo , esbatido das luzes junto ao portão. No círculo para estacionamento em frente do pórtico, os dois carros encontravam-se já sob um abundante manto branco. Levantei-me e fechei as pesadas cortinas de seda. Senti-me desanimada com a ideia quando disse: - Parece que vai ter de passar aqui a noite, senhor Montana. Ele já se erguera e olhava para o relógio. - Detesto ter de lhe dar essa maçada... - Não lhe resta outra opção. Receio que vá ter de me aturar.


- Não é maçada nenhuma, senhor - afirmou a Sra. Wainwright, assumindo a responsabilidade. - Ponho o senhor Montana no quarto vermelho, se não se importar, senhora Keane. Assenti em concordância e depois virei-me para Montana: - E melhor arrumarmos os nossos carros na garagem antes que fiquem completamente sepultados. Ele agradeceu à Sra. Wainwright, agradeceu-me de novo, olhou para o relógio. Tive a sensação que estava ansioso por partir, mas sabia que não lhe restava outra opção. Precedi-o até à sala das botas nas traseiras da casa, onde descobri um par de botas de borracha que lhe serviam e dei-lhe o velho casaco Barbour verde acolchoado de Bob. Vesti uma indumentária semelhante, enfiei as calças dentro das botas de borracha e empurrei um gorro de lã preta de esqui até às sobrancelhas. Estendi a Montana um boné raso xadrez. Dávamos um bom espectáculo. - Parece um cavalheiro da fidalguia rural inglesa - comentei. - E você parece uma refugiada da Sibéria. Apesar de tudo, sorri. A neve que caía era dura, forrada de gelo, e o vento atirava-a, oblíqua, contra nós. Pedi a Montana para me seguir avancei com bravura para o meio do nevão. O Sr. Stanley salpicara com sal os degraus da frente, mas a neve estava já a ser arrastada para o pórtico e escorreguei. Montana agarroume o braço. - Cuidado - avisou, segurando-me com firmeza pelo cotovelo. Gostei dele assim perto de mim, protegendo-me; fez-me sentir pequena, feminina de novo. Há muito tempo que um homem não me agarrava e tive de me lembrar que este estava apenas a certificar-se que eu não partia o pescoço. Montana limpou o pára-brisas do Mini. A neve chegava a meio dos pneus e ele mirou-me com ar duvidoso. - Porque não me deixa guiar? - Não há problema. Além disso, tenho de ir à frente para lhe mostrar o caminho; as garagens são na parte de trás da casa, no velho edifício dos estábulos.


Esperei que limpasse o seu pára-brisas e ouvi o motor a ronronar. Outra hora cá fora neste frio e nenhum destes carros teria pegado. Parecia um milagre termos conseguido pô-los a trabalhar. Carreguei no acelerador. Os pneus rodaram, mas nada aconteceu. Carreguei ainda mais no acelerador e o carro saltou. Era como guiar através de uma duna de areia. Vi os faróis de Montana atrás de mim e fiz sinal para a direita, dobrando a curva com cuidado. Mesmo assim, a minha retaguarda guinou um pouco para fora. Tirei o pé do acelerador e endireitei o carro. Não queria ir parar aos arbustos. Passei a parte lateral da casa e depois virei à direita para o grande pátio calcetado, imaculado sob o seu manto de neve. Accionei o comando da porta da garagem, suspirando de alívio quando a porta se abriu. Tivera receio que não funcionasse nestas condições gélidas. A garagem cheirava ainda de algum modo aos estábulos de outros tempos, embora agora albergasse a colecção de carros de Bob, que incluía um Bugatti de 1929, um Jaguar E de 1964, um Corvette do início dos anos 1960, um Chevy descapotável azul-turquesa dos anos 1950, um Mercedes novo e o último Ferrari fantástico de um encarnado-vivo. Bob adorava carros. Era irónico que tivesse morrido num deles. Entrei com o Mini e fiz sinal a Montana para me seguir com o Jaguar. Estacionou ao meu lado. Quando saiu passei-lhe uma vassoura macia. - É melhor limpar a neve se não quer ver o seu belo carro estragado. Observei-o a manejar a vassoura, primeiro no seu. Jaguar, depois no meu Mini. - Não pensei que fosse uma rapariga de carros vermelhos - observou por cima do ombro, ainda atarefado a varrer a neve. - Não creio que realmente seja. Bob comprou-o para mim, disse que já era altura de alegrar um pouco a minha vida. Montana virou-se para me fitar. - E tinha razão? - Bob tinha sempre razão. Montana equilibrou a vassoura de novo contra a parede e saímos lá para fora. As portas electrónicas fecharam-se atrás de nós e ficámos sozinhos no escuro. Os grandes sicómoros pretos carregados de neve gemiam ao


vento e o pátio calcetado era um rectângulo branco frio, intocado até pelas pegadas dos pássaros. A neve parara momentaneamente e, em silêncio, aspirámos o ar gelado e limpo. Olhei de soslaio para Montana. Saía-lhe vapor das narinas como acontece com os cavalos depois de uma longa galopada e os flocos de neve instalavam-se na sua cabeça escura. - Isto faz-me lembrar a minha infância no rancho do meu pai no Texas disse em voz baixa. - Em noites de neve como esta, saía, ia até ao dormitório dos cobóis e sentava-me com eles em redor do fogão a escutar as suas conversas sobre cavalos e gado. Depois voltava para casa, sozinho. Por vezes, a neve chegava-me aos joelhos e estava enregelado quando chegava a casa. Sentia inveja daqueles tipos no seu dormitório quente, a camaradagem fumarenta e alegre, os interesses partilhados, a conversa fácil. O lar para mim era apenas o meu pai, eu e o sujeito que cuidava da casa, um tipo velho arrebanhado aos cobóis porque era demasiado velho para andar a cavalo. Começara de novo a nevar e tremi. - Deve sentir saudades. - Nem um pouco. Agora sou um tipo da cidade. Quer fazer um anjo de neve? - perguntou com um sorriso. - Certamente que não, já estou enregelada. Com Montana a segurar-me no braço, atravessámos o pátio. A neve funda obrigava-nos a erguer os pés e a pousá-los com cuidado de novo e avançávamos com lentidão. Quando alcançámos por fim a porta das traseiras o meu rosto apresentava uma camada de neve e eu ofegava com o esforço e o frio. A luz amarela e quente derramava-se pelas janelas e tropeçámos agradecidos lá para dentro, largando os casacos ensopados, saltitando ambos num só pé ao puxarmos as botas de borracha, rindo-nos com o aspecto idiota que tínhamos. A Sra. Wainwright veio ter connosco quando aparecemos no vestíbulo, dizendo que o jantar estaria pronto dentro de uma hora. - Tempo para um banho quente e roupas secas - sugeri.


Depois, recordando-me que o meu convidado não tinha bagagem, disselhe que as roupas de Bob lhe ficariam por certo demasiado grandes e que, por isso, tinha de se arranjar com o que tinha vestido. Montana pegou na mala do portátil e, juntos, subimos as escadas largas e baixas até ao átrio superior. Havia quartos para ambos os lados. O de Bob era o principal, por cima do pórtico, com vista para a aldeia e para os pequenos vales do Yorkshire, rolando suavemente até ao infinito e ainda, no Verão, salpicados de ovelhas. Virei à esquerda e conduzi Montana ao quarto vermelho, que ele afirmou estar à altura do nome, todo ele brocado vermelho com uma grande cama estilo Jaime I, esculpida e de dossel, envolta em seda vermelha. Bob escolhera ele próprio o mobiliário e eu dissera-lhe que, na minha opinião, parecia um restaurante indiano. Ele respondera que não, que parecia era um bordel de Bombaim, que era exactamente o que ele queria. Disse a Montana que esperava que não se sentisse muito deslocado a dormir no bordel vermelho e ele riu-se. Depois mostrei-lhe a casa de banho anexa com lambrins escuros e uma banheira branca em ferro fundido com os pés em garra, deixei-o e dirigime para o meu próprio santuário no canto oposto da casa. Montana manteve-se debaixo do chuveiro quente durante muito tempo até sentir os ossos começarem a descongelar. Não sentia tanto frio desde miúdo. Secou-se, enrolou a toalha à volta das ancas e postou-se em frente do espelho, passando a mão pelo queixo com o princípio de barba. Não estava a pensar no seu aspecto; pensava na mulher que acabara de conhecer e na sua relação com Sir Robert Hardwick. Daisy Keane era atraente, chique, com aquele ar moderno severo que muitas mulheres adoptavam por ser mais fácil quando não se sentiam muito seguras do seu próprio estilo pessoal. Não casava muito bem com as suas sardas sedutoras de rapariga do campo, nem com a juba de cabelo ruivo brilhante e a boca cheia e doce. Nem com a voz baixa, também doce e enrouquecida. Estivera à espera de uma caçadora de dinheiro de rosto duro, decidida a arrancar a Bob tudo o que conseguisse; em vez disso, havia nela uma hesitação, uma incerteza, um ar de vulnerabilidade. Ou era uma boa actriz ou gostara na realidade de Hardwick. Encolheu os ombros. Quem poderia dizer? Com o tipo de dinheiro de Hardwick em jogo, tudo podia acontecer. No entanto, apreciara a forma como se comportara com


o cão. Existia ainda alguma esperança. E apostava que ela também não estivera à espera de conhecer alguém como ele no funeral. Eram diametralmente opostos, juntos esta noite apenas por causa de Bob Hardwick e de uma tempestade de neve e porque ele tinha uma carta para ela. Fizera tenção de a entregar no solar depois do funeral, mas ela convidara-o primeiro. Vestiu-se, verificou a pulseira que nunca lhe abandonava o pulso, puxou o fecho das calças de ganga, apertou a fivela do cinto cravejado a prata e enfiou os pés nas botas pretas. Ainda com frio, daria tudo por um bourbon. Ao ouvir a neve a bater nas janelas, recordou a sua tumultuosa juventude. Montana tinha apenas doze anos quando o pai falecera sem um tostão e fora desalojado do rancho. As autoridades tinham-no largado com rapidez numa família de acolhimento que vivia na periferia de um gueto urbano. Ficava a anos-luz de distância das planícies silenciosas do rancho que percorrera no seu cavalo e a paisagem devastada e corroída da desesperada vida urbana endurecera-lhe indelevelmente a alma jovem. Porque não tinha outra opção, aguentara aquilo alguns anos; depois partira com apenas alguns dólares no bolso das Levis e um casaco de ganga preta, que pertencera pelo menos a três outros miúdos antes de passar para ele. Tinha catorze anos, mas parecia ter dezasseis, quando iniciou a sua solitária viagem de um ano pelas estradas secundárias do Texas, o que o tornou mais sábio e mais rijo do que a média dos adolescentes. Quando se lhe acabava o dinheiro, o que acontecia com frequência, conseguia sempre encontrar trabalho, mas nunca ficara muito tempo no mesmo local. Voltava sempre à estrada, na sua interminável viagem para sítio nenhum, sem qualquer futuro a cintilar esperançoso à sua frente. Quer dizer, até encontrar o homem que mudou a sua vida. O homem que o acolheu e lhe abriu as portas de um mundo de livros e de saber e de uma espiritualidade que nunca sentira antes. Chamava-se Phineas Cloudwalker e era um índio americano da tribo dos comanches, que se descrevia sempre a si próprio como "índio". Phineas Cloudwalker assegurou-se que Montana recebia uma boa educação e, por fim, obtivera o seu diploma summa cum laude pela Duke University.


Depois disso, Montaria mudara abruptamente de rumo e entrara para os fuzileiros, onde a sua atitude de solitário não conformista em breve lhe granjeara problemas, mas depois, em reconhecimento pela sua inteligência e pelas suas qualidades de liderança, foi cooptado como tenente para a divisão especial chamada Força Delta. E fora aí, entre outros não conformistas, os intrépidos jovens que aceitavam qualquer desafio, prontos a assumir qualquer risco, preparados para morrer uns pelos outros e pelo seu país, que Montana se notabilizou. Dez anos e várias penosas campanhas depois, saiu do corpo de intervenção para cuidar do velho comanche agonizante que lhe salvara a vida e a alma. Era a pulseira deste homem que usava, os valores deste homem que constituíam agora os seus princípios, a força deste homem que fora o seu exemplo. Este índio americano era o homem que considerava o seu verdadeiro pai. Com o seu mentor, Montana aprendera também a arte de viver cada dia tal como se apresentava. Aqui, no conforto tranquilo do solar de Sneadley, onde a tradição ainda reinava, percebeu que quase perdera essa arte. A maior parte do tempo, agora, trabalhava. Não existia nem espaço nem tempo na sua vida para um cão como Rats, ou para um verdadeiro lar, embora não fosse uma coisa que tivesse alguma vez desejado. O modo de vida nómada estava demasiado arreigado dentro de si. Foi até à janela e puxou a cortina para trás, fitando a paisagem coberta de neve. Não contara com uma tempestade destas tão tarde, em Abril, e, ao que parecia, os meteorologistas também não. Ter-se-ia pensado que, com todos os seus radares e modelos de condições meteorológicas globais, teriam conseguido prever este nevão. Deveria estar em Londres por esta altura; tinha um encontro marcado. Puxou do telemóvel e marcou o número da rapariga. - Desculpa - disse, quando ela atendeu -, estou preso aqui no norte, um nevão. Ouviu-a protestar um pouco, pediu outra vez desculpa, afirmou que era pouca sorte, mas que não havia nada que pudesse fazer. Ela queixou-se mais um bocado e, agora impaciente, interrompeu-a com brusquidão: - Querida, isso é espectáculo. Telefono-te mais tarde.


Era gira, sexy e demasiado exigente. Não precisava de uma mulher exigente na sua vida. De facto, não precisava de nenhuma mulher na sua vida. Sentia-se perfeitamente feliz como estava. Não pertencia a ninguém. O quarto vermelho estava a começar a afectá-lo. O vermelho não era a sua cor preferida. Tirou um grande envelope castanho da mala, abandonou a seda vermelha e desceu as escadas. Rats ainda se encontrava enroscado em frente da lareira no vestíbulo. O cão revirou os olhos para ele, fungou com ar abatido e desviou o olhar. - Pobre cão - proferiu Montana suavemente. Colocou o envelope na mesa do vestíbulo, pegou no comprido atiçador de ferro, remexeu um pouco a lenha e ficou de pé, de costas para a lareira, as mãos enfiadas nos bolsos das calças de ganga, a pensar por que razão aqui se encontrava. Com a sua morte, Hardwick presenteara-o com um mistério, mistério que Montana estava decidido a solucionar. Além disso, fora-lhe confiada uma missão de que trataria esta noite. Fazia parte do seu trabalho e fora por isso que viera ao funeral e não ficara no seu apartamento de Londres com a rapariga gira que o punha fora de si. Analisando as coisas, pensou se, no final de contas, não estaria melhor assim, no meio de uma tempestade de neve no Yorkshire, enfrentando uma tempestade emocional que sabia estar prestes a piorar. De todas as casas de Bob, Sneadley era a minha preferida, apesar de não conhecer ainda a sua villa em Capri. Por uma razão ou por outra, nunca tínhamos lá ido. Bob dizia que estava demasiado ocupado para tirar umas verdadeiras férias, embora fosse por esse motivo que comprara a Villa Belkiss. Sentada na cama, puxei as meias encharcadas, olhando em volta do quarto familiar que em breve deixaria de ser meu. Fora para Sneadley que Bob me trouxera no dia a seguir à oferta de emprego. Depois do estúdio deslavado em Bayswater, este quarto parecera o paraíso e, quando me disse que o podia decorar como quisesse, fui até à vila mais próxima, comprei latas de tinta e pincéis, voltei e pintei eu própria a divisão. - É uma rapariga competente - dissera Bob, parado na soleira da porta a observar-me empoleirada num escadote a passar o rolo no tecto. - Podia ter mandado os rapazes fazer isso, sabe, não precisava de ter todo esse trabalho.


- Trabalho? - exclamei, eufórica. - É a melhor coisa que me sucede há anos. Estou a adorar. Além disso, costumava fazê-lo quando era casada. Fui eu que decorei sozinha a nossa casa, todas as salas. - E como era a sua casa? - Expressou pela primeira vez curiosidade sobre a minha vida passada. - Suburbana. Enfadonha. Solitária. Contara ter filhos, mas não aconteceu. - Provavelmente porque não treinava o suficiente - retorquiu secamente, fazendo-me rir. E, de qualquer modo, tinha razão. Pintei com esponja as paredes daquele belo quarto, de um tom terracota pálido, até ficar semelhante ao que eu imaginava ser uma vila antiga da Toscana, tipo desbotada pelos anos e pelo tempo atmosférico. Talvez a pintura com esponja seja hoje um cliché de decorador, um pouco desactualizada, mas sempre que entro naquele quarto sinto-me bem. Adoro-o, muito simplesmente. As molduras das três janelas altas estão instaladas em vãos fundos apainelados, com portadas interiores que realmente fecham. Pintei-as de um branco-baço, mandei fazer cortinas de tafetá pesado às riscas bronze e dourado suave e depois coloquei um tapete creme macio. A mobília é dos anos trinta, raiz de nogueira clara. Há uma cama de pés e cabeceiras curvas, com uma colcha de seda creme pesada, e um toucador com pequenos apliques prateados com quebra-luzes de ambos os lados de um espelho veneziano ornamentado. Perto da janela existe uma chaise langue de chenille num tom pálido, repleta de almofadas de veludo, onde gosto de me sentar a ler nas noites de Verão com o aroma da relva recém cortada a entrar e os balidos débeis das ovelhas a chegarem dos montes. Coloquei um CD de Diana Krall, fui para a casa de banho, abri as torneiras da banheira, despejei um pouco de óleo de jasmim e acendi um par de velas. Agradecida, despi as minhas roupas de funeral. Deixei-as ficar onde tinham caído, entrei no calor balsâmico da banheira e fechei os olhos, fazendo desaparecer a recordação do dia horrível, do frio amargo e do meu desespero. O som da voz suave de Diana Krall a cantar velhos êxitos flutuava na minha direcção. O que me estaria agora reservado, pensei, agora que não existia nenhum Bob Hardwick para me salvar? Tinha de tomar muitas decisões. Ficava aqui em Inglaterra? Voltava para Chicago? Talvez tentasse


a minha sorte em Los Angeles como toda a gente parecia fazer? A minha irmã Lavender estava casada, tinha três filhos e vivia em São Francisco. Era mais velha sete anos e a diferença de idades era demasiado grande para alguma vez termos sido muito chegadas. A minha outra irmã, Vi, tinha também uma vida muito activa e, embora todas gostássemos umas das outras, sabia que não era justo para as minhas irmãs impor-lhes de súbito a minha presença. E isso, como Bob teria sem dúvida dito, deixava-me com liberdade para fazer o que quisesse. - Vê sempre o lado positivo - conseguia ouvi-lo a dizer agora. Não estás num beco sem saída, estás simplesmente numa encruzilhada. Compete-te escolher o teu caminho. Precisava de um abraço. Peguei no telemóvel e liguei o número de Chicago da minha melhor amiga, Bordelaise Maguire. Sei que Bordelaise é um nome esquisito, mas a mãe, grávida, estava a fazer um curso de cozinha francesa quando entrou de repente em trabalho de parto. Bordelaise foi a primeira palavra que proferiu depois de o bebé nascer. E foi por isso que a minha amiga recebeu o nome de um molho francês. Claro que lhe telefonara para chorar à distância no seu ombro quando Bob morrera e claro que ela dissera que se ia meter num voo para estar comigo no dia seguinte, mas não a deixei. Disse comigo mesma que desta vez tinha de me aguentar sozinha, tinha de tratar das coisas como Bob teria contado que fizesse. Ajudara-me a transformar-me nesta nova mulher forte e era a minha vez de o provar. Uma tolice, reconheço-o agora, quando podia ter aproveitado a companhia da minha amiga mais querida, mas, quando estamos sob o efeito do stresse, fazemos coisas tolas. Bordelaise enviara-me e-mail todos os dias desde esse momento e eu dissera-lhe que estava bem e que em breve partiria de Sneadley para sempre e talvez regressasse a Chicago. Agora Bordelaise atendeu ao primeiro toque e, sem sequer perguntar quem era, como se tivesse estado à espera que eu telefonasse, inquiriu: - Estás bem? - Mais ou menos. - O funeral já acabou então. - Acabou - concordei lugubremente.


- Então o que vais fazer agora é enfiares-te na cama com um grande copo de uísque quente e limão. Aninha-te por baixo desses cobertores e dorme um pouco. Aposto que não o fazes há algum tempo. O sono pertencia às noites antes da morte de Bob. - Pareces a minha mãe. - Alguém tem de cuidar de ti, mesmo que seja à distância. - Estou bem, verdade que estou. Estou a tomar um longo banho. Há aqui uma tempestade, estamos isolados pela neve. - E aqui também - retorquiu. - Estás mesmo bem? Parecia duvidar e assegurei-lhe que estava bem, contando-lhe que ia descer para jantar com um amigo de Bob. - As estradas estão cortadas e ele tem de passar aqui a noite expliquei. Por isso não precisas de te preocupar, não estou sozinha. Queria só um abraço teu, é tudo. - Toma lá um abraço, rapariga - disse Bordelaise e despedimo-nos com a promessa de ligarmos no dia seguinte. Bordelaise e eu conhecemo-nos desde a escola primária. A mãe e o pai dela eram os proprietários do restaurante onde a minha mãe trarJklhava e tínhamos ambas realizado aí algumas tarefas quando éramos adolescentes, como pequenas empregadas de mesa, lavadoras de loiça, limpadoras de mesas e bisbilhoteiras, sempre a especular sobre os clientes de quem gostávamos e sobre quem andava com quem e que mulheres enganavam os maridos. Bordelaise era um duende de olhos brilhantes, pequena e delicada, com cabelo louro encrespado a cair por cima dos deslumbrantes olhos azuis numa franja desgrenhada demasiado comprida, que enervava a mãe. Jurava que a filha não via nada através dela. Bordelaise atraía homens como abelhas pelo famoso pote de mel; precisava apenas de passar as mãos por aquele cabelo louro e lançar-lhes aquela olhadela sedutora de soslaio com o seu sorriso endiabrado e eles ficavam logo caidinhos. Tinha uma folha de serviço para o provar. Dois maridos despachados e outro prestes a partir. Não que isso a perturbasse; ao contrário de mim, estava sempre pronta para a próxima aventura.


A água do banho estava já a arrefecer. Saí e envolvi-me no luxo de uma grande toalha macia e quente e fiquei a olhar para o meu reflexo nas paredes espelhadas. Bem cá estou eu, pensei, fitando-me, um copo alto de água fresca por fora e ainda a tremer por dentro. Nunca fui uma beldade, era apenas uma miúda sardenta, alta e magra, que se transformou numa mulher sardenta, alta e magra. As minhas maminhas são demasiado pequenas para a moda actual em termos de seios; o meu cabelo ruivo-escuro muito liso tem vontade própria e é por isso que o uso em geral apanhado de lado ou puxado para trás, afastado dos olhos, que são da cor de azeitonas verdes. As minhas pernas, compridas e esbeltas, são o meu melhor predicado e progredi dos saltos muito altos, sadomasoquistas, para sapatos mais elegantes, horrivelmente caros, que me favorecem mais e que são o meu maior fraco. Tenho uma boa pele translúcida sob a sua camada de sardas, um nariz direito e lábios cheios e sou uma das poucas mulheres que conheço que pode usar batom vermelho, nomeadamente Armam n.º 9. Na realidade, não estou muito mal para uma mulher que nem sequer se esforça, sempre a esconder a minha vulnerabilidade atrás dos meus fatos pretos. De facto, sou uma fraude bem sucedida. A assistente pessoal muito eficiente, inteligente, agradável mas dura quando preciso de ser; sempre calma, sempre em cima do acontecimento. Apenas Bob conhecia o meu verdadeiro eu; enxergara-me o íntimo desde o princípio. E Rats também sabe quem sou; salta para a minha cama à noite, ignorando as minhas meias de dormir (tenho sempre os pés frios, o que Bob dizia ser "significativo") e a minha camisa de noite aconchegante, mas pouco elegante. O cão enrosca-se junto a mim, um ser vivo quente a quem abro o coração como se ele entendesse. E quem pode afirmar que não entende? De qualquer modo, acredito que sim e apenas Rats, Bob e a minha amiga Bordelaise conhecem o meu verdadeiro eu. Neste momento, na minha bonita casa de banho, senti o mesmo que sentira quando o letreiro de "Vende-se" aparecera na minha casa que afinal já não era minha. Desprotegida. Sozinha de novo. Vesti rapidamente uma camisola preta e umas calças pretas folgadas; depois, sentada no meu bonito toucador, empoei o nariz, apliquei um


pouco de batom e escovei o cabelo. Aspergi-me com LHeure Bleue de Guerlain, um presente de Bob e um perfume muito mais caro do que o que eu teria escolhido, enfiei os pés nus num par de sabrinas pretas rasas e desci para jantar com Harry Montana. Montana estava de pé diante da lareira alta, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças de ganga. Ergueu a cabeça quando me ouviu entrar, cruzando o seu olhar com o meu quando me encaminhei para ele. Endereçou-me um sorriso. - Menos refugiada da Sibéria, mais a senhora da casa - disse. - Acha que melhorei? - Estaria a atirar-me a ele? Como é que podia? Numa altura como esta. - Seguramente. - De qualquer modo, como sabe, não sou a senhora da casa. Sou meramente uma empregada. - Mais do que isso. Era uma amiga. - Isso é melhor do que "uma espécie de amiga" - sorri. - Não conhecia Bob o suficiente para ser mais do que um empregado explicou. - Mas, porque Bob era o tipo de homem que era, tive o privilégio de me tornar uma "espécie de amigo". Claro que eu queria saber por que razão Bob o empregara, mas não perguntei. A discrição fazia parte do meu trabalho. Assim, perguntei a Montana se desejava uma bebida. O cão seguiu-me quando passei à sala, onde uma série de garrafas e copos dispostos em grandes bandejas de prata sobre o pesado aparador de carvalho do século XVII constituíam o bar. Lancei-lhe uma olhadela inquiridora por cima do ombro. - Calculo que não tenha bourbon! - Com certeza que tenho. Com gelo? - Por favor. Servi-lhe a bebida, estendi-lhe o copo e depois atarefei-me a preparar o meu drink habitual da noite, o cosmopolitan de que passara a gostar depois daquele primeiro no restaurante Lê Gavroche. Agitei vigorosamente o jarro prateado, despejei a bebida num copo de martini, adicionei uma espiral de limão. Montana observava-me com uma expressão perplexa.


- Um cosmopolitan de meninas. Esperara mais de si. Indignei-me com a crítica implícita. - Como por exemplo? - Oh, talvez um uísque de malte, uma vodka russa rara... - O que o leva a pensar que pareço alguém que bebe? Tenho um ar assim tão duro? Ofereci-lhe os palitos de queijo caseiros da Sra. Wainwright, ainda quentes do forno. - Dura não. Apenas, talvez... uma fachada de dureza. São bons. - A senhora Wainwright é uma excelente cozinheira. As coisas estavam de súbito um pouco incómodas entre o estranho e eu. Instalara-se uma nítida frieza. Pensei, abatida, que poderia ser uma longa noite. Fui dar atenção a Rats, que se encontrava deitado de barriga em frente da lareira. Pousei a minha bebida e a taça de palitos de queijo na mesinha do café e afundei-me no velho sofá macio. - Vem cá, rapaz. Ele lançou-me um longo olhar triste, ergueu-se, aproximou-se com lentidão e saltou-me para os joelhos. Lambeu-me generosamente o queixo e eu limpei o rosto com as costas da mão. - Os Jack Russell pensam que são cãezinhos de colo - informei Montana que se sentara à minha frente. - É pelo menos um sinal de vida - respondeu. Beberricou lentamente a sua bebida e eu beberriquei a minha. - Então vive em Dallas, senhor Montana? - perguntei por fim. - Entre outros sítios. Não estava por certo a revelar nada. - Mas não no rancho do seu pai? - espicacei-o. - O rancho foi à falência, mesmo antes de o meu pai falecer. Eu tinha doze anos na altura. Nunca mais lá voltei. - Lamento. - Fiquei perturbada com a sua súbita franqueza. Não tinha intenção de bisbilhotar. - Não tenho segredos - retorquiu muito calmo. - Depois de o meu pai morrer colocaram-me numa casa de acolhimento. Era gente decente, não


havia apenas amor suficiente. - Ofereceu-me um sorriso rasgado. - Talvez seja por isso que ande desde então à procura do amor. - E já o encontrou? - Várias vezes. Os seus olhos escuros e estreitos prenderam de novo os meus e senti-me a ficar quente no sítio onde o cabelo pesado me caía sobre a nuca. Reparei que os olhos dele tinham a tonalidade cinzento-escura da pedra do Yorkshire. - Algum deles pegou? - Tê-lo-ia morto se me tivesse feito uma pergunta tão pessoal, mas ele não pareceu incomodado. - Nem um. Está, provavelmente, a olhar para o único homem heterossexual e solteiro de quarenta e quatro anos que resta no Texas. Ri-me. - Pelo menos já resolvemos isso - repliquei. Estava de novo a atirar-me a ele. O que se passava comigo? Até achava que nem sequer gostava dele. Não propriamente, em qualquer dos casos, embora fosse mais ou menos atraente, com o seu estilo duro. Suspirei. Era por certo diferente dos outros homens em quem andara de olho nos últimos anos. Como sempre, andara à procura do amor em todos os sítios errados. Como era habitual, comentara Bob. - Outro bourbon, senhor Montana? - Eu estava a imitar uma dama inglesa, o melhor que conseguia. - Não acha que pode ser Harry? No final de contas, estamos aqui os dois enclausurados por causa de um nevão esta noite. - Outra bebida, Harry? - Não, obrigado, senhora Keane. - Está bem, está bem, pode ser Daisy. Fitámo-nos um ao outro, em silêncio. Depois ele perguntou: - Qual é a sua história, Daisy Keane? De onde vem e como é que veio parar aqui? - Você é que é o investigador, pensei que já soubesse. - Ele lançou-me um olhar sensato que dizia que eu estava a ser ridícula. Encolhi os ombros. Chicago, originariamente. Acabei num subúrbio em Illinois com um marido infiel, que vendeu a nossa casa e fugiu com uma loura de vinte anos. Uma história comum na sua área de negócio, tenho a certeza.


- Não faço esse tipo de investigação. - Então qual é o tipo de investigação a que se dedica? Havia frieza na minha voz, mas não sabia porquê. Sabia apenas que, de repente, me sentia cansada. Cansada do dia longo, horrível e triste, cansada de tentar controlar as minhas emoções, cansada de chorar em frente deste desconhecido. Apetecia-me apenas estar na minha cama, com as luzes apagadas, os cobertores puxados até ao pescoço e Rats a dormir como uma pedra aos meus pés. Sozinha com as minhas recordações. - Sou um investigador de crimes. Mirei-o, espantada. O que andava um investigador de crimes a fazer com Bob? - Investigo roubo, fraude, extorsão. - Fez uma pausa. - E assassínio. Endireitei-me sobressaltada e Rats deslizou em protesto do meu colo para o sofá. Os olhos escuros de Montana demoraram-se significativamente nos meus. - Espere um segundo, está a dizer que pensa que Bob foi assassinado? - Talvez. Senti o coração palpitar e saltar e depois assentar com um peso de chumbo algures no meu estômago. - Então, Daisy - disse ele -, o que espera ganhar dos bens de Bob? Fitei-o inexpressivamente. -Já lhe disse, sou uma empregada. Não albergo quaisquer expectativas. E, de qualquer modo, não estava à espera que ele morresse! - Era também a pessoa mais próxima, sabe tudo sobre ele, conhece todos os seus segredos, com certeza que deve ter pensado nisso algumas vezes? No final de contas, ele está na lista da Forbes dos cem homens mais ricos do mundo. Entendi onde é que ele estava a tentar chegar. Lancei-lhe um olhar furioso. - Não está por certo a sugerir que matei Bob? Mostrou-me aquele sorriso frio. - Bem? Matou? Ouvi bater à porta e a cabeça da Sra. Wainwright assomou na ombreira.


- O jantar está pronto, senhora Keane. Tenho os pudins de Yorkshire mesmo a sair do forno, por isso se quiserem sentar-se... - Certo. Sim, claro, senhora Wainwright. Recompus-me, ergui-me do sofá e caminhei com o homem que pensava que eu pudesse ser uma assassina em direcção à sala de jantar. A Sra. Wainwright dispusera os lugares em frente um do outro numa das extremidades da comprida mesa de refeitório. Montana puxou a pesada cadeira para eu me sentar e afundei-me nela antes que os meus joelhos cedessem. Uma garrafa de bordéus esperava na sua base de prata. Serviu-me um copo e disse: - Desculpe tê-la chocado, mas era amiga de Bob. Tinha de lhe contar. E é apenas um palpite. Não possuo nenhuma prova. Assenti com a cabeça. - Agora compreendo. E por essa razão que aqui está. Sentou-se à minha frente, mesmo na altura em que a Sra. Wainwright entrou muito animada com uma forma de pudins de Yorkshire a crepitar de quente. - É assim que gostamos de os servir nesta região, senhor, muito quentes e estaladiços - explicou a Montana, largando um pudim espumoso no prato. - Manda a tradição que se sirvam como entrada, está a ver, com um bom molho. Porque não come dois, tenho a certeza que vai gostar. Os meus pudins de Yorkshire são famosos. - A senhora Wainwright faz os melhores de todos - assegurei a Montana, passando-lhe a molheira. Bob gostara que a sua mesa fosse posta de forma singela, apenas pratos brancos despretensiosos e talheres simples. Os copos eram lindos, cristal fino, mas também simples. Bob detestava beber bom vinho por um copo grosso. Mas porque estaria agora a pensar em serviços de mesa? Devo estar a perder o juízo. Debaixo da mesa, senti Rats vir deitar-se aos meus pés. Inclinei-me para lhe fazer uma festa, observando Montana a devorar os pudins. - São fantásticos - confirmou, fitando-me. - Até agora só os comera em restaurantes que servem bifes nos Estados Unidos e pareciam panquecas duras.


- Foi aqui que surgiram, está a comer a coisa original. Apetece-lhe mais um? Ele abanou a cabeça. - Devia comer alguma coisa. Não pode ir deitar-se apenas com um pedaço de bolo na barriga. Bebi um gole do bom vinho. Inspeccionei o rótulo. Era o que Bob servia sempre com o rosbife. A Sra. Wainwright recordara-se e abrira-o com antecedência. Entrou, seguida pela filha, Brenda, que tinha mais ou menos a minha idade, cabelo louro com madeixas, a pele rosada translúcida de uma mulher do campo e os olhos azuis da mãe. Tinha duas filhas adolescentes e o marido trabalhava no supermercado da vila. Perguntei a Brenda se ele conseguira chegar a casa e ela respondeu que não, tinha de passar a noite em casa do primo, a estrada estava cortada. Brenda vivia um par de casas a seguir aos portões do solar, mas, apesar dos bancos de neve, afirmou que conseguiria voltar em segurança para casa. Pousaram as travessas na mesa, retiraram os pratos vazios, trouxeram-nos outros e deixaram-nos. Em piloto automático, ofereci o rosbife a Montana; passei-lhe as batatinhas novas misturadas com manteiga e salsa, as pastinacas assadas, as couves-de-bruxelas. Servi-me só por causa das aparências, mas não consegui tocar em nada. Em vez disso, engoli o vinho. Harry Montana serviu-me mais um pouco. - São boa gente - comentou. - Aqui é tudo boa gente. E não havia ninguém melhor do que Bob. Estas pessoas sabem-no bem; ele cuidava delas tal como os fidalgos da aldeia costumavam fazer nos velhos tempos. Montana não pareceu impressionado. - Deixe-me dizer-lhe isto, Montana - declarei, estimulada pelo vinho e pelo medo. - Pode parecer-lhe estranho, mas Bob Hardwick era um homem de infinita bondade. Pergunte a quem quiser por aqui. Estava sempre a dar e sem qualquer problema, sem pedir retribuições ou elogios. Se alguém estava com necessidades e ele ficava a sabê-lo, ajudava sem fazer alarido. O que dizia sempre era que já passara também por isso, que já se encontrara no fundo do vórtice emocional e financeiro. E era por isso que me compreendia. Sabia de onde eu vinha, naquele ponto baixo da minha vida em que o conheci, e ajudou-me sem fazer perguntas. Ele


simplesmente... compreendia. Esse era o verdadeiro Bob Hardwick. - Fitei Montana com dureza. - Ninguém quereria matar Bob - acrescentei. Ninguém! - Espero que tenha razão. A porta abriu-se e Brenda entrou para retirar os nossos pratos. Trazia uma travessa de queijos, bolachinhas salgadas e uvas e foi buscar a garrafa do porto ao aparador. - A minha mãe traz já o café. Tenho de me ir embora, voltar para junto das minhas raparigas. - Obrigada, Brenda. - Lancei uma olhadela à neve, ainda a rodopiar contra as vidraças. - E tome cuidado. Não está a melhorar nada lá fora. Ouvi a porta fechar-se atrás dela. O relógio esmaltado francês, com as pequenas ninfas de bronze a erguerem o mostrador de cristal, fazia tiquetaque e Rats mudou de posição aos meus pés. A sala era agradável, sossegada, com o cheiro persistente do rosbife e o aroma do bom vinho. Quente e escassamente iluminada, era um bom sítio para se estar numa noite tempestuosa de Inverno ou, pelo menos, teria sido se fosse Bob a servir o porto e não Montana. Uma onda de ressentimento submergiume. Porque tinha de vir aqui este desconhecido lançar estas dúvidas terríveis sobre a morte de Bob? Porque teria de estar a nevar, deixandome aqui presa com ele? Em qualquer outra altura, poderia ter-lhe dito para se ir embora, mas nesta noite era impossível. Recusei o porto e, em vez disso, com uma mão trémula, servi-me de outro copo de vinho. O terceiro. Estava a contar. Mais um cosmopolitan. E com o estômago vazio. Disse comigo mesma que era melhor comer qualquer coisa e tirei uma bolachinha salgada e um pedaço do queijo Wensleydale local. Não disse nada, à espera do movimento seguinte de Montana. Não tinha agora qualquer dúvida que deixara o inimigo atravessar os portões de Bob. A Sra. Wainwright entrou com a bandeja das coisas do café. Desejou-nos boa noite e deixou-nos de novo sozinhos. Senti os olhos de Montana postos em mim. Esfarelei o queijo nos dedos. Se o metesse na boca, sabia que me engasgaria. Rats deslizou, saindo de baixo da mesa. Dirigiu-se para a porta, olhando para trás, para mim.


- Tenho de deixar Rats ir lá fora - disse, levantando-me. Montana seguiume. - Ele é pequeno e a neve está alta. E melhor abrir-lhe um espaço com a pá. Assenti agradecendo, a pensar como é que ele podia ser impermeável às ondas de animosidade que emanavam de mim, tão tangíveis como a nuvem de poeira à volta do personagem Pig-pen na banda desenhada de Charles Schulz. Estava habituado, calculei, o investigador privado bem sucedido, convocado para salvar bilionários e, sem dúvida, fazendo uma fortuna com eles. Sabe Deus quanto é que Bob lhe teria pago. E para quê? Tanto quanto sabia, Bob não me escondia nenhum segredo, profissional ou não. Bob era tão franco em relação aos seus defeitos e insucessos como o era em relação aos seus triunfos. Rats tremia nos degraus da cozinha a observar Montana, sem casaco, a abrir uma clareira na neve com a pá. Encostou a pá à parede, pegou no cão e depositou-o no seu espaço privativo gelado. Rats farejou com ar miserável, fez o chichi mais rápido registado na história dos cães e, com a cauda encolhida, resvalou pelos degraus acima para a cozinha quente. Apesar da minha infelicidade, fui obrigada a rir-me. Ficámos a ver o cão arrastar a velha camisola que Bob lhe dera para o seu sítio habitual em frente do Aga, dando voltas e voltas até por fim se deixar cair pesadamente sobre ela. O Aga era uma criação maravilhosa: um enorme fogão de ferro fundido azul-cobalto, que emanava um calor suave e era uma das melhores coisas que eu descobrira na vida campestre inglesa. Os seus fornos nunca se apagavam; de algum modo, mantinham uma temperatura permanentemente uniforme adequada à cozedura de soufflés, ou ao lento estufar de guisados, ou ao assar de carnes, e as suas placas com as tampas metálicas brilhantes nunca precisavam de ser ligadas. Aga alimentava também, em parte, o sistema de águas quentes do solar e transformava a cozinha na divisão mais aconchegante da casa inteira. TBob, os seus convidados e eu tínhamos muitas vezes terminado aqui as nossas noites, agrupados em redor da grande mesa de cozinha de pinho escovado, que se encontrava na casa desde que esta fora construída, a beberricar vinho e a mordiscar as excelentes bolachas de gengibre da Sra. Wainwright. Algumas das melhores noites da minha vida tinham sido


passadas em companhia jovial à volta desta mesa. No entanto, neste momento a cozinha estava imaculada. A máquina de lavar zumbia suavemente e os soalhos de madeira dura tinham um brilho escuro de muito encerar. A governanta orgulhava-se dos seus domínios. - A senhora Wainwright já terminou o seu serviço - expliquei a Montana. Encontrava-se ainda à porta a observar-me. Era enervante, como se estivesse à espera que eu pudesse fazer algum movimento em falso. Bem, com os diabos, o único movimento que eu ia fazer era levantar os últimos pratos da mesa da sala de jantar e depois ia direita para a cama. Quando lho comuniquei, Montana declarou de imediato que ia ajudar. Empilhou com eficiência os pratos, empurrando os talheres para baixo com o polegar para não caírem. - É muito bom a levantar mesas - observei. - Quando era miúdo trabalhei como ajudante de empregado de mesa num restaurante barato em Galveston. - Talvez devesse ter ficado por lá - retorqui maldosamente. Ele não fez qualquer comentário, seguiu-me apenas até à cozinha com os pratos. Enchi o lava-loiça com água, despejei-lhe Palmolive, esfreguei os pratos, passei-os por água, pu-los a enxugar no escorredor de madeira. Montana não se ofereceu para os secar, o que por alguma razão me irritou. Rasguei pedaços de rolo de papel e sequei ostensivamente os copos, polindo-os com lentidão até brilharem. Arrumei-os no armário de portas de vidro ao lado de dezenas de outros. Virei-me para enfrentar o meu hóspede silencioso e vigilante. - Está na hora de ir dormir - declarei, passando por ele em direcção ao corredor que conduzia ao vestíbulo. - Espere! Não era um pedido, era uma ordem. Rodei sobre os calcanhares. - Esperar para quê? Para você poder expor a sua estúpida teoria de que Bob foi assassinado? Bem, sinto muito, mas não quero ouvi-la. Estava a meu lado, mas virei-me furiosa para me ir embora. Desta vez agarrou-me o ombro. - Por favor, Daisy Keane, espere um minuto. Não é por mim, é por Bob. Ele deu-me uma coisa para si. Por favor, sente-se aqui enquanto a vou buscar.


Puxou uma cadeira, sentou-me nela e depois seguiu pelo corredor até ao vestíbulo. Esperei, carrancuda. Regressou célere, trazendo um volumoso envelope castanho que me entregou. - Sabe o que está aqui dentro? - perguntei. Abanou a cabeça. - Bob pediu-me apenas para o guardar. Devia entregar-lho "caso surgisse essa necessidade". E estou a citar as suas palavras exactas. Puxou a cadeira em frente e sentou-se, cotovelos sobre a mesa, mãos entrelaçadas, a olhar para mim. Avistei de novo a estranha pulseira cravejada de turquesas e interroguei-me, de passagem, porque seria que um mandão obviamente calejado usava uma coisa daquelas. Virei e revirei o envelope castanho. Por alguma razão não queria abri-lo. Não queria saber o que Bob tinha para me dizer lá do túmulo, queria apenas que as coisas fossem como sempre tinham sido. Porquê, oh, porquê, não podia apenas andar com o relógio para trás e começar tudo de novo? Começar por não estar com gripe, não ficar em casa na cama, não permitir que Bob guiasse sozinho. Então recordei-me do que Montana dissera: que se estivesse com ele, também teria morrido. Apertei o envelope contra o peito. O que continha era pessoal, de Bob para mim. Não tinha nada a ver com este homem; ele era apenas o mensageiro. O cansaço que sentira anteriormente voltou, consumindome. - Não consigo lidar com isto agora - declarei, levantando-me. - Vou para a cama. - Creio que é o mais sensato. Foi um dia longo e cheio de emoções. Recordando-me que, no final de contas, Montana era meu convidado, disse-lhe para se servir do que precisasse. Disse-lhe que havia bourbon e água engarrafada no quarto e restos no frigorífico se tivesse fome. Encontraria biscoitos na lata dos biscoitos na prateleira ali, chá... - Obrigado - interrompeu-me. - Está tudo bem. Parei à porta um pouco embaraçada. - Bem, então espero que fique confortável no quarto vermelho. - Ficarei - prometeu. O lance de escadas nunca parecera tão comprido quando me apressei a regressar ao refúgio do meu quarto. Ouvia as patas de Rats a matraquear no chão de madeira atrás de mim. Ouvi também os passos de Montana


nas escadas, abafados em seguida pela velha passadeira de seda chinesa quando se dirigiu para o seu quarto no lado oposto da casa. Esperei até ouvir a porta fechar-se e depois fechei apressadamente a minha. Pela primeira vez desde sempre, tranquei-a. Soltei um profundo suspiro de alívio. Senti-me muito mais segura longe do sinistro olhar escuro de Harry Montana, que via tudo, sempre à procura de segredos ou de respostas a perguntas que eu não soubera que existiam e que não queria conhecer. Os candeeiros estavam acesos e os seus abat-jours dourados projectavam uma luz agradável. A cama estava aberta, as almofadas afofadas, o cobertor extra dobrado ao fundo porque Brenda, que tratava destas coisas, sabia dos meus famosos pés frios. Pousei o grande envelope castanho sobre a cama, entrei na casa de banho e lavei a cara. Fui depois sentar-me no meu pequeno e bonito toucador, espalhei creme na pele e escovei com vagar o meu cabelo comprido, fitando o meu desgraçado reflexo, as minhas pálpebras inchadas e a minha boca tensa, adiando o momento em que teria de abrir o envelope. Sabia que se Bob me pudesse ver agora me diria logo francamente que eu estava com péssimo aspecto. "Recompõe-te", conseguia ouvi-lo a ralhar. "Amanhã, vai ao instituto de beleza, ao spa, a um sítio qualquer onde vocês costumam ir aperaltar-se todas. Não andes por aí a mostrar-me essa cara triste." Descobri os dentes, ensaiei um sorriso no espelho. Tinha o ar de uma mulher estafada, sem qualquer beleza especial. Desliguei com um piparote os pequenos apliques de parede prateados, descalcei os sapatos, despi-me e pendurei a roupa no roupeiro com cuidado. Vesti uma camisa de noite: cambraia de algodão branca até aos tornozelos e abotoada até ao pescoço, com mangas compridas. Enverguei o meu roupão turco corde-rosa, velho e confortável, as minhas ameninadas pantufas cor-de-rosa, excessivamente grandes e fofas, e fui estender-me sobre a cama. Rats, que estivera pacientemente à espera, saltou e veio sentar-se em cima dos meus pés. Era pesado e eu sentia-me muito desconfortável, mas não ia deslocá-lo. Precisava dele tanto quanto ele precisava de mim. Recostei-me nas almofadas, com os olhos fechados, e passei em revista o meu dia. Parecia que fora há imenso tempo que tínhamos estado ali no cemitério com aquele vento cortante enquanto Bob descia para a sua


última morada. Conseguia ouvir o tiquetaque suave do pequeno relógio ornamentado com jóias que Bob me oferecera no meu aniversário. Era uma casa de muitos relógios; Bob adorava-os. O cão fungava a dormir e o vento impelia a neve contra as janelas, com as cortinas corridas. Não podia adiar mais. Soergui-me, peguei no envelope e abri-o. Lá dentro encontrei mais três envelopes. O maior dizia: "Não abrir." Os outros dois tinham o formato de envelopes de cartas. Um dizia: "Para ser aberto no momento apropriado. Saberás quando." O outro: "Abre agora." Abri-o com cuidado e desdobrei as folhas de papel amarelo rasgadas de um bloco pautado. Daisy querida, começava a carta de Bob. Espero que nunca precises de ler isto, porque isso significará que morri. Mas, se tiveres de o fazer, então sei que me encontro em boas mãos. Nestes anos que se passaram desde que te conheci naquela festa, tornaste-te mais importante para mim do que quase qualquer outra mulher. Digo quase, porque, embora nunca tivesse falado no assunto, houve uma mulher de quem gostei imensamente há muitos anos, muito antes de te conhecer. Lembras-te de te dizer, na noite em que nos conhecemos, que também já lá estivera no fundo do turbilhão emocional? Bem, referia-me a Rosália Alonzo Ybarra. Lembras-te de te dizer que me perguntava se gostaria de ser de novo jovem, ambicioso, outra vez apaixonado? Bem, era em Rosália que estava a pensar. Quando estava com Rosália, era todas essas coisas: jovem, sem dinheiro e apaixonado. Tinha vinte anos, ela dezoito. Ela suportava a pobreza e sem dúvida que me amava e eu a ela, mas não conseguia aguentar a outra parte do meu carácter: a minha ambição ardente, a necessidade de vencer a qualquer custo. Deixou-me por causa disso. Queria apenas uma vida familiar normal, com um marido que voltasse para casa à noite e uma data de filhos. Estou a contar-te a verdade agora e é a primeira vez que falo sobre ela. Nunca mais a vi e nunca consegui superar a sua perda. Sacrifiquei-a por uma parte da minha vida que parecia mais importante na altura. Só após vários anos percebi que tinha sido muito egoísta. Por isso, estás a ver, rapariga, quando te vi sozinha e temerosa naquela noite na festa, alguma coisa do meu passado tentou ajudar-te. Era como


se, ao salvar-te, pudesse reparar as coisas, talvez até encontrar uma espécie de felicidade através de ti. E foi o que consegui, minha doce menina Daisy (a tua mãe, paz à sua alma, devia ter levado um tiro por te dar um nome desses. És muito mais uma Eleanor ou uma Isabel, mesmo uma Juliet, porque és uma verdadeira romântica, embora o tentes esconder de ti mesma). Mas isso não vem ao caso e, seja como for, posso tratar-te por rapariga que condiz muito bem contigo. E a propósito, mesmo sem estar a ver-te, sei que precisas de arranjar o cabelo, deve estar todo desgrenhado como sempre. Vai ao cabeleireiro, faz uma massagem, um tratamento de rosto e vê lá se te animas! Não serve de nada andar abatida agora que tudo acabou. Suponho que nunca fui um bom homem no melhor sentido da palavra e qualquer pessoa que me tenha chamado filho da mãe teria, se calhar, boas razões para isso. Mas tentei e preocupei-me com as pessoas e, com o passar do tempo, o dinheiro começou a significar menos para mim. Fazer cada vez mais tornou-se apenas um reflexo. Mas, quando se pensa seriamente na questão, "o suficiente" é tudo o que um homem precisa. Se me acontecer o pior, salvo morrer na minha própria cama de causas naturais, com um copo de bom bordéus e contigo a meu lado, podes ter a certeza que fui assassinado. O meu coração parou de bater. Estava ali, escrito com a letra de Bob. Engolindo as lágrimas de choque continuei a ler. Estou a imaginar-te a ler isto e percebo que fiques chocada, mas um homem como eu não chega à minha idade, sessenta e quatro, caso tenhas esquecido, sem fazer um ou dois inimigos. E, sem dúvida, alguns gostariam de me ver debaixo da terra em vez de refastelado em cima dela no soalheiro Sul de França com a minha última, e muito adorável, ruiva. Ou seja, tu. Mas já há algum tempo que tenho aquela sensação desagradável que alguém do meu passado me quer apanhar. Ao princípio, pensei que fosse apenas uma piada, algum maluco obcecado com uma figura pública rica. No entanto, agora já não tenho tanta certeza. Mas quem?, poderás perguntar. Não faço ideia e, de qualquer modo, espero que seja tudo produto da minha imaginação hiperactiva, embora Deus saiba que ofendi provavelmente pessoas suficientes (para não dizer pior) e derrotei pessoas suficientes nalgum acordo negocial ou nalguma jogada


financeira, onde se encontraria muita coisa em jogo para encher um bar de Manhattan de tamanho razoável, onde, às seis da tarde, sem dúvida brindarão todas alegremente à minha morte. Entreguei a Harry Montana uma lista de possíveis suspeitos que "ofendi", embora não possa ter a certeza de ter sido na realidade algum deles. No final de contas, há por aí muitos outros tipos descontrolados no mundo da alta finança, tanto homens como mulheres. Bem, Montana conhece todos os factos, sabe como tudo isto aconteceu e sem dúvida que te porá ao corrente da situação. Nessa lista estão seis pessoas que tentei ajudar durante a minha vida, embora me atreva a dizer que nenhuma delas o admita, ou acredite sequer que era essa a minha intenção. Poderá uma delas ser o meu assassino? (Digo "assassino" porque, se estás a ler isto, então é óbvio que já morri.) De novo, quem sabe, embora pessoalmente seja de opinião que em todas elas existe mais do que mostram as suas vidas actuais. Aqui vai outra coisa para analisares, Daisy: acredito que, se tirarmos as pessoas do seu habitat normal e as colocarmos num sítio desconhecido com outros desconhecidos, elas se tornam pessoas diferentes, ou antes, mostram-se como são na realidade. E tive a ideia perfeita para testar essa teoria. Penso que, se me mataram pelo meu dinheiro, então pelo menos vamos daí retirar algum divertimento. Por isso vou jogar um jogo e vou organizálo para ti. Recordas-te daqueles filmes antigos onde todos os suspeitos se juntam numa grande casa de campo? De algum modo, aparece sempre uma trovoada com relâmpagos a faiscar, intermitentes, e um velho mordomo sinistro; soalhos que rangem, vinho envenenado, facas a chisparem, rostos nas janelas e figuras sombrias avistadas de relance em corredores escurecidos. Bem, vai ser um pouco assim, só que em vez de uma funesta casa de campo, Daisy querida, vai passar-se tudo num iate de alta categoria, nomeadamente o famoso Blue Boat, e na Villa Belkiss. Vou mandar-te e a todos os seis suspeitos num cruzeiro pelo Mediterrâneo. Diz-lhes que será uma espécie de velório, uma "evocação solene da minha vida", como os tipos pomposos dos funerais insistem em chamar-lhe, embora pessoalmente prefira recordar a minha vida


enquanto estava vivo para a apreciar. No entanto, não será essa a verdadeira razão do convite. Envolvi-me nas vidas dessas pessoas. Agora quero que reconheçam a verdade sobre si mesmas, que revelem as suas emoções mais íntimas umas às outras e também a ti, Daisy. Quero que descubras que razões têm par a viver e como o que fizeram lhes afectou as vidas. Talvez então possam finalmente aceitar o que são. E, se afizerem, talvez me surpreendam e talvez consigam uma segunda oportunidade. É uma ideia interessante e uma forma perfeita para descobrir a verdade antes de assistirem por fim à leitura do meu testamento e descobrirem se existe nele algum legado para elas. Como e que ponho os meus suspeitos a bordo? poderás perguntar. Dinheiro, claro. E sempre o isco que as ratazanas estão desejosas de agarrar. De novo, Montana terá todos os detalhes. Assim, como vês, conto contigo e com Montana para resolver o meu assassínio. Montana garantirá também que nunca te encontres em perigo. E acredita, Daisy, que onde quer que estejas... e onde quer que eu esteja... estarei sempre lá, a tomar conta de ti. O grande envelope selado que diz "Não abrir" contém uma cópia do meu testamento e últimas vontades, feito e legalizado por mim na presença dos meus advogados, que conservam o original nos seus cofres. Deverá ser lido por Montana em Capri no último dia do cruzeiro e posso afiançar que se encontra repleto de surpresas. Não leias agora o testamento, por mais tentada que te sintas. Deverá constituir uma surpresa para toda a gente. E, a propósito, toda a gente será tua convidada neste cruzeiro, por isso não deixes nenhum daqueles snobes de nariz empinado tentar tratar-te deforma condescendente. Recorda-te, eu podia comprar e vender todos eles e eles sabem-no. No final dê contas, será por essa razão que irão lá estar. Abrirás o terceiro envelope depois de o "jogo" terminar e o mistério estar solucionado. E pessoal, rapariga, só entre ti e mim. Nunca te disse isto em vida, mas devo dizê-lo agora. Amo-te, Daisy Keane. Possuis integridade, embora tenhas alguma tendência para mentir um pouco. Não andavas de olho no meu dinheiro. E nunca tiveste por certo qualquer desígnio em relação a este rapaz velho, feio, grande e vulgar do Yorkshire. Não to posso levar a mal, embora deva admitir que, com o teu cabelo ruivo e


nariz sardento, isso me ocorreu algumas vezes. Estou só a brincar, estou só a brincar. O amor puro é amor puro e é só isso mesmo, mortos ou vivos. Sei que tomarás conta de Rats por mim. E, por favor, rapariga, cuida bem de ti. Encontra alguma felicidade, sei que anda por aí à tua espera. De facto, posso garanti-lo. Bob assinara a sua missiva como assinava todos os bilhetes que me dirigia, apenas com um gigantesco "BH". Continuei sentada alguns minutos, atordoada, mas depois, empurrando Rats de cima, levantei-me e comecei a andar, nervosa, de um lado para o outro no quarto. Porque não me confessara aquilo? Porque não me falara das pessoas de quem suspeitava e da razão para o quererem matar? E agora tinha de ir com estes "suspeitos" de assassinato num cruzeiro maluco. Puxei as cortinas e fitei a noite. A neve parara e as vidraças apresentavam aqueles cantos curvos cheios de neve branca. Tinham o aspecto que costumavam ter por alturas do Natal, quando eu era miúda e as enfeitávamos com aquele spray a imitar neve que comprávamos na drogaria. Havia um reino de fadas invernoso lá fora, um manto espesso e macio de neve, que camuflava os habituais ruídos do campo. O silêncio era tão absoluto que me latejava nos ouvidos. A carta que tinha apertada na mão abanou com o tremular de uma brisa repentina. Surpreendida, fitei-a com espanto. Lancei uma olhadela à janela, mas estava bem fechada e não havia correntes de ar. Senti um formigueiro na nuca. Seria Bob que viera cuidar de mim como prometera na carta? Rodei sobre os calcanhares, quase à espera de o ver. Pensei ouvir a cortina sussurrar e virei-me muito depressa, mas estava perfeitamente imóvel. Com o coração a martelar com força, corri a ligar todas as luzes de quarto e depois afundei-me na chaise-longue. - Credo! Não me faças isto, Bob Hardwick - exclamei com a voz a tremer. Não me faças isto. De olhos fechados, imaginei-o ali de pé, com um vestígio de sorriso no seu grande rosto de ogre. A rir-se de mim.


