Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
© UDESC - FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA Impresso no Brasil. Todos os direitos reservados. Os conceitos e opiniões emitidos nesta publicação são de responsabilidade de seus respectivos autores. 1ª edição - 2011 Editora UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina Campus Florianópolis Av. Madre Benvenuta, 2.007 – Itacorubi 88.035-001- Florianópolis – Santa Catarina www.udesc.br
Organização: Paula Chies Schommer e Rosana de Freitas Boullosa Capa: Jorge Schlichting Neto e Carlos Vilmar
Fotografia da Capa: Andorinhas - Eduardo Trauer || etrauer.com Fine Art Photos Diagramação: Carlos Vilmar
ISBN - 978-85-61136-68-0
Série Coleção Enapegs Volume 5
Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública Paula Chies Schommer Rosana de Freitas Boullosa ORGANIZADORAS
EDITORA DA
2011
Sumário Apresentação Fronteiras de aprendizagem da gestão social .......................................... 9 Paula Chies Schommer e Rosana de Freitas Boullosa Gestão social como possibilidade de ampliação da esfera pública: o que desejamos no V Enapegs?..................................................15 Edgilson Tavares de Araújo, Valéria Giannella, Vivina Machado de Oliveira Neta e Paula Chies Schommer
Parte I - Expansão das fronteiras da gestão social
Coprodução e inovação social na esfera pública em debate no campo da gestão social...................................................................................31 Paula Chies Schommer, Carolina Andion, Daniel Moraes Pinheiro, Enio Luiz Spaniol e Mauricio C. Serafim Decifra-me ou te devoro! As armadilhas da teorização sobre movimentos sociais em gestão social........................................................71 Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, Luciano Prates Junqueira, Mário Aquino Alves, Patrícia Mendonça e Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias Como viver a participação política? Os desafios de novas democracias e economias na (re) definição da esfera pública.........81 Carolina Leão, Cristiano de França Lima, Igor Vinicius Lima Valentim e Júlio César Andrade Abreu Espaço público e gestão social do patrimônio mundial: inventário de valores......................................................................................................... 105 Eloisa Helena de Souza Cabral, Luis Antonio Eguinoa e Paulo de Tarso Muzy As metodologias integrativas como caminho na ampliação da esfera pública............................................................................................ 139 Valéria Giannella, Edgilson Tavares de Araújo e Vivina Machado de Oliveira Neta
Gestão social: conhecimento e produção científica nos Enapegs, 2007-2010........................................................................................................ 167 Airton Cardoso Cançado, José Roberto Pereira, Fernando Guilherme Tenório, Ariádne Scalfoni Rigo e Vânia Aparecida Rezende de Oliveira
A tentativa de discutir filosofia da diferença, biopolítica e produção de subjetividade no Enapegs 2011 ..................................... 191 Luiz Manoel Lopes, Eladio Craia, Guilherme Castelo Branco e Jeová Torres Silva Jr. Gestão social do desenvolvimento territorial como campo de educação profissional................................................................................. 199 Tânia Fischer
Gestão social: ensino, pesquisa e prática – Pró-Administração – CAPES ................................................................................................................. 211 Fernando Guilherme Tenório e Anderson Felisberto Dias Uma estrutura de observação para a formação em gestão social.217 Rosana de Freitas Boullosa
Parte II – Fronteiras de expansão da gestão social
Brasil: um outro patamar - propostas de estratégia.......................... 229 Ladislau Dowbor El estado del arte del concepto de gestión social en el Chile contemporáneo.............................................................................................. 283 Pablo Monje-Reyes Museu íntimo: diálogos entre cultura, educação e estética............. 303 Dan Baron Ecomoda: Coleção Primavera Silenciosa............................................... 333 Neide Köhler Schulte, Luciana Dornbusch Lopes, Lucas da Rosa, Janaina Ramos Marcos e Ilma Godoy
Parte III – Revivendo o Enapegs
O V Enapegs: entre fatos e fotos................................................................ 343 Alessandra Debone de Sousa, Eduardo Trauer e Ives Romero Tavares do Nascimento
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Paula Chies Schommer1 Rosana de Freitas Boullosa2
Em meio à recente trajetória de consolidação da gestão social como campo de conhecimentos e práticas interdisciplinares, os Encontros Nacionais de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs) ocupam papel primordial. A cada edição, os Encontros são palco de aproximação, estranhamento, identificação e ligação entre pessoas, experiências e ideias. Pesquisadores, gestores e curiosos buscam compartilhar suas experiências, descobertas e dúvidas, explorando novos olhares sobre a gestão social, aprendendo com novas pessoas, temáticas e perspectivas de compreensão de suas realidades. Na edição de 2011, o V Enapegs buscou explorar as possibilidades da gestão social como ampliadora e redefinidora da esfera pública, esta última compreendida como um espaço de diálogo e de intermediações de visões de mundo e de interesses diversos, associados a sujeitos e instituições que se articulam e agem coletivamente em torno de propósitos comuns, seja no âmbito estatal, das relações entre Estado e sociedade e nas interfaces entre o público e o privado. Esta aproximação entre os conceitos de gestão social e de esfera pública parece ter colocado nova luz sobre um movimento crescente de revisão das fronteiras entre gestão pública, gestão privada e gestão social. Esta luz parece indicar que a gestão é social quando a compreensão da ação de gestão se dá em um contexto de problematização da coprodução do bem público, independente da posição do ator, o que aproximaria o problema das fronteiras da gestão social ao problema da sua natureza. Esta nova dobradinha analítica 1 Paula Chies Schommer é professora da Universidade do Estado de Santa Catarina na área de administração pública e professora colaboradora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia. 2 Rosana de Freitas Boullosa é professora da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia, bolsista de produtividade tecnológica do CNPq e professora permanente do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia.
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Fronteiras de aprendizagem da gestão social
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pressupõe, porém, a compreensão de que o bem público não pode ser o produto direto de um ator ou conjunto de atores e que, portanto, mesmo quando perseguido, o mesmo não pode ser alcançado por uma ação individual ou por uma ação social orquestrada, pois o bem público seria um subproduto resultante da ação social não orquestrada. Além disso, aquela mesma luz parece indicar que a gestão é ainda mais social quando a compreensão dos efeitos da ação de gestão sobre um futuro coproduzido modela a ação de gestão do presente, produzindo um diálogo entre atores de uma arena que só existe em função do observador-gestor-social, cuja natureza não é disciplinar e cujas fronteiras são apenas fronteiras de aprendizagem. Quando isto acontece, a gestão pontualizada no tempo-espaço-sujeitos (con)cede espaço para uma gestão de um tempo-espaço-sujeitos que vai além de si mesmo, abrindo-se para uma dimensão da gestão que é social. Considerando essa perspectiva que problematiza a gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública, este livro reúne textos relacionados ao que se discutiu durante o V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs), que ocorreu em Florianópolis/SC, em maio de 2011. O projeto editorial foi desenhado a partir da compreensão de que a gestão social é um campo que estamos aprendendo a construir, com dúvidas, incertezas e alguns avanços. Dentre as muitas formas de entender aprendizagem, buscamos compreendê-la como uma atividade que se dá socialmente, situada entre a expansão das fronteiras do conhecimento já conquistado e as possibilidades de produção de novos conhecimentos, dado pelo movimento das fronteiras em expansão. A este segundo movimento chamamos de fronteiras de expansão, ou seja, o conjunto de possibilidades desencadeadoras de aprendizagem. Os textos foram reunidos em três partes, além desta introdutória: uma primeira, chamada de fronteiras de expansão da gestão social, aprofunda e expande temáticas sobre as quais se dedicam grupos que constituem a Rede de Pesquisadores em Gestão Social; uma segunda, chamada fronteiras de expansão da gestão social, ex-
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plora novos conteúdos e perspectivas, influenciando seus próprios sistemas de aprendizagem; uma terceira, que busca expressar um pouco do humor de um evento pautado pelos princípios de circularidade, diversidade, diálogo e dialógica, interdependência, incerteza e inclusividade. Na seção Fronteiras de expansão da gestão social encontram-se os textos dos colegas pesquisadores que atenderam à chamada inicial de propostas e conduziram os oito eixos temáticos do Encontro: 1) Coprodução e inovação social na esfera pública em debate no campo da gestão social, de Paula Chies Schommer, Carolina Andion, Daniel Moraes Pinheiro, Enio Luiz Spaniol e Mauricio C. Serafim; 2) Decifra-me ou te devoro! As armadilhas da teorização sobre movimentos sociais em gestão social, de Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, Luciano Prates Junqueira, Mário Aquino Alves, Patrícia Mendonça e Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias; 3) Como viver a participação política? Os desafios de novas democracias e economias na (re) definição da esfera pública, de Carolina Leão, Cristiano de França Lima, Igor Vinicius Lima Valentim e Júlio César Andrade Abreu; 4) Espaço público e gestão social do patrimônio mundial: inventário de valores, de Eloisa Helena de Souza Cabral, Luis Antonio Eguinoa e Paulo de Tarso Muzy; 5) As metodologias integrativas como caminho na ampliação da esfera pública, de Valéria Giannella, Edgilson Tavares de Araújo e Vivina Machado de Oliveira Neta; 6) Gestão social: conhecimento e produção científica nos Enapegs, 2007-2010, de Airton Cardoso Cançado, José Roberto Pereira, Fernando Guilherme Tenório, Ariádne Scalfoni Rigo e Vânia Aparecida Rezende de Oliveira; 7) A tentativa de discutir filosofia da diferença, biopolítica e produção de subjetividade no Enapegs 2011, de Luiz Manoel Lopes, Eladio Craia, Guilherme Castelo Branco e Jeová Torres Silva Jr.; 8) eixo temático composto por três contribuições: i) Gestão social do desenvolvimento territorial como campo de educação profissional, de Tânia Fischer; ii) Gestão social: ensino, pesquisa e prática – Pró-Administração – CAPES, de Fernando Guilherme Tenório e Anderson Felisberto Dias e; iii) Uma estrutura de observação para a formação em gestão social, de Rosana de Freitas Boullosa. Este conjunto contempla relatos do que foi apresentado, discu-
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tido e vivenciado em cada eixo temático, levantando questões integradoras e relacionando-as a referenciais teóricos que permitiram explorá-las durante o evento e que oferecem perspectivas para investigação futura. Na seção Expansão das fronteiras da gestão social encontram-se os textos: Brasil: um outro patamar - propostas de estratégia, de Ladislau Dowbor; El estado del arte del concepto de gestión social en el Chile contemporáneo, de Pablo Monje-Reyes; Museu íntimo: diálogos entre cultura, educação e estética, de Dan Baron; Ecomoda: Coleção Primavera Silenciosa, de Neide Köhler Schulte, Luciana Dornbusch Lopes, Lucas da Rosa, Janaina Ramos Marcos e Ilma Godoy. São contribuições de convidados muito especiais que estiveram no V Enapegs, que evidenciam a pertinência da noção de gestão social para refletir e agir em contextos e amplitudes diversos. Cabe falar em gestão social quando se discutem projetos de desenvolvimento e de estruturação social de países como o Brasil e o Chile contemporâneos. É igualmente apropriado falar em gestão social ao observarmos as maneiras pelas quais construímos conhecimentos e práticas em nossa intimidade, nas relações entre saberes, linguagens, significados e expressões. E cabe gestão social quando pensamos sua relação com o desenvolvimento sustentável e sua possível concretização em um campo como o da moda e do design. Na terceira seção, o leitor encontrará o texto O V Enapegs: entre fatos e fotos, de Alessandra Debone de Sousa, Eduardo Trauer e Ives Romero Tavares do Nascimento, uma amostra das belas imagens avistadas e dos sentimentos compartilhados pelos que participaram do encontro em Florianópolis, nos dias ensolarados do outono de 2011. Pessoas e encontros que são parte de uma trajetória iniciada em 2007, em Juazeiro do Norte, passando por Palmas, Juazeiro, Petrolina e Lavras, chegando a Florianópolis e seguindo para São Paulo, que sedia o Enapegs 2012. Além desta apresentação, a seção introdutória deste livro traz o texto Gestão social como possibilidade de ampliação da esfera pública: o que desejamos no V Enapegs?, de Edgilson Tavares de Araújo, Valéria Giannella, Vivina Machado de Oliveira Neta e Paula Chies Schommer. O texto foi escrito antes da realização do evento e enviado
Agradecimentos
Uma vez que este livro é fruto de um trabalho autenticamente construído em rede, cabe reconhecer e agradecer aos que contribuíram para o Encontro e para esta publicação. São inúmeras pessoas, organizações, recursos, capacidades e vontades mobilizadas e articuladas em torno de muito trabalho, um trabalho engajado, qualificado e voluntário. Cada detalhe tem a marca de muitos e de diversos. Dos diversos que fazem da Rede de Pesquisadores em Gestão Social uma rede viva, dinâmica, interligada, capaz de construir e de aprender, em permanente transformação. Entre as organizações e grupos que mais diretamente participaram da construção do Enapegs, destacamos a Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc, por meio do Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas, Esag, que sediou o evento. Em todos os momentos, a comissão organizadora local contou com apoio irrestrito e entusiasmado da Diretoria da Esag, do Departamento de Administração Pública e do Programa de Mestrado em Administração, da Reitoria, da Pró-Reitoria de Extensão, da Assessoria de Comunicação, da Editora, do Centro de Artes (Ceart) e do Programa EcoModa, do Ceart. Participaram diretamente da construção do evento professores e estudantes ligados ao grupo de pesquisa Politeia - Coprodução do bem público: accountability e gestão, do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Inovações Sociais na Esfera Pública (Nisp) e do Laboratório de Aprendizagem em Serviços Públicos (Lasp). Ainda em Santa Catarina, cabe ressaltar e agradecer ao apoio do Governo do Estado de Santa Catarina, da Federação Catarinen-
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previamente aos participantes, colocando em discussão os princípios que nortearam sua construção, buscando criar o clima para que tais princípios fossem vivenciados. Esta publicação é também fruto do trabalho do Observatório da Formação em Gestão Social, uma iniciativa que nasceu em Enapegs anteriores e foi cultivado e estruturado coletivamente por vários colegas e instituições que são parte da Rede de Pesquisadores em Gestão Social.
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se de Municípios (Fecam), da Escola de Gestão Pública Municipal (Egem), do Recanto Champagnat e da Universidade Federal de Santa Catarina, por meio do Instituto de Pesquisas e Estudos em Administração Universitária (Inpeau). No âmbito da Rede de Pesquisadores em Gestão Social, além da gratidão a cada pessoa que dedicou algo de si a essa construção coletiva, destacamos grupos e instituições que se envolveram diretamente na organização do evento: Centro Universitário da FEI; Coletivo de Estudos, Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop.; Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM); Federação Nacional dos Estudantes de Administração Pública (Feneap); Fundação Getulio Vargas/RJ/Ebape, por meio do Programa de Estudos em Gestão Social (Pegs); Fundação Getulio Vargas/Eaesp; PUC Minas; PUC São Paulo; TS – Núcleo de Trabalho em Gestão Social e Avaliação; Universidade Federal da Bahia, por meio do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (Ciags) e do Observatório da Formação em Gestão Social; Universidade Federal de Lavras, Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, por intermédio dos grupos de pesquisa Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social (Liegs) e Paideia, Laboratório Transdisciplinar de Pesquisa e Extensão sobre Metodologias Integrativa para a Educação e a Gestão Social; Universidade Federal do Tocantins, por seu Núcleo de Economia Solidária (NeSol); Universidade do Vale do São Francisco (Univasf); Universidade Federal Fluminense. Agradecemos aos autores de artigos, relatos de prática, artigos de iniciação científica e oficinas que submeteram e apresentaram seus trabalhos, os quais estão disponíveis nos Anais do V Enapegs (www.rgs.wiki.br). Muitos desses trabalhos foram indicados em regime de fast track para revistas científicas e vários deles foram publicados. Aos palestrantes, artistas, autoridades, gestores, estudantes, técnicos e ouvintes que estiveram presentes, nosso agradecimento. Nosso reconhecimento e gratidão especial aos que teceram palavras e produziram imagens para elaborar os artigos que compõem este livro. E aos que dedicaram seu talento e sua vontade para sua revisão, editoração e publicação em meio impresso e eletrônico.
Edgilson Tavares de Araújo2 Valéria Giannella3 Vivina Machado de Oliveira Neta4 Paula Chies Schommer5
Este texto traz à tona algumas conjecturas que circularam e circulam entre algumas das pessoas que sonharam com a ideia do V Enapegs antes que, muitos mais, botassem as mãos na massa para realizá-lo. Pode ser olhado como um exemplo de escrita criativa, como uma daquelas pinturas que se fazem em conjunto, muitas pessoas, cada uma com um pincel na mão colocando sua inspiração na tela e, ao mesmo tempo, sendo inspirado pelo que @s outr@s estão desenhando. Assim, trata-se de um texto aberto, como vários feixes de luz compondo um arco-íris, onde o número das nuances possíveis só é dado nos limites da nossa imaginação. O texto é parte de um processo que se iniciou em 2010, quando um grupo de amigos definiu alguns princípios que nos orientariam inicialmente na construção deste V Enapegs: 1 Texto elaborado e difundido como parte da preparação para o V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs, que aconteceu em maio de 2011, em Florianópolis – SC, como convite à reflexão sobre os princípios que nortearam a construção do evento. O texto original é mantido nesta versão em livro, organizado após o encontro. 2 Edgilson Tavares de Araújo é doutorando e mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialista em Estratégias de Mobilização e Marketing Social pela Universidade de Brasília / Unicef, bacharel em Administração pela Universidade Federal da Paraíba. 3 Valéria Giannella é doutora em Políticas Públicas do Território pela Universidade de Veneza (Itália). Líder do grupo de pesquisa Paidéia - Laboratório sobre Metodologias Integrativas para a Educação e Gestão Social. Professora da Universidade Federal do Ceará – Campus Cariri. 4 Vivina Machado de Oliveira Neta é associada a Via Vida Desenvolvimento Organizacional. Desenvolve e aplica metodologias integrativas, com foco em Diálogo e Gestão Criativa para lidar com conflitos. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela UFBA/CIAGS. 5 Paula Chies Schommer é professora adjunta da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc/Esag) na área de Administração Pública e professora colaboradora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia (Ufba/Ciags).
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• Circularidade - que o próprio evento constitua espaço de experiência e experimentação metodológica na forma como é construído e nas reflexões que promove. • Diversidade - de formatos, de áreas do conhecimento científico e não científico, de organizações, de regiões e de pessoas participantes. • Diálogo e dialógica – abertura de possibilidades de interação com linguagens diferenciadas, com arte, teatro, “contação” de histórias. • Interdependência – estabelecendo conexões em rede e atentando para o movimento que nos une. • Incerteza – movimento de refletir, ao nos relacionarmos com o conhecimento, com o pensamento, com o outro, considerando as nossas pressuposições como uma, dentre tantas outras possibilidades existentes – conhecidas e a conhecer. Suspensão dos estados de “certezas”. Ampliação do processo de aprendizagem. • “Inclusividade” – capacidade de sustentar a tensão ao lidar com a diversidade, nos temas, posturas, conhecimentos que pareçam contraditórios, divergentes, incluindo-os. Enriquecendo o diálogo, as perspectivas de gerar novas percepções, novos olhares.
De lá para cá, seguimos em diálogo e decidimos compartilhar algumas ideias com os demais participantes do Enapegs, convidando-os a entrar na conversa. Uma conversa sobre gestão social e princípios que orientam nossa ação e nossos desejos em relação ao evento. Começamos com este texto e nos propomos a seguir por outros meios e em outros momentos, antes, durante e depois do encontro, com quem mais desejar participar. Edgilson Tavares de Araújo
Vivermos numa sociedade organizacional e de gestão nos leva à necessidade de repensar a ideologia gerencialista criada entre o homem e a sociedade. Neste sentido, partimos para novas definições sobre gestão, buscando compreendê-la como
Como fazer gestão?
Ao trazermos à tona as discussões sobre gestão social na perspectiva das possibilidades para ampliação da esfera pública, per si, nos leva a pensar em novas questões: Por que fazer gestão? Que gestão? Para que gestão?
Estas indagações geram tensões inquietantes na busca de um novo sentido para compreender relações e processos sociais, geralmente mediados/regulados pela gestão que, tradicionalmente, apresenta-se como “pragmática e, portanto, não ideológica, fundada sobre a eficácia da ação, mais do que sobre a pertinência das ideias”. Trata-se de uma “metalinguagem” que influencia fortemente diferentes atores6. Cotidianamente, procuramos na gestão um sentido para a ação individual e coletiva e, por vezes, para a vida. Ao tentar explicar, ensinar e aprender gestão, sempre se valoriza a habilidade prática (craft) aprendida a partir, principalmente, da experiência enraizada no contexto. Henry Mintzberg, em sua última publicação, “Managing: desvendando o dia a dia da gestão”7, enfatiza que gestão é algo que não se ensina, mas se pratica. A gestão envolve ciência (análise das evidências e conhecimentos sistemáticos), arte (compreensão e visão baseadas na intuição e emoções; discernimentos criativos) e prática (experiência, aprendizagem). Sabemos, porém, que raros são os momentos nos quais concretamente temos oportunidades reflexivas sobre a gestão enquanto prática, bem como, é raro nos permitirmos
6 GAULEJAC, V. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. 2ª ed. Aparecida-SP: Idéias & Letras, 2007, p. 63 (Coleção Management , 4). 7 MINTZBERG. H. Managing: desvendando o dia a dia da gestão. Porto Ale-
gre: Bookman, 2010.
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processo relacional. Porém, dificilmente deixamos de lado o pensamento instrumental que nos leva a sempre perguntar:
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experimentar novas experiências e obter discernimentos criativos. Frente a tais argumentos, podemos fazer novas indagações: O que as pessoas fazem da gestão? O que a gestão faz com as pessoas? Como as pessoas vivem na sociedade da gestão?
Tais questões podem guiar as discussões sobre a gestão social, já que para tentar respondê-las se faz necessário reconhecermos a diversidade de visões de mundo, lógicas, valores, formas de comunicação, prioridades ao se viver... São diferentes pessoas e organizações de todo o país que durante o V Enapegs poderão debater e vivenciar, num espaço de diálogo e dialógica, diferentes formas de manifestação para expressar conhecimentos e visões (tidas como científicas ou não) sobre a gestão social e a esfera pública. Abrir este espaço significa a possibilidade de novas concepções e metodologias para a gestão social com a presunção da ampliação da esfera pública. Compreendemos que construindo coletivamente novos meios, poderemos chegar a novos fins. Para tanto, é necessário estarmos dispostos e disponíveis a educar o nosso olhar, escutar ativamente, respeitar o próximo e o coletivo, deixar fluir a razão com emoção e vice-versa. Não há dúvidas que a gestão, muitas vezes vista como espécie de conformismo ao sistema e às relações capital-trabalho, vem sendo considerada cada vez mais necessária no âmbito do social, mesmo para os mais céticos. Ao tratarmos da gestão cujo objeto é o social, deve-se atentar para que tipo de gerenciamento, com quais finalidades, características e racionalidades. Seria a gestão social uma contraposição à lógica taylorista, vista como uma forma mais humanizada e compactuada para inovar e promover mudanças, inclusive nas relações capital-trabalho? Ou seja, a qualificação da gestão como social altera essencialmente a concepção de gestão? A gestão social enquanto construto inovador in process que vem ocorrendo em diferentes tempos e dinâmicas em torno de um mesmo objeto (o social, enquanto coletivo, relacional e societário) vem buscando novos caminhos e explicações. Para isso, deve
Valéria Giannella
Pegando a deixa do Edgilson em seu texto: “A gestão envolve ciência (análise das evidências e conhecimentos sistemáticos), arte (compreensão e visão baseadas na intuição e emoções; discernimentos criativos) e prática (experiência, aprendizagem). Sabemos, porém, que raros são os momentos nos quais concretamente temos oportunidades reflexivas sobre a gestão enquanto prática, bem como é raro nos permitirmos experimentar novas experiências e obter discernimentos criativos.” Reflito em torno destas considerações, pois esta partição lembrada pelo meu amigo Dido é tão real e afeta tanto a maioria de nossas práticas de gestores que quando, por alguma conjuntura, conseguimos juntar aqueles aspectos todos numa ação só (saber sistematizado, intuição, emoções, arte e inspiração criativa....) os êxitos são acima do normal e parecem extraordinários. Fomos acostumados pela nossa educação de profissionais e cientistas a manter estas dimensões separadas e que esta própria separação seria a garantia de validade do nosso saber científico. Hoje esbarramos nos limites trazidos pela visão separada do mundo que tanto fatigamos em conquistar. O mundo que vivenciamos nos surpreende continuamente com sua variedade, diferença, imprevisibilidade, complexidade e contradição. Não existe aparentemente um princípio só capaz de dar conta disto tudo, isto
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atrair de maneira indispensável a inclusividade de conhecimentos e atores necessários para construir e solidificar tal concepção, zelando pela primazia essencial dos valores democráticos e da defesa de direitos manifestos em vários campos das Ciências Sociais. Trata-se da necessidade de inovação nas lógicas e práticas gerenciais, de modo que se tornem mais éticas e humanitárias. Para tanto, necessitamos além do “ser” e “estar”, compreender o “vir a ser” gestor social. Compreensão esta que exige sentir a interdependência que nos torna viventes, iguais e diferentes, e apenas a certeza das infinitas possibilidades de aprendermos juntos, antes, durante e após o Enapegs.
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é exatamente o contrário do que fomos puxados a acreditar: que o princípio de racionalidade científica (linear, instrumental, objetiva) fosse a pedra de toque para podermos conhecer, intervir e dominar a realidade natural e social. Hoje, bem pelo contrário, a palavra integração emerge sempre mais como palavra-chave. Integração de sujeitos, integração de lógicas e princípios norteadores, integração de antigas dicotomias, integração das lições que as múltiplas culturas que convivem, muitas vezes, uma ao lado da outra, nos propõem sobre as maneiras de gestão e de convivência com a natureza e com o Outro... A linda história do Espelho quebrado que Vivina vai nos contar, (se ela topar com minha deixa) concretiza de forma linda e mais eficaz do que muitas páginas de texto a situação em que nos encontramos. Mais uma coisa me urge dizer, que caracteriza e especifica meu entendimento do tópico que escolhemos para o Enapegs deste ano (a Gestão Social como caminho para a redefinição da esfera pública). Pois entendo esta redefinição, de novo, como Integração (pelo menos nos vários sentidos aludidos acima) e vejo (no sentido bem concreto do termo) a insuficiência de uma lógica participacionista apenas concebida como construção de arenas nas quais os sujeitos capazes de utilizar os códigos consagrados da racionalidade científica têm vez e voz. Podemos sintetizar dizendo que lutamos muito tempo em prol da passagem da racionalidade cientificista à racionalidade dialógica para reconhecermos, hoje, a sua total insuficiência. Para que estejam presentes em nossas práticas de gestão as subjetividades e práticas sociais que o paradigma positivista, não podendo homogeneizar, obliterou, precisamos recorrer a novos formatos de ação, novas metodologias que podemos chamar, referido a tudo o que falamos acima, de Integrativas. Elas nos permitem darmos voz aos que foram “ausentados” pela lógica dominante e amplificar as tendências que o modelo de produção socioeconômica dominante quis apagar. Elas remetem à Sociologia das Ausências e das Emergências que Boaventura de Souza Santos nos propõe (SANTOS, 20088), mas focalizam espe8 SANTOS, B. S. A sociologia das ausências e das emergências. In: A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
Vivina Machado de Oliveira Neta
E pegando daí, neste exercício de gerir conjuntamente a escrita deste texto, de incluir as nossas diversas percepções, de atuar de forma interdependente e de colocar em suspensão as certezas que possamos ser tentados a crer relativas – sobretudo, à gestão social... aceito o convite da amiga Valéria e inicio contando o mito do espelho de Olorum, que no candomblé, representa O Criador. Conta-se que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o Orun, mundo espiritual e o Aiyê, mundo material, havia um espelho. Daí é que, tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia–se exatamente no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas. Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade. O espelho ficava bem perto do mundo material e bem perto do mundo espiritual. Naquele tempo vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite
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cificamente o aspecto do “como fazer” que ainda é fraco e pouco desenvolvido na proposta de Boaventura. Como agir, praticamente, a partir de amanhã, em nossos projetos sociais, quer que eu seja poder público, universidade ou terceiro setor? Falamos de inclusão, mas ao praticá-la ainda caímos nas práticas convencionais (baseadas na racionalidade lógico-verbal) que excluem os excluídos de sempre. Podemos começar a pensar em incluir a contação de histórias, a dramatização teatral, a expressividade dos corpos e as mil outras possibilidades expressivas que o ser humano, se não cauterizado, usa normalmente para fazer sentido e dar sentido ao seu mundo para ampliar a esfera pública no nosso e nos demais países do mundo em crise do terceiro milênio? Eis a forma em que enxergo o desafio que o nosso V Enapegs nos leva a pensar. Em Florianópolis teremos uma bela chance de partilharmos reflexões, experimentos e anseios, em um formato inovador, para avançarmos na direção desejada.
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ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, inadvertidamente, perdendo o controle do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando O encontrou tranquilamente deitado à sombra do Iroko. Olorum ouviu as desculpas da jovem com toda a atenção. Em seguida declarou que daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade no mundo. Declarou ainda: De hoje em diante quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade, provavelmente a sua verdade própria. Porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra. (MACHADO, VANDA, 2006)9
E o que este mito pode nos ajudar a refletir sobre gestão? E na gestão do V Enapegs?
Com o mito quero ressaltar três dos princípios que norteiam o encontro: Interdependência, Incerteza e “Inclusividade” e aí seguirmos no nosso diálogo.
O mito expõe a quebra do grande espelho que, ao ser quebrado, nos re-liga com os seus pedaços. Nos re-liga para que ampliemos o encontro. A verdade só se refletirá novamente com a junção dos pedaços de espelho. A Verdade para ser revelada deverá unir as várias verdades, num movimento sistêmico, de interdependência. Para Maturana, o social é uma dinâmica de relações humanas que se funda na aceitação mútua. Ele nos diz: “Se não há aceitação mútua e se não há aceitação do outro, e se não há espaço de abertura para que o outro exista junto de si, não há fenômeno social” (MATURANA, 2006, p. 47)10. Neste movimento do encontro, a gestão como ato relacional11, 9 MACHADO, V. Àqueles que têm na pele a cor da noite: ensinâncias e aprendências com o pensamento africano recriado na diáspora. Faculdade de Educação. Universidade Federal da Bahia. Salvador: UFBA, 2006. (Tese de doutorado). 10 MATURANA, H. R. Cognição, ciência e via cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2006. 11 FISCHER, T. Poderes locais, desenvolvimento e gestão: introdução a uma agenda. In: FISCHER, T. (org.). Gestão do desenvolvimento e poderes locais: marcos teóricos e avaliação. Sal-
E a “Inclusividade”? Olorum inclui a quebra do espelho: já que o espelho está partido, a única verdade se transformará em muitas verdades. Cada pedaço de espelho refletirá uma verdade. “De agora em diante não existirá uma única verdade”. A gestão como ato inclusivo, de abarcar as diversidades, de enriquecer as perspectivas e criar novas possibilidades de ação, de reflexão. Gestão que inclui Razão e inclui emoção. Gestão que inclui o processo na obtenção de resultados. Processo que se inclui como resultado. O Enapegs incluindo as múltiplas perspectivas, olhares, visões, conhecimentos, epistemologias.
E a Incerteza? Como ter certezas com a existência dos múltiplos pedaços de espelho? Como ter certezas se cada pedaço de espelho mostra um pedaço da Verdade? “...tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia-se exatamente no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas”. O princípio da Incerteza que tem o sentido de um questionamento, de uma atitude de permanente vigilância sobre a “tentação da certeza”, como Maturana e Varela (1998) falam amplamente no livro A Árvore do Conhecimento12. A gestão como suspensão dos estados de certezas que podem empobrecer, que podem criar rigidez. Edgar Morin nos fala sobre a necessidade de enfrentarmos a incerteza, diz que “conhecer e vador: Casa da Qualidade, 2002, p.12-32. 12 MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. The tree of knowledge: the biological roots of human understanding. Boston: Shambhala, 1998.
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interdependente, sistêmico que influencia e é influenciado pela rede de convivência, pelos múltiplos saberes, conhecimento, pela revisão de estruturas estabelecidas, pelas possibilidades de abertura de diálogos, de gerir os conflitos que emergem desta rede de diversidade, de promover interrelações, de atuar em rede, de expandir a atuação conjunta. De vivenciarmos no Enapegs a interdependência.
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pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza [...] assim quando conservamos e descobrimos novos arquipélagos de certezas, devemos saber que navegamos em um oceano de incertezas” (MORIN, 2003, p. 59)13. O princípio da Incerteza no V Enapegs pode contribuir para que possamos abrir mão, refletir sobre algumas certezas que muitas vezes se tornam absolutas. E ao abrir mão, podemos também criar um campo para proliferação de novas, de inovadoras possibilidades. A gestão como práxis, fluida, em que resultado inclui processo e é processo em movimento. Esta proposta do V Enapegs traz em si mesma o experimentar a gestão fazendo uma reflexão da gestão do encontro. Abrindo possibilidades de olhar para si mesmo ao gerir. Fazendo a integração: teoria e prática. E como é praticar a teoria? E como é teorizar a prática? Quais as possibilidades de refletir sobre as práticas? Quais as possibilidades de criar novas práticas, de integrar metodologias, de vivenciar as metodologias integrativas?
Desejamos criar juntos espaços de reflexão, ampliando as possibilidades de atuarmos de forma interdependente, inclusiva. E fechando com a deixa de Edgilson que Valéria reforçou: “A gestão envolve ciência (análise das evidências e conhecimentos sistemáticos), arte (compreensão e visão baseadas na intuição e emoções; discernimentos criativos) e prática (experiência, aprendizagem)”. Que, no Enapegs, estejamos atentos, unidos, vivenciando, refletindo e unindo ciência, arte e prática. Aprendendo a gerir para que a Gestão Social seja um caminho para a redefinição da esfera pública. Paula Chies Schommer
Quando finalmente paro para ler este texto que vem sendo elaborado há certo tempo, meu coração vibra ao “ouvir” meus 13 MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
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colegas. Posso mesmo ouvir o som da voz de Edgilson e ver seu jeito falando, ouvir Valéria e seu sotaque cada vez mais brasileiro, ouvir e ver Vivina pronunciando as palavras em meio a seu rosto sorridente. Sinto arrepio e profunda emoção ao ler a história do mito do espelho, embora a tenha visto outras vezes. Desde que começamos a desenhar esta quinta edição do Enapegs, em uma reunião da Rede de Pesquisadores em Gestão Social, no encontro de Lavras, Valéria, Vivina e Edgilson estiveram sempre presentes, com ideias, opiniões, incentivo, amizade, compromisso. Além deles, muitas pessoas vem se envolvendo com dedicação e entusiasmo. Há os amigos de longa data, amigos que vamos fazendo ao trabalharmos juntos, pessoas que ainda não se conhecem pessoalmente, de várias partes do país e de fora, que escrevem, participam, sugerem, comprometem-se, ligam-se a essa rede invisível e tão perceptível. Sou grata à vida por me proporcionar estar com essas pessoas vivendo a experiência de construir um encontro, de ajudar a tecer fios e nós de uma rede, de aprender um pouco sobre gestão social ao participar da gestão de um pequeno empreendimento coletivo. Um dos grandes desafios disso tudo, me parece, é aproveitar os potenciais de tantas pessoas reunidas. Construir o Enapegs usando e desenvolvendo as potencialidades da rede. Estejamos todos atentos a esse desafio, ao que significa para cada um de nós essa oportunidade, ao que esse Encontro nos permite experimentar, aprender, construir e destruir. A abundância é maravilhosa, mas pode gerar frustrações se não formos capazes de percebê-la e lidar com ela. Uma das coisas que esse evento tem me permitido perceber é a força do coletivo, do engajamento, da participação. É só um pequeno evento e me impressiona o que é possível fazer juntos. Se podemos fazê-lo nesse encontro, nessa rede, podemos fazê-lo em nossas instituições, em nossos bairros, nossas cidades. É impressionante o que acontece quando pedimos ajuda. As pessoas ajudam! A solidariedade está muito presente. É bonito o que acontece quando pedimos opinião. As pessoas opinam! E ao opinar se envolvem, ao se envolverem trazem consigo outras tantas possibilidades.
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Às vezes fico preocupada com os recursos financeiros (será que vai dar?), e logo percebo que tudo vai se arranjar, que temos muitas possibilidades, que dá para fazer muita coisa com os recursos de que já dispomos. E que o limite de recursos nos faz buscar soluções mais simples e baratas e nos faz pedir ajuda, um belo exercício. Diante de uma de nossas parceiras que perguntava o que faríamos se faltasse dinheiro, eu disse: não se preocupe, é um evento simples, sem extravagâncias, seremos responsáveis e parcimoniosos nas despesas. E se faltar, no final a gente faz uma “vaquinha” e todos contribuem. Somos uma comunidade. E as contas serão todas quitadas. Tenho procurado ficar atenta aos princípios que definimos nas primeiras conversas – experimentação, diálogo e dialógica, interdependência, diversidade, inclusividade, incerteza. Percebo o desafio da diversidade quando procuramos incluir no Enapegs diferentes áreas do conhecimento e pessoas de diferentes origens. A tendência é agregarmos pessoas que são da mesma área, do mesmo meio, os já conhecidos. É preciso buscar com determinação, humildade e criatividade os que diferem de nós em algo, para que possamos, primeiramente, perceber nossos limites, até para saber a quem procurar, depois nos encantar com as diferenças, com o que o outro sabe e eu não sei e, em seguida, perceber o quanto temos em comum e o quanto podemos aprender juntos. Percebo o desafio da “inclusividade”, por exemplo, quando definimos um número limitado de participantes. Algo que imagino debateremos bastante. O que mais tenho aprendido é valorizar a incerteza, algo complicado para uma administradora como eu, ainda mais com família de origem alemã (tudo tem que ser certinho, previsível). A incerteza tem me surpreendido com a abundância de possibilidades. Percebo que a incerteza pode incluir o planejamento, os critérios (e sua discussão, quando se percebe no meio do processo que poderiam ser melhores), os limites predefinidos. E ir muito além deles. Diante disso tudo, sinto que aprendo sobre gestão social, so-
E, é claro, nos encontramos ao final de maio, em Florianópolis! Até breve.
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bre como podemos atuar na esfera pública, sobre como podemos nos conectar a outras pessoas, dialogar com elas, gerir com elas, ampliar possibilidades, aprender juntos, construindo novos repertórios de ação e de interpretação. Fico por aqui, convidando aos demais que quiserem entrar nesse diálogo. No site da RGS (www.rgs.wiki.br) há uma página que apresenta os princípios do evento. É possível usarmos esse espaço para ouvir percepções dos demais participantes. Podemos debater usando o Facebook, alguns já são “amigos” do “Enapegs Encontro” por lá, outros podem se agregar. Quem preferir, pode enviar email para enapegs2011@gmail.com ou para os que iniciaram a conversa: Edgilson (edgilson@gmail.com), Valéria (valeriagiannella@gmail.com), Vivina (machado.vivina@gmail.com), Paula (paulacs3@gmail.com).
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Paula Chies Schommer1 Carolina Andion2 Daniel Moraes Pinheiro3 Enio Luiz Spaniol4 Mauricio C. Serafim5
1. Introdução No âmbito de uma concepção ampliada de esfera pública, que compreende, para além do Estado, múltiplas interações entre atores da sociedade civil, cidadãos articulados vistos como sujeitos políticos engajados na definição do que constitui o interesse público e na sua realização, há espaço para refletir sobre estruturas sociais e organizacionais e modos de gestão pelos quais se coproduzem bens e serviços públicos e são engendradas inovações sociais. É nesse sentido que se orienta este artigo, que busca promover um diálogo entre um conjunto de pesquisas sobre coprodu1 Paula Chies Schommer é professora de administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG), líder do grupo de pesquisa Politeia – Coprodução do bem público: accountability e gestão e professora colaboradora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia (Ciags/Ufba). 2 Carolina Andion é professora de administração pública e Diretora de Extensão no Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas (ESAG) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutora em ciências humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, é líder do Núcleo de Pesquisa em Inovações Sociais na Esfera Pública e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Informação sobre Economia Pública, Social e Cooperativa, CIRIEC Brasil, filiado ao CIRIEC Internacional. 3 Daniel Moraes Pinheiro é professor de administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDE/ESAG, pesquisador do NISP (ESAG) e ORD (UFSC), membro do CIRIEC-Brasil. Doutorando em Administração (CPGA/UFSC). 4 Enio Luiz Spaniol é professor de sociologia, ciências políticas e comunicação no curso de administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG), pesquisador, doutor em sociologia política. 5 Mauricio Custódio Serafim é professor do Departamento de Administração Pública do Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas (ESAG) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutor em administração pela FGV-EAESP e vice-líder do Núcleo de Pesquisa em Inovações Sociais na Esfera Pública (NISP).
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Coprodução e inovação social na esfera pública em debate no campo da gestão social
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ção do bem público e inovação social na esfera pública que, desde 2004, vem sendo realizado na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), e os debates que, desde 2007, ocupam a cena do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs) e da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS). Coprodução e inovação social na esfera pública constituiu um dos eixos temáticos da quinta edição do Enapegs, realizado em Maio de 2011, em Florianópolis, sob o tema central Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública. O tema do eixo foi proposto por pesquisadores da UDESC, ao perceberem que o enfoque de administração pública que baliza as pesquisas nesta instituição está em sintonia com a noção de gestão social. Desejávamos explorar perspectivas teóricas e experiências de coprodução do bem público para a inovação social, na expectativa de que isso nos permitisse aprender sobre suas implicações para (re) configurar a esfera pública e suas interfaces com a esfera privada e a problematizar a relação entre gestão social e gestão pública. A constituição do curso de graduação em administração pública da UDESC, instalado em 2004, está fundamentada na noção ampliada de público não restrito a estatal e na visão de que bens e serviços públicos podem ser coproduzidos por governantes e cidadãos, articulados em rede e intermediados por múltiplas formas de mobilização, associação e organização autônoma, inclusive pela estrutura estatal e suas interrelações com a sociedade. São considerados sujeitos na esfera pública os cidadãos, enquanto indivíduos e enquanto integrantes de movimentos, grupos e organizações sociais, bem como os governantes, tanto os servidores públicos (ou burocratas) e os políticos eleitos (representantes), e as organizações de mercado que de alguma forma participam da produção de bens e serviços públicos e do fomento a inovações sociais. As estruturas e estratégias de gestão por meio dos quais esses sujeitos articulam-se entre si, tomam decisões e executam ações são foco do interesse de pesquisadores em gestão social e gestão pública, particularmente, em nosso caso, no que se refe-
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re às maneiras pelas quais é possível coproduzir o bem público e engendrar inovações sociais na esfera pública. Entende-se que se trata de um processo que exige intensa participação cidadã e que promove aproximação entre governantes e cidadãos. Uma vez que diferentes ideias, saberes e capacidades são empregadas no processo de coprodução, há uma possibilidade objetiva de se estimular a criatividade, a aprendizagem e a inovação, ampliando-se possibilidades de solução para problemas públicos e de desenvolvimento de capacidades dos sujeitos envolvidos. Processo este que não é dado a priori e nem sempre é harmônico, envolvendo diversidade de práticas que contemplam construção, contradição e conflito. Nesse sentido, nos parece relevante compreender a construção dessas práticas enquanto formas de ação coletiva que visam transformar o espaço público, levando em conta seus dilemas e desafios. Algumas das perguntas que inicialmente motivaram a exploração no eixo temático Coprodução e Inovação Social na Esfera Pública e constavam da chamada de trabalhos foram: quais as aproximações entre gestão social e gestão pública, uma vez que esta seja orientada pela noção de coprodução do bem público? De que modo os estudos relativos à gestão social (e seu repertório teórico-conceitual e metodológico) podem contribuir para nossa compreensão de experiências de coprodução do bem público? Em que medida as inovações sociais geradas por essas experiências demonstram capacidade para promover institucionalização de novos saberes e práticas e para transformar padrões da esfera pública? Qual o alcance e os limites das inovações sociais oriundas da sociedade civil e do mercado na esfera pública? Quais os dilemas da aproximação de diferentes lógicas na articulação entre as esferas privada e pública? Além destas e de outras perguntas, a chamada apontava para quatro campos de manifestação do fenômeno da coprodução e inovação social: em governos locais, em experiências de base associativa, na prática do investimento social privado e na iniciativa privada, os quais serão abordados adiante. A amplitude dessas questões e a diversidade desses cam-
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pos de ação apontam para a necessidade de uma base conceitual para tratá-las, esclarecendo-se termos e suas interrelações, assim como nos instiga a relacioná-las a nossas práticas como pesquisadores, professores e gestores. Optamos por delimitar o objetivo central neste trabalho como o de explorar a relação entre estudos sobre coprodução e inovação social na esfera pública e debates recentes no campo da gestão social, em particular na quinta edição do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs). No âmbito deste objetivo geral, pretendemos: i) apresentar definições básicas de esfera pública, coprodução do bem público e inovação social; ii) explorar relações entre estes termos, por meio da descrição de algumas de nossas práticas em ensino, pesquisa e extensão; iii) relatar sua discussão no âmbito do 5º Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs), realizado em Maio de 2011, na cidade de Florianópolis; iv) sugerir questões e caminhos de pesquisa relacionadas a esses temas em sua relação com gestão social. Cada um destes objetivos específicos corresponde a uma das partes do texto ora apresentado, que se baseou em referenciais bibliográficos, na experiência de ensino, pesquisa e extensão dos autores e no processo de construção do eixo temático Coprodução e inovação social na esfera pública no V Enapegs, incluindo a chamada de trabalhos, a avaliação dos artigos recebidos e a participação nas sessões de apresentação e discussão dos trabalhos durante o evento.
2. Definições basilares para o debate
Buscando estabelecer bases para um debate sobre os temas e questões levantadas, apresentamos o que entendemos por coprodução do bem público e inovação social, partindo da apresentação da noção de esfera pública, pois esta é transversal e articulada tanto com a coprodução do bem público, quanto com a inovação social; a esfera pública é o palco onde esses fenômenos ocorrem. Em seguida, exploramos os dois conceitos citados, mostrando elementos do debate atual sobre eles e perspectivas teóricas que embasam nossa prática, explorada no item seguinte.
Delimitar o conceito de esfera pública, considerando suas diferentes acepções ao longo da história, os principais autores que abordam a sua relação com espaço público, ação pública e opinião pública, constitui um desafio para além do escopo deste texto6. Limitamo-nos a tratar de algumas de suas características, as quais julgamos essenciais para compreensão dessa esfera como um campo amplo e diverso de relações entre sujeitos e instituições da sociedade civil que se auto-organizam influenciando o Estado e sendo influenciados por este (ANHEIER e LIST, 2005). Entendemos a esfera pública como o palco no qual a coprodução do bem público e a inovação social ocorrem. A compreensão de esfera pública passa por sua relação com a esfera privada. Originalmente, a esfera privada correspondia ao espaço da casa, da família, do labor e do trabalho, da produção necessária à sobrevivência, ou seja, a economia, bem como ao espaço da privacidade e das regras de convivência entre os membros da família ou do feudo. Já a esfera pública correspondia ao espaço da política, da participação dos homens livres na vida da cidade, da discussão e deliberação sobre temas de interesse comum. Era o espaço da ação, no sentido proposto por Hannah Arendt, da atuação do homem como animal político, da realização da condição humana (ARENDT, 1997). Como analisa Habermas (1984), com a ascensão da sociedade burguesa e o declínio do feudalismo, a esfera pública passou a representar um espaço de discussão e articulação de interesses da burguesia para exercer pressão sobre os governantes e sobre os detentores do poder tradicional. Era, portanto, socialmente restrita (aos grupos burgueses). Mais tarde, para além dos interesses econômicos, nas cidades em formação e crescimento, as pessoas passaram a reunir-se em sociedades literárias, discutindo arte e literatura e as questões da intimidade a elas associados. Assim, temas da literatura e da economia extrapolaram os limites da casa e do feudo, 6 Algumas das obras fundamentais que discutem a noção de esfera pública são A condição humana, de Hannah Arendt, Mudança estrutural da esfera pública, de Jürgen Habermas, e O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, de Richard Sennett.
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2.1 A noção de esfera pública
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alterando tanto a esfera privada quanto a esfera pública, e fazendo emergir a esfera social, esta a da moral, da convivência, das regras de comportamento, que dialoga e por vezes invade a esfera íntima, da privacidade. Nesse contexto, emergiram debates sobre igualdade, liberdade e publicidade, por meio da arte e crítica de arte, da ciência e filosofia, da moral, do direito e da política. A esfera pública passou a ser espaço de crítica e transformação da ordem da dominação política, inclusive da própria ordem da ideologia burguesa, ao revelar-se o descompasso entre as propostas universalistas que continha e a realidade da sociedade de classes (REPA, 2007). Segundo Habermas (1984, p. 42), a esfera pública passa a ser entendida como “a esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam que esta esfera seja regulamentada pela autoridade, mas o fazem diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis de troca da esfera, fundamentalmente privada, mas publicamente relevante”. De acordo com a análise habermasiana, movimentos operários, socialistas e democrático-radicais buscaram, em certa medida, efetivar a racionalidade da esfera pública liberal-burguesa. Entretanto, a luta pelos direitos sociais e de participação democrática que se conformaram no Estado de direito democrático e social geraram mudanças estruturais da esfera pública, a partir do final do século XIX. O Estado foi socializado pela influência de certos grupos, enquanto a sociedade foi estatizada sob um intervencionismo voltado a promover o crescimento econômico e a conquistar a lealdade das massas, por meio de compensações sociais (REPA, 2007). Assim, ao tempo em que a esfera pública ampliou-se nas democracias de massa, perdeu sua função crítica. De um público burguês restrito que pensa a cultura, passou a abarcar um público de massa amplo que consome cultura, ou os produtos da indústria cultural. A publicidade crítica foi subvertida pela publicidade como propaganda, a opinião pública tornou-se objeto de manipulação, tanto dos meios de comunicação de massa como de políticas partidárias e administrativas, orientados por pesquisas de opinião que refletem interesses já privatizados (REPA, 2007).
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Posteriormente, novas experiências políticas e sociais relativizaram essa despolitização da esfera pública. Novos e diversos movimentos sociais, entre os quais o movimento negro por direitos civis, o movimento feminista, o dos estudantes, o ecológico e o de grupos sexualmente discriminados reforçaram a ideia de sociedade civil, contraposta ao âmbito do mercado e ao do Estado e constituída por movimentos, organizações e associações mais ou menos autônomas, gerando esferas públicas diversas, na visão de Repa (2007). Assim, há na “nova esfera pública” uma reorganização dos espaços de debate público e construção democrática, incluindo a diversidade de atores da sociedade, para além dos limites dos grupos organizados de poder. A esfera pública têm assim seus limites ampliados para além do Estado, incluindo outros atores da sociedade civil envolvidos com a produção do bem público, como os movimentos sociais, as associações, enfim, os cidadãos articulados em torno de ideais e ações compartilhadas. Como definem Anheier e List (2005, p. 216), “o conceito de público refere-se tanto ao caráter coletivo da democracia – pessoas organizadas em um público que é espaço de discussão e de tomada de decisão – quanto ao seu objeto, o bem público”. Objeto este, o bem público, nem sempre tangível e produzido por meio da ação social orquestrada, muito mais um subproduto resultante da ação social não orquestrada. Ao contemplar diversidade, a esfera pública que, para Laville (2006), constitui simbolicamente a matriz da comunidade política, é também arena de expressão de significações contestadas, na medida em que diferentes públicos buscam nele se fazer ouvir e se opõem em controvérsias que não excluem comportamentos estratégicos e tentativas de eliminar outros pontos de vista (LAVILLE, 2006). Considerada, pois, como conjunto que contempla diversidade, a esfera pública ganha conotação mais ampla, associada a contextos democráticos nos quais os cidadãos são ao mesmo tempo iguais (como parte do social) e únicos ou diferentes (como seres políticos). Iguais no direito à expressão, à participação livre de coação. Diferentes em suas preferências, interesses e posições políticas. Reunindo ambas as dimensões, os sujeitos atuantes na esfera públi-
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ca são idealmente livres para expressar-se e, por meio do diálogo e da deliberação coletiva, engajando-se ativamente em espaços públicos, articulando-se, interagindo e exercendo a crítica, formam uma opinião pública – ou a expressão do ponto de vista de muitos, capaz de exercer pressão sobre questões políticas. Os interesses comuns e consensos passam a orientar as próprias ações dos cidadãos e a ação de políticos e governantes, refletindo-se nas políticas públicas e na atuação do aparato administrativo governamental (TENÓRIO, 2004; OLIVEIRA, CANÇADO e PEREIRA, 2010). Destacam-se, pois, a dimensão comunicativa e a dimensão política da esfera pública, ao ser compreendida como espaço de interação face-a-face e como campo político no qual os indivíduos engajam-se ativamente em processos de diálogo, reflexão e deliberação democráticos (OLIVEIRA, CANÇADO e PEREIRA, 2010). Importa reforçar que a esfera pública conecta-se à esfera estatal, mas não se limita e não se confunde com ela7. A esfera pública é palco de atuação de diferentes sujeitos coletivos e instituições, incluindo os espaços e mecanismos de relação entre o aparato estatal e os cidadãos, bem como variadas formas de ação coletiva, redes e movimentos sociais. Pode ser vista, ainda, como espaço de intermediação entre Estado, Sociedade e Mercado (TENÓRIO, 2004), se considerarmos essas três esferas como distintas. Essa visão é coerente com a transição observada por Keinert (2000) no Brasil, de uma perspectiva estadocêntrica de relação entre Estado e sociedade, que restringe público a estatal, para uma perspectiva sociocêntrica, na qual a concepção de público é ampliada e se equipara a interesse público. Nesta visão, o público corresponde a um espaço de interações entre diversos interesses que, articulados, definem valores e interesses comuns (DENHARDT; DENHARDT, 2000). O que nos remete à perspectiva de sociedade multicêntrica elaborada por Ramos (1989), que foge à centralidade 7 Inclusive em sua origem, a esfera pública como categoria histórica da sociedade burguesa, formou-se em contraposição ao poder, no interesse de estabelecer um Estado de direito que assegurasse, por lei e sanções, a circulação de mercadorias e o trabalho formalmente livre, sem interferências estatais na dinâmica do mercado (REPA, 2007).
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do mercado ou do Estado e é coerente com a multidimensionalidade humana. Humano como ser que se realiza mais plenamente na medida em que desenvolve sua múltipla natureza - ambiental, econômica, social, cultural, política, espiritual. Para Tenório (2004), a perspectiva descentralizada, diversa e dialógica da esfera pública, na qual é possível identificar, compreender, problematizar e propor soluções dos problemas da sociedade, opõe-se a um processo centralizador, tecnoburocrático, elaborado em gabinetes, em que o conhecimento técnico é o principal argumento da decisão. Algo familiar na concepção da chamada velha administração pública (DENHARDT e DENHARDT, 2003). Nesse sentido, são propulsores recentes da (re) valorização da esfera pública, tanto as limitações do Estado centralizador e burocrático em prover bens e serviços públicos de qualidade e em atender aos diversos interesses da sociedade, por razões de eficiência econômica e de fragilidade política, bem como por tolher a potencialidade dos cidadãos, desperdiçando suas capacidades como participantes da esfera pública, tanto em sentido político como econômico. Além de se considerar o potencial dos cidadãos, organizados em grupos, comunidades, organizações ou movimentos, agentes do mercado passam a ser reconhecidos como possíveis participantes legítimos da provisão de bens e serviços públicos, seja como fornecedores do Estado, como provedores mais flexíveis e eficientes das diversas preferências, ou como atores políticos, envolvidos em políticas de responsabilidade social e de investimento social privado. Aptos também a participar de processos de aprendizagem e inovação social na esfera pública. A ideia de que bens e serviços públicos sejam providos e os problemas públicos sejam equacionados de forma mais criativa e efetiva por meio de estratégias complementares – colocadas em prática de forma colaborativa pela burocracia estatal, por organizações de mercado e pelo engajamento de sujeitos e instituições da sociedade civil em um espaço público compartilhado – liga-se à noção de coprodução de bens e serviços em rede (SALM e MENEGASSO, 2009; HARISSON; CHAARI; COMEAU-VALÉE, 2012) e à noção de inovação social, as quais exploramos a seguir.
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2.2 Coprodução do bem público Entende-se coprodução do bem público como estratégia de produção de bens e serviços públicos em redes e parcerias, contando com engajamento mútuo de governos e cidadãos, individualmente ou em torno de organizações associativas ou econômicas. Por meio da coprodução, os cidadãos são ativamente envolvidos na produção e na entrega dos bens e serviços públicos, tornando-se corresponsáveis pelas políticas públicas (WHITAKER, 1980, ALFORD, 2002, COOPER e KATHI, 2005, BRUDNEY e ENGLAND, 2003, DENHARDT e DENHARDT, 2003, MARSHALL, 2006, NADIR, SALM e MENEGASSO, 2007; PESTOFF, 2009; DENHARDT, 2012). A coprodução pressupõe práticas compartilhadas e a existência de canais de expressão de diferentes interesses e perspectivas, intermediados pelo diálogo e pela construção de consensos e objetivos comuns, em processos permeados por conflitos, relações de poder e articulações negociadas entre os diferentes atores em cena. Por meio da participação direta e ativa de diferentes atores, são definidas prioridades nos processos de elaboração, implementação, controle e avaliação de políticas públicas, tendo a democracia como critério fundamental de desenvolvimento dos serviços públicos. Por meio de dinâmicas particulares de ação coletiva (CËFAI, 2007) – que são construídas em contextos temporais e espaciais específicos – são mobilizados e articulados conhecimentos, recursos e capacidades de pessoas e organizações públicas e privadas, viabilizando a construção de soluções compartilhadas, contando-se com a responsabilização dos envolvidos. Trata-se de um processo que pode promover diversas modalidades de participação cidadã e contribuir para aproximar governantes e cidadãos. Este último ponto é enfatizado por Boyle e Harris (2009), que entendem coprodução como uma relação de parceria igualitária entre usuários e servidores públicos estatais no design e na entrega de serviços públicos. Para estes autores, coproduzir significa entregar serviços públicos em relações equânimes e recíprocas entre profissionais, usuários de serviços, seus familiares e seus vizinhos, tornando tanto os serviços como as comunidades agentes de mudança mais efetivos.
8 Boyle e Harris (2009) observam que o contexto atual é mais favorável à coprodução de serviços públicos, inclusive em função da crise econômico-financeira que, desde 2008, afeta especialmente países europeus. Na Inglaterra, por exemplo, o tema vem ocupando espaço nos discursos de governantes, policymakers e think tanks, como alternativa para lidar com restrições fiscais e necessidades de provisão de serviços para cidadãos de diversas origens e condições socioculturais que vivem no país. O que tem levado, segundo estes autores, à (re) valorização de organizações de ajuda mútua, organizações locais e dos recursos disponíveis nas famílias e comunidades.
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A coprodução é assim uma importante estratégia de promoção da colaboração (REAY e HININGS, 2005), processo-chave para promover novos arranjos que possibilitam o compartilhamento de recursos e conhecimentos para promoção de inovação social. Esta última, conforme será explorado adiante neste texto, é entendida como uma nova proposta de solução para uma situação social avaliada como insatisfatória. Essas novas respostas aos problemas públicos (cada vez mais exigentes e complexos) exige a mobilização de uma diversidade de competências, além de abertura, transparência e diálogo (HARISSON e KLEIN, 2007; HARISSON, CHAARI e COMEAU-VALÈE, 2012). Boyle e Harris (2009) também acentuam o potencial para soluções inovadoras permitidas pela coprodução de serviços públicos, que desafia o pensamento mainstream nas questões econômicas, sociais e ambientais e coloca as pessoas em primeiro lugar. Originalmente, o termo coprodução do bem público foi empregado, de acordo com Brandsen e Pestoff (2006), no âmbito do Workshop in Political Theory and Policy Analysis na Universidade de Indiana (EUA), na década de 1970, referindo-se à relação entre provedores ou produtores regulares e consumidores ou usuários de um serviço (SILVA, 2011). De lá para cá, em várias partes do mundo, novos modelos ou concepções de coprodução – influenciadas tanto por uma agenda democrática/emancipatória, por um lado, como por uma agenda neoliberal/gerencial foram colocados em prática. Atualmente, o termo é largamente utilizado por governantes, centros de pesquisa e think tanks em países como Inglaterra, Estados Unidos, Portugal e Austrália (SALM e MENEGASSO, 2010; BOYLE e HARRIS, 2009)8. De uma forma geral, o termo pode assumir dois vieses principais: um mais econômico-financeiro, outro mais político, admitin-
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do-se diversas combinações entre eles. A ênfase de cada um desses vieses contempla a ideia de que a coprodução de bens e serviços públicos tende a contribuir para: Na perspectiva econômica – reduzir custos, gerar eficiência econômica na produção de bens e serviços públicos e permitir atendimento a diversos tipos de necessidades, dificilmente passíveis de serem contemplados por estratégias mais centralizadas ou orquestradas. A coprodução é vista, pois, como alternativa para lidar com restrições fiscais e com dificuldades do Estado para responder à diversidade de demandas dos cidadãos/consumidores, propondo como caminho a lógica do livre mercado, acompanhada pelo envolvimento dos cidadãos/consumidores de bens e serviços. A ideia de inovação está presente, como produto das ações e interações entre agentes do Estado, do mercado e da sociedade. Entre os riscos implícitos desta abordagem, o de desconsiderar externalidades e prejuízos sociais que acarretem resultados comprometedores do equilíbrio ambiental e humano. Na perspectiva política – gerar participação cidadã, emancipação política, aprendizagem social e desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas. O cidadão é visto como ente político que, pelo engajamento em redes, aprende e desenvolve seus potenciais, tornando-se sujeito ativo da vida política na comunidade, na cidade, na polis, engajando-se na definição do que constitui o interesse público em cada contexto espacial, temporal e sociocultural e envolvendo-se na tradução e concretização desse interesse público em bens e serviços. Esses dois vieses e a combinação entre eles faz com que a coprodução, enquanto fenômeno, assuma diferentes formas e graus de intensidade, dependendo do contexto sociopolítico no qual ela ocorre, de seus objetivos, dos sujeitos envolvidos e dos recursos disponíveis, entre outros fatores. Inúmeros trabalhos, desde a década de 1970 até os dias atuais, abordam diferentes tipos de coprodução. Uma das contribuições basilares nesse sentido é a de Whitaker (1980), que distingue três formas de participação dos cidadãos na provisão de serviços públicos: (i) aquela em que cidadãos solicitam assistência aos agentes públicos; (ii) aquela em que cidadãos par-
Modelo de coprodução
1.Coprodução nominal
Caracterização do modelo de coprodução
Estratégia para a produção dos serviços públicos, por meio do compartilhamento de responsabilidades entre pessoas da comunidade, preferencialmente voluntários, e o aparato administrativo público do Estado, com o propósito, apenas, de tornar eficientes esses serviços.
Participação do cidadão na coprodução Não há participação efetiva e de poder do cidadão sobre o Estado
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ticipam da provisão uma vez que o serviço público em questão tem por objetivo transformar o comportamento do cidadão, como na promoção de saúde e na educação, por exemplo, em que o cidadão precisa envolver-se para ser mais saudável e educar-se; (iii) aquela em que há uma articulação ou um ajuste mútuo entre cidadãos e servidores públicos estatais na definição do que e como deve ser produzido e na sua realização. Já Brudney e England (1983) propõem uma tipologia de coprodução que considera (i) a relação entre cidadãos enquanto indivíduos e os servidores públicos estatais na provisão de um serviço ou bem (individual); (ii) a articulação entre grupos de cidadãos e o aparato estatal (grupal); (iii) o engajamento coletivo de uma diversidade de sujeitos em interação, visando a provisão de bens e serviços (coletiva). A combinação das tipologias de Whitaker (1980) e de Brudney e England (1983), por si só, evidencia diversas possibilidades de coprodução (SALM e MENEGASSO, 2010). Mais recentemente, com base em diversas classificações de formas de participação cidadã, noção esta crucial na concepção de viés político da coprodução, Salm e Menegasso (2010) lançaram as bases para uma tipologia de modelos coprodução de serviços públicos, identificando os seguintes possíveis tipos ideais (Quadro 1):
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2.Coprodução simbólica 3.Coprodução funcional
4.Coprodução representativa com sustentabilidade
5.Coprodução para a mobilização comunitária
Estratégia para envolver os Caráter fundamencidadãos na produção dos ser- talmente manipulaviços públicos para demonstrar tivo da participação a presença do Estado. Estratégia utilizada pelo aparato público estatal para produzir serviços públicos de maneira mais eficiente e eficaz (orientada pelo menor custo e pelo resultado), com a participação do indivíduo, do grupo ou da coletividade.
Resultado da sinergia que se estabelece na realização dos serviços públicos de que participam os cidadãos, as organizações da comunidade e o aparato administrativo do Estado que, no seu conjunto, interagem em prol do bem comum.
Estratégia para a realização dos serviços públicos de que participa toda a comunidade, orientada por princípios éticos e pela democracia normativa, com o propósito de manter a sociedade permanentemente mobilizada.
A participação do cidadão ocorre por meio da solicitação dos serviços, de assistência ao Estado ou por ajuste mútuo com o Estado.
Interação do cidadão com o aparato administrativo estatal e/ou delegação de poder pelo Estado. Requer engajamento cívico do cidadão e da comunidade, empowerment e accountability.
Permanente mobilização da comunidade e busca de superação da organização burocrática.
Quadro 1: Modelos de coprodução de serviços públicos baseados em tipologias de participação Fonte: Salm e Menegasso (2010)
Nesta mesma linha, estudos recentes demonstram que, na prática, a forma que assume a coprodução pode variar de acordo com o regime de governança ou do padrão de relação entre Estado e sociedade dominante (BERNIER, BOUCHARD e LÉVESQUE, 2003; ENJOLRAS, 2008). Para esses autores, os regimes de governança podem variar de modelos mais burocráticos até modelos mais participativos.
Modelos de Governança/ Variáveis
Burocrático Corporativo e competitivo
Comunitário
Em parceria
Atores envolvidos
Estado, fundamentalmente
Estado, empresas e agentes de mercado
Estado e comunidades locais
Instrumen- Regulação tos de políti- (intervenca pública cionismo e centralização)
Laissez faire (Estado mínimo, foco nas liberdades individuais)
Filantropia, caridade para com os excluídos
Parceria entre Estado, empresas e agentes de mercado e sujeitos e instituições da sociedade civil
Arranjos institucionais para coordenar atores
Autoridade Lei
Contratos Qualidade Preço
Princípios
Autoridade Hierarquia
Êxito Performance
Visão do interesse público
Benefício Público Oposição entre interesse individual e interesse público Padronização de interesses individuais
Benefício privado Soma dos interesses individuais
Relações pessoais Solidariedade
Confiança
Benefício e interesses coletivos
Incentivo (Estado como mediador, regulador)
Redes Clusters
Deliberação
Pluralidade de interesses (individual, coletivo e geral) Acordo (não redução) dos interesses individuais
Quadro 2: Modelos de Governança e suas variáveis constitutivas Fonte: Adaptado de Bernier, Bouchard e Lévesque (2003) e Enjolras (2008)
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Para distinguir esses modelos, cabe observar elementos como (i) os atores envolvidos; (ii) os instrumentos de política pública colocados em prática; (ii) os arranjos institucionais colocados em prática para coordenar os atores e, (iii) os princípios e visões sobre o interesse público. Essas distinções são detalhadas no Quadro 2:
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Vaillancourt (2009) complementa esse quadro explorando a interface entre modelos de governança e tipos de coprodução (Quadro 3). Segundo esse autor, embora, na prática, ainda sejam dominantes abordagens binárias que privilegiam a relação entre Estado e mercado ou Estado e sociedade civil, o fenômeno da coprodução, em uma perspectiva de parceria, exige uma abordagem tripolar que considera o compartilhamento de responsabilidades entre diferentes stakeholders individuais e coletivos, associando agentes do Estado, do mercado e da sociedade civil. Modelos de Governança
Burocrático
Não há coprodução. Tipos de Co- A política produção pública é gerida pelo Estado e os serviços são providos pelo aparelho estatal e pelos funcionários públicos.
Corporativo e competitivo
Comunitário
Em parceria
Há coprodução com exclusiva participação de organizações do mercado, o que dá origem às parcerias público-privadas.
Há coprodução com participação exclusiva de organizações da sociedade civil. Há um repasse de parte ou de todos os serviços públicos para que sejam oferecidos por organizações da sociedade civil.
Há coprodução com a participação de agentes do Estado, do mercado e da sociedade civil.
Quadro 3: Tipos de coprodução e modelos de governança Fonte: Vaillancourt (2009)
A breve leitura dessas tipologias evidencia que tanto as noções que fundamentam cada concepção de coprodução, como seus processos e seus resultados são variados. Em comum, a defesa de que as relações de coprodução contemplam múltiplas possíveis contribuições à gestão pública contemporânea, entre elas: eficiência, no sentido de melhores resultados a menores custos; ajustamento a demandas específicas e aproximação entre produtores e consumidores; efetividade, no sentido de responsividade ou atendimento a
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expectativas e necessidades; fortalecimento de laços sociais e solidariedade, forjando capital social; fomento e dinamização de redes sociais; emancipação e empoderamento de sujeitos, gerando desenvolvimento político - individual e coletivo; aprendizagem social; compartilhamento de responsabilidades e benefícios; formas inovadoras de prover serviços; inovação e transformação dos sistemas sociais; preservação ambiental e humanização urbana. Em suma, por razões de ordem financeira, fiscal, política, tecnológica, cultural, social, incluindo-se aí crise do Estado de bem estar social, degradação ambiental, desigualdades sociais, sistemas financeiros disfuncionais, enfraquecimento de laços sociais, defesa de novos direitos, tecnologia de informação e comunicação, entre outros, cresce atualmente o reconhecimento de que abordagens tradicionais de serviços públicos não oferecem respostas às atuais necessidades e às potencialidades de inovação social e tecnológica, impelindo busca por inovações na forma de prover serviços públicos e de promover relações entre as pessoas. Visão está que contém uma crítica à chamada velha administração pública, centralizada, burocrática, baseada em sistemas inflexíveis que ignoram relações entre provedor e usuário e possibilidades de serviços mais próximos das necessidades, contando com recursos que as pessoas já possuem e podem colocar a serviço de seu próprio bem-estar e de suas comunidades. Igualmente há uma crítica à chamada nova gestão pública (new public management), por considerar o cidadão prioritariamente como consumidor, privilegiando excessivamente a eficiência econômico-financeira e os resultados produzidos em termos competitivos da lógica de mercado, minimizando a relevância de aspectos políticos, sociais, culturais e ambientais na gestão pública. Por outro lado, tal visão se aproxima da concepção do novo serviço público (new public service) (DENHARDT e DENHARDT; 2003; DENHARDT, 2012), que prioriza a valorização de servidores públicos e a aproximação entre cidadãos e servidores como caminho para a qualidade do serviço público e promoção do interesse público. Uma vez apresentada a noção de coprodução do bem público, é possível apontar algumas questões: de que maneiras esta
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concepção pode afetar práticas de gestão pública e a formação de profissionais para atuar na área pública? Quais as relações entre a produção acadêmica e as tecnologias de gestão em coprodução do bem público e gestão social? Quais relações entre coprodução do bem público e inovação social? Questões estas que serão tratadas a seguir, começando pela apresentação do que entendemos por inovação social. Na sequência, compartilharemos dados e reflexões sobre como é possível e desafiador levar em conta, na formação e na pesquisa em gestão pública ou gestão social, a existência e a hibridação desses múltiplos tipos de coprodução.
