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Pai Nosso que estais nos Céus... A Consciência-do-Ser
Carlos Coléct Pontal do Paraná – Pr 07/2016
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Prefácio
Tendo em vista a padronização e disseminação do Ideal de Deus1 como Deus-pai nas instituições monoteístas e monólotras, procuro trazer este ensaio como uma proposta de reflexão acerca de tal visão paterna que rege os caminhos do Homem sem, de modo algum, depreciar qualquer crença, e sim ampliar o modo de ver algo tão substancial no caminho do Homo Sapiens. Sirvo-me de textos bíblicos e da investigação psíquica e científica para propor uma possibilidade de ampliação do ângulo de perspectiva das tradições conceituais monoteístas retiradas das passagens que falam de um Pai Superior, sobretudo nos versos do Novo Testamento da Bíblia judaico-cristã. As formas de se compreender esta figura Pai são as mais diversas, no entanto, gostaria de trazer outro prisma. Na explanação do rabino Yeshua sobre oração, por exemplo: Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto2; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente. (Mateus 6.9), Pai pode
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Em O Éden Perdido: onde está o teu Paraíso? (2014), explico detalhadamente a visão do Ideal de Deus.
Todavia, para uma maior compreensão, resumo. Religião, a meu ver, não diz respeito somente ao que compreendemos como sistemas eclesiásticos ou clérigos, como o judaísmo, cristianismo, budismo,...... Ela é tudo o que há na vida do Homem, porque tudo é uma forma de religação a uma condição melhor, um pseudoparaíso. Eu observo isto pela ótica da análise psíquica. Por esta visão, tudo o que o Ser Humano deseja é um retorno ao paraíso. Isto se expressa em todos os contextos humanos. Habitávamos o ventre materno, lá tínhamos aconchego, calor, sustento e, sobretudo, esquecimento da dor e do sofrimento. Neste lugar que se registrou em nossa psique, estávamos conectados por um cordão a algo (poder) que nos mantinha vivos; um Poder oculto sem face e sem forma (organismo materno) que ao mesmo tempo em que era um Poder externo também era o Lugar onde nos encontrávamos (organismo materno). Fomos expulsos desse paraíso e passamos a ter consciência da dor e sofrimento, algo rompeu a quietude e a completude. Começamos a ser seres de incompletude e angústia dentro de uma existência. Rompeu-se o cordão umbilical, ficando um buraco na barriga de cada um de nós, uma lembrança de que estávamos em um lugar "registrado" como melhor. Este buraco umbilical se tornou o centro da humanidade, assim como representa o desenho do Homem Vitruviano de Da Vinci. Passamos, desde então, a buscar uma "religação "(religião - religare) desse cordão umbilical. Buscamos este Poder oculto (organismo materno - ideal de deus) que nos mantinha vivos no Paraíso intrauterino. Como não tem face e nem nome, ele é representado de várias formas e em tudo. Tudo o que oferece esse retorno a um estado de completude é o ideal de deus (organismo materno) que está gravado na nossa psique. 2
“Secreto”, do grego “kruptos”, pode ser comparada a “cripta, catacumba”, ou seja, um local de silêncio, com
ausência de palavra e som.
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se referir a um Eu Maior que está no oculto (orando ao Pai que está em secreto) para além do materialismo da ciência de Newton ou da visão platônica e personificada do Cristianismo. Por este lado, seria Pai a representação de um outro Eu em uma esfera maior ou, em outro modo de dizer, poderia ser uma Consciência-do-Ser? Não seria esta uma característica do Pai, uma consciência maior e instrutiva que nos guia ao bom e melhor? Sob esta visão, o Pai é, então, uma parte de mim, um Eu Maior que "recompensa" quando é encontrado, como também diz o texto de Mateus 6? E o que é recompensa senão uma derivação de "compensar" (equilibrar, balancear)? Assim, o Eu Maior ou Consciência-do-Ser quando encontrado dentro de nós produz um reequilíbrio que, em outras palavras, poderia ser denominada Liberdadedo-Ser? O presente ensaio filosófico-teológico se propõe a caminhar nestas questões, objetivando ampliar o sentido da Paternidade Sagrada absorvida tradicionalmente, acima de tudo, no mundo ocidental. Anseio que os pensamentos, aqui oferecidos, sejam abrigados em uma alma inteligente ou auxiliem o crescimento da inteligência. O que quero dizer? Quero que usemos e estimulemos a nossa inteligência. Mas o que é ser inteligente? De acordo com a palavra grega sunesis, é "juntar". O inteligente, desta forma, não é aquele que tem muitas informações (comum na era da informação), e sim é aquele que sabe dar sentido (juntar) as informações. O Inteligente é aquele que não tem uma visão sectária, pelo contrário, tem a habilidade de "juntar" e "ligar" as visões diversas da humanidade. O inteligente não é aquele que vê tudo separado e desconexo, é, no entanto, aquele que tem uma visão do Todo e que observa a união do Todo. Nada, para este, é separado. Nada é desconexo para o inteligente. Este ensaio, portanto, tem como finalidade ser um meio para que nos tornemos mais inteligentes, mais habilidosos na capacidade de juntar a humanidade partida, cujos pedaços se encontram espalhados dentro de cada Ser.
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SUMÁRIO
1. A Sagrada Família........................................................................................................5 2. Possível surgimento do Monoteísmo ......................................................................... 9 3. O Deus Um................................................... ................................................................. 15 4. Ênfase na paternidade do homem......................................................................... ..18 4.1 O Deus-pai bíblico .......................... .................................................... ...............................21
5. O Monoteísmo masculinizado.................................................................................. 24 5.1 A busca pelo Ser -Masculino sagrado.......................... ...................................................26
6. Deidade e paternidade..............................................................................................28 6.1 Funções psicológicas superiores ................................................... ..................................31 6.2 Reforçamento positivo e modelação........... ............................... ....................................33 6.3 Eus infantis ..................................................................................... ...................................35 6.4 Extremismo...................................................................................... ..................................37 6.5 David, o grande rei......................................... ..................................................................39 6.6 Paulo, o fundamentalista......... .................................................... ...................... ..............40 6.7 Suicídio altruístico........................................................................ ...................... .............43 6.8 Religião e Solidariedade ........................................................... .......................................47
7. A Consciência-do-Ser - poder que conduz.............................................................52 7.1 Eu e o Pai somo Um........................... ...............................................................................54 7.2 Resgate da filiação e a Liberdade -do-Ser...................................... ...............................55 7.3 O Lugar e a Consciência –do-Ser........................................................ .............................57 7.4 Lei divina e universal da construção da realidade....................................... ..............62 7.5 A Partícula Intraduzível....................................................... ...........................................63 7.6 A Fé saudável...................................................................................... ...............................65 7.7 A Verdade e o caminho do conhecimento................................ ......................................69
8. Consciência-do-Ser e a identidade expansiva....................................................... 73
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1. A Sagrada Família
Nós, humanos, sempre nos relacionamos com um Sagrado. Segundo evidências, construímos, desde o obscuro início de nossa história, formas de relação com estes poderes que nos eram misteriosos, todavia, presentes no cotidiano. O poder da chuva, o crescimento das plantas, o sol, a lua, rios são alguns desses mistérios inexplicáveis ao Homem primitivo. Além desses poderes naturais que despertam a interrogação na mente humana, o nascimento e a morte são, quem sabe, os fenômenos que mais carregam a ideia da existência de algo sobrenatural e que transcende a vontade do Homem. Animismo, animatismo, culto aos antepassados, alma imortal, totemismo, são algumas das formas primitivas em que a sociedade humana encontrou para manifestar suas devoções a este sobrenatural ou Sagrado — algo separado (sacro) e elevado da condição limitada e humana. Deuses surgiram, estátuas foram fabricadas, postes-ídolos levantados, templos erguidos, cultos estabelecidos, enfim, um vasto sistema de devoção e adoração foi fundado com a finalidade de satisfazer a alma humana, trazer algum sentido existencial e alcançar benefícios no controle da natureza. Sendo o Sagrado um poder invisível, nós o modelamos conforme as imagens e formas que nos eram conhecidas. Estabelecemos para ele as hierarquias que nos eram comuns. Assim, no caminho das devoções da civilização antiga, a imagem dos nossos muitos deuses se fundiu no modelo familiar monárquico, isto é, Rei (pai), Rainha (mãe) e príncipe (filho). Nesta família, o Deus maioral, coroado como Rei, apropriou-se da figura masculina ideal, atribuída de paternidade, força, provisão, autoridade,...; a Deusa, por sua vez, vestiu-se da figura feminina ideal, mulher e esposa dotada de fertilidade, estética,
sabedoria,
sensualidade,...;
o
obviamente, assentou-se como
beleza
Príncipe, o Filho,
Hórus, Osíris e Isis (família de deuses do Egito)
sucessor do reino ou império, guerreiro e herdeiro dos atributos divinos paternos. É possível, segundo estudiosos, que este formato de panteão tenha se desenvolvido através do culto aos antepassados. Uma fixação nas figuras paternas transferiu a imagem dos pais e antepassados em uma imagem familiar sagrada. Tais modelos sacralizados nos foram
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deixados como herança pelas culturas dos nossos ancestrais. Suméria, Babilônia, Egito, Grécia e até mesmo os hebreus legaram a santa trindade familiar. É plausível pensar que uma das mais antigas e precursoras famílias sagradas tenha sido a descrita na mitologia babilônia: Ninrode, Semíramis e Tamuz 3. Diz o conto que Semíramis, estando grávida, deu à luz a Tamuz após a morte de seu marido Ninrode (fundador de Babilônia). Semíramis reivindicou que o seu filho era a reencarnação de Ninrode e que fora concebido de maneira sobrenatural; afirmou-se que o filho sagrado era a semente prometida, o "Salvador" da humanidade sofrida. Segundo o mito, Tamuz é morto por um porco selvagem quando, ainda moço, sai para uma caçada na mata. Semíramis, diante da perda, reúne as mulheres de Babilônia e convoca jejuns. Depois de 40 dias de jejum e clamores, Tamuz volta à vida e Semíramis passa a ser adorada como a doadora da vida (Rainha dos céus). Através dos sincretismos regionais, Semíramis, entre os cananeus (origem dos israelitas), ficou conhecida como Asherá 4, esposa de Baal. Os textos dos profetas bíblicos trazem referências da presença de Asherá - Rainha dos Céus e Tamuz em meio aos cultos israelitas: Levou-me à entrada da porta da Casa do SENHOR, que está no lado norte, e eis que estavam ali mulheres assentadas chorando a Tamuz. (Ezequiel 8.14); Os filhos apanham a lenha, os pais acendem o fogo, e as mulheres amassam a farinha, para se fazerem bolos à Rainha dos Céus; e oferecem libações a outros deuses, para me provocarem à ira. (Jeremias 7.18); Também pôs a imagem de escultura do poste-ídolo [asherá] que tinha feito na casa de que o SENHOR dissera a Davi e a Salomão, seu filho: Nesta casac e em Jerusalém, que escolhi de todas as tribos de Israel, porei o meu nome para sempre; (2 Reis 21.7).
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[Filho da Vida] Deus da fertilidade adorado na Mesopotâmia, na Síria e em Canaã. É o Osíris dos egípcios e o
Adônis dos gregos. Num dos portões do TEMPLO as mulheres israelitas tinham a ousadia de chorar a morte de Tamuz, que diziam que ressuscitava no ano seguinte (Ez 8.14). (Bíblia digital Libronix. Nova tradução da linguagem de hoje. SBB) 4
Deusa da fertilidade representada por um poste (tronco), às vezes esculpido (2Reis 21.7). Era adorada pelos
cananeus em culto imoral. Seu companheiro era BAAL. Não confundir Aserá com ASTAROTE. (Bíblia digital Libronix. Nova tradução da linguagem de hoje. SBB) c
21.7 1Rs 9.3-5; 2Cr 7.12-18
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Posteriormente, a sincretização gerou outras famílias sagradas no mesmo molde babilônio, tal como Pã, Vênus e Cupido na mitologia latina, José, Maria e Jesus na tradição cristã. Segundo Thomas Bulfinch, em O Livro de Ouro da Mitologia, Pã, o deus latino, foi considerado o representante de todos os deuses, bem como do paganismo; também foi considerado o símbolo do universo e da natureza, visto que seu nome significa Tudo. Na ótica do sincretismo regional, a representação de Tudo (Pã), cabe também na figura do Deus-Pai da família sagrada cristã que, ao longo dos anos, substituiu José. O pai-homem foi ocultado, ficando apenas a representação física de Jesus e Maria.
Vênus, Pã e Cupido. Museu Nacional de Atenas.
No imaginário humano, o pai se transformou no grande Deus oculto. Alguns entendem que a imagem de Jesus e Maria é uma manifestação de orfandade, ausência do homem e elevação da mulher. A meu ver, não demonstra exatamente a ausência do pai-homem, pelo contrário, o eleva a um nível tão alto em que a imagem humana não lhe cabe. É como se ele fosse colocado numa sala real, a exemplo dos grandes palácios antigos onde o rei se assentava no trono e ficava separado da esposa e do filho, cuidando dos afazeres do reino ou império. Assim sendo, Maria e Jesus Visão segundo o cristianismo
tal imagem, em minha percepção continua revelando o modelo familiar sagrado monárquico.
Desta forma, firmou-se na mente do Homem a sacralização do modelo familiar divino no qual os nossos pais são também os nossos deuses, dignos de obediência e honra absoluta, cujas palavras são proféticas, sagradas e poderosas. Assim, nasce a ideia de que os pais sempre sabem o que fazem, sendo, portanto, irrepreensíveis. “Ouça sua mãe e seu pai, eles sabem o que é melhor pra você!” – dizem os servos e adoradores. “eu te avisei!” – repreende a rainha mãe. Os filhos, nesta “sagrada família”, como diz o dogma cristão, são gerados e crescem como sucessores das obras paternas, sujeitos as palavras dos deuses (pais – cuidadores) e influenciados intimamente por suas ações. Sob esta percepção do Sagrado
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familiar, prosseguimos na reflexão sobre esta influência, sobretudo, da masculinidade divinizada da crença monoteísta e monólatra na construção da forma como o Homem pensa o Sagrado, e como isso afeta a sua visão sobre si mesmo e o mundo.
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2. Possível surgimento do Monoteísmo
O monoteísmo — ideia da existência de um único Ser personificado, assentado num trono e supremo com características masculinas; onipresente, universal, onisciente, acima dos elementos da natureza e controlador das forças do Universo —, ao que se entende, adentra a humanidade com mais ímpeto e força a partir do povo hebreu, após o episódio conhecido como Êxodo5 - a libertação da opressão egípcia relatada no livro sagrado dos cristãos (Bíblia) e judeus (Tanach). Não vem ao caso, aqui, uma investigação aprofundada acerca do Êxodo ou sobre a veracidade de Moisés, cabe apenas a introdução do pensamento monoteísta na civilização humana, o qual se propagou, respectivamente, por meio do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Atenho-me, neste presente ensaio, ao monoteísmo manifestado nas três instituições tradicionais citadas, observando uma deidade personificada e com atributos masculinos. Pois bem, antes de ser consolidado pelos hebreus, investiga-se que o monoteísmo já havia sido uma tentativa de monolatria no Egito. Em O Éden Perdido – Onde está o teu Paraíso? (2014), comento que durante o reinado de Amenófis III (1390 – 1353 a.C.), de acordo com Rick Gore (National Geographic 2001, p. 26-45), o deus Amon era o patrono de Tebas, a capital do Egito; o seu nome significa “o oculto”, e com o passar dos anos ele se fundiu com o antigo deus-sol Ra, tornando-se Amon-Ra — o deus-sol criador. Após a morte do faraó Amenófis III, o seu filho Amenófis IV assumiu o governo do Egito, e se tornou o grande nome da 18ª dinastia egípcia. Seus feitos se distanciaram de seu pai e das tradições do seu povo. Transformou a cultura de sua sociedade. As mudanças na arte e na divisão geográfica e política do Egito se deram embasadas na sua reverência extrema ao deus Aton
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Não há uma data exata deste acontecimento, existem suposições. Segundo Freud, em seu ensaio Moisés e o
Monoteísmo (1937, p.16), o Êxodo teria ocorrido durante o período que vai de 1358 a 1350 a.C.. A cronologia da Bíblia Sagrada Católica, revista por Frei João José Pedreira de Castro, Editora Ave Maria Ltda., 74ª Edição, pág. 8, mostra - nos que o nascimento de Moisés foi aproximadamente em 1250 a.C, tendo, portanto, o Êxodo acontecido por volta de 1350 a.C, concordando com Freud. De acordo com a Bíblia Sagrada de Referência Thompson, a saída do Egito ocorreu em 1491 a.C, em concordância com o Arcebispo Irlandês, James Ussher. Para Indaléssio Costa Rodrigues, autor do Cronologia da Bíblia Sagrada, os hebreus foram libertados em 1493 a.C. Outros estudiosos afirmam que o Êxodo ocorreu em 1250 a.C. Em O Pentateuco (1983, p. 47), Paul Hoff assegura que a data do Êxodo está entre 1450 e 1220 a. C.
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(deus-sol), pelo qual ele passou a ser chamado de Akhenaton — “o que bem serve a Aton”. O desejo do faraó herético e visionário era elevar Aton acima de Amon e de todas as demais divindades do Egito; dizem alguns egiptólogos que o revolucionário tinha um pensamento monoteísta e monólotra, e para Freud [judeu], diz Gore, Akhenaton pode ter sido um profeta cuja modalidade de monoteísmo de alguma forma inspirou Moisés. Eu, particularmente, acrescento que a monolatria precede o surgimento do pensamento monoteísta, sendo que se acreditava em outros deuses, porém, apenas um foi elevado. Assim sendo, supõe-se que Amenófis IV (Akhenaton) tenha sido uma inspiração para os cananeus libertos (israelitas) que, ao romperem com os grilhões egípcios, peregrinaram pelas terras de Midiã e, segundo arqueólogos, encontraram ali o YHW dos shasus6, a deidade que, sincretizada com a divindade El7 do panteão cananeu, tornar-se-ia, possivelmente, o YHWH dos hebreus — o único, criador do céu e da terra e o único responsável pela libertação da dominação egípcia. Desejo, ainda mais, adentrar na ótica arqueológica e histórica para antes do Deus dos hebreus se tornar o Yhwh. Pois bem, por esta ótica, a crença israelita veio a surgir somente no séc. VI a.C., durante o exílio de Israel na Babilônia. Nesta época, constata-se, por intermédio de estudos cronológicos dos livros, que a afirmação monoteísta aparece — entre o povo israelita — pela primeira vez nas palavras de Isaías: Porventura há outro Deus fora de mim?
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No Egito, na cidade real de Karnak, em sua muralha norte, foram encontrados registros das conquistas e
vitórias de Seti I, pai de Ramsés, o Grande. Há um registro da celebração de Seti sobre os shasus, povo que vivia no deserto ao sul de Canaã. Segundo textos egípcios, um dos lugares em que viviam chamava-se YWH, que provavelmente se pronuncia “yahu”. (Documentary. National Geographic Channel. Bible’s Buried Secrets, 2008) 7
A expressão semita El, ao que tudo indica, tem a sua origem em An, o Poder supremo sumério (o deus do céu).
É uma das palavras mais antigas usada para significar uma Força absoluta capaz de trazer e amparar todas as coisas à existência. Nós a encontramos com frequência nos textos bíblicos, principalmente na palavra Elohim7, plural de El, a qual, de uma maneira simbólica, é traduzida como Deus, no entanto, a sua tradução não é Deus, é uma equivalência de conceito. É com muita frequência usada em nomes como Israel, Daniel, Raquel, Natanel, Ezequiel, entre outros; também é usada em expressões que exaltam características da deidade dos hebreus, tais como El Shadday (El Poderoso), El Elyon (El Altíssimo), El Olam (El Eterno [ou dos mundos])... Dentro da tradição judaica, El significa “aquele que é poderoso para estabelecer uma relação de amor” e na linguística é “aquele que detêm o poder”. El também nomeou um ídolo cananeu que, segundo a mitologia Cananéia, foi o pai de Baal e marido de Asherá. Assemelha-se com a mitologia grega, em que El está para Chronos, assim como Baal está para Zeus.
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Não, não há outra Rocha que eu conheça. (Is 44.8); Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus (Is 45.5). Neste
período
exílico,
são
acrescentados os textos de Gênesis e outros contos do início da civilização humana no Tanach hebraico, afirmando o pensamento da existência de um único Deus que, no caso, corresponde ao Deus (Yhwh) de Abraão, Isaque e Jacó. Segundo historiadores, é possível que o acréscimo dos contos do início da humanidade tenham sido influenciados pelo Enuma
Elish8
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história
da
Procissão Akitu. Festival de Ano Novo celebrado na primavera e no outono em Ur em homenagem ao ídolo Marduk e a Enumah Elish . (Sg.W. Andrae, wieder Das entstandene Assur)
criação
babilônica. Segue um trecho da 1ª tábua:
"Quando no alto o céu ainda não havia sido nomeado E, abaixo, a terra firme não havia sido mencionada com um nome Apenas Apsu, seu progenitor E a mãe Tiamat, geradora de todos, mesclavam juntos suas águas; Os juncos não estavam trançados, ou galhos sujavam as águas, Quando os deuses ainda não haviam aparecido, nem haviam sido chamados com um nome, nem determinado destino algum,...”