- Está bem. Está bem - disse em voz alta. - Estou só a imaginar coisas. Já fico bem. Está tudo bem. Mas Rats pulou da cama e correu para a porta. Ali ficou a ganir. Sabia que estava ali alguém. Obriguei-me a levantar-me e atravessei o quarto. Abri a porta. - Meu Deus! Dei um salto. Estava um homem nas sombras, a olhar para mim. Boquiaberta, com a mão comprimida contra o peito que ofegava, fitei inexpressivamente Montana. Usava um roupão turco aveludado, branco, e trazia, nas mãos um tabuleiro com um bule azul de cozinha, duas canecas às riscas azuis e um prato de bolachas de gengibre. - Lamento que se tenha assustado - disse cortês. - Ia bater à porta. Sabia que não conseguiria dormir quando lesse a carta, por isso fiz-lhe uma chávena de chá. Vi a luz por baixo da porta... - Pregou-me um susto dos diabos. - A minha voz era irritadiça, impaciente. - Desculpe. Parecia tão contrito que quase lhe perdoei. Estava descalço e pensei, confusa, que era muito atraente, o investigador tatuado implacável, bronzeado e com o cabelo muito curto. O cansaço submergiu-me e, de súbito, uma bela chávena inglesa de chá parecia ser exactamente o que precisava e a companhia de Montana parecia melhor do que nenhuma. Afastei-me para o lado para ele passar e, em seguida, apontei-lhe o sítio onde poderia pousar o tabuleiro, na pequena mesinha de vidro ao lado da chaise-longue. Rats colocou as patas em cima da mesa, farejando as bolachas. Dei-lhe uma e servi o chá. A chaise-longue era a única cadeira no quarto para além do meu banquinho do toucador e, uma vez que não queria Montana sentado assim tão perto de mim, indiquei-lhe o assento almofadado da janela. Pegou na caneca que lhe ofereci e, ainda de pé, olhou através da janela com a sua decoração de neve natalícia. - E estranho - disse -, o tipo de paz que vem com uma tempestade de neve. Não sei se é porque estamos temporariamente afastados da realidade do dia-a-dia ou se é o silêncio completo. - Fechou os olhos, tentando escutar. - Já nem sequer se ouve o vento a soprar. - Deve recordar-lhe a sua infância.


- Nada na minha infância foi pacífico. Pensei que era melhor não entrar por aí, mas depois ocorreu-me que estava tão habituada a ser discreta que deixava escapar imensa coisa. Por exemplo, se tivesse feito mais perguntas a Bob sobre o seu passado, podia ser que me tivesse falado da mulher que amara e do facto de nunca ter voltado para ela. - Então o que sucedeu na sua infância? Montana sentou-se na janela. Inclinou-se para a frente, cotovelos nos joelhos, a caneca apertada entre as duas mãos. Senti de novo aquele arrepio em zonas em que nem sequer queria pensar. Tinha um ar tão incrivelmente masculino no meu boudoir tão feminino com cortinas de seda. - O meu pai era um homem severo. Raramente falava, excepto para dar ordens. Saía a cavalo com os cobóis e ficava por vezes fora semanas a fio, deixando-me sozinho com o velhote que devia tratar da casa. Mas, quando o meu pai se ausentava, o velho bebia e eu tinha de me desenrascar sozinho. Só tinha o meu cavalo. Adorava aquela égua. Acredite ou não, ia para a escola com ela todas as manhãs, trinta quilómetros para ir e trinta quilómetros de novo para voltar, já vê como estávamos afastados de tudo. Amarrava-a ao poste, dava-lhe um saco de comida e entrava naquela pequena escola de província. Apenas uma sala e sete miúdos relutantes, todos de idades diferentes, todos ali para aprenderem alguma coisa. Mas lá aprender aprendemos, eu sabia conjugar verbos em latim antes de aprender sequer a fazê-lo bem em inglês. Bebi um gole do meu chá, esquecendo temporariamente Bob. Os olhos cor de carvão de Montana perscrutaram-me o rosto. - Está com um aspecto um pouco melhor. Já tem alguma cor nas faces. Embaraçada, escondi os pés debaixo de mim, com o meu velho roupão cor-de-rosa e pantufas gigantes, sentia-me como uma miúda de escola que cresceu demasiado depressa a dormir em casa de uma amiga. O cão roubou uma segunda bolacha e mastigou-a com ruído deixando cair migalhas em cima do tapete. Não me importei. - Penso que deve ler isto.


Estendi-lhe a carta de Bob. Tive perfeita consciência dos nossos dedos a tocarem-se quando ele pegou no papel. Reparei também que ainda usava a pulseira turquesa estilo índio. Calculei que nunca a tirasse. Ele leu a carta com cuidado, estudando todas as palavras como se pudesse descobrir duplos sentidos ou referências ocultas que me tivessem escapado. Duvidava que houvesse algumas, porque Bob dizia sempre exactamente o que queria dizer. Levantou a cabeça. - Acredita nele? - perguntou. - Bob nunca mentia. - Então faz alguma ideia de quem pudesse querer matá-lo? - Não me ocorre ninguém. Montana dobrou a carta e passou-ma de novo. - Recorda-se do que aprendeu na Bíblia? Os dez mandamentos transmitidos por Moisés? Recordava-me bem. - Não cometerás adultério - respondi. Não roubarás. Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu boi, o seu burro e tudo o que é do teu próximo. - Posto em contexto - disse Montana -, o que temos? Sexo, dinheiro, ciúmes, inveja. O suficiente para se matar. - Mas Bob era um bom homem. Nunca magoaria intencionalmente ninguém. Já lhe tinha dito, ele ajudava sempre as pessoas. - Hardwick era um homem de negócios pragmático num mundo duro e muito competitivo. Como é que pensa que teve tanto sucesso? Ficou tão rico? Fez o que tinha de fazer e era tão implacável como qualquer outra pessoa quando tinha de o ser. Não disse nada, mas sabia no íntimo que Montana tinha razão. Ele levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. - Dinheiro, poder. É o móbil número um. Virou-se para olhar de novo pela janela, com as costas voltadas para mim, disse: - Depois há o móbil número dois. Paixão. Sexo. - Não sei nada dessa parte da vida de Bob - retorqui muito formal, porque sabia que Montana estava a pensar se Bob e eu teríamos sido amantes.


Ele rodou sobre si e olhou-me nos olhos. - Porque não? - Bob disse-me que não me queria - respondi, arrependendo-me das palavras quase antes de me saírem da boca. As sobrancelhas de Montana ergueram-se. - Ora então - disse, meio a sorrir. - Agora surpreendeu-me. - Ele não queria dizer isso assim - repliquei na defensiva. - Tínhamos acabado de nos encontrar, ele oferecera-me um emprego e eu pensei que me estava a fazer uma proposta. Declarou-me sem rodeios que podia ter qualquer mulher que quisesse e que, por certo, não me queria a mim. Não pretendia que fosse um insulto - acrescentei -, só que queria que eu entendesse muito bem que só me estava a oferecer um emprego. - E um grande emprego para uma mulher com poucas ou nenhumas habilitações. Comecei a ferver de cólera quando descobri que me estava a defender outra vez. - Bob não andava atrás de habilitações. Queria ajudar-me. Leu a carta dele. De qualquer modo, como poderá ter reparado, eu aprendi muito depressa. Ele afirmou que eu era indispensável, disse que não podia governar a sua vida sem mim. - Então está a dizer que não pode, de forma alguma, ser considerada suspeita de o ter assassinado? Furiosa agora, pus-me de pé de um salto. - Pare com isso - vociferei. - Pare simplesmente com isso! E não, não dormi com Bob Hardwick. Não, não andava atrás do dinheiro dele. Não, não "cobicei" nada do que lhe pertencia, excepto o tempo que tinha para passar comigo. Era o meu melhor amigo, bem como meu empregador e... e... - esgotaram-se-me as palavras e a energia. - Estava só a pensar - declarou Montana muito calmo. Fitei-o indignada. - Sabe que mais? Se fosse alguma vez matar alguma pessoa, neste preciso momento seria você. - E exactamente assim que acontece. A paixão do momento. Enfurecida, atirei-me de costas para cima da cama, com os braços por cima da cabeça, pés enfiados nas pantufas a pontapear o ar. - Ohhhh! - berrei. - Porque é que havia de o conhecer?


- Porque Bob organizou as coisas. Deu-nos uma tarefa a ambos. Cabe-nos agora levá-la a cabo, independentemente dos nossos sentimentos pessoais. Sentei-me e fitei-o, glacial. - Não sei se consigo fazer isso - retorqui, cerimoniosa como sua majestade a rainha. - Azar - replicou ele com frieza. - Temos as nossas ordens. E, de qualquer modo, não está a fazer isto por mim, está a fazê-lo pelo homem de quem realmente gostava. - Foi até à mesa e pegou no bule. - Mais chá? - Não, obrigada. Ele voltou a encher a sua caneca, parecendo muito à vontade com o seu roupão no meu quarto. Rats trotou até Montana e instalou-se-lhe aos pés. Traidor, pensei. Levantei-me, descalcei as pantufas, despi o roupão. - Vou dormir - declarei, recordando-me tarde de mais da camisa de noite à avozinha, abotoada até ao pescoço e que me chegava aos tornozelos. Subi apressada para a cama e puxei os cobertores até ao queixo. - Muito bem, falamos mais um pouco amanhã de manhã, por volta das dez, delineamos alguns planos - disse Montana. Deu a volta ao quarto, verificando as janelas, correndo as cortinas, desligando os candeeiros. Fez uma festa final a Rats quando se encaminhou para a porta. - A propósito... camisa de noite gira - anunciou quando a porta se fechou atrás dele. Ia jurar que o ouvi rir-se. Virei a cabeça para a almofada e adormeci em segundos. Montana não adormeceu. Ficou deitado na cama durante muito tempo, as mãos cruzadas por trás da cabeça, a fitar o dossel pregueado de seda vermelha, perdido nos seus pensamentos. Conhecera Bob Hardwick há dez anos, quando o magnata o contactara para investigar os antecedentes de certos candidatos a uma posição executiva de grande poder na sua empresa. Montana tratara da tarefa com rapidez e eficiência e depois fora conversar com Bob.


Hardwick recostara-se na sua cadeira de pele, de tamanho exagerado, por trás da impressionante secretária de pau-rosa do seu gabinete, num último andar de Manhattan, a olhar para ele na expectativa. As secretárias afadigavam-se, entrando e saindo com documentos para assinar, o que ele fazia sem sequer lhes lançar um olhar. Vários assistentes vieram avisálo do iminente almoço de negócios no Four Seasons, dizer-lhe que o alfaiate ia subir com os fatos novos para ele experimentar e que uma mulher, com um nome muito conhecido da alta sociedade, desejava falarlhe. Ele mandou-os embora a todos com um aceno da mão grande como se fossem moscas aborrecidas. - Chegarei quando chegar - foi tudo o que disse e os assistentes reviraram os olhos e foram tentar aplacar os que esperavam. Tinha o ar de um homem bravio com o seu fato amarrotado, o farto cabelo acinzentado espetado, os olhos azuis implacáveis sob sobrancelhas franzidas e grisalhas, a tez cor-de-rosa sugestiva de tensão alta. Era impressionante na sua estatura e fealdade. As sobrancelhas erguidas de Montana deviam ter demonstrado que duvidava que Hardwick estivesse realmente a ouvir o que ele tinha para dizer, com todas aquelas interrupções. - Não se preocupe, rapaz, estou a ouvir. - Hardwick inclinou-se por cima da secretária, prestando-lhe pela primeira vez completa atenção. Montana apresentou-lhe a verdade sobre os candidatos ao emprego e as suas apreensões em relação ao que, no papel, parecia ser o melhor. - Estou a confiar no meu instinto, mas aconselho-o a não o admitir. - Gosto de um tipo com instinto. Consegui chegar ao topo confiando exactamente na mesma coisa. Então gosta do que faz? Averiguar e meter o nariz em tudo, esse género de coisa? - O meu trabalho não é apenas investigar antecedentes de potenciais empregados, ou descobrir o que estão a fazer empresas internacionais rivais e quais são os seus problemas. Somos também uma empresa de segurança. Garantimos a segurança dos nossos clientes. - Refere-se a homens como eu? - Hardwick pareceu interessado. " Homens como o senhor. Bilionários, membros de famílias reais, celebridades. - Quer dizer estrelas de Hollywood?


- Entre outras, sim. Hardwick rodou uma caneta nos dedos, fitando a secretária, reflectindo. - E como é que um homem sabe se está em perigo... no caso de um assediador, digamos? - É melhor empregar alguém como eu antes de chegar a essa fase. Ainda a rodar a caneta, Hardwick suspirou. - Não aguentava isso, ser vigiado, com alguém a seguir todos os meus movimentos. Que tipo de vida seria esse? Não, sou um homem que valoriza a sua liberdade. E, estranhamente, um homem que valoriza a sua solidão. - Lançou a Montana um longo olhar penetrante. Um homem como você, calculo. Montana teve de admitir que ele tinha razão. Hardwick pegou na candidatura que considerara. Examinou-a, pensando no que Montana acabara de lhe dizer em relação ao seu instinto. - Sabe que mais, porque não lhe ofereço o emprego a si? Pago-lhe o dobro do que ganha agora. - Estava a usar a mesma táctica de suborno que usava sempre que queria muito alguma coisa. - Não tem experiência, mas apanha o jeito depressa, dá para perceber. E o que não souber sobre aquisições de controlo, capitais de empréstimo e finanças ensino-lhe eu. O que me diz, Montana? - Porquê eu? - Gosto de si. Instinto. Certo? - Certo. E é uma bela oferta, mas lamento não poder aceitar. Hardwick perscrutou Montana com atenção. Depois disse: - Claro, vejo-o agora, um homem como você não podia acatar horas de serviço normais, estar preso a um horário, repetir a mesma tarefa vezes sem conta. Você tem alma de aventureiro, Montana. Além disso, se trabalhasse para mim, tinha de cortar o cabelo de maneira diferente e livrar-se do diabo dessa pulseira. Um assistente espreitou à porta. - Four Seasons, senhor... almoço... - Desapareça - respondeu Hardwick ao assistente. Montana estava já de pé, pronto para ser dispensado. - E você sente-se, Montana. É demasiado interessante para o deixar ir já embora. Que idade tem afinal? Trinta e quatro? Jovem e ainda moldável, certo? Preciso de jovens como você por


aqui, homens que não me digam sempre que sim, homens com integridade. Tem a certeza que não lhe posso oferecer um emprego? vou subir a parada. Ofereço-lhe três vezes o que ganha agora. Com a cabeça esticada para a frente, Montana fitou Hardwick directamente nos olhos. - Senhor Hardwick, estou disponível a qualquer hora na minha qualidade de investigador ou por questões de segurança. Gosto do meu trabalho e não mudaria de maneira nenhuma. - Nem sequer se encontrar uma boa mulher e se apaixonar? - Nem sequer nessa altura. Ela teria de me aceitar como sou. - Tentei isso quando era jovem, pobre e lutava para vencer na vida. Para mim não funcionou - acrescentou Hardwick com um sorriso forçado. - Ela amava-me, mas deixou-me. Não era o dinheiro, ou antes a falta dele na altura; era a minha própria ambição egoísta. "Aceita-me como sou", disse-lhe e ela recusou. Por isso aí tem, Montana. Com as mulheres é arriscado. Mas respeito os seus sentimentos e penso que é muito bom no seu trabalho. Levantou-se e Montana fez o mesmo. Apertaram as mãos e Hardwick acompanhou-o à porta. - Avise-me se alguma vez mudar de ideias. Nos dez anos que se seguiram, Hardwick contactara várias vezes com Montana. Almoçavam muitas vezes num restaurante barato na Rua 49 Este, onde Bob gostava muito dos hambúrgueres e das batatas fritas palha. Falavam sobre o negócio em expansão de Montana; sobre os novos escritórios que estava a pensar abrir em Londres; sobre a mulher francesa de Bob, que em breve se tornou a sua ex-mulher; sobre a sua temperamental amante italiana, que se tornou também uma ex; sobre como nunca arranjava tempo para visitar a sua villa em Capri e sobre como sonhara sempre em navegar à volta da ilha porque, na sua opinião, seria ainda mais bela vista da água. - É um sonho meu - confessou a Montana. - E foi por isso que comprei a casa sem a ver. Pertencia a Vassily Belkiss, um famoso dançarino de ballet, e, quando ele faleceu, ficou ali estagnada durante anos. É a única coisa


que tenho de agradecer à italiana; descobriu-a, persuadiu-me a comprá-la, disse-me que era um bom investimento. Não tenho a certeza se teria razão nesse ponto, mas apaixonei-me pelas fotografias e pelo romantismo daquilo tudo. Calculo que algum dia encontrarei tempo para a visitar; entretanto, é um belo sonho. Talvez me vá lá visitar? O que me diz, Montana? - Quando quiser - replicara, mas a coisa não avançara mais porque, no minuto seguinte, Bob estava a falar-lhe de um pequeno problema que começava a irritá-lo. - É o maldito e-mail. Aquele comunicador instantâneo que invade a privacidade de um homem a qualquer hora do dia ou da noite. Estou sempre a receber esses pequenos bilhetes ameaçadores, coisas simples, pueris na realidade, como por exemplo: "Sei onde estás neste preciso momento. Lembra-te que te estou a vigiar." E: "Sei com quem estiveste a noite passada. Os meus olhos estão sempre em cima de ti." - Encolheu os ombros. - Claro que é demasiado estúpido pensar que alguém seja capaz de controlar todos os momentos da minha vida sem eu reparar. - Eu conseguia - respondeu Montana. Bob ergueu a cabeça, fitando-o surpreendido. - Tão simples quanto isso, é? - Não, mas os meus homens são bons naquilo que fazem. - E este maluco, poderá ser tão bom assim? - Nunca presuma nada. Poderá ser uma mulher. - Uma fêmea ciumenta, hum? Montana sorriu. - Conhece alguma do género? - perguntou e Bob sorriu em resposta e disse que conhecia algumas. Montana sugeriu que podia monitorizar os e-mails e que destacaria de imediato seguranças vinte e quatro horas por dia, mas Bob recusou terminantemente. - Já lhe tinha dito, não ia aguentar isso. Não faz parte da minha natureza, nem da sua, Harry Montana, viver como um animal encurralado. A seguir entregou a Montana uma lista com seis nomes e pediu-lhe para os investigar. - São pessoas que, numa altura ou noutra, estiveram envolvidas na minha vida, pessoal ou profissional. Todas têm um defeito. E todas estão


ressentidas comigo, apesar de eu ter feito o que pensei ser melhor para elas. Quero saber em que ponto das suas vidas estão, o que andam a fazer e com quem. Quero saber se merecem a minha ajuda. Quando Montana lhe perguntou porquê, Bob encolheu de novo os ombros e respondeu: - Instinto. Qualquer delas poderá querer matar-me. - Mas ria-se ao dizê-lo. - Estou a brincar - acrescentou. Dois dias depois morria. A morte de Sir Robert Hardwick não fora considerada assassínio; de facto, fora precisamente o contrário. Era um acidente: calculara mal a curva e o carro saíra da estrada e incendiara-se. Por algum milagre, Hardwick fora projectado. O veredicto fora morte acidental e Sir Robert Hardwick fez depois o seu último voo de regresso a casa, no Yorkshire. Os serviços de assistência locais tinham içado os destroços do veículo pela montanha acima e Montana recebera autorização para rebocar a massa de metal chamuscada para uma garagem que usava em Nova Jérsia. Lá permanecia, embalada, a aguardar o que faria a seguir. Mas, primeiro, tinha de decidir se o pressentimento de Bob de que alguém o queria matar estava correcto. Seria uma noite em claro no quarto vermelho. Na manhã seguinte, mais recomposta, redigi respostas a alguns dos cartões de pêsames dos contemporâneos de Bob no mundo da alta finança, bem como a um par de chefes de estado e até a um jovem membro de uma casa real com quem Bob fizera amizade num jogo de pólo e com quem mantinha correspondência e almoçava de vez em quando. Passada uma hora, quando emergi da biblioteca, Montana encontrava-se à minha espera no vestíbulo. Estava recostado contra a lareira, com as mãos enfiadas nos bolsos do velho casaco Barbour de Bob. Com o cão Jack Russell estirado aos pés, quase parecia um cavalheiro da fidalguia rural, embora duvidasse que cavalheiro fosse uma palavra que pudesse ser usada para descrever este pragmático investigador particular americano. - Fico satisfeito por ver que não se atrasou - declarou, com aquele pequeno sorriso que lhe estreitava os olhos cinzentos e que emprestava, tive a desconfortável certeza, um duplo sentido às suas palavras.


Apressei-me a ir à sala das botas enfiar alguma indumentária para a neve. Com mau aspecto, mas vestida com roupas quentes, regressei ao vestíbulo. Montana desenrolou a sua comprida estatura da lareira onde estivera a tostar os ossos. - Vamos, rapaz - disse para Rafs, que se levantou e ficou a olhar para ele na expectativa. Como se Montana fosse o seu novo dono, pensei com amargura. Lá fora, farejei o ar gelado, a pensar na Primavera e nos crocos e campânulas, para não falar dos montículos de narcisos, que deviam já cingir as encostas suaves dos jardins do solar de um amarelo optimista. Senti a mão de Montana no meu cotovelo a segurar-me quando descíamos os degraus, mas afastei-me dele com rapidez mal pisámos o trilho estreito escavado na neve na alameda que conduzia à casa. O cão animara-se com a ideia de um segundo passeio tão cedo depois do primeiro e saltitava à frente, virando à direita, quando chegou aos portões, como se soubesse que íamos ao Rams Head. Rats passara muito tempo no pub com Bob e toda a gente aí lhe dava sempre muita atenção. Bob comprava-lhe uma salsicha à inglesa, que ele devorava em duas rápidas dentadas e depois erguia a cabeça suplicante a pedir mais. - Temos de falar sobre a lista de Bob - começou Montana, antes mesmo de chegarmos ao fim do caminho. - Quero que me fale das pessoas referidas, quem são, o que sabe sobre elas. - Não devia saber isso já? No final de contas, você é que é o detective. - Os detectives descobrem coisas fazendo perguntas - retorquiu pacientemente, como se falasse com uma criança mimada. - Muito bem, então o que quer saber? - perguntei carrancuda. Lançou-me um olhar desconfiado que descortinei pelo canto do olho, mas mantive a minha atenção, determinada, no caminho aberto na neve pelo meio da rua da aldeia. Não queria saber de assassinatos. Não queria saber de "suspeitos" e não queria ir num cruzeiro com eles. Queria que fosse tudo exactamente como costumava ser. Como é que Bob me podia fazer isto? - Lembre-se, isto é por Bob - disse Montana, como se me lesse os pensamentos. - Considere-o o seu trabalho final para ele. - Claro - repliquei, envergonhada. - Faço o que for preciso para ajudar.


Quando chegámos ao pub, Rats estava já sentado à porta. Mergulhou lá para dentro à nossa frente, com a cauda a abanar, e ouvi Ginny, atrás do balcão do bar, exclamar: - Eh, Rats, querido, fantástico ver-te outra vez. Arranjo-te a tua salsicha num abrir e fechar de olhos. Seguimos o cão e entrámos na estalagem do século XVII sendo de imediato engolidos pelo agradável ar abafado do calor que emanava dos radiadores, bem como do enorme lume que ardia na lareira de pedra onde se podia entrar. O cheiro da lenha de macieira misturava-se com o fumo de cigarro e o aroma frutado da cerveja à pressão sobreposto por um forte odor de molho. Acenei para Ginny, despindo o casaco e avançando pela sala de tecto baixo com o seu balcão de madeira muito usado, vigas antigas enegrecidas e estuque da cor de nicotina. Havia apliques de madeira com abat-jours vermelhos nas paredes, pequenos candeeiros com quebra-luzes vermelhos nos peitoris largos de madeira e as janelas, de vidraças em losango, estavam embaciadas de condensação devido ao calor que fazia lá dentro e ao frio amargo lá fora. Alguns homens mais velhos estavam sentados a beberricar cervejas em pequenas mesas salpicadas de bases para copos com publicidade à cerveja Tetleys. Os bancos de madeira onde se sentavam tinham as costas altas e eram duros, mas eles tinham passado toda a sua vida neles e pareciam confortáveis, como se estivessem em casa. Parei para os cumprimentar e apresentei Montana como um amigo de Sir Robert. Então Reg Blunt saiu detrás do bar para lhe apertar a mão. Disselhe que íamos para uma mesa na pequena sala lateral, que era mais sossegada e onde podíamos conversar à vontade. - O empadão de carne hoje está bom - informou Reg. - A não ser que lhe apeteça bife com batatas fritas, senhor Montana? - Ele é do Texas - avisei. - Então é melhor esquecer o bife. Fica melhor com o empadão, ou salsichas com puré. E, claro, temos sempre empada de lavrador ou empada de porco. Recordei-me que não comera no dia anterior e que agora estava cheia de fome. Pedi uma empada de porco e também a de lavrador, que aqui consistia em queijo Cheddar e queijo local Wensleydale com um pedaço


de pão e o molho castanho-escuro condimentado de que agora gostava muito, e que se chama Branston pickle. Montana escolheu o empadão de carne e ambos pedimos cerveja à pressão Tetleys. Ginny trouxe a salsicha para Rats, já cortada aos pedacinhos. - Se não a corto, ele engole-a - explicou, olhando criticamente para Montana e sorrindo-lhe. - Recordo-me de si ontem na igreja. Prazer em vê-lo de novo. Este é o melhor sítio da cidade, sabe. Montana replicou que era o único sítio da cidade, ela riu-se e afastou-se com as suas botas pretas de pele de saltos muito altos, o amplo traseiro vermelho a contorcer-se. Montana olhou-me a direito nos olhos e ergueu o copo num brinde: - A nós, Daisy Keane. Porque vamos ficar a conhecer-nos muito bem. Bebi um gole da cerveja amarga, que só bebia quando vinha ao Rams Head, olhando para Rats, que despachara a sua salsicha e me mirava, na esperança de mais. Deslizei de novo o olhar para Montana. Ainda estava a fitar-me, à espera, supus, de algum tipo de reacção ao seu brinde. Pousei o copo. - E porquê, Montana? - Vamos fazer um cruzeiro juntos, você e eu - retorquiu, com aquele pequeno meio sorriso a brincar-lhe nos lábios. - O que o faz pensar que vai? Não o convidei. - Não. Mas Bob sim. A antipatia mútua faiscou entre nós. Peguei no copo e emborquei um grande gole da cerveja, limpando a espuma dos lábios com as costas da mão. Vi-o sorrir, mas era demasiado tarde para me mostrar muito refinada. Deus sabe por que razão Bob o teria contratado e, ainda pior, porque lhe pedira para ir comigo neste cruzeiro ridículo. Mas se alguém sabia alguma coisa profundamente pessoal sobre Bob e a sua vida era eu. Apostava que Montana sabia apenas coisas relacionadas com o negócio. Reg aproximou-se com uma caçarola pequenina de empadão de carne a fumegar. Cheirava tão bem que quase desejei tê-la pedido eu, mas depois Ginny pousou a minha empada de porco e o pão e o queijo à minha frente e desejou-me bom apetite, acrescentando que eu estava com aspecto de precisar de engordar um pouco. Comi em silêncio, meditando no meu futuro num cruzeiro com Montana.


- Como é que sei se Bob o convidou? - perguntei por fim. Montana pousou o garfo e tirou um pedaço dobrado de papel amarelo do bolso das calças de ganga. Estendeu-mo e depois continuou a escavar o seu empadão de carne. Era uma carta de Bob. Montana, começava. Trabalhamos juntos há quase dez anos e sei que posso confiar em si. Já lhe dei uma lista de pessoas de quem fui íntimo e que penso acreditam de alguma maneira que beneficiariam com a minha morte. Nada é imutável, compreende, mas se se provar ser verdade e um deles me quiser ver morto, então só um dos seis é culpado. Espero que nunca tenha de usar esta lista, mas, caso essa ocasião surja, sei que estou nas suas boas mãos e que não me desapontará. Aqui está o que quero que faça. Veja se Daisy convida todos eles para um cruzeiro no Mediterrâneo para "evocar solenemente a minha vida". Uma espécie de velório flutuante, poder-se-ia dizer. Precisará de lhes adoçar a boca e aposto que isto os fará ir aonde interessa. Oferecerá a cada um cem mil dólares para fazer um cruzeiro de luxo, com todas as despesas pagas. Dir-lhes-á também que o meu testamento será lido na Villa Belkiss, em Capri, no dia em que o iate aí atracar e que alguns deles poderão receber alguma coisa. Não tenha a menor dúvida, Montana, todos eles pensarão que são mencionados no meu testamento. Diga-lhes que eu queria convidá-los pessoalmente e que, se estivesse vivo, me juntaria a eles como seu anfitrião. Estarão a morrer por saber o que poderão lucrar com isto, desculpe o trocadilho. De qualquer maneira, sempre quis fazer um cruzeiro e nunca tive tempo, por isso estou a pensar porque não convidar também mais alguns amigos? Alargar as fileiras dos suspeitos, por assim dizer. Este tipo de histórias de mistério tinha sempre algumas manobras de diversão e utilizaremos esses outros convidados como se fossem as nossas. Dar-lhe-ei uma lista separada de nomes para isso, ou pode você escolher algumas pessoas. Chame-me velho excêntrico se quiser, mas sempre gostei desses filmes onde "o culpado é o mordomo" e pensei que seria uma boa forma de descobrir quem foi o meu "mordomo".


Blue Boat é o iate que escolhi. Pertence a uma amiga e sugiro que a contacte logo que possível. É o Ritz-Carlton dos iates de luxo, grande, elegante, cheio de classe e com uma excelente tripulação pelo que diz a minha amiga. Quem me dera poder ir convosco, mas talvez esteja a observar tudo, de qualquer modo. Nunca se sabe. Bem, quero que todos se divirtam muito, excepto o meu assassino, claro. É um bom homem no seu trabalho, Montana, o melhor, diria, e sei que levará a cabo esta minha última incumbência da sua habitual forma excelente. Os seus honorários, como de costume, já estão tratados, tal como todas as despesas. Os meus advogados, Grady, Marshal, Levin and Frost, cujos escritórios são em Moorgate, Londres, foram postos ao corrente da situação e cumprirão as suas ordens. Mais uma coisa vou confiar-lhe a guarda do meu bem mais precioso. Uso a expressão no seu sentido mais lato porque Daisy Keane nunca me pertenceu. Mesmo assim, representa a minha única família. Amo-a, embora tenha a certeza que, por esta altura, você já percebeu que pode ser tão exasperante como qualquer outra mulher que tenha conhecido e muito mais ainda. Será sua tarefa, Montana, mante-la em segurança. Consigo a seu lado, sei que não a estou a colocar em perigo e, quem sabe, poderão até apreciar a companhia um do outro. Boa sorte na sua investigação. Depois, quando tudo estiver terminado e o assassino for preso, conseguirei com certeza descansar em paz. Até lá, não aposte nisso! Tendo escrito tudo isto, não estou actualmente a planear ir a sítio nenhum e estes acontecimentos poderão nunca ter de se desenrolar. Mas se isso suceder, então boa sorte. Divirta-se no cruzeiro. Assinava: Um abraço, Bob Hardwick. O meu coração começou a derreter. Bob chamara-me a sua "família", declarara que me amava. Mas dissera também que eu podia correr perigo e que precisaria da protecção de Montana. Senti pela primeira vez um espasmo de medo. Lancei uma olhadela a Montana, a saborear o seu almoço, alheado do possível risco que eu corria. O meu destino estava nas suas mãos. Graças a Bob, ia fazer um cruzeiro pelo Mediterrâneo a bordo de um iate de luxo,


com um homem que mal conhecia, e que certamente não queria conhecer, bem como com meia dúzia de suspeitos de assassínio, que deveria convidar e entreter com o estratagema de que era essa a ideia que Bob fazia de uma homenagem de despedida. - Muito bem. - Suspirei, resignando-me ao meu destino. - Então onde está a lista? Montana tirou outra folha de papel amarelo do bolso. Sem olhar, estendeu-ma e continuou a comer, - Obrigada - disse eu, mas com ele o sarcasmo parecia um desperdício. Era realmente a letra de Bob e, com uma única excepção, eu conhecia todas as pessoas mencionadas. A ex-mulher, Lady Diane Hardwick, encabeçava a lista. "- Sei qual seria o móbil de Diane para o assassínio. Ganância. Bob contoume que, quando casou com ela, se casou com a "classe". Foi assim tal e qual que descreveu as coisas. Ela pertence a algum tipo de aristocracia francesa, embora Bob nunca tenha conhecido a família. Recordo-me, no entanto, que o nome de solteira era de Valentinois... Diane de Valentinois. Muito romântico, pensei. Bob conheceu-a no Festival de Cannes. Estava a distribuir panfletos informativos e contou-me que usava um vestido de noite vermelho, muito sexy, que mostrava na perfeição o corpo deslumbrante. "Bastou-me olhar uma vez e fiquei pelo beicinho", contoume. "Teria feito qualquer coisa para a possuir." Isso foi há dez anos. Diane deve ter agora a minha idade, talvez seja um pouco mais velha. Encontreia uma ou duas vezes. Caía simplesmente sobre nós, em Paris ou na Riviera, sempre pronta para causar problemas. E linda, no entanto. Cabelo ruivo, mais claro do que o meu, e olhos verde-esmeralda. E tem pernas fabulosas. Bob contou-me que se apaixonou primeiro pelas pernas, depois pelo cabelo. Penso por vezes que foi por nostalgia por Diane e pelo seu cabelo ruivo que me escolheu naquela horrível festa londrina, embora ele jurasse sempre que não. Bem, o casamento foi turbulento; durou apenas um ano, mas Diane insistiu em manter o título. Foi uma das condições do divórcio e agora ainda é Lady Hardwick. Bob foi generoso também; sempre muito cavalheiro, concedeu-lhe uma pensão enorme. "No final de contas, era minha mulher", foi o que disse.


- Assim, quando Diane "caía sobre" Bob em Paris ou no Sul de França, queria mais dinheiro? Assenti. - Sabe Deus para que precisava dele, Bob já lhe dera uma fortuna, mas ela é do tipo de querer sempre mais. Em todo o caso, agora vive em Nice. Passei para o nome seguinte da lista. - Filomena Algardi é a ex-amante de Bob. Uma Brigitte Bardot italiana, moderna: o beicinho, o rabo-de-cavalo louro, o biquini, sexy como tudo. Bob manteve uma relação intermitente com ela durante anos, mas ela era interesseira e, por fim, ele já não aguentava as exigências, nem as cenas e birras quando não conseguia o que queria. É fácil encontrar móbiles para ela. Que tal ciúmes e ganância? Continuei com brandura: - Nunca disse isto a Bob, mas sentia pena dele. Queria tanto acreditar que realmente Filomena o amava pelo homem que era e não apenas pelo seu dinheiro. Quis tantas vezes dizer-lhe: "Não é assim, Bob, não te metas nisso, livra-te dela, vales mil vezes mais" e não estava apenas a falar em dinheiro. Queria explicar-lhe que ele andava à procura do amor em todos os sítios errados e com o tipo errado de mulher. Havia mulheres simpáticas aqui mesmo no Yorkshire, mulheres atraentes, mulheres que ele compreenderia porque eram basicamente o mesmo género de pessoa. Convidei uma ou duas para jantares, mas Bob não resistia à ostentação e às raparigas glamorosas. "Queria exibir Filomena pelo meu braço", contou-me uma noite após demasiado vinho do porto depois do jantar. "Queria que todos soubessem que o velho e feio Bob Hardwick era tão bom como eles." Suspirei, recordando-me do dia. - Por isso, está a ver, apesar do sucesso e da riqueza de Bob, no fundo era ainda o pobre rapaz modesto que nascera no lado errado da cidade. Só vi Filomena uma vez acrescentei. - Entrou numa investida no escritório londrino de Bob, gritando que ele era um patife e que ela se vingaria dele, era só esperar para ver. Os serviços de segurança trataram do assunto, mas foi uma cena triste. Quis envergonhar Bob e obrigá-lo a ceder. Sempre achei que com Filomena tudo podia acontecer e com demasiada frequência acontecia mesmo.


Bebi um longo gole da minha cerveja amarga Tetleys antes de ler o nome seguinte. - Davis Farrell. Americano. Nunca o conheci, foi antes do meu tempo, mas Bob e ele foram sócios num projecto, durante vários anos. Não sei que tipo de coisa era, mas sei que não teve êxito. Calculo que Farrell tenha simplesmente seguido o seu próprio caminho. A seguir, na lista, vinha Charles Clement. - Na casa dos cinquenta, garboso, com aquele ar de fleuma britânica. Recordo-me que passou um par de fins-de-semana em Sneadley. Jogavam golfe e ténis e Clement apareceu para a caça à galinha-do-mato em Agosto. Era muito o tipo de fins-de-semana "só para homens", sem mulheres, com muita bebida e comida e uma conversa de homens depois do jantar com o vinho do porto, com certeza que não me queriam por ali; certificava-me que estava tudo organizado e depois ia para Londres, saía do caminho deles. - Tem amigos em Londres? - Sim claro, uma ou duas; mulheres de carreira como eu, presas aos caprichos, vidas e viagens dos seus patrões. Não sobra muito tempo para uma vida privada, mas juntamo-nos de vez em quando, almoços, compras, esse tipo de coisa. - Nenhum amigo especial então? - Bob era o meu amigo especial. E Bordelaise, claro. Montana ergueu as sobrancelhas ao ouvir o nome ridículo, por isso contei-lhe a história. Riuse. - E Bordelaise é picante então? - Como tudo. Consegue cativá-lo em meio minuto. Fá-lo apaixonar-se por ela. Toda a gente se apaixona. - É livre e descomprometida? - Dois maridos despachados e outro prestes a partir. Cansa-se com facilidade. Montana inclinou-se, aproximando-se mais, cotovelos nos joelhos, mãos cruzadas descontraidamente à sua frente. Os olhos tinham uma intensidade que achei perturbante e passei, célere, para o nome seguinte. - Marius Dopplemann.


Ergui de novo a cabeça. Era óbvio que Montana conhecia o nome, toda a gente conhecia. Dopplemann era um génio, um alemão que adquirira a nacionalidade americana e se tornara famoso e influente, primeiro no programa espacial e depois noutros projectos ultra-secretos. - O cientista alemão? Nunca o conheci e Bob nunca me falou dele, excepto uma vez para dizer que admirava o seu trabalho. Não faço ideia qual seria o móbil possível. - E o último nome? - Rosália Alonzo Ybarra. A primeira vez que ouvi falar dela foi na carta que Bob me escreveu. Foi o seu primeiro amor, há muito perdido. - Não há qualquer endereço, nem para ela, nem para Dopplemann. Nem para Clement ou Farrell - disse Montana. Encolhi os ombros. - Poderão estar nos Rolodexes pessoais de Bob. Estava na hora de irmos embora. Montana ajudou-me a vestir o casaco; levantou-me o cabelo da nuca e arranjou-me a gola. Senti um calor a percorrer-me toda e virei o rosto para ele não poder ver que corava. Era idiota reagir desta maneira apenas por causa do toque das mãos de um homem. Decidi que tinha realmente de andar mais pelo mundo. Montana foi até ao bar para pagar, detendo-se para conversar com Ginny e Reg enquanto eu levantava Rats do seu lugar preferido em frente da lareira. Acenei um adeus e saí para esperar por Montana. O frio picou-me o nariz e deslizou-me pela garganta abaixo e quase me virei para voltar a entrar, mas nessa altura Montana abriu a porta a abotoar o casaco de Bob. Pensei que poderia muito bem ficar com ele, mas talvez o dispendioso sobretudo preto de caxemira fosse mais adequado ao seu estilo urbano. Não dissera que era um homem da cidade? Percebi que não fazia sequer ideia em que país vivia. Talvez fosse simplesmente "um cidadão do mundo". Caminhámos de volta ao solar, ambos perdidos nos nossos próprios pensamentos. Eu pensava em como iria enfrentar o assustador cruzeiro e presumi que Montana estivesse a pensar no que tinha de fazer para descobrir todas estas pessoas e persuadi-las a embarcar no cruzeiro. - Se necessário, terá de ser você a persuadi-las - declarou. Lera-me de novo os pensamentos.


- Eu? - perguntei numa voz esganiçada de nervosismo. - É a pessoa mais chegada a Bob. Ê também a anfitriã, a pessoa québ convida para este cruzeiro em homenagem a Bob. - O velório - respondi sombriamente, fungando, com o nariz a pingar, e puxando o gorro de esqui, de lã, mais para baixo para proteger as orelhas do vento gelado. - Exacto. Vão telefonar-lhe, claro, querendo saber mais pormenores. Digalhes que será tudo muito divertido; diga que Bob queria que fossem felizes depois da sua morte. Foi o seu último desejo e deixou-lhe uma carta a pedir-lhe para fazer isto por ele. A sua tarefa final. - Está bem. Com o dedo do pé da minha bota de neve cor-de-rosa pontapeei, taciturna, a neve empilhada junto aos portões do solar. Stanley, o jardineiro, estava à porta da casa da entrada onde vivia com a mulher e três gatos pretos, dois dos quais se lançaram a Rats a bufar. Com a cauda entre as pernas, Rats fugiu para o solar enquanto os gatos, a quem Stanley gritava para se comportarem, se acalmaram numa camada de gelo e alisaram os bigodes, tendo vencido a batalha do dia. - Boa tarde, senhora Keane, senhor Montana. - Stanley levou a mão ao seu boné de caçador de veados. - Poderá nevar um pouco mais tarde, mas ouvi dizer que os limpa-neves vêm para os nossos lados esta noite, por isso haverá hipótese de poder sair daqui, senhor. - Folgo em sabê-lo, senhor Stanley. E sem dúvida a senhora Keane também. - Mantê-lo-ei informado então - disse Stanley quando prosseguimos o nosso caminho. Rats estava já à espera na porta das traseiras. Entrámos na sala das botas, removemos em silêncio os nossos casacos e descalçámos as nossas botas. Caminhei de meias pelo corredor passando a cozinha em direcção ao vestíbulo e Montana seguiu-me. Rats ocupou de imediato a sua posição em frente do lume e nós entrámos na biblioteca que Bob costumava usar como escritório. Mostrei a Montana os três grandes Rolodexes para procurar os endereços dos suspeitos.


Dizendo a Montana que me encontraria com ele ao jantar, deixei-o com o seu trabalho. Rats ergueu a cabeça quando passei, mas não me seguiu e, ligeiramente aborrecida, percebi que queria ficar com Montana. De volta à segurança do meu quarto, despi-me e vesti um roupão. Untei com vaselina o meu nariz vermelho queimado do frio e depois deitei-me na chaise-longue aveludada e tapei-me com um cobertor macio. De olhos fechados, pensei nos acontecimentos das últimas vinte e quatro horas. A minha vida tomara de súbito um rumo diferente, um rumo que não sentia qualquer desejo de empreender. Tinha medo, mas não podia desiludir Bob Hardwick. Quando desci nessa noite, Montana fora-se embora e Rats estava sentado ao lado da mesa do vestíbulo com o nariz a apontar para um envelope com o meu nome escrito. Não sei como é que o cão sabia que era de Montana e se dizia ou não que saíra por uns instantes e regressaria em breve, mas, pessoalmente, fiquei de certo modo aliviada por ser uma mensagem de adeus. Daisy, escrevera, " (recorda-se que concordámos que lhe chamaria Daisy em vez de Sra. Keane? Só para lhe lembrar, para não pensar que estou a ser presunçoso!) Ouvi dizer que as estradas estão desimpedidas e, se me despachar, consigo chegar a Londres antes do próximo nevão. Não queria acordá-la, por isso despeço-me assim. Mantê-la-ei informada do desenrolar dos acontecimentos, o que espero seja bastante rápido; além disso, tratarei dos convites com os advogados de Bob e farei com que os enviem de imediato por mensageiro. Foi bom conhecê-la, Daisy Keane, apesar de, como Bob disse, ser às vezes "exasperante e difícil". Dê uma oportunidade aqui ao homem, está bem? Estou só afazer o meu trabalho. Não podemos ser amigos? Entretanto, é melhor abastecer-se com alguma roupa para cruzeiros! Falo consigo em breve. Assinara "Harry C. Montana". Pensei no que representaria o C. E o que quereria dizer com eu ser "difícil"? Não o salvara da tempestade, não lhe dera abrigo? O que mais queria o homem?


Estava escuro lá fora, mas ainda não nevava. Fui até à cozinha. A Sra. Wainwright estava de folga, mas deixara-me um prato aquecido com restos de rosbife e legumes. Esvaziei o remanescente do bordéus da noite anterior para um copo e bebi uma golada macia. Dei o jantar a Rats, peguei no meu prato e fui sentar-me à mesa da cozinha. Beberriquei o vinho, ouvindo o relógio com a forma do velho personagem de banda desenhada Félix, o gato, a fazer tiquetaque na parede. Todas as divisões desta casa marcavam o tempo. O que só realçava o silêncio e a minha solidão. O rosbife reaquecido ainda estava bom. Acabei o vinho, fui buscar outra garrafa, abri-a, enchi de novo o copo e voltei a afundar-me na minha cadeira. Sentia-me desesperadamente sozinha. Fitei o bilhete de Montana sobre a mesa. "Não podemos ser amigos?", escrevera. Quereria ser na realidade meu amigo ou seria apenas até o "caso" estar resolvido e ele deixar de constar da folha de pagamentos de Bob? Recordei-me do rosto magro e duro, da cabeça escura bem modelada, dos estreitos olhos cinzentos e daquele meio sorriso que me fazia pensar, de forma desconfortável, que se estava a rir de mim e, apesar de pensar que não seria muito bom, desejei de repente que ele ainda ali estivesse, a partilhar a garrafa de vinho comigo. "É melhor abastecer-se com alguma roupa para cruzeiros", escrevera, na brincadeira. Levantei-me e comecei a andar de um lado para o outro na cozinha, a ponderar a minha estranha situação. Rats içou-se da camisola em frente do Aga e começou a seguir-me, na esperança de um passeio, mas estava demasiado frio. Deixei-o apenas sair a porta das traseiras e esperei, a tremer, copo na mão, até que ele terminou e ambos nos apressámos a entrar outra vez. Mirei de novo o bilhete de Montana. "Falo consigo em breve", dissera. Enfiei-o no bolso, passei o prato e o copo por água, pu-los na máquina de lavar e limpei a mesa. Rats trotou atrás de mim quando subi as escadas, mas, em vez de ir para o meu quarto, virei à esquerda no patamar e dirigime para o quarto vermelho. Abri a porta e espreitei lá para dentro. Se estava à espera de encontrar qualquer vestígio de Montana, qualquer vitalidade não desaparecida, qualquer sugestão da sua dura presença masculina ainda a pairar no ar, fiquei desapontada.


"Estás maluca?", pensei comigo mesma acelerando pelo corredor em direcção ao meu próprio quarto. "Conheces um tipo que vai definitivamente dar contigo em doida e ages como se sentisses a falta dele? Esquece, querida, ele está a ser civilizado apenas porque é o seu trabalho." Bati com a porta atrás de mim, mesmo na altura em que o telefone tocou. Precipitei-me para ele. - Está? - Pensei apenas que quisesse saber se cheguei bem. " Sustive a respiração, contente por ouvir a voz de Montana. - Estava preocupada - admiti afável, percebendo que era verdade. - As estradas estão tão cheias de gelo. - Sente a minha falta então? - Nem um pouco. - A minha voz tornou-se tão seca e estaladiça como uma alface iceberg. - É simplesmente uma preocupação natural pelo meu semelhante. Ele riu-se, um som profundo e bom, que me fez sorrir. - Muito bem, então este seu semelhante poderá ter algumas notícias para si amanhã ao fim do dia. Telefono-lhe nessa altura. - Vou voltar para Londres - retorqui, incapaz de aguentar mais tempo o silêncio de Sneadley. - Tem esse número? - Tenho. E será a minha vez de me preocupar consigo nas estradas cheias de gelo. Não sabia o que responder àquilo, por isso não disse nada. - Estou a falar a sério - replicou com suavidade. - Obrigada. - Falo consigo amanhã então. Desligou e eu fiquei ali com o telefone na mão. De repente, Londres parecia uma óptima ideia. Corri ao guarda-vestidos e escolhi um vestido preto de que gostava particularmente, adequado para um jantar, não fosse dar-se o caso. Depois, liguei a televisão, deixei-me cair na chaise-longue e, com Rats nos joelhos, vi meio entorpecida uma novela até que me deixei dormir. Amanhã seria outro dia. E, dentro de pouco tempo, aqueles convites chegariam a casa dos suspeitos.


PARTE II A verdade é raramente pura e nunca simples. OSCAR WILDE A IMPORTÂNCIA DE SE CHAMAR ERNESTO Ex-mulher, suspeito nº 1 Quando era casada com Sir Robert, Diane Hardwick vivia num apartamento sumptuoso num dos melhores edifícios de Monte Carlo, completo com criado de casaco branco, empregada pessoal, cozinheiro e governanta, mais um conjunto de mulheres-a-dias, sempre a mudar, que mantinham o sítio encerado, limpo e livre de micróbios. Dianetirrka a fobia dos micróbios. Apesar de todas as maçanetas de portas, todas as torneiras e todas as casas de banho serem limpas duas vezes por dia, continuava a usar luvas em casa, mas, porque não queria que as pessoas soubessem da sua excentricidade, nunca as usava quando saía. Em vez disso, limpava sub-repticiamente as coisas com toalhetes antes de lhes tocar. Excepto, claro, as fichas de jogo do casino. De qualquer modo, não lhe teriam permitido que jogasse nas mesas de luvas, embora fosse impensável que pudessem suspeitar de uma mulher da sua envergadura. E claro que ela não fazia batota. Perdia, simplesmente. Era por isso que vivia agora sozinha num pequeno apartamento na Place Charles-Félix, na parte antiga de Nice, perto da casa onde Matisse vivera. Ficava também perto de uma das praças mais antigas de Nice, a Cours Saleya, onde se realizava o famoso mercado aberto. Uma vez que Diane não apreciava comida, não gostava muito de viver perto do mercado e da sua abundante exposição de fruta, legumes e flores. Os odores dos cozinhados que flutuavam até ao seu apartamento vindos das tendas que vendiam socca, as panquecas de grão locais, e os aromas dos muitos restaurantes que forravam a praça punham-na doente. Apenas a magnífica exibição de flores no mercado a satisfazia. Por mais curto que fosse o dinheiro, e era sempre pouco, Diane enchia o seu apartamento de quatro divisões, no segundo andar, com o perfume de


tuberosas e lilases, jasmim e frísia, qualquer coisa para dissipar os cheiros que subiam das ruas. Não era um apartamento mau. De facto, qualquer outra pessoa excepto Diane tê-lo-ia achado encantador. Era certo que os tectos eram um pouco baixos, mas as estreitas janelas francesas chegavam até acima e apresentavam pequenas varandas de ferro forjado, onde aglomerava fetos para impedir os vizinhos do outro lado da rua de espreitarem lá para dentro. As plantas conseguiam também eliminar qualquer entrada de luz do Sol no apartamento, mas Diane gostava da claridade esverdeada subaquática que se filtrava através dos fetos. Era um pouco como viver num aquário. Uma das salas fora reservada para as suas roupas, uma exposição de parede a parede, e do chão ao tecto, de roupa de costureiros, adquirida ao longo dos últimos quinze anos, mais centenas de pares de sapatos de estilistas e o mesmo número de malas. Como Sir Robert lhe dissera de forma contundente, nunca precisaria de andar nua neste mundo. De facto, ainda conseguia adornar qualquer festa e parecer possuir um milhão de dólares, embora agora a esmeralda de dezoito quilates de talhe quadrado e rodeada de diamantes fosse uma cópia do original Cartier que Bob lhe oferecera, como aliás a maior parte das suas outras jóias. Agarrava-se, no entanto, a um par de coisas e não se desfazia delas, desse lá por onde desse, mesmo quando a desgraça lhe caía em cima nas mesas de jogo. Eram aquilo a que chamava as suas jóias de todos os dias, pela razão simples que as usava mesmo todos os dias. Consistiam em um par de brincos de diamantes de quatro quilates e de um fino colar de diamantes que usava à volta do pescoço. Eram as suas primeiras jóias verdadeiras e tinham-lhe sido oferecidas muito antes de Bob Hardwick aparecer no horizonte. Tinha apenas dezassete anos quando doara a sua juventude e a sua beleza, bem como a sua virgindade, a um homem mais velho em troca de um par de meses de luxo numa estância das Caraíbas. Como recompensa, ele oferecera-lhe os diamantes e uns belos dias de luxo. Era, pensou, uma permuta justa. A sala, ou salon, como lhe chamava, à maneira francesa, estava decorada de brocado bordado argênteo. Incapaz de aguentar as tristes paredes de estuque irregular, que lhe faziam lembrar o casebre de um camponês,


pusera no prego uma pulseira e comprara o tecido caro. Pregara pessoalmente alguns suportes, cobrira-os de pasta de algodão para fazer o acolchoado e depois fixara o tecido. Tinha um aspecto sensacional. Quando era preciso, Diane conseguia ainda desenrascar-se, conseguia ainda armar um belo espectáculo como tivera de fazer ao princípio. Diane sabia como criar uma boa impressão, com o bom mobiliário Art Déco que salvara da venda da sua antiga casa em Monte Carlo, todo ele superfícies espelhadas, com candeeiros de cristal e tapetes brancos num soalho escuro encerado, a sala era na realidade bastante bela. Tal como o quarto, apesar de ser minúsculo e estar quase totalmente preenchido com uma cama gigante coberta com uma colcha de croché branca, que, por mais improvável que parecesse, fora feita pela própria Diane nos seus frívolos momentos de ócio, todos os pontos laçados com fúria. A fúria era dirigida contra Bob Hardwick, o ex-marido que a deixara nesta triste condição, em maré de azar. "O quê? Outra vez?", fora o seu comentário mordaz quando lhe aparecera no Hotel du Cap, onde ele estava de fim-de-semana com uma ruiva que afirmara trabalhar para ele. Já ouvira aquela desculpa antes. Só que, nessa altura, Diane estava já divorciada e não podia fazer nada em relação à outra mulher, excepto alegar dificuldades, o que não lhe servira de nada. Aprendera a fazer croché com a avó, embora fosse uma coisa que nunca admitiria. Nem sequer admitiria ter uma avó excepto para reivindicar a sua linhagem aristocrática. Nunca falava da sua família nem do seu passado, porque havia nele muita coisa que preferia esquecer. Só falava sobre a época em que fora a mulher do grande magnata Hardwick. E, claro, o facto de ainda ser Lady Hardwick significava que era convidada para certos lugares, embora já não pudesse retribuir os convites. Nunca poderia convidar as pessoas para o apartamento acanhado da Place Charles-Félix e admitir o estilo de vida difícil que levava. Tinha consciência que as pessoas começavam a comentar o assunto, a falar dela, a tecer especulações sobre as suas finanças. Não gostava daquilo e não gostava de Bob Hardwick, mas ele agora morrera e, como sua ex e única mulher, sabia que poderia herdar os seus bens. No final de contas, ele não tinha mais nenhuma "família".