2.3 Inovação social na esfera pública
Inovação social pode ser entendida como toda nova abordagem – seja em termos de produtos, práticas, formas de intervenção, relações sociais e mesmo de instituições – implementada para construir respostas a problemas socioambientais concretos na esfera pública (LÉVESQUE, 2006). A temática da inovação tem sido tradicionalmente tratada no campo da economia, primeiramente pelos clássicos (Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx) e, em seguida, por Schumpeter (1983), até os trabalhos mais recentes. Atualmente, porém, temos assistido a uma ampliação do interesse em compreender como ocorrem as dinâmicas de inovação no âmbito da esfera pública. Trata-se de entender em mais detalhes de que modo e em que condições são geradas novas soluções para responder aos problemas públicos, ou seja, como a sociedade cria novos arranjos institucionais e influencia a criação de suas próprias regras e convenções, tornando-se, desse modo, mais autônoma politicamente (BAUMAN, 2000). A ampliação do interesse pelas dinâmicas de inovação social se justifica por diversas razões. A evidência da relevância de experiências colaborativas (como é o caso da coprodução do bem público) na aquisição de novos repertórios de soluções para os problemas públicos é uma delas. Como afirmam Duran e Thoenig (1996a; 1996b), a grande complexidade dos problemas públicos na atualidade exige múltiplas expertises e compartilhamento dos riscos para o seu enfrentamento. O sistema de governança autocentrado
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e hierárquico que estruturava a dominação do Estado num quadro institucional claro cede lugar a um universo acêntrico, caracterizado pela explosão das fronteiras entre público e privado e entre o local, o nacional e o supranacional. Amplia-se, assim, a necessidade de comunicação, articulação, ajustamento mútuo e formação de redes entre agentes públicos e privados, tornando-se muito difícil promover respostas efetivas, de forma isolada. Em paralelo, essas respostas não podem mais ser (re) produzidas de forma homogênea para toda e qualquer situação ou território. As tradicionais políticas redistributivas, pensadas de forma centralizada e que focalizam a diminuição das desigualdades inter e intrarregionais - embora ainda necessárias em países desiguais como o Brasil - são crescentemente acompanhadas de políticas incitativas e/ou constitutivas. Neste caso, busca-se incentivar o envolvimento dos cidadãos na construção de respostas inovadoras para os problemas públicos ou, ainda, definir os procedimentos ou o quadro institucional que serve de contexto para a ação pública. Trata-se de criar “janelas de oportunidades” para o encontro entre problemas, recursos e atores (DURAN e THOENIG, 1996a; 1996b). Neste contexto, a inovação social torna-se um elemento essencial, pois ela possibilita a criação de novas regras e arranjos institucionais ou a recombinação dos existentes para promoção de novas dinâmicas de desenvolvimento. Como afirmam Bouchard e Lévesque (2010), a inovação social é, geralmente, promovida por indivíduos e grupos que questionam e, em certa medida, transgridem o instituído. Portanto, nem sempre, a inovação social é produto de uma ação voluntária ou racional. Ela nasce, na maioria dos casos, da conjugação de impasses estruturais com ações coletivas. As inovações sociais tendem a florescer, portanto, quando há empoderamento dos indivíduos e das comunidades, favorecendo a emergência de atores (individuais ou coletivos) que são sujeitos dos processos de desenvolvimento. Esses “empreendedores institucionais” (FLINGSTEIN, 2009) são capazes de transformar valores e mobilizar pessoas e recursos, construindo acordos para que sejam possíveis formas de intervenção concretas em prol do interesse público. Como destacam Harrisson, Chaari e Comeau Valée (2012),
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a criatividade social depende de indivíduos e coletivos capazes de construir analogias para resolver problemas públicos, o que implica produzir uma nova compreensão sobre a realidade social, mas também uma capacidade de colocar essas ideias em prática. Assim, a inovação social é compreendida não como um processo linear composto por fases sucessivas (pesquisa científica, invenção, inovação, difusão e adaptação), mas sim como resultante de uma série de ajustes que mobilizam uma pluralidade de atores e envolve boa dose de incerteza. A inovação resulta, pois, de dinâmicas geradas pelas interações entre diversos atores, como trabalhadores, cientistas, empreendedores, financiadores, gestores públicos, consumidores, ou seja, cidadãos que formam as diferentes redes sociais que compõem um território (LÉVESQUE, 2006). Esses processos não ocorrem de forma isolada, eles dependem do contexto, e estão inscritos em sistemas sociais que podem favorecer ou dificultar a inovação enquanto motor de transformações sociais. Nesse sentido, compreender as dinâmicas de ação coletiva que produzem inovação social torna-se um importante vetor para entender como ocorrem os processos de institucionalização na esfera pública e qual a influência disso na própria formação do Estado e na sua atuação. Com base em Cefaï (2007, p. 8) entendemos que o conceito de ação coletiva remete a “toda tentativa de constituição de um coletivo mais ou menos formalizado e institucionalizado por indivíduos que buscam atender um objetivo partilhado, em contexto de cooperação e competição com outros coletivos”. Essa problemática da ação coletiva na esfera pública tem sido exaustivamente analisada pelos estudiosos da sociologia e da ciência política, desde o início do século passado. Como afirma CEFAÏ (2007), o campo de estudos sobre as ações coletivas é antigo e vasto, composto por diferentes paradigmas:
Esses paradigmas aparecem não somente como axiomas teóricos, dos quais derivam as hipóteses de pesquisa e de análise, mas que dão origem também a gramáticas da vida pública – matrizes de regras e de categorias que ordenam a cena, em forma e sentido, da ação coletiva, tanto para os atores ordinários ou experts, quanto para os especialistas em ciências sociais e políticas. Regendo as maneiras de ver, de dizer e de fazer, esses paradigmas
Sem nos atermos às particularidades de cada um desses paradigmas, o que fugiria aos objetivos deste texto, podemos afirmar que os estudos sobre as novas formas de ação coletiva na esfera pública têm se ampliado, avançado nas últimas décadas e se mostrado relevantes para ajudar a compreender “as novas dinâmicas democráticas, os novos modos de exercício da cidadania, a constituição dos problemas públicos, a legitimação das intervenções públicas e a instituição de novos regimes de ação pública” (CEFAÏ, 2007, p.8). Em suma, trata-se de explorar possibilidades que mostrem as capacidades e os obstáculos para que cada sociedade estimule a liberdade positiva, de auto-criação, de reexame de juízos, de questionamento das próprias premissas sobre as quais se assentam seus julgamentos. A validade nesse sentido não é dada a priori pela norma ou pela autoridade (validade de fato), ela é construída (validade de jure). Esta última como algo que se busca e nunca é encontrado de forma definitiva (é um processo transitório). “A durabilidade da sociedade é feita de ingredientes transitórios e mortais” (BAUMAN, 2000, p. 88). O que evidencia que a reflexão crítica é a essência de toda autêntica política, enquanto distinta do político no sentido de mero exercício do poder (espaço efetivo para subjugar a validade de fato ao teste da validade de jure) (BAUMAN, 2000). A política, nesse sentido, seria essa capacidade de auto-instituição da sociedade e a sua essência seria a reflexão crítica (a necessidade de reexaminar a validade de jure). Auto-instituição que não para, que não visa uma sociedade perfeita (um final feliz), mas antes uma sociedade livre e o mais justa possível.
3. Coprodução e inovação social na formação em gestão pública
Apresentadas as noções de esfera pública, coprodução do bem público e inovação social, buscamos neste item relacioná-las a nos-
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impõem implicitamente uma ordem das coisas – sobre a natureza dos coletivos, sobre o motivo das pessoas, sobre a racionalidade das suas ações ou sobre suas formas de justificação. ‘Cada perspectiva é uma forma de não ver e também uma forma de ver’ (CEFAÏ, 2007, p. 21).
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sa prática enquanto professores e pesquisadores. Inicialmente, no contexto do curso de administração pública do Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (ESAG/UDESC) e, no próximo item, no V Enapegs. A coprodução do bem público é um eixo norteador do curso de graduação em administração pública da ESAG/UDESC. O desenho do curso fundamenta-se na concepção ampliada de esfera pública, apontando para a possibilidade de que bens e serviços públicos podem ser produzidos pelo aparato estatal e nas suas intermediações com organizações do terceiro setor, movimentos sociais e cidadãos articulados em redes fundadas no capital social, bem como organizações empresariais, sobretudo quando estas concebem seu papel para além da finalidade lucrativa de seu negócio, admitindo papeis e responsabilidades sociais, ambientais e políticas (SALM et.al, 2011). O curso focaliza o reforço de dinâmicas de coprodução em regimes de governança em parceria, com um interesse ampliado por dinâmicas que envolvam diversidade de agentes (Estado, do mercado e da sociedade civil) nas ações públicas e ampliem o seu grau de participação na definição das agendas e na implementação das políticas públicas. Observando a coprodução como fenômeno de inovação social, diretamente ligado a um modelo que clama por uma compreensão do que é a gestão pública a partir dos próprios insumos gerados por seus atores-produtores, é preciso pensar também que esta discussão pode gerar uma multiplicidade de significados e o entrelaçamento de conceitos, como pode ser visto neste artigo, ao mesmo tempo em que produz inúmeras contribuições para a prática da gestão pública. Como experiência curricular acadêmica, isto é, enquanto disciplina do curso de administração pública, trabalhar o conceito de coprodução permite desenvolver diversos “novos olhares” sobre o fenômeno da gestão. Ao transpor as barreiras da produção de serviços públicos simplesmente eficientes, adicionando-se a perspectiva de (co) produzir o bem público, o foco passa a ser o de considerar igualmente importantes aqueles que vão pensar e ofertar serviços públicos e aqueles que irão receber, avaliar e cooperar no processo de produção.
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Boyle e Harris (2009) citam frases recentes de líderes do governo do Reino Unido, atribuindo à coprodução o potencial de tornar os sistemas de provisão de serviços públicos e de políticas públicas mais eficientes, efetivos e responsivos às necessidades das comunidades. O que torna a atenção social mais confiável, valorável e humana, e transformadora de quem a utiliza. Os cidadãos são vistos não como usuários passivos dos serviços, mas como agentes ativos de suas próprias vidas, dotados da capacidade de fazer suas próprias escolhas, orientadas por critérios e necessidades coletivas. Tomar conta de suas necessidades, sua saúde, suas vidas, reconhecendo que seu bem-estar depende do bem-estar da coletividade e do sistema como um todo. Numa perspectiva prática, o trabalho de preparar gestores nesta perspectiva exige revisitar metodologias e práticas de abordagem em sala de aula, e a relação de percepção entre a tensão teoria e prática. A coprodução poderá ser vista inicialmente pela observação de experiências isoladas (a exemplo da ação responsável de uma empresa em parceria com um governo local ou uma organização da sociedade civil) e, a posteriori, a partir do entendimento das relações existentes a nível macro (como a inserção em uma rede de proteção, ou as relações com todos os públicos de interesse, no caso), tende a vir a compreensão mais geral da prática da coprodução. Deste modo, o desafio é provocar a ação reflexiva do estudante para com o conceito, para então repensar seu papel como gestor público. É preciso intensificar os debates e a participação voluntária, ao mesmo tempo em que o processo de aprendizagem teórico-conceitual ocorre. É fundamental que o estudante de gestão pública perceba-se como ator-produtor, a partir de estudos dirigidos e debates teóricos, atividades de campo, experiências vivenciais, desenho de estudos de caso e relações interdisciplinares do conceito, levando à experiência prática. A partir desta perspectiva, é possível enriquecer o painel de contribuições da coprodução para a prática da gestão pública a ser conduzida por esses novos gestores. Se as pessoas simplesmente recebem, consomem ou usufruem de um serviço, sem opinar e sem precisar dar algo em troca, suas capacidades atrofiam. Da mesma forma, o conceito de coprodução,
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ao fomentar uma capacidade reflexiva, de ações que podem, inclusive, transformar sistemas de provisão de serviços e fortalecer laços comunitários, ao mesmo tempo precisa do desenvolvimento nos gestores de valores que permitam a afluência destas capacidades. Ao longo da experiência acadêmica com o conceito de coprodução, é possível perceber que o maior desafio está senão em mostrar que tais vantagens consistem em uma prática que deve partir de uma lógica diferente, e como inovação social, exigirá uma nova postura do gestor, mas também, enquanto estudante, uma sensibilidade maior para a aprendizagem. Mais do que soluções efetivas a menores custos, reconhecimento dos recursos que os cidadãos possuem e pelos quais podem prover serviços para usuários, famílias e comunidades, em parceria com os servidores públicos. O desafio, portanto, está em não apenas gerenciar um processo de mudança, mas o de perceber a razão desta busca, como uma lógica social que desafia as concepções de administração pública consideradas mais tradicionais. Destaca-se ainda, que há certa “urgência” da sociedade que também se predispõe a discutir novos assuntos, que se tornam desafios maiores aos serviços públicos: demandas e expectativas crescentes, novos problemas sociais e redução de orçamentos; o que exige inovação radical, tornando os serviços mais eficientes, efetivos e sustentáveis. Ao mesmo tempo em que exige aqueles que enxerguem e traduzam estas novas demandas, ou gerenciem tais desafios. Apresentados esses desafios com os quais nos deparamos no cotidiano das relações de ensino-aprendizagem na graduação em administração pública e no mestrado em administração, na linha de pesquisa em gestão pública e coprodução na UDESC, relatamos brevemente o trabalho de dois grupos de pesquisa e extensão, os quais lidam diretamente com os conceitos de coprodução do bem público e de inovação social na esfera pública. Um deles é o grupo de pesquisa Politeia, que surgiu em 2004, junto com o nascimento do curso de graduação, denominado Co-produção do bem público sob a ótica da accountability, responsabilidade social e terceiro setor – Politeia. Entre os trabalhos do grupo,
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estão pesquisas e textos que tratam do conceito de coprodução e suas manifestações em diferentes contextos e práticas e um amplo trabalho de pesquisa de campo sobre capital social, realizado em diversas regiões do estado de Santa Catarina. Em 2011, o grupo passou a denominar-se Politeia - Coprodução do bem público: accountability e gestão, focalizando seu interesse no estudo e compreensão da “coprodução de bens e serviços públicos em rede, envolvendo a participação ativa da burocracia pública, de governantes, cidadãos e organizações empresariais e associativas” (POLITEIA, 2011, p.1). Suas linhas de pesquisa atualmente são: i) Accountability sob a ótica da coprodução de bens e serviços públicos, com foco no estudo da accountability como um bem público coproduzido por meio da interação entre mecanismos de controle da sociedade e do Estado; ii) Gestão da coprodução de bens e serviços públicos – dedicada a estudos sobre coprodução de bens e serviços públicos por meio da análise e desenvolvimento de sistemas, processos e instrumentos de gestão organizacional (POLITEIA, 2011). Já o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Inovações Sociais na Esfera Pública (NISP), fundado em setembro de 2010, tem por objetivo gerar, disseminar e intercambiar conhecimentos – além de promover ações de extensão, de forma articulada com o ensino – sobre inovações sociais no campo da administração pública, com ênfase nas áreas da sociedade civil e da economia social, bem como das redes sociais, capital social e desenvolvimento comunitário. Possui como foco o estudo e o apoio a ações coletivas que vêm promovendo inovações sociais na esfera pública (de forma institucionalizada ou não). Isso inclui iniciativas provenientes tanto do Estado, como da sociedade civil e das empresas, além dos novos arranjos institucionais que se constroem na articulação negociada entre esses agentes para promoção do interesse público. Em particular, interessa ao NISP desenvolver estudos sobre redes sociais, empreendimentos que emergem na interface entre as economias pública e privada, além dos novos formatos institucionais que propõem e/ou implementam políticas públicas e promovem o capital social, com vistas a fomentar novos estilos de desenvolvimento.
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As duas linhas de pesquisa do grupo são: i) Sociedade Civil, economia social e interfaces entre esferas pública e privada e; ii) Redes sociais, capital social, empreendedorismo e desenvolvimento comunitário (NISP, 2012). Inclui-se nesta segunda linha estudos interdisciplinares focados no campo da sociologia econômica, sobretudo aqueles ligados às novas formas de empreendedorismo coletivo e institucional e sua contribuição para a promoção de inovações sociais na esfera pública. Atualmente, estão em andamento dois projetos de pesquisa – Conhecendo o investidor social da Grande Florianópolis e; Fishing alone: uma investigação do capital social na comunidade da Costa da Lagoa – e um programa de extensão – o ESAG Comunidade, que visa fortalecer a rede social local e promover o desenvolvimento comunitário na região da Grande Florianópolis. Foi em função dessas e outras concepções e experiências de ensino, pesquisa e extensão em gestão pública no âmbito da UDESC/ ESAG, diretamente relacionadas à gestão social, que se encontrou motivação para propor um eixo temático no V Enapegs, buscando conhecer outras experiências e promover debate sobre elas.
4. Coprodução e inovação social na esfera pública no V Enapegs
A chamada de trabalhos do eixo temático Coprodução e inovação social na esfera pública no 5º Enapegs estimulava a submissão de trabalhos que tratassem de: (i) Coprodução e inovação social em governos locais – fundamentos da coprodução do bem público como noção que orienta a gestão pública e sua relação com a gestão social; experiências de coprodução de bens e serviços públicos no âmbito local de governo, envolvendo participação direta e compartilhada de governos e sociedade; cidadania, participação e democracia em governos locais; inovação social na gestão pública municipal; estruturas e estratégias de coprodução de bens e serviços públicos (redes, parcerias, conselhos, fóruns); participação e coprodução em políticas públicas; inovação social e desenvolvimento local; governança pública
Algumas das perguntas que motivaram a exploração desse eixo temático foram: quais as aproximações entre gestão social e gestão
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para a coprodução e inovação social. (ii) Coprodução e inovação social em experiências de base associativa – coprodução de bens e serviços públicos originadas na mobilização e articulação da sociedade civil em torno de organizações e projetos compartilhados e/ou em rede; modos alternativos de organização social e econômica articuladas à política e à cidadania; cooperativismo e associações de produtores e seu papel no desenvolvimento territorial; economia social e solidária e seus impactos nas dinâmicas de desenvolvimento; tecnologias sociais geradas a partir de experiências de base associativa. (iii) Coprodução e inovação social na prática do investimento social privado – relações entre setor privado, governo e sociedade civil em experiências de investimento social privado; formas de investimento, perfil e dinâmica de atuação dos atores envolvidos; formação de redes de investidores; definição e redefinição teórica e perspectivas para o debate acerca do investimento social privado; organizações da sociedade civil e o investimento social privado; limites e perspectivas do movimento do investimento social privado; setor privado e sua relação com desenvolvimento comunitário; investimento social privado e as questões da sustentabilidade; o papel do Estado na prática do investimento social privado; tecnologia social e inovação social. (iv)Coprodução, inovação e gestão social na iniciativa privada – empresas – papéis e práticas de inovação social para o desenvolvimento; cooperativismo e associações de produtores; redes de franquias; polos, aglomerações e redes empresariais e institucionais; filosofia enxuta, logística reversa e produção socialmente responsável; empreendedorismo e sua relação com novas demandas de ordem social, ambiental e econômica; responsabilidade social empresarial e seus impactos na esfera pública.
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pública, uma vez que esta seja orientada pela noção de coprodução do bem público? De que modo os estudos relativos à gestão social (e seu repertório teórico-conceitual e metodológico) podem contribuir para nossa compreensão de experiências de coprodução do bem público? Em que medida as inovações sociais geradas por essa experiências demonstram capacidade para promover institucionalização de novos saberes e práticas e transformar padrões da esfera pública? Qual o alcance de inovações sociais oriundas da sociedade civil e do mercado na esfera pública? Quais os dilemas da aproximação de diferentes lógicas na articulação entre as esferas privada e pública? Os trabalhos selecionados para apresentação no Eixo 1, listados no Quadro 4, a seguir, trouxeram à tona questões sobre diferentes aspectos que envolvem o debate sobre coprodução na esfera pública, suas perspectivas e seus limites enquanto estratégia para promoção de inovações sociais. Artigos
1. 2. 3. 4. 5. 6. 8. 9.
O Orçamento Participativo (OP), a esfera pública e a pedra no caminho, de autoria de Valdemir Pires e Larissa de Jesus Martins; Participação de crianças e adolescentes na formulação de políticas públicas, de autoria de Frederico Ferreira de Oliveira e Andréia Cristina Barreto; Vivências de empoderamento no exercício da participação social em conselhos gestores de políticas públicas, de autoria de Maria Elisabeth Kleba e Dunia Comerlatto; Participação de Organizações da Sociedade Civil em Políticas Públicas, de autoria de Júnia Fátima Carmo Guerra e Armindo Santos de Sousa Teodósio; A Contribuição da Gestão Social Para os Desafios da Gestão da Sustentabilidade Empresarial, de autoria de Silvia Antonia de Morais e Patrícia Emerenciano Mendonça; Um Estudo das Ações para Divulgar e Consolidar o Balanço Social no Brasil, de autoria de Cássio Afonso Medeiros Lana, Denise Carneiro dos Reis Bernardo, Luiz Gustavo Camarano Nazareth e Fabrício Molica de Mendonça; Uso de mídias sociais nas empresas paulistas de transporte público: uma pesquisa exploratória, de autoria de Fernando do Amaral Nogueira, Mário Aquino Alves e Eduardo Henrique Diniz; Desempenho em Organizações Sem Fins Lucrativos na Perspectiva dos Sujeitos Envolvidos em sua Dinâmica, de autoria de Rejane Roecker e Eloise Helena Livramento Dellagnelo;
10. A Agricultura Familiar Potencializando a Segurança Alimentar: análise dos resultados do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA Doação Simultânea) nos estados da Bahia e Minas Gerais, de autoria de André Rodrigues dos Santos, Naldeir dos Santos Vieira, Palloma Rosa Ferreira e Thiago Teixeira Sant’Ana e Castro 11. O Associativismo na Agricultura Familiar dos Estados da Bahia e Minas Gerais: potencialidades e desafios frente ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de autoria de Venícios Oliveira Alves, Naldeir dos Santos Vieira, Telma Coelho da Silva e Palloma Rosa Ferreira 12. Programa de Honra em Estudos e Práticas em Ecossocioeconomia: estratégia de transformações a partir do território da Microbacia de Rio Sagrado, Morretes (PR), de autoria de Carlos Alberto Cioce Sampaio, Adriana Dias, Flávia Keller Alves e Oklinger Mantovanelli Junior 13. O Caso do Crédito Rotativo Solidário da APJ de Teófilo Otoni-MG: os impactos nos empreendimentos participantes e na organização concedente do crédito, de autoria de Matheus Benedito Moreira Teixeira e Agnaldo Keiti Higuchi 14. Entre Modelos e Figuras: o Problema da Transição nas Empresas “Recuperadas”, de autoria de Fabio Bittencourt Meira 15. Processo de Modernização da Produção de Leite no Brasil e Argentina e Seus Impactos Sobre a Produtividade e o Trabalho Para a Pequena Produção, de autoria de Marcio Borges, Cristina Drumond, Cezar Guedes e Héctor Alimonda; 16. Destinos Indutores do Desenvolvimento Turístico Regional: Há Necessidade de Gestão Social?, de autoria de Érica Beranger Silva Soares, Magnus Luiz Emmendoerfer, Thiago de Melo Teixeira da Costa e Lara Pereira Monteiro; 17. Governança Municipal e Desenvolvimento Local: Estudo de Caso da Indústria Criativa Artesanal Têxtil de Resende Costa - MG, de autoria de Pamela Torres De Oliveira, Gustavo Melo Silva e Magnus Luiz Emmendoerfer; 18. Análise da Estratégia de Desenvolvimento Regional Sustentável do Banco do Brasil sob a Ótica do Desenvolvimento Local e Sustentável: Estudo de Caso do Município de Ervália - MG, de autoria de Viviane Angélica Caetano, Suely de Fátima Ramos Silveira e Alexandre Matos Drumond; 18. Gestão social da saúde pública: existem esferas públicas virtuais em saúde no Brasil?, de autoria de Arlete Aparecida de Abreu, Lucas Silvestre de Carvalho, José Roberto Pereira; 20. Incubação de Cooperativas Populares: um estudo de multicaso em Nazaré/ BA, de autoria de Airton Cardoso Cançado, Naldeir dos Santos Vieira, Ioná Q. Nascimento e Ana Cláudia A. Gonçalves 21. Da Atitude Consorcial à Gestão Social: Eppur si Muove, de autoria de Luiz Roberto Alves; 22. Gestão intergovernamental e Institucionalidade: A Questão na Região Metropolitana de Maringá, de autoria de William Borges, Eliane Barbosa da Conceição e Márcia Ferreira.
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Artigos
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Artigos de Iniciação Científica 1.
2.
Projeto Microbacias II: construindo qualidade de vida no meio rural, Alexandra Dalmolin, Fernanda Matsukura Lindemeyer, Kelly Cristine de Assis Gestão Social em Cooperativas Agropecuárias: análise do trabalho de Organização do Quadro Social (OQS), Alex dos Santos Macedo, Nora Beatriz Presno Amodeo (orientadora), Diego Neves de Sousa
Relatos de Prática 1. 2. 3. 4. 5. 6.
A Experiência da Inserção da Dimensão Ambiental na Disciplina Gestão da Tecnologia da Informação em uma Instituição de Ensino Superior localizada em Salvador-Ba, por Thereza Olívia Rodrigues Soares; Tecnologia Social do Direito à Cidade: Relato De Uma Experiência de Pesquisa Participativa, por Dagmar Silva Pinto de Castro, Sibelly Resch, Cristiane Gandolfi, Thaís Bernardes Nogueira e Antônio Coelho de Souza Nascimento Articulação D3 e a Nova Arquitetura de Apoio às Organizações Sociais do Brasil, por Rubén Pecchio Vergara Inclusão Profissional de Pessoas com Deficiência no Contexto Baiano: Avanços e Desafios na Articulação entre os Atores Envolvidos, por Melissa Santos Bahia A estratégia participativa de monitoramento de projetos territoriais na Serra do Brigadeiro, por Elisa de Jesus Garcia e Marcelo Miná Dias; Programa Comunidade Escola o espaço da gente, por Luciano Martins de Oliveira e Danieli Nunes Pereira.
Oficinas 1.
2.
Negócios Inclusivos: metodologias de análise da contribuição das empresas para a melhoria das condições de vida de populações em vulnerabilidade social, por Armindo S. S. Teodósio, Adriana Furtado, Graziella Comini, Anita Moura, Laura Boaventura de Andrade, Marisa Seoane Rio Resende e Pedro Paulo Gonçalves de Barros. Elaboração de Casos para Ensino em Administração Pública e Gestão Social (APGS) no Contexto da Coprodução e Inovação Social na Esfera Pública, por Magnus Emmendoerfer e Alan Macabeu.
Quadro 4 – Trabalhos do Eixo Coprodução e Inovação Social na Esfera Pública no Enapegs 2011 Fonte: programação detalhada Enapegs 2011
A simples leitura dos títulos dos trabalhos revela a diversidade de temas que foram associados a coprodução e inovação social. Por um lado, tal diversidade revela riqueza de possibilidades teórico-conceituais e, sobretudo, de campos de ação em que tais noções
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revelam-se oportunas para análise das dinâmicas sociais, organizacionais e de gestão. Por outro lado, a diversidade desafia a delimitação e coerência do que se entende por coprodução e por inovação social. Sumarizando o que foi apresentado e discutido, veem-se diferentes conceitos, tipos de estruturas organizacionais nas quais se concretizam as experiências, bem como diferentes finalidades: • Conceitos e temas: participação, empoderamento, gestão social, gestão intergovernamental, administração pública, gestão da sustentabilidade, ambiente e tecnologia da informação, governança municipal, comunicação e mídias sociais, desempenho em organizações sem fins lucrativos, associativismo, ecossocioeconomia, produtividade e trabalho em pequenas produções, desenvolvimento local, desenvolvimento regional e desenvolvimento sustentável, território, crédito solidário, incubação de cooperativas, cooperativismo, qualidade de vida, articulação entre atores envolvidos em certa política, negócios inclusivos. • Organizações nas quais se exercem: conselhos de políticas públicas, grandes empresas e institutos/fundações empresariais, empresas públicas, pequenas empresas, universidades, consórcios de desenvolvimento local ou regional, comitês de microbacias, organizações sem fins lucrativos, pequenos empreendimentos, organizações de crédito solidário, esferas virtuais de promoção da saúde pública, cooperativas agropecuárias, cooperativas populares e incubadoras de cooperativas populares. • Finalidades: elaboração de políticas públicas, definição do orçamento público municipal, elaboração e divulgação de balanços sociais, uso de mídias sociais, promoção da segurança alimentar por meio da agricultura familiar e da aquisição de alimentos, gestão territorial em microbacias, elaboração de programas de crédito solidário, gestão de empresas recuperadas, qualificação da pequena produção, promoção da saúde pública, promoção da qualidade de vida no meio rural, monitoramento de projetos territoriais, apoio a organizações
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sociais no Brasil, inserção profissional de pessoas com deficiência, ensino de tecnologia da informação, fomento das relações comunidade-escola, melhoria das condições de vida de populações em vulnerabilidade social. Destacaram-se discussões sobre experiências localizadas de coprodução e inovação social, tais como: o Programa de Aquisição de Alimentos na Bahia e Minas Gerais; o Projeto Microbacias em SC e PR, o Crédito Rotativo Solidário em Teófilo Otoni, a indústria Criativa Artesanal têxtil de MG; as cooperativas populares em Nazará/ Bahia, a gestão intergovenamental em Maringá, entre outros. Experiências que mostram vitalidade e diversidade de possibilidades de experimentação, de aprendizagem, de inovação. Entre os temas que geraram intenso debate, destacam-se: (i) participação dos cidadãos na esfera pública e na formulação de políticas e programas e nas dinâmicas de desenvolvimento territoriais; (ii) tecnologias sociais e estruturas de apoio à inovação no campo da gestão social; (iii) a contribuição da gestão social para a concepção de novos estilos de desenvolvimento e para a sustentabilidade; (iv) negócios inclusivos e seus impactos em vulnerabilidade social.
Dentre os principais dilemas e desafios levantados, destacam-se:
• As dificuldades da gestão compartilhada e o gap ainda existente entre sociedade civil, Estado e mercado no Brasil; • Nas experiências de coprodução analisadas, muitas ainda são incipientes enquanto promotoras de reais espaços de participação e descentralização das decisões, ressalta-se o despreparo de muitos cidadãos para envolverem-se em processos participativos; • O desafio da gestão social considerar a diversidade dos públicos, ampliando seu potencial de inclusão, em particular das populações mais desfavorecidas; • A necessidade de construção de enfoques teóricos/metodológicos mais consistentes no campo da gestão social que partam de análises comparativas e levem em conta as particularida-
4.1 Perspectivas de pesquisa associando coprodução do bem público, inovação social e gestão social
Das discussões travadas durante o Enapegs no eixo coprodução e inovação social na esfera pública destacaram-se como perspectivas para novos estudos na interface com o campo da gestão social: • A importância de novas tecnologias de comunicação e articulação entre as pessoas, particularmente por meio da internet e, em particular, das redes sociais, como instrumentos que facilitam tanto a coprodução como a inovação social; • O potencial do diálogo e da troca de saberes entre organizações da sociedade civil, governamentais e empresariais, algo a ser potencializado de modo situado, em cada contexto; • O potencial de aproximação entre estudos sobre gestão social e gestão pública, esta compreendida em perspectiva ampliada de esfera pública e do fenômeno da gestão nesse contexto; o que exige aprofundar o estudo sobre a relação entre esfera pública, esfera privada e esfera social; • O papel das universidades como agentes ativos e incentivadores da coprodução e da inovação social na esfera pública, sobretudo ao fomentarem a aprendizagem cidadã, entre acadêmicos e nas relações com a sociedade; • A importância das redes de intercâmbio científico que se expressam, por exemplo, no observatório da formação em gestão social, em fase de constituição no âmbito da Rede de Pesquisadores em Gestão Social, e em pesquisas sobre negócios inclusivos. Podemos compreender a própria produção do conhecimento acadêmico, uma vez articulado com outras formas de produção de conhecimento, como processo de co-
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des de cada empreendimento (associação, fundação, cooperativa), a realidade nacional, e o cenário global (sem cair nos modismos). Nota-se que as palavras-chave do eixo – coprodução, inovação social e esfera pública – foram pouco frequentes nos trabalhos. Não foram abordadas diretamente, mas de modo indireto, associados a muitos outros temas e termos.
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produção de bens e serviços públicos. Que serão tanto mais ricos quanto gerarem oportunidade para engajamento e compartilhamento de distintos saberes, expectativas e visões de mundo; • Gestão social como intermediadora de relações de coprodução, propulsora da inovação e dinamizadora e enriquecedora da esfera pública. Compreendida a gestão social como gestão concertada entre diversos atores da sociedade, como processo de deliberação horizontalizado e participativo, de decisão compartilhada, no qual todos têm direito à fala, à participação social, privilegiando-se a dimensão dialógica e relacional da gestão, sem nenhum tipo de coação (TENÓRIO, 2002; 2004; 2012). Além de manifestar-se, todos têm direito ao engajamento na definição e na produção das ações e políticas públicas. Ou, ainda, gestão social como modo especial de problematizar e de gerir realidades sociointeracionais complexas, associada a uma nova configuração do padrão de relações entre Estado e sociedade para o enfrentamento dos desafios contemporâneos (BOULLOSA e SCHOMMER, 2008, 2009). • O potencial de inovação da coprodução do bem público e da gestão social como promotoras de emancipação, ao contrapor-se a modos de gestão fundamentados em hierarquia, controle e racionalização, ou modos de gestão que veem o cidadão apenas como consumidor, e sim privilegiando o entendimento esclarecido como processo, a transparência como pressuposto e a emancipação enquanto fim último (CANÇADO, TENÓRIO E PEREIRA, 2011).
5. Considerações Finais
Nossa disposição a partir do que aprendemos no Enapegs é a de seguir aprendendo, cientes de que há muito a descobrir, a experimentar, a coproduzir, a inovar. Inclusive em nossas práticas como pesquisadores, cidadãos e gestores sociais que estamos aprendendo a ser. O que só pode acontecer, de acordo com a concepção que apresentamos, de maneira compartilhada com outros, da academia e de fora dela, especialmente com os praticantes que estão na linha
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de frente, fazendo acontecer a coprodução e a inovação. Exige-se, pois, dos estudiosos do tema engajar-se em contextos sociopráticos de inovação e aprendizagem situada. Em relação aos termos aqui enfatizados – coprodução do bem público, inovação social, esfera pública e gestão social – observa-se que são de certo modo genéricos, abrangendo diversidade de práticas e possibilidades de interpretação, o que ao mesmo tempo constitui sua riqueza, seu potencial, e seu desafio no que se refere à conceituação e aplicação. Quanto às novas concepções de gestão pública, apesar de encontrar limitações nos procedimentos de sua constituição, especialmente no ideal de sua universalização – limitações estas identificadas na exclusão social, no despreparo de lidar com os códigos oficiais institucionalizados, na mistificação (assumindo uma quase forma metafísica) das informações, na linguagem jurídica rebuscada e no ceticismo político de maiorias – podem ser vitalizadas por uma nova geração de indivíduos e mecanismos que são forjadas em novas relações de poder e em novas relações de ensino-aprendizagem. Estas novas formas de poder e de aprendizagem podem surgir já na infância, como frutos de uma tradicional desestruturação para uma nova reestruturação familiar e de novas relações tecnológicas. Para este novo ser humano, enquanto os espaços são diminutos, os conhecimentos fluem mais rápidos; enquanto os empregos desaparecem, as formas inovadoras e criativas de suprir o conhecimento e a existência emergem; enquanto os espaços para direcionar as ações públicas do Estado em benefícios privados são elitizados e sofrem um constante cerceamento, as posturas de honestidade e de solidariedade ecoam em multidões sedentas por um senso de justiça. Nestas gerações conectadas em redes, de todos os tipos e espécies, com a curiosidade aguçada como predisposição para a descoberta e a pesquisa, as novas formas de existência política, econômica, social, cultural, artística e educativas são gestadas. Há um circular constante de curiosidades, de descobertas, de exigências, de necessidades, de aspirações. Da democracia da palavra, à democracia do pão. Da democracia da arte, à democracia
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da mobilidade urbana. Da democracia da pesquisa, à democracia da estética. Da democracia do exercício privado à democracia da produção do bem público. Estas gestações em rede nem sempre são organizadas, se constituem sem liderança definida e se moldam com propósitos dialógicos em constante consolidação e reconfiguração enquanto trajetória. Pode-se supor que exatamente por seu formulário não estar composto a priori, que estas gerações de diversas idades, de diversas origens, de diferentes crenças e raças, de diversas classes sociais e categorias profissionais e de diferentes ideologias, sentem-se motivadas para fazer uma construção conjunta com procedimentos mais ou menos democráticos. Talvez estejamos na fronteira de um novo tempo, de uma nova concepção de Estado ou de uma nova gestão. Os tradicionais modelos arbitrários, burocráticos, opacos, omissos, pouco acessíveis e pouco democráticos podem ser superados por ações políticas e modelos de gestão da coisa pública coproduzida e corresponsabilizada, transparente, acessível e controlada pelo cidadão. Cidadão este que se sente corresponsável pelo bem público, produzindo e usufruindo, de forma compartilhada e solidária, o produto gerado pela sociedade da qual ele é parte integrante e indissociável.
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Armindo dos Santos de Sousa Teodósio1 Luciano A. Prates Junqueira2 Mário Aquino Alves3 Patricia Mendonça4 Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias5
Nos últimos anos, uma série de discussões e textos, tanto científicos quanto ligados à práxis da Gestão Social, tem colocado o fenômeno dos movimentos sociais como tema central para o entendimento das perspectivas de avanço da cidadania, democracia, luta por direitos e construção de identidades nas sociedades contemporâneas. Quer seja nos países centrais, quer seja nas nações periféricas ou marcadas pelo desenvolvimento econômico e consolidação democrática tardios, movimentos sociais são compreendidos como sinônimo de avanço e maturidade cidadã na construção de sociabilidades em contextos complexos. No entanto, a profusão de textos, eventos e discursos enfatizando a relevância dos movimentos sociais encobre uma série de dificuldades ligadas à sua teorização e à construção de quadros compreensivos que expliquem sua dinâmica, papel e perspectivas nas sociedades contemporâneas. Essa realidade também encobre igual número de desafios relacionados à interação entre múltiplas organizações da sociedade com atores governamentais e empresariais privados na construção de políticas, programas e projetos de intervenção na realidade social, que sejam
1 Armindo dos Santos de Sousa Teodósio é professor do Programa de Pós-Graduação em Administração da PUC Minas. Doutor em Administração de Empresas pela EAESP-FGV. 2 Luciano A. Prates Junqueira é professor titular da FEA-PUCSP e coordenador do NEATS – Núcleo de Estudos Avançados do Terceiro Setor da PUCSP. Doutor em Administração da Saúde pela USP. 3 Mário Aquino Alves é professor adjunto da Fundação Getulio Vargas SP e coordenador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo. Doutor em Administração de Empresas pela EAESP-FGV. 4 Patricia Mendonça é professora do Centro Universitário da FEI e colaboradora da EAESP-FGV. Doutora em Administração Pública pela EAESP-FGV. 5 Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias é professora do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo - EACH-USP. Administradora e Pedagoga. Doutora em Ciência Ambiental pelo PROCAM-USP. Doutora em Administração pela EAESP-FGV.
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Decifra-me ou te devoro! As armadilhas da teorização sobre movimentos sociais em Gestão Social
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capazes de efetivamente garantir novas formas de desenvolvimento social e sustentabilidade. Se o gerenciamento cotidiano no campo da Gestão Social se depara com as ambiguidades, labirintos e armadilhas que a idealização dos movimentos sociais e as redes de ação coletiva impõem, também, no campo científico a introdução do tema é delicada. E, infelizmente, na maioria das vezes resulta em teorizações frágeis, marcadas pela dualização e dicotomia interpretativa de um fenômeno que parece exigir um olhar multidisciplinar, dialético, fundado na complexidade e na análise efetivamente crítica de um objeto de análise. Até mesmo pelo forte vínculo que o campo da Gestão Social no cenário brasileiro mantém com a produção científica em Administração, quando acontece a crítica, muitas vezes peca pela destruição e demonização do objeto de análise. É assim quando se discute racionalidade nas organizações, responsabilidade social empresarial e participação no ambiente organizacional e na esfera pública, para nos atermos apenas a alguns dos tantos objetos de análise ora “santificados” pelas análises administrativas, ora “demonizados” por pretensas análises críticas em Gestão Social. Os estudos sobre movimentos sociais, historicamente no Brasil e na América Latina, situam-se no campo das ciências sociais, conforme nos lembra Maria da Glória Gohn. Diferentemente de outras partes do mundo, nas quais as reflexões sobre sociedade civil e as organizações que nela se constituem congregam pesquisadores de diferentes campos científicos, os estudos sobre movimentos sociais fundamentalmente se balizaram nas discussões provenientes das análises sobre mobilização e ação coletiva dentro das teorias sobre ação social. Ainda que com grande sinergia com o campo da política, só em algumas obras e em certos casos percebe-se um entrelaçamento mais consistente e vigoroso da teoria social com as narrativas pautadas pela sociologia política e pelas discussões acerca da cultura política. E esse vigor só começa a se manifestar recentemente, sobretudo no contexto da produção científica brasileira. Esse cenário tem se alterado significativamente nos últimos anos, com a dominância de interpretações que assumem o surgi-
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mento dos chamados “Novos Movimentos Sociais” como um fato das últimas três décadas, colocando em xeque os modelos interpretativos baseados em uma sociedade organizada a partir do conflito entre capital e trabalho. Isso é o que leva autores como Alain Touraine a destacar o caráter mais fortemente cultural desses “Novos Movimentos Sociais”, pautados pela ampliação da agenda e do repertório de lutas por inclusão social e reconhecimento de identidades. Se essa realidade não deixa de ofuscar toda uma tradição de teorização que se assentava nos conflitos de natureza econômica e ideológica em torno das disputas entre capital e trabalho, parece ser também inconsistente deixar de lado alguns elementos dessa dinâmica que dialeticamente podem se manifestar na ação coletiva dos movimentos sociais contemporâneos. A articulação entre os estudos sobre “Novos Movimentos Sociais” e suas agendas identitárias e culturalistas de lutas e as mobilizações por formas mais decentes e justas de inserção no mundo do trabalho parece ser para Michael Burawoy um dos mais promissores caminhos de teorização contemporâneos. Tarefa essa ainda por ser construída e, por que não, pelo campo de estudos e discussões da Gestão Social!? No entanto, para tal, é necessário deixar de lado o apego a noções marxistas tradicionais, fato ora feito de forma apressada por muitos que produzem textos em Administração, ora tomado como heresia por aqueles que ainda explicam o mundo a partir das categorias centrais do pensamento marxiano. Outra característica que demarca formas e abordagens distintas sobre o mesmo fenômeno é a teorização sobre movimentos sociais que se desenvolve a partir dos países centrais e aquela originária de países periféricos, notadamente na América Latina. Para David Lewis, essa é uma demarcação ainda muito presente nas discussões sobre Gestão Social, denotando ênfases diferentes, que poderiam convergir, mas que permanecem distantes nos estudos que são gerados tanto no chamado “Norte” quanto no “Sul”. A produção científica dos países centrais se preocuparia basicamente com as formas, dinâmicas e ações de mobilização e acesso a recursos desenvolvidas por movimento sociais e organizações da sociedade civil, enquanto a teorização latino-americana manteria o foco na
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questão da politização, conquista e ampliação de ambientes democráticos de deliberação e construção de direitos e políticas públicas e acesso à cidadania, sobretudo em sua dimensão política. Como que seguindo um passo dependente das discussões provenientes da sociologia e da ciência política, o campo da Administração no Brasil observou nas últimas décadas o vertiginoso crescimento de análises sobre organizações não-governamentais. Tais teorizações, na sua grande maioria, fundamentam-se em pressupostos de teorias sobre movimentos sociais típicas dos estudos desenvolvidos nos Estados Unidos. Não é por mais que uma sensação muito expressiva que parece dominar o ambiente de discussão sobre Terceiro Setor e ONGs no campo da Administração brasileiro, o de que tudo se resume a estratégias e acesso a recursos. Por outro lado, quando surge a crítica a essa visão despolitizada da atuação das ONGs, na maioria das vezes, vem para desconstruir e desestruturar reflexões sobre formas de organização, articulação e hierarquização de recursos e pessoas em movimentos sociais. O resultado de tal embate, ao contrário do que se essa crítica pretensamente avançada e exigente se propõe a realizar, é o antagonismo e a dualização, reforçando críticas e polarizações em contrário. No entanto, a teorização vigorosa, na maioria das vezes, subsiste naquilo que ultrapassa dualizações e dicotomias. Um desafio nesse ponto é entender movimentos sociais como estruturas organizacionais, mas também como formas de articulação política e ação coletiva, operando uma mescla de teorizações de diferentes campos e epistemologias. Porém, dada a fragilidade de fundamentação teórica que marca a formação de muitos pesquisadores em Gestão Social provenientes da Administração, a articulação de diferentes epistemologias acaba virando um mosaico malconstruído, muito distante da tão desejada, e tão difícil de operar, bricolage. O resultado desse quadro é, por exemplo, o uso de teorizações comportamentalistas para analisar motivações de ação voluntária em movimentos sociais cuja articulação se pauta muito mais na convergência ideológica e identitária, ou até mesmo, a partir de
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frames de ação coletiva. Tais discussões, invariavelmente, apontam uma fragilidade organizativa dos movimentos sociais, oferecendo uma narrativa teórica exageradamente normativa (dever ser), com inúmeras receitas em direção ao sucesso gerencial. O revide vem através de outros artigos e discussões que se propõem a resgatar a análise dos movimentos sociais do lugar despolitizado e banal a que foram remetidas por esse tipo de estudos, dicotomizando e polarizando as discussões. Novamente, a dificuldade parece estar em compreender os movimentos sociais como formas organizativas que não querem ser formas organizativas, como bem destaca Tânia Fischer, mas que acabam sendo essas duas coisas simultaneamente. No entanto, uma série de discussões em Gestão Social apresentam os movimentos sociais de forma saudosa daquilo que nunca foram e outra série de análises de forma saudosa daquilo que já foram um dia, mas desvaneceu-se. Ao tomarmos o campo de estudo da Gestão Social como multidisciplinar e centrado na compreensão de processos socialmente construídos, situados historicamente e constituídos de tensão entre diferentes projetos de desenvolvimento social, abrimos uma porta para uma reflexão menos descritiva e mais dinâmica acerca dos movimentos sociais e suas formas operativas. A interlocução da Gestão Social com as perspectivas de análise centradas nos movimentos sociais oferece potencial para elaboração de modelos de análise dinâmicos, que busquem não apenas situar a Gestão Social em espaços multiescalares de articulação da sociedade civil, Estado e mercado, mas também traçar as conexões entre os diferentes formatos organizacionais envolvidos, em suas dimensões simbólica e estratégica, sem que se perca de vista sua inserção em um contexto permeado por contradições e conflitos e fortes desigualdades, que irão delinear a construção de alternativas de ação coletiva. Produzir conhecimento sobre movimentos sociais na gestão social a partir da realidade brasileira impõe o imperativo analítico de não se desconsiderar as desigualdades que estruturam a esfera pública, sejam eles de ordem econômica, política, social, cultural ou mesmo ambiental. A gestão social não pode se ater somente à análise de formas
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institucionalizadas de articulação. Para tanto, as narrativas interpretativas sobre movimentos sociais precisam dar conta simultaneamente de formas que estariam localizadas no nível associativo local, envolvendo fenômenos relacionados ao associativismo local, associações civis, iniciativas comunitárias e sujeitos sociais envolvidos com causas sociais ou culturais do cotidiano, ou voltados a essas bases, como são algumas organizações não-governamentais; e também para formas interorganizacionais, dentre as quais se destacam os fóruns da sociedade civil, associações nacionais de ONGs e redes de redes, que buscam se relacionar entre si para o empoderamento da sociedade civil, representando organizações e movimentos do associativismo local. Além disso, precisam problematizar essa ação coletiva a partir dos laços que guardam com mobilizações denominadas de redes de movimentos sociais, que se articulariam na esfera pública, a partir da mobilização local e interorganizacional. Essa é o legado interpretativo que Scherer-Warren nos oferece, mas que, no entanto, parece passar despercebido para muitos que buscam problematizar a ação de movimentos sociais na Gestão Social. Quando muito, essa incorporação é feita de forma incompleta e superficial, mais parecendo uma obrigação formalística para aprovação de artigos em eventos e periódicos científicos do que sua apropriação efetiva como fundamentação teórica e metodológica que o é por definição. Nesse ponto é que se abre a discussão para a busca de uma compreensão da intersetorialidade para além de lugares comuns. Tida atualmente por diferentes modelos compreensivos da gestão social como estratégia fundamental para se ter uma visão global dos problemas existentes, permitindo, assim, um trabalho integrado entre os diversos atores da sociedade civil, do Estado e do mercado imbricados em um território, nos lembram Junqueira e também Alves que é a partir dela que novas práticas sociais e estruturas de governança se formam. Porém, a maioria das teorizações que ora se apresentam, entrelaçando o tema dos movimentos sociais com a intersetorialidade, ora celebram as parcerias, convergências e harmonias administrativas, que mais lembram as harmonias administrativas de Taylor e Fayol tão precisamente problematizadas por
• Redes e parcerias intersetoriais: análise da interação entre identidades, imagens e reputações organizacionais na construção da relação entre organizações dos movimentos sociais, outras organizações e a audiência (outsiders do campo).
• Movimentos sociais e políticas públicas: análise do engajamento para a construção de políticas, enfocando as relações de conflito/ cooperação envolvidas e suas estruturas de governança e controle social; • Análise organizacional de movimentos sociais, articulando
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Tragtenberg, ora denunciam que algo de podre se irradia no reino da governança, visto que o Estado colonizaria a sociedade civil, que se venderia para o mercado. Se isso não deixa de ser verdade, também não o é verdade por completo. Mas, para avançar para além desse lugar-comum seria preciso romper com noções “santificadoras” de esfera pública provenientes de pressupostos habermasianos e também com noções fatalistas de espaço público derivadas da compreensão arendtiana. Infelizmente, pouco disso se apresenta nas discussões sobre Gestão Social na realidade brasileira. Os desafios de uma teorização vigorosa no campo da Gestão Social estão em captar estes processos organizativos, que não se inscrevem em institucionalidades, sejam elas legais ou promovidas pela organização interna de determinada associação. Ao mesmo tempo em que não podem deixar de lado a articulação com esta mesma institucionalidade, uma vez que o próprio processo organizativo dos movimentos, bem como a construção de alternativas para atender a suas demandas envolverão a mobilização de recursos e a emergência de lideranças e estruturas, formais e informais, que irão penetrar nos arranjos institucionais existentes. Nesse quadro, se apresentam alguns eixos de discussão que carregam possibilidades e também grandes riscos para o avanço da compreensão dos movimentos sociais na Gestão Social. No entanto, esses riscos são necessários e como que tencionando esse campo de reflexão, podem levar a avanços compreensivos. São eles, a saber:
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interpretações clássicas em estudos organizacionais desde, por exemplo, Selznick e suas discussões sobre liderança e abertura tecnocrática, até análises contemporâneas que resgatam, por exemplo, a relevância da compreensão tocquevilliana de sociedade e democracia para dialogar com as teorias sobre estruturas organizacionais;
• Participação vista como fenômeno dual e contraditório, envolvendo processos organizativos internos e relações com instituições externas ao aparato organizativo dos movimentos sociais; e compreendida como ação tencionada por tendências ao insulamento tecnocrático e à abertura organizacional, recorrendo para tanto desde a literatura sobre teoria da burocracia até os estudos sobre participação em políticas públicas.
A teorização sobre movimentos sociais na Gestão Social brasileira compõe um quadro que inspira preocupação e certo desapontamento com os caminhos da produção científica, mas também e, ao mesmo tempo, convida a reflexões para além das áreas de normalidade que dominam a construção de conhecimento em Administração e, infelizmente, também em Gestão Social. Este pequeno texto, escrito com a pretensão de ter o status de ensaio, longe de oferecer respostas definitivas a esses desafios analíticos, espera sim despertar o leitor para a busca da “imaginação sociológica”, tão vigorosamente discutida por Wright Mills, e fazer da discussão sobre Movimentos Sociais e Redes um tema efervescente nos Enapegs que virão.
Referências
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HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
JUNQUEIRA, L. A. P. Gestão Social: organização, parceria e redes sociais. In: CANÇADO, A. C. et al. (Orgs.). Os desafios da formação em gestão social. Palmas: Provisão, 2008, p.87-103. MILLS, W. C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.
SCHERER-WARREN, I. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 21, p. 109-130, 2006. SELZNICK, P. Foundations of the theory of organization. American Sociological Review, v. 3, p. 25-35, 1948. TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987.
TOURAINE, A. Pensar outramente: o discurso interpretativo dominante. Petrópolis: Vozes, 2009. TRAGTENBERG, M. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1974.
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GOHN, M. G. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
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Carolina Leão1 Cristiano de França Lima2 Igor Vinicius Lima Valentim3 Júlio César Andrade de Abreu4
Fonte: www.wordle.net
1 Carolina Leão é doutoranda em Sociologia Económica e das Organizações no ISEG/UTL (Portugal) e UFRPE (Brasil). Bolseira da FCT. Em Portugal, é membro do Coletivo de Estudos, Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop. e do SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações do ISEG/UTL. No Brasil, é membro do “Teoria e Prática - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa” (CNPQ). 2 Cristiano de França Lima é mestre e doutorando em Sociologia pela Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Bolseiro da FCT. Em Portugal, é membro do Coletivo de Estudos, Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop. No Brasil, é membro do “Teoria e Prática - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa” (CNPQ) e Professor da Faculdade Escritor Osman da Costa Lins (FACOL). 3 Igor Vinicius Lima Valentim é doutor em Sociologia Econômica e das Organizações pelo ISEG/UTL (Portugal). Em Portugal, é membro do Coletivo de Estudos, Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop. e do SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações do ISEG/UTL. No Brasil, é líder do “Teoria e Prática - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa” (CNPQ) e Professor da UFF. 4 Júlio César Andrade de Abreu é doutor em Administração pela UFBA. Em Portugal, é membro do Coletivo de Estudos, Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop. No Brasil, é membro do “Teoria e Prática - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa” (CNPQ) e Professor da UFF.
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Como viver a participação política? Os desafios de novas democracias e economias na (re) definição da esfera pública
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1. Introdução No Brasil contemporâneo é possível notar uma marcante separação entre política e economia, naturalizada para todos os setores da vida. Essa separação é característica do modelo de democracia liberal hegemônica (SANTOS, 2002; WOOD, 2003) e pertinente àqueles que buscam (re) produzir o status quo atual, por se beneficiarem enormemente dele. Descola-se economia de política, gerando um processo de insolvência democrática, no qual todas as dimensões da vida e da coletividade são privatizadas e ficam subordinadas ao mercado. Naturalizam-se os fins e desprezam-se os meios. A lógica capitalista, hoje, não domina apenas os meios de produção: capitalismo cognitivo (LAZZARATO, 2006), que produz desejos, vontades e conquista corações e mentes (GRAMSCI, 1978). A democracia hoje dominante não estimula e até mesmo inibe a participação efetiva das pessoas. Embora nos discursos o mundo pareça cada vez mais participativo, a participação é entendida como atuação por meio de representantes, o que acaba por (re)produzir uma esfera pública constituída por poucos, ou seja, em última instância, privada, na qual o que deveria ser público é muitas vezes apropriado de modo privado. Interesses públicos e privados não podem ser claramente distinguidos. Não se discute política como relacionada à organização das pessoas em sociedade, com suas finalidades e meios para atingi-las. Ora, mas se nem todos participam ativamente da construção dos rumos do Estado e se nem todos vivem essas decisões, como (re)definir os contornos entre o público e o privado quando vive-se uma democracia representativa limitada apenas ao voto? Como redefinir a esfera pública a partir de outras concepções de democracia que não aquela representativa, hoje dominante no Brasil? Parece necessário viver! A partir das problematizações elaboradas, este ensaio tem como objetivo apontar para a necessária busca de experiências que estimulem a vida, ao construírem formas diferentes de economia e de democracia daquelas hoje dominantes, suscitando um questionamento: em que medida elas contribuem/ podem contribuir para redefinições da esfera pública?
2. A lógica capitalista: produção de uma hegemonia e influência sobre os valores e a vida
Vivemos a hegemonia da lógica capitalista, fundada sobre os interesses individuais, a propriedade privada e o lucro, valores que têm sido gradualmente transpostos e insistentemente naturalizados em todas as esferas relacionais da vida no planeta. Essa lógica também toma como bases o desenvolvimento técnico-científico, a falácia do desenvolvimento econômico como solução para todos os problemas, a acumulação irrestrita do capital e a mercantilização de todas as esferas da vida: tudo se pode comprar e tudo está à venda. Estimulam-se diariamente, na maior parte de nossas relações, o individualismo, o utilitarismo e a competição: contribuímos diariamente para a destruição da vida de muitos e do próprio planeta do qual somos parte. O conceito de hegemonia em Gramsci é desenvolvido através
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Este ensaio é resultado da análise e reflexão do coletivo que coordenou o eixo Democracias” na construção de “outras economias”: trilhas para a redefinição da esfera pública no V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social. O conteúdo elaborado tem em conta os textos apresentados e os respectivos debates realizados nos grupos de trabalho (GTs) contemplados no eixo. Começamos discorrendo a respeito da lógica capitalista contemporânea, seus valores, e a construção de uma hegemonia. Abordamos a investida de mercantilização de todas as esferas da vida, não se limitando à produção de bens e serviços, mas também ao “domínio” das almas e mentes. Em seguida, partindo da percepção do Estado como uma instituição gerida por uma classe (ou fração de classe) hegemônica, problematizamos seu papel de protetor e sua relação, na atualidade, com a sociedade, na (re) criação de instrumentos democratizantes “da” e “na” esfera pública. Por último, à guisa de conclusão, apontamos esta esfera em pleno movimento, num processo contínuo de (re) configuração por meio da inserção de novos sujeitos sociais, tais como os movimentos sociais e políticos e as mais variadas práticas socioeconômicas.
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da ideia de uma liderança ou direção exercida no meio político, cultural, intelectual, econômico ou social por uma classe, um bloco de classes ou mesmo um Estado-Nação. A hegemonia é constituída por um conjunto de ações variadas de cooptação, domínio pela força ou pelo consentimento, através de diversas instituições da sociedade civil ou do Estado (ALMEIDA, 2002). Neste contexto, forma-se um bloco de alianças que representa uma rede de instituições, de relações e ideias na qual uma classe ou fração de classe dominante se torna dirigente (GRAMSCI, 1978) e procura desenvolver respostas aos problemas da sociedade de acordo com seus interesses. Gramsci (1978) coloca que a sociedade civil e a sociedade política (Estado) representam a função hegemônica do grupo da elite dominante, o qual obtém um consenso espontâneo das grandes massas. Este é derivado da posição “histórica” de prestígio daquela elite e ao mesmo tempo - dentro de uma visão derivada do pensamento de Karl Marx - pela função desempenhada no mundo da produção. Quando este consenso espontâneo falha, existe todo um aparato de coerção estatal que garante “legalmente” a disciplina na sociedade. Ou seja, não é difícil perceber que se busca cotidianamente a construção de um consenso espontâneo da maioria das pessoas com relação aos mais diversos assuntos, ao mesmo tempo em que se (re) produz um aparelho estatal coercitivo, para assegurar que tudo corra como planejado pelas elites dominantes5. Entretanto, quando alguns setores da sociedade não se identificam com os apontamentos da hegemonia estabelecida, podem ocorrer conflitos, contrariedades e reivindicações (SOUZA, 2005). Gramsci (1978) defende que para se derrubar ideias e valores arraigados não basta uma revolução armada, também é imperativo ter uma revolução de pensamentos que comporte uma transformação social baseada em novos valores culturais. Eagleton (1997) 5 O sociólogo norte-americano Franklin Harry Giddings engendrou a expressão “consentimento sem consentimento” que revela o consenso da população sobre a ordem determinada enquanto controle exercido por uma classe sobre a outra. Segundo ele, [...] se em anos vindouros (o povo conquistado) vier a admitir que a relação disputada fora pelo mais alto interesse de todos, será possível sustentar razoavelmente que a autoridade foi imposta com o “consentimento dos governados”, da mesma forma quando um pai impede a criança de correr para uma rua movimentada (citado por Chomsky, 1997, p. 260).
6 Os recursos técnico-científicos engendrados no capitalismo, por sua natureza, não atendem aos interesses das diversas experiências e práticas socioeconômicas balizadas por princípios distintos daqueles da lógica capitalista. Precisam ser reinventados para que possam estar a serviço de interesses diferentes.
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mostra a atualidade do pensamento gramsciano e apresenta a extensão das ações necessárias para superar uma hegemonia constituída, alertando que não basta a ocupação de fábricas ou mesmo o confronto direto com o Estado na contemporaneidade. O que deve ser afrontado, segundo Eagleton (1997), é toda a área cultural em que a hegemonia mantém domínios sobre valores, costumes, discursos, práticas e rituais. Nesta via, é relevante salientar que este afrontamento não ocorreria somente a partir de um entendimento relacional destes domínios, mas também considerando a inexistência de um lugar privilegiado, a partir do qual seria possível compreender definitivamente as relações que circulam no mundo (VEIGA-NETO, 1995). Por enquanto, não é difícil notar o contínuo desenvolvimento de novos meios técnico-científicos, potencialmente capazes de resolver problemas de nossas sociedades. Porém, ao mesmo tempo, mostra-se evidente a incapacidade das forças sociais organizadas e das formações subjetivas constituídas em se apropriarem desses meios para torná-los operativos (GUATTARI, 1990), ou seja, para usá-los de forma a efetivamente solucionar os mencionados problemas6. Félix Guattari (1990) qualifica o atual estágio do capitalismo como Capitalismo Mundial Integrado (CMI), já que tende a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de subjetividade, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia. Portanto, o capitalismo como lógica hoje dominante não está ligado exclusivamente à produção de bens e serviços, mas ele próprio é um modo de produção de lógicas, de mundos. Gilles Deleuze (1992) retrata bem isso quando afirma que o capitalismo hoje não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo e à China, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. Vivemos um capitalismo que não se limita a comprar matéria-prima e vender produtos acabados, nem a comprar produtos acabados e montar peças destacadas.
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Na versão terrestre do paraíso prometido, o capital substituiu Deus na função de fiador da promessa e a virtude que nos faz “merecê-lo” passou a ser o consumo (ROLNIK, 2006). Consequentemente, quem não consegue obter êxito na competição do mercado é esmagado pelas leis normativas da sua racionalidade instrumental e utilitária. O espaço-tempo da vida cotidiana dos indivíduos e dos grupos está sendo cada vez mais objeto de mercantilização: “tudo se vende e se compra no mercado da vida quotidiana: amor, trabalho, honra, dignidade, justiça, violência, crime, bens e serviços de consumos vários, órgãos do organismo humano, morte, etc.” (FERREIRA, 1997, p. 23). Nessa linha de pensamento, Lazzarato (2006, p. 88) afirma que, nos países ocidentais, o assalariamento permanece sendo a forma dominante sob a qual o capitalismo explora a cooperação e o poder de invenção das subjetividades quaisquer. A condição de assalariamento permeia uma relação de poder que logrou o consenso espontâneo da sociedade, por possibilitar uma integração por subordinação dos cidadãos (FRANÇA-LIMA, 2008). Vivemos e construímos sociedades de consumo, nas quais os valores predominantes dizem respeito ao “ter”. Cultivamos valores que enfatizam o competir, o dominar e o descartar, para além da vitória do mais forte e mais bem preparado. Essa cultura de massa “não oferece condições ao ser humano de enxergar-se internamente, de questionar-se sobre valores. A tendência é repetir modelos sem indagar-se” (ZANETI, 2006, p. 82). Uma parte da população passa a achar que não existem alternativas fora do que é apresentado e difundido hoje como natural. Cada vez mais somos perpassados por uma dolorosa percepção de impotência para curarmos as misérias que enxergamos. Mas o capitalismo não é algo exterior a nós: somos nós mesmos que o construímos diariamente. É possível considerar que, para que se tornem espontâneos no cotidiano, os valores precisam ser cultivados como aspectos do nosso viver (VALENTIM, 2011). Precisam ser “cotidianizados”. Entretanto, a lógica capitalista busca naturalizar em nós apenas alguns valores, em detrimento de outros. Questionar os valores dominantes da lógica capitalista e/ou
7 A teoria do Fim da História retomada ao final do século XX, defendida por Francis Fukuyama, preconiza tal fatalidade ao defender que o capitalismo e a democracia liberal constituem o ponto culminante da evolução histórica da humanidade.
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cultivar valores diferentes destes no nosso cotidiano exige um esforço redobrado. Muitas vezes somos estimulados a pensar que o melhor a fazer é nos calarmos e interiorizarmos os valores que são considerados como os mais desejáveis para nós, a partir de outrem. Portanto, como Lazzarato (2006) salienta, a criação e a efetuação de mundos possíveis passam a ser os objetos da apropriação capitalista. Dito de outra maneira, a empresa que produz um serviço ou uma mercadoria cria um mundo, já que os produtos e serviços precisam estar inseridos nas almas e nos corpos dos trabalhadores e dos consumidores: “no capitalismo contemporâneo, a empresa não existe fora do produtor e do consumidor que a representam” (LAZZARATO, 2006, p. 99). Os alvos são nossos corações, intelectos, vontades e disposições (FOUCAULT, 2005). Com a inserção de produtos e serviços nos valores, desejos e necessidades das pessoas, a busca incessante pelo lucro capitalista a qualquer preço torna-se cada vez mais concreta e “natural” (VALENTIM, 2011). E a questão não está restrita a produtos e serviços. O trabalho, como ele é hoje tratado, é parte de uma engrenagem de construção de mundos e de maneiras de viver, pensar, agir e sentir. Como bem apontado por Guattari e Rolnik (2007), as transformações trazidas pelo capitalismo contemporâneo para a subjetividade funcionam no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular com as cidades, com os processos do trabalho e com a ordem social. Não obstante, essa lógica contribui para a produção e reprodução das relações que estabelecemos com o corpo, com a alimentação, com a “natureza”, com o que consideramos passado, presente e futuro. Em suma, “ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo” (GUATTARI e ROLNIK, 2007, p. 51), fazendo com que criemos e reforcemos a ideia de que as coisas “são assim”, de que o mundo “é assim” e, principalmente, de que não há como organizarmos a vida de outras maneiras7. Concordamos com Suely Rolnik (2006) quando ela afirma que políticas de subjetivação mudam de acordo com os regimes, já que
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eles dependem da construção de subjetividade para serem viabilizados, ganharem consistência e concretude no cotidiano de todos e de cada um. Nesse sentido, vale ressaltar mais uma vez que no capitalismo contemporâneo a produção de subjetividade passa a ser um princípio desta lógica. É fundamentalmente das forças subjetivas, especialmente as de conhecimento e criação, que a lógica capitalista contemporânea se alimenta, motivo pelo qual é considerada por alguns como “capitalismo cognitivo” (LAZZARATO e NEGRI, 2001; COCCO, 2001; GALVÃO et al., 2003). O capitalismo cognitivo se pauta em uma lógica de operações perversas cujo objetivo é o de fazer da potência humana de criação e de conhecimento o principal combustível de sua insaciável máquina de produção e acumulação de capital. Ganâncias, riquezas financeiras e ambições se naturalizam como valores humanos e se espalham para todas as dimensões da vida. Segundo Lazzarato (2006), o capitalismo é cognitivo por não restringir-se ao domínio ou controle de meios de produção, mas principalmente por produzir mundos (ROLNIK, 2006; DELEUZE, 1992), sentidos, desejos e valores. Isso se naturaliza nas relações entre professores e alunos, pais e filhos, médicos e pacientes, políticos profissionais e até as mais altas esferas governamentais. Dito de outra maneira, uma imensa maioria das pessoas passa a viver, considerar natural, aspirar e trabalhar em função de valores como a ambição, a competição, a acumulação financeira e o tão proclamado “sucesso” (VALENTIM, 2011), o qual é quase sempre sinônimo de alguma propaganda em revista ou televisão. Valores como os citados são, então, naturalizados, produzidos e reproduzidos, em maior ou menor escala, em todas as esferas da vida. Nossas existências tendem a se tornar cada vez mais utilitárias, enquanto o valor do “outro” está cada vez mais restrito ao que ele ou ela pode nos agregar para atingirmos os objetivos que almejamos. Vivemos os sonhos dos deuses capitalistas, do sucesso e da vitória (ROLNIK, 2006). Não consideramos, entretanto, que o capitalismo é um sistema social e econômico totalizante. Refutamos, ainda, a afirmação do “fim da história”. Concordamos com o educador Paulo Freire que “a
3. Estado versus Sociedade? Por uma nova cultura política
O Estado, que deveria funcionar em prol do bem comum e em prol do público (pessoas), cada vez mais transborda exemplos de privatização em todos os níveis: age-se em função de interesses privados. O Estado contemporâneo, alinhado à lógica capitalista, atua como agente político (propiciando mecanismos repressivos e apaziguadores da ordem vigente) e como agente econômico (criando a estrutura e os meios para o bom funcionamento do sistema econômico hegemônico). Portanto, ele é parte construtora da lógica capitalista, do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2002), também contribuindo para sua naturalização, inclusive por meio da condução de diversas políticas públicas, tais como a educação. Nesse sentido, interesses públicos e privados não podem ser claramente distinguidos. Esta distinção se torna ainda mais difícil de ser efetuada já que, como abordado anteriormente, não basta verificar quais entes controlam, regulam ou têm a posse dos meios produtivos. Hoje, Estados e empresas privadas estão alinhados, na maior parte das situações, tendo em vista que seus integrantes agem de
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História [...] é um tempo de possibilidades e não de determinismo” (2010: 53). À medida que o capitalismo, como vimos, propicia um consenso espontâneo, também suscita práticas sociais de resistência e rejeição, que podem ser traduzidas em práticas solidárias, coletivas e contraditórias, conformando, assim, espaços de educação para outro tipo de participação política na esfera pública. A esfera pública não pode ser entendida como uma simples extensão de grupos de interesse, nem como um mero prolongamento de grupos organizados ou de setores dotados de poder (GAIGER, 2003). Dessa forma, apenas reproduziria mecanismos hierárquicos de destruição de bens públicos, desprovidos de princípios democráticos efetivos. Numa perspectiva democratizante, postula um espaço não homogêneo, ou seja, que aceita a diferença. Resta-nos indagar como, na atual fase do capitalismo, esta diferença se processa.