Marduk
Essa cosmogonia é um relato da criação encontrada por arqueólogos na biblioteca de Assurbanipal e foi datada de 1750 a.C., ela descreve que Marduk, o líder dos deuses, derrotou o dragão Tiamat (imagem do caos) e, assim, juntamente com os outros deuses, construiu o mundo que, semelhante ao modelo do Gênesis judaico, era primordialmente sem forma e vazio.
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O Enuma Elis (acadiano Cuneiforme) é o babilônico mito da criação (em homenagem a suas palavras iniciais).
Ele foi recuperado por Austen Henry Layard em 1849 (de forma fragmentada) nas ruínas da Biblioteca de Assurbanipal em Nínive (Mosul , Iraque ), e publicado por George Smith em 1876 (wikipedea).
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Sem me delongar, falaremos superficialmente num capítulo posterior sobre outras semelhanças de contos sumérios e sua influência no monoteísmo masculinizado. Cabe, ao momento, dizer que os patriarcas do povo hebreu e o próprio povo de Israel eram — provavelmente e inicialmente — politeístas dentro do conceito habitual, visto que Abraão cresceu com seu pai Tera, nascido na cidade mesopotâmica de Ur dos Caldeus, e peregrinou até Harã (Gênesis 11.31), uma cidade sob o domínio politeísta sumério-babilônio. Ali, diz o texto bíblico de Josué, que Tera servia a outros deuses: Então, Josué disse a todo o povo: Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Antigamente, vossos pais, Teraa, pai de Abraão e de Naor, habitaram dalém do Eufrates e serviram a outros deuses. Eu, porém, tomei Abraão, vosso pai, dalém do rio e o fiz percorrer toda a terra de Canaã; também lhe multipliquei a descendência e lhe dei Isaquec. (Josué 24.2,3). Em um dado momento e circunstância, como expressa o verso acima, Abraão sai de Harã e faz uma aliança com El Elyon (traduzido na bíblia como Deus altíssimo – Gênesis 12), uma das divindades cananitas. Há, nesta ocasião, o estabelecimento de uma relação íntima entre eles que, ao que tudo indica, solidifica-se num
Trajetória de Abraão a
24.2 Gn 11.27
c
24.3 Gn 21.1-3
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episódio posterior em que ocorre uma guerra entre reis, na qual Abraão sai vitorioso e, ao seu encontro, vem o sacerdote de El Elyon, chamado de Melquisedeque – Rei de Salém. Esse abençoa Abraão, o qual dá o dízimo de tudo a El Elyon. A aliança se confirma. Este fato, segundo o olhar histórico, mostra que Abraão, embora cresse em outras divindades comuns de sua época e região, fez uma aliança com apenas uma. Isto é algo muito comum entre os povos antigos e até modernos, ou seja, diante de muitos “poderes - deuses”, em meio a uma situação difícil, busca-se uma, e quando ocorre a solução do problema, a honra é atribuída ao “poder - deus” que foi buscado em meio a angústia. Diante de muitos, um é exaltado. Isto acontece no caso de Abraão que, em uma situação de guerra, exaltou o “poder – deus” que buscou para seu livramento. O El Elyon, desta forma, passou a exigir — por meio de homens que nele criam — uma adoração exclusiva aos seus descendentes, devido a aliança realizada. Não terás outros deuses diante de mim (Êxodo 20.3) – ordenou, agora, o Deus de Abraão. Nasceu, desta maneira, a monolatria que, posteriormente, migrou para a ideia de monoteísmo. Enfim, a bíblia hebraica revela, em seus capítulos, um Israel politeísta, envolvido com os deuses cananeus. Não há razão para espanto acerca de tal envolvimento, pois os israelitas eram cananeus que viviam em Canaã. Originalmente, a mente israelita está enraizada na cultura cananita. Para esclarecer a história, Israel é o outro nome de Jacó, habitante em Canaã, conforme afirma o livro de Gênesis: Habitou Jacó na terra das peregrinações de seu pai, na terra de Canaã. (Gênesis 37.1). Jacó, assim como seu avô Abraão, em uma vivência de dificuldade, para ter vitória reafirmou a aliança com o Deus de seus pais. Esse fato exemplifica-se em quando os seus filhos saquearam a cidade de Siquém, em Canaã: Então, disse Jacó a Simeão e a Levi: Vós me afligistes e me fizestes odioso entre os moradores desta terra, entre os cananeus e os ferezeus; sendo nós pouca gente, reunir-se-ão contra mim, e serei destruído, eu e minha casa. (Gênesis 34.30). Nas suas orações, buscando solução para a problemática causada por seus filhos, ele ouviu: Disse Deus a Jacó: Levanta-te, sobe a Betel e habita ali; faze ali um altar ao Deus que te apareceu quando fugias da presença de Esaú, teu irmão. 2 Então, disse Jacó à sua família e a todos os que com ele estavam: Lançai fora os deuses estranhos que há no vosso meio, purificai-vos e mudai as vossas vestes; 3 levantemonos e subamos a Betel. Farei ali um altar ao Deus que me respondeu no dia da minha angústia e me acompanhou no caminho por onde andei.
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Então, deram a Jacó todos os
deuses estrangeiros que tinham em mãos e as argolas que lhes pendiam das orelhas; e Jacó os escondeu debaixo do carvalho que está junto a Siquém. 5 E, tendo eles partido, o terror de
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Deus invadiu as cidades que lhes eram circunvizinhas, e não perseguiram aos filhos de Jacó. 6
Assim, chegou Jacó a Luz, chamada Betel, que está na terra de Canaã, ele e todo o povo que
com ele estava. 7 E edificou ali um altar e ao lugar chamou El-Betel; porque ali Deus se lhe revelou quando fugia da presença de seu irmão. (Gênesis 37.1-7). Observa-se, então, que Jacó, seus filhos e os que com eles estavam serviam a muitos deuses cananeus e estrangeiros, porque tinham as imagens nas mãos e as argolas nas orelhas (v. 4). A partir do estabelecimento da aliança de Jacó com o Deus (El Elyon) de Abraão, eles deixaram os outros deuses para servir a somente um, aquele que respondera a Jacó na sua angústia (v. 3). Com a monolatria, a adoração e serviço de Israel a outros deuses foram veemente condenados por El Elyon, pela boca de seus profetas. Mas como El Elyon se tornou YHWH? No mínimo, temos duas plausíveis possibilidades. Segundo achados arqueológicos, como visto no início desta explanação, o povo cananeu saiu do jugo egípcio, peregrinou por Midiã e ali teve contato com uma divindade chamada Yhw. Outra possibilidade se encontra na ocasião em que Moisés, ao sair do Egito, vai para a terra de Midiã e lá tem contado com o sacerdote Jetro, conhecendo assim a sua divindade e estabelecendo uma relação com ela. De toda essa possível história, acredita-se que com o passar de muitos de séculos, na Babilônia, séc. VI a.C, a monolatria começa a migrar para a crença monoteísta, o El Elyon, tornou-se YHWH que, como veremos, veio a ter o título de Deus, proveniente de Dyeus (senhor do céu iluminado) do Panteão Protoindo-europeu e, assim, passou a ser considerado único, o Deus de Abraão, sendo todos os outros falsos. Nasce, deste modo, uma crença monoteísta, cuja força redefiniria a identidade cultural e social dos hebreus9, visando a reestruturação de Canaã - a terra natal que estava subjugada ao Império do Egito.
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É plausível que este termo “hebreu” seja uma evidência de um Israel que outrora habitou Canaã, pois “vem da
raiz hebraica que quer dizer ‘atravessar’, isto é, o morador do leste do Eufrates referindo-se ao morador de Canaã, que havia ‘atravessado para o outro lado’ daquele rio” Kaschel, Werner ; Zimmer, Rudi: Dicionário Da Bíblia De Almeida 2ª Ed. Sociedade Bíblica do Brasil, 1999; 2005
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3. O Deus Um
É de plena convicção que a crença semita que influenciaria grande parte da humanidade se firmou sobre os mandamentos da Torah10 — código legal que, segundo a tradição, foi estabelecido após o Êxodo e recebido por revelação divina no monte Sinai —, em especial sobre o Shemá, palavra hebraica inicial do verso: Shema Israel Adonai Eloheyno Adonai echad – Ouve Israel, o Senhor nosso Elohim, o Senhor é UM (Deuteronômio/Devarim 6.4). Esta expressão também se refere, no seio judaico, ao conjunto de palavras que circundam o verso 4: Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou o SENHOR, teu Elohim, se te ensinassem, para que os cumprisses na terra a que passas para a possuir;
2
para que temas ao SENHOR, teu Elohim, e guardes todos os seus estatutos e
mandamentos que eu te ordeno, tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os dias da tua vida; e que teus dias sejam prolongados. 3 Ouve, pois, ó Israel, e atenta em os cumprires, para que bem te suceda, e muito te multipliques na terra que mana leite e mel, como te disse o SENHOR, Elohim de teus pais. 4 Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Elohim, é o único SENHOR. 5 Amarás, pois, o SENHOR, teu Elohim, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. 6 Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; 7 tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantarte. 8 Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. 9 E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas (Deuteronômio/Devarim 6.1-9). O Shemá é o ponto central do monoteísmo e uma oração extremamente respeitada pela comunidade judaica. No livro de Marcos, no chamado Novo Testamento, quando Yeshua é indagado por um escriba a respeito de qual era o primeiro de todos os mandamentos, ele responde recitando o Shemá: O principal é: Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Elohim, o Senhor é UM! Amarás, pois, o Senhor, teu Elohim, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força (Marcos 12.29,30); ele, assim, mostra-se um bom judeu, conhecedor do orgulho israelita por ser um povo monoteísta. Segundo o conceito judaico, o “Um” que é D-us não é igual a qualquer outro um em existência, isto porque esse qualquer outro um pode ser dividido em frações: meios, quartos 10
Torah, Livro Sagrado de Israel – Torah é a palavra hebraica comumente conhecida como Lei, mas significa
Instrução. Refere-se, dentro da tradição judaica, aos 5 livros de Moisés: Bereshit (Gênesis), Shemôt (Êxodo), Vayicrá (Levítico), Bemidbar (Números), Devarim (Deuteronômio). Entre os cristãos é conhecido como Pentateuto (nome grego).
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ou, para usar um exemplo mais amiliar, terços, enquanto o “Um” que é D-us é totalmente indivisível, não pode ser reduzido além disso. Assim, D-us é “Um” em dois sentidos: Ele é sozinho — não existe nenhum outro ao lado Dele — e Ele é um, completo e único, um. Um que partilha as características da maior unidade possível no fato de não ter limite, e da menor, no fato de não poder ser mais reduzido, diz a revista Visão Judaica (2002, p.6). Para o islamismo, a confissão de fé (chahada) monoteísta e monólotra se resume em La ilah illa Allah; Muhammad rasul Allah (Não há deus senão Alá; Maomé é o mensageiro de Alá). Tal confissão se manifesta nas seguintes passagens do Qur’ãn: Vosso Deus é um só. Não há mais deus que Ele, Clemente, Misericordiosíssimo. (Surata 2:163). Crede, pois, em Deus e em seus apóstolos, e não digais: Trindade! Abstende-vos disso e serás melhor para vós; sabei que Deus é Uno. (Surata 4.171) Tal orgulho de “universidade teológica” trouxe consigo uma grande intolerância pela diversidade de crenças; as grandes instituições monoteístas praticaram e praticam o proselitismo 11 tendo em mente a ideia de monolatria, isto é, se há somente um Deus, há também a exigência de que somente Esse seja servido, louvado e adorado. Desta forma ordenou o Deus Um dos hebreus na Torah: O SENHOR, teu Deus, temerásg, a ele servirás, e, pelo seu nome, jurarás.
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Não seguirás outros deuses, nenhum dos deuses dos povos que
houver à roda de ti, 15 porque o SENHOR, teu Deus, é Deus zeloso no meio de ti, para que a ira do SENHOR, teu Deus, se não acenda contra ti e te destrua de sobre a face da terra. (Deuteronômio 6.13-15). Assim, pelas palavras ordenadas, entende-se um Deus que se ira quando os seus aliançados servem a outros deuses, provocando, consequentemente, a intolerância e o medo nos que lhe servem. Afinal, o Ser-Um não divide a sua glória com outrem, como enfatizado pelo profeta Isaías — precursor da profecia monoteísta — : Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura. (Isaías 42.8). Portanto, se só existe um único Deus como verdade criadora e absoluta do mundo, então, subentende-se que todas as demais cosmogonias e teogonias são uma mentira, e os que nelas creem necessitam da verdade do monoteísmo. 11
Fazer um prosélito. Pensamento inclusivo e excludente ao mesmo tempo, ou seja, entende-se que aqueles que
estão fora de alguma determinada crença — no caso monoteísta se relaciona a existência de uma única divindade criadora e masculina como única verdade e caminho para a salvação — necessitam ser convertidos a mesma, única e verdadeira, caso contrário, estarão sentenciados a condenação eterna. g
6.13 Mt 4.10; Lc 4.8
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A humanidade, infelizmente e tristemente, em vários episódios da sua história, foi vítima dessa intolerância; muitas mortes e derramamento de sangue foram sofridos em prol da verdade única atrelada ao interesse de homens gananciosos pelo poder.
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4. Ênfase na paternidade do homem
Como seres humanos que somos, iniciamos a nossa trajetória rumo à existência na forma de um sêmen que, proveniente de um progenitor, instala-se no útero de uma receptora. Até que o mundo se transforme ou evolua a ciência, assim será e continuará sendo. Nascemos destinados à filiação; o único destino, além da morte, que nos é irrevogável. Desde o instante em que adentramos o mundo concreto, uma força poderosa nos atrai e influencia: a paternidade. O que significa paternidade? A palavra nasce do grego πατηρ pater, referente ao antepassado mais próximo: pai da natureza corporal, pais naturais, tanto pai quanto mãe; antepassado mais remoto, fundador de uma família ou tribo, progenitor de um povo, patriarca12. Para além deste conceito etimológico, percebe-se historicamente que a paternidade está enfocada na função do homem atribuído da masculinidade para com o filho sob os seus cuidados. Pouco se entende a paternidade associada a mulher. Para a mulher é dado outro nome: maternidade. Eu, porém, desejo enfatizar a paternidade, no decorrer dos próximos capítulos, como um campo de força atrativa onde está incluso a figura do homem ou mulher. Mas por hora, para fins de estudo histórico, neste capítulo em específico, os papéis da paternidade e maternidade estão como conceitos distintos. Conceitos que, em diferentes épocas e regiões da humanidade, difere-se em níveis e posições de atuação em uma sociedade ou comunidade, mas de maneira geral e ordinária, a maternidade está para a mulher e a paternidade para o homem. Muitos estudos nos campos psicológico, histórico ou sociológico já foram e são elaborados a respeito destas forças atrativas. Conclusões são estabelecidas e desconstruídas em cada investigação, afinal, paternidade e maternidade são elementos sociais que se transformam e se moldam constantemente nos movimentos evolutivos e intelectuais da Sociedade Humana. Tais estudos ressaltam a importância do papel e função dos cuidadores, visto que a primeira etapa de nossa vida é pré-verbal, e tudo o que ocorre conosco depende da decodificação verbal e emocional que nossa mãe ou cuidador fizer. Sem alguém que possa espelhar nossas necessidades e emoções não poderemos saber quem somos. Por outro lado, a forma como essa pessoa decodifica nossas mensagens acaba constituindo aquilo que somos, 12
Strong, James: Léxico Hebraico, Aramaico E Grego De Strong. Sociedade Bíblica do Brasil, 2002; 2005, S.
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e ela o faz de acordo com o seu próprio patrimônio de vivências emocionais. Este primeiro cuidador ou cuidadores funcionam como uma espécie de ponte relacional entre a criança e o mundo que ocupam, num primeiro momento, o lugar que o Eu da criança ocupará mais tarde. Antes de sermos “Eu”, somos “nós”, ou seja, é o relacional, sobretudo a relação que estabelecemos com os nossos cuidadores, a pedra inaugural da nossa identidade (Erickson, 1976) e que refletirá quais serão as nossas expectativas de relacionamento com o mundo. (Cukier, 1998). Em concordância, Vigotsky, citado por Oliveira (1995, p.39), afirma que todas as funções do desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro entre pessoas (interpsicológica), e, depois, interior da criança (intrapsicológica). Sobre os muitos estudos realizados, a presença da mulher, em seu aspecto materno, há tempos foi considerado mais importante para a maioria dos estudiosos, pelo fato, como observa Bowlby (1989)13, citado por Castoldi (2002)14, de as mães expressarem um maior cuidado e intimidade com a prole, tanto entre os animais como entre os homens. Margaret Mead, de acordo com Garbarino (1993), afirma, por exemplo, que “a maternidade é uma necessidade biológica, mas a paternidade é uma invenção social.”15 Outro autor, Kraemer (1991)16, segundo Castoldi (2002) 17, reafirma a compreensão de Margaret Mead, ao colocar a paternidade como uma invenção do homem. Ao investigar as sociedades animais e constatar o grupo ausente de pai (macho) e constituído por mãe (fêmea) e filhos, o autor entende que para estudar a família humana, o olhar deve se voltar mais para a mãe (mulher) do que para o pai (homem), visto que a criança tem uma maior ligação primária e íntima com a mãe (mulher). Acredita-se que a teoria da psicanálise freudiana, manifestada na obra A dissolução do Complexo de Édipo (1924), é uma das grandes responsáveis por diminuir a rejeição para com a funcionalidade do homem na paternidade e acrescentar valor a sua função paterna na formação psíquica e social do Homem.
13
BOWLBY, J. (1989). Uma Base Segura — Aplicações clínicas da teoria do apego. Porto Alegre. Artes
Médicas. 14
CASTOLDI, Luciana. (2002). A construção da paternidade desde a gestação até o primeiro ano do bebê.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. p. 21 15
GARBARINO, J. (1993). Reinveinting Fatherhood. Families in Society. 74 (1), 51-54.
16
KRAEMER, S. (1991). The origins of Fatherhood. An ancient family process. Family process, 30, 377-392
17
CASTOLDI, Luciana. (2002). A construção da paternidade desde a gestação até o primeiro ano do bebê.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. p. 37
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A lenda grega do rei Édipo 18 que, sem os conhecer como pais, matou o pai para tomar a mãe como esposa, é uma grande fonte de investigação freudiana sobre os desvios psíquicos. Para Freud: “quando um menino (a partir da idade de dois ou três anos) ingressou na fase fálica de seu desenvolvimento libidinal, está sentindo sensações prazerosas em seu órgão sexual e aprendeu a proporcionar-se essas sensações à vontade, mediante a estimulação manual, ele se torna o amante da mãe. Quer possuí-la fisicamente, das maneiras que adivinhou de suas observações e intuições sobre a vida sexual, e tenta seduzi-la mostrandolhe o órgão masculino que está orgulhoso de possuir. Numa palavra, a sua masculinidade, precocemente despertada, procura ocupar o lugar do pai junto a ela; este, até aqui, seja como for, constituía um modelo invejado para o menino, devido à força física que nele percebe e à autoridade de que o acha investido. O pai agora se torna um rival que se interpõe em seu caminho e de quem gostaria de livrar-se. Se, enquanto o pai está ausente, é permitido à criança partilhar do leito da mãe e se, quando ele volta, ela é mais uma vez afastada, a sua satisfação quando o pai desaparece e o seu desapontamento quando surge novamente são experiências profundamente sentidas. Este é o tema do complexo de Édipo que a lenda grega traduziu do mundo da fantasia de uma criança para a suposta realidade. Nas condições de nossa civilização, ele está invariavelmente fadado a um fim assustador.” 19 Com a disseminação dos estudos psicanalíticos, a paternidade interligada ao homem, passou a ter mais espaço nos pensamentos que se propõem a investigar os caminhos da Humanidade. Assim sendo, em minha abordagem, aproveito-me da influência psicanalítica e utilizo-me do termo paternidade, entretanto, ampliando-o para além do seu uso exclusivo para o homem. Porque, a meu ver, paternidade, como será visto a frente, é uma função que cabe tanto ao homem como à mulher.
18
O soberano consulta o oráculo, o que é muito comum em vários mitos, ou tragédias gregas. O Oráculo afirma
que seu primogênito irá desposar a própria mãe e assassinar seu pai, o Rei Laio. Então, Laio manda que eliminem o menino, mas a pessoa encarregada não cumpre a ordem e envia o menino para um reino distante onde ele se torna um grande guerreiro e herói, numa de suas andanças ele encontra um homem arrogante e o mata; chegando ao Reino de Jocasta, Édipo se apaixona e a desposa. Anos mais tarde, Édipo descobre que ele próprio é o personagem da profecia, e num gesto de desespero, arranca os próprios olhos e sai a vagar pelo mundo a fora. A profecia se cumpriu apesar dos esforços do rei. (Filosofia / vários autores. – Curitiba: SEED – PR, 2006. p. 17) 19
Freud, Sigmund. Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos. (1937-1939). Versão
digital. p. 106
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Tal paternidade é extremamente importante na definição de nossos caminhos psicoteológicos, tendo em vista que a função paterna, ausente ou participativa, está presente em nossas vidas desde o dia em que nascemos. Não desmereço o papel materno, conforme o conceito comum intrínseco na sociedade ocidental, até porque, na minha visão, o materno se encontra no paterno. Desejo, por assim dizer, chamar a atenção para a posição relevante do fator cuidador-paterno (homem - mulher) na vida, na visão e na relação do Homem para com o Sagrado. Proponho uma ampliação da relevância da função paterna no campo teológico na mente e vida humana, focando inicialmente na funcionalidade paterna do homem juntamente com o ser-masculino e associando-a a imagem patriarcal e central da tradição e cultura monólotra20 e monoteísta. Compreendendo, assim, que esta forma cultural de pensar contribuiu em muito para a sacralização da paternidade masculinizada, principalmente, através da pregação e interpretação da Bíblia, o livro sagrado judaico-cristão composto pelo Antigo e Novo Testamentos. A leitura das instituições eclesiásticas dos Testamentos exalta a imagem de um Deus que é chamado e reverenciado como Pai e espelhado no homem. Todavia, o Novo Testamento cristão, contendo a história do Filho de Deus, sua relação com o Pai Maior e o desejo desse Pai em ter muitos filhos, cooperou ainda mais para a associação entre Deus, Pai, homem e ser-masculino.