Andava a telefonar aos advogados de Bob desde o minuto em que recebera a notícia da sua morte, querendo saber quando poderia receber um adiantamento sobre os bens. E aparecera no funeral, gelada e furiosa, porque a amante italiana também lá estava, junto com alguns homens de negócios emproados, que, depois de lhe apertarem a mão e murmurarem algumas palavras de condolências, a tinham ignorado. Tal como a "amante". E também Arnie Levin, o advogado que, apenas quando ela o acareou, lhe declarou que o testamento seria lido em data posterior. O que quereria dizer com aquilo? Quanto tempo deveria esperar? Os advogados estavam muito calados sobre o assunto e Diane suspeitava, apreensiva, que alguma coisa estava errada e, por esta altura, já andava desesperada com falta de dinheiro. Eram dez e quinze da manhã. As janelas encontravam-se abertas e ouvia a algazarra que vinha do mercado. O cheiro da comida a ser cozinhada entrava. No entanto, era obrigada a deixar as janelas abertas, porque o dia já estava quente e não havia ar condicionado. Franzindo o sobrolho, borrifou o perfume de tuberosas para o ar, para disfarçar o cheiro. Ainda com o pijama de cetim azul pálido debruado a renda vestido, foi à cozinha preparar o café. Não alterara nada na cozinha; estava tal e qual como sempre fora há décadas: uma divisão estreita e sem graça com azulejos castanhos e cortinas de algodão xadrez penduradas em esticadores a tapar os armários por baixo do lava-loiças e ao lado do fogão. Alguns pratos e chávenas estavam arrumados em prateleiras abertas e um pequeno frigorífico gorgolejava num canto. As cozinhas não eram o campo de acção de Diane. A lata do café estava vazia. Frustrada, encaminhou-se para a janela da sala e fitou a rua movimentada através das plantas folhosas. Passavam crianças numa grande barulheira, as vozes em altos gritos, arrastando as mochilas atrás. Diane nunca quisera crianças. Não as compreendia. A sua própria infância fora algo que preferia esquecer e nunca quisera participar nesse mundo outra vez. Duas portas mais abaixo, a escola de ballet encontrava-se em plena actividade. A mulher de idade dobrada sobre o piano esmagava sem misericórdia um trecho de Tchaikovsky, que o compositor nunca teria por certo reconhecido, e rapariguinhas com tutus cor-de-rosa esvoaçavam


pelo campo de visão de Diane, imaginando, calculou, serem grandes bailarinas num palco mundialmente famoso. Diane não era uma optimista. Não partilhava aquela visão que as rapariguinhas tinham de si próprias. Um grande cão castanho desceu a rua com vagar. Parou na entrada em frente, farejou e depois ergueu descontraidamente a perna. Satisfeito por ter deixado a sua marca, continuou o seu caminho. Diane soltou um suspiro amargo. Quem teria pensado que viveria num sítio onde os cães faziam chichi nas portas? Passou ao quarto e sentou-se no toucador com o seu belo espelho veneziano, uma prenda de Bob. "Para reflectir a tua beleza para sempre", dissera quando lho oferecera, no início da relação. Mas o que Diane via agora reflectido não era beleza. Não era aquele primeiro fulgor da juventude, quando acordava e se contemplava e a pele era rosada e perfeita, os olhos cintilavam com o brilho da esmeralda do dedo, e tinha um corpo que sabia nunca a deixaria ficar mal. Podia usar qualquer coisa, despir-se sem precisar da luz das velas, fazer qualquer coisa, ser qualquer pessoa. Isto é, até descobrir o jogo. Olhou com lassidão para o minúsculo relógio de viagem de ouro sobre o tampo de vidro. Marcava 10:30. Diabo, estava atrasada. Atirou à pressa um impermeável por cima do pijama de cetim e enfiou os pés num par de alpercatas de lona com cunha, apertando-as com laços à volta dos tornozelos estreitos. Puxou para trás o cabelo ruivo comprido, enfiou um chapéu de palha até aos olhos e colocou um par de grandes óculos escuros. Correu pelo estreito lance de escadas abaixo e saiu para a rua empedrada. A pesada porta de madeira bateu atrás dela e precipitouse na direcção da Cours Saleya e do mercado. Quando marcara o encontro, o homem tinha dito dez e meia em ponto. Não esperaria e, por causa do que acontecera, não podia dar-se ao luxo de chegar atrasada ou o passado apanhá-la-ia. Por mais doloroso que fosse desfazer-se daquilo, precisava do dinheiro. Diane fez virar cabeças com o seu aspecto excêntrico, mas encolheu os ombros aos olhares e sorrisos surpreendidos. Não lhe importava o aspecto que tinha. Não havia aqui ninguém que a conhecesse, ninguém que interessasse. O seu tipo de pessoas não frequentava mercados. Nem ela, excepto esta manhã, quando, compelida em partes iguais por uma


necessidade desesperada de café quente e forte e pelo encontro para o qual estava agora atrasada, tivera mesmo de ir. Não reparou no detective, no homem sem nada de especial, de T-shirt, calções e ténis, que a seguia. Tinha os pensamentos ocupados com outras coisas. Sentou-se na esplanada de um café na parte sombreada da praça, limpou a mesa, pediu um café expresso e olhou em volta com cuidado. O homem com quem se deveria encontrar não chegara. Sentiu um espasmo de apreensão. Onde é que ele se encontrava? Estava a contar com ele. Não lhe podia fazer isto. Depois de todos os longos meses de planeamento, não podia perder agora. Mil pensamentos lhe rodopiaram na cabeça, todos eles maus. Nervosa, tirou o chapéu, empurrou os óculos de sol para cima, para o cabelo, emborcou o café forte açucarado e pediu outro. Ele viria, tinha a certeza; não a deixaria ficar mal; não revelaria o seu segredo. Abanou a cabeça. No final de contas, como poderia? Participava nele. O detective enviado por Montana para a seguir estava sentado a algumas mesas de distância. Viu-lhe a mão a tremer, o balouçar incessante da perna cruzada, a forma como os olhos seguiam os transeuntes. Pensou se consumiria drogas. Alguns minutos mais tarde, viu-a soerguer-se da cadeira, com um olhar meio apreensivo meio aliviado no rosto, quando um homem serpenteou pelo meio das mesas até onde ela se encontrava. Era mais novo do que Diane, nem atraente, nem feio: um jovem vulgar de calções brancos, uma T-shirt e óculos escuros. Trazia uma pequena mala, do género que os homens europeus usam para transportar os seus pertences: carteira, chaves, esse tipo de coisa. Retirando o telemóvel do bolso, o detective focou-os e tirou uma rápida série de fotografias. O jovem de aspecto vulgar dispensou o empregado com um gesto. Era óbvio que estava aqui em negócios e fazia tenções de ser rápido. Passados alguns minutos, o detective viu Diane, o rosto tenso de fúria, tirar os diamantes das orelhas e fazê-los deslizar pela mesa para a mão do jovem que os esperava. O homem examinou-os com cuidado e depois disse qualquer coisa que a fez vociferar zangada, embora


mantivesse o tom de voz demasiado baixo para o detective conseguir ouvir. O jovem vulgar empurrou a sua cadeira para trás e levantou-se. Diane fez o mesmo. Voltou a pôr os óculos de sol, escondendo os olhos, de forma que o detective já não conseguiu decifrar-lhe a expressão. O jovem disse qualquer coisa, a seguir virou-se e refez o seu caminho por entre as mesas, juntando-se à multidão que fluía pela praça do mercado. Deixara a pequena mala de mão em cima da mesa. O detective viu Diane pegar nela, abri-la, retirar o maço de notas e contá-lo. A sua linguagem corporal expressava derrota. Lançou algumas moedas para o pires, para o empregado, e depois apressou-se também a partir. O detective não a seguiu. Em vez disso seguiu o jovem. Ouviu-se um som semelhante a tiro de uma espingarda quando Diane se despachava, lacrimosa, a descer a Place Charles-Félix. Com os nervos em franja, gritou e escondeu-se, célere, numa entrada. Espreitando, viu que era apenas um mensageiro de moto que parara à porta do seu prédio e que estava a premir a sua campainha. Percorreu o resto do caminho a correr. - Está à procura de Lady Hardwick? - perguntou, sem fôlego devido ao exercício não habitual. - É a senhora? Assentiu com a cabeça, tirando a sua chave e abrindo a porta para provar que vivia realmente ali. - Sou Lady Hardwick - confirmou, só para o caso de existir ainda alguma dúvida. Além disso, sempre gostara da forma como soavam as palavras. - Assine aqui, por favor. Assinou o recibo e ele entregou-lhe o envelope. Pelo tamanho, forma e bela caligrafia, Diane calculou que fosse um convite. Apressou-se a subir as escadas, rasgando ao mesmo tempo o envelope e puxando o cartão branco gravado. A Sra. Daisy Keane agradece o prazer da sua companhia num cruzeiro pelo Mediterrâneo para homenagear a vida de Sir Robert Hardwick. Diane levou uma mão à garganta. Um cruzeiro? Estariam loucos? Porque estaria Daisy Keane a convidá-la a ela?


O último desejo de Sir Robert foi que os seus amigos se juntassem, a convite seu, no iate Blue Boat, que parte de Monte Carlo no dia 25 de Maio, para um cruzeiro de cinco dias, com paragens em Saint-Tropez, Sorrento e Capri, e desembarque em Nápoles no dia 30 de Maio. Todas as despesas serão pagas com a herança de Sir Robert. Após aceitação deste convite, um cheque de cem mil dólares encontrarse-á à sua espera a bordo. Na última noite, o testamento de Sir Robert será lido na Villa Belkiss em Capri. A linha de RSFF mencionava um número de telefone e o endereço profissional de Sir Robert em Londres. Cem mil dólares. Os zeros dançavam à frente dos olhos de Diane como balões numa festa de aniversário de miúdos. Cem mil dólares "Oh, meu Deus", pensou, "estou salva." E queria os seus brincos de volta! Leu a carta muitas vezes. Então releu a última linha: "O testamento de Sir Robert será lido na Villa Belkiss em Capri." O primeiro sorriso do dia iluminou-lhe o rosto adorável. Dera tudo certo. No final de contas, iria herdar. Era por isso que a tinham convidado. Por fim iria receber o que lhe era devido. Claro que iria. Estava já a planear o seu guarda-roupa. Pegou no telefone e ligou para Daisy Keane. Terminara. E, felizmente, quem ela era na verdade e o que fizera permaneceriam como seu segredo para sempre.


Ex-amante, suspeito nº 2 Chovia em Veneza. O tipo de chuva forte e torrencial que, combinada com uma maré excepcionalmente alta, já inundara a Piazza San Marco com uma altura de mais de trinta centímetros e continuava a subir. As cúpulas da basílica perdiam-se na neblina e os famosos cafés rivais, Florian e Quadri, onde Filomena gastava demasiado dinheiro em chávenas de café caras, estavam fechados, os toldos recolhidos, cadeiras e mesas guardadas lá dentro, o quarteto de cordas desaparecido. Hoje, não havia turistas para se deliciarem com a música doce. Pranchas de madeira estreitas tinham sido colocadas por cima da cheia como passadiço temporário. Habituados a elas desde pequenos, os venezianos pisavam-nas com confiança, ao passo que os inexperientes e imprudentes oscilavam e depois tropeçavam até aos joelhos na água oleosa. Infelizmente para Filomena, só conseguia chegar ao seu apartamento caminhando por essas pranchas ou então através de um percurso longo e sinuoso, que envolvia muitas vielas secundárias e pelo menos mais meia hora à chuva diluviana. Escolheu as pranchas. Saltos altos não eram o calçado ideal para tal viagem e Filomena andava com lentidão, pondo cuidadosamente um pé à frente do outro, como os modelos da altacostura faziam quando percorriam a passarela como póneis. Envolvida num elegante trench coat branco que pouco a protegia da chuva, enfiara lá dentro a dispendiosa bolsa Fendi de pele de crocodilo para a proteger e pusera um saco de plástico por cima do cabelo louro que herdara, bem como os olhos azuis, da sua mãe originária do Norte de Itália. A mulher que Montana destacara para a seguir não foi tão hábil. Escorregou na prancha e ficou zangada e carrancuda dentro de água quase até aos joelhos, enquanto Filomena desaparecia na obscuridade e na chuva. Filomena atravessou em segurança e entrou numa rua lateral, chapinhando nas poças, perdida toda a esperança de salvar os sapatos caros. O apartamento ficava num velho palazzo, que dava para um canal largo, onde, com um tempo como aquele, o primeiro piso inevitavelmente inundava, transformando o seu apartamento no segundo piso na zona


mais húmida de Veneza. De qualquer modo, apartamento era uma palavra demasiado grandiosa para a única divisão grande com uma minúscula casa de banho escavada num canto. Só ficara com ele porque o endereço, o Palazzo Breva, era bom, apesar de, no calor do Verão, o sítio tresandar ao cheiro dos canais e, quando o Inverno chegava, ser muito frio. E, fosse em que estação fosse, era sempre húmido. O que compensava era que o velho edifício tinha uma certa elegância e encanto e a vista sobre o canal, das igrejas com as suas cúpulas douradas e pátios secretos, era mágica. Filomena patinhou pelas ruelas estreitas até chegar à porta da rua do Palazzo Breva. Uma porteira rabugenta cumprimentou-a com azedume quando entrou, informando-a que limpara a parte pior da água da cheia no vestíbulo, mas que o lado do canal estava inundado. Tremendo, Filomena subiu o lance de escadas de mármore, gastas, e com um grande sulco no meio por causa de séculos de uso, tal como a balaustrada belamente cinzelada. Os frescos do tecto ainda eram encantadores, embora escurecidos por décadas de fumo e fuligem, e uma frialdade emanava das paredes apaineladas, que tinham outrora exibido um bonito verde-pálido, mas que, devido a continuada negligência, apresentavam agora qualquer coisa entre um bege triste e um cinzento sombrio. Filomena era uma mulher que adorava a luz do Sol; adorava o calor e os climas tropicais, as praias do Rio e de Saint-Tropez com o cintilante cabelo dourado, o beicinho sexy e o corpo flexível, ainda podia adornar qualquer praia com o seu estilo muito particular. O problema era que estava a ficar mais velha. Filomena tinha vinte e oito anos e, no seu tipo de mundo, dezoito anos era a única idade possível. Mesmo uma mulher de vinte e cinco anos era já considerada entradote. E como não havia de ser assim, quando havia uma infindável reserva de jovens belezas núbeis, ávidas do brilho e ouro de uma vida que não podiam pagar? Tal como ela fora outrora. Abriu a porta e entrou no seu mundo de uma só sala. Que regressão, pensou, arremessando o trench coat ensopado, sem se preocupar, para o chão. Atirou com os sapatos de salto alto arruinados e puxou o saco de plástico a pingar do cabelo. Estava com um aspecto horrível. Nenhum homem no seu juízo perfeito olharia uma primeira vez para ela quanto mais uma segunda. A saia estava molhada também. Puxou o fecho e


soltou-a, deixando-a ficar onde caíra. Seguiu-se a camisa. Envolta num cobertor e ainda a tremer, foi até à janela, fitando a chuva que a fustigava e as ondas furiosas, que varriam a lagoa agitada pela tempestade, provocando um torvelinho nos canais que transbordavam. Estava-se no final de Abril e o tempo não devia estar a comportar-se desta forma. Para Filomena, Maio, com a sua luz pálida do Sol, era o mês mais belo em Veneza, embora gostasse mais de Novembro, quando as ruelas e as pontes estavam misteriosamente enoveladas num denso nevoeiro lanoso, que ondulava com rapidez, abafando os passos e amortalhando as pessoas em mistério. Em Veneza, em Novembro, podia-se ser anónimo e, por vezes, Filomena preferia isso mesmo. Fora criada no Venetto, a região de montes e vinhedos atrás de Veneza, numa pequena aldeia em que o pai era o padeiro. Ficava muito distante do glamour social da cidade, mas, embora pobre, Filomena tivera uma infância bastante feliz e frequentara a escola na vila mais próxima, onde era boa estudante. O pai, descontente, costumava dizer-lhe que tinha um cérebro, mas que era apenas demasiado preguiçosa para o usar. Não era só preguiça. Filomena descobrira que era bela. Na altura, acreditava que esses dois elementos valiosos, cérebro e beleza, eram uma combinação imbatível. Agora já não tinha tanta certeza. No final de contas, veja-se onde é que acabara: sozinha, num estúdio de segunda categoria, a vender roupas que já não se podia dar ao luxo de comprar, à espera de ver se tudo funcionaria como esperara e planeara e se, com Bob Hardwick finalmente morto e enterrado, ele lhe deixaria alguns dos seus malditos milhões. Fora ao funeral, claro, querendo fazer valer os seus direitos sobre o próprio túmulo, procurando que os advogados e todas as outras pessoas tomassem consciência de que era alguém que contava. Incluindo a antipática ex-mulher, com as suas lágrimas de crocodilo a fazer correr riozinhos de rímel preto pelas faces abaixo. Filomena tivera o cuidado de não usar maquilhagem nos olhos e, como era óbvio, nenhum blush. Planeara parecer pálida e interessante e conseguira atrair mais do que alguns olhares apreciadores de homens enlutados, dois dos quais lhe tinham deixado os cartões-de-visita profissionais na mão quando se tinham despedido, mas sabia que seriam todos casados e não enveredar


outra vez por esse caminho. Quando recebesse de Bob aquilo a que tinha direito, ele prometera sempre que lhe deixaria alguma coisa no testamento, caso contrário não teria feito o que fizera, seria senhora de si, capaz de escolher o seu homem entre os melhores disponíveis neste mundo. E, desta vez, insistiria em casamento. Até agora, no entanto, não funcionara como esperara. Depois do funeral, o testamento não fora lido e ninguém dissera nada sobre quando o seria. Agora, os seus planos grandiosos tinham desaparecido na chuva que envolvia Veneza. Olhou lá para fora e pensou sorumbaticamente que talvez, no final de contas, o pai tivesse razão. Talvez devesse ter ficado em casa e estudado para professora em vez de se transformar em amante de um magnata dos negócios, ensinado turmas de miúdos em vez de ensinar homens mais velhos a apreciar a vida. Talvez devesse ter casado com o empreiteiro local, ou alguém como ele, e arranjado uma villa simpática e quente e três filhos que olhassem por ela quando fosse velha. Lá estava ela a voltar à questão da idade. Era demasiado velha para ser modelo, embora tivesse feito alguma coisa nessa área quando adolescente. Não tinha dom natural em frente das câmaras, nem sabia representar, embora tivesse também tentado. E era agora demasiado tarde para pensar em transformar-se numa rígida professora. Tremeu e envolveu-se melhor no cobertor. A verdade era que nenhum homem, nem sequer o empreiteiro da aldeia, a pedira em casamento. Filomena só servia para amante. As lágrimas fizeram-lhe arder os olhos e correram pelos planos delicados das maçãs do rosto e pelas faces abaixo até sentir o sal nos lábios. - O que me aconteceu? O que fiz de errado? - perguntou às quatro paredes nuas. - O que vai ser de mim? Ouviu bater à porta. Limpando apressada as lágrimas, foi atender. Era a porteira, velha, morena e mirrada, envolta em xailes de lã tricotados, com sapatos pesadões e meias enrugadas. Mergulhada no seu desespero, Filomena pensou que um dia seria como ela: tornar-se-ia uma porteira, ignorada por toda a gente, espiando as outras pessoas, vivendo por interposta pessoa.


- Uma carta para si. Entregue por mensageiro - disse a mulher, estendendo um grande envelope quadrado. - Embora não perceba como é que ele passou com um tempo destes. Filomena pegou no envelope, agradeceu-lhe e fechou-lhe rapidamente a porta na cara. Percebia que a abelhuda da velha estava a morrer por saber que notícias precisavam de ser entregues de forma tão urgente, mas não tinha nada com isso. Afundando-se na cama estreita que durante o dia fingia ser um sofá, Filomena estudou o envelope. Era papel de boa qualidade e parecia do tamanho certo para ser um convite. Rasgou-o e puxou o cartão gravado. Os olhos arregalaram-se. Era mesmo um convite, embora não um convite que estivesse à espera de receber. Vinha da parte da assistente pessoal de Bob, pedindo-lhe para participar num cruzeiro pelo Mediterrâneo para "homenagear" a vida de Bob. Se aceitasse, receberia cem mil dólares. Se aceitasse. Estariam malucos? Será que Daisy Keane pensava deveras que ela recusaria? Além disso, dizia que o testamento de Bob seria lido na última noite. O cérebro ágil de Filomena examinou minuciosamente o número infinito de possibilidades implícitas neste convite. Era óbvio que todas as suas maquinações, toda a sua campanha, não tinham, no final de contas, sido em vão. Sorria pela primeira vez desde há dias quando escreveu a sua resposta. Claro que aceitava, mas, só para ter a certeza, telefonou também à Sra. Daisy Keane para o número de Londres. Atenderam ao primeiro toque. - Está, senhora Keane? Daqui fala Filomena Algardi. - Ronronou nitidamente para o aparelho. - Acerca do convite para o velório do pobre Bob querido. Sim, claro que tenciono lá estar. Não faltaria de maneira nenhuma. Encontramo-nos lá, senhora Keane. Aconchegada na cama com o seu cobertor, Filomena começou a planear o resto da sua vida.


Ex-amigo, suspeito nº 3 Charlie Clement riu-se quando leu o convite e atirou-o de imediato para o cesto dos papéis. Tinha de dar os parabéns àquele filho da mãe do Bob Hardwick, até voltara do túmulo para o apanhar. Era um homem que conseguia sempre o que queria. Mesmo assim, Charlie estava nervoso; tinha a certeza que havia neste convite e no seu suborno mais do que parecia à primeira vista. Sentado atrás da desinteressante chapa de aço que era a sua versão modernista de uma secretária, recostou-se para trás na cadeira de pele, dedos cruzados em arco, ainda a sorrir, embora não fosse um sorriso de prazer. Era um homem alto, voluptuosamente atraente, com cinquenta e poucos anos, cabelo escuro comprido alisado para trás que encaracolava um pouco na nuca. Os irrequietos olhos escuros estavam atentos a tudo e a boca era uma linha fina e sensual. Como sempre, encontrava-se vestido de forma impecável, com um fato escuro de risquinhas e uma camisa feita à medida do género que se encomenda à dúzia a Ascot Chang, com monograma nos punhos, claro. Os sapatos eram manufacturados por Lobb e o grande relógio de ouro era um Rolex. Parecia o que era: um sedutor. Charles Clement representava na perfeição o papel do inglês da classe alta. No final de contas, não estudara nas melhores escolas e não crescera com alguns dos nomes sonantes da sociedade? No entanto, não pertencia à aristocracia, nem sequer à pequena nobreza rural. O pai de Charlie fizera fortuna em derivados de papel, mas depois perdera tudo em investimentos arriscados e maus, o que deixara Charlie, com dezoito anos, sem saber muito bem o que fazer, porque contara com aquela reserva de dinheiro para lhe proporcionar a vida de playboy que preferia. Dizem que toda a gente gravita para o que conhece melhor e Charlie sabia o que era melhor para ele. Abrira o que publicitava como o primeiro serviço de acompanhantes de primeira classe, proporcionando a homens de negócios e turistas uma "companhia" para a noite. Devido aos conhecimentos de Charlie, o negócio fora um grande êxito desde o seu início e a empresa nunca tinha falta de clientes, nem de "acompanhantes"


dispostos a trabalhar, quer masculinos, quer femininos. Apesar dos rumores, nunca se mencionava sexo. O que Charlie sempre dizia às pessoas que inquinam com um sorriso matreiro qual era a natureza do seu negócio era que a solidão era "um produto". Se cuidássemos dela tínhamos um negócio. Nem toda a gente acreditava o que Charlie vendia fosse na verdade um antídoto para a solidão, mas ele era suficientemente esperto para se defender de quaisquer implicações sobre favores sexuais. As suas meninas, dizia, eram espectaculares; vestiam-se bem, sabiam conversar, eram companhias divertidas. Faziam bom dinheiro e conseguiam jantar nos restaurantes de topo e dançar nas melhores discotecas. Não se esperava delas mais nada do que isso. Conhecera Bob Hardwick num jantar e, detectando o que pensou ser um cliente em perspectiva, falara-lhe sobre solidão. Hardwick convidara-o um par de vezes para Sneadley e, mais tarde, para a caça à galinha-do-mato, em Agosto. Fora, claro, mas seria obrigado a vir-se embora mais cedo após um pequeno mal-entendido. Pelo menos, Charlie considerou-o pequeno; de facto, Hardwick esmurrara-o. Depois, Hardwick conseguira fechar-lhe o negócio das acompanhantes e ameaçara mais retaliações. Bob Hardwick era um homem influente nos corredores do poder e a ameaça preocupara Charlie. Durante meses, sentira-se como Dâmocles com a espada a pender por um fio, pronta a cair-lhe em cima a qualquer segundo. Não se sentira na realidade muito confiante até ter a certeza que Bob Hardwick morrera e estava em segurança no seu túmulo. Agora o homem voltara para o assombrar. E essa mulher, Daisy Keane, tinha a coragem de o convidar a homenagear a vida de Bob num cruzeiro maluco qualquer pelo Mediterrâneo. Pescou o convite do cesto de papéis e leu-o outra vez. Cem mil dólares. Bob sabia bem como pôr um isco na armadilha, pensou com um sorriso fino. E "o testamento de Sir Robert será lido na Villa Belkiss, em Capri". Ora bem, não era na realidade interessante? Reflectiu por um instante, a seguir, ainda nervoso, levantou o telefone e marcou o número indicado em "RSFF". - Charles Clement para Daisy Keane - disse quando atenderam. Pediramlhe que aguardasse; momentos depois ela surgiu na linha.


- Senhor Clement? Presumo que me esteja a telefonar em resposta ao meu convite? - É verdade. E estava aqui a pensar por que razão Bob Hardwick gostaria da minha presença no seu velório. Ela riu-se, um som agradável, e recordou-se que a conhecera, uma ruiva alta com uma boca sexy e sem muita noção de que roupas lhe ficavam bem. - O último desejo de Sir Robert foi juntar um grupo de amigos numa espécie de comemoração. Na verdade, queria apenas que toda a gente se divertisse com tudo pago por ele. E, pela última vez, compreende. E, acredite, se Bob pudesse lá estar connosco, estaria. - Acredito - respondeu Charlie, resolvendo-se de repente. - Lá estarei, senhora Keane. Pousou o telefone e lançou uma olhadela ao relógio. Horas de almoçar. Ainda estava frio lá fora, por isso pôs o casaco comprido pelos ombros e desceu as escadas até ao nível da rua. O Soho de Londres era a sua habitual confusão de demasiados carros e demasiadas pessoas em ruas demasiado estreitas. Já reparara antes no tipo, postado à frente do seu escritório, a ler um jornal. Consciente de que o homem se pusera a andar atrás dele, Charlie sentiu um formigueiro de pele de galinha na sua pele. Seria a polícia? Um detective à paisana? Lançou uma rápida olhadela para trás. O homem ainda lá estava. Charlie acelerou o passo. Parou e acendeu um cigarro, espreitando de novo por cima do ombro. O homem desaparecera. Soltou um suspiro de alívio. Ficara nervoso com o convite de Bob Hardwick vindo do túmulo, onde pensara que estava morto e enterrado. Sorrindo, continuou a andar a passos largos. Não notou o outro homem que se pôs a andar discretamente atrás dele. Charlie caminhava depressa, abrindo caminho com arrogância por entre a multidão até chegar a um pequeno clube com fotografias de raparigas escassamente vestidas cá fora. No letreiro por cima da porta azul-escura fechada lia-se MARILYTSTS. O porteiro com mau aspecto, de fato azulpálido, com um boné com galão dourado, desencostou-se apressado da parede onde estivera a fumar um cigarro e a examinar o impresso das


corridas. Clement passou-lhe uma severa repreensão, depois afastou-o e entrou no clube. Atraíam sempre uma boa audiência à hora do almoço. Os homens vinhtm ver as raparigas fazer os números de strip, dançar no varão e na mesa, se tivessem dinheiro para isso. Embora, claro, o verdadeiro "espectáculo" mais caro acontecesse noutro sítio, numa mansão de luxo em Paris, que era para onde Charlie iria a seguir. No final de contas, era o seu sítio preferido em todo o mundo. Na sua opinião, nada batia a École de Nuit. Apanhou o comboio para Paris na estação de Waterloo, agradecendo a Deus pela existência do Chunnel, o túnel sob a Mancha que ligava Londres a Paris. Chegaria dentro de pouco mais de duas horas. E também o homem de Montana que o seguia.


Ex-parceiro de negócios, suspeito nº 4 Era um dia agradável em Queens, Nova Iorque, mas o Sol, que se filtrava através do manto de nuvens, apenas realçava as ruas cinzentas cheias de lixo e as fachadas das lojas fechadas da parte mais pobre da cidade, povoada por famílias de emigrantes, muitas vezes ilegais e vivendo nas margens da sociedade. Os edifícios de tijolos enegrecidos riscados em ziguezague por escadas de incêndio de ferro davam para ruas sem árvores, a que se seguiam zonas de casas de quatro apartamentos ligeiramente mais prósperas. Um pouco mais afastadas, ficavam as pequenas casas só para uma família, que eram tudo o que os emigrantes, a maioria hispânicos da América Central, poderiam esperar alcançar com muito esforço. Isto é, se conseguissem obter empregos que pagassem o suficiente para viverem de forma mais desafogada, porque, sem aquele difícil cartão verde que os proclamava residentes nos Estados Unidos da América, não possuíam qualquer poder negocial no mercado de trabalho. As mulheres trabalhavam como domésticas nos subúrbios, ou até em Manhattan, coleccionando histórias sobre o tipo de estilo de vida com que nenhum deles alguma vez sonhara, ao passo que os homens se juntavam em esquinas de rua à espera de serem seleccionados para um dia de trabalho a fazer mudanças, ou a carregar equipamento, ou em tarefas de jardinagem, e qualquer outro trabalho extenuante que mais ninguém queria por menos que o salário mínimo. Enviavam os filhos, que eram muitos, para a escola, usando identidades falsas e, quando a escola terminava, as crianças mais velhas iam trabalhar nas pequenas lojas locais: a padaria, o talho, a loja de ferragens. De facto, a vida não era muito diferente da do país que tinham abandonado, o país a que ainda se referiam como "casa", apesar de ser um país a que não desejavam regressar. A América era a terra prometida e queriam agarrarse a essa promessa, ter algum êxito na vida. A sua única alternativa era mentir, enganar e filar qualquer oportunidade que se apresentasse: tráfico de droga, extorsão, assalto à mão armada, gangues. No final de contas, ninguém era perfeito e toda a gente tinha de sobreviver.


Descendo a avenida sem árvores, Davis Farrell não tinha um aspecto muito diferente de qualquer deles. Um pouco mais excêntrico talvez: o cabelo comprido castanho-escuro caía-lhe nos ombros, a pele era cor de azeitona e os olhos castanhos. Uma barba escondia-lhe a metade inferior do rosto e usava uma T-shirt cinzenta, calças de ganga e ténis gastos. Parou em frente de uma loja, as montras revestidas com barras de segurança, tal como a porta, que destrancou. Encaixado na montra encontrava-se um cartaz onde se lia em espanhol: "Farrelisto. Seguros. Especialista en Emigración." Mas Davis era mais do que apenas um agente de seguros; ajudava os emigrantes na questão dos vistos e obtenção de alojamento. Não ficou surpreendido por encontrar pessoas à espera, à porta. A preocupação conduzia as pessoas até ele, procurando respostas para problemas insuperáveis. Davis Farrell conhecia estas pessoas. Vivia onde elas viviam, nos mesmos edifícios. Vestia-se como elas. Falava espanhol como elas. Aqui, sentia-se mais hispânico do que no Connecticut, de onde vinha. Abriu a porta e mandou entrar os seus clientes. Disse-lhes para esperarem, que já vinha ter com eles, puxou as persianas da janela para cima, sentou-se atrás da secretária de madeira, que já vira melhores dias, recostou-se na cadeira Windsor, cujo assento brilhava do polimento de muitos anos de traseiros e, a seguir, comprimiu o botão do atendedor de chamadas, ouvindo o vozear perturbado do espanhol dos seus clientes ao mesmo tempo que abria o correio. Ergueu a cabeça quando a campainha da porta tiniu. A porta estava permanentemente trancada. Ali, nunca se sabia quem poderia andar lá fora. No entanto, desta vez, era um mensageiro de bicicleta. Farrell premiu o botão para o deixar entrar, assinou para receber o envelope que ele lhe estendeu e assegurou-se que ouvia o clique do fecho da porta depois de ele sair. Revirou o envelope, surpreendido. Um espesso envelope branco com o seu nome e endereço escritos à mão. Não via papel desta qualidade há muitos anos. Sorriu. Talvez estivesse a ser convidado para jantar na Casa Branca. Pô-lo de lado enquanto tratava com os clientes que esperavam, conversando com eles na sua língua. Conhecia bem um dos homens;


ajudara-o a obter um visto há dois anos. O homem progredira; tinha um emprego seguro, acabara de comprar um carro velho e precisava de um seguro. Farrell conseguiu-lhe um bom contrato. O segundo era um jovem, não mais de dezassete anos, calculou Farrell. Ilegal, acabado de sair do barco, aterrorizado como tudo e sem nenhum sítio para onde ir. Farrell fez um par de telefonemas, disse-lhe para esperar, levá-lo-ia pessoalmente a uma casa que lhe daria abrigo e as pessoas aí tentariam resolver-lhe a situação. Era melhor do que deixá-lo nas ruas, presa fácil de drogas, gangues e armas. O terceiro era uma mulher desesperada por obter um empréstimo. Farrell sabia que era impossível; não podia ajudá-la, mas sacou o seu grampo do dinheiro e destacou um par de notas de vinte; pelo menos ela e os filhos comeriam hoje. Prometeu falar à associação de emigrantes e ver o que poderiam fazer por ela. Era apenas um dos muitos pedidos que receberia naquele dia e nenhum dia era diferente de qualquer outro. Sozinho, exceptuando o jovem silencioso à espera, pegou no envelope e estudou a letra. Intrigado, abriu-o e retirou o cartão branco. Rompeu em ruidosas gargalhadas quando o leu. Era óbvio que pensara muito em Bob Hardwick nestes últimos anos. Hardwick fora sempre um brincalhão, mas desta vez a partida fora-lhe pregada a ele. Um dia, sem mais nem menos, Hardwick cortara em duas a vida de Davis Farrell. Num minuto fora o jovem craque de Wall Street; no minuto seguinte estava nas ruas e ninguém, nem uma única pessoa que conhecia, lhe dava emprego. Odiou Hardwick por aquilo, odiou-o com uma paixão que sabia nunca feneceria senão quando Bob Hardwick morresse. Depois de tratar do assunto do jovem emigrante ilegal assustado, Davis trancou o escritório. Apanhou o metro para o centro de Manhattan e depois caminhou até ao parque de estacionamento onde o seu BMW o esperava. Mudou de camisa, vestiu um casaco de caxemira escura de bom corte, calçou um par de bons mocassins, trocou a mala coçada por uma pasta de pele que continha um computador portátil e encaminhou-se para a Lexington. Em apenas alguns minutos estava noutro mundo: um escritório minimalista moderno, todo ele pele e aço. Uma jovem bem vestida de cabelo brilhante estava sentada no balcão da recepção. Sorriu, cumprimentando-o, dizendo que não esperara que voltasse hoje.


No seu próprio gabinete, tirou o computador e chamou a recepcionista pedindo-lhe para trazer café, forte e quente, da loja chique em baixo. Não conseguira trabalhar assim às claras, de novo, até Bob morrer e não poder falar. Mas agora Davis Farrell estava de volta à sua actividade. Pegou no telefone e ligou para Daisy Keane em Londres. De súbito preocupado, julgou que era melhor aceitar o convite e descobrir o que se passava. Quando voltara para Londres, chegara um mensageiro com uma cópia do convite para o cruzeiro e um bilhete de Montana dizendo que os convites já tinham seguido e que eu deveria contar com respostas dentro em breve. Ele ia a caminho de Nova Iorque e contactaria comigo mais tarde. O bilhete era apressado e profissional. Não dizia nada sobre a noite que passáramos em Sneadley, apenas agradecia por o ter albergado da tempestade de neve. Irrequieta como um gato, deambulei pela enorme penthouse de Bob Hardwick, em Park Lane, parando de vez em quando à janela para fitar o céu cinzento que pairava sobre Hyde Park. As árvores mostravam a sua primeira sombra de verde, como musgo sobre uma pedra húmida e, aqui e ali, narcisos irrompiam por entre os pedaços secos de neve cinzenta, a Primavera a explodir através do que restava do nevão da semana passada. Enquanto esperava pelos telefonemas dos suspeitos e de Montana, preenchi o tempo a passar metodicamente em revista os papéis de Bob, separando os que considerei precisarem de ser analisados pelos seus advogados. Nunca tivera antes acesso ao cofre pessoal de Bob, mas agora tinha a chave e sabia que o meu dever era examinar o que lá estava dentro. Era apenas um pequeno cofre de parede, meio escondido atrás de uma fileira de casacos no guarda-fatos junto ao quarto e, quando o abri, descobri que não havia lá muita coisa, apenas outro desses envelopes castanhos que ele sempre usava como bizarro sistema de arquivo pessoal. Não havia qualquer nome escrito no envelope, nada que indicasse o que poderia conter. Não querendo meter o nariz nos assuntos pessoais de Bob, hesitei em abri-lo, mas depois decidi que era melhor ser eu do que outra pessoa qualquer. Se o conteúdo provasse ser demasiado íntimo e não apropriado para olhos de estranhos, destrui-lo-ia.


Bob selara o envelope com fita gomada. Puxei-a e retirei um maço de cartas em envelopes de avião antigos, muito finos, envolvidos num elástico grosso. Todos eles eram dirigidos à Senorita Rosália Alonzo Ybarra, num endereço perto de Málaga, em Espanha. E todos eles estavam fechados e assinalados com um "Devolver ao remetente". Percebi de imediato que eram as cartas de amor de Bob para Rosália, suplicando-lhe que voltasse para ele. E ela nem sequer as abrira. Tristemente, imaginei como ele se deveria ter sentido desesperado ao escrever-lhe tantas vezes. Os carimbos dos correios datavam de há quarenta anos e abrangiam um período de três anos. Três anos de esperança, a aguardar. Voltei a pôr as cartas no cofre e tranquei-o. Não me ia pôr a ler as elisões de sofrimento e de amor de Bob. Destinavam-se apenas aos olhos de Rosália. Mas, pelo menos, tinha agora um endereço que Montana podia investigar, embora, passados todos estes anos, sabia-se lá se Rosália ainda lá estaria. Afastei-a dos meus pensamentos, esvaziei a minha secretária, arrumei as coisas no escritório e depois fui atacar a minha zona do apartamento. Bob instalara-me no lado oposto ao seu. "Por uma questão de decoro", dissera, com aquele sorriso malicioso que lhe iluminava o rosto grande e lhe fazia brilhar os olhos como uma vela numa noite escura. "Não íamos querer que ninguém ficasse com uma impressão errada, pois não?" Tal como fizera em Sneadley, transformara as minhas divisões no apartamento na minha casa e não era fácil preparar-me para partir, empacotando as recordações e os presentes. Rats arrastava-se com lentidão atrás de mim enquanto eu trabalhava. Percebia que estava perturbado com as mudanças e levava-o a dar passeios frequentes no parque, tentando que a vida parecesse normal para ele. Não sabia ainda para onde ia, mas para onde quer que fosse, ele iria comigo. Três dias decorreram a passo de caracol. Pensava no que teria acontecido a Montana, mas não lhe telefonei a relatar as notícias sobre Rosália. No final de contas, não era possível que fosse suspeita de matar Bob; de facto, podia nem estar viva. Já não aguentava esperar que o telefone tocasse e, uma vez que estava fadada a partir num cruzeiro, decidi que


podia já agora acatar o conselho de Montana e ir fazer algumas compras, por isso atravessei Hyde Park até Knightsbridge e ao Harvey Nichols. Duas horas depois, deixei-me cair numa cadeira no restaurante do piso superior da elegante loja de departamentos, rodeada de sacos que continham o tipo de roupas que nunca usara antes: coisas leves e transparentes de cores bonitas, vestidos de chiffon, sandálias enfeitadas com pedras, xailes macios com franjas e uma quantidade de ruidosas pulseiras douradas com enormes brincos de argolas a condizer. Disse a mim mesma que, claro, não estava a pensar na forma como Montana poderia apreciar este meu novo visual. Queria apenas ter bom aspecto quando me encontrasse frente a frente com as glamorosas Diane e Filomena. Esfomeada, devorei o meu almoço e bastante café e, a seguir, apanhei um táxi de volta ao apartamento. Estimulada por toda aquela cafeína, levei Rats a dar outro passeio no parque. Era certamente melhor do que ficar por ali à espera que Montana telefonasse. O retinir estridente do telefone deu-me as boas-vindas quando entrei de novo no apartamento. De algum modo, sabia que era Montana. As minhas pernas viraram gelatina com o som da sua voz, mas disse a mim própria que era apenas por estar tão aliviada por ter por fim notícias dele. - Daisy. - Montana - repliquei e ouvi-o suspirar. - Pensei que se tinha esqmecido de mim - acrescentei. Sabia que sorria quando disse: - Sentiu a minha falta, foi? - E o que espera que responda a isso? - Um sim seria simpático. - Então não sou simpática. - Claro que é, percebi logo que a conheci. Demasiado simpática, pensei, para estar envolvida em assassínio e confusão. - Assassínio e confusão? - Eu era um eco preocupado e meio receoso, a pensar no que ele me iria contar agora. - Estou em Nova Iorque - retorquiu. - Estarei em Londres amanhã. Podemos encontrar-nos?


- Sim, oh, sim. - Não consegui, desta vez, esconder o alívio da minha voz. E espero que me vá dizer que isto é tudo uma brincadeira e que não preciso de embarcar em nenhum cruzeiro consigo. O riso dele chegou-me pelo telefone. - Então porque foi hoje comprar todas aquelas roupas glamorosas de cruzeiro? Pasmada, respondi: - Anda a espiar-me. - Só a vigiá-la, à distância, poder-se-á dizer. No final de contas, Bob deixoua à minha guarda. Pensei naquilo por um segundo e depois, com uma voz fraca e agradecida, disse: - Obrigada - embora ainda não acreditasse que houvesse alguém por ali a procurar matar-me. - Faz tudo parte do meu trabalho - replicou Montana com brusquidão. Então, o que me diz a jantarmos amanhã à noite? Vou buscá-la por volta das oito. Pode ser? - Onde vamos? - Porque digo estas coisas? Um homem convidava-me para jantar e eu só pensava no sítio onde íamos. - McDonalds - respondeu. - Estou aí às oito. - Ria-se quando desligou. O telefone guinchou de novo quase de imediato. Claro que voltara a ligar, como é que podia desligar com uma observação daquelas? - Vou querer um Big Mac com batatas fritas - atendi. Uma voz desconhecida disse: - Verdade? - Oh, oh... perdão... pensei que era outra pessoa... - Não há nada de errado com um Big Mac - observou o desconhecido. Estou a falar com Daisy Keane? - Sim. - Bem, olá Daisy. Chamo-me Davis Farrell. - Oh! Sim. Claro... - Tinha sido apanhada desprevenida, não sabia o que dizer. - Gostaria de lhe agradecer o seu amável convite. Li o obituário de Bob no The New York Times. Trágico, absolutamente trágico. Bob e eu conhecemo-nos há muitos anos, sabe... muitas águas passadas, poder-se-á


dizer. Bob estava sempre pronto a ajudar quando precisávamos, se achasse que se justificava, claro. E sabe Deus, senhora Keane, a sua generosa oferta de cem mil dólares para fazer este cruzeiro não é a única razão para me decidir a embarcar, mas certamente que ajuda. Estou já a admitir o facto, para que não pense que vou com intenções falsas. O meu coração sentiu simpatia por Davis Farrell; falava de Bob de forma tão calorosa. Pelo menos, vinha no cruzeiro pelas razões certas. O dinheiro era apenas um adoçante. - Espero conhecê-lo em breve, senhor Farrell - respondi. - Davis, por favor. E estou também ansioso por a conhecer, Daisy. Posso tratá-la assim, não posso? Conseguia imaginá-lo, a personificação do homem um pouco betinho: blêizer azul-escuro, calças caqui, mocassins, camisa azul, gravata às riscas, boas maneiras. O perfeito cavalheiro. Sempre era uma mudança, disse para comigo enquanto concordava que me poderia chamar Daisy. Despedimo-nos, ou basta Ia vista como ele disse. Fiquei ali a olhar através das janelas altas, do chão ao tecto, que davam para o tráfego que passava como uma flecha pela Park Lane e para o parque a seguir, enevoado no crepúsculo que se adensava, a pensar em Bob e nos tempos que aqui passáramos. As festas, os jantares íntimos, as discussões em relação ao meu futuro, sempre motivo de preocupação para Bob. - Alguém tem de casar contigo e livrar-me de ti - resmungara, após uma briga particularmente acesa. Esqueço-me agora da razão, alguma coisa relacionada com o facto de não ter chegado a horas a um encontro qualquer e depois culpar -me e eu dizer-lhe que ele era um patife preguiçoso e que devia era tomar conta de si próprio. - Estás a ficar demasiado inglesa - queixara-se. - Pensei que arranjara uma dessas boas mulheres submissas, do tipo que fazem qualquer coisa por um homem com dinheiro e não uma rapariga refilona que não sabe como tratar um homem rico e está à espera de direitos iguais ou algo do género. Creio que lhe disse que os meus direitos eram mais do que iguais e que conseguia encontrar uma data de homens que o livrassem de mim, se assim o desejasse. O que, claro, não queria, porque por esta altura era


independente e as minhas ocasionais relações intermitentes tinham mais a ver com sexo do que com amor ou casamento. - Sexo? Tens a certeza que sabes do que se trata? - Bob rira-se de mim, pondo-me ainda mais louca. - No fim de contas, terei de ser eu a arranjarte alguém, calculo - acrescentou, ignorando as minhas lágrimas de fúria e fitando pensativo o tecto. - E, raios, acredito que até já tenho o homem certo. Disse-lhe que não queria nem precisava de nenhum homem, estava bem como estava, muito obrigada. Sorri, recordando-me da resposta dele. - Daisy, minha querida, és o tipo de mulher que nunca ficará completa sem um homem. Neste preciso momento tens-me a mim. Depois, o que vais fazer? Como de costume, suponho que terei de ser eu a procurar por ti. A mulher-a-dias já se tinha ido embora e eu estava sozinha no grande apartamento. Estava escuro lá fora. Os faróis tremeluziam a descer Park Lane e os globos dos candeeiros brilhavam dourados por entre as árvores de Hyde Park. Uma brisa forte e súbita varreu o quarto não iluminado e, do seu poleiro no banco, por baixo da janela, Rats ergueu a cabeça, os olhos brilhantes a olhar esperançosamente para lá de mim. Com o coração na garganta, rodei com rapidez, fitando o quarto escuro, mas claro que não havia lá ninguém. - Só tu e eu, Rats - disse em voz alta, apressando-me a ligar os candeeiros. Mas olhei, nervosa, em volta, porque não diria que Bob não era capaz de voltar, só para ser o último a rir-se. Mas claro que até ele não conseguia fazer isso. Com Rafs afundado no meu colo a ressonar ruidosamente, os meus pensamentos voltaram-se para Bordelaise. Ainda não lhe falara de Montana, nem do cruzeiro. Liguei-lhe. Atendeu de imediato, embora com uma voz bastante ensonada. - Olá! - saudei. - Olá para ti também - replicou, bocejando. - O que há de novo? - Acordei-te? - Não... Bem, não exactamente. Conseguia imaginá-la, a sentar-se na cama, empurrando para trás com os dedos o curto cabelo louro e estendendo a mão para os óculos. Via mal


como um morcego e punha sempre os óculos quando estava ao telefone, como se isso a ajudasse também a ouvir melhor. - Estou a interromper alguma coisa? - perguntei a sorrir, pensando quem seria o homem na cama dela. - Nada de importante - garantiu-me com um suspiro. - Quem me dera que fosse - acrescentou com melancolia, fazendo-me rir, porque, apesar de três casamentos, Bordelaise andava ainda "seriamente" à procura do amor. - Então, como vão as coisas? - inquiriu. Sabia que estava a acender um cigarro e ouvi-a tossir, afastando o telefone do rosto na esperança de que eu não ouvisse e ralhasse com ela. Foi a minha vez de suspirar. Já lhe falara tantas vezes sobre não fumar, mas a resposta travessa dela era sempre: "Mas o que diabo se faz depois se não se fuma?" - Queres fazer um cruzeiro? - lancei-lhe como surpresa. - Estás a gozar? Tem de se ter sessenta e cinco anos ou mais para fazer um cruzeiro, é essa a regra. Bocejou de novo com ruído, mas silenciou enquanto eu explicava o que se passava e que seria um cruzeiro particular num iate muito luxuoso. A seguir li-lhe a carta de Bob. - Deve ter ficado maluco - retorquiu sem rodeios quando terminei. - Em que é que ele estava a pensar, mandar-te num cruzeiro com esses malucos todos? - Montana vai lá estar para me proteger. - Montana? - Harry Montana, e apareceu no funeral de Bob. É o investigador particular a quem Bob pediu para investigar a história de todos os suspeitos para ver o que andariam a tramar e se algum deles poderia ter querido matá-lo. - Não deve ter investigado muito bem, se um deles realmente matou Bob. Tens a certeza que esse Montana é honesto? Fiquei de súbito inquieta. No final de contas, não sabia quem Montana era realmente, apenas quem ele dizia ser. No entanto, constava da folha de pagamentos de Bob, trabalhava com o advogado de Bob e parecia conhecer toda a gente e tudo o que se passava.


- Suponho que sim - respondi, um pouco duvidosa. - De qualquer modo, parece desempenhar bem o seu papel. - No final de contas, talvez seja melhor eu embarcar nesse cruzeiro - disse, parecendo preocupada e tossindo mais um pouco. - Manda-me as datas por e-mail e vou ter contigo a Londres. Está bem? - Está bem - retorqui, aliviada. - E Bordelaise... obrigada. - Pelo quê? - disse, ainda a tossir. - Sou tua amiga, não sou? Quando Montana estava em Londres em trabalho, tomava o pequenoalmoço na Patisserie Valerie, no Soho, onde tinha um apartamento. Pedia sempre a mesma coisa, um croissant e café forte. Almoçava onde acontecia estar quando sentia fome e, a maior parte das noites, jantava num sítio da zona, de preferência indiano ou chinês. Esta noite resolvera levar Daisy ao Red Fort na Dean Street. Não havia táxis e decidiu subir Piccadilly, cortando através de ruas laterais até Park Lane. Estava dez minutos atrasado quando deu o nome ao porteiro e esperou que este chamasse Daisy pelo telefone interno. Tendo recebido luz verde, o porteiro escoltou-o até ao elevador e premiu o botão de chamada. As portas do elevador abriram-se directamente para penthouse. Daisy estava de pé, braços cruzados sobre o peito. Vestia um vestido preto justo com mangas compridas e um profundo decote em V, que apertava com uma fiada de minúsculos botões. A saia pelo joelho mostrava as pernas esbeltas e um colar de contas de esmeralda rodeava-lhe o pescoço alto. O verde realçava-lhe a cor dos olhos e o comprido cabelo ruivo baloiçava exuberante por cima dos ombros. Parecia, pensou Montana apreciador, melhor do que um milhão de dólares. Ou até cem mil. Rats estava sentado a seu lado, a cabeça inclinada interrogativamente para um dos lados. - Está atrasado - disse, como forma de cumprimento. - E você está linda esta noite - replicou ele, acrescentando que pedia desculpa. - Desculpa pelo elogio? Ou por chegar atrasado? - Escolha você - respondeu fatigado. Após um par de noites a dormir pouco ou quase nada não estava com disposição para batalhas verbais. Para sua surpresa, Daisy sorriu. - Estava só a testá-lo. Prometi a mim mesma poupá-lo esta noite.


Montana ficou de novo surpreendido por a ver corar. Havia qualquer coisa cativante em Daisy apesar da sua rudeza. Soubera da história do seu casamento por Bob e entendia por que razão jogava sempre à defensiva com os homens. Não podia culpá-la, mas achava que estava na altura de pôr tudo aquilo para trás das costas e seguir simplesmente em frente. - Entre e deixe-me arranjar-lhe uma bebida - disse ela na voz baixa e doce que lhe agradava, conduzindo-o à vasta zona de estar. Através da parede de janelas viam-se as copas das árvores, esbatidas no brilho fugaz de uma meia-lua e com uma névoa de faróis traseiros vermelhos na rua em baixo. Havia quatro grandes quadros pendurados na parede, embora nenhum fosse de artistas que Montana conhecesse. O gelo retiniu no copo quando Daisy lhe estendeu o seu habitual bourbon. - Queria perguntar-lhe sobre Rosália. - A mulher que queria uma vida normal com um marido que viesse para casa à noite e uma família - respondeu ela. - Creio que a descobri. - Faloulhe das cartas devolvidas de Espanha. - Então porque não me telefonou logo que soube essa informação? perguntou ele, irado. Ela encolheu os ombros. - Não pensei que fosse assim tão importante. Além disso, é bisbilhotar a vida privada de Bob e, no final de contas, ela dificilmente pode ser considerada suspeita. Amava-o. - Então acha que Bob não se recordaria dela no seu testamento? - Suponho que sim, mas não pode acreditar seriamente que Rosália voltasse para algum tipo de vingança. Que matasse Bob? Afinal, foi ela que o deixou. - Não sabemos isso com absoluta certeza. Conhecemos apenas a versão de Bob. Quem sabe na realidade o que se passa entre um homem e uma mulher excepto os dois? Não vejo móbil para assassínio, mas também ainda não falei com Rosália. Não faço ideia de como é ou do que é capaz. - Mas descobriu Davis Farrell. Telefonou ontem a aceitar o convite. Gostei dele. Foi o único que falou de Bob. - Farrell consegue ser encantador, em especial com mulheres. Descobrimo-lo a vender seguros a emigrantes hispânicos em Queens.


-Oh. Daisy parecia tão surpreendida que Montana sorriu. - Vamos lá, vamos jantar. O cão observou, de olhos tristes, as portas do elevador a começarem a fechar-se atrás deles e Montana prometeu-lhe um passeio mal regressassem. Montana enfiou o braço de Daisy no seu ao caminharem até ao fundo da enevoada Park Lane onde tiveram sorte e apanharam um táxi. O vento soprara fios do cabelo dela para o rosto e ele puxou-os gentilmente para trás com o dedo. O cabelo parecia seda, era pesado, quando lhe passou a mão por cima. Ela lançou-lhe um olhar nervoso de soslaio e seguiram em silêncio até o táxi os depositar no restaurante. A mão de Daisy estava fria quando pegou nela para a ajudar a sair do carro. - Mãos frias, coração quente - disse irreverente, embora ele percebesse que tivesse de imediato desejado não o ter dito. - Na realidade, são os meus pés que estão sempre frios - acrescentou, fazendo-o rir-se ao mostrar-se de novo consternada. - Do que precisa é de uma comida indiana picante para o sangue começar a fluir de novo. Vamos, amor, vamos comer. Há tanto tempo que nenhum homem chamava "amor" a Daisy que ela praticamente se derreteu. - Quero roganjosh e keema naan - disse com avidez. - E frango tandoori e borrego com molho masala... - Tudo isso! - concordou, quando se sentaram numa mesa de canto. - Vinho? - perguntou Montana. - Cerveja. Kingfisher. - Era uma perita. Montana fez o pedido e depois estendeu o braço para lhe pegar na mão de novo, por cima da mesa. - Não vamos brigar - pediu em voz baixa. - Está bem - retorquiu ela, mas tinha um ar apreensivo quando ele lhe levou a mão aos lábios e a beijou. A mão que estivera tão fria há apenas uns minutos agitou-se com o calor do sangue que corria pelas veias de Daisy. - Pensa realmente que devia fazer isso? Quero dizer, beijar a minha mão? - O beijo é uma forma de pedir desculpa. E agora vamos falar de trabalho.