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acordo com uma lógica que produz e estimula desejos e valores semelhantes. Também são controlados os meios de produção de sentidos, de desejos e de valores, e não apenas os meios de produção. O Estado contribui significativamente com a atual tendência predominante da mercantilização da vida, em particular, da esfera pública. É a expansão dos valores capitalistas a todas as dimensões da sociedade que se reflete claramente na prática democrática contemporânea no Brasil (COUTINHO, 1999; NOGUEIRA, 1999; AVRITZER, 2006), conduzindo, por sua vez, a um modelo de democracia liberal hegemônica (SANTOS, 2002; WOOD, 2003), que tem como característica marcante a separação entre as dimensões econômica e política. Esta separação é extremamente útil e pertinente à classe mais privilegiada e hegemonicamente dominante, que consegue, através de todo um aparato legal do Estado, fazer prevalecer suas visões, naturalizando valores e comportamentos. Segundo Ellen Wood, a hegemonia inseriu uma “cunha entre o econômico e o político” (WOOD, 2003, p. 28). Partindo de um olhar da realidade social brasileira, é importante questionar quais são as raízes de seus problemas e analisar a dimensão política. Ao constatarmos (WOOD, 2003; GRAMSCI, 1978; SANTOS, 2002; AVRITZER, 2006; NOGUEIRA, 1999; COUTINHO, 1999), que ocorre um descolamento da política com a economia, parte-se para um aprofundamento da temática a partir de um exame do capitalismo neoliberal e hegemônico enquanto modelo produtivo dominante na sociedade. Este esforço analítico será responsável pela compreensão da cisão entre economia e política no modelo democrático atual. Percebe-se um esforço para enclausurar a dimensão política do capitalismo, empurrando esta para um lugar no qual as relações de trabalho, as questões de produção e fluxo do circuito do capital possuem uma característica perene e isolada. Perene, pois se refere a uma eternidade, à ideia de que o capitalismo sempre existiu e sempre existirá. Isolada, pois descola o capitalismo da história, vinculando-o a leis naturais invioláveis. A dimensão política é aqui entendida como participação ativa dos cidadãos na esfera pública. A política consiste, neste raciocínio, nas ações dos cidadãos nesta esfera. Consideramos que política tem
8 O termo “poderes econômicos”, segundo a perspectiva que adotamos, refere-se à supremacia de uma teoria econômica emergida a partir do século XVIII. Esta supremacia, segundo Laville (2004), deveu-se a três reducionismos criados pela compreensão estreita daquela teoria: a) redução de toda economia à economia de mercado; b) a redução de todo mercado ao mercado autorregulado e, c) a redução de toda a empresa econômica à empresa capitalista. Maciel e Serafim (2011), baseando-se na obra “A Política” de Aristóteles, argumentam que vivemos na lógica da “chrematistike” e, não da “oikonomia” (economia). A primeira é movida exclusivamente pela busca da acumulação, enquanto a segunda trata da boa utilização dos bens.
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a ver com a organização das pessoas em sociedade, com organização coletiva. Na visão ideológica da economia política burguesa, a sociedade é tida como algo abstrato (WOOD, 2003; GRAMSCI, 1978; KOHAN, 2004). A abstração da sociedade faz com que a esfera política no capitalismo tenha um caráter diferenciado. O capital, em sua nova fase, tem logrado subtrair da linguagem democrática os aspectos de transformação dos modos por meio dos quais as pessoas se organizam e das consequentes relações de poder. Para Wood (2003), a organização capitalista foi tecida em longos embates de poderes políticos que foram se tornando, aos poucos, “poderes econômicos”8. Esta autoridade da propriedade privada passa a organizar a sociedade em benefício próprio. A separação da esfera econômica da esfera política explicita a privatização da política. Esta pode ser traduzida na função “social” do Estado, protegendo os trabalhadores dos riscos advindos da ordem econômica em vigência. Cria-se uma ideia ilusória de que o Estado pertence a todos, uma vez que toda a sociedade, através do sufrágio universal, participa da constituição dos quadros diretores estatais (cargos eletivos). São trabalhados os meios, mas supõe-se que os fins e objetivos são comuns a todas as pessoas, não se discutindo esses fins nem a forma de atingi-los (não se discute política como organização das pessoas em sociedade com suas finalidades e meios para atingi-las): “naturalizam-se os fins e a lógica capitalista”. O sistema político hegemônico da contemporaneidade, operacionalizado através da democracia representativa liberalista, está deste modo construindo uma democracia hegemônica de mercado. A democracia hegemônica na contemporaneidade, vigente no
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cenário do capitalismo global, que segrega a economia do debate político é baseada em três pilares (AVRITZER, 2006; SANTOS, 2002). O primeiro pilar deriva da afirmação weberiana de que em um Estado moderno os indivíduos perderiam o controle sobre as arenas políticas, administrativas, militares e jurídicas. Para Weber, o indivíduo passaria a ser controlado por uma burocracia especializada e hierarquizada, pois somente esta estaria apta a dirigir o Estado moderno e toda sua complexidade. O segundo pilar foi constituído durante a formação da teoria democrática nos séculos XVIII e XIX, quando houve grande debate sobre a racionalidade e a mobilização. Segundo Avritzer, vários autores “como Ortega y Gasset, Karl Manheim, Eric Fromm e Max Horkheimeir” (apud SANTOS, 2002, p. 565), contribuíram para a formação da democracia hegemônica ao se posicionarem contra uma racionalidade participativa na política. Tal visão era sustentada pela ideia de que a participação popular era apenas uma “pressão irracional das massas” (SANTOS, 2002, p. 566). A principal consequência deste argumento é o governo das elites como garantia de uma manutenção da ordem. O terceiro e último pilar refere-se à ideia de que todas as formas de iniciativas coletivas são similares e geram uma contradição entre mobilização e institucionalização (SANTOS, 2002). A partir dessa separação entre economia e política, que em nosso entendimento torna-se uma falácia, a sociedade parece se comportar de modo cada vez mais passivo, com menos mecanismos para participar na política. Esta ideia é defendida pela teoria da democracia contemporânea que, segundo Pateman, enquanto nesta o “conceito de participação assume um papel menor”, é dada grande relevância aos “perigos inerentes à ampla participação popular em política” (PATEMAN, 1992, p. 10). Dessa forma, ao considerar a realidade socioeconômica brasileira, se constitui um ambiente extremamente hostil para a eliminação das desigualdades sociais e para criação de políticas públicas amplas e equitativas. Nestes registros, a democracia restringe-se aos arranjos institucionais, em especial ao sufrágio universal. Cria-se, portanto, duas ideias ilusórias: a primeira, de que o voto puro e simples pode promover transformações na economia nacional e na forte
9 Grifos da própria autora.
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desigualdade social reinante. Esta ideia é no mínimo limitada, como é igualmente limitada a democracia hegemônica vigente. A segunda, como consequência da primeira, que o Estado pertence a todos. Góes (2007) afirma que uma democracia representativa liberalista acentua as desigualdades sociais e monopoliza as decisões políticas e econômicas no mundo. Para Sartori (2008), este tipo de democracia consiste num sistema de controle e de limitação de poder. A teoria democrática contemporânea, por defender a participação por meio de representantes, como já indicado, acaba por ajudar a (re)produzir uma esfera pública constituída por poucos, ou seja, em última instância, privada, na qual o ser público é apropriado de modo privado. Ao contrário da teoria democrática contemporânea, a participação tem um papel importante na teoria da democracia participativa. Nesta, a participação “refere-se à participação (igual) na tomada de decisões e “igualdade política” refere-se à igualdade de poder na determinação das consequências das decisões [...]” (PATEMAN, 1992:61)9. A teoria participativa centra-se numa definição ampla de “político” e, principalmente, apreende a democracia no seu aspecto educativo - e não meramente numa função protetora - o papel social do Estado -, como faz crer a teoria contemporânea. Tomando como base a teoria da democracia participativa, chegamos ao cerne deste ensaio: a redefinição da esfera pública. Uma vez que o Estado não pertence à sociedade e a partir da premissa que a economia está descolada da política, indagamos: em que medida o surgimento dos novos movimentos sociais, da diversidade de práticas socioeconômicas em desenvolvimento por trabalhadores, de novas práticas sociais (incentivadas e vivenciadas por uma camada da população até então invisibilizada pela economia de mercado) tende a redefinir a esfera pública? Como têm dialogado com o Estado? Como (re)definir os contornos entre público e privado quando se vive em uma democracia representativa limitada ao voto? Não podemos deixar de salientar que, desde a metade da década de 1970, os movimentos sociais, as ONGs e outros sujeitos so-
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ciais passam a assumir um papel consideravelmente relevante no desenvolvimento de resoluções para determinadas necessidades e exigências sociais. Também é imprescindível sublinhar que, neste período, a participação dos mais diversos movimentos sociais na reivindicação de formas de participação social na esfera pública política influenciou grandemente o processo de transição democrática a partir da década de 198010. Segundo Daniel (2000), a sociedade civil e os governos devem, e é de suma importância, atuarem em conjunto, para multiplicar o envolvimento e a participação dos cidadãos na gestão pública por meios de mecanismos democratizantes. Nenhum sujeito, seja ele público ou privado, institucional ou não institucional, tem suficientes conhecimentos e informações para tomar as resoluções dos desafios sociais e políticos vigentes, que são de características complexas, dinâmicas e diversificadas (KOOIMAN, 2003). A utilização de instrumentos democratizantes na esfera pública, os quais estimulem a interação entre os sujeitos sociais, necessitam estar concatenadas a um novo paradigma de ação pública estatal. Só dessa forma, acreditamos que terá eficácia no campo da participação ativa. No novo paradigma de ação pública estatal, o eixo central não se limita aos órgãos e aparatos do Estado, incorpora também as diversas interações, a relação Estado e sociedade. Neste contexto, a sociedade é tratada como diversidade social no que concerne às suas instituições e organizações, o que vale considerar que as transformações que alteram a esfera pública e a relação Estado/ sociedade são complexas e diversas. Aferimos, partindo do exposto até agora, que é urgente a prática cotidiana de uma nova cultura política. Esta pressupõe: a) uma democracia que, conforme Touraine (2000), implica na destruição do sistema hierarquizado e da visão holística da sociedade; b) a configuração de uma esfera pública que admita as diferenças e; c) a conformação de indivíduos autônomos, críticos e reflexivos, distintos dos indivíduos-massa das sociedades contemporâneas (OLIVEIRA, 2001). 10 Em relação ao Estado, neste período estava em questão o modelo tecnocrático de administração pública, caracterizado pela centralidade administrativa e pelo sistema burocrático, até então em funcionamento na gestão pública brasileira.
Entre os diagnósticos possíveis e as perguntas por responder, parece-nos necessário conhecer que conteúdos outras práticas/ experiências econômicas - que contrariam a lógica do capitalismo - acrescentam aos processos democratizantes. Logo, é pertinente a pergunta feita pelo educador Paulo Freire: “como trabalhar, não importa em que campo [...] sem ir conhecendo as manhas com que os grupos humanos produzem sua própria sobrevivência?” (FREIRE, 2010, p. 81). No centro das preocupações que nos motivaram a criar o eixo “Democracias” na construção de “outras economias”: trilhas para a redefinição da esfera pública”, coordenado por este coletivo durante o V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs) está, como refere Santos (2000), o fato de que a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que aquilo que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Scherer-Warren (2006) afirma que a realidade dos movimentos sociais é dinâmica e nem sempre as teorizações têm acompanhado este dinamismo. Portanto, é preciso esmero nas análises sobre as mais diversas experiências sociais em desenvolvimento. Estas experiências tecem, na realidade socioeconômica, em particular do Brasil, relações nas quais coabitam num mesmo espaço e tempo, o velho e o novo, o constituído e o constituinte. Não pretendemos aprofundar a revisão bibliográfica sobre a temática da diversidade das experiências que tentam reinventar formas de economia, convivência e participação. Cabe situar, entretanto, o surgimento de um conjunto de iniciativas, em especial a partir da década de 1980, no Brasil, de vários movimentos sociais e políticos, ONGs, experiências de orçamento participativo em governos progressistas, o avanço de cooperativas de trabalho, de associações de trabalhadores, as parcerias entre o poder público e a sociedade, entre outros. O que implica em mudança “da” e “na” esfera pública. Em âmbito internacional, também há uma efervescência de
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4. À guisa de uma conclusão: espaços e tempos de reinvenção das “democracias”
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movimentos, como as conferências mundiais das Nações Unidas, fóruns de ONG e movimentos sociais, Agenda 21 locais, a abordagem de redes, entre outras. Há que destacar, em 2001, a realização do 1º Fórum Social Mundial no Brasil, chegando à sua 11ª edição em 2011, possibilitando um espaço de encontro, diálogo e cooperação entre os movimentos sociais, poderes públicos e diversos atores11. Como a esfera pública é alterada com estas iniciativas e experiências? Quais conteúdos estas vêm pautando a agenda política e econômica na esfera pública? Novos sujeitos sociais12 têm vindo a se inserir na arena pública e política, por via dos movimentos sociais, o que, em certa medida, constitui pontes que disseminam informações e acesso aos recursos e benefícios por parte da população. Por meio daquelas experiências, no âmbito das relações do Estado com a sociedade, estão sendo assinaladas demandas para uma maior distribuição do poder no processo de tomada de decisões que afetam a vida societal. Porém, como analisamos anteriormente, o capitalismo hoje tem avançado na mercantilização de muitos espaços sociais, por meio dos valores e princípios por uma grande parte da população assimilados como “naturais” e “irreversíveis”. Mas, nos interstícios deste sistema hegemônico, há quem esteja criando e recriando outros modos de vida, de produção, de relações humanas. Ainda de forma tímida e latente, os diferentes sujeitos sociais que têm ocupado o espaço público e político, têm tentado reconstituir e decifrar o labirinto13 político. Este tem sido reconfigurado 11 O Processo do FSM inspirou a organização de outros fóruns temáticos (como os realizados na Argentina, Colômbia e Palestina), regionais e internacionais (como os fóruns sociais europeu, mediterrâneo, américas, asiático, africano, pan-amazônico). Esses são parte do processo de internacionalização e de enraizamento do FSM, e vêm acontecendo desde o final de 2011. Também as atividades paralelas congregam diversas instâncias da sociedade: Fórum de Autoridades Locais, Fórum Parlamentar Mundial, Fórum Mundial de Juízes, Acampamento Intercontinental da Juventude, Forunzinho Social Mundial, entre outros. 12 A ideia de sujeitos sociais está intrinsecamente relacionada a de sujeitos que, na perspectiva deste ensaio, participam na arena política e/ou pública, formulam e possuem capacidades de produzir fatos naquela arena e, até mesmo, esboçam um projeto social. 13 O termo “labirinto”, aqui utilizado, surge intrinsecamente ligado à noção expressa por Ruivo (2000, p.25): “Compreende-se, assim, que o labirinto constitua, simultaneamente, o lugar mais fechado e o mais aberto. Mais aberto, porque qualquer pessoa pode nele penetrar. Não existe, porém, garantia de que o resultado de tal ato redunde em algo diferente de uma repetição infinita de passos que a nada levam, de um rodeio cego em torno de um centro que se não vislumbra. Por essa razão, primando a sua essência pela complexidade, ele será também ao mesmo tempo, em termos sistêmicos, o lugar mais fechado (em torno do seu centro)”.
14 As informações sobre o PL 865 constam no documento elaborado pelo FBES para a negociação com o governo federal, denominado “Fortalecimento das políticas públicas de Economia Solidária no governo Dilma Rousseff”.
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por novas formas hierárquicas de poder, que colocam, por sua vez, novos desafios à sociedade e ao próprio Estado, no que respeita ao processo de democratização de todas as esferas estatais. A emergência desses sujeitos sociais, até então invisibilizados, vem forjando a sua participação política no seio da sociedade brasileira, engendrando possibilidades de uma subjetividade coletiva que, além de alterar a própria esfera pública, também transforma o significado e a representação do território onde se localizam. Trazem novas problemáticas e dilemas para a (re)configuração da ação política e dos processos/mecanismos de democratização daquela esfera. Estes processos oferecem-nos um vasto campo de pesquisa e diálogo com a produção dos conhecimentos emergentes. Para exemplificar o que aqui explicitamos, ressaltamos a recente mobilização do movimento da economia solidária no Brasil, face ao Projeto de Lei 865 (PL 865), que criou a Secretaria Especial de Micro e Pequena Empresa. O PL 86514 foi apresentado, em 3 de março de 2011, pelo governo federal ao Congresso Nacional, para aprovação em caráter de urgência, sem efetuar consulta pública ao movimento da Economia Solidária. Entre os seus objetivos estava a transferência das atribuições da Economia Solidária – então a cargo do Ministério do Trabalho e Emprego – assim como do Conselho Nacional de Economia Solidária e da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) para a nova secretaria. Tal projeto de lei ignorava todo o processo participativo histórico do movimento, as conquistas de diálogo efetuadas junto às diversas instâncias governamentais para a construção de políticas públicas e a pluralidade de empreendimentos econômicos solidários inscritos naquele movimento. Esta atitude mostra e reforça a ideia do quanto o Estado brasileiro se pauta pela separação entre economia e política. Contudo, contrariando a forma como o processo para a aprovação do PL 865 foi desencadeado, a esfera pública foi tomada por espaços de debate, de consulta e diálogo, forjados pelos sujeitos sociais que estão na base da Economia Solidária no país. Por meio
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de audiências públicas estaduais, nacionais e da criação de uma comissão tripartite no Congresso Nacional (formada pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), Senaes e Frente Parlamentar de Economia Solidária), aqueles sujeitos forçaram a ampliação do conflito à esfera pública política. No dia 25 de agosto de 2011, o governo federal revê a sua posição e retira as atribuições da Economia Solidária do PL 86515. A inspiração do desenvolvimento do eixo temático “Democracias” nos processos de construção de “outras economias”: trilhas para a redefinição da esfera pública foi amparada pela percepção, tal como referida por Scherer-Warren (2006), do limite que as ciências têm em acompanhar o dinamismo das experiências sociais, econômicas e políticas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados e invisibilizados pelo modelo econômico hegemônico16. Para vincar a necessidade de ampliar a perspectiva sobre a abordagem da democracia e a contribuição específica dos movimentos sociais para além das esferas institucionais, é pertinente mencionar a reflexão de Costa (1997) de que parece necessário reconhecer que as contribuições democratizantes desses movimentos não podem ser enxergadas unicamente a partir das instâncias institucionais, esperando-se deles o aperfeiçoamento dos mecanismos de intermediação de interesses ou a renovação da vida partidária, minada em países como o Brasil pelas velhas práticas autoritárias e pelos novos casuísmos. Suas possibilidades residem precisamente em seu “enraizamento” em esferas sociais que são, do ponto de vista institucional, pré-políticas. E é no nível de tais órbitas e da articulação que os movimentos sociais estabelecem entre estas e as arenas institucionais que podem emergir os impulsos mais promissores para a construção da democracia.
15 No documento “Governo revê posição e retira atribuições da Economia Solidária” pode-se confirmar o recuo do governo federal, face às mobilizações do movimento, retirando as atribuições da Economia Solidária do PL 865. 16 Os autores do presente ensaio coordenaram o eixo temático no V ENAPEGS, ocorrido em Florianópolis, Santa Catarina, 26 a 28 de maio de 2011. Com quatro sessões, contou com 22 apresentações de trabalhos. O eixo teve como proposta a análise e a vivência de experiências acerca dos processos de democracia que buscam a emancipação social, bem como a construção de novas realidades econômicas.
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Corroborando a vivacidade com que grupos sociais têm vindo a recriar formas de produção, de organização e de se fazerem atuantes na esfera pública, os diversos trabalhos inscritos e apresentados no eixo temático trouxeram para o debate experiências de desenvolvimento local, tais como: o Centro de Desenvolvimento Comunitário das Timbaúbas, localizado na cidade de Juazeiro do Norte, Ceará; o desenvolvimento territorial sustentável promovido no recôncavo baiano; incubadoras de empreendimentos solidários (desenvolvendo o papel de mediação entre estes empreendimentos e o poder público); fábricas recuperadas por trabalhadores e a experiência particular da Empresa Social Solidarium, entre tantas outras. Casos como o projeto de extensão universitária desenvolvido em Guaratuba, Paraná, construído numa perspectiva de diálogo entre a universidade e a comunidade, demonstram o quanto a esfera pública é um espaço em pleno movimento, transformação de fomento contínuo a novas formas de ser e de estar dos cidadãos. Não podemos perder de vista que, apesar do desenvolvimento dessas experiências e práticas se inserir num contexto capitalista, elas têm grande potencialidade na “redefinição de valores, símbolos e significados, num jogo de interação e reciprocidade entre o instituído e o instituinte” (GOHN, 2005, p. 19). O instituído aqui é compreendido como o que se conhece e está formalizado (normalizado), e o instituinte como o que está em formação, ou seja, o “novo” que se manifesta de forma latente, mas que logra inserir-se nas práticas instituídas. As práticas sociais apresentadas nos quatro GTs que constituíram o referido eixo temático também remetem para a afirmação de Scherer-Warren (2006) de que, para os sujeitos se tornarem atores de novas formas de governança, é necessário que a participação destes seja contemplada em diferentes espaços. Segundo a autora, os espaços em que ocorrem o empoderamento político e simbólico das organizações de base são os das mobilizações de base local, nos quais afirmam e consolidam as identidades coletivas, reforçando o sentimento de pertença. Também os simbolismos e místicas das lutas (os cultos das bandeiras, das músicas, dos ritos) valorizam a premissa da unidade na diversidade e da força interior para prosseguir com a luta. Por
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sua vez, os projetos/utopias são os que promovem a longevidade e significado ao movimento (projetos de reforma agrária, território comunal, reconhecimento das diferenças de gênero). Outros espaços nos quais se vão engendrando as propostas que visam a transformação social e de negociação com o Estado e o mercado são os fóruns da sociedade civil. Nestes, é possível que as organizações de base construam canais de representação e de mediação política para negociar com o Estado e o mercado. Por fim, a autora assinala que há múltiplas formas de atuação que podem estar na origem das parcerias entre sociedade civil, Estado e mercado. E a gestão das políticas públicas poderá ser mais ou menos cidadã - o que significa ser influenciada pela sociedade civil - dependendo das relações de força e das possibilidades de convergência entre representantes das redes de movimentos sociais, da esfera estatal e do mercado. Destarte, a experiência vivida no eixo “Democracias” nos processos de construção de “outras economias”: trilhas para a redefinição da esfera pública através dos trabalhos apresentados e debates travados, apresenta forte sinalização de que está sendo desbravado um processo de redefinição da esfera pública. Contudo, não se trata do desbravamento de um caminho, mas sim de várias trilhas, que vão se adaptando, serpenteando e se definindo a cada novo passo. Percebemos claramente, através deste eixo temático, que estamos aprendendo novas formas de caminhar, construindo contra-hegemonias, alternativas reais que redefinam a esfera pública. Estamos aprendendo a viver e a construir uma real participação política, que não seja fragmentada. O desafio ainda é enorme. O caminho é longo e estamos distantes da chegada. Mas caminhamos na certeza de que várias trilhas foram e estão sendo desbravadas.
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Eloisa Helena de Souza Cabral1 Luis Antonio Eguinoa2 Paulo de Tarso Muzy3
Este artigo pretende operacionalizar a orientação do V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social - Enapegs 2011 e do seu Eixo 4 – Gestão Social, Arte e Cultura: Valores e Tecnologias para a Gestão do Patrimônio das Cidades, qual seja, a oportunidade de discutir o tema com a finalidade de comunicar achados cientificamente relevantes e propiciar o desenvolvimento de agendas de pesquisa. Considerando a centralidade dos valores para as iniciativas que abordam a questão do patrimônio mundial, cultural e natural, material e imaterial, examinamos um conjunto de documentos de agências internacionais representativas para o tema e o conteúdo dos projetos apresentados relativos ao Eixo. Identificamos um inventário de valores, aceitos pelas agências e comunicados pelos projetos aos seus públicos constituintes. Esses valores induzem as metas, normas e os objetivos esperados nesses públicos, os quais passam a responder por atitudes e posturas práticas infundidas pela gestão social desses projetos. O inventário de valores do patrimônio organiza-se em seis grupos temáticos que reconhecemos na área: valores da temporalidade; valores da vida; valores da arte; valores da cultura; valores da natureza; valores do desenvolvimento social; e valores do progresso econômico. Sugerimos uma agenda de pesquisas e fazemos a conexão com outros estudos nas áreas de psicologia, sociologia das organizações, e sociologia econômica, que possam contribuir para o desenvolvimento de uma cultura de avaliação de impacto que contemple o exame dos resultados alcançados e dos valores transmitidos pela gestão social na área. 1 Eloisa Helena de Souza Cabral é doutora em Ciências Sociais e professora titular de Sociologia da Faculdade de Administração da Fundação Armando Álvares Penteado. 2 Luis Antonio Eguinoa é mestrando em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pelo Centro Universitário UNA, Belo Horizonte. 3 Paulo de Tarso Muzy é doutor em Física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo e pesquisador do Grupo de Mecânica Estatística daquele Instituto.
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Espaço público e gestão social do patrimônio mundial: inventário de valores
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1. Introdução Apesar do reconhecimento da importância dos valores associados às iniciativas, públicas ou privadas, que envolvem o interesse público e a explicitação inequívoca de valores, nem sempre é satisfatória a consideração desses valores como elementos identificáveis na gestão e mensuráveis nos resultados. Alega-se a razão prática da generalidade, ou intangibilidade, atribuída aos valores, resultante da postura recorrente de tratá-los como elementos subjetivos ou meramente descritivos no exame racional, na implementação, na execução, e na avaliação de uma iniciativa. Resta, aos valores, pertencerem à categoria abstrata das pretensões e o processo de gestão não os inclui como resultados avaliáveis, embora possa ressaltá-los como premissas, corroborando um discurso que já se denominou de Dicotomia Fato/Valor (PUTNAM, 2002). Sob o aspecto teórico, Putnam (2002) mostra a inconsistência lógica da manutenção dessa dicotomia entre os fatos, considerados como elementos objetivos e avaliáveis, e os valores, considerados como elementos subjetivos e apenas descritivos dos fenômenos. Sob o aspecto prático da gestão e da avaliação de impacto, Cabral (2012) desenvolve instrumentos e metodologias para superar essa imprecisão, considerando fatos e valores em um mesmo nível de relevância. Elemento fundamental nessas contribuições é a identificação do inventário de valores relevantes na área e que possa ser aplicado às iniciativas, possibilitando a comunicação e comparação dos achados avaliativos. O tema do patrimônio mundial cultural e natural, material e imaterial (o qual designaremos, para sermos breves, por patrimônio), que engloba as preocupações com o meio ambiente, a cultura, os patrimônios artístico, histórico e natural, oferece um exemplo tratável dessa situação. Estruturalmente, as considerações sobre esse tema são fundamentadas em valores e os projetos e programas na área apresentam esforços na materialização desses valores em atitudes, objetivos, metas e comportamentos, os quais a gestão social deve observar e perseguir. Constatam-se generalidade e abrangência suficientes no tema, que percola nas iniciativas, mantendo homogeneidade de propósitos, fundados nos valores.
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Porém, no exame da gestão e na prática da avaliação temos dificuldades em consolidar instrumentos que apurem a satisfação, o bem-estar, o deleite, a transmissão, ou efetivação dos valores pretendidos nos resultados alcançados, como medidas quantitativas e dotadas de comparação interpessoal. Podemos tomar como exemplo o esforço das propostas de avaliação contingente; de custo-benefício; e de impacto, para estabelecer sistemáticas de monetarização de impactos; de disposição de pagar ou de aceitar; e de precificação, para contemplar explicitamente os valores, não exclusivamente econômicos, subentendidos nos resultados alcançados (MOTA, 2006; CHAMP, BOYLE e BROWN, 2003; NAVRUD e READY, 2002). Este artigo pretende contribuir para a fase inicial desse problema, apresentando um inventário de valores afetos ao patrimônio que possa ser útil às metodologias de avaliação que contemplem os valores como atributos constituintes do impacto das iniciativas nessa área. Esse inventário constitui-se em um referencial para a gestão social desses bens, cujos valores se materializam nos objetivos, metas e atitudes assumidos na gestão. Evidentemente, esse esforço não pretende, e nem mesmo poderia pretender, exaurir essa identificação, mas, sim, contribuir para a explicitação desses valores. O tema do patrimônio abrange questões que transcendem as fronteiras nacionais, seja pelo sentido da preservação, seja por sua exposição ao interesse econômico, por exemplo, no turismo, na sustentabilidade, na arte, e na cultura - na exploração de suas potencialidades e oportunidades, e na gestão de atividades e projetos específicos. Essa importância, que é social e econômica, enseja a manifestação de agências internacionais e a conformação de acordos, ajustes, termos de conduta e orientações aceitas no planeta. Essas manifestações explicitam os valores associados ao tema, que podem, por sua vez, ser reencontrados na forma de motivações, posturas e atitudes nos projetos e iniciativas desenvolvidos na área. Inventariar esses valores exige metodologicamente um exercício de coleta e identificação nas fontes documentais e sua revisão experimental no debate, na literatura e na prática da gestão social desses projetos.
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Para tanto, são fundamentais uma concepção normativa da gestão social desenvolvida pelo primeiro autor e apresentada em outras edições do Enapegs (CABRAL, 2011); uma metodologia de avaliação (CABRAL e MUZY, 2009, 2011), que permita identificar e apurar a capacidade da gestão social em publicizar esses valores e comunicar-se com os públicos constituintes das manifestações na área; um campo de interesse e pesquisa ao qual se aplique a investigação desses valores (CABRAL, EGUINOA e MUZY, 2010); e um espaço institucional que possibilite a apresentação e a discussão acadêmica dos achados, das contribuições, das práticas e das reflexões dos interessados, colimando-os de acordo com o referencial aceito e confrontando-os com o exercício da gestão social. Esse lugar, como institucionalidade, foi propiciado pela organização do V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social - Enapegs, realizado em Florianópolis (SC), entre os dias 26 e 28 de maio de 2011, sob a direção da Profa. Dra. Paula Chies Schommer, e com o tema da Gestão Social como Caminho para a Redefinição da Esfera Pública. Como ambiente dialógico, contou com a colaboração de 41 pesquisadores (Abdon Cunha, Adriana R. T. de Mello, Alex B. Vasconcelos, Aline F. Guimarães, Alpeniano S. Filho, Amélia C. Passos, Ana L. C. de M. Barbosa, Ana Luíza R. do Valle, Andrea P. dos Santos, Angela Lucas, Carlos A. C. Sampaio, Carlos Cavalcante, Carlos H. Guimarães, Cláudia S. Ribeiro, Cleber V. Fernandes, Cleonisia A. R. do Vale, Geraldo F. Teixeira, Geraldo Ferna, Gustavo M. da Costa, Isabel J. Grimm, Ivone Lemke, Jeová T. Silva Jr., Kadma Lanubia, Luciene A. da Silva, Luiz R. Alves, Marcia R. Ferreira, Marcio Kuniyoshi, Maria A. de Figueiredo, Maria A. J. Corá, Maria V. de C. Pardal, Natália C. Marra, Rafael C. B. Peixoto, Rebeca R. Grangeiro, Regina Fer, Renata C. Duca, Robinson H. Scholtz, Sérgio Dantas, Sílvia H. Passarelli, Sueline S. de Souza, Washington Souza e Willian A. Borges) que atenderam ao chamado de trabalhos para oferecer suas contribuições ao eixo temático proposto pelos autores desta nota e denominado Gestão Social, Arte e Cultura: Valores e Tecnologias para a Gestão do Patrimônio das Cidades. A gestão social, considerada como a que reproduz valores e produz benefícios, associados à missão organizacional, quando
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processo para a produção, consumação, exploração e apropriação pública dos bens do patrimônio, incorpora de modo exemplar o conteúdo valorativo desses bens, que, de certo modo, os define e os torna singulares. Esse conteúdo, dada a circunstância da publicidade dos bens, constitui-se em um corpo de valores explicitados em declarações validadas internacionalmente e tomadas como referencial para as iniciativas na área. De acordo com Schwartz (2005), valores são crenças indutoras de sentimentos e reações, relacionadas aos objetivos desejados, que transcendem e se apresentam em situações diversas, orientando pessoas, organizações e ações. Os valores associados ao patrimônio e expressos nas declarações, nas organizações e nas iniciativas da área, qualificam os bens patrimoniais como um bem público, especialmente quanto às diretrizes que inspiraram a Declaração de Budapeste sobre o Patrimônio Mundial, 1972, quando se estabeleceu que qualquer atentado contra o patrimônio se constitui em atentado ao espírito humano e à herança comum de toda a humanidade. Essa constatação é que nos permite examinar conjuntamente, no que concerne aos valores, os temas do meio ambiente, da cultura, e dos patrimônios artístico, histórico e natural, sintetizando-os a partir da transindividualidade, indivisibilidade e titularidade indeterminada características que, de acordo com Mourão (2009), definem a natureza difusa do direito que se lhes aplica e está na base da criação das normas, na sua discussão e na concordância internacional exposta nessas manifestações. As orientações e os apontes das várias manifestações e convenções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco) corroboram esta abordagem norteando políticas e ações de salvaguarda dos patrimônios cultural e natural e do patrimônio imaterial das nações e definem os valores inerentes a esse patrimônio, considerando o direito de herança das gerações futuras como referenciais do sentido de pertencimento que carregam. Para tanto, especialmente a Convenção da Unesco para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, considera os monumentos, os conjuntos e os locais de interesse. Como Patrimô-
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nio Cultural Imaterial, a Unesco (2003) entende as práticas, representações, expressões, os conhecimentos e as técnicas - juntamente com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Na primeira parte deste artigo, apresentamos as considerações emanadas de órgãos, como a Unesco, que se pronunciaram oficialmente em assembleias internacionais, materializando os acordos, e aos quais nos referimos. Na segunda, refletimos sobre a capacidade da gestão social e dos instrumentos necessários para perseguir essas recomendações, considerando as discussões havidas durante o V Enapegs. Na terceira parte, apresentamos um inventário de valores sugeridos pelo exame documental e pelas evidências, valendo-nos de um instrumento de análise, o Mapa de Bens Públicos (MBP) (CABRAL, 2010). Na quarta parte, como conclusão apresentamos as diretrizes de um processo de investigação do conjunto inventariado e algumas possibilidades de aplicação desses instrumentos, em linhas e agendas de pesquisa.
2. O reconhecimento internacional da questão do patrimônio
O tema do patrimônio recebeu reconhecimento mundial em um conjunto de Instrumentos Internacionais Legais em Cultura e nas Orientações para a Aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, ambos da Unesco, emanadas do comitê intergovernamental para a proteção do patrimônio mundial do Centro do Patrimônio Mundial1 e as diversas convenções, declarações e manifestações, entre as quais destacamos: a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO, 2002), a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972), a Declaração de Budapeste, de 1972, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, de 2003, e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de 2005. Todos elementos norteadores legais das várias políticas e
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medidas de salvaguarda para a preservação do patrimônio comum da humanidade, na atualidade. Era unânime, nas respectivas épocas, e motivava essas declarações, o fato de o patrimônio cultural e o natural estarem cada vez mais ameaçados de destruição não apenas pelas causas naturais, mas também pela evolução da vida social e da econômica. Considerava, por exemplo, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural realizada em Paris em 1972, que “a degradação ou o desaparecimento de um bem do patrimônio cultural e natural constitui um empobrecimento efetivo do patrimônio de todos os povos do mundo” e reconhecia de forma bastante clara que determinados bens se revestiam de excepcional interesse, o que indicava a sua preservação como elementos do patrimônio mundial da humanidade. O termo patrimônio mundial, cultural e natural respondia, naquela convenção, por três elementos principais, a saber: No seu conteúdo cultural: os monumentos – obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os conjuntos – grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, têm valor universal excepcional, do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; e os locais de interesse – obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico, ou antropológico. No seu conteúdo natural, considerava os monumentos naturais, constituídos por formações físicas e biológicas, ou por grupos de tais formações, com valor universal excepcional, do ponto de vista estético ou científico; as formações geológicas e fisiográficas e as zonas estritamente delimitadas, que constituem habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas, com valor universal excepcional, do ponto de vista da ciência ou da conservação; e, finalmente, os locais de interesse natural, ou zonas naturais estritamente delimitadas,
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com valor universal excepcional, do ponto de vista da ciência, conservação ou beleza natural. Essa constatação da possibilidade de perda, de necessidade da preservação e a consequente classificação dos conteúdos aponta que as declarações eram orientadas por dois grupos gerais de valores, que, em síntese, poderiam responder à questão: A quais valores se atende, quando se pretende uma política acerca desse patrimônio? Podemos apontar duas aproximações efetivas: Valores da temporalidade: obrigação de transmissão às gerações futuras (Artigo 4o): Cada um dos Estados parte na presente Convenção deverá reconhecer que a obrigação de assegurar a identificação, proteção, conservação, valorização e transmissão às gerações futuras do patrimônio cultural e natural referido nos artigos 1o e 2o e situado no seu território constitui obrigação primordial. Para tal, deverá esforçar-se, quer por esforço próprio, utilizando no máximo os seus recursos disponíveis, quer, se necessário, mediante a assistência e a cooperação internacionais de que possa beneficiar, nomeadamente no plano financeiro, artístico, científico e técnico. (UNESCO, 1972, s/p, grifo nosso)
Valores humanos: função dos patrimônios cultural e natural na vida coletiva (Artigo 5o):
Com o fim de assegurar uma proteção e conservação tão eficazes e uma valorização tão ativa quanto possível do patrimônio cultural e natural situado no seu território e nas condições apropriadas a cada país, os Estados parte na presente Convenção esforçar-se-ão na medida do possível por: a)Adotar uma política geral que vise determinar uma função ao patrimônio cultural e natural na vida coletiva e integrar a proteção do referido patrimônio nos programas de planificação geral; b)Instituir no seu território, caso não existam, um ou mais serviços de proteção, conservação e valorização do patrimônio cultural e natural, com pessoal apropriado, e dispondo dos meios que lhe permitam cum-
A percepção da importância dos valores, atribuída pela Convenção, é de tal evidência que aspectos legais inerentes à necessidade de identificação, valorização, instituição de serviços específicos de proteção e conservação, restauração dos patrimônios cultural e natural, por meio de estudos, pesquisas, investimentos e medidas de salvaguarda diversas, aparecem nos textos oficiais dessa e das demais convenções. Assim, seguindo a técnica jurídica, o legislador considerou que o estabelecimento, ou a sugestão, de normas deveria se fundamentar em princípios e, portanto, os valores são assim apresentados para justificar e fundamentar as normas propostas, enquanto estas operacionalizam e manifestam aqueles valores fundamentais. No ano de 2002, reconhecido como Ano das Nações Unidas para o Patrimônio Cultural, quando se celebram os 30 anos da convenção de 1972, o Comitê do Patrimônio Mundial adota a Declaração de Budapeste sobre o patrimônio e já se fazem notar, de forma mais explícita e clara, novas dimensões valorativas, incluídas nas orientações que indicavam outros valores com os quais se pretendia atuar (UNESCO, 1972, s/p). 1.
Nós, membros do Comitê do Patrimônio Mundial, reconhecemos o caráter universal da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972) e, consequentemente, a necessidade de assegurar a sua aplicação ao patrimônio em
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prir as tarefas que lhe sejam atribuídas; c)Desenvolver os estudos e as pesquisas científicas e técnica e aperfeiçoar os métodos de intervenção que permitem a um Estado enfrentar os perigos que ameaçam o seu patrimônio cultural e natural; d)Tomar as medidas jurídicas, científicas, técnicas, administrativas e financeiras adequadas para a identificação, proteção, conservação, valorização e restauro do referido patrimônio; e e)Favorecer a criação ou o desenvolvimento de centros nacionais ou regionais de formação nos domínios da proteção, conservação e valorização do patrimônio cultural e natural e encorajar a pesquisa científica neste domínio. (UNESCO, 1972, s/p, grifos nossos)
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2.
3.
a)
b)
c)
d)
e) f)
4.
a)
toda a sua diversidade, enquanto instrumento de desenvolvimento sustentável de todas as sociedades, pelo diálogo e pela compreensão mútua; Os bens inscritos na Lista do Patrimônio Mundial representam riquezas que nos são confiadas para serem transmitidas às gerações futuras, que delas são as legítimas herdeiras; Tendo em conta a vastidão dos desafios a vencer a favor do nosso patrimônio comum, nós: encorajamos os países que ainda o não tenham feito a aderirem, logo que possível, à Convenção e bem assim aos outros instrumentos internacionais relativos às proteção do patrimônio; convidamos os Estados parte na Convenção a fazerem o inventário e proporem a inscrição, na Lista do Patrimônio Mundial, dos bens do patrimônio cultural e natural em toda a sua diversidade; zelaremos pela preservação de um justo equilíbrio entre a conservação, a sustentabilidade e o desenvolvimento, de modo a proteger os bens do patrimônio mundial através de atividades adequadas que contribuam para o desenvolvimento social e econômico e para a qualidade de vida das nossas comunidades; uniremos esforços para cooperar na proteção do patrimônio, reconhecendo que qualquer atentado a esse patrimônio constitui um atentado ao espírito humano e à herança comum da humanidade; defenderemos a causa do patrimônio mundial pela via da comunicação, da educação, da investigação, da formação e da sensibilização; zelaremos por assegurar, a todos os níveis, a participação ativa das nossas comunidades locais na identificação, proteção e gestão dos bens do patrimônio mundial. Nós, Comitê do Patrimônio Mundial, cooperaremos e procuraremos o apoio de todos os parceiros a favor do patrimônio mundial. Para esse efeito, convidamos todas as partes interessadas a que cooperem e promovam os seguintes objetivos: reforçar a Credibilidade da Lista do Patrimônio Mundial enquanto testemunho representativo, geograficamente equilibrado, dos bens culturais e naturais de valor universal excepcional;
patrimônio mundial;
c) promover a adoção de medidas eficazes com vista
d)
a garantir o desenvolvimento das Capacidades, com vista a promover a compreensão e aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial e instrumentos associados, nomeadamente pelo apoio na preparação de propostas de inscrição de bens na Lista do Patrimônio Mundial; desenvolver a Comunicação para sensibilizar o público e incentivar a sua participação e o seu apoio ao patrimônio mundial. (UNESCO, 1972 e 2002, s/p, grifos nossos).
Reafirmando os valores da temporalidade, o documento inova ao reconhecer dimensões econômicas e sociais e indica o desenvolvimento sustentável como valor econômico do patrimônio; e a diversidade, o diálogo e compreensão mútua como valores da sociabilidade. Já a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em sua 32a sessão, realizada em Paris, em 2003, adota a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e define a centralidade desse patrimônio como as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (UNESCO, 2003, p.4).
Se os documentos anteriores reconheciam o espaço geográfico da presença das manifestações do patrimônio, como a natureza, os
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b) assegurar a Conservação eficaz dos bens do
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sítios históricos e os conjuntos construídos, essa nova declaração inclui o campo social, as tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; as expressões artísticas; as práticas sociais, os rituais e atos festivos; os conhecimentos e as práticas relacionados à natureza e ao universo; e as técnicas artesanais tradicionais. Essa inclusão refere-se preliminarmente aos instrumentos existentes em matéria de Direitos Humanos, em particular à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966 (UNESCO, 2003, p.3). Essa manifestação dialoga com a convenção anterior, ao atribuir ao patrimônio cultural imaterial a “fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável”, considerando a relevância da dimensão ou do valor econômico desses bens. Considera, ainda, a interdependência entre o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio material cultural e natural, tratado nas outras declarações, permitindo que se estabeleça um vínculo indissociável de valores entre essas duas dimensões. Notavelmente, reconhece o aspecto da economicidade desses bens e de sua reprodução e exploração sustentável no sistema econômico, como oportunidade de reconhecimento e estimativa de valor (UNESCO, 2002). Reconhece, porém, atenta à suas condições iniciais de motivação e da possibilidade de perda, que os processos de globalização e de transformação social, ao mesmo tempo em que criam condições propícias para um diálogo renovado entre as comunidades, geram também, da mesma forma que o fenômeno da intolerância, graves riscos de deterioração, desaparecimento e destruição do patrimônio cultural imaterial, devido, em particular, à falta de meios para sua salvaguarda (UNESCO, 2003, p.3). No campo das sociabilidades, o esforço das declarações reafirma os valores da diversidade cultural e a criatividade humana, ao reconhecer que as comunidades, em especial as indígenas, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos, desempenham um “importante papel na produção, salvaguarda, manutenção e recriação do patrimônio cultural imaterial, assim contribuindo para enrique-
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cer a diversidade cultural e a criatividade humana”(UNESCO 2003, p.3) incluindo aqui os valores estéticos e artísticos da produção dos povos e o conceito de autenticidade do bem (MACHADO, 2011, p.85). Ao considerar “inestimável função que cumpre o patrimônio cultural imaterial como fator de aproximação, intercâmbio e entendimento entre os seres humanos” (UNESCO, 2003, p.4) considera tais elementos valores essencialmente humanos, promotores de uma cultura da paz. A Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, de 2003, aprovada por 185 Estados-Membros, representa o primeiro instrumento efetivo de definição do padrão internacional destinado a garantir a preservação e a promoção da diversidade cultural, o diálogo intercultural e a compreensão dos valores abrangidos pelo termo diversidade cultural. Nesse campo, a declaração destaca a identidade, a diversidade e o pluralismo, reconhecendo-os como patrimônio comum da humanidade, na garantia dos valores humanos, associados às diferenças culturais; dos valores sociais, associados às tradições e à organização das sociabilidades; e dos valores morais, de temperança, respeito, comportamento, generosidade e entendimento, associados ao reconhecimento da diversidade e do gênero. Compreende-se o termo diversidade também como sinônimo da pluralidade, multiplicidade, heterogeneidade e variedade, o que amplia consideravelmente o campo dos valores em direção aos valores morais, atitudes e comportamentos, reconhecidos na vida social. A inclusão do tema da diversidade permite o diálogo com outros valores sociais, reconhecidos e examinados em outras declarações no mesmo período, cujo tema, então, excedia as questões do patrimônio. Tomemos como exemplo a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (Mundiacult), realizada pela Unesco, no México, em 1982, quando se discutiu a relação entre cultura e desenvolvimento e, pela primeira vez, se tratou do princípio de políticas culturais baseadas no respeito à diversidade cultural. Assim, para a pluralidade, podemos atribuir, além dos valores intrinsecamente culturais e costumes socioculturais, como os modos de ser e viver, as festas populares, as diversas manifestações
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do espírito humano, os valores artísticos inerentes ao patrimônio material, como os sítios, as obras de arquitetura expressivas, e todo o conjunto de bens inscritos como de patrimônio, os valores econômicos da diversidade cultural geradores de desenvolvimento participativo, termo definido pela Mundiacult (1982), como “o enriquecimento da identidade profunda de um povo, das suas aspirações, da qualidade integral da vida tanto no plano coletivo quanto individual” (ÁLVAREZ, 2008, p. 35). A identificação desses valores, tomados como núcleo das propostas de políticas na área do patrimônio, sugere a reflexão acerca da sua expressão como referencial a ser perseguido pela gestão social dos bens do patrimônio cultural, material e imaterial, enquanto bens públicos, consumidos no espaço público de realização e manifestação dos objetivos lançados pelas declarações internacionais. Esse exame diz respeito, por exemplo, aos aspectos econômicos da atualidade manifestados por esses bens e sua consumação. Álvarez (2008),quando discute o cruzamento entre os conceitos de globalização e identidade cultural na atualidade, afirma, “aceleram-se as trocas simbólicas e materiais, aceleram-se a corrida tecnológica e a multiplicação dos meios de informação; acelera-se também a assinatura de acordos comerciais que vão integrando mercados e volatilizando coisas e pessoas, os quais circulam pelo planeta como se fosse a ‘aldeia Global’ de Marschall McLuham” (p. 29). Nesse contexto e na linha de raciocínio de que se está processando uma globalização econômica, uma globalização tecnológica e uma globalização política, a autora afirma que a globalização cultural seria “a transmissão ou a difusão, através das fronteiras nacionais, de conhecimentos, ideologias, expressões artísticas, informação (mídia) e estilos de vida” (ÁLVAREZ, 2008, p. 30). É nesse sentido comunicativo que o referencial de valores aceitos internacionalmente, enquanto conjuntos afetos às dimensões da temporalidade, do humano, do artístico, da natureza e da economia presentes nos bens do patrimônio e identificados, por exemplo, nas declarações acima, oferece um padrão normativo legal de orientação planetária, de contrato social explícito, que deve ser contemplado na produção, consumação e exploração, enfim, da gestão dos bens do patrimônio.
O tema da gestão dos bens do patrimônio permite, de maneira exemplar, examinar a capacidade de transmissão de valores associados à qualidade dos bens públicos repositórios das fontes motivacionais em relação ao patrimônio de uma sociedade. Essa condição de bem público, inerente aos componentes do acervo do patrimônio, está vinculada ao seu usufruto social e é, através desse usufruto, reconhecida e considerada na forma de valores, enquanto condição especial do atributo de bem público, evidenciando algumas dimensões humanas, sociais e econômicas, que afetam esse usufruto. Assim, a sua descoberta, identificação, preservação, acesso, disponibilização, guarda e apreciação, como práticas vinculadas à gestão, manifestam uma forma especial de interesse público bem determinado pela natureza de fonte de valores históricos, culturais, naturais e artísticos que permeiam a temporalidade de uma sociedade. Temos então dois aspectos definidores desses bens e moduladores de sua gestão. Primeiramente, identificamos uma dimensão da espacialidade dos bens. Enquanto efetivadora do interesse público, a gestão pode ser tratada em sua generalidade por um conjunto de valores que define o espaço do usufruto, como de interesse público. A partir da consideração da finalidade da gestão, temos uma dimensão temporal, pois, por ter como objeto o repositório cultural identificado nos bens, adquire uma dimensão de acesso à temporalidade, à história inscrita na própria existência desses bens (MASSEY, 2008). Considerando, como Cabral (2008), que a gestão social se caracteriza e é conceituada como a que reproduz valores e produz bens públicos, podemos tratar a gestão dos bens do patrimônio como social visto que, a partir do seu objeto de interesse – o fato social representado nesses bens –, tem como vínculos as duas dimensões apontadas: uma indicando o espaço público articulado e a outra indicando a representatividade temporal comunicada. Ambas as dimensões dotam o processo de gestão dos valores sociais de significados considerados relevantes pelos indivíduos, assumidos pelas organizações e pelas sociabilidades construídas no entorno
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3. Gestão social e bens do patrimônio
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dos bens e contemplam os valores pecuniários que traduzem uma representação do valor econômico atribuído a esses bens. A convergência da gestão em direção aos valores pode ser verificada experimentalmente por meio do exame de iniciativas e práticas na área e o V Enapegs 2011, dirigido ao tema Gestão Social como Caminho para a Redefinição da Esfera Pública. Esse encontro apresentou-se como um espaço acadêmico e dialógico, oportuno para a construção de uma amostra exploratória de comunicações e projetos. Para o exame da natureza específica da gestão social, considerando o foco dos bens do patrimônio o Eixo 4 – Gestão Social, Arte e Cultura: Valores e Tecnologias para a Gestão do Patrimônio das Cidades constituiu-se no esforço dirigido para examinar aquele tema central enfocando a condição de “bem público” do acervo cultural, do patrimônio histórico e das manifestações artísticas das cidades, vinculando o seu usufruto social às formas de descoberta, preservação, acesso, disponibilização, guarda, apreciação e comunicação dos bens do patrimônio. Nesse sentido, o Eixo 4 procurou operacionalizar os princípios que nortearam aquele encontro, quais sejam: circularidade (como ambiente de experiência de novas tecnologias); diversidade (como intersecção entre áreas do conhecimento e organizações diversas); dialógica (como integração de linguagens e perspectivas das manifestações culturais e artísticas); interdependência (incentivando a conexão em rede nesse campo); incerteza (valorizando a criação própria dos meios cultural e artístico); e inclusividade (apostando na originalidade específica própria do fazer cultural e do artístico). Entre os temas abordados no Eixo 4, surgiram contribuições em áreas tão diversas como: fotografia; teatro do oprimido; valor econômico e simbólico do patrimônio cultural; cultura digital; patrimônio imaterial, arte e ofícios, saberes populares, tradições e celebrações do sagrado; manifestações culturais; educação multicultural; empreendedorismo socioambiental; design e artesanato; educação para o patrimônio; literatura; jornalismo; e comunicação. Nesses temas, discutiu-se a gestão social em suas múltiplas dimensões – econômica, valorativa, operacional e de protagonismo social –, que, em condições específicas de sua intervenção na área do pa-
1. o patrimônio imaterial, como locus do enraizamento de identidades na modernidade, na temporalidade da juventude e na afirmação de seus vínculos de pertencimento;
2. a transdisciplinaridade, capilaridade e a leveza próprias da arte e da cultura, para abordar positivamente a questão do reconhecimento da igualdade pretendida pela gestão social;
3. o fenômeno da comunicação humana, entendido como capacidade da gestão social para possibilitar a expressão das manifestações diversas, atendendo, portanto, ao quesito da diversidade;
4. e a importância da necessidade da avaliação como método e instrumento aferidor e explicitador de mudanças, impactos, valores e resultados dos processos de gestão.
No debate conclusivo do encontro, os participantes assim se expressaram, acerca da relevância da proposta do eixo e das orientações da organização do V Enapegs: “A gestão social dos bens e processos do patrimônio contribui com a interpretação da condição humana, dando forma ao informe, de modo que descobrimos facetas antes ignoradas dos objetos, dos seres e dos seus produtos artísticos e culturais dotados de múltiplos e diversos significados”. Analisamos os artigos e as experiências apresentados nesse encontro com o concurso de uma metodologia desenvolvida por Cabral (CABRAL e MUZY, 2009; CABRAL, 2012) para a explicitação de valores no tratamento de projetos, cujo instrumento principal, o MBP, visa identificar o conteúdo valorativo e sua vinculação com os indivíduos e grupos sociais representados. Inicialmente, a elaboração de uma listagem de valores faz-se por meio do exercício de identificação dos termos e seus conteúdos na literatura pertinente, por exemplo, nos acordos internacionais e nos artigos. Com uma ro-
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trimônio, produz resultados e reproduz os valores comunicados pela natureza desses bens. Quatro aspectos merecem relevância, para as conclusões das discussões havidas:
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tina de questões e inferências (CABRAL, 2012), a metodologia permite arrolar os bens públicos produzidos nos projetos e associá-los aos valores que se pretende evidenciar com a sua consumação, materializando os pressupostos do conceito de gestão social apresentado acima, que vincula a reprodução de valores e a produção de resultados. A questão central que se apresenta, após a identificação de um termo, é saber se o seu conteúdo pode se desdobrar como prática de gestão, identificável nos projetos. Nesse sentido, os projetos são o campo de verificação do conteúdo esperado. Esse processo de inventariar bens públicos e respectivos valores vale-se do conceito de públicos constituintes (CABRAL, 2008) para associar os valores aos públicos que interagem nessas iniciativas. Esses públicos, no caso do patrimônio, são identificados como os instituidores dos projetos, seus beneficiários, funcionários, patrocinadores, doadores e sujeitos consumidores do bem do patrimônio na forma de participantes, frequentadores, clientes, etc. Esses públicos são dotados de expectativas com o projeto, necessidades a serem preenchidas, capacidades de colaboração, interesses na sua participação, e representações do significado social da iniciativa - Encir (CABRAL, 2008). Esses atributos podem ser diversos, coerentes ou contraditórios entre si, porém, por meio desses públicos e do processamento do interesse público difuso é que os valores serão socialmente comunicados e percebidos no espaço público. Essa metodologia mostrou-se bem-sucedida para desenhar os vínculos entre valores e resultados de projetos sociais e identificar o conteúdo valorativo que deveria ser investigado nos processos avaliativos, no sentido apontado por Sen (1999), que denominava de evaluative space a essa vinculação que permite precisar o objeto da avaliação. Tomado no contexto da avaliação, o MBP é construído a partir do referencial do espaço público e corrobora para afastar a pretensa intangibilidade dos benefícios, outrora tomados como expressões abstratas ou como resultados desconectados dos valores sociais que os conformam. Tomado além do contexto da avaliação, o MBP pode ser tratado como um instrumento para inventariar os valores centrais de um projeto. Sua aplicação a projetos na área
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do patrimônio permite um tratamento analítico para explicitar seu conteúdo valorativo. Resulta desse tratamento dos documentos e do conteúdo dos projetos apresentados no encontro um inventário de valores, comunicados aos públicos constituintes, e de metas, normas e objetivos esperados nesses públicos, os quais passam a responder por atitudes e posturas práticas infundidas pelos projetos. Esses achados, que compõem o inventário de valores e que denominaremos, por brevidade, de valores do patrimônio, se organizam em seis grupos temáticos, que reconhecemos no tema do patrimônio: valores da temporalidade; valores da vida; valores da arte; valores da cultura; valores da natureza; valores do desenvolvimento social e do progresso econômico. Um tema designa, portanto, uma área de impacto dos valores do patrimônio sobre a expressão, material ou imaterial, do homem e da sociedade. A recorrência ao conceito de impacto pretende apreender as possibilidades de mudanças, ou transformações, que a consideração dos valores, pelos indivíduos, possa operar na área, ou no tema em questão, na dinâmica da vida social. Dos seis temas identificados, o primeiro, a temporalidade, indica as crenças e os princípios que refletem a duração, a permanência e o tempo histórico como fiador das identidades. Indica valores que conferem à construção histórica da existência de cada um, em perspectiva com o seu tempo, o seu passado individual, o passado coletivo e a projeção do futuro. De um lado, concerne ao aprendizado e à experiência, enquanto de outro, concerne ao campo das possibilidades, das expectativas, em que se opera a possibilidade do devir e da perpetuação da existência da espécie. Os valores da vida, associados ao patrimônio, refletem a capacidade humana de atribuir significado universal e moral ao mundo, partilhando-o com o semelhante e com a diversidade dos seres. Dizem respeito à construção da identidade, e da hierarquização das escolhas para si e para o outro. Os valores da arte reconhecem a criatividade e os sentimentos propiciados pela fruição dos bens do patrimônio. Dizem respeito à manifestação da subjetividade humana, como expressão do espírito na construção da linguagem plástica, da invenção e do livre arbítrio.
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Os valores da cultura concernem à autenticidade, à originalidade, à informação e à representação simbólica. Dizem respeito ao cultivo e ao aprendizado dos costumes e técnicas da civilização e das diferenças entre os resultados do fazer humano. Os valores da natureza refletem a relação do homem com o planeta e com o território. Dizem respeito à ambiência, ao espaço que nos contem, limita, provê e acolhe, nos alimenta e no qual realizamos a experiência com a exterioridade, com a monumentalidade. Os valores do desenvolvimento social concernem à proteção, à legalidade e às sociabilidades relacionadas à responsabilidade do homem pela construção e por sua intervenção nos bens do patrimônio. Dizem respeito à inserção do indivíduo na coletividade, no senso de convergência e disputa, nas expectativas comuns e no exercício da individualidade e no reconhecimento do outro e da diferença no semelhante. E, por fim, os valores do progresso econômico apontam para a sobrevivência, a economia e a responsabilidade sobre a consumação dos bens e o valor do resultado do trabalho humano medido nessa escala. As designações desenvolvimento social e progresso econômico são usadas para mantermos vínculo com as orientações da Comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi (STIGLITZ, SEN, FITOUSSI, 2010) que apresentou um relatório do desenvolvimento humano contemplando-o como crescimento e progresso nas esferas social e econômica, na tentativa de unificar essas dimensões, e incentivando a análise da conexão entre o mundo social e o mundo econômico para o desfrute do bem-estar humano. Os valores do patrimônio classificados nessas seis dimensões apresentam-se, por vezes, de modo convergente, manifestando-se de maneira semelhante em duas ou mais das dimensões, relatando, portanto, uma região fronteiriça entre elas, na qual os valores guardam sua identidade, porém representam escolhas próprias das dimensões, ou se aplicam especificamente a cada uma das dimensões. Assim é, por exemplo, que encontramos no tema vida o valor entendimento que pode guardar congruência com o valor de participação, no tema desenvolvimento social. Essas convergências podem ser apuradas na prática através da técnica estatística de análise de similaridade, usada, por
Quadro 1: Inventário de valores do patrimônio. Temas
Valores do Patrimônio
Temporalidade
Identidade nacional; Pertencimento; Consideração com o futuro; Tradição; Memória; Herança; Equilíbrio; Opção para o futuro; Valor da existência.
Vida
Exemplo; Patrimônio comum; Respeito; Diversidade; Entendimento; Generosidade; Justiça; Paz; Tolerância; Liberdade; Vida excitante; Limpeza; Recreação e lazer; Biodiversidade.
Arte Cultura
Natureza
Criatividade; Design; Simbolismo; Beleza; Representação e significância; Harmonia; Sensibilidade; Opção para o futuro; Excepcionalidade; Autenticidade. Integração; Centralidade; Originalidade; Conhecimento; Técnica; Multiplicidade – Variedade. Preservação; Recursos naturais; Beleza natural; Paisagem; Fruição; Meio ambiente; União com a natureza; Monumentalidade; Biodiversidade.
D e s e n v o l v i m e n t o Bem-estar; Desenvolvimento; Legalidade; Social Responsabilidade; Limite; Autoridade autorização; Capital social; Segurança nacional; Integração; Cooperação; Participação; Credibilidade; Comunicação; Prestígio. Progresso Econômico
Sustentabilidade; Economicidade; Trabalho; Escassez; Riqueza; Risco; Perdas; Qualidade; Economia; Garantias; Acumulação; Consumo; Reserva de valor.
Fonte: elaborado pelos autores
4. Conclusão: uma agenda de pesquisa O inventário de valores do patrimônio não apresenta uma fina-
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exemplo, por Schwartz (2005). Outro exemplo dessa semelhança que pode ser investigada quantitativamente é dado pelos valores responsabilidade, capital social, integração, contidos no tema desenvolvimento social e pelos valores de progresso econômico, como sustentabilidade e trabalho. O Quadro 1 apresenta o inventário dos valores do patrimônio com a sua vinculação temática.
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lidade em si. Como um elenco coletado na literatura, e identificado metodologicamente em uma amostra de iniciativas, o inventário supõe alguns focos de interesse para a pesquisa experimental, submetendo-o à validação por meio de instrumentos de apuração das hierarquias e correlações eventualmente detectadas no conjunto. Para tanto, é preciso que esse inventário seja confrontado com outros esforços estabelecidos e validados que identifiquem estruturas valorativas. Entre esses esforços, destacamos três contribuições. Primeiramente, o fundamental e reconhecido estudo estrutural dos valores humanos de Schwartz (1992), iniciado em sua colaboração com Bilsky (SCHWARTZ e BILSKY, 1990) e de seus colaboradores no Brasil liderados por Tamayo (TAMAYO e PORTO, 2005). Esses estudos identificam aspectos motivacionais e psicológicos, em termos de um conjunto estabelecido de valores, de um elenco de dez tipos motivacionais e quatro dimensões que os agrupam. Os resultados são colhidos com instrumentos validados que se tornaram referência metodológica na área. O confronto de listas, como a apresentada neste artigo, e de sistemas estruturados permite o estabelecimento de determinantes das escolhas sociais e das preferências motivacionais individuais, sugerindo a comparação interpessoal e o exame de padrões grupais mensuráveis. A extensão dessa metodologia para o estudo dos valores organizacionais e para áreas específicas (TAMAYO e PORTO, 2005; PATO e TAMAYO, 2006) permite comparar esse inventário com os achados da cultura organizacional e com as oportunidades empresariais na área do patrimônio, examinando possíveis lógicas e estratégias de compartilhamento de valores. Em segundo lugar, sugerimos atenção às contribuições ao exame do conceito de valor público de Moore (2002) e Bozeman (BOZEMAN, 2007; JØRGENSON e BOZEMAN, 2007). Esses autores oferecem casos de identificação de valores públicos e inventários desses valores. O exame comparado dessas contribuições com o inventário sugerido pode esclarecer a questão do estabelecimento da agenda política e da administração pública para a área do patrimônio e a questão do conflito e da convergência dos interesses públicos e políticos em termos de comprometimentos valorativos.
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Em terceiro, destacamos a oportunidade de investigar a relação entre esse inventário e o conceito de espaço público contido na argumentação normativa acerca dos valores do patrimônio e na sua instrumentalidade enquanto garantidores de normas e atitudes. As iniciativas do Terceiro Setor são responsáveis, em grande medida, pela atualidade do tema do patrimônio, por sua repercussão e comunicação sociais, e pela gestão de seus bens. Cabral (2008), estudando a gestão das organizações sociais de interesse público, considerou o Terceiro Setor como espaço relacional de lógicas diversas, discursos e racionalidades emergindo do Estado, do setor mercantil e da comunidade, interconectados por um propósito comum de proteção e desenvolvimento sociais. Nesse campo intermediário de relações sociais, as organizações pertinentes apresentam-se como empreendimentos privados, que atuam formal ou informalmente movidas por propósitos solidários e cooperativos que se originam na expressão pública de cidadãos que interpretam a questão social, por exemplo, do patrimônio, e expressam-se por meio das suas missões organizacionais com o objetivo de participar da produção de bens públicos nessa área de interesse. Tratando o Terceiro Setor enquanto manifestação do espaço público, a autora o identifica como o espaço equipado de atributos, ou valores, que o definem normativamente e que são: representação de interesses coletivos; democratização; qualidade; efetividade: visibilidade; cultura pública; universalidade; autonomia; controle; defesa social; e sustentabilidade. Essa estrutura de valores impõe que a gestão social dessas iniciativas seja a que produza os bens e reproduza valores inerentes ao seu espaço de atuação. Portanto, o exame do inventário proposto relacionado aos atributos normativos do espaço público permite que se investigue o conteúdo instrumental associado aos valores como indutores de normas e atitudes. Metodologicamente, essas três linhas de investigação impõem à pesquisa e às iniciativas na área a adoção de práticas de avaliação para explicitar mudanças e impactos provocados por essas iniciativas, comunicando-os socialmente como um referencial da relevância dos bens e da adequação das iniciativas à valoração que lhes é
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socialmente atribuída. Como instrumento de gestão, a avaliação é recomendada pela literatura da área e, se conduzida em consonância com o conteúdo valorativo que determina a relevância social dos bens do avaliados, pode se constituir em um referencial para a gestão social nesse campo. É nesse sentido que relembramos a necessidade de superar a dicotomia Fato/Valor (PUTNAM, 2002), apontada no início deste artigo, conduzindo metodologias de avaliação que considerem os fatos e os valores, ambos como avaliáveis e mensuráveis para a determinação dos impactos. O inventário dos valores do patrimônio é a matéria-prima para a elaboração experimental de afirmações usadas nas avaliações de valores2. A vinculação com os temas permite que se mensure a percepção dos valores, pelos públicos constituintes das iniciativas, e projetos, de acordo com os temas estruturais da área. Embora exceda aos objetivos desta nota, é importante ressaltar que a mensuração é realizada com a aplicação de questionários nos quais as afirmações construídas acerca dos conteúdos que determinam os valores do patrimônio, em um projeto específico, são submetidas aos públicos constituintes para que a elas sejam atribuídas notas em uma escala de Likert. O tratamento robusto dos dados obtidos fornece hierarquias dos valores, análise das tensões e convergências, análise fatorial de clusters de valores, entre outros. Finalmente, é importante ressaltar que a prática da avaliação interessa não somente à pesquisa, mas principalmente ao estabelecimento de instrumentos e meios de comunicação e publicização dos resultados, dos impactos, e do conteúdo que concerne aos interesses dos públicos que se associam nas iniciativas do patrimônio. Assim, as ações de responsabilidade social empresarial, relevantes quanto ao aspecto da sustentabilidade econômica e da divulgação e reconhecimento das iniciativas, demandam práticas avaliativas que sustentem uma cultura de avaliação dos impactos. Chaterji, Levine e Toffel (CHATERJI e LEVINE, 2006; CHATERJI, LEVINE e TOFFEL, 2009) e Vogel (2005) problematizam os aspectos da insuficiência dos mecanismos correntes e usuais de avaliação e a fragilidade dos estudos de caso que procuram estabelecer correlações entre o desempenho econômico das empresas e suas iniciativas de apoio a projetos de responsabilidade.
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Notas
1 Estabelecido em 1992, o Centro do Patrimônio Mundial é o ponto focal e coordenador, dentro da Unesco, de todos os assuntos relativos ao patrimônio mundial, e tem o seguinte endereço: The World Heritage Centre United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Disponível em: <http://whc.unesco.org>. Acesso em: 16 out. 2011. 2 Alguns dos valores identificados exigem uma descrição sumária, que oferecemos a seguir. A contextualização destes, e daqueles imediatamente reconhecidos, para a elaboração de afirmações avaliáveis, é obra específica de cada situação, ou projeto particular.
Temporalidade Identidade nacional: senso de identidade com a nação. Pertencimento: senso de pertencer a um grupo de referência permanente. Consideração com o futuro: senso de continuidade e persistência. Opção para o futuro: possibilidade de usufruir do bem no futuro. Valor da existência: a temporalidade do bem que é relevante apenas por sua existência. Memória: senso de lembrar e ser lembrado. Tradição: garantia de ter origem e reproduzir conhecimento. Herança: senso de merecer um legado. Equilíbrio: senso de moderação e aprendizado com a experiência. Vida
Exemplo: proximidade com situações, ou pessoas exemplares. Patrimônio comum: interligação do usufruto e da posse. Respeito: senso de respeitar o próximo e a natureza. Diversidade: convivência com a diversidade. Entendimento: reconhecimento de razões alheias às suas. Generosidade: senso de oferta. Justiça: senso de justiça. Paz: natureza pacífica do patrimônio. Tolerância: reconhecimento das diferenças. Liberdade: senso de liberdade do patrimônio. Vida excitante: disposição para atividades arrojadas, novas e radicais. Limpeza: percepção de limpeza. Recreação e lazer: oportunidades de mitigação do estresse.
Criatividade: inovação. Design: valor comunicado pela concepção e elaboração de um objeto. Beleza: relevância do belo. Simbolismo: capacidade de unificar símbolos. Representação e significância: relevância da arte. Harmonia: senso de simetria e proporcionalidade. Sensibilidade: capacidade de sensibilização. Excepcionalidade: garantia de relevância e importância. Autenticidade: qualidade de veracidade e conferência com sua origem.
Cultura Integração: capacidade de integrar interesses. Centralidade: capacidade de representar um foco central. Originalidade: garantia de unicidade. Conhecimento: relevância para o saber. Técnica: relevância para a instrumentalidade. Multiplicidade – Variedade: garantia da diversidade cultural.
Natureza Preservação: garantia de manutenção. Recursos naturais: relevância e posição hierárquica dos recursos naturais. Beleza natural: relevância do belo. Fruição: deleite, prazer e usufruto. Meio ambiente: preocupação com o meio ambiente. União com a natureza: senso de pertencimento. Paisagem: senso de localidade e imersão no continente. Biodiversidade: consideração da biodiversidade. Monumentalidade: senso de grandiosidade do patrimônio.
Desenvolvimento Social Bem-estar: garantia de vida digna. Desenvolvimento: relevância para o desenvolvimento das pessoas. Legalidade: aceitação de normas legais. Responsabilidade: senso de pertencimento. Limite: reconhecimento de seus próprios limites. Autoridade - autorização: senso de necessidade de autorização para uso e consumo. Capital social: reconhecimento da capacidade e relevância dos bens do patrimônio. Segurança nacional: relevância estratégica para a nação. Cooperação: senso de união com objetivo comum. Integração: senso de pertencimento e coesão social. Participação: relevância da participação. Credibilidade: confiança no valor dos bens. Comunicação: significado dos bens. Prestígio: mesmo que eu não usufrua, outros o valorizam e me conferem prestígio. Progresso Econômico Sustentabilidade: durabilidade. Economicidade: uso econômico. Trabalho: resultado do trabalho.
