Revista Severina

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IRMÃOS DE ALMA Editorial Expediente Colaboradores Agenda Compras A arquitetura do verso Análise: Marlucy Mary Gama Bispo

COISAS DE NÃO

Documentário retrata sofrimento de retirantes Entrevista: Fábio Victor

TUA ROUPA MELHOR Muito além de uma vida severina Conto: João Ubaldo Ribeiro

MORTE E VIDA SEVERINA DENTRO DA REDE

Ensaio: Nicole Ayres Memória de campos de concentração no Ceará Resenha: Mario Lúcio de Paula

DE SUA FORMOSURA Asa Branca chega a 70 anos Poema: Vinícius de Moraes Coluna assinada: Toni Newman Recosturando Portinari Conto: Humberto de Campos

ESPETÁCULO DA VIDA

Resenha: Fábio Teixeira Encontro do baião com o rap Música: Gilberto Gil Coluna assinada: Ariano Suassuna Música: Dorival Caymmi e Jorge Amado Poema visual


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EDITORIAL Severina é uma revista que mostra que literatura não é apenas para ser lida, mas também para ser vivida. É o mundo nordestino, onde vivem pessoas de cidades, tradições e sotaques diferentes; mas com um só coração: o brasileiro. Trata sobre a vida e cultura da região; o seu entorno particular. A intenção é criar um espaço íntimo, onde você, leitor, é convidado a viajar ao longo das páginas seguintes. Dedicamo-nos a criar um universo a ser explorado por quem gosta de ler, uma revista tão regional que acaba sendo universal. Você conhecerá a vida severina do jeito que ela é, suas dores e cores; emergindo em uma região em que do cacto nasce flor. Ao longo dessa experiência, percorrerá os eixos que foram extraídos da nossa principal inspiração, a obra do escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Neles serão abordados os temas religiosidade, regionalismo, distorção social, tradições e festividades, dando enfoque em diversos tipos de produções textuais. Nossos textos incluem um ensaio sobre distorções sociais, como A Voz dos Excluídos; uma entrevista com grandes escritores como Suassuna ou até mesmo uma reportagem sobre o aniversário de 70 anos do hino Asa Branca, de Luiz Gonzaga. Foram selecionadas obras como o conto Do Santo que Não Acreditava em Deus e até mesmo uma crônica sobre o forró, buscando sempre atiçar seu gosto pela leitura, e seu interesse por essa literatura particular. Durante seu percurso pelas páginas da Severina, você poderá fazer uma pausa para refletir e apreciar as imagens e retratos desse rico universo, que transborda cores, texturas, histórias e sentimentos. Deixe-se levar por essa vida nordestina, cheia de tradições. Expanda seus próprios horizontes e permita-se viver em uma realidade distinta, guiada por artistas e sua visão única. Buscamos tornar sua experiência cada vez mais rica e transportá-lo por uma grande variedade de cenários em um mesmo lugar. Não tenha medo, feche os olhos e embarque nessa experiência, com a mente disponível para novas possibilidades e sentimentos. Prepare-se e venha explorar um novo mundo e uma nova realidade, uma realidade severina.

ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING Curso de graduação em Design com habilitação em comunicação visual e ênfase em Marketing. Projeto integrado do 3º semestre: Projeto III - Cultura e informação | Marise de Chirico Comunicação e linguagem II | Regina Ferreira da Silva Marketing II | Giancarlo Ricciardi Produção gráfica | Marcos Mello Cor e percepção | Paula Csillag Projeto gráfico: Ana Luisa Camacho Marin, Carolina Fraga Iplinsky, Gabriel Teixeira Pereira, Izabella Melo, Maria Paula Mello Lopes, Natalia Zanotti Bichara.

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COLABORADORES

José Mateus Bichara, engenheiro químico, é um apaixonado por fotografia e Nordeste, apesar de ser natural de Guariba, SP. Possui uma vasta coleção de artesanatos, especialmente Carrancas, da região, que guarda na sala de estar, junto de um baú cheio de seus albúns de fotos.

Rafaela Konstantyner é estudante de Design na ESPM e fotógrafia. Nasceu em Santos, mas possui um interesse particular no Nordete, principalmente no estado do Ceará. Por isso, no início do ano realizou um ensaido do trajeto entre Fortaleza e Juazeiro do Norte, caminhando por 24 dias.

Miguel Falcão, pernambucano, é chargista e ilustrador. Formado em Design pela UFP, atualmente trabalha no Jornal do Commercio do Recife. Colabora em diversas revistas e ilustrou vários livros infantis. Seu principal projeto é a animação de Morte e Vida Severina.

Ronaldo Fraga, natural de Belo Horizonte, é estilista, cenógrafo e autor. Considerado pelo Design Museum de Londres como um dos sete estilistas mais inovadores do mundo, tem como inspiração a riquesa cultural brasileira, retratando em uma de suas coleções a região nordestina.

Ariano Suassuna, paraíbano, foi poeta, romancista, ensaísta, dramaturgo, professor e advogado. Ocupou desde 1990 a cadeira número 32 da Academia Brasileira de Letras. Sua obra reúne, além da capacidade imaginativa, seus conhecimentos sobre o folclore nordestino.

Toni Newman, cearense, foi ator, produtor cultural e supervisor de cultura do Sesc. Engajado com projetos sociais de sua cidade, é lembrado por todos como simples, gentil, carinhoso e sobre tudo amigo. Sua felicidade transbordava em seus textos, refletindo sua paixão pela cultura da região.

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agenda

APRESENTAÇÃO DE RECITAL DE POESIAS Quando? 16/09 Onde? Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais Que horas? Às 18h Quanto custa? Entrada gratuita Classificação? Livre

O quê? Inscrições abertas ao público para o recital de poesias da Universidade Federal de Uberlândia, que homenageia João Ubaldo com uma semana inteira dedicada a poesias nordestinas.

WORKSHOP DE XILOGRAVURA Quando? De 30/09 à 01/10 Onde? (ESPM), São Paulo Que horas? Das 14h às 18h, de segunda à sexta-feira Quanto custa? R$400 Classificação? 18 a 45 anos

O quê? O curso de 3 dias conta um grupo de professores que ensinam e auxiliam a prática da xilogravura. O preço já inclui os materiais e ferramentas utilizados. A turma será de 10 pessoas. Vagas limitadas.

SHOW CAETANO VELOSO Quando? 01/08 Onde? Citibank Hall, Rio de Janeiro Que horas? Às 20h Quanto custa? R$24 Classificação? 12 anos

O quê? Caetano Veloso anúncia show para divulgação de seu novo CD Estrangeiro. A apresentação contará com a presença de convidados exclusivos, como Milton Nascimento e Chico Buarque.

CURTA METRAGEM MORTE E VIDA SEVERINA Quando? 01/08 Onde? Sala de vídeo do Itaú Cultural, São Paulo Que horas? Às 20h Quanto custa? R$30 Classificação? Livre

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O quê? Exibição do curta metragem inspirado no poema Morte e Vida Severina de Jõao Cabral de Melo Neto, que retrata o percurso de retirantes nordestinos em busca de uma vida melhor.


CURSO DE ARTESANATO Quando? Inscrições abertas a partir do dia 04/08 Onde? Casa da Arte, São Paulo Que horas? Das 14h às 16h Quanto custa? R$38 Classificação? 15 anos

O quê? Curso especializado na criação de artesanatos típicos das tradições culturais do Nordeste. Haverá também feiras com expositores vendendo seus trabalhos e comidas regionais.

PALESTRA COM A CHEF BAIANA BELA GIL Quando? 11/08 Onde? Auditório do Ibirapuera, São Paulo Que horas? Às 17h Quanto custa? R$60 Classificação? Livre

O quê? A famosa chef culinária Bela Gil anúncia sua palestra aberta ao público, onde irá contar como sua infância na Bahia influenciou sua culinária, ensinando suas principais receitas.

SECA NO SERTÃO É EXPOSTA EM 40 FOTOS Quando? 07/09 Onde? Instituto Tomie Ohtake, São Paulo Que horas? Das 11h às 20h Quanto custa? R$15 Classificação? Livre

FEIRA DE CORDEL

Quando? 14/10 Onde? Vão Livre do MASP, São Paulo Que horas? Das 16h às 20h Quanto custa? Entrada gratuita Classificação? Livre

O quê? Exposição é feita pelos jornalistas Délio Pinheiro e Geraldo Humberto que registram a fotografia que retrata o sofrimento do homem e dos animais que vivem na seca do Sertão nordestino.

O quê? A feira reúne alguns dos principais expoentes da literatura de cordel do país, que estarão expondo e vendendo seus trabalhos. Além de cantadores de viola e de música regional ao vivo.

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compras

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1 | BOLSA DE PALHA Bolsa social de capim dourado em modelo carteira da Langak. Possui alça dentro para ser usada como modelo transversal. Contém divisórias. Preço: R$159,00 Onde comprar: Langak Site: www.langak.com.br

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2 | ÓCULOS DE SOL Modelo Ray-Ban Clubmaster Classic, inspirado no clássico modelo dos anos 1950, é um verdadeiro ícone que garante a elegância sempre. Preço: R$500,00 Onde comprar: Ray-Ban Site: www.ray-ban.com

3 | CHAPÉU PANAMÁ Chapéu fabricado artesanalmente de palha toquilha na cidade de Cuenca, no Equador. Modelo Fedora para homens. Disponível em outras cores. Preço: R$276,00 Onde comprar: Panama Hat Mall Site: www.panamahatmall.com


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4 | COLAR DE PEDRAS Maxi colar rústico feito com pedras turquesa. Peça da coleção inspirada nas obras da artista plástica Adriana Varejão. Disponível com brincos. Preço: R$69,00 Onde comprar: Morana Site: www.morana.com.br

5 | LIVRO DE ARTESANATO Artesãos do Brasil, publicado em 2012, da editora Abril descreve os principais nomes do artesanato do Brasil, e fotos de seus principais trabalhos. Preço: R$59,00 Onde comprar: Saraiva Site: www.saraiva.com.br

6 | CD & DVD RENATO RUSSO Uma Celebração foi gravado em homenagem a um dos maiores compositores e ícones da música brasileira, com participação especial de artistas. Preço: R$74,00 Onde comprar: Loja Fnac Site: www.fnac.com.br

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A ARQUITETURA DO VERSO O autor de Morte e Vida Severina e o seu cálculo: a palavra mais exata é a que constrói a melhor poesia Por Oswaldo Amorim Fotos Maureen Bisilliat

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o longo das duas últimas décadas, o nome do pernambucano João Cabral de Melo Neto acumulou pontos no juízo de críticos e estudantes de literatura. Em 1965, quando Chico Buarque musicou Morte e Vida Severina, os versos de João Cabral chegaram também ao público não especializado e ampliaram uma questão reservada a pequenos grupo: quem é o maior poeta do Brasil? Hoje, João Cabral deve ter tantos defensores quanto Carlos Drummond de Andrade. Os dois, juntos, muito mais do que qualquer outro. Aos 52 anos, com mais da metade deles passada fora do país e sua missão de diplomata (Inglaterra, Espanha, Suíça, Paraguai), este poeta enxuto de carnes e de estilo viaja no mês que vem para mais um exílio profissional, desta vez no Senegal (África), onde será o embaixador do Brasil. Em livro, João Cabral não é amável: é cortante, conciso, incapaz de desperdiçar uma palavra. Em pessoa, é tímido, “muito doce”, como observa um outro poeta, seu amigo Odylo Costa, filho,

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e extremamente metódico no trabalho. “Não escrevo o que posso, como muitos escritores”, diz ele. “Escrevo o que quero, e como um engenheiro faz uma casa: planejando tudo nos mínimos detalhes.” Essa dureza está amplamente expressa na sua poesia, marcada por duas condições básicas: a influência da arquitetura sobre seu estilo (planejado, medido, elaborado) e sua preocupação em ser consciente. Por isso, João Cabral não gosta de música, que, como um certo tipo de poesia, “faz adormecer”. Como Ernest Hemingway, não acredita em inspiração, mas no esforço. Desconfia facilmente do que escreve “Pode ser uma simples repetição de algo que li ou ouvi”. Preparando agora um novo livro, ainda sem título, João Cabral faz uma defesa da poesia em geral (embora possa “não terminar nunca” o volume que está escrevendo) e revela que quando jovem pensava ser crítico, e não poeta. Descobriu que seria melhor poeta sob a influência dos versos de Carlos Drummond de Andrade, para ele o maior do Brasil.

Do livro 100 Anos de Poesia, Vinícius de Moraes e João Cabral, em Paris, 1964

A carreira diplomática tem sido um obstáculo ou um estímulo à sua produção poética? Em primeiro lugar, há uma grande vantagem em aproveitar as oportunidades culturais de outros países. No Senegal, por exemplo, tenho a certeza de que vou me encontrar com uma porção de elementos formadores da minha maneira de falar, de andar. Essa mentalidade bonachona do brasileiro, essa sua nonchalance, vem do africano. Em segundo, há a desvantagem de isolar o escritor da sua nacionalidade. De novo na terra natal, depois de uma ausência prolongada, é fantástico sentir como a gente volta a se interessar pela nossa literatura. A gente volta a entrar em órbita.

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É fantástico sentir como a gente volta a se interessar pela nossa literatura Mas o distanciamento da zona de língua portuguesa durante longos anos no estrangeiro serve para apurar, depurar ou deturpar a linguagem do escritor? Uma língua sempre se enriquece ao contato com outra. Não ligo para esse negócio de pureza da linguagem. Mas não falar a própria língua provoca sempre um certo empobrecimento. Gabriela Mistral tinha uma aguda consciência desse problema. Certa vez, em Los Angeles, ela explicou a Vinicius de Moraes (ambos trabalhavam lá como diplomatas) sua necessidade de voltar ao Chile. Es que se me vá la lengua, disse ela. Na sua extrema concisão, a sua poesia frequentemente usa imagens e metáforas da arquitetura. Há escritores influenciados pela música, pela pintura, pelos filósofos, pela história. Quem mais influência exerceu sobre mim, teoricamente, foi o arquiteto Le Corbusier. Quando ainda rapaz, no Recife, amigos


meus, me deram para ler todas as obras de Le Corbusier. Nenhum poeta, nenhum crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim a influência que teve Le Corbusier. Durante muitos anos, ele significou para mim lucidez, claridade, construtivismo. Digo muitos anos porque na última época de sua vida, na minha opinião, Le Corbusier caprichou para negar todos esses valores que ele pregava anteriormente. Falo sobre ele e sobre isso no poema Fábula de um arquiteto. A ideia desse poema me veio ao visitar, na França, a capela de Ronchamp, por ele construída. Essa capela me provocou uma tal irritação, que me senti obrigado a escrever esse poema, cuja segunda parte é uma descrição da antiarquitetura. Pelo menos em relação ao que o próprio Le Corbusier tinha me ensinado: para sempre considerar arquitetura, e então a partir do que escrevi minha poesia, criar e imaginar. Sua poesia demorou muito a ser reconhecida? Quando me iniciei na literatura, dizia-se que a poesia brasileira estava emparedada entre Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Depois se descobriu Carlos Drummond de Andrade, ao qual se dava pouquíssima importância na época. Só quero

registrar que acredito que Schmidt foi um grande caráter. Foi ele quem pagou a edição do meu primeiro livro no Rio, O engenheiro, mesmo sabendo que a edição acabaria prejudicando o seu tão bom nome. “Esse livro vai me fazer um grande mal”, me disse ele. “Mas você pode levá-lo a uma tipografia, que eu pagarei a impressão.” De fato, como ele disse, meu livro iniciou uma revisão nos valores poéticos vigentes. Mas e o reconhecimento da sua poesia, tardou ou veio na hora certa? Quando eu estava nos meus vinte anos, meus livros não eram tão vendidos. Hoje em dia são, e muito. Morte e Vida Severina, por exemplo, deve ter aproximadamente umas quinze edições. Como em qualquer

João Cabral de Melo Neto retradado em fotografia

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Cena da peça de teatro Morte e Vida Severina, pelo grupo Tuca da PUC-SP

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carreira é preciso que o sujeito crie nome, que seja alguém. E muitas vezes se vende mais pelo nome do que pelo próprio livro, isso até hoje em dia. Atualmente há também muitos estudantes comprando nossos livros por recomendação de seus professores. Daí o porque de Fernando Sabino ter me perguntado se eu não me sentia mais estudado do que lido. Eu me sinto muito orgulhoso pelo fato de a minha obra estar sendo dissecada pela crítica universitária, através de métodos de análises cada vez mais objetivos e profundos. Essa dissecação é lícita. Quando a interpretação não coincide com a minha intenção, eu até que não me irrito: sinto que minha obra está sendo multiplicada, crescendo por si mesma, o que me orgulha.

Essa “multiplicação” já parece ter acontecido com a encenação de Morte e Vida Severina. A seu ver, que elementos dramáticos do seu texto foram ressaltados no palco? Morte e Vida Severina, como foi escrito para teatro, deixa mais evidentes os elementos dramáticos da minha poesia. Sempre me considerei um poeta plástico e intelectualista; portanto, um poeta não polêmico, isto é, não dramático. Depois de Morte e Vida Severina, comecei a ver


que a minha poesia é dramática, não no sentido de ter sido escrita para o teatro e nem no sentido de ser drama, mas porque existe nela um elemento de ironia e sarcasmo, sem haver um interlocutor vivo. Não digo que toda a minha poesia seja dramática. Há nela poemas de simples contemplação e descrição. Mas, pensando bem, há nela também um aspecto crítico que exige ou provoca resposta e interlocução e, portanto, exige dramatismo. O aspecto crítico de que o senhor fala tem sido muito debatido na mídia e no meio acadêmico. Morte e Vida Severina, como exemplo, entre muitos, é um poema de denúncia social das estruturas feudais do nordeste? Ou é mais um poema cristão que termina com uma nota otimista de uma vida melhor entre todos os severinos nordestinos? Minha intenção, escrevendo este e outros poemas que tratam do nordeste brasileiro, não foi denunciar as suas estruturas feudais. Familiarmente, estou ligado aos beneficiários dessas estruturas feudais. Minha sinceridade ao denunciá-las não poderia ser completa. Mas também não creio que seja um

poema cristão. Apenas escrevi a minha experiência, isto é, o que vi e vivi. Quis contar o meu ponto de vista. A solução não é a mim que compete apresentá-la. Eu apenas fiz a minha parte quando o escrevi. A quem competiria, então? Acho que a função principal do escritor na sociedade deve ser, para usar o título de um livro de Paul Éluard, donner à voir, isto é, fazer ver. A solução compete aos administradores e aos políticos. Gostaria que houvesse mais administradores do que políticos, porque o administrador vê o problema objetivamente em si e não, como faz o político, como um elemento para captar prestígio e vantagens pessoais, preocupando-se apenas com interesse próprio. Acredito que os problemas do nordeste estarão sempre melhor e com possibilidades de serem resolvidos nas mãos dos administradores do que dos políticos. Agora, a função do escritor é “dar a ver”, ou seja, apurar o senso crítico, e não mostrar como solucionar. Em contrapartida, o político ou o administrador não têm o direito de dizer ao escritor o que ele deve ver e o que ele deve mostrar. Quer dizer, o escritor não tem o direito de dar soluções. E o político ou o administrador não tem o direito de mostrar-lhe o que ele deve “dar a ver” nem influir.

João e a poetisa Marly de Oliveira, com quem se casou em 1986

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Que papel desempenhou o nordeste na sua sensibilidade e formação? Há alguma afinidade entre ele e a Espanha? O meu primeiro posto no exterior (e meu primeiro contato com o exterior) foi Barcelona, que está na Catalunha. Eu ia muitas vezes a Madri, isto é, atravessava Aragão e a Mancha. Aí encontrei a secura e a essencialidade do sertão nordestino. Vivi na Espanha, sem ter podido conhecer Andaluzia, de 1947 a 1950, quando fui para Londres. Em 1956 voltei para a Espanha e, desta vez, para Sevilha, na Andaluzia. A Andaluzia é, do ponto de vista agrícola, a região mais fértil da Espanha. E foi a região do mundo com a qual mais me identifiquei. Devo lembrar que sou pernambucano da Zona da Mata, zona fértil, e não do sertão, embora me identifique melhor com o sertão seco, assim como tenho mais afinidade com o alagoano Graciliano Ramos do que com meu primo Gilberto Freyre. Os meus sentimentos entre a Andaluzia e a Mancha e Aragão tem a mesma ambiguidade que existe no meu eu pernambucano, entre o homem da Zona da Mata, fértil, e o do sertão, seco, que conheço apenas de passagem, mas que me marcou profundamente. Há uma afinidade entre a Mancha e Aragão e o nordeste seco. Mas nenhuma entre o nordeste da Zona da Mata e a Andaluzia. Mas qual desses lugares o impressiona mais? A Andaluzia, dentre todas, sempre foi a que me fascinou mais, mesmo antes de conhecê-la e viver nela, eu já gostava e já a admirava; não como paisagem, mas pelo seu aspecto cultural e pela sua humanidade, suas pessoas. O clima de lá me agradava. Eu conheci Andaluzia antes mesmo de viver em Sevilha, que é a cidade onde eu gostaria de viver e morrer.