- Claro - respondeu ela, desapontada. - Até agora temos quatro aceitações - disse Montana com energia. - A exmulher, a ex-amante, o ex-amigo e o ex-sócio. Ainda nos faltam o excientista e a ex-apaixonada. - Todos esses ex. - Daisy debicava, melancólica, o frango tandoori. Porque diabo teve Bob de os desenterrar a todos? Porque não deixá-los em paz? - Sabe qual é a razão. Se as suspeitas de Bob são ou não válidas cabe-nos a nós descobrir. O criado trouxe o keema naan, um pão sem fermento recheado deborrego picado e Montana serviu-a. - Vou a Munique amanhã. Tenho uma pista sobre Marius Dopplemann. Intriga-me, contudo. Parece que certo dia abandonou simplesmente o seu emprego muito importante num projecto qualquer ultra-secreto, fez as malas e nunca mais se ouviu falar dele. O FBI afirma que não sabe de nada e todos os outros organismos oficiais com quem contactei dizem a mesma coisa. Não estou a conseguir nada e pergunto-me agora o que saberia Bob que eu não sei e porque raio não me contou nada. - Bob adorava jogos. - Preciso de ver essas cartas que escreveu a Rosália. Porque não volto consigo depois do jantar e dou-lhes uma vista de olhos? Daisy suspirou, mas disse que sim. Montana sorriu-lhe. - Então? O que comprou para o cruzeiro? - Mandou mesmo alguém seguir-me? - Não reparou na mulher na loja a ver os expositores a seu lado? Ou no homem na mesa ao lado no restaurante? Estava mesmo atrás de si quando chegou a casa. Daisy mostrou-se chocada. - Nem sabia que coisas como esta aconteciam! - E para isso que me pagam. Recorde-se, tenho de ter cuidado consigo, é o bem mais precioso de Bob. - Ele nunca foi meu dono, sabe - respondeu, zangada. Montana perguntou-se se ela alguma vez perderia aquele reflexo de defesa. - E duvido que alguém alguma vez o seja - disse com suavidade. - Pedi a Bordelaise para vir no cruzeiro.


- Óptimo. Será bom levar uma amiga. vou convidar mais algumas pessoas que Bob conhecia, mais alguns agentes meus para vigiarem toda a gente. Farão parte da tripulação e é melhor que não saiba quem são, porque se não estaria sempre a olhar para eles. - Parece divertido - retorquiu Daisy com amargura. Terminado o jantar, apanharam um táxi de volta a Park Lane onde Daisy lhe entregou o pacote que continha as cartas de Rosália. - Não as li. Não é correcto ler as cartas de amor de outras pessoas. Montana assentiu com a cabeça e, a seguir, recordando-se que prometera levar Rats a dar um passeio, levou o cão para baixo no elevador e deu uma volta rápida pelo parque orvalhado. De novo lá em cima, despediu-se de Daisy. - Depois telefono-lhe. E então, incapaz de resistir à boca macia e vulnerável, beijou-a ao de leve. A última coisa que viu quando as portas do elevador se fecharam foi Daisy ali parada, uma mão comprimida nos lábios onde a beijara. Esperava que ela não estivesse a lamentá-lo.


Ex-amigo profissional, suspeito nº 5 A cidade mais encantadora da Alemanha fica na região da Baviera, não muito longe dos Alpes austríacos cobertos de neve, mas hoje Munique estava escondida sob um pesado manto de nuvens, que largavam uma chuva fina e fria em pequenos aguaceiros desagradáveis. Mal as pessoas tinham fechado os guarda-chuvas, tinham logo que os abrir demovo, fazendo com que os rostos dos homens se franzissem e o cabelo das mulheres pendesse ao caminharem penosa e miseravelmente para casa na hora de ponta do final da tarde. O tempo fazia também com que muitos se detivessem num dos hospitaleiros cafés com esplanadas, onde, protegidos da chuva atrás de resguardos de plástico, beberricavam agradecidos uma boa cerveja Múnchen, ou um copo de vinho, ou aguardente, adiando o momento em que teriam de enfrentar de novo o tempo agreste. Um desses homens era Marius Dopplemann, também conhecido por Marcus Mann. Baixo, extremamente magro, envolto numa velha gabardina bege e sem chapéu para proteger o cabelo castanho ralo, entrou no café mais próximo. Em vez da zona da esplanada mais convivial, dirigiu-se para o bar lá dentro e sentou-se. Os óculos sem aros embaciaram-se de imediato. Tirou-os e limpou-os com um guardanapo de papel. As lentes eram muito grossas e, sem eles, via-se que os olhos eram do verde gélido do vidro das garrafas e com mais ou menos a mesma inexpressividade. Voltando a colocar os óculos no nariz aquilino, Dopplemann, também conhecido como Mann, passou as mãos pelo cabelo fino molhado e pediu um copo de vinho tinto. - Um bordéus - disse, de forma hesitante e discreta, embora, de facto, soubesse exactamente o que queria. O empregado do bar mostrou-lhe a garrafa, Dopplemann leu cuidadosamente o rótulo e depois acenou aprovador. Não era de forma alguma um grande vinho, apenas um tinto agradável de uma boa região vinícola, mas sentiu-se rico de novo só por pedir "um bordéus".


Aprendera muito sobre vinho com Bob Hardwick quando trabalhava nos Estados Unidos. Dez anos se tinham passado desde esse primeiro encontro. Era na altura apenas um papalvo jovem e tímido, um simplório no que dizia respeito à vida dos prazeres. Mas aprendera depressa e num instante que gostava dessa vida. Gostava de bom vinho, de comida interessante, de carros velozes e de uma mulher especial. Não pensava nessa mulher há muito tempo e não tencionava fazê-lo agora. Em vez disso, tirou um recorte dobrado de jornal do bolso interior, alisou-o no balcão de mármore e leu, mais uma vez, o entusiástico obituário de Sir Robert Waldo Hardwick. Recostando-se, bebeu, pensativo, um gole do vinho, recordando como costumavam ser as coisas quando era jovem e se dizia que era um génio, embora soubesse apenas que era bom no que fazia. Era cientista e engenheiro e possuía uma mente que não conhecia fronteiras, algo que lhe permitia resolver problema atrás de problema e descobrir novos métodos na sua investigação sobre viagens espaciais. "Perguntem a Dopplemann" tornara-se uma piada conhecida no seu círculo e, um homem insignificante em todos os outros aspectos da sua vida, deliciarase com a aprovação dos seus pares. Contudo, o nome de Dopplemann não era mencionado no obituário de Bob Hardwick, embora muitos outros do mundo dos negócios, da ciência e das artes o fossem. De certo modo, estava contente por já ninguém falar dele. Era um homem esquecido, notícia de ontem, e era exactamente assim que gostava. Não queria fazer parte do passado e tinha apenas um domínio reduzido sobre o futuro. Lidava era com o presente, uma labuta diária por uma vida que já não encerrava qualquer promessa. Marcus Mann, antigamente Marius Dopplemann e um dos melhores cérebros científicos do mundo, ensinava agora numa pequena escola particular num subúrbio de Munique, tentando semear os elementos básicos da ciência em jovens mentes indiferentes e enfrentando diariamente a derrota. Não era o que ambicionara da vida, mas com um segredo terrível no seu passado, sentia-se grato até por este tipo de emprego. Dobrou o recorte de jornal e voltou a guardá-lo no bolso, beberricou o vinho e fitou pensativo o velho espelho lascado atrás do bar. Mas não foi a


sua imagem que aí viu reflectida: foi a de Bob Hardwick. O rosto largo e severo de Bob, com os olhos azuis duros como pedras que quase conseguiam esfolar-nos a pele quando estava zangado. Como Dopplemann tinha boas razões para saber. Terminou a bebida, pagou a conta, contando escrupulosamente as moedas e acrescentando a quantia certa para a gorjeta. Pobre ou não, nunca intrujaria em coisas como gorjetas. As suas raízes vinham da classe trabalhadora e sabia o que significava uma gorjeta. Virou a gola do casaco para cima, empurrou as pesadas portas de vidro e saiu para enfrentar de novo os elementos. Caminhou com energia até à estação e teve a sorte de encontrar um comboio que ia sair. Saltou para bordo mesmo a tempo, quase derrubando o agente de Montana, que saltou atrás dele. Agarraram-se perigosamente por alguns momentos, depois Dopplemann recuperou o equilíbrio, pediu desculpa ao desconhecido e dirigiu-se para um lugar, onde fitou a paisagem que passava pela janela, não olhando uma só vez à sua volta. O agente de Montana ocupou o assento atrás dele, evitando cuidadosamente fitar o olhar de Dopplemann reflectido na janela. Em vez disso, deu uma vista de olhos no jornal da tarde. Quando a carruagem chegou ao fim da linha, seguiu Dopplemann. Viu-o encaminhar-se para a bicicleta acorrentada à vedação, destrancá-la e depois afastar-se a pedalar à chuva. Um segundo homem, que estava também a desacorrentar a sua bicicleta disse que sabia onde Dopplemann vivia e o agente ligou célere para Montana no seu hotel em Munique e passou-lhe a informação. Fizesse o tempo que fizesse, Dopplemann apreciava sempre a sua viagem de bicicleta até casa, nas estradas rurais que subiam e contornavam uma encosta, passando por um lugarejo formado por três pequenas casas e um par de celeiros, depois mais três quilómetros até um beco sem saída e ao edifício em ruínas de um único piso, com um telhado bambo e uma robusta porta de madeira outrora pintada de verde, mas agora descorada para um tom acinzentado pelo vento, chuva e neve. Uma janela estava entaipada com uma placa de contraplacado e a outra era apenas suficientemente grande para deixar entrar alguma luz. Uma chaminé meia


desequilibrada inclinava-se para leste, como uma árvore ao vento predominante. Um cão grande, uma mistura de cão pastor e Deus sabe que mais, veio a correr aos saltos em direcção a Dopplemann quando este encostou a bicicleta à parede, outrora de estuque branco, e depois passou as mãos pelo cabelo molhado. Inclinou-se para fazer uma festa ao cão, refreandolhe a turbulência. O cão era o único raio de luz no seu mundo sem graça. Estavam juntos fazia agora três anos e o cão pastor guardava a casinha em ruínas como se fosse um palácio ducal. Não que houvesse alguma coisa para roubar, mas mantinha os vadios afastados. Os dois desapareceram dentro de casa e, em breve, um rasto de fumo jorrou da chaminé e o cheiro de ovos a fritar em banha rançosa feriu o ar. Dopplemann, também conhecido por Mann, estava em casa. Montana guiou o carro alugado com rapidez e eficiência através do trânsito entupido de Munique até que este se atenuou por fim nos subúrbios e depois no campo ainda por desbravar. A estrada tornou-se mais estreita e a gravilha transformou-se em terra com sulcos. A casinha de Dopplemann surgiu no seu campo de visão através da chuva, agora forte, que lavava os bosques verdes. Montana pensou que parecia uma ilustração de "Hãnsel e Gretei"; só faltava um lenhador de calções de pele e com um chapéu com uma pena e poderia encontrar-se num conto dos irmãos Grimm. Quando estacionou, a porta da casinha abriu-se de rompante e um cão grande correu para ele, dentes à mostra, a rosnar e mostrando um par de presas saudáveis. Montana deixou-se ficar dentro do carro enquanto Dopplemann seguia o cão. - Quem é o senhor? - perguntou Dopplemann quando se achou suficientemente perto. Montana baixou uns centímetros o vidro da janela. - Um mensageiro de Bob Hardwick, Herr Dopplemann. Dopplemann estacou de repente. A voz sibilante baixou para um rosnido, como o do cão: - Bob Hardwick morreu.


- É uma mensagem do túmulo. - Montana ficou à espera de uma reacção. Não houve nenhuma. O rosto de Dopplemann era impenetrável. - Tenho uma coisa para si, de Bob. Um presente. E um convite. Dopplemann hesitou, obviamente dividido entre dizer-lhe para se pôr a andar e um sentimento de curiosidade. Depois, fazendo sinal a Montana para esperar, levou o cão de volta à casinha e fechou-o lá dentro. Regressou com lentidão, parecendo um homem a caminhar para a forca, relutante e aterrorizado, contudo, incapaz de fugir. Montana saiu do carro para ir ao encontro dele. - Não se preocupe - disse em alemão. - É um gesto de boa vontade da parte de Bob. Espero que o reconheça como tal e me diga que aceita. Dopplemann parecia ter recuperado o controlo dos seus sentimentos. Pegou no envelope, abriu-o e examinou o convite. Nem uma centelha de surpresa, preocupação ou medo lhe perpassou pelo rosto. Montana pensou que daria um óptimo jogador de póquer. - Bob Hardwick reconhecia sempre os pontos fracos de um homem replicou Dopplemann por fim. - Sabia que eu teria de aceitar. Montana assentiu. Não conhecia ainda a história de Dopplemann, mas descobriria. - E óbvio que vai precisar de alguma ajuda financeira para chegar a Monte Carlo. Pedirei aos advogados que lhe enviem um adiantamento sobre os seus cem mil dólares, mas as suas despesas de viagem serão pagas. - Obrigado - disse Dopplemann em voz baixa. Depois, rodando sobre os calcanhares, voltou para a sua casa e fechou a porta. No carro, de regresso a Munique, Montana pensava no que teria acontecido no passado de Dopplemann para o deixar, um dos grandes cérebros científicos, isolado daquela forma e sobrevivendo com dificuldades. Telefonou ao seu contacto em Munique e combinou encontrar-se com ele ao jantar num restaurante que, com a sua elegância e boa comida, ficava a anos-luz de distância dos ovos fritos em banha rançosa de Dopplemann na sua casinha delapidada. Montana ficaria a saber mais qualquer coisa sobre Dopplemann depois de falar com este contacto. No dia seguinte, apanharia um avião para Málaga, na Costa del Sol espanhola. Para o último elo na cadeia dos suspeitos.


O primeiro amor verdadeiro de Bob, suspeito nº 6 Rosália estava sentada muito sossegada, no silêncio do meio-dia, na sua casa no topo da colina. Tinha os olhos meio fechados, mas estava consciente dos odores do jasmim, que crescia em abundância sobre os muros brancos, e da sebe de alfazema por baixo. Vislumbrou um beija-flor a pairar por cima do hibisco cor de laranja e viu a fonte borrifar quando um pequeno pássaro se banhou nela apressadamente. Viu todas estas coisas e cheirou-as, mas não as ouviu, porque Rosália era surda. Surgira de repente. Num mês ouvia muito bem, no mês seguinte ouvia os sons como se viessem de muito longe. "Do fundo de um túnel comprido", contara ao médico, confundida, esperando ouvi-lo dizer que era apenas algum tipo de vírus que desapareceria com o tempo. Mas não era e não desaparecera e, no espaço de um ano, ficou completamente surda. Aprendera a adaptar-se à sua deficiência, embora agora saísse cada vez menos. A maior tristeza era o facto de, apesar de usar um aparelho auditivo, já não conseguir ouvir bem as vozes dos membros da sua família e só as reter na sua memória, embora se tivesse tornado perita a ler os lábios. E a maior tragédia de todas era não ouvir a neta de quatro anos, cuja voz tinha um tom demasiado alto para lhe apanhar sequer o som. Mas as duas tinham aprendido cedo a comunicar e entendiam-se perfeitamente uma à outra. Mesmo assim, Rosália preferia ficar aqui, onde se sentia segura e também feliz, onde toda a gente compreendia a sua surdez e onde podia explicá-la calma e cuidadosamente aos hóspedes do seu pequeno e bonito hotel, conhecido como La Finca de los Pastores, a quinta dos pastores. A. finca estava na família de Rosália há várias gerações, tinha sido um lugar pobre, pouco mais do que um estábulo onde viviam os animais, com um pequeno espaço de habitação por cima. Nos velhos tempos, a comida era cozinhada pelos pastores num pote de ferro na grande lareira de pedra, onde os cordeiros abandonados eram também mantidos quentes e alimentados à mão para os salvar da morte certa. A finca englobava algumas terras com amendoeiras, citrinos e castanheiros e, mais ao longe, no sopé das montanhas, bosques de


sobreiros. Tudo isto era considerado de pouco valor quando a família sobrevivia com dificuldade carregando cestos de amêndoas ou laranjas no lombo dos burros para os vender no mercado local. Esses dias tinham passado há muito, claro, mas Rosália ainda se recordava desses burros cansados e dos cabazes cheios de amêndoas frescas de casca verde. Recordava a fragrância avassaladora das flores das amendoeiras, tão forte que mal se conseguia respirar, e também do perfume das flores de laranjeira, flores com que se faziam grinaldas para usar no cabelo se se tivesse a sorte de casar na Primavera. Mas, já nessa altura, finca começara a degradar-se; já não era habitável e os pastores tinham partido. Ano após ano, foi-se degradando cada vez mais até que por fim o telhado caiu e as chuvas do Inverno e os animais selvagens a invadiram. Quando tinha dezassete anos, Rosália partira da sua aldeia para a cidade costeira de Málaga, onde entrara como aprendiz para a cozinha de um chef no melhor hotel e onde conhecera também Bob Hardwick e se apaixonara. Mas nem o amor verdadeiro conseguira vencer as diferenças entre eles e, quando Bob partira para procurar fortuna noutras paragens, ela não fora com ele. A escolha fora sua e sabia que era melhor assim. Conhecera um homem mais velho, Juan Delgado, que explorava um pequeno café. Casara com ele e tivera três filhos, mas ajudava a cozinhar no café. Ele morrera de forma súbita, deixando-a sem dinheiro e sem casa própria e não teve outra opção senão pegar nos filhos e mudar-se de novo para a aldeia de onde viera e para a velha Finca de los Pastores, que herdara devido a uma série de mortes na família. No início, e com a ajuda dos vizinhos, ela e os três filhos reconstruíram uma pequena parte da casa, só um par de divisões, arrastando, acarretando, cimentando. Foi um trabalho duro e amargo, mas, pelo menos, tinham um tecto por cima das cabeças. Entretanto, trabalhava no café da aldeia, ganhando o suficiente para alimentar a sua pequena família, grata aos caridosos habitantes da aldeia que lhe ofereciam a roupa que deixava de servir aos respectivos filhos. Após acrescentar mais algumas divisões, começou a acolher alguns viajantes de passagem, cozinhando para eles à noite. Com o passar dos anos, os seus cozinhados foram ganhando fama e, com o encorajamento


dos hóspedes e muito trabalho duro, mais alguns empréstimos conquistados com esforço ao banco, fora reconstruindo afinca até se tornar uma perfeita casa de campo andaluza. A casa herdada em ruínas era agora um pequeno hotel encantador, frequentado por pessoas que apreciavam a sua elegante simplicidade. Tal como ela, adoravam os jardins e as colinas arborizadas, abrigadas por montanhas altas; adoravam a absoluta paz e sossego; e adoravam os bons vinhos do Rioja, o óptimo xerez, especialmente o amontilhado gelado, e a maravilhosa comida que Rosália continuava a cozinhar. Muitos voltavam ano após ano e eram recebidos pela filha mais velha de Rosália, Magdalena, que geria agora o hotel. Rosália vivia na sua própria casa, ligada finca por uma arcada. Rodeava-a um muro, conduzindo, como é habitual em Espanha, a um pátio florido e sombreado, com colunas, onde Rosália estava sentada, a desfrutar da paz envolvente. Excepto que a sua mente não se achava tranquila porque, lá no fundo, pensava ainda em Bob Hardwick. O seu Roberto. Soubera da morte através de um artigo de jornal há apenas um par de semanas e, quando o lera, foi como se uma parte da sua vida tivesse acabado com a dele. Sempre acalentara a fantasia de que o veria de novo, que um dia regressaria à sua vida, grande e impudente, esmagando-a com a sua presença masculina, que ela lhe mostraria o seu mundo e que ele lhe falaria do dele. Rosália suspirou. Nunca teria funcionado. Roberto não entenderia o facto de ela se ter "enterrado" no campo, embora tivesse admirado a sua perspicácia para o negócio ao gerir um hotel tão bom. E ela nunca teria entendido o mundo dele, voar num jacto privado para reuniões em Nova Iorque ou Caracas ou Sydney. O pesado portão de madeira abriu-se com estrondo e a neta, Isa bella, a quem chamavam sempre Bella, entrou aos saltos. Bella envergava um vestido flamenco cor-de-rosa com pintas pretas. As saias tesas de folhos estavam debruadas com seda preta e a menina usava os sapatos pretos de presilhas com saltos pequenos que as verdadeiras dançarinas de flamenco usam. A nuvem de cabelo escuro encaracolado borbulhava em redor do rosto bonito e os olhos castanhos redondos brilhavam. - Abuelita, avó - exclamou. - Este é o meu vestido novo para a feria. Rodou nos calcanhares, agitando teatralmente as saias de tafetá.


- Gostas? Lendo os lábios da criança, Rosália enxugou apressada as lágrimas com um lenço orlado de renda, que, como todas as roupas brancas az finca, cheirava à alfazema que cultivavam na quinta. - Mas é lindo, guapa, e tu também. Vais ser o êxito diferia. Vais na carroça da finca puxada por dois bois, com coroas de flores à volta dos chifres, e a tua mãe e o teu pai cavalgarão contigo nos seus valentes alazões, lustrosos de tanto escovar. Vais ajudar a escová-los, não vais? - Oh, vou, vou, prometo, e vou polir os estribos de prata e os ornamentos para as cabeças dos cavalos... Bella estava tão excitada que se atirou para o colo da avó, erguendo a cabeça a sorrir para ela. Mas o rosto toldou-se com uma expressão de ansiedade. - Abuelita, estás a chorar? - perguntou, chocada. Nunca vira a avó chorar; ninguém aqui na finca chorava, excepto ela quando caía ou não conseguia o que queria, o que, verdade seja dita, também não acontecia com demasiada frequência. Deu uma palmadinha na face de Rosália com ternura, os olhos castanhos brilhantes de preocupação. - Não faz mal, Bella - disse Rosália, a sorrir. - Eram lágrimas por um velho amigo que morreu. Estou a chorar porque estou triste por ele, - Percebo - retorquiu Bella, embora não percebesse nada, pois a morte ainda não entrara na sua vida. E depois ouviu a mãe a chamá-la e, com um beijo final para a sua abuelita, foi-se de novo embora a saltitar, batendo com o portão atrás dela, como sempre acontecia, fazendo Rosália rir-se. Bella fazia-a sempre sentir-se bem. Desejou que Roberto a tivesse conhecido. Montana descobrira o paradeiro de Rosália a partir das velhas cartas. Conduzia agora o pequeno Renault alugado para oeste do aeroporto de Malaga, na soalheira costa andaluza de Espanha, ao longo da estrada muito movimentada que ligava as vilas turísticas, que, por esta altura, se tinham desenvolvido tanto que quase se fundiam numa só. Torremolinos... Fuengirola... Marbella... Virou antes de chegar a Marbella, seguindo por uma estrada poeirenta através de pueblos cintilantes de brancos, com telhados vermelhos,


recentemente construídos para estrangeiros de países nórdicos frios que para aqui vinham à procura de sol, vinho barato e uma vida doce. Continuou através de aldeias cada vez mais pequenas, verdadeiras aldeias agora, com ruas empedradas, estreitas e casas caiadas, com janelas de grades de ferro e fortes portas de entrada de madeira conduzindo a pátios interiores à volta dos quais se centrava a vida espanhola. Era meio-dia e um ar de sonolência pairava por cima da aldeia onde Montana estacionou por fim, em frente do bar local. Havia cães a preguiçar nas soleiras das portas e os homens relaxavam abrigados do calor do sol, a beber cerveja San Miguel gelada e a conversarem. O bar era simples, como parecem ser todos os bares em pequenas aldeias espanholas. O pavimento terrazzo estava juncado de cascas de favas e frutos secos e dos quadrados de papel, que serviam de guardanapos, e um balcão de zinco mostrava uma variedade de tapas. Montana pediu um prato pequeno de boquerones, minúsculas anchovas brancas marinadas em azeite e vinagre, carne de porco com pimentos vermelhos estufada até ficar muito macia, e o pil-pil de camarões, pequenos, cheios de alho e picantes. Com um pedaço de pão estaladiço para ensopar nos molhos e uma San Miguel gelada, sentiu-se perfeitamente satisfeito. Estava ao balcão com meia dúzia de outros tipos, ouvindo-os especular sobre quem seria e sobre a sua tatuagem. Não percebiam que ele falava a sua língua e não os elucidou. Divertia-o sempre ouvir as pessoas falarem dele desta maneira. "Um homem misterioso", era o que diziam, mirando-o com dissimulação. Acabou a cerveja, pagou a conta e depois perguntou, num espanhol perfeito, se lhe podiam indicar o caminho para La Finca de los Pastores. Era perto da aldeia seguinte, informaram-no espantados. "Vire à esquerda a seguir ao cemitério", disseram, "e depois continue pela colina acima, não há que enganar." Montana guiou por uma estrada que serpenteava pela colina acima, onde um enorme painel publicitário de um touro, empoleirado na encosta, publicitava brande Soberano, passou por pomares de citrinos, vinhedos e castanheiros, vislumbrando vastos bosques de sobreiros a seguir. E então surgiu La Finca de los Pastores, a tremeluzir ao sol no topo da sua própria colina.


Um grosso muro branco rodeava a propriedade e as portas de madeiras de três metros de altura estavam flanqueadas por um par de fontes de azulejos, ao estilo andaluz, com motivos em azul-cobalto e amarelo, as cores do mar e do Sol. Montana estacionou à sombra de um beiral e entrou no pátio. Flores perfumavam o ar, grilos cantavam e outra fonte circular esguichava delicadamente. Tudo estava tranquilo, como se o mundo inteiro estivesse a fazer a sesta. Se tivesse sorte, pensou com um sorriso, encontraria aqui a Bela Adormecida e despertá-la-ia com um beijo. Mas o que encontrou foi uma menina bonita com um vestido flamenco cor-de-rosa, que dobrou a esquina a correr e esbarrou contra ele. - Oh! - Fitou-o com olhos castanhos brilhantes quando ele a segurou pelos ombros, equilibrando-a. - Perdão - acrescentou em espanhol. - Estou a arranjar-me para a feria e estou com pressa. A mamaíta quer que eu dispa o vestido, diz que é demasiado cedo, mas eu quero ir já. - Aposto que sim e estás muito bonita - replicou Montana galante. - Bella, onde estás? Uma voz exasperada precedeu a sua proprietária no vestíbulo; depois ela própria apareceu também apressada dobrando a esquina. - Oh - disse, estacando quando viu Montana. - Peço imensa desculpa, não sabia que estava aqui alguém. - Acabei de chegar - respondeu Montana. - Fui recebido pela sua menina a caminho da feria. A mulher riu-se ao avançar, com a mão estendida. - Era o que ela queria. Aferia não é senão para a semana, por isso poderse-á dizer que está um pouco adiantada. Olá, chamo-me Magdalena Ruiz, sou a gerente da Finca de los Pastores. Não tenho a certeza se estamos à sua espera, senor..? - Harry Montana. - Apertou-lhe a mão. - E não, não estão à minha espera. Apareci com a esperança de que pudessem ter um quarto. - Então está com sorte. Recebemos hoje o cancelamento de uma reserva e um dos nossos melhores quartos está disponível. Magdalena Ruiz contou-lhe a história da Finca de los Pastores enquanto percorriam os corredores frescos e depois saíam para um jardim cheio de vegetação.


- E Dona Rosália ainda aqui vive? - Montana fez a pergunta com ar descontraído. - Na verdade, sim. - Magdalena abriu a porta de uma pequena casinha de hóspedes que dava para uma fresca piscina verde. - O jantar é servido a partir das oito e meia. O bar está sempre aberto. Tenho a certeza que se vai orientar com muita facilidade. O quarto era dominado por uma cama de dossel cor de ébano com cortinas de musselina branca. O soalho era de clássica tijoleira terracota espanhola salpicado de tapetes tradicionais andaluzes. Uma secretária rústica pintada de branco estava colocada sob uma janela e portas francesas conduziam a um pátio perfumado com glicínias. Sorrindo, Montana ligou do seu telemóvel para o número de Londres de Daisy. Ela atendeu ao primeiro toque e proferiu um "está" bastante ofegante. - Apanhei-a a fugir, foi? - perguntou, imaginando-lhe os olhos verdes a faiscar quando respondeu altivamente que claro que não. - Estou na Andaluzia, numa antiga finca transformada em hotel e isto aqui é tão sossegado que acho que consigo ouvir o meu próprio coração a bater. - Não pensei que o tivesse - retorquiu Daisy, o que lhe provocou uma gargalhada. - Um golpe baixo, quando de facto o que eu ia dizer era que é o lugar perfeito para uma lua-de-mel. Poderá querer pensar nisso quando chegar a altura. - Montana - disse ela severamente -, não estou a pensar em casamentos nem em luas-de-mel e, de qualquer modo, pensei que Rosália vivia em Málaga. - Costumava viver. Era casada e exploravam aí um pequeno café, ela é que cozinhava, apesar de ter três filhos. - Teve três filhos? Oh, Montana, acha que possam ser de Bob? - Verificámos isso. As datas não correspondem e, além disso, todas as certidões de nascimento declaram que o pai era o marido, Juan Delgado. Quando este morreu, ela mudou-se para aqui, para o interior. Rosália e os filhos reconstruíram este sítio a partir do nada e agora é um pequeno hotel com muito sucesso. Ainda não provei a comida, mas pode apostar


que o jantar vai ser óptimo. Não gostava de estar aqui comigo? - Sorriu ao dizer aquilo; sabia como falar com ela. Daisy ignorou-o. - E então onde está Rosália? - Espero vê-la esta noite. - Vai ficar tão chocada quando ouvir falar de Bob e receber o convite para o seu... bem, o seu velório. - Falou num sussurro horrorizado. - O primeiro amor é algo que nunca se esquece - acrescentou. - Esqueceu o seu? - Claro que não - replicou ela, apanhada de surpresa e depois riu-se ao recordar. - Eu tinha dezasseis anos e ele era o meu par no baile de finalistas. Ofereceu-me uma orquídea para o pulso e eu levava um vestido de seda verde-clara, que fazia ruge-ruge quando andava. Ele tinha cabelo louro e olhos azuis e parecia um surfista da Califórnia à deriva nas margens do lago Michigan e era o tipo mais atraente que eu já vira. Dançámos sempre juntos e depois estivemos na marmelada no banco de trás do Buick Monte Cario de alguém. Pensei que morria de felicidade com aquele primeiro beijo. - E quanto tempo durou esse primeiro grande amor? - Cerca de três semanas - admitiu com um risinho repentino. - E então você? - Não vou contar - afirmou Montana ouvindo-lhe os protestos indignados. - Volto para Londres dentro de uns dois dias - acrescentou. - Ainda lá estará? Ela respondeu que sim e que Bordelaise ia apanhar um avião para vir ter com ela. Depois de se despedirem, Montana ficou surpreendido por Daisy persistir na sua memória. Como se para a banir da cabeça, saiu do quarto e nadou longamente na comprida piscina verde pálido, a seguir tomou um duche e foi explorar o mundo de Dona Rosália. O bar era uma sala abobadada cheia de sombras com um balcão curvo de mármore. As paredes estavam forradas até meio com azulejos de motivos andaluzes coloridos, que deviam muito à sua herança marroquina, e havia mesas com tampos de azulejos dispostas noutro pátio maravilhoso onde


borbulhava outra fonte. Os grilos zumbiam em pano de fundo e pequenos pássaros atrevidos chilreavam nas costas das cadeiras, a suplicar migalhas. Montana sentou-se numa cadeira branca de braços de verga com costas altas a beberricar um copo de xerez amontillado pálido e frio e a mordiscar pequenas bolachas doces, contemplando o azul que escurecia no céu. La Finca de los Pastores era o tipo de sítio onde as pessoas se sentiam em casa; era um mundo ideal, apesar de apenas temporário. Começaram a chegar outros hóspedes; sorriram e acenaram-lhe cumprimentos de boas-noites e um jovem tocava o impressionante Concierto de Aranjuez, de Rodrigo, muito baixinho na sua guitarra. Entrou então uma mulher, alta, erecta, majestosa daquela maneira espanhola, com o cabelo preto brilhante apanhado num carrapito na base do pescoço comprido. Usava uma saia vermelha até aos tornozelos, com ar muito cigano, uma camisa branca e um colar pesado de contas de coral, e trazia um xaile de seda vermelha franjado atirado por cima dos ombros. Montana percebeu instantaneamente que devia ser Rosália. Tinha todo o ar de senhora aristocrática espanhola quando sorriu, cumprimentando os seus hóspedes. Ao seu lado encontrava-se um homem com grandes bochechas, olhos escuros penetrantes, um bigode e cabelo escuro liso. Usava uma camisa que Montana percebeu ter sido feita à medida e calças pretas estreitas enfiadas em botas de montar espanholas. Parecia um cigano elegante. Dirigiram-se os dois para ele. - Senor Montana, sou Dona Rosália. Bem-vindo a La Finca de los Pastores disse, oferecendo-lhe um sorriso de tal doçura que entendeu por que razão Bob estivera tão apaixonado. Rosália não era uma beldade, mas era especial; tinha o seu estilo próprio e, apesar de Montana saber que deveria ter à volta de sessenta anos, viam-se poucas rugas no seu rosto. Com os olhos escuros grandes sob sobrancelhas perfeitamente arqueadas, o nariz arrogante e o corpo alto e torneado, assemelhava-se aos retratos de nobres espanholas existentes no Prado e, com o seu ar um pouco antiquado e comportamento gentil, fazia com que todos os hóspedes sentissem que era sua amiga. - Este é o meu bom amigo Hector Gonzalez - apresentou Rosália. - Hector cuida de todos os meus negócios. E também o meu intérprete - disse com


um sorriso forçado. - Compreende, sou surda. Suspirou. - E estranho como o mundo trata uma pessoa surda. Se somos cegos, as pessoas entendem, mas a surdez não é visível e as pessoas pensam que somos estúpidos quando não respondemos. Portanto, agora o meu Hector cuida de mim. Leio os lábios, mas Hector dir-me-á todas as palavras que proferir, senor, por isso é melhor ter cuidado - acrescentou com uma gargalhada ao pedir licença para ir cumprimentar outros hóspedes que chegavam. Antes de jantar, Montana escreveu um bilhete a Rosália pedindo se o poderia receber, a sós, mais tarde. Não deveria ficar alarmada, explicou, mas tinha uma mensagem importante para ela. Solicitou a uma das jovens empregadas, frescas e elegantes, com vestidos simples de algodão azulclaro, que entregasse pessoalmente o bilhete; a seguir comeu uma das melhores refeições da sua vida, sozinho sob as estrelas numa mesa para dois. Rosália estava à espera no seu pátio, sentada numa cadeira de madeira trabalhada. - Bem-vindo de novo, Senor Montana. Montana aproximou-se. - Consegue entender-me, senora? Ou prefere que escreva o que tenho para dizer? - Fala bom castelhano, consigo ler-lhe perfeitamente os lábios. - Obrigado por concordar em receber-me, Senora Ybarra. - Ybarra Delgado - corrigiu-o ela. - Embora tenha a sensação que já o sabe. Os olhos castanhos cruzaram-se com os de Montana e ele percebeu que estava nervosa. - Sou o mensageiro de um homem que conheceu outrora. Um homem que a amou de todo o coração. Um homem que sentiu a sua falta até ao fim dos seus dias. - Claro que se refere a Roberto. - Sir Robert Hardwick. Sim. - Li a notícia sobre o acidente - disse em voz baixa. - Sei que morreu. - Lamento. - É a segunda vez que perco Roberto. Não foi mais fácil, o que prova que o velho ditado "O tempo cura todas as feridas" está muito errado. - Bob era um homem notável. - Conhecia-o bem?


- Há mais de dez anos. Admirava-o e respeitava a sua honestidade. - Era um homem do Yorkshire; foi sempre leal às suas raízes e ao seu código de honra. - Fitou Montana com firmeza. - Estivemos muito apaixonados há todos esses anos atrás. Nunca se perde esse tipo de sentimento, nem sequer quando se é uma mulher velha como eu. Mas não havia qualquer hipótese de ficarmos juntos. Roberto possuía essa terrível ambição e eu era uma rapariga simples de uma aldeia andaluza. Tudo o que queria era o que todas as outras raparigas que conhecia queriam. Um marido que as amasse, filhos... ser "uma família". - Rosália suspirou. -Tornou-se óbvio que nunca daria resultado. - Pode parecer estranho - retorquiu Montana -, mas venho trazer-lhe um convite de Robert. - Estendeu-lhe o envelope. - Ele tinha esperança que participasse num cruzeiro, num iate particular. Um cruzeiro de homenagem à vida de Robert, e ele convidou apenas pessoas cujas vidas afectou. O seu era o nome mais importante nessa curta lista. Rosália pareceu confundida. - Num iate? Em homenagem à vida de Roberto? - Ele deixou uma carta dizendo que desejava poder lá estar também, mas que queria que toda a gente se divertisse e se recordasse dele. Ela abanou a cabeça, suspirando. - Não sei. Na realidade, não sei se posso... - Robert gostava que estivesse presente para a leitura do testamento na sua villa em Capri - acrescentou Montana. - Far-lhe-á a oferta de cem mil dólares se participar no cruzeiro... para o recordar. Rosália levantou-se e Montana percebeu que estava perturbada. - Tenho de pensar nisso. E tarde... - estendeu a mão e Montana inclinou-se respeitosamente sobre ela. - Obrigado por me escutar, senora. Ela sorriu, virando-se. - Era Roberto que escutava - disse ao encaminhar-se para a sua casa. Bordelaise devia ter chegado no dia anterior. Eu enviara um carro ao aeroporto para a apanhar, mas o motorista disse-me que ela não vinha no voo. E nem uma palavra desde então. Andava de um lado para o outro no apartamento a pensar onde é que ela se teria metido. O telefone de casa tocou e ergui-o com brusquidão, tão irritada como uma vespa. - Podias pelo menos ter telefonado! - gritei.


- Sentiu assim tanto a minha falta? - disse Montana. Suspirando, pedi desculpa. Ele disse que estava lá em baixo e eu pedi-lhe que subisse. - Perdão - repeti, quando ele saiu do elevador. - Pensei que fosse Bordelaise. Devia ter vindo ontem no voo da Continental, mas desapareceu algures entre Chicago e Londres. E não atende nenhum dos telefones. - Já alguma vez fez alguma coisa do género? Respondi que sim. - É uma criatura de ímpetos, uma rapariga que age por impulso. Se surgir alguma coisa mais excitante, vai em frente. Independentemente do resto. - Quer que faça alguma coisa? - Ela há-de aparecer - retorqui, esperando ter razão. Sentámo-nos lado a lado no sofá branco em frente das janelas altas que davam para o parque cinzento. Era ao fim da tarde e perguntei a Montana se queria um chá, um café, uma bebida. Ele abanou a cabeça e disse que queria tratar logo dos assuntos pendentes. - Encontrei-me com Dopplemann - disse e os meus olhos abriram-se muito de surpresa. - Oh, é realmente bom. Acabou por descobri-lo. Relatou-me o encontro dos dois. - Mas por que razão fugiu? - Isso é o que preciso de descobrir. Tenho uma reunião amanhã em Washington com um homem que afirma tê-lo conhecido bem. - Um velho amigo? - Duvido. Dopplemann é uma pessoa muito metida consigo própria; seria difícil ser seu "amigo". - E então Rosália e o hotel andaluz das luas-de-mel? - Podia arranjar um sítio pior para passar uma lua-de-mel. - Nada podia ser pior do que ser condenada a passar outra lua-de-mel. A minha primeira foi um inferno, dez dias no Havai com metade de Los Angeles e a respectiva progénie barulhenta, e o meu novo marido todo o tempo ao telemóvel a telefonar sabe Deus a quem, provavelmente a alguma outra loura de vinte anos com quem desejava estar. E apanhei uma intoxicação alimentar com uns camarões estragados e passei dois desses dias na cama, sozinha, enquanto ele ia pescar com uns tipos. Pelo menos foi isso que me contou. Agora já não sei.


- Não pode continuar a agarrar-se às más recordações para o resto da sua vida. Tem de ultrapassar isso. - O problema é que ainda não percebi o que fiz de errado. - Não fez nada de errado excepto casar com um tipo bera. Fitei Montana. - A sério, acredita que não fiz nada que levasse um marido a abandonarme? - Diria que ele era apenas o género de tipo que se põe a andar. Estou disposto a apostar que já abandonou a rapariga de vinte anos por quem a deixou e já passou a outra, ou, se calhar, até já vai numa segunda depois dessa. - É um estúpido. Ele concordou; depois, para minha surpresa, pegou-me na mão entre as suas duas e roçou-lhe com os lábios. O calor subiu-me pelo braço acima. Disse comigo mesma que era apenas um pequeno beijo na mão e que, claro, não significava nada, que não havia nada entre nós senão um casamento falhado e uma infância solitária. - Caminhamos os dois feridos pela vida - afirmei numa voz trémula quando ele me soltou a mão. - Vamos fazer um pacto então. Prometo protegê-la dos maus deste mundo e você promete fazer-me companhia para eu não me sentir sozinho. - Está combinado. Fitámo-nos solenemente durante um longo momento, depois ele pegoume no queixo com a mão, puxou-me o rosto para o dele e, desta vez, deume um beijo a sério, embora suave. Senti uma ânsia de me agarrar a ele, de lhe dar o outro tipo de beijo mais forte, mas controlei-me e, com os olhos baixos e as faces ruborizadas, afastei-me. Montana voltou ao tom todo profissional. - Bem, então agora já localizámos todos os suspeitos na lista de Bob e temos, além disso, móbiles para todos eles. Convidei também algumas pessoas como manobra de diversão; um tipo que Bob conhecia chamado Brandon van Zelder, na casa dos quarenta, atraente, conhece toda a gente que interessa, bom jogador de gamão, e as mulheres adoram-no. Vai trazer uma jovem cantora. Conheço-a bem. Pensei que ela criaria uma boa diversão, entretém-nos quando as coisas ficarem um pouco desagradáveis. Depois temos Reg Blunt.


- Reg? Dopub Rarns Head? - Bob queria convidá-lo. Disse-me que era um verdadeiro amigo e, acredite, Bob não tinha muitos amigos. Queria também convidar Ginny Bunn. Portanto, será esse o nosso pequeno grupo no cruzeiro. Antes de poder comentar, o telefone interno tocou. Era Bordelaise e estava lá em baixo. Entrou como um furacão, envergando umas calças de ganga coladas à pele, botas de saltos muito altos e um casaco de tiaeed Chanel, cheirando deliciosamente a Arpège, o aroma que usava desde que éramos ambas adolescentes. - Querida - exclamou, largando o seu saco Chanel, deslizando pelo soalho e atirando-me os braços em volta num abraço gigante que quase me fez cair esparramada. - Tive saudades tuas - acrescentou, segurando-me à distância de um braço e mirando-me com ar preocupado por baixo da grossa franja loura. - Estou bem - declarei, não soando muito convincente. - Onde estiveste? Lançou-me aquele sorriso familiar que lhe iluminou o rosto endiabrado. - Fiz um pequeno desvio por Paris, querida, uma pessoa que conheci na sala de partidas em OHare. Era jovem e excitante e... encolheu os ombros -, bem, sabes como é, nunca fui de resistir à tentação. Suspirei. - Bordelaise, apresento-te Harry Montana. Falei-te dele. Ela interiorizou a figura esguia e elegante. Pelo canto da boca murmurou: - Teu ou meu, querida, diz-me só isso. Depois avançou descontraidamente para Montana que se encontrava junto à janela com ar muito à Darth Vader, preto e algo sinistro, de uma maneira que era atractiva para uma mulher como Bordelaise. - Harry - disse, oferecendo-lhe a mão e um sorriso provocador. Ele apertou-lhe a mão e fez uma pequena vénia. - Daisy contou-me tudo a seu respeito. Ela atirou-me um olhar por cima do ombro. - Espero bem que não tudo. - Disse-lhe que vinhas connosco no cruzeiro. Bordelaise arregalou os olhos sorrindo para ele. - Sempre quis fazer um cruzeiro.


- Então tenho a certeza que vai gostar do Blue Boat. - Montana olhou na minha direcção. - Vocês as duas têm muito que conversar. Prazer em conhecê-la, Bordelaise. - Igualmente - retorquiu ela, observando-lhe apreciadora o traseiro estreito quando ele se afastou. - Encontramo-nos a bordo, Harry exclamou, sorrindo com aquele sorrisinho malandro. - Bem - maravilhouse quando a porta se fechou atrás dele. - Mantiveste-o em segredo, amiga, não foi? Posso perguntar se há alguma coisa entre os dois? - Nada de nada - declarei com firmeza. - E tenho a certeza que ele nem sequer pensou nisso. Não está interessado e eu também não. - Então perdeste o teu dom. Teremos de ver o que podemos fazer para o recuperar. - Temos de pôr a conversa toda em dia - repliquei, conduzindo-a ao meu quarto, que, claro, iríamos partilhar como sempre tínhamos feito. - E quero saber tudo sobre o interlúdio de Paris. Ainda a lembrar-me dela com Montana, vi-me a afastar uma sensação incomodativa de algo que poderia muito bem ter sido o monstro de olhos verdes. O tempo passou depressa com Bordelaise a fazer-me companhia. Nos poucos dias antes de partirmos para o cruzeiro, fizemos compras, almoçámos, arranjámos o cabelo e as unhas. Comportámo-nos como um par de meninas muito femininas e adorámos. Levámos Rats a dar longos passeios em Hampstead Heath, à chuva e ao vento; depois, com os dentes a bater, parávamos no pub para tomarmos uma bebida fortificante e comíamos um pacote de batatas fritas com sal e vinagre. Almoçámos no Lê Gavroche em homenagem a Bob e jantámos no Bombay Brasserie, onde a apresentei à boa cozinha indiana. Preparámos panquecas para o pequeno-almoço e encharcámo-las com a compota de morango caseira da Sra. Wainwright e colheradas de natas, regadas com litros de café quente. Na noite antes de partirmos para o cruzeiro, acabámos lado a lado nas duas camas do meu quarto, ela envergando um pijama de flanela florido, inesperadamente infantil com "Victorias Secret" escrito com brilhantes no peito, e eu a minha camisa de noite branca virginal da avozinha, com meias de dormir por causa dos meus pés sempre frios. As nossas malas estavam arrumadas e prontas, lá fora no vestíbulo, íamos apanhar o avião


para Nice na manhã seguinte e depois embarcaríamos no Blue Boaí em Monte Carlo. - Então o que se passa realmente entre ti e Montana? - Bordelaise embalava uma caneca de cacau quente em ambas as mãos com unhas cor de coral, soprando-a para arrefecer. Espreitou por cima dos aros dos óculos. - Estão interessados um no outro ou quê? - Não sei. Encolhi os ombros afastando a pergunta que ela andara a fazer de forma mais oblíqua nos últimos dias, massajando creme de mãos e inspeccionando as minhas próprias unhas bem arranjadas, à francesa, com a ponta pintada de branco. - Ele é diferente - admiti. - Ficou um pouco ferido, tal como eu, só que, no caso dele, foi uma infância má. - Então o que significa a misteriosa tatuagem chinesa? - Nunca perguntei. Bordelaise revirou os olhos. - Caramba, eu teria perguntado isso no primeiro encontro. - Nunca tivemos um encontro. Fora sempre questões profissionais. Ela lançou-me um longo olhar que dizia: "Vai contar isso a outra." - Quer dizer que vocês só falaram de Bob, dos suspeitos, do cruzeiro e de se o assassino foi realmente o mordomo? - Mais ou menos, sim. - Ora bem, querida, perdeste mesmo o teu dom. Onde está a mulher que eu conheci? A que sabia o que queria da vida e quem queria; e que foi buscá-lo, apesar de depois ele te ter deixado. - Franzindo o sobrolho, sorveu um grande gole de cacau, impaciente. - Montana é sexy como tudo, Daisy. E está disponível. E aposto as minhas botas em como está interessado. - Pensei que vocês os dois estivessem interessados - repliquei, evitandolhe o olhar. - Ah! E há exactamente quanto tempo é que me conheces, Daisy Keane? Trinta anos? Mais? Não sabes já por esta altura que nunca vou atrás dos homens das minhas amigas? E que nunca saio com o marido de outra pessoa qualquer. Não que o teu não tenha tentado - acrescentou, bebendo outro gole do cacau quente.


Fitei-a embasbacada. - Não é possível! - Claro que tentou, o canalha. E disse-lhe das fortes e das boas, nunca o vai esquecer. - Mirou-me com ar conciliador. - Não te contei antes porque não queria magoar-te, mas, se ainda sentes alguma coisa por ele, calculei que já ia sendo tempo de ficares a saber a verdade. Escorreguei para baixo do edredão, com os olhos fechados. - Como é que ele pôde? - gemi. - Porque é assim que ele é. Mas nem todos os homens são como ele, sabes. Por amor de Deus, esquece-o, tenta a tua sorte, porque não? - Está bem. Então Montana beijou-me - admiti. Bordelaise animou-se num segundo, sentando-se, fitando-me com um olhar interessado. -E? - Foi bom. Atirou a cabeça para trás e gemeu. - És impossível. Quantas vezes te beijou? Pensei naquilo. - Bem, se contarmos mãos e faces, e os lábios, creio que quatro ou cinco. " - Hum, isso demonstra certamente interesse. Então, o que planeias fazer daqui para a frente? - Sinto-me atraída por ele - admiti. - É excitante... - E hurra por isso. Que alívio, afinal és uma mulher. - Mas não tenho nada planeado, se é isso que queres dizer. - E ele? - Claro que não. - Quaisquer pensamentos do género eram pura fantasia. Ele é como tu. Diz-me que tenho de superar isto, seguir em frente. Afirmou que me protegeria dos tipos maus do mundo, se eu lhe fizesse companhia e não o deixasse sentir-se sozinho, embora tenha a sensação que até agora não se importou de estar sozinho acrescentei pensativa. - Ora aí está. - Bordelaise passou os dedos triunfante pelo cabelo desgrenhado. - Ele está mesmo interessado. Vais ver no cruzeiro: o luar sobre a água, champanhe, suaves noites mediterrâneas... Quase que a via a maquinar. Mesmo assim, o cenário que traçava parecia bastante romântico, até para mim. - Talvez - respondi, prudente como sempre, fazendo-a gemer de novo.


Rats, que estava esparramado em cima da minha cama, correu ansioso para se certificar se ela estava bem. Bordelaise alisou-lhe as orelhas para trás e perscrutou através das suas lentes os olhos castanhos emotivos. - Puxa, és um bom cão, não és? Mas Rats virara-se. Fitava a porta com toda a atenção. Estava meio fechada; no entanto, senti aquela repentina brisa fria passar por mim. - Sentiste isto? - perguntei. - Senti o quê? - Esta espécie de brisa que acabou de passar pelo quarto. Bordelaise encolheu os ombros. - Não senti nada. - Não sei o que é, mas está a acontecer muito ultimamente. É como um vento que sopra à minha volta, mas as portas e as janelas estão sempre fechadas. Pensei que pudesse ser Bob, sabes, tipo que volta para ver se Rats e eu estamos bem... Os olhos de Bordelaise esbugalharam-se. - Estás maluca. - Olhou nervosa para a porta e para o corredor vazio lá fora. - Não me digas que acreditas em fantasmas? - Talvez - retorqui, porque começava a pensar que, se calhar, até acreditava. Mas Bordelaise obrigou-me a levantar e ir verificar o apartamento todo e, a seguir, trancar a porta do quarto antes de irmos dormir. No entanto, eu sabia que estava tudo bem, porque Rats voltara para a minha cama e estava já a dormir. Nunca o faria se Bob estivesse por ali. Mesmo assim, demorámos muito tempo a adormecer nessa noite.


PARTE III PRIMEIRO DIA CHEGADA AO BLUE BOAT Os Suspeitos Muitas mulheres têm um passado, mas dizem-me que ela tem pelo menos uma dúzia e que todos lhe servem. OSCAR WILDE O LEQUE DE LADY WINDERMERE com noventa e dois metros de comprimento e catorze metros de boca, o Blue Boat era um dos maiores iates na água. Construído no estaleiro de Bremen do grande construtor de iates alemão Lúrssen, poderíamos chamar-lhe um mega iate. Tecnicamente, com o seu elegante casco de aço e dois poderosos motores diesel KHD-MfVM, conseguia atingir a velocidade de vinte nós, com um alcance de seis mil milhas náuticas podia atravessar com facilidade o Atlântico, mas estava com mais frequência fundeado em águas mediterrâneas, onde a sua proprietária, uma amiga americana de Bob, uma herdeira do petróleo, gostava de passar os seus verões. Com cinco conveses de altura, com espaçosas cobertas laterais, com uma lancha rápida de nove metros recolhida e invisível no porão a bombordo e um par de lanchas de madeira Chris-Craft vintage arrumadas a estibordo, não havia nada que estragasse as belas linhas do iate, nem sequer o helicóptero de oito lugares, de um azul-prateado, empoleirado no topo. Uma plataforma para nadar à popa podia ser abaixada hidraulicamente e os "brinquedos" do iate - jet skis, esquis aquáticos, garrafas de mergulho e equipamento para praticar mergulho com tubos de respiração - estavam aí guardados. Por cima do convés inferior, o porão, ficavam as instalações para os trinta e seis membros da tripulação, com a sua sala de jantar e estar próprias. No convés acima desse situavam-se as instalações para os convidados, com quatro sumptuosas suítes e nove camarotes de luxo. Por cima era o convés principal, com o seu átrio central altíssimo, soalhos de mármore embutido, sofás cor de marfim e mesas cor de ébano encimadas com flores, um elevador de vidro e uma escadaria transparente atrás. Havia


salas confortáveis, uma biblioteca, uma sala multimédia cinema e uma espaçosa sala de jantar. Um cabeleireiro e um pequeno ginásio com spa projectavam-se do convés superior. A espaçosa coberta da popa estava equipada para banhos de sol, com grandes espreguiçadeiras confortáveis, uma piscina de tamanho razoável e uma comprida mesa oval que dava para vinte pessoas jantarem sob as estrelas. A coberta da proa tinha um bar e zonas com sombra para as pessoas se sentarem simplesmente a conversar ou a ler. Mesmo no topo, atrás da ponte, que, claro, estava equipada com a tecnologia mais recente, ficava um piano bar, forrado a vidro, que rodava lentamente para se poder apreciar a vista. O quarto grandioso da suíte dos proprietários tinha grandes janelas com uma vista desafogada e uma lareira para as noites frescas ou talvez só românticas. A sala de estar adjacente estava apainelada com nogueira escura a condizer com as vigas em cima, assentes num tecto cor de marfim, e ostentava uma carpete creme e tecidos luxuosos. O iate em si não fora pintado do habitual azul-cobalto naval. A cor fora pessoalmente escolhida pela proprietária, uma mulher apaixonada pelo Mediterrâneo, e era de um verde-azulado, o tom exacto do mar pouco fundo perto da costa, mesmo antes das pequenas ondas atingirem a areia. Este esquema cromático fora reproduzido em todo o navio: verdes-água pálidos, uma cor de areia dourada, marfim e cinzento-acastanhado. Nas cobertas, o mobiliário e os toldos eram azuis e até as toalhas eram daquele mesmo verde-água pálido, bordadas com conchas cor de areia. Nenhum pormenor fora descurado, quer na construção do iate, cujo custo constava rondar os cem milhões de dólares, quer na decoração de interiores, executada por um dos melhores profissionais no mercado dos iates. E, escusado será dizer, o Blue Boat era a menina dos olhos não só da sua proprietária, mas também do seu comandante. O comandante Júrgen Anders era norueguês e vivera perto, ou na água, toda a sua vida. Frequentara a academia naval e estagiara primeiro na marinha e depois em paquetes de cruzeiros. Orgulhava-se de ser o capitão de um dos melhores e mais belos iates na água, de trabalhar para uma mulher que admirava e que o tratava como amigo, e orgulhava-se de mostrar o seu navio aos que tinham o privilégio de o fretar, pelo que se


dizia ser quase meio milhão de dólares por uma única semana. Mas, claro, se tivéssemos de perguntar o preço era porque não o podíamos pagar. Hoje, inspeccionara pessoalmente o iate para se certificar que estava tudo em ordem e agora reunira os seus oficiais e tripulação na coberta para aguardar a chegada dos convidados. O sol ardia sobre Monte Carlo e o ar cheirava a mimosas e a combustível para motores. Uma elegante Chris-Craft vintage de mogno e aço-cstava à nossa espera para nos levar para o navio, tripulada por um par de jovens oficiais bem-parecidos, que nos fizeram a continência e depois nos ajudaram a subir a bordo. A nossa bagagem foi carregada noutra lancha e partimos a toda a velocidade pelo porto até onde o Blue Boat se encontrava ancorado. O comandante, os oficiais e a tripulação estavam alinhados para nos saudar. - Os membros da família real devem sentir-se assim todos os dias sussurrei para Bordelaise. O comandante Anders era louro e bem-parecido e reparei nos olhares apreciadores que Bordelaise lhe lançava enquanto ele nos mostrava o coração do seu navio, a ponte, a cintilar de ecrãs, instrumentos e radares e todas as outras coisas náuticas sobre as quais eu não sabia absolutamente nada. Conhecemos o chefe visitámos a sua imaculada cozinha de aço e a cave dos vinhos com todos os principais châteaux representados, bem como o meu rose de Saint-Tropez favorito. O chef explicou-nos que fazia compras nos mercados locais em todos os portos de escala para conseguir os produtos mais frescos e melhores e os pescadores locais sabiam como contactá-lo para lhe vender a pescaria mais recente. Fomos conduzidas à suíte dos proprietários repleta de flores; a espaçosa sala de estar tinha janelas a toda a volta e o quarto guarda-vestidos em closet e casas de banho para ele e para ela. Reparei num nu de Picasso numa das paredes e num Matisse na outra, mas, quando me disseram que esta suíte seria para mim, afirmei que pensava que Bob teria gostado que fosse Rosália a ficar com ela. Apanhámos o elevador de vidro para baixo, para as outras instalações dos hóspedes, e deram-me uma suíte virada para a parte da frente, mais


pequena, mas igualmente adorável, com uma grande janela virada para a coberta. Estava cheia de rosas e lírios e, desta vez, havia um Klimt na parede, de uma mulher alta envergando o que parecia ser um vestido em patchwork feito com pedaços de renda, sedas e veludo. Bordelaise ficou com um camarote de luxo mais adiante, mais pequeno, mas perfeito. A mobília era embutida nas paredes, em madeiras de tons pálidos, e não havia ângulos nem esquinas, era tudo curvo. Deixei-a a desfazer as malas com a ajuda de uma bonita camareira escandinava chamada Camille, penteei o cabelo, apliquei um pouco de batom e endireitei o meu vestido de linho amarelo bastante amarrotado. A seguir apanhei o elevador de vidro até ao convés principal para ir ter com Montana e receber os meus convidados. Lá estava ele, esplêndido, de calças pretas e camisa de linho branca aberta no pescoço, mangas dobradas abaixo do cotovelo mostrando a misteriosa tatuagem, ligeiramente sinistro com o seu rosto de falcão e penteado muito curto. Percebi de novo que me sentia muito atraída por ele. Alisei o meu vestido de linho amarelo amarrotado e desejei ter mudado para qualquer coisa mais fresca, mas agora era demasiado tarde, ele avistara-me no elevador de vidro. - Como um anjo caído lá de cima - observou trocista. Mas depois pegou-me no rosto entre ambas as mãos e plantou-me um beijo firme nos lábios. - É bom ver-te. Não sei porquê, mas senti a tua falta. - Vais misturar sempre um cumprimento com um reparo? - Nem sempre. - Sorriu. - De qualquer maneira, estás com muito bom aspecto para uma detective. - Ah, Daisy Keane, mulher-detective. Esse dia nunca chegará. - Acredita, querida, esse dia chegou. Ou vai chegar com a vinda do nosso primeiro convidado. Não tivemos de esperar muito e o primeiro foi Lady Diane Hardwick. Diane, no cais, observava com olhar de lince os porteiros a manusearem as suas malas Vuitton e resmungou quando deixaram cair a peça mais pesada. Disse-lhes então o que pensava deles e da sua falta de jeito no mesmo francês coloquial da classe trabalhadora que eles falavam.


