Sumário Charlie Hebdo: Uma reflexão difícil Boaventura de Sousa Santos
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Somos todos o quê? Saul Leblon
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Assange: ‘O serviço secreto francês tem muitas perguntas para responder’ Marcelo Justo
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A extrema-direita e o suicídio europeu Flávio Aguiar
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Je ne suis pas Charlie (Eu não sou Charlie) José Antonio Gutiérrez D.
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Je ne suis pas Charlie, eu não sou Charlie Leonardo Boff
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Os outros Charlies Amy Goodman
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A miséria do terror islâmico Reginaldo Nasser
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ŽiŽek: pensar o atentado ao charlie hebdo Slavoj ŽiŽek
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Charlie Hebdo: Terror de Paris pode ter origem na Argélia de 1954 Robert Fisk
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Não é sobre o islã: Nunca foi Ramzy Baroud
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Charlie Hebdo: Ironia e tragédia Alejandro Nadal
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França: O mais perigoso é a islamofobia Santiago Alba Rico
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O riso dos outros: Há limites para o humor? Léa Maria Aarão Reis
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Como pensar para além do medo Martín Granovsky
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Para se entender o terrorismo contra o Charlie Hebdo de paris Leonardo Boff
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A batalha de argel: Um fantasma sempre presente Léa Maria Aarão Reis
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O que está acontecendo conosco? Michel Plon
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Editorial: Há um incêndio em marcha, mas o seu nome não é Islã No mesmo dia do ataque ao Charlie Hebdo, 37 jovens foram mortos no Iémen num atentado a bomba. No verão passado, a invasão israelita causou a morte de 2000 palestinos, dos quais cerca de 1500 civis e 500 crianças. No México, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por defenderem a liberdade de imprensa e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em Ayotzinapa. Certamente que a diferença na nossa reação diante desses acontecimentos não pode estar baseada na ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale mais que a vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de culturas associadas a outras religiões. Será então porque estes últimos estão mais longe de nós ou conhecemo-los menos? Será porque a grande mídia e os líderes políticos do Ocidente banalizaram o sofrimento causado a esses outros, quando não os demonizam ao ponto de nos fazerem pensar que eles não merecem outra coisa? “Esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a alimentar um fogo que amanhã pode atingir as escolas dos nossos filhos, as nossas casas e as nossas instituições”. Com essas palavras carregadas de advertências ao consenso construído nos últimos dias, o sociólogo 4 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
Boaventura Santos encerra um dos textos da revista que Carta Maior oferece aos seus leitores neste fim de semana, sobre o brutal atentado em Paris. O material reúne artigos e reflexões de autores renomados, como o próprio Boaventura de Sousa e Santos, Julian Assange, Flávio Aguiar, Slavoj ŽiŽek, Robert Fisk, Leonardo Boff, José Antonio Gutierrez, Martín Granovsky, Marcelo Justo , entre outros. Esse mosaico de pontos de vista cumpre a função de um verdadeiro caleidoscópio da reflexão. Trata-se de arguir as certezas graníticas rapidamente convocadas a partir da justa comoção gerada pelo massacre à redação do Charlie. O objetivo aqui não é endossar a pauta do jornal, tampouco contestar a indignação justa, mas arguir a sua abrangência. O que se busca é a reflexão capaz de romper a camada pétrea de conveniências e interesses sobre a qual se assenta o veredito conservador em torno da brutalidade desse episódio. Ele anunciou o amanhecer de 2015 com um estrondo que sacudiu o novo normal disseminado por um capitalismo feito de deflação recessiva, desemprego estrutural e captura do Estado e da política pela internacional financeira. Sim, é certo, como diz Boaventura, que um incêndio arde nas entranhas do nosso tempo. Mas antes que ele se alastre de forma incontrolável sobre as nossas próprias consciências, é preciso afirmar peremptoriamente: seu nome não é Islã. É para essa reflexão que Carta Maior convida à leitura desta revista. 5
Charlie Hebdo: Uma reflexão difícil Colunista Boaventura de Sousa Santos Esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a atear um fogo que amanhã pode atingir as escolas dos nossos filhos, as nossas casas e as nossas instituições.
