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ÍNDICE Manifestações de junho de 2013 deram o grande impulso ao debate •Pág. 4
4 propostas para uma Reforma Política Democrática •Pág. 7
Reforma Política e Corrupção •Pág.9
A quem serve a reforma política que Eduardo Cunha tirou do baú? •Pág. 12
A reforma política será inócua sem democratização da mídia •Pág. 14
Decadência da Democracia e Reforma Política •Pág. 18
Os 10 mandamentos da Reforma Política que o Brasil não fará •Pág 23
Manifestações de junho de 2013 deram o grande impulso ao debate Maria Inês Nassif
Mídia Ninja / Flickr
Movimento levou governo e forças progressistas a abraçarem a tese de mudanças radicais no sistema político. Mas é claro que o conservadorismo deu o troco.
A
s manifestações de junho de 2013 produziram dois grandes movimentos na política institucional brasileira. Primeiramente, um inspirador momento em que a presidenta Dilma Rousseff conseguiu dar rapidamente a volta por cima e reverter uma estratégia oposicionista de manipulação da opinião pública, destinada a defini-la como a depositária de toda a insatisfação que ganhava as ruas. Naquele momento, a presidenta leu corretamente a ansiedade dos jovens manifestantes e ofereceu como resposta a adesão pública, clara e incondicional à tese de reforma política. 4 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
A leitura que Dilma fez do momento político foi a de que as instituições democráticas eram colocadas em xeque por uma juventude que não via saída num sistema político vulnerável demais ao poder econômico e à corrupção, e portanto impermeável à contribuição transformadora de uma geração de novos brasileiros que adquirira maior escolaridade que os pais e tinha expectativas também maiores para o futuro, entre elas a de serem cidadãos com plenos direitos. A presidenta abraçou a tese da reforma política sugerindo que ela fosse realizada por uma Constituinte convocada para este fim, por plebiscito. Mais tarde, recuou
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onsolidou-se, entre os setores progressistas, a ideia de que as eleições limpas passavam obrigatoriamente pelo fim do financiamento empresarial de campanha; que a coligação em eleições proporcionais produz distorções graves no resultado eleitoral, isto é, deixam de traduzir a escolha do eleitor nas eleições parlamentares.”
para a proposta de uma reforma legitimada por um referendo popular. O PT, desde a condenação dos réus do chamado Escândalo do Mensalão, no final de 2012, já havia definido a reforma política como grande bandeira. A proposta do partido da presidenta, para a qual são coletadas assinaturas para apresentação de um projeto de iniciativa popular ao Congresso (são necessárias 1,5 milhão de apoios para isto), sugere a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva para fazer uma reforma, o financiamento público de campanha como exclusivo, a votação em listas partidárias (e não mais nos candidatos) para cargos legislativos e aumento da participação das mulheres nas listas de candidatos dos partidos. Também como produto das manifestações de 2013, movimentos sociais e instituições da sociedade civil que anteriormente se mobilizaram para coletar assinaturas para o projeto de iniciativa popular Ficha Limpa, aprovado em 2010 pelo Congresso, constituíram uma Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas. O movimento, que hoje congrega 103 entidades, fez um projeto reunindo temas de consenso entre as entidades e desde então coleta assinaturas para apresentá-lo ao Congresso como projeto de iniciativa popular. Por garantia, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) perfilou o projeto e apresentou-o oficialmente à Câmara. Teoricamente, ele hoje já se encontra em tramitação na Câmara, mas a preferência da Coalizão é que se consiga colher 1,5 milhão de assinaturas necessárias para um projeto de iniciativa popular e apresentá-lo nessas condições ao Congresso e à sociedade. Essa estratégia política foi eficiente em 2010, quando a força do
apoio popular acabou vencendo as resistências corporativas de deputados e senadores ao projeto chamado Ficha Limpa, que proíbe a eleição de pessoas condenadas pela Justiça por decisão de órgãos colegiados, ou que tiveram os mandatos cassados ou renunciaram para fugir à cassação. Consolidou-se, entre os setores progressistas, a ideia de que as eleições limpas passavam obrigatoriamente pelo fim do financiamento empresarial de campanha; que a coligação em eleições proporcionais produz distorções graves no resultado eleitoral, isto é, deixam de traduzir a escolha do eleitor nas eleições parlamentares; que igualmente incabível é a forma de escolha do suplente do senador; e de que são necessários mecanismos para defender o sistema político de legendas de aluguel, sem expressão popular mas que partilham dos benefícios do Fundo Partidário e negociam com tempo de horário eleitoral gratuito. Resolver as distorções sobre o voto do eleitor e reduzir ao máximo a influência do poder econômico no pleito foi o sentido geral dessas iniciativas. Embora com propostas diferentes em alguns aspectos, Coalizão, partidos de esquerda e governos concordam com esse diagnóstico. O segundo movimento político foi um contra-movimento. Enquanto Dilma falava em plebiscito e Constituinte para a reforma política, os movimentos sociais se organizavam e os partidos de esquerda rediscutiam as mazelas da democracia brasileira, o então presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) encenava uma ação de urgência naquela casa legislativa, teoricamente destinada a dar uma resposta rápida do Legislativo às manifestações de descontentamento com os políticos, mas que na verdade deveria servir para esvaziar as forças que propunham mudanças substantivas na política brasileira. Foi assim que a PEC 352/2013 nasceu. Um ato da Presidência da Câmara de julho de 2013 criou um Grupo de Trabalho “destinado a estudar e apresentar propostas referentes à reforma política e à consulta popular” e deu a coordenação ao deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) – contra a própria decisão do PT, que tinha escolhido o deputado Henrique Fontana (PT-SP), com mais qualificações para o debate, e discernimento para não ser usado em uma manobra que se encenava com o objetivo de abortar uma reforma política de fato. Fontana recusou-se, então, a fazer parte da Comissão, e o PT indicou para este fórum o então deputado Ricardo Berzoini (PT-SP), hoje ministro maio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 5
Bruno Coutinho / Flickr das Comunicações. Para os ingênuos, pode ter “colado” a justificativa de que era possível reunir 18 deputados de diferentes partidos, e com diferentes graus de comprometimento com a política tradicional e com o poder econômico financiador dessa política, e que uma negociação exaustiva entre essas pessoas levaria a um consenso em torno de matérias que vão da gaveta para o plenário, e do plenário para a gaveta, desde a promulgação da Constituinte de 1988, devido a profundas discordâncias políticas e ideológicas que provocam. Não é bem assim. A Comissão da Reforma Política forjou um “consenso” já na escolha de seus integrantes, que majoritariamente respondiam a interesses políticos e econômicos com posição consolidada dentro do Legislativo. A deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que tinha também sólida posição sobre o tema e apenas conseguiu integrar a comissão numa “cota” feminina, retirou-se antes que os trabalhos terminassem, denunciando que estava em 6 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
curso uma “farsa”. Ao cabo de 13 reuniões e duas audiências públicas, o coordenador Cândido Vaccarezza assumiu a autoria do que é definido pela deputada Luiza Erundina como um “mostrengo”, como uma “farsa” pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS) e como uma “contrarreforma” pelo ex-deputado Aldo Arantes, que hoje representa a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na Coalizão pela Reforma Política. Vaccarezza produziu algo insólito na história petista. Conhecido por ser o partido que tem mais disciplina interna, o PT assumiu uma proposta de reforma política baseada no fim do financiamento privado de campanha. Vaccarezza, um parlamentar de sua bancada, todavia, assumiu a paternidade de uma proposta cuja aprovação jogaria por terra as decisões partidárias sobre o tema. Hoje, o maior inimigo do projeto de reforma política do PT é a PEC Vaccarezza. O PT desautorizou o deputado depois que ele oficializou a PEC 352 como um “consenso” do grupo de trabalho, mas já era tarde. A construção diabólica dos parlamentares orquestrados por Alves estava lá, na gaveta, pronta para seguir ao plenário quando o movimento contrarreforma estivesse fortalecido – como está agora pela ascensão do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) à Presidência da Câmara. Em 2013, o discurso do então presidente da Câmara Henrique Eduardo Alves, dos adeptos da mudança para manter tudo como está e do coordenador do grupo era a de que a Casa se mobilizara rapidamente diante das manifestações e daria uma “resposta ao clamor das ruas”. O que vai acontecer, de fato, se por uma fatalidade a PEC for aprovada, será manter a rapina sobre o voto popular pelo poder econômico. Vaccarezza, a pretexto de contentar todos os deputados que têm posições absolutamente distintas sobre o tema, tentou algumas mágicas. Em vez de simplesmente propor a proibição do financiamento empresarial de campanha, por exemplo, definiu um fundo público para a campanha, mas deu aos partidos políticos a opção de usar financiamento privado. Teoricamente não derrubou o voto majoritário para as eleições proporcionais, mas instituiu um “distritão”, a divisão do eleitorado estadual em distritos. Derrubou a permissão da reeleição sem mexer no tamanho do mandato presidencial – quando existia o consenso de que no mínimo ele teria que ser aumentado para cinco anos, se fosse impedido ao governante disputar mais um mandato.