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Na literatura brasileira, quem mais me impressionou foi Drummond Que autores mais lhe interessam hoje, considerando os modernos e os clássicos? É difícil enumerar esses autores. A literatura espanhola anterior aos séculos XVI e XVII foi para mim uma grande revelação. John Donne, contemporâneo de Shakespeare, foi o que mais me marcou. Na literatura brasileira, quem mais me impressionou foi Carlos Drummond de Andrade, muito mais que Manuel Bandeira, o que é engraçado, porque ele é meu primo. Foi através dele, em Alguma poesia, que descobri que podia ser poeta. A influência da primeira fase de Drummond sobre mim foi absurdamente impactante. Revelou-me uma poesia prosaica, não encantatória. Da minha geração, destaco Lêdo Ivo, que considero o maior de todos. Do pessoal mais moço, os grupos do concretismo e da Praxis e os mineiros Afonso Ávila e Afonso Romano de Sant’Anna são os que sinto mais próximos


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João em cena do filme Liames, o mundo espanhol, no ano de 1979

de mim, além de toda a poesia experimental. Há um certo tipo de autor que se preocupa em embalar o leitor. Minha preocupação é diferente, procuro sempre despertar o leitor. Acredito que poesia nunca deve adormecer, mas despertar a consciência. O senhor se interessa por cinema e teatro? O cinema me interessa muito mais que o teatro. Quando vivi em Londres, era sócio de oito clubes de cinema e tive oportunidade de ver todo o cinema clássico, desde seu início. Depois, o cinema deixou de me interessar pelo mesmo motivo que ir ao teatro para mim é uma coisa difícil. O que me atraía no cinema era a sessão-contínua, como no Brasil. Mas na Europa o cinema é como o teatro. As pessoas vão para serem vistas. Fora do Brasil não vejo cinema. E, como perdi o costume de ir, não vejo mais nem no Brasil. Que satisfações o senhor obteve como poeta? O que acha das homenagens que lhe foram prestadas em sua terra natal? Homenagem, em terra natal ou não, é tudo igual. Toda homenagem traz uma dose de chateação tal que, apesar de me sentir lisonjeado por meus conterrâneos, não posso evitar de me sentir aborrecido. A única condecoração de que me orgulho é a Ordem do Mérito de Pernambuco. Mas o Recife, que é a minha cidade, onde nasci e fui criado até os 23 anos, nunca tomou conhecimento da minha existência. As satisfações que tive como poeta foram, porém, mais numerosas que as chateações. Em entrevistas coletivas à imprensa, ou falando em colégios,

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fico surpreendido com o grau de conhecimento que os jornalistas e estudantes tem a meu respeito. Quando no final da apresentação de Morte e Vida Severina, em Nancy, em 1966, o público me aplaudiu de pé, eu senti um nó na garganta. Foi uma das maiores emoções da minha vida. Ainda sobre suas satisfações e decepções como poeta, o reconhecimento unânime da crítica e de escritores brasileiros lhe basta? Sua poesia tem sido divulgada no exterior? O que o senhor acha dissso? Esse reconhecimento não é completamente unânime. Ele me satisfaz porque vejo muitos poetas melhores do que eu, como meu mestre Joaquim Cardozo, que não tem esse reconhecimento todo. Joaquim Cardozo e Carlos Drummond de Andrade são os maiores poetas de todos os tempos do Brasil. E, para mim, o fato de ser lido em Portugal e no Brasil já me basta. Detesto me ver traduzido em língua que sei ler. Agora, se traduzirem para o chinês, o japonês e o árabe, eu acho ótimo. Espero continuar sempre assim a escrevê-la, se é que ainda escreverei. Tenho dois livros traduzidos para o alemão, e como eu não sei uma palavra de alemão, eu gosto muito


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produção textual: análise

Uma análise cultural Morte e Vida Severina é uma peça literária que retrata o regionalismo nordestino, junto com sua regiliosidade e folclore característico Por Marlucy Mary Gama Bispo Foto Rafaela Konstantyner Morte e Vida Severina, Auto de Natal Pernambucano (1954-1955), peça literária de natureza regionalista, tradição medieval, forte religiosidade, linguagem próxima do registro oral, apresenta vários aspectos do folclore em sua construção formal, distribuídos ao longo dos dezoito trechos que compõem a obra. Nela, João Cabral de Melo Neto, distancia-se do hermetismo, característica marcante em sua produção poética e escreve para ser entendido pelo povo, o que o faz sem tornar o seu texto “popular”, embora o mesmo o tenha popularizado. Aliando forma, conteúdo e linguagem numa tríade, para alguns, perfeita, Morte e Vida Severina atribui um caráter singular à poesia cabralina. Para Antônio Cândido, “o regionalismo foi e ainda é força estimulante na literatura da América Latina”. É fato que, no Brasil, a produção literária regionalista é marcada pela prosa. Em Morte e Vida Severina, João Cabral acentua a quebra dessa hegemonia apresentando um Auto fortemente centrado na temática regionalista, o que já ocorria, de forma mais diluída, em sua obra. Importante, ainda, localizar a produção cabralina no período que, segundo Cândido, corresponde a uma consciência dilacerada do atraso, que teve como precursora a fase da “consciência catastrófica de atraso, correspondente à noção de país subdesenvolvido”, com gênese em Simões Lopes Neto, seguido por Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado. Nessa fase se imprimiu à literatura regional brasileira, uma face em que “o peso da consciência social atua por vezes no estilo como fator positivo, dando lugar à procura de interessantes soluções adaptadas à representação de desigualdade e de injustiça”, distanciando-a da denominada “consciência amena do atraso, correspondente ideologia de país novo ”, marcada por uma literatura que “se fez linguagem de celebração e terno apego, favorecida pelo Romantismo, com o apoio da hipérbole e na transformação do exotismo como estado de alma”. Para Cândido, sobre a expressão do regionalismo de João Cabral, ele diz que “[...] ninguém elaborou expressão poética mais revoltada e pungente para expor a miséria, o destino esmagado do homem pobre, no caso o do Nordeste”. A partir de tais considerações, este trabalho tem como objetivo principal analisar a construção da identificação cultural no Auto de João Cabral. Parte-se de como a construção da Identidade Cultural de Severino, figura central desse texto, vai apresentando diferentes pertencimentos, ora como sujeito individual, ora como sujeito coletivo. Tal conceito de Santos constitui-se como importante categoria de análise, que pode ser empregada, em toda primeira

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produção textual: análise

Na foto, sr. Raimundo em sua residência, onde nasceu e cresceu

parte do Auto, quando o protagonista, Severino, na tentativa de apresentar-se, apresenta muito mais a sua condição de carência e subordinação, assumindo a “identidade da subclasse” a qual para Bauman “é a ausência de identidade, abolição ou negação da individualidade, ‘do rosto’[...]”. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. A crise de identidade de Severino, quando se identifica a tantos Severinos iguais em tudo na vida, nos remete à crise do pertencimento em Bauman: tornamo-nos conscientes de que o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis [...] a idéia de ‘ter uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. Condição sem alternativa, essa é a voz que ecoa em todo o Auto de Cabral da qual seu protagonista, tenta, inutilmente, desviar-se em sua “peregrinação” rumo ao litoral pernambucano, carregando o seu pertencimento de vida Severina, como destino, o que evidencia o quanto ele é vítima do sistema social, e não, apenas, do geográfico como insistem alguns. Nessa trajetória de Severino, marcada pela certeza da morte e a incerteza da vida cabe-lhe bem o conceito de “A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”.

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EM BUSCA DE SEU LAR Interessante retomar Santos (2003) à abordagem sobre encontros e desencontros de Severino nos espaços da obra. Tem-se aqui como espaços, o trajeto que ele percorre pelo Sertão, Agreste, Zona da Mata e Litoral pernambucano. Resgate-se, para tanto o conceito dele de zona fronteiriça, como uma zona híbrida, que sugere mobilidade. Nessa lógica, percebe-se que o deslocamento de Severino do sertão – litoral (cidade) ocorre na dialética entre a heterogeneidade externa, (diferenças encontradas nos aspectos físicos/geográficos dos já citados espaços da obra) e a homogeneidade interna caracterizada pela mesmice que frustra as expectativas de Severino em sua trajetória. Outro aspecto que merece enfoque ainda sobre a zona fronteiriça de Santos, parte-se do fato dela ser definida como “uma metáfora que ajuda o pensamento a transmutar-se em relações sociais e políticas. E não esqueçamos que a metáfora é o forte de cultura de fronteira [...]”. Associa-se a tal citação o fato de Severino ser considerado uma metáfora que representa uma realidade político-social do Nordeste brasileiro, numa insistente tentativa de transmutar-se. Saliente-se, ainda, o que pode ser interpretado como a fronteira metafísica da obra, com a qual Severino dialoga em todo transcurso do texto, a morte e a vida. O segundo viés de abordagem deste trabalho apresenta elementos textuais que evidenciam uma grande articulação entre o estético e cultural no poema de João Cabral. É inquestionável a forma como algumas práticas significativas, representativas, majoritariamente, da cultura nordestina, se constituem como elementos importantes que possibilitam diferentes leituras em Morte e Vida Severina. O que não poderia ser diferente considerando que o texto fora produzido “a pedido” para ser encenado, logo, a sua plástica, observada em toda obra, é marcada por fortes imagens visuais e auditivas, carregadas de simbologia que dão ao texto uma beleza enxuta, típica da poesia cabralina, que em Morte e Vida Severina se tornou maravilhosamente árida. Cândido diz sobre a poesia de João Cabral que: “As suas emoções se organizam em torno dos objetos precisos que servem de sinais significativos do poema - cada imagem material tendo de fato, em si, um valor que a torna fonte de poesia, esqueleto que é do poema”. Interessante também observar, em entrevista à Revista Manchete em agosto de 1976, a forma como João Cabral assume a influência que sua obra recebeu de Murilo Mendes: nenhum poeta brasileiro me ensinou como ele a importância

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produção textual: análise

do visual sobre o conceitual, do plástico sobre o musical. Sua poesia ensinou que a palavra concreta, porque sensorial é sempre mais poética do que a palavra abstrata, e que assim a função do poeta é dar a ver (a cheirar, a tocar, a provar, de certa forma a ouvir: enfim, a sentir o que ela quer dizer, isto é, a pensar). Sob forte influência medieval, o poema condensou vários aspectos do folclore, na qual João Cabral deixa claro sua intenção de homenagear a todas as literaturas ibéricas. Como diz o próprio autor, entre outras considerações, deveras pertinentes, a essa proposta abordagem: Esse texto não poderia ser mais denso. Era obra para teatro, encomendada por Maria Clara Machado [...]. Pesquisei num livro sobre o folclore pernambucano, publicado no início do século, de autoria de Pereira da Costa [...]. A cenaem que há o nascimento, por meio de outras palavras, está localiza em Pereira da Costa [...]. “Todo céu e terra lhe cantam louvor” também é literal do antigo pastoril pernambucano. O louvor das belezas do recém-nascido e os presentes que ganha existem no pastoril. As duas ciganas estão em Pereira da Costa [...]. Eu só alterei as belezas e os presentes [...]. Com Morte e Vida Severina, quis prestar uma homenagem a todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do retirante provêm do romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore catalão. O encontro com os cantores de incelências é típico do Nordeste. [...]. Como disse o autor esta passagem existe no pastoril pernambucano e ele só alterou os presentes. Observe-se como a originalidade dessa alteração imprimiu ao texto, sem exotismos, a forte marca da cultura nordestina. Os presentes que a mãe e o recém-nascido recebem são: caranguejos, leite de outra mãe, papel de jornal, água da bica, canário-da-terra, bolacha d’água, boneco de barro, pitu, abacaxi, rolete de cana, tamarindos, ostras, jaca, mangabas, cajus, peixe, siris, carne de boi, mangas e goiamuns. A origem e a natureza desses presentes apresentam e representam a geografia sócio-econômica e cultural de bairros de Recife e cidades pernambucanas, que na realidade, refletem bairros e cidades de qualquer cidade do Nordeste brasileiro. Assim, tal qual Severino, Pernambuco/Recife se constitui numa metáfora que evoca ao texto, mais uma vez, a lógica da cultura de fronteira de Santos, já apresentada neste, ratificada nas palavras de João Cabral “[...] o Recife é o depósito de miséria de todo Nordeste”. Miséria denunciada através de uma linguagem coesa e engajada, sutilmente trabalhada, retomando o medievalismo característico do passado colonial, evidenciado no latifúndio, coronelismo, teocentrismo, temas abordados no texto na interpretação dialética entre obra de arte e meio social de Antonio Cândido.

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O forte apelo social do Auto de Cabral expõe os conflitos existentes no texto, partindo das claras dicotomias identidade x identificação, inclusão x exclusão, luta x resistência, morte x vida, no cenário do regionalismo nordestino de meados da década de 50 que vê “na degradação do homem uma consequência da espoliação econômica, não do seu destino individual”. Retome-se, ainda, a questão do espaço da obra que, embora tenha sido claramente delimitado no texto, aparenta ser mais simbólico que real, representa a exclusão social, marcada pela realidade econômica do subdesenvolvimento que “mantém a dimensão do regional como objeto vivo”. Quanto à cronologia, o tempo apresenta-se marcado pela problemática da migração, devido à seca, o que o evidencia como ilimitado. Enfim, o Auto, Morte e Vida Severina é um claro exemplo de como João Cabral articulou o estético e o cultural numa perspectiva estruturalista que, embora escrito na década de 50, se permite a leituras e abordagens que se valem, também, de conceitos e categorias recentes de análises literárias

Sr. Raimundo a caminho do trabalho, em seu principal meio de transporte

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ENCONTRE UMA CONEXÃO MAIS PROFUNDA

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DOCUMENTÁRIO RETRATA SOFRIMENTO DE RETIRANTES Jovens cineastas expõem martírio de retirantes da seca e sua mudança religiosa diante da dor no Ceará Por Alex Pimentel Foto Rafaela Konstantyner

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enador Pompeu. Um episódio sertanejo protagonizado por uma das mais terríveis chagas do Sertão do Ceará, a seca de 1932 ganha, nesse ano, um importante aporte histórico. A calamidade onde milhares de retirantes foram literalmente dizimados pela fome e por doenças – mantidos contra a própria vontade num campo de concentração construído à margem do Rio Patú – e a peregrinação que foi iniciada há 25 anos em sufrágio de sua alma recebem retratação cinematográfica: As Almas do Povo. É o Santo do Povo. O documentário resgata, por meio da ótica popular, a triste memória do Santuário da Seca. O curta-metragem produzido por 21 alunos do projeto Ponto de Cultura Arte Sobre Rodas acaba de ser lançado. A

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Entrada de um dos antigos campos de concentração em Senador Pompeu

produção digital se concretizou por meio da oficina audiovisual desenvolvida pela Secretaria de Cultura do município de Senador Pompeu com recursos do Ministério da Cultura. Após dois anos de pesquisas, três meses de gravações, captura de imagens e depoimentos, a película, com 20 minutos de duração foi concluída e começou a ser exibida nas escolas, igrejas e distritos deste município interiorano, situado na macrorregião central semi-árida do Ceará, a 273 quilômetros de Fortaleza. Para a edição das imagens foram necessários 60 dias. O valor estimado para a elaboração do curta-metragem foi de R$ 5 mil. O coordenador do projeto e diretor da Uzina Produções, Fram Paulo Ferreira da Silva, explica que o vídeo aborda três aspectos:

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o fato narrado por uma sobrevivente do campo de concentração, a caminhada em homenagem aos mortos e também a devoção da comunidade às Almas da Barragem. “Muitos acreditam que elas obram milagres e a cada ano o número de peregrinos ao campo sagrado aumenta. Esse fenômeno social religioso preserva uma forte mensagem do holocausto vivido aqui mesmo”, comentou o produtor, satisfeito com o trabalho de sua equipe.


A idéia é transformar a cidade em um promissor núcleo cinematográfico Mais entusiasmado com os resultados da oficina audiovisual está o secretário de Cultura de Senador Pompeu, Adriano de Sousa. Além da força religiosa no percurso de pouco mais de 3 quilômetros do Centro da cidade ao “Santuário das Almas”, ele vê um promissor caminho para a sétima arte no município que possui pouco mais de 27 mil habitantes. A idéia é transformar a única cidade do Ceará que concorre ao título de Capital Cultural do Brasil em um promissor núcleo cinematográfico. “Se somos capazes de extrair arte deste solo árido e disputamos com outras quatro cidades do País esse importante título cultural, com certeza temos potencial para ir mais além“, destacou Adriano. É como um pouco de esperança para as horas em que as almas mais se precisam de ajuda e não se tem. O vigário da paróquia de Nossa Senhora das Dores, padre Roberto

Costa, elogia o documentário. Ele cita o equilíbrio e o padrão conquistado pelos jovens cineastas conciliando os registros do sofrimento de seu próprio povo à fé, retratando os anos de dor e sofrimento, e a tragédia provocada pela falta das chuvas. “Eles mostram a realidade dos que souberam vencer essa cruz a transformando num estímulo de fé para a caminhada da vida. A ligação entre o sentimento de hoje e as marcas do passado, através de nossa santa.

Casal de moradores de Senador Pompeu

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A FÉ ACIMA DE TUDO Padroeiras são projetadas como um crescente estímulo à nossa religiosidade”, ressaltou o religioso. Além do padre, do secretário e dos produtores, alguns dos sobreviventes do “campo de concentração” da barragem do Patú, dentre eles a aposentada Luiza Pereira Lô, uma das personagens do vídeo, ficaram emocionados com o que viram e ouviram diante da televisão. No próprio documento, videográfico ela narra os momentos de horror sob a mira dos fuzis apontados por soldados das Forças Armadas. Eram impedidos de seguir o curso da miséria em busca de alimentos e água. “Somente a nossa fé foi capaz de superar o sofrimento e a agonia dessa época horrível”, recordou.

Antigo portão de entrada para acessar um dos terrenos dos campos

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PROCISSÃO RELEMBRA MORTES Em Senador Pompeu, no início do século passado, em meados de 1919, uma vila de casas foi construída nas margens do Rio Patú, neste município. Era o Campo dos Ingleses, que abrigava engenheiros europeus e operários responsáveis pela construção de uma enorme barragem que hoje abastece a cidade. A obra, concluída somente 68 anos depois, tinha como objetivo represar as águas do manancial e, também, solucionar o problema da seca que assolava a região. Por ironia, o rio vivo, com milhares de famintos, doentes, foi retido naquela represa pela força das ar-

mas. A barragem que estava sendo erguida para saciar a sede e também a fome se transformou, na realidade, em um imenso campo de concentração, em um enorme curral humano, onde centezas de vidas foram confinadas, de maneira impiedosa, durante vários anos. O destino se encarregou do fuzilamento. Registros históricos apontam que dos 17 mil flagelados que permaneceram ali, mais de mil perderam a desumana batalha e, ainda hoje, de acordo com moradores, suas almas vagam pelo vale, assombrando a região. O martírio foi transformado num expressivo ato de fé, que se tornou tradição, e se prolongou por anos. Os moradores de Senador Pompeu mantém frescos em sua memória, as lembranças dessa atrocidade. Todos os anos, na madrugada do segundo domingo do mês de novembro, acontece a Procissão das Almas. O acontecimento, criado pelo padre Albino Donatti, então pároco da Igreja Mãe de Senador Pompeu, se repetirá, em 2008, pela 26ª vez. Em caminhada, centenas de fiéis percorrem os 3,2 quilômetros, da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores ao cemitério da barragem do Açude Patú.


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Detalhe dos arames que delimitavam os terrenos de um dos campos

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REVERÊNCIA O ato é em reverência aos milhares de flagelados que perderam suas vidas numa batalha longa e cruel contra a fome, a seca e a cólera. A lembrança, reproduzida através da mídia digital e da sensibilidade dos jovens, chega como um reforço para a perpetuação de uma das passagens mais vergonhosas que as vítimas do flagelo da estiagem foram obrigadas a suportar em áreas de concentração e de isolamento. A história procurou esconder esses fatos, principalmente os registrados na periferia de Fortaleza no início do século passado. Mas os moradores de Senador Pompeu buscam, a cada ano, a ressurreição dessa cruel memória nordestina como forma de advertir as autoridades.