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Arte
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Escassez: finitude. Riqueza: padrão de valor econômico. Risco: fonte de possibilidade de perda. Perdas: senso de perda iminente. Qualidade: senso de valor superior pela qualidade. Economia: importância do bem para a economia como recursos. Garantias: importância do bem como garantia econômica. Acumulação: senso de acréscimo de valor. Consumo: fonte de valor para consumo. Reserva de valor: fonte de preservação de valor.
1. Ideias iniciais
Valéria Giannella1 Edgilson Tavares de Araújo2 Vivina Machado de Oliveira Neta3
Este capítulo relata e reflete sobre as experiências possibilitadas, dentro do V Enapegs, pelo eixo temático “O papel das Metodologias Integrativas na ampliação da esfera pública”. O eixo não teve chamada de trabalhos, pois os seus coordenadores avaliaram que seria mais interessante abrir um espaço de experimentação direta de técnicas e vivências integrativas, que permitisse aprofundar a compreensão deste conceito, do que escutar relatos de experiências. Estes, por mais interessantes que fossem, continuariam a nos deixar confinados pela dominação do código lógico-verbal. Logo, a escolha foi de privilegiar o aspecto vivencial e que toda reflexão, troca e partilha se embasasse nele como num chão vivo e sensível. Esta abordagem foi, aliás, comungada pelo evento como um todo, cuja coordenação escolheu proporcionar aos participantes vivências integrativas em momentos chaves, assumindo poder marcar, desta forma, um caráter de evento criativo, inovador e realmente capaz de estimular trocas e aprendizagens valiosas. Queremos iniciar um trabalho que nos parece ao mesmo tempo desafiador, instigante e necessário. É a descrição de técnicas e dinâmicas cujo intuito é de ir além do domínio da racionalidade linear-instrumental e do código lógico-verbal, sendo os dois tidos, pelo paradigma dominante, como as mais refinadas, evoluídas e le-
1 Valéria Giannella é doutora em Políticas Públicas do Território pela Universidade de Veneza (Itália). Líder do grupo de pesquisa Paidéia - Laboratório sobre Metodologias Integrativas para a Educação e Gestão Social. Professora da Universidade Federal do Ceará – Campus Cariri. 2 Edgilson Tavares de Araújo é doutorando e mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialista em Estratégias de Mobilização e Marketing Social pela Universidade de Brasília / Unicef, bacharel em Administração pela Universidade Federal da Paraíba. 3 Vivina Machado de Oliveira Neta é associada a Via Vida Desenvolvimento Organizacional. Desenvolve e aplica metodologias integrativas, com foco em Diálogo e Gestão Criativa para lidar com conflitos. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela UFBA/CIAGS.
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gítimas ferramentas para interpretarmos e operarmos na realidade ao nosso redor. Ao mesmo tempo reconhecemos que o domínio da racionalidade linear-instrumental e do código lógico-verbal são hoje os bastiões da prisão na qual estamos socialmente e individualmente engaiolados, dispositivos que limitam nossa possibilidade de ver, sentir e sonhar. Descreveremos algumas das vivências praticadas no V Enape4 gs e refletiremos sobre o tipo de prática integrativa que cada uma delas permite, sobre as dimensões e inteligências, normalmente silenciadas, que elas nos permitem revelar ou, literalmente, descobrir. Tocaremos também numa avaliação dos efeitos que, a nosso ver, estas vivências possibilitaram aos participantes e em que elas podem ajudar nos contextos que nos são mais habituais: o da sala de aula e o dos trabalhos comunitários e organizacionais, para os muitos e muitas que, insatisfeitos com suas práticas habituais, queiram experimentá-las.
2. O que são as Metodologias Integrativas
O referencial das que hoje chamamos de Metodologias Integrativas surge, no final de 2007, a partir da consideração de práticas participativas cuja observação tornava evidente uma característica meio paradoxal que as marcava. Estas, apesar de fundar-se num discurso de inclusão e ampliação do número de sujeitos envolvidos na esfera pública, continuavam utilizando técnicas e métodos que, de fato, reafirmavam a exclusão clássica dos mais pobres, assim como de todos os que consideravam os assuntos ligados à dimensão pública, algo distante e incompreensível. O episódio que, concretamente, levou a este insight, foi: Salvador, Bahia, final do ano de 2007, analisando os desdobramentos de um projeto de desenvolvimento comunitário participativo na periferia da cidade - Pe-
4 Por limites de espaço estamos abrindo mão da descrição da vivência da História Inventada, praticada no começo da reunião anual da Rede de Gestão Social. Elementos descritivos desta técnica podem ser encontrados em Giannella e Moura (2009). É também impossível desenvolver aqui a descrição da oficina ministrada por Dan Baron e Manoela Sousa: “A teatralidade dos espaços público e íntimo: implicações para a gestão coletiva e criativa”, que integrou a programação do eixo sobre Metodologias Integrativas. No entanto, uma contribuição do próprio Dan Baron – Museu íntimo: diálogos entre cultura, educação e estética – encontra-se neste volume.
5 Eis o quadro obtido associando ao chefe de família itapagipano à quantidade de anos de estudos. A situação é a seguinte: 6,42% declararam sem instrução ou menos de 1 ano; 13,19% de 1 a 3 anos de estudo; 29,68% de 4 a 7 anos; (resultando estes três segmentos no 49.29% do total); 17,02% de 8 a 10 anos; 29,54% de 11 a 14 anos; 4,17% 15 anos de estudo ou mais; revelando que a maioria dos chefes de família tem baixa escolaridade; esses índices se reproduzem entre os demais integrantes da família, considerando a elevada taxa de evasão escolar. 6 O Índice de Analfabetismo Funcional (Inaf) é construído através da aplicação de testes e
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nínsula de Itapagipe, refletíamos, especificamente, acerca de uma atividade de construção de cenário futuro, realizada conforme os moldes de uma metodologia participativa já amplamente testada em contextos europeus. Ao relatar os resultados desta atividade, se tornou gritante o fato de que estávamos usando modalidades de envolvimento da comunidade local as quais, com efeito, acabavam confirmando as formas tradicionais de exclusão. Ao pedir para os participantes para analisarem a realidade do seu bairro, identificando avanços, problemas e soluções, assim como ao pedir-lhes para imaginarem um cenário futuro (dali a 10 anos) estávamos selecionando involuntariamente aqueles que possuíam alguma familiaridade com esta forma de pensamento (analítico, sistemático, projetivo). Considerando que a região5 na qual estávamos atuando apresentava taxas elevadas de analfabetismo e percentagem muito baixa de moradores com estudos de grau médio e superior, estávamos excluindo, de fato, a grande maioria dos que, em princípio, pretendíamos incluir: aqueles que não se relacionam com o mundo preferencialmente analisando, diagnosticando, levantando dados, problemas e soluções, mas, nem por isso, deixam de ter suas próprias modalidades de acesso e interpretação da realidade. Esta observação nos leva ao cerne da recente reflexão sobre os limites aparentes das instâncias participativas quando confrontadas com a situação concreta dos sujeitos que deveriam ser protagonistas desta participação. Como materializar o ideal da participação cidadã em um país (para falar apenas do Brasil) cuja situação com respeito à educação da população é, pelo menos, crítica? Citaremos aqui as considerações de Pinho (2010), o qual, depois de trazer a tona vários fatores culturais e de história política que dificultam a adesão dos brasileiros a um etos participativo, coloca dados sobre a situação educacional da população os quais, aparentemente, fecham a boca de qualquer preconizador da participação cidadã.6 O autor conclui:
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Assim acreditamos que, na situação do Brasil, fica muito distanciada a possibilidade de interações deliberativas, onde todos tenham voz, porque a capacidade de compreensão da realidade, de efetivo engajamento e acompanhamento de um debate, de construção de raciocínios e verbalização dos mesmos ficam extremamente prejudicados (PINHO, 2010, p. 46).
O que acaba sendo sugerido, entre outros elementos que aqui não cabe citar, é que “mais do que lutar pela participação que ficaria comprometida nas condições estruturais [...] da realidade brasileira, empurrando massas para o debate onde serão tragadas pelos mais capacitados, seria lutar pela progressão das condições educacionais” (PINHO, 2010, p. 51). O argumento de Pinho (2010), independente de estarmos de acordo ou não com ele, parece muito interessante, pois leva às consequências extremas um problema fundamental implícito na assunção da chamada racionalidade dialógica, comunicativa ou argumentativa, saudada, faz alguns anos, como uma grande revolução no campo das ciências sociais aplicadas. Através destes adjetivos se chama atenção para a dimensão de construção cooperativa do sentido e do acordo intersubjetivo acerca da realidade, especialmente em situações que visam à resolução de problemas. Como já destacado em Giannella (2008), desta forma tenta-se tirar a racionalidade do domínio exclusivo do cálculo, do tecnicismo, da instrumentalidade e objetividade absoluta, para colocá-la no campo da comunicação intersubjetiva, da escuta do outro e da necessidade de entendê-lo. Apesar disso, o ponto crítico destas referências é que elas nos apresentam um mundo no qual o direito de cidadania pertence apenas aos bem educados, àqueles que saibam participar questionários, a cada dois anos, a cerca de dois mil pessoas em todas as regiões do Brasil. Segundo o Inaf, em 2007, além de um 7% de analfabetos, o Brasil apresenta uma percentagem de 21% de pessoas, as quais, se bem que capazes de decodificar letras e números, são incapazes de interpretar um texto simples ou ler números na casa dos milhões. Isto é, são analfabetos funcionais. O autor continua adicionando dados sobre a quantidade de estudantes que, na terceira série do ensino médio, tem os conhecimentos da língua portuguesa exigidos para este estágio escolar. Apenas 1 em cada 4 estudantes alcançaria este nível desejado enquanto, passando para a oitava série, este índice passa a ser de 1 a 5 (VILELA, 2008 apud PINHO, 2010).
[...] apesar da imensa relevância da chamada “virada argumentativa” nas ciências sociais aplicadas, ela acaba enfatizando ainda, de forma quase que exclusiva, a dimensão do raciocínio lógico-formal como única base de diálogo. Restam no escuro aqueles aspectos radicalmente humanos que são as emoções, os sonhos, os desejos [...] Nosso desafio é o de passarmos de uma visão abstrata e “esterilizada” de racionalidade a uma “integral”, que fale do sujeito real e reconheça o conjunto de materiais que influenciam comportamentos e decisões de cada ser humano: a razão com a emoção o cálculo com o sonho e o desejo, o interesse com a ética (GIANNELLA, 2008, p.18).
A partir deste tipo de reflexão começamos a identificar na clássica atitude dicotômica própria da visão cientificista (positivista), um ponto fundamental de vulnerabilidade com vistas à efetivação das ambições de ampliação da esfera pública e da participação cidadã. A separação entre razão e emoção, mente e corpo, matéria e espírito, ciência e arte, objetivo e subjetivo, capacidade analítica e criativa, calculo e intuição, planejamento e improvisação, tem sido o leme da visão que nos criou (socialmente, educacionalmente e cientificamente). Logo, o que precisamos buscar neste momento de crise e de busca de novas referências é, de vez, a integração destas dicotomias, antes tidas como opostas. Portanto, chamamos de Metodologias Integrativas (MI) as abordagens, técnicas e métodos norteados pela busca de uma recomposição entre as partes cindidas do ser humano. A mente se incorporando, a racionalidade tornando-se sensível, a ciência subjetivando-se, o método abrindo-se para a intuição e a criatividade etc. Em termos
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da luta para apresentar os melhores argumentos racionais para sustentar seus pontos de vista na exigente arena democrática. Pois, cabe perguntar: e aqueles cujo acesso à instrução e educação foi praticamente negado, quais serão as suas reais possibilidades de participação? Será inelutável continuar com a ideia de que a racionalidade, agora argumentativa ao invés de tecnicista, é indiscutivelmente a única e superior entre todas as formas dos seres humanos interpretarem sua realidade?
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de definição elas representam uma evolução coerente do que chamamos anteriormente de Metodologias não Convencionais (GIANNELLA, 2008; GIANNELLA e MOURA, 2009), cumprindo a passagem de uma definição negativa para uma positiva. O embasamento teórico mais detalhado e o enraizamento desta proposta no campo da virada paradigmática, do positivismo para o pós-positivismo, que caracteriza as MI também pode ser conferido em Giannella (2008). Para finalizar esta parte introdutória é interessante observar que esta proposta origina-se de uma instância de inclusão dos radicalmente excluídos, os quais, mais ainda do que economicamente carentes, são o/as que são subjugados pelos códigos da racionalidade dominante, lógico-verbais, analíticos e sistemáticos. No entanto, ela se revela libertadora para qualquer sujeito e, mais especificamente, oportuniza novas abordagens e novos olhares sobre todo processo educativo. Isso significa que as MI se propõem a ser um referencial relevante no âmbito das ações de gestão social, extensão universitária, aprendizagem organizacional e das práticas participativas dos mais variados tipos, assim como no campo da didática formal, isto é, em sala de aula. De fato, olhando para as mais atuais pesquisas sobre as dinâmicas cognitivas e, em particular, de aprendizagem, assim como as afirmações de muitos neurocientistas, o que chama atenção é o destaque que assume a mesma questão levantada acima: a importância da re-ligação entre as polaridades dicotômicas que estruturaram o paradigma positivista. É reconhecido o efeito facilitador da existência de um envolvimento emocional e prazeroso ao nos adentrarmos em qualquer experiência de aprendizagem, assim como está clara a capacidade do medo e das tensões serem fatores de desestímulo ou até de trava do processo. Ao mesmo tempo, acompanhando pesquisas como a de Gardner (2000), também se reconhece a existência de múltiplas inteligências, fato que invalida a ideia tradicional de que, apenas as capacidades lógico-matemáticas destacam uma pessoa como inteligente, para afirmar as inteligências linguística, musical, espacial, corporal-cinestésica, intra e interpessoal, naturalista, existencial, como outras tantas modalidades de conhecer e interpretar o mundo. Afinal de contas, tudo indica que chegou a hora de, para além da crítica, agir no sentido de expan-
Meu maior desafio era aceitar o novo, pois apesar de ser educadora militante, tinha muita resistência à transformação. Por mais que falássemos de uma educação diferente, estava presa no medo de errar. Com o passar dos dias fui me entregando àquela metodologia que dava autoconfiança para me libertar [Gorete Barradas (educadora popular), em BARON, 2011, contracapa].
Apontamos aqui para algumas práticas que instigam e oportunizam processos de re-integração, dos corpos, das emoções e das nossas capacidades de expressão criativa, em nossas propostas pedagógicas. É importante destacar que a simples leitura destas indicações não pretende resolver o problema da capacitação de sujeitos (professores, educadores, gestores sociais) formados de acordo com outros paradigmas educativos. O uso de técnicas, vivências e dinâmicas não pode ser trivializado, como se estas existissem fora e independentes de arcabouços teóricos e processos vivenciais de re-construção subjetiva do próprio educador. Assim, o intuito das linhas a seguir é apenas o de revelar a existência de um âmbito de possibilidades, talvez escondidas para muitos; estas possibilidades, caso interessem, pedem a abertura
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dirmos esta visão reducionista, que pretende o mundo compreensível e explicável só a partir da racionalidade linear, instrumental e objetivista, para reconhecermos que, será a dança contínua entre razão e emoção, ciência e arte, corpo e mente, subjetivo e objetivo,... que pode nos permitir uma aproximação com a complexidade do mundo que nos rodeia. É exatamente seguindo este norte que experimentamos Metodologias Integrativas em diferentes espaços de aprendizagem. No entanto, reconhecemos que esta recomposição não é nada óbvia, nem natural e que, muitas pessoas que poderiam aproveitá-la (professores, educadores, técnicos, agentes de desenvolvimento, lideres comunitários), ainda estranham bastante ao ouvir falar de re-integração dos corpos ou das artes, ou emoções, nos processos que, diariamente, lhes cabe facilitar. Expressões de surpresa e perplexidade, ou até de espanto, desenham-se nos rostos dos que escutam estas afirmações; embora, muitas vezes, estas mesmas pessoas afirmem as insatisfações e angústias vivenciadas em sala de aula, ou em outros lugares de suas práticas, por não conseguir mobilizar a integralidade da inteligência dos estudantes, nem estimular seu interesse e capacidade criativa.
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de processos de formação, capacitação e ressignificação que os educadores precisam fazer de suas próprias práticas.
2.1 A importância das Metodologias Integrativas para o fortalecimento da Gestão Social
Antes de entrarmos nos relatos e análises das Metodologias Integrativas vivenciadas no Enapegs, cabe brevemente destacarmos a importância delas para a Gestão Social, principalmente, no que diz respeito às mudanças nos processos de formação de gestores impactando nos modos de gerir as organizações. A busca por outras racionalidades substantivas, noéticas, dialógicas e comunicativas para o agir da gestão é geralmente anunciada como pressuposto dos conceitos de Gestão Social. Não por acaso, autores como Tenório (1998; 2008), Carvalho (1999), Singer (1999), ou Fischer (2002), França Filho (2003; 2008) enfatizam em suas conceituações, de modo mesmo que indireto, que a gestão social busca novas racionalidades para romper com o mainstream da gestão e do seu fundamento numa racionalidade apenas instrumental. Cabe, porém, questionar até que ponto as práticas de partilha e trocas de saberes e os processos de formação em gestão social, entendidos aqui como a base para a proposta mudança paradigmática, também têm alterado seus modos “racionais” de ensino-aprendizagem. Parece-nos aqui existir uma das chaves para mudança paradigmática pretendida pela gestão social: escutar ativamente, equalizar participativamente e mediar efetivamente vozes e pensamentos distintos, porém comuns, quanto à finalidade de transformar o social. A partir do reconhecimento da heterogeneidade de referenciais teóricos sobre gestão, cuja epistemologia não é evidente (GUALEJAC, 2007) e sabendo-se que a gestão social é um campo ainda em construção, embora precocemente institucionalizado (BOULLOSA e SCHOMMER, 2009), as Metodologias Integrativas podem contribuir para consolidar as práticas neste campo. Assim, elas atuam não apenas como meio para favorecer o diálogo entre comunidades, gestores sociais e universidades, mas também entre os próprios pensadores, propositores e estudiosos daquilo que chamamos de Gestão Social. Para tanto, propomos que os diferentes atores, envolvidos no fazer e pensar
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epistemologicamente a Gestão Social, se disponham a colocar entre parênteses, mesmo que momentaneamente, os tradicionais modelos prescritos pelos experts em gestão, mergulhando na experimentação do novo – principalmente em termos de formação. A relativa falta de ousadia nas experiências de formação em Gestão Social nos coloca diante das ambiguidades e ambivalências que caracterizam a institucionalização deste campo enquanto apenas mais uma disciplina, no qual em verdade, pretende-se a prática inter e transdiciplinar. Muitas vezes ensina-se, sem se questionar igualmente o como e o que ensinar (CONTRERAS, 2005). Fala-se e prega-se a Gestão Social, mas, será que se faz uma gestão diferenciada, de fato, da sala de aula ou dos outros contextos pedagógicos? Estas são questões que muitas vezes não estão no centro das discussões dos eventos científicos. O que se percebe de modo mais evidente ou é o medo de experimentar e dialogar não apenas usando o cognitivo, mas também o sutil, o corpo e as emoções; ou as resistências com aquilo que muitas vezes é visto como “diferente”. Acreditamos que ao usar Metodologias Integrativas, olhando, escutando ativamente, movimentando o corpo, tocando, cantando, sentindo, sorrindo, encenando, brincando, não apenas aprendemos lições sobre gestão, mas temos a oportunidade de fazer Gestão Social, já que precisamos decidir e agir num dado espaço-tempo considerando o Ser humano de modo integral. Assim, também consideramos a aprendizagem como um processo e não como um produto, que aprender não é somente uma atividade cognitiva, mas também emocional e corporal (CONTRERAS, 2005); e que a gestão é um mix entre a ciência que traz a análise sistemática dos conhecimentos, a arte que inspira discernimentos criativos e traz a integração, e a habilidade prática que faz conexões alicerçadas em experiências tangíveis (MINTZBERG, 2010). Ao propor algumas vivências integrativas, durante o V Enapegs, pudemos perceber a necessidade e os ganhos ao se mudar os processos básicos da gestão no sentido de sair do ritmo implacável que esta tradicionalmente vem nos impondo. Assim, pode-se perceber que é necessário mudar a lógica da “gestão gerencialista” que impõe a brevidade e variedade de atividades, a fragmentação e descontinuidade, a mera orientação para a ação, a natureza lateral
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nas relações de trabalho (MINTZBERG, 2010). Começamos a compreender que, para aprender gestão social, é preciso “desaprender” (CONTRERAS, 2005) formas consolidadas e aparentemente naturais de pensarmos, não apenas a gestão, e sim, no geral, o governo de processos coletivos. Passaremos agora a relatar e analisar alguns momentos do evento que foram desdobrados através do uso de MI, além das vivências que compuseram a proposta do eixo específico sobre MI. Compreendemos que, estas experimentações todas, resultaram em um evento diferente, no sentido de ampliar e aprofundar nossa capacidade de praticar o que acreditamos ser a Gestão Social.
3. A abertura do V ENAPEGS. O mito do espelho. Olhar no espelho e reconhecer no outro o que há de melhor em si: o primeiro desafio
Nadie aprende solamente con mirarse en el espejo. Todos aprendemos - y a veces nos transformamos al afrontar las diferencias que desafían nuestra experiencia y suposiciones (HEIFETZ e LINSKY, 2003 apud CONTRERAS, 2005, p. 268).
Um mito. Uma história. Pessoas se reconhecendo. Pessoas reconhecendo-se. A dança do diálogo com o mito do espelho abriu o Enapegs. O mito do espelho (MACHADO, 2006) ajudou a construir alguns dos princípios que nortearam o Enapegs. Traduzi-lo numa vivência foi a possibilidade de dar corpo à alma, daquilo que já estava acontecendo e antecedia o encontro. O auditório é o local da vivência e cerca de 80 pessoas estão lá para participar. Paula Schommer, a coordenadora geral do evento, inicia o encontro falando do vínculo entre alguns dos princípios do Enapegs e o que será experimentado naquele momento. Iniciamos a vivência com uma música suave para ajudar os participantes a entrarem em contato com seu corpo, suas emoções, contribuindo para que estivessem presentes, reduzindo as possibilidades de estarem com o corpo presente e, no entanto,
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ausentes, afastados pelo pensamento, distanciados da experiência do aqui e agora. Após este contato consigo, estimulamos o encontro com as pessoas, e forma-se um grande círculo com pares de pessoas voltadas uma para a outra. Cada pessoa recebe um pedaço de espelho. Solicitamos que, ao estarem uma em frente à outra, cada uma se reconecte com a respiração, com o corpo, seja com o bem-estar, seja com as tensões do corpo, assim como com as pressuposições que possam estar presentes ao estarem frente a frente. O passo seguinte é olhar o parceiro da dupla e falar de uma a três qualidades que percebe, que sente, esta pessoa expressa. Por exemplo, um parceiro diz ao outro: eu vejo em você coragem. Depois de fazer este reconhecimento, quem falou coloca o espelho que está na sua mão para que o parceiro que está sendo reconhecido se veja. Aqui um importante aspecto é colocar atenção no “como” este reconhecimento é realizado: no ritmo, naquilo que é sentido, naquilo que faz sentido, abrindo mão da pressa, abrindo a possibilidade de confrontar o desconhecido, de conectar razão e emoção. Seguindo o fluxo, o outro parceiro faz o reconhecimento para quem já lhe reconheceu. Após este movimento é solicitado que, aquela que primeiro falou vire o espelho na sua própria direção e faça um auto-reconhecimento, com as mesmas qualidades que externou como sendo do outro. Usando o exemplo anterior a pessoa dirá para si mesma: eu vejo em mim coragem. Esta última orientação, no entanto, só é fornecida após o primeiro par ter falado um para o outro, ou seja, o par que já fez o reconhecimento mútuo. A partir desta primeira interação todos os demais pares que se formarão no giro da roda seguirão esta orientação: reconhece o outro e se reconhece com as mesmas qualidades que reconheceu no outro. O pedaço de espelho serve como elemento instigador que coloca frente a frente a si mesmo e faz o encontro de si com o outro. Ajuda a perceber a diversidade, ao mesmo tempo em que as diferenças que vejo no outro podem tornar-se semelhanças quando altero a perspectiva de que sou responsável também pelo que percebo. Instiga a entrar em contato com as partes de mim que estão no outro, ajuda a experimentar que somos partes de muitas partes. Ajuda a
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aproximação estimulando um contato que a intimidade de externar as qualidades pode causar, ajuda a aproximar os mundos da razão e da emoção – reconhecer e ser reconhecido por qualidades que são, na maioria dos casos, intuídas, sentidas, já que muitos, estão se encontrando pela primeira vez. E, mesmo os que já se conhecem, criam a possibilidade de externar algo que, mesmo conhecendo o outro não ousava expressar. E a roda vai girando e as pessoas vão se descontraindo. Aquilo que inicialmente parecia uma tarefa até incômoda, toma a forma, para alguns, de passos de uma dança. E nesta dança do reconhecimento podemos exercitar a essência do diálogo. Diálogo como reconhecimento mútuo (OLIVEIRA NETA, 2009). Diálogo no entendimento de que cada pedaço de espelho espelha o outro e a si mesmo nas qualidades expressadas, que vão além do código lógico verbal porque incluem a razão com a emoção, porque incluem o corpo com a mente, porque incluem a música, porque incluem os sentidos. A roda se completa quando o primeiro par se encontra novamente. Há um contraste entre o momento inicial e o desenrolar da interação que marca a vivência. No momento inicial, ao lidar com o desconhecido: como dizer qualidades daquela que eu nunca vi, que estou encontrando agora, pela primeira vez? Como me sentir à vontade para expressar tal intimidade? Como lidar com as pressuposições - o que será que o outro vai pensar? Como vai receber o que eu vou expressar? Como lidar com as diferenças - e se eu não identificar qualquer qualidade, o que fazer? Como lidar com a possibilidade de inadequação... E agora, no momento final, quando aconteceu a interação? Agora o sentimento de aproximação e pertencimento se faz presente. Há uma perceptível diferença entre este momento e o início da vivência proposta. O giro da roda inclui contar o mito: Conta-se que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o mundo espiritual, chamado de Orun e o material, chamado de Aiyê, havia um grande espelho: o grande espelho da verdade. Tudo aquilo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia–se, exatamen-
E contando o mito provocamos a reflexão desta experiência vinculando-a aos princípios do Enapegs: Circularidade - que o próprio evento constitua espaço de experiência e experimentação metodológica na forma como é construído e nas reflexões que promove. Diversidade - de formatos, de áreas do conhecimento científico e não científico, de organizações, de regiões e de pessoas participantes. Diálogo e dialógica – abertura de possibilidades de interação com linguagens diferenciadas, com arte, teatro, “contação” de histórias. Interdependência – estabelecendo conexões em rede e atentando para o movimento que nos une. Incerteza – movimento de refletir, ao nos relacionarmos com o conhecimento, com o pensamento, com o outro, considerando as nossas pressuposições como uma, dentre tantas outras possibilidades existentes – conhecidas e a conhecer. Suspensão dos estados de “certezas”. Ampliação do processo de aprendizagem. E encerrando a vivência, compartilhamos significados. De acordo com Bohm (2005) os significados coletivamente compartilhados são poderosos. Instigamos então o diálogo experimentando a definição de Bohm:
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te, no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas. Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade. Naquele tempo vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, inadvertidamente, perdendo o controle do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando O encontrou tranquilamente deitado à sombra do Iroko. Olorum ouviu as desculpas da jovem com toda a atenção. Em seguida declarou que daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade no mundo. Declarou, ainda: de hoje em diante quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade, provavelmente a sua própria verdade, porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra (MACHADO, 2006).
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Diálogo é um processo multifacetado, que vai além das noções típicas do linguajar e do intercâmbio coloquial. É um método que examina um âmbito extraordinariamente amplo da experiência humana: nossos valores mais intimamente arraigados, a natureza e intensidade das emoções; os padrões de nossos processos de pensamento; a função da memória; a importância dos mitos culturais herdados; e por fim a maneira segundo a qual nossa neurofisiologia estrutura a experiência do aqui-e-agora (BOHM, 2005, p. 7).
Cantamos juntos uma música de Rita Lee, chamada Atlântida, que fala de um mito. Atlântida! Reino perdido De ouro e prata Misteriosa cidade... Atlântida! Terra prometida
Dos semideuses Das sereias douradas... Eu sou o pescador Que parte toda manhã Em busca do tesouro Perdido no fundo do mar...
Desde o Oiapoque Até Nova York se sabe Que o mundo é dos que sonham Que toda lenda é pura verdade...
Ao final, os participantes se cumprimentam e se abraçam, abrindo um encontro. Um encontro onde as pessoas possam criar possibilidades de realmente se encontrarem, de partilhar “re-conhecimento”, partilhar emoção, dialogar, incluindo corpomente, razãoemoção, teoriaprática, objetivando o subjetivo, subjetivando o objetivo. Sonhando com um mundo mais justo, mais igual e defrontando uma realidade que nos pede alterar o modo de condução, o modo de agir, o modo de ensinar, o modo de aprender o modo de fazermos encontros. O modo de nos encontrarmos.
Entramos na sequência de salas que vão hospedar o nosso eixo temático, salas aninhadas uma na outra. Buscamos arrumá-las de forma a possibilitar algumas opções de trabalho alternativas, mais íntimas e recolhidas ou mais dinâmicas e exigentes em relação ao tamanho do espaço. Estamos aqui, ansiosos e curiosos ao mesmo tempo: quem escolherá participar da nossa proposta um pouco ‘diferente’ dentro da ampla e variada programação do evento? Algumas pessoas já estão ali. São os companheiros de caminhada já conhecidos, e, não por isso, menos importantes; aliás, são eles que inoculam a força e ousadia necessárias para trazer a proposta das Metodologias Integrativas, finalmente, dentro de um Enapegs. Este evento, apesar de estar apenas em sua quinta edição, talvez seja o mais tradicional na área de Gestão Social; ele sempre se quis diferente dos outros maiores e mais antigos, de áreas contíguas, mas, até este ano, pouco experimentou em termos de metodologias inovadoras de idealização e condução. Aos poucos, outros participantes chegam. Como era de se esperar não são muitos, pois a concorrência das outras atividades paralelas, especialmente das sessões com apresentação de trabalhos, é grande. Mesmo assim, somos em torno de 15 pessoas (um pouco mais em alguns momentos e menos em outros, conforme as exigências de saída de cada um). Temos um plano de trabalho, acordado com os outros coordenadores do Eixo. Começaremos por uma atividade de acolhida e aconchego aos que aqui chegaram, reconhecendo-os como seres integrais, corpomentes, sentirpensantes (MORAES e TORRES, 2004), os quais, provavelmente, precisam de um momento de transição, para fazer a passagem entre a abertura oficial do evento[1] e este espaço, diferente por finalidades e modalidades de condução. De acordo com os nossos princípios, instigamos a entrada na proposta do eixo pelo meio da dinamização sutil do corpo, através de uma caminhada lenta e concentrada na observação dos pequenos movimentos articulares que o próprio caminhar
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4. O eixo sobre Metodologias Integrativas. A presença do Corpomente nos processos pedagógicos
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implica, nas mudanças no equilíbrio, que se desloca de passo em passo, e da atenção focada na respiração, lenta, mas ritmada e profunda. Esta proposta de desaceleração e concentração na materialidade do corpo e da respiração, normalmente é percebida como ‘na contramão’ dos ritmos e do tipo de foco, exclusivamente cerebral, que se vivencia em eventos como este, bem como nos processos de gestão nas organizações. Apesar da surpresa, as reações que este tipo de proposta costuma gerar, são muito positivas. As pessoas que se dispuseram a integrar o trabalho estão, provavelmente, em busca de algo novo. Elas já tinham alguma queixa ou angústia, derivante das modalidades hipercognitivistas e que excluem qualquer possibilidade vivencial, assim como da tradicional falta de tempo que grande parte das apresentações e falas sofre, neste tipo de eventos. Nossas programações estão sempre superlotadas e o fato de estarmos atrasados é regra. Assim, a pressa para recuperar o tempo perdido e a pressão sobre qualquer elemento que possa aparecer uma “perda de tempo” são máximas. Nesta situação, a proposta de nos darmos um tempo para nos reconectarmos conosco mesmo, com nossas percepções mais simples e com a nossa própria respiração, pode se revelar uma proposta libertadora. Os participantes encontram, inesperadamente, o espaço para se sentir, física e emocionalmente: podem apreciar o entusiasmo, o cansaço, ou a tensão; têm a possibilidade de ‘assentar a poeira’ das muitas informações adquiridas, das ideias e argumentos consensuais ou conflituosos; podem, finalmente, simplesmente chegar até o aqui e agora, levando os seus corpos para junto de suas mentes e se sentir presentes. Esta simples experiência pode ser extremamente benéfica e prepara o terreno para os passos seguintes. Durante alguns minutos procuramos nos reencontrar com a respiração e com as sensações do corpo e apreciar a relação entre as nossas mentes superestimuladas e corpos esquecidos. Assim, depois disso, iniciamos alguns alongamentos bem suaves, aproveitando imagens cotidianas ou brincando com a força
5. As possibilidades do conhecimento intuitivo/ empático
Ao nos concentrarmos no corpo, na respiração e na busca da presença, no momento, já estamos, de fato, experimentando as Metodologias Integrativas. No entanto, na maioria dos casos, estamos acostumados com o predomínio do código linguístico e racional, e pedimos por explicações que se encaixem neste padrão. Iniciar com uma introdução e uma definição do que são as MI seria o tradicionalmente esperado. Ao invés disto, acordamos que privilegiaríamos o recurso a outros códigos, na tentativa de reequilibrar o costumeiro domínio da fala, analítica e sistemática. É claro que, não queremos descartar ou menosprezar o papel destas modalidades; nosso objetivo, no entanto, é revelar e apreciar outras, normalmente esquecidas e, acima de tudo, explorar os resultados de um uso integrado delas. Assim, combinamos que, antes de atender a pergunta óbvia: ”O que são as Metodologias Integrativas”, procuraríamos experimentá-las. A experiência então, já tem início desde o momento em que solicitamos que se colocasse foco na respiração e no movimento do corpo. Esta foi a alternativa que tomou o lugar da tradicional introdução. Eis 7 Estamos usando aqui uma modalidade de escrita dialógica no modelo já experimentado em Oliveira Neta (2009).
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de gravidade, para que os movimentos surjam de forma natural e quase sem esforço. Estas práticas conseguem normalmente, em poucos minutos, levar os participantes a um estado de leveza, com uma sensação mais harmoniosa e equilibrada entre corpo e mente, e mais dispostos para continuar buscando. E agora perguntamos para você leitor/a: o que está percebendo neste momento, ao ler estas possibilidades, talvez nunca experimentadas durante de uma conferência? Como está sentindo isso repercutir no seu corpo/mente? Relaxou? Ficou irritado/a? Tem vontade de fazer um teste? Será que isso responde a alguma inquietação que você já vivenciou? 7 Está se perguntando o que isso tem a ver com Gestão Social? E o que você pensa que uma abordagem desta natureza tem para contribuir com processos pedagógicos?
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então que, para entrarmos no cerne da definição, para apreender as MI e sobre as MI, propomos a ‘leitura das mãos’. Ao falarmos de leitura das mãos, logo chegam à cabeça imagens de ciganas de saias rodadas, pedindo para prever o seu futuro. Porém, neste caso, não é bem disso que estamos falando. Ao invés de prever o futuro nas mãos das pessoas, esta proposta se baseia na ideia de que a própria mão é um dos mais importantes meios que nos permite interagir com o nosso entorno; por meio dela manipulamos o mundo, trabalhamos, tocamos, acariciamos, batemos, criamos etc. Assim, pedimos aos presentes para se juntarem em duplas e ficarem confortavelmente sentados, pegando um nas mãos do outro. Este pegar das mãos é realmente um entregar: a pessoa cujas mãos vão ser ‘lidas’ as entrega ao parceiro, o qual as acolhe nas suas próprias mãos e começa a observá-las, tocando-as, percebendo o seu calor, textura, forma, cor, maciez, dureza, calos, cuidado de detalhes, dedicando uma atenção especial a cada elemento e a cada uma das mãos, enquanto entidade única e nunca igual a nenhuma outra; exatamente como cada pessoa. Cada um (a) da dupla dedica um tempo à observação das mãos do outro tentando perceber o elo entre elas (mãos) e a própria pessoa a quem estas mãos pertencem. O que estas mãos estão me dizendo do ‘dono’? Que pessoa é esta? O intuito não é julgar, mas, apenas, explorar e entender. No final, há um tempo para que cada dupla possa ter um momento de socialização das percepções obtidas ao longo da experiência: cada um vai revelar para o/a outro/a o que sentiu e receber o retorno do parceiro. Após isso, há um momento de socialização geral da experiência entre o grupo como um todo, sem que haja nenhuma pressão para que se fale, apenas deixando espaço para que, quem tiver algo importante para comentar, ressaltar, e/ou refletir, tenha a oportunidade de fazê-lo. Depois desta ‘leitura’ se torna evidente o poder que, por meio de uma escuta ativa do outro (que inclui emoção e razão), através da observação das mãos, temos de ampliar o conhecimento e a compreensão do outro à nossa frente. Para não tirar a graça da experiência, para quem quiser experimentá-la, não vamos contar nada de episódios acontecidos. Apenas diremos que esta simples dinâmica de observação e ‘escuta’, não baseada na racionalidade analítica e linear, e sim em dimensões como, a intuição e as emoções, impressiona bastante pela quantida-
6. A escuta ativa: desmecanização e ritualização da comunicação8 Passamos assim para mais uma etapa da programação do nosso eixo sobre MI no V Enapegs. Tínhamos previsto a possibilidade de vivenciarmos uma “Roda de Escuta” após o jantar do primeiro dia de evento, pois era este o único horário em que poderíamos aproveitar de pelo menos duas horas, sem problemas de chocar com outros limites, a não ser o do nosso próprio cansaço. A Roda de Escuta foi abordada em Giannella e Moura (2009) e tem sido repetidamente experimentada, durante os últimos dois anos, sendo uma das que mais nos proporcionam insights, surpresas e aprendiza-
8 A Roda de Escuta é o resultado de um patchwork de práticas e referenciais teóricos bastante diversos, mas todos marcados por alguns elementos comuns de ordem epistemológica e pragmática. A ideia de que eu ‘não possuo a verdade’, mas apenas visões parciais dela e que, portanto, ‘preciso da verdade do outro’, é um elemento comum de todas as possíveis ascendências identificáveis. Por sinal, destacamos a coerência desta constatação com o Mito do Espelho contado acima. Alem disso, algumas referências mais próximas são: a Escuta Ativa (SCLAVI, 2000); o peacemaking (GLASSMAN, 1998) e o counselling, além de práticas de tomada de decisão típicas de povos indígenas. A referência de Rubem Alves à “Escutatória”(ALVES, 2005) também são iluminantes. No espaço destas notas não vai ser possível aprofundar a reconstrução das raízes teóricas desta prática. Para alguns elementos a mais veja-se (GIANNELLA e MOURA, 2009).
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de e qualidade das descobertas que as pessoas são capazes de fazer, quando incentivadas a abrir canais de percepção do mundo costumeiramente desvalorizados, quando não abertamente censurados. Na roda geral do grupo, ao refletirmos sobre as colocações feitas pelos e pelas participantes, se faz também o link entre a vivência realizada e as MI. Já experimentamos várias vezes a clareza que o conceito assume após esta prática direta, a qual, pelo visto, permite encurtar, e muito, o caminho, de outra forma, mais tortuoso, da compreensão analítica e cognitiva. Ao mesmo tempo, queremos frisar o fato de que, esta compreensão não é desvalorizada, mas apenas deslocada do seu costumeiro lugar privilegiado. O que se busca, especialmente na parte de encerramento da experiência, é uma compreensão ampliada, que inclui a analítica, o que pode acontecer, justamente, pelo fato de termos não apenas falado de uma forma mais integrada de conhecer o mundo (neste caso, o mundo que é o outro), e sim experimentado-a diretamente.
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dos. Assim, não nos cansamos de construir ocasiões para que mais pessoas possam aproximar-se desta modalidade de comunicação e fruir das reflexões profundas que ela costuma provocar. Para entendermos tudo o que segue é útil dizer que esta modalidade de comunicação nos coloca num espaço ritualizado, diferente daquele que se instaura normalmente ao discutirmos em reuniões ou até, simplesmente, em grupos de amigos, onde a comunicação é balizada pelos mecanismos de afirmação do ego e do “concordo-discordo” (MARIOTTI, 2000). Podemos ir com a mente a muitas das nossas discussões, nas quais é fácil reparar a luta entre as verdades que estão se confrontando. Acontece com frequência que cada um esteja mais preocupado com a afirmação da ‘sua’ verdade do que, realmente, no escutar o que outro tem para dizer. Provavelmente, todos nós já experimentamos a sensação de quase não ouvir a fala do outro de tão ocupado, enquanto ele falar, a bolar o que deverá retrucar dali a pouco. Ou até de interromper o outro antes que tenha terminado de falar, convencidos de que já sabemos e entendemos o que vai dizer. Aliás, a interrupção do outro enquanto ele fala é corriqueira, e raramente é tida como ofensiva; posso até interrompê-lo para concordar com o que está falando... Assim, usando uma metáfora, poderíamos dizer que este tipo de dinâmica comunicativa se aproxima mais de uma luta do que de um ato cooperativo; o objetivo é convencer o outro a abandonar a verdade dele para abraçar a sua. Tem apenas um vencedor: o que conseguirá alcançar o objetivo exposto. Portanto, de forma quase inevitável, vistas as condições, este tipo de dinâmica não costuma gerar grandes avanços na possibilidade de entendermos quem está em nossa frente. Estas considerações estão na base da proposta da roda de escuta enquanto espaço de comunicação ritualizado pela presença de algumas regras e dispositivos de ação. Estes têm a função de evitar-nos a recaída em mecanismos de interação que são, ao mesmo tempo, totalmente aceitos socialmente, mas completamente disfuncionais, com vistas a uma comunicação mais rica, profunda e capaz de realmente aumentar as possibilidades de entendimento recíproco e convivência pacifica.
Dinâmica e regras para a roda de escuta9
- Toda roda acontece em torno de um tópico ou uma pergunta/ questão relevante para o grupo. Escolham qual será a questão objeto da roda. Chamamos isso de pergunta/questão geradora. - Definam se terá um facilitador (a) ou não. Isto não é obrigatório; depende do grupo. Seu papel é de relembrar as regras no começo da roda e de intervir – caso necessário – para tratar algum problema inesperado que aconteça ao longo da vivência. O facilitador (a) será alguém legitimado pelo grupo, mas, muito apropriadamente, este papel pode ser revezado entre os integrantes, conforme a familiaridade do grupo com a prática da escuta. - Usem a técnica do ‘objeto falante’. Isto significa que elegeremos um objeto (pode ser qualquer coisa, mas usamos, de preferência, algo de bonito e atraente), o qual será colocado ao centro da roda. Qualquer um (a) a que queira falar deverá levantar, ir até o centro da roda, e pegar no objeto. É ele que é o que nos dá o ‘poder de fala’ e, por outro lado, ninguém pode interromper quem tiver o objeto falante em mão. Quando terminar, quem falou recolocará o objeto ao centro e voltará ao seu lugar. A roda se encerra quando ninguém mais for buscar o objeto novamente. - Na roda de escuta costumamos dizer que se fala e se escuta ‘pelo coração’; significa esperar que sua fala surja de dentro, não apenas de uma construção cerebral e sim do seu sentir e da sua vivência. - Quando falar, procure ‘a medida certa’, não fale mais do que é necessário. Se você ficar conectado com seu coração, isto virá naturalmente. - Quando escutar, fique atento e aberto à escuta das emoções 9 Trata-se de uma versão modificada do texto presente em Giannella e Moura (2009, p. 52-53).
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A nossa roda, portanto, se constrói ao colocarmo-nos sentados em círculo e ao adotarmos a técnica do ‘objeto falante’ como dispositivo que governa a dinâmica da comunicação. Quem estiver com o objeto falará, atentando para as regras expostas abaixo e, quando tiver terminado, irá novamente ao centro da roda, colocará o objeto no chão e voltará ao seu lugar. Só então, outra pessoa poderá ir pegar o objeto e ter sua vez para falar.
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e das reações suas, do falante e do grupo. Porém seja testemunha! Apenas registre sem julgar e sem, por enquanto, raciocinar sobre esse material. Eis uma possível exploração do “escutar pelo coração”. - Tente não interpretar o que está sendo dito com base nos seus pressupostos; procure entender os pressupostos de quem fala. - Quando chegar a vontade de contestar ou rebater o que foi dito por alguém, tente entender porque isto está acontecendo; o que aquela fala mexeu dentro de você. - Não cruze conversa com ninguém; não acuse; não aponte, seja para concordar ou discordar. Fale na primeira pessoa, com base na sua vivência direta. - Os conteúdos de uma roda são confidenciais. Mantenha sigilo sobre o que foi relatado. Isto permite (junto com outros detalhes) fazer com que o espaço criado seja percebido como seguro pelos participantes. Por último, duas dicas gerais: - Encare e dê as boas-vindas ao silêncio: relaxe nele, escute-o e aproveite! Dentro do silêncio vai aparecer o tempo para falar e para escutar. - Se você se desapegar da vontade de afirmar seu ego e conseguir observar e se sintonizar com a sutileza do que está acontecendo com o grupo, tudo ficará bastante claro: o tempo do começo e do fim, de se calar e de falar. Só se dê a chance de experimentar. Boa Escuta!
A temática da roda que experimentamos no V Enapegs foi “O que era importante para mim na minha infância?” Como foi dito, o conteúdo de cada roda é confidencial e, portanto, não cabe falar a respeito. As considerações aqui evidenciadas são pequenos acenos às muitas questões levantadas por esta vivência. As funções de uma roda de escuta: ela é um excelente dispositivo para explorar questões/problemas e, também, para tratar conflitos de uma forma criativa (SCLAVI, 2000). A capacidade exploratória da roda talvez se explique pensando na seguinte situação: temos um objeto multifacetado e estranho no centro de um círculo de pessoas e, cada uma delas só pode relatar exatamente o que, da sua posição, ela observa. No final, evidentemente, o conhecimento que cada integrante do círculo terá daquele objeto estranho será muito maior do que no começo, simplesmente por ter escutado os relatos dos demais. Conforme a assunção de que, nossas sociedades contemporâneas são ‘complexas’ e que, portanto, muitas das questões que nos rodeiam são ’multifacetadas e estranhas’ (que poderia ser outra definição de complexidade), entende-se o valor de uma dinâmica que nos permite aproximar, de forma respeitosa e fértil a diferença de ponto de vista e o como essa diferença se constrói e consolida ao longo das nossas vidas. O que impressiona normalmente, ao encerrarmos uma roda, é a sensação de liberdade e amplidão devida à prática da escuta do outro; o receio de poder ficar preso pelas regras se transforma no seu exato oposto. Outra questão é a possibilidade da roda ser um método eficaz de gestão de conflitos. Neste caso a questão geradora seria uma formulação, aceita pelo grupo, do conflito a ser tratado10. Esta possibilidade se fundamenta nas duas regras expostas anteriormente: “Tente não interpretar o que está sendo dito com base nos seus pressupostos; procure entender os pressupostos de quem fala” e “Não cruze conversa com ninguém; não acuse; não aponte, seja para concordar ou discordar. Procure falar em primeira pessoa, com base na sua vivência direta”. Estas simples indicações de
10 Poderia ser, por exemplo, um princípio geral infringido pela ação de algum integrante do grupo.
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6.1 Algumas considerações sobre a roda de escuta
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comportamento são, muitas vezes, suficientes a transformar a uma dinâmica conflituosa em uma de diálogo possível. O fato é que o conflito se alimenta frequentemente de premissas implícitas discordantes, mas não tematizadas, da incapacidade e/ou não vontade de reconhecer uma posição outra, de feridas que dependem mais da falta de escuta do que da real vontade do outro. Até a presença, na roda, de outras pessoas além das diretamente em conflito (sejam elas duas ou mais), pode ser um elemento que contribui com o se instaurar de um processo dialógico onde antes existia apenas possibilidade de choque. Pois estas demais pessoas, ao relatar a visão delas, a partir de sua vivência direta, além de funcionar de testemunhas para a expressão do conflito, ampliarão a percepção possível da questão em jogo e mostrarão para os diretos interessados a existência de possibilidades alternativas de se olhar e interpretar o fator gerador de conflito. Uma observação final deve ser feita sobre o fato da roda se tornar um espaço seguro para falar, onde não se tem medo de ser julgado. Este processo ocorre, de costume, enquanto a roda acontecer. Pessoas que começaram com ‘um pé atrás’ e meio desconfiadas com ‘estas coisas estranhas’, se soltam completamente e presenteiam o grupo com testemunhos íntimos e riquíssimos, que jamais teriam imaginado poder fazer no começo. Esta possibilidade de se desconstruir o medo é crucial em qualquer processo de ensino e de aprendizagem, de suma utilidade, portanto, quer em sala de aula, quer em contextos comunitários. Esta capacidade de se criar um espaço de escuta, íntimo e aconchegante, também resulta de várias das regras colocadas acima. Só que aqui, por limites de espaço, deixaremos com vocês, leitores, a tarefa de descobrir quais delas são mais propícias para isso. Uma consideração derradeira, portanto, se impõe, e diz respeito à hipótese de considerarmos as regras da roda de escuta, nortes possíveis sempre que estivermos envolvidos em processos de comunicação que impliquem em múltiplos atores.
7. Da impossibilidade de concluir
Ensaiar uma conclusão para este artigo é algo difícil, já que as experiências vividas, quando as consideramos em sua multidimen-
Referências
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
ALVES, R. Escutatória. [s.l.]: 2005. Disponível em: <http://ouvidoria.petrobras.com.br/PaginaDinamica.asp?Grupo=254&Publicacao=320&APR ES=PUBL.> Acesso em: 20 de abr. 2008.
11 A noética (do grego nous: mente) é uma disciplina que estuda os fenômenos subjetivos da consciência, da mente, do espírito e da vida a partir do ponto de vista da ciência Como conceitofilosófico, em linhas gerais define a dimensão espiritual do homem. http://pt.wikipedia.org/
wiki/No%C3%A9tica
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sionalidade, não se exaurem na mera descrição das palavras. Por mais que detalhássemos, em qualquer tipo de linguagem, não conseguiríamos explicitar todas as nuances das percepções e reflexões convergentes em aprendizados, que as MI nos proporcionaram durante o V Enapegs. Aprendemos coletivamente sobre a essência da Gestão Social já que tivemos a possibilidade de nos percebermos enquanto Ser humanos, capazes de dialogar, mediar, sentir, se doar. O respeito, a disposição, a tentativa, a solidariedade e a noética11 se fizeram naturalmente presentes entre os e as participantes destas mediações de sentidos, significantes e significados cognitivos, emocionais, culturais, políticos, éticos, estéticos e espirituais. Eis aqui a chave para a mudança paradigmática anunciada no início do texto e que entendemos ser um caminho necessário para os gestores sociais de nossos dias, em suas práticas. Ao nos olharmos no espelho e reconhecer no outro suas/nossas qualidades; ao caminharmos e reconhecermos o nosso corpo vivo no espaço; ao conhecermos o outro pela leitura das mãos, confiando na nossa intuição e emoção, juntas com nossas capacidades de observação analítica; ao escutarmos ativamente, buscamos a compreensão e a capacidade de agirmos para futuros melhores. Por fim, queremos nos despedir com uma citação do Fernando Pessoa que, para nós, sintetiza poeticamente a necessidade deste momento:
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dências com o pensamento africano recriado na diáspora. Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. Salvador: UFBA, 2006. (Tese de doutorado).
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Airton Cardoso Cançado2 José Roberto Pereira3 Fernando Guilherme Tenório3 Ariádne Scalfoni Rigo5 Vânia Aparecida Rezende de Oliveira6
1. Introdução A Gestão Social, como campo de conhecimento científico, vem se consolidando na última década do século XXI no Brasil. Existem cursos (extensão, graduação, especialização e mestrado) sobre o tema e periódicos especializados, como os Cadernos de Gestão Social e a Revista Administração Pública e Gestão Social – APGS, dentre outras. Em 2008, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) lançou o Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Administração - Pró-Administração (Edital Pró-Administração Nº 09 /2008) com o objetivo de estimular a realização de projetos conjuntos entre programas de pós-graduação em Administração e, entre as áreas prioritárias, constava a Gestão Social (Capes, 2011a).
1 Artigo publicado anteriormente na Revista de Administração Pública e Gestão Social, APGS, vol. 3, n.2, abr./jun 2011. 1 Airton Cardoso Cançado é Doutor em Administração (UFLA), Professor do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional e do Curso de Administração da Universidade Federal do Tocantins (UFT), coordenador do Núcleo de Economia Solidária da UFT e membro da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS). 3 José Roberto Pereira é Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), professor associado da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Bolsista CNPq, Pesquisador Mineiro pela Fapemig e membro da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS). 4 Fernando Guilherme Tenório é Pós-Doutorado em Administração Pública pelo Igop/Universitat Autónoma de Barcelona (UAB). Professor Titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Coordenador do Programa de Estudos em Gestão Social (PEGS). Bolsista CNPq e membro da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS). 5 Ariádne Scalfoni Rigo é Mestre em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutoranda em Administração e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS). 6 Vânia Aparecida Rezende de Oliveira é mestre e doutorada em Administração pela Universidade Federal de Lavras (UFLA) e membro da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS).
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Gestão Social: conhecimento e produção científica nos Enapegs, 2007-201011
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A Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Administração (Anpad), em seus encontros anuais, chegou a criar, em 2003, a área Gestão Social e Ambiental, que, em 2005, passou a ser uma subárea da área Administração Pública e Gestão Social, permanecendo assim até 2008. Em 2009, com a reestruturação das áreas temáticas, a área Administração Pública e Gestão Social é dividida em 12 temas e nenhum deles contempla a Gestão Social plenamente, que permanece apenas como título da área. Em 2010, essa área foi excluída da Anpad, tanto no título quanto no conteúdo, sendo identificada como Administração Pública7. Em 2009, foi enviada uma lista de 279 pesquisadores à diretoria da Anpad apoiando a criação da área de ‘Sustentabilidade, Gestão Social e Ambiental’, pois a área de Gestão Ambiental também teve o mesmo destino da Gestão Social. A diretoria da Anpad rejeitou a proposta8, pois não considerou a Gestão Social (e também a Gestão Ambiental) como uma área do conhecimento, e, sim, como uma área de aplicação como gestão hospitalar e gestão do agronegócio (NASCIMENTO, 2010). Atualmente, um dos principais espaços para a discussão da temática da Gestão Social é o Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs. O evento é realizado anualmente pela Rede de Pesquisadores em Gestão Social9 - RGS desde 2007. Queremos mostrar, com este estudo, que Gestão Social é uma área de conhecimento relevante dentro das ciências sociais aplicadas, pela produção científica já realizada e pela organização de centenas de pesquisadores na Rede Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (RGS). Assim, esse texto tem como objetivo analisar e discutir a produção específica sobre Gestão Social nos Enapegs realizados entre 2007 e 2010, no intuito de compreender como vem sendo construído o entendimento sobre a temática neste espaço. Além desta introdução, este texto tem mais 4 seções. Na próxima seção apresenta-se uma breve contextualização conceitual da Gestão Social e a construção das categorias teóricas de análise. Na seção seguinte são apresentados os resultados e discussão. Ao final do texto estão as considerações finais.
7 Informações obtidas no site da instituição: www.anpad.org.br, acesso em 31 de março de 2010. 8 A proposta não foi levada para a Assembleia da Anpad, a decisão foi somente da diretoria. 9 Mais informações sobre a Rede de Pesquisadores em Gestão Social no site: www.rgs.wiki.br.
A delimitação do campo da Gestão Social tem sido, intensamente, debatida entre pesquisadores brasileiros na última década. Por um lado, a intensa utilização do termo tem levado à sua banalização e, por outro, tem estimulado o seu desenvolvimento como campo de conhecimento científico dentro das ciências sociais aplicadas. Segundo Fischer (2002) e Fischer e Melo (2006), é necessária a construção de um “mapa” que dê significado à Gestão Social, um marco teórico que permita melhorar a gestão das organizações e interorganizações. França Filho (2003, 2008) aponta para a necessidade de referenciais teóricos e metodológicos mais consistentes para a Gestão Social, sob pena da banalização do termo. Boullosa (2009) e Boullosa e Schommer (2008, 2009), por outro lado, mostram uma preocupação com a rápida institucionalização da Gestão Social, argumentando que ela pode deixar de ser um processo inovador, uma oportunidade para inovação em políticas públicas e se transformar em um produto modelizado, limitando seu desenvolvimento. Apesar do campo da Gestão Social ainda estar em construção (BOULLOSA, 2009; BOULLOSA; SCHOMMER, 2008, 2009; FISCHER; MELO, 2006; FRANÇA FILHO, 2003, 2008; GIANELLA, 2008; PINHO, 2010), já foram realizados alguns avanços. Oliveira, Cançado e Pereira (2010) apresentam e discutem uma aproximação teórico-conceitual entre Gestão Social e esfera pública na perspectiva habermasiana. Cançado, Tenório e Pereira (2011), após uma revisão do estado da arte da Gestão Social, apresentam suas características. Segundo os autores a Gestão Social acontece por meio da “tomada de decisão coletiva, sem coerção, baseada na inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e no entendimento esclarecido como processo, na transparência como pressuposto e na emancipação enquanto fim último” (CANÇADO; TENÓRIO; PEREIRA, 2011, p.697). A seleção dos artigos analisados no período de 2007-2010 nos eventos do Enapegs levou em conta a presença do termo “ges-
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2. Gestão Social: breve contextualização conceitual e metodologia de análise
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tão social” em alguma parte do texto, pois a intenção foi entender como este termo é utilizado pelos autores. Dessa forma, a pesquisa foi realizada em três fases: pré-análise; análise; inferência e interpretação. Essas três fases correspondem à análise de conteúdo desenvolvida e aplicada por Bardin (2009). Na pré-análise foi realizada uma leitura inicial (ou leitura flutuante, segundo a terminologia de Bardin) e a escolha dos documentos a serem analisados (corpus). A segunda fase consiste na adequação do corpus às categorias teóricas de análise identificadas. A última fase acontece com a interpretação dos resultados e a realização das inferências sobre o material produzido. O interesse nesse estudo foi construir as categorias teóricas de análise de forma a identificar a utilização do termo [Gestão Social], em outras palavras, mapear e entender como os autores percebem e utilizam este termo. Essa perspectiva de análise é quantitativa e qualitativa, pois se pretende entender o sentido da utilização do termo [Gestão Social], e as informações quantitativas estão relacionadas à quantidade de trabalhos em cada categoria e sua evolução no tempo. Foram identificados textos que tratam, conceitualmente, da Gestão Social, propondo avanços no entendimento do termo e/ ou tecendo críticas, bem como aqueles que tratam a gestão social como dimensão central. Os demais textos oferecem um mapa da utilização do termo nos ENAPEGS. Essa análise mostrou a grande variação de entendimentos (ver Quadro 1) utilizada, o que constitui mais uma justificativa para a realização deste trabalho. Podem-se definir as categorias teóricas de análise identificadas nesse estudo como compostas por uma grade mista (VERGARA, 2005), pois partimos de algumas categorias a priori e foi-se construindo outras, à medida que os trabalhos foram analisados. Paralelamente, houve casos em que as categorias teóricas foram agrupadas por aproximação, fortalecendo-as, conforme sugere Bardin (2009).
Gestão Emancipatória (GE)
Gestão Participativa (GP)
Gestão do Desenvolvimento Social (GDS)
Descrição Textos que tratam de maneira conceitual o termo Gestão Social, propondo avanços no seu entendimento e/ou tecendo críticas. Nestes textos a Gestão Social foi identificada como uma dimensão central, mesmo que o texto tenha características de outras categorias de análise. Textos que interpretam a Gestão Social como uma gestão que proporciona a emancipação ou empoderamento das pessoas. Não necessariamente os termos emancipação e/ou empoderamento10 estão presentes no texto, mas no seu sentido. Os textos incluídos nesta categoria de análise percebem a Gestão Social como uma gestão onde o ser humano se desenvolve e com isto a própria sociedade se desenvolve nas mais variadas dimensões: ambiental, econômica, cultural etc. Pode estar presente ou não nos trabalhos a perspectiva do território. Textos que interpretam a Gestão Social como uma gestão onde a participação11, nas mais diversas formas, é sua característica central. Alguns textos trazem a perspectiva do território enquanto unidade de análise e outros não, ambos os tipos de artigos foram considerados. Nesta categoria de análise foram incluídos, também, os textos que tratam da gestão democrática/ participativa/ descentralizada/ dialógica / compartilhada/ cidadã de Projetos/ Programas/ Políticas Públicas ou ONGs/ Cooperativas/ Organizações da Sociedade Civil. Textos que entendem a Gestão Social como a gestão de Projetos ou Programas Sociais, Políticas Públicas, Políticas Públicas Sociais (conduzidos ou não pelo Estado) e dos aspectos sociais da Administração Pública. Esta categoria de análise contempla também textos que apresentam a Gestão Social como Gestão Social do desenvolvimento, gestão de redes e interorganizações. Nestes textos não fica clara se a condução dos projetos /programas/ políticas seria democrática/ participativa/ descentralizada/ dialógica/ compartilhada/ cidadã.
10 Neste trabalho, entendem-se emancipação e empoderamento como conceitos próximos. 11 Existe uma vasta literatura sobre os termos (que não são sinônimos) e não é objetivo deste trabalho discuti-la. O que interessa aqui são os resultados da emancipação/ empoderamento sobre a percepção das pessoas em relação ao mundo. Emancipação é entendida aqui como livrar-se da tutela, obter autonomia sobre seus atos e pensamentos. Este texto também não tem o objetivo de discutir os diversos significados da palavra participação, cuja literatura também é vasta. O que interessa aqui é que o processo de gestão possibilite aos membros da organização (nos seus mais diversos formatos) tomar parte nas decisões na mesma, nos mais diversos níveis.
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Categorias Teóricas de Análise Identificadas Gestão Social (GS)
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Categorias Teóricas de Análise Identificadas Gestão em Organizações Sem Fins Lucrativos (GOSFL)
Gestão da Responsabilidade Social Empresarial (GRSE)
Formação em Gestão Social (FGS)
Outras Formas de Gestão Relacionadas (OFGR)
Descrição Textos que entendem a Gestão Social como gestão de ONGs, Terceiro Setor, Cooperativas, Organizações da Sociedade Civil (nas suas mais diversas formas) ou qualquer organização sem fins lucrativos, inclusive gestão pública. Estão nesta categoria de análise textos que interpretam a Gestão Social como uma gestão onde a dimensão econômica (ou a racionalidade utilitária) não é central e/ou textos que entendem que a Gestão Social é uma gestão contrária à gestão que visa lucro (gestão estratégica, gestão privada, gestão empresarial, gestão neoliberal etc.) e, ainda, trabalhos que entendem a Gestão Social como a gestão da dimensão social em cooperativas. Textos que entendem a Gestão Social como a gestão das ações de Responsabilidade Social das empresas (Responsabilidade Social Empresarial ou Corporativa), relacionada a stakeholders internos e/ou externos, ou os próprios resultados destas ações. Estão incluídos, também, nesta categoria de análise textos que interpretam a Gestão Social como Responsabilidade Socioambiental, Gestão Socioambiental e Gestão Ambiental. Textos que apresentam experiências de formação em Gestão Social, avaliação de programas e/ou cursos de Gestão Social, proposição de perfis para o gestor social e, ainda, críticas aos programas/cursos sobre Gestão Social. Estão incluídos, também, nesta categoria de análise textos que realizam análise de redes de pesquisadores e da produção científica em Gestão Social. Textos onde não foi possível identificar o significado atribuído ao termo Gestão Social. Em alguns trabalhos o termo só aparece no título, resumo ou palavras-chave. Nesta categoria de análise estão também textos onde aparecem algumas concepções sobre Gestão Social, porém, o(s) autor (es) não se posiciona(m), se limitando a apresentá-las.
Quadro 1 – Categorias teóricas de análise dos textos sobre Gestão Social, apresentadas nos Enapegs de 2007 a 2010. Fonte: elaborado pelos autores, 2011.
Pode-se notar que há uma hierarquia entre as categorias de análise com base na seguinte ordem: Gestão Social (GS), Gestão Emancipatória (GE), Gestão Participativa (GP), Gestão do Desenvolvimento Social (GDS) e Gestão de Organizações Sem Fins Lucrativos (GOSFL).
3. A produção científica sobre Gestão Social no âmbito dos Enapegs
No Quadro 2 apresentam-se os resultados da busca de artigos nas quatro edições do evento realizadas até o ano de 2010 (2007, 2008, 2009 e 2010). Nos dois primeiros eventos, todos os artigos foram convidados e foram publicados em formato de livro. Nos eventos seguintes, 12 Caso algum autor não concorde com a interpretação do sentido do termo Gestão Social em seu trabalho, existe abertura para a discussão, que se apresenta como muito frutífera para a continuação das pesquisas na área. A comunicação pode ser feita pelo e-mail: airtoncardoso@uft.edu.br.
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Esta hierarquia é intencional e tornam as categorias teóricas de análise mutuamente excludentes. Cabe ressaltar que os trabalhos foram analisados em sua unidade, independente de autor (es), pois a análise de cada texto foi feita em separado, bem como o significado atribuído ao termo Gestão Social. As categorias teóricas de análise construídas atendem às sugestões de Bardin (2009), pois pelo que foi descrito acima são mutuamente excludentes e sua homogeneidade está relacionada à percepção da utilização do termo Gestão Social, ou seja, apenas este princípio “governa” a distribuição dos trabalhos nas categorias. As categorias são pertinentes, pois mesmo quando não é possível identificar o significado do uso do termo Gestão Social no trabalho, o texto foi classificado. Em relação à objectividade e fidelidade elas podem ser descritas como portadoras destas características, pela própria descrição detalhada das mesmas. Outro aspecto a ser colocado em destaque é que a maioria dos textos não tem a Gestão Social como conceito central, desta forma, em muitos deles, o termo aparece de maneira secundária e não há preocupação dos autores em conceituá-lo, por não ser objetivo do trabalho (ou por ainda não haver consenso sobre o termo). Assim, os artigos classificados em cada uma das categorias não estão utilizando da maneira correta ou incorreta o termo, não é este o tom da classificação. Entende-se que os autores utilizam o termo de acordo com sua própria interpretação do mesmo. Ao classificá-los não é a intenção dessa análise diminuir a importância de nenhum trabalho e muito menos criticar a utilização do termo Gestão Social pelos autores12.
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com chamada de trabalhos, apenas alguns artigos selecionados fizeram parte do livro do evento. Enapegs - Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social Dados do Evento Realização: Rede de Pesquisadores em Gestão Social Site: http://www.rgs.wiki.br
Local do Evento/Realização/Instituição: I Enapegs: Juazeiro do Norte/CE, LIEGS - Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social, UFC-Cariri – Universidade Federal do Ceará - Campus Cariri. II Enapegs: Palmas/TO, NESol – Núcleo de Economia Solidária, Universidade Federal do Tocantins III Enapegs: Juazeiro/BA e Petrolina/PE, NIGS – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Tecnologias em Gestão Social, UNIVASF – Universidade Federal do Vale do São Francisco. IV Enapegs: Lavras/MG, Incubacoop - Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares, Universidade Federal de Lavras.
Qualis Eventos Capes: não tem. Obs.: desde o primeiro evento os melhores artigos são destinados à submissão fast track13 nos periódicos: Organizações & Sociedade, RAP – Revista de Administração Pública, Revista ADM. MADE, RGSA – Revista de Gestão Social e Ambiental, Cadernos Gestão Social e APGS – Revista Administração Pública e Gestão Social Ano (série)
2007 (I)
Tema
Gestão Social: práticas em debate, teorias em construção.
Descrição do Método de Pesquisa Utilizado Busca por [Gestão Social] em todos os artigos
Quantidade de Artigos Selecionados
9
Observações
Todos os artigos foram publicados em um livro com o nome do evento: Silva Jr. et al. (2008a) *. Livro disponível para download no site do evento.
13 A submissão fast track é realizada por meio da indicação da organização do evento dos melhores artigos para o periódico, dentro da linha editorial. A revisão dos artigos é geralmente feita de maneira mais rápida que as submissões tradicionais. A partir de 2009 a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Administração (Anpad) também adotou esta prática em seus eventos.
2009 (III)
2010 (IV)
Os desafios da formação em Gestão Social
Busca por [Gestão Social] em todos os artigos
Gestão Social e Políticas Públicas de Desenvolvimento: Ações, Articulações e Agenda.
Busca no CD do evento por “Gestão Social”
Gestão Social e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações
11
8
Busca em cada um dos artigos por [Gestão Social]
29
Total
57
Média/Evento
Todos os artigos foram publicados em um livro com o nome do evento: Cançado et al. (2008). Livro disponível para download no site do evento.
Coletânea de artigos selecionados foram publicados no livro: Rigo et al. (2010).
Artigos disponíveis no site do evento. Coletânea de artigos selecionados foi publicada no livro: Pereira et al. (2011)
14,25
Quadro 2 - Artigos sobre Gestão Social identificados nas edições 2007, 2008, 2009 e 2010 do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social. * Os artigos publicados no Enapegs de 2007 estão com a data de 2008, pois a publicação foi realizada no ano seguinte em formato de livro com todos os artigos, porém, foram considerados como 2007, pois os mesmos foram relativos ao evento de maio de 2007. Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.
Os dois primeiros eventos foram realizados com artigos publicados na íntegra em forma de capítulos de livros. Em 2007, os autores foram convidados de forma individual e em 2008 as instituições apoiadoras do evento escolheram até dois trabalhos para enviar. No ano de 2009, foi realizada a primeira chamada de trabalhos, com 149 submissões. Em
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2008 (II)
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2010 o número de submissões chegou a 306, conforme Quadro 3. Ano
2007
2008 2009 2010 Total
Trabalhos Submetidos ao Evento 14 21 149
306 490
Trabalhos Aprovados para o Evento
Trabalhos Selecionados para Análise
137 248
29 57
14 21 76
9 11 8
Trabalhos Selecionados para Análise (%) *
64,3% 52,4% 10,5%
21,2% 23,0%
Quadro 3 - Artigos sobre Gestão Social submetidos, aprovados e selecionados para análise nas edições 2007, 2008, 2009 e 2010 do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social. * Refere-se à quantidade de artigos selecionados para a análise neste trabalho em relação à quantidade de artigos publicados no evento. Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.