4.1 O Deus-pai bíblico
O Tanach21 judaico (Antigo Testamento) traz a relação paterna do Deus (Yhwh) dos Hebreus para com os israelitas de forma expressiva. Observamos, por exemplo, nos seguintes trechos a seguir: Mas tu és nosso Pai, ainda que Abraão não nos conhece, e Israel não nos reconhece; tu, ó SENHOR [YHWH], és nosso Pai; nosso Redentor é o teu nome desde a
20
Monolatria é uma expressão grega que indica adoração ou serviço cultual somente a um.
21
Tanach é um termo hebraico usado pelos judeus, corresponde ao Velho Testamento da Bíblia dos cristãos. É
um acrônimo, uma palavra formada pelas iniciais – T-N-Ch (tanach) – Torah (pentateuco, 5 primeiros livros) – Neviim (profetas) – K(ch)etuvim (demais escritos). O seu conteúdo difere um pouco do Velho Testamento cristão no que diz respeito a ordem dos livros e no acréscimo de outros, e principalmente nos pensamentos. A divisão entre Novo e Velho Testamento da Bíblia foi proposta no período da Patrística por Marcião de Sinope (110 – 160 d.C.).
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antiguidade. (Isaías 63.16). Dirás a Faraó: Assim diz o SENHOR [YHWH]: Israel é meu filho, meu primogênito. (Êxodo – Shemôt 4.22). Outras ocasiões revelam a importância cultural da imagem paterna-homem entre o povo de Israel, refletindo a masculinidade de seu Sagrado nas situações do cotidiano. Deste prisma, não podemos deixar de atentar para a circuncisão divinamente ordenada ao filho homem, pois este fato significa que o ser-masculino e suas devidas implicações recebeu a responsabilidade de carregar em sua carne a aliança divina: E, no oitavo dia, se circuncidará ao menino a carne do seu prepúcio. (Levítico - Vaikrá 12.3). Além disso, as Escrituras hebraicas estão fundamentadas numa tradição monoteísta e monólotra patriarcal, firmada em Abraão, Isaque e Jacó: Disse Deus ainda mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O SENHOR [YHWH], o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós outros; este é o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em geração. (Êxodo 3.15). Neste verso, o Deus dos hebreus tem a sua identidade 22 associada aos pais (homens) de Israel, bem como os pais refletem o Sagrado. Seria como dizer que quem aceita Deus aceita os pais-homens que o representa, e quem recebe os pais-homens recebe o Deus neles representado. Embora o Deus (Yhwh) Paterno de Israel tenha sua manifestação no Tanach, teve, por razões históricas23, mais acentuação nas páginas do Novo Testamento cristão. Muitos são os versos que entitulam o Deus UM de Israel como Pai. Um dos mais vigentes entre os cristãos
22
Nome em hebraico é shem. Esta palavra está relacionada a identidade de alguém, ou seja, ao que este alguém
representa. 23
O formato do Livro Bíblia e grande parte da interpretação que sobre ele se faz tem muita influência dos
ensinamentos de um homem chamado Marcion de Sinope (85 d.C - 160 d.C). Marcion foi um bispo gnóstico do cristianismo primitivo. Seus ensinamentos consistiam numa visão dual de Deus. Para ele, o Deus dos escritos judaicos não poderia ser o mesmo Deus Pai proclamado por Cristo, eles eram deuses diferentes. Em sua perspectiva, o Deus dos judeus (que ele chamava Demiurgo) era ruim, criador de uma lei má, e o Deus de Jesus era bondoso, compassivo. Ele foi a primeira pessoa, segundo historiadores, que propôs um canôn (do grego kanon, que significa literalmente “vara de medir”) do Novo Testamento com 11 livros. Em seu cânone, a infância judaica de Cristo ou qualquer outra referência ao judaísmo vivenciado por Jesus (Yeshua) e seus discípulos foram removidas. Surgiu, a partir do Marcionismo, a dicotomia entre Velho e Novo Testamento. Os escritos judaicos, em seus ensinamentos, deveriam ser lidos apenas literalmente. O cristianismo, na igreja marcionita, era diferente e se opunha ao judaísmo. Embora, a igreja ortodoxa de Roma contestasse o marcionismo, acabou acatando muitos de seus pensamentos que perduram até os dias atuais no cristianismo.
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está no livro de Gálatas, onde é declarado um clamor ao Aba24 Pai: E, porque vós sois filhos, enviou Elohim ao nosso coração o Espírito (sopro) de seu Filho, que clama: Aba, Pai! 7 De sorte que já não és escravo, porém filho; e, sendo filho, também herdeiro por Elohim. (Gálatas 4:6.7). Porém, os versos paternos mais conhecidos são aqueles encontrados na oração “Avinu shebashamaim – Pai nosso que estás nos céus”, ensinado pelo Rabino Yeshua aos seus discípulos. Mais conhecido como Jesus, o ícone do Cristianismo ensinou a oração mundialmente conhecida e rezada por muitos: Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal. (Mateus 6.9-13). Indiscutivelmente, estas palavras elevam (...estás nos céus) a autoridade paterna e santificam a sua identidade (shem hb. – nome); entronizam a sua vontade e o colocam como provedor; além de o posicionarem como libertador (perdoador).
24
אבא- Palavra de origem aramaica, traduzida por “pai”.
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5. O Monoteísmo masculinizado
As crenças não monoteístas da antiguidade possuíam e possuem muitas deidades femininas. A Grécia do período Neolítico25 II, exemplificado na pesquisa GRÉCIA: I – Contribuição Histórica II (BAIHENSE, Eliana; SILVA, Isabela; OLIVEIRA, Natália; SANTOS, Vanessa), trata-se de uma civilização agrícola. O homem cuida dos rebanhos e a mulher se encarrega da agricultura, o que patenteia a crença de que a fecundidade feminina exerce uma grande e benéfica influência sobre a fertilidade das plantas. A divindade soberana do Neolítico II, na Grécia, é a Terra-Mãe, a Grande Mãe, cujas estatuetas, muito semelhantes às cretenses, representam deusas de formas volumosas e esteatopígicas. A função dessas divindades, hipóstases da Terra-Mãe, é fertilizar o solo e tornar fecundos os rebanhos e os seres humanos. A Suméria, considerada a civilização mais antiga de que se tem relato, é outro exemplo de um politeísmo que eleva a figura feminina ao status de deidade; na mitologia e cosmogonia de Gilgamesh26, a criação do homem foi realizada por uma deusa: A deusa então
25
O Neolítico pode ser dividido em Neolítico I (entre 15000 e 10000 a. C) e Neolítico II (5000 – 4000 a.C) -
período da história humana pós Paleolítico. No Paleolítico o homem era essencialmente caçador e coletor, no Neolítico o homem começa a cultivar vegetais e a domesticar animais. Ocorre uma revolução agrícola, transformando a vida do homem. O nomadismo deu lugar ao sedentarismo; as casas passaram a ser construídas com barro, junco e madeira; surgiu a cerâmica, melhorando a qualidade da alimentação; formou-se as tribos sociais; construiu-se novos instrumentos de metais nobres, como o cobre ... 26
É um ciclo de poemas épicos com versões sumárias, babilônicas e assírias sobre Gilgamesh, o quinto monarca
da primeira dinastia suméria pós-diluviana em Uruk (Erech da Bíblia Gn 10.10), ele viveu por volta de 2.700 a.C. Transcorre sobre rituais, deuses, vida eterna... Um achado importante para a literatura mundial. Foi encontrado na região da Mesopotâmia (Nínive) no séc XIX. O inglês Austen Henry Layard, em 1839, escavou a região e achou uma biblioteca soterrada com uma literatura perdida em caracteres cuneiformes. Começou ali uma grande descoberta. Em 1853, Rassam, companheiro de Layard, escavou parte da biblioteca onde estavam as tábuas com o cotejo assírio da Epopeia de Gilgamesh. “Em dezembro de 1872, num encontro da recém-fundada Sociedade de Arqueologia Bíblica, George Smith anunciou: ‘Pouco tempo atrás, descobri entre as tábuas assírias no Museu Britânico um relato do dilúvio.’ Era a décima primeira tábua da recensão assíria da Epopeia de Gilgamesh. [...] Estamos falando da civilização suméria arcaica. Os sumários foram os primeiros habitantes da Mesopotâmia a conhecer a escrita, e é na língua deles que foram escritas as mais antigas tábuas de Nippur relacionadas a Gilgamesh. [...] Temos boas razões para crer que a maior parte dos poemas de Gilgamesh já haviam sido escritos nos primeiros séculos do segundo milênio a.C. e que provavelmente já existiam numa forma bastante semelhante muitos séculos antes disso, ao passo que o texto definitivo e a edição mais completa
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concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidum (Sandars, 1992, p. 94).27 Era, portanto, natural a presença de deusas relacionadas a fertilidade. A feminilidade corriqueira na devoção social influenciava automaticamente a visão sobre a mulher. A crença monoteísta disseminada pelos hebreus, no entanto, contém uma essência extremamente masculina. De onde poderia ter vindo esta essência? Poderia ser uma herança do próprio conto sumério citado acima? Sim, pois sendo o conto mesopotâmio mais antigo relatado na história, certamente os cananeus (hebreus) tiveram acesso a ele; lembrando que Abraão, o patriarca hebreu, quando chamado por seu Deus (El Elyon), segundo o texto bíblico de Gênesis 11.31, saiu com sua família de Ur, uma cidade da região suméria e babilônia. Tal acesso pode ser evidenciado na semelhança com o conto hebreu do Gênesis: Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; [...] Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; [...] Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente (Gênesis 1.26,27 / 2.7). Como poderia ter ocorrido esta influência? É possível que dois pontos tenham influenciado a masculinidade monoteísta dos israelitas: primeiro, a primogenitura do homem na criação, e segundo, o fato desse homem ter sido criado a imagem de Anu, deus do firmamento; um ser masculino. Ora, se o homem foi formado primeiro e em semelhança a um deus masculino, nada mais justo do que a humanidade ter um Ser supremo masculino. Não se sabe ao certo, porém, é provável que este tenha sido um dos entendimentos que deu à luz a um monoteísmo masculinizado. Vale recordar que nas crenças politeístas antigas havia muita facilidade para se criar novas crenças e divindades, havia uma relação mais livre para com a diversidade. Lembro-me de uma ocasião descrita no livro bíblico de Atos, quando o apóstolo Paulo entra em Atenas e no Areópago visualiza um altar com a inscrição “ao deus desconhecido”: porque, passando eu e vendo os vossos santuários, achei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Esse, pois, que vós honrais não o conhecendo é que eu vos anuncio.
da epopeia vêm do século VII, da biblioteca de Assurbanipal, antiquário e último dos grandes reis do Império Assírio. (SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992) 27
SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 94
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(Atos 17.23). Esse acontecimento evidencia que o pensamento politeísta é mais tolerante para com a absorção de novos deuses e crenças. A masculinidade personificada e divinizada pela tradição monoteísta transforma a relação paterna em fundamental na estruturação psíquica da humanidade ligada e associada a essa cultura. Como observado no livro sagrado, o conto do Gênesis traz o homem como primogênito da criação, aquele que tem os direitos da primogenitura, ou seja, lhe é dado a representação legal do Pai – Criador, Ordenador, Provedor; em outras palavras, lhe é concebido autoridade irrevogável sobre os negócios do seu Progenitor. O homem, desta forma, é compreendido como sendo “superior” — em hierarquia e origem — a mulher na configuração social nesta tradição, assim como afirmam os textos bíblicos: Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo varão, e o varão, a cabeça da mulher; e Deus, a cabeça de Cristo. (I Coríntios 11.3); Vós, mulheres, sujeitai-vos a vosso marido, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. (Efésios 5.22,23). Primeiro foi formado28 Adão, depois, Eva. (1Tm 2.13). Uma sociedade embasada nesta visão tradicional associa psiquicamente o pai ou marido humano como representante legal do Pai – Criador, confirmando o pensamento contido no seguinte verso: ... sujeitai-vos a vosso marido, como ao Senhor ...
5.1 A busca pelo Ser -Masculino sagrado
Cabe, antes de tudo, uma ressalva. É necessário esclarecer que a masculinidade não é sinônima do gênero homem, mas é um conceito construído socialmente acerca de um modo de ser da humanidade com características específicas de comportamento, assim como a feminilidade não é exclusivo da mulher. O macho pode ter comportamentos femininos e as mulheres, masculinos. Quando um menino nasce e lhe são dados armas de plástico e carrinhos para brincar, o domínio pela força e os atributos culturais do macho de sua sociedade estão lhe sendo afirmados no comportamento; a menina, por sua vez, quando cresce com uma boneca para cuidar ou ganha panelas de brinquedo está recebendo em seu comportamento as formas da fêmea de sua comunidade. Assim se firmam o macho-masculino e a fêmea-feminina. 28
A palavra usada no grego para traduzir “formado” é plasso (moldar, formar), no sentido do barro moldado
pelo oleiro. A palavra hebraica correspondente é bara, a mesma usada no livro de Gênesis (Bereshit) para se referir a formação do homem.
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Meu desejo é demonstrar – até o momento deste ensaio - que o homem, por motivos históricos-teológicos, apoderou-se das características que circundam o ser-masculino expressado na imagem do Deus-pai-criador. Desta forma, o Ser-masculino tornou-se sagrado, objeto de desejo a ser conquistado. A masculinidade associou-se, assim, ao Ser de poder e autoridade que pode todas as coisas. A disputa social entre homens e mulheres, a meu ver, sempre esteve focada nesta conquista pelo Ser-masculino. O movimento feminista não é — na sua essência psíquica — para elevar as mulheres na sociedade, torná-las iguais aos homens ou contra o machismo, é sim para a masculinização das mulheres, porque na mente humana ocidental monoteísta criou-se a ideia do Ser-masculino sagrado (associado ao Ser-Deus). A mulher que adquire as aptidões tidas como masculinas — aquelas que estão relacionadas ao homem histórico — é aquela que consegue autoridade e poder na sociedade. A mulher foi trabalhar fora, usa calças, começou a fumar e a ingerir bebida alcoólica, tornou-se empresária, militar e tantas outras coisas motivadas por uma busca inconsciente para se alcançar o modo de vida do Sermasculino sagrado (deus conceituado na sociedade). Por esta corrida acentuada em direção ao pseudopoder do ser-masculino, a sociedade atual tem se tornado unissex e flex, provocando uma crise identitária no que diz respeito ao que é ser homem e o que é ser mulher.
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6. Deidade e paternidade
É importante, neste ponto, fazer uma citação de O Éden Perdido – Onde está o teu Paraíso? (2014), no qual comunico uma observação acerca do título Deus, agora, porém, o foco não está na origem desse título, e sim no surgimento do seu conceito interno de paternidade. Havia, portanto, um Panteão Protoindo-europeu, origem das principais religiões pagãs europeias e orientais. Nele, um Ser Supremo estende seu cetro sobre os mortais. Seu nome? “Dyeus”. Divindade do céu iluminado. O Patriarca adorado. Seu nome sofreu derivações em algumas regiões. Em sânscrito, ficou conhecido como Dyaus; nos Balcãs, como Dievas; na região de Gaul, tornou-se Diaspater; no grego, ficou conhecido como Zeus; na região da atual Alemanha como Tiwaz, e no latim, inicialmente Jove Pater (Júpiter - Pai do Céu iluminado) – uma derivação de Dyeus Pather (Pai do Céu iluminado) – e posteriormente “Deus” no português. “Deus” era, portanto, o nome próprio do Poder supremo do panteão protoindo-europeu – conhecido como o PAI de todos os outros deuses, o senhor da luz. Assim como Zeus na Grécia, Dyeus/Júpiter que, séculos depois se configurou na generalização do termo Deus29, era o mais adorado dentre as divindades do paganismo. Percorrendo este caminho do Panteão da antiguidade, Deus, proveniente de Dyeus, passou a se referir a um Poder Supremo que habita o Céu, uma Luz sobre os mortais; um título genérico que representa um Poder imortal e infinito, um patriarca, um gerador, um criador, enfim, qualquer coisa, pessoa ou objeto que manifeste algum tipo de poder sobrehumano. Por isso, o El ou ELohim semita descrito na Bíblia equivale ao uso de Deus na atualidade. Nas línguas ramificadas do latim, como o português, existe a possibilidade de identificar nome próprio com letra maiúscula, mas no hebraico e nas línguas antigas não havia e não há letras maiúsculas para indicar Pessoa. Hoje, entretanto, principalmente no ocidente, ocorre uma diferenciação no uso de Deus maiúsculo com o propósito de dizer que esse Deus é um Ser único, geralmente o Deus bíblico conceituado pelo Cristianismo, por outro lado, o uso de deus minúsculo transmite a ideia de deuses diferentes que, para o cristão tradicional seria um falso deus. Algumas vertentes do Judaísmo também são adeptos dessa diferenciação, é
29
Nos escritos gregos foi acrescentado a palavra “theos”, que é usada para “deus”, e que também é o nome de
“Zeus”, o grande Poder da Grécia. Três palavras que compartilham da mesma fonética e origem: DEUS, THEOS, ZEUS. Zeus que na forma nativa Theos forma a palavra DEUS.