REFLEXÃO Os produtores do Dvd As Almas do Povo. É o Santo do Povo fizeram questão de escrever uma mensagem de reflexão para quem vai ter a oportunidade de ver a obra: “Relembrar significa importar-se com algo acontecido que nos faz pensar sobre o que passou, mas que não se deixa esquecer na memória do povo. A devoção hoje em dia, e o apego a santa, é tido como algo que complementa o modo de vida das pessoas, que as altera e as identifica”


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entrevista

Em entrevista exclusiva, Ariano Suassuna diz que fez pacto com Deus para terminar livro “Mexeu com o físico, mas com a cabeça não buliu não. Se você quiser, recito todinho o episódio de Inês de Castro, de Os Lusíadas, brincou Ariano Suassuna, 86 Por Fábio Victor Fotos Felipe Rau Na tarde/noite daquele dia, quase quatro meses depois de sofrer um infarto (agora ele revela terem sido dois) e tratar um aneurisma cerebral, o escritor e dramaturgo cedeu sua casa no Recife para uma entrevista exclusiva, a primeira depois de duas internações e do repouso forçado. Para pôr fim ao primeiro livro daquela que considera a obra de sua vida – e que deverá ter sete volumes, mesclando romance, poesia, teatro e gravura –, Ariano afirma ter tido uma ajuda divina. A obra concluída – ainda sem previsão de lançamento – será um romance epistolar, chamado O Jumento Sedutor, homenagem a O Asno de Ouro, do escritor Lucius Apuleio, do século II. A série completa levará o nome de A Ilumiara. Depois de quase quatro meses entre internações e repouso, o sr. retomou as atividades públicas ontem numa aula-espetáculo. Como o senhor se sente? Eu tive dois infartes e um aneurisma estourou no meu cérebro. Eu fazia muita questão de dar essa aula. Eu disse para mim mesmo que só não dava a aula se não tivesse a menor condição. E queria avaliar minhas forças, para saber se podia continuar, dentro desse pequeno prazo que a gente ainda tem no mandato de Eduardo Campos, que deixará o cargo até abril para disputar a Presidência, podia continuar a programação que a gente vinha seguindo de aulas-espetáculos. Combinei que a gente faria essa no Recife e, de acordo com o comportamento do meu corpo, a gente daria outra em Pombos. O senhor já disse em outras entrevistas que se recusava a morrer e que toda morte é como um suicídio. Como essa experiência afetou a maneira com que o senhor lida com ela? Não afetou não. É claro que, objetivamente, eu sei que vou morrer. Não sei se você já notou, mas nenhum de nós acredita que morre, o que é uma bênção. A gente se porta a vida toda como se nunca fosse morrer, o que é muito bom. Porque se a gente for pensar na morte como uma coisa fundamental, inevitável e próxima, a gente vai perder o gosto de viver, vai perder o gosto de tudo. Eu digo isso procurando verbalizar uma inclinação que acho que

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entrevista

Grupo de jovens reza ao redor de velas, fazendo oferendas a Deus

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é de todo mundo. A gente tem uma tendência a acreditar que não morre. Pensar que vai morrer prejudica um pouco a qualidade de vida, e eu sou um apaixonado pela vida, amo profundamente a vida. Olhe que essa maldita tem me maltratado, mas eu gosto dela. No Romance da Pedra do Reino, Quaderna tem um sonho no qual a Caetana (a morte) como que dita para ele palavras de fogo. O senhor teve algum tipo de sonho ou de alucinação durante o período em que escrevia a obra? Não, ordinariamente eu não tenho... Às vezes eu tenho uns sonhos que se transformam em literatura. Por exemplo, tenho um poema chamado “Sonho” que realmente foi um sonho. E às vezes quando não estou acordado ainda, mas não estou mais dormindo, é o momento em que invento muita coisa, que penso em muitos textos; é muito criativo.


Essa experiência mudou seu jeito de perceber o mundo e as pessoas? Não. Poucos dias antes de adoecer eu dei uma entrevista em que me perguntaram se eu tinha medo da morte. E eu disse: eu não gosto de contar valentia antecipada, acho que a gente só pode dizer que não tem medo de alguma coisa depois de enfrentá-la. Agora, até onde eu vejo, eu não tenho medo da morte. Eu tenho pena de morrer sem ter realizado certas coisas. Por exemplo: se visse que não dava para terminar o romance que escrevo, aí teria muito pena de morrer. Engraçado, quando eu estava lá no hospital nos primeiros momentos, que descobri que tinha tido um infarto –fui saber disso no hospital– eu me agoniei muito porque tinha deixado o manuscrito aqui em casa. Primeiro eu dividi o livro grande em vários livros. Cada capítulo do livro é escrito em forma de cartas, e toda carta termina do mesmo jeito. Porque eu digo lá que fiz um pacto com Deus, e fiz mesmo: se ele achasse que o romance tinha alguma coisa de sacrílego ou de desrespeitoso, que interrompesse pela morte. Qual é o jeito, quais são as palavras? A gente tem uma tendência a responder a verdade, né? É uma tentação desgraçada. Bom, todas terminam com um verso, um martelo gabinete e um martelo agalopado. O martelo gabinete é um martelo de seis versos de dez sílabas, e o martelo agalopado são dez versos de dez sílabas. O senhor já deu por encerrado o seu trabalho várias vezes, mas sempre o retomou. Os acontecimentos recentes forçaram o sr a finalmente encerrar pra valer? Forçaram. Eu me forcei a dar o ponto. Mas repare bem: mesmo assim, só há poucos dias eu tomei a decisão definitiva. Primeiro, eu, com medo por causa do infarto, decidi que publicaria as duas primeiras cartas. Depois do infarto, já em casa, resolvi que dava para juntar mais duas, quatro. Depois mais duas, seis. O primeiro volume está concluído. Esse primeiro volume já pode ser lançado em breve? Eu terminei meu texto. Mas ele está grande, em folhas de tamanho ofício, precisa ser reduzido. As ilustrações já estão prontas. Porque eu quero pegar a cultura brasileira desde o começo mesmo, mostrar que isso aqui não envelhece não. Uma obra de arte está feita para ser reinterpretada, revista, revisada. E também me baseei muito em desenhos barrocos

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MUITO ALÉM DE UMA VIDA SEVERINA Não se trata apenas de vida narrativa, é antes de tudo uma vida primária que respira, respira, respira Por Wellington Andrade Fotos Bob Souza

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irigida por Zé Henrique de Paula, a mais recente montagem do Núcleo Experimental – Ao pé do ouvido, em cartaz no auditório do Sesc Pinheiros até o dia 17 de outubro – constitui uma forma cênica bastante singular. Sentados em cadeiras dispostas diante da plateia, os sete atores da companhia, de posse de um fone de ouvido plugado a um aparelho celular, ouvem os depoimentos de migrantes nordestinos em São Paulo, que relatam suas histórias de vida. Enquanto escuta o áudio, ao qual o público não tem acesso, cada intérprete procura recontar fielmente o que está ouvindo, reproduzindo não somente as palavras, mas também a musicalidade, o sotaque e certos recursos expressivos típicos da oralidade, como suspiros, pausas e pigarros, que as acompanham. Os depoimentos – reais – foram colhidos de sete pessoas que saíram da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Maranhão e vieram para São Paulo

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Grupo de espectadores durante a gravação das fitas

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em busca de melhores condições de vida. As narrativas, apresentadas de forma entrecortada, formam um painel rico e variado disposto a retratar a diversidade das experiências socioculturais a que foram submetidos tais indivíduos, a saber: uma babá, um porteiro, um pedreiro, um pescador, uma costureira, um médico e uma atriz. Usando uma variante da técnica do verbatim (mais conhecida em países europeus, sobretudo na Inglaterra) na qual a dramaturgia surge a partir do cruzamento de entrevistas gravadas, o espetáculo aposta no despojamento formal, embora em momento algum tal característica implique a ideia de simplicidade. O que os espectadores recebem do palco por parte de uma encenação, a bem da verdade, um tanto quanto estática, não soa nada simples:

um jorro da mais bem-vinda autenticidade envolve a plateia, enredando-a em uma atmosfera habilmente construída que alia momentos ora cômicos, ora patéticos, ora dramáticos, ora puramente comoventes. Tal empreitada poderia desregular em arremedo e mistificação, não fossem a inteligência e a sensibilidade demonstradas tanto pelo diretor como pelo elenco no trato de material tão arenoso. Assim, a primeira grande qualidade do projeto reside na firme direção que Zé Henrique de Paula


As narrativas formam um painel rico e variado exerce frente a um elenco de inegável talento integrado por Bruna Thedy, Cy Teixeira, Herbert Bianchi, Hugo Picchi, Laerte Késsimos, Rita Batata e Rodrigo Caetano. Por cerca de 80 minutos, eles ouvem e veiculam os depoimentos de Maria, Renata, Antônio, Francenildo, Francisco, Silvana e José, exercitando uma mediação entre estes e a plateia de dos depoimentos que esteja em jogo, é na forma “vazia” inequívoco e agudo sentido político. como eles se apresentam que está assentada a dimensão Como advérbio, a palavra latina estética da proposta que embasa o espetáculo. O que “verbatim” significa “literalmente”, chega dos testemunhos originais aos ouvidos do espec“exatamente nas mesmas palavras”. tador é somente a voz do ator funcionando como uma Já como adjetivo ela compreende espécie de segunda natureza, processo mimético que não a noção daquilo “que corresponde pode levar o intérprete a querer se sobrepor ao discurso palavra por palavra à fonte ou tex- autêntico, embora o convide a contaminar este discurso to original”, denotando também a com a materialidade vocal e corpórea que lhe é própria ideia de “precisão ao pé da letra”. – o que já garante à empreitada a aura de uma teatraliAssim, ao empregar a técnica do dade das mais instigantes. Um jogo testemunhal bastante verbatim, o espetáculo solicita a ade- sui generis, estabelece-se, então, entre plateia e atores no são do espectador a um depoimento tocante à audição, sentido aqui que adquire um estatuto que ele não viu ser dado, tampouco mais importante do que o da visão. ouve, ali no teatro, ser proferido em Sobre tal aspecto, vale lembrar a diferença que existe sua forma original, mas pressupõe entre ver e ouvir no ambiente jurídico do mundo grecoser verdadeiro, uma vez que é bas- -latino, estudada por Émile Benveniste em O vocabulário tante verossímil. Cumpre notar que, das instituições indo-europeias. A palavra “testemunha” embora não seja a confiabilidade em grego corresponde à forma “ístor” e significa “o que

Espectadora ouvindo atentamente às comoventes histórias

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Familiar de um dos participantes que contou sua história, durante a apresentação

vê”, desdobrada em “aquele que sabe por ter visto”. Desse modo, afirma o linguista francês, para os gregos “entre quem viu e quem ouviu, é sempre a quem viu que se deve dar fé. É por isso que os deuses são tomados como testemunhas, pedindo-lhes que vejam; o testemunho da visão é irrefutável; ele é único”. Entretanto, no mundo romano, embora os juramentos também venham acompanhados do apelo aos deuses como testemunhas, a fórmula que o anuncia é diferente, adverte Benveniste: “Pede-se a Júpiter, ao pater patratus e ao povo de Alba que ouçam. Deve-se ‘ouvir’ para ser testemunha do juramento em Roma. Para o romano, que dedica tanto apreço ao enunciado das fórmulas solenes, ver é menos importante do que ouvir”. Ao centrar toda sua tensão criativa no ato da escuta, Ao pé do ouvido transforma atores e plateia em testemunhas que “sabem por terem escutado”, embora dois níveis diferentes separem aqueles desta: os intérpretes ouvem em primeiro grau, ainda que de forma mecânica, os depoimentos reais; já os espectadores têm acesso a eles de modo indireto, pela estranha mediação estabelecida em cena. Que abre mão da clássica categoria artística de “personagem”, preferindo antes investigar as potencialidades expressivas da noção antropológica de “pessoa” – cujo único senso de realidade estranhamente para o espectador é uma voz ausente. Que se corporificar em um ator neutro, cuja presença remete ao outro, com quem

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acabamos por conviver de modo muito íntimo e pessoal. A escolha desses sete indivíduos está orientada por um equilíbrio um tanto quanto esquemático, mas muito eloquente. Três deles transitam pela esfera daqueles nordestinos cujas atividades em São Paulo estão impregnadas de estereotipia: a babá, o pedreiro e o porteiro. Os relatos dos dois primeiros beiram a comoção, dados o abandono e a falta de perspectiva que os cercam, aos quais eles reagem com um otimismo um tanto quanto desolador. Impossível não pensar na Macabéa, de Clarice, ou no Fabiano, de Graciliano. Não por ascendência direta. Que os tempos são outros. Mas sim por herança presuntiva. Uma vez que as coisas não mudam tanto assim. Já o depoimento do terceiro indivíduo priva de uma característica diferente. Embora soe algumas vezes patético, há algo de astucioso e alegre no porteiro que nos desobriga a nos comovermos com ele. Três dos outros indivíduos fogem do senso comum, são diferentes de todos: a costureira, o médico e a atriz. Seja pela situação financeira mais bem equilibrada, seja pelo domínio de um discurso que revela autonomia e criticidade.


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CONSIDERAÇÕES DA EXPERIÊNCIA O indivíduo poderia também figurar nesse grupo, mas a ele compete uma especificidade que todos os demais não têm: o pescador volta para o nordeste em busca de uma vida ideal que somente em sua terra natal lhe é possível viver. Ele continua viajando de lá para cá, mas seu discurso não dissimula o local a que de fato pertence. A ideia de compor esse pequeno mosaico está comprometida com a recusa dos clichês e estereótipos que ainda hoje abastecem boa parte da indústria cultural no tocante ao tratamento dos nordestinos. E aqui novamente uma curiosa questão se impõe. Os atores procuram reproduzir com bastante fidelidade os sotaques que estão ouvindo, o que poderia também resvalar no precário recurso da falsa mimese – como aqueles tipicamente usados em novelas de Tv (tema incorporado ironicamente ao discurso da atriz) –, não ficasse claro desde o começo tratar-se de uma reprodução verbatim, e não de uma imitação fantasiosa. A noção de uma realidade que é “evocada” pelo ato teatral – e não “simulada” por ele – evita o arremedo e confere ao projeto seu alcance político. Muito cedo percebemos que as falas desses seres reais dirigidas a nós estão impregnadas de uma performatividade muito própria, que rapidamente desautoriza o clichê e o estereótipo (evidenciados nos risos fora de hora que vão diminuindo paulatinamente durante o espetáculo) para construir com muita potência a noção de alteridade. De repente, somos flagrados pela presença do outro, com suas hesitações, seus fracassos, suas alegrias, seus anseios, seus dramas. Muito além de ser um “nordestino” – fadado a viver sua incontornável vida “severina” –, este outro é tão brasileiro quanto eu. E o empenho da igualdade aqui não nasce da concessão de um altruísmo espúrio (que embase a empatia com o

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O Nordeste é uma invenção do Sudeste migrante somente porque ele é alvo do meu riso). Antes, ele surge da consciência de que este outro tem os mesmos direitos que eu. Como seria um espetáculo em que atores nordestinos reproduzissem verbatim os discursos de indivíduos paulistanos, às voltas com suas próprias histórias de vida? Deixando de lado os nossos próprios estereótipos (um discurso bem-pensante que confunde concordância e regência cultas com sinal de inteligência, o apego a valores conservadores travestidos de modernidade…), que a indústria cultural toma por naturais, o que sobraria dessas falas todas seria exatamente aquilo com o qual Ao pé do ouvido quer que entremos em contato: com a experiência radical da alteridade. O Nordeste é uma invenção do Sudeste, precipitando-se rapidamente em uma espécie de epíteto no qual cabem muito bem qualificativos que vão do pitoresco ao inferior, adverte esse projeto do Núcleo Experimental. Parodiando Edward Said em seu colossal Orientalismo: o Oriente como


invenção do Ocidente, ao final do espetáculo, “não tenho um Nordeste ‘real’ a defender. Tenho, contudo, enorme consideração pela fortaleza das pessoas daquela parte do Brasil, bem como por seu esforço de continuar lutando por sua concepção do que são e do que desejam ser”. A mesma oralidade performativa – sagaz, hábil e articulada (vazada em uma norma linguística diferente da nossa, que talvez seja reprovada nas provas de português de concursos públicos, mas que é absolutamente bem-vinda à tessitura cultural do país) – já foi retratada pelo cinema de Eduardo Coutinho e pela literatura de João Guimaraes Rosa. Nos quais se propõe um longo mergulho para se chegar ao conhecimento do outro. Enquanto boa parte da criação artística que se debruça sobre este outro somente como um fetiche acabe por flutuar sem molhar as penas, para ficar na ironia do registro rosiano. Em tempos em que grassa nas mais variadas mídias uma oralidade esquizoide, paranóica e alucinada, que verbaliza o estrangeiro, o diferente sempre como risco e ameaça, Ao pé do ouvido constitui um belíssimo exercício formativo, sem abrir mão da ludicidade inerente ao mundo do teatro. Lúdico e teatral cabem

no espetáculo perfeitamente. Embora não apaguem os contornos da complexidade que o envolve, matriz do misto de admiração e busca por alguma compreensão que orientou boa parte do presente texto. “Aquilo que se perde com os media, e assim necessariamente permanecerá, é a corporeidade, o peso, o volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão”, aponta Paul Zumthor em seu estudo sobre performance e oralidade. Em Ao pé do ouvido, o teatro cumpre uma vez mais seu papel transgressor, convidando os atores a transformarem a escuta de um áudio na emergência de uma energia vocal reprimida duramente pela vida social. E convidando também a plateia a entender a necessidade vital que a voz humana tem de “tomar de fato a palavra”, para que o dito não fique simplesmente, como sói acontecer no mundo tagarela de hoje, pelo não dito. Esperança para as horas em que mais se precisa de ajuda e não se tem. Elas passam a estar à frente de todos os problemas e lhes trazem o alívio da dificuldade resolvida”

Mais um ouvinte, comovido com as histórias

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O Santo que não acreditava em Deus Por João Ubaldo Ribeiro Foto José Mateus Bichara Temos várias espécies de peixe neste mundo, havendo o peixe que come lama, o peixe que come baratas do molhado, o peixe que vive tomando sopa fazendo chupações na água, o peixe que, quando vê a fêmea grávida pondo ovos, não pode se conter e com agitações do rabo lava a água de esporras a torto e a direito ficando a água leitosa, temos o peixe que persegue os metais brilhantes, umas cavalas que pulam para fora bem como tainhas, umas corvinas quase que atômicas, temos por exemplo o niquim, conhecido por todas as orlas do Recôncavo, o qual peixe não somente fuma cigarros e cigarrilhas, preferindo a tálvis e o continental sem filtro, hoje em falta, mas também ferreia pior do que uma arraia a pessoa que futuca suas partes, rendendo febre e calafrios, porventura caganeiras, mormente frios e tantas coisas, temos os peixes tiburones e cações, que nunca podem parar de nadar para não morrer afogados. É engraçado que eu entenda tanto de peixe e quase não pegue, mas entendo. Os peixes miúdos de moqueca são: o carapicu, o garapau, o chicharro e a sardinha. Entremeados, podemos ferrar o baiacu e o barrigame-dói, o qual o primeiro é venenoso e o segundo causa bostas soltas e cólicas. De uma ponte igual a essa, que já foi bastante melhor, podemos esperar também peixes de mais de palmo, porém menos de dois, que por aqui passam, dependendo do que diz o rei dos peixes, dependendo de uma coisa e outra. Um budião, um cabeçudo, um frade, um barbeiro. Pode ser um robalo ou uma agulha ou ainda uma moréia, isto dificilmente. O bom da pesca do peixe miúdo é quando estão mordendo verdadeiramente e sentamos na rampa ou então vamos esfriando as virilhas nestas águas de agosto e ficamos satisfeitos com aquela expedição de pescaria e nada mais desejamos da vida. Ou quando estamos como assim nesta canoa, porém nada mordendo, somente carrapatos. Nesses peixes miúdos de moqueca, esquecia eu de mencionar o carrapato, que não aparece muito a não ser em certas épocas, devendo ter recebido o nome de carrapato justamente por ser uma completa infernação, como os carrapatos do ar. Notadamente porque esse peixe carrapato tem a boca mais do que descomunal para o tamanho, de modo que botamos um anzol para peixes mais fundos, digamos um vermelho, um olho-de-boi, um peixe-tapa, uma coisa decente, quando que me vem lá de baixo, parecendo uma borboletinha pendurada na ponta da linha, um carrapato. Revolta a pessoa. E estou eu colocando uma linha de náilon que me veio de Salvador por intermédio de Luiz Cuiúba, que me traz essa linha verde e grossa, com dois chumbos de cunha e anzóis presos por uma espécie de rosca de arame, linha esta que não me dá confiança, agora se vendo que é especializada em carrapatos. Mas temos uma vazante despreocupada, vem aí setembro com