Nota-se, pelo Quadro 3, que os maiores percentuais de artigos que se utilizam da expressão Gestão Social e, por isso selecionados, são referentes aos dois primeiros anos. O fato pode ser explicado pelo direcionamento dos convites enviados aos pesquisadores e suas instituições. Quando da abertura de submissões quase 90% dos trabalhos aprovados para o evento não se utilizavam da terminologia Gestão Social, o que representa certa perda de foco do evento, mas pode ser considerada natural em um campo em construção. A partir de seu amadurecimento, no ano seguinte, já foram identificados cerca de um em cada cinco trabalhos utilizando-se da terminologia. É importante destacar que esse crescimento pode, no futuro, representar uma tendência para o evento. O Gráfico 1 sintetiza os resultados da busca realizada nos Enapegs (de 2007 a 2010), apresentando a quantidade de artigos por ano e acumulada. Foi inserida ainda uma linha de tendência baseada na quantidade de artigos por ano.
Pode-se notar, pelo Gráfico 1, que em termos absolutos, a quantidade de publicações no Enapegs utilizando-se o termo Gestão Social se amplia muito em 2010, levando a linha de tendência a um viés de alta. No Quadro 4 apresentam-se as referências dos artigos identificados nos eventos. Ano
Evento/Série
Quantidade de Artigos
2007
I Enapegs
9
Referências
Enapegs - Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social Total: 57 Artigos
Carrion (2008), Carrion e Calou (2008), França Filho (2008), Schommer e França Filho (2008), Silva Jr (2008a), Silva Jr (2008b), Silva Jr et al. (2008c), Tenório (2008a), Tenório (2008b)
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Gráfico 1 – Quantidade de artigos identificados nos Enapegs (2007-2010) por ano, acumulado e linha de tendência linear. Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.
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Ano
Evento/Série
Quantidade de Artigos
2009
III Enapegs
8
2010
IV Enapegs
29
2008
II Enapegs
11
Referências
Borges et al. (2008), Cançado, Iwamoto e Carvalho (2008), Finco e Finco (2008), Gianella (2008), Gomes et al. (2008), Guerra e Pereira (2008), Junqueira (2008), Moretti (2008), Rocha e Santos (2008), Silva Jr et al. (2008b), Villela (2008)
Boullosa e Schommer (2009), Boullosa et al. (2009), Carmo, Silva e Fonseca (2009a), Emmendoerfer e Silva (2009), Fajardini e Davel (2009), Gonçalves e Silva Jr (2009), Junqueira et al. (2009), Ramos et al. (2009)
Bauer e Carrion (2010), Becker e Boullosa (2010), Botrel, Araújo e Pereira (2010), Cabral (2010), Cançado, Procópio e Pereira (2010), Carvalho e Pereira (2010), Coutinho (2010), Dreher, Ullrich e Tomio (2010), Ferreira, Liliane et al. (2010), Ferreira, Roberto et al. (2010), Freitas, Freitas e Dias (2010), Freitas, Freitas, Pedra e Amodeo (2010), Gonçalves (2010), Iwasaki (2010), Lana e Ashley (2010), Maciel e Fernandes (2010), Meirelles e Pereira (2010),
Evento/Série
Quantidade de Artigos
Referências
Melo e Régis (2010), Mendes e Santos (2010), Moura, Moura e Calil (2010), Muniz, Onuma e Pereira (2010), Oliveira e Pereira (2010), Pinho e Sacramento (2010), Salm e Menegasso (2010), Santos Filho (2010), Silva Jr e Nascimento (2010), Sousa et al. (2010), Souza et al. (2010), Zani et al. (2010)
Quadro 4 – Artigos identificados sobre Gestão Social nos Enapegs (2007-2010) Fonte: elaboração dos autores a partir dos resultados da pesquisa, 2011.
Depois de realizada a análise, os trabalhos foram alocados nas categorias teóricas. Os resultados estão no Quadro 5. Categorias Teóricas de Análise (Qtde.) {%}* Gestão Social– GS (8) {14,0%}
Gestão Emancipatória - GE (3) {5,2%} Gestão Participativa - GP (23) {40,4%}
Gestão do Desenvolvimento Social - GDS (6) {10,5%}
Textos Identificados**
França Filho (2008) **, Schommer e França Filho (2008)**, Silva Jr et al. (2008c)**, Tenório (2008a)**, Tenório (2008b)**, Boullosa e Schommer (2009), Junqueira et al. (2009), Cançado, Procópio e Pereira (2010). Carrion e Calou (2008) **, Silva Jr (2008b)**, Carmo, Silva e Fonseca (2009a). Borges et al. (2008), Finco e Finco (2008), Giannella (2008), Rocha e Santos (2008), Villela (2008), Fajardini e Davel (2009), Emmendoerfer e Silva (2009), Gonçalves e Silva Júnior (2009), Bauer e Carrion (2010), Botrel, Araújo e Pereira (2010), Cabral (2010b), Carvalho e Pereira (2010), Coutinho (2010), Ferreira, Liliane et al. (2010), Ferreira, Roberto et al. (2010), Freitas, Freitas e Dias (2010), Lana e Ashley (2010), Maciel e Fernandes (2010), Meirelles e Pereira (2010), Muniz, Onuma e Pereira (2010), Oliveira e Pereira (2010), Santos Filho (2010), Zani et al. (2010). Silva Jr (2008a)**, Gomes et al. (2008), Junqueira (2008), Pinho e Sacramento (2010), Dreher, Ullrich e Tomio (2010), Mendes e Santos (2010).
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Ano
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Categorias Teóricas de Análise (Qtde.) {%}* Gestão em Organizações Sem Fins Lucrativos - GOSFL (9) {15,8%} Gestão da Responsabilidade Social Empresarial - GRSE (4) {7,0%} Formação em Gestão Social - FGS (3) {5,3%} Outras Formas de Gestão Relacionadas - OFGR (1) {1,8%}
Textos Identificados**
Cançado, Iwamoto e Carvalho (2008), Guerra e Pereira (2008), Silva Jr et al. (2008b), Ramos et al. (2009), Freitas, Freitas, Pedra e Amodeo (2010), Salm e Menegasso (2010), Silva Jr e Nascimento (2010), Sousa et al. (2010), Souza et al. (2010). Moretti (2008), Becker e Boullosa (2010), Iwasaki (2010), Melo e Régis (2010). Carrion (2008) **, Boullosa et al. (2009), Moura, Moura e Calil (2010). Gonçalves (2010).
Quadro 5 – Síntese da categorização da Análise de Conteúdo dos artigos publicados nos ENAPEGS (2007 a 2010). * O percentual calculado foi arredondado para uma casa decimal. ** Os textos Carrion (2008), Carrion e Calou (2008), França Filho (2008), Schommer e França Filho (2008), Silva Jr (2008a), Silva Jr (2008b), Silva Jr et al. (2008c), Tenório (2008a) e Tenório (2008b) foram considerados como publicados em 2007, pois são referentes ao ENAPEGS daquele ano, conforme descrito anteriormente. Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.
Continuando a análise, no Quadro 6 estão apresentadas as distribuições destas categorias por ano. Categoria GS GE GP GDS GOSFL GRSE FGS OFGR Total
2007 5 2
1 1
9
2008
5 2 3 1 11
2009 2 1 3
1
1
8
2010 1
15 3 5 3 1 1 29
Total 8 3 23 6 9 4 3 1 57
% 14,0 5,3 40,4 10,5 15,8 7,0 5,3 1,8 100,0
Quadro 6 – Distribuição da frequência das categorias teóricas de análise em artigos publicados nos Enapegs (2007 a 2010). Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.]
4. Considerações Finais
O desenvolvimento do campo científico da Gestão Social tem um espaço privilegiado nos Enapegs. O evento tem se apresentado como um espaço importe para discussão dos temas relacionados à área e pode ser considerado como a principal ação da RGS atualmente. Apesar de ser um evento recente, observa-se um amplo crescimento. A decisão da Anpad de retirar a área de Gestão Social e, também, de Gestão Ambiental parece ter sido um incentivo a mais para os pesquisadores da área. Mesmo sendo um evento ainda
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A categoria que se destaca é a GP, com mais de 40% dos trabalhos, o que reforça o caráter participativo intrínseco aos processos de Gestão Social. É importante destacar que, mesmo sem estar representada em 2007, a quase totalidade dos artigos selecionados para análise, e que, portanto, utilizam-se do termo Gestão Social, está em categorias hierarquicamente superiores à GP. A segunda categoria com maior frequência é a GOSFL com cerca de 15,8% dos textos. A gestão deste tipo de organização tende a ser menos hierarquizada e mais flexível pela sua própria natureza. A exemplo da categoria GP a categoria GOSFL não aparece no primeiro evento, mas apresenta um viés de alta no horizonte de tempo da análise. A categoria GS aparece com apenas um texto a menos que a categoria GOSFL, o que representa cerca de 14% dos trabalhos selecionados para análise. Essa categoria se concentra, praticamente, no evento de 2007, mas com presenças menores em 2009 e 2010. Isto pode ser explicado pelo próprio tema do evento de 2007: “Gestão Social: práticas em debate, teorias em construção” e pelo tipo de escolha dos artigos, a partir dos seus autores convidados. As demais temáticas estão diluídas nos eventos e têm baixa frequência. Dessa forma, podemos inferir que os autores que publicam no Enapegs, de maneira geral se utilizam do termo Gestão Social com um significado próximo à gestão participativa e gestão de organizações sem fins lucrativos. Além disso, existe uma parcela dos autores preocupada em avançar no entendimento e na construção teórica e conceitual da Gestão Social.
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sem avaliação (Qualis Capes) muitos autores tem buscado este espaço para apresentar e discutir suas pesquisas. Outra característica do evento, nestes primeiros anos, é acontecer fora dos grandes centros: Juazeiro do Norte/CE (2007), Palmas/TO (2008), Petrolina/ PE e Juazeiro/BA (2009), Lavras (2010) e a quinta edição em Florianópolis (2011). Apesar de ser um campo em construção nota-se que já existem certas tendências em consolidação, como a questão da participação como processo essencial da gestão social. Como sugestão para novas pesquisas fica a possibilidade da continuidade deste estudo nos próximos eventos, bem como a pesquisa em outros eventos e também em periódicos. Outra possibilidade é uma análise mais aprofundada dos textos de determinada categoria para entender as nuances da utilização do termo pelos autores, o que poderia ser feito aliado a uma entrevista com os próprios autores, obtendo mais informações para a inferência.
Referências
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Luiz Manoel Lopes1 Eladio Craia2 Guilherme Castelo Branco3 Jeová Torres Silva Jr.4
A tentativa de aproximar as discussões relativas aos temas supracitados se deu em virtude dos professores Luiz Manoel Lopes (UFC-Cariri), Eladio Craia (PUC-PR) e Guilherme Castelo Branco (UFRJ) trabalharem para estabelecer conexões mais ampliadas com as diversas linhas de pensamento contemporâneo que se propõem a transformar e introduzir novos modos de gestão pública e social no país. Neste sentido, a proximidade com a pesquisa e o trabalho do professor Jeová Torres (UFC-Cariri) possibilitou esta tentativa de apresentação no V Enapegs. Após várias trocas de mensagens via correio eletrônico, nos vimos em plena Florianópolis/SC para discutir no eixo temático 7 deste evento, considerações sobre o biopoder, a diferença e a produção de subjetividade. Apresentamos o nosso propósito a partir da seguinte colocação: o objetivo deste eixo temático consiste em propagar a discussão da gestão social sem perder de vista a importância de fazer política em torno da diferença, da resistência ao poder que coloca a vida como objeto e aos mecanismos de produção de economia subjetiva que ocorrem no capitalismo tardio. Neste sentido, esta
1 Luiz Manoel Lopes é doutor em filosofia e professor da Universidade Federal do Ceará – Campus Cariri. 2 Eladio Craia é professor do curso de graduação em Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-PR. Graduado em filosofia pela UNR (Argentina). Mestre em filosofia pela UNICAMP. Doutor em filosofia pela UNICAMP. 3 Guilherme Castelo Branco é doutor em filosofia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. - URFJ. 4 Jeová Torres Silva Jr é mestre em administração e professor da Universidade Federal do Ceará – Campus Cariri. Pesquisador do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social - LIEGS/ Universidade Federal do Ceará – UFC.
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A tentativa de discutir filosofia da diferença, biopolítica e produção de subjetividade no Enapegs 2011
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discussão pode ser compreendida como uma atividade da linha de pesquisa: biopolítica e produção de subjetividade do Liegs - Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social do Campus da UFC no Cariri. O Liegs procura desenvolver esta articulação - entre gestão social e as temáticas da filosofia da diferença, biopolítica e produção de subjetividade - através do Projeto Gestão Social nas escolas para tratar os conceitos com jovens do ensino médio. O eixo temático também trouxe as articulações entre os propósitos do Laboratório de Filosofia Contemporânea da UFRJ (CNPq), do Curso de Filosofia da PUC-PR e do Lapenc - Laboratório do Pensamento Contemporâneo (Grupo de Pesquisa do CNPQ - Programa de Extensão do Campus da UFC no Cariri) que desenvolve o evento Usina de Ideias - Pensamento Contemporâneo no Ensino Médio. Os componentes deste eixo temático exercem suas atividades nos grupos, programas e instituições supracitadas. A tentativa desta aproximação com a gestão social não é única e exclusivamente pertencente a este eixo temático, tanto é que tomamos como norte um texto que mesmo sem fazer referencias teóricas à gestão social sinaliza para uma das suas temáticas mais destacadas: a economia solidária. Nesta perspectiva, o debate foi em torno do resgate da produção da vida coletiva e por isto nos norteamos pelo excelente texto de Patricia Ayer de Noronha (2007) intitulado “Artes femininas da existência: economia solidária e transformação subjetiva”. Na ocasião do V Enapegs, infelizmente o professor Guilherme Castelo Branco não pode fazer-se presente ao encontro. As apresentações do eixo temático seguiram as orientações dos referenciais teóricos de Foucault e Deleuze-Guattari. A partir do texto de Noronha (2007), começamos a discussão sobre como fazer gestão social e economia solidária com populações que residem em bairros das grandes cidades brasileiras e não possuem nenhuma assistência por parte do Estado. A discussão girou também em não se deixar cair no aprisionamento que o biopoder exerce sobre as vidas dos habitantes destes bairros periféricos e, sobretudo, em evitar que a gestão social seja um meio de propagação do biopoder. A tentativa de discussão deu-se inicialmente pela preocupação de
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Filosofia da diferença A filosofia da diferença refere-se a remover os hábitos de pensar que nos deixam apaziguados dentro de campos limitados de condicionamento. Trata-se de abandonar o condicionamento para entrar no domínio da gênese e da produção de modos de existências. O plano teórico que sustenta este afastamento denomina-se “crítica aos possíveis”. Neste plano, enfoca-se que o possível não é anterior ao real, pelo contrário, o real é que permite o aparecimento dos possíveis. Em resumo, a filosofia da diferença trata de pensar e viver o real com o cuidado de não identificá-lo com o atual. O real é estudado como virtual-atual. Os processos de atualização e as derivações econômicas e políticas que decorrem daí, são “os objetos” de estudo da filosofia da diferença. 2)
Biopolítica A melhor revelação do significado de biopolítica foi apresentada pelo escritor português Antonio Guerreiro (2008):
O paradigma biopolítico dos estados totalitários, na sua dimensão exacerbada, é um revelador daquilo que se tornou, entretanto politicamente decisivo nas democracias parlamentares do nosso tempo: a vida biológica. Sem a referência à biopolítica, não podemos compreender o movimento de despolitização generalizada que tomou conta de projectos e instituições e reduziu o discurso político à discussão e gestão das contingências sociais e econômicas. O factor biopolítico obrigou a repensar as categorias políticas tradicionais (GUERREIRO, 2008, p. 10).
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Produção de subjetividade A filosofia da diferença vem ao encontro deste aspecto da pro-
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apresentar tópicos sobre a importância de se compreender como a civilização ocidental orientou-se pela opção de privilegiar a identidade e a representação em detrimento da diferença e repetição. Neste aspecto, foi proposto que a apresentação ocorresse em três partes, quais sejam:
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dução de subjetividade, fora do modelo de identidade, sobretudo fora do que o capitalismo destruiu em termos de agenciamentos coletivos. Tomemos, por exemplo, um caso tipicamente da cultura nordestina e, sobretudo da Região do Cariri, localizada no sul do Ceará: até bem pouco tempo era comum a reunião de amantes da literatura de cordel, os quais se reuniam para cantar e ouvir versos, tudo era feito ao ar livre, mas atualmente é raríssimo encontrarmos este tipo de agenciamento coletivo, na região, devido ao que o “capitalismo” provocou em termos de destruição de subjetividades. O modo de produção capitalista serializou, modelou, registrou os indivíduos, dando-lhes uma subjetividade precária e paupérrima. Todavia, a subjetividade, como nos diz Felix Guattari, não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. “Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos de subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.31). O que podemos notar pela linha de pensamento de Guattari, sobre a produção de subjetividade, é que atualmente começam a aparecer, no Brasil, trabalhos apontando uma saída aos modelos estabelecidos. Tomemos, por exemplo, o ensino da História do Brasil, a qual é ensinada pela perspectiva do homem europeu. Quando os negros, nos movimentos sociais, trabalham exaustivamente para que a Lei 10.639/03 seja implementada, é justamente para que a história do Brasil seja vista através de uma outra subjetividade. Em seu livro Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente, Oliveira (2003) faz a seguinte citação sobre o assunto: Este livro dedicar-se-á, portanto, a um desses universos de referência que é a Cosmovisão Africana – construída com sabedoria e arte pela tradição e atualizada com sagacidade por seus herdeiros. A herança da cosmovisão africana altera a discussão sobre a identidade brasileira. Com efeito, os afrodescendentes foram alijados de sua terra de origem e menosprezados em suas terras de ocupação, por outros. Negados ontologicamente em qualquer parte do mundo, suas culturas foram rotuladas como atrasadas, animistas, folclóricas, bárbaras, primitivas, o que evidencia o racismo a que
Na introdução do livro, Oliveira (2003) expõe como o capitalismo mundial integrado organiza-se através de dois pólos: produção econômica e produção subjetiva. O privilégio sempre recai para o lado da produção econômica em detrimento da produção subjetiva e acrescenta: Acontece que o CMI não é o único regime de signos existente. Muito pelo contrário, existe uma pluralidade de regimes semióticos, tanto entre culturas diferentes, quanto no interior de um mesmo território nacional. Ocorre que o CMI hegemonizou os sistemas socioeconômico e político-cultural. Mas, hegemonia não significa onipotência, predomínio não significa existência exclusiva. Com efeito, a cosmovisão africana configura-se num outro regime semiótico, agenciando desejos e promovendo valores, no mínimo antagônico, as agenciadas pelo CMI. O capitalismo mundial integrado, na sua pretensa totalidade, não consegue evitar as linhas de fuga que se desprendem de sua malha; linha de fuga essas que potencializam a criação de outros regimes semióticos (OLIVEIRA, 2003, p.19).
O texto orientador de nossas tentativas de inserção nas discussões sobre a gestão social começava colocando por linhas intensivas que expressavam algo promissor para nossos propósitos. O texto fazia alusão aos processos de atualização de virtualidades, deixando assim entrever que o papel da gestão social é muito próximo ao da gestante e dos movimentos de criação, o que deixa em aberto vários caminhos que podem ser utilizados como modos de vencer as adversidades, sobretudo problematizando o conhecimento como fator de condicionamento das vidas. Vejamos o que estas linhas de intensidade escritas por Noronha (2007) nos dizem: O grupo é antes um processo e não uma estrutura estável. Sistemas sempre em desequilíbrio, no grupo os elementos em causa não são tanto os sujeitos e os conteúdos, mas forças que interagem, criando diversas configurações e assumindo várias formas de organização, desintegração, coordenação e conflito. Esta formulação
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foram historicamente submetidos a população africana e seus descendentes (OLIVEIRA, 2003, p.17).
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inicial, de orientação deleuze-guattariana a respeito de que se passa em um grupo, ainda um tanto enigmática, mas que pretendemos desdobrar neste texto, encontra na experiência que vem se desenvolvendo há 11 meses com um coletivo de mulheres artesãs, no Centro Cultural Dona Luiza, localizado no Bairro Saudade em BH, mais do que uma ressonância teórica, uma ressonância política. Em dezembro de 2004, iniciamos, em associação com uma educadora com trajetória em assessoria a diversos movimentos populares e sindicais, uma experimentação coletiva singular que ocorre no Centro Cultural Dona Luiza, sede do grupo Iúna de Capoeira Angola (NORONHA, 2007, p.1).
A temporalidade é importante, neste caso, por permitir-nos ver e viver o passado, levando-se em conta que já se passaram sete anos deste o início destes trabalhos com as comunidades em tela apreço. Diante do texto citado, buscamos tratar de duas questões básicas: 1) A importância do conceito de linha de fuga; e 2) Como a gestão social se inscreve no paradigma biopolítico. A partir destas duas questões fizemos questionamentos e debatemos com um público que está começando a ter interesse por estas aproximações. Existem outros exemplos proveitosos para que possamos visualizar como os processos de diferenciação, que fazemos parte, podem ser lidos por estas três linhas que nos propomos a discutir. Atualmente, podemos perceber, através do conceito de biotopos como a cura da desertificação vem se dando como linhas de fuga em relação à fábrica de subjetivação condicionadora. A constatação dessas linhas de fuga pode ser acessada através do sítio www.tamera.org, que apresenta um novo modo de gerir a água enquanto vida e ao mesmo tempo enquanto curadora da terra. Através de quatro princípios básicos – água, energia, alimentação e educação – introduz-se diferenças na maneira de viver da humanidade diminuindo a desigualdade social e fazendo da natureza uma aliada. Em síntese, a filosofia da diferença pode contribuir para dinamizar a gestão pública e social, sobretudo por destacar o aspecto importantíssimo da determinação recíproca. Tal aspecto vem ao encontro da abordagem crítica que questiona o modo do homem moderno, do sujeito, da pessoa determinar-se em relação a sua
Referências
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GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica - cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1986. GUERREIRO, A. O que é a biopolítica? Lisboa: Culturgeist, 2008. Disponível em: http://www.culturgest.pt/actual/biopolitica.html
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OLIVEIRA, E. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Publicação Ibeca, 2003.
SILVA JÚNIOR, J. T et al. (orgs.). Gestão social: práticas em debate, teorias em construção. Fortaleza: Imprensa Universitária UFC, 2008.
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existência. Neste sentido, consideramos que um novo enfoque sobre a estrutura da determinação do sujeito, face ao pensamento e à existência, venha ser extremamente enriquecedor no que diz respeito ao debate atual sobre a administração pública e social. Para concluir, tudo isto implica em supor que a filosofia da diferença pode ser aplicada aos cursos de formação de futuros gestores que cuidarão das esferas pública e social.
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Tânia Fischer1
1. Contextos de referência para o campo da gestão social A gestão social é um campo de trabalho com múltiplos enclaves e conexões, é também uma construção epistêmica e requer formação qualificada e, mais especialmente, formação profissional qualificante. No reordenamento da educação em face da imperiosa necessidade de formar profissionais para o desenvolvimento, é preciso reconhecer em que país estamos, já que a demografia nos diz que o Brasil está mais mestiço, mais feminino, mais velho, mais migrante e menos (um pouco menos) desigual. Há também características culturais novas, com muito maior diversidade e formas de representação social inovadoras, como as multidões que ocupam territórios convocadas por mídias sociais. Neste novo cenário, o Brasil caminha para ser a sexta economia do mundo. É líder inconteste da América Latina, disputa espaços de representação e de gestão de política e economia globais. Os desafios que se colocam para o Brasil na perspectiva de se tornar um país com maiores índices de desenvolvimento tem como ponto de convergência a necessidade de formar pessoas para diversas áreas de atuação como energia, gestão metropolitana, meio ambiente, defesa, transportes e multimobilidade, produção de alimentos, uso de recursos hídricos e desenvolvimento de serviços como segurança e educação, como refere o Plano Nacional de Pós-graduação 2011-2020 (BRASIL, 2010. v. 2). A contemporaneidade é portadora de hibridizações múltiplas nas convergências e choques de culturas. Migrações, novos forma1 Tânia Fischer é professora titular da Universidade Federal da Bahia e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (Ciags/Ufba). Doutora em administração pela USP, mestre em administração pela UFRGS e graduada em pedagogia pela UFRGS.
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Gestão social do desenvolvimento territorial como campo de educação profissional
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tos de cosmopolismo, densificações urbanas, multi, inter e transescalares, desordenamento de territórios e territórios-rede (HAESBAERT, 2006) novas convergências, simetrias e assimetrias sociais desafiam os profissionais em todos os campos. Prosseguem os problemas estruturais de desigualdade, de concentração de renda, serviços de educação e saúde foram expandidos, mas não são de qualidade nem estão acessíveis para todos. Há fluxos migratórios em todos os sentidos, migração qualificada dos expatriados do antigo primeiro mundo e a migração dos pobres nas rotas sul/sul. Há também uma intensa intramobilidade dos brasileiros que vão trabalhar nos novos investimentos de infraestrutura e serviços como nas cidades do pré-sal, nas ferrovias e aeroportos e nos grandes complexos habitacionais. Intensificam-se os problemas de mobilidade e segurança. As cidades densificam-se e o Brasil atrai eventos estruturantes esportivos e culturais. “Cenário de demandas e desafios, a dinamização de economia é simétrica à ampliação de ofertas e trabalho, à organização de instrumentos de gestão financeira e à capitalização do desenvolvimento local” (DOWBOR, 2009). É neste novo desenvolvimentismo como um processo auspicioso em que nos situamos redefinindo a substância, os contornos e limites de um território: o campo da gestão social. Pretende-se contribuir para problematizar a delimitação e os significados deste “território simbólico” que é o campo (na perspectiva de Pierre Bourdieu) de gestão social, que não é apenas um espaço construído, mas um lócus de práticas significativas movido por comunidades de interesse que são os gestores, pesquisadores e demais praticantes. O país está necessitando de novas formas de governabilidade (na perspectiva de Michel Focault) levando a um estágio sustentável de desenvolvimento com maior integração sócio-produtiva, maiores investimentos em serviços públicos da infraestrutura e cuidados sociais, do direito ao lazer, aos bens e serviços culturais o que implica em maiores investimentos e regulação social. O novo ciclo do desenvolvimento brasileiro requer profissio-
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nais qualificados para diferentes escalas e tipos de ocupações em territórios com níveis diferenciados de crescimento econômico e integração socioprodutiva. Assim sendo, a gestão social do desenvolvimento territorial depende de profissionais qualificados, orientados pelas necessidades do contexto. O campo da gestão social origina-se das práticas e saberes emergentes no novo ciclo de desenvolvimento brasileiro, nos meados dos anos 90 estando em processo até aqui. Orientada pelos novos ideais desenvolvimentistas e fortemente ancorada em processos de desenvolvimento de territórios, a gestão social é objeto de debates nem sempre convergentes, e perspectivas de análise tão contraditórias quanto complementares. O campo da gestão social do desenvolvimento territorial está sendo construído pelas práticas e saberes da natureza caracteristicamente interdisciplinar, ao mesmo tempo recorte epistemológico e construção social. A gestão social do desenvolvimento territorial compreende problemas de alta complexidade que demandam ações convergentes de profissionais oriundos de organizações tão distintas quanto uma prefeitura, uma empresa, uma cooperativa ou um movimento associativo, o que resulta em um grupo multicultural, multiinstitucional de grandes diversidades, convergente nas práticas de trabalho na gestão de diferentes escalas territoriais. (FISCHER et al., 2011). Pactos territoriais como as UPPs do Rio de Janeiro, o Pacto pela Vida na Bahia, os conselhos de planos diretores urbanos ou de políticas setoriais, as mobilizações que resultam em ocupações de territórios e parcerias multiescalares (do micro local ao transnacional) que se articulam em função do desenvolvimento territorial vão requisitar gestores com competências de diversas naturezas e níveis. Interorganizações orientadas ao desenvolvimento territorial são híbridas, intensamente dinâmicas e mutantes quando atuam em convergência para desenvolver territórios. Esta ação em convergência é integrativa e aponta, como um sentido obrigatório ao desenvolvimento.
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O conceito de desenvolvimento territorial é hoje percebido por Mangabeira Unger como “ampliação de oportunidades para aprender, trabalhar e produzir” (UNGER, 2009, p.11). Figura 1 – Interorganizações e desenvolvimento territorial
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Fonte: Elaboração própria
A relação de imbricação entre desenvolvimento enquanto processo e território como ancoragem resgata as concepções de desenvolvimento sustentável de Ignacy Sachs, entre outros, que, no limiar da conferência Rio + 20 que se realizará no Brasil em junho, reitere as dimensões sociais, ambientais, culturais econômicas e espaciais que deve ter o desenvolvimento territorial (SACHS, 2007, p.298).
Qual é a natureza da gestão social enquanto campo de conhecimentos e práticas que requer profissionais competentes? A gestão social é um campo que nasce da necessidade de profissionais com competências ressignificadas relativamente aos princípios que orientam a administração científica no início do século XX. Não por acaso, a gestão (e não a administração) foi categorizada como especialidade interdisciplinar pelo CNPQ. A gestão pode estar associada à saúde, à educação, à cultura, às engenharias e a muitas outras disciplinas e interdisciplinas. Remete sempre à prática e delas se origina. A gestão social é, por excelência, a gestão das convergências, das organizações que trabalham em conjunto (interorganizações) em conexões interinstitucionais que se realizam em espaços territorializados, como ilustra a figura a seguir: Figura 2: Campos da gestão social
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2. A natureza da gestão social como campo profissional: convergência logos e práxis?
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Fonte: Elaboração própria
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Se a gestão é um ato relacional que necessita de um ou diversos territórios para ser exercida, ela ocorre no sentido do desenvolvimento ou como um motor e instrumento do desenvolvimento da sociedade territorializada em bairros, em cidades e regiões, em redes sociais (territórios virtuais) ou em espaços simbólicos como os “territórios de identidade” da Bahia (http://www.seplan.ba.gov.br/mapa.php). A gestão social é, portanto, um campo de conhecimentos e práticas, saberes e fazeres orientados pelos valores de recriação de territórios em diferentes níveis escalares, fortalecendo os poderes locais. Retoma-se aqui o conceito de poder local “como relação de forças por meio das quais se processam alianças e confrontos entre atores sociais, territorializados em espaços geradores de identidades e práticas sociais específicas” (FISCHER, 1993), já bastante estudado pelos grupos de pesquisa que ancoraram o Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (Ciags), sediado no Núcleo de Estudos sobre Poder e Organizações Locais (Nepol) do CNPQ e que volta como tema de pesquisa no retorno de cidades e regiões como protagonistas do desenvolvimento nacional. Se cada época tem os “seus temas”, como disse Paulo Freire, cada época tem também os profissionais que a constroem.
3. Um campo em construção: percursos identitários, hibridização e convergências possíveis
A construção do campo de gestão social é um exercício árduo, compartilhado por “tribos de territórios acadêmicos” que hoje formam a Rede de Gestão Social que promove o Enapegs, mas se encontra em outros eventos como os Enanpads, os Enanpurs e os Colóquios Internacionais sobre Poder Local, entre outros, refletindo a multi/inter/transdisciplinaridade. A problematização do campo tem sido feita por muitos integrantes desta tribo que reúne diferentes especialidades, gerações e inserções acadêmicas (CANÇADO e FERREIRA, 2011). O campo de conhecimento e práticas denominado “gestão
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social do desenvolvimento territorial” tem, no Brasil, uma década de institucionalização como recorte epistemológico com fins de pesquisa e ensino, não obstante ser a gestão social uma prática perene. Entende-se que a construção social do desenvolvimento territorial é tarefa de coletivos, de indivíduos que atuam em conjunto, em interorganizações que reflitam interesses plurais das instituições que operam no espaço público (FISCHER et al, 2011). Há um perceptível mosaico teórico e metodológico e diferentes versões sobre a história deste campo tão novo, como se pode depreender pela produção e pela programação dos eventos que discutem as convergências público e associativo, o papel dos empreendimentos sociais, as temáticas associadas ao socioambiental, as articulações com o investimento social privado e tantas outras. Mais do que uma ruptura com os paradigmas que orientam a gestão como campo de práticas e conhecimentos, estamos vivendo a emergência de novos campos de atuação e saberes neste início de decênio. Novas profissões, novas ocupações ressignificam tanto as práticas quanto os saberes, as redes de significados, as tecnologias e os instrumentos de trabalho. Logos e práxis, ética e efetividade nas dimensões do indivíduo, dos relacionamentos entre humanos e das transações mais complexas de formatos reticulares e interorganizacionais evocando o saber ser, saber interagir e, se acrescenta o saber gerir que requerem mediações e conexões que se transformam no campo de gestão da sociedade como ela se apresenta em seus desafios. Os profissionais que fazem a gestão da sociedade em seus múltiplos territórios podem ser identificados como gestores sociais, desde que exerçam o papel de mediadores de polaridades e de convergências como ilustra a figura 3.
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Figura 3: Dimensões da gestão social
Fonte: Elaboração própria
Se existe um campo de saberes e práticas em construção, mas já com identidade, pode-se formar gestores sociais profissionais?
4. Possíveis itinerários formativos face aos significados e sentidos da gestão social
A gestão social pode ser considerada um campo de conhecimentos e práticas, tendo, portanto, dimensões epistemológicas e praxiológicas articuladas. Um campo de conhecimento supõe uma interorganização de domínios cognitivos que podem se articular multi, inter ou transdiciplinarmente segundo categorização de Jean Piaget (PIAGET, 1970, p. 84). Quando a gestão social é orientada ao desenvolvimento de ter-
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ritórios temos uma dimensão praxiológica substantiva. O que nos solicitam as práticas em tempos de convergência? Como gerir interorganizações como um consórcio público que congrega prefeitos, sindicatos, gestores empresariais, gestores de cooperativas, movimentos sociais, lideranças indígenas e afrodescendentes e outras redes como fóruns e conselhos? As propostas de desenvolvimento territorial decorrem da identificação de problemas de educação, saneamento, habitação, saúde, e outras que, por sua vez estão imbricadas em produção de bens, serviços, conectadas com organizações de mercados plurais (empresas, cooperativas, associações de produtores). Os espaços de prática e os domínios de conhecimento e suas tecnologias articulam-se em interorganizações de um lado e em composições multi/ inter e transdisciplinares do outro. Desta relação das teorias e das práticas, emergem os perfis de gestores sociais necessários para atuar em nós organizacionais (governo, empresa, movimentos) nas conexões interorganizacionais (pactos, conselhos, fóruns), nas redes de redes mais complexas e em outros níveis escalares mais e mais complexos. Para qualificar o gestor social do desenvolvimento territorial que requisitos devem ter os itinerários formativos? Por itinerário formativo entende-se um conjunto articulado de ofertas de ensino constituído de eixos curriculares e dinâmicas de ensinar e aprender traduzidos em designs, ambientes de aprendizagem, recursos e ferramentas. Os itinerários de formação profissional segundo o Plano Nacional de Pós-graduação 2011-2020 devem integrar “inovações curriculares e de formação e dar atenção à diversidade curricular” (BRASIL, 2010, v. 2, p. 8) “bem como ao desenvolvimento social com um todo e de tecnologias sociais em particular” (BRASIL, 2010, v. 2, p 175). Estamos em tempos de internacionalização, mas também de interiorização do ensino para desenvolver competências profissionais de respeito à diversidade também de valorização da qualidade e relevância. Itinerários formativos para gestores sociais podem incorporar os princípios que o escritor Ítalo Calvino propôs para
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este milênio: agilidade, simplicidade, precisão, consistência e multiplicidade. O desenho curricular que encerra este texto é representativo da estrutura do Programa de Desenvolvimento e Gestor Social da UFBA e é um itinerário formativo de gestores sociais que se inicia com a graduação superior tecnológica e avança até o mestrado profissional. Com esta proposta, produto de ação compartilhada de professores, pesquisadores, estudantes e parceiros, espera-se contribuir para a gestão social do desenvolvimento, desafio do país de tantos territórios. Figura 4 – Proposta curricular interdisciplinar e profissional integrada em diferentes níveis de formação
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Fonte: Elaboração própria
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. (Coleção Estudos; 20).
BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 20112020. Brasília, DF: Capes, 2010. v. 2. 608 p.
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FISCHER, T. Poder local, governo e cidadania. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1993.
FISCHER, T. Proposições sobre educação profissional em nível de pós-graduação para o PNPG 2011-2020. IN: BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 2011- 2020. Brasília, DF: Capes, 2010. v. 2. p 259-276.
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Referências
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Fernando Guilherme Tenório1 Anderson Felisberto Dias2
Como já mencionado em outros textos que refletem as discussões ocorridas no âmbito do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs (TENÓRIO, 2010), o tema gestão social se institucionalizou a partir da realização, em 1992, na Bolívia, do Seminário Iberoamericano de Desarrollo de Profesores en Gerencia Social organizado pela RedIberoamericana de Instituciones de Formación em Gerencia Pública (CLADAECI/INAP – PNUD). Motivadas por essas intenções, algumas instituições de ensino e pesquisa em administração pública e empresarial, nacionais e internacionais, passaram a direcionar suas atividades para a formação e capacitação de gerentes, técnicos e lideranças comunitárias. No âmbito da Fundação Getulio Vargas, no entanto, desde 1989 já realizávamos atividades de extensão em parceria com a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro no intuito de desenvolver nos moradores de diversos municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro habilidades para gerir projetos comunitários. Como desdobramento dessa iniciativa surge, em 1990, o Programa de Estudos em Gestão Social – Pegs – vinculado à, então denominada, Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Desde então, o Pegs tem desenvolvido ações no âmbito da pesquisa, do ensino e da extensão com o intuito de contribuir com a consolidação da gestão social enquanto 1 Fernando Guilherme Tenório é Pós-Doutorado em Administração Pública pelo Igop/Universitat Autónoma de Barcelona (UAB). Doutor em Engenharia da Produção pela UFRJ. Mestre em Educação pela UFRJ. Bacharel em Administração pelo Instituto Metodista de Ensino. Professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV). Coordenador do Programa de Estudos em Gestão Social (PEGS). 2 Anderson Felisberto Dias é doutorando em Administração pela Ebape/FGV. Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e administrador pela mesma instituição. Pesquisador do Programa de Estudos em Gestão Social (Pegs) da Ebape/FGV.
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Gestão social: ensino, pesquisa e prática – Pró-Administração – Capes
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campo de conhecimento. Nesse mesmo sentido, diversas outras iniciativas surgiram e hoje contribuem para o fortalecimento da área3. A parceria com a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, maior fonte de inspiração para a consolidação do Pegs, capacitou, ao longo de vinte e três anos, cerca de 900 moradores, com o envolvimento de mais de 90 alunos da graduação, do mestrado e do doutorado da Ebap. Oferecidos nas instalações da Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro e ofertados às comunidades através de comunicados das pastorais e paróquias da Região Metropolitana, os cursos se baseiam na pedagogia emancipatória de Paulo Freire (2005), na filosofia de trabalho com comunidades de Clodovis Boff (1986) e nas formas de transferência de tecnologia social do Instituto de Tecnologia Social (ITS). Os cursos visam capacitar os participantes para gerir projetos comunitários ou estimular o desenvolvimento de lideranças para a inserção de moradores em espaços de deliberação de políticas públicas como os Conselhos Municipais de Políticas Públicas. Com o curso de Gestão de Projetos Comunitários, espera-se que os participantes desenvolvam habilidades necessárias à elaboração, à execução e à avaliação de seus próprios projetos, possibilitando autonomia na resolução dos problemas de suas comunidades. A transferência de tecnologia de gestão visa sanar uma deficiência comum às comunidades, normalmente carentes de ferramentas que lhes permitam a implementação de projetos próprios e acesso às fontes de recursos. A ausência de pessoas capacitadas em gestão de projetos torna essas comunidades vulneráveis aos interesses de organizações que se utilizam do argumento da filantropia para aumentar suas receitas. O curso de Formação Política e Cidadania, por sua vez, pretende instrumentalizar lideranças comunitárias com o intuito de torná-las aptas a representar o interesse das comunidades na discussão de políticas públicas em espaços como os Conselhos Municipais de Políticas Públicas. Pretende-se, com isso, o empoderamento gradativo da sociedade civil no sentido de uma aproximação junto 3 Para detalhamento dessas iniciativas, ver Cançado (2011).
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ao poder público na participação das decisões políticas e na resolução das demandas da sociedade. Argumenta-se que essa iniciativa contribui para o exercício da cidadania deliberativa como instrumento de participação crescente da sociedade na gestão pública e na defesa de seus interesses. Essa iniciativa ganhou o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) através do projeto Transferência de Tecnologias em Gestão Social que possibilitou a implantação do Laboratório de transferência de tecnologias em gestão social nas instalações da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro. Inaugurado em julho de 2011, o laboratório permitirá a disseminação dessa prática para outras regiões do estado, além de possibilitar a intensificação das atividades de pesquisa, ensino e extensão da Ebape. Não só no âmbito acadêmico, mas também na implementação de políticas públicas, a gestão social tem se mostrado como alternativa recorrente para a democratização da gestão e para a possibilidade de abertura dos espaços de decisão na esfera pública. Podemos citar como exemplo atual o Programa Territórios da Cidadania, política lançada em 2008 cujo objetivo é o de promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de cidadania por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. Nele a gestão social aparece como tema norteador para a democratização da gestão do programa. Especificamente no que se refere à academia, a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) demonstram valorizar cada vez mais a integração entre as universidades e a comunidade e, em um sentido às vezes restrito, as ações de extensão dos núcleos e programas de pesquisa relacionados à gestão social, servem para alimentar os inúmeros relatórios de suas instituições. O tema também se tornou prioritário para agências de fomento. A Capes, por exemplo, lançou o Edital Pró-Administração (nº 09/2008) em novembro de 2008, cujo objetivo é o de estimular no país a realização de projetos conjuntos de pesquisa e apoio à capa-
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citação docente utilizando-se de recursos humanos e de infraestrutura disponíveis em diferentes IES. Com o intuito de possibilitar a produção de pesquisas científicas e tecnológicas e a formação de recursos humanos pós-graduados na área de Administração, o edital pretende contribuir, assim, para ampliar e consolidar o desenvolvimento de áreas de formação consideradas estratégicas, através da análise das prioridades e das competências existentes visando à melhoria de ensino de pós-graduação e graduação em Administração e Gestão. A gestão social foi destacada como uma dessas áreas temáticas estratégicas. Chamou atenção o número de projetos aprovados que possuem o tema como foco. Dentre os 21 projetos, três apresentam o termo gestão social no título. O projeto Gestão social: ensino, pesquisa e prática é um dos projetos contemplados pelo edital, cujo cronograma de execução compreende o período de outubro de 2009 a setembro de 2013, e possibilitou a formação de uma rede de pesquisadores pertencentes a quatorze instituições de ensino superior (sete associadas e sete colaboradoras). Sob a coordenação do Pegs da Ebape-FGV, a rede é formada pelas seguintes instituições associadas: Universidade Federal de Lavras (UFLA); Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí); Universidade Federal do Ceará (UFC). Além dessas, integram a rede as seguintes instituições colaboradoras: Universidade de Arte e Ciências Sociais do Chile (ARCIS); Universidad Autónoma de Barcelona (UAB); Universidad Andina Simón Bolívar (UASB); Universidade Federal de Viçosa (UFC); Universidade Federal Fluminense – Pólo Universitário de Volta Redonda. (UFF); Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE); Universidade Federal do Tocantins (UFT). Pretende-se que essa rede contribua com o avanço de diferentes práticas e teorias sobre gestão social de forma que se possa sistematizar os conhecimentos dispersos e transformá-los em
Referências
BOFF, C. Como trabalhar com o povo: metodologia do trabalho popular. Petrópolis: Vozes, 1986.
CANÇADO, A. C. Fundamentos teóricos da gestão social. Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2011. 246 f. (Tese de Doutorado em Administração). FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 35ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
TENÓRIO, F. G. Gestão social: uma réplica. In: RIGO, A. S. et al. (Orgs). Gestão social e políticas públicas de desenvolvimento: ações, articulações e agenda. Recife: Univasf, 2010, p. 53-60. (Coleção Enapegs, v. 3).
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instrumentos didáticos, recursos tecnológicos para aprendizagem, formação de pesquisadores, publicação de artigos e livros, como previsto no edital Pró-Administração. Com o intuito de fortalecimento do campo de conhecimento, contribuir para a consolidação da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS) se tornou uma prioridade para o projeto. Nesse sentido, dentre os três encontros anuais previstos, determinou-se que um ocorreria durante o Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs). Logo, a partir de 2010, toda a rede de pesquisadores é levada ao encontro com recursos do projeto no intuito de discutir e disseminar seus estudos junto à RGS. Foi com esse objetivo que a mesa Gestão social: ensino, pesquisa e prática – Pró-Administração – Capes foi realizada durante o V Enapegs realizado em Florianópolis. Durante a mesa, o projeto foi apresentado aos presentes que puderam esclarecer com os coordenadores das equipes locais detalhes sobre os estudos nelas desenvolvidos. O principal objetivo da mesa foi, portanto, proporcionar um momento de troca de experiências e de disseminação das iniciativas dessas instituições no intuito de contribuir para o desenvolvimento do tema.
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Rosana de Freitas Boullosa1
1. Introdução Parece haver certo consenso sobre a compreensão da gestão social como um campo interdisciplinar de práticas e conhecimentos que ainda está em construção ou em vias de consolidar-se. A gestão social não possui um objeto que lhe é próprio ou uma clareza no qualitativo social que particularizaria a gestão. Tampouco significa uma abordagem peculiar, que a distinguiria com clareza de outros campos, mas, por outro lado, não dá par negar que há um conjunto de temas que lhe são próprios, como a economia solidária e a responsabilidade social, cujas existências vêm dando impulso à gestão social neste processo de consolidação. Como práticas e temáticas distintas se aproximaram e se identificaram sob a alcunha de gestão social foi objetivo de investigação de Boullosa e Schommer (2008; 2010), que apresentaram a teoria da institucionalização precoce da gestão social, que teria passado de um processo de aprendizagem, calcado em muitas trocas entre pessoas, ideias e percepções de lacunas e de oportunidades, a um produto da aprendizagem2. Rapidamente, porém, numa passagem quase contemporânea a anterior descrita pelas autoras, o que seria um produto de aprendizagem se transformou em produtos de ensino e aprendizagem. Assim, a dinâmica de construção da gestão 1 Rosana de Freitas Boullosa é doutora em políticas públicas pela Università IUAV di Venezia e professora adjunta da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Compõe o quadro permanente do programa de pós-graduação em gestão social, Ciags/Eaufba, é líder do grupo de pesquisa Processos de Inovação e Aprendizagem em políticas públicas e gestão social, editora da Revista NAU Social e coordenadora do projeto Observatório da Formação em Gestão Social. 2 Segundo Tenório (2009), a preocupação com o entendimento da gestão social tem marco inicial em 1992, no Seminario Iberoamericano de Desarrollo de Profesores en Gerencia Social, organizado pela Red Iberoamericana de Instituciones de Formación em Gerencia Pública (CLADAECI/ INAP PNUD), em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), de 19 a 21 de agosto daquele ano. Naquele momento, o conceito era muito mais voltado a explicações sobre a extensão universitária, porém, abriu espaços para novas perspectivas de uma gestão concertada entre os diversos atores da sociedade (TENÓRIO, 2009, p.2).
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Uma estrutura de observação para a formação em gestão social
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social vem sendo permeada, pontuada e modelada por diferentes experiências de formação naquilo e daquilo que está sendo construído, ou seja, a própria gestão social. Mais do que um learning by doing, temos vivido um doing by learning. Em palavras claras, vamos aprendendo e construindo a gestão social à medida que vamos ensinando o que é esta tal de gestão social. E foi justamente esta particularidade na dinâmica de construção da gestão social, interdependente da dinâmica de construção da formação em gestão social, que deu origem e justificou a ideia de uma estrutura de observação para a formação em gestão social. O quadro da oferta de formação em gestão social é hoje bastante amplo. Para começar, conta com duas propostas de graduação, uma na Universidade Federal da Bahia, a primeira do país, desenhada e implementada como graduação tecnológica e, portanto, de viés profissionalizante, e uma segunda na Universidade Federal do Ceará/Campus Cariri. Ambas precisaram da interlocução oficial com o campo disciplinar da administração pública para terem seus projetos institucionalmente aprovados, mas seus currículos revelam suas claras intenções em gestão social. Além destes cursos específicos, são cada vez mais frequentes cursos de graduação em universidades e centros universitários públicos e privados, que ajudam a ilustrar a crescente capilaridade da oferta avulsa de disciplinas de gestão social no país e evidenciam a tendência à transformação de tais disciplinas em trilhas curriculares, que podem vir a dar origem a novos cursos específicos de gestão social (ARAÚJO, BOULLOSA e GLÓRIA, 2010). Uma gama muito mais ampla distingue a oferta de formação em gestão social em nível de pós-graduação, lato e stricto senso. Há, por exemplo, o concorrido Mestrado Multidisciplinar e Profissional em Desenvolvimento e Gestão Social, promovido pelo Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão social (Ciags/Eaufba), na Bahia; o Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, oferecido pelo Centro Universitário UNA, em Minas Gerais; a Especialização em Gestão Social, oferecida pelo Sesi/Unidus/Unicemp, em São Paulo, dentre outros que também oferecem o nome gestão social em seus diplomas de conclusão de
2. A proposta do Observatório
O Observatório da Formação em Gestão Social é um projeto de pesquisa tecnológica que vem sendo desenhado e implementado, desde meados de 2010, por quatro diferentes Universidades brasileiras: a Federal da Bahia (Ufba), a Federal do Ceará/Campus Cariri (UFC/Cariri), a do Estado de Santa Catarina (Udesc) e Pontifícia Católica de São Paulo (PUC-SP), contando com o apoio e participação de outras universidades e centros de pesquisa, no âmbito da Rede Nacional de Pesquisadores em Gestão social (RGS). O seu objetivo principal é constituir-se como um lócus para discussão, sistematização, consolidação e expansão do campo da Gestão Social, a partir de três eixos de observação e análise: (1)
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curso. Além destes cursos específicos, há um grande número de doutorados, mestrados acadêmicos e mestrados profissionais que aceitam que teses e dissertações em/sobre gestão social sejam desenvolvidas e defendidas, como é o caso da Pontifícia Católica, em São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As primeiras observações que subsidiaram a elaboração do projeto do Observatório (BOULLOSA et alli, 2012) mostraram que o conjunto da oferta de formação específica e não específica, além de ser pouco articulado entre si, carregava consigo o gérmen da pluralidade da gestão social, oferecendo interpretações bem diferentes sobre perguntas importantes, tais como: O que a gestão social tem de próprio, o que lhe é peculiar ou que o não lhe pode faltar? A gestão social possui um objeto conformar de um campo próprio? E o que acontece quando trazemos estas perguntas para a formação em gestão social? Como as diferentes aproximações disciplinares reverberam sobre e ressignificam a formação em gestão social? Em que medida a pluralidade epistemológica da gestão social se reflete nas diferentes propostas de formação em curso pelo país? O que pretendemos quando formamos gestores sociais? Há modos e tempos de produção de conhecimento próprios da formação em gestão social? Em que medida a interdisciplinaridade pode modelar tal formação?
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Inovação, (2) Ensino- aprendizagem e (3) Avaliação. A estrutura em três eixos foi desenhada para acolher, acompanhar, ajudar a organizar e explorar as principais questões e temáticas que vêm estimulando pesquisadores e professores a atuar e contribuir criticamente para com a formação em gestão social. Cada um dos eixos de observação foi estruturado a partir de uma pergunta orientadora, das quais derivam objetivos específicos. (1) O Eixo Inovação, orientado pela pergunta “Quais as fronteiras e a natureza do que vem sendo ensinado como gestão social?” e coordenado por uma parceria entre a UFC/Cariri e a Ufba, possui como objetivos específicos: (a) Mapear e classificar os conceitos de Gestão Social trabalhados pela Ufba e universidades parceiras e suas relações de complementaridade com outros conceitos, tais como desenvolvimento, desenvolvimento territorial, desenvolvimento socioterritorial, gestão ambiental, gestão dos problemas sociais, tecnologia social etc.; (b) Mapear a oferta de formação em Gestão Social em cursos de graduação e pós-graduação (stricto e lato sensu) e disciplinas avulsas em outros cursos de graduação e pós-graduação nas universidades parceiras; (c) Desenvolver uma bibliometria online da Gestão Social, organizada pela Ufba, aberta à comunidade interessada; (2) O Eixo Ensino-Aprendizagem, orientado pela pergunta “quais os traços definidores da relação ensino-aprendizagem em Gestão Social?” e coordenado por uma parceria entre a Udesc e a Ufba, possui como objetivos específicos: (d) Mapear e classificar os projetos políticopedagógicos dos cursos de graduação e pós-graduação que oferecem regularmente formação em gestão social; (e) Mapear e classificar as metodologias de ensino
(3) O Eixo Avaliação estrutura-se orientado pela pergunta “em que medida a formação em Gestão Social consegue alterar as práticas profissionais de seus egressos?”. Coordenado por uma pareceria entre a PUC/SP e a Ufba, possui como objetivos específicos: (g) Construir o perfil dos alunos que ingressam nos cursos de graduação em gestão social; (h) Avaliar os egressos dos cursos de graduação e pós-graduação inteiramente voltados à formação do gestor social; (i) Realizar observação do observatório (metaobservatório), para o controle e melhoria das ações desenvolvidas e busca de alcance dos próprios objetivos.
3. Os desafios e as primeiras conquistas Desde a sua criação, o Observatório FGS vem enfrentando os desafios de implementação de uma estrutura de observação com muitos olhos e muitas mãos e com o desejo de que estes se ampliem ainda mais. O modelo de gestão adotado é o de gestão colegiada, com uma equipe de trabalho em cada uma das universidades parceiras, sob a batuta de coordenadores locais e de uma coordenadoria geral, que hoje está na Ufba. Há projetos de diferentes agências de fomento que estão ajudando a implementar o Observatório FGS, como o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, além de bolsas de iniciação científica e tecnológica das universidades parceiras. As equipes desenvolvem projetos próprios e projetos em conjunto com outras universidades e formadoras deste Obser-
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em Gestão Social, com particular atenção às metodologias inovadoras, não convencionais (GIANNELLA; MOURA, 2009) e integrativas; (f) Catalogar e classificar os planos de ensino de disciplinas que discutem a Gestão Social dentro de outros cursos;
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vatório FGS. Alguns projetos também são desenvolvidos entre as quatro parceiras. Dentre os projetos que estão sendo atualmente realizados, além de trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado, que também são desenvolvidos no âmbito deste Observatório FGS, destacam-se: • Mapeamento quantitativo e qualitativo da evasão do curso de graduação em gestão pública e gestão social da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia; • Bibliometria da gestão social, que pretende indexar inicialmente toda a produção bibliográfica em gestão social produzida pelas universidades parceiras nos últimos cinco anos. Inicialmente, foram pensados os seguintes critérios de classificação/entrada: (a) tipologia do produto científico ou tecnológico; (b) autoria; (c) ano de publicação; (d) local da publicação; (e) circulação; (f) filiação do autor; (g) titulação do autor; (h) palavras-chave; dentre outros. • Mapeamento da pluralidade interpretativa do conceito da gestão social junto ao público de formadores e formandos em gestão social, nos principais cursos oferecidos no país, sob a coordenação de Edgilson Tavares de Araújo, que também desenvolve a sua tese de doutoramento na PUC/SP, no âmbito deste Observatório FGS; • Avaliação do perfil dos ingressos no curso de graduação em gestão pública e gestão social da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia; • Glossário ou Dicionário da Formação em Gestão Social, que está sendo elaborado a partir de um primeiro conjunto de verbetes que foram considerados pelos parceiros como próprios da gestão social, sobretudo da formação em gestão social, envolvendo as quatro universidades parceiras; • Análise dos projetos político-pedagógico dos cursos que oferecem formação específica em gestão social, a partir de dois sub-eixos de análise: (a) diretrizes político-pedagógicos e (b) hipótese de contexto. Estes sub-eixos já foram discutidos e amadurecidos em duas Oficinas: uma primeira no III ENA-
Por último, entendemos que a observação e análise do conjunto da oferta de formação em gestão social devam ser realizadas prestando muita atenção ao contexto no qual o conhecimento é produzido e pretende ser difundido. Nesta mesma perspectiva, as propostas de formação superior também se desenvolvem no plano social, como as experiências sobre as quais este Observatório se debruça. Qualquer possibilidade de oferta formativa, tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação, contém, ainda que implicitamente e precariamente, uma resposta ao problema para que vamos ensinar? Os processos de formação acontecem em uma sociedade por meio de grupos sociais que possuem visões distintas, do que é possível chamar de finalidades educativas. Portanto, pressupõe certo posicionamento sobre a relação entre homem e sociedade que irá sustentar o projeto e as técnicas pedagógicas, bem como delimitar aquilo que se define como currículo. Entende-se neste processo que o currículo é escolha e opção, determinadas por fatores pessoais (visões de mundo e concepções teóricas daqueles que constroem as propostas), institucionais e políticos (interesses das instituições formadoras) (BOULLOSA et alli, 2009). O conceito de currículo proposto por Macedo (2008), por
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PEGS (Petrolina-Juazeiro, 2009) e uma outra no XI Colóquio sobre o Poder Local (Salvador, 2009). • Catalogação dos planos de ensino de disciplinas avulsas na temática da gestão social, junto às universidades parceiras. Inicialmente, estamos trabalhando em três linhas para análise dos planos de ensino: Conteúdo programático: constituído pela ementa da disciplina, sequencia de conteúdos proposta pelo professor responsável, bem como a bibliografia básica indicada para os respectivos conteúdos; Metodologias inovadoras: atividades inovadoras de ensino-aprendizagem pensadas no plano, tais como os métodos de avaliação, atividades práticas entre outras; Informações gerais: constituídas pela carga horária da disciplina, nome, titulação, ano da última titulação e formação do professor, enquadramento da disciplina na grade curricular (se obrigatória, eletiva ou tópicos especiais).
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exemplo, de modo abrangente e priorizando a intercriticidade a que deve possuir. Com ele, compreendemos currículo como uma tradição inventada, como um artefato socioeducacional que se configura nas ações de conceber / selecionar / produzir, organizar, institucionalizar, implementar / dinamizar, avaliar conhecimentos e atividades, visando dada formação, configurada por processos e construções constituídos na relação com o conhecimento eleito como educativo. Pode-se entender, portanto, que o currículo é o conhecimento eleito como formativo para o indivíduo, neste caso, o gestor social. Aqui aparece uma preocupação com possíveis contradições que possam existir quanto a este conhecimento, que a priori, pode visar a ampliação do público. Há uma relação intimista entre currículo e formação, aqui entendida como a construção de qualificações, em geral constituídas na relação com o conhecimento eleito como formativo. Como uma construção social e articulado de perto com outros processos e procedimentos pedagógico-educacionais, o currículo atualiza-se, ou seja, os atos de currículo, de forma ideológica e, neste sentido, veicula uma formação ética, política, estética e cultural, nem sempre explícita (âmbito do currículo oculto), nem sempre coerentes (âmbito dos dilemas, das contradições, das ambivalências, dos paradoxos), nem sempre absoluta (âmbito das derivas, das transgressões), nem sempre sólida (âmbito dos vagamentos e brechas) (MACEDO, 2007, p. 25).Tal concepção de currículo aos processos formativos em gestão social é plenamente aplicável na medida que questiona a existência de ambiguidades e ambivalências que certamente se situam no âmbito oculto, dos dilemas, contradições, transgressões, vagamentos e brechas existentes. Com algumas palavras para concluir, já nos parece possível inferir alguns dos elementos nas institucionalizações disciplinares sobre os conteúdos escolhidos como formativos para os gestores sociais. Isso leva a uma inflexão revolucionária: o que os processos de formação (e seus currículos) em gestão social têm feito com os gestores sociais? Quais conteúdos e modos de aprendizagem da gestão social são necessários para a ampliação do público e resgate do homem público? Boullosa et all (2009) apontam que a construção dos currículos em gestão social possuem focos distintos:
Referências
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BOULLOSA, R.F.; SCHOMMER, P. C. Gestão Social: Caso de Inovação em Políticas Públicas ou mais um Enigma de Lampedusa. In: Rigo, A.S.; SILVA Jr, J.T.; SCHOMMER, P.C; CANÇADO, A.C.. (Org.). Gestão Social e Políticas Públicas de Desenvolvimento: Ações, Articulações e Agenda. 1 ed. Juazeiro/ BA-Petrilina/PE: Universidade Federal do Vale do São Francisco, 2010, v. 3, p. 63-92; BOULLOSA, R.F. e SCHOMMER , P.C. Limites da Natureza da Inovação ou Qual o Futuro da Gestão Social? Anais do XXXII ENANPAD Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração. Rio de Janeiro: Anpad, 2008;
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quanto à agregação de conteúdos com base no idealizado perfil de competências do gestor social; o anseio de inovar conceitual e empiricamente como forma de solidificar o campo; e as tentativas de inovação em termos de estratégias de ensino. Deste modo, os projetos pedagógicos vêm se configurando como modelos em testagem, contemplando ou pelo menos tangenciando, algumas das questões relacionadas, por exemplo, à representação prática do cidadão-gestor social que se deseja formar. Qualquer proposta formativa carrega consigo o enunciado de interpretações sobre o presente das relações sociais, assim como um projeto de fruto social, mesmo quando suas estruturas já perderam grande parte de sua clareza ou transformaram-se em mosaicos curriculares, cujas pátinas são difíceis de serem resgatadas. Nesta perspectiva, a recente trajetória da formação em gestão social apresenta-se como fecunda oportunidade de pesquisa ativa para o desenvolvimento do seu próprio objeto de investigação. Esperamos com isto que o Observatório, é o que desejamos, consiga realmente funcionar como uma meta arena discursiva de atores institucionais que cada vez mais investem recursos cognitivos, econômicos, materiais etc. na oferta de percursos formativos em gestão social.
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BOULLOSA, R.F. et all. Avaliação participativa de propostas e práticas pedagógicas na formação em gestão social: descobrindo olhares e construindo novos horizontes de pesquisa. In In: ENAPEGS - Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social, III Anais..., LIEGS: Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), 2009;
BOULLOSA, R.F; SCHOMMER, P.; GIANNELLA, V.; JUNQUEIRA. L. Observatório da Formação em Gestão Social: inovação, ensinoaprendizagem e avaliação. Nau Social , v. 02, p. 169-183, 2011;
GIANNELLA, V.; MOURA, M. S. Gestão em rede e Metodologias não Convencionais para a Gestão Social. 1. ed. Salvador: CIAGS-UFBA, 2009. v. 500. 100 p.;
MACEDO, R. S.. Currículo - campo, conceito e pesquisa .1. ed. Petrópolis: Vozes, 2007; SCHOMMER, P.; BOULLOSA, R. F. . Com quantas andorinhas se faz um verão? Práticas, relações e fronteiras de aprendizagem. In: Schommer, P.C.; Santos, I. G. (Org.). Aprender se aprende aprendendo: construção de saberes na relação entre universidade e sociedade. 1 ed. Salvador: CIAGS/ UFBA, FAPESB; SECTI; CNPq, 2009, v. 1, p. 19-44;
TENÓRIO, F. G. (Re)visitando o conceito de gestão social. In: SILVA JR; J. MÂSIH, R. T.; CANÇADO, A.C.; SCHOMMER, P. C. Gestão Social. Práticas em debate, teorias em construção. LIEGS/UFC: Juazeiro do Norte CE, 2009, p. 37-57.
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Ladislau Dowbor2
O Brasil está partindo, nesta segunda década do milênio, de um novo patamar. Resistiu de forma impressionante à maior crise financeira desde 1929, e está apontando rumos baseados fundamentalmente no bom senso, e numa visão equilibrada dos interesses econômicos, das necessidades sociais, e dos imperativos ambientais. A visão econômica tradicional, presa às simplificações do Consenso de Washington, envelheceu de repente e não corresponde aos desafios de uma sociedade moderna e complexa, que tem de buscar novas articulações de política econômica, social e ambiental. Constatamos hoje que a presença de um forte setor estatal não é um estorvo, é um suporte fundamental. A regulação das finanças não implica burocratização, é uma proteção necessária contra a irresponsabilidade. Assegurar melhores salários e direitos aos trabalhadores não é demagogia, é a forma mais simples e direta de gerar demanda e uma conjuntura favorável. Apoiar os mais pobres da sociedade não é assistencialismo, é justiça, bom senso, e dinamiza a economia pela base. Investir nas regiões mais pobres não é um sacrifício, prepara novos equilíbrios ao gerar economias externas para futuros investimentos. Fazer políticas sociais não é um “bolo” que se divide, pois é o investimento na pessoa que mais gera dinâmicas econômicas, como já analisava Amartya Sen. Apoiar movimentos sociais não é distribuir benesses, é dar instrumentos de trabalho a organizações que conhecem profundamente a realidade onde estão inseridas, e apresentam flexibilidade e eficiência nas suas áreas específicas. Fazer política ambiental não “atrasa” o progresso, pois muito mais empregos geram as alternativas energéticas e o apoio à policultura familiar, do que extrair petróleo e des1 Documento elaborado como insumo para a discussão no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES (www.cdes.gov.br), em abril de 2010. 2 Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org
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Brasil: um outro patamar1 - propostas de estratégia
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matar para buscar lucros de curto prazo. Manter uma sólida base de impostos, não é “tirar da população”, é assegurar contrapesos indispensáveis para o desenvolvimento equilibrado do país. A constatação dos avanços não implica subestimação dos desafios. O contexto internacional continua instável, com boa parte dos desequilíbrios do sistema financeiro privado dos países desenvolvidos simplesmente transformada em desequilíbrios públicos, gerando déficits impressionantes. Os desafios sociais, em que pesem os grandes avanços dos últimos anos, continuam imensos, exigindo iniciativas mais abrangentes. O conjunto do sistema tributário ainda aguarda uma revisão em profundidade, buscando maior racionalidade e justiça na captação, e maior eficiência e redistribuição na alocação orçamentária. A modernização e o resgate da dimensão pública do Estado ainda aguardam uma reforma política cada vez mais premente. As políticas ambientais precisam ser consolidadas e absorvidas na cultura tanto da administração pública, como das empresas e do comportamento do consumidor. De certa forma, os rumos tornaram-se mais claros, e a confiança da sociedade aumentou ao ver que os resultados os confirmam. Mas são etapas de uma construção que exige um constante repensar das estratégias. Um eixo chave a se considerar, é o aproveitamento racional dos potenciais impressionantes que o país possui, e a sua conjugação com os novos desafios ambientais. Temos a maior reserva de solo agrícola parado do planeta, uma das maiores reservas de água doce, temos clima e mão de obra, isto numa época em que a pressão por alimentos e biocombustíveis aumenta por toda parte. E o Brasil hoje domina tecnologias de ponta nesta área. Tem uma matriz energética invejável numa época em que a mudança do paradigma energético-produtivo está se tornando peça chave da construção do futuro. Tem a médio prazo eventos internacionais que o projetam mais ainda no cenário mundial. A disponibilidade maior do petróleo abre novas perspectivas. Juntando estes e outros fatores, se o país conseguir evitar a tentação de mais um ciclo agroexportador, ou o uso apressado dos novos recursos, e souber proteger o seu meio ambiente e aprofundar a construção de um novo equilíbrio social, a continuação do círculo virtuoso tem boas perspectivas. Em
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grande parte o futuro dependerá de como o Brasil administrará a equação da produção, do emprego, da renda e do meio ambiente. O Brasil tem aberto novos caminhos, mas os desafios são grandes. Não basta ter rumos, é preciso conseguir resultados. Imensa importância tem a lenta construção de formas mais democráticas de tomada de decisões. Frente ao peso político dos grandes grupos econômicos e das elites tradicionais a eles aliadas, o governo tem assegurado uma política de equilíbrios, buscando estimular a economia e assegurar as contrapartidas em termos sociais, e cada vez mais em termos ambientais. Os programas simplesmente funcionam, e funcionam porque são negociados, assegurando uma base razoável de apoio político. Mas também funcionam, no caso dos grandes programas sociais, porque no primeiro e segundo escalão técnico, que são as pessoas que carregam efetivamente o peso da gestão, estão pessoas que em geral vêm dos movimentos sociais, e conhecem efetivamente os problemas, sabem que tipo de parcerias têm de ser organizadas, entendem de mobilização em torno aos programas. Os movimentos sociais têm um papel vital nestes processos, e crescente no futuro. Com todas as dificuldades, gerou-se, entre os diversos setores, uma cultura da negociação, da pactuação, do respeito aos interesses nucleares dos diferentes segmentos. A visão desenhada no presente texto obedece a certas definições conceituais que se consideram adquiridas, e fazem parte do ideário básico que vem se cristalizando no país. Assim, antes de tudo, estaremos distinguindo o conceito de crescimento econômico, na visão estreita de dinamização do produto interno bruto, do conceito de desenvolvimento que envolve a progressão equilibrada nos planos econômico, social, ambiental e cultural. O conceito de sustentabilidade, aqui utilizado, refere-se à sustentabilidade ambiental, na definição clássica do Relatório Brundtland, de resposta às necessidades presentes sem comprometer as das gerações futuras. O conceito de desenvolvimento local ou regional não se refere a uma opção por uma unidade particular como o município, mas às complexas articulações territoriais que exigem os programas que, em última instância, exercem o seu impacto em espaços geográficos concretos. O conceito de planejamento não se refere a algum
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tipo de planejamento central autoritário, mas aos processos pactuados de definição de programas estruturais que permitem reforçar na gestão governamental a visão sistêmica que ultrapassa os cortes setoriais, e a visão de longo prazo que assegura a continuidade entre ciclos de gestão governamental. O conceito de governança é aqui utilizado no sentido amplo da gestão que envolve tanto a máquina governamental propriamente dita, como as articulações com o conjunto de atores sociais organizados que participam do processo decisório e impactam os rumos do desenvolvimento. Não se trata aqui de elaborar um plano no sentido tradicional, que nos levaria a apresentar propostas para todos os setores, inclusive à política de esportes, à política florestal e assim por diante, com todos os projetos. O presente documento tem dimensões muito limitadas, e busca desenhar em grandes traços o novo referencial, tanto nacional como internacional, que incide sobre os rumos desta década. Na parte propositiva, e buscando capitalizar acúmulos anteriores, privilegiou-se os eixos de ação que podem ser considerados “estruturantes” pelo peso sistêmico nas mudanças que estão ocorrendo no país. Isto envolve tanto uma visão para o futuro, como no caso das políticas tecnológicas que estão adquirindo peso determinante no planeta, como a correção dos desequilíbrios herdados que pesam sobre o conjunto e precisam de correção acelerada, como a inclusão produtiva. Não haverá texto desta amplitude que recolha a unanimidade das visões, nem que responda a tantos interesses específicos. A lista de coisas a fazer é grande. O que se busca aqui é uma visão articulada dos principais eixos que ajudarão a dinamizar o conjunto. O texto que segue resume de forma ampla um conjunto de discussões que há cinco anos vem se desenvolvendo no CDES, refletindo o amplo espectro de participantes, mas também os numerosos documentos, propostas e resoluções que têm sido discutidas com os mais variados setores da sociedade, além de consultas com especialistas das principais áreas de atividade. Há uma forte convergência no conjunto das visões, ainda que muita diversidade nas propostas. Recolhemos aqui as que nos pareceram mais contribuir para uma visão sistêmica coerente, e privilegiando a visão de con-
I – UM NOVO PATAMAR
1. O novo contexto internacional: riscos e oportunidades 2. Um novo modelo: o caminho do bom senso 3. A política macroeconômica: pragmatismo e flexibilidade 4. Os resultados: bases para uma nova expansão
Não há dúvida que estão soprando bons ventos. Há um clima de confiança que está se generalizando. Aqui não há vencedores nem vencidos. A melhor imagem é a de uma boa maré, que levanta todos os barcos. Para além do detalhe das propostas para o país nos diversos setores, esta é a visão: um Brasil que se desenvolve, com a participação de todos, de maneira sustentável, e por meio de decisões democraticamente negociadas.