4 propostas para uma Reforma Política Democrática Maria Inês Nassif Proposta da Coalizão define eleições em dois turnos para os cargos legislativos e pune com cassação de candidatura aceitar financiamento de empresas
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projeto de lei da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, em torno do qual se reúnem 103 entidades lideradas pela OAB e pela CNBB, deve unificar as forças políticas que se opõem à PEC Vaccarezza, de número 352/2013, que tramita com o apoio e o empenho do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), com o apoio da oposição parlamentar de direita. O projeto foi perfilado no ano passado pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP) e tramita na Câmara, mas a Coalizão pretender reunir assinaturas de 1,5 milhão de pessoas para apresentá-lo como projeto de iniciativa popular. Essa seria uma forma de pressionar o Legislativo para aprovar medidas que não são do interesse de seu mandato, como a proibição do financiamento empresarial de campanha e o voto para o Legislativo em dois turnos. Abaixo, os principais pontos da proposta da Coalizão:
1.
O projeto define um “financiamento democrático de campanha” por meio de um Fundo Democrático de Campanha e do financiamento por pessoas físicas (de até R$ 700,00 por pessoa, e desde que, no total, não so-
mem mais do que 40% dos recursos públicos destinados ao candidato). O financiamento empresarial fica proibido. O Fundo Democrático de Campanha será constituído por recursos orçamentários e de multas eleitorais e os recursos serão destinados exclusivamente aos partidos. Os partidos devem definir claramente em seus estatutos regras para distribuição de recursos e horários de propaganda gratuita entre os candidatos. No caso dos candidatos proporcionais, que seriam eleitos em dois turnos, os partidos têm obrigação de distribuir os recursos de forma igualitária entre os candidatos. A contribuição empresarial – que será ilegal – será punida com a cassação do registro da candidatura. A empresa que cometer esse crime ficará proibida de contratar com o poder público por 5 anos e receberá multar no valor até 10 vezes maior que o valor da contribuição ao candidato.
2.
Os deputados federais e estaduais e vereadores serão eleitos pelo voto proporcional, mas em dois turnos. No primeiro turno, os partidos apresentam aos eleitores uma lista pré-ordenada de candidatos, e o eleitor vota na lista, ou seja, dá o voto ao partido. Com base na proporcionalidade obtida pelas listas parmaio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 7
Miolo / Flickr
Gostaria de contribuir no abaixo-assinado da Coalizão? Então acesse: http://bit.ly/cartamaiorpdf O apoiador deve colocar o número do título de eleitor, o nome da mãe e assinar. Como a lei não permite apoio digital, as listas originais de apoios devem ser enviadas para a redação da Carta Maior no seguinte endereço:
Avenida Paulista, 726 15o. Andar – Bela Vista CEP 01310-100 – São Paulo - SP 8 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
tidárias, define-se o número de cadeiras que cada legenda terá no parlamento. No segundo turno, o partido apresenta os nomes dos seus candidatos ao eleitor, em número que não exceda ao dobro dos parlamentares de sua bancada definidos na eleição primária – se tiver direito a quatro deputados, por exemplo, apresentar os primeiros oito nomes de sua para o eleitor escolher quem irá representá-lo na bancada partidária. Isso reduz em muito o número de candidatos parlamentares, o que reduz o custo das eleições proporcionais e facilita a escolha do eleitor, no entender da Coalizão.
3.
Participação das mulheres nas listas partidárias: para resolver uma grave sub-representação das mulheres na política (elas representam 51% do eleitorado e apenas 8,96% deputadas e 9,81% senadoras), o projeto estabelece que, na lista partidária, as mulheres e homens devem se alternar – o que garante 50% da participação das mulheres na lista, em ordem tal que permita a elas participarem do segundo turno das eleições proporcionais.
4.
O projeto define nova regulamentação para os mecanismos de democracia direta prevista na Constituição: plebiscito, referendo e projetos de iniciativa popular. Grandes questões nacionais – como concessões de serviços públicos, privatizações, construção de obras de grande impacto ambiental, alienação de bens públicos – terão de ser definidas por mecanismos de democracia direta. Os projetos de iniciativa popular poderão coletar apoio por meios eletrônicos. Terá também regime de urgência para tramitação garantida.
Reforma Política e Corrupção Samuel Pinheiro Guimarães O custo total das campanhas da última eleição foi de 5 bilhões de reais. A consagração legal do financiamento privado consagrará o sistema de corrupção.
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á um clamor público, uma revolta de todas as classes da sociedade, contra as revelações de corrupção. Quando terá começado a corrupção? Quem são os culpados? É um fenômeno exclusivamente brasileiro ou do mundo subdesenvolvido ou humano em geral? A quem interessa? Ocorre apenas no setor público? Será uma característica inata da sociedade brasileira? Os incidentes de corrupção que a operação Lava Jato vêm desvendando e que vazam para a imprensa, sem provas e a conta gotas, por quem deveria preservar o sigilo das investigações e a reputação dos acusados (mas não culpados por que não foram julgados) estariam relacionados com o financiamento de campanhas eleitorais. O sistema de financiamento de campanhas eleitorais está vinculado à representação de interesses econômicos no Legislativo e no Executivo. O caso do Judiciário é um tema a parte, ainda que de grande interesse. O candidato Aécio Neves gastou em sua campanha eleitoral, de acordo com as declarações ao TSE, cerca de 201 milhões de reais. A can-
didata Dilma Rousseff gastou cerca de 318 milhões de reais. O custo total das campanhas para presidente, governador, senador e deputado foi de cinco bilhões de reais. De onde vieram esses recursos? Certamente (ou muito raramente) não vieram da fortuna pessoal dos candidatos, mas sim de doações, principal ou quase exclusivamente, de grandes empresas privadas. O custo das campanhas é em extremo elevado devido aos custos de produção e de veiculação de programas de televisão, das viagens que se fazem necessárias devido à extensão territorial do país, dos custos de material de propaganda e de sua distribuição. O objetivo dos que defendem o financiamento privado das campanhas eleitorais está vinculado à principal característica da sociedade brasileira que é a concentração de renda e de riqueza. A concentração de renda é, em geral, estimada a partir dos rendimentos do trabalho conforme declarados à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE. Os rendimentos do capital, isto é os lucros, os juros, os aluguéis, são subdeclarados na PNAD e a Secretaria da Receita Federal não publica esses dados de acordo com a sua distribuição por faixa da população, ainda que sem quebra de privacidade dos declarantes do Imposto de Renda. maio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 9
A estimativa é de que os rendimentos do trabalho correspondam a cerca de 48% da renda nacional. O salário mínimo é de 788 reais, o salário médio do trabalhador brasileiro é inferior a 2.300 reais por mês e 90% dos brasileiros ganham até cinco salários mínimos por mês. São 13,7 milhões de famílias que recebem o Bolsa Família. Isto significa que cerca de 50 milhões de brasileiros tem rendimento mensal inferior a 77 reais. Por outro lado, há, no Brasil, cerca de 46 bilionários e 10.300 multimilionários, estes com patrimônios pessoais superiores a 23 milhões de reais. Muitos são os mecanismos de concentração de renda e de riqueza. Entre esses mecanismos estão às taxas de juros, o sistema tributário, os créditos do Estado a empresas e o sistema de aluguéis. Quanto mais elevadas às taxas de juros “autorizadas” ou permitidas pelas autoridades monetárias maior a transferência de riqueza de devedores, que são a enorme maioria da população, para os credores privados, detentores do capital, e do Estado para os seus credores. O sistema tributário pode ser regressivo ou progressivo. O sistema se diz regressivo quando a maior parte dos impostos arrecadados provêm da maioria da população, sem distinção de seu nível de renda (imposto sobre o consumo, por exemplo) e se diz progressivo quando os indivíduos detentores de maior riqueza ou de mais alto nível de renda Márcia Kalume-Agência Senado 10 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
pagam mais impostos mesmo em proporção a sua riqueza ou renda. É fato que um sistema regressivo de tributação concentra renda e riqueza. As isenções de impostos, as restituições e as desonerações para empresas ou indivíduos acentuam a concentração de renda. Os créditos fornecidos pelo Estado privilegiam em geral as maiores empresas e, portanto, seus proprietários que são os indivíduos mais ricos da sociedade. A leniência do Estado para com a evasão de tributos ou com seu não pagamento (por exemplo, pela não criminalização da evasão, pelo parcelamento e perdão das dívidas tributárias) também concentra renda e riqueza. São brasileiros os proprietários de 530 bilhões de dólares depositados em paraísos fiscais. A concentração de renda e de riqueza em mãos de uma ínfima minoria da população brasileira tem importantes efeitos sobre o sistema democrático e sobre os episódios de corrupção. Os indivíduos detentores de riqueza e renda tem interesse em preservar os mecanismos de concentração e interesse em que não surjam instrumentos legais (leis ou programas) que desconcentrem riqueza e renda. Ora, as normas (as leis) que definem a estrutura e o mecanismo de riqueza, propriedade e renda (legislação trabalhista, tributária, monetária, da propriedade rural e urbana, etc.) são elaboradas no Legislativo, eventualmente no Executivo e cada vez mais no Judiciário. Em um país de grande concentração de riqueza e renda, de elevado grau de urbanização, de grande penetração dos meios de comunicação, de sistema democrático e eleitoral relativamente livre de fraudes, seria natural que a enorme maio-
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s indivíduos detentores de riqueza e renda tem interesse em preservar os mecanismos de concentração e interesse em que não surjam instrumentos legais (leis ou programas) que desconcentrem riqueza e renda.