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produção textual: conto

Retrato de um pescador no pier, em seu trabalho

suas arraias no céu e, com esses dois punhados de camarão miúdo que Sete Ratos me deu, eu amarro a canoa nos restos da torre de petróleo e solto a linha pelos bordos, que não vou me dar ao desfrute de rodar essa linha esquisita por cima da cabeça como é o certo, pode ser que alguém me veja. Daqui diviso os fundos da Matriz e uns meninos como formiguinhas escorregando nas areias descarregadas pelos saveiros, mas o barulho deles chega a mim depois da vista e assim os gritos deles parecem uns rabos compridos. Temos uma carteira quase cheia de cigarros; uma moringa, fresca, fresca; meia quartinha de batida de limão; estamos sem cueca, a água, se não fosse a correnteza da vazante, era mesmo um espelho; não falta nada e então botamos o chapéu um pouco em cima do nariz, ajeitamos o corpo na popa, enrolamos a linha no tornozelo e quedamos, pensando na vida. Nisso começa o carrapato, que no princípio tive na conta de baiacus ladrões. Quem está com dois anzóis dos grandes, pegou isca de graça e a mulher já mariscou a comida do meio-dia pode ser imaginado que não vai dar importância a beliscão leve na linha. Nem leve nem pesado. Se quiser ferrar, ferre, se não quiser não ferre. Isso toda vez eu penso, como todo mundo que tem juízo, mas não tem esse santo que consiga ficar com aqueles puxavantes no apeador sem se mexer e tomar uma providência. Estamos sabendo: é um desgraçado de um baiacu. Se for, havendo ele dado todo esse trabalho, procuremos arrancar o anzol que o

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miserável engole e estropia e trataremos de coçar a barriga dele e, quando inchar, dar-lhe um pipoco, pisando com o calcanhar. Mas como de fato não é um baiacu, mas um carrapato subdesenvolvido, um carrapatinho de merda, com mais boca do que qualquer outra coisa, boca essa assoberbando um belo anzol preparado pelo menos para um dentão, não se pode fazer nada. Um carrapato desses a pessoa come com uma exclusiva dentada com muito espaço de sobra, se valesse a pena gastar fogo com um infeliz desses. Vai daí, carrapato na poça d’água do fundo da canoa e, dessa hora em diante, um carrapato por segundo mordendo o anzol, uma azucrinarão completa. Foi ficando aquela pilha de carrapatinhos no fundo da canoa e eu pensei que então não era eu quem ia aparecer com eles em casa, porque com certeza iam perguntar se eu tinha catado as costas de um jegue velho e nem gato ia querer comer aquilo. Pode ser que essa linha de Cuiúba tenha especialidade mesmo em carrapato, pode ser qualquer coisa, mas chega a falta de vergonha ficar aqui fisgando esses carrapatos, de maneira que só podemos abrir essa quartinha, retirar o anzol da água, verificar se vale a pena remar até o pesqueiro de Paparrão nesta soalheira, pensar que pressa é essa que o mundo não vai acabar, e ficar mamando na quartinha, viva a fruta limão, que é curativa. Nisto que o silêncio aumenta e, pelo lado, eu sinto que tem alguma coisa em pé pelas biribas da torre velha e eu não tinha visto nada antes, não podendo também ser da aguardente, pois que muito mal tomei dois goles. Ele estava segurando uma biriba coberta de ostras com a mão direita, em pé numa escora, com as calças arregaçadas, um chapéu velho e um suspensório por cima da camisa. Ora, uma manta de azeiteiras vem vindo bendodela, costeando o perau. É conhecida porque quebra a água numa porção de pedacinhos pela flor e aquilo vai igual a muitas lâminas, bordejando e brilhando. Mas dessas azeiteiras, como as peixas chamadas solteiras, não se pode esperar que mordam anzol, nem mesmo morram de bomba. Assim levamos um certo tempo, porque ele se encabulou, me afirmando que não apreciava mentir, razão por que preferia não se apresentar, mas eu disse que não botava na minha canoa aquele de quem não saiba o nome e então ficasse ele ali o resto da manhã, a tarde e a noite pendurado nas biribas, esperando Deus dar bom tempo. Mas que coisa interessante, disse ele dando um suspiro, isso que você falou. Mais ligeiro que o trovão, botou os braços para cima e tome tudo quanto foi tipo de linha saindo pelos dedos dele, parecia um arco-íris. Ele aí ficou todo monarca, olhando para mim com a cara de quem eu não sou nem principiante em peixe e pesca. Mas o que aconteceu? Aconteceu que, na mesma hora, cada um dos anzóis que ele botou foi mordido por um carrapato e, quando ele puxou, foi aquela carrapatada no meio da canoa. Eu fiz: quá-quá-quá, não está vendo tu que temos somente carrapatos?

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Para que eu disse isto, amigo, porque me saiu um mero que não tinha mais medida, saiu esse mero de junto assim da biriba, dando um pulo como somente cavacos dão e me passou uma rabanada na cara que minha cara ficou vermelha dois dias depois disto. Pois não é que ele mandou esse banho, tendo saído uma onda da parte da Ponta de Nossa Senhora, curvando como uma alface aborrecida a ponta da coroa, a qual onda deu tamanha porrada na canoa que fiquemos flutuando no ar vários momentos. Fui caindo de pau no elemento, nisso que ele se vira num verdadeiro azougue e me desce mais que quatrocentos sopapos bem medidos, equivalentemente a um catavento endoidado e, cada vez que eu levantava, nessa cada vez eu tomava uma porrada encaixada. Terminou nós caindo das nuvens, não sei qual com mais poeira em torno da garupa. Ele, no meio da queda, me deu uns dois tabefes e me disse: está convertido, convencido, inteirado, percebido, assimilado, esclarecido, explicado, destrinchado, compreendido, filho de uma puta? E eu disse sim senhor, Deus é mais. Pare de falar em mim, sacaneta, disse ele, senão lhe quebro todo de porrada. Reze aí um padre-nosso antes que eu me aborreça, disse ele. Cale essa matraca, disse ele. Então eu fui me convencendo, mesmo porque ele não estava com essas paciências todas, embora se estivesse vendo que ele era boa pessoa. Esclareceu que, se quisesse, podia andar em cima do mar, mas era por demais escandaloso esse comportamento, podendo chamar a atenção. Que qualquer coisa que ele resolvesse fazer ele fazia e que eu não me fizesse de besta e que, se ele quisesse, transformava aqueles carrapatos todos em lindos robalos frescos. No que eu me queixei que dali para Maragogipe era um bom pedaço e que era mais fácil um boto aparecer para puxar a gente do que a gente conseguir chegar lá antes que a feira acabasse e aí ele mete dois dedos dentro da água e a canoa sai parecendo uma lancha da Marinha, ciscando por cima dos rasos e empinando a proa como se fosse coisa, homem ora. Achei falta de educação não oferecer um pouco do da quartinha, mas ele disse que não estava com vontade de beber. Nisso vamos chegando muito rapidamente a Maragogipe e Deus puxa a poita desparramando muitos carrapatos pelos lados e fazendo a alegria dos siris que por ali pastejam e sai como que nem um peixe-voador. No meio do caminho, ele passa bastante desencalmado e salva duas almas com um toque só, uma coisa de relepada como somente quem tem muita prática consegue fazer, vem com a experiência. Porque ele nem estava olhando para essas duas almas, mas na passagem deu um toque na orelha de cada uma e as duas saíram voando ali mesmo, igual aos martins depois do mergulho. Mas aí ele ficou sem saber para onde ia, na beira da feira, e então eu cheguei perto dele. Nessa hora eu quase ia me aborrecendo, mas uma coisa fez que eu não

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mandasse ele para algum lugar, por falar dessa maneira sem educação. É que, sendo ele Deus, a pessoa tem de respeitar. Minto: três coisas, duas além dessa. A segunda é que pensei que ele, sendo carpina por profissão, não estava acostumado a finuras, o carpina no geral não alimenta muita conversa nem gosta de relambórios. A terceira coisa é que, justamente por essa profissão e acho que pela extração dele mesmo, ele era bastante desenvolvidozinho, aliás, bem dizendo, um pau de homem enormíssimo, e quem era que estava esquecendo aquela chuva de sopapos e de repente ele me amaldiçoa feito a figueira e eu saio por aí de perna peca no mínimo, então vamos tratar ele bem, quem se incomoda com essas bobagens? Indaguei com grande gentileza como é que eu ia ajudar que ele achasse essa bendita dessa criatura que ele estava procurando logo na feira de Maragogipe, no meio dos cajus e das rapaduras, que ele me desculpasse, mas que pelo menos me dissesse o nome do homem e a finalidade da procura. Ele me olhou assim na cara, fez até quase que um sorriso e me explicou que ia contar tudo a mim, porque sentia que eu era um homem direito, embora mais cachaceiro do que pescador. Em outro caso, ele podia pedir segredo, mas em meu caso ele sabia que não adiantava e não queria me obrigar a fazer promessa vã. Que então, se eu quisesse, que contasse a todo mundo, que ninguém ia acreditar de qualquer jeito, de forma que tanto faz como tanto fez. E que escutasse tudo direito e entendesse de

Interior de uma igreja no Ceará

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uma vez logo tudo, para ele não ter de repetir e não se aborrecer. Mas Deus, ah, você não sabe de nada, meu amigo, a situação de Deus não está boa. Você imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino, entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade. Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado, ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta. É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência. Senão, disse ele, senão… e fez uma menção que ia dar um murro com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não deu, graças a Deus. Então, explicou Deus, eu vivo procurando um santo aquifparticular e, de repente, se desentenderam. Eu, que fiquei sentado longe, só ouvia os gritos, meio dispersados pelo vento. E só quebrando porrada, pelo barulho, e eu achando que, se Deus não ganhasse na conversa, pelo menos ganhava na porrada, eu já conhecia. Mas não era coisa fácil. De volta de meia-noite e meia até umas quatro, só se ouvia aquele cacete: deixe de ser burro, infeliz

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João Cabral de Melo Neto Ilustrações por Michel Falcão


2 O retirante explica ao leitor quem é e a que vai — O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mais isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar alguns roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.


3 Encontra dois homens carregando um defunto numa rede aos gritos de “Ó irmãos das almas! Irmãos da almas! Não fui eu quem matei não!” A quem estais carregando, irmãos das almas, embrulhado nessa rede? dizei que eu saiba. A um defunto de nada, irmão das almas, que há muitas horas viaja à sua morada. E sabeis quem era ele, irmãos das almas, sabeis como ele se chama ou se chamava? Severino Lavrador, irmão das almas, Severino Lavrador, mas já não lavra. — E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas, onde foi que começou vossa jornada? — Onde a Caatinga é mais seca, irmão das almas, onde uma terra que não dá nem planta brava. — E foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida ou foi matada? — Até que não foi morrida, irmão das almas,

esta foi morte matada, numa emboscada. — E o que guardava a emboscada, irmão das almas e com que foi que o mataram, com faca ou bala? — Este foi morto de bala, irmão das almas, mas garantido é de bala, mais longe vara. — E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra ele soltou essa ave-bala? — Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala voando desocupada. — E o que havia ele feito irmãos das almas, e o que havia ele feito contra a tal pássara? — Ter um hectare de terra, irmão das almas, de pedra e areia lavada que cultivava. — Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas que podia ele plantar na pedra avara? — Nos magros lábios de areia, irmão das almas,


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os intervalos das pedras, plantava palha. — E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas covas, tão cobiçada? — Tinha somente dez quadras, irmão das almas, todas nos ombros da serra, — Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por que o mataram com espingarda? — Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar mais livre essa ave-bala. — E agora o que passará, irmãos das almas, o que é que acontecerá contra a espingarda? — Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala. — E onde o levais a enterrar, irmãos das almas, com a semente do chumbo que tem guardada? — Ao cemitério de Torres,

irmão das almas, que hoje se diz Toritama, de madrugada. — E poderei ajudar, irmãos das almas? vou passar por Toritama, é minha estrada. — Bem que poderá ajudar, irmão das almas, é irmão das almas quem ouve nossa chamada. — E um de nós pode voltar, irmão das almas, pode voltar daqui mesmo para sua casa. — Vou eu que a viagem é longa, irmãos das almas, é muito longa a viagem e a serra é alta. — Mais sorte tem o defunto irmãos das almas, pois já não fará na volta a caminhada. — Toritama não cai longe, irmãos das almas, seremos no campo santo de madrugada. — Partamos enquanto é noite irmãos das almas, que é o melhor lençol dos mortos noite fechada.


5 O retirante tem medo de se extraviar por seu guia, o rio Apibaribe, — Antes de sair de casa aprendi a ladainha das vilas que vou passar na minha longa descida. Sei que há muitas vilas grandes, cidades que elas são ditas; sei que há simples arruados, sei que há vilas pequeninas, todas formando um rosário cujas contas fossem vilas, de que a estrada fosse a linha. Devo rezar tal rosário até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila. Vejo agora: não é fácil seguir essa ladainha; entre uma conta e outra conta, entre uma e outra ave-maria, há certas paragens brancas, de planta e bicho vazias, vazias até de donos, e onde o pé se descaminha. Não desejo emaranhar o fio de minha linha

nem que se enrede no pêlo hirsuto desta caatinga. Pensei que seguindo o rio eu jamais me perderia: ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia. Mas como segui-lo agora que interrompeu a descida? Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima, é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina e no verão também corta, com pernas que não caminham. Tenho que saber agora qual a verdadeira via entre essas que escancaradas frente a mim se multiplicam. Mas não vejo almas aqui, nem almas mortas nem vivas; ouço somente à distância o que parece cantoria. Será novena de santo, será algum mês-de-Maria; quem sabe até se uma festa ou uma dança não seria?


6 Na casa a que o retirante chega estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando a palavra dos cantadores — Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas... — Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição. — Finado Severino, etc... — Dize que levas somente coisas de não:

fome, sede, privação. — Finado Severino, etc... — Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão, que ainda deves. — Uma excelência dizendo que a hora é hora. — Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora. — Duas excelências... —...dizendo é a hora da plantação. — Ajunta os carreadores... —...que a terra vai colher a mão.


7 Cansado da viagem o retirante pensa interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho ali onde se encontra — Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte deparei e às vezes até festiva; só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida Severina (aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais Severina para o homem que retira). Penso agora: mas por que parar aqui eu não podia e como Capibaribe interromper minha linha? ao menos até que as águas de uma próxima invernia me levem direto ao mar ao refazer sua rotina? Na verdade, por uns tempos, parar aqui eu bem podia e retomar a viagem

quando vencesse a fadiga. Ou será que aqui cortando agora minha descida já não poderei seguir nunca mais em minha vida? (será que a água destes poços é toda aqui consumida pelas roças, pelos bichos, pelo sol com suas línguas? será que quando chegar o rio da nova invernia um resto de água no antigo sobrará nos poços ainda?) Mas isso depois verei: tempo há para que decida; primeiro é preciso achar um trabalho de que viva. Vejo uma mulher na janela, ali, que se não é rica, parece remediada ou dona de sua vida: vou saber se de trabalho poderá me dar notícia.

Dirige-se à mulher na janela que depois, descobre tratar-se de quem se saberá — Muito bom dia, senhora, que nessa janela está; sabe dizer se é possível algum trabalho encontrar? — Trabalho aqui nunca falta a quem sabe trabalhar; o que fazia o compadre na sua terra de lá? — Pois fui sempre lavrador, lavrador de terra má; não há espécie de terra que eu não possa cultivar.

— Isso aqui de nada adianta, pouco existe o que lavrar; mas diga-me, retirante, o que mais fazia por lá? — Também lá na minha terra de terra mesmo pouco há; mas até a calva da pedra sinto-me capaz de arar. — Também de pouco adianta, nem pedra há aqui que amassar; diga-me ainda, compadre, que mais fazias por lá?


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— Conheço todas as roças que nesta chã podem dar; o algodão, a mamona, a pita, o milho, o caroá. — Esses roçados o banco já não quer financiar; mas diga-me, retirante, o que mais fazia lá? — Melhor do que eu ninguém sei combater, quiçá, tanta planta de rapina que tenho visto por cá. — Essas plantas de rapina são tudo o que a terra dá; diga-me ainda, compadre que mais fazia por lá? — Tirei mandioca de chãs que o vento vive a esfolar e de outras escalavras pela seca faca solar. — Isto aqui não é Vitória nem é Glória do Goitá; e além da terra, me diga, que mais sabe trabalhar? — Sei também tratar de gado, entre urtigas pastorear; gado de comer do chão ou de comer ramas no ar. — Aqui não é Surubim nem Limoeiro, oxalá! mas digame, retirante, que mais fazia por lá? — Em qualquer das cinco tachas de um bangüê sei cozinhar; sei cuidar de uma moenda, de uma casa de purgar. — Com a vinda das usinas há poucos engenhos já; nada mais o retirante aprendeu a fazer lá? — Ali ninguém aprendeu

outro ofício, ou aprenderá; mas o sol, de sol a sol, bem se aprende a suportar. — Mas isso então será tudo em que sabe trabalhar? vamos, diga, retirante, outras coisas saberá. — Deseja mesmo saber o que eu fazia por lá? comer quando havia o quê e, havendo ou não, trabalhar. — Essa vida por aqui é coisa familiar; mas diga-me retirante, sabe benditos rezar? sabe cantar excelências, defuntos encomendar? sabe tirar ladainhas, sabe mortos enterrar? — Já velei muitos defuntos, na serra é coisa vulgar; mas nunca aprendi as rezas, sei somente acompanhar. — Pois se o compadre soubesse rezar ou mesmo cantar, trabalhávamos a meias, que a freguesia bem dá. — Agora se me permite minha vez de perguntar: como senhora, comadre, pode manter o seu lar? — Vou explicar rapidamente, logo compreenderá: como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar. — E ainda se me permite que volte a perguntar: é aqui uma profissão trabalho tão singular? — É, sim, uma profissão, e a melhor de quantas há:


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sou de toda a região rezadora titular. — E ainda se me permite mais outra vez indagar: é boa essa profissão em que a comadre ora está? — De um raio de muitas léguas vem gente aqui me chamar; a verdade é que não pude queixar-me ainda de azar. — E se pela última vez me permite perguntar: não existe outro trabalho para mim nesse lugar? — Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente

de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá. Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazemos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear


10 Assiste ao enterro de um trabalhador de eite e que ouve o que dizem do morto que o levaram ao cemitério — Essa cova em que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida. — É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe neste latifúndio. — Não é cova grande. é cova medida, é a terra que querias ver dividida. — É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo. — É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. — É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca. — Viverás, e para sempre na terra que aqui aforas: e terás enfim tua roça. — Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva,

criando tuas saúvas. — Agora trabalharás só para ti, não a meias, como antes em terra alheia. — Trabalharás uma terra da qual, além de senhor, serás homem de eito e trator. — Trabalhando nessa terra, tu sozinho tudo empreitas: serás semente, adubo, colheita. — Trabalharás numa terra que também te abriga e te veste: embora com o brim do Nordeste. — Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como nunca em vida. — Será de terra a tua melhor camisa: te veste e ninguém cobiça. — Terás de terra completo agora o teu fato: e pela primeira vez, sapato. — Como és homem, a terra te dará chapéu: fosses mulher, xale ou véu.


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— Tua roupa melhor será de terra e não de fazenda: não se rasga nem se remenda. — Tua roupa melhor e te ficará bem cingida: como roupa feita à medida. — Esse chão te é bem conhecido (bebeu teu suor vendido). — Esse chão te é bem conhecido (bebeu o moço antigo) — Esse chão te é bem conhecido (bebeu tua força de marido). — Desse chão és bem conhecido (através de parentes e amigos). — Desse chão és bem conhecido (vive com tua mulher, teus filhos) — Desse chão és bem conhecido (te espera de recém-nascido). — Não tens mais força contigo: deixa-te semear ao comprido. — Já não levas semente viva: teu corpo é a própria maniva. — Não levas rebolo de cana: és o rebolo, e não de caiana. — Não levas semente na mão: és agora o próprio grão. — Já não tens força na perna: deixa-te semear na coveta. — Já não tens força na mão: deixa-te semear no leirão.

— Dentro da rede não vinha nada, só tua espiga debulhada. — Dentro da rede vinha tudo, só tua espiga no sabugo. — Dentro da rede coisa vasqueira, só a maçaroca banguela. — Dentro da rede coisa pouca, tua vida que deu sem soca. — Na mão direita um rosário, milho negro e ressecado. — Na mão direita somente o rosário, seca semente. — Na mão direita, de cinza, o rosário, semente maninha, — Na mão direita o rosário, semente inerte e sem salto. — Despido vieste no caixão, despido também se enterra o grão. — De tanto te despiu a privação que escapou de teu peito à viração. — Tanta coisa despiste em vida que fugiu de teu peito a brisa. — E agora, se abre o chão e te abriga, lençol que não tiveste em vida. — Se abre o chão e te fecha, dando-te agora cama e coberta. — Se abre o chão e te envolve, como mulher com que se dorme.