Fitou com aprovação o Blue Eoat enquanto a lancha a levava, célere, para o seu destino. Era uma pena que isto fosse o velório de Bob e que tivesse de ir aturar aquela mulher Keane, que suspeitava tivesse sido amante do marido e com quem, portanto, não tencionava passar mais do que o tempo estritamente necessário para manter as aparências. Tentou imaginar quem seriam os seus companheiros de viagem. Se fossem amigos de Bob, seriam por certo ricos o que lhe convinha na perfeição. Vestira-se com cuidado para a partida, com um fato convencional de linho branco, um chapéu de palha, alpercatas de sola em cunha de corda e um saco caro Bottega Veneta e, quando saltou da lancha para o iate, o sorridente comandante cumprimentou-a como se pertencesse à realeza. Conduziu-a ele próprio ao átrio onde disse que a Sra. Keane a esperava. O comandante Anders era bastante formoso e ela ofereceu-lhe o seu sorriso mais encantador. Satisfeita, sentiu que se encontrava de novo onde pertencia. O belo átrio estava repleto de luz; cheirava ao perfume dos lírios em jarras espalhadas pela sala e eu estava ali no meio quando Diane entrou. Sabia que ela me reconhecera daquela noite humilhante no Hotel du Cap, quando enfrentara o leão, nomeadamente Bob, no seu covil e exigira que lhe desse mais dinheiro e, agora, tentou colocar-me em desvantagem falando em francês: - Senhora Keane, comment ca vá? - Bien, merci, et vous, Lady Hardwick? - retorqui. - Bem-vinda a bordo do Blue Boat e agradeço-lhe ter concordado em fazer este pequeno cruzeiro. Sei que Bob teria ficado muito satisfeito. Ainda em francês, Diane respondeu: - Bob era um homem muito difícil de satisfazer. - Permita-me que apresente Harry Montana. Era também amigo de Bob e partilhará as minhas obrigações como anfitriã deste cruzeiro. Montana dobrou-se galantemente sobre a mão de Diane. - Champanhe, Lady Hardwick? - perguntou, fazendo sinal ao empregado para avançar. Houve de repente alguma agitação atrás deles e depois uma voz feminina exclamou alto em italiano: - Dio mio, isto é fantástico. Bob Hardwick comprou este barco só para ele? Diane rodou e viu-se de frente para Filomena Algardi.


- Você - vociferou acusadora. - Você - lançou Filomena em resposta. Ambas se viraram para mim. - O que está ela aqui a fazer? - exigiram saber num esganiçado uníssono. - Este é o cruzeiro de Bob e ele convidou-as às duas - respondi com rapidez, mas o rosto de Diane estava vermelho de fúria. - Como é que ele se atreve? Como é que o meu marido se atreve a convidar a sua amante para homenagear a sua vida? Como é possível? - Lady Hardwick - retorqui em voz baixa -, este foi o último desejo de Bob. Tem de o respeitar. Ou então não fazer o cruzeiro. Eu jogara o meu trunfo e Diane sabia-o. Aguardava-a um cheque de cem mil dólares e não desceria do navio sem ele, nem se iria embora sem o testamento ser lido e ela ser declarada vencedora. Ignorando Filomena, fez sinal a um empregado. - Leve-me à minha suíte, jovem - disse com altivez, afastando-se. - O jantar será servido às oito e meia, Lady Hardwick - exclamou Montana, nas suas costas. Ela virou-se para o fitar. - Claro - retorquiu, suspirando porque sabia que não tinha escolha. Filomena usava um traje Pucci de malha de seda que lhe deslizava pelo corpo flexível como uma segunda pele. Os azuis e turquesas do tecido destacavam-lhe o azul dos olhos e realçavam-lhe de forma perfeita o tom dourado da pele. O cabelo louro estava puxado para trás num nó imperfeito, atravessado por alfinetes de âmbar, e as sandálias de dedo douradas estavam enfeitadas com pedras turquesa. Transportava um saco de pele macia cor de laranja escuro, que pedira "emprestado" à loja onde trabalhava. - Não sabia que a pobre Lady Hardwick era convidada - disse com ar amuado, inspeccionando-me dos pés à cabeça. Percebi que sabia até ao último euro quanto é que custara o meu vestido de linho amarelo e que não estava impressionada. - Bob convidou alguns dos seus velhos amigos - respondi. Incluindo Harry Montana, que me ajudará a receber as pessoas neste cruzeiro. Filomena mudou o seu foco de atenção para Montana. O seu sorriso era nacarado, com pequenos dentes caninos pontiagudos, como os de um belo gato.


- Ora, claro, qualquer amigo de Bob é meu amigo - ronronou, quando ele lhe pegou na mão. - Terei ouvido dizer que vamos jantar juntos, Harry? - Às oito e meia, signorina. Aguardo o momento com ansiedade. Filomena inclinou-se mais para perto e disse qualquer coisa num sussurro aspirado, que eu sabia não pretender que eu ouvisse. - Talvez então, Harry, me possa dizer por que razão Bob convidou tantos outros "amigos" - dizia. - Não pode ter pensado em deixar-lhes a todos alguma coisa no testamento, pode? Encolheu um pouco os ombros e acrescentou: - Talvez compreenda em relação a Diane; no final de contas, foi mulher dele. É claro que eu me encontro quase nessa mesma categoria. Sabe que Bob e eu realmente nos amávamos, estivemos juntos durante tantos anos, muito mais do que no caso de Diane. Se as circunstâncias não nos tivessem obrigado a afastar-nos, ainda estaríamos juntos. Quer dizer, se ele estivesse vivo - acrescentou, benzendo-se. Montana livrou-se de responder com a chegada de Reg Blunt, que entrou a passos largos no átrio direito a mim como um míssil à procura do calor, os braços estendidos para me abraçar. O blêizer azul-escuro ostentava o emblema do clube de críquete de Sneadley, as calças cinzentas estavam bem engomadas e o rosto quadrado contraía-se num sorriso radiante. - Daisy, cá está você! Colada a ele vinha Ginny Bunn, o cabelo amarelo erguido por baixo de um boné de marinheiro enviesado. De corsários brancos justos, chinelas e uma T-shirt às riscas azuis e brancas, brilhava como um raio de sol. - Este barco não é incrível? - maravilhou-se Ginny, submergindo-me, a seguir a Reg, num abraço gigante. - Ê simplesmente magnífico, mal posso acreditar que estou aqui. - Parou para estudar Filomena e depois agarroulhe na mão e abanou-a com entusiasmo. - É a Filomena, não é? Recorda-se de mim? Sou a Ginny, a empregada do bar no Rams Head em Sneadley. Esteve lá algumas vezes com Bob. Filomena lançou-lhe um sorriso cauteloso, talvez a pensar por que razão Ginny estava no cruzeiro, provavelmente a pensar se teria também sido amante de Bob e, se calhar, a pensar a mesma coisa a meu respeito. Reg dizia-me que estava muito contente por me ver.


- O motorista levou o velho Rats para o solar de Sneadley. O pobrezinho não sabia para que lado se virar, estava tão baralhado, sente tanto a sua falta e a de Bob. Não temos que nos preocupar, no entanto, aquilo passalhe. A senhora leva-o ao pub para a sua habitual salsicha e explicámos-lhe que vai voltar em breve. Apertou a mão de Montana, batendo-lhe cordialmente no ombro. - É bom vê-lo também, senhor Montana. Estava com esperança que pudesse voltar a Sneadley, recrutava-o para a nossa equipa de críquete. Aposto que seria um bom batedor. - Trate-me por Harry e só bati bolas no basebol. - Não é muito diferente, rapaz. Porque não aparece por lá e experimentamos? Reg virou-se ainda sorridente para Filomena. - Menina Filomena, como está? Recordo-me de Bob a levar ao pub. Filomena olhou através dele. - Ah, sim? - disse distante, obviamente a pensar quantos mais "amigos" estranhos Bob convidara e o que representariam na realidade para ele. - Champanhe, Ginny? - Montana puxou um copo e estendeu-lho. Os olhos de Ginny faiscaram como a espuma do champanhe e olhou para ele com um pequeno sorriso namoradeiro. - Hum, isto é bom. Diga-me, vai ser assim o tempo todo? - O champanhe que quiser - prometeu Montana. - Bob queria ter a certeza que os seus amigos se divertiam. Ginny soltou um suspiro. - Só tenho pena que o pobre canalha não possa aqui estar para se divertir connosco. Ups, claro que não era isso que queria dizer,pobre canalha É só uma expressão de afecto, se percebem o que quero dizer. Montana riu-se e passou-a e a Reg ao camareiro que lhes ia mostrar os seus camarotes de luxo. Nesse preciso momento entrou Charlie Clement parecendo um homem de negócios bem sucedido em férias, com uma camisa branca e calças de seda beges, calçando mocassins de camurça macia, sem meias e trazendo um blêizer pelos ombros. - Está demasiado calor lá fora - resmungou como forma de cumprimento. E fizeram-me esperar. Isto assim não serve, simplesmente não serve.


- Bem-vindo a bordo do Elue Boat, senhor Clement. - Não consegui evitar a nota de sarcasmo na minha voz. - Tenho a certeza que Bob teria ficado contente por o ver aqui na companhia dos seus amigos, com calor ou sem ele. - Afinal, quantos amigos de Bob estão neste barco? - Cerca de uma dúzia. Deixe-me apresentar-lhe um deles, Harry Montana, que me ajuda na organização do cruzeiro. Charlie apertou-lhe a mão, examinando Harry dos pés à cabeça. - Vou andando, se não se importam - disse, afastando-se com lentidão. Preciso de arrefecer debaixo do chuveiro. "- O jantar é às oito e trinta, Clement - disse Montana. Ele rodou sobre os calcanhares. - Quer dizer, todos nós? Juntost Caramba, que tipo de cruzeiro é este? Eu é que escolho com quem janto. - Essas foram as condições de Bob. Pediu que todos se submetessem a elas. Se não está de acordo, tem toda a liberdade para se ir embora. Clement fitou-o durante um longo momento. - Ah! - exclamou. - Raios, faço como quiserem. E afastou-se a passos largos, zangado. Brandon van Zelder chegou a seguir, um velho conhecido de Bob, contoume Montana, tal como a mulher que vinha com ele. Alto e bem-posto, com espesso cabelo escuro e penetrantes olhos escuros, van Zelder vinha imaculado com um blêizer Brioni e bermudas à betinho. Acenou alegremente para Montana. A mulher era quase da mesma altura, com uma juba de cabelo louro pálido e olhos tão brilhantes como safiras de dez quilates. Esbelta como uma modelo, com pernas que continuavam até mais não, era uma aparição com um bronzeado dourado num vestido cinzento simples, que terminava bem acima dos joelhos muito bonitos. - Pensei adicionar um pouco de picante ao jogo - explicou-me Montana por cima do ombro antes de abraçar a loura que o beijou cabalmente nos lábios. A minha boca apertou-se numa linha estreita e afastei determinada o olhar. - Olá, chamo-me Brandon van Zelder. - O aristocrata vestido com peças da Brioni falava comigo. - Já sei que é a minha anfitriã. Muito simpático da


sua parte convidar-me. Adoro pequenas excursões como esta, dá-me a oportunidade de me divertir com um bom jogo de gamão, sabe. Sou bastante bom no jogo, embora seja eu a dizê-lo. Joga? - Olá, e sim, jogo, ou antes jogava de vez em quando com Bob... - Brandon, como estás, pá? Montana aproximou-se e deram um abraço, batendo nas costas um do outro e sorrindo. Depois Montana disse: - Deixa-me apresentar-te Texas Jones. Gemi para dentro; claro que a beldade com as garras em cima de Montana teria de se chamar qualquer coisa espectacular, como Texas. - Prazer em conhecê-la, Daisy - Texas tinha um atraente sotaque sulista. E obrigada por me convidar para este cruzeiro. Não tenho muitas oportunidades para fazer uma coisa deste género, quero dizer, a não ser que esteja a trabalhar. Sabe, a cantar. Sou artista de cabaré. Trabalho de vez em quando em navios de cruzeiro, mas nada tão magnífico como este iate. E é a primeira vez que sou convidada. - Então espero que se divirta - respondi, animando-me um pouco. Montana falou-lhes do jantar e partiram para os seus camarotes de luxo, mesmo na altura em que Davis Farrell chegava. Davis vinha com o seu traje hippy: calções amachucados, uma T-shirt, casaco de ganga e sandálias de pele castanhas. O cabelo comprido estava apanhado atrás num rabo-de-cavalo e apresentava uma barba áspera e hirsuta. No entanto, não havia como dissimular que era um homem bemparecido. Olhou em redor, para o átrio de mármore muito luxuoso, os soalhos embutidos, os empregados de uniformes brancos com as suas bandejas de prata com champanhe, os enormes arranjos florais, para o ambiente de riqueza estragada com mimos e de poder. Era óbvio que se sentia perfeitamente em casa. - Deve ser Daisy Keane - disse, apreciando o meu vestido amarelo amarrotado e, se calhar, a pensar também se eu teria sido amante de Bob. - Davis Farrell - continuou, apertando-me a mão. - Bem-vindo ao Blue Boaf - retorqui, com ar muito formal. - Só tenho pena que Bob não esteja para ser ele a dizer-lho pessoalmente.


- Duvido que tivesse dito - respondeu Davis. - Mesmo assim é um belo pensamento. Apanhada de surpresa, apresentei Montana: - Outro amigo de Bob. "- Então quantos "amigos" vieram para o velório de Bob? - perguntou Davis franzindo o sobrolho. - Uma dúzia ou mais - disse Montana. Davis soltou um pequeno risinho amargo. - Quem diria que o velho Hardwick tinha tantos amigos? Montana faloulhe do jantar e ele encolheu os ombros taciturno. - Se tem de ser, lá terá de ser - declarou e foi procurar o seu camarote de luxo. Logo a seguir a Davis, chegou Rosália e Hector, com Magdalena, a pequena Bella e a ama. Olhando para Rosália, ninguém diria que estava nervosa. Há muito que aperfeiçoara o sorriso que escondia um milhar de feridas e sempre possuíra aquele porte real, como o de uma bailarina, que fora o que atraíra Roberto ao princípio. Hoje usava o cabelo preto, lustroso como sempre, num carrapito na nuca. Vestia a camisa branca de algodão fresco de mangas compridas, que se tornara quase a sua imagem de marca, uma saia de linho azul-escura, sapatos de saltos confortáveis e trazia um chapéu de palha de aba larga e o saco de palha entrançada que comprara na loja da aldeia. Rosália descobrira-se a si mesma há muito tempo; não tinha necessidade de exibi etiquetas de estilistas e de tentar impressionar. O que estava a pensar, no entanto, como fizera tantas vezes antes, era por que razão concordara em fazer isso. No final de contas, não conseguira manter Roberto com ela quando ele era vivo e não podia por certo estar à espera de o trazer de volta do mundo dos mortos participando neste cruzeiro. Suspirando melancolicamente, virou-se para olhar para o resto do seu pequeno grupo. A filha e a neta estavam ainda a falar com o comandante Anders e Hector, querido Hector, encaminhava-se para ela, a sorrir de forma encorajadora. Com um pequeno murmúrio de prazer, pensou que ele tinha um aspecto muito espanhol. Tal como ela, Hector nunca mudava: era quem era, e ela gostava disso nele. Hector fazia-a sentir-se segura,


embora não fosse, e nunca tivesse sido, seu amante. Rosália não era uma mulher promíscua. Tivera dois amantes na sua vida: o primeiro fora Roberto e o último o marido. Fora apenas porque Hector insistira que ela concordara em participar no cruzeiro de despedida a Roberto. "Roberto amou-te", dissera Hector com firmeza. "Recusaste vê-lo durante todos estes anos. Agora pede-te um último favor. Além disso, tens de saber o que te vai deixar no seu testamento. Era um homem muito rico, poderá ser muito dinheiro." Ficara espantada quando Hector dissera aquilo. Claro que Roberto não lhe deixaria nada, ela era simplesmente uma amante de que ele se recordava. Avistando Montana, pensou que era muito atraente, tão... masculino. Havia nele uma espécie de força, o mesmo tipo de força que Roberto possuía. Tinha a certeza que Montana, tal como Roberto, era um homem de princípios. Ele pegou-lhe na mão entre as suas, sorrindo-lhe calorosamente. - Estou tão contente por ter decidido vir. Sei como Bob teria ficado satisfeito. Um pouco afastada deles, considerei que Rosália era adorável. "Escolheste bem", Bob, pensei. "Esta mulher é uma verdadeira senhora. Agora, se ao menos tu tivesses sido diferente, ela teria ficado contigo, ter-te-ia dado filhos, uma verdadeira vida familiar e não duvido que terias sido um homem muito feliz. Achei o aspecto vistoso de cigano de Hector um pouco alarmante, mas reparei que era muito atencioso com Rosália, preocupado que ela não ficasse embaraçada por causa da surdez. Mesmo assim, pensei que Rosália não podia ter escolhido uma pessoa mais diferente de Bob. Magdalena, a filha, era alta e esguia, com o sorriso cativante da mãe, e a netinha era encantadora. Apertei mãos e cumprimentei-as a todas. Bailava-me na cabeça um se ao menos, se ao menos, mas nunca se pode voltar atrás. Quando o camareiro as acompanhou até aos seus quartos, disse para Montana: - Agora percebo porque Bob não conseguia tirar Rosália da cabeça. E não comeces sequer a sugerir que ela o poderia ter matado porque me recuso a acreditar nisso. Continuo a apostar em Dopplemann. Aliás, onde é que


está Dopplemann? - Lancei uma olhadela ao relógio. - São cinco horas e temos de partir às seis. Achas que ainda vem? - Foi a Nova Iorque na semana em que Bob morreu, por isso tenho a certeza que consegue chegar aqui vindo de Munique. - Ele o quê - Os olhos quase me saltaram da cabeça e afundei-me no sofá mais próximo. - Agora tenho a certeza que foi ele. Só tens de o provar, Montana. - Não tenhas tanta certeza. Charlie Clement estava igualmente em Nova Iorque e Davis Farrell também. Gemi, a pensar no iate de luxo cheio de suspeitos de assassínio. - Porque não me disseste isto antes? - Estamos apenas agora a receber a informação. Leva tempo, sabes. - E então as suspeitas do sexo feminino? - Não tenho nada sobre elas. Ainda. - O que é que isso significa? Montana encolheu os ombros. - Suponho que teremos de descobrir - disse no preciso momento em que Dopplemann entrou com passos pesados no átrio. Dopplemann suava. Não pensara que estivesse tanto calor e envergava o casaco de lã verde impermeável com a prega nas costas e o meio cinto. Empurrando o chapéu panamá novo em folha da testa transpirada, olhou em volta. Nunca vira uma exibição tão estonteante de luxo e passou-lhe pela cabeça, só por um instante, que, se Bob não lhe tivesse feito o que fizera, ele próprio podia ter possuído um iate como este. Os óculos de lentes muito grossas embaciaram-se e tirou-os para os limpar com um lenço de algodão novo, tomando gradualmente consciência do homem e da mulher que estavam à sua frente. Voltou a colocar os óculos e conseguiu focá-los. - Bem-vindo ao Elue Boat- disse para Dopplemann. - Chamo-me Daisy Keane, sou amiga de Bob e sua anfitriã no cruzeiro. Creio que conhece Harry Montana. - Por mais que tentasse, não consegui oferecer-lhe a mão. Fitei-o espantada, todo ele pálido e suado, a espreitar-me através das lentes grossas. - Estávamos com receio que perdesse o barco. - Apanhei o autocarro errado - retorquiu Dopplemann, na sua estranha voz sibilante. - Afastou-me cerca de um quilómetro e tal do caminho e tive de voltar para trás a pé.


- Devia ter apanhado um táxi - disse Montana, inflexível. - Podia ter atrasado a partida. Dopplemann encolheu apenas os ombros. - Peço desculpa - murmurou e tirando os óculos limpou-os de novo. Desferiu-me uma olhadela rápida com os seus olhos verdes lacrimosos e frios e depois bateu os calcanhares e fez uma pequena vénia formal quando o camareiro apareceu para o conduzir ao seu quarto. - O jantar é às oito e trinta - exclamou Montana. - Tente não se atrasar. Afundei-me de novo no sofá. Não podia acreditar que Dopplemann fosse tão estranho. - Parece o Dirk Bogarde nas cenas finais de Morte em Veneza comentei. Só precisava da tinta a escorrer-lhe pela face. Pobrezinho do homem acrescentei, subjugada de súbito por um sentimento de piedade. - Aquele "pobrezinho do homem" possui um dos melhores cérebros científicos do mundo - recordou-me Montana. - As naves espaciais podiam não estar a dirigir-se para Marte se não fosse ele. É perfeitamente capaz de planear um assassínio. - Oh, meu Deus - retorqui. - Promete-me só que não tenho de me sentar ao lado dele ao jantar. Montana sorriu pegando-me na mão. -Já tenho tudo tratado. Ficas sentada ao meu lado. Que tal encontrarmonos no piano bar às sete e meia? - Pago-te uma bebida - brinquei. Depois, com um beijo impulsivo na face, deixei-o e apressei-me a voltar à minha suíte, aliviada por não ter de enfrentar mais nenhuns potenciais assassinos, pelo menos por um par de horas, enquanto aproveitava para dormir um pouco.


PARTE IV ABORDO A PRIMEIRA NOITE O Livro da Vida principia com um homem e uma mulher num jardim. Termina com o Apocalipse. OSCAR WILDE UMA MULHER SEM IMPORTÂNCIA A vibração dos motores do barco acordou-me. Levantei-me e abri a janela, vendo as palmeiras e o palácio do príncipe Rainier ficarem para trás e depois surgir a longa linha da costa verde e repleta de pinheiros da Cote d’Azur. O iate deslizava suavemente pela água deixando um rasto cremoso, onde golfinhos se precipitavam como setas, e tentei fixar a recordação na minha mente para que mais tarde pudesse fechar os olhos e vivê-la de novo. A tristeza avassalou-me ao pensar em Bob e percebi como era importante salvaguardar as recordações do tempo que tínhamos passado juntos. Sabia que nos teríamos divertido muito neste cruzeiro e na Villa Belkiss, mas Bob não contara morrer; pensara que tinha todo o tempo do mundo. Olhei para a minha plácida suíte, a brilhar ao pôr do Sol rosado e cheia de flores. De certa forma, este cruzeiro num iate de luxo era o presente final de Bob para mim e o meu presente final para ele seria ajudar Montana a descobrir o seu assassino. Tomei um duche e vesti rapidamente uma blusa de chiffon pregueada de um verde-maçã e umas estreitas calças de seda creme, apresentando o meu colar de esmeraldas, os brincos e o grande anel vistoso de diamante amarelo corte princesa que Bob me dera no Natal passado e que eu quase nunca usava. Sandálias douradas e uma borrifadela do perfume Hermes Rouge, que comprara porque pensara, erradamente verificou-se, que estava destinado apenas a ruivas, e lá fui eu para o bar encontrar-me com Montana.


Fui a primeira a chegar; só lá estava o empregado do bar e um homem simpático chamado Melvyn, que me disse ser originário do Oklahoma, a tocar clássicos no pequeno piano de cauda branco. A iluminação no bar era suave e, lá fora, o final do pôr do Sol riscava o céu de rosa e verde-pálido. Banquetas curvas estavam empilhadas de almofadas e as paredes eram de madeira escura embutidas com um desenho complicado. Icei-me para um banquinho do bar e pedi um cosmopolitan. Como se por magia, apareceu um empregado com canapés quentes. E, mesmo atrás dele, vinha Montana. - Chegaste cedo - disse, tocando-me ao de leve no braço e oferecendo-me aquele meio sorriso. - E tu estás atrasado. Fazes sempre esperar as mulheres? - Não, se o puder evitar, e não com certeza quando se apresentam assim. Sentir-te-ias insultada se te dissesse que hoje estás com um aspecto maravilhoso? Mirei-o cautelosa, sem saber muito bem se estava a gozar comigo. - Está bem - respondi de má vontade -, apesar de não ser verdade. - Quem te deu o diamante? - Pegou na minha mão para o inspeccionar. - Acreditavas em mim se te dissesse que fui eu que o comprei? Largou-me a mão e olhou-me nos olhos. -Não. Independentemente da minha vontade, ou talvez fosse o cosmopolitan, pois agora já bebera mais do que alguns goles, soltei uma risadinha. - Claro que não fui eu, foi um presente de Natal de Bob. - Um homem generoso. - Entre outras boas qualidades, sim, era. - Fechei os olhos e vi o rosto de Bob à minha frente: o meu ogre, o meu Shrek, o meu amado amigo e mentor. - Ouve Montana - continuei, de súbito muito séria - prometo fazer todo o possível para te ajudar a apanhar o assassino de Bob. Diz-me só o quê... e faço-o. - Está bem, óptimo... Aprecio a tua cooperação, é mais fácil do que estar sempre a brigar. E, de qualquer maneira, cá estão eles - acrescentou com suavidade. Chegaram todos ao mesmo tempo, parecendo, pensei, um grupo tão variado de suspeitos como se poderia desejar. Filomena era a rematada


mulher do Sul de França num vestido coleante de seda cor de tangerina. Disse olá, sentou-se no bar e em breve tinha um martini e um pratinho de azeitonas à sua frente, ao mesmo tempo que conversava com o empregado do bar. Texas vinha sexy como tudo noutro traje de malha, desta vez cor de alfazema, afastando o comprido cabelo louro para um dos lados enquanto falava de música com Melvyn no piano. Dopplemann avançou de forma furtiva, ainda com o pesado casaco verdeescuro com o meio cinto e a pequena prega atrás, só que agora envergava calças a condizer e uma camisa cinzenta aos quadrados. Parecia um presidiário evadido. Baixou a cabeça num gesto de boa noite e encaminhou-se decidido para o bar, onde o ouvi pedir um copo de bom bordéus. Tinha certamente bom gosto em matéria de vinhos. Sentou-se num banquinho ao lado de Filomena, resmungando um Guten Tag. Ela lançou-lhe um olhar chocado e depois olhou em volta à procura de uma saída. Avistando-nos, veio ter connosco. - Âmici, salvem-me daquele homem estranho - disse com nervosismo. - O que está a fazer neste barco? - É um dos convidados - retorquiu Montana, explicando quem era Dopplemann. Ela desferiu outro olhar na sua direcção, querendo sentir-se impressionada, mas não conseguindo. Entretanto, Melvyn tocava "Body and Soul" e não pude deixar de pensar que era muito apropriado. No final de contas, estávamos num velório. O comandante Anders chegou, elegante no seu uniforme branco. Todos os oficiais e tripulação pareciam ter sido escolhidos pelo seu bom aspecto tanto como pelas suas capacidades. - Vim só verificar se está toda a gente confortável. Espero que tenham apreciado o pôr do Sol, esteve espectacular esta noite. Montana foi falar com ele em particular enquanto eu tentava conversar com Filomena. Afirmei que gostava do vestido dela, um tema seguro, pensei, e ela respondeu-me, no seu inglês pouco fluente, que o estilista era Roberto Cavalli, o seu favorito de momento. Perguntou "quem" é que eu vestia e admiti que não fazia ideia; era apenas uma coisa que comprara à pressa no Harvey Nichols.


- Uma boa loja de departamentos - disse aprovadora. - Fazia aí compras quando estava também com Bob. Pensei no que quereria dizer com aquele também. Estaria a colocar-me na categoria de amante? Percebi de súbito que, se calhar, todos os meus suspeitos pensavam que eu tinha sido amante de Bob e apressei-me a contar-lhe que era meramente uma empregada. - E sua amiga - acrescentei. Ela lançou-me um longo olhar astuto. - Acredito que está a contar a verdade - disse, parecendo surpreendida. - Claro que estou a contar a verdade! - Corei de indignação e ela riu-se. Nessa altura, Bordelaise entrou de rompante, com a franja loura a balançar por cima dos olhos brilhantes. Vestia um fato creme discreto com cerca de uma dúzia de colares de pérolas e Brandon van Zelder vinha logo atrás dela, tão bem-parecido como uma estrela de cinema num smoking branco. - Dio mio - murmurou Filomena, levando a mão ao peito. - Quem é este homem? - E sem esperar por uma resposta, deslizou do banquinho do bar e dirigiu-se para ele. - Estás magnífica - disse eu para Bordelaise. - Também não estás nada mal, quando te esforças - replicou e sorrimos uma para a outra. Montana estava agora na outra ponta do bar, a falar com Dopplemann. Contorceu as sobrancelhas a chamar-me para ir ter com eles. Incapaz de sorrir para Dopplemann, proferi um boa noite formal e disse que esperava que estivesse a apreciar o seu vinho. - Por favor, chame-me Marius - respondeu na sua voz calma e sibilante. - E este vinho é muito bom, um Haut-Erion. Nunca deixa de me espantar que um vinho tão perfeito venha de alguns meros hectares no meio de um subúrbio bastante miserável de Bordéus. Aprendi muito do que sei sobre bons vinhos com Bob, senhora Keane. Era um bom professor quando se tratava das boas coisas da vida acrescentou. Admirada por ele ter dito tanta coisa, consegui produzir um sorriso e Montana apertou-me a mão de forma encorajadora. A seguir apareceu Charlie Clement.


Avançou para o bar, encostou-se a ele, com uma mão no bolso e pediu um Jack Daniels duplo com gelo. Fez um aceno de cabeça curto na nossa direcção. - Boa noite, Clement - disse Montana, decidido, pensei, a espalhar boa vontade esta noite. Em pano de fundo, Melvyn mudara para Lennon e McCartney. - Deixe-me apresentar-lhe Marius Dopplmann - acrescentou. O rosto de Clement registou surpresa, depois choque quando examinou o pequeno homem de alto a baixo. - O cientista? - perguntou, mas Dopplemann afastou o olhar e não respondeu. Clement lançou uma olhadela inquiridora a Montana, mas este fez apenas sinal ao empregado para trazer mais canapés. Dopplemann tirou meia dúzia deles e comeu-os com tanta rapidez que pensei que devia estar mesmo com fome. Esvaziei o meu cosmopolitan e considerei a hipótese de um segundo. Ia ser uma longa noite. - Olá a todos! A voz exuberante de Ginny perpassou pelo bar quando entrou intempestivamente, toda aperaltada de calças pretas, top preto descaído nos ombros, sapatos de saltos muito altos e com um ramo de penas escuras enfiadas no cabelo amarelo. Sorrindo, deslizou para o banquinho ao lado de Montana e pediu um gim tónico com muito gelo. - Gosto das minhas bebidas com classe, como os meus homens acrescentou com uma piscadela marota, inspeccionando Charlie Clement ao mesmo tempo. - E quem é o senhor? - perguntou decidida, sem se perturbar com o comportamento taciturno dele. - Charles Clement - respondeu ele constrangido, cumprimentando-a com o aceno de cabeça curto que parecia ser a sua forma habitual de saudação. - E eu chamo-me Ginny Bunn. É amigo de Bob então? - Ex-amigo. Pensei que ele acertara em cheio. Ginny não se deixou perturbar com a sua atitude. - Espere um pouco, recordo-me de si. Foi a Sneadley algumas vezes, foi ao Rams Head. Sou a empregada do bar no pub. - Provou o gim tónico e acenou com aprovação profissional para o empregado do bar. - Recordo-


me sempre das caras das pessoas - acrescentou, olhando pensativa para Charlie. Depois calou-se de repente, o rosto impenetrável. Virou-se e começou a falar com Montana. Olhei em volta para ver quem mais já tinha aparecido. Ainda não havia sinal de Diane, nem de Rosália, nem de Davis Farrell. Observei Dopplemann a engolir mais outra dúzia de canapés e levei o meu segundo cosmopolitan para onde Bordelaise estava ainda a conversar com Texas. - Então o que acham, meninas? - Instalei-me no banquinho ao lado. - Penso que é bastante bom, especialmente porque não tenho de pagar disse Texas com o seu sotaque sulista. - Sou apenas uma rapariga trabalhadora, sabe. Não me posso dar ao luxo de pagar viagens em iates. - Não tem de trabalhar. Podia ter qualquer tipo que quisesse, qualquer tipo no Sul de França - retorquiu Bordelaise. - Tipos ricos, quero dizer. Texas emborcou a sua vodca. - Não é o meu estilo, querida. Sou do género de se apaixonar por um homem de cabeça, antes mesmo de saber se ele é rico ou pobre. Até agora, sempre se revelou pobre. - Riu-se. - Azar do jogo, calculo. Texas não era nada a miúda calculista que esperara que fosse olhando para o seu aspecto; parecia ser realmente simpática. Só que a sua aparência enganava e pensávamos que seria uma devoradora de homens. Pensando em homens, olhei para Montana. Ainda estava a conversar com Ginny. Magiquei se alguma vez ultrapassaria esta coisa dos ciúmes por um homem que apenas queria ser meu amigo. Um homem que queria que eu lhe fizesse companhia para não se sentir sozinho e para manter afastados de mim os tipos beras deste mundo. Estava a pensar se esta noite alguma vez terminaria quando o empregado anunciou que o jantar ia ser servido. A grande mesa na sala de jantar oval tinhaum aspecto muito bonito. Hortênsias de um azul-esverdeado encontravam-se dispostas em recipientes baixos e prateados ao longo do centro da mesa, os apliques de parede projectavam uma luz rosada perfeita havia velas a tremeluzir por todo o lado. Os empregados esperavam para nos servir e o champanhe e os vinhos arrefeciam em jarros de cristal. Rosália entrou com Hector e Magdalena, seguidos por Reg Blunt. Apenas faltava ainda Diane e Davis Farrell.


Montana organizara os lugares à mesa e toda a gente andava em círculo à volta da mesa espreitando para os cartões, para ver quem estava ao seu lado. Montana e eu estávamos numa das extremidades da mesa, com Reg e Diane, que entrou apressada atrás de nós, na outra extremidade. A seguir a Montana encontrava-se Rosália, depois Charlie Clement, Ginny e a cadeira vazia era para Davis ainda ausente. A seguir vinha Filomena e Brandon. À esquerda de Reg encontrava-se Texas, depois Dopplemann, Bordelaise, Magdalena e Hector. Pensei que era aborrecido termos um homem a menos e termos tido de colocar duas raparigas juntas e também que à pobre Bordelaise tivesse calhado Dopplemann. Diane chegou e posou à porta tempo suficiente para todos repararmos nela, a viúva desolada vestida de chiffon preto. O cabelo ruivo estava apanhado ao alto, o pescoço comprido e macio rodeado por um fino colar de diamantes muito brilhantes e usava brincos também de diamantes a condizer. Tive de admitir que tinha um aspecto encantador, de uma forma um pouco dura. O rosto ficou mais tenso, no entanto, quando descobriu que ficava sentada ao lado de Reg, que estava já a emborcar uma garrafa de cerveja Kronenbourg. - Pensava que ia ser o último a aparecer para o jantar - disse Reg jovialmente para Diane, erguendo-se. - Fiquei um pouco abalado depois daquela viagem de avião. Nunca voei muito, sabe, e não sou um bom viajante. A não ser que seja em grande estilo, como agora. Este barco é magnífico, não é? - Sorriu para nós. - Lady Hardwick vai fazer-me companhia, não é verdade, querida? - Deu a Diane uma cotovelada amigável. - Já nos conhecemos há muito, Lady Hardwick e eu, sabem. Bob costumava trazê-la para Sneadley quando ainda só namoravam. E isso foi já há bastante tempo, não foi? Muita água correu por baixo da ponte, diria. Diane estremeceu e depois tratou de ignorá-lo. Os criados desdobraram guardanapos nos nossos colos e serviram champanhe cor-de-rosa. Serviram-se amuse-bouches, como Bob gostava de lhes chamar. E Davis Farrell continuava a não aparecer. Pensei preocupada se teria decidido desistir e voltar para casa no dia seguinte. Filomena não sentia a falta de Davis. Colara-se a Brandon van Zelder numa torrente de inglês com sotaque italiano, falando tão baixinho que ele tinha


de dobrar a cabeça para mais perto da dela, o que, claro, era na realidade o que ela pretendia. Ginny não estava com ar satisfeito. Afastara-se sem rodeios de Charlie e fitava desalentada o lugar vazio de Davis. Não tinha ninguém com quem conversar e Deus sabe que Ginny adorava falar. Sentada ao lado de Dopplemann, Bordelaise revirou os olhos com ar impotente na minha direcção. Do outro lado da mesa, Hector perguntou a Charlie em que trabalhava, o que lhe valeu um olhar desdenhoso e a resposta seca de que estava no negócio do entretenimento. A tensão crepitava como um relâmpago e pensei, inquieta, como é que nos iríamos aguentar nos próximos cinco dias. Davis Farrell chegou por fim com o primeiro prato. Arranjara-se um pouco para o jantar com um bom casaco e uma camisa azul cara e, apesar do rabo-de-cavalo, parecia de súbito um rematado homem de negócios bem sucedido de Wall Street. Desculpando-se, explicou que recebera um telefonema de Nova Iorque que necessitava de atenção imediata. - Não estão habituados a não me encontrar - acrescentou. - Quem é que não está? - perguntou Ginny quando ele se sentou ao seu lado. Ficou surpreendida quando ele lhe falou dos jovens emigrantes que eram seus clientes. - Engraçado, pensei que toda a gente aqui era rica e bem sucedida comentou. - Como é que sabe que não sou? Mirou-o de alto a baixo. - O casaco está perfeito. É a barba e o rabo-de-cavalo que transmitem a impressão errada. Davis riu-se e depois perguntou-lhe de onde era e começaram a conversar sobre Sneadley e o Rams Head. Bordelaise estava a esforçar-se com Dopplemann. - Como é que foi o seu voo, Herr Dopplemann? - ouvi-a dizer. Ele lançoulhe um olhar de soslaio e a luz reflectiu-se de forma estranha nas lentes grossas. - Achei-o adequado e rápido, apesar das grandes medidas de segurança que agora imperam - retorquiu.


Bordelaise inspirou fundo. Ele era difícil. Sem mais nem menos, Dopplemann declarou: - Gosto do seu cabelo, Frãulein Maguire. É muito louro, muito... - pareceu procurar a palavra que queria - ... muito encantador. Aceitando o cumprimento desastrado, Bordelaise concedeu-lhe o seu sorriso mais radioso e disse-lhe para a tratar por Bordelaise. Rosália falava a Charlie Clement do seu problema de audição, dizendo que esperava que a desculpasse se ela não conseguisse entender de imediato o que ele dizia. Falava num inglês hesitante e Charlie parecia impaciente, mas, por outro lado, parecia cultivar a impaciência, tê-la tornado parte da sua pessoa como meio de colocar os outros na defensiva, forçando-os a falar mais depressa, a agir com rapidez. Não Rosália, no entanto. Perguntou o que Charlie achava do iate e depois prosseguiu comentando que "Roberto" Hardwick tinha sido muito simpático por oferecer aos seus velhos amigos este cruzeiro maravilhoso. Charlie pigarreou um pouco e retorquiu vagamente que supunha que sim. E foi tudo. Erguendo umas sobrancelhas surpreendidas, Rosália sorriu para Hector do outro lado da mesa, perguntando-lhe em espanhol como estavam a correr as coisas. Ele alisou para trás o cabelo demasiado comprido, brilhante como botas do exército bem engraxadas, afagou o bigode e disse com ar reservado que estava bem. Era óbvio que era a minha vez de dizer alguma coisa. - Hector, ouvi falar tanto da Finca de los Pastores e de como é tão bela. Deve ser maravilhoso viver lá. Ele inclinou graciosamente a cabeça. - Na verdade, senoriia, não viveria em mais sítio nenhum. - Oh, por favor, chame-me Daisy - retorqui e pu-lo à vontade até que começou a falar-me do hotel. O jantar foi servido, uma salada de lagosta seguida por bifes Wellington individuais. Tínhamos pedido que servissem o tipo de comida à moda antiga de que Bob teria gostado. Serviram-se os vinhos, a conversa emperrou e a tensão cresceu. Houve queijos e salada e meia dúzia de sobremesas e, com elas, servimos um champanhe especial, o Pol Roger Cuvée Winston Churchill.


Montana mal me falara durante toda a noite. Sussurrou-me agora que estava na hora do brinde. Tocando com o garfo num copo, pediu silêncio. - Daisy quer dizer-vos umas palavras. Lançou-me uma olhadela de expectativa quando me levantei. Eu tinha um pequeno discurso preparado, mas pigarreei nervosa ao olhar para os convidados em redor da mesa. - Em primeiro lugar, quero desejar-vos as boas-vindas em nome de Bob. Sabem já que vos escolheu especialmente a todos, queria que todos estivessem juntos para uma homenagem final à sua vida. Na verdade, o que disse foi: "Quero que todos se divirtam muito." Mas há mais uma coisa em que poderão querer reflectir. Bob acreditava que juntando-vos, poderiam ser levados a considerar de maneira diferente a forma como afectou pessoalmente as vossas vidas. Caso o fizessem, disse Bob, poderiam surpreender-se. Fitavam-me. O rosto de Charlie mostrava-se evasivo e um sorriso irónico erguia um dos cantos da boca de Davis. Diane parecia zangada. Filomena intrigada. Ignorando o champanhe, Dopplemann continuava a beberricar o seu bordéus, olhando concentrado para o fundo do copo como se pudesse aí encontrar alguma resposta. Rosália, entendendo com a ajuda de Montana o que eu dissera, foi a única a tecer um comentário. - Roberto foi sempre um homem sensato - disse em voz baixa. - É verdade - concordei. - E agora bebamos à sua memória com o champanhe favorito de Winston Churchill, razão pela qual recebeu o seu nome. Churchill era também o herói de Bob. "Um homem entre homens", chamou-lhe, "um coração de leão." Bob desejava poder ser como ele e, de tantas maneiras, com a sua coragem, a sua integridade, a sua força, foi mesmo. - Ergui o meu copo. - Por isso bebamos à memória de Sir Robert Waldo Hardwick, um homem sensato e um bom amigo de todos nós. - Brindemos. - Reg foi o primeiro a erguer o seu copo, seguido por murmúrios soturnos de "A Bob". O rosto de Diane fechara-se numa máscara. Lançou um olhar furioso a Filomena. - A italiana não devia estar aqui. Não passa de uma galdéria. - Dio mio. - Filomena levantou-se. - Como é que se atreve a chamar-me isso! Bob deixou-a porque você era uma chata e agora estou a ver que era


verdade. O próprio Bob me disse que não merecia o nome dele e que eu sim. Era a mim que ele amava, não a você... eu é que o fazia feliz. Seguiu-se um silêncio embaraçoso. À nossa volta, os empregados começaram a retirar os pratos. - Vamos ver se amava quando o testamento for lido - sibilou Diane em resposta. - Aí vai descobrir onde acabam as velhas amantes. No caixote do lixo. Não se esqueça que eu fui mulher dele... Interrompi-a com rapidez: - Por favor, Diane, Filomena, isto pretende ser um jantar civilizado. Bob queria que nos divertíssemos todos. - Uma vez que estamos a falar da questão do testamento, posso perguntar por que razão estamos todos aqui? - disse Charlie que continuara a beber Jack Daniels. - Não tenho a certeza se algum de nós se poderia denominar amigo de Bob. Por exemplo, aquele homem. Apontou para Dopplemann. Meu Deus, parece um trabalhador rural. Ninguém ouve falar dele há anos. Por que diabo Bob o convidaria a ele Fitou Dopplemann como se ele fosse um insecto sob a lente do seu microscópio. - Vamos lá, Herr Dopplemann, conte-nos como conheceu o grande Sir Robert Hardwick. Qual é a sua verdadeira história, hei? - Pare com isso, Clement - ordenou Montana. Mas Dopplemann tinha murchado sob o ataque de Charlie, curvando-se sobre o seu copo de vinho, de cabeça baixa. Passado um momento, tartamudeou qualquer coisa, levantou-se e saiu. Montana foi atrás dele. Agarrou-o pelo ombro, mas Dopplemann afastouo com um encolher de ombros e seguiu o seu caminho. Montana observou-o preocupado e depois regressou à mesa. - Creio que já chega por hoje - disse com frieza. - Diane, foi convidada porque é a ex-mulher de Bob. Não sei se lhe deixou alguma coisa no seu testamento, mas estou a pedir-lhe para ser educada por consideração para com ele. Quanto a si, Clement, se não quer participar nesta viagem, pode ir-se embora amanhã. Chegaremos a Saint-Tropez por volta das sete; a escolha é sua. Mas estou a avisá-lo, mais algum comportamento insultuoso e tratarei pessoalmente de o despachar. Fiz-me entender? - Quem diabo é que você é, para me dizer o que posso ou não posso fazer? - Charlie empurrou a cadeira para trás e seguiu Dopplemann,


saindo pela porta fora. - Que se lixem todos - ouvimo-lo dizer antes de desaparecer. Lancei uma olhadela aos meus convidados atordoados. Depois, Diane levantou-se e, sem uma palavra, saiu teatralmente da sala. Os olhos de Filomena seguiram-na. - É verdade que fui amante de Bob - disse. - Mas amávamo-nos, de verdade. E tenho pena que ele tenha morrido. - Virou os olhos tristes para Brandon. - Como é que Diane pode dizer aquelas coisas horríveis? Lágrimas gigantes rolaram-lhe pelas faces e Brandon puxou de um lenço de seda do bolso superior e começou a enxugá-las. - Não faz mal. Já passou - disse tranquilizador. Horrorizada, cruzei o meu olhar com o de Montana. - Penso que é melhor darmos a noite por terminada - declarou. - Esperemos que amanhã corra melhor. - Puxa - sussurrou Bordelaise. - Vou directa ao bar! E espero bem que Charlie e Diane lá não estejam. - Estou preocupado com Dopplemann - observou Montana depois de eles terem saído. - Ê melhor ir procurá-lo. Encontro-me contigo no bar mais tarde. - Pobre Dopplemann - disse Bordelaise enquanto embalávamos um copo de champanhe de boas-noites. - Aquele Charlie é um verdadeiro sacana, percebi logo, mal o vi. Homens como aquele têm em geral algo a esconder, acredita em mim. Vários dos jovens oficiais apareceram para conviver com os hóspedes e Bordelaise estava no seu elemento. Melvyn tocava "Smoke gets in your eyes" e Texas cantava numa voz rouca e emotiva que nos deixou extasiados. Até Filomena, recuperada das lágrimas, sorria com bravura, sentada muito junto a Brandon. Quinze minutos depois, Montana apareceu. - Não há sinal de Dopplemann - disse, preocupado. - Mandei o camareiro verificar e não está no camarote. Verifiquei também as cobertas, não há qualquer sinal dele. Espero que Clement não o tenha levado a fazer qualquer coisa estúpida. Percebendo o que ele queria dizer, Bordelaise e eu fitámo-lo, aterrorizadas.


- Nunca se sabe com um homem como aquele - continuou Montana. - É capaz de qualquer coisa. vou ter de comunicar o facto ao comandante Anders. Chamou um dos jovens oficiais e saíram juntos. Alguns minutos mais tarde, o iate começou a abrandar; depois deu meia volta e começou lentamente a arrepiar caminho. - Oh, meu Deus - exclamei. - Ele pensa que Dopplemann pode ter saltado. Fez-se silêncio durante alguns segundos, enquanto toda a gente recuperava as suas faculdades, e depois corremos todos para o convés. Debruçados sobre a amurada, perscrutámos o mar de um preto-azulado, iluminado agora por uma luz potente. Os lados do convés inferior abriramse hidraulicamente, as lanchas saíram e os oficiais iniciaram a sua busca. - Oh, não - gemeu Filomena. - A culpa é daquele homem horrível... Mas aquele pequeno Dopplemann é tão estranho. - Vai correr tudo bem - retorqui, tentando mostrar-me positiva ao mesmo tempo que continuava a procurar um corpo na água. - Não apostes nisso - disse Bordelaise. - Um homem como aquele, humilhado em público... O resto da tripulação passava os conveses a pente fino, revistando todos os quartos. O empregado do bar explicou que Dopplemann pedira outra garrafa do Haut-Brion. Achara que ele a ia levar para o quarto e Montana disse que não acreditava que se matasse quando havia ainda uma garrafa cheia de bom vinho para ser bebido. Os holofotes brincavam sobre a água, transformando-a num azul leitoso bastante bonito. Observando-a, pensei que poderia não ser uma forma muito má de o assassino desaparecer. Toda a gente, excepto Charlie e Diane, estava no convés, a espreitar por cima da amurada. O vento agitava os vestidos de noite das mulheres contra os seus corpos e, na meia-luz, pareciam um friso esculpido muito bonito: cabelos lançados para trás, rostos virados para cima. Reg, Davis, Brandon e Hector vigiavam e esperavam. - Com certeza que o insulto de Clement não seria o suficiente para mandar um homem para a morte - comentou Reg. - Era óbvio que Clement estava podre de bêbedo e toda a gente sabe que os homens dizem coisas que não devem quando estão assim.


Hector andava de um lado para o outro no convés, para trás e para a frente, e Texas, Filomena e Bordelaise agrupavam-se silenciosas a um canto. Montana voltara ao convés inferior. Os tanques de combustível gigantes em aço brilhavam sob as luzes e o vibrar dos motores do iate provocava pequenos estremecimentos no navio. Por cima do ruído detectou outro som: um zumbido, como uma serra sobre madeira. Agachando-se e dando a volta aos tanques, seguiu o som até à sua origem. Dopplemann jazia esparramado de costas, a garrafa de vinho vazia ainda apertada na mão. Ressonava. Montana informou o comandante Anders, convocaram o oficial médico e Montana voltou a subir à coberta para informar os outros do sucedido. O pânico terminara, mas não o medo. Os hóspedes afastaram-se lentamente em direcção aos seus camarotes, aliviados por não terem um cadáver entre mãos, por o cruzeiro ir prosseguir e por o testamento ir ser lido em Capri.


PARTE V AMA-ME NÃO ME AMA Todo o amor, todo o afecto, todo o deleite jaz submerso connosco na noite interminável. ROBERT MERRICK Agora que estávamos sozinhos, Montana olhou para mim. Ainda estava desorientada por causa do susto e agarrava-me à amurada do convés, trémula. A brisa brincava-me no cabelo e observava a curva cremosa do rasto do navio na água e os pequenos peixes fosforescentes a saltarem, sentia o aroma do mar e o aroma dos pinheiros, que nos chegava de terra, pois navegávamos junto à costa rumo a Saint-Tropez ali perto. Desta vez, não encontrei nada para dizer. - Estão a tratar bem dele. Vai ficar bom - disse Montana com suavidade. - Quase desejava que não ficasse - respondi com amargura. Teria sido a maneira mais fácil, depois podíamos simplesmente voltar todos para casa. - Estás a ser muito crítica. Dopplemann foi humilhado à frente de todos nós, por isso foi esconder-se e embebedou-se. O homem vive sozinho há tanto tempo que, se calhar, nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse ir à procura dele. Ainda sentia relutância em perdoar Dopplemann pelo que nos fizera passar a todos. - Em todo o caso, como é que ele vai enfrentar toda a gente amanhã? Sabendo que todos sabemos o que se passou? - Superará o que aconteceu e tu também. Vamos lá, Daisy, esquece isso, está bem? Desprendeu a minha mão da amurada e levou-a aos lábios. Como se por magia, Dopplemann desapareceu-me da cabeça. Os joelhos tremeram-me. Não me sentia assim desde a adolescência e certamente que não o sentira com "o marido". Talvez a parte do sexo de má qualidade com ele fosse da minha responsabilidade, mas continuava a atribuir-lhe a culpa a ele; apesar da sua imagem de galã promíscuo, o marido não fora um grande amante. E agora estava a pensar se Montana seria. Impróprio da minha


parte, eu sei, mas por vezes a mente assume o controlo e, de qualquer maneira, era melhor do que me preocupar com Dopplemann. Montana largou-me a mão e fitou o mar. O que estaria a pensar? Parecia um homem duro, com o seu perfil de falcão, cabeça rapada e corpo firme e magro; um homem que se manteria sempre em excelente forma, pronto para qualquer perigo que pudesse estar à espreita na próxima esquina. Então porquê, perguntei a mim mesma, eu me sentia atraída por ele? Seria a sugestão de perigo que o acompanhava, além do corpo bem tonificado e do seu aspecto num roupão turco aveludado branco recordava-me dele quando entrara no meu quarto em Sneadley com o tabuleiro do chá e as bolachas de gengibre - tipo sexy e descontraído. Soltei um suspiro que o fez virar a cabeça e olhar para mim. - Ainda aqui estás? - acrescentou com um brilho divertido nos seus olhos cinzentos-carvão ohh-tão-sexy. - Um cêntimo pelos teus pensamentos? - disse eu. - Valem muito mais do que isso. - Então cinquenta cêntimos. - Mais. - Cinquenta moedas grandes. Ele estendeu a mão. - Aceito. Paga. - Tens de me contar primeiro. Abanou a cabeça. - Isso não funciona assim. Tens de pagar as compras antes de as levares para casa. Suspirei outra vez, exasperada. - És um homem lixado, sabes isso? - Engraçado, pensei que tu é que eras lixada. Tendo esgotado a energia, afundei-me outra vez contra a amurada. Senti a sua mão na minha face e virei-me para olhar para ele. Os dedos dele afagaram-me a curva da maçã do rosto e desceram depois para a minha boca, percorreram-me os lábios. Pegou-me no queixo com a mão e inclinou-me a cabeça para trás, erguendo-me o rosto para o dele. Durante um longo instante os nossos olhares cruzaram-se, mas depois fechei os meus olhos com força quando o seu rosto se movimentou sobre o meu e a sua boca se fechou sobre a minha. Foi o tipo de beijo que não queria que


acabasse nunca e, quando por fim ele afastou a boca e eu ofeguei para engolir os necessários sopros de ar, foi isso exactamente que lhe disse. - Não quero parar - afirmei sem fôlego. - Há tanto tempo que quero que me beijes assim. Ele acariciou-me de novo o rosto, os olhos postos nos meus, as nossas respirações agitadas em sintonia; depois moveu as mãos para a minha nuca enviando descargas eléctricas por todo o meu corpo ardente. - E agora? - murmurei, mexendo o pescoço sob as mãos dele como um gato a ronronar. - Queres vir até à minha casa? Ouvi o troar da sua gargalhada abafada. - Oh, Daisy, deves ser a única mulher verdadeiramente honesta que conheci. Dizes sempre o que sentes? Assenti com a cabeça. - E nunca deixa de me arranjar problemas. - Mirei-o de alto a baixo, com lascívia. - Que é o que espero que aconteça agora. Montana afastou-se. Pegando-me na mão, conduziu-me pelo convés deserto. - E melhor acompanhar-te ao teu camarote - disse, desapontando-me. Seguimos em silêncio no elevador, lado a lado, mas já sem darmos as mãos, e caminhámos pelo corredor até à minha suíte. À porta, virei-me para ele, consciente de cada centímetro do seu corpo junto ao meu, todas as minhas terminações nervosas alertas e na expectativa. - Bem? - perguntei, ainda ofegante de desejo sexual. - Daisy. - Ergueu-me o rosto com um dedo. - Tens a certeza disto? Sorri, radiante de deleite. - Deixa-me mostrar-te como tenho a certeza - respondi e, abrindo a porta, peguei-lhe na mão e levei-o lá para dentro. Seria que pensava que lhe podia roubar a força, tornar-me invencível através dele? Seria que estava curiosa em relação ao seu corpo e aos segredos da sua vida que até agora não me contara? Como, por exemplo, o significado da tatuagem no antebraço direito? E a que correspondia o C em Harry C. Montana? E quem era ele, porque, claro, eu não sabia quase nada sobre este homem, excepto as poucas palavras sobre a sua infância solitária, o facto de ter trabalhado num restaurante barato em Galveston e a circunstância de ser uma "espécie de amigo" de Bob Hardwick.