O crime hediondo que foi cometido contra os jornalistas e cartoonistas do Charlie Hebdo torna muito difícil uma análise serena do que está envolvido neste ato bárbaro, do seu contexto e seus precedentes e do seu impacto e repercussões futuras. No entanto, esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a atear um fogo que amanhã pode atingir as escolas dos nossos filhos, as nossas casas, as nossas instituições e as nossas consciências. Eis algumas das pistas para tal análise. A luta contra o terrorismo, tortura e democracia. Não se podem estabelecer ligações diretas entre a tragédia do Charlie Hebdo e a luta contra o terrorismo que os EUA e seus aliados têm vindo a travar desde o 11 de setembro de 2001. Mas é sabido que a extrema agressividade do Ocidente tem causado a morte de muito milhares de civis inocentes (quase todos muçulmanos) e têm sujeitado a níveis de tortura de uma violência inacreditável jovens muçulmanos contra os quais as suspeitas são meramente especulativas, como consta do recente relatório presente ao Congresso norte-americano. E também é sabido que muitos jovens islâmicos radicais declaram que a sua 6 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
radicalização nasceu da revolta contra tanta violência impune. Perante isto, devemos refletir se o caminho para travar a espiral de violência é continuar a seguir as mesmas políticas que a têm alimentado como é agora demasiado patente. A resposta francesa ao ataque mostra que a normalidade constitucional democrática está suspensa e que um estado de sítio não declarado está em vigor, que os criminosos deste tipo, em vez de presos e julgados, devem ser abatidos, que este fato não representa aparentemente nenhuma contradição com os valores ocidentais. Entramos num clima de guerra civil de baixa intensidade. Quem ganha com ela na Europa? Certamente não o partido Podemos em Espanha ou o Syriza na Grécia. A liberdade de expressão. É um bem precioso mas tem limites, e a verdade é que a esmagadora maioria deles são impostos por aqueles que defendem a liberdade sem limites sempre que é a “sua” liberdade a sofrê-los. Exemplos de limites são imensos: se em Inglaterra um manifestante disser que David Cameron tem sangue nas mãos, pode ser preso; em Franças, as mulheres islâmicas não podem usar o hijab; em 2008 o cartoonis-
ta Maurice Siné foi despedido do Charlie Hebdo por ter escrito uma crónica alegadamente antissemita. Isto significa que os limites existem, mas são diferentes para diferentes grupos de interesse. Por exemplo, na América Latina, os grandes media, controlados por famílias oligárquicas e pelo grande capital, são os que mais clamam pela liberdade de expressão sem limites para insultar os governos progressistas e ocultar tudo o que de bom estes governos têm feito pelo bem-estar dos mais pobres. Aparentemente, o Charlie Hebdo não reconhecia limites para insultar os muçulmanos, mesmo que muitos dos cartoons fossem propaganda racista e alimentassem a onda islamofóbica e anti-imigrante que avassala a França e a Europa em geral. Para além de muitos cartoons com o Profeta em poses pornográficas, um deles, bem aproveitado pela extrema-direita, mostrava um conjunto de mulheres muçulmanas grávidas, apresentadas como escravas sexuais do Boko Haram, que, apontando para a barriga, pediam que não lhes fosse retirado o apoio social à gravidez. De um golpe, estigmatizava-se o islão, as mulheres e o estado de bem-estar social. Obviamente,