12 O retirante chega ã zona da mata, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem — Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia quando mais do litoral a viagem se aproxima. Agora afinal cheguei nesta terra que diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista. Os rios que correm aqui têm água vitalícia. Cacimbas por todo lado; cavando o chão, água mina. Vejo agora que é verdade o que pensei ser mentira Quem sabe se nesta terra não plantarei minha sina? Não tenho medo de terra (cavei pedra toda a vida), e para quem lutou a braço contra a piçarra da Caatinga será fácil amansar esta aqui, tão feminina.

Mas não avisto ninguém, só folhas de cana fina; somente ali à distância aquele bueiro de usina; somente naquela várzea um bangüê velho em ruína. Por onde andará a gente que tantas canas cultiva? Feriando: que nesta terra tão fácil, tão doce e rica, não é preciso trabalhar todas as horas do dia, os dias todos do mês, os meses todos da vida. Decerto a gente daqui jamais envelhece aos trinta nem sabe da morte em vida, vida em morte, severina; e aquele cemitério ali, branco de verde colina, decerto pouco funciona e poucas covas aninha.


13 O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao recife — Nunca esperei muita coisa, digo a Vossas Senhorias. O que me fez retirar não foi a grande cobiça; o que apenas busquei foi defender minha vida de tal velhice que chega antes de se inteirar trinta; se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda. Mas não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina,

e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça, a vida arde sempre com a mesma chama mortiça. Agora é que compreendo por que em paragens tão ricas o rio não corta em poços como ele faz na Caatinga: vive a fugir dos remansos a que a paisagem o convida, com medo de se deter, grande que seja a fadiga. Sim, o melhor é apressar o fim desta ladainha, o fim do rosário de nomes que a linha do rio enfia; é chegar logo ao Recife, derradeira ave-maria do rosário, derradeira invocação da ladainha, Recife, onde o rio some e esta minha viagem se fina.


14 Chegando ao recife o retirante senta-se para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros — O dia hoje está difícil; não sei onde vamos parar. Deviam dar um aumento, ao menos aos deste setor de cá. As avenidas do centro são melhores, mas são para os protegidos: há sempre menos trabalho e gorjetas pelo serviço; e é mais numeroso o pessoal (toma mais tempo enterrar os ricos). — pois eu me daria por contente se me mandassem para cá. Se trabalhasses no de Casa Amarela não estarias a reclamar. De trabalhar no de Santo Amaro deve alegrar-se o colega porque parece que a gente que se enterra no de Casa Amarela está decidida a mudar-se toda para debaixo da terra. — É que o colega ainda não viu o movimento: não é o que se vê. Fique-se por aí um momento e não tardarão a aparecer

os defuntos que ainda hoje vão chegar (ou partir, não sei). As avenidas do centro, onde se enterram os ricos, são como o porto do mar; não é muito ali o serviço: no máximo um transatlântico chega ali cada dia, com muita pompa, protocolo, e ainda mais cenografia. Mas este setor de cá é como a estação dos trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém. — Mas se teu setor é comparado à estação central dos trens, o que dizer de Casa Amarela onde não para o vaivém? Pode ser uma estação mas não estação de trem: será parada de ônibus, com filas de mais de cem. — Então por que não pedes, já que és de carreira, e antigo, que te mandem para Santo Amaro se achas mais leve o serviço?


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Não creio que te mandassem para as belas avenidas onde estão os endereços e o bairro da gente fina: isto é, para o bairro dos usineiros, dos políticos, dos banqueiros, e no tempo antigo, dos bangüezeiros (hoje estes se enterram em carneiros); bairro também dos industriais, dos membros das associações patronais e dos que foram mais horizontais nas profissões liberais. Difícil é que consigas aquele bairro, logo de saída. — Só pedi que me mandasse para as urbanizações discretas, com seus quarteirões apertados, com suas cômodas de pedra. — Esse é o bairro dos funcionários, inclusive extranumerários, contratados e mensalistas (menos os tarefeiros e diaristas). Para lá vão os jornalistas, os escritores, os artistas; ali vão também os bancários, as altas patentes dos comerciários, os lojistas, os boticários, os localizados aeroviários e os de profissões liberais que não se libertaram jamais. — Também um bairro dessa gente temos no de Casa Amarela: cada um em seu escaninho, cada um em sua gaveta, com o nome aberto na lousa quase sempre em letras pretas. Raras as letras douradas, raras também as gorjetas. — Gorjetas aqui, também, só dá mesmo a gente rica, em cujo bairro não se pode trabalhar em mangas de camisa; onde se exige quepe e farda engomada e limpa.

— Mas não foi pelas gorjetas, não, que vim pedir remoção: é porque tem menos trabalho que quero vir para Santo Amaro; aqui ao menos há mais gente para atender a freguesia, para botar a caixa cheia dentro da caixa vazia. — E que disse o Administrador, se é que te deu ouvido? — Que quando apareça a ocasião atenderá meu pedido. — E do senhor Administrador isso foi tudo que arrancaste? — No de Casa Amarela me deixou mas me mudou de arrabalde. — E onde vais trabalhar agora, qual o subúrbio que te cabe? — Passo para o dos industriários, que também é o dos ferroviários, de todos os rodoviários e praças-de-pré dos comerciários. — Passas para o dos operários, deixas o dos pobres vários; melhor: não são tão contagiosos e são muito menos numerosos. — É, deixo o subúrbio dos indigentes onde se enterra toda essa gente que o rio afoga na preamar e sufoca na baixa-mar. — É a gente sem instituto, gente de braços devolutos; são os que jamais usam luto e se enterram sem salvo-conduto. — É a gente dos enterros gratuitos e dos defuntos ininterruptos. — É a gente retirante que vem do Sertão de longe. — Desenrolam todo o barbante e chegam aqui na jante.


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— E que então, ao chegar, não tem mais o que esperar. — Não podem continuar pois têm pela frente o mar. — Não têm onde trabalhar e muito menos onde morar. — E da maneira em que está não vão ter onde se enterrar. — Eu também, antigamente, fui do subúrbio dos indigentes, e uma coisa notei que jamais entenderei: essa gente do Sertão que desce para o litoral, sem razão,

fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha; pois bem: quando sua morte chega, temos que enterrá-los em terra seca. — Na verdade, seria mais rápido e também muito mais barato que os sacudissem de qualquer ponte dentro do rio e da morte. — O rio daria a mortalha e até um macio caixão de água; e também o acompanhamento que levaria com passo lento o defunto ao enterro final a ser feito no mar de sal. — E não precisava dinheiro, e não precisava coveiro, e não precisava oração e não precisava inscrição. — Mas o que se vê não é isso: é sempre nosso serviço crescendo mais cada dia; morre gente que nem vivia. — E esse povo de lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando, cemitério esperando. — Não é viagem o que fazem vindo por essas caatingas, vargens; aí está o seu erro: vêm é seguindo seu próprio enterro


18 O retirante aproxima-se de um dos cais do capiraribe — Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no rosário de cidade e de vilas, e mesmo aqui no Recife ao acabar minha descida, não seria diferente a vida de cada dia: que sempre pás e enxadas foices de corte e capina, ferros de cova, estrovengas o meu braço esperariam. Mas que se este não mudasse seu uso de toda vida, esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa, ao meu aluguel com a vida. E chegando, aprendo que,

nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns dias; o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida. A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida, coroas de baronesa junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento de água que sempre desfila (que o rio, aqui no Recife, não seca, vai toda a vida).

Aproxima-se do retirante o morador de um dos mocambos que existem entre o cais em água do rio — Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal, sabes me dizer se o rio a esta altura dá vau? sabes me dizer se é funda esta água grossa e carnal? — Severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado. — Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem não é preciso muito água: basta que chega o abdome, basta que tenha fundura igual à de sua fome. — Severino, retirante pois não sei o que lhe conte;

sempre que cruzo este rio costumo tomar a ponte; quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come. — Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há? quando os vazios da fome não se tem com que cruzar? quando esses rios sem água são grandes braços de mar? — Severino, retirante, o meu amigo é bem moço; sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer esforço. — Seu José, mestre carpina, e quando é fundo o perau? quando a força que morreu nem tem onde se enterrar,


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por que ao puxão das águas não é melhor se entregar? — Severino, retirante, o mar de nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alarga e devasta a terra inteira. — Seu José, mestre carpina, e em que nos faz diferença que como frieira se alastre, ou como rio na cheia, se acabamos naufragados num braço do mar miséria? — Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás, porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais. — Seu José, mestre carpina, e que diferença faz que esse oceano vazio cresça ou não seus cabedais se nenhuma ponte mesmo é de vencê-lo capaz? — Seu José, mestre carpina,

que lhe pergunte permita: há muito no lamaçal apodrece a sua vida? e a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista? — Severino, retirante, sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram nada: a vida de cada dia cada dia hei de comprá-la. — Seu José, mestre carpina, e que interesse, me diga, há nessa vida a retalho que é cada dia adquirida? espera poder um dia comprá-la em grandes partidas? — Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso tais partidas, mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida. — Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?


20 Uma mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe que se verá — Compadre José, compadre, que na relva estais deitado: conversais e não sabeis que vosso filho é chegado? Estais aí conversando em vossa prosa entretida:

não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? Saltou para dento da vida ao dar o primeiro grito; e estais aí conversando; pois sabeis que ele é nascido.

Aparecem e se aproximam da casa do homem vizinhos, amigos, duas ciganas, etc — Todo o céu e a terra lhe cantam louvor. Foi por ele que a maré esta noite não baixou. — Foi por ele que a maré fez parar o seu motor: a lama ficou coberta e o mau-cheiro não voou. — E a alfazema do sargaço, ácida, desinfetante, veio varrer nossas ruas enviada do mar distante. — E a língua seca de esponja que tem o vento terral veio enxugar a umidade do encharcado lamaçal.

— Todo o céu e a terra lhe cantam louvor e cada casa se torna num mocambo sedutor. — Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto celebram os sociólogos do lugar. — E a banda de maruins que toda noite se ouvia por causa dele, esta noite, creio que não irradia. — E este rio de água, cega, ou baça, de comer terra, que jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas.


21 Começaram a chegar pessoas trazendo presentes para o recém-nascido — Minha pobreza tal é que não trago presente grande: trago para a mãe caranguejos pescados por esses mangues; mamando leite de lama conservará nosso sangue. — Minha pobreza tal é que coisa alguma posso ofertar: somente o leite que tenho para meu filho amamentar; aqui todos são irmãos, de leite, de lama, de ar. — Minha pobreza tal é que não tenho presente melhor: trago este papel de jornal para lhe servir de cobertor; cobrindo-se assim de letras vai um dia ser doutor. — Minha pobreza tal é que não tenho presente caro: como não posso trazer um olho d’água de Lagoa do Cerro, trago aqui água de Olinda, água da bica do Rosário. — Minha pobreza tal é que grande coisa não trago:

trago este canário da terra que canta sorrindo e de estalo. — Minha pobreza tal é que minha oferta não é rica: trago daquela bolacha d’água que só em Paudalho se fabrica. — Minha pobreza tal é que melhor presente não tem: dou este boneco de barro de Severino de Tracunhaém. — Minha pobreza tal é que pouco tenho o que dar: dou da pitu que o pintor Monteiro fabricava em Gravatá. — Trago abacaxi de Goiana e de todo o Estado rolete de cana. — Eis ostras chegadas agora, apanhadas no cais da Aurora. — Eis tamarindos da Jaqueira e jaca da Tamarineira. — Mangabas do Cajueiro e cajus da Mangabeira. — Peixe pescado no Passarinho, carne de boi dos Peixinhos. — Siris apanhados no lamaçal que já no avesso da rua Imperial. — Mangas compradas nos quintais ricos do Espinheiro e dos Aflitos. — Goiamuns dados pela gente pobre da Avenida Sul e da Avenida Norte.


22 Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos — Atenção peço, senhores, com os cachorros no lixo. para esta breve leitura: Vejo-o, uns anos mais tarde, somos ciganas do Egito, lemos a sor- na ilha do Maruim, te futura. vestido negro de lama, Vou dizer todas as coisas voltar de pescar siris; que desde já posso ver e vejo-o, ainda maior, na vida desse menino pelo imenso lamarão acabado de nascer: fazendo dos dedos iscas aprenderá a engatinhar para pescar camarão. por aí, com aratus, — Atenção peço, senhores, aprenderá a caminhar também para minha leitura: na lama, como goiamuns, também venho dos Egitos, e a correr o ensinarão vou completar a figura. os anfíbios caranguejos, Outras coisas que estou vendo pelo que será anfíbio é necessário que eu diga: como a gente daqui mesmo. não ficará a pescar Cedo aprenderá a caçar: de jereré toda a vida. primeiro, com as galinhas, Minha amiga se esqueceu que é catando pelo chão de dizer todas as linhas; tudo o que cheira a comida; não pensem que a vida dele depois, aprenderá com há de ser sempre daninha. outras espécies de bichos: Enxergo daqui a planura com os porcos nos monturos, que é a vida do homem de ofício,


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bem mais sadia que os mangues, tenha embora precipícios. Não o vejo dentro dos mangues, vejo-o dentro de uma fábrica: se está negro não é lama, é graxa de sua máquina, coisa mais limpa que a lama do pescador de maré que vemos aqui vestido

de lama da cara ao pé. E mais: para que não pensem que em sua vida tudo é triste, vejo coisa que o trabalho talvez até lhe conquiste: que é mudar-se destes mangues daqui do Capibaribe para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe.

Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc — De sua formosura já venho dizer: é um menino magro, de muito peso não é, mas tem o peso de homem, de obra de ventre de mulher. — De sua formosura deixai-me que diga: é uma criança pálida, é uma criança franzina, mas tem a marca de homem, marca de humana oficina. — Sua formosura deixai-me que cante: é um menino guenzo como todos os desses mangues, mas a máquina de homem já bate nele, incessante. — Sua formosura eis aqui descrita: é uma criança pequena, enclenque e setemesinha, mas as mãos que criam coisas nas suas já se adivinha. — De sua formosura deixai-me que diga: é belo como o coqueiro que vence a areia marinha. — De sua formosura deixai-me que diga: belo como o avelós contra o Agreste de cinza.

— De sua formosura deixai-me que diga: belo como a palmatória na caatinga sem saliva. — De sua formosura deixai-me que diga: é tão belo como um sim numa sala negativa. — É tão belo como a soca que o canavial multiplica. — Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas. — Belo como a última onda que o fim do mar sempre adia. — É tão belo como as ondas em sua adição infinita. — Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria. — Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia. — Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia. — Ou como o caderno novo quando a gente o principia. — E belo porque o novo todo o velho contagia. — Belo porque corrompe com sangue novo a anemia. — Infecciona a miséria com vida nova e sadia. — Com oásis, o deserto, com ventos, a calmaria.


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O carpina fala com o retirante que esteve de fora, sem tomar parte de nada — Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu

com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.


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A voz dos excluídos na literatura A representação dos personagens marginalizados em Vidas Secas e em A Hora da Estrela Por Nicole Ayres Foto José Medeiros A personagem Macabéa, em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, marginalizada pela sociedade, é representada psicologicamente no romance, através da voz do narrador. Semelhante recurso já havia sido utilizado na obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, em que os membros da família de retirantes nordestinos, quase sem linguagem própria, adquirem a humanidade que lhes falta pelo método narrativo. No entanto, Macabéa, transportada para o meio urbano, evidencia ainda mais o processo de exclusão cultural no Brasil, que muda seus meios, mas não sua essência. A TEMÁTICA DO DESAJUSTE Personagens desajustados na sociedade encaixam-se perfeitamente no plano da literatura. Esse é o caso de Fabiano (Vidas Secas) e Macabéa (A Hora da Estrela), que vivem na aridez do sertão nordestino e no anonimato da vida urbana, respectivamente. Segundo a classificação do crítico Antonio Candido, Vidas Secas, de 1938, poderia ser inserido na “fase de pré-consciência do subdesenvolvimento”, enquanto A Hora da Estrela, de 1977, já se encontraria na “fase da consciência catastrófica do atraso”. Fugindo de idealizações românticas ou exotismos regionalistas, as duas obras expõem a situação de miséria e exploração dos migrantes nordestinos no Brasil; uma situação que não muda, apenas se transforma com o tempo, tornando-se cada vez mais sutil e cruel. A família de retirantes de Vidas Secas vivencia o drama da falta: de um lar, de um futuro, de uma linguagem. A constante ameaça da seca lhes impõe uma vida nômade, sem perspectivas, guiada pelo instinto de sobrevivência. Por isso, são eternos peregrinos, em um mundo em que não há lugar para eles. Fabiano, o patriarca, é um vagabundo empurrado pela seca. No entanto, quando a seca chega, devastadora, todos se igualam, todos perdem tudo, diferentemente do que acontece na cidade grande, em que os mais preparados, bem instruídos levarão vantagem na luta pela sobrevivência. No sertão, o inimigo é a natureza; na cidade, o inimigo é o próprio homem. Em A Hora da Estrela, Macabéa, alagoana que se muda já adulta com a tia para o Rio de Janeiro, causa pena, repulsa e revolta nos outros personagens, no narrador e no leitor. Feia e desajeitada, alimenta-se de cachorro-quente com Coca-Cola, por ser barato, ganha menos que um salário mínimo e seus pequenos luxos consistem em pintar as unhas de vermelho e ir ao cinema uma vez por mês. Sua condição de penúria é evidente, menos para si mesma. Macabéa é vítima da manipulação alienante da mídia, pela Rádio Relógio, propagadora de cultura inútil, e pelos anúncios que coleciona, de produtos que não tem

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Registro da iniciação de iaôs na Bahia

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produção textual: ensaio

No ensaio, o fotógrafo buscou quebrar preconceitos, valorizando a tradição e a beleza da religião

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condições de comprar. No meio urbano, o processo de marginalização é mais nítido e se utiliza de mecanismos mais sofisticados: há uma promessa ilusória de futuro, de melhoria de vida, como a premonição da cartomante. Fabiano e Macabéa, nordestinos, “bichos” da mesma espécie, sofrem, de modos distintos, a violência de uma existência invisível: apesar de viverem em ambientes diferentes, caminham para o mesmo destino: criaturas anônimas, subumanas; condenadas a viver à margem do mundo que as cerca. E são conformados: não contestam nada, por não saber como nem a quem e acham natural a exploração que sofrem. Estagnados no tempo e no espaço, Fabianos e Macabéas permeiam nosso país e nossa literatura. Mas A Hora da Estrela vai além da denúncia social: Macabéa representa, no fundo, a miséria inerente a todo ser humano, que nunca é completo, sempre buscam alguma satisfação pessoal; há uma carência essencial que o define. Macabéa, Fabiano, narrador, leitor, são todos marginalizados, excluídos, desajustados, de uma forma ou de outra; todos compartilham, consciente ou inconscientemente, a mesma miséria. Para expressar a situação equivalente de seus personagens, Graciliano Ramos e Clarice Lispector fazem uso de diferentes recursos expressivos. Primeiramente, se a linguagem de Vidas Secas é seca como as vidas que retrata, econômica e regionalista, em A Hora da Estrela a palavra é pulsante, o discurso, verborrágico e fluido.


A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA Os dois narradores são cultos e culpados, aproximam-se e afastam-se de seus personagens, procuram compreendê-l os e sentem-se impotentes diante de sua situação. Ambos os narradores enfrentam a difícil constatação: a mesma palavra utilizada para narrar a história de suas personagens é a mesma que angustia Macabéa e Fabiano: dois seres condenados ao silêncio. Rodrigo S.M., narrador personificado, pseudoautor da história, é um escritor atormentado, que capta no “olhar perdido” de uma nordestina, em meio à massa urbana, a essência de sua protagonista. Aos poucos, essa vida interior de Macabéa vai sendo desvendada, tanto para o narrador quanto para o leitor, que participa ativamente da construção da trama. Enquanto Vidas Secas apresenta um único enredo em que o narrador acompanha a trajetória da família nordestina com um olhar distante e observador, em A Hora da Estrela podem-se identificar três enredos, que se misturam, se complementam e se fundem numa narrativa entrecortada: a história de Macabéa, as inquietações do narrador e o próprio processo da escrita. A trama é interrompida a cada momento para explicações e questionamentos, sempre pertinentes, que ampliam a experiência de leitura. Sendo assim, a metalinguagem e a ironia são peças-chave no desdobramento do texto. Rodrigo S.M. discute o papel do escritor e da escrita, explicitando o processo de construção da obra. Rodrigo narra Macabéa e a si mesmo, instaurando, desse modo, o espelho narrativo. A ironia é retirada da própria vida, e Macabéa é o mais evidente exemplo: tem uma vida nula e uma morte glorificada. A morte é sua hora da estrela, o que dá sentido à sua existência parca. A morte é seu renascimento, e, com ela, o texto nasce e renasce, refaz-se e desfaz-se. Rodrigo se responsabiliza por Macabéa e consegue enxergar-se nela. No entanto, ele faz parte da sociedade que a reprime e usufrui dos confortos que ela não tem; portanto, não pode igualar-se a ela, o que não o impede de construir seu destino em paralelo ao dela. Assim, uma pessoa rala e muda é recolhida pelo olhar arguto de um escritor desorientado que, conduzido pela palavra e desconfiando dela, dá uma forma e um destino a si próprio e à moça nordestina. Além de lhe faltarem recursos para reivindicar condições melhores e uma vida mais digna, Macabéa e Fabiano não sabem a quem reclamar. Afinal, quem é o responsável pela situação desses nordestinos sofridos? A natureza, o governo, a sociedade, a vida, Deus, os próprios personagens ou ninguém? Impossível encontrar os culpados. Por isso, talvez essa seja a grande questão que permeia, sutilmente, as duas obras Sem reação, sem acusações e sem respostas, as perguntas continuam em aberto

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VIAGEM PELA MEMÓRIA DE CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO NO CEARÁ Com as secas, famintos dirigiam-se à capital do Ceará. O governo criou campos cercados para confinar milhares de retirantes; hoje, alguns tentam evitar que a memória desses lugares se apague Por Anna Virginia Balloussier Foto Rafaela Konstantyner

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ma coisa era certa: aquela gente fedida, piolhenta, faminta e desesperada tinha que ser mantida à distância. Era 1932, e Fortaleza não parecia disposta a olhar para trás. Na virada do ano, a capital cearense inaugurava o hotel Excelsior, seu primeiro arranha-céu. Em sua edição de 2 de janeiro, o jornal O Povo destacava o “terraço aprazibilíssimo, de onde se descortinam belíssimos panoramas do mar, das serras e dos sertões vizinhos”.