Montana era um homem misterioso de muitas maneiras e agora, pelo menos, estava prestes a solucionar o mistério do seu corpo e da sua maneira de fazer amor. Seria como eu pensava que seria? Cair-lhe-ia nos braços, desfalecida como uma donzela perdida de amor, a tremer à espera que me tocasse? Eu não. Não perdi mais tempo. Descarada na minha ânsia, desapertei a blusa em meio segundo e ele estava a ajudar-me a despi-la no segundo seguinte. - Daisy, Daisy... doce e perfeita Daisy - disse, admirando os meus seios, que se empinavam, ansiando pelo toque das suas mãos. Depois, como um cavaleiro de armadura reluzente, pegou-me ao colo e levou-me para a cama. Afastando os chocolates em cima da cama aberta, deitei-me encostada às almofadas, vendo-o despir-se e postar-se diante de mim, tão belo como um homem pode ser. Fiz-lhe sinal para se aproximar, soerguendo-me quando ele se chegou a mim e me abraçou, corpo nu contra corpo nu, a arder de desejo, afundando-me sob os seus pequenos beijos ternos, com a cabeça a andar à roda com as suas carícias, beijando-o também como se não aguentasse deixá-lo partir. - Toca-me - sussurrei, embriagada com a sensação dos seus dedos na minha pele. -Toca-me - murmurei de novo... e de novo... quando os seus lábios me acariciaram... E - Ah, Montana, Montana... - Não achas que devias pelo menos chamar-me Harry? Abri os olhos e olhei para ele. - Oh. Sim. Certo. Harry. Faz mais um pouco... Harry... Muito mais tarde, com as pernas ainda enroladas à volta dele, os braços esticados sobre a cama, parecia um fogo-de-artifício extinto, todas as minhas estrelas e lantejoulas reluzentes atiradas para o céu nocturno. Passei a mão pela misteriosa tatuagem. - O que quer dizer? - perguntei. - É um ditado tibetano. Significa "amor e bondade". Fizemo-la, três de nós amigalhaços na Força Delta. Eram os melhores homens que se podiam encontrar na vida. Morreram ambos no Afeganistão. Fez uma pausa, a pensar. - Sinto a falta deles. Desenredando-se, deitou-se de costas. Com os olhos fechados, declarou:


- O tempo que passei com eles foi o melhor da minha vida; eram como os irmãos que nunca tive. O homem duro estava a mostrar os seus pontos fracos, de súbito vulnerável, de súbito humano. Afaguei suavemente a tatuagem com um dedo, desejando nunca ter perguntado. - Lamento muito. Olhou para mim, e vendo a compreensão nos meus olhos, disse: - O outro grande acontecimento da minha vida foi encontrar o homem a quem chamei meu pai. Não era o meu verdadeiro pai, claro, não tive qualquer relação com esse desde o dia em que nasci até ao dia em que ele morreu. Mas este homem salvou-me a vida. Este homem criou-me, porque antes de o conhecer era apenas um miúdo violento destinado a arranjar problemas. Chamava-se Phineas Cloudwalker e era um índio da tribo dos comanches. Tinha sessenta e sete anos na altura, muito magro, com um corpo duro como pregos. Apanhou-me numa estrada de terra no interior do Texas e guiava uma carrinha Ford tão velha que parecia poder ter sido herdada do avô Clampett, o da série televisiva. Eu pedia boleia, com o polegar levantado numa noite fria e horrível em que nenhuma pessoa estaria cá fora se pudesse escolher. A chuva caía em torrentes e estava completamente ensopado, mas Cloudwalker tinha um cão doente e levara-o ao veterinário. Chorou ao contar-me que o cão fora abatido e recordo-me de ficar muito admirado por um homem adulto ser suficientemente corajoso para chorar. Nunca vira ninguém mostrar emoções antes. Montana silenciou e eu sustive a respiração, à espera do que poderia vir a seguir. Quase conseguia ouvir a carapaça dura que crescera à volta do meu coração desfeito, quando o marido me deixara, a partir-se. Montana, este homem duro, abrira-se comigo, revelara-me os seus sentimentos mais íntimos, a sua mágoa com a perda trágica dos seus amigos e do seu verdadeiro pai. Pensei que este Cloudwalker significara para ele o que Bob significara para mim: a salvação. Eram homens que tinham pegado em nós, desfeitos como estávamos, e nos tinham consertado, posto como novos outra vez; a viver, a respirar, sentindo-nos seres humanos. - E agora cá estás tu - disse Montana em voz baixa. - O tipo de mulher que um homem gosta de amar.


Não ousei perguntar: "E então, amas-me?" Era demasiado cedo para falar de amor. No final de contas, o que tínhamos aqui entre nós era apenas uma ligação física. Por isso disse: - Choravas à minha frente, Harry Montana? - Chorei no funeral de Bob. - Surpreendeu-me. - Perdera um grande homem. Um amigo. - Eu também chorei - admiti. - E tenho chorado tanto desde então que nem sei de onde vêm todas essas lágrimas. Ele enrolou uma mecha do meu cabelo no dedo. - Daisy? -Sim? - Não quero que tenhas medo. O que quereria dizer? Deveria ter medo de me apaixonar por ele? Ou medo do que Dopplemann pudesse fazer a seguir? - Oh, não tenho, é verdade que não tenho - repliquei soando muito mais confiante do que me sentia. - Boa menina. - Abraçou-me e puxou-me para ele. - És linda, sabes isso? - Bem, ninguém me tem dito isso ultimamente - admiti. - Então ouve-me agora. Tira apontamentos. Grava-o no teu cérebro. És linda. Quero que o repitas para ti mesma trinta vezes por dia. Prometes? Ri-me. - Vou tentar. Empurrando-me para longe dele, levantou-se, pegou na garrafa de champanhe que estava no balde do gelo e abriu-a. Serviu dois copos e passou-me um deles. - Vamos brindar a nós - disse a sorrir. Assim fizemos e depois comi todos os chocolates que tinham posto sobre a cama quando a tinham vindo abrir, de súbito esfomeada por causa de toda aquela sessão de amor. - Há serviço de quartos vinte e quatro horas - lembrou-me ele. - Mas o que iam pensar se te vissem no meu quarto? - perguntei chocada. Montana abanou a cabeça a rir-se. - Vem cá, mulher tonta e puritana. Puxou-me para o seu colo. Esquecendo tudo sobre o champanhe e o serviço de quartos, comecei a beijá-lo outra vez.


PARTE VI SEGUNDO DIA SAINT-TROPEZ A vida é uma língua estrangeira: todos os homens a pronunciam mal. CHRISTOPHER MORLEY Dormi o sono dos anjos, adaptando-me ao corpo de Montana como estava destinado a ser. Na manhã seguinte, vagamente consciente da luz do dia por trás das cortinas fechadas, emergi por fim de várias camadas de sonolência satisfeita, abri os olhos e procurei-o. Não estava. Procurei um bilhete, verifiquei a sala de estar e a casa de banho. Vazias. Olhei em volta, atordoada. Montana deixara-me e sem sequer com um adeus. É uma tolice suponho, mas a dor da rejeição atingiu-me mais uma vez, a mesma horrível agonia que sentira quando o marido me abandonara. Aquelas rachas na carapaça à volta do meu coração, que sentira a noite passada quando Montana me revelara o seu lado mais vulnerável, fecharam-se de novo com o carácter definitivo da cola forte. Disse comigo mesma que era uma tonta e que os homens eram homens, apenas atrás de sexo e nada mais. No entanto, não fora eu que o seduzira? Ele perguntara se eu sabia o que estava a fazer e eu tinha, tão despreocupada, dito que sim. Agora recebera o que pedira. Nada mais, nada menos. No entanto, não voltaria a acontecer; isto acabara antes mesmo de começar. Apercebi-me lentamente que do lado de fora da grande janela panorâmica ficava o pequeno porto mágico de Saint-Tropez. Via os montes de Ramatuelle forrados de pinheiros, dobrando-se para um céu azul límpido, ouvia as gaivotas a chamarem e, quando abri a janela, senti o aroma das flores e do mar. Precisava de uma praia e do calor do sol a pintalgar o meu corpo magoado do amor; precisava de acalmar a minha dor naquele fresco mar azul, respirar mais perto o perfume refrescante daquelas flores. Precisava de vinho rose e de peixe acabado de pescar e daqueles minúsculos morangos silvestres chamados fraises dês bois. Claro que não precisava de Harry Montana.


No duche deixei a água escorrer-me por cima, lavando todos os vestígios da nossa sessão de amor. Impecavelmente limpa, saí envolta num roupão de algodão macio, no preciso momento em que a minha camareira, Camille, chegava com o pequeno-almoço. Servi-me de uma chávena de café e dei uma dentada no croissant folhado e com manteiga, como só os franceses sabem fazer. A seguir liguei para o quarto de Bordelaise. - O que é? - atendeu ela. - Estás acordada? - Agora estou. - Abre as cortinas e espreita lá para fora. Ouvi-a resmungar a sair da cama e o som das cortinas a serem puxadas para trás. Depois: - Ohh! Olhem só para isto! - Estás acordada agora? - perguntei a sorrir. - Podes crer. O que estás a planear fazer? - Praia. Nadar. Almoço. Beber vinho. Observar as pessoas. Talvez umas compritas mais tarde... - Dá-me meia hora, querida, e sou toda tua. Oh, espera aí um minuto, e então os suspeitos? Vais deixá-los por sua conta? - Bem, queres ir nadar com Dopplemann? Ou com Charlie Clement? Ouvi-a gemer. - Claro que não queres e eu também não. Para o diabo com tudo, Bordelaise, vou deixar que Montana trate deles. - Hmmm. - Quase lhe conseguia ouvir o cérebro a trabalhar. Então, em que pé estás com Montana? Achei que estavam muito dados ontem à noite. E não te dês ao trabalho de me dizer que estou enganada. Consigo cheirar o início de uma aventura amorosa a cinquenta passos. - Bem, desta vez estás enganada. Terminou tudo. - Terminou? Pensei que me ias dizer que acabara de começar? Suspirando, fiz-lhe um rápido resumo dos acontecimentos das últimas horas. Por fim disse: - Por isso, quando um homem se levanta e se vai embora sem sequer um adeus, nem sequer um bilhete, nem sequer um telefonema, o que deve uma mulher pensar? - O pior - concordou Bordelaise.


Suspirando, vesti um biquini turquesa e um cafetã azul-claro muito fino, parte das minhas compras no Harvey Nichols de Londres. Telefonei a Patrice de Colmont, o proprietário de Lê Club 55, marquei o almoço para as duas horas, agarrei no meu saco de palha e fui bater à porta de Bordelaise. Abriu-a de par em par, radiante. - Rápido, vamos fugir daqui, antes que Dopplemann nos encontre exclamou num sussurro muito alto, já numa correria pelo corredor fora comigo atrás, aos risinhos como duas crianças traquinas, descendo aos saltos pela prancha de desembarque para o cais. Passeámo-nos ao sol, inspeccionando as bancas que vendiam bijutaria e cintos, T-shirts e lenços, óculos de sol e souvenirs. Apanhar um táxi não é fácil na pequena e apinhada Saint-Tropez e parece apenas haver uns dois ou algo do género, mas eu sabia para onde telefonar e esperámos junto ao porto que chegasse. O motorista do táxi era giro e chamava-se Paul. Conversou connosco em francês enquanto serpenteávamos pelas ruas estreitas e vielas da vila do século XV e alcançávamos a estrada principal. Virou na placa que dizia "Praias", passando por vinhedos intermináveis, fonte do delicioso vinho rose da região, e tornou a virar na placa que dizia "Pampelonne", continuou até ao fim da estrada e, por fim, chegámos à bonita praia. Paul disse-nos para lhe ligarmos quando quiséssemos regressar e partiu, deixando-nos a olhar para os Eentleys e os Ferraris no parque de estacionamento. Apesar da sua clientela chique, Lê Club 55 é um sítio simples. A entrada é um passadiço de madeira sombreado por bambus altos. Conduz a um terraço e ao restaurante esplanada e bar popular. Colmos entrançados e toldos de tela branca estão suspensos como velas por cima das nossas cabeças e está tudo inundado de buganvílias, loendros e tamargueiras. Em frente fica a praia dourada salpicada de guarda-sóis, o mar e uma série de gente beautiful. Na zona de refeições à sombra, as mesas estão postas com toalhas de um azul-pálido e flores frescas e a brisa sopra da praia, trazendo com ela uma grande quantidade de pequenos barcos a motor vindos dos magníficos iates ancorados ao largo. Neles vêm as pessoas ricas vestidas pelos estilistas e jovens bonitas envergando os biquínis mais minúsculos, todas a


querer almoçar no clube de praia mais conhecido e mais snob de SaintTropez. Patrice pegou na minha mão e beijou-a, exprimindo o seu pesar em relação a Bob. Conhecia-o há muitos anos e afirmou que lhe sentiriam a falta. O clube estava na família de Patrice de Colmont desde 1955, quando a mãe e o pai tinham comprado uma barraca de praia e começado a cozinhar para Brigitte Bardot e a sua equipa de filmagem que rodavam na altura E Deus Criou a Mulher. Naquele momento Saint-Tropez "nascera" e também Lê Club 55. Instalámo-nos em colchões de praia debaixo de um guarda-sol, mas eu estava ansiosa por entrar na água. Deslizou por cima de mim como um vestido de seda macio, suficientemente fria e ao mesmo tempo suficientemente quente. Mergulhei e depois irrompi à superfície a deitar perdigotos, a sacudir o cabelo dos olhos. Não pensava em Montana. Não pensava em Dopplemann. Nem sequer pensava em Bob. Pensava apenas no prazer sensual de estar imersa nesta água cristalina e macia e na força do meu corpo quando mergulhei nas ondas e avancei, rápida, em direcção ao horizonte. Bordelaise acompanhava-me, braçada a braçada. Não era por acaso que fizéramos parte da equipa de natação do liceu. Refrescadas por fim, boiámos serenamente de volta à costa. Sacudindo as gotas de água como o par de labradores que tinham nadado ao nosso lado, subimos pela praia para o nosso pequeno santuário e sentámo-nos durante algum tempo, deixando o sol secar-nos, antes de nos besuntarmos com protector solar Hawaiian Tropic. Deitei-me no meu colchão e fechei os olhos. Pela primeira vez, desde que partira de Londres, senti-me completamente relaxada. Meia adormecida sob o guarda-sol coberto de colmo, tinha consciência do som de risos e do tinir de gelo em copos, do suave restolhar da brisa nas tamargueiras e do bater das minúsculas ondas na orla da praia. Desejei poder ficar aqui para sempre e nunca ter de enfrentar outra vez a realidade, ou Montana, ou os suspeitos. - Madame, a sua mesa está pronta. Uma jovem empregada sorridente com uma T-shirt azul interrompeu-me os pensamentos, Bordelaise e eu vestimos qualquer coisa por cima dos biquínis e avançámos com lentidão através das mesas agora apinhadas.


Pedi uma garrafa do rose da casa e bebemo-lo em deliciado silêncio, mordiscando rabanetes doces e estaladiços, pedacinhos de couve-flor e tiras de pimentos vermelhos, tudo fresquíssimo, mergulhando-os num ai de paladar forte. Uma sensação de bem-estar inundou-me como a calma depois da tempestade. Preguiçosamente, tecemos comentários sobre os corpos fascinantes, as jóias; a escandalosa ostentação e ataviamento; as raparigas bronzeadas e os tipos queimados e tatuados, os rechonchudos titãs da indústria de calções de banho e bonés de basebol com os nomes dos seus iates, as modelos famosas e as estrelas de cinema. Claro que havia outras pessoas normais que aqui vinham todos os anos, não para verem e serem vistas, mas apenas porque adoravam o clube. Tínhamos acabado o nosso robalo com uma deliciosa salada e estávamos na segunda garrafa de vinho, à espera dos morangos silvestres, quando Bordelaise disse num sussurro: - Não olhes agora, mas adivinha lá quem vem aí. Assim, claro que olhei. Era Diane. Ouvi-lhe o suspiro exasperado. - Raios, Daisy, agora já nos viu e vem para aqui. Tinha razão. Diane avistara-nos e dirigia-se para nós. Fulminou-nos com um olhar indignado. - O que estão aqui a fazer? É impossível conseguir uma reserva. - Recusaram-lhe mesa, foi? - Bordelaise sabia tratar de forma condescendente os melhores, quando queria. - Que pena. Claro que Daisy e eu desfrutámos de um almoço excelente e de um dia maravilhoso na praia. - Então não se importam se me sentar aqui com vocês. Diane já abancara, antes de termos sequer hipótese de levantar objecções. Remexeu no saco de pele branco, alisou o cabelo, que usava puxado para trás num nó e ajustou o íop justo do vestido azul sem mangas. Serviu-se de um copo do nosso rose e bebeu um longo trago. Os seus olhos cruzaram-se com os meus por cima do rebordo do copo. - Andava a dormir com o meu ex-marido? - perguntou-me. Ofeguei. Ao meu lado, ouvi a gargalhada de Bordelaise. - Suspeitei sempre que estivesse - disse Diane. - Estava tão perto dele, sempre presente, sempre a atender os telefonemas, sempre no avião com


ele, sempre naquele lugar horrível. O solar de Sneadley. Até aqui em SaintTropez e no Hotel du Cap. - Recordo-me de si no Hotel du Cap - retorqui, sabendo que ela se lembrava demasiado bem da cena que fizera quando Bob lhe dissera que os cofres estavam vazios no que lhe dizia respeito. - Claro que se recorda - replicou, parecendo de repente abatida; - O que não sabia era com que urgência eu precisava daquele dinheiro. E porquê. - Os compridos olhos esmeralda reflectiram a luz do Sol quando olhou para mim. Mas também não havia razão para saber a verdade, havia? Nem contei a Bob na altura, então porquê contar-lhe a si agora? - Que verdade? - perguntei, mas ela virou a cabeça, decidindo obviamente que já dissera de mais. Acenou um braço com pulseiras de ouro a chocalhar para chamar um empregado. - Bob já morreu e tenho a certeza que cuidou de mim no seu testamento. Os olhos faiscaram de novo, intensamente, na minha direcção. - Não é? - Na realidade, não sei o que está no testamento de Bob - respondi. - Terá de esperar até Capri para descobrir. Pensei detectar-lhe um brilho de desespero nos olhos, mas depois virouse com rapidez para o empregado e pediu o pregado grelhado e outra garrafa do rose. A seguir afixou um sorriso e perguntou a Bordelaise de onde era, o que estava ali a fazer e se estava a gostar do cruzeiro. Num instante, Diane passou de uma mulher desesperada e assustada para a consumada sedutora de sociedade, divertindo-se no mais refinado clube de praia de Saint-Tropez, um lugar a que obviamente pertencia, pois as pessoas aproximavam-se, beijavam-na em ambas as faces e perguntavamlhe por que motivo não a viam há tanto tempo. A resposta a todas era que o marido morrera recentemente e que estava a recuperar do choque. E talvez estivesse, pensei, surpreendida. Eu aprendera depressa, com Diane nunca se sabia. Telefonámos a Paul, o taxista, para nos vir buscar e deixámos Diane a usufruir do seu almoço com as amigas.


Ainda intrigadas com o que ela poderia ter querido dizer, voltámos para Saint-Tropez e preparámo-nos para vasculhar as lojas, que reabriam às quatro depois da sesta da hora do almoço. E, passeando nas vielas empedradas, com quem nos devíamos deparar senão com Filomena, carregando vários sacos grandes de compras com os logotipos de Hermes, Erès e Blanc-Bleu. Andara obviamente a fazer incursões discretas nos seus cem mil. Imaculada e deslumbrante num linho branco dispendiosamente simples, caminhava como se a rua fosse dela. - Ciao, amici - exclamou, acenando com a mão livre e sorrindo-nos radiante do outro lado da rua. - Vejam o que comprei. - Ergueu os sacos. Não me divirto assim tanto há anos. As orgias de compras sempre me fizeram sentir bem. Sem olhar, atravessou com precipitação a rua estreita directamente à frente de um Mercedes azul descapotável, conduzido por um homem louro bem-parecido. Ele fez soar a buzina zangado, mas depois reagiu com prontidão e parou. - Quase a matei - disse em francês, atirando as mãos ao ar num desespero fingido. - Se tivesse de morrer, teria ficado contente por ser às suas mãos retorquiu Filomena, rindo-se. Ele inclinou um cotovelo por cima da porta do carro, olhando interessado para ela. - Então o que vai fazer esta noite? Sei onde há uma boa festa. No iate de Paul Allen. Bordelaise e eu trocámos olhares entendidos. Paul Allen era o bilionário da Microsoft e o seu iate, o Octopus, era o maior e mais grandioso em Saint-Tropez, muito maior do que o Blue Boat, uma carcaça muito alta de um azul-acinzentado encimado por dois helicópteros. Filomena avançou descontraída para ele; trocaram cartões e sorrisos, bem como um aperto de mão demorado, enquanto motoristas irados se apinhavam atrás deles, a buzinar e a gritar. Sem se perturbar, Filomena acenou um adeus. Sorriu de forma simpática para os motoristas furiosos e continuou a atravessar a rua até onde nós aguardávamos, boquiabertas com o seu à-vontade.


-Jovem tolo - disse, desdenhosa. - Pensou que eu ficaria impressionada quando largou o nome de Paul Allen e do seu iate. - Bem, eu fiquei com certeza - retorquiu Bordelaise. - Ah! Claro que ele não conhece Paul Allen. É como eu, a circular nas margens, na esperança de ter sorte e conseguir uma oportunidade, estabelecer contactos, alcançar algumas das regalias da mesa do homem rico. Filomena estava a misturar as metáforas, mas percebemos o que queria dizer e, tal como Diane, surpreendeu-nos, só que desta vez pela sua franqueza. - Eu pareço rica, ele parece rico - explicou com um encolher dos elegantes ombros morenos. - Mas estamos ambos a fingir, na esperança de termos sorte. Nessa altura, Texas dobrou a esquina, agarrada também a uma quantidade de sacos, embora não da Hermes. - Olá - chamou. - Também andam às compras? - O salto do sapato prendeu-se nas pedras da calçada e quase caiu. - Oh, bolas! Saltitou num só pé, agarrada ao tornozelo. - Dói tanto. Brandon surgiu atrás dela. Sorriu-nos e depois lançou um olhar alarmado a Texas. - O que aconteceu? Ela cambaleava numa perna e ele rodeou-lhe a cintura com o braço para a suster, mas ela gemeu ainda mais. - Ficou com o salto preso - disse-lhe. - É provavelmente uma entorse. É melhor voltar com ela para o barco para o médico a examinar. - Claro. Sim, pois. O barco. - Brandon parecia falar apenas aos sacões curtos e bruscos. - Também vou. - Filomena passou o braço pela cintura de Texas. - Está bem, cá vou eu então para o médico. - Texas gemeu. - No entanto, tenho pena de perder mais umas compras. Quando se afastou ao pé-coxinho, vimos Filomena dar a mão a Brandon por trás das costas de Texas e desatámos a rir. Comprámos guardanapos com recheio de maçã numa pastelaria e trincámo-los alegremente, admirando a montra de uma minúscula loja de bijutaria chamada Alixs. Bordelaise comprou uma pulseira incrustada de


flores turquesa, ao passo que eu me decidia por um esplêndido colar, colher, como a vendedora francesa lhe chamou, com cinco fiadas de contas de peridoto em finos elos dourados. Eram agora cinco horas e devíamos partir às seis. Chegámos ao cais mesmo ao lado do Café Sénéquier, onde avistámos Dopplemann a beber vinho e a fitar com olhar vazio a sucessão de iates todos alinhados, de popa, do outro lado da rua. As bandeiras dos iates flutuavam e as tripulações, de calções e camisas brancas, estavam prontas para servir cocktails ou lançar vela a qualquer momento. Como sempre, Dopplemann parecia alheado da passagem do tempo e decidi, relutante, que era melhor avisá-lo, antes que se embebedasse de novo e perdesse o barco. Sobressaltou-se quando lhe proferi o nome, deixando cair o copo de vinho no chão. - Fráulein Daisy. E Beaujolais. Deturpando-lhe o nome, ofereceu-lhe um sorriso hesitante e pôs-se de pé. As pernas magricelas espetaram-se, saindo dos calções como um par de raminhos descolorados. Usava uma T-shirt verde-escura, parecia ser a sua cor favorita. À volta do pescoço estava pendurado um par de binóculos poderosos. - Está na hora de voltar ao barco, zarpamos às seis - expliquei secamente. - Ah, sim. Sim, claro. - Pegou com rapidez no guia que estava em cima da mesa e adicionou algumas moedas ao pratinho da gorjeta. - Sim, bem, é melhor apressarmo-nos. Caminhava devagar e silenciosamente ao nosso lado, olhando de vez em quando para a exposição de arte que se estendia por vários quarteirões. Parou em frente de um quadro pequeno, mas pormenorizado, de uma casinha de pescadores: paredes caiadas, telhado de telhas azuis, uma janela aberta, cortinas amarelas a esvoaçarem na brisa, uma pilha de redes de pesca e um cão preto a dormitar ao sol. Dopplemann tirou os óculos e limpou-os. Voltou a pô-los e espreitou mais de perto para o quadro. Lancei uma olhadela ao meu relógio e depois a Bordelaise, que tinha as sobrancelhas erguidas impaciente, mas não podíamos deixá-lo. - Vou comprar este quadro - anunciou em voz alta.


O vendedor disse o preço e Dopplemann sacou de uma carteira de pele com mau aspecto, que dava a impressão de estar na sua posse há mais de cem anos. - Acho que deve regatear - disse Bordelaise, mas ele abanou a cabeça. - O artista trabalha para viver. Vende. Eu compro. É um preço justo. Com o quadro apertado debaixo do braço, aparentemente tão precioso para ele como um Rembrandt para um museu, apressámo-nos de novo. Na esquina demos com Davis Farrell a tirar uma fotografia panorâmica aos iates. - Tenho de tirar algumas fotografias, se não as pessoas nunca acreditarão que aqui estive - disse, acertando o passo pelo nosso. Passaram um bom dia? - Óptimo - respondi, a pensar que a praia e o belíssimo almoço com o vinho pareciam ter ocorrido há imenso tempo. - De que época é afinal esse penteado? - perguntou Bordelaise, franzindo o sobrolho para o rabo-de-cavalo. - Finais dos anos sessenta, diria. - Davis deu um puxão ao rabo-de-cavalo hirsuto. - Quer dizer que não gosta? - Ponhamos a coisa nestes termos: tal como um tapete velho, já viu melhores dias. Ríamo-nos quando, com Dopplemann a arrastar-se atrás, embarcámos no iate. - Recordem-se, o jantar é às oito e trinta - relembrei. Depois, oh, tão descontraidamente, perguntei: - A propósito, alguém viu Montana por aí? Ninguém vira. - É a primeira vez que o mencionas desde esta manhã - comem tou Bordelaise. - Não estás a recalcar tudo, estás? - Tudo o quê? - Toda essa irritação que sentes contra ele. Não é bom. A cólera nunca leva a nada. Pensa racionalmente. Montana não te seduziria e depois desapareceria para nunca mais te querer ver. - Não me seduziu. Fui eu que o seduzi. - Ah, bem... estou a ver... Mesmo assim, é a mesma coisa. - Bordelaise estava a esforçar-se por me fazer sentir melhor, mas não estava a conseguir. - Sem dúvida que estará no bar às sete e trinta com o resto das


pessoas - acrescentou com jovialidade quando nos despedimos Ă minha porta.


PARTE VII TERCEIRO DIA REVELAÇÕES Raramente fazemos confidências aos que são melhores do que nós. ALBERT CAMUS Chovia no Norte de França, a chuva caía oblíqua e cortante, transformando a estreita estrada rural numa montanha-russa escorregadia. Montana controlava o Peugeot 460 alugado tão suavemente como um carro de corridas, voltando a grande velocidade ao aeroporto local em Tours. A pequena vila perto de Lê Mans, de onde acabara de sair, era um sítio desolador, tornado ainda mais desolador pelos céus cinzentos carregados e pela chuva fria. As casas escuras de tijolo, de portadas fechadas, não ofereciam nenhum dos encantos que os estrangeiros esperam de França e não duvidava que os habitantes da vila sentissem o mesmo. Era provável que ansiassem por fugir às estradas sem árvores e aos campos planos, onde apenas cresciam nabos e legumes de tubérculos, e às arcadas sem alma do centro comercial de cimento, dominado pelo feio supermercado, que seria apelidado de um borrão na paisagem, se a paisagem não fosse já de si tão horrível. O nome de Valentinois era a pista que levara Montana primeiro à região dos castelos do Loire e depois a uma pequena vila perto de Lê Mans. E agora sabia tudo o que precisava saber sobre Diane. Conduzindo através da chuva, teve por fim tempo para pensar em Daisy. Recebera um telefonema, do seu vice, às quatro daquela manhã. Não houvera tempo a perder, se queria tratar dos assuntos no Loire, voar depois para Nova Iorque para investigar a questão e conseguir voltar ao barco antes de ele aportar em Capri. Antes mesmo de amanhecer, voara de helicóptero para Nice, onde o Gulfstream de Bob o esperava, e depois para Tours e agora ia prosseguir para Nova Iorque. Não esquecera Daisy, mas não houvera simplesmente tempo para contactar com ela, tempo para mudar de agulha, do investigador para o amante, tempo para pensar


na coisa certa a dizer. Tudo o que podia fazer agora era telefonar e esperar que ela compreendesse. Daisy encantava-o, alegrava-o, fazia-o rir-se. Era uma espevitada maliciosa na roupagem de uma puritana, uma sedutora e uma mulher magoada e perturbada que escondia bem as suas feridas. Isto é, escondera, até conhecer Bob Hardwick. Bob atravessara-lhe a fachada com rapidez e agora também Montana. Chegou ao pequeno aeroporto e entregou o carro alugado a um empregado no sector dos jactos particulares e dirigiu-se rapidamente para o avião, detendo-se na pista para fazer o telefonema. Os motores do avião aceleravam e a chuva ainda caía. Era difícil ouvir, mas Daisy, de qualquer maneira, não atendia o telemóvel. Consultando o relógio, Montana calculou que o Elue Boat já partira. Era provável que Daisy estivesse a jantar, entretendo os suspeitos e amaldiçoando-o por deixá-la sozinha com eles. Apesar de a ter deixado no iate com um possível assassino, sabia que, de momento, Daisy se encontrava em segurança. Mas, se Bob lhe tivesse deixado todo o seu dinheiro, tornar-se-ia um alvo. Entretanto, os dois agentes a bordo mantinham uma vigilância constante; ninguém ameaçaria Daisy sem que os agentes caíssem sobre essa pessoa passado um segundo. Deixou uma mensagem: "Estou aqui no Norte de França chuvoso e solitário, sem ti. Podes calcular onde preferiria estar. Peço perdão, mas não houve tempo para te contar nada e, além disso, estavas a dormir tão tranquilamente que não teria sido correcto acordar-te. Vou a caminho de Nova Iorque. Telefono de lá. Entretanto, querida, continua a trabalhar bem." Não mencionou a palavra amor, nem sequer acrescentou um descontraído "Gosto de ti". Não tinha a certeza se ela teria querido que o fizesse. E, de qualquer modo, nunca dizia que gostava de ninguém. A massa chamuscada de metal preto retorcido, que era tudo o que restava do Lamborghini amarelo-canário de Bob Hardwick, tinha sido desencaixotada e estava na garagem de Nova Jérsia para onde Montana a tinha mandado transportar depois do acidente. Uma equipa de peritos forenses debruçava-se sobre ela, examinando o padrão das fracturas,


vasculhando o atoleiro de metal fundido que fora o motor. Estranhamente, duas coisas tinham sobrevivido. A estrutura do assento do condutor estava intacta, bem como o cinto de segurança, e a barra de protecção não estava sequer amolgada. - Estranho como estas coisas acontecem. Lamento ter demorado tanto tempo - disse Len Glazer. Era o perito que analisava destroços de aviões e veículos, aplicando a sua ciência para descobrir como é que os acidentes sucediam. - Mas foi mais complicado do que parece. Quase se poderia pensar que ele podia ter escapado se se tivesse afastado mais do carro. Com as mãos enfiadas nos bolsos, Montana fitou os destroços, pensando: se ao menos tivesse. Mas Bob morrera e agora Len ia contar-lhe como tudo acontecera. - Colhemos amostras do que resta do motor e enviámo-las para o laboratório. O resultado foi positivo para um explosivo. Não há dúvida que esta destruição foi provocada por uma bomba colocada directamente debaixo do motor. Foi detonada com um dispositivo de controlo remoto, muito provavelmente um telemóvel escondido no carro em modo de vibração. Tudo o que o bombista tinha de fazer era marcar o respectivo número. E pronto. Bob teria explodido em pedacinhos. Mas eis o que acredito que aconteceu. Bob parou o carro e saiu para esticar as pernas ou aliviar a bexiga. Ao caminhar pela estrada, alguém marcou o número do telemóvel colocado no carro, a bomba detonou e o carro explodiu. Bob foi apanhado pela deflagração e atirado pela borda do penhasco. Não foi morto em consequência directa da bomba. Foi por isso que não ficou completamente queimado como o carro. - Queres dizer que, se tivesse andado mais alguns metros, poderia ainda estar vivo? Len assentiu. - Era provável que o telemóvel estivesse escondido debaixo do assento. Montana apertou a mão do seu velho amigo. Tinham trabalhado juntos antes e conheciam-se bem. - Obrigado, Len. Desculpa não me poder demorar e tomar um copU contigo, mas tenho de voltar ao trabalho.


Bateu no ombro de Len, já a sair a porta, dirigindo-se para onde o seu principal assistente o aguardava, ao volante de umapickup preta Ford F250 de cabina dupla. - É como pensávamos - disse Montana secamente e contou-lhe o que sucedera. - O que precisamos de fazer agora é verificar todas as chamadas feitas dos telemóveis dos suspeitos nesse dia. O assistente lançou-lhe um olhar céptico. - É tudo, é? Montana sorriu. - Hei, já o fizeste antes, pá. Vamos fazê-lo de novo, nem que tenhamos de assaltar os escritórios da companhia telefónica. Mas porque não começar com o território específico dos nossos suspeitos? Estão todos a bordo do Blue Boaf, por isso temos rédea livre. Os escritórios de Farrell são aqui mesmo em Nova Iorque e o seu apartamento fica perto. Dopplemann também aqui esteve, num Motel perto do aeroporto. E Charlie Clement ficou no Waldorf Towers. Qualquer deles o podia ter feito. - E qualquer das mulheres também. Pode-se ligar do estrangeiro, sabes? Montana acenou com a cabeça. Claro que sabia. O que não sabia era qual das mulheres teria conseguido encontrar alguém para colocar a bomba por ela. Mesmo assim, o velho ditado "Querer é poder" também se aplicava ao crime. Tudo podia ter acontecido. O Lamborghini de Bob estivera na oficina durante uma semana antes do acidente e depois fora levado para uma garagem no edifício de escritórios. Não havia espaço suficiente para estacionar os três carros de Bob no seu apartamento e ele deixava muitas vezes um ou outro na garagem do escritório. A pessoa que colocara a bomba, observara a bagagem arrumada no carro e percebera que Bob usaria o carro desportivo. Teria sido fácil entrar na garagem. Levaria menos de um minuto a plantar o explosivo e o telemóvel. Morte ao segundo. Montana soltou um suspiro, sofrendo ao pensar no que podia não ter sucedido. - Tratas tu aqui do assunto - disse. - Eu cuido do lado europeu. E agora, velho amigo, tenho de apanhar um avião. O Gulfstream de Bob estava à espera na pista em Teterboro. Montana telefonou e disse ao piloto para se preparar para descolar, chegaria dentro


de dez minutos. Solucionara a primeira parte do quebra-cabeças. Já não apenas provável... era definitivamente assassínio. Na manhã seguinte, encontrava-me na coberta da popa, a inspirar fundo, grandes golfadas de ar puro com sabor a maresia. Passaríamos o dia no mar a caminho de Sorrento. O iate deslizava tão suavemente através das ondas que parecia que estava num hotel em terra; o céu era de um azul sem nuvens, o Sol brilhava e Montana ainda não regressara. Verificara o telemóvel, mas não havia mensagens, apenas um zumbido incompreensível. Na noite anterior o jantar fora de pesadelo. Filomena e Diane não se falavam, Charlie Clement não saíra do bar e Dopplemann desaparecera de novo, só que desta vez fora para o quarto. Rosália parecia preocupada e Hector queria saber onde é que Montana estava, precisava de falar com ele. Davis venceu Brandon no seu próprio jogo de gamão, ficando-lhe com algumas centenas de dólares que eu sabia Brandon não se podia dar ao luxo de perder e Texas coxeava de muletas, emborcando analgésicos e com um ar infeliz. E Montana continuava sem aparecer. - Que se lixe - dissera Bordelaise melancólica, pedindo outra bebida no bar depois do jantar. - vou ficar satisfeita quando este cruzeiro acabar. "E eu também", pensei zangada. Agora, no entanto, Bordelaise aparecera envergando um reduzido biquini cor-de-rosa. Pensei que lhe ficava muito bem. Disse olá, eu respondi com outro olá, ainda mal-humorada por causa dos suspeitos e de Montana. Ela pegou num livro e começou a ler. Atirei-me para a cadeira ao lado dela e pus as mãos atrás da cabeça, fitando o céu. Sempre era uma mudança em relação ao mar, embora ambos tivessem o diabo do mesmo azul. Bordelaise pousou o livro, Lua-de-mel em Paris, reparei no título. - Calculo que não tenhas tido notícias dele - comentou. - Não. - E isso chateia-te. - Chateia. - Que tal um copo de champanhe? - Demasiado cedo. Bordelaise suspirou e endireitou-se, na cadeira.


- Caramba, mas não é que estamos a ser umas crianças mimadas? Dir-se-ia que és a primeira mulher a ser abandonada por um homem. Ou lhe dás o benefício da dúvida ou passas simplesmente à frente. Olhei para ela, indignada. - Pensei que estavas do meu lado. - Não quando o teu lado é uma chatice. - Oh, muito obrigada! - Podia ter sido mal-educada e ter dito uma coisa pior, mas repara que não disse - declarou Bordelaise. - Ainda podes. É verdade, eu sei. - De súbito arrependida, estendi o braço e peguei-lhe na mão. - A verdade é que me importo. Sei que não devia, sei que devia ser só uma aventura, um caso rápido que terminaria, se calhar, dentro de uma semana, mas agora fui apanhada na minha própria armadilha. Logo eu, Bordelaise, que nunca mais queria apaixonar-me por um homem. E, quando me apaixono, olha só o que acontece. Ele deixa-me sem sequer um obrigado, gostei de te conhecer. - Às vezes é isso que sucede. Mas aposto que desta vez não é. Ele vai voltar. Folheei o livro dela. - Afinal de que é que isto trata? - Homem conhece mulher. Homem abandona mulher. Mulher abandona homem. Só que se passa tudo em Paris e num passeio pela França, param em pequenas estalagens românticas e há uma tempestade, amam-se e detestam-se e amam-se outra vez. É acerca de uma mulher que se encontra, Daisy. Pode ser que o queiras ler. Atirei-lhe uma olhadela desconfiada. - Talvez. Entretanto jurei que nunca mais ia comer, mas que tal almoçarmos cedo? Com o livro Lua-de-Mel em Paris enfiado debaixo do meu braço em vez do de Bordelaise, empanturrámo-nos com hambúrgueres, batatas fritas e Coca-Colas e gozámos com o sentimento de culpa. Às quatro da tarde, arrastei-me para o spa no convés superior, onde planeava reanimar-me com uma pequena massagem. Esbarrei em Ginny no balneário e abracei-a num impulso, satisfeita por ver um rosto em que podia confiar.


- Hei, como vão as coisas? - Fantástico... tudo óptimo... - respondeu, mas não parecia muito segura. Sabe onde está Montana? - perguntou. - Preciso de falar com ele. Estava a começar a parecer que toda a gente precisava de falar com Montana. - Abandonou ontem o barco. Não sei onde foi. Ginny franziu o sobrolho. - Na realidade é bastante urgente. As minhas orelhas arrebitaram-se. Saberia de alguma coisa? - Posso ajudar? Montana e eu trabalhamos juntos para Bob, sabe isso. Lançou-me um olhar preocupado por baixo das pestanas pretas espetadas. Parecia prestes a dizer-me, mas depois, de repente, mudou de ideias. - Não, não, não posso dizer-lhe, não seria correcto. Tenho de falar com Montana. - Muito bem, então temos de esperar que volte. Calculo que apareça antes de chegarmos a Capri. - Desejei estar tão convencida como parecia. Aprecie a sua massagem, querida - continuei, começando a falar no vernáculo de Yorkshire. - Também vou fazer uma. Ginny sorriu-me abertamente, voltando com rapidez ao seu velho eu desenvolto. - Ora, Daisy querida, quase parece que é do Yorkshire. E engraçado, não é - acrescentou - como se sente a falta dele? Mesmo aqui neste iate fabuloso, vendo todos estes lugares maravilhosos, continuo a pensar em Sneadley, nas azáleas que despontarão em breve nos jardins do solar e em como vamos sentir, este ano, a falta da festa da aldeia no solar. Adoro ouvir tocar a velha banda filarmónica da fábrica ao crepúsculo, apesar de já não existirem mais fábricas, nem minas de carvão e os rapazes da banda serem demasiado jovens para terem tocado quando elas existiam. Garanti-lhe que até que o solar de Sneadley fosse vendido ainda daríamos a festa da aldeia nos seus relvados e que depois eu informaria pessoalmente os novos proprietários sobre a tradição e conseguiria que eles concordassem em mante-la. - Assim, terão a vossa festa e a banda filarmónica, o arremesso de bolas aos cocos, a quermesse e o concurso do pão-de-ló que a senhora Wainwright vence sempre. E prometo que irei todos os anos para estar


com vocês todos. Meus amigos - acrescentei, com os olhos um pouco lacrimosos. Pouco tempo depois, deitada na mesa das massagens com uma escandinava forte e sorridente a martelar-me, ainda pensava no que Ginny teria para dizer que era tão importante e que só podia contar a Montana. A minha massagem mudou para música New Age, colocaramme pedras quentes ao longo da coluna, transmitindo-me calor e uma sensação de bem-estar e passei pelas brasas, sem sonhos, a minha mente desta vez perfeitamente vazia. Mais tarde, continuei com uma limpeza de pele hidratante. Estava deitada de costas, os meus músculos tinham-se liquefeito, os meus olhos estavam escondidos sob fatias de pepino e o meu cabelo enfaixado numa toalha branca. A indolência assumira o controlo. Não queria ver ninguém, ir a lado nenhum, especialmente a outro jantar com os suspeitos. Na realidade, tudo o que queria era comer uma sanduíche, de roupão, em frente da televisão com Rats no meu colo a tentar roubar-lhe uns pedacinhos. Queria tanto estar em Sneadley com tudo tal como costumava ser antes de ouvir sequer falar em Harry Montana. - Daisy. Levantei uma fatia de pepino e vi Filomena por cima de mim, envolta numa toalha de banho, sem mais nada vestido. - Invejo-a, Daisy, está com um ar tão descontraído - disse. Tinha um aspecto cansado e preocupado. Alguma coisa devia ter acontecido. Lançou-me um olhar demorado e depois encolheu os ombros como só uma italiana consegue fazer, abanando o cabelo para trás, erguendo um ombro gracioso, enviesando o queixo por cima dele e olhando com petulância para baixo do nariz. - Estou tão cansada - queixou-se. - Exausta, de facto. Não fazia ideia que um cruzeiro pudesse ser tão esgotante. - É a excitação toda, suponho. E todas essas refeições e termos de nos aperaltar todas. Estou a começar a ansiar por uma sanduíche de roupão vestido em frente da televisão. O rosto iluminou-se-lhe e bateu palmas, pondo em perigo a toalha de banho e o seu pudor.


- Daisy, que ideia brilhante. Porque não fazemos isso? vou ter consigo e comemos uma sanduíche. Ia gostar tanto. "Oh, meu Deus", pensei, "olha agora o que fiz!" - Bem, não sei, sou a anfitriã, devia estar presente no jantar respondi cautelosamente. - Ora, que se lixe ser a anfitriã. E o jantar foi uma tortura a noite passada. Vamos convidar só as mulheres; os homens que se arranjem sozinhos desta vez. Porque não, Daisy? Vai ser divertido. Estava tão desejosa que eu dissesse que sim que cedi e combinámos às sete e trinta na minha suíte, com os nossos roupões vestidos e sem maquilhagem. - Mas tenho de dizer a Diane - avisei. - Oh, Diane que se lixe. - Atirou com o cabelo. - Não sou obrigada a falar com ela. - Muito bem, vou organizar tudo - retorqui. Para minha surpresa, todas as mulheres vieram, todas com os seus roupões turcos brancos e sem maquilhagem, bem, excepto talvez um pouco de blush e lápis das sobrancelhas (Diane) e brilho bronzeador (Filomena). Para além disso, estávamos mais ou menos como Deus nos fez, mais alguns anos em cima. Rosália surpreendeu-me aparecendo com Magdalena e a pequena Bella, que sentámos em frente da televisão com um vídeo da Disney com o som baixinho e uma fatia de pizza, o seu prato favorito. Tinha um aspecto tão adorável com o seu pijama azul que, durante um minuto, pensei com nostalgia no que perdera por não ter tido um filho. Texas entrou a coxear nas suas muletas, parecendo ainda mais adorável com o rosto despido de maquilhagem. Ginny também veio, com a pele limpa e de faces rosadas, o cabelo amarelo atado ao alto com uma fita vermelha, roliça no seu roupão branco e não muito diferente de uma bonequinha Kewpie em cima da árvore de Natal. Diane soltara o cabelo comprido de um ruivo cor de fogo e parecia vários anos mais nova, à excepção dos olhos. Tinham uma expressão enfastiada do mundo que nem sequer a ideia de uma sanduíche de fiambre conseguia apagar. Ignorou ostensivamente Filomena, que parecia a Bardot dos primeiros anos, cabelo louro num rabo-de-cavalo, uma rapariga de um cartaz


publicitário a uma praia mediterrânea. Bordelaise parecia ter uns dezasseis anos e eu... Bem, suponho que parecia simplesmente abatida. Não dava uma festa de pijama desde miúda, há tempo suficiente para constituir uma recordação muito distante. Mas, de qualquer modo, aqui a bordo do Blue Boat, as coisas eram diferentes. Um empregado serviu rose gelado enquanto outro trouxe hors doeuvres deliciosos. Havia pratos de sanduíches, queijo e fiambre, salada de ovo, salada de atum, bacon, alface e tomate, salsicha italiana... Quando se pediam sanduíches no Blue Boat, recebiam-se mesmo sanduíches, e atacámo-las com tais gritos de deleite que se pensaria que não comíamos há uma semana. Mudámos para o convés para ver o pôr do Sol, estendendo-nos em espreguiçadeiras, pratos no colo, copos de vinho ao lado. Ginny veio empoleirar-se aos pés da espreguiçadeira de Diane e Diane lançou-lhe um longo olhar antes de tirar um toalhete da mala e limpar ostensivamente a cadeira. Filomena sentava-se o mais longe possível de Diane. Enchera o prato de sanduíches e comia com voracidade. Texas disse que adorava presunto Serrano e mordiscou apenas isso e um pouco de queijo, sem pão, e eu observei que devia ser daquela maneira que mantinha a sua bela figura. - Às vezes, é isso, outras vezes, é fome involuntária - replicou Texas. Filomena ergueu os olhos do seu prato. - Involuntária? O que quer dizer com isso? Texas encolheu os ombros. - Por vezes não aparece trabalho, o dinheiro é pouco e não tenho o suficiente para muito mais do que um hambúrguer do McDonalds. Se é que tenho. Remetidas ao silêncio, fitámos com sentimento de culpa os nossos pratos cheios. - Percebo o que quer dizer - disse Rosália com suavidade. Quando era nova era pobre e tinha três filhos para alimentar. – Sorriu ao olhar para Magdalena, que estava no camarote, sentada no chão a ver o vídeo com Bella. - É uma sorte que as crianças não percebam que são pobres. Onde vivíamos, toda a gente era igual, era simplesmente assim que a vida era. Todos comíamos a mesma coisa, arroz e os legumes meio estragados que sobravam no fecho do mercado, talvez com um osso do talhante para


fazer uma sopa. - Sorriu. - Foi nessa altura que aprendi a cozinhar, tentando fazer o máximo com o pouco que tínhamos. Fitei-a, desconcertada. Esta era a mulher de Bob Hardwick, o seu amor Bastar-lhe-ia telefonar e Bob ter-lhe-ia dado tudo o que precisasse. Qualquer coisa que quisesse. Mesmo até ao fim dos seus dias, tê-lo-ia feito. Recordei-me do maço de cartas guardado no cofre do meu quarto e decidi ir ter com ela sozinha, mais tarde, e devolver-lhas. Uma coisa sabia com toda a certeza: esta mulher não assassinara Bob. - Também cresci pobre - declarou Filomena do canto, junto à amurada, onde estava sentada. - O meu pai era o padeiro da região, por isso nunca nos faltou comida, mas nunca havia dinheiro suficiente para a mãe comprar roupas novas e sapatos bonitos. - Suspirou. - Talvez seja por isso que tenho um armário cheio deles, alguns que nem sequer usei. Encolheu de novo os ombros, à maneira italiana. Quando vejo sapatos bonitos, tenho de comprá-los, não consigo simplesmente resistir. - Freud dar-lhe-ia boa nota por essa análise psicológica - disse Diane de modo desagradável. Os olhos de Filomena faiscaram. - Então qual é o seu passado, Diane? Vamos, conte a verdade, só estamos nós aqui, as mulheres. Diane arrasou-a com um olhar duro e depois fitou-nos, empoleiradas nas bordas das nossas cadeiras, à espera do que ela ia dizer. - Claro que tive a sorte suficiente de ter nascido numa família nobre declarou com orgulho. - Era filha única e os meus pais estragavam-me com mimos, mas... - Soltou um suspiro teatral. - Queria mais do que a vida num castelo, os bailes de debutantes, as festas. Queria ser uma estrela de cinema, como Catherine Deneuve, ou uma cantora, e viver uma vida boémia com um amante em Paris, uma Jane Birkin... Mas depois conheci Bob Hardwick e ele apaixonou-se loucamente por mim. - Equilibrando o copo no prato, virou a cabeça para Filomena. Eu fui o amor da vida de Bob, sabe. Ficou devastado quando o deixei. - Soltou outro suspiro e pensei que teria dado uma actriz muito má. - Mas já não aguentava mais ser propriedade de um homem rico. - E então em que é que se tornou quando o deixou? - Os pequenos dentes de gata de Filomena cintilaram, cor de pérola, num sorriso malvado. - Uma


actriz famosa? Uma cantora como Jane Birkin? A mulher de outro homem rico? Ou apenas uma mulher divorciada com o vício do jogo? Da noite serena de um azul-cobalto surgiu de repente uma rajada furiosa de vento que fustigou o convés, fazendo voar o copo de Diane e derramando vinho por cima dela. O vento amainou tão depressa como viera e Diane ofegou. Alarmada, tirou os toalhetes da mala e limpou as nódoas com cuidado. - Vai haver alguma tempestade? - perguntou, mas o mar estava calmo e o céu nocturno apresentava um azul límpido. Chamei um empregado para limpar a confusão, servi mais vinho e ofereci as sanduíches. Toda a gente tirou pelo menos mais duas. - Bem, no final de contas são pequenas - disse Bordelaise, desculpando-se com um sorriso. Percebi que se estava a divertir. - O problema é que - disse Filomena com um olhar triste - não sei se terei essa sorte outra vez. Não sei se encontrarei alguma vez outro homem rico como Bob. Não pude deixar de perguntar se era isso que queria, encontrar outro homem rico que tomasse conta dela. - E tudo o que sei fazer - retorquiu com simplicidade. - Ser a namorada de um homem rico. Tinha dezanove anos quando conheci Bob. Nunca frequentei a universidade, nunca tive um emprego, nunca tive oportunidade de aprender a fazer outra coisa qualquer. Tudo o que sei tem a ver com roupas, compras e jóias. Não faz ideia de como lastimo esses anos desperdiçados. - Com a sua beleza podia ter sido uma estrela de cinema - comentou Bordelaise, mas Filomena abanou a cabeça. - Sou uma lástima em frente das câmaras. "Uma nódoa", disse-me um realizador quando fiz uma audição para um papel. - Franziu o sobrolho. Achei que foi um pouco cruel. Concordámos que sim, todas excepto Diane, que bebeu mais vinho, fitando com ar sinistro a sua rival. - Não acredito em vocês as duas - disse Ginny. - Têm tudo: beleza, vidas glamorosas em sítios glamorosos, oportunidades. Tudo o que eu tive foi uma vida simples numa aldeia do Yorkshire, mas estou a começar a pensar que me deviam invejar era a mim. Tive uma infância maravilhosa;


tínhamos porcos no campo e um pónei turbulento no alpendre atrás das estufas do pai. Tínhamos um par de cães, que dormiam no sofá, e alguns gatos pretos que largavam pêlo por cima de tudo. A casa era demasiado pequena e estava sempre numa confusão e os meus irmãos e irmãs andavam sempre à bulha, mas deram umas palmadas na mandona da escola quando ela começou a perseguir-me e disseram-lhe para nunca mais o fazer outra vez, ou então ia ver o que doía. Nunca aceitei dinheiro de um homem e nunca casei, mas não por falta de pedidos, foi por minha escolha. Saberei quando tiver encontrado o homem certo e, se não o encontrar, bem, serei sempre Ginny Bunn, a melhor empregada de bar que o pub Rams Head de Sneadley já teve. Rosália, que conseguira seguir a maior parte do que fora dito, declarou: - Bravo, Ginny, tem razão em gostar de quem é e do que é. É isso que uma mulher deve sentir. Que pena que não haja mais que o sintam também acrescentou. – Não se deve subestimar, Filomena. É bela e ainda jovem, mas não são esses os seus únicos trunfos. Filomena baixara a guarda. Sabia que se sentia uma incapaz e que pensava não ter nada para oferecer e, de súbito, senti pena dela. Tinha a certeza que não matara Bob, por mais desesperada que estivesse por dinheiro. Magdalena veio dizer que eram horas de Bella ir para a cama. Dei-lhe um beijo de boa noite e, com um último piscar de olhos de Bella, foram-se embora. Detive Rosália antes que saísse. Fui buscar o envelope castanho ao cofre e entreguei-lho. Olhou para o maço de cartas. - Nunca compreenderá como foi difícil para mim devolvê-las. Não culpo Bob, nunca culpei. Um homem deve seguir o caminho que escolheu. Mas, por outro lado, minha querida Daisy, uma mulher também. Aguardei, esperançosa, que dissesse mais alguma coisa, mas, com as cartas comprimidas contra o peito e as lágrimas a cintilarem nos olhos, beijou-me em ambas as faces. - Obrigada por tomar tão bem conta de Roberto nos seus últimos anos murmurou, ao partir. - Sei que também a deve ter amado. Ginny espreitou para o quarto e, vendo que eu estava sozinha, disse: - Já não posso guardar isto só para mim. Ia contar a Montana, mas estou ansiosa por despejar tudo. Já não consigo simplesmente continuar a olhar


para aquele homem, sabendo o que sei sobre ele. A boca cerrou-se com firmeza e os olhos faiscaram furiosos. - Aquele filho da mãe - rosnou. - Quem? - Charles Clement. Toda a gente lhe chama Charlie, como se isso o tornasse mais simpático. Sentei-me na cama e dei uma palmadinha no espaço ao meu lado. - Venha sentar-se aqui, Ginny, e conte-me tudo. - Na realidade, a história é da senhora Wainwright, não minha - explicou -, mas toda a gente na aldeia sabia do caso. Sabe como Bob era, sempre a convidar pessoas para o solar. Nalguns fins-de-semana eram só homens. - Recordo-me. Eu tratava de tudo e depois voltava para Londres e deixavaos com as suas coisas de rapazes. - Ah, rapazes! - exclamou Ginny com amargura. - Pois, Bob convidava este Charlie Clement algumas vezes, para a caça e coisas do género. Então, uma vez, Charlie traz uma rapariga com ele. A senhora Wainwright estava no átrio quando eles chegaram e Charlie apresentou a rapariga. A senhora Wainwright disse que percebeu que Bob não aprovava, achava que ela era demasiado nova e ela também achou o mesmo. Bem, sabe como é a senhora Wainwright, é um pouco bisbilhoteira e, mais tarde, perguntou à rapariga que idade tinha. Ela disse-lhe que tinha dezoito, mas ela não acreditou. - Oh, meu Deus, Ginny, está a dizer-me que era menor de idade? Ginny acenou com a cabeça. - Falou do assunto a Bob e ele chamou a rapariga à parte, perguntou-lhe o que andava a fazer. Ela chorou e disse que não era uma prostituta, só fazia isto com homens como Charlie, que gostavam de meninas do liceu e que ele pagava bem. Depois admitiu que tinha ape- nas treze anos. - Oh... meu... Deus... - Bob perdeu as estribeiras. Esmurrou Charlie, atirou-o ao chão, mesmo em frente da rapariga e ela ficou ali pasmada, aos risinhos como uma criança. A senhora Wainwright disse que nunca sentiu tanta pena de alguém em toda a sua vida. E ouviu Charlie Clement jurar vingar-se de Bob. "Não penses que sou o único", disse Charlie num tom de voz desagradável. "És simplesmente como o resto de nós, Bob Hardwick." Por isso, Bob voltou a bater-lhe e, desta vez, deixou-o inconsciente. Bob


mandou emalar as coisas de Charlie em minutos e levaram-no de carro à estação, exibindo um grande olho negro e, sem dúvida, com uma grave dor de cabeça. Creio que Bob descobriu de onde vinha a rapariga, quero dizer, onde era a casa dela, não onde vivera em Londres. A senhora Wainwright contou que a levou até lá e falou com os pais e ela pensa que Bob se ofereceu para os ajudar. Disse também que ficou com a nítida impressão que Charlie Clement trouxera a rapariga como uma espécie de presente para Bob. Consegue imaginar tal coisa? - acrescentou Ginny. Abanei a cabeça. Agora entendia por que razão Charlie podia ter enganado Bob. Queria vingança. Prometi contar a Montana quando este chegasse e, nessa altura, Texas entrou a coxear no quarto. - Pensámos ir até ao bar - disse jovialmente. - Talvez até cante para vocês esta noite. Ginny animou-se, entusiasmada. - Então vou vestir-me - exclamou. - Não posso ir àquele bar elegante de roupão, não é? Acompanhei as minhas convidadas à porta, empoei o nariz, pus um pouco de batom e enverguei o meu velho "uniforme" de calças pretas, top preto e sabrinas rasas pretas. Bob tinha razão. Os suspeitos estavam a começar a revelar-se. Era como descascar as camadas de uma cebola até que no centro descobriríamos a verdade. No bar, vi que Texas vestira também "um vestidito", mas o dela era um pouco mais glamoroso: um chiffon cinzento que faiscava prateado quando se movia. Encostando-se ao pequeno piano de cauda, cantou canções apaixonadas e doces sobre o amor e os corações despedaçados: "Smoke gets in your eyes", "My funny valentine", "Spring is here". E, por fim, "Body and soul". Parecia uma forma apropriada de terminar a noite. Era tarde e toda a gente saíra do bar excepto Dopplemann. Sozinho no escuro e no silêncio, apenas com o troar suave dos motores enquanto o iate deslizava pelas ondas dirigindo-se para Sorrento, pensava de novo por que motivo seria que Bob Hardwick o tinha convidado para este cruzeiro de "despedida", em especial porque fizera recentemente um tremendo esforço e regressara a Nova Iorque com a intenção de esclarecer as coisas


com ele. Mas Bob recusara-se a vê-lo. "Sir Robert está muito ocupado", informara-o um assistente. "Vai ter reuniões o dia todo." Dopplemann dissera que podia esperar. "Sir Robert vai ter reuniões pela noite dentro", afirmara secamente o assistente. Era óbvio que não sabia quem Dopplemann era, mas também Dopplemann já desaparecera há muito tempo. Não sabia se o homem se dera sequer ao trabalho de dizer a Bob que ele estava ali à espera; para ele, era apenas um homem excêntrico e mal arranjado que não parecia nada. Um homem que não era nada, graças, claro, a Bob. Ouviu os passos de uma mulher e ergueu a cabeça, nervoso. Ela hesitou, espreitando no escuro, como se à procura de alguém; depois deu um passo em frente e a luz apanhou-a. Era Daisy. Dopplemann encolheu-se no seu canto escuro. Ela não o viu e foi ajoelharse num sofá junto à janela. Apoiou a cabeça nos braços, fitando o mar nocturno. - Daisy - disse ele em voz baixa. Ela rodou sobre si. - Oh, meu Deus - sussurrou, parecendo atemorizada. - Herr Dopplemann. - Peço desculpa se a assustei. E, por favor, chame-me Marius. Foi o nome que a minha mãe me deu, após muita discussão. O meu pai queixava-se que era muito romântico; dizia que era um nome para compositores e artistas, não para homens como nós. De qualquer modo, a Mutti levou a melhor e lá fiquei Marius, embora pareça que me trataram durante a maior parte da minha vida pelo meu apelido. Ela fitava-o, com os olhos esbugalhados. - Não conseguia dormir - explicou ele. - Presumo que você também não. Sem ser convidado, sentou-se no sofá ao lado dela e sentiu-a retrair-se e afastar-se dele. - Há alguma coisa que a preocupe? - perguntou cortesmente. - Não... Bem, sim... Muitas coisas... Bob... Ele fez estalar a língua compreensivo. - É perturbador celebrar a morte de alguém, mas não foi isso que o próprio Bob quis? Daisy afundou-se nas almofadas do sofá. Virou-se para olhar para ele. - Não é só isso...