Cristoph Diewald / Flickr ria da população (que é pobre ou no máximo remediada) elegesse a maioria dos representantes no Congresso, que deveriam ser como ela pobres e remediados e, portanto, legisladores dispostos a redistribuir a riqueza e a renda ou pelo menos a minorar os mecanismos de concentração. Não é isto o que ocorre. A ínfima minoria milionária e bilionária tem, assim, de procurar instrumentos para influir no processo político para evitar esse tipo de legislação e de ação redistributiva no Executivo. Essas, quando ocorrem, são taxadas de comunistas, socialistas, nacionalistas, e hoje em dia de bolivarianas. O primeiro e mais importante desses instrumentos é o financiamento privado (empresarial) das campanhas eleitorais. O segundo instrumento é o controle dos Partidos para que estes escolham como seus candidatos indivíduos que sejam favoráveis à sua visão (isto é, daquela minoria) da sociedade, ainda que não sejam eles mesmos, do ponto de vista pessoal, detentores de riqueza e renda elevadas. O terceiro instrumento é o controle dos meios de comunicação para convencer a população das deficiências do Estado, do caráter corrupto dos candidatos dos Partidos e das políticas populares (isto é, daqueles comprometidos com programas
de reforma social que leva à desconcentração de riqueza e renda). O quarto instrumento é a campanha permanente dos meios de comunicação de desmoralização da atividade política, do Estado e dos políticos para manter a maioria do povo afastada da política. Uma das formas de manter o povo afastado da política seria a aprovação do voto facultativo como se este fosse apenas um direito e não um dever. A campanha pela reforma política deve se concentrar no tema central do financiamento empresarial das campanhas, que é a verdadeira fonte de corrupção e de controle oligárquico, não democrático, da sociedade por aqueles que concentram o poder econômico e controlam os meios de comunicação. Os representantes das forças conservadoras no Congresso Nacional já se empenham para votar o projeto que consagra o financiamento privado, isto é, empresarial, das campanhas eleitorais. A consagração legal do financiamento privado consagrará o sistema fundamental de corrupção do processo político que tem como objetivo impedir a desconcentração de riqueza e renda que torna o Brasil um dos países mais injustos do mundo. maio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 11
Antonio Cruz-Agência Brasil
A quem serve a reforma política que Eduardo Cunha tirou do baú? Maria Inês Nassif
A ele mesmo e à bancada que se elege com a ajuda de poderosos grupos econômicos. Por isso ele não hesita em tentar um golpe contra a democracia.
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e existia alguma dúvida em relação ao poder de reação – leia-se reacionário, no sentido estrito do termo – do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ela caiu por terra com a manobra de colocar em pauta a Proposta de Emenda Constitucional de número 352. Se aprovada, a emenda vai consolidar um sistema político que está alicerçado no dinheiro de grupos econômico, distorce a vontade popular e aprofunda cada vez mais a distância entre a representação política do eleitor, com danos enormes para a democracia. A proposta amplifica os defeitos do sistema democrático brasileiro que são a base do descrédito em que estão sendo jogadas as instituições. Cunha tem a força recém-adquirida de sua eleição para a Presidência da Câmara, uma bancada pessoalmente fiel a ele na casa, interesses convergentes de políticos tradicionais e a aquiescência da oposição – que entrou numa espiral de aprovar qualquer coisa que seja contra o governo, independentemente do impacto que isso tenha 12 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
sobre o futuro do país e dos brasileiros de bem. Com esse trunfos, o deputado pode promover, como uma vitória pessoal, mudanças eleitorais que consolidarão e aprofundarão a prática da corrupção eleitoral. A PEC 352 não é, como poderia parecer, uma mera peça de xadrez na disputa de partidos pelo poder político. É um golpe contra a democracia. De uma tacada, Cunha investe contra os setores sociais que lutam pela reforma política e têm no financiamento privado de campanha seu principal alvo; e contra o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), que caminha para uma decisão histórica de subtrair do cenário eleitoral o financiamento empresarial e fixar a proibição do uso do dinheiro das empresas em campanhas eleitorais como cláusula constitucional pétrea, em decorrência do entendimento de que esse tipo de contribuição favorece o poder econômico, distorce a vontade do eleitor e é fonte de corrupção política. O STF já teria decidido proibir o financia-
mento eleitoral por pessoas jurídicas em agosto do ano passado, se o ministro Gilmar Mendes não tivesse pedido vistas e retardado o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil. Aliás, esta teria sido uma reversão das tendências do STF até agora, pois a mais alta corte judiciária do país, em matéria eleitoral, tem impedido mudanças que seriam fundamentais para reduzir o preço da governabilidade – por exemplo, derrubou a fidelidade partidária e impediu a vigência das cláusulas de barreira para funcionamento dos partidos políticos, que restringiria o papel das chamadas legendas de aluguel nas eleições e no Legislativo. O presidente da Câmara quer desautorizar uma decisão do STF, que impediria o financiamento eleitoral de grupos econômicos, usando uma péssima invenção assinada pelo agora ex-deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP). Foi o petista que assumiu a maestria do primeiro orquestramento da bancada peemedebista contra uma reforma política na gestão de Henrique Eduardo Alves na Presidência da Câmara. Após as manifestações de junho de 2013, e como tentativa de esvaziamento da proposta da presidenta Dilma Rousseff de chamar um plebiscito sobre a reforma política, Alves chamou para si a iniciativa e formou uma comissão para forjar um “consenso” em torno de mudanças nas regras eleitorais. O grupo criou um monstrengo que, entre outras coisas, constitucionalizou o financiamento privado de campanha – e isso, uma vez aprovado, dificultaria imensamente qualquer tentativa popular de jogar fora essa liberalidade da lei brasileira. A deputada Luiza Erundinha (PSB-SP) saiu da comissão e denunciou a farsa. Vaccarezza ficou e assumiu a autoria da proposta. O PT tomou outros rumos e lançou posteriormente uma campanha nacional contra o financiamento privado de campanha e pelo voto em listas fechadas para as eleições do parlamento e desautorizou Vaccarezza, que não se reelegeria na eleição do ano seguinte mas deixou uma emenda parlamentar na gaveta que vai ser um pepino a ser enfrentado por todas as forças progressistas. O país, agora, está diante de uma ação desafiadora do presidente da Câmara e de seus asseclas, que tem especialmente como objetivo manter o financiamento privado de campanha, centro de todos os escândalos políticos que envolvem o país desde a primeira eleição direta para a Presidência da República pós ditadura, em 1989. A ação política que vem como uma reação ao debate democrático sobre como depurar a demo-
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duardo Cunha amarra compromissos desde as eleições – e eleições caras são fundamentais para que sejam eleitas sempre mais pessoas que tenham compromissos com financiadores poderosos.