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Detalhes do interior de um dos antigos campos de concentração

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O novo prédio anunciava novos tempos e contrastava com a precariedade da multidão imigrante dos “sertões vizinhos”, que fugia de uma das piores secas já vistas no Nordeste. Alguém precisava fazer algo, e rápido, antes que a turba miserável eclipsasse a “loira desposada do sol”, epíteto da capital oxigenada pela síndrome de “belle époque” brasileira. A resposta governamental foi confinar os que vinham de trem em sete currais cercados com varas e arame farpado, próximos à estrada de ferro. Eram homens, mulheres, velhos e crianças, de cabeça raspada contra piolhos, alguns vestidos em sacos de farinha com buracos para enfiar o pescoço. Os mais robustos serviam de mão de obra em fazendas e obras públicas. Milhares morreram de fome, sede ou doenças. Com entrada compulsória e sem data para o “check out”, esses depósitos humanos tinham nome: campos de concentração. Só em 1933 os nazistas criariam seu primeiro campo, numa fábrica de pólvora reestruturada para encarcerar comunistas, sindicalistas e outros desafetos do chanceler Adolf Hitler. A prática de isolar os “molambudos” dos “cidadãos de bem” já era velha conhecida no Brasil de Getúlio Vargas – um país em que a população caminhava para os 40 milhões. Dados oficiais contavam 73.918 aprisionados pouco mais de um mês após a abertura dos campos em seis cidades do Ceará (Crato, Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús e Fortaleza), conforme relata a historiadora Kênia Sousa Rios, autora de Campos de

Concentração no Ceará: Isolamento e Poder na Seca de 1932 (Museu do Ceará, 2006). As duas aglomerações da capital viraram até atração turística: visitantes doavam uma certa quantidade de dinheiro aos enjaulados e dali saíam com “a sensação de dever cumprido”. “O risco de ter a cidade invadida pela ‘sombra sinistra da miséria’ parece seguido da compreensão de que a situação é trágica, portanto merece a atenção da burguesia caridosa e civilizada”, escreveu a historiadora no artigo A Cidade Cercada na Seca de 1932 (publicado no volume Seca, Edições Demócrito Rocha, 2002). ESMOLINHA No romance O Quinze, Rachel de Queiroz narra como a heroína Conceição “atravessava muito depressa o campo de concentração”, trêmula ao ouvir a súplica: “Dona, uma esmolinha”. Apertava o passo, “fugindo da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento”. Algo de fato cheirava mal no Ceará, e desde a grande estiagem de 1877, a elite local sentia o odor. Sete anos antes, haviam sido estabelecidas normas de conduta “que identificavam a ‘modernidade fortalezense’ com a ‘civilidade europeia’”, fazendo da


As duas aglomerações da capital viraram até atração turística capital “um modelo asséptico para todas as cidades cearenses”, escreveu o historiador Tanísio Vieira no artigo Seca, Disciplina e Urbanização (também coligido em Seca). Uma das proibições fixadas era a de sair às ruas sem “pelo menos camisa e calça, sendo aquela metida por dentro desta”. Imposições dessa tal ordem eram a última coisa a passar pela cabeça dos mais de 100 mil sertanejos que estavam em retirada da seca de 1877. Fortaleza, então com 30 mil habitantes, viu sua população se multiplicar por três. O governo, por sua parte, redobrou os esforços para conter a invasão bárbara, e para que ela jamais se repetisse. Em A Seca de 1915, o escritor Rodolfo Teófilo (1853-1932) descreveu o pioneiro campo do Alagadiço, nos arredores da capital, que serviria de piloto para os sete campos dos anos 1930: “Um quadrilátero de 500 metros onde estavam encurralados cerca de 7.000 retirantes”. Lá, quando havia comida, ganhavam “reses que

morriam de magras ou do mal”, cozidas “em algumas dúzias de latas que haviam sido de querosene”. O jornal O Nordeste anunciava o 17 de fevereiro de 1923 como o Dia da Extinção da Mendicância. Ser mendigo seria, a partir dali, contra a lei. Se ruas e praças continuassem “expostas a graves perigos de ordem moral”, os infratores seriam enviados ao Dispensário dos Pobres, sob os auspícios da Liga das Senhoras Católicas Brasileiras. A ideia, na prática, não foi longe, e as madames continuaram a ouvir: “Dona, uma esmolinha”. Nem toda a caridade cristã seria o bastante para dar conta da diáspora de que aconteceu em1932, quando jornais falavam do “exército sinistro de esfomeados” em marcha até a capital. Ainda hoje, em Senador Pompeu, circula a lenda sobre um ente que surge de supetão para abrir seu bucho e roubar um pedaço do fígado. A fábula do Papa-Figo nasce de fatos reais. Carmélia Gomes, 91, que era uma menina em 1932, lembra do médico que extraía amostras do órgão de quem morria no campo e as mandava à capital para análise clínica.

Pequeno cemitério próximo a antiga área dedicada a um campo de concentração

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PAPA-FIGO Na véspera, Valdecy Alves nos Dentro de sua casinha, semelhante a tantas outras nas levara aos arredores da barragem redondezas, dona Carmélia prende os cabelos brancos onde os retirantes foram enclausurae senta-se numa cadeira de plástico roxo, logo abaixo de dos. Existe ali um cemitério, ponto pôsteres dos papas João Paulo 2º e Bento 16. Ela conta de chegada da romaria. O espaço que, até sofrer um assalto, vivia num terreno mais ermo, é simbólico: foi erguido sobre uma terra onde seu pai trabalhava 82 anos atrás. das valas comuns, onde “até 40 deAntônio Gomes se despedia com um beijo na testa da funtos eram sepultados sem atestado mocinha de nove anos e partia para o ofício: vigiar os de óbito, em covas rasas o bastante concentrados de Senador Pompeu. Voltava para casa para que urubus e cães cavassem e contando sobre “lagartixas entrando na boca dos defun- comessem os restos”, diz Alves. tos, tudim inchado por causa da fome”. Alguns guardas O cemitério, um quadrilátero de eram tão temidos que viravam sinônimo de “coisa ruim”. 1.089 m², tem no centro uma capela. Caso do cabo Félix, que acabou nomeando o feijão servi- À sua frente, visitantes acendem velas e do ali, duro feito pedra da caatinga. empilham simbólicas garrafas d’água Senador Pompeu, à primeira vista, é uma cidade com pro- de 500 ml. Na entrada, alguns santiblemas e hábitos corriqueiros; adolescentes tiram selfies na nhos políticos e latas de cerveja se acusorveteria, e casas metade verde, metade rosa exibem na fa- mulam diante de duas mudas de árvochada propagandas políticas pintadas à mão. Mas ali, como re. Lê-se nos vasos de cimento: “Fale dona Carmélia, muitos se esforçam para lembrar o passado. a Deus o tamanho do seu problema”. Em um blog que leva seu nome, Valdecy Alves, 51, apreEm sua moto preta com o rossenta-se em maiúsculas: ADVOGADO MILITANTE E to de Jesus estampado na buzina, MILITANTE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, com Francisco de Assis, 48, chega ao serviços prestados à Cáritas e ao Centro de Defesa dos local para pintar de branco os muDireitos Humanos Antonio Conselheiro. Filho pródigo de ros do cemitério. Ele é um dos que Senador Pompeu, hoje em Fortaleza, voltou à cidade natal – garante – foram ouvidos pelos para a romaria de 9 de novembro. santos. Para quitar seu carnê esCom início marcado para as 4h30 daquele domingo, piritual, caminhou por uma hora, em frente à igreja, o cortejo reúne netos, pais e avós, to- descalço, até o cemitério. Valdecy dos de branco, para homenagear “as almas penadas da Alves frisa: “De cada dez pessoas barragem”, mortas no campo de concentração. Hoje, que você encontrar nas ruas, mesegundo a crendice do povo, elas viraram santas que tade deve promessa aqui”. atendem a promessas, numa versão, local e diminuta, A história do campo de concendo culto ao padre Cícero. tração de Senador Pompeu já era

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As ruínas servem como atração turística

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Dona Carmélia, e Milton Pereira, que viviam próximo ao antigo campo cratense

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ligada à seca desde antes desse destino infame. No ano de 1919, ingleses ganharam uma concorrência para levantar no local uma barragem para sanar alguns dos efeitos da escassez de chuvas. Devido à falta de verbas, as obras pararam. Em 1932, o governo integrou ao campo o casarão que fora construído para servir como uma morada aos estrangeiros. A carcaça arquitetônica tem paredes amarelas pichadas com dezenas de falos, juras de amor (Stefanny, o Renato te ama) e até um Buda gordinho. Nos anos 1990, o lugar ainda era uma referência para retirantes. Famílias faziam filas quilométricas para obter a parte que lhes cabia nesse latifúndio – porções de farinha, charque, rapadura e café que o governo distribuía.

Valdecy cruza os braços sobre a camisa polo vermelha e ergue o queixo, um tanto solene. “Kant dizia que não há liberdade enquanto você tiver necessidade. O povo há séculos é vítima de uma seca previsível, cíclica. Então, o Estado é que está falido.” E desmemoriado também: o advogado cobra a preservação das ruínas e reclama de que “documentos gigantescos de uma época que não pode se repetir” estão à míngua. Procurado, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional diz que “não há


Jogavam um em cima do outro quando o pessoal morria proposta de tombamento em nível federal”. No plano municipal, a prefeitura abriu um processo com essa finalidade, ainda não finalizado. CAMINHADA Alves tem companhia no seu esforço de tirar o passado do armário. Enquanto outras cidades ignoram seus campos, em Senador Pompeu um carro de som alterna anúncios do “forrozão” e da “caminhada da seca”. De óculos escuros e celular acoplado a alto-falantes, o padre começa a romaria na madrugada de domingo. Há velhinhos de bengala, mulheres com crucifixos mergulhados em grandes decotes e estudantes que usam “abadá” – regata com a inscrição “32ª caminhada da seca – Eu fui” e a estampa de um polegar que reproduz o botão “curtir” do Facebook. “O povo diz que quem morreu de fome vira santo”, diz Yasmin dos Santos, 11, repetindo o que ouviu numa palestra na escola. Daiana Soraya, 12, é grata às “almas san-

tas”, que a ajudaram com uma briga de escola. “Um menino que já tinha namorada ficou falando comigo. Ela achou que eu estava a fim dele. Queriam me pegar, mas eu fiz uma promessa. Hoje tô pagando”, diz a jovem devota, mostrando os pés descalços.

Ruínas de uma das antigas instalações

RELATOS Já no Crato são poucos os que se lembram do campo projetado para 5.000 pessoas –e que chegou a receber quatro vezes isso, segundo relatos de sobreviventes. “A mãe falava que a comida era tão ruim que não tinha quem comesse. Mas chegou um pessoal e quis as tripas de porco e gado que o vô usava para fazer sabão. Estavam até estragadas”, conta Rita Lobo de Grito, 66, que andava por uma rua de terra próxima ao local do antigo campo cratense. “Jogavam um em cima do outro quando o pessoal morria. No outro dia, de manhã, um pediu: ‘Me tira daqui que eu não tô morto’. Tudo isso meu pai contava”, diz Milton Pereira, 85, que recorda a corrupção no controle dos mantimentos. “Enquanto uns morriam de fome, outros enricavam. O governo mandava trazer o gado e sumia a metade.”

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Com duas estátuas do padre Cícero (“primo do meu Após a seca de 1877, o imperador pai”) no jardim, Rosafran de Brito Melo, 67, diz que dom Pedro 2º finalmente decretou: os campos tinham uma razão de ser. “Pra não haver “Não restará uma única joia na Cobriga. Ou virava bagunça. Entre tantas famílias, sem- roa, mas nenhum nordestino nunca pre vem um meio danado.” morrerá de fome”. Almina Arraes, 90, não via nada de danado na gente Em 1933, voltaram as chuvas que aparecia no casarão de sua família, às vezes tomada para o Ceará, e os sertanejos pra por retirantes fugidos dos campos. casa, com passagens bancadas pelo Em menos de cinco minutos, o sorvete de creme que governo. Segue o seco. nos serve vira uma papa amarelada dentro da taça de prata. O calor no Crato, definitivamente, não é para DESTERRO amadores, mas a irmã do ex-governador de Pernambuco Os campos de concentração no esMiguel Arraes (1916-2005) já está acostumada. tado do Ceará foram ambientes de Hoje ela mora ali com uma irmã de 95 anos, que sofre apoio e alojamento para as vítimas de Alzheimer. E mantém uma “sala dos mortos”, com re- das secas de 1915 e 1932. Na seca tratos do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes de 1932 o nordeste brasileiro sofria (1916-2005), e do neto dele, Eduardo Campos (1965- com as consequências da estiagem, 2014). A poucos metros dali, na varanda com gnomos de mas também vivia um momento hisjardim, ela conta sobre os sete irmãos Arraes que migra- tórico próprio, Lampião e seu bando ram da vizinha Araripe para estudar no Crato. centralizavam as atenções dos polítiLembra de brincar com “uma criança muito magrinha, cos e da população. que gritava quando via comida”. Brincou com ela de xiNos 600 km que cruzou, essa biu, jogo com o coco de macaúba, palmeira da região. reportagem foi acompanhada pela Almina preserva suas memórias, mas a “amnésia” em curadora Beatriz Lemos, 33, e pelo relação ao passado prevalece. artista plástico Ícaro Lira, 28. For“É um resquício da cultura coronelista”, avalia Lu- talezense radicado em São Paulo, ciana de Medeiros Campos, 36, funcionária da Se- Lira lançou na Bienal da Bahia, cretaria Municipal de Cultura que nos acompanhou em maio, seu projeto Desterro, que durante um passeio pela região. Não interessa à elite começou com Canudos e agora cratense mexer nessa ferida, uma vez que muitos “vôs” recupera o passado dos campos de e “vós” foram coniventes com o campo de concentra- concentração do Ceará, sua história ção e o cemitério das valas comuns. de sofrimento. “Meu papel é trazer Hoje eles estão ocultos sob uma fábrica de papel e um à tona o processo de apagamento singelo campinho de futebol. oficial do Estado”, diz o artista

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produção textual: resenha

Resenha de uma saga camponesa O destino era São Paulo, terra prometida das histórias de riqueza, mas que de lá ninguém voltava pra contar Por Mário Lúcio de Paula Foto Sebastião Salgado O livro Seara Vermelha, escrito por Jorge Amado em 1946, narra a saga de uma família camponesa expulsa pelo latifúndio no início da década de 1930. É a história de Jucundina, Jerônimo, Zefa, Tonho, Noca, Ernesto, Neném, Jão, Zé, Marta, Agostinho e Gertrudes, João Pedro e Dinah, e tantos outros personagens que percorreram os caminhos da fome, viram as cacimbas e as plantações secarem, as criações emagrecerem e morrerem, a sombra dos urubus pairarem sobre suas cabeças. Viram os seus e muitos outros sucumbirem à fome e à sede e seus ossos branquearem em covas rasas sob o sol escaldante do sertão. SECA E SANGUE Era o tempo dos beatos que pregavam o fim do mundo e prometiam a salvação aos que se penitenciassem. Com eles ficou Zefa. Era o tempo dos cangaceiros. Para seu bando entrou Zé, que passou a ser conhecido como Zé Trevoada. Era o tempo das incertezas, que fizeram com que Agostinho e Gertrudes abandonassem a marcha para o sul e se empregassem em uma fazenda em meio a jornada. Era o tempo da inclemência do sertão, que levou a pequena Noca, após dias marchando com um espinho que lhe arruinou o pé, a perder a vida. Mesmo destino de Dinah, que viuvou João Pedro, deixou este com a dor e as lágrimas secas que não podia mais verter. Nem os bichos foram poupados. A gata Marisca, inseparável amiga de Noca, foi para a panela. E o jumento Jeremias, que carregou com valentia as tralhas durante o percurso, em ato de desespero, comeu uma erva venenosa e serviu de pasto aos urubus enquanto ainda estrebuchava. Era o tempo em que se embarcava na terceira classe de um navio a vapor em Juazeiro, Bahia: destino dos que buscavam Pirapora, no Norte de Minas, de onde partia o trem de ferro para São Paulo. Na travessia, o pequeno Ernesto pereceu a esse terrível mau e teve seu corpinho engolido pelas águas do rio. No porto, era o tempo das papeletas atestando saúde para poder embarcar no trem. Jerônimo, tomado pela tuberculose, não tinha chances. Tonho e João Pedro já tinham as papeletas, mas um médico degenerado, embrutecido pela cena repetida a cada dia da marcha desesperada dos migrantes sertanejos, dizia que não a Jucundina e Jerônimo pois cobiçava Marta. A assediou e a deflorou em troca das papeletas de seus pais. Num acesso de raiva ao saber como a filha conseguira a papeleta, Jerônimo a expulsou. E Jucundina viu sua filha partir para o cabaré, na rua das prostitutas. Eram três irmãos, com três destinos. José, o camponês. Zé Trevoada, o cangaceiro. Agora, homem de confiança de Lucas Arvoredo. Muito sofrera e muitos matara ao saber do destino dos seus.