1. O novo contexto internacional: riscos e oportunidades
A crise financeira internacional de 2008 marcou um divisor de águas. As grandes simplificações relativas à dicotomia entre Estado e mercado, com o seu peso ideológico, deram lugar a atitudes de bom senso, de pragmatismo de resultados, de busca de equilíbrios. De certa forma, inovar em política voltou a ser legítimo. Este pensar de maneira inovadora é hoje essencial. No plano internacional, a crise não desaparece. Um PIB mundial de 60 trilhões de dólares, e 860 trilhões de dólares em papéis emitidos, gera instabilidade. Os déficits do setor especulativo privado foram transformados em
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junto. Buscamos também evitar a tentação de um texto que de tão geral e prudente, pouco significa. Para efeitos de sistematização, e evitando um texto demasiado burocrático, dividimos a apresentação em duas partes: a primeira trata do novo patamar de desenvolvimento que de certa forma constitui o referencial das mudanças ocorridas durante a última década, e aponta os ajustes necessários. A segunda se concentra na estratégia de desenvolvimento que permitirá ampliar as dinâmicas apresentadas na Agenda Nacional de Desenvolvimento anterior.
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déficit público, perda de aposentadorias e desemprego, e tanto os Estados Unidos como a Europa têm pela frente a busca de novos mecanismos de equilíbrio. Não se configura um horizonte estável e equilibrado no planeta. Para o Brasil, a diversificação das relações externas, com ênfase no Sul-Sul e na integração latino-americana, deve continuar prioritária. No plano financeiro, o patamar do Brasil é hoje radicalmente diferente. Com 35 bilhões de dólares de reservas em 2002, o país estava à mercê de ataques especulativos. Hoje, com 250 bilhões em reservas, credor e não mais devedor do FMI – fato que financeiramente não é essencial mas é importante em termos simbólicos - diversificação comercial, e melhor equilíbrio entre o mercado interno e externo, o país tornou-se uma referência internacional. A forma como se manobrou entre os escolhos da crise financeira de 2008, inclusive com multinacionais repatriando grandes volumes de recursos das filiais para salvar as suas matrizes, passou a ser vista no mundo como uma prova de que bom senso e pragmatismo rendem mais do que as simplificações ideológicas. Isto gerou confiança, que permite hoje ao Brasil inclusive fazer exigências aos capitais que entram. O sucesso gera sucesso. No plano comercial, uma população mundial que aumenta em 70 milhões de habitantes por ano, com ampliação do consumo, além do reforço pela opção por biocombustíveis, devem manter a tendência para uma demanda forte por commodities. O Brasil, com a maior reserva mundial de solo agrícola parado, e 12% da reserva mundial de água doce, tem aqui trunfos excepcionalmente fortes. Mas deverá entrar cada vez mais em cena o problema da regulação internacional dos preços das commodities, hoje mais dependentes dos movimentos dos capitais especulativos do que propriamente do equilíbrio de oferta e demanda. Como exemplo, o comércio mundial de petróleo é de 85 milhões de barris por dia, e as trocas especulativas (papéis) diárias atingem 3.000 milhões de barris. O Brasil tem um forte papel a desempenhar na promoção de mecanismos de regulação nesta área. Em termos geoeconômicos, a tendência é para um deslocamento da bacia do Atlântico para a bacia do Pacífico, com os fortes
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avanços da China e da Índia, que representam 40% da população mundial, e de demais países hoje muito dinâmicos como a Coréia do Sul e o Vietnã, ou simplesmente fortes como o Japão. Isto representa desafios estruturais para o Brasil. É de se lembrar aqui que, enquanto os Estados Unidos realizaram a conexão ferroviária Atlântico-Pacífico em 1890, nós ainda sequer temos uma conexão adequada por rodovia. O deslocamento favorecerá tanto uma orientação mais integradora de infraestruturas na América Latina, como melhor equilíbrio de ocupação e uso do território no Brasil, ainda fortemente atlântico na demografia e na economia. O oeste, para nós, adquire nova importância. Outro fator essencial do novo contexto internacional é a crescente presença dos desafios ambientais no planeta. Enquanto a crise financeira internacional migrou dos bancos para os ministérios, e saiu das manchetes de jornais, a realidade da mudança climática, da liquidação da vida nos oceanos pela sobrepesca oceânica industrial, a destruição das matas (particularmente importantes no Brasil e na Indonésia), a erosão dos solos, a contaminação generalizada dos rios, dos lençóis freáticos e dos mares, geram preocupações que, independentemente dos resultados de Copenhague, exigem uma inclusão mais generalizada da visão da sustentabilidade ambiental em todas as decisões de políticas de desenvolvimento, tanto no setor público como no privado. O Brasil tem como se situar com vantagem neste plano, e deverá desempenhar um papel importante na Cúpula Mundial do Meio Ambiente de 2012 “Rio +20”. No plano social, as preocupações são igualmente crescentes. Com a explosão especulativa na área dos grãos, a fome no mundo passou de 900 milhões para 1020 milhões de pessoas. De fome e outras causas absurdas morrem 10 milhões de crianças. A Aids já matou 25 milhões de pessoas. O Banco Mundial estima em 4 bilhões o número de pessoas no mundo que estão “fora dos benefícios da globalização”. São situações insustentáveis. O equilíbrio social das políticas econômicas está adquirindo uma grande centralidade no planeta, e o Brasil, que mostrou durante os últimos anos a viabilidade de políticas que equilibram os objetivos econômicos e sociais, adquire aqui uma legitimidade excepcional.
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No plano político, frente a uma economia que se globalizou em grande parte, estão começando apenas agora a se construir espaços de concentração internacional. Encerra-se, de certa maneira, a fase de monopólio de poder pelos Estados Unidos e de forma geral dos países desenvolvidos. Os BRICs começaram a ocupar o espaço político internacional, o G-20 começa a abrir um espaço regular de negociação, e o Brasil em particular assume uma forte presença internacional devida em grande parte ao modelo econômico, social e ambiental inovador e equilibrado que desenvolve, e que está simplesmente dando certo. O aprofundamento destas políticas, cuja tecnologia organizacional deu aqui grandes passos, deve marcar os próximos anos, e reforça o papel internacional do país. Em termos de novo contexto internacional, a integração latino-americana está adquirindo um papel crescente. Esta política, é preciso dizê-lo, se caracterizou no passado mais pela criação de siglas do que de fatos, enquanto predominava a articulação de cada país com grupos particulares de interesses norte-americanos. Hoje se constata avanços no plano das instituições, de mecanismos de financiamento, de infraestruturas (ainda incipientes), de codificação das migrações, da própria academia. O Brasil tem um papel fundamental a exercer por razões tanto do seu peso específico, como pelas inovações políticas que tem desenvolvido e por haver tantas coisas em comum em termos dos dramas sociais herdados. A América Latina está adquirindo identidade. Um último ponto essencial decorre dos avanços tecnológicos, e em particular na área das tecnologias de informação e comunicação. O papel do acesso ao conhecimento, o barateamento das infraestruturas e dos equipamentos individuais, a generalização da conectividade planetária, a ampliação do acesso aos conhecimentos de todo o planeta, o surgimento de inúmeras atividades econômicas na chamada sociedade do conhecimento – todas estas mudanças estão se mostrando muito mais aceleradas do que previsto. Se no século passado os grandes embates políticos se davam em torno da propriedade dos meios de produção, na era da nova economia o acesso ao conhecimento e a definição dos seus marcos legais tornam-se questões centrais. No caso do Brasil, o salto para
2. Um novo modelo: o caminho do bom senso
O Brasil optou pelo enfrentamento da desigualdade como seu eixo estratégico principal. A materialização da estratégia se deu através da ampliação do consumo de massa. A visão enfrentou fortes resistências no início, mas os efeitos multiplicadores foram-se verificando no próprio processo de ampliação das políticas. Com a visão de bom senso de que o principal desafio do Brasil, a exclusão econômica e social de quase a metade da sua população, podia ser um trunfo, o país encontrou um novo horizonte de expansão no mercado interno. A crescente pressão da base da pirâmide social brasileira por melhores condições de vida, articulada com a determinação do governo de promover as mudanças, gerou um círculo virtuoso em que o econômico, o social e o ambiental encontraram o seu campo comum. Os avanços sociais sempre foram apresentados no Brasil como custos, que onerariam os setores produtivos. As políticas foram tradicionalmente baseadas na visão de que a ampliação da competitividade da empresa passa pela redução dos seus custos. Isto tem duas vertentes. Enquanto a redução dos custos pela racionalização
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a economia do conhecimento pela generalização da banda larga e outras formas de acesso ao conhecimento abre importantes perspectivas de inclusão produtiva e melhoria de qualidade de vida. O desafio é cobrir o hiato entre estes desafios tecnológicos e o atraso educacional no plano interno, para ocupar o espaço correspondente no plano internacional. No conjunto, o Brasil desempenha hoje na cena internacional um forte papel como parceiro adulto, portador não só da sua força econômica e riqueza cultural, mas também de propostas práticas e de bom senso no enfrentamento dos principais desafios sociais e ambientais, e de solidariedade com países em dificuldades. A confiabilidade e o respeito angariados não só ampliam o espaço de manobra do país, como se refletem fortemente, como se notou no caso da aprovação da Copa e das Olimpíadas, no sentimento de confiança em si no conjunto da população. Neste plano, o país parte realmente de outro patamar.
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do uso dos insumos e pelo aproveitamento das novas tecnologias produtivas e organizacionais é essencial, pelo avanço de produtividade que permite, a redução de custos pelo lado da mão de obra reduz o mercado consumidor no seu conjunto, e tende a ter o efeito inverso. Ao reduzir o mercado consumidor, limita a escala de produção, e mantém a economia na chamada “base estreita”, de produzir pouco, para poucos, e com preços elevados. É importante lembrar que faz todo sentido, para uma empresa individual, achar que com menos direitos sociais ou menores salários poderia reduzir os seus custos, tornando-se inclusive mais competitiva relativamente aos seus concorrentes. Mas a aplicação desta visão ao conjunto das empresas resulta em estagnação para todos. Em termos práticos, o que faz sentido no plano microeconômico, torna-se assim um entrave em termos mais amplos, no plano macroeconômico. As políticas redistributivas aplicadas de forma generalizada, atingindo, portanto, o conjunto das unidades empresariais, geram também mercados mais amplos para todos, reduzindo custos unitários de produção pelas economias de escala, o que por sua vez permite a expansão do consumo de massa, criando gradualmente um círculo virtuoso de crescimento. Se sustentada por mais tempo, esta política passa a pressionar a capacidade produtiva, estimulando investimentos, que por sua vez geram mais empregos e maior consumo. A expansão simultânea da demanda e da capacidade produtiva promove desenvolvimento sem as pressões inflacionárias de surtos distributivos momentâneos. A espiral de crescimento passa a ser equilibrada. E a verdade é que os setores, que estagnam em termos salariais e de direitos sociais, também tendem a se acomodar em termos de inovação em geral. Esta compreensão dificilmente se generaliza com explanações teóricas apenas. No entanto, a constatação de que funciona quando aplicada de maneira sustentada, e que viabiliza os negócios de cada um, convence muita gente, que vê os resultados práticos. De certa forma, o Brasil encontrou o seu rumo ao transformar o seu maior desafio, a pobreza, e a falta de capacidade de compra que a acompanha, em vetor de expansão do conjunto da economia. A distribuição, ao estimular a demanda, é que faz crescer o bolo.
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Uma segunda mudança, também ditada pelo bom senso, encontra-se na ampliação das políticas sociais em geral, envolvendo a educação, a saúde, a formação profissional, o acesso à cultura e à internet, à habitação mais digna. Aqui também está se invertendo uma visão tradicional. A herança teórica, das simplificações neoliberais, é de que quem produz bens e serviços, portanto o setor produtivo privado, gera riqueza. Ao pagar impostos sobre o produto gerado, viabiliza as políticas sociais, que representariam um custo. Deveríamos portanto, nesta visão, maximizar os interesses dos produtores, o setor privado, e moderar as dimensões do Estado, o gastador. A realidade é diferente. Quando uma empresa contrata um jovem engenheiro de 25 anos, recebe uma pessoa formada, e que representa um ativo formidável, que custou anos de cuidados, de formação, de acesso à cultura geral, de sacrifícios familiares, de uso de infraestruturas públicas as mais diversas, de aproveitamento do nível tecnológico geral desenvolvido na sociedade. As políticas sociais não constituem custos, são investimentos nas pessoas. E com a atual evolução para uma sociedade cada vez mais intensiva em conhecimento, investir nas pessoas é o que mais rende. A compreensão de que os processos produtivos de bens e serviços e as políticas sociais em geral são como a mão e a luva no conjunto da dinâmica do desenvolvimento, um financiando o outro, sendo todos ao mesmo tempo custo e produto, aponta para uma visão equilibrada e renovada das dinâmicas econômicas. Um terceiro elemento chave é a política ambiental. A visão tradicional amplamente disseminada apresenta as exigências da sustentabilidade como um freio à economia, empecilho aos investimentos, entrave aos empregos, fator de custos empresariais mais elevados. Trata-se aqui simplesmente de uma conta errada, e amplamente discutida já em nível internacional, com a refutação do argumento da externalidade. Fazer o pré-tratamento de emissões na empresa, quando os resíduos estão concentrados, é muito mais barato do que arcar depois com rios e lençóis freáticos poluídos, doenças respiratórias e perda de qualidade de vida. Para a empresa ou uma administração local, sai realmente mais barato jogar os dejetos no rio, mas o custo para a sociedade é incomparavelmen-
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te mais elevado. Desmatar a Amazônia gera emprego durante um tempo, mas não o mantém, a não ser com a progressão absurda da destruição. Aprofundar os investimentos em saneamento básico, em contrapartida, gera empregos, reduz custos de saúde, e aumenta a produtividade sistêmica. Investir em tecnologias limpas tende a promover os setores que serão mais dinâmicos no futuro e melhora a nossa competitividade internacional. E ao tratar de maneira sustentável os nossos recursos naturais, capitaliza-se o país para as gerações futuras, em vez de descapitalizá-lo. Fator igualmente importante, na economia global moderna, uma política coerente em termos ambientais gera credibilidade e respeito nos planos interno e internacional, o que por sua vez abre mercados. A verdade é que a política ambiental ganhou nestes anos uma outra estatura, e se incorpora na nova política econômica que se desenhou no país. Um quarto eixo de política econômica encontra-se no resgate da capacidade de planejamento das infraestruturas do país. Boas infraestruturas, ao baratearem o acesso ao transporte, comunicações, energia, água e saneamento, geram economias externas para todos e elevam a produtividade sistêmica do território. O custo tonelada/quilômetro do transporte de mercadorias no Brasil é proibitivo, pois transportar soja e outros produtos de relação peso/ valor relativamente baixo, em grandes distâncias, por caminhão, gera sobrecustos para todos os produtores. O resgate do transporte ferroviário, a reconstituição da capacidade de estaleiros navais e de transporte de cabotagem, a priorização do transporte coletivo nas metrópoles, o barateamento do acesso a serviços de telecomunicações e de internet banda larga, a busca da produtividade na distribuição e uso de água e em particular no destino dos esgotos, o reforço das fontes renováveis na matriz energética, conformam uma visão que pode abrir um imenso caminho de avanço para o conjunto das atividades econômicas. O planejamento e a forte presença do Estado são aqui essenciais. As infraestruturas constituem grandes redes que articulam o território. Constituem neste sentido um dos principais vetores de redução dos desequilíbrios regionais do país precisam, por exemplo, ser ampliadas nas regiões mais pobres, para dinamizar e atrair novas atividades, e são políticas
3. A política macroeconômica: pragmatismo e flexibilidade
Um dos pontos mais fortes da ampliação das perspectivas de desenvolvimento está na estabilização de um modelo de gestão macroeconômica. Neste plano também estamos frente a um novo patamar. Trata-se aqui do equilíbrio nas políticas de salários, de preços, de crédito, de câmbio, de previdência, de investimentos e de arrecadação. Tecnicamente complexa, e foco de pressões constantes, a política macroeconômica no Brasil obedecia a uma visão neoliberal sofisticada em termos teóricos, mas que resultava ao fim e ao cabo em baixo crescimento e injustiça social, sempre com tom de seriedade e austeridade. A contenção salarial e os altos juros seriam justificados como instrumentos de proteção do povo contra a inflação. Esta área da economia sofre de um pecado original: poucas pessoas a entendem, e encontra-se portanto pouco sujeita
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públicas que podem arcar com este tipo de investimento de longo prazo justamente nas regiões onde não geram lucros imediatos. Isto envolve planejamento, visão sistêmica e de longo prazo. As metrópoles brasileiras estão se paralisando por excesso de meios de transporte e insuficiência de planejamento. O resgate desta visão e a dinamização de investimentos coerentes com as necessidades do território constituem um trunfo para o desenvolvimento e deverão desempenhar um papel essencial nesta década. Assim, políticas distributivas ancoradas numa visão de justiça social e de racionalidade econômica, a ampliação dos investimentos nas pessoas através das políticas sociais focalizadas, a gradual incorporação das dimensões da sustentabilidade ambiental no conjunto dos processos decisórios de impacto econômico, e a dinâmica de investimentos de infraestruturas que tanto reduzem o custo Brasil através das economias externas como melhoram a competitividade internacional, conformam um modelo que, em clima democrático e de paz social, está abrindo novos caminhos. Ter um modelo que não apenas faz sentido teórico, mas funciona, e convence grande parte dos atores econômicos e sociais do país, é um trunfo importante.
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a escrutínio democrático. E o passado inflacionário deixou marcas no inconsciente coletivo. Em termos resumidos, a política adotada pode se resumir na expansão da economia pela inclusão progressiva da base da pirâmide social, o que aumenta a demanda agregada, o que por sua vez gera emprego, investimentos e maior demanda, levando o conjunto a uma espiral virtuosa de desenvolvimento. O nó da política macroeconômica está no equilíbrio das diferentes variáveis, tanto em termos de montantes como de ritmo. A política adotada caracterizou-se por uma grande flexibilidade e rapidez de resposta às mudanças das tendências nacionais e internacionais, uma boa dose de pragmatismo, e a busca de equilíbrios entre os interesses envolvidos. Em termos práticos, a fase inicial, de 2003 a 2005, caracterizou-se por reajustes macroeconômicos ortodoxos, visando tranquilizar os agentes econômicos quanto à estabilidade das regras do jogo, cumprimento dos compromissos financeiros, contenção das pressões inflacionárias. Paralelamente, iam se construindo os instrumentos de gestão das políticas sociais, que têm como recurso escasso não o dinheiro, mas a capacidade administrativa, que se desenvolve mais lentamente. As minireformas tributária e previdenciária permitiram por sua vez estabilizar as contas. O bom preço das commodities e a diversificação dos acordos comerciais permitiram a redução da vulnerabilidade externa. A segunda fase, de 2006 a 2008, já se caracteriza pela articulação das políticas em torno a uma dinâmica acelerada de crescimento pela inclusão, lançando as bases das dinâmicas atuais. O cadastro unificado das famílias pobres, a unificação dos programas sociais no Bolsa Família, a forte progressão do salário mínimo (que envolve também o aumento das aposentadorias), o apoio à agricultura familiar (Pronaf), a expansão do crédito (crédito consignado, financiamentos do BNDES e de outros bancos do Estado), a gradual expansão dos investimentos, geraram uma dinâmica de consumo na base da sociedade, e um reforço de investimentos no setor privado. O resultado foi uma forte expansão do emprego formal, com mais demanda. Em outros termos, o Estado assumia a sua função de indutor do desenvolvimento. A maior demanda não gerou infla-
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ção, na medida em que a capacidade ociosa do aparelho produtivo permitiu rápida expansão da oferta. A expansão do gasto público foi coberta pela maior arrecadação que resultou do crescimento econômico (passou de 5% em 2008) e da maior formalização da economia, permitindo tanto manter os compromissos com a dívida como expandir as políticas sociais. A fase da crise financeira de 2008 submeteu esta política à dura prova. A amplitude da crise e o pânico internacional gerado provocaram no país o travamento do crédito, a suspensão dos investimentos privados, a transferência de recursos das filiais brasileiras de grupos estrangeiros para salvar as matrizes (35 bilhões de dólares só em 2008), e um clima geral de insegurança. Diante da queda da arrecadação do Estado, a visão ortodoxa seria de contenção dos gastos do governo, com um ajuste fiscal contracionista. Com a visão desenvolvimentista já estabilizada na etapa imediatamente anterior, o governo optou por um conjunto de medidas anticíclicas, respondendo de forma rápida e diversificada aos diversos desequilíbrios à medida que se manifestavam. Manteve a expansão do salário mínimo (12% em 2009) gerando expectativa positiva no mercado; assegurou desonerações tributárias e incentivos nos setores críticos; utilizou as reservas cambiais para o financiamento das exportações (o financiamento externo havia estancado totalmente); reduziu o compulsório (que, aliás, os bancos comerciais utilizaram para comprar títulos do governo, em vez de fomentar a economia); reduziu o financiamento da dívida para priorizar o apoio às atividades produtivas; utilizou os bancos estatais para estimular a economia através de um amplo espectro de linhas de crédito; as alíquotas do imposto de renda foram subdivididas ao se constatar o aperto da crise nos setores da classe média baixa. Os programas sociais não só não foram reduzidos, como expandidos, e a dinamização da construção no programa Minha Casa, Minha Vida passou a gerar atividades e empregos de forma muito capilar no conjunto da economia. Os prognósticos negros apontados na época não se materializaram. O que se concretizou é a visão de uma política macroeconômica multifacetada, pragmática, e orientada pelo equilíbrio dos interesses, e sobretudo pela compreensão de que uma base
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mais ampla de mercado interno ajuda todos os setores, inclusive o setor exportador, que teve como compensar a redução dos mercados externos com o consumo interno. E sedimentou-se a ideia de que um Estado atuante é simplesmente necessário. Hoje o país passa a enfrentar os desafios estruturais sabendo que a capacidade de gestão macroeconômica passou as provas, e para o setor privado que precisa estar tranquilo quanto às regras do jogo, isto representa um novo patamar. Independentemente da crise financeira, um outro vetor de política econômica foi se construindo e está se tornando central, que são os grandes investimentos de infraestrutura tão longamente adiados. O Programa de Aceleração do Crescimento, o Programa de Desenvolvimento Produtivo, a expansão dos investimentos da Petrobrás, o PAC II, e também o Plano de Desenvolvimento da Educação, os planos de generalização de acesso à banda larga, de ordenamento do uso da água e numerosos outros estão ao mesmo tempo dinamizando os investimentos e mantendo a conjuntura elevada, o que facilita todos os ajustes, e introduzindo nos mais diversos setores uma visão estrutural, sistêmica, com resgate de mecanismos de planejamento e de longo prazo. Isto tensiona a capacidade gestora do Estado, que já não desempenhava tais atividades, e coloca novos desafios de modernização administrativa. Se há uma visão teórica a resgatar, é que os equilíbrios macroeconômicos são dinâmicos, que é possível gerar maior demanda sem excessiva pressão inflacionária, aumentar o fomento do Estado sem gerar déficit irresponsável, encontrar um novo equilíbrio entre mercado interno e mercado externo sem dramas cambiais, que é possível colocar condições à entrada de capitais especulativos sem ser declarado “controlador” pelo mercado especulativo internacional e assim por diante. Sobretudo, é possível reduzir os desequilíbrios sociais e regionais sem prejudicar os setores mais abastados e as regiões mais ricas, ao assegurar que todos se beneficiam, mas os de baixo em ritmo mais acelerado. O bom senso funciona. Não só a boa maré levanta todos os barcos, como o Estado pode ser providencial em assegurar que a maré se mantenha.
Os resultados são hoje concretos e bastante evidentes. Em números redondos, o nível de emprego formal aumentou em 12 milhões desde 2002. A formalização gera melhor arrecadação, o que financia boa parte da política de apoio. O salário mínimo teve um aumento de capacidade real de compra de 53,67% no período,3 o que atinge cerca de 26 milhões de pessoas. O aumento do salário mínimo também aumenta a capacidade de negociação dos trabalhadores. Indiretamente favorecidos com este aumento são os aposentados, cerca de 18 milhões de pessoas. O Bolsa Família atinge hoje 12,4 milhões de famílias, melhorando, como ordem de grandeza, as condições de vida de 48 milhões de pessoas. Em boa parte isto significa crianças alimentadas, e seguramente menos angústias nas famílias de baixa renda. Entre 2003 e 2008 19,5 milhões de pessoas saíram da pobreza.4 O Pronaf teve os seus recursos aumentados de 2,5 bilhões de reais em 2002 para 13 bilhões em 2009, dinamizando a produção de cerca de 2 milhões de produtores rurais. O programa Territórios da Cidadania está aplicando cerca de 20 bilhões de reais nas regiões mais atrasadas do país. O programa Luz para Todos está atingindo milhões de pessoas que não tinham como guardar uma comida ou um remédio de maneira conveniente. O Prouni, passando já de meio milhão de estudantes, também mostrou resultados impressionantes quando se avaliou o seu desempenho no conjunto das universidades, refutando o argumento do nivelamento por baixo. A visão do assistencialismo simplesmente não representa a realidade. O Bolsa-família é o único que constitui simples transferência de recursos, e constitui uma parcela relativamente bastante pequena do conjunto. Ainda assim, vinculado ao segmento de saúde e frequência escolar, enquadra-se no investimento social.5 A renda na 3 DIEESE – Mercado de Trabalho Brasileiro: evolução recente e desafios, DIEESE, 10 de março de 2010 - http://www.dieese.org.br/ped/mercadoTrabalhoEvolucaoDesafiostexto2010.pdf 4 Marcelo Neri, Instituto Brasileiro de Economia da FGV, informe Ensp, 26 de março 2010 http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/materia/index.php?origem=3&matid=20887 5 Ver artigo de primeira página da Folha de São Paulo de 18 de abril de 2010, p. A13 – “Foi uma pequena grande década,” diz Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV-Rio. “E a melhora na renda hoje é muito mais sustentável, pois está apoiada mais na renda do trabalho”. Na média da década, a renda do trabalho explicaria 67% da redução da desi-
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base da sociedade gera consumo imediato, tanto de bens de consumo básicos que melhoram a alimentação, a higiene, como o pequeno investimento familiar que pode ser constatado em cada “puxada” nas casas modestas, dinamizando a produção de materiais de construção e de equipamento doméstico básico. A realidade é que o efeito multiplicador dos recursos é muito grande quando orientado para a base da sociedade. E em termos de qualidade de vida, cada real disponibilizado para as famílias mais pobres gera uma melhora incomparavelmente superior do que nos grupos mais ricos. A produtividade social do dinheiro, a sua utilidade real, cai rapidamente à medida que o nível de renda se eleva. O fato é que a desigualdade está se reduzindo no Brasil, de maneira lenta, pois o atraso herdado é imenso, mas muito regular nos últimos anos. O índice Gini caiu de 0,53 para 0,496. Para efeitos de comparação, é de 0,46 nos Estados Unidos, 0,33 na Itália e 0,26 na Alemanha.7 A persistente desigualdade está ligada ao fato que a renda de todos se eleva no Brasil, e de maneira mais acelerada entre os pobres do que entre os ricos. Mas como o ponto de partida é muito baixo para os pobres, mesmo um percentual elevado representa mudanças pequenas em termos absolutos. Em termos regionais, verifica-se também um crescimento muito mais acelerado no Nordeste e outras regiões mais pobres, mas aqui também a desigualdade se reduz de maneira lenta. Um ponto central, e relativamente pouco apontado, é que se desfazem gradualmente os preconceitos que tanto alimentaram a oposição aos programas destinados à base da pirâmide social. Longe de se “encostar”, os pobres estão demonstrando uma impressionante capacidade de aproveitamento positivo dos recursos. São pobres não por falta de iniciativa ou de criatividade, mas por falta de oportunidade. E na verdade a propensão a “se encostar” se manifesta democraticamente em diversos níveis sociais. A organização de políticas destinadas à faixa mais pobre da gualdade. O Bolsa Família, cerca de 17%; os gastos previdenciários, 15,7%. Desde 2003 foram criados 12,2 milhões de empregos formais”. 6 Ipea – Desigualdade e Pobreza no Brasil Metropolitano – Comunicado da Presidência n. 25, p. 3 http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/comunicado_da_presidencia_n25_2.pdf 7 Ipea – Pobreza, Desigualdade e Políticas Públicas – 12 de janeiro de 2010, p. 9 Comunicado da Presidência n. 38 - http://www.ipea.gov.br/default.jsp
8 O artigo mencionado na Folha de São Paulo comenta: “O Brasil tem hoje 30 milhões de miseráveis sobrevivendo com R$ 137 ao mês. Mas eles seriam mais de 50 milhões se a velocidade da diminuição da pobreza não tivesse se acelerado nos últimos anos”. FSP, 18/04/2010, p. A13
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população tem como obstáculo principal não a falta de recursos, mas a dificuldade de gestão de um sistema de apoio extremamente capilar, destinado a pessoas que frequentemente não têm endereço postal, CPF, conta em banco, ou até certidão de nascimento. De certa forma, o Estado não existia para estes 25% da população do país. Construir os cadastros, os canais de comunicação e os mecanismos de gestão desta parte da população exigiu um imenso esforço administrativo ainda em curso. Assim, um impacto indireto das políticas de inclusão foi a geração de correias de transmissão entre a máquina do Estado, os poderes públicos locais, os movimentos sociais, e em última instância as famílias. O aprendizado organizacional do Bolsa Família, do Pronaf expandido, dos comitês de gestão do programa Territórios da Cidadania, das inúmeras conferências nacionais e regionais realizadas, criaram formas mais densas de interação entre o Estado e a sociedade, vetor de melhores práticas administrativas para o futuro. Nesta lenta transição para um Brasil economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável, os avanços são indiscutíveis, mas o passivo social herdado de séculos de desequilíbrios é grande. O país continua a ostentar uma desigualdade dramática.8 O desmatamento da Amazônia se reduziu de 28 para 7 mil quilômetros quadrados ao ano, o que é uma grande vitória, mas ainda é um desastre. As periferias metropolitanas continuam sendo explosivas e necessitam de políticas de apoio radicalmente mais amplas. Os atrasos na qualidade da educação, no acesso a uma saúde mais decente, na generalização de políticas ambientais, na democratização do acesso ao crédito, fazem parte dos inúmeros desafios. No geral, o país tem pela frente tanto o aprofundamento das políticas inclusivas, como a adequação da máquina do Estado e dos processos decisórios da sociedade em geral. A direção a seguir é hoje muito mais clara, os instrumentos básicos de gestão começaram a ser estruturados. Os resultados obtidos e a experiência adquirida abrem uma nova agenda, com novos desafios.
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II- EIXOS ESTRATÉGICOS PARA A AGENDA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO 1. O papel do Estado: desafios da gestão democrática 2. O papel das tecnologias: a transição para a economia do conhecimento 3. Os novos horizontes da educação 4. Trabalho decente e inclusão produtiva 5. Uma política nacional de apoio ao desenvolvimento local 6. O papel das infraestruturas: transportes, energia, comunicação, água 7. O potencial da agricultura 8. Intermediação financeira: o crédito como fomento 9. Política tributária 10. Políticas ambientais 11. Políticas sociais
Não se trata aqui de detalhar os planos setoriais, ou insistir na importância da educação, da saúde, da cultura, dos transportes e semelhantes, uma listagem que seria longa das necessidades. Busca-se identificar os principais desafios, ou eixos estratégicos de ação que mais poderiam ter efeitos multiplicadores sobre o conjunto das nossas atividades. De certa forma, buscar as iniciativas que liberam potenciais latentes. A modernização do aparelho de Estado, com as suas amplas ramificações, pode aqui servir de exemplo de eixo estratégico. Em termos de objetivos, a visão aqui, evidentemente, não se restringe a acelerar o crescimento, pois se busca, além da eficiência econômica, os resultados mais amplos em termos de qualidade de vida e de desenvolvimento sustentável. A quantidade não basta, e cada vez mais é a evolução qualitativa que está se tornando central no horizonte brasileiro. O objetivo geral é uma sociedade que funcione melhor, mas que as melhorias sejam sentidas por toda a gente, e que não seja às custas das futuras gerações.
Preocupações excessivamente ideológicas têm travado as necessárias mudanças para um Estado mais eficiente. A crise financeira de 2008 ajudou a convencer a sociedade de que o Estado tem de ter uma presença atuante, não só como regulador como no caso das finanças, mas como indutor do desenvolvimento, redistribuidor no caso de promoção dos equilíbrios sociais e regionais, e frequentemente, como no caso das políticas sociais e de grandes infraestruturas, como executor ou contratante. Está sendo igualmente resgatada a importância do Estado como planejador, dimensão que permite que se articulem as visões sistêmicas e de longo prazo, e que as opções sejam amplamente debatidas. O resgate do papel do Estado é exigido por condições objetivas que resultam da própria evolução das atividades econômicas. A urbanização generalizada do país faz com que grande parte das atividades hoje constituam bens de consumo social, como abastecimento de água, sistema de esgotos, urbanização, segurança, ordenamento do território e assim por diante. A expansão da dimensão pública das atividades é, portanto, natural. O Brasil já tem um grau de urbanização, da ordem de 85%, no nível de país desenvolvido, onde o peso do Estado no PIB oscila entre 40 e 60%. Isto implica um Estado com mais funções organizadoras, e mais descentralizado. Um outro fator chave do papel expandido do Estado resulta da presença crescente das políticas sociais no conjunto das atividades do país: saúde, educação, cultura, lazer, informação e outras atividades centrais ao investimento no ser humano dependem vitalmente da presença do Estado, inclusive para assegurar a democracia de acesso para todos, já que o setor privado se concentra nos segmentos mais ricos da sociedade. A generalização deste tipo de serviços, e a forte elevação em termos de qualidade, exigem uma ampliação dos meios. A crise financeira de 2008 deu uma medida da fragilidade dos mecanismos de concertação internacional. A pouca operância dos organismos multilaterais, inclusive do FMI, ficou patente. As medidas que foram tomadas no âmbito dos Estados nacionais. Com a ampliação das atividades especulativas, que atingem não só derivativos (863 trilhões de dólares, 15 vezes o PIB mundial), como
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1. O papel do Estado: desafios da gestão democrática
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os grãos, o petróleo ou outras commodities, e na ausência de capacidade global de regulação, o papel dos Estados se vê reforçado. Inclusive, o papel regulador no plano internacional se dará por acordos entre Estados. A modernização da máquina pública, e não a visão neoliberal de um Estado mínimo, aparece, portanto, como um eixo estratégico de primeira importância. O direcionamento das mudanças está igualmente se tornando claro. O novo modelo que emerge está essencialmente centrado numa visão mais democrática, maior representatividade cidadã, maior transparência, com forte abertura para as novas tecnologias da informação e comunicação, e soluções organizacionais para assegurar a interatividade entre governo e cidadania. Um ponto chave está no financiamento público das campanhas. A corrida por quem consegue mais dinheiro para se eleger gera campanhas imensas a cada dois anos, custos elevadíssimos, e uma predominante representação dos grandes financiadores corporativos, inclusive de grandes grupos transnacionais. Em termos financeiros isto gera custos para todos, na medida em que as contribuições para campanhas são repercutidas nos custos empresariais e transferidas para o consumidor. Em termos de qualidade da disputa eleitoral, desqualifica as propostas, e reforça a propaganda agressiva dos mais diversos tipos. Ponto essencial, o resultado são bancadas de grupos econômicos, em detrimento de uma bancada do cidadão. O candidato deve obter o voto pelo respeito que consegue na sociedade, e não pelo dinheiro que consegue recolher. O adensamento tecnológico do conjunto da máquina pública é central para gerar uma administração transparente, e uma cidadania informada. O avanço impressionante das tecnologias de informação e de comunicação nos últimos anos está permitindo uma mudança qualitativa na administração, mas precisa ser generalizado para atingir todos os setores de atividade e os três níveis da federação. Um choque tecnológico, particularmente no judiciário, bem como a integração com sistemas estaduais e municipais, deverá contribuir muito na racionalização do conjunto. A base do país são os 5.564 municípios, que podem passar a
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ter sistemas avançados de informação gerencial e de informação para a cidadania. O município é onde o cidadão mora, tem maior interesse, conhece melhor a realidade, pode se organizar para participar. O Estado no seu conjunto funcionará de maneira deficiente enquanto os municípios, blocos básicos da sua construção, não evoluírem para uma gestão mais eficaz e transparente. O apoio na modernização gerencial na base da sociedade constitui um eixo de grande importância, e pode ser promovido como contrapartida de suporte e financiamentos. Particular atenção deverá ser dada ao desenvolvimento integrado de sistemas de informação mais adequados. A conta PIB precisa ser complementada com indicadores mais completos que reflitam efetivamente a evolução da qualidade de vida da população, tanto em nível nacional como estadual e municipal. Há um forte avanço metodológico neste plano, os números existem, e se trata de apresentá-los numa nova sistemática de contas públicas que permita assegurar uma cidadania informada. Uma articulação com o IBGE, Ipea e outras instituições deverá ser promovida neste sentido. A organização sistemática de correias de transmissão entre a máquina de governo, nos seus diversos níveis, e os diversos segmentos da sociedade, é hoje indispensável como forma de ampliar a dimensão participativa da gestão pública. O aporte extremamente positivo da experiência do CDES está sendo capitalizado com instituição semelhante no Estado da Bahia, e muitos municípios já adotaram conselhos locais ou intermunicipais de desenvolvimento. Os poderes legislativos são essenciais para transformar em leis as propostas de políticas, mas as próprias políticas precisam ser regularmente discutidas diretamente com os diversos segmentos, sindical, empresarial, da sociedade civil organizada, de forma a assegurar maior agilidade, transparência e dimensão cidadã às decisões públicas. A construção de consensos e a compatibilização de interesses diferenciados que os conselhos permitem – bem como as conferências setoriais e outras formas de consulta – já deram provas de seu papel importante na construção de processos mais democráticos de governança.
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Construir consensos pode ser trabalhoso, mas depois as políticas funcionam. No conjunto, trata-se de aprofundar a evolução de um Estado com tradição de administração de privilégios, para um Estado efetivamente articulador dos interesses da sociedade, mais democrático no processo decisório, e com maior equilíbrio entre as dimensões representativas e participativas. O Brasil precisa se dotar, nos diversos níveis, de uma máquina publica administrativa à altura dos resultados econômicos, sociais e ambientais que tem alcançado.
2. O papel das tecnologias: a transição para a economia do conhecimento Se no ciclo econômico do século XX o desenvolvimento se calculava pelo número de máquinas e o volume de bens físicos, hoje a valorização da produção se dá muito mais pelo conhecimento incorporado. A educação tem um papel chave neste processo, mas de maneira muito mais ampla trata-se de uma política nacional de elaboração, promoção e difusão do conhecimento em todos os níveis. O Brasil herdou uma dualidade tecnológica, em que coexistem setores de ponta e imensos atrasos em grandes setores da economia e regiões do país. A homogeneização do desenvolvimento através do amplo acesso, gratuito e inclusive fomentado, a todo tipo de conhecimento, constitui um eixo fundamental da mudança para um país mais equilibrado. Considerando os grandes esforços desenvolvidos neste sentido por uma série de países, a própria competitividade internacional do Brasil exige uma dinâmica radicalmente mais ampla, e uma maior centralidade no conjunto das opções de longo prazo. De forma geral, trata-se de ampliar e articular as iniciativas nas áreas de ponta, e ao mesmo tempo ampliar a apropriação dos conhecimentos tecnológicos mais simples na base da sociedade. Os avanços tecnológicos mais significativos estão se dando nas áreas onde a sustentabilidade está ameaçada: alternativas energéticas limpas, onde o Brasil tem grandes vantagens à partida; alternativas de meios de transporte com menos impactos climáticos (veículos elétricos e híbridos); tecnologias de produção visando à
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redução do consumo de matérias-primas; tecnologias da construção visando à redução de consumo energético (chuveiro, ar condicionado, materiais); cultivos consorciados e outros avanços que reduzem a pegada ecológica; biotratamento de esgotos e técnicas de saneamento; tecnologias organizacionais na gestão de redes integradas de transmissão de eletricidade. A lista é longa e o leque que se abre constitui uma das marcas da economia moderna. Pode se fazer muito mais com menos impacto, menos esforço, melhores condições de vida, e com inclusão produtiva generalizada. No plano da apropriação generalizada de tecnologias simples (ou avançadas, segundo o caso), a gestão atual abriu caminhos e adquiriu experiências, com o vetor de democratização de acesso do Ministério da Ciência e Tecnologia, com formas de articulação de iniciativas como a Rede de Tecnologias Sociais, com as experiências de tecnologias sociais no quadro da Fundação Banco do Brasil, com o desenvolvimento das experiências de apoio à produção familiar no Ministério de Desenvolvimento Agrário, com iniciativas da própria sociedade civil como no caso do programa Um Milhão de Cisternas da Articulação do Semi-Árido (ASA), e a maior abertura da Embrapa para tecnologias de pequena agricultura familar e assim por diante. São iniciativas que geraram um acúmulo importante de experiências, mas que têm de se transformar em um movimento mais profundo e articulado de fomento tecnológico generalizado. O exemplo da Índia, que criou um programa especial de formação de 1,2 milhão de técnicos para animarem núcleos de fomento tecnológico em cada vila do país, atuando em rede, dinamizando as bases produtivas mais atrasadas, é inspirador. O Plano Nacional de Banda Larga adquire aqui uma importância central. O conhecimento está cada vez menos localizado em bibliotecas e na cabeça de especialistas, e cada vez mais disponibilizado online em todo o planeta. Em termos econômicos, o conhecimento é um bem não rival, o seu consumo não reduz o estoque, e precisa ser de livre acesso sempre que possível. E inteligência é um capital democraticamente distribuído, independentemente de classe social. Trata-se, portanto, de um vetor privilegiado de redução dos desequilíbrios sociais, e indiretamente ambientais. Transitar
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na rua é uma atividade gratuita, mas permite atividades comerciais. Da mesma forma, o livre acesso ao conhecimento, e a sua circulação nas enxovias deve ser generalizado, e permitirá dinamizar um conjunto de aplicações em atividades econômicas, sociais e culturais. A tecnologia tem um grande poder de despertar as pessoas para a inovação, e assegurar a circulação das inovações tende a gerar uma dinâmica que se amplia, na linha do que tem se chamado de inovação aberta (open innovation). Nas cidades onde tem sido implementado, o acesso aberto à banda larga tem gerado inúmeras atividades econômicas, ao facilitar o contato direto entre produtores e consumidores, desintermediando e desburocratizando as atividades comerciais e financeiras, facilitando a complementaridade entre atividades econômicas da região. Nas regiões onde se generalizou o acesso, as pessoas não precisam se deslocar para resolver os problemas, são os bits que se deslocam, com redução radical de custos. Neste sentido, a banda larga constitui um dos principais vetores de promoção de economias externas, e de redução dos custos no país. No conjunto, com o barateamento dos equipamentos, a generalização do acesso à internet por celular, o avanço das tecnologias do wi-fi urbano e semelhantes, o eixo das tecnologias da informação e da comunicação constitui, em termos de custo-benefício, e da rapidez de implantação, um eixo privilegiado de mudança no país, onde o econômico, o ambiental, o social e o cultural casam de forma coerente. E sendo um sistema de acesso generalizado, mais do que um sistema oneroso de ajuda, é um instrumento que estimula as pessoas a se apropriarem do seu desenvolvimento.
3. Os novos horizontes da educação
A evolução para a sociedade do conhecimento, o adensamento tecnológico de todos os processos produtivos, a conectividade planetária que permitem as tecnologias de comunicação, a disponibilização online de todo o conhecimento humano, o barateamento radical dos equipamentos, tudo isto está por sua vez redesenhando os horizontes da educação. Há um acordo generalizado quanto à importância estratégica da educação. Mas há um problema básico,
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que é cansaço dos alunos, que em casa ou na lan house têm acesso ao mundo, e na escola decoram o comprimento do Nilo e semelhantes. Em outros termos, está se gerando uma grande distância entre o conceito de educação, e a sociedade do conhecimento que se generaliza de forma acelerada. O fato de uma imensa parcela dos alunos abandonarem a escola tem de merecer uma atenção central. A educação, é um mínimo, tem de ser interessante. E não só para o aluno, para o professor também. Há um conjunto de medidas no sentido de melhorar a escola atual. As medidas envolvem melhores salários para os professores, redução drástica do número de alunos por sala, generalização da capacitação, sistemas online de apoio técnico e de conhecimento específico dos cursos, material escolar muito mais dinâmico do que apenas o livro escolar. A elaboração e disseminação de softwares de gestão escolar como os desenvolvidos pelo SPB (Software Público Brasileiro) também é essencial, permitindo às diretorias pensarem educação. O acesso banda larga em todas as escolas está avançando rapidamente, a eletrificação está hoje atingindo a quase todos, a generalização do wi-fi urbano deve permitir que, o que foi visto na aula, o jovem possa confrontar com outros conhecimentos em casa. Mas é preciso hoje pensar que todo o conhecimento que o menino estuda hoje na escola terá na ponta dos dedos amanhã no trabalho, e o que ele deve realmente assimilar são metodologias de trabalho, de certa forma aprender a navegar, organizar, quantificar, cruzar conhecimentos de maneira criativa. Estamos na era da cabeça bem feita, e não bem cheia, e inclusive a rapidez com que os conhecimentos se tornam obsolescentes já não permite o armazenamento. O conhecimento da humanidade está cada vez menos no livro escolar e na cabeça do professor, e cada vez mais online, disponível gratuitamente, livre do canal estreito da “disciplina”, permitindo cruzamentos interdisciplinares, apresentações em multimídia, dinâmicas efetivamente criativas. A criança e o adolescente têm uma imensa curiosidade por conhecer as coisas, e uma imensa teimosia em recusar o que é simplesmente empurrado. Forçar as crianças a passar horas sentadas, imobilizadas, copiando coisas anotadas no
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quadro, gera pessoas disciplinadas, sem dúvida, mas não criativas. De forma mais ampla, é importante lembrar que hoje cada adulto profissional passa horas por semana, quando não por dia, estudando, se atualizando, porque este é o rumo das coisas. Ou seja, a educação deixa de ser apenas uma etapa de preparação para a vida, é uma preparação para uma interação permanente, que durará toda a vida, com sistemas de conhecimento, exigindo sistemas muito mais abertos. No Paraná está se desenvolvendo a experiência de Arranjos Educativos Locais. Visa articular, em cada município, os diversos subsistemas de informação organizada, buscando uma escola um pouco menos lecionadora, e mais articuladora do conjunto dos conhecimentos necessários ao desenvolvimento local. Hoje o conhecimento não está apenas na escola, está nas empresas, nos centros culturais, na televisão, no computador em qualquer parte, nas revistas científicas, nas pesquisas desenvolvidas por faculdades regionais. A visão é de assegurar que o aluno aprenda a se apropriar das informações disponíveis, a transformá-las em conhecimento, e não só individualmente, mas em colaboração. Nas universidades, os alunos trabalham com xerox de capítulos isolados. 30% dos livros recomendados estão esgotados e não são reeditados, mas a cópia não é liberada. O MIT, nos Estados Unidos, criou ou OCW (Open Course Ware), e disponibiliza gratuitamente online todos os cursos, artigos dos professores. Em poucos anos, tiveram 50 milhões de downloads de textos científicos em todo o mundo. O impacto de enriquecimento científico planetário é imenso. Há uma contradição profunda entre investirmos tantos recursos em educação, e restringirmos o acesso aos conteúdos. A educação é um imenso universo. Somando alunos, professores e administradores, são 60 milhões de pessoas, quase um terço da população. E estamos entrando na sociedade do conhecimento, em que a capacidade criativa terá muito mais importância do que o esforço bruto. Temos de dar a prioridade estratégica a esta área, investir fortemente na modernização do que temos e, sobretudo, preparar as novas dimensões da escola como espaço de criação e de articulação de conhecimentos.
A desigualdade de renda está diretamente vinculada ao desequilíbrio em termos de inclusão produtiva. O país tem uma população ativa de 100 milhões de pessoas, mas um emprego formal privado de 31 milhões. Esta conta, que não fecha, inclui o desemprego e, sobretudo, um imenso setor informal. Segundo o IBGE, houve uma diminuição da informalidade no conjunto dos ocupados, que caiu de 46,5% em 2002 para 42,7% em 2008.9 A evolução está sendo positiva, mas o volume herdado é muito grande. A dimensão do setor informal significa que a subutilização da força de trabalho constitui um imenso desafio, mas ao mesmo tempo um vetor de oportunidades através da inclusão produtiva. Para a produtividade sistêmica do país, é vital o aproveitamento mais produtivo desta massa da população, através do emprego decente. Em grande parte, trata-se aqui de ampliar políticas em curso. Os avanços do salário mínimo estão sendo muito significativos. Deverão continuar para se atingir um nível que permita efetivamente uma vida digna com este nível de remuneração. É sem dúvida um dos principais instrumentos de construção do equilíbrio social. A jornada de trabalho constitui outro vetor essencial de melhoria da qualidade de vida do mundo do trabalho. Dois dias de descanso semanal já são hoje vistos internacionalmente como um mínimo. No quadro de atividades econômicas que cada vez mais exigem força mental mais do que força física, a própria produtividade passa por um esforço melhor distribuído. E o aumento de produtividade do trabalho pela incorporação das tecnologias, nos últimos anos, assegura a possibilidade de se reduzir a jornada e de manter os salários, pela melhor distribuição dos resultados desta produtividade. A mais longo prazo, com crescentes aportes tecnológicos, a tendência é simplesmente inevitável. E termos uma parte da população desesperada por carga excessiva, e outra por não ter como se inserir de maneira digna nos processos produtivos, não faz sentido. A garantia do direito ao emprego, de ganhar produtivamente a sua vida, a qualquer pessoa, é outra tendência que deverá gerar 9 DIEESE – Mercado de Trabalho Brasileiro: evolução recente e desafios, DIEESE, 10 de março de 2010 - http://www.dieese.org.br/ped/mercadoTrabalhoEvolucaoDesafiostexto2010.pdf
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4. Trabalho decente e inclusão produtiva
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impacto positivo sobre o desenvolvimento, em diversas dimensões. Todo município do país tem inúmeras necessidades de melhorias na qualidade de vida urbana, que envolvem sistemas de microdrenagem, saneamento básico, manutenção urbana, arborização, constituição de cinturões verdes para abastecimento em hortifrutigranjeiros, melhoria de residências e assim por diante. São atividades simples, pouco intensivas em capital e intensivas em mão de obra. Assegurar um salário mínimo e carteira assinada, para aproveitar os desempregados no conjunto de melhorias que cada cidade precisa, é uma questão de bom senso, e tem como resultado melhores infraestruturas urbanas, avanços ambientais, dinamização econômica geral pelo fluxo de renda gerado, redução drástica do desespero que é não ter uma fonte de renda. Qualquer pessoa deve ter o direito de ganhar o pão da sua família, quando há tantas coisas a fazer. São atividades de retorno imediato, pelas economias geradas, e que não substituem necessariamente contratos mais amplos de empreiteiras. E dizer que não há emprego quando há tanto trabalho por fazer implica que o problema chave é de inadequação de formas de organização social. O apoio à micro e pequena empresa constitui outro vetor de inclusão produtiva. Em que pesem os avanços em termos de simplificação da vida burocrática destas empresas, este setor de atividades necessita de fomento muito mais dinâmico tanto em termos de capacitação, como de financiamento, de sistemas de informação comercial online, de generalização da conexão banda larga, de fomento tecnológico, de abertura das leis de licitação para facilitar o acesso, de condições jurídicas para as administrações municipais poderem privilegiar pequenos produtores locais nas compras e assim por diante. Com a evolução para uma densidade tecnológica maior de todos os processos produtivos, até os mais simples como construção de casas, o acesso às mais variadas formas de capacitação e requalificação está se tornando essencial. Os diversos esforços do MCT, do Sebrae e de outras instituições precisam se traduzir em cada município de certo porte, ou grupo de municípios menores, em núcleos de fomento integrado. Foi-se o tempo em que uma pessoa faz um curso e já sabe o que precisa: com a constante alteração dos processos produtivos, a
5. Uma política nacional de apoio ao desenvolvimento local
O desenvolvimento local integrado constitui um dos grandes recursos subutilizados do país. São hoje 5.565 municípios que têm de passar a se administrar melhor. Este eixo é fundamental porque em última instância, é o nível onde as políticas têm de funcionar, onde os
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interação entre o mundo do trabalho e a qualificação ou requalificação precisa ser permanente. É importante lembrar que o financiamento das atividades produtivas da micro e pequena empresa continua burocratizado, difícil e, sobretudo, extremamente caro. As iniciativas do Banco do Nordeste e mais recentemente do Banco do Brasil com o programa DRS (Desenvolvimento Regional Sustentável) mostram novos caminhos que precisam ser generalizados. Em particular, nos programas do BNB, às linhas de crédito foram-se acrescentando apoio à comercialização, capacitação gerencial e outras formas de ajuda, dependendo das realidades. Financiamento não é só dinheiro, é viabilização do negócio, e são outras formas de intermediação financeira que se tornam necessárias, articulando em cada território os diversos sistemas especializados de apoio que ainda pouco conversam. Um programa especial precisa ser desenvolvido para as periferias dos grandes centros urbanos. A pesquisa Fase/Pólis mostra que 27% dos jovens entre 15 e 24 anos nas periferias metropolitanas estão fora da escola e sem emprego. O custo social é gigantesco. Será necessário, na realidade, um tipo de Pronaf urbano, no sentido de promoção sistemática e fomento de atividades econômicas que podem envolver desde melhoria do próprio bairro, ou de aproveitamento de acesso banda larga para prestação dos mais variados serviços, como já se tem vários exemplos. No conjunto, a inclusão produtiva não se resolve com uma medida, envolve um conjunto articulado de iniciativas com formação, desburocratização, acesso banda larga, canalização inteligente das compras públicas, financiamento e outras iniciativas diversificadas em função das realidades locais, com forte participação das esferas municipais e intermunicipais.
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investimentos se materializam, onde as pessoas poderão dizer se estão vivendo melhor ou não. Ao fazer comparações internacionais, as pessoas tendem a ver países, sem ver a estrutura mais detalhada. Os sistemas locais de gestão que caracterizam as economias mais avançadas são muito sofisticados. Para utilizar uma imagem, uma economia industrial não funcionará de maneira adequada se as unidades que a compõem, as empresas, não forem bem administradas. De forma semelhante, os “blocos” com que se constrói o país são os municípios, unidades básicas. A boa gestão local não é condição suficiente, mas sem dúvida necessária. As tentativas e avanços na boa gestão local são numerosas, mas fragmentadas. Há o movimento de cidades educadoras, o Paraná está inovando com Arranjos Educativos Locais, Santa Catarina com Conselhos Regionais de Desenvolvimento, o programa Territórios da Cidadania está inovando com Comitês de Gestão locais e regionais, há ainda numerosas tentativas setoriais buscando a excelência ambiental, como a Agenda XXI local, ou melhor saúde com o movimento Cidades Saudáveis. Mais recentemente, estão surgindo movimentos como Nossa São Paulo, onde as organizações da sociedade civil estão se organizando em movimentos suprapartidários para junto com outros atores sociais locais promover o desenvolvimento equilibrado. Falta uma política integrada de apoio ao desenvolvimento local, pois a boa gestão na base da sociedade tende a tornar todas as iniciativas, sejam de governo em diversos níveis, empresariais ou de movimentos sociais mais produtivas. Este investimento na governança local é essencial para a produtividade de um conjunto de instituições de apoio, como o Sebrae, Senac, Sesi, Embrapa, DRS e outros alcancem um nível superior de produtividade, ao se tornarem sinérgicos ao nível de cada município, ao invés de oferecerem fragmentos de apoio que pouco se articulam. Mas também é fundamental para a eficiência dos programas sociais, dos investimentos privados. É importante lembrar que praticamente inexistem no Brasil instituições de formação em gestão municipal, ordenamento do território ou políticas integradas de gestão local. São muitos os municípios inovadores, mas não se generalizam os aprendizados adquiridos. A dinamização da governança na unidade básica da federação
6. O papel das infraestruturas: transportes, energia, comunicação, água e saneamento
Considerando as dimensões do Brasil, o papel das infraestruturas é essencial. Uma unidade empresarial pode ser eficiente na sua forma de gestão interna, mas se incorre em grandes gastos com transporte, cortes de energia ou de água, e um sistema ineficiente de comunicação, deixa de aproveitar as economias externas que uma boa rede de infraestruturas pode assegurar. Trata-se aqui de iniciativas que vão além do poder decisório da empresa, pois exigem grandes investimentos, precisam ser organizadas em redes coerentes, geram efeitos difusos: é uma área privilegiada de presença do Estado tanto no planejamento como nos investimentos, ainda que a execução e a gestão possam ser confiadas a empresas privadas. De toda forma, pelo seu efeito estruturante e o seu impacto que irradia sobre o conjunto das atividades, esta área deve ser vista como um dos grandes eixos estratégicos. Entram aqui, tradicionalmente, os setores de transportes, energia, comunicações e água/saneamento, redes que têm de chegar a cada um, com os seus grandes troncos, e a capilaridade final. O Brasil é essencialmente atlântico nos seus centros econômicos, e são portuários ou semiportuários os principais polos, de Manaus a Porto Alegre, incluindo o eixo São Paulo/Santos, e com a notória exceção de Belo Horizonte. Como o custo tonelada/quilômetro aumenta radicalmente à medida que se passa sucessivamente do transporte por água para o ferroviário, o rodoviário e o aéreo, a definição da matriz intermodal de transporte do país torna-se
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pode ser um propulsor importante da racionalidade do conjunto. Finalmente, é importante lembrar que viver bem na nossa cidade, ou no município em geral, é o que queremos da vida. Várias cidades já se dotaram de instrumentos de avaliação da qualidade de vida, permitindo ver, de ano a ano, se as coisas estão melhorando, quais são as principais deficiências, as propostas. É neste nível que melhor pode se materializar a dimensão participativa da governança, porque é onde o peso dos problemas e o alívio das soluções são diretamente sentidos. É, no melhor sentido, a base da democracia.
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essencial. Com dois terços da mercadoria gastando pneu e combustível fóssil pela opção rodoviária, os sobrecustos para toda a produção tornam-se muito pesados. O resgate dos estaleiros navais, a dinamização do transporte de cabotagem, a articulação intermodal com grandes eixos ferroviários de integração para o interior, e o uso do caminhão apenas com a chamada “espinha de peixe” de distribuição final, em trajetos curtos, de carga fracionada, é a matriz evidente. Trata-se aqui de alterar a composição das infraestruturas de forma sistêmica. São investimentos grandes e de longo prazo, mas que deverão render redução do custo-Brasil para todos os setores de atividade e melhorar a produtividade sistêmica do país. A readequação da matriz de transporte de passageiros exige reformulação semelhante, particularmente nas grandes cidades. Ditadas mais por interesses comerciais do que pelo interesse da população, as opções levaram a um sobredimensionamento do transporte individual. São Paulo anda em média 14 quilômetros por hora, os veículos se deslocam em primeira e segunda. Se estimarmos em 15 mil reais o valor médio do veículo, e 6 milhões de veículos, são 90 bilhões de reais em meios de transporte praticamente imobilizados, gerando grandes custos em combustível, doenças respiratórias, e uma média de 2h:40m perdidas por dia, em que o paulistano nem trabalha nem descansa. Os motoqueiros morrem numa média de 1,5 por dia. E o metrô ostenta os seus poucos 60 quilômetros. Transporte exige forte presença de planejamento, e organização da matriz em função da qualidade de vida da população. As soluções são conhecidas, e torna-se essencial voltar ao tema do financiamento público das campanhas, para que as autoridades públicas representem os interesses do cidadão. A matriz de transporte de média ou longa distância deve também ser repensada, pois o transporte aéreo representa custos imensos e pouca racionalidade para trajetos curtos ou médios: trens de grande velocidade, movidos à energia hidroelétrica, melhoram a mobilidade, o conforto das pessoas e o clima. No plano da energia, o Brasil tem uma situação notoriamente favorável. Com a imensa base hidroelétrica, não enfrenta os dramas que assolam a China ou os Estados Unidos fortemente dependentes
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do carvão. No plano da oferta, o potencial da bioenergia a partir da cana-de-açúcar pode ainda ser amplamente expandido, tanto pelas reservas de solo subutilizado como pela disponibilidade de água. O conhecimento acumulado no quadro do ciclo anterior do Proálcool ainda assegura uma grande eficiência no processo. O desafio hoje está na corrida pelas tecnologias de aproveitamento dos subprodutos como o etanol celulósico, alternativas ao plástico tradicional e outros na linha das biotecnologias em geral. Com a descoberta do Pré-Sal, o quadro brasileiro, que já era favorável, torna-se excepcional. A gestão das oportunidades abertas, numa visão coerente e de longo prazo, sem ceder às pressões pelo gasto imediato, torna absolutamente central a firme definição do plano de uso dos recursos energéticos do país. Os desafios maiores, portanto, em termos de energia, estão mais no plano da demanda e do uso racional do que no plano da oferta. A matriz de transportes, por exemplo, tanto no plano de transporte de mercadorias como de pessoas, é profundamente irracional, e acarreta grandes desperdícios. As tecnologias da construção hoje disponíveis também podem reduzir drasticamente o uso de energia, em particular no uso do ar condicionado e do chuveiro elétrico, com construções mais inteligentes, células fotovoltaicas, aquecedores solares entre outros. Estas mudanças na cultura do uso da energia têm diversos impactos positivos, ao reduzir a pegada ecológica, ao gerar empregos através dos investimentos e serviços de instalação e manutenção, ao dinamizar a pesquisa tecnológica, ao estimular estilos de vida mais inteligentes. O Pré-Sal merece naturalmente uma estratégia em si. Nas mais diversas análises, é positivo constatar quantas pessoas estão ao mesmo tempo entusiasmadas pelas oportunidades, e conscientes das ameaças. A tentação de gastar uma riqueza inesperada é evidentemente forte. Mas se constata também que a visão geral defendida pelo governo é coerente: é uma riqueza brasileira, que não deve ser alvo de simples concessões; é uma riqueza de todo o país, e não do território onde se situa; é uma riqueza de longo prazo, de uso comedido. E os resultados devem ser prioritariamente utilizados para ciência e tecnologia, educação, saúde e o resgate da dívida
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social do país. Evitando a tentação do lucro fácil e rápido, se evitará o destino de tantos países que estão vendendo o presente sem organizar o futuro. A comunicação está passando a desempenhar um papel central na racionalidade da organização do território em geral. Pequenos municípios ou pequenas empresas, ainda ontem isoladas, hoje resgatam a sua viabilidade ao se conectarem com redes mais amplas, ao romperem o isolamento. As mudanças envolvem desde a facilidade de gestão de estoques até a redução de custos de transportes: são os bits que viajam, e não as pessoas. A universalização do acesso às comunicações tornou-se hoje vital, e a preços condizentes com os custos reais dos processos, evitando-se a tendência de estabelecimento de autênticos pedágios sobre a circulação da informação e do conhecimento. É uma área em plena revolução tecnológica, e constitui um dos principais eixos de democratização da sociedade. A regulação do setor, em consequência, precisa ser democratizada, e a transparência nos processos é vital. Em termos de custo-benefício, conforme vimos, é uma das atividades que mais permite gerar economias externas tanto para as empresas produtoras como para as famílias. Os preços hoje cobrados não são admissíveis. A estratégia que emerge em numerosos países, é de assegurar o livre trânsito nas infovias da internet (inclusive nos celulares), da mesma forma como é livre o trânsito nas ruas, o que não impede que sejam criados negócios a partir do potencial de comunicação. Mas a própria comunicação, na medida em que gera capacidade criativa de todos os atores sociais, deve ser aberta. O Plano Nacional de Banda Larga deve assegurar um marco regulador para o conjunto das atividades do setor. A água no Brasil sofre em grande parte do mesmo drama de outras riquezas: como o Brasil tem muitas, a tendência é o desperdício. A água é meio de transporte (inclusive muito subutilizado em várias regiões do país), eixo vital para a agricultura que consome cerca de 70% do total, fonte de energia hidroelétrica, fonte de proteínas através da pesca, insumo essencial para um conjunto de setores industriais, fator importante de lazer em particular para as cidades, atrativo turístico, além, evidentemente, do consumo das pessoas.
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No conjunto, vender água rende, mas fazer esgoto e tratamento não aparece. Gera-se assim um grande problema, no caso do Brasil não de abastecimento, e sim de destino final. Para os que usam a água, livrar-se dela é mais barato. Água contaminada dentro da empresa pode ser tratada com baixos custos. Uma vez diluída nos rios, a poluição se generaliza, e a recuperação é incomparavelmente mais cara. Os cerca de 60 mil toneladas de fezes que produzimos diariamente, têm na maioria o mesmo destino, espalhando bactérias, e multiplicando os custos. A excessiva quimização agrícola com irrigação intensiva contamina tanto os lençóis freáticos como os rios e as orlas marítimas. A gestão da água envolve dinâmicas inovadoras de gestão, como os comitês de bacia e, sobretudo, uma mudança no tratamento de um bem essencial que está sendo maltratado. Muitas das medidas passam por iniciativas de nível tipicamente municipal, mas os impactos são regionais, e a governança articulada entre esferas de governo torna-se importante. O saneamento básico e o uso racional da água em geral constituem hoje sem dúvida um dos eixos estratégicos da agenda. O impacto positivo para o meio ambiente é central, mas é também econômico, social e cultural. No conjunto, as infraestruturas hoje obedecem a uma visão ampla e de longo prazo no quadro do Programa de Aceleração do Crescimento, complementado pelo PAC II. Os dois programas permitem visualizar um desenvolvimento integrado, pois incorporam os diversos planos setoriais, como o Plano Nacional de Logística e Transportes, o Plano Nacional de Desenvolvimento de Recursos Hídricos, o Plano Nacional de Energia 2030. Mais Saúde, planos de desenvolvimento urbano, em um leque articulado de ações. Resgata-se assim não só o planejamento, como a intersetorialidade. Conjugando a capacidade articuladora do PAC e do PAC II, o reforço financeiro que deverá vir do Pré-Sal, a dinamização que geram as perspectivas da Copa e das Olimpíadas, e a solidez atual da gestão financeira no país, as perspectivas são positivas. E os impactos serão econômicos no barateamento pelas economias externas geradas e demandas de investimentos induzidos, ambientais pela racionalização de uso dos recursos (particularmente hídricos), sociais pela melhoria das condições de vida dos segmentos mais pobres
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da população. A capacidade de gestão e os diversos entraves gerados por interesses particulares constituem o elo fraco do sistema, e nos remetem ao problema da racionalização da máquina pública. No entanto, é gerando as dinâmicas que se obtém gradualmente a racionalização dos procedimentos, a desburocratização, a gestão mais eficiente.
7. O potencial da agricultura
O Brasil tem mais de 150 milhões de hectares de boa terra a ser incorporada no processo produtivo, mais do dobro do que é hoje utilizado para a lavoura temporária e permanente somadas. Isto constitui a maior reserva de solo parado do planeta. E os recursos hídricos são também entre os mais abundantes, tanto em águas de superfície como no aquífero Guarani. Com esta disponibilidade de terra e de água, e um clima ameno, além do acúmulo de capacidade tecnológica, diversificação do mercado externo, e mercado interno crescente, a agricultura deve ser vista como um eixo estratégico de primeira importância para o desenvolvimento do país. E não só como fonte de produtos: segundo a PNAD 2008, 30 milhões de pessoas vivem no campo. A agricultura familiar emprega 10 milhões de pessoas.10 As próprias condições de vida e de trabalho no campo representam um objetivo estratégico. Tem sido colocado com razão que com a evolução planetária para a biocivilização, o Brasil tem trunfos importantes. Domina amplamente a tecnologia do biocombustível e a cana-de-açúcar representa de longe a melhor relação entre energia consumida e energia produzida. A produção de grãos, ainda ontem estabilizada na faixa de 100 milhões de toneladas, hoje beira 150 milhões, com fortíssimo potencial de mercado mundial que necessita cada vez mais do produto, pelo aumento da população, escassez de terra e de água, e aumento da demanda por biocombustível. Os avanços da pesquisa na utilização dos resíduos para produção de biocombustível celulósico, plástico biodegradável e outros subprodutos estão na fase não da pesquisa fundamental, mas de redução de custos. Estamos claramente chegando a uma mutação profunda, conforme relatório
10 IPEA – PNAD 2008, Primeiras Análises, Setor Rural – 29 de Março 2010 – Comunicados n. 42
11 IAASTD - http://dowbor.org/wp/?p=1147
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recente do International Assesment of Agriculture, Science and Technology for Development (IAASTD) 11. A expansão quantitativa hoje já não basta. A racionalização do uso dos recursos hídricos, evitando tanto desperdícios como contaminação por agrotóxicos e excesso de quimização constitui um objetivo importante, na linha da produtividade sistêmica do território, envolvendo todos os recursos. A redução do custo dólar da unidade de produto, ao reduzir a componente importada dos insumos constitui outro. A pegada ecológica das unidades produtivas, pela evolução para combustíveis renováveis, tanto é favorável para a conta de emissões do país, como para a força dos produtos nos mercados internacionais com regras ambientais cada vez mais estritas. As relações de trabalho frequentemente medievais têm de ser transformadas no sentido de assegurar critérios de emprego decente. E evidentemente a agricultura ilegal, tanto por desmatamento na Amazônia e no Cerrado, como por destruição de matas ciliares, uso de mão de obra escrava, uso de produtos químicos sem proteção adequada para os trabalhadores e semelhantes tem de ser combatida, não só no local de produção, mas em toda a cadeia, desde a venda de insumos, até o acesso ao crédito e no circuito comercial. O mercado internacional está evoluindo rapidamente para a rastreabilidade geral dos produtos (tagging), e as mudanças deste setor agrícola, para uma excelência não só produtiva, mas também social e ambiental, só pode contribuir para reforçar a economia do país. A agricultura familiar, por sua vez, responsável por 70% da produção dos nossos alimentos, e ocupando 10 milhões de pessoas, necessita de um sistema integrado de serviços de apoio, como existe em países desenvolvidos. A policultura de pequena escala é extremamente produtiva, mas precisa de assistência técnica, de apoio de comercialização, de acesso a informações de mercado, de possibilidade de aluguel de máquinas que sua escala não permite nem exige adquirir, de sistemas de crédito e semelhantes às chamadas redes de serviços de suporte. A dinamização pode se dar por núcleos de fomento e apoio integrado em cada município, envolvendo também as experiências de compra local de produtos para
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a merenda escolar, a formação de cinturões verdes de hortifrutigranjeiros em torno das cidades, a própria agricultura urbana que está saindo da zona folclórica para se tornar fonte importante de trabalho e de produtos de alta qualidade. Enquanto o agronegócio trabalha com as suas próprias máquinas e oficinas de manutenção, redes de comercialização, de consultoria técnica, de financiamento, o pequeno agricultor precisa dos mesmos aportes, mas utilizados de forma coletiva, sob a forma de cooperativos de serviços ou semelhantes. Os avanços aqui têm sido muito significativos, em particular com o Pronaf que passou de cerca de 2 para 13 bilhões de reais. No entanto, o financiamento representa uma parte do ciclo, como o demonstram as experiências do Banco do Nordeste no seu financiamento rural acoplado a outras atividades de fomento, em particular aproveitando a rede do banco para informações comerciais que liberam o produtor dos atravessadores12. O que está saindo de cena, em termos estratégicos, é a visão de que a policultura familiar representa o passado, e a monocultura mecanizada o futuro. Produzir cana e soja é diferente de produzir tomate e feijão. A Europa, com as suas pequenas propriedades, pouco solo e grande densidade populacional, hoje tem de dar subsídios para se produzir menos alimentos, menos leite. O que temos pela frente é um início de aproximação entre os dois mundos rurais que se foram constituindo. O pequeno produtor pode perfeitamente entrar em simbiose com o grande, no sentido de aproveitamento de subprodutos, de aproveitamento de potencial de cultivos consorciados e outros. Em terceiro nível, está a população privada de terras, ou de terras em escala ou qualidade insuficientes para um processo virtuoso de melhoria de quantidade e de qualidade de produto. A criminalização do MST, no país de maior reserva planetária de terras paradas, é simplesmente absurda. A função social da terra está claramente estipulada na Constituição, e a busca das pessoas por terra tem de ser vista não como ameaça, mas como potencial produtivo. O acesso a terra, neste país tão bem dotado, tem de ser garantido, 12 Sobre as experiências do BNB, ver em particular o estudo de Clarício dos Santos Filho, http://criseoportunidade.wordpress.com/2010/01/22/fundos-rotativos-solidarios-dilemas-avancos-e-esperancas-de-uma-politica-publica-inclusiva-no-marco-da-economia-solidaria-no-nordeste-do-brasil-claricio-dos-santos/
8. Intermediação financeira: o crédito como fomento
Os bancos comerciais no Brasil constituem um grupo muito pequeno, que trabalha com crédito para poucos, e com taxas de juros extremamente elevadas. A taxa Selic é a mais comentada na mídia, mas com 8,75% ao ano já não constitui um fator chave. No centro está hoje o problema dos juros e tarifas cobrados ao tomador final. A Anefa que publica mensalmente a sua pesquisa sobre as taxas de juros praticadas, apresenta a seguinte situação para fevereiro de 2010: para pessoa física 6,92% ao mês, ou seja 123% ao ano. Para pessoa jurídica, 3,65% ao mês, o que representa 54% ao ano. São juros absolutamente proibitivos, podendo-se estimar como ordem de grandeza que se paga aqui ao mês o que se paga na Europa ao ano. Este cálculo não inclui as tarifas. Com outra metodologia, mas comparando diretamente com bancos no exterior, o Ipea constata que “para empréstimos à pessoa física, o diferencial chega a ser de quase 10 vezes mais elevado
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mas no ciclo produtivo rural a terra é apenas um dos insumos. É importante lembrar que com a conectividade online que as tecnologias modernas permitem, ser pequeno já não representa as restrições de antigamente. Pequenos produtores de tilápia de Piraí estão conectados e vendem diretamente a pele para o Japão, pois quem está na net está ao lado. Esta tecnificação do pequeno está avançando com extrema rapidez em todas as partes do mundo, desde a Índia até o Quênia. A eficiência já não é questão de tamanho. Esta tendência se aplica não só ao pequeno agricultor rural, como à pecuária, à pesca e outras atividades tradicionalmente divididas em grandes e pequenos produtores. No conjunto, a evolução para mais qualidade nos processos produtivos, maior respeito nas relações de trabalho, incorporação efetiva das dimensões ambientais no conjunto das atividades, maior equilíbrio de nível técnico entre os diversos tipos de agricultura, articulação de uso circular de produtos e subprodutos no território, constituem um norte para este que é um eixo absolutamente estratégico para o país.