cracia não é apenas uma maldadezinha de Cunha. É uma peça fundamental na luta pela sobrevivência de amplos setores do parlamento que apenas estão na política – e apenas terão interesse nisso – enquanto o Parlamento se servir a balcão de negócios. O poder de Cunha depende disso. Reside nisso. O presidente da Câmara funciona como um mediador de interesses. Cunha atrai os grupos econômicos com interesse em ações de governo ou matérias em tramitação no Legislativo, e canaliza dinheiro desses grupos para financiar campanhas eleitorais de parlamentares. Amarra compromissos desde as eleições – e eleições caras são fundamentais para que sejam eleitas sempre mais pessoas que tenham compromissos com financiadores poderosos. O deputado que hoje preside a Câmara assumiu, portanto, a tarefa de organizar a bagunça dos interesses variados que circulam diariamente pelo Congresso, e faz isso operando desde as eleições e garantindo lealdades a partir do financiamento privado de campanha. Se as campanhas eleitorais passarem a ser feitas sem o dinheiro de empresas – e se o uso de caixa dois for efetivamente diluído pela ação da justiça, da polícia e do Ministério Público – o poder de Cunha se esvai como balão furado. Vai sobrar apenas o acesso a uma bancada evangélica que apenas é coesa em assuntos relativos à fé, como votações que impliquem modernização de costumes – aborto, uso das células-tronco em pesquisas e até o “orgulho hétero”, que poderá virar feriado nacional com a ajuda do presidente da Câmara – quando se trata de manter a lealdade de sua bancada, afinal, Cunha não tem medo do ridículo. Isso faz parte do trabalho de líder da bancada do baixo clero: jamais desprezar um assunto menor, para sempre vencer nos assuntos em que tem maior interesse. maio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 13
A reforma política será inócua sem democratização da mídia Walquíria Leão Rego* A velha mídia apenas inocula o ódio a qualquer forma de política. Sem democratizar a informação, a democracia brasileira não conseguirá se defender Heidi De Vries / Flickr A prática democrática, por princípio, é criadora de instituições abertas à revisão constante de suas agências e instituições. Essa abertura a mudanças e aperfeiçoamentos é fundamental para defender a democracia de suas muitas fraquezas. Os democratas sabem que a verdade radical da democracia reside no poder constituinte do povo, ou seja, na ativação permanente da soberania popular. Como ensinam os clássicos do pensamento político, o povo é soberano em virtude de seu poder de constituir, ou seja, do poder que dispõe para refundar instituições por ele mesmo criadas. Foi assim na história da democracia desde os gregos. A forma democrática, portanto, pode abrigar seus recorrentes insatisfeitos, pois são eles os sujeitos de suas invenções e refundações institucionais. Essa é a substância definidora da vontade e da necessidade da democracia de rever constan14 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
temente a legitimidade de seus vínculos. Tem sido essa a luta histórica da democracia. Aqueles que estiveram do lado da trincheira dos que combatiam para aprofundar a democracia venceram ou perderam. Os que perderam certamente pagaram caro por suas derrotas. Isso porque as instituições políticas passam a carregar a marca da luta social e o caráter dos vencedores. As instituições políticas são cicatrizes de ferimentos adquiridos no processo de disputa pela construção institucional, e essas marcas profundas sintetizam, de algum modo, a relação de forças da sociedade e da conjuntura refundacional vivida. Na Constituinte de 1988, por exemplo, muitas instituições projetadas para aprofundar a democracia foram vetadas pelas forças políticas dominantes no Congresso Constituinte, apesar da grande participação popular no espaço congressual. A democracia, portanto, é uma construção
permanente de consensos. E se é assim, não há por que deixar de incluir o tema da reforma política na agenda pública do país. Trata-se, afinal, de um debate sobre a repactuação da democracia, distorcida por um sistema político-eleitoral vulnerável a um poder econômico-financeiro que possui enorme força para intervir tanto na política parlamentar, como nos rumos das políticas públicas. O sistema eleitoral carece de limites e contrapesos ao poder do dinheiro. Mas, ao par disso, não se criará nenhuma ética pública sem a construção de controles democráticos ao sistema de poder que organiza e controla corações e mentes. A reforma política, portanto, não pode ficar adstrita ao sistema eleitoral e partidário. Construir
uma democracia menos vulnerável à excessiva influência do poder econômico significa também democratizar o sistema comunicacional do país. A regulamentação da mídia é uma urgência. A mídia, como força social, tem imposto enorme poder de veto a todos os impulsos mais profundos da soberania popular. Demonstrativo disso são suas intervenções sistemáticas para limitar o alcance das políticas sociais distributivas que constituem o coração de qualquer democracia digna deste nome. A enorme desigualdade social do país não se origina do roubo do fogo sagrado dos deuses, mas encontra seu vício de origem na imensa força dos poderes associados do dinheiro e da esfera da comunicação pública, que organizaram as referências simbólicas fundamentais do país ao longo de nossa história recente. Faz parte também dessa configuração de poder impor ao país, sem peias, a política da política econômica, e definir e modelar a construção simbólica da nação. O poder que se situa acima da expressão do voto, e não raro se impõe ao desejo popular expresso nas urnas, é exercido pelo controle que essas forças dispõem sobre os principais meios de comunicação. Essa configuração de forças, em nossa história, sempre agiu associada e conforme um complexo sistema de poder dotado de grande força persuasiva, e de cooptação e manipulação da chamada opinião pública. A história brasileira do século passado e des-
James Good / Flickr
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poder que se situa acima da expressão do voto, e não raro se impõe ao desejo popular expresso nas urnas, é exercido pelo controle que essas forças dispõem sobre os principais meios de comunicação. Essa configuração de forças, em nossa história, sempre agiu associada e conforme um complexo sistema de poder.
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Humphrey King - Flickr te início de século confirma nosso destino e tragédia. Ainda estão vivos na memória dos combatentes pela democracia os eventos trágicos de 1954 e 1964, eventos que a mídia da época protagonizou como um dos mais ativos atores não democráticos presentes naquele palco. Fabricou à vontade seus mitos políticos antipopulares. Fazia de tudo, menos dizer a verdade ao seu público. Praticou sem constrangimentos, como faz agora, o trabalho de criação do clima político – algo que o grande jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni chamou de criação de pânico moral. Por tudo isto, torna-se imperativa a convocação dos titulares da soberania popular para reformar o sistema político eleitoral, trabalho que será incompleto se não for acompanhado de um grande debate sobre a democratização urgente dos meios de comunicação. A reforma política não se fará sem a luta simultânea pela democratização da mídia, pela razão óbvia de que será no âmbito da comunicação que se dará a desqualificação de todo e qualquer projeto reformista de origem popular. A teoria política contemporânea tem se preocupado muito e se debruçado em pesquisas e análises sobre o fenômeno que denomina de “Privatização e concentração de poder na esfera da formação da opinião política.” (Urbinati Nadia, Democracy Desfigured- Harvard University Press. 16 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
2014) As consequências disto são muito graves para a democracia e para a República, que exigem pluralidade de vozes e de meios informativos. A monopolização da voz pública por grandes empresas privadas de comunicação produz a desqualificação da política, pois despolitiza as questões públicas e agride a democracia. Isto, de per se, constitui um fato grave e danoso de verdadeira expropriação da voz soberana do povo. De modo geral, os meios informativos têm sido fonte de disseminação de sentimentos negativos em relação à política e às regras mais básicas do convívio democrático, pois em sua arena é muito raro ou minoritário o comparecimento do contraditório. Por meio da sub-informação e da desinformação vestida de informação, a mídia constrói uma “realidade” em que a opinião da empresa aparece na forma de “notícias” que, reiteradas e persistentes, convergem para o mundo sombrio dos preconceitos. Uma “realidade” construída é o que se propaga por meio de imagens de televisão e de escritos “jornalísticos,” que acabam por sintetizar, em seus estereótipos, os piores preconceitos discriminantes da sociedade. A mídia brasileira, tal como está organizada, ou seja, em um cartel, nada tem a ver com mídia democrática, pois sua prática diária se enreda na veiculação sistemática dos interesses e valores de certo grupo social e político. Sua gramática comparece eivada de preconcei-
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questão central da atual conjuntura recupera uma questão clássica da política: quem tem o poder de chamar os cidadãos para a urgente tarefa de lutar e escrever a reforma democrática de nosso processo eleitoral e simultaneamente lutar pela democratização da comunicação pública?