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usado D’us ou D-us, com apóstrofo ou hífen para comunicar o tetragrama יהוהYHWH, nome impronunciável30 do Ser único e verdadeiro que foi revelado a Abraão e que, em algumas características dogmáticas, é diferenciado do Deus dos cristãos. Além da palavra em si, a ideia que ela carrega me chama a atenção. Quando pronunciamos “deus”, enquanto Poder supremo, a nossa mente associa a imagem de quem? Como anteriormente vimos, as palavras são signos, são como recipientes que carregam conceitos e valores históricos. Lembro-me do documentário do History Channel com o título “O confronto dos deuses. Zeus”, no qual Tom Stone31 comenta que quando as pessoas faziam algo de errado, elas tomavam muito cuidado para que Zeus, o criador dos Homens, não as atingisse com um raio, pois o RAIO é o maior símbolo do poder de Zeus. Não teria a nossa imaginação ocidental recebida essa herança grega, a civilização que embasou a cultura ocidental? A imagem de um Ser poderoso com um raio 32 na mão, pronto para lançar sobre sua criação, os mortais pecadores? Constantemente se ouve, algumas vezes em tom de brincadeira, alguém dizer ao seu amigo que aparentemente cometeu algum pecado: “Cuidado, vai cair um raio em tua cabeça, deixe-me sair de perto!”. Este conceito internalizado na palavra Deus antecede, entretanto, os raios de Zeus, ele nasce nas civilizações mais antigas, quando buscavam o Poder Supremo que habitava a vastidão do Céu e controlava os fenômenos dos ventos, tempestades e raios. A conceptualização intrínseca nas palavras Dyeus Pater (pai), Theos, Zeus e finalmente Deus, conforme visto, contribuiu histórica e psiquicamente para que o monoteísmo 30
Segundo relata-se na história hebraica, até o exílio de Israel para a Babilônia e a destruição do segundo
Templo (586 a.C), a pronúncia do tetragrama sagrado da deidade israelita era conhecido e pronunciado, porém, depois da Babilônia, o Nome deixou de ser pronunciado, sendo somente pronunciado no Yom Kippur (festividade conhecida como “dia do perdão”, dia de jejum, expiação e arrependimento), contudo, com o passar dos anos a pronúncia foi perdida. Então, começou a se falar “Adonay”, “Elohim”, Eterno”, “Hashem” para a substituição do tetragrama. E no decorrer da história gerou-se alguns nomes como Javé, Yovah, Jeová, nomes estes que nasceram da colocação das vogais de Adonay no Tetragrama “ הוהי, YHWH”, formando assim “Y ehovah”, e transliterando temos Jeová. 31
Autor do “Zeus: A journey through Greece in the footsteps of a God”
32
“Júpiter (Zeus) tornou-se rei dos deuses e dos homens. Sua arma era o raio e ele usava um escudo chamado
Égide, feito por Vulcano. Sua ave favorita era a águia, que carregava os raios. [...] Assim dizendo, apoderou-se de um raio e já estava prestes a atirá-lo contra o mundo, destruindo-o pelo fogo, quando atentou para o perigo que o incêndio poderia acarretar para o próprio céu. [...]” O livro de ouro da mitologia: (a idade da fábula): histórias de deuses e heróis / Thomas Bulfinch ; tradução de David Jardim Júnior — 26a ed. — Ediouro. Rio de janeiro, 2002. 12; 23
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entrelaçasse cosmogonia, teogonia e paternidade, firmando o seu ideal em uma divindade personificada na figura de um Pai. Neste ponto, saliento que na forma de linguagem atual, de forma geral, a mulher e homem, quando unidos num propósito familiar, como cuidadores de uma criança, são chamados de Pais, no plural, como sendo dois pais; pai-mulher e paihomem. Quando só, a mulher é chamada de mãe, porém, num contexto plural é chamada de pai. Este fato influencia o papel da mulher, e afirma que pai é uma condição-de-ser para além do ser-homem ou ser-mulher. Sob estas condições, uma relação disfuncional entre filho e cuidadores (mulherhomem) pode, comprovadamente, afetar de maneira negativa o caminhar de uma criança, como demonstra os estudos feitos por Spitz (1996, p. 201-211)33 em O Primeiro Ano de Vida. Sem entrar em detalhes dos experimentos realizados, trago apenas uma amostra dos efeitos gerados pelo afastamento afetivo. No caso, as pesquisas dizem respeito ao afastamento entre mulher-mãe e filho, no entanto, a pesquisa não fala da presença do homem-pai, isto me faz crer que os sintomas vivenciados pelas crianças não são somente pelo afastamento afetivo da mulher-mãe, mas também da ausência do homem-pai, ou seja, a ausência da pluralidade dos pais (homem e mulher). Bom, no que tange aos estudos realizados por Spitz, na síndrome da privação afetiva parcial (depressão anaclítica), os bebês observados durante o primeiro mês, tornam-se crianças chorosas, exigentes e tendem a apegar-se ao observador quando este consegue estabelecer contato com elas; no segundo mês, o choro frequentemente se transforma em gemido, começa a perda de peso e há uma interrupção no quociente de desenvolvimento; no terceiro mês, as crianças recusam o contato. Permanece a maior parte do tempo de bruços na cama, um sintoma patognomônico. Começa a insônia, a perda de peso continua e há uma tendência para contrair moléstias; o atraso motor torna-se generalizado e ocorre o início da rigidez facial. Todas as crianças que demonstraram esta síndrome foram privadas da mãe, entre o sexto e oitavo mês de vida, por um período ininterrupto de três meses. Quando o objeto de amor retorna, ocorre uma recuperação rápida, já no caso da privação afetiva total (hospitalismo), os sintomas apresentados são diferentes e mais drásticos. As crianças observadas numa creche de crianças abandonadas, quando separadas dos objetos de amor aos três meses, apresentaram quadros de deterioração progressiva; tornaram-se passivas, o nível do quociente no final do segundo ano era de 45 por cento, em um nível de idiota; no quarto ano, muitas das crianças não conseguiam falar, andar ou ficar de pé e o índice de mortalidade aumentou em relação a síndrome de privação parcial. 33
SPITZ, René A. O Primeiro Ano de Vida. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 1996
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Obviamente que toda pesquisa não é absoluta devido aos inúmeros fatores envolvidos para o estabelecimento de um determinado resultado, contudo, observa-se a importância da afetividade dos objetos de amor sagrado (pais – homem-mulher) na cognição do Ser Humano. Não obstante, ainda que a mulher carregue a imagem sagrada de deidade da fertilidade herdada da cultura politeísta, está, ainda, na cultura monoteísta, às sombras do poder herdado pelo homem. O signo linguístico Pai, por enquanto, ainda está mais associado ao homem, tão embora a mulher contemporânea esteja se apropriando do símbolo Pai. Sob esta cultura em transição que ainda enfatiza o poder supremo masculino relacionado ao homem, o afetar da maternidade ligada a mulher, talvez não afete mais que uma relação homem-pai disfuncional, evidenciada na ausência, violência, autoritarismo, rejeição, negação identitária,... Creio que a desestruturação psíquica e comportamental como resultado dessa disfunção, se dê, justamente, pelo fato de o pai-homem ter sido colocado na posição de mediador legal do Pai – Criador — aquele que possui legalidade para moldar o barro, dar forma e estrutura ao ser humano que está surgindo no mundo —, fazendo com que a funcionalidade ou disfuncionalidade homem-pai domine consideravelmente a visão de uma pessoa sobre si mesmo como criação e filho, bem como sobre a visão do Pai – Criador, o Ser supremo masculino, progenitor de todos os homens, conforme a ideia tradicional. Visões interligadas e dissociáveis construídas na psique gerada dentro do pensamento da tradição monoteísta personificada e masculinizada.
6.1 Funções psicológicas superiores
Sob a perspectiva interacionista, ou seja, da interação do indivíduo com o meio, vale adentrar um pouco nos estudos sobre o desenvolvimento cognitivo do ser humano realizados por Vygotsky (1836-1934). Um educador e psicólogo que muito cooperou para a ciência da psicologia humana. As funções superiores psicológicas, segundo ele, referem-se a processos voluntários, ações conscientes, mecanismos intencionais e dependem de processos de aprendizagem (ex. linguagem, memória), e são construídas ao longo da história social do homem, em sua relação com o mundo. Essas funções desencadeiam as relações diretas ou mediadas, cuja diferença é que em uma relação direta não há a intervenção de um elo intermediário como uma lembrança, outra pessoa, dentre outros elos, e na relação mediada
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ocorre o que Vygotsky chama de “mediação”, e de acordo com ele há dois tipos de elementos mediadores: “os instrumentos e os signos”. Chamo a atenção para o mediador denominado de signos, estando mais relacionado com as informações que recebemos por meio da palavra pai, o foco das investigações deste ensaio. Pois bem, o uso dos signos está no campo psicológico. Os instrumentos estão voltados para fora do indivíduo, enquanto os signos são orientados para dentro do indivíduo. Eles também são considerados ou chamados de instrumentos psicológicos. São símbolos que representam outros objetos, eventos, situações. O desenho de uma gestante na cadeira de um ônibus, por exemplo, é um signo que diz que aquela cadeira é preferencial para gestantes. As atividades psicológicas podem ser auxiliadas por diversas formas de signos. Ocorrem duas mudanças no uso dos signos. O processo de internalização, que é quando marcas externas se tornam processos internos
de
mediação,
e os
sistemas
simbólicos, que organizam os signos em estruturas complexas e articuladas. Chega um ponto no desenvolvimento do indivíduo que ele não necessitará mais de marcas externas, ele substituirá os objetos do mundo real por representações mentais, isto é, signos internos. Com o surgimento do trabalho e das atividades sociais e coletivas, as representações do real começaram a ser articuladas em sistemas simbólicos, sendo a linguagem o sistema básico dos grupos humanos. É socialmente que este sistema simbólico é dado, é por meio do grupo cultural em que o indivíduo está inserido que ele absorve as formas de perceber e organizar o real. Os sistemas simbólicos podem ser considerados como um “filtro” que dá a capacidade ao indivíduo de ver o mundo e se inteirar nele. Desde o nascimento, através das relações interpessoais, o sujeito é exposto a várias formas de influência que vão determinar o desenvolvimento do seu mundo. Estas influências vêm primeiramente de “fora para dentro”, através das ações externas do ambiente que o cerca, e após este primeiro processo, é que o indivíduo vai desenvolver processos psicológicos
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internos. Para Vygotsky, esse processo de absorção interna do indivíduo com relação a cultura não é um processo passivo, e sim de transformação, visto que a cultura está em constante movimento. Bem, talvez você esteja se perguntando o que tudo isto tem a ver com a Consciênciado-Ser ou paterna? Entendo estar muito relacionado com o assunto. Veja, as palavras Deus Pai são signos, isto é, elas nos dizem, segundo a cultura ocidental e monoteísta, que Deus é um Ser-Masculino personificado na figura do homem, e Pai é esse homem progenitor e gerador de filhos. Para todos, as palavras Deus - Pai têm estes sentidos. No entanto, pelo processo de internalização e sistema simbólico, expressam novas representações mentais. De acordo com a interação do indivíduo com o meio, as representações de Deus - Pai se dá de forma diferente para cada pessoa. Se uma pessoa teve um pai agressivo, por exemplo, ao ouvir a palavra Pai, ela pode até mesmo de uma forma inconsciente associar esta palavra à agressão. Se o Pai foi negligente, a palavra se associa a negligencia pelo fato de que esta foi a forma que ela internalizou a concepção de Pai. Nesta ótica, a internalização absorvida na interação por mediadores externos em relação aos cuidadores paternos (figuras de autoridade) influência na identidade de filho e consequentemente na visão de Deus-Pai que, na presente proposta, trata-se de uma Consciência-do-Ser ou paterna intrínseca no Ser Humano.
Funções psicológicas superiores
Mediação
Signos
Conscientes, voluntárias, intencionais
Relações mediadas
- ex. Palavra Pai
Signos e instrumentos
Mediação
-Linguagem -memória- etc..
- Ex. Lembrança de agressão paterna Internalização 6.2 Reforçamento positivo e modelação
- ex. Pai = agressão
Levando em consideração que a paternidade (homem-mulher) saudável ou disfuncional produz transformações e consequências na psique e, consequentemente, nos comportamentos do Homem, como afirma Branden (1999), citado por Silvia Canaan-Oliveira ... [et al.]: Quando crianças, nossa autoconfiança e nosso auto-respeito podem ser alimentados ou destruídos pelos adultos – conforme tenhamos sido respeitados, amados, valorizados e encorajados a confiar em nós mesmos; é interessante observarmos dois fatores,
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dentre os muitos que ajudam a construir os nossos os comportamentos: o reforçamento positivo e a modelação. Tais entendimentos conceptualizados pela psicologia do desenvolvimento são estímulos reforçadores, eventos consequentes ou consequências que podem ensinar um novo comportamento ou manter um. Esses reforçadores podem ser positivos ou negativos, depende das situações pessoalmente vivenciadas. Para este ensaio, vejamos os quadros do reforçamento positivo e modelação extraídos do livro Compreendendo seu filho: uma análise do comportamento da criança (2002, p.64;88). 1) Reforçamento positivo – De acordo com Silvia Canaan-Oliveira ... [et al] (2002), esta ação dos cuidadores consiste em reforçar com recompensas e ganhos, de acordo com aquilo que para a criança é considerado bom, após apresentar
o
comportamento
determinado.
Assim
exemplo
que
em
como o
no
reforçador
positivo do bom desempenho de Camila foi o elogio da mãe e o livro recebido. 2) Modelação – É um processo de imitação. Pode-se dizer que a criança modela-se ao comportamento
dos
seus
cuidadores; ela, como observador, absorve
e
aprende
novos
comportamentos. No exemplo, ao ver a ação de seu pai para com sua mãe,
imitou
o
comportamento,
talvez de forma inconsciente. Bom, superficialmente
o
que foram
vimos o
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reforçamento positivo e o processo de modelação 34. Segundo estudiosos, um poderoso reforço é o carinho na forma de expressões de afeto, isto é, sentimentos positivos dos pais em relação a criança. Isto aumenta a ocorrência de comportamentos desejáveis. Todavia, quando a criança somente recebe um reforço positivo quando há um comportamento negativo, pode acarretar comportamentos nocivos. Infelizmente, isso ocorre na maioria das famílias, ou seja, quando a criança tem um comportamento considerado positivo, não é reforçada, pois este comportamento deve ser algo normal, em outras palavras, não é mais que obrigação se comportar bem – pensam os cuidadores-paternos. Esta situação familiar pode fazer com que a criança compreenda que apenas sendo má, difícil ou “tola” receberá o amor que deseja. Em síntese, podemos ver dois extremos no caso do reforço positivo, isto é, pode-se adquirir o entendimento de que somente sendo uma pessoa boa, puritana, perfeita, sem erros é que se alcançará benefício, elogios, palavras de afirmação, aceitação, amor e afeto, ou sendo uma pessoa má e difícil. Perde-se, assim, o contato com a homeostase. Caminha-se no desequilíbrio da bondade ou maldade. Na modelação, semelhantemente, percebe-se a influência dos cuidadores-paterno na constituição do comportamento e cosmovisão dos filhos.
6.3 Eus infantis
É inegável, portanto, que parte de nossos comportamentos e visão de mundo interno e externo se forjam positivamente ou negativamente dentro de nossas interações sociofamiliares. Como diz Cukier (1998)35,
a
atenção
aos
problemas
dos
adultos
sobreviventes de famílias disfuncionais, incestos ou outros abusos infantis gerou uma consciência crescente de que o desenvolvimento emocional de um indivíduo nem sempre acompanha seu desenvolvimento fisiológico. Isto quer dizer que, por mais que haja um crescimento físico, a mente permanece atrelada a comportamentos infantis. Eus 34
Compreendendo seu filho: uma análise do comportamento da criança / Silvia Canaan-Oliveira ... [et al.] _
Belém: Paka-Tatu, 2002. 35
Cukier, Rosa. Sobrevivência Emocional. São Paulo: ágora, 1998. p. 17
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infantilizados são originados e guardados internamente no momento em que houve circunstâncias indutoras de vergonha ou desconfirmadoras. Cukier (1998), relata em Sobrevivência Emocional36, casos clínicos de pacientes que sofreram disfuncionalidade paterna ou familiar e carregam Eus infantis para a sua vida adulta. É valido citar dois desses casos: Paciente A. Empresário bem-sucedido, 34 anos, deprimido por problemas no casamento. Queixa-se que desde o nascimento de seu primeiro e único filho a esposa não lhe dá toda atenção que ele quer. Tem acessos de violência física e não consegue contê-los, arrebenta objetos da casa e chega a bater na esposa. Numa das cenas que frequentemente traz com suas associações, é madrugada, tem cinco anos, ouve o pai bater na mãe; em outra cena, tem quatro anos, a mãe está cozinhando e ele fica atrás dela, querendo colo. Os irmãos mais velhos riem dele, chamando-o de “maricas”. Paciente B. É uma mulher extremamente bonita de 25 anos, que vive num quase total isolamento social, queixando-se de depressão e de perseguição por parte de colegas, que rivalizam com ela. Profissionalmente está sempre mudando de emprego, pois sente uma compulsão para namorar com os chefes, e pouco tempo depois é mandada embora. Diz que quer se casar e ser rica. Dentre as cenas nucleares que ela traz, destaco duas: Na primeira, tem seis anos, mora com os avós maternos, e sua mãe, que é mãe solteira e empregada doméstica, vem visitá-la aos domingos. Estão todos almoçando, e a mãe se põe a querer lhe ensinar bons modos â mesa, modos que ela aprende na casa dos patrões. A paciente sente-se inferiorizada diante dessas pessoas que a mãe admira. Na segunda cena, tem cinco ou seis anos e vai pedir a benção para o avô, antes de dormir. Sabe que o avô não lhe daria a benção, pois ele sempre dizia que jamais abençoaria a filha bastarda de uma mãe que não prestava. Nesta cena, o avô novamente a humilha, repetindo o mau-trato. Tais casos citados confirmam o que diz Clara R. Rapapport (et all) em Psicologia do Desenvolvimento. Para os autores, se não existir a segurança transmitida pelos cuidadores, a criança se apegará ao passado como um pedido de proteção que é simultaneamente uma acusação e uma culpa. A acusação nasce por causa da negação do prazer e segurança por parte dos pais sentidos como frágeis ou maus; a culpa, por sua vez, surge pelo fato da relação entre criança e pais ser frequentemente especular, gerando na criança a visão de que se ela não recebeu amor é porque também é má e inadequada. E a tentativa de prender-se ao passado é um grito que não encontra resposta, a não ser na repetição dos modelos infantis diante de cada
36
Cukier, Rosa. Sobrevivência Emocional. São Paulo: ágora, 1998. p. 21,22
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tarefa onde deveria comportar-se como adulto. Freud já definia, afirma Rapapport (et all), a neurose como um infantilismo psíquico. Os modelos de conduta se tornam doente. Em minhas investigações pessoais e observações dentro de contextos eclesiásticos protestantes, católicos e judaicos, além dos ambientes sociais como casas de recuperação, centros de apoio, becos e esquinas, verifico e testifico a existência destas construções psíquicas de infantilismo ocasionadas pela negação e privação da segurança e afeto. Sendo assim, observando o Ser Humano, tenho para mim que somos seres que carregam a rejeição primária natural desde a expulsão do ventre materno, por outro lado, existem rejeições secundárias (agressão, violência física ou verbal, negligência de cuidado, ...) por parte daqueles — cuidadores e figuras de autoridade — que deveriam cuidar e zelar por nós que afetam o Homem profundamente. Os nossos cuidadores podem amenizar os sintomas da rejeição primária natural ou efetivá-los com rejeições secundárias. Isto não é desculpa ou isenção de responsabilidade, pois por mais que os cuidadores tenham agido de forma a gerar consequências na construção psíquica da criança, todos nós somos responsáveis por si próprios. Como diria Sartre: não importa o que fizeram com você, e sim o que você faz com o que fizeram com você.
6.4 Extremismo
Aqueles que de alguma forma sofreram algum tipo de rejeição, principalmente paterna, tenderão às ações e visões extremas, tanto boas quanto más. O extremismo é um modo de chamar a atenção daqueles que representam autoridade, tais como professores, líderes religiosos, marido, esposa, os próprios pais e, inevitavelmente, também se refletirá em um comportamento para com a Autoridade Maior, denominada Deus-pai, conforme a visão monoteísta. Tudo depende, obviamente, do nível de rejeição sofrida e da capacidade que cada indivíduo possui em lidar com a situação ocorrida. Em sua maioria são situações em que não há consciência de que houve uma rejeição, mas ela se evidencia futuramente, no decorrer da vida da criança. Não é uma regra absoluta, tendo em vista que cada pessoa tem uma reação diferente; o extremismo infantil, porém, é uma probabilidade de grande porcentagem. Geralmente as ações extremas se relacionarão com aquelas que os pais mais gostam ou aquelas que eles menos gostam. Por exemplo, se a autoridade não gosta de bebida alcoólica
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ou drogas, o filho tenderá a ir contra o não da figura de autoridade para confrontá-la e chamar sua atenção (inconsciente) para o seu sofrimento. Sendo assim, tal pessoa poderá ser compulsiva no uso de substâncias alcoólicas, químicas ou se tornará alguém com uma vida noturna sem limites, desregrada. Em contrapartida, existem aqueles que tenderão a fazer o que o pai ou a figura de autoridade mais deseja, será o mais obediente possível para buscar aceitação e não sofrer com mais rejeição. Transforma-se em alguém que dificilmente consegue dizer "não", é boazinha e faz tudo o que lhe pedem, mesmo que internamente esteja tomada por murmúrios. A falsa humildade, o perfeccionismo e a dificuldade com limites são fortes características deste extremo. Há uma história popular que manifesta bem os extremos dos filhos que sofreram a rejeição paterna. Havia um homem criminoso, traficante, usuário de drogas e pai de dois filhos. Filhos sofreram algum tipo de rejeição devido a condição violenta do pai. Um dos filhos foi preso e o outro se tornou um grande homem de negócios e rico. Fica o questionamento: o filho que se tornou empresário está melhor que o filho preso? Na sociedade capitalista, evidente que sim. No entanto, se observado a fundo, percebe-se que ambos caminharam nos extremos; ambos tentaram fugir da rejeição do pai e foram o mais longe do possível. Um desejou agradar o pai em tudo, ao ponto que se tornou como ele, um criminoso; o outro, no caminho oposto, desejou desagradar o pai em tudo, mas na essência também se tornou como ele, pois seu comportamento também foi extremo, dando muito valor ao oposto da imagem de seu pai. Tanto um quanto o outro acaba sendo violento, um na maldade e o outro na bondade. No campo da espiritualidade, na relação com o Deus-pai, não há diferença. Os que sofreram alguma rejeição paterna se direcionarão para a desobediência ou desobediência extrema para com o Deus-pai. Há quem não consiga obedecer ao Deus-pai, vai a alguma Igreja ou Templo por algum tempo, esforça-se, mas em um determinado momento para, não consegue avançar e prosseguir, e pelos dogmas impostos pela instituição carrega culpa por não conseguir obedecer ao Grande Pai. Por outro lado, há quem o tempo todo tem medo de desobedecer ao Deus-pai. Estas são pessoas muito focadas na santidade, e fazem de tudo para chamar a atenção do Pai e ter a sua aceitação. Buscam por meio de uma obediência extrema fugir de uma suposta rejeição por parte do Pai Maior. São pessoas muito expressivas, cantam e louvam em alta voz e desejam mostrar algo externamente. Também podem ser aquelas que focam nos costumes e nas expressões das tradições afim de que os olhos do Deus-pai sejam atraídos. Desta forma, temos os extremos, aqueles que se expressam demais e aqueles que em
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nada se expressam, e esses que não se expressam em nada, seja por meio da fala ou ação, assim fazem para que não haja nada em sua expressão que desagrade a Autoridade, evitando sofrer a rejeição.
6.5 David, o grande rei
A Escritura sagrada monoteísta traz um exemplo pertinente. David, o grande rei de Israel. Jamais houve um reinado como o dele. A sua infância, contudo, foi sofrida. Sua alma foi sangrada. Ele foi rejeitado por seus irmãos e pelo seu pai. Tal rejeição é percebida quando o profeta Samuel, instruído por Deus, vai ungir um dos filhos de Jessé para Rei de Israel, porém, o pai traz ao profeta todos os filhos, exceto David, que trabalhava no campo: Disse o SENHOR a Samuel: Até quando terás pena de Saul, havendo-o eu rejeitado, para que não reine sobre Israel? Enche um chifre de azeite e vem; enviar-te-ei a Jessé, o belemita; porque, dentre os seus filhos, me provi de um rei. (1 Samuel 1.1). Sucedeu que, entrando eles, viu a Eliabe e disse consigo: Certamente, está perante o SENHOR o seu ungido. 7 Porém o SENHOR disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a sua altura, porque o rejeitei; porque o SENHOR não vê como vê o homem. O homem vê o exterior, porém o SENHOR, o coração. 8 Então, chamou Jessé a Abinadabe e o fez passar diante de Samuel, o qual disse: Nem a este escolheu o SENHOR.