- Quer contar-me? Daisy estava intrigada. Dopplemann agia como um ser humano. Talvez fosse por estarem sozinhos no escuro, no meio do mar, isolados da realidade. Decidiu entrar no jogo. - Herr Dopplemann... - Marius - corrigiu-a ele. - Marius, já alguma vez esteve apaixonado? - Sim, estive apaixonado. Foi a época mais dolorosa da minha vida. - Mas porque foi tão dolorosa? Dopplemann tirou os óculos e, com o habitual gesto nervoso, começou a limpá-los com o pano macio que guardava no bolso do casaco. - Porque ela me traiu. - Voltou a pôr os óculos e, surpreendentemente, sorriu-lhe. - As mulheres são assim às vezes, foi o que ouvi dizer. Chamava-se Magali e era húngara. São uma raça arrebatada, sabe, sempre a guerrear ou a amar, o que seja mais importante no momento. - Encolheu os ombros. - Pedi-lhe que casasse comigo. Estava loucamente apaixonado, pronto para lhe dar todo o dinheiro que tinha, tudo o que possuía. Mas, quando ela pediu o que na realidade queria, disse-lhe que o preço era demasiado elevado, não podia fazê-lo. Ela suplicou, ameaçou, tentou convencer-me. Prometeu casar-se comigo no dia seguinte se lhe desse o que ela pedia. "Ficas rico para toda a vida", disse-me, mas eu respondi que a riqueza não era o que eu queria. Tirou outra vez os óculos e limpou-os muito agitado. - Claro que eu devia ter percebido que ela trabalhava para uma potência estrangeira e que só queria o meu saber. Queriam que espiasse para eles. Que vendesse os segredos da América. - Dopplemann fez uma pausa. - E, em troca, eu ficaria com a mulher que desejava. Voltou a pôr os óculos. Torcia as mãos com tanta força que as veias sobressaíam. - Bob preocupara-se sempre amigavelmente comigo; dizia que não acreditava que eu fosse um homem prático, que estava sempre demasiado envolvido nos meus devaneios científicos. Conhecera Magali e, como toda a gente, não percebia por que razão uma mulher bela e sagaz, conhecedora do mundo, andava comigo. - Encolheu de novo os ombros. Magali organizou um encontro com um agente num parque em


Washington. De alguma maneira, Bob ficou a saber da coisa. Seguiu-me, adivinhou o que se passava. "Escumalha", chamou-me. "Este país tem sido muito bom para ti e agora vais entregá-lo por uma mulher reles que te domina por completo e se está borrifando para ti, uma mulher que te abandonará mal consiga o que quer. És um cientista brilhante", disse-me, "mas és um idiota. Qualquer homem que considere a hipótese de vender o país que lhe concedeu todo o reconhecimento público, todas as oportunidades... não é meu amigo. E assegurar-me-ei que não sejas amigo de mais ninguém." Por trás dos óculos, os olhos verdes sem brilho de Dopplemann cruzaramse com os olhos aturdidos de Daisy. - Porque não cometera propriamente o delito, Bob deu-me uma hipótese. Se saísse de imediato do país, ele não diria nada. "Inventa uma desculpa", disse, "uma questão de saúde, familiar... qualquer coisa. Parte simplesmente." Se não, denunciar-me-ia ao FBI. - Assim, claro que se foi embora - disse Daisy, soltando um suspiro de alívio. Dopplemann ergueu os olhos inexpressivos para os de Daisy. - Pedi a Magali para vir comigo. Ela riu-se de mim, disse que eu era desprezível, que já não lhe servia para nada, não tinha utilidade para ninguém e que era como se estivesse morto. Tenho rezado muitas vezes nestes últimos anos para arranjar ânimo para lhe perdoar e perdoar Bob, porque me arruinaram a vida. Bob podia ter fechado os olhos, podia terme deixado ficar, deixar-me prosseguir com o meu trabalho. No final de contas, eu era o melhor do mundo... - Então nunca lhe perdoou. - Daisy compreendia agora qual era o móbil de Dopplemann para o crime. - Tinha sido o melhor. Agora, por causa de Bob, não era ninguêm. É impossível perdoar isso. - Dopplemann levantou-se. Repuxou o casaco, endireitou a gravata, tossindo com nervosismo ao ajustar de novo os óculos. - Nunca falei disto a ninguém. Há muito tempo que está dentro de mim, mas aqui, no barco, longe de tudo, e porque conheceu tão bem Bob, achei que podia falar consigo. Daisy ergueu-se.


- Obrigada por me fazer confidências - disse, de súbito outra vez receosa. Ansiosa por se ir embora, quase correu para a porta, mas ele seguiu-a. Não vou esperar pelo elevador - declarou, precipitando-se para as escadas. - Boa noite, Herr Dopplemann. Marius - ouviu-o corrigi-la, enquanto corria pelas escadas acima de volta à segurança do seu camarote. Trancou a porta e encostou-se a ela pelo lado de dentro a ofegar. Não sabia como é que conseguira estar ali sentada com um assassino enquanto ele lhe abria o coração e falava do seu amor perdido e de como Bob o traíra. Dopplemann era verdadeiramente louco. Sentou-se na beira da cama, atirou com os sapatos e afundou-se contra as almofadas. Uma luz vermelha piscava no telefone. Uma mensagem! Tinha de ser de Montana. Agarrou no telefone, mas era apenas Texas a pedir-lhe para lhe telefonar logo de manhãzinha, tinha uma coisa importante para lhe contar sobre Charlie Clement. Daisy pensou que nunca mais acabava. Era tal e qual como Bob dissera na carta. Todos os suspeitos estavam a começar a revelar as suas verdadeiras personalidades. E os seus móbiles para o crime.


PARTE VIII QUARTO DIA SORRENTO E CAPRI ANTES DA TEMPESTADE Um homem nunca será demasiado cuidadoso na escolha dos seus inimigos. OSCAR WILDE O RETRATO DE DORIAN GRAY Montana ia no seu terceiro expresso num café na marina de Sorrento quando, como uma miragem de Verão, o Blue Boat surgiu no horizonte. Não se sentia nada bem e ansiava por uma boa noite de sono. Passando uma mão cansada pelo queixo com a barba por fazer, pensou se Daisy ficaria contente por o ver ou se estaria tão irritada por esta altura que lhe dispensaria o tratamento glacial em que as mulheres são tão boas. Daisy preenchera-lhe os pensamentos durante os longos voos no jacto Gulfstream de Bob Hardwick, encafuado a trinta mil pés em assentos de pele de um cinzento cor de prata, com os ouvidos a zumbir de demasiadas viagens de avião em tão pouco tempo. Não lhe apetecia comer, não lhe apetecia dormir; cobrira simplesmente os olhos com uma máscara e tentara relaxar, levantando-se de vez em quando para andar de um lado para o outro. E para pensar. Juntara a maior parte das peças do quebra-cabeças e as respostas eram surpreendentes, tal como o móbil para o assassinato. Não tinha ainda provas suficientes para acusar o assassino, mas, em Nova Iorque, no seu quartel-general tecnologicamente avançado, onde, hoje em dia, decorria a maior parte da investigação, havia homens a trabalhar nisso. Examinavam os computadores à procura de documentos, extractos bancários, transacções de bens imobiliários, certificados de nascimento,


identificações e registos prisionais. Neste momento, Montana pensava que a vida estava cheia de surpresas e algumas eram muito inusitadas. Observou o Blue Eoat a lançar a âncora. Conseguia ver alguns dos passageiros debruçados na amurada, fitando os penhascos de Sorrento de um dourado-pálido, aspirando os primeiros aromas dos limoeiros e das laranjeiras. As vinhas derramavam-se pelas encostas e hotéis rococó da BelleÉpoque, empoleiravam-se mesmo na borda dos penhascos. Barcos de pesca de cores vivas zoavam pelo porto, trazendo a sua pescaria, uma promessa de bom marisco para o almoço e, pairando sobre a marina, ouvia-se o zumbido excitado do matraquear rápido da língua italiana. Em qualquer outra altura, Montana teria ficado encantado com isto, mas, neste momento, estava a pensar em Daisy. Hoje ia pô-la à frente de tudo, compensá-la por ter desertado sem qualquer explicação. Esperava que tivesse recebido a sua mensagem telefónica e tivesse compreendido, mas não apostava nisso. Uma lancha Chris-Craft emergiu do convés inferior e alguns passageiros subiram a bordo. Marcou o número de Daisy. - És tu? - disse quando ela atendeu. - Não devia ser eu a fazer essa pergunta? - A voz era gélida como um iglu no Inverno. - Devias. Mas queres saber a resposta? - E um assunto que me é completamente indiferente. - A nível profissional ou pessoal? Fez-se silêncio e depois ela disse: - Estou a trabalhar para Bob, por isso discutirei contigo questões profissionais. O nível pessoal não existe entre nós. - E se eu pedisse desculpa e dissesse que era inevitável? - Não preciso de desculpas - retorquiu ela, brusca. - Preciso de falar contigo. Há muita coisa a acontecer aqui de que precisas inteirar-te. - Estou na marina à tua espera - respondeu e ela desligou. Andou de um lado para o outro no cais, com as mãos enfiadas nos bolsos. As coisas não auguravam nada de bom. Teria dado tudo para não ter magoado Daisy, mas não tivera outra escolha. E não permitiria que uma mulher estorvasse o seu trabalho. O trabalho vinha em primeiro lugar, viria sempre.


Subi para a embarcação e partimos para -o cais. Bordelaise também vinha como meu reforço. Sabia que Montana não podia dizer nada demasiado pessoal em frente dela e, de qualquer maneira, não ia deixar que ele pedisse desculpa. Os homens pareciam pensar que se podiam safar com qualquer coisa e eu ia provar que este pelo menos não podia. A partir de agora seria tudo muito profissional entre nós. Avistei-o à espera no pontão. Raios, estava com bom aspecto. Pensei de novo onde é que ele arranjaria o bronzeado, não a perseguir assassinos através dos continentes, isso sabia eu. Engoli um suspiro. A partir de agora as nossas relações seriam profissionais e, além disso, a minha cabeça estava tão recheada de informações sobre os suspeitos que não tinha outra opção senão falar com ele. - Não te derrete o coração, nem sequer um bocadinho? - murmurou Bordelaise ao meu ouvido quando desembarcámos e ele se dirigiu para nós. - Não - menti, mas não conseguia enganar a minha amiga mais antiga. Afixei um sorriso frio no rosto para benefício de Montana, mas o meu coração batia com muita força e estava a desfalecer por dentro. Quando me pegou na mão, foi como receber um choque eléctrico e a minha atitude fria e distante amoleceu instantaneamente. - Como estás? - perguntei, puxando a minha mão de volta. - Melhor, agora que te vi. - Examinou-me. - Estás com um ar cansado. Encolhi os ombros. - Não conseguia dormir. E Dopplemann também não. Encontrámo-nos no bar vazio às duas da manhã. O sorriso dele desapareceu. - O que estavas a fazer sozinha a essa hora da manhã? Fitei-o, pasmada. -Já te disse, não conseguia dormir, por isso levantei-me e fui dar uma volta... - Caramba. - Largou-me. - Deves ter enganado os agentes que te guardavam. Devem ter pensado que tinhas ido para a cama e que o dia terminara. - Isso é que são tácticas profissionais de vigilância - disse Bordelaise. - E olá para ti também, Harry, como vais? Ele virou-se para ela.


- E bom ver-te, Bordelaise. Estás a gostar do cruzeiro? - Até agora tem sido fantástico. Nem podes acreditar nos sentimentos encobertos, nas maquinações e tramas, para não falar das confissões e depois dessas confrontações no bar a altas horas da noite. Montana chamou um táxi, entrámos e subimos a encosta íngreme até à cidade, até ao Albergo Lorelei et Londres, que afirmou ter a melhor vista em Sorrento. Não me dei ao trabalho de perguntar como é que Montana sabia do facto. Era o tipo de homem que podíamos colocar em qualquer cidade do mundo e saberia quais os melhores sítios a visitar. E não estava enganado em relação à minúscula estalagem do século XIX, com o seu terraço que dava para o azul infinito da baía de Nápoles, com vista para a ilha de Capri no horizonte e o Vesúvio para norte. A estalagem estava decorada com buganvílias roxas e limoeiros em vasos e havia mesas debaixo de toldos vermelhos. Ouvia-se um alarido de risos e conversas e toda a gente menos eu parecia estar a divertir-se. Ocupámos uma mesa sob o toldo vermelho, onde a doce brisa do mar me levantava o cabelo e a disposição e comecei a sentir-me um pouco melhor. Sofrendo de um excesso de cosmopolitans e champanhe, pedi água Pellegrino com limão, ao passo que Bordelaise e Montana escolheram cervejas Peroni. Trouxeram uma travessa de calamari fritti, ainda a crepitar da frigideira, com uma taça de aioli com muito limão onde molhar as lulas. Comemos em silêncio e, passado algum tempo, descontraí-me. Não estava preparada para perdoar Montana, mas pelo menos agora podia olhá-lo nos olhos sem querer matá-lo. - Queres que comece ou queres contar-me primeiro as tuas notícias? perguntou. - Começa tu. Atirei com outro pedaço de lula cheio de aioli para dentro da boca. Por este andar ia voltar para casa com cinco quilos a mais, mas quem é que se importava? - Desculpa ter-te deixado de forma tão abrupta, mas recebi uma chamada às quatro da manhã. Estavas a dormir profundamente. Não quis acordarte. Ergui a mão para o fazer parar.


- Este encontro é puramente profissional. - Muito bem. A chamada era do meu assistente em Nova Iorque. A equipa forense que estava a trabalhar no carro de Bob tinha chegado a algumas conclusões interessantes. Peguei noutro pedaço de lula e ele inclinou-se por cima da mesa e pousou a sua mão na minha. - Escuta, Daisy. Isto é importante. E depois contou-me como Bob morrera. Ao sol quente de Sorrento, transformei-me em gelo. Fitei os olhos chocados de Bordelaise, depois de novo Montana. - Lamento - disse ele e afagou-me as mãos frias. Tive um acesso de fúria. Estava pronta para estrangular pessoalmente o assassino; roubara-me Bob, tirara a vida de um homem bom ao passo que a sua vida desprezível continuava. - Claro que foi Dopplemann - declarei. - Contou-me a noite passada o que sentia por Bob. - Expliquei tudo a Montana. - Por isso, estás a ver, o móbil de Dopplemann foi a vingança. Foi ele, sei que foi. - Teremos de esperar até eu ter provas definitivas - avisou Montana. - E então Charlie Clement? - perguntou Bordelaise. Eu contara-lhe a história que Ginny me relatara sobre Charlie e informei Montana que Texas o vira na mal-afamada Ecole de Nuit. Texas estava a trabalhar em Paris na altura e fora a um clube com um homem que conhecera, um clube "exclusivo", contara-lhe ele. Afinal era um desses lugares onde tudo pode acontecer: sexo para qualquer pessoa, da forma que o pretenda, até com crianças. O tipo com quem ela estava disse-lhe que o clube era de Charlie Clement e apontou-lho. Texas fora-se imediatamente embora quando percebeu em que tipo de sítio estava, mas era sem dúvida o clube de Charlie. - Então Bob tinha razão - comentou Montana - e estão todos a mostrar o que realmente são. - Rosália é a única que não quer saber do que está no testamento de Bob declarei. - Não quer nada dele, nunca quis. - Será que sim? - retorquiu Montana, pensativo. Bordelaise acenou para alguém noutra mesa. - Tenho de ir andando - declarou, agarrando na mala.


Vi o comandante Anders a levantar-se quando ela se encaminhou para ele. Pareciam muito satisfeitos um com o outro. - Bordelaise está outra vez em forma - comentei, sorrindo. Montana deve ter confundido o sorriso com uma fenda na minha armadura porque perguntou: - E então nós, Daisy? Vamos continuar a brigar a propósito de nada? - Nada! - Corei de indignação. - Adormeço com um homem a meu lado. Na manhã seguinte desapareceu sem qualquer explicação. Isso não é nada! - Claro que não, mas existe uma explicação racional. Além disso, telefonei e deixei-te uma mensagem. Não a recebeste? Fitei-o. - Que mensagem? - Queres ouvi-la? Vendo-lhe o rosto ansioso, pensei que, se continuasse a amuar e dissesse que não, ele podia ir-se embora e eu não queria que isso sucedesse. - Está bem. Vá lá, diz-me - respondi, embezerrada. - E então o que achas? - perguntou ele quando terminou a sua explicação. Levantei-me e lancei-lhe um longo olhar. Sem mais palavras, ele pegou-me no braço e conduziu-me à marina, subimos para a embarcação e voltámos para o Blue Boat. Toda a gente se encontrava em terra e o navio estava silencioso. A minha suíte estava fresca; o ar condicionado ronronava e as cortinas tinham sido corridas para afastar o sol da tarde. Atirei a minha mala para uma cadeira e entrei no quarto. Virei-me e fiz-lhe sinal. - Vem cá, Montana. E, concedamos, ele encaminhou-se a rir para os meus braços abertos. Não foi uma sessão repetida, foi todo um novo cenário. Os beijos dele foram mais ternos, os meus mais exigentes. As suas mãos pareciam-me novas, os lábios quentes e familiares. O corpo dele encaixava no meu, as suas carícias faziam-me tremer e a boca dele fazia-me implorar por mais. Desejava Harry Montana mais do que alguma vez pensara desejar um homem. E Harry Montana satisfazia todas as minhas necessidades. As sete da noite ainda estávamos na cama, de duche tomado e nus. - Apenas a recuperar o fôlego - disse ele, roçando-me com o nariz no pescoço.


Gemi, enterrando o meu rosto nos pêlos do seu peito e dando-lhe pequenas mordidelas. - Não posso encarar os suspeitos esta noite. Não quero pensar em assassínio e dinheiro e em quem terá cometido o crime. Não podemos ficar simplesmente aqui, sozinhos? - supliquei. No fundo da minha mente estava a pensar que isto poderia ser o que nos restava: esta noite e mais nada. Nunca se sabia com um homem como Montana; nunca se sabia quando poderia desaparecer de novo e desta vez para sempre. Queria tudo o que pudesse obter dele. Agora. - Bem, então não vamos ter com eles - retorquiu, surpreendendo-me. Mandamos vir qualquer coisa do serviço de quartos. - Mas vais ter de te esconder na casa de banho - objectei. - Pensas realmente que vão acreditar que vais comer dois jantares? Vamos lá, Daisy, cai na realidade, ninguém quer saber, excepto tu e eu. Lancei-lhe um cauteloso olhar de soslaio. - E tu importas-te? - Sim - replicou, de súbito sério. - Importo-me, gosto de ti, Daisy. Não dissera "Amo-te", mas por agora estava satisfeita. Isto não era apenas uma breve aventura sexual; estava com um homem de quem começava a gostar muito, um homem que gostava de mim. - Vamos lá então telefonar para o serviço de quartos - retorqui, radiante.


PARTE IX QUINTO DIA VILLA BELKISS A LEITURA DO TESTAMENTO A HORA DA VERDADE Devemos respeito aos vivos; aos mortos devemos apenas a verdade. VOLTAIRE Na manhã seguinte, cedo, Montana estava na varanda a beberricar uma chávena de café. - Vem cá fora, Daisy - chamou. Ainda na cama, bocejei com preguiça e espreguicei-me longa e voluptuosamente. O meu corpo estava tão descontraído e flexível como o de um gatinho. - Não, vem cá tu - respondi, a pensar que fazer amor de manhã podia até ser melhor do que à noite. Mas ele veio puxar-me da cama pelos braços e levou-me até à amurada do navio. - Olha - ordenou. A ilha de Capri erguia-se à nossa frente, uma jóia minúscula no mar de safira. A pequena cidade era um emaranhado de flores e folhagens brilhantes, cravejado de casas brancas. Erguia-se entre um par de penhascos altos de pedra calcária, onde pequenos barcos vogavam com lentidão, grutas e cavernas camuflavam-se e rochas gigantes nasciam das profundezas. Relembrei a lenda sobre o imperador romano Tibério, que amava tanto a ilha que aí construíra uma villa e se recusara a regressar a Roma. Olhando para o panorama diante de nós, percebia porquê. Nua e com o braço de Montana a rodear-me, apoiei os cotovelos na amurada. Desejei que fôssemos apenas um par de vulgares turistas prontos para explorar a beleza que Capri tinha para oferecer e que o dia de hoje não tivesse de acontecer. Montana adivinhou-me os pensamentos e disse:


- Talvez um dia regressemos. Conhecendo-lhe a vida atarefada, não ia apostar nisso. Decidi que era melhor aproveitar ao máximo o tempo que tinha, peguei-lhe na mão e conduzi-o de volta à cama. Por agora, o nosso encontro com o destino em Capri podia esperar. Um par de horas mais tarde, subimos ao convés. Apanhámos a lancha para a Marina Grande e subimos no funicular até à Piazetta, a pequena praça que é o centro da cidade de Capri, rodeada de belos cafés e boutiques e dominada por uma alta torre de relógio com um mostrador de majólica maravilhosamente decorado. Os ponteiros do relógio apontavam para o meio-dia. O nosso encontro estava marcado para as duas na Villa Belkiss. Tínhamos um par de horas preciosas só para nós. De mãos dadas, passeámo-nos pelas ruas empedradas, parando para espreitar a minúscula boutique onde eram feitas à mão as famosas sandálias de Capri, as joalharias e as lojas de moda. Tentados pelos aromas que emanavam do Ristorante Pizzeria Aurora, na Via Fuorlovado, sentámo-nos na esplanada a beberricar copos fortificantes de vinho tinto e a ver passar as gentes de Capri, partilhando uma pizza a Wacqua, coberta com mozzarella e pimentos peperoncino ao estilo napolitano. Uma delícia sobre uma massa crocante fina. Estava a divertir-me tanto que quase esqueci porque estávamos em Capri, mas então o telemóvel de Montana tocou. Atendeu com rapidez. Uma expressão de preocupação atravessou-lhe o rosto e passou uma mão pela cabeça escura com o cabelo muito curto. - Tens a certeza? - perguntou por fim. A seguir acenou. - Muito bem. Certo. Percebi. Desligou e os seus olhos cruzaram-se com os meus, que reflectiam ansiedade. Não disse nada, mas calculei que sabia quem era o assassino. - Diz-me - exigi. - Já vais ficar a saber - foi tudo o que consegui arrancar-lhe. Engoli o resto do meu vinho e chamei a empregada para pedir outro copo, mas Montana mandou vir antes cafés expresso. - Vais precisar de estar com todos os sentidos alerta - avisou. Haverá um par de guardas à porta, mas estarão desarmados. Não posso arriscar levar


armas com todas aquelas pessoas na sala. Estarás em segurança, não te preocupes. Assenti com a cabeça, desejando que Bob não tivesse organizado isto, mas também se não tivesse não teria conhecido Montana. Calculei que tinha de aceitar o bom com o mau. Subimos lentamente a bela Via Tragara, espreitando para as estranhas escadarias de pedra entre os edifícios de estuque pálido e para as villas atrás de altos portões de ferro, flanqueados por loendros gigantes como ramos de noiva. A rua estreita estava ladeada de muros de jardim altos e os sons do Verão rodeavam-nos: o chilrear dos pássaros, o crepitar dos grilos, o zumbido das libelinhas. A luz do Sol refulgia em certos pontos como diamantes no mar, penetrando através de latadas pesadas de videiras e ungindo os cachos de pequenas uvas verdes opalescentes, escaldando quando virámos, agradecidos, para uma viela estreita e sombreada que subia a encosta. No final erguia-se um muro branco alto e um par de enormes portões de madeira azuis. Uma placa decorativa de azulejo com o nome Villa Belkiss encontrava-se embutida no muro. Montana lançou-me um longo olhar ao tocar à campainha. Estávamos finalmente aqui. Um empregado de casaco branco, um homem idoso com um rosto enrugado de um castanho cor de noz e cabelo escuro salpicado de cinzento, abriu os portões de par em par. - Bem-vindos à Villa Belkiss. Chamo-me Enrico - disse. - Trabalhei para o Signore Vassily durante quase vinte anos. Signorina, signore, a Villa Belkiss dá-vos as boas-vindas. Temos bebidas frescas à vossa espera. Entrem, por favor. Entrámos num pátio. Lagos gémeos de um cinzento-azulado orlavam os lados, iluminados com o faiscar de pequenos peixes dourados. O caminho entre eles conduzia a degraus largos com espelhos de ladrilhos azuis e turquesa. Colunas estreitas flanqueavam o pórtico e a porta principal estava aberta. Através dela conseguia ver uma grande sala que corria a toda a largura da casa. E, para lá dela, através de portas francesas abertas, estava o mar. O tecto erguia-se a uma altura de dois pisos e as suas vigas largas estavam pintadas de um azul suave. Um mezanino projectava-se numa das


extremidades e os soalhos de terracota estavam cravejados de estrelas azul-cobalto. Nas paredes brancas estavam pendurados espelhos de prata antigos e obras de arte de tons esbatidos e havia sofás brancos suficientemente fundos para nos afundarmos neles. Atraídos pela vista, como qualquer pessoa que alguma vez aqui viesse ficaria, Montana e eu saímos para o terraço. Um lago sem fim parecia derramar-se no horizonte e uma queda de água estreita caía em cascata por cima de nós para um lago mais abaixo, de um verde-escuro, onde o mar se encapelava sobre as rochas. Por baixo de uma pérgula coberta de vinha encontrava-se uma comprida mesa de madeira, o sítio perfeito para jantar numa noite quente de Verão, e cadeiras confortáveis agrupavam-se à volta de uma grande lareira exterior. Outra porta de madeira azul no muro do jardim levava aos penhascos escarpados de pedra calcária, mas no jardim da Villa Belkiss tudo era suave e agradável. Rosas e madressilva, buganvílias e hibiscos, campainhas e jasmim trepavam as treliças e derramavam-se por cima dos muros baixos. Ouviase o murmúrio do regato e o correr da queda de água, o arrulhar das pombas e o zunzum suave das cigarras. - É tão pacífico - sussurrei para Montana. - Tão tranquilo. Sabias que foi o próprio Vassily que o projectou? - acrescentei. Vassily, filho de uma mãe russa e de um pai turco, era famoso pela leveza etérea do seu bailado e pela sua capacidade de erguer no ar prima ballerinas como se fossem penas. Quando descobrira a villa, estará apenas um cubo caiado de branco com dois quartos e telhado horizontal, rodeado por mato, mas possuía aquela vista mágica e claro que se apaixonou por ela. Passou anos a desenhar a casa e os jardins e, após as obras terminarem, dava festas sumptuosas com músicos no terraço ou no mezanino, frequentadas por todo o haut monde da Europa. Servia lagosta, champanhe e caviar, bem como o vinho branco local de que gostava e, mais tarde, dançava para os seus convidados. Trazia para aqui os seus amantes, homens e mulheres, porque era assim que era. Depois, quando já era velho, quer dizer, velho para bailarino de ballet, por volta dos cinquenta, escreveu a autobiografia, que contava tudo e que escandalizou o mundo e lhe custou muitos amigos.


Regressou então para viver aqui numa quase reclusão com o cão que adorava. Mandou abrir a porta azul no muro do jardim para poder passear o cão nos penhascos. Conhecia esses penhascos como a palma da mão, sabia onde se encontravam todas as fissuras e depressões perigosas, ocultas pela vegetação rasteira. - Morreu aqui mesmo neste terraço - contei a Montana. - Sentado na sua cadeira favorita com o cão a seu lado, a beber o seu vinho branco preferido e a olhar para a sua vista preferida. Os meus olhos cruzaram-se com os de Montana e percebi que estávamos ambos a pensar em Bob e como teria sido muito melhor para ele ter morrido aqui serenamente, como Vassily. Enrico apareceu com copos de chá gelado e com os pequenos bolos de amêndoa que afirmou serem a especialidade da vila. Olhei para o relógio. Eram quase duas horas. Nuvens escuras estavam a formar-se no horizonte e os suspeitos do assassínio começavam a invadir o pátio, assemelhando-se a qualquer outro punhado de turistas, de calções, camisas, sandálias, óculos de sol e chapéus de palha. Como de costume, Davis tinha uma máquina fotográfica pendurada à volta do pescoço e Dopplemann trazia os binóculos caros, comprados, calculava eu, com o dinheiro de Bob, algures nesta viagem. Charlie Clement entrou de forma imponente usando os óculos escuros fechados de lado que lhe escondiam os olhos, de forma muito conveniente. Magdalena deixara Bella a bordo do Blue Eoat com a ama e viera com Rosália e Hector, elegante como sempre de casaco branco, o cabelo muito bem arranjado. Diane vestia preto, para se adequar à sua imagem de "viúva", e ficou incomodada por ter de andar, ao passo que Filomena entrou a passos largos, glamorosa como uma bailarina, de calções curtos, sandálias de Capri recentemente adquiridas e um top sem costas de dimensões reduzidas. Vinha com Brandon, claro, ao passo que Bordelaise, sempre a chefe da claque muito bronzeada, de calções e T-shirt branca, vinha com Texas, encantadora como sempre num vestido simples de algodão. O vento agitou as árvores, atirando com o panamá de Dopplemann a


rodopiar pelo terraço e ele precipitou-se atrás do chapéu, parecendo um insecto desajeitado nos seus calções. Reg e Ginny soltaram exclamações de admiração quando viram a villa e passearam-se pelo terraço para apreciar a vista. Reg afirmou que nunca em toda a sua vida vira nada semelhante e agradeceu alto a Bob por o ter convidado porque poderia ter vivido a vida inteira sem saber que locais como este existiam. Ginny conversou com Enrico, que oferecia copos do famoso vinho branco ou cerveja fria, chá gelado ou água Pellegrino. O velho parecia satisfeito com toda aquela actividade, contente por ver a villa encher-se de novo de vida, suponho. Claro que não fazia a mínima ideia da verdadeira razão que nos trazia aqui. Do outro lado da baía, as nuvens escuras juntavam-se e, à distância, ouvimos o ribombar de trovões. Lancei uma olhadela a Montana e ele acenou com a cabeça. Estava na hora. Reuni toda a gente no grande salão, agrupando os suspeitos na primeira fila de cadeiras em frente da grande secretária de ébano, onde Montana se instalara, ficando as outras pessoas que seleccionáramos como manobra de diversão na fila atrás. Terminada a minha tarefa, fui sentar-me à secretária ao lado de Montana. O estrondo de um trovão estilhaçou o silêncio expectante e as mulheres olharam umas para as outras, nervosas. Pensei que a cena era exactamente como Bob delineara na sua carta: a casa de campo, a tempestade iminente, os suspeitos reunidos à espera da leitura do testamento. As mulheres cruzaram as pernas, colocaram as malas no chão ao lado das cadeiras, alisaram as saias de linho, puxaram os calções para baixo e entrelaçaram as mãos nos joelhos. Os homens inclinaram-se para trás nas cadeiras, braços cruzados no peito, parecendo agressivos, achei, à excepção de Dopplemann, que se afundou na sua cadeira demasiado grande, parecendo o Coelho Branco apanhado no País das Maravilhas de Alice. Charlie estalou os dedos para Enrico pedindo outra bebida e Davis fitou fixamente Montana. Ouviram-se algumas tosses nervosas quando Montana pegou na sua pilha de papéis e lhes disse que o testamento de Bob se encontrava sob a forma de cartas, uma para cada um. E depois começou a ler.


Amigos, principiava a primeira carta de Bob. Se ainda vos posso chamar amigos. Espero que se tenham divertido no meu cruzeiro e que tenham comemorado a minha vida como se realmente o quisessem fazer. Mas estamos aqui agora para descobrir qual de vós me matou. Exclamações abafadas de choque sibilaram pela sala e toda a gente olhou com nervosismo para todos os outros. Antes de lá chegarmos, no entanto, quero recordar-vos que não é com frequência que alguém tem uma segunda oportunidade na vida, contudo, hoje vou oferecer a todos essa oportunidade. Comecemos por ti, Diane. Diane inclinou-se ansiosa para a frente na sua cadeira. Não posso afirmar com toda a certeza se me mataste ou não, Diane, mas pensaste ter boas razões. Vi muitas vezes nos teus olhos a fúria e o desejo de me ferir. Porque seria? Não fui suficientemente generoso? Não te dei mais do que o estipulado no contrato pré-nupcial? Como Lady Hardwick, tinhas tudo o que querias, porém, querias sempre mais. O que se passa com esta coisa a que chamamos Dinheiro? Deus sabe, quando era criança não tinha nenhum, tal como tu, Diane. A boca de Diane cerrou-se numa linha fina. Lançou uma olhadela em volta, tentando interpretar os rostos dos seus vizinhos, mas estes estavam a olhar para Montana, à espera do que viria a seguir e, de algum modo, Diane sabia que não ia gostar do que se seguiria. Ao princípio, engoli toda aquela patranha do castelo e da árvore genealógica da tua família, porque desempenhavas bem o teu papel de aristocrata. Mas, mais tarde, dei uma vista de olhos à história francesa. Pensei que o teu nome soava algo familiar e isso porque pertenceu originariamente a Diane de Poitiers, a duquesa de Valentinois, amante do rei Henrique II de França. Diane de Valentinois dominou a vida na corte francesa até que o rei morreu e então a sua mulher, Catarina de Medícis, obrigou-a a uma vida de "reclusão". Não no seu glorioso castelo de Chenonceaux, mas no de Chaumont, muito mais barato e mais simples. Mas, claro, Diane, tenho a certeza que já sabes tudo isto. Diane fitou Montana, a fumegar de cólera por ter sido apanhada numa mentira, mas não disse nada e ele continuou a ler.


Para seguirmos a história, um castelo aguarda a tua "clausura". É com certeza mais pequeno do que Chenonceaux ou Chaumont, mas inteiramente adequado para a minha lady. Talvez de lembres dele, nos montes acima de Saint-Tropez? Visitámo-lo certa vez, juntos. Um local encantador e aprazível nos seus terrenos cobertos de pinheiros com vista para o mar e excelente para receber convidados. Tão bom, de facto, que te deixei o suficiente para "receber" convenientemente ao mesmo tempo que, por fim, consegues ganhar também a tua vida. Já existem planos aprovados para transformar a propriedade num hotel, que rebaptizei para ti: o Château de Valentinois, Por fim, minha querida Diane, o teu contexto corresponderá à tua história. E todos os teus velhos amigos virão passar algum tempo contigo. Pensa só no prazer que terás em conseguires cobrar-lhes dinheiro desta vez. Esta é a tua "segunda oportunidade-". Haverá dinheiro suficiente para cobrir o custo dos trabalhos de renovação, mais o arrancar do negócio e uma "pensão" razoável de dez milhões de dólares para te durar o resto da vida, pagável mensalmente para não derreteres tudo no casino. O resto é contigo. Existe um velho ditado "Mãos ociosas são o instrumento do mal". Bem, isto dar-te-á algo que fazer. Não te iludas, será trabalho, trabalho, trabalho. Será que vais estar à altura do desafio? Veremos. O que não entendo, no entanto, é o que aconteceu a todo o dinheiro que te dei? O que aconteceu às jóias? Aos bens? Não acredito que o teu problema de jogo seja tão grave, por isso o que fizeste ao dinheiro? E não, querida Diane, não acredito realmente que me tenhas assassinado. Por um lado, não acredito que sejas suficientemente esperta para concretizar uma coisa tão complicada como um assassínio, a não ser que fosse um crime passional, cravar uma faca nas costas de um amante que te enganasse, esse tipo de coisa. Penso que, à tua maneira, me amaste. E, durante algum tempo, estive apaixonado por ti. Valorizo muito esses momentos, apesar do que sucedeu depois. Por isso, chère Diane, despeço-me de ti e desejo-te bonne chance. Existe apenas uma condição. Para teres o teu castelo, deves agora contar a verdade. Por isso, levanta-te, minha querida. Admite quem eras na altura e quem és agora e para onde foi o meu dinheiro e porquê. Não


omitas nada porque te asseguro que, por esta altura, Montana já saberá de tudo. Todas as cabeças se viraram para Diane, que continuava sentada com um olhar glacial e o rosto a arder. Passados uns momentos levantou-se. Olhando para Montana, disse: - Uma vez que já sabe de tudo, não me resta mais nada para dizer. - Mas Bob quer que seja você a contar-nos, Diane. Ela encolheu os ombros, impaciente. - Para poderem regozijar-se, calculo. - Não estamos aqui para nos regozijarmos com as desgraças de outrem. Estamos aqui para segundas oportunidades. Recorda-se? Diane ergueu o queixo, de forma desafiadora. - Muito bem. Não sou nenhuma aristocrata. Reinventei-me, como tantas outras mulheres fizeram. Nasci Diane Lenclos numa pequena quinta, pobre e miserável, com um pai que me batia e à minha irmã, e uma mãe que bebeu até morrer porque parecia uma opção melhor do que a vida que levava. A nossa quinta ficava muito perto e, contudo, tão longe dos belos castelos do Loire, que me eram tão acessíveis como a Lua. Por essa razão assumi o nome de Diane de Valentinois. Quando era menina, desejava ardentemente ser como ela. Encolheu os ombros. - E quase consegui, não foi? Quando a mamã morreu, a minha irmã mais nova, Alice, e eu ficámos sozinhas com o meu pai, que continuou a descarregar a sua raiva em nós. Tratávamos da casa e ajudávamos na quinta, evitando ao máximo as suas bofetadas no rosto com as costas da mão, mas aparecíamos demasiadas vezes na escola com nódoas negras e a professora chamou os serviços de protecção à infância. O meu pai foi preso durante seis meses. Não sei o que lhe aconteceu depois disso, nunca mais o vi. Eu tinha treze anos e Alice tinha nove quando nos puseram no "lar" de frios tijolos vermelhos com mais cerca de quarenta outras crianças sem casa. Tínhamos todas uma cama e uma pequena cómoda para guardarmos os nossos pertences, só que Alice e eu não tínhamos nada nosso. Recebíamos três refeições sofríveis por dia, ensino escolar seis dias por semana e igreja todas as manhãs e duas vezes ao domingo. Sentia-me como se a minha alma estivesse espartilhada numa


camisa-de-forças. Aquilo sugava-me a vida. Esperei até ter dezasseis anos antes de fugir. Prometi a Alice que viria buscá-la quando vencesse na vida. Como qualquer outra adolescente, ia ser estrela de cinema. Tinha a beleza necessária, só precisava de dinheiro e de conhecer as pessoas certas. Pensei que seria fácil. Diane parou. Fitou o soalho, mordendo o lábio inferior como se o que fosse dizer a seguir fosse demasiado doloroso para aguentar. - Não há necessidade de entrar em detalhes sobre a minha vida nessa altura - disse por fim -, por isso vou saltar alguns anos. Digamos simplesmente que casei com um homem rico e me tornei Lady Hardwick e uma pessoa diferente. Prometera a Alice vencer na vida e, quando ao princípio não o consegui, senti-me demasiado envergonhada para lho admitir. "Espera, espera simplesmente", dizia, "vai correr tudo bem, em breve vou buscar-te." Mas agora era uma senhora da sociedade, muito absorvida na minha nova vida, nas roupas e nas festas, nas jóias e nas casas. Tinha de viver de acordo com uma nova imagem e Alice era um rato do campo, só conhecia a nossa infância de privações e o lar de crianças. Se trouxesse Alice para viver comigo, revelaria o meu segredo, por isso ia-a empatando. Dava-lhe dinheiro, dizia que a mandava buscar quando pudesse. Mas Alice não conseguiu esperar mais. Decidiu alugar um carro e vir a Monte Carlo visitar-me. Estava perto de Lyon quando o carro bateu numa árvore. Tiveram de cortar o carro para a retirar e levaram-na para o hospital. Na mala descobriram uma carta minha. Eu estava a dar uma festa quando chegou a chamada telefónica. Fiquei apavorada por causa de Alice, mas os meus convidados eram pessoas importantes, não podia largá-los. Para minha vergonha, deixei a festa prosseguir. Voei até Lyon na manhã seguinte. Alice estava em coma. Estava envolta em tantas ligaduras que parecia uma múmia. Disseram-me que o pára-brisas se despedaçara no seu rosto. Explicaram que havia lesões cerebrais. Diane ergueu a cabeça e olhou para a sua assistência. As lágrimas deslizavam-lhe pelas faces e limpou-as com impaciência. - Confesso que rezei para a minha irmã morrer - disse em voz baixa. Queria que ela morresse. Era uma rapariga simples e doce e agora não era nada. E a culpa era toda minha. Esteve no hospital durante muitos meses.


O rosto sarou, mas as cicatrizes eram horríveis, por fim saiu do coma. Creio que me reconheceu, embora não conseguisse dizer o meu nome porque já não conseguia falar. Mulher egoísta e desprezível que sou, nunca fui capaz de admitir que tinha uma irmã campónia e simples e agora não podia simplesmente trazê-la para casa e dizer: "Aqui está ela e está estropiada, cheia de cicatrizes e com lesões no cérebro." Detestarme-ei para o resto dos meus dias pelo que fiz a seguir, mas não podia ainda tê-la a viver comigo. Por isso comprei-lhe uma pequena casa, ali mesmo perto do hospital em Lyon, onde podia ter a assistência de que ainda necessitava. Encontrei uma assistente domiciliária experiente, uma enfermeira que vivia com ela e tratava das suas necessidades. Tinha um pequeno jardim, uma casa sua. Mas nenhuma irmã para lhe dizer que a amava. Diane parou. Fechou os olhos. - A minha vergonha é completa - disse e as lágrimas rolaram-lhe pelo rosto. - Depois de Bob se divorciar de mim, tornou-se cada vez mais difícil pagar o tratamento de Alice. Fui forçada a vender as minhas jóias, a pedir dinheiro emprestado a usurários. E claro que jogava sempre à espera de ganhar muito dinheiro que resolvesse todos os meus problemas, sempre preocupada que Alice perdesse a única casa verdadeira que alguma vez conhecera. Olhou para a sua assistência silenciosa. - Isto - disse por fim - é a minha história e o que Bob queria que vos contasse. E sabem que mais? Estou-lhe grata por me obrigar por fim a admitir a minha culpa. E ficar-lhe-ei eternamente agradecida pelo castelo. Arrancou-me do desespero em que tenho vivido estes últimos anos e deume um propósito na vida. Bob deu-me essa segunda oportunidade que sei que não mereço, mas que Alice merece. Fez-se silêncio quando Montana pegou na próxima folha de papel. Um relâmpago iluminou a sala como um holofote numa estreia de Hollywood e as pessoas remexeram-se nas suas cadeiras, olhando apreensivas pelas janelas. - Esta é para Davis Farrell - disse Montana. Bem, Davis, escrevera Bob,


Alguma vez pensaste que chegaria a isto, eu a falar-te de além- - túmulo para onde podes ser acusado de me teres despachado? Mataste-me, Davis? Vamos, digamos a verdade. Não há mais nada a perder, pois não? Odiavas-me pelo que te fiz, banindo-te do paraíso financeiro que tinhas criado, expulsando-te para esse mundo muito frio para "fazeres alguma coisa de ti". Tiveste todas as oportunidades e abusaste delas em todos os sentidos. Enganaste, roubaste, mentiste, viraste-te até contra os teus amigos... tudo porque veneravas aquele déspota velho e gasto, o Dinheiro. O dinheiro comandava a tua vida e, de certo modo, comandava a minha, embora eu apenas gostasse dele pelo prazer do jogo de fazer dinheiro. Nunca me controlou da forma que te controlou a ti. No entanto, não te denunciei, não te deixei ir a julgamento, ir para a prisão. Via ainda em ti alguma coisa que me levou a deixar-te livre para fazeres com a tua vida o que pudesses. Ao afastar-te do Dinheiro, pensei poder salvar-te de ti mesmo. Pensei que te dera uma segunda oportunidade na vida. Que triste, então, se tiveres sido tu que me roubou a vida. Mesmo assim, vou dar-te o benefício da dúvida, ou seja, a não ser que Montana prove que estou errado. Ouvi falar do teu trabalho. Estás a desenvolver um trabalho admirável, ajudando os ignorantes e os privados de direitos civis. Louvo-te, Davis. E é por essa razão que te deixo a quantia de cinquenta milhões de dólares para criares uma fundação que te permita prosseguir os teus sonhos filantrópicos de uma vida melhor para outros. Creio que posso dizer sem hesitação que sei que, desta vez, o dinheiro será bem gasto. Seguiu-se um silêncio aturdido e depois Davis ergueu-se de um salto. De mãos nos bolsos, olhou descontraidamente em volta. - Claro que pensei em matar Bob - disse. - Mas sou um vigarista de gabinete, não um assassino. Tecnicamente, não "roubei", apenas movimentei de forma inteligente os dinheiros para servir os meus propósitos que eram sempre, claro, fazer dinheiro em proveito próprio. Ia a subir essa estrada longa e escorregadia para o estrelato empresarial, a caminho de me transformar num desses directores de empresas bilionários, que forram os bolsos usando os fundos das pensões dos trabalhadores e dão festas de milhões de dólares com dinheiro desviado


dos accionistas. Bob apanhou-me e forçou-me a sair do mundo a que pertencia. Bob Hardwick alterou a minha vida, e não para melhor. Já começara a insinuar-me discretamente de novo na arena financeira antes de Bob morrer, mas nessa altura tive a liberdade de recomeçar onde ficara quando ele me pôs na rua. Sinto compaixão pelas pessoas privadas de direitos. Não nos esqueçamos que, por causa de Bob, durante alguns anos fui uma delas. Mas não é isso que sou e ser filantropo não é o que ambiciono ser. Não quero os cinquenta milhões de Bob. E não quero gerir uma fundação. Oh, não, o que quero ser é o próximo Bob Hardwick e, acreditem-me, colegas suspeitos... e, a propósito, estou a pensar em qual de vocês matou realmente Bob... vou chegar lá. Esqueçam o personagem Gordon Gekko. Não sou um assassino, mas, tal como ele, sou de arrasar em Wall Street e será o meu nome que verão diariamente no Wall Street Journal e no Financial Times. E usarei todos os gramas da minha astúcia para assegurar que aí permaneço. A seguir acrescentou: - Bob errou nesta, Montana. Pode ficar com os seus cinquenta milhões. Arranjem outra pessoa para dirigir a fundação. E sabem que mais tenho para dizer a Bob Hardwick? Esquece, Bob, sou um tipo que cria as suas próprias segundas oportunidades. Não preciso das tuas. E sentou-se no meio de um atordoado silêncio. - Tem trinta dias para repensar a sua decisão - avisou Montana. Davis encolheu os ombros. - Não preciso. Sei o que quero e, desta vez, nada me fará parar. Montana virou-se para Filomena. - E agora é a sua vez - declarou. Ela mordeu o lábio inferior com nervosismo. Depois: - Não matei Bob - exclamou. - Nunca faria uma coisa tão má assim... - Espere - disse Montana. - E escute o que Bob escreveu para si. Filomena sentou-se na beira da cadeira, de cabeça baixa, a torcer as mãos, a imagem da culpa. Filomena, minha adorável Filomena. Como queria que me amasses. Me amasses de verdade. Via-me reflectido no brilho da tua beleza, pobre e feio homem mais velho que eu era, à procura de algo que nunca tivera e


nunca teria tido se não fosse a minha extraordinária capacidade para fazer grandes quantidades de dinheiro. Claro que era pedir muito. O que tivemos foi uma for ma simples de troca. Tu pagavas o teu preço, eu pagava o meu. O que não quer dizer que não te amasse. Claro que sim, à minha maneira. Adorava a pequenez do teu lábio superior, a curva da tua boca, aquele pequeno beicinho. Adorava a tua bela aparência, deves ter reparado que não conseguia tirar os olhos de cima de ti. Mas cometi um erro, Filomena. Eras uma jovem e eu era um homem mais velho, com experiência. Aproveitei-me da tua juventude e envergonho-me disso. Tentei compensar-te, mas nada parecia ser realmente "-suficiente" e começaste a transformar a minha vida num inferno. Analisando isso agora, sou forçado a pensar no que teria sido a tua vida se não me tivesses conhecido. Teria sido simplesmente outro homem rico qualquer? Ou terias lutado para sair da "armadilha da beleza-" efeito alguma coisa de ti? Pergunto-me se te terás colocado estas mesmas perguntas ultimamente, querida Filomena? Pensaste no que te resta na vida? Porque não perguntar ao contrário: "O que me reserva a vida?" E podes interpretá-lo de duas maneiras. Ou: o que será que está para vir? Ou:porque não uma carreira numa loja? Comprei-te uma boutique na melhor rua comercial aqui em Capri. Junto com ela vem uma pequena casa muito bonita - vi fotografias -, onde podes por fim construir um verdadeiro lar porque, estás a ver, acredito que és duas coisas: uma verdadeira comerciante e uma dona de casa à moda antiga. Consigo imaginar-te a cozinhar massa na tua própria cozinha italiana. Haverá dinheiro suficiente para iniciares o teu negócio e te aguentares nos primeiros tempos, mas, só para ter a certeza, criei-te um fundo de dez milhões de dólares. O respectivo rendimento será transferido anualmente para a tua conta. Estás preparada para a vida, Filomena, e desejo-te sorte. É claro que não me assassinaste. No final de contas, isso poderia ter-te estragado o vestido. Uma risada reprimida ecoou pela sala quando Filomena se levantou.