tos desqualificadores da política. Basta lê-la com atenção. Quando fala da política, a mídia não utiliza a linguagem da política, apenas reitera a língua do moralismo mais chulo. Não propõe debate público algum, apenas seleciona fatos e personagens que reforçam os preconceitos e prenoções dominantes sem ouvir devidamente o contraditório, inoculando metodicamente nos sentimentos públicos a desvalorização da política e de alguns de seus atores. Tal parcialidade vai erodindo a legitimidade dos vínculos democráticos, sobretudo os ligados a partidos políticos, em especial na gestão da representação politica. Assim atuando, fazem da esfera pública um espaço de comparecimento privado, um clube que, na grande maioria das vezes, apresenta sempre a mesma narrativa dos fatos políticos. A disputa por acesso aos espaços narrativos tem sido feita por meio de uma pequena guerra de guerrilhas, cuja eficácia ainda é questionável. O grande romancista alemão Thomas Mann dizia que a atitude política e intelectual de um democrata deve ser a de acreditar na política, pois isso significa acreditar na democracia. Para ele, a democracia é inevitavelmente política porque torna todas as questões um objeto de avaliação pública e todos os valores em temas de consentimento e de opinião. Desta feita, o fenômeno da monopolização dos meios de comunicação que forja uma realidade de mão única tem um impacto muito grande sobre a distribuição de “oportunidade de voz” aos cidadãos. A assimetria no uso deste direito básico expropria, ainda e mais uma vez, sua influência na política. O caso da mídia brasileira é escancarado. Basta ver o que fizeram a revista Veja e a Rede Globo na véspera da última eleição presidencial.
Uma televisão, a Globo, que é uma concessão pública, claramente tomou partido de uma candidatura e veiculou versão completamente arbitrária de um suposto depoimento de um réu da operação Lava Jato, nitidamente para prejudicar a candidatura da presidenta Dilma Rousseff que, nas últimas 48 horas que precederam as eleições, não podia mais legalmente responder à acusação feita. A grosseira intervenção foi feita com total desprezo pelos procedimentos elementares de cautelas legais, como apresentação de provas, exigidas num Estado de direito democrático. Cabe refazer a pergunta que Hannah Arendt diz ser a que toca no coração do problema: antes de analisar os efeitos de um fato, deve-se indagar como ele pode ocorrer. Na tentativa de compreender isso, talvez se chegue mais perto dos processos políticos e sociais que o gestaram. O poder sem controle democrático, próprio das situações despóticas, torna-se absoluto na medida em que modela sentimentos, mentes, opiniões e vontades dos cidadãos. Plasmar subjetividades que incidem na formação da capacidade de julgamento moral e político dos cidadãos constitui uma potência política maior que qualquer outra agência. Talvez se iguale ao poder de uma religião. A questão central da atual conjuntura recupera uma questão clássica da política: quem tem o poder de chamar os cidadãos para a urgente tarefa de lutar e escrever a reforma democrática de nosso processo eleitoral e simultaneamente lutar pela democratização da comunicação pública? Penso que tal tarefa se impõe imperativamente aos partidos políticos comprometidos com a soberania popular. Se isto não for feito, a reforma política, sem debate público cuidadoso e amplo, virá como pacote político proveniente de um grupo parlamentar carente de compromisso democrático. A reforma deve começar pela democratização do processo eleitoral, atualmente em grande parte capturado pelo poder econômico, uma realidade expressa na forma de custos cada vez maiores das campanhas eleitorais. Os efeitos disto sobre a representação política são deletérios. Por fim, a questão posta por Thomas Piketty: a dinâmica do capitalismo contemporâneo forjou novos tipos de instrumentos de pressão e poder políticos. Pode-se perguntar, como o autor faz, até quando a democracia poderá controlar o capitalismo nas suas dimensões mais destrutivas, mais antissociais, como inscrita na lógica do capitalismo financeiro. maio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 17
Decadência da Democracia e Reforma Política Tarso Genro Precisamos destacar a importância da luta total contra a ‘dinheirização’ da política em todos os níveis, legais ou ilegais. Matheus Hidalgo / Flickr
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s períodos de decadência política, cultural, do modo de vida, decadência das relações que estabilizam um determinado contrato social, acossado por problemas econômicos (mais ou menos crônicos, para os quais não existe saída à vista) são períodos dolorosos. Mas podem ser extremamente ricos, quando são interrompidos por saltos revolucionários, por reformas radicais ou por reformas “concertadas”. Estas podem ocorrer quando não existem grupos organizados com um grau de superioridade que possa dispensar negociações com adversários ou inimigos, para o enfrentamento de situações críticas. “A causa mais importante - e sintoma - da decadência de um regime é a perda de prestígio 18 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
e respeito entre o público em geral e a perda de confiança dos líderes em seu próprio direito e capacidade de governar”. A Revolução Inglesa - da Revolta Puritana de 1640, à “Gloriosa” em 1688 - antecedeu em 150 anos a Revolução Francesa. Talvez tenha sido a revolução burguesa que teve o protagonismo mais concentrado num “grande intermediário”, que imprimiu no processo político a sua vontade de aço com efeitos mais duradouros: o Lord Protector, Oliver Cromwell, que guiou a revolução a partir de 1653. Cromwell organizou a força militar do Parlamento, sedimentou determinados valores morais e instituiu um consenso pelo convencimento e pela força, que consolidou uma clara hegemonia polí-
tico-militar e abriu caminho ao desfecho da “Gloriosa”. As instituições que forjaram a democracia moderna, fundadas na Gloriosa e na Revolução Francesa - regime baseado em decisões majoritárias com liberdade política, igualdade formal, inviolabilidade dos direitos assegurados em lei - têm como um dos seus “pontos fortes” - para usar uma expressão de Gianfranco Pasquino - a sua “flexibilidade institucional”. Os regimes autoritários tem pouca flexibilidade institucional. Quando “flexionam” abrem as portas para a sua substituição, negociada ou violenta, pelos regimes democráticos. As democracias, porém, quando “flexionam”, tanto podem constituir mais condições democráticas para a vida comum, como menos condições democráticas para a vida da maioria. As democracias mais maduras tem a capacidade, em regra, de manter a “moldura institucional”, formal, de caráter libertário, originária das revoluções que as forjaram, mesmo quando se tornam objetivamente mais autoritárias, oportunidade em que bradam o argumento do “terrorismo” ou do “inimigo externo”. Estas democracias mais maduras têm uma flexibilidade institucional mais larga, mas por outro lado podem exercer a “exceção” com mais legitimidade. Dentro de um mesmo regime político, portanto, pode se ter tanto mais democracia, como menos democracia, independentemente de que a sua decadência seja obstruída ou não. Mas, se a decadência não é enfrentada, a democracia tende a ser superada, tanto por uma ditadura “aberta”, com maiores ou menores traços fascistas, como por um regime autoritário que use abusivamente
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s democracias mais maduras tem a capacidade, em regra, de manter a “moldura institucional”, formal, de caráter libertário, originária das revoluções que as forjaram, mesmo quando se tornam objetivamente mais autoritárias, oportunidade em que bradam o argumento do “terrorismo” ou do “inimigo externo”.