9
Então, Jessé fez passar a Samá, porém Samuel disse:
Tampouco a este escolheu o SENHOR. 10 Assim, fez passar Jessé os seus sete filhos diante de Samuel; porém Samuel disse a Jessé: O SENHOR não escolheu estes. 11 Perguntou Samuel a Jessé: Acabaram-se os teus filhos? Ele respondeu: Ainda falta o mais moço, que está apascentando as ovelhas. Disse, pois, Samuel a Jessé: Manda chamá-lo, pois não nos assentaremos à mesa sem que ele venha. 12 Então, mandou chamá-lo e fê-lo entrar. Era ele ruivo, de belos olhos e boa aparência. Disse o SENHOR: Levanta-te e unge-o, pois este é ele. (1 Samuel 1.6-12). Esta passagem mostra um David no campo e que não era visto como um rei por seu pai. Particularmente, analiso que o homem segundo o coração de Deus manifestou essa rejeição em muitos comportamentos extremos ao longo de sua vida. Ele foi alguém muito expressivo, de ações grandiosas e significativas. Enfrentou o gigante temido pelo exército israelita, trouxe a arca da aliança novamente para Israel, dançou expressivamente ao ponto de mostrar sua intimidade, desejou ardentemente construir uma Casa (templo) para Deus-pai, enfim, a história de David é repleta de expressões grandiosas e extremas. David buscou ser extremamente obediente ao Deus de seus pais.
P a i N o s s o q u e e s t a i s n o s C é u s | 40 6.6 Paulo, o fundamentalista
Além de David, a Bíblia relata outros homens rejeitados de alguma forma, ouso dizer que Paulo, o grande ícone do Cristianismo, também sofreu rejeição paterna. Vale a pena dedicarmos alguns parágrafos para compreendermos o extremismo presente em sua trajetória. Sendo judeu, praticante do judaísmo por toda a sua vida, constituiu-se como o grande apóstolo cristão, autor da maioria das cartas do cânon do Novo Testamento, segundo a tradição cristã. É imitado e idolatrado por muitos; exemplo e referência de fidelidade ao chamado divino. Ao contrário do que alguns cristãos pensam, o seu nome nunca foi mudado de Saulo para Paulo. A visão corrente entre muitos é que, ao se converter, após a visão na estrada de Damasco (Atos 9), Saulo alterou seu nome. Nada, no entanto, foi mudado, ele apenas tinha duas cidadanias: judaica e romana. Nasceu de um seio judeu, em Tarso, capital da Cilícia (Atos 21.39), território sob o domínio de Roma. Adquiriu, desta forma, dupla cidadania, dois nomes: Shaul (Saulo), judaico, e Paulo, romano; como assim declara o verso do livro de Atos: Todavia, Saulo, também chamado Paulo... (Atos 13.9). Sua importância para o avanço da nova crença messiânica é inegável. Sua intrepidez e ousadia foram e são indispensáveis para a propagação da mensagem das Boas Novas. Shaul, o emissário judeu, circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israela, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu b,... (Filipenses 3.5) teve sua fama exaltada até aos dias atuais graças a Marcião de Sinope, um bispo gnóstico do cristianismo do 2º séc.. Ao que consta na história, Marcião foi o primeiro a criar o cânon do Novo Testamento, acrescentando em maior número os textos de Paulo, porque acreditava que era o mais confiável dentre os apóstolos (emissários). Existiram muitas outras cartas de outros autores, entretanto, Paulo (Shaul) foi o que mais agradou Marcião. Embora, por motivos que por hora não interessam, o bispo gnóstico tenha sido considerado herege pela Igreja de Roma, o pensamento do seu cânone permaneceu no Cristianismo. Não desmerecendo a relevância dos escritos de Shaul (Paulo), proponho cautela na leitura de seus textos, não só pelas interpolações cristãs, adulterações ou pela dificuldade de entendimento, como Pedro (Kefa) fala em sua segunda epístola: igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada,
a
3.5 Rm 11.1
b
3.5 At 23.6; 26.5
16
ao falar acerca destes
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assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles. (2 Pedro 3.15,16), e sim pela compreensão de sua personalidade extrema e fundamentalista. Pouco, ou praticamente nada, sabe-se sobre a infância desse emissário nascido em Tarso, o que se sabe é o que da sua boca se declara: eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade [Jerusalém] e aqui fui instruído aos pés de Gamaliel a, segundo a exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus, assim como todos vós o sois no dia de hoje (Atos 22.3). É notável o seu alto nível de instrução por aqueles que com ele se encontravam, a ponto de enfatizarem que por causa do muito estudo, estaria ele delirando. Em certa ocasião em que Paulo (Shaul) discursava em sua defesa, assim ouviu: Estás louco, Paulo! As muitas letras te fazem delirar! (Atos 26.24). Abro, aqui, um parêntese para um breve comentário. Rabban Gamaliel, seu discipulador, era membro do sinédrio (tribunal judaico), fariseu, rabino, mestre da Torah, neto do rabino Hillel (30 a.C a 10 d.C), um dos grandes instrutores da Torah, célebre em Israel, fundador da Beit (casa) Hillel37, uma escola farisaica que competia com a Beit Shammai. Respectivamente, a primeira, preocupava-se mais com o princípio, o sentido, o objetivo da Lei e focava no que se chama de “Espírito da Tora”; não se apegava a observância ao pé da letra das Escrituras, ao contrário da segunda que, em uma observância legalista e detalhada das Escrituras, focava na “Letra da Tora”. Com estas informações sobre o seu discipulado, podemos compreender alguns posicionamentos de Paulo acerca da Torah, principalmente sobre aqueles em que parece falar negativamente a respeito da Torah (Romanos 3.20;28 ; Gálatas 2.16; 3.2;5;10), entretanto, segundo o ensino que por ele foi recebido do neto de Hillel, ele está se referindo a Letra — observância legalista da Torah —, focando no princípio nela contido. Fecho parênteses. Ainda que Shaul (Paulo) agisse e pregasse contra o legalismo e as maassei hatorah (obras da lei - tradições rabínicas que tinham peso de lei) que acarretam peso sobre os ombros dos homens — assim como o próprio Yeshua exorta os fariseus de Shammai: Atam fardos pesados [e difíceis de carregar] e os põem sobre os ombros dos homens; entretanto, eles mesmos nem com o dedo querem movê-los. 5 Praticam, porém, todas as suas obrasa com o fim a
22.3 At 5.34-39
37 a
Ao que tudo indica, por algumas evidências em sua fala, Yeshua era favorável aos ensinos da Beit Hillel.
23.5 Mt 6.1
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de serem vistos dos homens; pois alargam os seus filactériosb e alongam as suas franjasc. (Mateus 23.4) —, ele tinha um comportamento que se sobressai e se evidencia muito fortemente na sua biografia antes e pós-entrada na seita dos Nazarenos (Atos 24.5) ou do Caminho (Atos 24.14). Muitas passagens revelam um Paulo (Shaul) fundamentalista extremista. Antes de entrar na seita dos Nazarenos (ramificação do judaísmo que crê em Yeshua como Messias de Israel, movimento diferente dos cristãos), ele já demonstrava o seu psicológico extremo. Zeloso para com Deus-pai e para com o seu farisaísmo; perseguiu, violentou e matou aqueles que ameaçavam a integridade do seu judaísmo. Assim ele fala de si mesmo ao contar sobre a sua visão na estrada de Damasco: [...] segundo a exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus, assim como todos vós o sois no dia de hoje. 4 Persegui este Caminho até à morte, prendendo e metendo em cárceres homens e mulheres, 5 de que são testemunhas o sumo sacerdote e todos os anciãos. Destes, recebi cartas para os irmãos; e ia para Damasco, no propósito de trazer manietados para Jerusalém os que também lá estivessem, para serem punidos. (Atos 22.3-5). Numa análise comportamental, tal condição psíquica de zelo extremo, geralmente é adquirida por consequência de uma rejeição paterna sofrida. Levando em consideração a falta de conhecimento sobre a infância de Paulo (Shaul), torna-se difícil afirmar algo, todavia, é visível o seu comportamento zeloso, extremo e fundamentalista. Esta forma de ser da mente permanece em qualquer contexto, mesmo quando se muda de contexto, como assim se percebe no caminhar do emissário judeu Nazareno. Ele, zeloso ao extremo, defensor do seu judaísmo farisaico, perseguia os crentes em Yeshua, e, ao mudar de lado, continuou sendo zeloso ao extremo — principal defensor da seita judaica dos Nazarenos. No seu depoimento perante Féliz, Tértulo afirma: Porque, tendo nós verificado que este homem é uma peste e promove sedições entre os judeus esparsos por todo o mundo, sendo também o principal agitador da seita dos nazarenos [...] (Atos 24.5). Por mais que seja um testemunho de acusação, é manifesto em suas cartas e viagens, um Paulo obstinado e fundamentalista. Pregador incansável do Messias Yeshua. Como de início disse, penso que é sobre este comportamento psíquico específico que se deve ter cautela ao absorver os textos de Paulo (Shaul). É importante discernir onde se
b
23.5 Dt 6.8
c
23.5 Nm 15.38
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encontra o seu psicológico. Compreender o tempo de amadurecimento das suas palavras, é necessário. Todo conhecimento que se tem por revelação passa por um tempo de amadurecimento dentro daquele que o recebe. Com Paulo (Shaul), homem como todos, dotado de uma psique e de uma mente sofrida, não é diferente. Agora, é importante entender que fundamentalismo pode não ser o mesmo que ímpeto e desejo por realizar algo. Fundamentalismo está dentro de um pensamento violento, enquanto o ímpeto, não necessariamente. Por falta desse discernimento por parte de seus leitores, o famoso emissário é muitas vezes incompreendido, tornando-se inspiração para fundamentalistas extremistas, os quais promovem morte em nome do Messias e levantam bandeira de uma guerra santa; tiram as espadas da bainha e cortam a orelha do soldado, como Pedro (Kefa), em seu fundamentalismo inicial: Então, Simão Pedro puxou da espada que trazia e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita; e o nome do servo era Malco.
11
Mas Jesus
disse a Pedro: Mete a espada na bainha; não beberei, porventura, o cálicea que o Pai me deu? (João 18.10). Sobretudo, cabe perceber que tanto Pedro (Kefá) como Paulo (Shaul), após o tempo de amadurecimento, instrui a um comportamento sóbrio (equilibrado, moderado): Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério. (Paulo, 2 Timóteo 4.5); Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios e esperai inteiramente na graça que vos está sendo trazida na revelação de Yeshua, o Ungido. (Pedro, 1 Pedro 1.13). Nesta análise dos passos paulinos, fica evidente a rejeição sofrida e seu suicídio altruístico. Seguindo este raciocínio, escrevo um pouco sobre este tema, o qual também se manifesta na rejeição.
6.7 Suicídio altruístico
Émile Durkheim (1858 – 1917), em O Suicídio (1897) — monografia que se tornou uma grande obra para a sociologia —, classificou e explicou três tipos de suicídios: suicídio egoísta, suicídio anômico e o suicídio altruístico. Destes três, atrevo-me a comentar o terceiro, o qual, segundo Durkheim, é o sacrifício da própria vida em benefício de outra. Permito-me ampliar esta definição para o campo do pensamento teológico, pois o altruístico me parece ser o mais comum e menos percebido (ou mais ignorado) dos suicídios na sociedade teocêntrica a
18.11 Mt 26.39; Mc 14.36; Lc 22.42
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em busca de um Poder Oculto — metafísico ou físico, tenha forma ou não, seja uma ideologia ou um pensamento — que transcende a falibilidade humana. Sobre a apercepção do suicídio altruístico, é plausível pensar que assim se dê pelo peso pecaminoso que a própria palavra carrega. O suicida é alguém que ofende o Doador da vida e, por isso, é indigno de perdão – pensa a tradição ocidental. Visualizar-se nessa posição é inconcebível para muitos. Melhor é se nomear solidário, caridoso, bondoso, beato, trabalhador, esforçado, dentre muitas outras palavras mais confortáveis, como veremos nos exemplos a frente. Não obstante, entendo que o suicídio altruístico, ainda que convenientemente imperceptível, é vigente em todos os grupos sociais: econômico, clérigo ou político. Existe um sacrifício pessoal (morte de si mesmo) exigido em todos os âmbitos da sociedade humana, isto pelo motivo de ser uma Sociedade centrada na busca por um Sagrado que, desde o início da civilização, convoca a Humanidade ao ato sacrificial de animais, humanos ou agrícolas. Não vem ao caso trazer explicações sobre a visão ampliada acerca da religiosidade humana, basta saber que todo Ser Humano é religioso, isto é, caminha em direção a uma religação com sua origem inundada em interrogações. Quando alguém, por exemplo, sacrifica o seu sono para que a empresa cresça; quando alguém sacrifica o seu tempo para ganhar mais dinheiro, dentre outras formas de sacrifícios capitalistas, tal pessoa é vista como uma trabalhadora esforçada, não como uma suicida, porém, ao analisarmos o profundo das intenções, ela está, por motivos e propósitos semelhantes, agindo como os antepassados que sacrificavam ao Sol, aos deuses e deusas nos altares e nos altos das montanhas. A vida é sacrificada ao seu sagrado (no caso, o capital), o qual promete e proporciona por algum momento a sensação de bem estar, completude, satisfação, segurança, proteção, sustento, enfim, tudo o que se busca de um “deus”. Cometese, assim, um suicídio em prol de um ideal, sonho de consumo ou um bem (segundo a teologia do empreendedorismo da religião capitalista). Igualmente o fazem os discípulos dos ensinos do Cristianismo que, em suas interpretações sobre os textos bíblicos, observam o suicídio altruístico como um mandamento divino que, obviamente não é assim considerado, e sim denominado solidariedade, amor, santidade, consagração,... Negar e dar a vida são o exemplo deixado por Cristo – declaram os cristãos. Neste aspecto, o ícone do cristianismo se transforma num suicida exemplar. Vejamos que o livro de João expressa que o Cristo dá a sua vida em benefício de suas ovelhas: Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor.
17
Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a
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minha vida para reassumi-la. 18 Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. (João 10.16-18). Em outra passagem, o Mestre, voltando-se para os seguidores, estabelece o mandamento de autonegação:
26
Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai,
e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.
27
E qualquer que não tomar a sua cruz e vier após mim não pode ser meu
discípulo. (Lucas 14.26-27). Desta forma, as palavras sacrificiais do Cristo no Getsêmani — não se faça a minha vontade, e sim a tua [Deus]. (Lucas 22.42) — são, para os seguidores, o modelo de suicídio altruístico, tanto no sentido físico como psíquico. Os personagens bíblicos, dentre eles Paulo, para os romanos, ou rabino Shaul, para os judeus, seguiram o mandamento sacrificial; entregaram suas vidas em nome de uma missão proseletista, e por tal renúncia morreram apedrejados, a exemplo de Estevão, ou crucificados. Hoje, como herança das interpretações gnósticas e ascéticas, os grupos da cristandade (protestantes, católicos, espíritas,...), sobretudo aqueles formados por pessoas que sofreram rejeição paterna, continuam a seguir esse tipo de suicídio extremo sob o pensamento de solidariedade (caridade) e teologias que incentivam a mortificação da carne, do corpo, dos desejos, das vontades e da vida. Como visto, porém, esta característica suicida altruística não é exclusiva de apenas alguns grupos ou indivíduos, é plenamente natural da humanidade que visa um sagrado. Muitos são os exemplos explícitos desse comportamento na sociedade contemporânea, cito alguns: o homem-bomba, no Islã (entrega, submissão), acredita estar fazendo um bem para a humanidade ao obedecer aos líderes extremistas seguidores de Maomé e ordenados por Alá e, desta maneira, está convicto de que receberá virgens num paraíso; o kamikaze (vento divino) japonês, na segunda Guerra mundial, absorveu o ensino “nada perguntar, mas submeter-se à providência divina” de Norinaga Motoori, além de carregar a bandeira do xintoísmo estatal e a dedicação ao deus-homem-vivo (o imperador), por isso, acreditou na honra de morrer por seu país e imperador ao se jogar com seu avião sobre os navios inimigos; Madre Tereza de Calcutá doou sua vida aos pobres; Francisco de Assis renunciou suas riquezas em benefício dos desprezados; Freud também cometeu seu suicídio altruístico pelo ideal da psicanálise; Marx, Nietzche, Heiddeger e os demais pensadores se sacrificaram por seus pensamentos sobre o mundo e a Humanidade; tantos outros — nós todos — negam a si mesmos em prol de um bem ideal que, para cada um, em particular, é representação de algo sagrado — algo separado como especial, santificado, retirado do contexto comum e ordinário — que lhe devolve o sentido da vida. Todo Homem, em sua crença, se sacrifica e se suicida
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para alcançar um Bem (algo desejado) que reside nas mãos do seu Sagrado, sendo, portanto, uma troca expiatória em que uma vida é dada pelo resgate de outra; nesta perspectiva, o Tanach (velho testamento hebraico) expressa muito bem esta relação sacrificial e suicida entre o Homem e seu Sagrado: Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida. (Levítico 17.11). Vale, por fim, compreender que o cerne do suicídio é aliviar-se de um sofrimento ou dor insuportável, o altruístico também é motivado pelo alcance desse alívio. Todo Bem que se almeja no despreendimento ou negação de si mesmo se volta inconscientemente para si próprio; — tudo o que desejamos é um desejo refletido em um espelho — ainda que haja a afirmação de que o Bem objetiva o outro ou a Humanidade, o suicídio altruístico é praticado para provocar o alívio no sofrimento causado pela incógnita e incompletude existencial de si mesmo. O objetivo e desejo motivador acabam por ser o resgate (expiação) de uma vida melhor, em completude. Em sinceridade e na primeira pessoa, seria como declarar: sacrificome em prol do outro (pessoa, empresa, ideal, instituição, grupo) para sentir-me bem comigo mesmo, para sentir minha vida resgatada. Lembrando que este sacrifício, para alguém com comportamento extremo absorvido pela rejeição sofrida, é um comportamento extremo que o afasta do equilíbrio e sobriedade. De certa forma, é violento para si próprio ou para o outro e o distancia do Deus-pai – a Consciência-do-Ser —, porque como sabemos o caminho do filho aos extremos tem por objetivo se distanciar o máximo de qualquer coisa que possa indicar alguma rejeição paterna. Levantam-se mulharas e o verdadeiro ser que simboliza o serequilibrado ou Consciêcia-do-Ser se inibe e se esconde, como exprime os belos versos seguintes:
Ele a quem eu dou meu nome, Está chorando em sua cela, Eu ando sempre ocupado, Construindo uma parede em sua volta. E, ao mesmo tempo em que esta parede sobe, dia após dia, em direção ao céu, vou perdendo a visão do meu verdadeiro ser em suas escuras sombras.