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Foto da exposição Luta Camponesa

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produção textual: resenha

Foto da coleção Exôdos, composta em seis anos, por quarenta países

A CAMINHADA Após a morte de Lucas Arvoredo, assumiu o posto de cangaceiro mais perigoso dos sertões. Jão, o primeiro filho de Jucundina a sair de casa. Foi ser soldado de polícia. Decidiram se unir ao Beato Estêvão, que atraía milhares de camponeses com sua pregação, convertendo-se em perigo à ordem do latifúndio. Numa noite enluarada, Jão e um grupo de policiais apertavam o cerco contra Beato e seus seguidores quando um tiro certeiro do fuzil de Zé Trevoada o atingiu. Soltando gritos de guerra, Trevoada seguiu o combate com os “macacos” da polícia sem saber que tirara a vida de seu irmão. Juvêncio, no exército “o cabo juvêncio”, ligou-se ao Partido Comunista do Brasil. Era militante estudioso, simples, respeitado pelos companheiros. A Aliança Nacional Libertadora, conunto de organizações e personalidades revolucionárias e democráticas, realizava intenso trabalho de agitação revolucionária. Mais que o pão e a liberdade era a palavra terra que tocava seu coração sertanejo. Via a alegria no rosto dos colonos, dos meeiros e dos trabalhadores quando aquelas terras que eles lavraram lhes fossem entregues. DIAS DE COMBATE Quirino, quadro responsável do partido, foi o comandante do levantamento no 21º Batalhão de Caçadores. Ele e Juvêncio eram bons companheiros. Juvêncio respeitava sua liderança e, humildemente, percebendo as dificuldades do camarada, o auxiliava politicamente esclarecendo as diretivas do partido. Em 24 de novembro de 1935, atendendo as diretivas da Anl e do partido, o 21º Bc se levantou. Houve resistência e combates. Juvêncio chefiou o assalto que fez calar a metralhadora dos que resistiam ao levantamento. Com he-

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roísmo, assumiu a frente do ataque e teve seu corpo varado por balas, abrindo passagem para seus companheiros que saíram vitoriosos. Acordou no hospital inquieto e não houve quem o segurasse. No quartel, reinava a indisciplina com a chegada de notícias da derrota dos levantamentos em outras localidades. Provocadores espalhavam notícias de que tropas federais marchavam para sufocar a revolução. Apesar de gravemente ferido, Juvêncio voltou ao quartel, mandou prender um bêbado e restabeleceu a disciplina apresentando-se ao comando de Quirino. Juvêncio conferenciou com Quirino. Organizariam os homens mais leais e conscientes, aqueles que eram comunistas, aliancistas e guardavam fidelidade à revolução, em colunas de guerrilheiros que se internariam pelo sertão, na caatinga, e ali levantariam os camponeses, à espera do movimento no Sul que eles consideravam inevitável. Voltariam depois sobre a capital. Os dirigentes concordaram e, naquela mesma noite, Juvêncio fez partir colunas de guerrilheiros, dando-lhes o melhor da munição. A COLHEITA Brutal repressão se abateu sobre os revoltosos. Juvêncio foi preso em Ilha Grande (Rj) junto a outros prisioneiros políticos. Novamente demonstrou suas qualidades de firme comunista diante dos torturadores e do tribunal. Assumiu a responsabilidade do movimento e nada mais disse. O seu depoimento ficou reduzido à seguinte frase: “Nada declarou.” Jucundina e Tonho o visitavam na prisão e lá conheceram homens de novo tipo, que trouxeram a alegria e a esperança de volta ao seio de sua mãe e uma chispa à vida do sobrinho. Após sua libertação, Juvêncio cumpria tarefas do partido no Rio de Janeiro quando um dirigente nacional chega entusiasmado de um ativo de camponeses lhe traz a boa nova: “Cada camponês que faz gosto. Conscientes e capazes... E um deles é teu sobrinho… O menino vai longe.” E assim, Tonho, que percorreu os caminhos da fome e viu sua terra ficar para trás, que sobreviveu a travessia de barco e a disenteria, que cruzou as estradas da esperança, ingressa nas fileiras do Partido Comunista do Brasil e se torna um destacado ativista camponês. A direção do partido encarrega Juvêncio de fazer o caminho de volta ao sertão e organizar os camponeses. “E pela madrugada, quando as sombras ainda envolviam os campos úmidos de orvalho, e no ar se elevava aquele cheiro poderoso de terra, Neném partiu para a caatinga pelo mesmo caminho seguido um dia por Jerônimo e sua família. Os brotos de dor e de revolta cresciam naquela seara vermelha de sangue e fome, era chegado o tempo da colheita”

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ASA BRANCA CHEGA A 70 ANOS Atual e imortalizada, música ficou em 4º lugar entre as 100 mais importantes da história do Brasil. Duas versões da música foram gravadas na parceria com Humberto Teixeira Por Márcio Flávio Foto Chico Albuquerque

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a região central do Rio, em 1956, o advogado cearense Humberto Teixeira e o sanfoneiro pernambucano Luiz Gonzaga se conheceram. Numa artéria curta e muito movimentada, na então capital da República, a partir daquele dia, criaram algumas músicas que desencadeariam a febre do baião no Brasil, entre elas Baião, No Meu Pé de Serra, Juazeiro e Aza Branca (assim, com “z”, na época). A gravação de Asa Branca, o hino não oficial do Nordeste, e um dos maiores clássicos de todos os tempos da Mpb, completa hoje 70 anos. A toada, que tem versões em dezena de idiomas, inclusive em japonês e coreano, e é familiar a brasileiros de qualquer região. No dia 3 de março de 1957 Luiz Gonzaga gravava pela primeira vez nos estúdios da Rca, no Rio de Janeiro, a canção que ficaria imortalizada como hino

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Uma das sanfonas da vasta coleção particular do cantor Luiz Gonzaga

dos nordestinos. Uma composição dele com o médico Humberto Teixeira, que passou dois anos para ser concretizada. A gravação foi acompanhada pelo grupo de Regional do Canhoto. Ao fim de seu trabalho, Canhoto, líder do grupo, olha para Gonzaga e afirma que a “letra era música para cego pedir esmolas”. Sai dos estúdios e zomba com um chapéu pedindo esmolas ao som da canção. Mal sabia Canhoto que Asa Branca futuramente se transformaria em um dos maiores sucessos da música brasileira. Foram duas versões da música que virou referência e marca de um povo. A primeira foi gravada pelo próprio Gonzaga em forma de toada e logo fez sucesso, levando o artista pela primeira vez ao cinema, tocando a música no filme O Mundo é um Pandeiro. Nesta época, Gonzaga já havia iniciado a transposição dos gêneros musicais nordestinos para a mescla com o choro carioca. Asa Branca foi essencial para preparar o terreno para o Baião, que seria gravado ano seguinte. O sanfoneiro logo percebe que uma repaginação poderia ser a saída para reinventar a toada. Talvez Luiz Gonzaga não imaginasse o tamanho da proporção que Asa Branca ganharia ao gravar um Baião com a mesma letra. Essa nova versão foi lançada três anos mais tarde, em 1950, num compacto que trazia Paraíba do outro lado, o que aumentou ainda mais o sucesso, já que as duas canções ecoa-

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A partir de Asa Branca o Brasil viu o drama através da voz do próprio nordestino ram nas rádios e vitrolas do Brasil. O professor e historiador Armando Andrade diz que a identidade do cantor se confunde com a letra de Asa Branca. Para ele a canção é marca registrada de Gonzaga. É nela que se misturam o homem, a música e seu povo. “A partir de Asa Branca o Brasil viu o drama através da voz do próprio nordestino. É dessas coisas que a poesia e a literatura conseguem fazer, transportar através da linguagem as pessoas a vivenciar a dor do outro” diz. Outra característica marcante de Asa Branca é a saudade do amor perdido com o exílio forçado devido a seca. Se os clássicos traziam as guerras como o motivo da partida do homem e a promessa de volta para o grande amor, em Asa Branca, é a seca que expulsa o homem e a ave, numa metáfora que se estende à condição humana. “Talvez aí resida a universalidade e aceitação pelo grande público, além de retratar a real condição das famílias nordestinas. A pro-


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messa da volta do homem para seu grande amor está presente desde a literatura grega, como a Odisséia. É um tema universal com que todos se identificam”, diz Armando Andrade. A força de Asa Branca pôde ser vista em 2009, quando a Revista Rolling Stone Brasil, publicou uma lista com as 100 maiores músicas da história do país. Um honroso 4º lugar, ficando atrás de clássicos como Carinhoso, de Pixinguinha, Águas de Março, de Elis Regina, e Construção, de Chico Buarque, apenas demonstra a influência que esse hino possui na vida dos brasileiros. O tempo passou e Asa Branca segue inspirando artistas de outras gerações. Anderson do Pife, que mora em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, diz que enquanto estudante de música, acredita que a letra é parte de um método brasileiro de ensino de música popular. “Essa melodia composta por conjuntos e de fácil execução, traduz o início de uma trajetória musical para quase todos os que iniciam seus estudos com ou sem ajuda de profissionais da área.”, diz. Ele disse ainda que a música retrata poesia, cotidiano, paisagem e todo o referencial histórico do Nordeste. “Eis o hino do Nordeste e a primeira música que aprendi a tocar. Essa é a força que representa a Asa Branca em minha vida”, finaliza. Poucas canções da Mpb tem tantas versões que são tocadas a tantos anos. Asa Branca vem voando há décadas, indiferente aos modismos musicais. Neste momento, mundo afora, alguém está cantando, tocando ou escutando Asa Branca. Foi composta por Humberto Teixeira numa célebre entrevista ao pesquisador cearense Miguel Angelo De Azevedo, conhecido como Nirez. Assim várias das parcerias eram cantadas pelo sertão nordestino

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ASA BRANCA Por Luiz Gonzaga Quando olhei a terra ardendo Igual fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, ai Por que tamanha judiação Eu perguntei a Deus do céu, ai Por que tamanha judiação Que braseiro, que fornalha Nem um pé de plantação Por falta d’água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão Até mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Depois eu disse, adeus Rosinha Guarda contigo meu coração Hoje longe, muitas léguas Numa triste solidão Espero a chuva cair de novo Pra mim voltar pro meu sertão Quando o verde dos teus olhos Se espalhar na plantação Eu te asseguro não chore não, viu Que eu voltarei, viu Meu coração Eu te asseguro não chore não, viu Que eu voltarei, viu Meu coração


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produção textual: poema

Máscara mortuária de Graciliano Ramos Por Vinícius de Moraes Foto Cláudio Maranhão Feito só, sua máscara paterna, Sua máscara tosca, de acre-doce Feição, sua máscara austerizou-se Numa preclara decisão eterna. Feito só, feito pó, desencantou-se Nele o íntimo arcanjo, a chama interna Da paixão em que sempre se queimou Seu duro corpo que ora longe inverna. Feito pó, feito pólen, feito fibra Feito pedra, feito o que é morto e vibra Sua máscara enxuta de homem forte. Isto revela em seu silêncio à escuta: Numa severa afirmação da luta, Uma impassível negação da morte.

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coluna assinada

Existe uma música popular nordestina? Por Toni Newman Foto Cláudio Maranhão

Toni Newman é escritor e supervisor de cultura do Sesc Sobral

A música popular brasileira – a Mpb – ficou conhecida apenas como o samba oriundo do Rio de Janeiro e seus subgêneros. Até São Paulo foi ignorada e ficou conhecida jocosamente como o “túmulo do samba”, numa alusão que ali não se produzia música boa qualidade. A herança de ritmos populares do nordeste é imensa e posso destacar alguns como coco, xaxado, samba de roda, xote, baião, forró, axé, frevo, cirandas, emboladas, maracatu rural e reisados. Porque então que a música produzida no Nordeste não faz parte da chamada Mpb? Para o professor de história da música brasileira, Andre Egg, a “música nordestina foi solenemente ignorada nos livros de história da música brasileira devido ao compromisso de alguns autores com certo “bom gosto” duvidoso, certamente movido por preconceito contra os chamados nordestinos “paus de arara”. A música nordestina influenciou até artistas como Villa Lobos, que se inspirou, por exemplo, na Dança do Martelo – alusão ao estão do Cariri – para compor a segunda parte da Bachiana brasileira nº 5. Somente a partir da década de 60 é que houve uma mudança na história com a ascensão do balão como gênero fonográfico de sucesso pelas mãos do grande Luiz Gonzaga, pelo reconhecimento de Marines e Jackson de Pandeiro. Posteriormente na década de 70, o grande reconhecimento do movimento chamado “Pessoal do Ceará”, que em 2013 completa 30 anos, e que naquela época deu uma grande “oxigenada” na Mpb; e, atualmente, pelo grande número de bandas de forró fazendo enorme sucesso não só aqui no Nordeste, mas arrastando multidões Brasil afora. É com grande entusiasmo que vemos a banda Cabaçal, dos irmãos Aniceto, emocionando a todos por onde passa. A explosão do axé, vindo da Bahia na década de 80 com Luiz Caldas e que tomou conta do Brasil inteiro. Menos em Pernambuco, onde, ainda resistente, reina o frevo. Mas, sem sombra de dúvidas, a grande revelação da música nordestina dos últimos tempos foi a releitura do Maracatu Rural de Pernambuco, feita pelo genial Chico Science e Nação zumbi.

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RECOSTURANDO PORTINARI Exposição Recosturando Portinari, de Ronaldo Fraga, é sucesso de público em Belo Horizonte Por Mariana Pontual Foto Renato Cobucci

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onaldo Fraga sabe, como poucos, emocionar uma plateia. E isso vem principalmente do seu talento em contar histórias, habilidade que desenvolveu ao longo dos anos com seus desfiles no Spfw nos quais sempre mistura moda com elementos da cultura nacional. A mais recente empreitada do estilista é a exposição Recosturando Portinari, em cartaz na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, até o dia 26 de outubro. Em passagem pela capital de Minas para o Brasil Fashion, o Ffw conferiu de perto a mostra, sendo muito bem acompanhado pelo polivalente designer mineiro em uma espécie de visita guiada, mas que acabou se transformando em uma verdadeira aula sobre a arte moderna brasileira. Grandes nomes da literatura brasileira como Carlos Drumond de Andrade, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos já foram temas de coleções de Ronaldo Fraga. Agora, o homenageado é o artista plástico Candido Portinari. A partir desta terça-feira (26), o público de Belo Horizonte vai poder conferir uma exposição que reúne.

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O público confere o resultado do restauro da obra Civilização Mineira

Para José Eduardo de Lima Pereira, presidente da Casa Fiat, a escolha por Fraga se deve à sensibilidade do designer. “O olhar sensível de Ronaldo Fraga tem muito do menino que ele foi e sempre será. Gente grande que não tem coragem de pôr pra fora a criança que ainda é não devia ter permissão para visitar esse trabalho”, ressalta Lima. De acordo com Fraga, todo o espaço foi desenhado com a preocupação em levar a arte do pintor modernista brasileiro para as gerações mais novas. “Acredito que é muito importante que essa exposição fale com o público em geral, mas principalmente com o infanto-juvenil. Que, com esse projeto, a gente consiga trazer essas pessoas para dentro do universo de Portinari”, conta o estilista. Das brincadeiras de infância aos retirantes nordestinos. Candido Portinari foi buscar sua inspiração nas mais simples formas e foi capaz de inspirar gerações com sua arte e originalidade. É um pouco desse universo que a exposição apresenta ao público, por meio da curadoria do famoso estilista. De família operária, Portinari ganhou o mundo pintando o que via e o que sentia. Suas pinceladas suaves foram capazes de descrever o sofrimento, a dor e a alegria de um povo da forma mais singela e marcante, assinando seu estilo único na história da arte. Civilização Mineira, maior quadro de Cândido Portinari em Minas Gerais, ganha os holofotes da exposição. Representando a mudança da capital mineira, de Ouro Preto para Belo Horizonte, em 1897, e a evolução

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da civilização mineira, o painel, de 2,34m x 8,14m, passou por restauração no último ano, quando foram descobertos uma intensa ocorrência de cupins e o esbranquiçamento de partes da obra – provocado pelo branco feito de titânio. Recosturando Portinari partiu do processo de restauro do quadro Civilização Mineira, pintado por Cândido Portinari em 1959 e que é hoje a maior obra do artista paulista presente em Minas Gerais. “A gente tinha um desafio: atrair o público para a restauração de uma obra, que é um processo caro, demorado, extremamente técnico, mas fundamental”, contou o presidente da Casa Fiat de Cultura, José Eduardo de Lima Pereira. “Foi então que pensamos no Ronaldo, pois ele é um profissional talentoso e criativo, para fazer uma releitura dessa obra.” Logo na entrada, os visitantes são recebidos pela obra restaurada Civilização Mineira (1959). O quadro retrata, em um painel de dois metros de altura e oito de comprimento, a transição da capital mineira de Ouro Preto para Belo Horizonte e a evolução da sociedade local. Nas quatro salas que compõem a mostra, as etapas da restauração são ilustradas de forma lúdica e interativa. Em uma delas, instalações


Portinari é para se ver, para se morar, para se comer e para se vestir com elementos do quadro. Em outra, a representação de um ateliê de restauro. Espantalhos – figuras recorrentes nas obras de Portinari – ocupam mais um espaço e ganham forma pela reciclagem de gaiolas e sucatas, enquanto as roupas produzidas por Fraga vestem manequins em um ambiente multissensorial, com chão coberto por grãos de café e teto com balões de São João. O quarto e último ambiente pode ser considerado o mais emocionante deles, pelo menos para quem gosta de moda. Nele, os aromas da infância do artista ganham vida, proporcionando uma experiência multissensorial – “a obra de Portinari tem cheiro do café que era plantado no interior de São Paulo, onde ele nasceu”, lembrou o estilista. Com chão coberto por duas toneladas de grãos de café e sob coloridos balões de São João confeccionados a partir de coadores de papel, Ronaldo apresenta alguns dos seus looks desfilados no

último Spfw, repletos de cores, formas e visões desse importante nome do modernismo nacional, como a chegada do circo em uma cidade do interior. “O grande pincel de Portinari é o pincel da memória. Uma das coisas que mais me atrai nele é que ele sempre está dizendo para a gente ‘não deixe de lado a criança que você foi.” Ronaldo Fraga é o curador desta exposição, que teve como mote o restauro da obra Civilização Mineira, de Portinari, que já fazia parte do local quando este era o Palácio dos Despachos do governo mineiro. Paralelamente, será apresentada a obra do artista como fonte de inspiração para a coleção de moda O Caderno Secreto de Portinari. Entra em cena o talento de Ronaldo para transformar a linguagem fashion em artística, explorando cores, formas e traços em peças de moda e cenografias incríveis. O convite aconteceu no ano passado, mesma época em que ele estava criando sua coleção de Verão 2015,

Detalhe de uma das instalações da exposição

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Nome da exposição e de seu curador na entrada do evento

intitulada O Caderno Secreto de Cândido Portinari. “Foi tudo uma feliz coincidência”, disse o estilista. “Eu tenho um verdadeiro fascínio pela geração de artistas brasileiros das décadas de 1930, 40 e 50, porque foram eles que construíram o Brasil moderno. E Portinari sempre esteve ali. Quando fiz a coleção sobre Carlos Drummond de Andrade e Athos Bulcão, por exemplo, eu acabava esbarrando nele. Daí surgiu essa história.” Segundo Fraga, a transmutação de Cândido Portinari em um conjunto de looks é só mais uma das maneiras de viajar pelo extenso mundo do pintor. “Poderia ter sido um chefe de cozinha o responsável pela curadoria dessa mostra. Portinari é para se ver, para se morar, para se comer e para se vestir”. O estilista conta que, desde que a exposição começou a ser colocada no papel,

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o objetivo é encantar. “Sempre fui da opinião que, se você faz brilhar os olhos de uma criança ou os olhos de um ancião, então você está alcançando sucesso naquilo que está fazendo. E esse é o desejo desse trabalho”, afirma Fraga. Esse minucioso processo de restauração se aproxima do complexo trabalho de criação de um artista. Por isso, lado a lado ao processo de restauração, será apresentada a obra de Portinari como fonte de inspiração para uma criação de moda, a coleção O Caderno Se-


Desfile de Ronaldo Fraga no Spfw de 2015

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Alunos em excursão para conhecer um pouco mais sobre Portinari e Fraga

creto de Candido Portinari. O pintor é fonte inesgotável de inspiração para diferentes vetores da cultura brasileira e, pela primeira vez, é transposto para o mundo fashion. Sob a ótica de Ronaldo Fraga, detalhes, traços, formas e cores, e características de Portinari ganham uma releitura na moda, deixando as telas para ganhar as ruas. Balões de São João, pipas e azulejos se transformam em verdadeiros legados contemporâneos da arte de Portinari. Os visitantes vão conferir o making of da criação do estilista (croquis e desenhos) e algumas concepções inéditas, tendo como ponto de partida o quadro Civilização Mineira. A exposição Recosturando Portinari conta com quatro salas, que utilizam linguagens variadas para criar um envolvimento do público com o universo do ilustre filho da cidade de Brodowski. Logo na entrada, inconfidentes mineiros dão boas-vindas aos visitantes, em uma instalação com os elementos do quadro. É como se a pessoa entrasse na obra, participando dela e vendo cada detalhe em tamanho ampliado bem de pertinho. Na sequência, espantalhos (figuras recorrentes no trabalho do pintor) relembram momentos marcantes da vida e da obra de Portinari em uma linha do tempo interativa com vídeos e fotos, enquanto ao lado são revelados os bastidores do

ateliê de restauro de Civilização Mineira – processo que levou cerca de um ano para ser concluído. Inaugurada no último dia 26 de agosto, a mostra já é um sucesso de público – na manhã da nossa visita havia pelo menos duas turmas grandes de escolas, com cerca de 100 alunos. Ainda não há nada confirmado, mas pode ser que Recosturando Portinari seja levada ainda para Recife e São Paulo. “O desafio maior foi montar uma exposição sem acervo, tirando o quadro da parede para aproximar as pessoas da arte desse nosso célebre desconhecido que é Cândido Portinari”, observou Ronaldo, estilista mineiro inspirados na obra do pintor. E ainda podemos afirmar que ele conseguiu não apenas jogar uma luz sobre esse importante artista nacional, mas também instigar os visitantes a procurar saber mais sobre ele, sua história e suas obras. A exposição está aberta também para a visita de turmas e grupos de estudantes, que participam de aulas expositoras percorrendo a mostra RECOSTURANDO PORTINARI Terça a sexta: 10h - 21h Sábados e domingos: 10h - 18h Casa Fiat de Cultura – BH

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MASP. Visitas guiadas. Veja. Ouรงa. Aprenda.