- Bob tinha razão - disse, ainda a revirar as mãos com nervosismo. - No fundo sou uma comerciante. Entendo de roupas e de moda e sei que a minha boutique será um sucesso. - Bateu palmas, percebendo que era um sonho que se tornava realidade. - Não consigo acreditar, não consigo simplesmente acreditar. Não só Bob me dá uma loja, também me dá uma casa! Chega de quartos húmidos alugados em palazzos pobres em Veneza. Vou ter a minha própria casa. Posso convidar a minha família e eles podem orgulhar-se de mim. Bob deu-me coisas materiais, mas também me devolveu a dignidade. E estou-lhe muito grata por isso e pela minha segunda oportunidade. Olhou indecisa em volta e depois, resolvendo-se, disse com rapidez: - Nunca teria admitido isto antes, mas agora que Bob me colocou numa posição de obrigação, tenho de fazer também a minha confissão. Roubei coisas da boutique onde trabalho, coisas pequenas, artigos que eram devolvidos ou iam para saldos. Menti e atribuí as culpas às ladras de lojas. Aparecem-nos, sabem, mesmo em lojas elegantes como aquela. Mas prometo devolver todos os cêntimos que custavam. Não iniciarei o meu negócio com isto na minha consciência. Um ribombar de trovões afogou o seu pequeno discurso. Ainda não chovia, mas as nuvens pretas tinham transformado o dia em noite e o jardim mantinha-se em silêncio; não havia pássaros a cantar, os grilos não trinavam. - Charles Clement, é a sua vez - disse Montana. Bem, Charlie, creio que tenho de confessar o meu fracasso neste caso. Concedi-te a tua oportunidade. Fechei o teu negócio das call-girls, mas não te mandei para a cadeia como merecias. Contudo, não mudaste para melhor. Estás pior. Charlie ergueu-se de um salto. - Pare com esse disparate - berrou. - Pare imediatamente. Exijo que o meu advogado esteja presente. - Sente-se - replicou Montana numa voz gelada e Charlie cedeu, embora continuasse a resmungar entre dentes. Dei-te uma oportunidade, Charlie, mesmo depois de teres trazido a pobre rapariguinha para Sneadley como um "presente" para mim, o teu método habitual de angariar clientes, ouvi dizer depois. Desta vez, contudo,


cometeste um erro. Fizeste um juízo muito errado do meu carácter. Ao fechar o teu negócio, dei-te uma oportunidade e desperdiçaste-a. Acredito que levaste simplesmente a tua pornografia infantil e venda de crianças para o estrangeiro... Charlie estava outra vez de pé, o rosto sarapintado de fúria. - Bob Hardwick está a mentir. Era um pedófilo, mandou-me descobrir meninas para ele, de nove ou dez anos, por vezes ainda mais novas... Não conhecem o verdadeiro Hardwick, o mentiroso e pornógrafo infantil... Montana saiu de trás da secretária. Com as mãos apertadas em punhos cerrados, postou-se em frente de Charlie. - Mais uma palavra e terei pessoalmente grande prazer em lhe dar a sova da sua vida - disse numa voz repleta de ameaça fria. E daixe-me dizer-lhe que, neste momento, a Ecole de Nuit - nome encantador, não é, para um punhado de pobres crianças vendidas para escravidão sexual - está a ser fechada pela brigada dos costumes parisiense. Está acabado, Charlie. Terminou tudo para si. Charlie empurrou a sua cadeira para trás. Virou-se para fugir, tropeçando em Reg e empurrando Ginny do caminho. Reg não teve nenhuma das compunções de Montana; esmagou o punho no nariz de Charlie, fazendoo cambalear, com o sangue a esguichar. Montana agarrou em Reg e segurou-o para impedi-lo de acertar de novo em Charlie. - Nenhum gajo fala assim de Bob Hardwick - sibilou Reg. Nenhum gajo, especialmente um como tu. - Atirou um pontapé aos joelhos de Charlie, grunhindo de satisfação quando o pé lhes acertou. A coxear e com sangue ainda a pingar por cima da camisa cara, Charlie precipitou-se para as portas. As cabeças viraram-se para olhar e Montana exclamou: - A propósito, Charlie, Bob pensou que era muito possível que o tivesse assassinado. "Nunca se sabe, com um homem como aquele", foi o que disse. Ignorando-o, Charlie mirou os guardas com cautela, pronto para mais problemas. Para sua surpresa, estes chegaram-se para o lado e até lhe abriram as portas. Charlie saiu, congratulando-se por ser um homem livre. E encaminhou-se directamente para os braços de dois grandes polícias italianos que o


esperavam. Disseram-lhe que tinham um mandado de captura emitido pela polícia internacional; depois algemaram-no, leram-lhe os seus direitos, empurraram-no para o banco traseiro de uma carrinha da polícia e levaram-no. - Como é que ele se atreve a falar assim de Bob? - disse Ginny furiosa. - Vi logo que era escumalha. Reg esfregou os nós dos dedos esfolados e a expressão do seu rosto mostrava o que sentia a respeito de Charlie, enquanto os outros sussurravam entre si, chocados. Montana chamou-lhes de novo a atenção para o testamento de Bob. Agora era a vez de Dopplemann que se contorcia embaraçado. E agora tu, Dopplemann. Suponho que te devia chamar Marins, embora nunca ninguém o faça. Eras Dopplemann e Dopplemann continuaste, com ocasionalmente o "Herr" à frente, para mostrar o devido respeito. Fui o teu grande admirador, Herr Dopplemann. Eu era apenas um homem que sabia como fazer dinheiro, ao passo que tu eras um génio. Isso desculpa o que sucedeu? Penso que não. Claro que te teria dado de boa vontade dinheiro se tivesses precisado, mas não havia necessidade. Só uma razão. Uma mulher. E essa "razão" destruiu muitos homens antes de ti. Tinha os meus contactos nos corredores do poder, ouvi boatos. Tentei rejeitá-los, mas no íntimo sabia que eram verdadeiros. Contudo, não fiz nada porque não tinha provas. Depois, alguém veio ter comigo com um par de histórias perturbantes: sobre encontros secretos num parque de Georgetown; sobre mensagens passadas em cafés desviados... Não era preciso ser um génio, Dopplemann, para adivinhar que estavas a ser recrutado para trair a América, o pais que te oferecera distinções e acesso aos seus segredos. Estavas prestes a entregá-los a uma potência estrangeira. E tudo por causa de uma mulher. Ora eu compreendo opressão a que estavas sujeito e os teus sentimentos por essa mulher, mas, tal como te disse quando te acareei, trair o país que te fez o que és não é próprio de um homem de carácter, como muitos outros espiões descobriram à sua custa. Felizmente, detive-te antes de agires. Ofereci-te uma opção. Partir de imediato e nunca mais voltar a pôr os pés na casa da Senhora Liberdade.


Ou arcar com as consequências. E todos sabemos pelas notícias dadas sobre os espiões apanhados em pleno acto o que isso teria significado. Desonra total e a vida toda na prisão. Foi apenas por teres hesitado, por não teres dado o passo final e não teres cometido o crime, que me senti capaz de te oferecer uma saída. Aceitaste-a; abandonaste a América e desapareceste não se sabe para onde. Salvei-te, Dopplemann. Concedi-te uma oportunidade e, contudo, tenho a certeza que para o resto da tua vida me amaldiçoarás por te tirar o que eras. Um cientista. Um génio. Um homem dedicado ao seu trabalho. E um homem com uma fragilidade terrível. Mataste-me, Herr Dopplemann? Penso que seja possível. Caberá a Montana dizê-lo. Seria uma pena, no entanto, porque estou prestes a oferecer-te e ao teu génio uma segunda oportunidade. O mundo precisa de homens como tu, homens com a tua visão, com as tuas faculdades, com o teu incrível cérebro de grande envergadura e sempre inquiridor. Discuti o teu caso com pessoas que conheço e sentimos que não existem factores de risco se te aceitarmos de novo a bordo. Encontrarás um emprego à tua espera no sector privado. A tua vida está a ser-te oferecida numa bandeja, Dopplemann, ao passo que a minha, tristemente, terminou. Poderás querer reflectir sobre isso. Deixo-te também a quantia de um milhão de dólares num fundo, com o respectivo rendimento pago anualmente. Junto com o teu salário, será o suficiente para viveres. Afasta-te apenas das mulheres. E deixo-te o conteúdo da minha garrafeira em Nova Iorque. Penso que aí encontrarás bons bordéus em quantidade suficiente para te manterem satisfeito durante muito, muito tempo. Se não me mataste, então desejo-te sorte. Toda a gente fitou Dopplemann quando este se pôs de pé. Tinha a cabeça erguida bem alto e, pela primeira vez, vislumbrámos o homem que fora outrora. - Alturas houve nestes últimos anos em que pensei que seria bom matar Bob Hardwick - disse Dopplemann, na sua estranha voz sibilante -, mas não o fiz. Admito que o anseio de vingança ardeu dentro de mim até já não conseguir pensar. Não conseguia desenvolver o trabalho que costumava fazer porque o meu cérebro parou como um relógio estragado no dia em que Bob me acareou. Culpei-o pela minha ruína quando devia


ter culpado a mulher. Bob deixou-me continuar a viver em liberdade e agora concedeu-me uma segunda oportunidade. Sinto-me acabrunhado com a sua generosidade de espírito. Podem ter a certeza que nunca cometerei outra vez o mesmo erro. - Rosália. - A voz de Montana era baixa e suave quando lhe proferiu o nome. - Isto é para si, de Roberto. Rosália, meu amor verdadeiro. Imaginei inúmeras vezes como teria sido se tivéssemos ficado juntos. Senti a tua falta todos os dias da minha vida e sem dúvida que continuarei a senti-la na morte. É essa a força do meu amor por ti. O rosto de Rosália suavizou-se; pegou na mão da filha e apertou-a com força. Havia nela uma dignidade inata, na forma como erguia a cabeça, o pescoço comprido e elegante, que falava de uma beleza passada, de uma nobreza de comportamento e, mesmo após mais de quarenta anos, toda uma vida sem ele, era evidente que ainda amava o seu Roberto. Ainda guardo as cartas que escrevi e que devolveste, sem abrir. Durante imenso tempo não consegui perceber onde é que errara. Amava-te, sabias isso. Era um trabalhador esforçado, viste isso também. Queria dar-te tudo no mundo: tantas jóias caras quantas conseguisses usar, uma casa magnífica ou talvez duas ou até três, o que tu quisesses. E claro, filhos. Rosália, meu amor, eu queria tanto ter filhos teus que durante todos estes anos sonhei com quem se pareceriam. Um filho como eu? Uma filha como tu? Hei, talvez até gémeos... A verdade, no entanto, é que queria mais alguma coisa. A ambição dominava-me. O meu erro foi não reconhecer como as mudanças na minha vida te afectariam, não entender que tinhas medo do tipo de vida que eu estava a tentar criar para nós. Não consegui compreender que serias incapaz de lidar com a situação, que a separação era a única resposta, que precisavas que a tua vida seguisse como sempre fora. Falhei, mas ao contrário das pessoas reunidas aqui na Villa Belkiss, não me foi concedida uma segunda oportunidade. A tua decisão foi definitiva e, por fim, fui forçado a aceitar esse facto. Prosseguiste com a tua vida e eu com a minha e nunca mais nos encontrámos. Até agora.


Tens de saber, ao escutar as minhas palavras, que estou aqui contigo hoje. Nada me podia afastar. Queria dar-te tudo na vida, mas agora tenho de to dar depois de morrer. Rosália agarrou-se à mão da filha. Atrás dela, Hector inclinou-se para a frente a colocou-lhe uma mão tranquilizante no ombro. Montana continuou a ler. Deixo-te, Rosália Alonzo Ybarra Delgado, a quantia de cem milhões de dólares. Um relâmpago faiscou na sala seguido pelo estrondo violento do trovão que chocalhou as janelas da villa. Filomena gritou e toda a gente se sobressaltou e olhou nervosa em volta. Montana continuou a ler. Deixo também a quantia de dez milhões de dólares à minha filha, Magdalena Alonzo Ybarra Delgado Ruiz. Ouviu-se um murmúrio espantado e todos os olhos se fixaram em Magdalena. Não soube da nossa filha durante muitos anos e estou agora a tentar compensá-la pelo que ela poderá considerar o não cumprimento das minhas obrigações. Quero que saibas, minha Magdalena, que nunca te teria descurado. O dinheiro será guardado num fundo para quaisquer netos, quer meus, quer de Juan Delgado, o homem que teve a sorte suficiente de casar contigo, Rosália, e de te dar mais filhos. O rendimento será pago anualmente e o meu advogado, Arnold Levin, e o meu amigo, Harry Montana, serão fiéis depositários. São homens em quem posso confiar e peço-te que confies neles também. Por isso, minha Rosália, sinto que posso por fim chamar-te "minha", isto é realmente o fim da estrada. Ao contrário dos outros, não estás sob suspeita de me teres assassinado. A tua honra não está sequer em questão. Não existe espaço para o mal na tua alma adorável. E agora direi um breve adeus afilha que nunca conheci e um triste adeus para ti, meu amor. Acredita que mesmo através deste grande fosso, atrás desta cortina final, te amarei sempre. Montana pousou as compridas folhas de papel na secretária e viu Hector levantar-se e ajoelhar-se em frente de Rosália. Pegou-lhe na mão e na de


Magdalena, examinando-lhes os rostos abatidos, parecendo um homem a rezar. A sala estava em silêncio. Lá fora o vento fazia restolhar as árvores. - Não mereço este presente - disse Rosália em voz baixa. - Não posso aceitá-lo. Hector ergueu-se de um salto. - Mas, Rosália, Bob foi tão generoso e amava-te tanto. E, além disso, não é só para ti, é para os teus filhos e netos. Ela abanou a cabeça. - Não sabia que estava grávida quando abandonei Bob. Toda a minha vida estava numa confusão. Pensei que os sinais óbvios de gravidez tinham simplesmente a ver com o facto de não comer. Estava magra, estava preocupada. Tinha medo. Quando por fim percebi, já estava de cinco meses. - Rosália - disse Montana com suavidade -, não há necessidade de nos contar a sua história. É privada, pessoal... - Não, preciso de o fazer. Contei o meu segredo a apenas três pessoas, mas agora, por causa da herança, tenho de vos dizer porque não posso aceitar. Era empregada de mesa num pequeno café para trabalhadores. Juan Delgado era o meu patrão e também o cozinheiro. A comida que servíamos era a comida simples e barata da Andaluzia: peixe, paelha, tapas. Juan era mais velho, um homem simpático na casa dos quarenta, que nunca casara. Trabalhava para ele há cinco meses e ele reparara na minha barriga que crescia, embora eu tentasse disfarçá-la por trás de um grande avental. À noite, depois de o café fechar, era nosso costume jantarmos juntos. Juan cozinhava o que me apetecia, sentávamo-nos e conversávamos, ele com um copo de vinho, eu apenas com água por causa da criança. Uma noite, começou a ficar tarde, mas eu ainda queria falar. Queria contar-lhe sobre Bob e por que razão o deixara. Chorei, Juan ouviu-me e depois perguntou: "E o que vais fazer agora em relação à criança? Vais contar-lhe?" Eu não pensara que ele soubesse, mas, quando o fitei nos olhos, vi apenas bondade. Respondi-lhe que nunca contaria a Bob porque nessa altura seria forçada a ir viver uma vida que me destruiria. Rosália continuou a relatar a sua história:


- "Mas então a criança?", perguntou Juan. "Nunca conhecerá o pai verdadeiro." E eu disse-lhe que era assim que tinha de ser. Cuidaria eu própria da criança. Juan declarou que se apaixonara por mim, que queria casar comigo e cuidar de mim e da criança. Eu também o amava, de uma forma afável, pouco exigente; éramos amigos, compatriotas e agora seríamos pais. Para proteger o meu nome, Juan atrasou o registo do nascimento de Magdalena. Registou-a seis meses depois de ter nascido. Dessa forma, explicou, Bob nunca suspeitaria que era o pai de Magdalena. E contudo - acrescentou Rosália, com um meio sorriso - de alguma maneira, mais tarde, Bob parece ter descoberto. Pensei que só Juan sabia. Contei a verdade a Magdalena quando ela já tinha idade suficiente para entender e porque não poderia viver com a mentira. E, muito mais tarde, contei a Hector, porque ele é o meu bom amigo e não tenho segredos para ele. Percebo agora, claro, que estava enganada. Devia ter contado a Bob sobre a criança. Roubei-lhe o prazer de estar com a filha, mas tinha tanto medo de perder a minha bebé, tanto medo que Bob a levasse para longe de mim. Um homem com todo aquele dinheiro tem poder para fazer qualquer coisa. É por essa razão que não posso aceitar o presente de Bob, embora, claro, a sua filha deva aceitar o que o pai tão generosamente lhe deu. Rosália sentou-se. Toda a gente a fitou, mas ela dobrou a cabeça e pôs-se a chorar baixinho. Para ela era o fim de um romance de amor. Era a minha vez. Olhei para Montana quando ele começou a ler, pensando com nervosismo nos segredos que Bob poderia divulgar a meu respeito. Minha Daisy, deixei-te para o fim porque és a que está mais próxima de mim. Tens andado a aturar-me há alguns anos, mais do que qualquer outra mulher, e isso a viver em estreita proximidade comigo, partilhando os meus bons e maus humores, embora deva dizer-se que consegues agir de forma tão intratável como qualquer mulher que eu conheça, como deves recordar do nosso primeiro encontro no meu restaurante londrino favorito. Ainda tenho a cicatriz daquele alfinete de peito barato horrível que usavas e é por isso que quero que vás comprar outro. Uma coisa a sério desta vez. Vai ao Asprey, em Londres, terão exactamente o que queres. Põe na minha conta, ah, bem, na realidade não, põe na tua conta, miúda, porque por essa altura já terás dinheiro suficiente.


Pensaste realmente que deixaria o solar de Sneadley a outra pessoa qualquer? Na realidade, é o lar de Rats, só lá vais estar para tomar conta dele. Ah, ah, estou só a brincar, claro. Não, rapariga, Sneadley é teu. Sei que o amas tanto como eu e gosto de pensar em ti na casa, numa noite de Inverno, aconchegada em frente da lareira com Rats nos joelhos, ou numa tarde de Verão a distribuir prémios na festa da aldeia com a banda a tocar "Jerusalém" debaixo do castanheiro antigo com quase cem anos. O solar é todo teu, Daisy, lembra-te apenas de me fazeres um brinde com uma cerveja da próxima vez que estiveres com Reg e Ginny no Rarns Head. Quanto à Villa Belkiss. Claro que nunca a vi, mas examinei as fotografias muitas vezes, até quase sentir que a conhecia. O que sei realmente é que é bela. E diferente, inusitada, dramática e tem uma história. Pareces mesmo tu, meu amor. Por isso é tua. Gostarei de te imaginar aí também, sob aquele caramanchão coberto de vinha a beberricar vinho e talvez a pensar em mim. Depois de resolvidas outras doações, deixo-te a ti, Daisy Keane, toda a minha fortuna. Porquê?, poderás perguntar. Porque não consigo pensar em ninguém que a mereça mais. Foste a minha leal companheira nos bons e maus momentos. Aturaste as minhas más disposições, tal como eu aturei as tuas. Acompanhaste-me na doença e na saúde. De facto, não percebo porque raio não estamos bem casados, excepto que sei que não me amavas, pelo menos não dessa maneira. És a minha melhor amiga, Daisy, e sê-lo-ás sempre. Amo-te e amar-te-ei sempre, e olharei por ti, mesmo através deste grande fosso. Por isso aceita o que te estou a oferecer e aproveita o que conseguires. Assim, minha miudinha, esta é a tua segunda oportunidade na vida. Estas não serão as palavras finais que ouvirás de mim. Recorda-te que existe outra carta ainda à espera de ser lida quando regressares a Sneadley. Pensa então em mim, Daisy, porque podes apostar que estarei a pensar em ti. E estarei a abençoar o dia em que te encontrei naquela festa horrível, a tentar fingir que eras uma colunista social, com aquele olhar meio esfomeado nos olhos. Lembra-te sempre que fui o homem que te salvou daqueles horríveis canapés. Não é uma má recordação com que me extinguir. Sabe que te amo. Sempre.


Estava toda a gente a olhar para mim, à espera do que eu iria dizer depois de ter de súbito herdado milhares de milhões. Cruzei o olhar com Montana. Ele sorriu e disse em voz baixa, só para eu ouvir: - Ê o que Bob queria. Não te preocupes com nada. Compreendia que eu estava já a sentir o peso da herança de Bob, mas, mais do que isso, estava a sentir a falta dele. Não queria o dinheiro, só queria Bob de volta. Levantei-me e olhei para os rostos que me rodeavam, lendo-lhes as diferentes reacções: espanto, cólera, alegria, inveja. Mas até de olhos vendados poderia ter adivinhado que emoção pertencia a cada pessoa. - Eu amava Bob. E alguns de vocês aqui amavam-no também. Eu estava quase a bater no fundo, emocional e financeiramente, quando o conheci. Ele levantou-me do chão e deu-me um emprego. Agora, ofereceu-me uma segunda oportunidade, ofereceu-me um lar, o solar de Sneadley, e esta linda villa. Envidarei todos os esforços para mantê-las exactamente como ele teria querido. E amarei e amimarei Rats por ele, tal como ele o teria feito. Sentei-me abruptamente, quase em lágrimas, e um clamor fraco de aplausos rumorejou pela sala. Mas ainda não acabara tudo. Agora era a vez de Montana. Montana ergueu-se atrás da graciosa secretária de ébano onde Vassily Belkiss redigira as suas memórias, revelando segredos tal como os suspeitos tinham revelado os seus. Tinha um ar muito calmo e parecia controlar perfeitamente a situação. As portas estavam fechadas e os dois guardas permaneciam de braços cruzados, sempre alertas, a vigiarem e a escutarem. A sala crepitava de tensão e, lá fora, as nuvens pretas comprimiam-se, tão perto que quase pousavam sobre a casa. Uma saraivada súbita de gotas de chuva, grandes como moedas, ressaltou no terraço e o ziguezague de um relâmpago rasgou o céu, enterrando-se na escuridão do mar. Daisy contou os segundos... um, dois, três, quatro, cinco... depois o estrépito do trovão abanou a casa como se o deus dos trovões estivesse a usar o seu martelo mágico para malhar o céu. - E agora quero contar-vos exactamente como Bob Hardwick morreu disse Montana. Seguiu-se outro murmúrio de choque e os suspeitos endireitaram-se nas suas cadeiras, fitando-o.


- Bob ia a caminho de uma estância de montanha para uma conferência. Fora organizada alguns meses antes e ia sozinho no carro porque Daisy estava com gripe. Claro que não podia saber que um dispositivo explosivo fora afixado ao motor do carro e que um telemóvel, programado em modo de "vibração" para não poder ser inadvertidamente activado por alguém que telefonasse para o telemóvel de Bob, fora plantado por baixo do lugar do condutor. O assassino nem sequer precisava de estar no local. Tudo o que tinha de fazer era ligar um determinado número e o veículo explodiria. O silêncio era quase tangível. Magdalena pegou outra vez na mão da mãe e apertou-a com força. Diane encostou-se para trás na cadeira, de olhos fechados, o rosto pálido. Filomena levou uma mão chocada à boca e as lágrimas rolaram-lhe pelas faces e pingaram-lhe do queixo. Dopplemann olhava em frente com uma expressão vazia como um homem a fitar o espaço. Davis, com os braços apertadamente cruzados sobre o peito, os olhos meio fechados, mirava o chão; e Reg e Ginny lançaram uma olhadela preocupada um para o outro. - Claro que a questão não é apenas como Bob morreu, mas porquê. Bob veio ter comigo alguns dias antes de morrer e contou-me que estava preocupado com umas mensagens de e-mail esquisitas que andava a receber. Para mim, pareciam o início de uma maquinação de chantagem, mas, tanto quanto sabia, Bob levara uma vida exemplar e não havia nada que pudessem utilizar para exercerem chantagem sobre ele. Claro que nenhum homem é perfeito e eu podia estar enganado, mas tinha um pressentimento em relação àquilo. Havia ali mais do que parecia à primeira vista. Ao mesmo tempo, Bob deu-me uma lista de seis pessoas que considerava que lhe guardavam rancor, suficiente para, disse, qualquer delas querer matá-lo. E tudo o que foi preciso para matar Bob foi um telefonema. - Virou-se e olhou para Rosália. - Esse telefonema foi feito na Andaluzia. O rosto de Rosália ficou sem pinga de sangue e, de repente, pareceu muitos anos mais velha e eternamente mais triste. Passado um momento, ergueu-se com lentidão. A voz tinha perdido todo o seu suave encanto, toda a sua energia, quando disse:


- Matei Bob Hardwick. - Virou-se para olhar para Hector. E o homem a quem chamava meu amigo pediu-me para o fazer. Hector estava em Nova Iorque nesse dia; pediu-me para lhe ligar a uma determinada hora, para um certo número. Fiz essa chamada. Fez com que eu matasse o homem que amei, o pai da minha filha... Hector já se levantara. - Ela está a mentir - gritou por cima do estampido do trovão. Por acaso eu estava em Nova Iorque a negócios. Rosália sempre quis mal a Hardwick, ela própria mo contou, contou-me como o odiava porque a abandonara, grávida e sem dinheiro. Disse que se vingaria dele um dia. Matou-o e agora está a usar-me para tentar escapar às consequências. - Foi você que enviou esses e-mails, Hector - retorquiu friamente Montana. - Descobriu onde Bob estacionou o carro. Foi uma questão de segundos para fixar o dispositivo e plantar o telemóvel. Telefonou a Rosália, disse-lhe a que horas telefonar, deu-lhe o número do telemóvel... Hector deu uma corrida para a porta, mas os guardas avançaram para lhe bloquear a saída. Ele rodou sobre si mesmo e precipitou-se para as portas francesas com os guardas atrás dele. Toda a gente estava de pé e, quando ele passou a correr, Daisy agarrou-lhe o casaco. Sentindo-se preso, girou, aprisionou o pescoço de Daisy com um golpe e segurou-a à sua frente. Asfixiada, impossibilitada de se mover, ela ficou à mercê do seu golpe estrangulador. Toda a gente estacou de repente. Bordelaise gritou o nome de Daisy e as outras mulheres arregalaram os olhos, mãos sobre as bocas, aterrorizadas. Os homens avançaram para a frente delas. O rosto de Reg estava sarapintado de fúria quando se abaixou pronto para atacar, mas Montana impediu-o. - Solta-a. - A voz de Montana cortou, glacial, o novo silêncio. Mas Hector recuou em direcção às portas francesas fechadas. De súbito, com um grande silvar de vento, estas abriram-se com força e a tempestade entrou na sala. O vento redemoinhou com um gemido de morte, os relâmpagos ziguezaguearam lá fora, os trovões rugiram, as janelas abanaram e as mulheres gritaram. Arrastando Daisy à sua frente, Hector saiu lentamente para o terraço.


A chuva aguilhoou o rosto de Daisy, cortante como uma lança. Em segundos, ficou ensopada até aos ossos. O cabelo pendia-lhe em faixas molhadas à frente dos olhos e não conseguia ver nada. O medo paralisoua e o corpo afrouxou nas mãos de Hector. Sabia que estava prestes a morrer, Hector preferiria matá-la a ser apanhado. "Ajuda-me, Bob. Por favor, ajuda-me", suplicou em silêncio. O pequeno tornado surgiu não se sabia de onde, girando e rodopiando, cortando entre eles como uma espada. Hector foi atirado ao chão. Montana agarrou Daisy e empurrou-a para fora de perigo. Investiu para Hector, mas o espanhol já se levantara e corria em direcção à pequena porta azul que saía do jardim para o penhasco. Abriu-a com violência e desapareceu na tempestade. Montana ergueu uma mão para impedir qualquer pessoa de o seguir. A porta batia para trás e para a frente ao vento. - É demasiado perigoso com esta tempestade - disse quando um relâmpago ziguezagueou de novo. - Além disso, não pode fugir para sítio nenhum. Estamos numa pequena ilha e a polícia está à espera dele. Daisy estava sentada numa espreguiçadeira, a chorar. Montana foi sentarse ao lado dela. - Nunca me perdoarei por isto. Lamento tanto. Ela acenou com a cabeça para mostrar que estava tudo bem. Esfregando a garganta pisada, disse em voz rouca: - E melhor falares com Rosália. Ela é que nunca se vai perdoar a si mesma. Montana pegou-lhe no braço e levou-a para dentro. Toda a gente se encontrava de pé na sala, molhada e desgrenhada pelo vento, com ar chocado e zangado. Montana pediu desculpa a Rosália e a todos os outros. - Teria preferido fazer isto de outra maneira - explicou -, mas foi o último desejo de Bob, que a coisa fosse apresentada desta maneira. Sei que estão todos a pensar por que razão Hector matou Bob quando nem sequer o conhecia. Por dinheiro, claro. Lamento dizer-lhe isto, Rosália, mas Hector é um burlão experiente. Tem registo criminal em três continentes. Colouse a si no seu tranquilo hotel, longe da polícia e do seu passado, e convenceu-a de que conseguia gerir o sítio melhor do que você. Afirmou que poderia facilitar-lhes a vida a todos e tenho a certeza que ao princípio


foi isso simplesmente que fez. Tornou-se o vosso amigo de confiança, um homem que faria qualquer coisa por si. Por fim, passou-lhe para as mãos a gestão do seu negócio. Confiou nele. Quando lhe trouxe documentos para assinar, assinou-os sem fazer perguntas e Hector tornou-se perito em forjar a sua assinatura. Pediu também dinheiro emprestado hipotecando a sua propriedade e embolsou o dinheiro. Quando os bancos ameaçaram executar a hipoteca, percebeu que tinha de se ir embora, que é o que os burlões como ele sempre fazem. Desaparecem muito simplesmente. Depois recordou-se que lhe contara que Bob Hardwick era o pai de Magdalena. Ao princípio, pensou em chantagem, daí os e-mails ameaçadores. Estava a preparar-se para isso quando viu que era um truque idiota e que era demasiado fácil ser apanhado. Percebeu que, quando Bob morresse, a sua filha única, Magdalena, seria a herdeira legal da fortuna. Bob não tinha outros familiares, não havia mais ninguém para contestar a herança. Era um assassínio aparentemente perfeito no tipo de mundo de Hector. E a beleza do caso seria o facto de nunca poder ser Acusado, porque você, Rosália, seria a pessoa que tinha, por assim dizer, "puxado o gatilho". Magdalena herdaria na mesma e Hector, mais uma vez como o amigo de confiança da família, assumiria o controlo. Não podia falhar. - Nunca mais vou recuperar do facto de ter morto Bob - chorou Rosália. Sempre o amei, tenho a certeza que sabia disso. Foi por isso que nunca veio ter comigo no caso de Magdalena. Sabia que ela era dele e deixou-me ficar com ela. Era um bom homem, todos sabem isso. - Olhou para o grupo assustado, encharcado, que tremia. - Hector não se safará - assegurou-lhe Montana. - A polícia está lá em baixo à espera. Não se preocupem, apanhá-lo-ão, ou a tempestade dará conta dele. Observando os relâmpagos e o vento a rodopiar como um tornado, Daisy apostou na tempestade. Não tinha qualquer dúvida de que Bob voltara para a salvar e nenhuma dúvida de que apanharia Hector. Só então Bob descansaria em paz.


PARTE X DE VOLTA AO BLUE BOAT A ÚLTIMA NOITE Experiência é o nome que toda a gente dá aos seus erros. OSCAR WILDE O LEQUE DE LADY WINDERMERE Éramos um punhado de pessoas deprimidas e muito molhadas a subir o portaló do nosso belo Blue Boat. Montana e eu acompanhávamos Rosália. O seu andar perdera a leveza e caminhava como uma mulher idosa quando, com o braço de Magdalena em volta, regressou à suíte. Montana levou-me até à minha porta. Encostei-me a ela, mãos atrás das costas, olhando com seriedade para ele. Não havia agora respostas tortas entre nós, nenhuns jogos homem-mulher. - Teria matado Hector se te tivesse feito mal - disse Montana em voz baixa. - Não houve necessidade. Bob fê-lo por ti. - Ele ergueu as sobrancelhas numa pergunta. - O tornado que surgiu não se sabe de onde. A ilha não tem ventos como aquele. E não reparaste que não soprava em mais sítio nenhum, só no terraço? Na sua carta, Bob disse que estaria comigo para se assegurar que não me acontecia nada de mal. Acredito que cumpriu a sua promessa. Percebi que Montana pensava que eu estava a ser irracional, que me assustara com os acontecimentos do dia e fora levada a acreditar em algo que era impossível. Mesmo assim não me contrariou. - Acredita no que quiseres, estou apenas contente por estares bem. Ergueu-me o queixo com o dedo e plantou-me um beijo doce nos lábios. Jantamos? - Por favor - retorqui. Beijou-me outra vez e observei-o, com o coração a saltar de novo de alegria, a afastar-se a passos largos pelo comprido corredor forrado com a carpete azul.


Era a última noite do cruzeiro e deveríamos ter um jantar de gala de despedida. Apesar de tudo o que acontecera, e porque eu sabia que era o que Bob teria querido, contactei os convidados que restavam e pedi-lhes para, apesar das circunstâncias, se arranjarem para o jantar. Queria que nos apresentássemos todos com bom aspecto como se não tivéssemos nenhuma preocupação no mundo. O que, calculava, à excepção de Rosália, agora não tínhamos mesmo. Mais tarde, envergando o meu chiffon espuma do mar, com o colar de peridoto que comprara em Saint-Tropez há apenas quatro dias, que pareciam uma eternidade, a tapar-me as nódoas negras, os olhos ainda ligeiramente vermelhos por ter chorado e o cabelo puxado para cima a ameaçar cair, usando o colossal anel de diamante amarelo que Bob me oferecera e a pensar, espantada, que agora podia com facilidade comprar dez desses e mal sentir a alfinetada, um pouco vacilante nos meus saltos demasiado altos, entrei no bar para cumprimentar os convidados de Bob. Era a minha última noite como anfitriã e, com todas as suspeitas desvanecidas, sabia que ele teria querido que toda a gente se divertisse. Diane e Filomena já estavam apoiadas no bar com Bordelaise entre elas, a manter a paz, calculei. Diane parecia mais bela do que alguma vez a vira. Tinha penteado o cabelo ruivo para trás num nó e usava um simples vestido preto Chanel com a gardénia branca no ombro. Filomena envergava um padrão de selva bravia e Bordelaise aparentava a inocente num traje de renda branca, que me parecia recordar de um dos seus casamentos. Cumprimentei-as com um olá e, desta vez, vi-lhes os rostos abrirem-se em sorrisos genuínos. Era tão diferente do que fora antes e eu sabia que era tudo graças a Bob. Ginny, muito vistosa, vestida de renda escarlate, estava a jogar gamão com Brandon, que se mostrava muito elegante no seu smoking. Texas largara as muletas e estava a falar com Melvyn, que tocava os nossos velhos temas preferidos. Só faltavam Rosália e Magdalena, mas já contara com isso. Dopplemann encontrava-se na sala, no entanto, ainda com o seu horrível casaco verde, mas percebi que se sentia melhor consigo próprio e mais confiante.


Davis, sozinho junto à janela, com um copo de Perrier na mão, observava a cena, fazendo parte dela e, contudo, não propriamente. De alguma maneira, eu sabia que da próxima vez que Davis estivesse num iate seria no seu e teria de ser maior e melhor do que o de outra pessoa qualquer. Reg estava a falar do Rams Head a Texas e a Melvyn, que continuava a tocar, bebia uma cerveja Peroni e parecia outra vez feliz. Era um alívio não ter de olhar mais para Charlie Clement, a exibir o seu pequeno sorrisinho superior enquanto mirava as mulheres. Pensei, inquieta, por onde andaria Hector. Montana dissera que era impossível escapar, mas eu continuava preocupada. E, de qualquer modo, como sempre, faltava Montana. Juntei-me às mulheres no bar e pedi o meu habitual cosmopolitan. Bebi um pequeno gole, ergui os olhos e vi todas as três a olhar para mim. - Que é? - Baixei os olhos para o decote, para ver se alguma coisa escapara. - É só o facto de pareceres uma mulher diferente esta noite disse Filomena. - Isso é bom? Elas riram-se. - Pareces anos mais nova - tranquilizou-me Bordelaise. - É o alívio de saber que nenhuma de vocês é assassina - retorqui e Bordelaise ergueu o copo e disse que bebia a isso. Batemos os copos, quatro mulheres unidas, pela vida de Bob Hardwick e pela sua morte, numa cautelosa amizade nova. - Como é que está a tua pobre garganta? - Diane examinou-me, mas o meu collier de peridoto cobria perfeitamente as marcas dos polegares de Hector. - Que homem tão mau. - Diane estremeceu. - Pobre Rosália. Uma exclamação de prazer chegou-nos da mesa de gamão. Ginny vencera Brandon no seu jogo. Ele tartamudeava-lhe os seus parabéns e ela ria-se e gritava de contentamento, completamente desinibida. Era isso que era fantástico em Ginny, não interessava quem a pessoa era ou se era muito rica, tratava toda a gente da mesma maneira. E Reg também. Olhem só para ele agora a oferecer o braço a Texas para a conduzir à mesa de jantar.


Passámos à coberta da popa, onde jantaríamos sob as estrelas, com as luzes de Capri a cintilarem, muito brilhantes. E Montana continuava a não aparecer. Perguntei-me se isto iria ser a história da minha vida. Sentei-me ao lado da sua cadeira vazia, fazendo de conta que não me importava, mas estava a fumegar por trás do meu sorriso. A noite estava límpida depois da tempestade, as estrelas visíveis, o champanhe estava a ser servido, o caviar e ofois gras também. Continuava a não haver sinal de Montana. Perguntei a Diane o que tencionava fazer com o seu castelo em Saint-Tropez. - Vou transformá-lo no melhor hotel da cidade, claro - respondeu, como se não houvesse a menor dúvida. - E vou buscar a minha irmã para viver comigo. Darei a Alice o melhor quarto com vista para o mar, onde possa ver os barcos a passar. Lamento tanto as coisas más que disse sobre Bob, a forma como me comportei. E desculpa por ter sido malcriada contigo, Filomena. - Não faz mal - respondeu Filomena. - E sabem que mais, é estranho, mas pensei sempre em Bob como um homem que fazia dinheiro e não se interessava particularmente por mais nada, excepto talvez pelo seu cão. Agora percebo que se interessava por todos nós. Entendia quem eu era e agora nunca mais terei de ser amante de outro homem. Olhei para Davis, a beberricar o seu Perrier, sem dizer nada. - E o que lhe reserva o futuro, Davis? - perguntei. Ele ergueu um ombro indiferente. - Sucesso, claro. Que mais interessa? - E Herr Dopplemann? Dopplemann levantou-se. Como de costume, segurava um copo de um belo bordéus, um Léoville Las Cases, um preferido de Bob, que, sentindome culpada por o ter julgado mal, eu mandara decantar especialmente para ele. - Há alguns anos tomei uma decisão muito tola. Agora, graças a Bob, recebi uma segunda oportunidade. Ele teve confiança em mim e vou esforçar-me por demonstrar que tinha razão. Brindámos àquilo e ele sentou-se outra vez. Por esta altura, tínhamos terminado as entradas e depois comemos o peixe, um delicioso peixe-


galo. Os pratos foram levantados e seguiram-se saladas decoradas com lindas flores comestíveis, junto com queijos perfeitos. - E então tu, Daisy? - perguntou Bordelaise. - O que planeias fazer da tua vida agora? Eu não planeara nada para além de descobrir o assassino de Bob. Na minha cabeça confusa, o futuro envolvera de algum modo Montana, mas obviamente isso era apenas outro sonho impraticável. - Não sei - respondi, corando sob o olhar de todos. - Ainda não interiorizei isto tudo. Suponho que doarei uma data de dinheiro para uma fundação, para ajudar crianças doentes, a luta contra a fome, oh, e a sociedade local para a prevenção da crueldade contra os animais. Bob foi sempre apoiante. E, claro, Sneadley será a minha casa, embora calcule que vá passar muito tempo na villa, no Verão. Ergui-me, copo na mão, e disse: - Quero propor um brinde a Sir Robert Waldo Hardwick, cavaleiro da rainha, um homem justo e leal. Um homem bom, apesar de às vezes ser um pouco déspota - acrescentei, fazendo-os rir, e comemorámos por fim a vida de Bob, tal como ele tivera esperança que fizéssemos. Montana apareceu enfim para a sobremesa, o BakedAlaska, outro dos favoritos de Bob. Baixaram as luzes e, ao rufar do tambor, o empregado surgiu erguendo ao alto a travessa de prata com o gelado flambeado e, rindo-se, toda a gente aplaudiu. Quando Montana deslizou para a cadeira ao meu lado, atirei-lhe uma olhadela fulminante que não lhe deixou dúvidas de que estava completamente chateada com ele. - Peço desculpa por chegar atrasado, fiquei retido devido a alguns telefonemas - declarou para a mesa. - Tenho notícias. E, a propósito, já as transmiti a Rosália. O chefe da polícia informou-me que cercaram Hector nos penhascos. Ele tentou fugir, estava escuro e molhado, não conhecia o terreno. Há ali uma fissura funda nos penhascos; não a viu. Encontraram o seu corpo nas rochas em baixo. Seguiu-se um silêncio atordoado e depois Dopplemann disse obrigado e toda a gente se juntou num coro de obrigados a Montana, o homem que, reunindo todas as peças de um quebra-cabeças internacional, solucionara o mistério da morte de Bob.


Ele virou-se para olhar para mim. - Desculpa por ter chegado atrasado. Encolhi os ombros, de forma indiferente, e bebi outro gole de champanhe. - O que é que isso me importa? - Mirei-o por cima do rebordo do copo. Ele riu-se, sabendo que eu estava a fingir. - Bob avisou-me que tinhas tendência para mentir um pouco. Acho que tinha razão. Estávamos sozinhos no convés. Passava da meia-noite e as estrelas eram visíveis no céu azul-escuro. A água fendia-se suavemente na nossa proa, o rasto do navio espumava atrás de nós e as estrelas brilhantes cintilavam como velas acesas. Encontrávamo-nos lado a lado, sem nos tocarmos, enquanto o Blue Boat avançava em direcção a Nápoles, onde desembarcaríamos. Terminara. Montana quebrou o longo silêncio. - Há uma coisa que precisas de compreender a meu respeito. Começou quando eu era apenas um rapazinho. Recordas-te de te falar na égua que montava para ir para a escola todos os dias? Era a minha companheira mais íntima e amava-a como só acontece com um rapaz que não tem mais nada para amar. Um dia, sem eu saber, um dos cobóis levou-a para os campos. Havia algum arame farpado, ela ficou presa no flanco, cortou-se com gravidade. Descuraram os ferimentos. Quando a trouxeram de volta ao rancho, os cortes estavam muito infectados e o membro inchara para duas vezes o tamanho normal. O meu pai examinou-a, encolheu os ombros e foi ao estábulo buscar a arma. Disparou mesmo à minha frente. Ela relinchou quando a bala a atingiu. Vi-lhe as pernas dobrarem-se como se em câmara lenta, vi-a rolar para o lado. Ergueu a cabeça para mim como se a perguntar porquê e depois os olhos ficaram vítreos. "Desfaçam-se dela", disse o meu pai aos rapazes e, em poucos minutos, tinham passado laços à volta da minha égua e estavam a arrastá-la. Naquele momento a minha vida mudou. Mentalmente, já não estava ali. Foi apenas uma questão de tempo até partir. E jurei nunca mais amar nada nem ninguém. Toquei-lhe no braço com ternura. - Mas deves ter chorado - disse.


- Esforcei-me por não chorar. Foi só na noite em que conheci Phineas Cloudwalker que percebi que não fazia mal chorar. compreendi por fim que o amor causa muito sofrimento quando acontecem coisas más. E foi por causa dele que comecei a entender que podem também advir coisas boas do amor. Virou a cabeça e os nossos olhos cruzaram-se. - Como é possível gostar tanto? Conheço-te apenas há pouco tempo declarou. - Eu sei. - A minha voz ainda estava rouca por causa do ataque de Hector. E vimo-nos durante quantos dias no conjunto? - Muito poucos - respondeu. - Não os suficientes. - É um princípio, no entanto. Assenti com a cabeça, sim, era. - Um novo princípio para mim - acrescentou ele. - E uma segunda oportunidade para mim. - Sorri ao repetir as palavras de Bob. - Suponho que a vida é isso mesmo - disse Montana. - Suponho que é. - Então dás-me um beijo? - perguntou ele. - Porque não? - retorqui, já sem fôlego. - Pelo menos é um começo.


PARTE XI UM ANO DEPOIS O bom acabou ditosamente e o mau desditosamente. É isso que significa a ficção. OSCAR WILDE A IMPORTÂNCIA DE SE CHAMAR ERNESTO É uma noite de sábado e Bordelaise e eu vamos levar Rats ao Rams Head para uma salsicha e uma cerveja amarga Tetleys, tal como Bob e eu costumávamos fazer. Rats fareja todo contente pela estrada familiar fora, erguendo a perna nas suas árvores favoritas, abanando a cauda curta para as pessoas que conhece e elas param para o cumprimentar e para me cumprimentarem a mim. Faço agora parte do mosaico da vida de Sneadly, sou a senhora do solar, como eles dizem. Passo aqui a maior parte dos fins-de-semana, embora esteja em Londres durante a semana ou, por vezes, em Nova Iorque, dirigindo a fundação de caridade que criei em memória de Bob. Mantém-me ocupada e sinto orgulho no que faço. Orgulho por fazer parte de uma equipa internacional que trabalha em prol das crianças em todo o lado. Bordelaise veio de Chicago visitar-me e toda a gente aqui gosta dela. Amanhã dou um almoço. Vou ver se consigo que se ligue romanticamente a um dos cavalheiros de boas famílias da zona, embora não conheça mais ninguém por aqui que tenha sido casado três vezes. Mesmo assim, será uma novidade e ela vai impressioná-los muito e encantá-los, virão comerlhe à mão num instante, embora, se pensarmos nisso, mesmo com um Aga, os cozinhados dela não são tão famosos assim. De facto, o cruzeiro foi a melhor coisa que aconteceu a Bordelaise e sei que ainda se mantém em contacto com o comandante Anders. Já se inscreveu para outro cruzeiro, desta vez num grande navio, que parte de Roma na semana que vem, e depois num segundo, no Inverno, até à Austrália, com metade do


mundo pelo meio. Os cruzeiros parecem satisfazer-lhe a necessidade constante de mudança e ela jura que acabará como mascote do navio, uma senhora de idade adoptada pela tripulação, com o seu camarote permanente, a dobrar guardanapos para ajudar e manter-se ocupada. Não creio que isso vá acontecer. Bordelaise será volúvel e livre até aparecer o próximo sedutor e sem dúvida que serei dama de honor mais uma vez. Na próxima semana vou a Saint-Tropez para a inauguração do hotel de Diane. Claro que já o vi e ela fez um trabalho magnífico. Outra coisa não seria de esperar de uma mulher com o gosto dela. E com o dinheiro que tem, quase ouço Bob a dizer com uma risada. A irmã Alice é uma doçura, quase como uma criança na realidade, e Diane diz que percebe que ela se sente em casa no Château de Valentinois. Anda feliz e divertida e Diane arranjou-lhe um cãozinho, um pequeno Bichon Frise branco chamado Billy. Trata dele todos os dias, dá-lhe ela própria de comer, e o cão senta-se ao colo dela na cadeira de rodas eléctrica, quando vão dar passeios pelas áleas dos bonitos jardins. É estranho, mas Diane parece já não se importar tanto com a sua aparência; sente-se confortável de calças e camisa, muito à maneira da castelã, muito à maneira da patroa. Posso garantir que levou a equipa de trabalhadores à loucura, mas conseguiu que o trabalho fosse feito em tempo recorde. Quanto a Filomena, claro que a vejo, porque estou com frequência na Villa Belkiss. Está no seu elemento, fazendo compras para a sua boutique com a sua tentadora montra exibindo a mala perfeita franjada de contas, ou o pequeno íop sexy cor de dióspiro, ou um vestido de Verão muito deslumbrante. Provou ser uma vendedora fantástica, vestindo as suas clientes da cabeça aos pés quando tudo o que elas tinham querido saber ao entrarem era o preço da mala na montra. E a sua pequena casa, ao cimo de um lance de degraus com um arco, com uma vista longínqua sobre a cidade e o mar, é um prazer calmo em azul e branco, um pouco como o Blue Boat, agora que penso nisso. Tem um homem na sua vida também, o proprietário de um dos melhores restaurantes da ilha. A vida está a correr bem para Filomena.


Ouço falar de Davis Farrell, claro, embora nunca o veja. Fiel à sua promessa, é mencionado quase diariamente nos periódicos financeiros. Está já a corresponder à sua anterior reputação de manipulador desonesto e hábil e tem o êxito garantido. Bob ofereceu-lhe a sua alma de volta e ele recusou. Seja como ele quer. Também não tenho visto Dopplemann, mas vai dando notícias com um email de vez em quando. Trabalha para uma empresa suíça e pelo que diz está no seu elemento. Desejo-lhe tudo de bom. E agora Rosália. Alguns meses depois do cruzeiro, Madgalena escreveu a dizer que a mãe gostaria de falar comigo, por isso fui até à Finca de los Pastores. Encontrei Rosália triste e distante. Já não se interessava pelo seu hotel; não cozinhava, nem sequer falava com os seus hóspedes. Sentei-me com ela no pátio da sua bela casa, onde um pavão branco abriu a cauda para nós, como uma nuvem tremeluzindo à luz do Sol. Magdalena persuadira Rosália a conservar o legado de Bob e ela perguntou-me o que deveria fazer com ele. Disse-me que não parecia certo utilizá-lo para as suas próprias necessidades, embora o dinheiro lhes tivesse permitido recuperar a propriedade aos bancos que, por causa da fraude de Hector, tinham estado quase a executar a hipoteca. Exortei-a a prosseguir com os planos para construir um anexo e o novo hotel no sopé das Sierras com que sempre sonhara. - Vai conseguir - disse-lhe, sabendo que era verdade. - Já o fez antes, em circunstâncias muito mais difíceis. Agora não tem crianças para alimentar. Esqueça Hector, esqueça as coisas más e avance, deixe tudo para trás. E altura de viver. A minha persistência deve ter dado os seus frutos, porque na noite antes da minha partida, Rosália voltou às cozinhas e preparou-me um jantar que nunca esquecerei. E Magdalena escreve a dizer que ela voltou a assumir a gerência e que vai prosseguir com os planos para o novo hotel. Quase não aguento mencionar o nome do homem mau, mas Charlie Clement está a cumprir uma pesada pena numa prisão francesa. Exactamente onde devia estar. Reg Blunt conta uma boa história a qualquer pessoa que entre nopub e aguente ouvi-lo (por esta altura, já a ouviram todos um milhão de vezes): sobre o Blue Boat, sobre as pessoas que conheceu e como foi divertido.


Não entra em detalhes em relação aos outros acontecimentos; é um homem discreto, uma das razões por que Bob gostava dele. Também não fala das cem mil libras que Bob lhe deixou, mantém o Ferrari que também lhe deixou escondido na garagem e puxa-lhe o brilho todos os dias. Não sei se alguma vez o levará para dar uma volta; acha que é demasiado bom para ficar "enlameado". E Ginny é... bem, é simplesmente Ginny. As cinquenta mil que Bob lhe deixou estão investidas em segurança e vejo-a a guiar o Mercedes descapotável de Bob pela aldeia a caminho de Harrogate para fazer compras, sempre a sorrir, sempre a namoriscar, sempre ocupada com a sua família. Nenhum homem especial ainda, mas mantém a esperança. A Sra. Wainwright ainda trabalha para mim como governanta, juntamente com Brenda e Stanley, que receberam todos legados no testamento. Bob não esqueceu ninguém, até deixou dinheiro para reparações na igreja. Texas e Brandon foram bem pagos pelo seu trabalho como manobras de diversão e a nova segurança financeira deu a Texas uma renovada confiança. Brandon tem "contactos" no mundo da música e ela canta agora em bons clubes e tem também um pequeno papel num filme próximo. Desta vez, está com esperança de ter sucesso. Quanto a Brandon, descobriu uma nova vida nos paquetes de cruzeiro. "Têm tabuleiro de gamão, viajo" é o seu lema. Creio que ganha bem a vida dessa forma. A bordo do navio vive como um rei e, claro, as mulheres têm um fraco por ele. E o tipo de vida que lhe convém, pelo menos por agora. Bordelaise e eu chegamos por fim zo pub. Ginny acena-nos por detrás do bar e Rats corre para ela, pronto para o seu miminho. Os velhotes cumprimentam-nos com a cabeça por cima das suas cervejas quando passamos, depois Reg chama-me. Tem um olhar estranho no rosto. - Podia jurar que vi Bob mesmo agora - diz. - Aqui, sentado no velho sofá, com uma cerveja, como sempre fazia. Vi-o pelo canto do olho; depois virei a cabeça e ele tinha desaparecido. - Aposto que viu - respondi, sorrindo. - Aposto que voltou finalmente para casa. Nunca tive a sorte de ver Bob, embora ainda sinta a sua presença amorosa, como costumava sentir naquela brisa suave. Gosto, faz-me sentir bem, mas também Bob sempre me fez sentir bem. E não me


interessa o que todas as outras pessoas pensam, acreditarei até ao fim dos meus dias que me salvou de Hector. Recordam-se que existia uma última carta, para ser aberta quando chegasse a altura certa? Quando voltei a Sneadley depois de Capri, senteime sozinha na bela sala dourada com os raios oblíquos do Sol do final da tarde a entrar e Rats nos joelhos e abri-a. Daisy, meu amor, escrevia Bob. Tens de convir que te tramei bem, no que aposto pensaste ser uma inútil caça aos gambozinos. Não foi bem isso, no entanto, pois não? Claro que não sei quem foi o meu assassino, caso contrário Montana teria tratado dele antes do facto e não depois, como infelizmente sucedeu. No mais fundo do meu coração, no entanto, ainda tenho esperança que não fosse um dos meus candidatos a uma segunda oportunidade. Sempre pensei que tinham todos alguma coisa melhor a oferecer ao mundo, se conseguissem superar os seus pontos fracos e endireitar a vida. Falhei no caso de Charlie Clement, mas também foi sempre uma hipótese remota. De qualquer maneira, querida, agora sabes que tenho uma filha. Não te contei, nem a Montana, porque queria respeitar a privacidade de Rosália. Descobri que a tinha anos mais tarde, quando Rosália já estava casada. Sabia que ela queria que eu não interferisse, por isso mantive-me afastado, embora Deus saiba que foi difícil. Sabia também que não aceitaria um cêntimo meu enquanto eu fosse vivo; ela não era assim. Tive de esperar até agora, quando estou morto, para fazer "o que é correcto" por elas. Espero que ela o tenha aceitado no espírito de amor com que foi dado. Entretanto, querida, aposto que organizaste um bom espectáculo na Villa Belkiss. Aposto que correu tudo exactamente como eu planeei, se o tempo o permitiu, claro, embora eu possa ter uma mãozinha nisso também... nunca se sabe. Agora és uma mulher rica. Como é que te sentes? O dinheiro faz-te feliz? Deixa-me dizer-te por experiência própria o que faz o dinheiro. Compra-te liberdade. Liberdade em relação às privações e liberdade em relação às preocupações. Não compra, como dizem sempre com tanta razão, a felicidade. Sei que farás coisas boas com o dinheiro, tal como sei que


cuidarás do solar de Sneadley, que foi a nossa casa, rapariga, durante alguns anos. Sei que pensas nela como um lar e que gostas dela. E a Villa Belkiss parece o sítio perfeito para encontrares a paz e o sol e, quem sabe, talvez até o amor. Por falar em amor. Recordas-te como estava sempre a tentar arranjar-te parceiros? Que rejeitaste todos, demasiado alto, dizias, demasiado baixo, demasiado entediante, pensa que é demasiado inteligente, não gosto de bigodes. Arranjavas todas as desculpas e mais algumas e tudo porque tinhas medo de te apaixonares outra vez. Recordas-te de te ter dito que pensava ter encontrado exactamente o homem certo para ti? E não só, sei que gostará também de Rats e isso é importante. Dá uma hipótese a Montana, Daisy. E a ti também, desta vez. - Recordas-te que também disse na minha primeira carta que cuidaria de ti se surgisse algum perigo? É provável que já saibas por esta altura que estava a falar a sério. Vou sentir saudades tuas, Daisy Keane. Cuida bem de ti. E de Rats. E do meu homem, Montana. E recorda-te, Daisy. Vive o presente. Não há nenhuma garantia em relação ao amanhã. O teu dedicado B. H. Como sempre, Bob, o meu ogre no cimo do feijoeiro, o meu inteligente Shrek, o meu melhor amigo, que sabia tudo e via tudo, tinha a última palavra. E então o que dizer de Montana? Por causa de Bob, encontrei por fim o homem dos meus sonhos e é tão diferente de tudo o que esperei que virou o meu mundo de pernas para o ar. É um homem ferido por falta de amor e eu sou uma mulher marcada por um amor errado. Como é que poderemos conseguir que as coisas resultem? Estamos apaixonados? Sim, oh, sim. Ele diz que me ama? Finalmente sim. Eu amo-o? Claro. Mas Montana é um homem dedicado ao seu trabalho e esse trabalho leva-o a viajar para todo o mundo, muitas vezes sem grandes avisos. Dizem que não se pode mudar um homem e não tenciono tentar. Rosália deixou Bob porque sabia que nunca seria capaz de o mudar e eu não vou


cometer esse erro. Montana é o homem que é. A sua vida é o que é. Ficarei com o que puder dessa vida e além disso adoro-a. A nossa vida é um perpétuo romance. Passamos longos fins-de-semana em Sneadley e as nossas semanas de Verão na Villa Belkiss. Encontramonos em pequenos hotéis e pensões em Istambul ou Marraquexe, em Quioto ou Roma... num sítio qualquer do mundo. Bebemos vinho, beijamo-nos em cantos sossegados de restaurantes íntimos, passeamos de mãos dadas por vielas empedradas de pequenas aldeias mexicanas, vagueamos por caminhos de areia em estâncias balneares pouco conhecidas e fazemos amor em qualquer lado e em todo o lado. com Montana, a vida é diferente todos os dias e é isso que adoro. Este cenário é conducente à felicidade? Para nós sim. Pelo menos por agora. E, para dizer a verdade, desde que tudo isto aconteceu, aceitei o conselho de Bob e tornei-me uma mulher que vive um dia de cada vez. O meu lema é: agarra o momento e sê feliz. E se me perguntarem agora: então, és feliz? Bem, sim sou. E com a sorte, e Bob Hardwick, do meu lado, acredito que durará para sempre. E talvez desta vez, eu tenha a última palavra.


NOTA DA AUTORA Infelizmente, o belo Blue Eoat é fruto da minha imaginação, uma combinação de todos os iates sensacionais e deslumbrantes que flutuam pelo Mediterrâneo. Quem me dera que pudéssemos todos viajar neste barco!

AGRADECIMENTOS Um grande obrigado, como sempre, à minha editora Jen Enderlin, que é simplesmente a melhor; à sua assistente, Kim Cardascia, que está sempre pronta a ajudar-me. E à minha fantástica agente, Anne Sibbald, e à maravilhosa equipa do Janklow & Nesbit Associates. Adoro-vos a todos.

Fim


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.