da exceção. Um regime autoritário, não ditatorial, frequentemente leva a flexibilidade das instituições, em algum momento, a um ponto de “quebra”. Este fenômeno ocorreu aqui no país, com a edição do AI/5 (2 de setembro de 1968), e no Peru(19902000), com o “golpe branco” do ex-Presidente, hoje preso, Alberto Fujimori. A “decadência” democrática, embora com visibilidade especial na atual conjuntura do país, não é uma questão nova no mundo. A partir da deterioração do curto reinado socialdemocrata, que espalhou experiências positivas de coesão política em torno do Estado Social de Direito em dezenas de países do ocidente, tomou-se consciência plena de uma “crise da democracia”. Decadência, crise e “ajustes”, se convertem um no outro, necessariamente, nos últimos 40 anos. A decadência, como crise em processo, converte-se em crise da política, impulsionada pela sucessão de ajustes exigidos pelos credores-manipulares da dívida pública. Hobsbawan referiria a este processo, depois da derrocada soviética, como a trágica “herança dos vencedores”, que já era visível desde a década de 70 do século XX. Foi o impulso de degeneração da política, com argumentos de “técnica” econômica (chamada pelos primeiros experimentos ultraliberais) que transformaram a dissidência política da esquerda, em particular, num confronto da política, em geral, com a racionalidade urgente do capital financeiro. Entre vários, um livro importante tratou do assunto na década de noventa. E não foi escrito por nenhum revolucionário marxista, “Rebelião das Elites e a traição da democracia”, de Christopher Lasch: “A democracia - diz o autor - exige também uma ética mais fortalecedora do que a tolerância. A tolerância é uma coisa boa, mas é apenas o ponto de partida da democracia, não o seu destino. Na nossa época, a democracia está sendo ameaçada mais seriamente pela indiferença do que pela intolerância ou superstição.” A transição, nos últimos cinquenta anos, de um capitalismo industrial mais estabilizado e previsível, para um capitalismo capturado pelos movimentos globais indeterminados do dinheiro (e para a abertura de um espaço de anomia para a acumulação sem trabalho) teve um impacto profundo nos países de fora do núcleo orgânico do sistema do capital. São países que enfrentaram os desafios de governar adaptando, em menor ou maior grau, a visão clássica da soberania antimperialista (com possível respaldo no “bloco soviético”), para uma nova postura visionária de cooperação intermaio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 19
dependente com soberania (com o alargamento de todas as relações internacionais). Embora estejamos nos referindo ao quadro das democracias nas sociedades capitalistas, a questão democrática - tomada como o avesso do autoritarismo e da centralização burocrática do poder - é uma questão universal. Ela se evidencia também (e ainda com mais força penetrante) no Estado e na vida cotidiana de um autêntico projeto socialista. É István Mézáros quem lembra: “O grande erro das sociedades pós-capitalistas foi o fato de elas terem tentado compensar a determinação estrutural do sistema que herdaram pela imposição, aos elementos adversários, da estrutura de comando extremamente centralizada de um Estado político autoritário.” Sem a perspectiva revolucionária, a nova forma de conexão de países como o nosso com o mundo imperial-financeiro, subsumida no poder direto da especulação e da reprodução mais artificial do dinheiro, passou a se constituir como o limite máximo de liberdade. Um limite aberto à experimentação de formas alternativas à dependência integrada, sem soberania (como é o propósito ultra ou neoliberal), mas também um limite bloqueador de mudanças mais radicais nas formações sociais dependentes (como se vê dos impasses, por exemplo, da “saída grega”). No caso do Brasil, através destas formas alternativas, é reestruturada a sociedade de classes dentro da democracia a partir de 88. A própria “questão democrática” que emerge destas mudanças, do ponto de vista social - menos desi20 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
Marcos Oliveira-Agência Senado
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partir da deterioração do curto reinado socialdemocrata, que espalhou experiências positivas de coesão política em torno do Estado Social de Direito em dezenas de países do ocidente, tomou-se consciência plena de uma “crise da democracia”. Decadência, crise e “ajustes”, se convertem um no outro, necessariamente, nos últimos 40 anos.
gualdades e mais oportunidades- passa a enfrentar novos desafios. Os desafios aparecem como fortes demandas na área dos serviços de saúde, transportes urbanos, educação de qualidade, empregos mais qualificados, demandas que, não respondidas, começam a reduzir o apreço da cidadania à política e, logo, à forma democrática de resolução dos conflitos. Os novos desafios também antagonizam a cidadania com o Estado endividado, que não consegue preservar o seu sentido de “público” de maneira ampla, ao responder as demandas de maneira apenas retórica e precária. Os novos conflitos nesta sociedade classista reestruturada, portanto, são integrados por novos sujeitos sociais – trabalhadores dos setores clássicos do capitalismo ou dos novos serviços e prestações - que aparecem na cena pública agendados pelo próprio sucesso do desenvolvimento alternativo. Aparecem, também, os velhos sujeitos com novos papéis, necessidades e desejos incomuns, bolsões de inconformidade que experimentam novas formas de luta. Lutas que misturam de forma espontânea, vontade revolucionária sem estratégia e sem concepção de revolução, com confrontos radicalizados de natureza corporativa. O Estado, ancorado na dívida para se financiar, não tem condições imediatas de atender aquelas demandas mais importantes, mesmo com a máxima vontade dos gestores públicos de qualquer nível ou compromisso ideológico, de qualquer ideologia. A sociedade fragmenta-se; a política desprestigia-se e o dinheiro, que era relevante como organizador da política democrática, passa
a ser a sua própria força reguladora, em todas as esferas de disputa. As instabilidades nas “negociações” que caracterizam qualquer democracia, não só tem razões materiais e políticas de fundo, mas também são produto de estímulos “pensados” pelos gestores políticos dos grandes meios de comunicação, que já se constituem como novos partidos organizadores da agenda neoliberal. Estes aparatos partidários de novo tipo, na verdade, capturaram o “programa” dos partidos tradicionais mais reacionários e/ou conservadores e optaram por solucionar as crises, sustar a decadência democrática, em função dos seus interesses estratégicos de dominação, não com mais, mas com menos democracia. Democracia despida, portanto, tanto de conflitos como de processos de concertação, para torná-la dirigida por uma “visão técnica”, sem política, sem ruas em movimento. Ação política “limpa” de qualquer resíduo popular, apoiada nas altas classes médias e na alta burocracia estatal de todos os Poderes. O sistema político, bloqueado. Os partidos, desmoralizados. O povo, insatisfeito. Ludovic Bertron / Flickr
Está dado, assim, o quadro para no mínimo a hidra totalitária expressar-se precariamente como uma tentação autoritária, com uma “flexibilidade institucional” à direita. Mesmo os processos de “concertação” como instrumentos de produção ideológica de políticas democráticas, não são aceitos pelo neoliberalismo, porque causam problemas para a fluidez das operações do capital financeiro. Este exige urgência e disciplina porque precisa acumular celeremente, “sem trabalho” e sem política, para mover-se principalmente a partir da especulação da dívida pública. O ritual democrático, o diálogo, o debate parlamentar, a participação direta da cidadania nas questões públicas, irrita os defensores do projeto neoliberal. Eles veem, no “público”, uma barreira à “naturalização” do domínio do mais forte, que detém o dinheiro cada vez mais “falso” e mais descolado da produção. A relação do dinheiro com a política não é necessariamente ilegal, é óbvio, mas, drenado legal ou ilegalmente para a política, sempre foi um fator de desigualdade nas disputas eleitorais. Enquanto esta relação funcionava na legalidade formal, apenas como um elemento de desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres para fazer política -ou seja, uma corrupção substancial da igualdade dentro dos marcos da legalidade - o dinheiro na política não era objeto da preocupação das classes dominantes. E, muito menos, dos oligopólios da mídia, que sempre consideraram estas desigualdades reais no processo político como uma fatalidade “natural” numa sociedade que reproduz, incessantemente, dentro da própria democracia, as desigualdades políticas, também fundadas no próprio sistema do capital. Mesmo dentro dos marcos da legalidade do Estado de Direito, a relação “legal” do dinheiro com a política nunca foi especialmente “moralizante”. Nem moralizadora. Nem obstou os processos extorsivos de dominação, via corrupção e uso de dinheiro ilegal, para o fazer político. Isso ficou bem marcado, como se viu na Itália, primeiro com o próprio combate à corrupção dentro da ordem democrática, feito pela “Operação Mãos Limpas” (que flagrou um verdadeiro Estado invisível, como diz Bobbio, dentro do Estado de Direito). Segundo, após os profundos processos investigativos viu-se - com o sucesso deste combate patrocinado pelos Juízes italianos - o resultado histórico das operações moralizantes: a destruição de todo o tecido político do país e o surgimento da “era Berlusconi” (possivelmente um dos períodos mais corruptos maio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 21
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conversão do dinheiro em política e da política em dinheiro, faz parte do “ser social” do capital. Nele, o dinheiro necessariamente faz a mediação do fazer político, ora como moldagem da ação, construindo, limitando ou ampliando a potência construtiva ou destrutiva da política.”