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Orgulho-me desta grande muralha, eu a reforço com pó e areia, com medo de que nem um mínimo buraco seja deixado para aquele que carrega meu nome. Como resultado deste cuidado todo, vou perdendo a visão do meu verdadeiro ser. (autor desconhecido)
6.8 Religião e Solidariedade
Ao nos referirmos ao suicídio altruístico no tópico anterior, não há como desassociar dois temas intrínsecos: o papel da religião e a solidariedade. Dentro desta associação, partilho uma reflexão que nasceu após a leitura dos artigos “O Bom Samaritano é ateu”38 e “Crianças sem religião são mais solidárias e menos egoístas”39, com a proposta de observar a religião e a solidariedade por outro ângulo, ampliando os seus sentidos sobre tais conceitos. O título da matéria, em si, desperta o leitor ao espanto, a surpresa, a ideia de que a solidariedade e generosidade são sempre boas e, assim, produz uma interrogação e exclamação interior: “nossa, como pode isso acontecer, crianças sem religião não são tão “boas” como as que não têm religião (ateias no senso comum)?!”. A intenção é quebrar um paradigma que envolve a moralidade religiosa, contudo, pergunto: "Crianças sem religião"? O que isto significa? Crianças que não foram criadas dentro de uma instituição eclesiástica ou clériga, em obediência a algum livro sagrado? Isto é ser uma criança sem religião? O que é solidariedade, o que é fazer o bem? Dar e doar é sempre sinal de bondade? Partilhar é fruto da crença em alguma divindade ou consequência da participação em um grupo que professa a mesma fé ou cosmovisão? Como sabemos o que é bom e mau, como esses conceitos se
38
Acesso em > http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/05/ciencia/1446717405_450204.html
39
Acesso em > http://pensadoranonimo.com.br/criancas-sem-religiao-sao-mais-solidarias-menos-egoistas/
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formam e se interiorizam em nós? — Os estudantes e professores de filosofia sabem o quão amplas e inacabadas podem ser essas respostas. Voltando-se, porém, para o prisma da religião (religare - latim), bem como para o "ideal de deus", — ênfase da matéria —, em meu ponto de vista psicoteológico, é algo muito mais amplo, é um fenômeno psíquico intrínseco em cada Ser Humano, desde o seu nascimento. É uma busca constante — gerada da angustia existencial pelo rompimento do cordão umbilical e desligamento do ventre materno (local de esquecimento da dor e sofrimento — por se religar a algo que lhe propicie algum tipo de paraíso, melhor, que lhe permita um retorno às sensações de aconchego, bem-estar, felicidade, amor,... vivenciados na vida intrauterina e, assim, registrados na psique. Todos, desta forma, possuem uma religião (meio de religação), seja institucional, deísta ou não, acredite num Ser Criador ou não, todos possuem uma crença (fidelidade – fé) em algo ou alguém que lhe conecte a um estado de completude, ou que pelo menos lhe prometa tal condição utópica. Este seria um ponto de vista ampliado e simplificado sobre a religiosidade humana. Agora, no que tange a bondade e solidariedade, podemos questionar o seguinte: Se avaliarmos a crença institucionalizada chamada Cristianismo e sondarmos as suas Escrituras Sagradas, como exemplo, o Cristo não foi solidário com a mulher cananeia ao negar a cura a sua filha, dizendo “não vim senão para as ovelhas perdidas de Israel [...] Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. (Mt 15.24,26)? E quando Ele diz: Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem. (Mt 7.6); ou: Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. (Mt 10.34); ou ainda: Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. (Lc 14.26). Que tipo de “amor” e “bondade” (ou evangelho para o cristão) está expressando essas palavras? Não dar o que é santo – reter para si, desobedecer aos pais, aborrecer amigos e irmãos, levantar espada, divisão e discórdia em prol de uma mensagem de boas novas? Seria isto? Bom, o que se tem são palavras, a conceptualização e interpretação estão sob responsabilidade de quem tem contato com elas, conforme a instrução recebida. Bondade, maldade, amor, solidariedade são conceitos que caminham e se modificam em cada época, civilização e contexto histórico. O que a Igreja Cristã, em seus concílios iniciais, estabeleceu como pecados capitais, hoje já não são tão capitais assim. Em outras civilizações antigas, matar os filhos e sacrificá-los não era maldade, pelo contrário, era uma honra aos seus deuses. Para eles, não havia maldade nisso. Mesmo Abraão, o pai das três
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grandes religiões institucionalizadas do mundo, moveu-se para sacrificar o filho ao seu Deus (Yhwh), e em nenhum momento isto foi colocado como mal, naquele momento, porém, posteriormente, o mesmo Deus que pediu o filho a Abraão ordenou ao seu Povo que não sacrificassem seus filhos a Moloque, porque esta atitude, agora, seria abominável. Há pouco tempo, na sociedade civil atual, uma palmada ou varada nas nádegas do filho era considerada uma correção legítima, hoje, entretanto, é considerado crime. Surge a pergunta: Por que o que outrora era bondade para com o filho, atualmente, é maldade? Dentro dos templos cristãos, espíritas, judaicos, culturas ocidentais e orientais, não é diferente, o conceito do que é bom e mal, evangelho ou boas novas, se modificaram e se modificam ao longo dos caminhos da história. O que quero dizer é que a solidariedade e generosidade não são conceitos e comportamentos estabelecidos exclusivamente dentro de templos e livros reconhecidos como sagrados ou divinamente inspirados por um Ser Criador, existe uma variedade de fatores que constroem a forma de agir do Homem. Fatores históricos, genéticos, sociais, familiares, e isto pelo simples fato da constituição Biopsicohistoricossocial do Ser Humano. A moral, ou a consciência moral (superego - na psicanálise), parte psíquica que determina as ações solidárias e generosas, está para além da ligação direta a uma instituição eclesiástica (cristianismo, judaísmo, islamismo...), pode sim estar sob influência de tais ensinos doutrinários, no entanto, ela se estabelece no indivíduo pela interação sociofamiliar, ainda que a família não tenha crença alguma em alguma divindade, pois o ensino moral é um ensino universal, estabelecido e outorgado segundo as regras de uma cultura familiar ou social específica. Além dos cuidadores paternos, os meios de comunicação sociais (internet, rádio, televisão) também são importantes na construção da cultura de um povo e, consequentemente, na formação da consciência moral de um indivíduo, ou seja, são determinantes na forma como o indivíduo vê a si mesmo, o outro e o mundo que o cerca. O ensino institucional e eclesiástico de um Deus moral e ético não é a única forma de ensino que produz consciência moral (conjunto de valores e princípios que formam a visão e percepção de si mesmo e do outro) no ser humano. No presente tempo, numa fase de transição social, em que a tradição dos pais e avós tem adquirido outros comportamentos, a desconfiguração familiar (cuidadores paternos) afeta mais a consciência moral das crianças do que a ausência de religião ou fé institucionalizada, pois o que determina se uma criança vai ser moral, generosa ou solidária, está, em grande parte, nos espelhos familiares, relações, interações, mediações, nos processos de imitação, nos ensinos,... As relações familiares (mais próximos) influenciam até mesmo como a criança se relacionará e verá o Sagrado. Como já observamos, crianças que sofreram
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algum tipo rejeição expressiva na primeira infância, tendem a comportamentos extremos de bondade ou maldade. Alguns serão muito bons, obedecerão a todas as regras e leis, serão éticos e morais, caminharão dentro dos padrões estabelecidos por figuras de autoridade, terão dificuldade para dizer “não”, carregarão muita culpa e peso quando houver uma desobediência, frequentarão as Igrejas, Templos e serão devotos e beatos a Deus (Figura Paterna) sem ousar questioná-lo; outros, na via contrária, serão extremamente desobedientes às regras estabelecidas por superiores, serão violentos, “maus”, desrespeitosos a qualquer figura de autoridade, inclusive Deus-pai, e dificilmente carregarão culpa por isso. Ambos os comportamentos são uma forma de verbalizar o medo de sofrer uma rejeição novamente. Acredito, então, que o foco é o ensino, maneira como a criança é educada por ações ou palavras, mais que isso, é como a criança absorve o ensino recebido (pois cada indivíduo absorve de forma diferente um ensino). O ponto essencial, a meu ver, não é se a criança é nomeada “cristã”, “judia”, “muçulmana”, “católica” ou “espírita”, e sim a forma como ela foi educada. Se as crianças são conduzidas a direcionarem a sua religiosidade natural em uma instituição com ensinos fundamentalistas e legalistas, elas, em sua maioria, crescem em um ambiente fechado, inseridos em um povo escolhido pelo divino, em que todo aquele que está fora desse povo separado é estigmatizado como rebelde, fora da vontade de deus (Ser Supremo). Este tipo de ensinamento, fundamentado em uma verdade absoluta, torna-se, naturalmente, muito excludente, visto as babarias relatadas na história: cruzadas, inquisição, holocausto, estado islâmico, enfim, milhares e milhares de mortes e atrocidades em nome de "deus" e da "fé institucionalizada", além de outras ações atuais e mais sutis no dia a dia. A moral, neste caso, torna-se amoral. Numa perspectiva sincera, a maioria que participa de um contexto de fé institucionalizada que prega o amor e a paz, realiza o bem proposto pelo seu Sagrado Deuspai, simplesmente porque é mandamento, é uma obrigação cumprir o dogma santo; há pouca motivação nascida de si mesmo voltada para o outro, todavia, muita motivação gerada pelo pensamento de que há uma condenação para o desobediente ou recompensa para o obediente. O jovem rico citado na Bíblia, por exemplo, não mata, não rouba, honra os pais; em outras palavras, ele é moral e bom porque deseja uma recompensa – a Vida: Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna? 18 [...] Sabes os mandamentos: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, não defraudarás ninguém, honra a teu pai e tua mãe. 20 Então, ele respondeu: Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude. (Mt 10.17-20). Em outro episódio, João – o Batista, ao pregar sobre arrependimento e sobre uma
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condenação aos injustos, é questionado pela multidão acerca do que deveriam fazer para não serem condenados, e ele responde: Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo.
12
Foram também publicanose para serem batizados e
perguntaram-lhe: Mestre, que havemos de fazer? 13 Respondeu-lhes: Não cobreis mais do que o estipulado. 14 Também soldados lhe perguntaram: E nós, que faremos? E ele lhes disse: A ninguém maltrateis, não deis denúncia falsa e contentai-vos com o vosso soldo (não aceitem propina). (Lc 3.10-14). Aqui se percebe que a solidariedade e bondade dentro de uma crença institucionalizada por doutrinas e dogmas são regidas muito mais pelo medo de uma condenação (rejeição eterna) do que por puro desejo. No entanto, acredito que esta forma de ser é uma representação que reside em cada um de nós. Todos nós, humanos, enquanto seres religiosos em uma busca, incosciente ou consciente, por um paraíso, não estaríamos sendo bons e solidários — quando assim entendemos que estamos sendo —, por que estamos fugindo de uma condenação ou por que desejamos alcançar esse “paraíso – bem estar” interior, esteja esta condição desejada na aprovação divina (Ser Criador) ou na aprovação de nós mesmos ou na aprovação dos olhares alheios da sociedade ou comunidade na qual estamos inseridos?
e
3.12 Lc 7.29
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7. A Consciência-do-Ser - poder que conduz
Até o presente momento, tratamos Deus-pai segundo o modo de ver da tradição monoteísta, isto é, como um Ser-masculino, para trazer a relação de influência entre os cuidadores (mulher-homem) e o Deus-pai do imaginário monoteísta ocidental. Todavia, percebeu-se que, em certas ocasiões, Deus-pai foi colocado na posição de uma consciênciado-Ser. Talvez isto tenha gerado um estado de confusão ao leitor. Procuro, desta forma, esclarecer esta visão. No mundo ocidental monoteísta, Deus é um sagrado masculino também chamado de Pai. Sabemos muito bem disso. No entanto, existem outras possibilidades de se entender este “pai”, além do conceito comum monoteísta. Dentro dessas possibilidades, desejo manifestar uma das possíveis visões. Inicio propondo uma observação da palavra e conceito “PAI” em seu contexto hebraico, no qual podemos obter alguns entendimentos interessantes. Sabe-se que o hebraico é uma língua antiga que, por isso, tem seu alfabeto proveniente de símbolos pictográficos. A palavra “pai”, por exemplo, é uma junção de duas letras, o alef ( )אe o beit (( אב = )בAV = PAI). Estas letras, na pictografia, são representadas pelas figuras boi ou touro ( )אe casa ()ב. Sendo assim, no conceito figurativo, o “touro” simboliza “força e poder” e a “casa” vem da palavra “bannah ”בנהque significa “construir, dar continuidade”. Portanto, pode-se entender que “pai” está na ideia de “uma força ou poder que constrói e que sustenta uma estrutura de abrigo e proteção”. É um conceito subjetivo que não está necessariamente e exclusivamente relacionado ao gênero homem, pode também estar conectado a mulher, pois é uma condição de força e poder, não uma pessoa física em si. Neste aspecto, mulher também pode ser “pai”. A ligação de “pai/homem” é um conceito estabelecido pela interação sociocultural. Entretanto, nesta reflexão desejo focar apenas no “pai” como uma “força e poder que estrutura e constrói” relacionada ao Sagrado no mundo ocidental, isto é, ao Deus-pai muitas vezes citado nos escritos bíblicos e aprendido na tradição cultural. Cabe, desta forma, outra análise da palavra “ אלel” na pictografia antiga, visto que é dela que se traduz a palavra “Deus” na bíblia. “ אלel” é uma junção de alef ( )אque como vimos é touro ou boi, referente a imagem dos chifres, e do lâmed ( )לque provém da imagem de um laço, referente a um cajado. Neste simbolismo da origem da linguagem pictográfica, Deus associado a palavra El é também “uma força ou poder que conduz e corrige a um
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caminho melhor, como um pastor que guia as ovelhas com seu cajado”. Igualmente ao conceito “pai”, “deus” proveniente de El é subjetivo, é uma força ou poder e não uma pessoa física ou espiritual, visto que na própria bíblia o termo “el” é usado para coisas, objetos e elementos da natureza. Nesta proposição e reflexão, o Deus-pai pode ser tão somente uma força ou poder que conduz o homem ou a humanidade em um caminho de estruturação, proteção e segurança. Não é masculino ou feminino, homem ou mulher, mas uma força ou poder que pode ser encontrado no interior de tudo e no próprio Homem. É como uma consciência mais lúcida e elevada, uma voz ou um outro Eu Maior que ressoa no Jardim interno de cada Ser, em alusão a alegoria do Gêneses bíblico — um mundo em caos em busca de reconstrução é a expressão do interior do próprio Homem. Neste processo de recriação existem duas vozes produzidas e ouvidas na mente humana — uma que limita e conduz para a vida e outra que convida ao deslimite e direciona a morte: E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, 17 mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás. (Gn 2.16,17). Então, a serpente disseb à mulher: É certo que não morrereis. (Gn 3.4). Quando ouviram a voz do SENHOR Deus, que andava no jardim pela viração do dia, esconderam-se da presença do SENHOR Deus, o homem e sua mulher, por entre as árvores do jardim. 9 E chamou o SENHOR Deus ao homem e lhe perguntou: Onde estás? 10 Ele respondeu: Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo, e me escondi. (Gn 3.8-10). A voz limitadora é conhecida no monoteísmo como a voz de Deus-pai que, observado neste texto, pode ser visto como uma consciência pura e paterna intrínseca na mente humana. A outra voz, por sua vez, é conhecida pela tradição monoteísta como a voz do diabo, inimigo ou adversário, entretanto, essa voz é tão somente a quebra da relação com a consciência paterna ou consciência-do-Ser. Quando, por motivos de interação sociocultural e familiar, há um rompimento na relação com esta consciência paterna interior, ou seja, com a força ou poder que guia e conduz ao que se entende por bem, há um caminhar deslimitado em direção aos extremos, e isto leva a uma vida não saudável. A quebra da conexão ou a interferência que destoa a voz da consciência-do-Ser, como manifestado nos capítulos anteriores, é resultado da má compreensão resultante da relação paterna disfuncional.
b
3.4 2Co 11.3
P a i N o s s o q u e e s t a i s n o s C é u s | 54 7.1 Eu e o Pai somos Um
A Instituição eclesiástica ocidental, infelizmente, baseada em um realismo platônico, disseminou um pensamento negativo sobre o Humano. Focado na ideia de que o Homem é mal, pobre, nu e pecador, afirma que nada de bom pode vir do Ser Humano. Assim, o Poder, denominado Deus-Pai, passou a ser visualizado em uma personificação fora do Homem. No entanto, as palavras bíblicas e outras culturas, parecem declarar o contrário. Primeiramente, o Homem é visto como algo "muito bom" (Gn 1.31). A partir desta visão, os versos bíblicos trazem o Poder, denominado Deus, para dentro do próprio Homem, sendo Um no Homem. Tanto no Tanach (velho testamento) como no Novo Testamento há textos que expressam esse retorno (teshuvá) ao interior: Porque esta palavra está mui perto de ti, na tua boca, e NO TEU CORAÇÃO, para a cumprires. (Deuteronômio 30.14); Mas tu, quando orares, ENTRA no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente. (Mateus 6.6); O Reino de Deus está DENTRO de vós. (Lucas 17.21). Este ato de encontrar o Poder, denominado Deus, dentro de si mesmo, não é encontrar algum Ser dentro de si, mas perceber-se UM com este Poder, como assim declarou Yeshua quando diz "eu e o Pai [poder] somos UM" (João 10.30). Esta é uma compreensão muito profunda de consciência e lucidez de ser Um com Deus (Poder oculto). Ou seja, Eu e Deus somos Um, participantes de um Todo. Deus está em mim e eu em Deus (entenda como força e poder), como uma imersão. Uma coisa só. Um só Deus. Quando há esta consciência, há também a consciência do poder que se tem. No mesmo contexto, Yeshua, após dizer "EU E O PAI SOMOS UM", mostra que todos são Um com Deus, sendo, portanto, deuses: Respondeu-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Sois deuses? Pois, se a lei chamou deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi dirigida, e a Escritura não pode ser anulada, (João 10.34,35). Deus-Pai é, portanto, em minha concepção, um Poder que flui no Todo, e não um Ser observador do mundo e do Homem. Seria como dizer, sem separação: "EU SOU PODER E O PODER SOU EU". Esta seria a Consciência-do-Ser. Até porque a Bíblia fala de um Poder que cria Poderes. Aqui, lembro que a palavra Deus, na bíblia, corresponde a palavra El e ao seu plural Elohim (hebraico) que literalmente significa "poderes" ou "poder maior, pleno", e não necessariamente um Ser metafísico habitante em uma outra dimensão rodeado de seres angelicais.
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Ainda nesta visão de dissociação entre o Poder e eu, acredito ser interessante mais uma observação dentro do contexto linguístico hebraico. Coração em hebraico é "lev - ocisíf oãgró oa otnat odanoicaler átse e " לבcomo ao sentido abstrato da mente. Esta palavra é uma junção das consoantes "lamed ( )ל+ beit ()ב. No símbolo da linguagem antiga, respectivamente, é "vara + casa". Vara representa o cajado que corrige e conduz e instrui no caminho. Além disso, a consoante "lamed" está associada a palavra "lamad", cujo significado é "ensinar". Desta forma, pode-se entender coração ou mente como uma casa que se constrói pela vara da correção e instrução. Algo mais interessante sobre "coração/mente" é que as letras בלque compõem a palavra coração "lev", assim como observou o Rabi Baal haTurim (126 -1 4 Espanha), são as duas únicas letras no alfabeto hebraico, que podem ser combinadas com as letras do nome de D-us ()יהוה, formando palavras significativas (por exemplo, ל, יboS .(etnaid rop missa e י esta perspectiva, "deus" se mistura ao coração/mente humana, produzindo combinações significativas. Desta forma, "Deus - Elohim [poderes]" não é dissociável da mente humana. Tal poder - Deus está no coração, assim como o coração está nesse poder - Deus. Cada coração/mente produz suas combinações acerca de "Deus - poder".
7.2 Resgate da filiação e a Liberdade -do-Ser
Recordo-me da clássica parábola do filho pródigo (Lucas 15.11-16), um conto sobre dois filhos e um pai. O mais jovem pediu a sua parte na herança antes do tempo e saiu para gastá-la. Enquanto isto, o irmão mais velho ficou em casa trabalhando para seu pai. O pai aguardava ansioso pela volta do filho mais novo e quando o filho retornou, o pai se alegrou e mandou fazer uma festa. O filho mais velho não gostou e disse “a quanto tempo que eu te SIRVO e nunca fizeste uma festa para mim?”, o pai então lhe disse “filho, você sempre está comigo, tudo o que é meu é teu”. Em outras palavras “filho, você pode fazer uma festa quando você quiser”. A questão é que o filho mais velho se via apenas como um servo e não compreendia que era filho, distorcendo desta forma a relação com o seu pai. A distorção da identidade como filho obviamente distorce a imagem do pai. Há percepção da consciência paterna se houver consciência da filiação. É certo que só há pai para aquele que se compreende filho. Por isso, o restabelecimento da identidade de filho é importante para que se perceba e ouça a voz da consciência paterna interior. Lembro-me de outra ocasião em que
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Yeshua declara: O escravo não fica sempre na casa; o FILHO, sim, para sempre. Se, pois, o FILHO vos libertar, verdadeiramente sereis livres. (João 8.35,36). De que filho falou Yeshua, de si mesmo ou dos judeus que o ouviam? Penso que, pelo contexto textual, o filho que liberta não é Yeshua, e sim o filho que habita dentro dos ouvintes, isto é, os ouvintes estavam na condição de escravos e precisavam encontrar a condição de filhos para serem libertos, habitantes da casa; esta era a “verdade” — referida alguns versos anteriores — que eles precisavam encontrar em si mesmos: ... e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará (João 8.32). O filho que encontramos em nós nos liberta de conceitos que causam servidão, geram prisões na mente (alma – psique) e nos aproxima de um ambiente familiar e aconchegante, tanto com a consciência paterna interior [Deus – Pai] como com os Homens. Penso, particularmente, que as muitas vezes em que Filho, com letra maiúscula, é lido nos textos bíblicos, é uma manifestação do Filho que somos nós mesmos que precisa ser resgatado para que haja libertação ou salvação (restabelecimento da saúde). João 3.16 é um destes textos: Porque Deus (conciência-do-ser) amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Estas são palavras chaves para a cristandade, porém, como entendê-las segundo a proposta aqui apresentada? Simples. A consciência paterna e pura que há no interior do Homem — Consciência-do-Ser — o lembra constantemente de sua identidade única (unigênito) de filho da humanidade, o resgate dessa identidade produz vida, porque ao ter consciência de que é filho também adquire a consciência de que há uma voz paterna dentro de si que lhe guia e conduz a caminhos melhores e mais saudáveis. Basta prestarmos atenção no funcionamento de nosso cérebro — onde também reside Deus-Pai – a consciência-do-Ser — para percebermos como no mais simples caminhar por uma rua a consciência paterna calcula e instrui o melhor e mais seguro lugar para se pisar. Este processo de instrução e cálculo do cérebro pelas melhores possibilidades ocorre em todas as situações da vida, basta ouvir esta voz paterna interna, no entanto só ouve quem restabelece sua percepção de filho. O cerne da voz paterna interna é a instrução que afasta da morte, exemplificada na alegoria do Gênesis: E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente,
17
mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás;
porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás. (Gn 2.16,17). Podemos visualizar o afastamento da morte também na instrução (torah) dada aos hebreus no Sinai: Portanto, os
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meus estatutos e os meus juízos guardareis; cumprindo-os, o homem viveráa por eles. Eu sou o SENHOR. (Levítico 18.5). Assim, aquele que resgata o seu filho interior também resgata a sua vida e liberdade, porque ao ouvir a voz paterna dentro de si, passa a ter disciplina e automaticamente alcança liberdade. A liberdade está na disciplina as instruções. Quem está aprisionado? Logicamente é o indiciplinado, aquele que não descobriu o ser-filho, rompeu a relação com sua consciência paterna e desconheceu a liberdade que há nas instruções e leis. Matou, roubou ou violentou; fez-se surdo para a voz que soou no seu Ser para o limitar em suas ações e comportamentos.