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para o brasileiro em relação ao crédito equivalente no exterior”13:
Taxa anual real de juros total* sobre empréstimos pessoais em instituições bancárias em países selecionados na primeira semana de abril de 2009 Instituição
País
Juro real (em %)
HSBC
Reino Unido
6,60
Santander
Espanha
10,81
Citibank Banco do Brasil Itaú
Brasil Brasil E.U.A
Brasil
Brasil Brasil
63,42 55,74 7,28
60,84 25,05 63,25
Fonte: Dados fornecidos pelas instituições bancárias para os juros e OCDE e BCB para inflação nos países selecionados e no Brasil
* Juros adicionados aos serviços administrativos, riscos de inadimplência, margem de lucro e tributação.
Constatamos que, por exemplo, no caso do HSBC, a mesma linha de crédito custará 6,60% ao ano no Reino Unido, e 63,42% no Brasil, na mesma instituição. Isto tem implicações fortes. Significa que são instituições que se capitalizam aqui para reforçar os desequilíbrios nas matrizes, ou seja, financiamos em parte os custos da crise dos desenvolvidos. Significa também que praticam uma taxa de juros que trava as atividades econômicas no país mais do que as fomentam. E de maneira mais ampla, significa que os grandes lucros se deslocaram da produção para a intermediação financeira. A intermediação comercial, que trabalha com juros nas prestações 13 Ipea – Comunicado da Presidência n. 20, Transformações na indústria bancária brasileira e o cenário de crise, p. 15, tabela 2, 7 de abril de 2009; a pesquisa da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac) está disponível em http:// www.anefac.com.br/pesquisajuros/2010/fevereiro2010.pdf
14 Airton Saboya – Semiárido em Transformação, março de 2010, disponível em http://criseoportunidade.wordpress.com/category/airton-saboya/
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em geral superiores a 100%, também passou a priorizar o lucro financeiro. Em vez de intermediários, trata-se neste caso de atravessadores. Em termos de competitividade dos produtores brasileiros o prejuízo é evidente. O produtor aqui concorre com produtores no exterior que enfrentam custos financeiros incomparavelmente menores. E no Brasil os grandes grupos internacionais que têm acesso direto a dinheiro no exterior também têm vantagens. No plano da pequena empresa, a situação torna-se simplesmente difícil. No caso do Nordeste, a pesquisa dos fluxos financeiros da região realizada pelo BNB mostra que as agências dos bancos comerciais da região apresentam um balanço negativo, ou seja, mais retiram da região do que financiam.14 A intermediação financeira tornou-se assim um fator de elevação do chamado “custo Brasil” e um vetor importante da concentração de renda, e, portanto, de redução da demanda. É significativo constatar que com a redução do compulsório no momento mais grave da crise financeira, os recursos não foram utilizados para fomentar a economia, e sim para aplicações em títulos públicos. O Brasil tem evidentemente um grande trunfo na mão, que é a possibilidade de usar os bancos oficiais para reintroduzir concorrência no mercado cartelizado, permitindo ao mesmo tempo dinamizar a economia ao estimular consumo e investimento. Este mecanismo, ao que tudo indica, está sendo progressivamente implantado. O sistema de intermediação financeira dos grandes grupos terá de evoluir para mecanismos de concorrência. Um segundo grande trunfo é a possibilidade de continuar a reduzir a taxa Selic, o que tem um duplo impacto: ao reduzir-se os ganhos dos rentistas que aplicam em títulos do governo, essencialmente bancos, os intermediários financeiros se veem obrigados a buscar alternativas no setor produtivo, medida equivalente a injetar dinheiro na economia real; e ao reduzir os juros sobre a dívida pública, libera recursos para o investimento público. Lembremos que com uma dívida pública da ordem de 1,5 trilhão de reais, e um serviço da dívida da ordem de 180 bilhões de reais por ano, trata-se de um instrumento poderoso, ainda que de aplicação necessariamente progressiva.
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Quando o lucro que se desloca de maneira desequilibrada para grandes grupos de intermediação financeira e comercial, os produtores passam a arcar com custos mais elevados. E os consumidores terão de enfrentar estes custos, além de pagarem juros novamente ao adquirir os produtos no crediário. Os primeiros se veem prejudicados na capacidade de investir e de produzir, os segundos na capacidade de consumir. Um conjunto de iniciativas surge nos últimos anos, essencialmente através dos bancos estatais. O programa DRS do Banco do Brasil está se expandindo, os créditos de fomento do Banco do Nordeste já atingem 18 bilhões, essencialmente para pequenos produtores, muitos municípios estão criando bancos comunitários de desenvolvimento, já com apoio do Banco Central a partir de 2010. Estão se multiplicando também cooperativas de crédito, e inclusive Oscips de intermediação financeira. São iniciativas necessárias, frente ao comportamento dos bancos comerciais, mas a racionalização do sistema de intermediação financeira constitui um vetor importante de racionalização do conjunto das atividades econômicas do país. Em particular, a inclusão bancária, com capilaridade, flexibilidade nos produtos e nas garantias, e com juros minimamente compatíveis com as necessidades, está na ordem do dia, como fator chave da inclusão produtiva.
9. Política tributária
De forma geral, a orientação do uso dos recursos públicos, tanto nas políticas sociais, como nas medidas anticíclicas, gestão de desequilíbrios macroeconômicos e política de investimentos, melhorou de maneira muito significativa nos últimos anos. Esta orientação foi complementada com políticas de crédito dos bancos públicos, da CEF, do BB, do BNB, do BNDES, que hoje são responsáveis, como ordem de grandeza, por metade do crédito outorgado, e incluem cada vez mais nos seus critérios de financiamento visões de fomento econômico, promoção social e sustentabilidade ambiental. O grande desafio, nesta área, não está na orientação da alocação, mas na qualidade final dos serviços, em particular na educação e na saúde, qualidade diretamente afetada pela pobreza geral da parte da população que mais usa estes serviços. A qualidade aqui evoluirá com o conjunto das condições de vida da base da pirâmide social. O segundo desafio está no volume de transferências
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que gera o serviço da dívida pública, que baixou fortemente em termos de porcentagem do PIB, mas que continua a drenar grande parte dos recursos públicos para alimentar um rentismo basicamente estéril. A maior coerência na alocação dos recursos públicos não foi acompanhada, no entanto, de comparável evolução na política tributária. O travamento político é central neste campo, que provoca reações ideológicas e emocionais, e toca diretamente interesses cristalizados ao longo dos anos. O resultado prático é o imobilismo generalizado. Neste sentido, qualquer proposta deverá mostrar não só a viabilidade técnica, mas a sua viabilidade política. Não se trata, é importante mencioná-lo, do nível geral dos impostos. Com 35% de carga tributária relativamente ao PIB, o Brasil está na média razoável de país emergente, e bastante abaixo da carga tributária dos Estados Unidos, situada na faixa de 40% - país de forte tradição privatista inclusive na saúde e na educação, e até na segurança – ou dos países europeus onde o Estado administra em torno da metade dos recursos do país. Nos países nórdicos, este percentual está acima dos 60%. O problema não está no tamanho, mas em onde incide o tributo. O foco da incidência tributária está na sua principal função de correção da desigualdade. Entram aqui como evidentes o imposto sobre as grandes fortunas e sobre a herança, a alteração das alíquotas do imposto de renda, um melhor equilíbrio entre impostos diretos e indiretos. Olhando pelo lado dos resultados que se busca, volta-se ao problema central da sociedade brasileira que é a desigualdade. O imposto tem de ter a redistribuição como eixo fundamental. Isto implica desonerar a base da pirâmide, facilitar a vida dos produtores, em particular dos pequenos, e cobrar mais das grandes fortunas e dos altos rendimentos dos segmentos mais privilegiados, particularmente dos ganhos financeiros não produtivos. Neste sentido, a diferenciação de alíquotas do imposto de renda já adotada constitui um avanço, mas é evidente a necessidade de ter alíquotas mais elevadas para níveis de renda muito elevados. Em termos comparativos, a alíquota superior brasileira, de 27,5%, é simplesmente baixa. Os impostos diretos, onde a progressividade pode ser aplicada, devem também ser privilegiados relativamente aos impostos diretos, que são proporcionais, e terminam sendo regressivos para a população de baixa renda.
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Tem de se levar igualmente em conta que a questão ambiental está se tornando um vetor importante da alteração das políticas tributárias. Muitos países, frente à relativa inoperância dos mercados de carbono, estão taxando diretamente as emissões. Na linha do poluidor-pagador, é natural que incidam cobranças sobre quem gera custos, ou descapitaliza o país ao se apropriar de recursos não renováveis. Neste sentido há uma revisão ampla do conceito de externalidades. A poluição de um rio gera custos muito maiores para a sociedade em geral do que os custos dos filtros numa empresa. A racionalidade do maior custo/benefício para a sociedade é central neste processo. Mas a visão básica, é que um país com a desigualdade que tem não pode continuar com uma carga tributária regressiva. O resgate da progressividade terá os mesmos impactos que os processos redistributivos adotados estão tendo: dinamização da demanda na base da sociedade, e uma ampliação dos negócios, com lucro unitário menor, mas sobre uma massa maior de produtos. Isto gera crescimento da economia, o que por sua vez gera viabilidade política das reformas, na medida em que é mais viável uma distribuição mais igualitária dos ganhos suplementares.
10. Políticas ambientais
O grande deslocamento no eixo das políticas ambientais é que passam a permear o conjunto das decisões no âmbito do Estado, das empresas, dos movimentos sociais, do próprio estilo de vida da população. Com toda a dificuldade de se generalizar uma visão sistêmica e de longo prazo, quando tanto pessoas como empresas estão mais preocupadas com problemas imediatos, e os governos com o curto horizonte de uma gestão, a verdade é que a humanidade está enfrentando desafios inadiáveis. Não se trata apenas do aquecimento global, que em si constitui um imenso desafio planetário. São rios contaminados, florestas desmatadas, periferias urbanas onde se vive em condições subumanas, cidades prósperas que convivem com esgotos a céu aberto, metrópoles paralisadas por excesso de veículos, alimentos contaminados por agrotóxicos, lixões a céu aberto que geram mais contaminação, mais doenças e mais custos. É uma sociedade do desper-
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dício na água mal canalizada, nos subprodutos desperdiçados, nas embalagens irresponsáveis, no lixo de mais de um quilo por pessoa nos centros urbanos. E no nível planetário, é o esgotamento dos recursos, com a sobrepesca nos mares, liquidação das reservas de petróleo, perda de metais raros. A água já é tratada como ouro azul, quando o seu uso racional, bem como de outros recursos, torna-se cada vez mais viável com as novas tecnologias. Trata-se aqui de promover a mudança cultural necessária, pois o comportamento sustentável não pode ser reduzido à visão de uma entidade burocrática que autoriza ou não um empreendimento. Cada vez mais, esta mudança exige a convergência de um conjunto de atores sociais, com educação ambiental, adequação dos currículos universitários, reforço da pesquisa, mudança na visão da mídia e das mensagens publicitárias, geração de complementaridades interempresariais nos processos produtivos, adequação dos procedimentos da grande empresa de monocultura, reorientação da pecuária, generalização de políticas tecnológicas menos agressivas. O mundo neste plano está mudando. A visão linear que vai da matéria-prima extraída da natureza para a linha de produção, depois para o consumo e o lixo, com esgotamento de recursos de um lado e contaminação do outro, está cedendo o lugar para uma visão circular em que o que é extraído é reposto no final do ciclo. O nível de consciência está se deslocando rapidamente. Temos de aprender a viver dentro dos limites estreitos que este pequeno e frágil planeta permite. Neste desafio há imensas oportunidades para os que souberem ver o futuro que se desenha, e fizerem a tempo as reorientações que se impõem. O PDP constata um aumento do investimento privado em P&D de 0,51% do PIB em 2005 para 0,65% em 2010, passando de 12 para 18 bilhões. São cifras radicalmente insuficientes quando se considera a importância das mudanças tecnológicas necessárias, e o papel que o Brasil pode desempenhar na área. Neste sentido, o desafio ambiental, ao exigir mudanças na matriz energética, na organização urbana, no tratamento de esgotos, na racionalização do uso das matérias-primas, nas tecnologias or-
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ganizacionais descentralizadas e integradas em cada município, constitui uma oportunidade de avanços. As soluções não estão em conter os custos agora mantendo os procedimentos de sempre, mas fazendo o salto para enfrentar os desafios em condições mais vantajosas mais adiante. Os condicionamentos ambientais, de geração de empregos verdes, de uso de tecnologias alternativas e semelhantes devem passar a fazer parte de todo financiamento, isenção ou subvenção. O meio ambiente não é um entrave, é uma condição de avanço acelerado para o futuro. Fator de redução de desperdícios, de uso mais racional dos recursos, gerador de empregos, vetor de adoção de novas tecnologias mais performantes, promotor de articulações e processos colaborativos entre empresas, o desafio ambiental deve ser visto com um dos principais eixos de transformação para a próxima década e as futuras.
11. Ampliação das políticas sociais
Da mesma forma como se pode apresentar impressionantes avanços nas políticas sociais no país, conforme vimos no início do documento, com o salário mínimo, o Bolsa-Família e tantos outros programas, é também preciso constatar os dramas de 30 milhões de pessoas que vivem em condições críticas, as imensas favelas que cercam as nossas cidades, a criminalidade amplamente disseminada, a desigualdade no acesso aos serviços mais elementares, os mais de 40% da população na informalidade. Em outros termos, os avanços são grandes, mas a dívida acumulada é imensa. Torna-se vital assegurar que a política adotada por um governo se transforme em política do Estado, mantendo a continuidade e a coerência. A dimensão econômica da pobreza tem evidentemente um papel central, mas está longe de ser a única. Projeções recentes do Ipea nos deixam otimista sobre este primeiro papel das políticas sociais. “Se projetados os melhores desempenhos brasileiros alcançados recentemente em termos de diminuição da pobreza e da desigualdade (período 2003-2008) para o ano de 2016, o resultado seria um quadro social muito positivo. O Brasil pode praticamente superar o problema de pobreza extrema, assim como alcançar
15 http://www.ipea.gov.br/default.jsp - Ipea – Pobreza, Desigualdade e Políticas Públicas – 12 de janeiro de 2010, Comunicado da Presidência n. 38 – p. 8
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uma taxa nacional de pobreza absoluta de apenas 4%, o que significa quase sua erradicação.”15 O nível de renda nos segmentos mais críticos progride. A desigualdade de renda, no entanto, evolui de forma muito mais lenta, pelo ponto de partida extremamente baixo da base da pirâmide social, e torna-se essencial agora expandir e manter o conjunto de políticas que favorecem o equilíbrio social e regional. Acumulam-se aqui as desigualdades entre segmentos da sociedade, entre regiões, desigualdade de gênero, de raça, e entre zonas rurais e urbanas. A partir de Amartya Sen, passamos a considerar de maneira sistemática as dimensões não econômicas da pobreza. Neste sentido, as políticas sociais devem dinamizar o acesso democrático e de qualidade aos serviços básicos. O grande desafio aqui é reduzir a polarização que a desigualdade foi cristalizando em todas as áreas, com educação de pobre e de rico distantes, e o equivalente nas áreas de saúde, de lazer, de cultura e assim por diante. Este vetor implica um esforço generalizado de universalização, mas também de qualificação do conjunto dos serviços públicos. As políticas afirmativas não constituem privilégios, corrigem privilégios, e o Estado tem um papel fundamental a desempenhar neste processo. Tal como as políticas ambientais, o social tem forte dimensão de transversalidade. As políticas sociais constituem ao mesmo tempo setores de atividade, como saúde, educação, cultura, esporte, informação, lazer, segurança – o conjunto dos investimentos diretamente orientados para a valorização das pessoas – e uma dimensão de todas as outras atividades, como relações de trabalho, qualidade das infraestruturas, formas de organização da produção agrícola e assim por diante. Neste sentido, são políticas que envolvem todos os setores da sociedade. O Estado tem sem dúvida um papel central a desempenhar, em particular na garantia de acesso aos principais serviços públicos. O terceiro setor está majoritariamente concentrado nas políticas sociais, e apresenta elevada eficiência, pois se trata em geral de atividades que exigem articulação direta e concreta com pessoas, bairros, comunidades. E as empresas hoje es-
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tão indo muito além da cosmética em termos de responsabilidade social. Estudo comparado de políticas sociais no Programa Gestão Pública e Cidadania da FGV-SP mostra que o denominador comum das políticas sociais que demonstraram grande eficiência nas diversas regiões do país é o fato de serem executadas em parceria, envolvendo tanto o setor público, como empresas e as organizações da sociedade civil. Tornam-se assim mais sustentáveis e permanentes. A inclusão social não envolve apenas o acesso à renda e aos serviços públicos. Envolve também o direito de se apropriar da construção destas políticas, de ser cidadão. Neste sentido, políticas descentralizadas, administradas no nível do território onde as pessoas possam participar diretamente, constituem a forma privilegiada de organização. Ao mesmo tempo, as parcerias, consórcios intermunicipais, cofinanciamento de programas, controle cruzado de gestão e de resultados, sistemas compartilhados de informação e outros mecanismos permitem democratizar gradualmente o processo decisório sem fragmentar as políticas. É importante ressaltar a dimensão das políticas sociais: nos Estados Unidos, só a saúde representa 17% do PIB, é o maior setor econômico do país. Vimos acima que a educação envolve no Brasil mais de um quarto da população, entre alunos, professores e administradores. A segurança está se tornando uma área de grande peso social. As atividades culturais estão se tornando cada vez mais amplas. A realidade é que o conjunto que podemos caracterizar como políticas sociais tende a se tornar o principal eixo de atividades na sociedade moderna. Não é um complemento aos processos produtivos, é o processo central de transformação da sociedade. E a presença maior do Estado nos países mais avançados está diretamente ligada à expansão destas políticas, que não geram “inchaço” da máquina com burocratas, mas asseguram melhor cobertura de educadores, médicos, enfermeiros, agentes sociais. Uma consideração particular sobre as políticas de segurança. A polarização tradicional das visões apresenta propostas repressivas de um lado, e sociais de outro. E com as acusações recíprocas de truculência ou de leniência. Na realidade, se considerarmos a cifra vista acima, de 27% de jovens entre 15 e 24 anos de idade nas
Nota final
O que se constatou no conjunto das discussões que levaram ao presente documento, é antes de tudo um forte otimismo quanto à dinâmica que o país assumiu nos últimos anos. Visões diferenciadas, mas que tem em comum a busca de convergências e sugestões de novas oportunidades que podem ser aproveitadas. Há um acordo geral sobre os rumos e sobre os principais eixos de mudança que se verificaram nos últimos anos: política redistributiva, consumo de massa, condução prudente da macroeconomia, diversificação de mercados externos, reforço do mercado interno, condução exemplar no enfrentamento da crise financeira, a importância crescente dos desafios ambientais, a articulação latino-americana. Uma preocupação claramente convergente é, entre as políticas aplicadas, vistas como positivas, e o relativo atraso na modernização dos instrumentos de gestão do Estado. Há clareza sobre o papel indutor, planejador, articulador e executor do Estado, mas também
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metrópoles brasileiras que não estão nem na escola nem no emprego, a base social para a insegurança torna-se evidente. E o crime organizado passa a ter uma fonte ilimitada de mão de obra. Neste sentido, na linha dos trabalhos de Luis Eduardo Soares, entendemos hoje a necessidade de uma política combinada de forte aparato repressivo contra o crime organizado, e de forte progressão das políticas sociais inclusivas. Enquanto houver uma massa de jovens sem lugar na sociedade e sem perspectivas, a construção de mais presídios e a compra de mais viaturas continuarão a representar apenas o curto prazo. As políticas sociais, como setores específicos e como eixo transversal, aparecem na realidade nos diversos pontos da presente agenda, nas propostas de uma política de garantia do emprego, da redução da jornada, do acesso à banda larga, de reforço do universo da educação, da política de apoio à agricultura familiar e assim por diante. Em termos gerais, indo além do PIB e da visão estreita do crescimento econômico, trata-se de assegurar a elementar qualidade de vida para todos.
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sobre os desafios em termos de agilidade do processo decisório, transparência dos procedimentos, redução da carga burocrática. Apareceu também fortemente a consciência do salto tecnológico que o país tem de assegurar, vetor central das transformações econômicas e sociais na atualidade. Estamos entrando na economia da informação, na sociedade do conhecimento, e precisamos nos equipar melhor neste plano. O eixo que mais apareceu nas discussões e entrevistas foi a questão da educação. A priorização é vista como essencial. A cobertura básica foi assegurada, mas claramente a dimensão da qualidade continua sendo o desafio. Fica no esboço a ponte entre a educação que hoje temos, e que precisa ser melhorada, e a sociedade do conhecimento que navega nas novas tecnologias, que exige reformulações mais amplas. Nos desafios do mundo do trabalho, há uma convergência para a visão articulada da elevação continuada do salário mínimo, da busca da redução da jornada, das políticas de garantia do emprego, da qualidade de vida no trabalho, do reforço dos sistemas de formação. As políticas relativas ao desenvolvimento local aparecem de maneira dispersa, mas há uma clara visão de que ao fim e ao cabo a vida tem de melhorar onde moramos e trabalhamos, e que a escala relativamente menor do município permite uma gestão mais direta e eficiente das políticas. De forma geral, sente-se que há um rumo na política de infraestruturas, constata-se o resgate de instrumentos de planejamento e uma dinâmica não só quantitativa de investimentos, como de resgate da coerência sistêmica que deverá assegurar a geração de externalidades positivas para o conjunto dos produtores. A preocupação maior é com o ritmo e a gestão dos processos. A agricultura aparece nas diversas visões, e nas suas múltiplas facetas, envolvendo a poderosa dinâmica do agronegócio mais preocupado com canais de exportação, a agricultura familiar com seu peso central no abastecimento alimentar, o eterno desafio da reforma agrária. A busca é de se reduzir a dicotomia, assegurar um melhor equilíbrio financeiro e tecnológico entre
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os diversos universos. A fartura de terra e água no Brasil pode assegurar espaço para todos. A preocupação com a intermediação financeira comercial é particularmente sentida pelos que têm de enfrentar custos financeiros completamente desconectados da realidade mundial. Isto afeta os produtores nacionais que enfrentam a concorrência de produtores externos, que têm custos financeiros incomparavelmente menores e dos grandes grupos multinacionais no Brasil que têm acesso a créditos no exterior. O sistema dos bancos públicos faz contrapeso, mas a racionalização da intermediação comercial se impõe. A política tributária aparece como fator de descontentamento entre praticamente todos, mas ao mesmo transparece a dificuldade de mover um sistema extremamente complexo, e travado por interesses enraizados. O eixo é a manutenção do nível, mas a redistribuição da incidência, de forma a reforçar o caráter redistributivo, ao mesmo tempo em que aparecem as dimensões ambientais da dinâmica tributária. As políticas ambientais aparecem na sua intensa ramificação, pela transversalidade das políticas que exige. O eixo geral é que não pode ser mais visto como sistema burocrático de autorização de obras, e sim como mudança dos critérios de decisão do Estado, dos órgãos financiadores, das empresas, dos movimentos sociais, e do próprio estilo de vida da população. Mais que um entrave, deve ser uma oportunidade para um salto tecnológico na direção onde outros estão avançando rapidamente. O aprofundamento das políticas sociais aparece também como eixo transversal e central para o futuro do país. Os avanços têm sido grandes, mas o caminho por seguir é muito maior. O grande avanço é que boa parte da sociedade compreendeu, por ver os resultados positivos, que as políticas sociais não representam um custo, mas um investimento na pessoa humana; que não “pesam” sobre a economia, mas são uma condição básica da produtividade do conjunto. As políticas sociais são um fator chave da estabilidade de todo o processo através da dinâmica do consumo. Enfim, a realidade é que ter uma vida com saúde, educação, cultura, habitação decente,
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segurança – e não apenas bens materiais, é vital para a nossa qualidade de vida. No conjunto, aparece no horizonte a construção de um universo mais equilibrado. No plano social, com redução das desigualdades, no plano ambiental com o resgate do bom senso no uso dos nossos recursos, no plano econômico com busca de soluções inovadoras frente aos novos paradigmas tecnológicos. As sugestões dispersas nas numerosas discussões e entrevistas mostram antes de tudo bom senso, busca de interesses comuns, com inúmeras sugestões pontuais que não foi possível recolher aqui, mas que poderão ser objeto de outra sistematização.
Pablo Monje-Reyes12 … tienen la fuerza, podrán avasallarnos, pero no se detienen los procesos sociales, ni con el crimen, ni con la fuerza, la historia es nuestra y la hacen los pueblos… Extracto último discurso en el Palacio de La Moneda Presidente Dr. Salvador Allende 11 septiembre de 1973
1. Presentación Este ensayo es producto de la conferencia de clausura que el autor realizó en el V Encuentro Nacional de Pesquisadores de Gestión Social realizado en Florianópolis – Brasil en mayo 2011. El objetivo del ensayo es discutir y describir el estado del arte del concepto de Gestión Social3 en Chile contemporáneo. La opción temporal del análisis que se desarrolla en el ensayo está marcada por hechos políticos importantes para el país, que han definido su vida institucional en los últimos 40 años. El artículo comienza analizando las prácticas de gestión social en el periodo de la dictadura cívico militar (1973–1990). En este periodo se producen los grandes cambios estructurales del Estado, por medio de la reformas neoliberales. Se reestructura la matriz estatal, que antes de la dictadura era de carácter de bienestar
1 Pablo Monje-Reyes - licenciado en Ciencias Políticas y Administrativas, Universidad de Los Lagos, Magister en Gestión y Políticas Públicas, Universidad de Chile. Actualmente se desempeña como director ejecutivo del Centro de Estudios y Análisis de Políticas Públicas – CEAPP. 2 El autor agradece los comentarios del texto y su perspectiva de análisis a la Prof. Marcela Ferrer-Lues. 3 El concepto de gestión social en este ensayo se entenderá “como processo gerencial dialógico em que a autoridade decisória é compartilhada entre os participantes da ação (ação que possa ocorrer em qualquer tipo de sistema social – público, privado ou de organizações não-governamentais). O adjetivo social qualificando o substantivo gestão será entendido como o espaço privilegiado de relações sociais no qual todos têm o direito à fala, sem nenhum tipo de coação (TENÓRIO, 2008, p. 158).
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El estado del arte del concepto de gestión social en el Chile contemporáneo
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social, a una matriz de mercado como principal agente ordenador de la sociedad. Este cambio de matriz estuvo marcado por la ausencia de oposición a las reformas por parte de sectores políticos y sociales, puesto que la dictadura desarrolló, paralelamente al cambio de matriz, una política sistemática de represión y violación de los derechos humanos de los sectores opositores. La gestión social fue implementada por sectores de oposición, como una práctica de resistencia a la dictadura. También, como una forma de morigerar solidariamente los efectos de las reformas estructurales en la población, que se empobrecía cada vez más por el retiro impuesto de las políticas de bienestar social. El artículo continúa analizando las prácticas de gestión social en el periodo de retorno de la democracia (1990–2010). En este periodo se constata la continuidad del modelo neoliberal fundado por la dictadura cívica militar que, paradojalmente, fue administrado por quienes se habían opuesto a ella. Esto fue posible porque hubo acuerdos entre la dictadura y los partidos de oposición, para mantener el modelo de desarrollo neoliberal. Para lo cual la gestión social, que había sido una práctica de resistencia en la dictadura, pasa a ser no deseada por los nuevos gobernantes. Se desarticula la movilización social. Se debilitan las instituciones y organismos sociales que habían desarrollado gestión social durante la dictadura. Se termina con los flujos de financiamiento internacional. Se coopta a sus profesionales y técnicos, que pasan a integrar el gobierno democrático. Se profundiza el modelo de mercado en las políticas públicas, a través de los subsidios a la demanda social. Y se desconcentran las políticas públicas a nivel local, en donde incipientemente se trató de implementar una gestión social de carácter legitimadora, en la base social de las políticas.
2. Antecedentes
2.1 Las bases del neoliberalismo en Chile El modelo neoliberal en Chile se instauró por medio de una dictadura cívico militar. La dictadura militar chilena tuvo como base
2.2 Las violaciones a los derechos humanos y su objetivo político
Para conseguir las reformas estructurales del Estado, la Dictadura Militar construyó un argumento poco verosímil. El dictador, y todo el aparato comunicacional del Estado, sustentaban la idea “legitimadora de la dictadura” en que esta se instauraba para detener el “comunismo internacional”, el “cáncer marxista”,
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política a una elite militar con amplia formación socio política y militar, en la Escuela de las Américas en Panamá. Contó también con una elite civil, que en lo valórico – político era muy conservadora, mientras que en lo económico – social exageradamente neoliberal. Este pacto político permitió, a fines de los setenta, realizar las grandes reformas estructurales (MONJE, 2005), que dieron paso al desarrollo del modelo neoliberal, antes que cualquier país en el mundo. Estas reformas fundamentalmente trajeron consigo el desmantelamiento del Estado de Bienestar forjado por más de 40 años en Chile a partir de la década de 1930. La idea central de las reformas, todas independientes entre si, pero articuladas ideológicamente, tenían como meta retirar al Estado de las relaciones socio económicas entre trabajadores y empresarios. Generar las condiciones para que el mercado se desarrollara sin contrapeso. Configurar un sistema político que garantizara el status quo, fundado en la nueva Carta Constitucional de 1980. Uno de los efectos más importantes, y que perdura hasta el día de hoy, es el fin de relaciones sociales entre el Estado y los trabajadores. Desde ahí en adelante, el Estado solo cumple con la función de asignación de subsidios y desarrollo de cartera de “clientes” de políticas sociales. Esto se realiza mediante la creación de sistema de asignación de subsidios, que opera determinando la demanda y financiándola por medio de “vouchers”, con lo cual se organiza el mercado público de políticas sociales. Todas estas reformas estructurales solo fueron posibles en el contexto de una dictadura cívica militar, que sistemáticamente violó los derechos humanos de sus opositores, como parte de la estrategia de instalación del modelo neoliberal.
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la “destrucción de la familia por medio de la lucha de clases”, entre otras frases de ideas-fuerza. Con estas ideas-fuerza se intentaba también legitimar la violación sistemática de los derechos humanos de quienes sustentaban el ideario marxista, de larga tradición en sectores obreros, intelectuales y culturales en Chile desde fines siglo XIX. Esto se tradujo en la persecución política más despiadada de personas en el Siglo XX en el Chile republicano. A los inicios de la dictadura, la persecución política consistió en el encarcelamiento masivo de personas en centros de detención, la tortura sistemática de los detenidos/as en los mismos centros, la ejecución sumaria de personas por medio de juicios de guerra, la detención y desaparición forzada de personas. La mayoría de estas personas pertenecían a partidos de la izquierda chilena, entre ellos el Partido Socialista (PS), Partido Comunista (PC), Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), como también dirigentes sindicales y sociales, pertenecientes a la Central Única de Trabajadores (CUT) y organismos sociales de base. La dictadura, en su primera etapa, contó con los aparatos de inteligencia de las fuerzas armadas y de orden, que sirvieron para realizar estas acciones. Famosos son el “Comando Conjunto” (1975–1977) organismo creado entre todas las fuerzas militares, para la persecución de las cúpulas políticas, en particular la del Partido Comunista. La Dirección Nacional de Inteligencia (DINA) (1973–1977), siendo la principal responsable de la primera etapa de represión, persecución, tortura, ejecución y desaparición forzada de personas. De hecho, en la actualidad la cúpula militar y civil de este organismo purga condenas por sobre 200 años de cárcel y aún se le siguen sumando condenas. A posteriori de 1977, la dictadura, debido a la presiones de organismos internacionales, suprimió a la DINA, para ocultar antecedentes y pistas de los actos de este organismo represivo. Inmediatamente creó la Central Nacional de Informaciones (CNI), la cual es fue continuadora de la política sistemática de persecución de la dictadura hasta 1990 (INFORME RETTIG; INFORME VALECH). Tanto la DINA como la CNI desarrollaron una política
2.3 Visión de Estado y la Sociedad
Retomando las reformas estructurales del Estado se articularon nuevos énfasis en los agentes económicos y se crearon nuevos mercados. Por ejemplo, el de la previsión social, que quedó a manos de las Administradoras de Fondos de Pensiones (AFP), organismos privados que administran los recursos de los trabajadores por medio de un sistema individualista de capitalización previsional, terminando con el principio de solidaridad que desarrollaba el sistema de reparto social del Estado de Bienestar. De la misma manera, en el ámbito de los seguros de salud, se crearon las Instituciones de Salud Previsional (ISAPRE), que administran los recursos de los trabajadores para las atenciones de salud, por medio de contratos individuales de prestación de servicios. Se funda y fortalece la visión de individualismo en el ámbito del sector de salud y previsional. En el sector educación, se promovió la privatización de la educación superior, por medio Decreto con Fuerza de Ley Nº 4, que permite la creación de universidades, institutos profesionales y
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de persecución, y contaron con recursos financieros, humanos y logísticos del Estado para cumplirla. Evidentemente, con un organismo de Estado persiguiendo y reprimiendo a sectores políticos que se hubiesen opuesto a las reformas estructurales, el modelo neoliberal en Chile no se hubiese impuesto con la facilidad que se percibe. Por tanto no corresponde, como algunos intelectuales y académicos plantean en distintos hemiciclos, tratando de naturalizar la instalación del neoliberalismo como una respuesta socio – política de carácter espontanea a la crisis del modelo desarrollista. El modelo neoliberal, desde una perspectiva ético – política, nació sobre la barbarie de una dictadura cívico militar, que no discriminó ningún medio para conseguir sus objetivos institucionales, ni menos cuestionó la legitimidad de sus acciones. Esto explica porque el modelo se fortaleció y se desarrolló en medio del terror de una dictadura, tanto desde la perspectiva objetiva (política y económica) como de la subjetiva (cultural y simbólica).
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centros de formación técnica privados. Esto se ha traducido en una baja ostensible de la calidad de la educación superior. También, en la mercantilización de la formación profesional, sin una mirada de desarrollo y proyecto país. En el ámbito de la educación primaria y secundaria, el Estado descentralizó su gestión y traspasó su administración a los municipios. Los municipios reciben recursos financieros por medio de un sistema de pagos (voucher) por asistencia de los/as alumnos/as, con lo cual gestionan los establecimientos educacionales a su cargo. Este modelo es la puesta en marcha del mercado educacional. Se financia la demanda por educación y no la oferta, como era hasta la década de los setenta. En las políticas de fomento productivo, se levantó la idea de la creación del micro, pequeño y mediano empresario. Se desnaturalizó las funciones del artesanado y obreros especializados, tan importantes en el desarrollo productivo de cualquier país. Esta nueva conceptualización trajo consigo la idea de la renta de corto plazo y el individualismo productivo, como forma de éxito y desarrollo de esta nueva dimensión subjetiva. En las políticas laborales, el nuevo Código del Trabajo, se escrituró desde el principio de mercado. La relación laboral patrones y obreros se define como una acción entre privados. El trabajador vende su fuerza de trabajo a precios relativos, y el empresario empleador la compra en una negociación bis a bis. El Estado no interviene, solo regula el factor legal de la relación. Se debilita la negociación colectiva y la formación de sindicatos. Se entrampa burocráticamente el derecho a huelga, haciéndolo casi impracticable, porque el empresario tiene derecho reemplazar a los trabajadores en huelga hasta que dure el conflicto laboral (factor de presión es igual a cero). En resumen, se privilegia la mirada individualista del trabajo y de los/as trabajadores/as con respectos a sus derechos laborales. En síntesis, la sociedad chilena, fue reestructurada en términos políticos, económicos, sociales y culturales, sobre la egida del neoliberalismo (MOULIAN, 2002). Su concepción de sociedad es el individualismo maximizador de beneficios. Funciona metodológi-
3. Gestión Social en Dictadura
Para analizar la gestión social en el periodo de la dictadura cívico militar se procederá a mirar en dos niveles analíticos. Primero, la dimensión organizacional de carácter político – social. Segundo, desde su dimensión de gestión en la descripción de acciones practicas de gestión social.
3.1 Gestión Social en Dictadura - Dimensión Organizacional •
Organizaciones de base para la lucha contra la dictadura y vinculación sistema de partidos políticos La gestión social la podemos vincular fundamentalmente al desarrollo de formas de oposición política, de carácter activo contra la dictadura militar en Chile. Existiendo políticas de represión política a los partidos de oposición, sobre todos a lo de origen marxista, estos siguieron funcionando en clandestinidad. Sus acciones políticas se orientaron fundamentalmente a crear un gran bloque de oposición a la dictadura cívico militar. Para lo cual implementaron formas de gestión social que les permitieran el resguardo de sus organizaciones, como a la vez hacer conciencia política de la necesidad de volver al sistema democrático, y terminar con la dictadura. •
El rol de la Iglesia Católica De la misma manera al rol que jugaron los partidos políticos en clandestinidad, la Iglesia Católica creó la Vicaria de la Solidaridad. Organismo que tuvo como objetivo central la defensa de los derechos humanos de las personas perseguidas por la dictadura. A través de las pastorales: obreras, campesi-
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camente a partir del ser egoísta y hedonista que opera con estos principios al interior del mercado de bienes y servicios. El Estado solo juega un rol de regulador pasivo y de subsidiador, en el caso de que la persona no tenga los suficientes ingresos para demandar en el mercado bienes y servicios.
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na, universitaria y sociales, desarrollaron gestión social. Principalmente, por medio de programas de alimentación, formación de líderes, abrigo, vivienda y comunicaciones. Además la infraestructura de física de la iglesia sirvió como un espacio de desarrollo de las organizaciones sociales y de resistencia política, social y cultural en los sectores populares en contra de la dictadura cívico militar. •
Organizaciones No Gubernamentales con apoyo y financiamiento internacional Las Organizaciones No Gubernamentales (ONG’s) también jugaron un rol en la resistencia contra la dictadura. En particular, en el desarrollo de acciones de gestión social que permitían paliar los efectos de los ajuste del modelo neoliberal, en la población más pobre del país. Una parte importante de ellas estuvo ligada a medios de comunicación alternativos, otras a la búsqueda de apertura de espacios culturales de resistencia, otras a la gestión social en el ámbito de la salud, la educación y la vivienda social. Parte importante de las ONG’s recibieron apoyo financiero, para el funcionamiento y desarrollo de sus programas de intervención, por parte de organismos internacionales, de la solidaridad de chilenos/as en el exilio, o de gobiernos socialdemócratas de Europa principalmente. •
Gestión Social en Dictadura - Dimensión Gestión La gestión social en la dictadura se dio fundamentalmente en los sectores populares de la población que fueron quedando marginados de las políticas subsidiarias y de las restricciones presupuestarias del Estado impuestas por los Ministros de Hacienda de la época. Para poder observar las experiencias de gestión social se describirán las más relevantes y que han transcendido en la memoria colectiva presente. •
Ollas Comunes y Comedores Sociales La experiencia de las ollas comunes se produjo a partir de los
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Comprando juntos La experiencia del comprando juntos se produjo por las mismas razones de las ollas comunes. No obstante, su principio fundamental fue organizar a las familias con ingresos para la compra de mercadería para el sustento de la despensa familiar, en la lógica que a mayor volumen de compra, mejores precios. Todos unidos podían demandar precios más bajos, y así lograr optimizar los recursos familiares. Esta experiencia la podemos vincular directamente a las ideas de cooperativas de consumo. •
Tomas de terreno y autoconstrucción de viviendas sociales Una de las experiencias en temas de vivienda fue la toma de terreno. Si bien era una práctica histórica anterior a la dictadura cívico militar, se reprodujo en este periodo. Por supuesto, las tomas fueron muy reprimidas. A una parte importante de sus líderes se les encarceló, torturó, relegó y se les condenó como subversivos. Sin embargo, como práctica de gestión social, las tomas de terreno que se lograron consolidar y conseguir apoyo solidario, pudieron desarrollar la autoconstrucción de viviendas, realizadas por los pobladores de cooperativas, y solidariamente entre ellos. Esto les permitió radicarse en los mismos terrenos, a la espera de una solución definitiva.
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requerimientos de los pobladores/as cesantes, de dar de comer a sus familias. La idea de las ollas comunes parte de los principios del cooperativismo social, en donde cada familia aportaba un producto para la preparación de los alimentos, otros aportaban el trabajo de elaboración, y otros coordinaban la logística necesaria para la distribución de los alimentos. En algunos casos, se organizaban en cada barrio y la olla común pasaba ser un espacio organizacional de los vecinos y vecinas. Los comedores sociales, casi siempre al alero de la Iglesia Católica, tenían una metodología de gestión muy parecida a la de la olla común, pero de una u otra forma la organización estaba en manos del control de la parroquia a la cual pertenecía el comedor.
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Recuperación y distribución de alimentos en sectores populares Otra experiencia fue desarrollada por grupos políticos que organizaban la recuperación de alimentos, por medio de medidas de fuerza sobre los transportes de distribución de mercadería. Los camiones de distribución eran desviados para distribuir los alimentos en las poblaciones populares. Particularmente, esta experiencia era resistida por quienes encabezaban la resistencia contra la dictadura en el país. Sin embargo, fue una práctica que tuvo su logística y desarrollo permanente en los sectores populares, aunque hoy en día se trate de morigerar y llevar al olvido forzado.
• Educación cívica y de derechos humanos Una experiencia en el ámbito de la educación cívica y de derechos humanos, fue lo que desarrollo el comité por las elecciones libres entre los años 1987 -1990. Se desarrollaron cursos de formación en derechos políticos y civiles, que permitieran a la población enfrentar los procesos plebiscitarios y eleccionarios, que estaban dentro de la agenda de transición a la democracia. Este comité tuvo recursos de la solidaridad internacional y se dedicó a realizar cursos en los sectores populares. El objetivo de la formación cívica, política y de derechos humanos, era garantizar la defensa del voto y el respeto a las normas electorales de los procesos de plebiscito, y posteriormente de la elección presidencial y parlamentaria, con lo cual se logró la vuelta a la democracia en Chile. • Protección de la infancia Por último, una de las experiencias en protección de la infancia y salud mental, fue un programa de salud PIDEE, una ONG creada el año 1979, como una respuesta a las demandas de niños y jóvenes, hijos o familiares de víctimas de la violación de los derechos humanos, que estaban afectados por trastornos en el área de la salud física y mental, y tenían serias dificultades en la satisfacción de sus necesidades básicas de sobrevivencia.
4.1 Organizaciones de base se debilitan por articulación del Estado. Detención de la movilización social Chile post dictadura inició su camino de democratización con un gran desafío. En 1990 el 49% de la población estaba en condiciones de pobreza. Por tanto, el primer gobierno de la concertación se focalizo en políticas de combate contra la pobreza. Se crearon diversos instrumentos de política pública que permitieran acelerar la superación de este flagelo social. Entre los instrumentos más importantes y efectivos está el FOSIS. Fondo para financiar distintas líneas de acción con sectores desposeídos, como fueron el mejoramiento de las condiciones de empleabilidad de las personas pobres por medio de la capacitación laboral, mejoramiento de infraestructura urbana y de vivienda, entre otros. Sin embargo, siendo estas acciones en una parte importante exitosas por sus resultados en el corto plazo, esto tuvo una segunda cara, que fue la desmovilización de los actores sociales que habían sido claves en la lucha contra la dictadura militar y la recuperación de la democracia. Por tanto, en los primeros años de la democracia se perdieron y/o debilitaron redes sociales claves para la gestión social.
4.2 Iglesia Católica – Vicaría de la Solidaridad, son debilitadas política y técnicamente
Consecuentemente con lo anterior, se debilitó el rol de la Iglesia Católica en la base social, desde la perspectiva socio política. Una parte importante de sus profesionales y técnicos fueron reclutados por el gobierno para cumplir funciones ejecutivas y de intermediación con la base social. Por tanto, voluntariamente o no, entró en la política de desmovilización implementada por la concertación en el gobierno.
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4. Gestión Social en Democracia - Dimensión Organizacional
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4.3 Se reorientan los financiamientos de las ONG´s al Estado El apoyo internacional a las ONG’s que participaron de la lucha contra la dictadura fue mermado. Recuperada la democracia, los recursos de los gobiernos solidarios con la resistencia a la dictadura chilena, se institucionalizaron y se canalizaron por la vía de la estructura formal de gobierno. A la vez, una parte importante de los profesionales y técnicos, pasaron a cargos de gobierno, lo cual debilitó el funcionamiento político y técnico de las mismas. Por tanto, sin recursos económicos y sin recursos humanos, también cayeron en la desmovilización social gobierno buscó como objetivo de política.
5. Gestión Social en Democracia - Dimensión Gestión
5.1 Políticas públicas para la autogestión de los sujetos La gestión social en los gobiernos democráticos dirigidos por la Concertación, fue utilizada como medio para la intervención de las políticas públicas, con el objetivo estratégico de cooperar con fortalecer a los sujetos sociales como actores de mercado. Potenciando en ellos su rol agente de emprendimiento y generación de empleo. La tesis que primaba era que, al generar empleo, ya sea, apatronado e independiente, las personas obtenían recursos con los cual podían salir de la pobreza. Nunca se buscó modelos alternativos de generación de recursos, ni menos se experimentó con formas distintas de generación de riqueza para los sectores populares.
5.2 Co–gestión de políticas públicas
La gestión social fue implementada como parte central de la co-gestión de políticas públicas, de carácter social y productivo. Fue desarrollada conceptualmente como innovación social, no como una alternativa de profundización democrática y de gestión, en
5.3 Gestión social de empresas, lavado de imagen
Por otro lado, la gestión social fue tomada como una oportunidad para la empresa capitalista privada de gran envergadura. En particular, aquellas de los sectores de servicios y de extracción de cobre. Estas empresas crearon fundaciones con las cuales daban muestras de caridad a sectores sociales desposeídos, a cambio de fotografiarlos y mostrarlos en las memorias de “papel couche” de sus empresas, para empatizar con sus dueños, socios y clientes.
5.4 Gestión social, ciudadanía y gestión municipal
En gran medida, la gestión social en este periodo estuvo ligada, como ya se ha dicho, a la co gestión social de políticas públicas. Se proyectó una gestión social a nivel municipal. En todas las políticas sociales, el ejecutor privilegiado fue el municipio. El municipio tuvo la responsabilidad de generar y desarrollar las redes sociales necesarias para la legitimación social y ejecución de las políticas. Para lo cual innovó en la articulación ciudadanía, gestión del municipio y gestión local de las políticas. Se desarrollo así la gestión social, captada por el aparato estatal con bajos niveles de autonomía social.
6. La Gestión Social (1990-2010) en Chile desde de la perspectiva ciudadanía – gestión local
Durante la primera década de este siglo, se llevó a cabo el Programa Ciudadanía y Gestión Local, que buscaba sistematizar y premiar las prácticas más relevantes de la articulación ciudadanía, gestión municipal y/o gestión local. Estas experiencias analizadas fueron seleccionadas por su alto impacto en el empoderamiento social. Se analizó los resultados obtenidos por el Programa, publicados en el libro “Los caminos que buscamos, 30 innovaciones en el fortale-
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mano de los sujetos sociales. La idea que primó fue ver a los actores sociales como clientes de políticas públicas, que podían coadyudar a su ejecución, más que participar en su diseño, articulación y evaluación.
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cimiento del espacio público local” elaborado por el Centro de Análisis de Políticas Públicas de la Universidad de Chile y la Fundación para la Superación de la Pobreza. El estudio, en su síntesis, reconoce los siguientes facilitadores: personas claves que estimulan la puesta en práctica y desarrollo de la iniciativa; equipos de trabajo consolidados y comprometidos con la iniciativa; disposiciones o intervenciones que son promovidas desde el nivel central; contacto con instancias o experiencias similares o el desarrollo de acciones de difusión de la propia iniciativa; actores de intermediación entre la sociedad civil y el gobierno local. De la misma manera reconoce los siguientes obstaculizadores: prejuicios, reticencias, temores o desconfianza hacia la idea innovadora y su implementación; debilidad en las capacidades de las personas para convertirse en sujetos de deberes y derechos, en condiciones de actuar en espacios de discusión y de toma de decisiones; debilidad organizativa de la comunidad; desinterés de la comunidad en participar en actividades cuyas decisiones no son vistas como un elemento que los afecta directamente; inexistencia de instancia concreta para la toma de decisiones o para acompañar las distintas fases de los procesos; financiamiento futuro para la continuidad de los procesos
7. El debilitamiento de la Gestión Social. Cuáles son las razones políticas? Análisis crítico a los 20 años transición democrática
En al año 2010, se terminó el ciclo de los gobiernos de la concertación, que habían gobernado pos dictadura. Asumió la derecha elegida democráticamente. Esto permite hacer un análisis de los 20 años de gobiernos de la Concertación. Lo que lleva madurar una cierta decepción política. ¿Cuál es esa decepción? Definitivamente, reconocer que la modernización y la “democratización” de nuestra sociedad eran sólo una imagen que la Concertación impulsó comunicacionalmente, con un alto grado de aceptación en buena parte de los sectores sociales y culturales del país. Más aun, a vuelta de página y a 20 años
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La salida pactada de la dictadura La salida de la dictadura pactada con la misma derecha, sin cuestionamiento del orden jurídico constitucional. La transición quedó reducida sólo a cambios cosméticos, pues todavía nos rige la Constitución de Pinochet, aunque, de manera eufemística, lleve la firma del ex – Presidente Ricardo Lagos. •
El rol de intelectuales de la Concertación en el poder El rol complaciente de los intelectuales de la Concertación, que no cuestionaron las formas de organización del poder y la forma en que la sociedad chilena entraba en una ruta de individualización. No pusieron en el centro el ethos colectivo y solidario del orden republicano histórico de los partidos de centro e izquierda, para la
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después de haber terminado con la más cruenta dictadura, la derecha asumió el poder y muchos chilenos y chilenas perciben que no ha cambiado nada. ¿Por qué no ha cambiado nada? De un momento a otro, reaparecieron sin cuestionamiento algunos los iconos simbólicos de la dictadura, como el uso del escudo de la nación en tanto forma de identidad gubernamental, conexión directa con el pseudo patriotismo de la dictadura; más aún, la instalación de un gobierno de ricos, con ministros y subsecretarios en cuyos curriculums destacan la ausencia de vocación por lo público y la sobrevaloración de la generación y/o administración de riqueza generada a partir, claro está, del modelo neoliberal instalado en la dictadura; de la misma manera, la utilización abierta y deliberada del poder del Estado, en beneficio de los grandes grupos económicos; por último, el nombramiento, en cargos públicos, de personas que estuvieron comprometidos en violaciones de derechos humanos. La derecha ha conjugado estos cuatro elementos sin mayores obstáculos y todo indica que avanzará en esta misma dirección. Pareciera que la Concertación no logró cambiar la matriz socio – política del país creada e instalada en la dictadura. ¿Cuales son las razones de ello?
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transformación real del sistema político y democrático del país. De la misma manera, la decisión política de no utilizar a las universidades estatales, para levantar un discurso modernizador y socializador de una nueva democracia y modelo económico. Por el contrario, la Concertación legitimó el modelo de asignación de mercado de recursos públicos en el ámbito de la investigación y desarrollo, recursos que se destinaron tanto a las universidades estatales como a las privadas. Vaya paradoja, en quienes le deben su formación a las universidades públicas de este país. •
El rol de los medios de comunicación de masas El uso y abuso de los medios de comunicación para alimentar, a nivel subjetivo en la ciudadanía, las bondades del modelo y la fortaleza de nuestras instituciones democráticas. No se puso en el debate la necesidad de fortalecer la democracia, terminando con la sobre representación de la derecha en el Parlamento. En otras palabras, se dejó de lado, en la política comunicacional, la búsqueda de la derrota simbólico – cultural de la derecha política y, por consiguiente, del modelo neoliberal. La pérdida de pluralidad de los medios de comunicación es un hecho constatado, como también lo es el fracaso de proyectos que nunca obtuvieron apoyo del Estado para hacer frente a la competencia de los grandes grupos periodísticos. Medios emblemáticos de oposición a la dictadura fueron cerrados en democracia, como ocurrió con La Época, Análisis, Cauce, Fortín Mapocho, Rocinante, La Bicicleta, por nombrar sólo algunos. •
La desmovilización de los actores sociales La Concertación desarticuló la movilización de los actores socio –políticos y privilegió una política de elite. Con esto, abrió las puertas para que la derecha penetrara en los sectores populares, donde jamás habían logrado un respaldo político masivo. De hecho, hoy en día existen distritos de origen popular en donde la derecha no se beneficia del sistema binominal, si no que es primera o segunda mayoría, lo que significa que, cambiando el sistema electoral, seguirá teniendo representación.
La ausencia de búsqueda de un modelo alternativo de producción El no uso del aparato del Estado para la generación de nuevas formas de producción, que hubiese apuntado al fortalecimiento democrático de la sociedad. Por ejemplo, el desarrollo de los sistemas de producción de cooperativa o sistemas de integración productiva del artesanado y pequeña empresa, por medio de sistemas crediticios de carácter solidario. Por el contrario, se entregaron incentivos que apuntaron a la individualización productiva, a la creación subjetiva del micro empresario, y a la instalación de conceptos como “emprendedores” y “emprendedoras”, nada más lejos de nuestra tradición artesanal y de talleres de oficios, presentes desde inicios de la República y que contribuyeron a la profundización de la democracia en nuestra sociedad. También, se manejó políticamente, a nivel de la subjetividad, la idea que los pequeños productores pueden ser exitosos exportadores en un Chile abierto y globalizado, cuando se sabe que los directamente beneficiados de la globalización son las grandes transnacionales y el capital financiero. Por último, se fortaleció simbólicamente que el criterio de éxito es la maximización de la renta individual, omitiendo que las economías pueden ser solidarias e integradoras en un orden social, más amplio y democrático en lo económico y productivo. •
La falta de debate critico sobre los resultados del modelo neoliberal La poca voluntad política de instalar, en el debate público, la critica efectiva sobre los resultados del modelo económico neoliberal, en tres ámbitos centrales, a saber, el incremento de la desigualdad económica en la distribución de la riqueza, el bajo compromiso en el fortalecimiento de la actividad sindical, y los nefastos efectos medio ambientales del sistema de producción primario exportador, que se profundizó en Chile en estas dos décadas.
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La falta de cambios simbólicos y culturales en Chile democrático Al parecer, la decepción de muchos es una realidad: Chile después de 20 años no cambió nada en el campo simbólico – cultural e institucional. No faltará quien pueda argüir una serie de estadísticas e indicadores, demostrando que avanzamos como sociedad, según los parámetros estándar del “desarrollo”. Quizás, en una gran cantidad de congresos políticos y académicos, se dirá que la Concertación es la coalición más perdurable y de mayor éxito en la historia chilena. Sin embargo, en el campo de las ideas y de la construcción de hegemonía, simplemente la coalición poco o nada puede mostrar. Pareciera que la Concertación, en particular una generación importante de sus líderes, optaron sencillamente por administrar el modelo, movidos por la ética de la responsabilidad y el acomodo ideológico, donde el modelo del emprendedor individualista también se aplicó a la política como “opción legitima”. Dejaron de lado totalmente la ética de la convicción, renunciaron a sus ideas originales de cambio enunciadas a finales de los 80 y principios de los 90, y se inclinaron a la derecha. Con ello renunciaron a realizar cambios profundos y radicales para derrotar a la derecha en el campo simbólico – cultural e institucional, que hubiese impedido que hoy la veamos consolidarse en el gobierno con poder político ejecutivo y legitimados socio-políticamente para gobernar.
8. Síntesis
Las reformas estructurales que llevó a cabo la dictadura cívico militar, despojó al Estado de su capacidad de intervención social abierta. Las reformas, independientes entre sí pero interconectadas ideológicamente, permitieron la creación de un Estado neoliberal. Sus principales características son ser un actor pasivo en las relaciones sociales. Sus formas de intervención son por medio del subsidio a la demanda en términos de políticas sociales y desde la perspectiva de la gestión social, solo le interesa si racionaliza las demandas de prestaciones y subsidios del Estado. La gestión social en el periodo que abarca la dictadura cívico militar chilena, fue implementada por actores políticos (partidos
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políticos de oposición), sociales (iglesia católica y ONG´s) y comunitarios (organizaciones sociales de base), como práctica de resistencia contra la dictadura y de sensibilización para la población de la necesidad de retornar a la democracia. La gestión social fue un pivote clave en la estrategia de derrocamiento de la dictadura cívica militar chilena. En el periodo del retorno a la democracia y los gobiernos de los partidos que fueron oposición a la dictadura, se dio continuidad y legitimación democrática al modelo neoliberal. Se desmovilizó a los actores sociales, se desestructuraron, por lo hechos o por voluntad política, los actores institucionales y sociales que desarrollaron la gestión social como practica de resistencia en los sectores populares durante la dictadura. Los debilitaron por voluntad y cambio de eje político, terminando el financiamiento solidario internacional y la cooptación de los profesionales y técnicos, para cumplir funciones ejecutivas en el gobierno. La gestión social en el periodo de los gobiernos democráticos encabezados por la concertación, fue implementada como un modelo de co gestión social de las políticas públicas diseñadas centralmente. Como una forma de acercar los subsidios del Estado a los sectores de la población más carenciados. También, como una forma de dar legitimidad social a las empresas privadas. Por último, como prácticas de ciudadanía, gestión municipal y gestión local, fueron las que más se acercaron a dinamizar el concepto y prácticas de gestión social en este periodo. Para terminar, la paradoja que muestra este ensayo es que, en realidad, la Gestión Social puesta en práctica en el periodo de la dictadura cívica militar fue más profunda y logró cambio socio políticos importantes, siendo un factor determinante en la lucha contra la dictadura y en la democratización del sistema político. Por el contrario, desde el retorno de la democracia, los que se opusieron a la dictadura la han mirado con sospecha política. Solo se ha podido articular como una mediadora de políticas, que buscan fortalecer el rol del mercado de las políticas sociales, elaboradas en cada uno de los gobiernos de la concertación.
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9. Bibliografía INFORME RETTIG. Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación en http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html
INFORME VALECH. Informe de la Comisión Asesora para la Calificación de Detenidos Desaparecidos, Ejecutados Políticos y Víctimas de Prisión Política y Tortura en http://www.comisionvalech.gov.cl/InformeComision. html MONJE, P. La globalización y las políticas de reforma y modernización del Estado en América Latina. En: LEAL, R. (ed.). Globalización, identidad y justicia social. Santiago de Chile: SIT, Universidad de Arte y Ciencias Sociales, 2005. MOULIAN, T. Chile actual: anatomía de un mito. Colección Escafandra. Santiago de Chile: Editorial Lom, 2002.
SURAWSKI, A.; FERRER, M.; CUBILLOS, J.; BARAURE, M.; (eds.). Los caminos que buscamos. 30 innovaciones en el fortalecimiento del espacio público local. Programa Ciudadania y Gestion Local. Santiago de Chile: Fundacion Nacional para la Superacion de la Pobreza & Centro de Analisis de Politicas Publicas de la Universidad de Chile, 2000. TENÓRIO, F. G. Um espectro ronda o terceiro setor: o espectro do mercado. 3ª ed. Ijuí: Editora da Unijuí, 2008.
Dan Baron3
ela me achou largado numa esquina da cidade manchado, amarfanhado, anestesiado debaixo de um cartaz sorridente anunciando a escolha global e cansada, e doída de puxar a carreta cheia de papelão bem dobrado de sacolas e caixotes ordenados tudo tão bem-arrumado como a cozinha dela e seu jardim de temperos com os tornozelos inchados as veias endurecidas de arrastar as solas dos pés por séculos de terra não-reformada e direitos indígenas aterrados ela apoiou sua colheita dos excessos contra a sarjeta despiu as rédeas
1 Este texto foi originalmente publicado no Programa Catálogo da Pinacoteca, em 2010, para o Encontro Internacional, Diálogos em Educação, Museu e Arte, baseado no livro de Dan Baron, Alfabetização Cultural: a Luta Íntima por uma Nova Humanidade, partes 1 e 3, São Paulo, 2004 2 Durante o V Enapegs, Dan Baron e Manoela Sousa conduziram a oficina A teatralidade dos espaços público e íntimo: implicações para a gestão coletiva e criativa, no eixo temático O papel das metodologias integrativas na ampliação da esfera pública. O texto ora publicado tem relação com experiências vivenciadas nessa oficina e no eixo temático como um todo, e por isso foi convidado a fazer parte deste livro. Em outra publicação, mais recente, Dan Baron e seus mais de cinquenta coautores presenteiam o campo de conhecimentos e práticas em gestão social com um rico e belíssimo trabalho coletivo realizado em comunidades rurais no sudeste do Pará: Colheita em Tempos de Seca: cultivando pedagogias de vida por comunidades sustentáveis. Harvest in times of drought: cultivating pedagogies of life for sustainable communities, Dan Baron et al. Marabá: Transformance, 2011, 252 p. A obra coletiva dos integrantes da primeira turma da Licenciatura em Pedagogia do Campo (2006-2011), Universidade Federal do Pará, Campus Marabá, oferece poemas, contos e músicas como recursos pedagógicos, a proposta artístico-pedagógica de Transformance, e a proposta aplicada como projeto cultural de formação profissional e transformação institucional no meio universitário. O livro está disponível para download na biblioteca da Rede de Pesquisadores em Gestão Social – www.rgs.wiki.br. [Nota das organizadoras]. 3 Dan Baron é escritor teatral, diretor de teatro comunitário e arte-educador, residente no Brasil desde 1998 e, desde 2009, colaborando com a comunidade afrodescendente de Cabelo Seco em Marabá, Pará, Amazônia, no projeto Rios de Encontro.
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Museu íntimo: diálogos entre cultura, educação e estética1 2
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e curvando com seus negros olhos questionadores me abraçou junto ao seu peito trêmulo junto às lágrimas salgadas por danças ancestrais e ritmos rompidos abrindo e enxaguando meus olhos inchados ergueu-me até seu depósito periclitante entre uma cadeira sem pernas e um violão sem cordas chaves perdidas e descartados dicionários para acompanhar sua caminhada pela noite dos restaurantes metropolitanos aos morros da periferia para o sul, para casa até ser cuidadosamente lido e colocado com calma ao raiar do sol dentro de uma comunidade de sonhos ainda coletivos para ser transformado em um outro mundo
Minhas mãos descansam no teclado. Elas estão bronzeadas e calejadas por estarem há seis semanas, o dia todo, cortando azulejos sob sol de inverno. Cicatrizes de cortes inflamados e infeccionados, onde o cimento penetrou nos dedos e corroeu nossa pele enquanto o passávamos nos cacos e os colávamos, gravam o processo de descobrir como se constrói um mosaico. Minha mão direita arde e agora está maior do que a minha mão esquerda, inchada e mais forte por pressionar a torquês para aqueles a quem faltava força para cortar a cerâmica. Ela se abre e se fecha durante o meu sono, lembrando e se recuperando. Eu tentei, mas não consegui cortar com a minha esquerda.