na história recente da Europa). Ou seja, o produto da operação “mãos limpas” não foi um Estado menos corrupto, mas a estatização completa da corrupção, erguida à condição de poder supremo a partir do Governo Nacional. Tais menções não são feitas para minimizar a importância do combate à corrupção, independentemente dos excessos que sejam cometidos e da glamourização dos “Juizes da vez”, cortejados e incensados pela mídia, como infalíveis, desde que cumpram as agendas por ela exigida. Trata-se de marcar a importância da luta total contra a “dinheirização” da política em todos os níveis, legais ou ilegais. Luta que coloca na ordem do dia os aspectos mais importantes de uma Reforma Política, tais como a criação de normas que obstruam a “venda” de tempo de televisão, por partidos do “mercado” eleitoral, bem como a proibição de empresas financiarem partidos e campanhas eleitorais. Este “programa mínimo” é que deveria ocupar os partidos de esquerda e o centro democrático e progressista, que pretendem se contrapor ao decadentismo neoliberal. É preciso que fixemos um ponto de acordo no interior da esquerda que, por mais divergências que tenhamos, deve nortear uma estratégia de médio prazo: a decadência das instituições democráticas e da democracia política, asfixiada pela mídia partidarizada, favorece a emergência de um fascismo novo tipo e não de um socialismo novo tipo, que não será construído fora da democracia política. A conversão do dinheiro em política e da política em dinheiro, faz parte do “ser social” do capital. Nele, o dinheiro necessariamente faz a mediação do fazer político, ora como moldagem da ação, construindo, limitando ou ampliando a potência construtiva ou destrutiva da política; ora, sendo ele mesmo (o dinheiro) o conteúdo da po22 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
lítica, quando, de forma direta, compra e vende consciências, posições e organismos invisíveis, legais ou ilegais, para constituir o fazer político com o objetivo de acumular. Sem desrespeitar frontalmente as leis, mas afrontando princípios da constituição democrática, a “dinheirização” da política com a “compra” de siglas e o financiamento empresarial legal de partidos e eleições, são procedimentos tão substancialmente corruptos como as ilegalidades que promovem interesses de empresas ou carreiras corrompidas, às vezes consideradas como excepcionais. Este sistema opera, para ser eficaz, naquela “zona gris”, como diria Ibsen, não necessariamente contra a lei, mas tampouco moralmente correta ou legítima, do ponto de vista dos princípios da ordem constitucional democrática. No campo mais rebelde e fragmentário da crise democrática, as novas formas de luta, inclusive as militâncias “pré-figurativas” que se conformam como resistência e moda política (que não se sabe, ainda, para onde se dirigem), sejam elas de natureza ambientalista (“Salvem as baleias!”), seja através da exibição do “valor” do corpo, como protesto; seja através de ações diretas contra a ordem do capital, todas elas como formas de militância, necessitam de uma estética apropriada, com custos para que possam ser devidamente midiatizadas. Não há, hoje, política sem dinheiro ou qualquer disputa pública importante sem custo. As reformas para reduzir a “dinheirização” da política, conter custos das campanhas, reduzir a desigualdade de meios e desestimular as militâncias mercenárias, que são produtos do dinheiro de fontes, tanto legais como ilegais, é o mínimo que poderá alterar a rota decandentista da nossa democracia. A crise da nossa democracia, hoje, está representada, midiaticamente, pela corrupção, que as empresas de comunicação tradicionais identificam mecanicamente com a política e com os políticos, para se apropriarem da agenda política nacional e monopolizarem a formação da opinião política de uma maneira totalitária. Mas, a essência da crise é a “dinheirização”, legal ou ilegal, cada vez mais forte da política, porque através deste mecanismo de controle, a democracia decai da sua autonomia relativa (moldada pela consciência dos indivíduos livres), para se tornar um movimento cada vez mais mercantil e dependente, que sufoca a promessa das Grandes Revoluções – da Gloriosa e da Francesa – de igualdade e inviolabilidade dos direitos.
Os 10 mandamentos da Reforma Política que o Brasil não fará Gilberto Bercovici e Walfrido Jorge Warde Jr
Dal Nunes - Flickr
A falta de regras adequadas no sistema político é a verdadeira responsável pela corrupção e pela descrença na política manifestada pelos brasileiros.
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grita pelo sangue da classe política repete o ciclo deplorável de unção, delinquência e repúdio, a que se submeteram todos os governos da nova República. Esse padrão, renitente, marca a paralisia de tudo o que importa para o Brasil. Um país que assiste, bovinamente, os voos de galinha do gigante que, outrora adormecido, acordou, mas que teima em rolar, eternamente deprimido, em berço esplêndido. A breve vida dos governos e de seus heróis tem-nos impedido de construir um país melhor, de fazer reformas essenciais para aplacar as desigualdades sociais, para prover-nos a competitividade capaz de alçar o Brasil à sua verdadeira estatura. Todas essas reformas dependem, contudo, de uma reforma essencial, que as antecede: a reforma política.
A nossa absoluta carência de um adequado regramento da política responde por todas as crises de corrupção, pela descrença na política e nos políticos, pelo cinismo e pelo banditismo político desavergonhado no Brasil. Mas se basta fazer uma reforma política para colocar o Brasil nos trilhos que nos levarão à glória, por que, então, não a fazemos? Por que não a fizemos antes?! Implementar uma reforma política significa cassar privilégios, estabelecer democraticamente as funções do Estado, estabelecer os limites do Estado nas relações com o cidadão, desmantelar organizações político-criminosas, enfrentar com coragem e patriotismo as mazelas do país. Os autores deste artigo, mesmo descrentes, ousam expressar aqueles que seriam (e que pomaio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 23
dem ser, se o povo realmente quiser) os 10 mandamentos da Reforma Política que o Brasil não fará:
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O financiamento público de campanha ou o financiamento privado associativo. É a única maneira de impedir que os interesses egoísticos de poucas empresas se sobreponham, em razão do poder econômico, aos do cidadão comum, das coletividades e dos legítimos grupos de pressão. A adequada disciplina do financiamento de campanha também refreará o manejo prostituído das relações público-privadas, sobretudo a malversação de recursos de empresas públicas e o superfaturamento dos preços de obras e de serviços prestados ao Estado, com fins de financiar sub-repticiamente o acesso ao poder político.
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A regulamentação do lobby pré e pós eleitoral. Não podemos simplesmente fingir que o lobby não existe. A conduta das pessoas e das organizações que medeiam as relações entre a sociedade civil e a classe política precisa ser fiscalizada e submetida a uma absoluta transparência. Um enquadramento legal das frentes parlamentares é, nesse particular, elemento essencial. Não é aceitável que se organizem bancadas multipartidárias, financiadas por poucas empresas privadas, sem qualquer controle do Estado e do cidadão.
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O financiamento meritocrático da empresa privada pelo Estado. É indispensável uma revisão dos critérios ao financiamento estatal das empresas privadas, com mais recursos às micro, às pequenas e às médias empresas. As linhas de crédito providas por bancos públicos, e a aquisição de títulos de dívida ou de participação societária devem atender critérios de utilidade pública e de mercado. Não é possível que aos amigos sejam entregues todos os recursos. Ao mesmo tempo, o Estado não pode opor uma competição devastadora aos meios privados de financiamento. Essa competição responde, de um lado, pelo pálido resultado do nosso mercado de capitais, e, de outro, pelas taxas de juros escorchantes, a que se submete a esmagadora maioria dos brasileiros.
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A racionalização da ingerência estatal sobre os fundos de pensão, em especial as Entidades Fechadas de Previdência Complementar organizadas por empresas públicas e os Regimes Particulares de Previdência Social. Não se pode perder de vista que, aqui, o interesse em jogo é o 24 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
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conduta das pessoas e das organizações que medeiam as relações entre a sociedade civil e a classe política precisa ser fiscalizada e submetida a uma absoluta transparência. Um enquadramento legal das frentes parlamentares é, nesse particular, elemento essencial.
do trabalhador brasileiro, na preservação e capitalização de sua poupança, para que seja capaz de zelar por sua subsistência no período de inatividade que segue à aposentadoria. Qualquer ingerência estatal deve se submeter evidentemente ao interesse nacional e às finalidades próprias das entidades de previdência complementar. Essas organizações não podem se sujeitar à pequena política, financiar campanhas eleitorais à sorrelfa ou entreter relações promíscuas com o particular. Nesse caso, o melhor é que a estratégia pontual de investimento das chamadas “fundações” seja entregue exclusivamente a profissionais de mercado, sujeitos à observância, no geral, do interesse nacional e, no particular, do interesse do trabalhador beneficiário.
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A transformação do Supremo Tribunal Federal em uma verdadeira Corte Constitucional. Deve haver mandato fixo para seus membros e escolha dos mesmos pelo Presidente da República e Congresso Nacional. Importante dar voz, nessa indicação, aos grupos menos representados, a exemplo do modelo alemão, em que a maioria parlamentar e também a minoria podem indicar um juiz da Corte Constitucional. Além disto, o Supremo Tribunal Federal, como Corte Constitucional, deve dedicar-se às questões de cunho efetivamente constitucional, deixando de ser a última instância recursal do país.