7.3 O Lugar e a Consciência-do-Ser
Qual seria o lugar desta Consciência Maior no Homem? Esta consciência paterna que o monoteísmo denominou como Deus-Pai é — na essência — intrínseca no Ser Humano ou o Ser Humano é intrínseco na Consciência. Portanto, talvez a pergunta mais correta fosse: haveria algum lugar neste Homem ou seria o próprio lugar onde este Homem está? Ora, se ela nos afasta da morte e do que não é saudável, indica que está no cérebro primitivo (ou reptiliano)40 atrelado a sobrevivência e ao instinto41? Ao nascermos do ventre materno, sem nenhuma interação familiar Representação gráfica de consciência do século XVII. Wikipedia
a
e social, buscamos a sobrevivência. A consciência-do-Ser nos impele a buscarmos o seio materno, o alimento e o alívio da
18.5 Ne 9.29; Ez 20.13; Lc 10.28; Rm 10.5; Gl 3.12
40
Em aspectos gerais, entende-se que o cérebro humano é formado em três camadas - Instintiva, afetiva e
intelectual. A primeira camada é também conhecida como cérebro primitivo (ou reptiliano), onde estão os comportamentos instintivos e relacionados a sobrevivência. Pode-se dizer que é nesta esfera primitiva que se encontra o modo operante primitivo humano. Observa-se que, embora o cérebro, enquanto órgão, tenha se expandido, o modo de pensar humano pouco evoluiu, continua pensando primitivamente. Muitos livros, muitas teorias, muitas invenções construímos, no entanto, as intenções permanecem, na maioria, sendo regidas pelo cérebro primitivo. A espiritualidade, a sobrevivência, as crenças, economia, sociedade e o viver no mundo de forma geral estão fundamentados no cérebro primitivo, sem muita comunicação com a camada mais evoluída do racional. 41
Na psicanálise, este local é chamado de Id.
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tensão. A árvore, os pássaros, o gato, enfim, todos possuem uma consciência paterna que lhes instruem. A laranjeira nasce e dá laranjas; o pássaro nasce e voa; o gato nasce e, mesmo sem ter contato com outro gato, enterra as suas fezes. Quem ensinou a laranjeira a dar laranjas, o pássaro a voar ou o gato a enterrar as suas fezes? Não seria a sua própria consciência-do-Ser? O Ser Humano também nasce com a consciência-do-Ser, ou melhor, ele é a consciência-doSer. Mesmo se ao nascer, o Homem, for colocado para viver com gorilas, não sobreviverá por muitos anos, pelo simples fato de que a sua consciência-do-Ser não lhe permite ser gorila. Igualmente, um gorila ou um gato não se torna um Ser Humano pela convivência. Penso, nesta concepção, que a consciência-do-Ser não está em algum lugar específico no cérebro ou no corpo, mas é o lugar onde todo o mundo está e, por assim ser, está em todo o Ser do Homem, cérebro, pele, órgão,.... ou seja, em toda a sua composição. Como manifestado no capítulo anterior e expressado no verso bíblico: O Pai e eu somos Um. Com estas palavras, poderia — particularmente — entender que a consciência-do-Ser e eu somos um Todo, uma unidade inseparável. Não há um único lugar específico, e sim O Lugar, o HaMakom המקום, na língua hebraica. HaMakom, originalmente é um conceito rabínico. De acordo com o artigo42 de Alexandre Leone, este termo, uma das mais intrigantes metáforas rabínica para Deus, é tratado pelo filósofo judeu medieval Hasdai Crescas (Barcelona 1340 – Saragossa 1411) em seu livro Luz do Nome, cujo título hebraico é Or HaShem, publicado em 1410. Afirma Leone que para demonstrar que esta é a concepção dos primeiros rabinos sobre Deus Crescas cita algumas passagens de tratados do Talmud, do Midrash em que ele é chamado de “O Lugar” [HaMakom], como por exemplo, Avodá Zará 40b, Shevuot 29a, Nedarim 25a e em especial do Midrash Rabá 68:9. No entanto, é esta última passagem de Bereshit Rabá 68:9, a mais importante em sua formulação da relação entre makom e HaMakom. Ele continua a declarar que na famosa passagem do Midrash Rabá 68:9, compilada por volta do século quarto da era comum, é narrado que rabi Yose ben Halafta, tanaita do segundo século, ensina que Deus é chamado o lugar “porque Ele é o Lugar [HaMakom] do mundo, mas o mundo não é o seu lugar”. (Leone, p. 31)
42
A Relação entre Makom (Lugar) e Ha-Makom (Deus) em Hasdai Crescas no Contexto de sua Crítica ao
Aristotelismo Medieval.
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Crescas, desta forma, expõe sua visão:
Então, visto que o Santo, Bendito Seja Ele, é a forma de toda a realidade,
pois
ele a cria,
individualiza
e delimita.
Ele
é
metaforicamente chamado constantemente por este nome: Bendito seja “O Lugar”; “Eis que te faço jurar não com a tua permissão mas com a permissão do Lugar”. “Ele é o Lugar do mundo”. Esta imagem é extraordinariamente precisa, pois, as dimensões do vácuo permeiam as dimensões do corpo completamente, assim como foi dito: “Santo, Santo, Santo é YHWH dos Exércitos, toda a terra está preenchida pela sua Glória (Presença)”[43]. Se você quiser (pode-se dizer que), Ele preenche toda a terra, pois, sua Glória (Presença), é o substrato dos substratos...44
Em concordância, portanto, com a perspectiva do filósofo judeu, conceituando,
43
Sobre este verso faço uma observação particular: Melo kol haaretz kevodo (Toda terra está cheia da sua glória)
- Isaías 6.3. Kavod é traduzido por glória, no entanto, significa peso, pressão. Esta frase pode indicar uma terra imersa em Deus, alegoricamente, como imersa em um mar, onde há pressão e Peso. Deus, aqui, é colocado como O Lugar, exemplo de um mar ou o ventre materno, onde a terra está imersa, sob pressão. 44
CRESCAS, Or Há-Shem (Shlomo Fisher editor), Sefrei Ramot, Jerusalém, 1990 OH 1,2,1 pp. 69
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entretanto, Deus como consciência-do-ser, observo alguns textos e expressões bíblicas hebraicas que possivelmente manifestam a ideia do HaMakom (O Lugar). Há um Salmo que muito interessa a este tema, pois o salmista parece expressar muito bem a imagem de Deus como O Lugar (não pessoa) onde tudo está, exemplificado como reflexo do Ventre (o lugar) que nos encobria, nos cercava. Neste O Lugar (HaMakom) está o céu, o abismo, as alturas e as profundezas. Neste Lugar as trevas e a luz são as mesmas coisas.
Tu me cercaste por detrás e por diante, e puseste sobre mim a tua mão. Tal ciência é para mim maravilhosíssima; tão alta que não a posso atingir. Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás também. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, Até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá. Se disser: Decerto que as trevas me encobrirão; então a noite será luz à roda de mim. Nem ainda as trevas me encobrem de ti; mas a noite resplandece como o dia; as trevas e a luz são para ti a mesma coisa; Pois possuíste os meus rins; cobriste-me no ventre de minha mãe. (Salmos 139:5-13)
Outra expressão que cabe uma análise é a do “Santo dos Santos ou santíssimo lugar”, o lugar mais profundo do Tabernáculo de Moisés e posteriormente do Templo de Salomão. Sabe-se pela Torah que somente uma vez por ano, no Yom Kippur (Dia da reconciliação) o sumo sacerdote entrava para além do véu que o cobria para fazer remoção da culpa do povo. Ali se encontrava a Arca da Aliança, a qual contêm as tábuas dos mandamentos, a vara de Arão e o maná. Na minha visão, tais elementos podem também representar a justiça, a remoção da culpa e a
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provisão, estranheza e novidade (maná do deserto - porque o povo perguntou "o que é isto?!" - Êx 16.15). Penso que quando estas três esferas são experimentadas é porque percebeu-se o Santo dos Santos, o lugar - Deus. Para haver esta percepção é preciso rasgar ou ultrapassar o véu que antecede a entrada do lugar mais profundo do Tempo. Haja vista que o Templo é imagem do Homem, pode-se ainda compreender que o Santo dos Santos também pode ser visualizado como O Lugar mais profundo no Homem. Mas o que poderia simbolizar o véu? Neste ponto há algo interessante. A palavra usada para véu, segundo Strong, provém da raiz פרךperek, cujo significado é dureza, severidade, crueldade; e é procedente de uma raiz não utilizada significando separar. Portanto, o véu que separa o Homem de adentrar O Lugar e experimentar a Consciência-do-ser é sua severidade, crueldade e dureza para consigo mesmo. Por isso, a remoção do véu e a entrada do Santo dos Santos está associada a remoção da culpa. A culpa que produz uma autoflagelação mental precisa ser removida para que se possa desfrutar dO Lugar. Tendo em vista esta percepção em perceber-se no Santo dos Santos, é possível compreender um pouco mais o registro de João 4, onde Yeshua diz para a samaritana: "Deus é ar (espírito)... Nem neste monte ou em Jerusalém servireis, mas em espírito e verdade", da seguinte forma: Deus não está aqui ou ali (como o ar - espírito ou ruach), é o lugar em qualquer lugar; o Santo dos santos sem véu. Assim sendo, quando alguém dentro do monoteísmo questiona qual é a vontade de Deus-Pai para sua vida, esta vontade já soou dentro de si. Sabemos qual é a vontade de DeusPai nas ocasiões específicas de nossas vidas, no entanto, muitas vezes não percebemos que sabemos. A interação sociofamiliar, como enfatizado, gera interferências que podem dificultar o ouvir a consciência-do-Ser, o poder em nós se ofusca por causa das mediações externas; este ofuscar pode ser comparado com o véu de separação do Templo, citado acima. As dores sofridas, as relações familiares disfuncionais, desconfigurações sociais, contextos abusivos e autoritários, ensinos absorvidos, enfim, muitas são as influências que podem afetar a percepção da consciência-do-Ser ou consciência paterna, mas ela está aqui, soando em nosso cérebro, no Todo de nosso Ser, nas aves e nos lírios dos campos, como bem ensinou o rabino Yeshua. Ele, ao falar sobre a ansiedade da vida, instruiu a ouvir (observar) a voz da consciência-do-Ser (Deus-pai) que está em Tudo, no caso, nas aves e nos lírios: Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes?
26
Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem
ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito
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mais do que as aves? 27 Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida4?
28
E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como
crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam.
29
Eu, contudo, vos afirmo que
nem Salomãog, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.
30
Ora, se Deus veste
assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé? (Mateus 6.25-31).
7.4 A Partícula Intraduzível
A Consciência-do-Ser que habita o Homem e tudo o que há (ou vice-versa) pode ser encontrada no primeiro verso da Bíblia judaico-cristã. Convido a análise desta beleza oculta do Princípio. Bereshit bara elohim ET hashammaym vET haaretz / ( בראשית ברא אלהים את השמים ואת הארץ׃Gênesis 1.1). A tradução mais comum do verso acima é "no princípio criou Deus os céus e a terra". Entretanto, esta tradução pode ser aprofundada ao observarmos as palavras: Bereshit, proveniente da raiz rosh que significa cabeça e topo, podendo ter o sentido de mentalidade, pensamento e autoridade por ser o lugar mais alto do Homem; Bara é um verbo que carrega a ideia de "modelar, esculpir"; Elohim, comumente traduzida por Deus é, literalmente "poderes" ou "poder supremo"; Shammaym vem de uma raiz significando "ser alto"; "Eretz" surge da raiz primitiva com o significado "ser firme". Sendo assim, o verso 1 poderia ser traduzido da seguinte maneira: No princípio originado no alto da cabeça (mente) forma-se poderes, os céus (coisas altas, invisíveis e inalcançáveis) e terra (coisas firme, concretas, visíveis, alcançáveis). Outra particularidade desse verso está na partícula "ET "אתlocalizada entre "poderes", "céus" e "terra". Esta é uma partícula que no hebraico não tem tradução e definição. É também a junção das letras alef e tav (primeira e última letras do alfabeto hebraico), letras estas que são referidas no livro de Apocalipse quando o texto diz que "deus - (PODERES ELOHIM)" é o alef e o tav, o início e o princípio (Apocalipse 22.13), isto é, "deus 4
6.27 ao curso da sua vida; ou à estatura
g
6.29 1Rs 10.4-7; 2Cr 9.3-6
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(PODERES -ELOHIM)" é colocado como o ET, uma partícula intraduzível e indefinível, não tem definição em forma e palavra. Visto isto, é interessante pensar que esta partícula intraduzível também tem, no hebraico, outros dois sentidos: um é de sinal e o outro de lamento, angústia. Assim, entre o mundo que se cria na mente humana (bereshit), existe um elo (ET) intraduzível entre estas coisas inalcançáveis (sonhos, projetos, objetivos) e alcançáveis (concretas, ações, feitos). Este algo "sem definição" angustia o homem, e por assim ser angustiado, busca uma significação e uma tradução. Desta forma, cada homem busca para si uma significação 45 para este elo (et) que une todas as coisas e dá um sentido para o mundo criado dentro da sua cabeça (bereshit). Cabeça que também é expressão do Céus contido na grande oração “Avinu shebashamaim – Pai nosso que estás nos céus”. Sendo assim, o Pai – o Altíssimo —, representação da Consciência-do-Ser, habita o lugar mais elevado do Homem: a sua mente, ou melhor, é a própria mente do Ser Humano e de tudo o que há.
7.5 Lei divina e universal da construção da realidade
É fato que existem leis universais que regem o funcionamento do mundo. Observo que tais leis estão presentes e expressas em vários contextos das ciências humanas, sobretudo, naquelas que caracterizamos como “espirituais”. Seja na Índia, na Grécia, em Israel, no Ocidente ou no Oriente, a universalidade das leis divinas (leis de funcionamento do universo) podem ser observadas em muitos livros, apenas mudam a forma e a nomenclatura como elas são tratadas.
45
A partícula intraduzível, enquanto ideal de Deus, é pintado conforme a observação de quem o observa. Em
outras palavras, o Homem constrói a imagem de seu Deus segundo a imagem que tem de si mesmo. Sendo este Homem um Ser de carência, rejeição e incompletude, em crise de identidade, naturalmente visualiza para si um Deus tal como ele, isto é, rejeitado, carente, em crise de identidade. Assim, é conceituado, sobretudo no mundo ocidental, um Deus-pai (Ser metafísico) que deseja ser desejado, busca ser aceito, anseia por ser louvado, ordena adoração a ele e não quer viver a eternidade sozinho. Esta é a imagem do lado rejeitado de Deus; por outro lado, ele também é pintado no imaginário humano como um guerreiro, forte, poderoso, sendo esta imagem a visão de como o Homem gostaria de ser. Estes, portanto, são os dois lados da imagem do próprio Homem sobreposta no ideal de Deus. Nesta perspectiva, pode-se também observar as características do Cristo que outrora é homem rejeitado, outrora deus rei exaltado; outrora morto, outrora ressurreto.
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Conceituo
a
lei
divina
e
universal da construção da realidade do mundo em uma fórmula: Pv = Pt = E = Mt (Palavra = Pensamento = Energia = Matéria);
um
ciclo
universal
de
construção. Utilizando o conto bíblico do Gênesis, um dos contos que contém princípios universais, percebo que tudo foi criado pela Palavra, porém, não pode haver dissociação entre palavra e pensamento. Desta forma, tudo se fez pelo Pensamento, o qual produz primariamente a Luz (Haja luz), isto é, Energia da qual surge a Matéria (realidade do mundo) que, por sua vez, torna a produzir Palavra. Assim, o ciclo é constante. Em se tratando do pensamento, sabe-se pela ciência que o pensamento é frequência, ondas, energia e elétrons, isto é, é algo muito concreto. Basta perceber como as ondas de um a vibração sonora se transforma em frequência que se transforma em voz e matéria a ponto de poder ser gravada e transmitida a milhares de quilômetros de distância por um aparelho de rádio ou telefone. Dado este poder, o provérbio hebraico diz: Como pensas em tua mente, assim é... (Pv 23.7). Em outras palavras, a realidade criada está na forma em que se pensa. O pensamento negativo gera realidade negativa, decerto que, em seu oposto, o pensamento positivo gera realidade positiva. O que queremos dizer com positivo e negativo? Bom, tomemos como exemplo uma conta bancária. Se a conta está negativa, isto indica que ela está em falta, ou seja, NÃO TEM dinheiro. Se positiva, isto indica que TEM dinheiro. Neste aspecto, o negativo diz respeito a AUSÊNCIA E FALTA, enquanto o positivo está relacionado ao que se TEM. Sendo assim, o pensamento negativo é aquele que foca no que não se tem, na ausência, na perda e na falta, atraindo desta forma mais ausência; o pensamento positivo, por sua vez, foca no que está presente e no que se tem, atraindo assim os valores positivos de presença. Visto que a palavra não está separada do pensamento, podemos identificar o pensamento negativo e positivo pelo teor das palavras: o positivo está relacionado ao teor de gratidão e contentamento, e o negativo ao teor de lamentação e lamúria.
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Levando em consideração que o pensamento produz ação (matéria), cabe escrever que “Tudo que vai volta” - diz a crença popular. Tudo o que fazemos na vida um dia retorna a nós, acredita-se. De fato, se pensarmos o funcionamento do mundo, ele funciona por magnetismo, vibração e ondas. Desta forma, ao observarmos as ondas do mar, vemos que elas retornam ao mar. Da mesma maneira, as ondas sonoras da voz retornam naquilo que chamamos de "eco". O pensamento, sendo também ondas e frequência, é lançado no universo e de alguma forma retornam. As ondas, cientificamente, produzem um empuxo que as fazem ir e voltar ao ponto de origem.
7.6 A Fé saudável
Perscrutando os muitos caminhos existentes debaixo do céu: pensamentos humanos, filosofias, teorias, neurociências, explanações diversas, mitos, livros sagrados,..., concluo, no dia de hoje, que nada há de mais sábio e sensato para Homem do que crer [se mover] na existência de Deus — Poder que transcende o visível temporal e que emana suprema bondade, generosidade, graça, lei ética e moral, ensino, consolo para uma existência sofrida e de carência... — expresso em uma multiforme sabedoria espalhada pelos muitos lugares e civilizações da Terra. Acreditar não por medo de um inferno, condenação eterna, rejeição dos homens ou por tradição herdada, e sim pelo motivo de que tal crença - FÉ46 - é uma questão de sobrevivência (manter-se vivo) ou salvação da alma, melhor, restabelecimento da homeostase do Ser. Mais que isso, é uma necessidade fisiológica, como hoje mostra a ciência.
46
Ao observar o Ser Humano, constatamos que o Homem anseia por SALVAÇÃO. Mas o que é salvação? Pela
palavra hebraica "Yeshuah", salvação é um estado de restauração, cura e saúde. Portanto, o Homem sente-se em uma existência doente e deseja saúde (salvação). Mas onde encontrar esta salvação que muitas vezes é temporária e precisa sempre ser buscada? Muitos são os meios, no entanto, nenhum desses meios salva. Jesus não salva, Buda não salva, Maria não salva, o Dinheiro não salva, o que salva é a FÉ (fidelidade) nestes meios (caminhos). Assim como dizem alguns versos bíblicos "a TUA FÉ te salvou (deu saúde), vai-te em paz". A fé é um bem que reside no Homem e para que ela funcione não precisa ser usada neste ou naquele contexto de credos. Fica a escolha de quem a usa.
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Ciência que, nos tempos antigos, já caminhou de mãos dadas com a espiritualidade, porém, na Idade Média, o Cristianismo medieval assumiu o poder sobre a espiritualidade e os seus dogmas se tornaram leis irrevogáveis. Mas o que é a ciência, senão um processo de investigação, ou seja, de conhecimento? Por esta visão, o Deus da bíblia instrui a ciência, pois diz ...o meu povo perece por falta de conhecimento (Oséias 4.6); Pois misericórdia quero, e não sacrifíciob, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos. (Oséias 6.6); conhecereis a verdade e a verdade vos libertará (João 8.32). Estes são alguns textos nos quais podem ser observada a ciência juntamente com a espiritualidade. Afinal, conhecer Deus é um processo investigativo, como todo e qualquer processo de conhecimento. Porém, este processo produz medo na Instituição, pois a investigação descobrirá o peso dos seus dogmas. No entanto, parece que a ciência e a espiritualidade estão fazendo as pazes. A barreira medieval, aos poucos, tem caído para alguns, porque se tem percebido que a ciência não deseja provar a não existência de Deus, pelo contrário, ela busca conhecer o seu modo de agir na humanidade, assim como fez o doutor Michael Persinger, na década de 1980, ao estimular o lobo temporal de pacientes humanos com um campo magnético fraco usando um equipamento que ele chamava de capacete de Deus (God helmet). Os pacientes relataram ter a sensação de "uma presença celestial no quarto". Esse trabalho ganhou atenção na época, mas não foi explicado o mecanismo que causava esses efeitos. Existe outro local no cérebro chamado
Lobo
Parietal
(responsável
pela
personalidade e orientação espaço-temporal) que, de acordo com pesquisas, esta localização, quando estimulada (diminuindo sua atividade) por meio de oração, meditação, imagens sagradas, provoca a sensação de ligação com o Universo (Deus – no simbolismo de algo maior), uma experiência de "ter se achado no mundo".