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Eu consigo ver as mãos de meu pai quando eu tinha dezenove anos: maiores, firmes, mais fortes de carregar água e cortar gravetos quando criança. Mãos que cobriam com reflexões as margens dos mesmos livros que eu leria uma geração depois de ele os ter fechado para sempre. Mãos que construíram bibliotecas a partir da motivação de crianças descalças e que tinham que lutar contra o ruído do rádio, numa mesa da cozinha à luz de vela, para conquistar o poder da caneta. Mãos que estavam sempre esboçando retratos de mãos anteriores: retratos em carvão de mãos que seguravam tesouras para cortar tecido, pegavam em foices, picaretas e até em armas para defender os territórios dos donos das minas e dos fazendeiros que os exploravam. Mãos exiladas e desaparecidas, que seguraram bíblias e esconderam crianças, gesticulando inconscientemente na sua língua proibida por justiça e paz. A mais suave das mãos de um educador, cujos retratos caricaturados de auto-sacrifício, esperança e autoparódia se tornaram a definitiva assinatura, até hoje. Eu consigo ver também as mãos menores que eu fechei timidamente nos shorts, sobre o meu colo, na manhã em que fui para a escola pela primeira vez. Por que você gosta de escrever?, uma professora desacreditada perguntou, quando confessei meu desejo secreto. Porque eu gosto do movimento do lápis na folha, respondi, lembrando das minhas mãos rabiscando ondas e mais ondas da ‘escrita adulta’ sobre quaisquer rascunhos, à mesa da cozinha. Algum tempo depois ela me bateu com a palmatória até minhas mãos ficarem vermelhas, na frente da classe, por eu ter passado as respostas da prova para um amigo do meu lado. Embora minhas respostas estivessem corretas, tirei zero e fui exilado para o canto. Será que ela estava – mesmo que intuitivamente – consciente da sala de aula como palco? Do aprender e ensinar como uma performance? Do método como política em ação? Certamente ela estava inconsciente dos reflexos de resistência com que me havia marcado. Eu fecho meus punhos. O calor das lágrimas reprimidas e perguntas silenciadas sobe de repente, num ruborescer que mancha meu pescoço. E agora, quase quarenta anos depois, eu escrevo em outra mesa, ao ritmo das ondas que quebram defronte à casinha branca, do outro lado do Atlântico, que eu e Manoela, minha colaboradora
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e companheira, alugamos. Ela está selecionando fotos que contam a história do mosaico comunitário da escola agroecológica do Movimento Sem Terra, para uma apresentação de slides que vai financiar o estágio final do projeto. Ela percebe a mancha da minha memória. Sorrio. No fim do dia vou explicar o que recuperei inesperadamente, enquanto escrevia esse prefácio. A calma entre as explosões das ondas que se formam em cascata gera a tensão criativa e o estado de alerta apropriados aos processos que vou relembrar. As ondas agitam e peneiram as incontáveis histórias do passado, me convidando uma vez após a outra a curtir a beleza de suas narrativas brilhantes, enquanto são rascunhadas, brilham e secam na areia. Momentaneamente, elas revelam e gravam as manchas impensadas de vazamentos e lixos nos arcos delicados de seus movimentos, antes de serem encobertas e apagadas pela chegada de novas histórias. A violência que ameaça essa narrativa aparentemente interminável é contada todas as manhãs pelos corpos contorcidos dos pinguins exaustos e pelos peixes de olhar fixo, que já enxergaram o futuro. O íntimo genocídio acelera meus dedos por sobre as teclas. É por isso que incluo um poema, um conto e imagens aqui, não apenas para celebrar nossa humanidade, mas para permitir que você participe mais íntima e analiticamente nesse diálogo, curtindo suas múltiplas inteligências. Quero mostrar como nossas linguagens expressivas revelam as contradições e os potenciais de nossa humanidade, e são capazes de estimular o diálogo interno, a sensibilização e a identificação reflexiva necessária para a construção de novas relações sociais. Sobretudo, gostaria de demonstrar como a forma é o método – a estética de nossa subjetividade – em performance. Histórias e imagens são os gizes e quadros, canetas, livros e bibliotecas, galerias e espaços das performances dos despossuídos, marginalizados e excluídos. É por isso que essas linguagens expressivas – e a sagacidade que elas revelam e as identificações que geram – têm sido mistificadas há séculos como artes, marginalizadas nos cantos dos currículos escolares e presas nas fortalezas culturais de uma minoria privilegiada. Sua mistificação é a chave
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que tranca a imaginação, criatividade, empatia reflexiva, autoconfiança e a motivação das maiorias do mundo – alienando a força transformadora de suas mãos-de-obra – no silêncio e isolamento da auto-alienação, autodúvida e autosubordinação involuntária, para excluí-las do drama de construir a sua própria humanidade. Libertadas da camisa-de-força das piadas medrosas e inibições viscerais, as artes podem renovar os poderes perceptivos e empáticos das inteligências de nossos sentidos, possibilitando a (re) sensibilização e autocompreensão necessárias ao cultivo da nova solidariedade reflexiva e da comunidade que precisamos para arriscar o novo. Eu não estou desvalorizando o poder da palavra escrita nem o processo extraordinário de reflexão coordenada, improvisação criativa e edição analítica de que o diálogo entre a mente focada, seus olhos e suas mãos, é capaz. Estou questionando como eles são usados e valorizados. Nós que somos dedicados à democratização dessas habilidades precisamos garantir que não estejamos contribuindo – sem querer – com a violência psico-cultural que flui das formas autoritárias de ‘ler e escrever’, e com a desvalorização das outras linguagens expressivas que desliga nossa capacidade de raciocinar de nossas inteligências empáticas. Ambas violências ‘convencem’ a grande maioria a reforçar e construir a própria fortaleza de exclusão racionalista que protege o poder não-democrático e impossibilita a identificação solidária. Se quisermos construir um mundo inclusivo e democrático, precisamos redefinir a alfabetização para incluir todas as nossas inteligências e as suas linguagens, e aplicar esse novo entendimento através de métodos de libertação. Precisamos situar a palavra escrita como uma das linguagens dentre outras que compõem um processo permanente, que podemos chamar de alfabetização cultural. Não estou propondo uma nova maneira de ‘trazer a cultura para as massas’ ou promover a ‘conscientização das massas’. Estou propondo a valorização das outras linguagens e inteligências que usamos intuitivamente o tempo inteiro, transformando-as em ferramentas cientes de sensibilização, autoleitura, identificação reflexiva e libertação, através de uma pedagogia de autodeterminação. Acredito que não haja outra maneira de aprendermos a nos inter-
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pretar no mundo, empática e dialogicamente – em solidariedade com os outros em vez de contra eles – e experimentar criativamente e coletivamente a construção de um futuro justo e humano. Durante trinte anos de projetos de educação cultural com comunidades excluídas e em risco de guetos na Inglaterra, na Irlanda do Norte, na África do Sul, na Palestina, no País de Gales e agora no Brasil, vi séculos de violência e resistência psicossocial e emocional impedirem o próprio movimento dos olhos e da língua na leitura da palavra impressa. Os panfletos e livros mais úteis se transformavam em arame farpado. A mão do ativista mais experiente lutava contra a caneta, em vez de lutar com ela. No entanto, eu estudei aqueles que acreditam que não sabem ‘ler nem escrever’ – mas leem o vento, a terra, o céu, os olhos, o silêncio, o comportamento – lendo fotos. Testemunhei leituras empáticas e dedicadas. Todo gesto, toda expressão facial, todo tremor de desejo e conflito foi lido com astúcia e depois analisado por meio de histórias e diálogos interativos, em reflexões questionadoras, irônicas, provocativas, afirmativas e sentidas. Havia leituras silenciosas, inibidas, tentadoras, apaixonadas, impulsivas, lúdicas, repentistas e fluentes. Algumas eram críticas, outras contraditórias e reativas. Mas todo mundo leu. E escreveu, com gestos e histórias, através de diversas linguagens simbólicas. Nelas, encontraremos sabedorias e potenciais pedagógicos para o desenvolvimento de uma subjetividade cooperativa. Mas estão encarceradas dentro das próprias barricadas que as protegem. Também estudei aqueles que se definem como ‘educados’ e ‘críticos’, lendo as mesmas fotos. Em geral, as imagens foram escaneadas e passadas adiante sem empatia ou curiosidade. Seu conteúdo foi defensivamente classificado às pressas, social, cultural, ideológica e esteticamente, em leituras ‘analíticas’ que apenas ocultavam a pessoalidade do eu atrás da verdade inatingível da autoridade objetiva. Eu sei porque fui educado para adquirir essa subjetividade do ‘sujeito oculto’ dessensibilizado, monológico e individualista. Nós somos educados para acumular e organizar, nos armar e esconder, competir para garantir nosso lugar dentro das estruturas das fortalezas do mercado. Seria errado dizer que nós não aprendemos
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a questionar ou escutar. Aprendemos, sim, a questionar e escutar, mas para atacar, enfraquecer e convencer. E nós aprendemos a racionalizar nossos sucessos e fracassos como reflexos culturais para sobreviver a nossa desumanização. O fato de nós, que queremos derrubar essas fortalezas e prisões, havermos exilado essas linguagens subjetivas para a margem dos nossos encontros, congressos e organizações durante séculos não é uma coincidência. Tampouco é uma coincidência o fato de muitos dentre nós, que fomos mais marcados e privilegiados por esses séculos de violência, estarmos entre os mais articulados e habilitados a resistir aos processos culturais de desaprender esses reflexos. Espero que esse diálogo consiga não só iluminar essas contradições, mas também demonstrar que essas resistências contêm insights preciosos sobre o próprio processo de transformação e que elas podem prejudicá-lo inconscientemente. Existe um número crescente de educadores, artistas, ativistas e comunidades preocupados com o comunicídio, a violência consumista da retail-terapia, a midiatização absoluta e a militarização íntima que estamos vivendo todo dia. Mas no fundo, poucos acreditam que uma outra humanidade é possível. Participam de congressos afirmativos e inspiradores para renovar sua visão e esperança, porém retornam à violência íntima e ao autoritarismo de suas organizações, que infectam sua motivação e corroem todas as suas campanhas de resistência e seus projetos transformadores. Raramente participamos de congressos ou organizações que agendem espaço ou tempo para experimentar as técnicas e métodos necessários para ler e intervir nessa cultura ameaçadora e alienadora, ou para implementar nossa visão. Escrevo para contribuir com os diálogos nos limiares entre a cultura, a educação e a política. Mas também escrevo com o objetivo (ou, posso dizer, o subjetivo) humano prático para descobrir e aprender métodos de como recuperar a criatividade, a humanidade e a autoconfiança e de como viver coletivamente uma intervenção cultural permanente. Acredito que as linguagens artísticas – o teatro, especialmente – contêm as ferramentas mais úteis para revelar e nos distanciar
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das contradições dentro de nossas subjetividades e suas estruturas de sentimento para transformá-las, na busca por entender o coletivo. Não estou propondo que o teatro possa solucionar o mundo, nem a busca de uma nova metodologia! Tampouco proponho que a alfabetização cultural possa transformar sozinha a estética da repressão – as formas culturais que atualmente escravizam e mutilam nossa subjetividade, definem como enxergamos e sentimos, e ameaçam o próprio futuro de nosso mundo – numa estética de libertação. A luta política por uma economia solidária e uma democracia participativa é fundamental. Mas estou propondo que sem a alfabetização cultural, não podemos implementar ou sustentar nenhuma proposta política, econômica ou social. Sem querer, permanecemos como atores cúmplices, mas passivos, de dramas autoritários e violentadores, em parte porque não sabemos ‘ler e escrever’, de modo consciente e sensível, a linguagem da performance, e com isso, intervir nos teatros de opressão e injustiça para transformá-los. Sabemos que os processos coletivos são complicados pela história, os dramas do passado. Os séculos de histórias que nós revivemos e adaptamos à formação e narração do nosso eu inevitavelmente modelam nossa subjetividade, que tende a aparecer mais no que fazemos e construímos do que naquilo que falamos e escrevemos. Portanto, o domínio da palavra escrita e discursiva – em si, parte da cultura racionalista, europeia e colonizadora de conscientização – nos deixa menos alfabetizados, até ‘analfabetos’, no que se refere às linguagens e performances de nosso corpo, às emoções, aos usos do espaço e aos relacionamentos. Por isso, nós vemos menos de nós mesmos do que dramatizamos para os outros, ou menos do que podemos explicar e mudar. Essa cegueira – tão profunda nos homens, que ao longo da história têm determinado as subjetividades do poder, e têm sido determinados por elas – dificulta a empatia reflexiva, o cuidado e o diálogo, que são os reflexos subjetivos de uma humanidade solidária. Entretanto, essa cegueira – a falta de uma consciência sobre nosso eu em performance nos palcos sociais que habitamos – no palco coletivo de alfabetização cultural pode ser decodificada e sensibilizada, possibilitando a libertação de reflexos dialógicos de identificação e recodificação, e a
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cultivação de novas relações democráticas e cooperativas. Gostaria de aprofundar isso. Nós começamos a nos tornar conscientes do outro na receptividade do nosso sorriso, um convite inconsciente ao diálogo. Nossa consciência de nós mesmos como sendo diferentes de nossa mãe, no entanto, inicia no momento em que começamos a identificar e reconhecer os efeitos de nossas ações no espelho de suas reações. Assim, através dessa identificação reflexiva sobre nossa diferença, começamos a questionar e experimentar criativamente o relacionamento entre os nossos movimentos e os seus efeitos, observando e aos poucos começando a interpretar as causas em nosso mundo. Isso nos permite não só ler e imaginar os efeitos que temos sobre os outros, mas também ler, interpretar e imaginar um relacionamento entre as ações e as intenções deles. Com isso, desenvolvemos nosso senso do eu em diálogos conosco mesmos e através dos outros. Pode ser que no dia-a-dia não pensemos em nós dessa maneira, mas isso faz de todo espaço que imaginamos e em que entramos um palco dialógico de performance interativa, observação focada e reflexão crítica. Nesse sentido, o ser humano é inerentemente teatral. Nós fazemos teatro para nós e para os outros para nos tornarmos seres sociais. Para começar, sentimos e imaginamos que o mundo inteiro é o nosso palco ou que a nossa subjetividade é todo o mundo. Conforme começamos a reconhecer que outros eus existem, descobrimos que nosso mundo é apenas um dos palcos compartilhados que interage com infinitos outros no mundo. Aprendemos inicialmente que devemos viver nossos desejos em relação às convenções do drama do lar. Mas conforme nossa experiência se estende e é interpretada – de dentro da fome e do prazer, atravessando do limiar da pele para o drama do sexo, da família, da escola, do trabalho, da comunidade, da região, da nacionalidade e (agora, com a globalização) do continente e do mundo – essa primeira identidade é reinterpretada para garantir que aprendamos a viver nossos desejos de acordo com as leis da propriedade privada e suas convenções dramáticas, de competição, conflito e desidentificação. Numa rede de palcos sociais interligados, estudamos e ensaiamos os papéis e os modos
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de interpretá-los para nos formar como atores com personagens apropriados para atuar nesse teatro (de alienação) do Estado. Nos é permitido brincar com esses papéis, até experimentar com papéis críticos, para atualizá-los nesse teatro estatal, contanto que não o enfraqueça ou revolucione. A transição ao nosso primeiro drama dialógico empático (de estruturas humanizadoras) forma nosso inconsciente político. A transição ao nosso segundo drama alienador competitivo (de estruturas desumanizadoras) forma a política de nossa criatividade. Esses dois processos de humanização (perder nosso mundo para descobrir nosso palco) e desumanização (atravessar o limite do nosso palco para entrar no teatro do Estado) estruturam a política de nossa imaginação. A forma como atravessamos e passamos por esses processos não só moldará profundamente nossa capacidade para com o mundo, como também de intervir em nossa subjetividade determinada para entrar no palco transformador da autodeterminação. Como não somos educados para nos entendermos ou entender o mundo nesses termos performativos, nossa consciência performativa é intuitiva e não analítica, proposital ou solidária, e tem que ser colonizada e recolonizada, de novo e novamente, para interromper os reflexos dialógicos e empáticos de identificação que vivem nos labirintos de nosso inconsciente político. Mas essa solidariedade dialógica existe como uma base de conhecimento, gravada nos limites de nossa subjetividade, intimamente ligada aos processos de aprendizagem de humanização e desumanização. Esse conhecimento psicossocial, e o modo como ele se manifesta no dia-a-dia de nossa expressão sociocultural, precisa tornar-se consciente, para entrarmos no processo de autodeterminação. Chamo esse processo da autoconscientização performativa de alfabetização cultural. Precisamos reconhecer que a ausência dessa alfabetização cultural gera consequências íntimas, com profundas implicações sociais e políticas. Até que ponto preferimos olhar para as injustiças socioeconômicas ‘externas’ porque é insuportável e aterrorizador olhar para as suas sequelas da desidentificação em nossas vidas íntimas, muitas das quais não sabemos nomear, interpretar e trans-
Museu de Transformance: fragmentos do mosaico artístico-pedagógico Terra é Vida criado através de autopesquisa dialógica e produção coletiva numa escola aberta agroecológica inteira (2000-03, Santa Catarina)
Necessitamos de um novo paradigma de educação que nos permita responder ao maior desafio de nossos tempos: desenvolver a capacidade de transformar nossas casas, nossas ruas, nossos locais de trabalho e nossas organizações em palcos comunitários e democráticos, e assim encenar uma nova humanidade cooperativa. Para começar a desenvolver essa capacidade, temos que entender a relação que existe entre saber ler nossos relacionamentos para cuidar dos outros e saber nos ler para cuidar de nós mesmos: saber cuidar de nosso mundo. Eu não abandonei a possibilidade de poder cortar azulejos com a minha mão esquerda. Todos os jovens batalharam com
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formar? Quanto tempo nós dedicamos para refletir sobre como as barricadas e fortalezas de classe, gênero, raça e geração em que vivemos se fundiram ou se trancaram em conflito, determinando as maneiras como raciocinamos, atuamos, tomamos decisões ou interagimos? Até que ponto as histórias que herdamos ou gravamos inconscientemente em nossos corpos são capazes de se tornarem reflexos culturais, que impedem nossas próprias tentativas de criar o novo? Temos que entender todos os espaços em que vivemos como palcos onde dramatizamos nossa subjetividade, participamos e moldamos o drama coletivo de interagir com outras subjetividades. Pode nos permitir não só enxergar a nós mesmos e identificar reflexivamente com outros, mas também aprender como democratizar todo espaço onde entramos e saímos e usar isso para guiar nossos processos coletivos. Quais outras ferramentas podem desenvolver a sensibilidade e o autoconhecimento para construir novas subjetividades e comunidades dialógicas, que são os nossos recursos humanos mais preciosos de transformação social?
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as torqueses. Apesar do prazer de trabalhar juntos, as dificuldades no cortar começavam a ser uma ameaça ao processo criativo. Numa manhã, no entanto, eu me vi fotografando uma das participantes enquanto ela descobria que, colocando metade da torquês além da borda do caco de azulejo, a força necessária para segurar e cortar se reduzia drasticamente. Agora todos nós estamos cortando. Em pequenos grupos. De modos diferentes, mas com cuidado. E com maior precisão. ____________________________________________
Uma manhã um jovem me procurou, no começo de uma oficina, um mês após o início do resgate da história negra da cidade. Sua camiseta propositalmente rasgada exibia uma bandeira inglesa tatuada com cores vivas em seu braço, a qual ondulava com a flexão de seus músculos ou o estalar de seus dedos. Ele provavelmente usava uma cueca com o desenho da bandeira inglesa. Chamou-me ao fundo da sala, olhou para baixo e murmurou: Quero sair do projeto. Eu fiquei atônito. Depois de todo o nosso trabalho de base na sua experiência familiar e comunitária. Esperei. Enfim, era isso. Aí eu perguntei por quê. Porque sim. O que você quer dizer com porque sim? Olha, se estamos fazendo alguma coisa errada, explique. Fale. Ele olhou para fora e replicou: Porque sim. Olhei para ele. Estava com os olhos fixos na janela. Eu me senti arrasado. Ele andava fugindo da escola havia muitos anos. Não via sentido em frequentar as aulas. Mas após o assassinato do jovem asiático, ele tinha escolhido participar do projeto. Não por pensar que precisasse de uma terapia, como alívio depois do que testemunhara no pátio. Ele já tinha visto gente ser esfaqueada antes e, mesmo que não tivesse, tudo em sua curta vida o havia preparado para esse assassinato. Ele tinha optado por aquilo que acreditava, seria uma oportunidade de ser reconhecido, respeitado e ouvido. Até mesmo amado...
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Fiquei imaginando se não seríamos nós o problema. Não éramos professores ou agentes sociais que trabalham com jovens. Nos orgulhávamos de sermos educadores culturais francos e diretos, que acreditam neles. Mas, mesmo assim, podíamos parecer figuras autoritárias aos seus olhos. Tentei de novo: Olha, Francis. Essa pode ser sua única chance de interferir na sua educação e ser ouvido. Nós estamos trabalhando em grupos de quatro, de forma que possamos conversar uns com os outros. Ouvir um ao outro e aprender uns com os outros, como amigos. Está certo, isso toma tempo, mas como podemos ir adiante se você – Ele arriscou um olhar por debaixo dos cílios e aí desviou o olhar. Senti a tensão entre nós aumentando e disse: Tá bom. A porta está aqui. Eu sei que você deveria ficar, mas você é livre para ir. Só uma coisa – se você quiser, me conte o que você está pensando. Eu não vou te interrogar. Ninguém aqui fez isso antes e temos que aprender com o processo. Outra olhada rápida. Uma pausa. Um suspiro profundo. Eu não faço parte. Esperei. Eu não entendo – Você está vendo aquele ali? Ele indicou com a cabeça um grupo de jovens negros gingando no canto da sala. Fixou um olhar dissimulado no jovem caribenho Lawrence. Quando ele afunda e cai, cai e cai e aterra em alguma coisa chamada África. E ela é quente. E é cheia de pessoas rindo, cantando e nadando no mar. Pessoas tocando música e comendo assados e bebendo até tarde na noite. Ele olhou para a chuva na janela. Quando eu afundo, eu caio e caio e caio e caio e caio e continuo caindo. Eu nunca aterrizo, Dan. Ele acariciou sua tatuagem com um olhar distante. Tudo bem. Apagaram um de seus amigos e vocês inventaram um projeto. Mas o que é que eu tenho a ver com isto? Ele me olhou nos olhos. Ele tinha razão. A história do boxeador afro-irlandês podia cele-
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brar histórias e dar voz à fúria dos jovens dançando no canto da sala. Mas como isso poderia parecer para quem que não sabia explicar de onde vinha o sangue em seus nomes? Aqueles que nem mesmo podem dizer que o nome é deles mesmos? E como situar esse filósofo analfabeto de catorze anos, que se sentia uma merda no vazio de sua cultura? ____________________________________________
Quando me perguntam no Brasil de onde você é?, eu paro por uma fração de segundo, antes de responder. Essa pergunta está querendo saber mais do que apenas onde eu moro. Ela inicia um antigo processo de identificação, ao procurar – por mais que pareça casual – descobrir o que parece que temos ‘em comum’ e se as nossas diferenças culturais podem ameaçar essa comunidade. Está interpretando se temos quaisquer histórias vivas ou desejos cujo encontro ‘por acaso’ pode, sem saber e até sem querer, provocar um confronto perigoso no espaço onde nos encontramos. Porque as histórias e os futuros imagináveis, que juntam e dividem nações, classes, sexos, raças e gerações, são vividas por e através de indivíduos dentro das comunidades reais e imaginárias, em espaços reais e nos objetos do dia a dia. Por essa razão, nenhum lugar (e nenhum objeto dentro dele) nunca consiste somente nas três dimensões objetivas de sua forma física. Sua forma também contém as duas dimensões subjetivas e potencialmente perigosas da memória e da imaginação – suas histórias e seus futuros imagináveis – que podem ser ‘vistos’ em seus espaços, superfícies e profundidades, dependendo de quem estiver interpretando sua presença. Pode muito bem ser que essas histórias e futuros imaginados foram gravados em objetos físicos, como os círculos em pedras feitos pelo povo Guarani quando criavam e afiavam suas ferramentas na mesma costa oceânica onde estou escrevendo. Mas é o meu olhar focado – minha curiosidade, meu desejo de ver, os conhecimentos que eu trago para essa interpretação e tudo o que moldou minha receptividade – que percebe uma presença indígena na pedra. Esse olhar focado – enxergando, refletindo, interpretando – compõe o nosso poder estético transformativo. De modo claro, o poder estético é sempre moldado cultural-
Um museu comunitário, nacional, cicatrizador e transformador, o monumento 500 Anos de Resistência Índigena, construído coletivamente pelo Povo Pataxó (10m x 10m, Monte Pascoal, Bahia, 2001).
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mente, mas ele não é apenas já determinado. É formador. Nós podemos dar uma forma imaginada a algo que é invisível e real ao mesmo tempo. O teatro, mais obviamente, se baseia e depende desse poder estético que transforma o real no fictício e o fictício no real. Quanto mais as pessoas concordam em focar seu poder estético no mesmo espaço, mais poderoso se torna esse espaço estético. O povo Pataxó ‘colocou’ cordas invisíveis nos cinco arcos de seu monumento de resistência. Aqueles que não estão conscientes desse simbolismo não podem ler a presença das cordas invisíveis. Mas aqueles que interpretam o monumento através dos olhos de seus artistas podem não apenas interpretar a presença das cordas invisíveis como podem, através do seu poder estético, transformar o círculo físico definido pelos arcos num palco, num espaço estético que, em retorno, dependendo de como é focado, transforma todos os que caminham para dentro dele em ‘guerreiros’ que ‘nunca revelam os segredos de sua luta’. Simplesmente, ao imaginar o olhar de outros, procurando fora e dentro simultaneamente, qualquer um pode subir nesse palco e ser transformado. E essa transformação estética tem efeitos subjetivos, psicoemocionais que podem criar efeitos sociais e políticos reais.
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Diálogo íntimo e público Na pausa fracional em nosso diálogo público, eu leio os olhos e comportamento do meu perguntador para interpretar sua subjetividade, sua presença e como ele a usa para ler a minha, para decidir como eu vou identificar as duas histórias, a que eu herdei com o meu nome e a história que estou fazendo. Minha intuição (aquela fusão das minhas inteligências emocional, corporal, perceptiva e espacial) interpreta tudo dentro desse espaço que nós estamos focando agora através de um diálogo entre a presença um do outro, e guia o tom e a estratégia da minha voz pública. É no relacionamento entre nossos diálogos íntimos e públicos que negociamos e sobrevivemos nesse primeiro encontro intersubjetivo e intercultural. Imagino que as pessoas sempre tiveram que estar alertas ao se movimentar entre diferentes comunidades, especialmente entre comunidades com histórias vivas mal resolvidas e perigosas. Mas hoje, é assim que nos movimentamos por nossas próprias ruas e casas. É como sobrevivemos à cultura globalizante do consumo devorador que está fragmentando não somente continentes, nações e classes sociais, mas também nossas comunidades e nossas próprias famílias, transformando tudo em fortalezas, isolados pelo medo. É assim que vivemos: através das grades físicas, psicológicas e digitalizadas que separam os que empregam daqueles que trabalham, os que comem daqueles que servem, os que compram daqueles que mendigam. Hoje, não importa de onde eu sou; se não sinto e não entendo essa performance intracultural e não estou performanciente acerca de minha presença, posso muito bem provocar um confronto fatal sem querer. Essa é a estética da sobrevivência nas grandes cidades. Eu sorrio e respondo: País de Gales. Canadá. Mas agora eu moro no Brasil. À pergunta, ofereço um convite que o deixou perplexo: é uma história. A maioria daqueles que já ouviram falar do País de Gales responde: Reino Unido? A terra da princesa Diana?Sorrio novamente e pergunto: o Brasil faz parte dos EUA? Assim lhe ofereci, suavemente, uma possível ponte de solidariedade. Com o sorriso e a pergunta, convidei-o a dialogar, sinalizando com a possibilidade de uma intimidade sem perigo.
O palco intercultural do diálogo
A maioria dos brasileiros que eu conheço tem curiosidade em saber do dia-a-dia no País de Gales. Eles querem usar essa rara oportunidade para descobrir algo sobre a comida, o clima, o salário médio, as pessoas, a corrupção e a qualidade de vida na Europa, não só para conferir ou expandir seu conhecimento, mas para enxergar a si mesmos e a suas vidas através dos meus olhos. Isso faz parte de seu diálogo íntimo de identificação interna. Sendo eu o estranho, esperou-se que me identificasse. Agora que eu já o fiz, posso fazer a minha pergunta. Tão logo minha pergunta saiu dos meus lábios, um outro conjunto de diálogos íntimos internos foi ativado e, em segundos, enquanto eu agora estou aprendendo sobre a identidade da pessoa diante de mim e sobre mim mesmo, nós estamos avaliando o diálogo entre nossas duas histórias e a possibilidade de criar uma história compartilhada no futuro. Nós já focamos esse espaço entre nós num palco estético de reflexão, interpretação e performance. Agora ele está sendo refor-
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Você pode pensar que essa sensibilidade performanciente com o espaço histórico e imaginado, com nossas vozes públicas e íntimas, é uma preocupação supercautelosa de um refugiado com um passado a esconder ou um futuro para proteger, ou a insegurança exagerada de um estranho conhecendo um novo país. Talvez a minha sensibilidade tenha sido um pouco influenciada por todas essas experiências e pela minha experiência com o teatro. Mas eu diria que estou só explicitando o que se tornou habitual, até morto ou perdido em nossos relacionamentos diários de comunicação deslocada ou acelerada. Essa consciência performativa, por mais intuitiva ou profissionalizada, é a que identificamos em todos os ‘atores’ que notamos em nossas vidas, aqueles que assumem um papel ‘performático’ em um palco público ou coletivo. Ela é mais comumente experienciada e negativamente compreendida como uma timidez por estar em público, mas cada vez que abaixamos os olhos em reflexos de autodefesa nós nos afastamos (até nos excluímos) do palco coletivo do diálogo. Nós temos que desmistificar esse teatro de comunicação para entender e democratizar a performance do poder.
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mado e adaptado para incluir duas histórias diferentes e dois tipos diferentes de performance e expectativa. Num primeiro diálogo breve, nós transformamos um espaço existente em um palco complexo de ensaio simultâneo, performance interativa, espectador e auto-espectador. Pela maneira como usamos esse espaço, podemos rapidamente sentir nossa igualdade ou desigualdade. Como re-conhecemos essa primeira relação depende de como entendemos o relacionamento intercultural entre nossas histórias. Mas nesse primeiro drama interativo de identificação, resumimos nossos passados para imaginar uma série de futuros possíveis e assim criar um lugar de diálogo, de comunidade, de tomada de decisão e de concordância possíveis – mesmo que essa concordância fosse a nossa última! Se esse drama de três diálogos interativos ocorre entre duas pessoas apenas, imagine o potencial dialógico e a atividade num espaço cheio de gente!
História intracultural no diálogo íntimo
Mas e se nós herdamos histórias perdidas ou destruídas e não temos um passado para nos basear, aplicar e dividir? E se nós herdamos só as histórias coloniais, fragmentadas, confusas, contraditórias ou condenantes que criam a autodúvida, o autodesrespeito, o auto-ódio e a auto-representação apagada? Como podemos construir esse drama intercultural de identificação e comunidade? Como podemos participar da construção de um palco compartilhado, como pessoas iguais? Como é complexo construir ou mesmo preparar um palco democrático! Falamos sobre usar nosso multiculturalismo como um recurso de tolerância e igualdade. Mas será possível qualquer tipo de tolerância e igualdade sem conhecer e descolonizar as histórias que carregamos em nossa língua, nossos gestos e nossa memória corporal? Que tipo de auto-estima individual e coletiva pode ser construído a partir de uma amnésia mental e um excesso de memória emocional-corporal? É possível que um povo sem memória tenha memória? Você conhece o gesto físico do movimento rápido da mão, estalando os dedos como se fosse um chicote, expressando o pensa-
mento rápido! rápido!, ou a ameaça de apanhar? Qual história está presente nesse gesto? A ameaça internalizada e a subjugação interna de séculos de coronelismo? Uma ordem sem palavras para trabalhadores vindos de outros lugares? Quais são os legados subjetivos da cultura que esse gesto nacional grava? Ou a palavra saudades? Por que ela é tão significativa na língua brasileira? Ela carrega a presença de memórias vívidas de separação e perda de comunidade durante séculos de emigração na colonização do Brasil? Quais são seus efeitos subjetivos? Quais são os efeitos subjetivos da perda (e em alguns casos, da proibição) da língua materna sobre a capacidade de falar, de escrever e de pensar com autoconfiança? Ou o que está presente nestes reflexos culturais nacionais: come mais! come mais! (enquanto o visitante resmunga por ter comido em excesso); é cedo ainda (quando o visitante está pronto para ir embora); ou desculpa qualquer coisa (depois de oferecer uma generosidade exagerada e sem falhas)? Ou o que revelam as expressões nacionais como sofrer uma avaliação, conquistar terreno (ou uma mulher!), às ordens, e palavras de ordem? Manchas culturais de uma história autoritária, clerical ou militar? Se elas compõem parte do tecido cultural e imaginário popular do país, vivendo no íntimo da cultura política
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Professores, educadores populares, gestores culturais e artistas participam num curso de formação em ‘transformance’ durante uma ‘interação estética’ entre artista, Ponto de Cultura e comunidade (Marabá,Pará, 2009).
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e nos reflexos populares de seus povos, até que ponto moldam a própria noção e prática de transformação? Por que, numa visita a Pernambuco, um educador popular definiu o processo coletivo de construção de sua peça teatral política em termos de sofrer uma mudança? Por que sofrer? Mais uma dobra ideológica na inconsciência política do país? Não sei se a língua define os limites de nossa consciência ou do que podemos pensar de modo absoluto. Mas com certeza os patrulha. E com certeza dirige sutilmente nosso raciocínio e experiência coletiva. Quando essas expressões idiomáticas entraram na língua? Durante as invasões do Brasil? Com quem? Durante a ditadura? O que as tornou possíveis? Por que não as estudam na escola? E o que significa a expressão nacional pois é...? Ou pode ser? Gestos linguísticos de reconhecimento incerto? Interrupção indireta? Afirmação indefinida? Monumentos culturais inconscientes das histórias contraditórias do ‘povo brasileiro’? Estratégias sábias do refugiado ou imigrante, preocupado em não discordar para evitar um confronto que possa levar a um isolamento ou a uma vulnerabilidade fatal? Ou reflexos sensíveis que evitam choques de opiniões contrárias e democratizam, mesmo intuitivamente, espaços sociais. Que reflexo complexo! Pode até esconder a dificuldade de falar não, não posso, não quero, não concordo, o primeiro direito e princípio da democracia, a ferramenta mais necessária e difícil de aplicar para evitar a violação e a exploração. Que cultura popular fascinante! Distintamente latina? Camponesa? Colonizada e colonizadora? Em contraste com muitos gestos e reflexos de exclusão, dominação e culpa das culturas coloniais, essa ‘cultura popular brasileira’ continua a ser repleta de reflexos de empatia expressiva, que refletem as gerações de pobreza, sofrimento compartilhado e humildade da cultura camponesa e que é ainda atual, uma solidariedade que se manifesta, por exemplo, quando se compartilha uma geladinha ou um refri coletivo. Não quero idealizar esses reflexos, impregnados com tanta história intercultural e contraditória. Mas me parece que esta estrutura de sentimento dominante de solidariedade empática no Brasil, depois de séculos de repressão e luta, tem agora a possibilidade – se transformada numa solidarie-
É impossível saber a que ponto esses reflexos culturais refletem as culturas pré-coloniais africanas e indígenas, dado sua mistura com os reflexos culturais europeus no interculturalismo vivo na identidade e memória Roda de histórias da vida, contadas a partir corporal de quase todo de objetos íntimos, para construir um palco co- brasileiro. Mas, alfabeletivo comunitário em busca de transforma- tizados culturalmente ção sustentável (Santa Catarina, 2000-03). e descolonizados, esses reflexos de empatia e intimidade podem tornar-se recursos valiosos para o cultivo de comunidades democráticas. O fato de que eles não são valorizados como tal explica, precisamente, sua vulnerabilidade diante da cultura dominante do consumismo. Porém, temos que interpretar tais reflexos culturais dialeticamente. Também, contêm e dramatizam a presença brasileira, as experiências históricas do refugiado, do escravo e do fugitivo, com seus desejos profundos de ser aceito e não suspeito, de evitar ofender e ser ofendido, de não dizer não ou discordar, o que faz com que enfrentar e resolver as dificuldades com os outros seja quase impossível. Claro, é possível responder: qual povo ou pessoa não seria igual? Portanto, é possível que o Brasil tenha que manter sua conversa leve e sua festa multicultural rolando para não se arriscar a descobrir uma história íntima que foi deliberadamente escondida há muito tempo. Acredito que a democratização do Brasil e sua resistência popular à globalização neoliberal dependerão do cultivo de um palco dialógico no qual seus netos do estupro e do genocídio possam entrar sem vergonha, seus netos negros e mestiços possam entrar sem sonhar em ter peles brancas, e seus jovens brancos pos-
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dade reflexiva e dialógica – de transformar as instituições do Estado e se manifestar através de uma cultura política participativa.
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sam pisar sem ter que rir envergonhados eu não sei à pergunta qual é a sua história? Somente num palco intracultural e descolonizado será possível cultivar uma autoestima diversa e unificada, como preparação para entrar num palco intercultural e transformador para a América Latina – ou até formar esse palco.
Descolonizando o diálogo íntimo
Eu dei a minha resposta em público. Mas em espaços de solidariedade, cuidado e sensibilidade provada eu posso contar minhas histórias mais íntimas. Eu posso falar das fotos rachadas, rasgadas e descoloridas dos meus parentes poloneses que se refugiaram nas vilas de Gales ou apodreceram nos fornos do genocídio industrializado, deixando uma sede por justiça e um grito silencioso pelo direito de lembrar, presentes nos gestos que herdei daqueles que a tudo testemunharam indiretamente. Posso falar dos meus parentes que se refugiaram das perseguições na Rússia pré-revolucionária ingressando nos movimentos pela justiça e alfabetização no Canadá. E, cavando mais fundo ainda, eu posso contar a história de uma infância que andou na ponta dos pés ao redor de uma irmã gravemente deficiente, cuja impotência silenciosa sensibilizou e transformou seus irmãos, de modo inconsciente, em ativistas, cientistas, médicos e artistas das emoções. Mas nem sempre foi tão simples contar essas histórias íntimas. Eu aprendi a contá-las através da coragem das comunidades às quais haviam sido proposital e cruelmente recusados os direitos de lembrar ou de pensar e de falar em sua língua indígena para que não se (re)conhecessem. Eu conseguia ver nos seus olhos porque eles escondiam suas histórias íntimas e incontáveis atrás de sua raiva anticolonial, e porque eles se refugiaram de sua violência emocional e sexual nas histórias coerentes de seus murais de rua e das faixas de protesto anti-imperialista, orgulhosas e articuladas. Eles não conseguiam aguentar a agonia de serem julgados pelos seus, pelas cruéis contradições dentro de sua própria subjetividade compulsiva, e não podiam suportar a tortura de seu próprio autojulgamento. Mas aos poucos, ao longo dos anos de nossa colaboração, suas histórias íntimas inadvertidamente se tornaram metáforas
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para as minhas histórias e, vice-versa, as minhas para as deles. O palco intercultural possibilitou uma performance intracultural. E nós descobrimos um fato fascinante nessa performance: ao aprender a contar nossas histórias íntimas em público, simultaneamente tivemos que ouvir e aprender a contá-las a nós mesmos. Ao quebrar nosso silêncio num espaço íntimo de solidariedade empático-reflexiva, onde podíamos refletir analítica e criativamente – não defensiva ou ideologicamente – sobre a política de nossa subjetividade, nós conseguimos achar a voz e a coragem para quebrar nosso silêncio também num espaço de julgamento. Conforme aprendia a contar minhas histórias íntimas, reconheci como eu havia resistido algumas delas, por tanto tempo. A perseguição dos judeus e o estigma contra a deficiência mental haviam sido internalizados nos gestos e reflexos de minha família, julgamentos renovados na cultura popular da minha própria vida. Havia condenado a repressão israelense ao povo palestino e reconhecido o poder manipulador e a dependência das vítimas. Mas na medida em que eu aprendia como as vítimas de um genocídio podiam tornar-se opressores cruéis – e até se justificar através de discursos sobre os direitos humanos e o sofrimento – aprendi que precisava me conscientizar sobre o que havia internalizado em minha imunização, para evitar que em minha subjetividade se reproduzissem os meus opressores. Enquanto aprendíamos sobre a arqueologia do corpo-pensante e as contradições que definem o limiar entre a resistência e a libertação, reconheci o poder formativo da luta entre meu eu determinado e o A Polícia Militar da Bahia escavando sua história afro- eu que quis determinar. -brasileira para reconhecer e descolonizá-la através de Mesmo que eu pudesse um diálogo de dança narrativa que revisita a paisagem íntima de sua primeira casa. A formação faz parte do ignorar alguns fatos de projeto nacional segurança cidadã (Salvador, 2009-10). minha história herdada,
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a sua força emocional e psicológica continuava estruturando meus sentimentos, meus gestos e até minhas necessidades, e necessariamente tocavam e interagiam com as vidas e com as lutas por autodeterminação de outras pessoas e comunidades. Quando reconheci isso, não como uma falha mas como um fato subjetivo de minha humanidade, com seu próprio poder motivador e efeitos interculturais, reconheci minha responsabilidade – enquanto arteducador comunitário, intervindo nas vidas dos outros – e a necessidade de me alfabetizar emocional e culturalmente, para me sensibilizar no mundo.
Voz compulsiva ou dialógica?
Minha história íntima não é o assunto declarado dessa reflexão pública. Mas ela é, obviamente, uma parte de sua subjetividade. No entanto, de forma ainda mais profunda, compartilhar essa história íntima com outros é não só o modo como me reconheço nos vários palcos coletivos de minha vida. É também o modo como eu me reconheço como uma subjetividade interativa nos palcos coletivos de outros, em nossa esperança única de aprender as técnicas e práticas de uma nova subjetividade dialógica. É assim que explico o que motiva e ativa minhas ideias e solidariedade empática com qualquer pessoa ou povo, lutando para contar sua história e criar uma nova identidade. Mas também explica meu compromisso em iluminar esses efeitos subjetivos de não saber ou de negar essa história íntima, e entender seu significado na busca pela democracia e autodeterminação. As doenças emocionais e psicológicas causadas por amnésia, deslocamento cultural e falta de autoconfiança, autoestima, autoconhecimento e autoaceitação não só obscurecem e mascaram a necessidade de afirmação que tranca, dialeticamente, a vítima e o violador no ciclo codependente abusivo que caracteriza todos os relacionamentos autoritários. Também negam a possibilidade de interromper esse ciclo e explicam o gestor e ativista compulsivo: sua dificuldade em dizer não; seu desejo de procurar por (sua própria) justiça no centro do palco nas vidas dos outros; sua tendência de assumir responsabilidade excessiva; sua dificuldade em organizar o tempo; seu choro impla-
Democratizando o palco de fazer história
Se a nossa capacidade de narrar e contar histórias surge de nossa necessidade de organizar e dar o sentido de nossa experiência ao mundo, como nós narramos e contamos nossa história depende de quem nós somos, do lugar a que pertencemos e das histórias que ouvimos ou deixamos de ouvir. Não significa que sabemos como contar nossa história, ou quando e onde ela começa, nem se a contamos de uma forma que ela supra nossa necessidade. Talvez isso explique a fascinação compulsiva em tantas pessoas de ouvir
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cável de (auto) acusação e a consequente inabilidade em ouvir; e sua dificuldade crônica de perceber como o pessoal está presente em sua (e toda) interpretação do mundo, o que caracteriza todas as culturas vítimas. Claro, a inexperiência em gerenciar e coordenar tempo, responsabilidade e recursos – justamente, o propósito do colonialismo – exacerba essas dificuldades. Mas esses fatores objetivos tendem a ser definidos como as principais causas da violência autoritária na cultura vítima, para racionalizar uma gestão surda e compulsiva. Um reflexo compreensível, mas revelador, de culpar em vez de reconhecer a possibilidade intolerável da cumplicidade íntima com qualquer sofrimento contínuo. Esse é o elo fundamental entre o (saber) contar histórias e a autodeterminação, para o coordenador e o participante. Esse elo me guia quando estou incerto sobre como interpretar uma cultura que não é a minha, ou qualquer indivíduo com quem eu esteja colaborando: será que eu, um ‘estranho’, tenho o direito de participar nas lutas de outros? A incerteza não é menos presente ou relevante em minha própria cultura ou comunidade. Nós somos todos ‘estranhos’ para os outros, portanto, é somente através do diálogo com o outro, na frente de uma plateia (real ou imaginária), que podemos nos conhecer. Mesmo direta e indiretamente, as lutas dos outros e a nossa luta se implicam, de forma inevitável. Mas a pergunta é fundamental! Ela transforma o desejo autoritário de ‘conscientizar’ os outros em autodúvida necessária que gera a curiosidade para ouvir e questionar permanentemente. E garante um aprendizado dialógico contínuo.
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outras histórias. Seja qual for a forma como contamos nossa história – se temos que emprestar maneiras ou técnicas de outros contadores de história para contá-la ou se temos que levá-la para outro tempo e lugar para contá-la, se temos que contá-la nas margens ou silêncios das histórias de outras pessoas, se temos que escondê-la na narrativa de outras pessoas ou mesmo entre os dentes em seus sorrisos, se temos que mentir e enganar para contá-la ou distorcê-la quase além do reconhecível para combiná-la com o mundo –, o fato é que temos que contá-la, ao menos para nós mesmos. Porque é contando histórias que tentamos nos conhecer e reconhecer. Poderíamos dizer que é no contar histórias que a história do
Museu íntimo: diálogos num quintal de cultura entre arteducadores populares, bisavôs e uma geração em risco, resgatando a memória coletiva musical para criar uma cultura dialógica e estética de transformação sustentável (Cabelo Seco, Marabá, Pará, 2010).
mundo é revelada em nossas ações, ou que são nossas histórias íntimas que nos permitem esclarecer nossa parte e responsabilidade nas histórias compartilhadas que fazemos. Poderíamos dizer que contar histórias é o ato de fechar uma história para permitir que outra comece, ou o ato de manter uma história aberta e incompleta para estendê-la para o futuro. Independente de como escolhemos defini-lo, o ato de contar histórias é muito mais do que o mero contar de histórias. É uma intervenção numa história viva compartilhada – de inúmeras intervenções anteriores e simultâneas – que contribui para a definição do presente e o fazer do futuro, e explica porque o contar de histórias e o controle do poder de contar histórias – seu modo de afetar e definir– são tão fortemente contestados e controlados. Se o contar histórias é um ato de ‘dar sentido’, atra-
Todo mundo pra fora! Pra fora! Deixamos nossas sacolas nas mesas e saímos da sala. Agora façam fila e entrem ordenadamente. Nós entramos, aterrorizados por esse jovem professor, que não tinha apelido. Como podíamos saber o que esperar ou como nos defender? Esse é o poder que eu tenho. Eu nunca quero usá-lo. Meu nome é Turnbull. Mas gostaria que vocês me chamassem de Ian. Combinado? Nós concordamos com a cabeça. Agora vamos formar um círculo com essas mesas. Eu ajudo. O som de mesas arrastando no chão de madeira. Ian abriu as janelas e fechou as cortinas. Nós sentamos em círculo. Agora peguem qualquer coisa onde escrever e qualquer coisa com o que escrever. Ian colocou o lixo no meio da sala e encheu-o de jornais que ele amassou com as mãos. Ele colocou uma jarra grande de água do lado do lixo. Nossa surpresa e curiosidade aumentaram. Eu quero que vocês olhem, cheirem, ouçam e sintam. Quando eu falar, vocês podem pegar suas canetas. OK? Concordamos. Ele pôs fogo no jornal e se afastou. Em segundos, chamas saíam do lixo e iluminavam um círculo de rostos de trinta
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vés do fazer de uma história pela primeira vez ou fazendo diferente da última vez, por que não é reconhecida como o fazer de histórias? É para nos convencer de que somos apenas contadores ou ouvidores? Que deveríamos nos submeter e investir nos reconhecidos fazedores de histórias? Por esse motivo, entender o poder dialógico de historiar e o modo como o praticamos tem que se tornar uma parte essencial de nossa sensibilidade humana à compreensão da performance da democracia. Nós podemos julgar a nós mesmos, a qualquer movimento, governo ou país, pela amplitude com que o poder e as técnicas de historiar são entendidos, compartilhados e democratizados, na prática. Podemos assim, dialogar no palco coletivo da autodeterminação. ____________________________________________
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crianças. Conforme a fumaça ia ficando preta, ele botava água no fogo. Ele correu para abrir as cortinas, e disse: agora escrevam! Tudo que vocês lembrarem. Tudo! Por cinco minutos, nós escrevemos. Ninguém levantou a cabeça. Parem onde estão e passem o que vocês escreveram para a esquerda. Nós ouvimos trinta poemas incompletos. Cada um era diferente. Cada um acendeu nossa imaginação e aqueceu nossa autoconfiança. Olhamos em choque para amigos que nunca haviam falado uma palavra. Ouvimos nossas próprias palavras nas bocas e aplausos de outros. Nós éramos poetas! No dia seguinte Ian recebeu um aviso. Ele não modificou a sua maneira de trabalhar e nós o amamos por sua coragem. No final do semestre, marchamos em volta do pátio da escola, de shorts, com faixas Ian deve ficar! – iguais como aquelas que havíamos visto nas manifestações pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, na TV. Ele foi despedido.
Bibliografia selecionada BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination. Texas: Texas University Press, 1983. BARON, Dan. Alfabetização cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio, 2004.
BHARUCHA, Rustom. Theatre and the World: performance and the politics of culture. Londres: Routledge, 1993.
BOAL, Augusto. Arco-Íris do desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Rio de Janeiro: Editora, 2001.
FANON, Franz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Grall, 1979.
FROMM, Erich. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Guanabara, 1983.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000. THIONG’O, Ngugi Wa. Decolonising the mind. London: Currey/ Heinemann, 1984.
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FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo: Martins Fontes: 2000.
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Neide Köhler Schulte1 Luciana Dornbusch Lopes2 Lucas da Rosa3 Janaina Ramos Marcos4 Ilma Godoy5
1. Introdução Reciclar, reutilizar, reaproveitar e customizar são conceitos cada vez mais presentes no cotidiano dos profissionais envolvidos com o mundo da moda, e que, de certa forma, estão presentes também em toda a sociedade. Além disso, os consumidores de diversas esferas sociais no Brasil estão se preocupando com o que utilizam, levando em consideração em sua decisão de compra, questões socioambientais. A humanidade está vivenciando momentos de grandes mudanças climáticas, que geram incontáveis prejuízos, além da degradação do planeta em função do grande acúmulo de resíduos e poluentes. Todos esses fatores vêm dificultando a vida no planeta Terra. O designer destes novos tempos, além de possuir a tarefa de criar coleções “vendáveis” e imagens do que poderá ser usado nas próximas estações, gradativamente precisa conscientizar seus clientes e consumidores acerca da gravidade dos impactos ambientais causados pelo consumismo na atualidade. Segundo Papanek (1997, p.14), o (...) designer tem sido sempre (...) um professor, estando em posição de informar e influenciar o cliente. Com a atual confusão ambiental é ainda mais importante que ajudemos a orientar a intervenção do design, de modo que
1 Neide Köhler Schulte é professora do Curso de Moda no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – Ceart-Udesc. 2 Luciana Dornbusch Lopes é professora do Curso de Moda no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – Ceart-Udesc. 3 Lucas da Rosa é professor do Curso de Moda no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – Ceart-Udesc. 4 Janaina Ramos Marcos é mestranda em Design no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – Ceart-Udesc. 5 Ilma Godoy é professora do SENAC Florianópolis.
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EcoModa: Coleção Primavera Silenciosa
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seja natural e humana. Temos de alargar nossas próprias áreas de conhecimento e, simultaneamente, reorientar os nossos modos de trabalhar.
O programa Ecomoda UDESC surgiu em 2004, a partir do convite feito por Marly Winckler, presidente da SVB – Sociedade Vegetariana Brasileira – organizadora do 36° Congresso Mundial de Vegetarianismo. Para participar do evento com um desfile, foi desenvolvido o projeto de extensão “Coleção de Moda para o 1° Veg Fashion”, coordenado pelos professores Lucas da Rosa e Neide Schulte. O evento foi realizado em Florianópolis, no Hotel Resort Costão do Santinho, no período de 08 a 12 de novembro de 2004. Desde então o Programa Ecomoda vem se destacando através de seus projetos, como um grande difusor dos conceitos de produção ecológica e sustentável, além do consumo consciente. O presente artigo pretende relatar uma das experiências de trabalho do Programa de Extensão EcoModa Udes, a Coleção Primavera Silenciosa, apresentada em novembro de 2010, na Università degli Studi di Firenze, Itália e em maio de 2011, no V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs, em Florianópolis. É uma amostra do que se desenvolve no Programa EcoModa a partir dos conceitos que norteiam as atividades: produção e consumo conscientes para um desenvolvimento socioambiental sustentável.
2. Ecodesign e sustentabilidade ambiental 2.1. Ecodesign
Segundo Traversim (2005, p. 1), o termo ecodesign: é uma junção entre a palavra grega “eco”, que significa “casa”, e a palavra inglesa “design”, que quer dizer “planejar, desenhar”. Resumindo, o ecodesign propõe um casamento entre a natureza e a tecnologia, tendo a ecologia como base. Os materiais devem ser escolhidos levando em consideração sua toxicidade, abundância na natureza e possibilidade de regeneração ou reciclagem. Como a moda é uma das indústrias de maior alcance nas camadas sociais e também a que tem um dos maiores índices de poluição em
2.2. Sustentabilidade ambiental
O conceito de sustentabilidade ambiental foi criado no início da década de 1970, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, para sugerir que era possível conseguir o crescimento econômico e a industrialização sem destruir o meio ambiente. O modelo proposto para o desenvolvimento sustentável foi uma tentativa para harmonizar o desenvolvimento humano com os limites da natureza. Na visão de Vezzoli (2005, p.27), as ações humanas para serem consideradas sustentáveis devem atender aos seguintes requisitos: a) basear-se fundamentalmente em recursos renováveis e, ao mesmo tempo, otimizar o emprego dos recursos não renováveis (compreendidos como ar, água e o território); b) não acumular lixo que o ecossistema não seja capaz de reutilizar (isto é, fazer retornar as substâncias minerais orgânicas, e, não menos importante, as suas concentrações originais); c) agir de modo com que cada indivíduo e cada comunidade das sociedades “ricas” permaneça nos limites de seu espaço ambiental, bem como que cada indivíduo e cada comunidade das sociedades “pobres” possa efetivamente gozar do espaço ambiental ao qual potencialmente tem direito. O grande interesse pela questão ambiental em encontros, trabalhos acadêmicos e reuniões envolvendo nações de todo o mundo demonstra uma crescente preocupação na utilização dos recursos da Terra, no entanto, apesar de todo o reconhecimento da importância de um desenvolvimento compatível com os ciclos naturais, caminha-se para um futuro que desafia qualquer noção de desenvolvimento sustentável, e de respeito à natureza. A humanidade ainda não está ficando sem recursos naturais “in natura” no sentido literal da palavra. Mas está reduzindo as opções de extrair, conservar e utilizar, o que se tem disponível, de uma maneira menos agressiva e menos poluente para o meio ambiente, visto que a
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toda sua cadeia produtiva, os designers de moda precisam considerar os impactos ambientais em suas criações em todo processo produtivo, utilizando tecidos ecológicos, abolindo os sintéticos e as peles. Os consumidores estão buscando cada vez mais por inovações e por produtos menos poluentes.
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natureza já demonstra a incapacidade em absorver os impactos contínuos no acúmulo de resíduos no planeta.
3. Coleção Primavera Silenciosa por EcoModa 3.1. Tema da Coleção
Partindo dos conceitos de ecodesign e sustentabilidade ambiental, a coleção “Primavera Silenciosa” homenageia a bióloga Rachel Carson, considerada pelo jornal britânico The Guardian, em 2006, como a pessoa que mais contribuiu para a defesa do meio ambiente natural em todos os tempos. Com sua obra “Primavera Silenciosa”, publicada em 1962, Carson inicia uma verdadeira revolução em defesa do meio ambiente natural, desencadeando investigações sobre os danos dos inseticidas e outros produtos químicos à saúde humana e para as demais formas de vida. Contudo, a indústria química multimilionária gastou milhares de dólares para difamar sua pesquisa e seu caráter. Por ser cientista, sem doutorado, mulher, amante de pássaros e coelhos, ter gatos, ser solteira aos 54 anos, foi considerada uma histérica cuja visão alarmista do futuro podia ser ignorada ou, caso necessário, silenciada. Figura 1 – Rachel Carson – Fonte: http://clinton2.nara.gov/ WH/EOP/OVP/24hours/carson.html
Rachel, ao mesmo tempo, lutava contra um inimigo mais poderoso do que a indignação das corporações: um câncer no seio que evoluiu rapidamente para uma metástase. Ela deixou o alerta de que “a humanidade parece estar se envolvendo cada vez mais em experiências de destruição de si própria e de seu mundo”.
3.2. Processo criativo e produtivo
Com a colaboração de alunos da Udesc, alguns já graduados pela instituição, outros graduandos, além de professores e a parcerias com fornecedores, a coleção “Primavera Silenciosa” foi desenvolvida como
Figura 2 – Looks da Coleção Primavera Silenciosa – Fonte: arquivo pessoal
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uma proposta para se repensar o sistema da moda diante da emergência por um modo de vida ambientalmente mais sustentável. Foram pesquisados materiais com menor impacto ambiental, como os tecidos orgânicos, reciclados e reaproveitados. Também foram utilizados produtos da cultura local como as rendas de bilro e os acessórios feitos por artesãos. Além disso, buscou-se trabalhar com uma estética menos efêmera, mais atemporal, para que as roupas sejam usadas por mais tempo, não sujeitas à moda passageira. O Ipê, uma árvore da mata atlântica brasileira, que floresce durante os meses de agosto e setembro, geralmente com a planta totalmente despida da folhagem, cujos frutos amadurecem a partir de setembro a meados de outubro, é o tema escolhido para criação da coleção “Primavera Silenciosa”. Os estágios de transformação do Ipê durante o ano: no inverno, folhas e galhos secos, parecendo estar sem vida, então renasce na primavera com suas flores brancas, amarelas, rosas e roxas, e no verão, o verde exuberante das folhas e o marrom do troco harmonizam o calor entre o céu e a terra, inspiraram a estrutura da coleção “Primavera Silenciosa” que apresenta peças com formas básicas, baseadas na alfaiataria. Uma roupa feita para sair da passarela e ser usada por uma mulher consciente com o mundo que a cerca, que se veste bem e prima pela qualidade.
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3.3. Apresentação da coleção em Firenze e no Enapegs, em Florianópolis Em Firenze, no Palazzo Medici, no dia 12 de novembro, foi apresentado pela coordenadora Neide Schulte o Programa de Extensão EcoModa Udesc. Durante a apresentação, mostrou-se todo processo de criação e execução da coleção “Primavera Silenciosa”, desde a escolha do tema - uma homenagem à bióloga Rachel Carson; as referências - o Ipê com suas fases: seco, floração e verde; a escolha dos materiais – o algodão reciclado da Eco Simple, o algodão orgânico da Justa Trama, as rendas de bilro de Zéllia dos Santos; até o uso de sementes nas bijuterias desenvolvidas por Andréa Alves, os chapéus artesanais de Yone Vecchi, as carteiras de retalhos de Isabel Possidônio e os sapatos forrados com algodão reciclado pela empresa Raphaella Booz. Figura 3 – Apresentação em Firenze – Fonte: arquivo pessoal
O projeto também contou com a participação das professoras Luciana D. Lopes, Aparecida Mª Battisti e Carolina Carioni, das alunas Janaína Figueiredo, Janaina Ramos, Leah Varella, Salete Boschi, Ismael Farinon e, demais professores e alunos do curso de Moda e Design que contribuíram para a realização desse trabalho. A coleção Primavera Silenciosa também foi apresentada em forma de palestra, exposição e desfile técnico, em maio de 2011, no V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs, em Florianópolis. Durante a apresentação do trabalho, houve interação com os participantes do evento, que expuseram comentários sobre o Programa Ecomoda e citaram exemplos de trabalhos realizados em outras regiões do Brasil.
3.4 Comunicação e divulgação Para divulgar o conhecimento e as atividades do Programa Ecomoda, optou-se por utilizar a internet e as redes sociais, por atingir uma quantidade maior de pessoas e ser, de certa forma, “ecológico” e eficaz. Para isso, foi criado um site, com administração em formato Blog, onde periodicamente são inseridos artigos, dicas, divulgação de eventos e produção de conteúdos ligados à sustentabilidade e à moda ecológica. Além do site Ecomoda, foram criados perfis nas principais redes sociais (Facebook, Youtube, Flickr, twitter), criados assim vários canais e interfaces de comunicação, divulgando as ações e atividades em tempo real.
4. Conclusão
A partir da apresentação da coleção Primavera Silenciosa na Itália e no V Enapegs, pode-se verificar o crescente interesse do público, tanto europeu, quanto brasileiro, no sentido de se criar e consumir uma moda ecologicamente e socialmente responsável. No Brasil, o produto ecológico ainda é mais caro em relação ao produto “comum”, o que torna sua inserção no mercado acessível apenas para determinados segmentos de mercado, deixando grande parte da população, principalmente a socialmente desfavorecida, consumindo grandes quantidades de produtos poluentes, aumentando ainda mais o problema do descarte de resíduos. É neste contexto que o Programa Ecomoda surgiu, como uma alFigura 5 – Tela inicial Site Ecomoda ternativa e contraponto a esta indúsFonte: ecomoda.ceart.udesc.br
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Figura 4: Desfile Ecomoda no V Enapegs Fotografia: Eduardo Trauer | etrauer.com
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tria poluidora, incentivando e criando uma moda inovadora, moderna e acima de tudo, que respeita o meio ambiente. O programa está estabelecendo parcerias com organizações públicas e privadas para formalização do Instituto Ecomoda de criação, difusão e disseminação de moda ecológica. Uma organização que pretende oferecer cursos de capacitação em moda para mulheres oriundas de comunidades da grande Florianópolis, divulgar e apoiar produtos de designers locais que trabalham com moda sustentável, promover encontros e palestras, e acima de tudo, oferecer produtos criativos para consumidores exigentes e conscientes de que o futuro se constrói no presente, e que é necessário agir neste presente, para termos algum futuro neste planeta.
Referências
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MARCOS, J. R. Sobre Sustentabilidade, Ecodesign e o Planeta – Apresentação do Projeto Limonada. Graduação em Design. Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. (Trabalho de conclusão de curso). PAPANEK, V. Arquitetura e design: ecologia e ética. Lisboa: Ed.70, 1997.
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SCHULTE, N. K..; LOPES, L. D. Sustentabilidade ambiental: um desafio para a moda. Actas de Deseño n° 9, ano 5, Univesidad de Palermo, Julio 2010, Buenos Aires, Argentina.
TRAVERSIM, L. IETEC - Instituto de Educação Tecnológica, 2005. Apresenta textos sobre ecodesign. Disponível em: <http://www.ietec.com.br/ietec/ cursos/area_meio_ambiente/2005/08/05/2005_08_05_0001.2xt/materia_ gestao/2005_08_05_0190.2xt/dtml_boletim_interna>. Acesso em:31 jan. 2011. VEZZOLI, C.; MANZINI, É. O desenvolvimento de produtos sustentáveis: os requisitos ambientais dos produtos industriais. São Paulo: EDUSP, 2005.
Parte III | Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Revivendo o Enapegs 341
Alessandra Debone de Sousa1 Eduardo Trauer2 Ives Romero Tavares do Nascimento3
Falar sobre o Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social - Enapegs, que se renova e atrai pesquisadores, estudantes e demais envolvidos com a gestão social todos os anos, desde 2007, é tarefa difícil. Difícil porque envolve expectativas, ora realizadas, ora frustradas, sonhos sonhados em conjunto e uma larga integração entre aqueles que desejam construir, com a comunidade brasileira, caminhos alternativos para uma sociedade mais justa e igualitária. Se lembrarmos das edições já realizadas até aqui (em Juazeiro do Norte/CE, Palmas/TO, Petrolina/PE e Juazeiro/BA, Lavras/MG e Florianópolis/SC), podemos trazer à memória momentos em que se buscou propiciar aos interessados pela gestão social um espaço de socialização. Não apenas de apresentação de suas produções científicas, também um ambiente - ainda que itinerante - no qual as pessoas pudessem encontrar-se e compartilhar experiências, saberes e conhecimentos.
Essa construção é pensada por cada anfitrião de maneira
1 Alessandra Debone de Sousa é graduanda em Administração Pública pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), bolsista de iniciação científica junto ao grupo Politeia e presidente do Centro Acadêmico V de Julho. Foi bolsista de extensão no V Enapegs. 2 Eduardo Trauer é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC) e autor das fotos deste texto. Mestre em Marketing Interativo e Realidade Virtual pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
3 Ives Romero Tavares do Nascimento é mestrando em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduado em Direito pela Universidade Regional do Cariri e em Administração pela Universidade Federal do Ceará (UFC) – Campus Cariri.
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O V Enapegs: entre fatos e fotos
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única, ao mesmo tempo integrada a uma linha evolutiva, guiada pela Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS).
A quinta edição do Enapegs foi coordenada pela professora Paula Chies Schommer, em conjunto com diversos integrantes da Rede, com acadêmicos e professores da Universidade do Estado de Santa Catarina, que sediou o evento, e instituições de todas as partes do país. Sua construção envolveu um longo e prazeroso processo que começou em 2010, quando um grupo de colegas da RGS definiu princípios que norteariam o trabalho: a) Circularidade - que o próprio evento constitua espaço de experiência e experimentação metodológica na forma como é construído e nas reflexões que promove; b) Diversidade - de formatos, de áreas do conhecimento científico e não científico, de organizações, de regiões e de pessoas participantes; c) Diálogo e dialógica – abertura de possibilidades de interação com linguagens diferenciadas, como arte, teatro, “contação” de histórias; d) Interdependência – estabelecendo conexões em rede e atentando para o movimento que nos une; e) Incerteza – movimento de refletir, ao nos relacionarmos com o conhecimento, com o pensamento, com o outro, considerando as nossas pressuposições como uma dentre tantas outras possibilidades existentes – conhecidas e a conhecer. Suspensão dos estados de “certezas”. Ampliação do processo de aprendizagem; f ) “Inclusividade” – capacidade de sustentar a tensão ao lidar com a diversidade, nos temas, posturas, conhecimentos que pareçam contraditórios, divergentes, incluindo-os. Enriquecendo o diálogo, as perspectivas de gerar novas percepções, novos olhares. Imaginou-se um Enapegs diferente: um evento menor e mais integrativo.
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Menor porque não assumiria a função de discussão de toda a gama de produção científica em gestão social (apenas alguns eixos temáticos abriram chamadas de trabalhos). Integrativo, visto que seu formato foi imaginado para dar espaço às pessoas para conversarem e colocarem em pauta suas necessidades, seus projetos e suas intenções para o futuro da gestão social. Esse formato idealmente reduzido do Enapegs não o fez menor que as edições anteriores. Pessoas de mais de 97 cidades brasileiras e de todas as regiões do país, juntamente com a comissão científica que ora atuava em Florianópolis, ora em Salvador, fizeram com que a quinta edição contabilizasse 190 submissões de trabalhos (artigos, artigos de iniciação científica e relatos de prática), 94 deles selecionados para apresentação e publicação. Além da característica científica do Enapegs, estamos falando de um evento que proporciona aos seus participantes um contato com as diversas paisagens brasileiras. Em Juazeiro do Norte, por exemplo, foi revelada parte da riqueza cultural do Cariri cearense. Palmas mostrou um pouco da abundância do Norte brasileiro, ao passo em que Petrolina e Juazeiro exemplificaram como o sertão produz frutas para exportação e muitos outros produtos. Na cidade de Lavras, o frio do sul mineiro mostrou como o Sudeste pode ter clima ameno e caloroso quando recebe visitantes. Em Florianópolis, foi possível notar todo o seu potencial de cidade turística com praias e dunas, além do clima serrano que o Morro da Lagoa da Conceição proporciona. Nesta derradeira edição, tivemos momentos divididos entre salas e jardins do Recanto Champagnat, um antigo mosteiro em meio à natureza que proporcionou aos participantes um ar
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de isolamento em relação às atribulações cotidianas, ao mesmo tempo em que propiciou conexão com a natureza e os pares. Os participantes puderam mergulhar nas discussões que nortearam o V Enapegs e também caminhar até um dos mirantes e apreciar a bela vista de parte da Ilha da Magia, que presenteou a todos com três belos dias de sol de outono. Os momentos de integração foram muitos. Além das oficinas, os intervalos para café, que, apesar de comuns em todos os eventos, tiveram um ar diferenciado por serem em meio à exuberância da natureza no local. A atividade de abertura do evento, conduzida por Vivina Machado, e o lançamento de livros com música ao vivo e vinho fomentaram espaços de troca e confraternização. No decorrer da programação, outro diferencial foi o desfile técnico do Projeto Ecomoda, do Centro de Artes da Udesc, usando roupas produzidas a partir de material reciclado. Além das apresentações teatrais da cultura local, oficinas diversas e atividades que permitiram experimentar metodologias integrativas de gestão social. Foi igualmente marcante a presença da fotografia, captando e revelando em imagens o espírito do evento, algumas delas apresentadas aqui. A participação de pessoas de diferentes regiões brasileiras foi importante para o compartilhar de ideias e culturas. Nos corredores do antigo mosteiro, podia-se ouvir todas as regionalidades brasileiras em seus sotaques e expressões, além da presença do pesquisador chileno Pablo Monje Reyes, que participou de várias atividades e trouxe enriquecedora contribuição para a construção da Gestão Social enquanto campo e, assim, para o relacionamento do Brasil com os países vizinhos. Em meio à diversidade, todos estavam atentos à temática da Gestão Social como Caminho para a Redefinição da Esfera
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Pública e, com suas singularidades, contribuíram para um debate construtivo em torno desse tema central. Finalizando este texto conjunto sobre o Enapegs, expressamos o ponto de vista singular de dois dos coautores, como pesquisadores iniciantes no campo da gestão social que se engajaram integralmente na construção do Enapegs - Ives e Alessandra. Ives: Em meio a tudo o que o V Enapegs ofereceu e representou para os participantes, é justo colocar aqui nossa experiência pessoal na construção deste evento. Em primeiro lugar, o sentimento que transborda é o de pertencimento. Pertencimento a um grupo de pesquisadores que são, acima de tudo, amigos. E esses amigos instigam uns aos outros a estudar, a pesquisar e a trabalhar em prol da construção de uma Gestão Social mais sólida. É aí que o Enapegs aparece. Fazendo uma análise temporal, cremos que a primeira edição, em Juazeiro do Norte, foi a energia de ativação para o estabelecimento da Rede de Pesquisadores em Gestão Social, que nos aproximou no sentido de levar o Enapegs adiante. Já na sua quinta edição, o evento contou com momentos marcantes durante toda a sua organização. Sentir um evento é muito mais que fazê-lo acontecer. Organizar um Enapegs é, antes de tudo, uma doação pessoal. Significa que você vai dedicar-se exaustivamente na articulação de recursos e pessoas para que o que foi pensado aconteça, mas, para nós, traduz também uma realização pessoal no sentido de ver acontecer um projeto de vida. E esse projeto, a cada ano, ganha maiores proporções e nos faz saber que o papel dos gestores sociais também se materializa ao se promover esses espaços de discussão. Podemos ainda falar sob o prisma das perspectivas. Mas
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quais? Colocando-nos no posto de cidadãos, antes de tudo, ficamos felizes em contribuir com uma prática que abre espaço para a discussão, o diálogo e a reflexão sobre os assuntos em pauta no cenário nacional, como a edição de 2011. Foi prazeroso auxiliar um evento que permitiu a intensa discussão, por três dias, da gestão social e a redefinição da esfera pública. Em termos acadêmicos, a nós foi dada a chance de trabalhar com pesquisadores e estudantes das mais diversas instituições do país, fazendo-nos ter contato direto com o sistema de submissão e avaliação dos trabalhos apresentados no V Enapegs (artigos e relatos de experiência). Esta experiência contribuiu para nosso crescimento profissional e certamente nos tornou aptos a transferir essa mesma experiência para aqueles que futuramente se integrarão à equipe. Finda a preparação, chega a hora de ver o Enapegs acontecer, de vivê-lo. Não somente as palestras, as apresentações de trabalho e as discussões de cada Eixo, mas sim conhecer pessoalmente aqueles que por muito tempo não passavam de letras
frias dispostas em um corpo de e-mail. Foi muito gratificante, para nós, poder ouvir: “prazer em finalmente conhecer você!”, ou “que bom poder conhecer você pessoalmente!”, e ainda “não esperava ficar tão feliz em conhecê-lo!”. Isso gerou uma carga
Alessandra: O V Enapegs foi uma experiência profissional, pessoal e acadêmica incrível. Acadêmica, pelo nível de conhecimento adquirido acerca do tema gestão social. Profissional, pela experiência na organização de um evento que abriu diversas portas para trabalhos futuros. E, principalmente, pessoal, pois os princípios do V Enapegs estiveram tão presentes na organização do evento que acabaram por refletir-se nas atitudes de cada membro. Em cada e-mail respondido, em cada contato com membros da comissão, sempre se buscou a inclusividade. A incerteza foi outro princípio bem presente. Organizar um evento, por mais que se tenha experiência na área, é sempre repleto de particularidades. Acredito que podemos até falar em cultura. A forma como a comissão organiza todo o evento em contato com o contexto histórico, com o público e o local faz com que ele seja único. Assim, a incerteza de como será o Enapegs é um sentimento desconcertante e instigante ao mesmo tempo, pelo fato de se ter a oportunidade de fazer parte da construção da “cultura Enapegs”. Outro fator que talvez comprove a importância dessa cultura foi a participação dos voluntários no dia do evento. Todos
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emotiva muito forte quando nos recordamos de como foi importante para ambas as partes (organização e participantes) experimentar esses momentos de conhecimento e socialização entre as pessoas. E como temos dado um pouco de nós mesmos em cada edição do Enapegs e, em especial, em 2011, finalizamos este breve relato pessoal afirmando que o Enapegs nos faz novas pessoas, melhores, mais preocupadas com o próximo. Nesse sentido, o Enapegs acaba adquirindo um pouco do que nós somos e dá a ele essa característica tão personalística e próxima que lhe é própria. Se temos, por fim, algo que sempre será uma dívida, é fazer os agradecimentos a todas as pessoas que contribuíram para que o V Enapegs fosse um sucesso. Mas nominar essas pessoas aqui seria uma tarefa difícil, uma vez que fazê-lo exigiria uma edição inteira desta coleção para que fossem feitos os devidos agradecimentos.
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captaram rapidamente o espírito do evento, o que facilitou o alinhamento da equipe. Por fim, não poderia deixar de citar que a presença da professora Paula Chies Schommer, desde o início, na construção da Rede de Pesquisadores em Gestão Social e em todas as edições do evento, trouxe, ainda que com suas particularidades, toda essa cultura que foi e está sendo construída em torno do Enapegs. A presença de diversas pessoas da Rede na organização também é fundamental para que o espírito de inclusão e de construção em rede e todos os demais princípios sejam mantidos de uma edição para outra. O que levo de mais importante do Enapegs e que me faz ter orgulho em ter participado da organização do Encontro é perceber o caráter inclusivo que a construção em rede traz, e entender que a visão de cada participante deve ser considerada, de forma a agregar tanto na preparação como no evento em si. Assim, os participantes sentem-se parte do processo, mesmo sem envolver-se diretamente na organização, assumindo o verdadeiro caráter de encontro, para o qual todos contribuem de alguma maneira, presentes no V Encontro Nacional dos Pesquisadores em Gestão Social.