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produção textual: conto

Retirantes Por Humberto de Campos Foto José Mateus Bichara Os últimos habitantes da vila deviam abandoná-la naquela noite. Desde que, com a continuação das ventanias doidas após o dia de São José, se perdera a esperança de inverno, os lavradores, deixando os roçados e a casa, haviam iniciado a descida para o litoral. Pelas várzeas combustas, onde a lama rachara ao sol, partindo-se em escamas escuras como a carapaça de uma tartaruga monstruosa, branqueavam, aqui ali, os esqueletos do gado morto de sede e fome. Não se ouvia o pipilo de um pássaro ou o rumorejo de uma fronde. Apenas, de e em longe, quebrando a monotonia da solidão, um cardo abria as folhas sobre uma pedra, estendendo as mãos espinhentas e verdes, como se amaldiçoasse, mudo, as radículas que o acorrentavam. E nas caatingas mortas, o vento a investir contra os galhos secos, contra as flechas negras em que se haviam transformado os arbustos sem vida, como se, reconhecendo a sua culpa na extensão da calamidade, quisesse castigar-se, chicotear-se, flagelar-se com ele. E castigando-se, chicoteando-se, flagelando-se, corria, gemia, gania, levantando redemoinhos de poeira com os seus furiosos pés invisíveis. Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda acompanhava sem surpresa nem revolta a marcha da Inimiga. Vira morrer no terreiro, estorcendo-se, o genro, como assistira à agonia do marido, vinte anos antes, na seca de 88. Dias depois, morreu-lhe também a filha. Homens piedosos levaram os dois corpos ao cemitério, deixando-a sozinha na choça, estirada, com febre, sobre uma suja esteira de carnaúba. À tarde, quando procurava raízes selvagens para comer, soubera, por umas mulheres retirantes, que a vila estava quase deserta. Os moradores mais resistentes e teimosos preparavam-se para fugir naquela noite, à primeira claridade da lua. Se ela não os acompanhasse na fuga, seria, em breve, magra e velha, o último pasto dos urubus esfomeados. Como lhe seria possível, porém, fugir, se não existia na palhoça um único pedaço de pano com que velasse a nudez? Como poderia aliar-se à caravana dos últimos fugitivos se vivia, há duas semanas, sem um molambo sequer, sobre a pele engelhada? Que amigos lhe suportariam a companhia incômoda se ela os envergonharia pelas estradas com o triste espetáculo da sua miséria? Um pensamento macabro iluminou-lhe, num clarão de relâmpago, o espírito brutalizado pela fome. Cadavérica e horrenda, com as falripas da cabeleira falha a tombar, grisalhas, sobre os ombros e as espáduas, onde os ossos furavam a pele suja, a velha encaminhou-se, cambaleando, para o casebre, levantou a custo a enxada de roça que pertencera ao genro, e tomou o caminho da várzea, onde os grilos trilavam aflitamente, anunciando a eclosão aérea das estrelas. Anoitecia, quando a velha, afastando com esforço duas estacas da cerca, penetrou no cemitério. Olhou em torno, com os olhos em febre. Aves agoureiras, espantadas, fugiram num vôo rasteiro. No Cruzeiro tosco,

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produção textual: conto

De acordo com a superstição, os urubus seriam um sinal de morte

emergindo de um tumulto de montes de areia recentes, e de cruzes apressadas e rústicas, gargarejavam o seu canto noturno, saudando a treva, precursora silenciosa da Morte. Um frio súbito percorreu o corpo da megera, arrepiando-lhe os cabelos, que o suor empastava. Tomou, porém, da enxada, e parou, corajosa, diante de uma das sepulturas mais frescas, junto à porta da casa dos mortos. E pôs-se a cavar com fúria, num apelo desesperado às forças que lhe restavam. Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de dois badalos sem eco de uma velha torre desmoronada. Os pés enfiavam-se pela areia frouxa, que o sol amornara. Os braços agitavam-se-lhe descompassados, secos, sem ritmo, precipitando os movimentos, num trabalho mecânico e diabólico. De repente, a enxada, soou, surda. Um cheiro de carniça desprendeu-se da terra, subiu, empestou o ambiente. A virago abaixou-se sobre a cova rasa, e puxou para cima, a custo, o leve cadáver que ali dormia. A noite havia caído, trevosa e lúgubre, impedindo que ela reconhecesse o defunto. Viu, apenas, que era corpo de mulher. Com os dedos trêmulos, percorreu-lhe, tateando, a cintura frágil, encharcada de uma umidade repugnante, desapertou-lhe a saia, que lhe puxou pelos pés, desabotoou-lhe o casaco frouxo, arrancou-o em dois safanões, e, amassando as duas peças de roupa, sem olhar para trás, passou, de novo, a cerca, e saiu, nua e suja de terra, a correr desesperadamente para a várzea, rumo da estrada por onde desciam, dia e noite, as levas de retirantes. Fatigada, tropeçou no esqueleto de uma alimária, e rolou por terra, a pequena distância do caminho. Desfaleceu. Quando recuperou os sentidos, por milagre das suas energias de ferro, era dia alto. Sentou-se na terra frouxa, e quente. Olhou em torno. E, os olhos fora das órbitas, escancarou a boca num grito que não teve forças para emitir. Ao seu lado, amarfanhados e fétidos, estavam embolados, em trouxa, a saia e o casaco da filha

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produção textual: resenha

Estação Cultura recebe temporada dedicada ao teatro de bonecos Campinas recebe dois espetáculos de teatro de bonecos no próximo fim de semana Por Fábio Teixeira Foto José Mateus Bichara

A Sala dos Toninhos, localizada na Estação Cultura, recebe dois espetáculos de teatro de bonecos no próximo fim de semana. A peça Vidas Secas, inspirada na obra do escritor Graciliano Ramos, será interpretada pelo coletivo Caravan Maschera, no sábado, 18 de março, às 20h, e no domingo, 19 de março, às 19h. A entrada é gratuita. Durante a distribuição dos ingressos, feita com uma hora de antecedência do início do espetáculo nos dois dias, o público poderá conferir o teatro lambe-lambe “Uma Janela para o Largo”, do Teatro Balbinas Beduínas, com duração de três minutos e apresentado para apenas um espectador por vez. Para encerrar a programação, no domingo, após os espetáculos, acontecerá a festa de confraternização Celebrando o Outro Lado. As temporadas teatrais da Sala dos Toninhos fazem parte do projeto Laboratório de Produção Cultural e são promovidas pela Rede Usina Geradora, que atua em gestão compartilhada com a Prefeitura Municipal de Campinas, por meio da Secretaria de Cultura. ADAPTAÇÃO INUSITADA A Cia Caravan Maschera, localizada no bairro do Jardim Maracanã, em Atibaia, apresenta uma adaptação inusitada do mestre Graciliano Ramos fazendo uso de bonecos, máscaras e de uma trilha musical contemporânea e sem palavras. Os espetáculos da Caravan Maschera convergem para montagens com toques de cultura popular brasileira e busca recriar a fábula, o tema ou o espetáculo. A cultura popular é o elo que permite discutir temas variados e complexos. Vidas Secas bebe da fonte visual dos quadros de Candido Portinari sobre os retirantes e as situações desenhadas por Graciliano Ramos. A temática nordestina popular, neste caso, está na própria materialidade da cenografia e dos bonecos. TEATRO LAMBE-LAMBE INSPIRADO EM PORTUGAL Uma Janela para o Largo foi concebido sob a inspiração de um largo no casco histórico de Lisboa em Portugal: o Largo do Intendente, que se situa na Mouraria, bairro popular em que se encontram vendedores ambulantes, prostituição e atualmente um ponto turístico. O espetáculo é um convite a um momento poético em que o visual e o auditivo compõem o imaginário de uma mulher, Irene, que ao longo de sua

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produção textual: resenha

vida olha pela janela o largo e observa a transformação do local. Já com idade avançada, Irene decide sair detrás da sua janela para dançar no meio do largo. O grupo Teatro Balbinas Beduínas é fundado por Ana Piu, atriz e palhaça desde 1991. Natural de Portugal, Ana trabalhou com companhias de teatro e projetos individuais, e se apresentou em Festivais Internacionais na França, Alemanha, Holanda, Itália, Brasil e Argentina. Entre 1996 e 1997, foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian/ Portugal e frequentou a École International Du Theatre Jacques Lecoq, em Paris. Foi também bolsista do Caleidoscópio no curso Musicalidade do movimento, orientado pelo Theatre Du mouvement em The Summer University in Amsterdam/ Holanda, em 1994. Entre vários seminários e oficinas destacam-se a participação Odin Week 2011, na Dinamarca, e no Ista (Escola internacional de Antropologia Teatral organizado pelo Odin Teatret), em 1998, em Portugal. Foi doutora palhaça entre 2003 e 2011 no Operação Nariz Vermelho em Lisboa, visitando semanalmente crianças e adultos hospitalizados SERVIÇO Temporada Sala dos Toninhos @ Estação Cultura, Campinas Espetáculo Vidas Secas Com a Cia. Caravan Maschera Quando? sábado (18/03), às 20h; domingo (19/03), às 19h Duração? 1 hora Classificação indicativa: 10 anos Estacionamento gratuito Retirada de senhas 1h antes do espetáculo Espetáculo Uma Janela para o Largo Com Teatro Balbinas Beduínas Quando? sábado (18/03) das 19h às 20h; domingo (19/03), das 18h às 19h Duração? 3 minutos. Classificação indicativa: 10 anos Estacionamento gratuito Retirada de senhas 1h antes do espetáculo

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ENCONTRO DO BAIÃO COM O RAP Nascido em Fortaleza, no Ceará, RAPadura mistura ritmos nordestinos ao hip-hop e faz um som inovador e vigoroso Por Laura Maria Foto Fernanda Iara Vater

O

nome Francisco Igor Almeida do Santos definitivamente não traduzia absolutamente tudo o que o músico e compositor cearense, de 32 anos, gostaria de representar com suas canções, crenças e sua filosofia de vida. Por isso, quando se batizou com a alcunha de RAPadura Xique Chico, o artista abarcou um emaranhado de significações sobre si mesmo, a começar pelo nome. “Quando ainda era criança, sempre depois de jogar futebol, pegava um pote de rapadura em minha casa e ia para a rua comer. Então, era sempre visto com vários doces na mão, e meus amigos me zoavam: ‘olha, o rapadura’, e, aí, o apelido pegou. Já o Xique vem de xique-xique, planta muito resistente encontrada no Nordeste, e o Chico é o diminutivo de Francisco”, afirma. A tradução mais clara de RAPadura, porém, está nas

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três primeiras letras – assinaladas, aliás, em caixa alta – do doce: o rap. Desde os 13 anos, o artista encontrou no elemento mais rico da cultura hip-hop o estilo que permearia suas canções e transformaria-no em uma das grandes referências da música contemporânea nordestina. Na bagagem do artista está o Prêmio Hutúz, de 2007 e 2009, de melhor artista do Norte e do Nordeste do século XXI. Mas como pode um artista do rap ser referência na música típica nordestina, já que, à primeira vista, elas parecem tão distantes uma da outra? “Depois que passei a compor rap, decidi misturar ao estilo ritmos nordestinos, como o repente, o coco, o maracatu e o baião”, comenta RAPadura, respondendo à pergunta. O resultado é um som consistente, vigoroso e carregado de brasilidade. Ao cantar seus versos ritmados, RAPadura escancara o dia a dia nordestino carregado do suor vindouro do trabalho na lavoura e da seca que insiste em assolar plantações inteiras, mas também do orgulho de ser um povo com uma cultura rica e diversificada, marcada pela leitura de cordel e pelo frevo, pelo baião e pelo forró. Em suas canções, ao mesmo tempo em que RAPadura exalta a tradição da cultura popular brasileira, faz também uma crítica ácida a artistas do mainstream. Este é o caso de Norte Nordeste que Me Veste, quando o rapper diz sobre os astros que “trazem um nível baixo, para singles fracos”. Contra isso, RAPadura manda: “Meto meu chapéu de palha, sigo pra batalha/Com força agarro a enxada se crava em minhas mortalhas/Tive que correr mais que vocês pra alcançar minha vez”. RAPadura, a propósito, segue seus versos. Em suas apresentações, o rapper faz questão de estar sempre vestido com roupas características do sertão brasileiro. “Tudo

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Decidi misturar ao estilo ritmos nordestinos, como o repente, o coco, o maracatu e o baião em nós fala muita coisas para quem está vendo. A forma como gesticulo, o sorriso, o visual... Com as minhas roupas, mostro um nordestino guerreiro, uma pessoa que usa chapéu de palha para se proteger do sol, a roupa de couro para andar no meio do mato e não se machucar com os espinhos, o chinelo de pneu para enfrentar o chão duro. Tudo isso, carrego em mim”, diz. Outra tradição nordestina que o rapper faz questão de manter em suas canções é a literatura de cordel. “Essa forma de escrever é muito complexa, pois envolve construções de rimas muito rebuscadas que combinam não somente na sonoridade, mas também no sentido. Ao mesmo tempo, o cordel é simples, pois é uma crítica feita para o povo”, analisa. Influência urbana. Nascido no interior de Fortaleza, cercado pelo mangue e pela areia branca das praias, RAPadura levou um choque cultural ao migrar para Brasília, aos


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RAPadura durante sua apresentação em um festival na cidade de Feira de Santana

13 anos, com a família, em busca de uma condição de vida melhor. “Quando cheguei aqui, fiquei assustado com a quantidade de trabalho e de trânsito, mas o que mais me deixou preocupado foi a violência”, comenta. O estabelecimento na metrópole, porém, foi fundamental para seu desenvolvimento na música. “Ao menos uma coisa boa conheci aqui”, brinca, ao dizer que conheceu o hip-hop no Distrito Federal por meio do break. “Depois, aprendi a musicar os versos e a fazer as rimas, sempre com referência ao repente nordestino que escutei durante toda minha infância, por influência de minha mãe”, comenta o músico. Também foi na capital do Brasil que RAPadura começou a militar a favor das causas sociais. Ele comenta que, muito mais do que artista, considera-se um ativista da promoção da cultura para pessoas necessitadas que não possuem fácil acesso a ela. “Junto de alguns amigos, eu criei um coletivo que desenvolve diferentes atividades culturais espalhadas pela cidade, como saraus de poesias na Ceilândia. Também mantemos, sem qualquer patrocínio, uma biblioteca comunitária no local, onde todos são bem vindos a

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doar. Além disso, fazemos outras ações como arrecadar alimentos, por exemplo, brinquedos para o Dia Das Crianças”, comenta. Em função das constantes atividades com a comunidade, RAPadura afirma que, por muito tempo, não conseguiu cuidar de si como um artista. O que justifica o fato de, até hoje, o rapper ter apenas um trabalho lançado, o LP de oito faixas Fita Embolada do Engenho: Rapadura na Boca do Povo (2010). “Há pouco tempo é que passei a ter produtor, assessoria de imprensa, a organizar melhor minha agenda. Estou há quatro anos tentando produzir meu disco oficial, que sairá ainda neste ano”, revela. Por isso, o rapper, que atualmente está na cidade de São Paulo com o show de seu primeiro álbum – que, aliás, terá participações do Rappa –, afirma que vai dar um tempo em sua agenda para focar no novo álbum, que, a princípio, será batizado por Alma Criação. “Preciso me concentrar para produzi-lo. Atualmente, estou focado nesse projeto. Além disso, também cuido da minha filhinha, de apenas 2 anos”, comenta o rapper. Mas ele promete: “Logo estarei em Minas para comer um bom quiabo”


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produção textual: música

Casinha Feliz Por Gilberto Gil Foto Rafaela Konstantyner Onde resiste o sertão Toda casinha feliz Ainda é vizinha de um riacho Ainda tem seu pé de caramanchão Onde resiste o sertão Toda casinha feliz Ainda cozinha no fogão de lenha Ou fogareiro de carvão De dia, Diadorim De noite, estrela sem fim É o Grande Sertão: Veredas Reino da Jabuticaba As minas de Guimarães Rosa De ouro que não se acaba Onde resiste o sertão Toda casinha é feliz Porque à tardinha tem Ave Maria E o beijo da solidão

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coluna assinada

O forró atual Por Ariano Suassuna Foto Bob Souza

Ariano Suassuna é escritor, professor e advogado, além de colaborador

“Tem rapariga aí? Se tem, levante a mão!”. A maioria, as moças, levanta a mão. Diante de uma platéia de milhares de pessoas, quase todas muito jovens, pelo menos um terço de adolescentes, o vocalista da banda que se diz de forró utiliza uma de suas palavras prediletas (dele só não, e todas bandas do gênero). As outras são ‘gaia’, ‘cabaré’, e bebida em geral, com ênfase na cachaça. Esta cena aconteceu no ano passado, numa das cidades de destaque do agreste (mas se repete em qualquer uma onde estas bandas se apresentam). Nos anos 70, e provavelmente ainda nos anos 80, o vocalista teria dificuldades em deixar a cidade. Pra uma matéria que escrevi no São João passado baixei algumas músicas bem representativas destas bandas. Não vou nem citar letras, porque este jornal é visto por leitores virtuais de família. Mas me arrisco a dizer alguns títulos, vamos lá: Calcinha no chão (Caviar com Rapadura), Zé Priquito (Duquinha), Fiel à putaria (Felipão Forró Moral), Chefe do puteiro (Aviões do forró), Mulher roleira (Saia Rodada), Mulher roleira a resposta (Forró Real), Chico Rola (Bonde do Forró), Banho de língua (Solteirões do Forró), Vou dá-lhe de cano de ferro (Forró Chacal), Dinheiro na mão, calcinha no chão (Saia Rodada), Sou viciado em putaria (Ferro na Boneca), Abre as pernas e dê uma sentadinha (Gaviões do forró), Tapa na cara, puxão no cabelo (Swing do forró). Esta é uma pequeníssima lista do repertório das bandas. Porém o culpado desta ‘desculhambação’ não é culpa exatamente das bandas, ou dos empresários que as financiam, já que na grande parte delas, cantores, músicos e bailarinos são meros empregados do cara que investe no grupo. O buraco é mais embaixo. E aí faço um paralelo com o turbo folk, um subgênero musical que surgiu na antiga Iugoslávia, quando o país estava esfacelando-se. Dilacerado por guerras étnicas, em pleno governo do tresloucado Slobodan Milosevic surgiu o turbo folk, mistura de pop, com música regional sérvia e oriental. As estrelas da turbo folk vestiam-se como se vestem as vocalistas das bandas de ‘forró’, parafraseando Luiz Gonzaga, as blusas terminavam muito cedo, as saias e shorts começavam muito tarde. Numa entrevista ao jornal inglês The Guardian, o diretor do Centro de Estudos alternativos de Belgrado. Milan Nikolic, afirmou, em 2003, que o regime Milosevic incentivou uma música que destruiu o bom-gosto e relevou o primitivismo estético. Pior, o glamour, a facilidade estética, pegou em cheio uma juventude que perdeu a crença nos políticos, nos valores morais de uma sociedade dominada pela máfia, que, por sua vez, dominava o governo. Aqui o que se autodenomina ‘forró estilizado’ continua de vento em popa. Tomou o lugar do forró autêntico nos principais arraiais juninos do Nordeste. Sem falso moralismo, nem elitismo, um fenômeno lamentável, e merecedor de maior atenção. Quando um vocalista de uma banda de música popular, em plena praça pública, de uma grande cidade, com presença de autoridades competentes.

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produção textual: música

Quando Dorival Caymmi e Jorge Amado foram parceiros Amigos e companheiros, os dois fizeram várias parcerias juntos Por Luciana Silva Foto Gerônimo de André Lima A música Retirantes ficou imortalizada na trilha da novela Escrava Isaura, com sua música negra e seus versos fortes. Os autores? Dois imortais: Dorival Caymmi e Jorge Amado. Retirantes é uma das muitas parcerias entre os dois, lembra o blog Universo Amado, um dos trabalhos de conclusão do curso de Jornalismo deste semestre, no Centro Universitário Jorge Amado-Unijorge. O que pouca gente sabe é que a música, na verdade, foi composta para a trilha da peça Terras do Sem Fim, adaptação da obra homônima do escritor baiano. O fato de a trilha ser de Caymmi para a peça foi uma reivindicação de Jorge, conta Zélia Gattai no livro Um chapéu para viagem. “Jorge tinha uma única reivindicação: que as músicas fossem de Dorival Caymmi, disso não abria mão. Jorge e Caymmi eram e são amigos fraternos; Jorge mesmo entraria em contato com o compositor, para acertar os detalhes”. A composição aconteceu no sítio da família Amado, segundo relatos de Zélia. As músicas oram surgindo, cada qual mais linda do que a outra. Todas elas compostas entre risadas e alegria, muito frango e pato assado, ovos em profusão. As letras eram de Jorge e a música de Caymmi, sempre embaladas pela voz do compositor, visto que o escritor admitia: não sabia cantar. Amigos e companheiros, os dois fizeram outras parcerias como Beijos Pela Noite RETIRANTES Por Dorival Caymmi Vida de negro é difícil É difícil como quê Eu quero morrer de noite Na tocaia me matar Eu quero morrer de açoite Se tu negra me deixar Vida de negro é difícil É difícil como quê Meu amor, eu vou me embora Nessa terra vou morrer O dia não vou mais ver Nunca mais eu vou te ver Vida de negro é difícil É difícil como quê

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poema visual


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