Lobo Parietal direito
Inúmeras outras relações entre a espiritualidade e investigações científicas já foram publicadas por revistas de renome. Segundo a publicação da revista Galileu (Ed 213, 2009), por exemplo, pessoas que praticam meditação (processo semelhante a uma oração profunda) por um período superior a 15 anos têm os lobos frontais exercitados. O melhor funcionamento dessa região cerebral ajuda a aperfeiçoar a memória. A revista New Scientist publicou um b
6.6 Mt 9.13; 12.7
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estudo que afirma que a oração ativa uma área do cérebro que tem a função de reconhecer pessoas. No mesmo tema, a New Scientist (27/04/2010), sugestionou que quando as pessoas se deixam seduzir pela oração de uma figura carismática, áreas do cérebro responsáveis pelo ceticismo e vigilância tornam-se menos ativas. Para identificar os processos cerebrais subjacentes à influência de pessoas carismáticas, o estudioso Uffe Schjodt, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e seus colegas procuraram cristãos pentecostais, que acreditam que algumas pessoas têm poderes divinos de cura, sabedoria e profecia. Utilizando ressonância magnética funcional, o pesquisador e seus colegas realizaram uma varredura nos cérebros de 20 pentecostais e 20 não crentes, enquanto tocavam orações gravadas. Os voluntários foram informados de que seis das orações foram lidas por um não cristão, seis por um cristão comum e seis por um curandeiro. Na realidade, todas foram lidas por cristão comuns. A atividade cerebral monitorada pelos pesquisadores mudou apenas nos voluntários devotos, em resposta às orações. Partes do córtex pré-frontal e do córtex cingulado anterior, que desempenham papeis fundamentais de vigilância e ceticismo ao julgar a verdade e a importância do que as pessoas dizem, foram desativadas enquanto as orações ouvidas eram dos supostos curandeiros. As atividades diminuíram em menor medida quando no alto-falante falava, supostamente, um cristão normal. O pesquisador disse que isso explica porque alguns indivíduos podem exercer mais influência sobre os outros, e conclui que a habilidade para isso depende fortemente de noções preconcebidas de sua autoridade e confiabilidade. Numa visão liberta do preconceito, os experimentos demonstram o quanto a crença faz parte do Ser Humano, a ponto de mobilizar o seu cérebro e provocar reações químicas e fisiológicas. Em meu ponto de vista, todo esse movimento que ocorre é o movimento da consciência-do-Ser, a qual não tem crença ou credo específico, e sim um funcionamento universal. Bom, em resumo, as alterações neurológicas provocadas por orações e meditações, segundo cientistas, podem ser visualizadas da seguinte forma:
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Revista New Scientist (27/04/2010)
Penso ser saudável e inteligente caminhar na Consciência-do-Ser (Deus-pai) — independente da forma em que se revele — e desfrutar dessa crença, fazendo-a uma verdade a ser vivida. Mesmo porque o Ser Humano, num processo natural de evolução, busca explicar o seu mundo com o objetivo de ampliar o seu conhecimento e resolver problemas das mais variadas ordens, no entanto, ainda que muitas respostas encontre, sempre e inevitavelmente parará numa interrogação sem resposta; numa verdade oculta; num poder inalcançável; numa origem insondável. Testifica-se no interior de cada Ser a presença de algo Maior, mais Elevado, que transcende a racionalidade e a lógica humana. Por assim ser, se é que pode ser, como o pensar, senti-lo, denominá-lo? Estaria em tudo: nas coisas, no Homem, no ódio, no amor, na alegria, na angústia, na busca...? Caberia em palavras, livros ou no próprio pensamento humano? Não sabendo a resposta, apenas deduzindo, a humanidade tateia no escuro; tenta, numa busca constante, alcançar o que desconhece. Para tudo, dentro ou fora de si, diariamente, direciona a sua pergunta: Estás aí?! — Sim! – ouve. A resposta, entretanto, logo se esvai no abismo de seu íntimo e a interrogação, em outro momento e para outro objeto, ressurge: Estás aí?! — Se há uma verdade absoluta no mundo, é esta: uma interrogação sem fim. Este poço sem fim entre tudo o que existe é o que a Humanidade chamou de Deus e, eu,
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neste ensaio, chamo de consciência-do-Ser. Partindo deste pressuposto, cabe expor uma visão particular dentro de uma das possíveis leituras na ótica hebraica acerca da verdade.
7.7 A Verdade e o caminho do conhecimento
A palavra hebraica אמתemet é o símbolo linguístico utilizado para verdade; indica firmeza, fidelidade, confiabilidade. Neste sentido, a verdade é algo firme, estável e bem fundamentado que, por assim ser, não pode cair, ao contrário do conceito de falso que, sem alicerce e fundamento, prestes está da queda. Explorando o idioma hebraico, emet é constituída pelas consoantes — אמתaléf א, mem מe tav — תrespectivamente, primeira, média e última consoantes do alfabeto hebraico. Assim sendo, na mística hebraica, a verdade pode simbolizar aquilo que percorre e está presente em todo o caminho humano, tanto no seu início como no seu meio e fim; constitui-se em algo que não pode ser removido. Na trajetória de qualquer Ser Humano, desde o seu começo até o seu fim, persiste algo: uma busca constante por uma verdade absoluta que lhe traga prazer ininterrupto, isto é, felicidade. Esta é, portanto, a verdade (algo firme que não pode cair) universal corrente na alma da Humanidade: a sensação da existência de um absoluto inalcançável; uma verdade que não pode ser segurada e aprisionada, oculta e que se revela de tempos em tempos, de situações em situações, ocasiões em ocasiões, porém, nunca é absoluta. Esta verdade firme — que não pode cair e nem ser segurada — é, nas escrituras hebraicas, a imagem de Deus-pai – o Eterno – e sua Palavra: Desde a antiguidade, está firme o teu trono; tu és desde a eternidade (Sl 93.2); Para sempre, ó SENHOR, está firmada a tua palavra no céu (Sl 119.89). A ideia de um Eterno que rega o desejo constante pela liberdade dos percalços da existência temporal é refletida em muitos “totens” que erigimos nos altares da nossa alma ao longo da nossa fugaz vida 47. Em certa ocasião relatada no livro de João, numa situação de julgamento em que muitas vozes apelativas ecoavam aos ouvidos de Pilatos – governador romano na Judéia, Yeshua ao ser interrogado, disse: [...] Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz. Pilatos, dando voz ao questionamento que permeia todos os Homens, perguntou-lhe: Que é a verdade? (Jo 18.37,38). Não houve resposta audível. Houve silêncio, ausência de palavras e 47
Aconselho a ler O Éden Perdido: onde está o teu Paraíso? (2014). Para que haja uma melhor compreensão
da visão do Ideal de Deus que se diversifica na humanidade.
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explicações; Pôncio Pilatos, no entanto, encontrou a verdade que procurava, voltou-se para os judeus acusadores e afirmou: Eu não acho nele crime algum (Jo 18.38). A inocência de Yeshua foi a verdade (αληθεια aletheia gr. - oculto revelado) que Pilatos precisava encontrar naquela ocasião e que, no silêncio, foi-lhe revelada. Aprendo uma lição: a verdade universal — expressão da busca humana contínua por algo firme, eterno e inalcançável — que tanto almejamos se divide em questionamentos específicos (profissão, casamento, trabalho,...?), em situações específicas ao longo da vida e é encontrada quando conseguimos adentrar as portas do silêncio — momento em que viramos as costas para os apelos da multidão (como Pilatos), em que tudo a nossa volta parece desaparecer e as vozes48 apelativas externas e internas se calam, e não ouvimos mais o clamor apelativo das amizades, sociedade, mídia, tradição paterna, líderes religiosos, e sim uma voz sem som e palavras que proporciona lucidez e equilíbrio entre a consciência moral, dever e razão do Intelecto (superego49) e o desejo, pulsões, prazer e sobrevivência do Instinto (Id50). Isto, entretanto, não cabe apenas em uma oração meditativa momentânea, mas se aperfeiçoa em um estado de consciência introspectivo, independente de um local apropriado. Pois bem, a busca contínua da humanidade é a Sua Verdade absoluta e o alvo em que se direciona nesta busca são verdades relativas, móveis. Ao visualizar a mobilidade das verdades relativas ou questionamentos secundários, podemos sondar outro texto bíblico: ... Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. (João 8.33). Estas são boas palavras que muito podem nos ensinar. Por muitos são recebidas como sagradas. Para mim, poeticamente falando, não há palavra que não possa ser sagrada, que não possa ser separada para o uso em um propósito santo. Particularmente, observo que a palavra chave nesta sagrada frase não é a 48
Segundo minha visão psicanalítica, dentro de nós ecoam duas vozes principais: Instinto (Id - sobrevivência,
pulsões, desejos, querer, prazer, satisfação,...) e Intelecto (superego - aprendizado absorvido da interação social, consciência moral, bons costumes, ensinamentos religiosos, tradição paterna, dever, ...). A relação entre elas determina o equilíbrio ou desequilíbrio do nosso Eu (Ego - emocional). De um lado, querer, do outro, dever; de um lado, desejo, do outro, moral e bons costumes travam uma queda de braço constante. Bom é desenvolver um diálogo saudável entre as vozes. Porém, por vezes, em pessoas mais "religiosas", "medrosas" ou com históricos de rejeição, a voz do Intelecto fala mais alta e é obedecida, subjugando as sinceridades do Instinto (desejo e querer), e isto porque ouvir a voz do Intelecto (ensinamentos, moral e bons costumes) é sinônimo de sofrer menos rejeição por parte da sociedade, familiares e amigos. Esta obediência dá a sensação de "estou na boa"; a consciência se tranquiliza com mais facilidade quando obedece a voz do Intelecto. Porém, esta tranquilização e calmaria da consciência nem sempre significa que o "bem ou melhor" foi feito, escolhido ou realizado. 49
Expressão usada pela Psicanálise para se referir a consciência moral.
50
Expressão usada pela Psicanálise para se referir as pulsões instintuais.
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verdade, é o verbo conhecereis. Observação que pode causar estranheza, entretanto, não existirá uma verdade se não houver a precedência da ação do conhecer. Muito menos haverá uma liberdade-do-Ser. Portanto, o processo do conhecimento de algo que para mim se torna em uma verdade, tornar-se-á em minha liberdade. Cada Ser a experimenta conforme o seu mundo e realidade. Tudo pode se tornar uma verdade, não é ela em si que liberta, e sim o processo para achá-la, e aquele que for liberto no processo não achará uma verdade, encontrará quantas verdades quiser, pois já não está preso em conceitos, está solto nas ideias. Segundo o meu pensar, em cada época de nossas vidas surge a necessidade de um novo processo de conhecimento que se torna em uma verdade. Para quê? Para renovar em nós a sensação de liberdade-do-Ser. A verdade é tão buscada quanto a liberdade. São tão longe desejadas que muitas vezes se encontram na impossibilidade. No entanto, é possível que elas não estejam assim tão distantes. Quem sabe, sejam apenas ilusões acreditadas que no pensamento se fazem habitantes e no conhecimento fazem morada. Não há quem almeje a liberdade estando solto. Se está solto, logo já está em liberdade. A liberdade-do-Ser é o anseio de quem está preso ou sente-se desse jeito. Se todos nós, consciente ou inconscientemente, a desejamos, é porque estamos presos em algo, seja na matéria ou na não matéria das coisas. Neste caso, o processo, a busca de um conhecimento torna-se libertador. O processo do verbo conhecer promove um encontro com caminhos, palavras e entendimentos até então desconhecidos. A terra escavada na busca por respostas enriquece e revela muitas portas. A busca acende novas luzes, literalmente, promove sinapses51 que dão um espetáculo de luzes no cérebro. O caminho ao conhecimento é um caminho, onde o que importa não é o fim, pois o fim é um saber incerto; o que importa é o próprio caminho, o qual traz consigo o aperfeiçoamento e a lapidação no atrito com a diversificação das ideias. É um encontro com novas possibilidades e desigualdades. Desenraiza conceitos, leis autoritárias, preconceitos. Transforma pensamentos, muda jeitos. O processo de mudança, entretanto, traz consigo algum tipo de crise, mas a crise além de ser aquele momento de desorientação em uma mudança brusca de direção na aquisição de uma nova tarefa, um novo papel, uma nova função, enfim, um novo..., é também um juízo, do grego transliterado krisis. É um momento crítico em que precisamos fazer uso da crítica, ou seja, entra em cena o autojulgamento para o estabelecimento de uma sentença, de uma nova
51
Sinapse é a comunicação entre os neurônios ou entre os neurônios e seus órgãos alvo, tais como músculos.
Existem as sinapses elétricas e as químicas.
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posição e condição. Sentença que eu decido receber como um rompimento das algemas. Uma carta de liberdade-do-Ser. Uma alforria. O momento da crise, portanto, traz consigo uma oportunidade de juízo e autocrítica. É a Vida, ou melhor, a Consciência-do-Ser (chamada de Deus-pai na tradição monoteísta) nos dando a chance de revermos o nosso viver, limparmos o nosso interior e de nos tornarmos melhores em nosso modo de Ser. Neste contexto de purificação, vale atentar para a palavra crise - Kri - em sânscrito, cujo significado é limpar e purificar. A crise, quando recebida como uma boa amiga, retribui a hospedagem limpando a nossa casa das coisas indesejáveis. Ela expõe as impurezas no juízo. Tira as sujeiras escondidas debaixo do tapete e no autojulgamento estabelece a sentença de pureza, contudo, é preciso bem recebê-la e ela se tornará uma eficaz libertadora e purificadora da alma (mente). Esta é uma grande prisão que assola a vida humana: quando do lado de dentro se está preso. E sendo desta forma, do lado interno é que se abre a porta. Uma das chaves que se encaixa nesta fechadura é a ação do verbo conhecer que, por sua vez, traz um conhecimento mutável e não estático. Um conhecimento que se torna como um cimento unindo as pedras do caminho e as areias que se vão com o vento, solidificando em nós algum tipo de fundamento para um específico tempo. Cimento que, de tempos em tempos, remolda-se no caminho do conhecimento agregando cada vez mais liberdade no andamento. Não que alcançaremos a liberdade vitalícia, seremos, sim, libertos para o momento.
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8. Consciência-do-Ser e a identidade expansiva
Pois bem, de tudo o que este ensaio objetivou, findo afirmando que tolice é questionar se esta ou aquela forma de Deus é verdadeira ou falsa, porque simplesmente não há forma ou fôrma e, embora seja em essência a Consciência Maior de todo Ser, carrega uma interrogação sem fim, no sentido de ser infinito em sua identidade. Sendo esta Consciência Maior infinita em identidade, o Homem e todo o Universo também o são, pois tudo é Um. Tudo tem o poder de se recriar o tempo todo, inclusive o Ser Humano em seus traumas e sofrimentos caóticos. Somos o mundo em expansão, assim como tudo a nossa volta se expande, a exemplo das estrelas e galáxias que neste momento surgem no espaço. Consciência-do-Ser é justamente isso: ser Consciência do Ser Mundo, e não simplesmente ter consciência de se estar no mundo e participar de sua construção histórica. Deste modo infinito e expansivo, a identidade divina foi revelada a Moisés quando estava apascentando as ovelhas de seu sogro Jetro: Disse Moisés a Deus: Eis que, quando eu vier aos filhos de Israel e lhes disser: O Deus de vossos paisb me enviou a vós outros; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes direi? 14 Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. (Êxodo 13.13,14). Houve uma má tradução neste verso, pois no hebraico não é “Eu sou o que sou”, e sim “Eu serei o que serei - ”אהיה אשר אהיה. O sentido fiel do hebraico carrega a ideia de uma identidade não definida e móvel, contrário ao “eu sou o que sou”, que define e paralisa numa única forma de ser. A Consciência-do-Ser não é imóvel, está constantemente se movendo, se transformando e criando. Por isso, questionar a forma e o modelo exato e correto é um questionamento e interesse que cabem tão somente ao Homem da Instituição, sendo que Deus, enquanto Consciência-do-Ser, não tem medo ou receio de perder o seu lugar, os sistemas humanos, sim, por isso criam os seus dogmas de domínio e interesses próprios; forjam doutrinas, nomes e regras acerca de Deus. Penso, desta forma, que bobagem é tornar o Ideal de Deus uma Instituição — objeto padronizado de manipulação —, pois, deste modo, o que era para emanar suprema bondade e trazer o Homem para a recriação diária de seu Paraíso Perdido, acaba por jorrar maldade e distancia — cada vez mais — a Humanidade da sua Consciência-do-Ser e, consequentemente, da sua Liberdade-do-Ser. Bem disse Paulo (Shaul), certa vez: Por acaso eu procuro a aprovação das pessoas? Não! O que eu quero é a aprovação de Deus [Consciência-do-Ser]. Será que agora estou b
3.13 Êx 6.2-3
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querendo agradar as pessoas? Se estivesse, eu não seria obediente ao Ungido [expressão do filho]. (Gálatas 1.10). O que posso entender com estas palavras, senão que se eu desejar obedecer aos homens da instiuição dogmática estarei me afastando da obediência a minha identidade de filho — ungido-separado para um propósito — e, terei, por conseguinte, a desaprovação da Consciência-do-Ser (Deus-pai). Em outras palavras, todo aquele que deseja se aprofundar em ouvir e obedecer a Consciência-do-Ser será instigado, hora ou outra, a se mover para fora dos pensamentos da multidão, a desaprovar os ensinos dos homens dogmáticos, incluindo os seus próprios, ou seja, será conduzido a reprovar suas leis internas 52 adquiridas por situações de rejeição; tudo o que vivenciou e experienciou e recebeu como um certo irrevogável será questionado. Desta forma, o afastamento dos pensamentos dogmáticos, adquiridos através de terceiros ou por situações adversas vivenciadas na infância, poderão produzir uma aproximação do Filho interno e, assim, da Consciência-do-Ser. Por fim, entendo ser importante finalizar reafirmando que o caminho à Consciênciado-Ser é pessoal e individual. Relembremos do texto de João 14.6, no qual diz Yeshua: Eu sou o caminho a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai a não ser por mim. Ao analizar este verso, penso: Onde está determinado que Jesus (para os cristãos) ou Yeshua (para o hebreu) é o único caminho ou única verdade ao Pai? Trata-se de algo único e imutável? De quem falava o Mestre, de si próprio? Sobre estas questões, proponho uma reflexão. Veja, Pai, enquanto consciência que habita o secreto (Mateus 6.6), é um poder interno. Tal poder é acessado somente por meio de Jesus ou Yeshua, ou o verso diz “EU SOU o caminho”? Perceba, o Eusou precede o caminho, a verdade e a vida. Repare, ainda, no final da frase que diz: “... a não ser por MIM”. Esta última palavra é, no grego, εμου emou, proveniente de εγω ego (EU), ou seja, ninguém VEM — indicativo de um caminho para si próprio — ao Pai — poder interno — senão por meio do Eu. Desta forma, o caminho, a verdade e a vida se tornam individuais, indissociáveis do pronome pessoal; cabe ao Eu de cada indivíduo encontrar em si mesmo, no seu Eu-Sou em constante transformação e movimento, visto que nele e ele mesmo é o próprio caminho, a verdade e a vida à Consciência-do-Ser — Pai. 52
As situações adversas vivenciadas na infância, tais como desrespeito paterno, violência familiar, abuso de
autoridade, dentre outras ocasiões onde existe um enorme desequilíbrio de forças e tudo o que a criança pode fazer é ser passiva como uma expectadora fará om que a criança, em seu íntimo, firme promessas internas e crie leis que regerão o seu caminhar adulto. Algo como: “quando eu crescer e tiver poder físico que os adultos têm, nunca mais vou permitir que façam isso comigo ou com as pessoas que amo” (Cukier, 1 8). A criança, desta maneira, estabelece consigo mesma dogmas e pactos de vingança e resgate da dignidade perdida das mais diversas ordens que ficarão enterrados no seu inconsciente e se manifestarão nas suas ações futuras.
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Nada, assim, é imóvel e de um único formato, pois o Eu-sou é um Ser que se modifica, modificando juntamente o caminho, a verdade e a vida. Isto se expressa muito bem no belo fenômeno da chuva em que a água que desce é também aquela que subiu. Eis o grande ciclo da vida: tudo está em constante mudança de estado. A Vida está sempre nos convidando a retornar a essência do nosso ser para se transformar em outro estado de ser e assim sucessivamente. Num ciclo não há origem ou fim, não há conclusão, há apenas um círculo. Por este fato, a Vida é paradoxal. A existência não sendo linear, a Vida pode estar em cima e embaixo ao mesmo tempo, pode ser ou não dentro do mesmo círculo do ciclo.