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A racionalização do ativismo judicial. O ativismo judicial, disseminado em todas as instâncias do judiciário nacional, consuma um verdadeiro esvaziamento da política e dos políticos pelo Poder Judiciário. Surpreende – no Brasil e mesmo nas democracias europeias ou dos Estados Unidos – que pouco enfrentamento tenha
tal cenário desencadeado da parte da sociedade e de outros poderes políticos. Ao promulgar-se a Emenda Constitucional 45/2004 reafirmou-se não somente a súmula vinculante como a pretensão do Supremo Tribunal Federal de revestir-se na condição de soberano, como se fosse o único corpo político a deter a última palavra sobre quase tudo. Há mais: como único ator institucional a ter o poder de decisão para reforma de suas próprias súmulas vinculantes, o Supremo Tribunal Federal desvincula-se de si próprio, procurando ratificar sua soberania sobre o poder constituinte. Nesse sentido, é indispensável à retomada do debate iniciado com a Proposta de Emenda à Constituição nº 33, de 2011, a qual “altera a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis; condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição”.
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A manutenção do sistema proporcional. No Brasil, a representação gira tradicionalmente em torno de duas ideias fundamentais. A primeira é a do mandato livre e independente, isto é, de que os representantes, ao serem eleitos, não se submetem às reivindicações e aos interesses de seus eleitores. É o representante quem possui a capacidade de discernimento para deliberar sobre os verdadeiros interesses dos seus constituintes.
A segunda ideia fundamental é o princípio de que o sistema democrático representativo deve se basear no governo da maioria. Praticamente todas as leis eleitorais que vigoraram no Brasil buscaram a formação de maiorias compactas capazes de governar. Essas grandes ideias nos levaram ao abandono do sistema majoritário (que vinha desde o Império) para a instituição, em 1932, do sistema proporcional. Os sistemas de representação proporcional são reconhecidos como os mais representativos, reproduzindo melhor a vontade do eleitorado ao permitir a representação das minorias. Eles também conduzem ao multipartidarismo, à fracionalização eleitoral e partidária e à instabilidade política. Por sua vez, o sistema majoritário ou distrital nada mais é que o reforço das questões paroquiais e locais em detrimento das nacionais, elegendo representantes vinculados apenas ao seu distrito ou região e reduzindo a pluralidade de ideias e opiniões passíveis de serem representadas no Poder Legislativo. É impossível um sistema proporcional perfeito, mas ainda assim, por permitir a representação de todas as correntes, com o reforço do papel dos partidos políticos como entes capazes de organizar a atuação política dos representantes eleitos, é mais democrático e é preferível ao sistema majoritário.
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A ampliação dos instrumentos de participação popular. Devem ser criadas organizações e canais institucionais capazes de pavimentar a comunicação entre a sociedade
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alocação dos recursos arrecadados pelo Estado deve decorrer de políticas de Estado, jamais do compadrio e do atendimento a interesses escusos. A elaboração dessas políticas pressupõe uma intensa vigilância e participação dos diversos segmentos da sociedade civil. A transparência na alocação, distribuição e emprego dos recursos públicos deve ser ampliada e o controle popular estimulado, reforçando a cultura de defesa da res publica e do interesse público em detrimento do patrimonialismo.
civil e o Estado e desintermediar a democracia e o exercício da cidadania. A participação popular, por meio de plebiscitos, referendos, projetos de iniciativa popular, participação em conselhos, audiências públicas, etc., é o que dá vida e estabilidade a um regime efetivamente democrático. É prática corrente em todos os países democráticos, como os Estados Unidos, a Suíça, a Itália, etc. Apelidar os instrumentos de participação popular, previstos na Constituição e nas leis que regem o país, como “populistas”, “demagógicos” ou “bolivarianos” nada mais é do que expressar a demofobia que toma conta de boa parte de nossa elite política e econômica.
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A consolidação de uma cultura de controle e transparência sobre a gestão pública. A questão do controle público sobre o Estado no Brasil continua pendente. Ainda não conseguimos adotar soluções eficazes e legítimas para impedir ou cercear o arbítrio e irresponsabilidade da atuação do Estado, bem como sua corporativização e privatização. Para tanto, devemos superar o ideário de controle liberal, ou seja, não podemos simplesmente alargar as instituições de controle liberais tradicionais, desprezando o controle público e democrático pelos cidadãos. Os meios judiciais não são também eficientes. O Ministério Público não salvará a República. O Supremo Tribunal Federal tampouco o fará. O desafio continua sendo encontrarmos um modo de submeter a critérios sociais e democráticos a atuação, ou omissão, do Estado, através de um controle político e efetivamente democrático. O desprezo a essas questões essenciais ao país nos lançará a um eterno bater de panelas. O povo deve assumir seu papel na construção de um país melhor. Não serão governantes isolados capazes de salvar a pátria, tampouco os únicos responsáveis por seu malogro. Essa é uma tarefa de todos e de cada um dos brasileiros e brasileiras.
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Anna Armstrong - Flickr.
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A participação popular na elaboração orçamentária. A alocação dos recursos arrecadados pelo Estado deve decorrer de políticas de Estado, jamais do compadrio e do atendimento a interesses escusos. A elaboração dessas políticas pressupõe uma intensa vigilância e participação dos diversos segmentos da sociedade civil. A transparência na alocação, distribuição e emprego dos recursos públicos deve ser ampliada e o controle popular estimulado, reforçando a cultura de defesa da res publica e do interesse público em detrimento do patrimonialismo.
EXPEDIENTE Carta Maior Publicações, Promoções e Produções Ltda.
DIRETOR GERAL Joaquim Ernesto Palhares
REDAÇÃO Editor Chefe
Joaquim Ernesto Palhares Sub-editores: Saul Leblon, Roberto Campos Brilhante Andre Roschel; Assistente de Direção: Claudio Cerri;
Repórteres Especiais: Maria Inês Nassif Dario Pignotti; Repórteres: Najla Passos, Léa Maria Aarão Reis, Victor Farinelli; Najar Tubino; Marcel Gomes; Correspondentes Internacionais: Flavio Wolf Aguiar (Berlim); Martin Granovsky (Buenos Aires); Marcelo Justo (Londres); Luis Hernandez Navarro (México); Estagiários: Isabela Palhares. Akira Akira Pinto Narunorasade Medeiros
COLABORADORES Antonio Lassance Doutor em Ciência Política - UNB/BR Boaventura de Souza Santos Doutor em Direito - YALE/USA Emir Sader Doutor em Sociologia - USP/SP), Eric Nepomuceno Escritor, Jornalista e Cineasta Ermínia Maricato Doutora em Arquitetura - USP/SP Fabiano Santos Doutor em Ciência Política - UFRJ/RJ maio 2015 | Revista Digital Carta Maior | 27
Fábio de Sá e Silva Doutor em Direito - UNB/BR Francisco Carlos Teixeira da Silva Doutor em História - UFRJ/RJ Francisco Fonseca Doutor em Ciência Política - FGV/SP Gilberto Maringoni Doutor em História - USP/SP Ignacio Ramonet Doutor em Comunicação - Universidade de Paris José Luís Fiori Doutor em Ciência Política - UFRJ/RJ), José Roberto Torero USP/SP Juarez Guimarães Doutor em Ciência Política - UFMG/MG Ladislau Dowbor
Luiz Gonzaga Belluzzo Doutor em Direito - USP/SP Márcio Pochmann Doutor em Economia - UNICAMP/SP), Raquel Rolnik Doutora em Arquitetura - New York University Reginaldo Nasser Doutor em Ciências Sociais - PUC/SP Rodrigo Alves Teixeira Doutor em Economia - PUC/ SP Rosa Maria Marques Doutora em Economia - PUC/SP Samuel Pinheiro Guimarães Embaixador Sebastião Velasco Cruz Doutor em Ciência Política - UFRJ/RJ Theotonio dos Santos Júnior
Doutor em Economia - Universidade de
Pós-doutor em Teoria Antropológica - UFRJ/
Lausanne - Suiça
RJ)
Larissa Ramina Doutora em Relações Internacionais
Venício Lima Doutor em Sociologia
- UNILA Laurindo Leal Filho Doutor em Comunicação - USP/SP Leda Paulani
EDIÇÃO DA REVISTA Roberto Brilhante
Doutora em Economia - USP/SP Leonardo Boff
ENDEREÇO
Doutor em Filosofia e Teologia -
Av. Paulista, nº 726, 15º andar, Bela vista
Universidade de Munique/AL
CEP 01310-100 - São Paulo/SP
Lincoln Secco Doutor em História - USP/SP 28 | Revista Digital Carta Maior | maio 2015
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