que, ao longo dos anos, a maior comunidade islâmica da Europa foi-se sentindo ofendida por esta linha editorial, mas foi igualmente imediato o seu repúdio por este crime bárbaro. Devemos, pois, refletir sobre as contradições e assimetrias na vida vivida dos valores que alguns creem ser universais. A tolerância e os “valores ocidentais”. O contexto em que o crime ocorreu é dominado por duas correntes de opinião, nenhuma delas favorável à construção de uma Europa inclusiva e intercultural. A mais radical é frontalmente islamofóbica e anti-imigrante. É a linha dura da extrema direita em toda a Europa e da direita, sempre que se vê ameaçada por eleições próximas (o caso de Antonis Samara na Grécia). Para esta corrente, os inimigos da civilização europeia estão entre “nós”, odeiam-nos, têm os nossos passaportes, e a situação só se resolve vendo-nos nós livres deles. A pulsão anti-imigrante é evidente. A outra corrente é a da tolerância. Estas populações são muito distintas de nós, são um fardo, mas temos de as “aguentar”, até porque nos são uteis; no entanto, só o devemos fazer se elas forem moderadas e assimilarem os nossos valores. Mas o 7
que são os “valores ocidentais”? Depois de muitos séculos de atrocidades cometidas em nome destes valores dentro e fora da Europa--da violência colonial às duas guerras mundiais--exige-se algum cuidado e muita reflexão sobre o que são esses valores e por que razão, consoante os contextos, ora se afirmam uns ora se afirmam outros. Por exemplo, ninguém põe hoje em causa o valor da liberdade, mas já o mesmo não se pode dizer dos valores da igualdade e da fraternidade. Ora, foram estes dois valores que fundaram o Estado social de bem-estar que dominou a Europa democrática depois de segunda guerra mundial. No entanto, nos últimos anos, a proteção social, que garantia níveis mais altos de integração social, começou a ser posta em causa pelos políticos conservadores e é hoje concebida como um luxo inacessível para os partidos do chamado “arco da governabilidade”. A crise social causada pela erosão da proteção social e pelo aumento do desemprego, sobretudo entre jovens, não será lenha para o fogo do radicalismo por parte dos jovens que, além do desemprego, sofrem a discriminação étnico-religiosa? O choque de fanatismos, não de civilizações. Não estamos perante um choque de civilizações, até porque a cristã tem as mesmas raízes que a islâmica. Estamos perante um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles não apareçam como tal por nos serem mais próximos. A história mostra como muitos dos fanatismos e seus choques estiveram relacionados com interesses económicos e políticos que, aliás, nunca beneficiaram os que mais sofreram com tais fanatismos. Na Europa e suas áreas de influência é o caso das cruzadas, da Inquisição, da evangelização das populações coloniais, das guerras religiosas e da Irlanda do Norte. Fora da Europa, uma religião tão pacífica como o budismo legitimou o massacre de muitos milhares de membros da minoria tamil do Sri Lanka; do mesmo modo, os fundamentalistas hindus massacraram as populações muçulmanas de Gujarat em 2003 e o eventual maior acesso ao poder que terão conquistado recentemente com a vitória do Presidente Modi faz prever o pior; é também em nome da religião que Israel continua a impune limpeza étnica da Palestina e que o chamado califado massacra 8 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
populações muçulmanas na Síria e no Iraque. A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural, onde muitas populações não se reconhecem em tal valor, será afinal uma forma de extremismo? Os diferentes extremismos opõem-se ou articulam-se? Quais as relações entre os jihadistas e os serviços secretos ocidentais? Por que é que os jihadistas do Emirato Islâmico, que são agora terroristas, eram combatentes de liberdade quando lutavam contra Kadhafi e contra Assad? Como se explica que o Emirato Islâmico seja financiado pela Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Turquia, todos aliados do Ocidente? Uma coisa é certa, pelo menos na última década, a esmagadora maioria das vítimas de todos os
fanatismos (incluindo o islâmico) são populações muçulmanas não fanáticas. O valor da vida. A repulsa total e incondicional que os europeus sentem perante estas mortes devem-nos fazer pensar por que razão não sentem a mesma repulsa perante um número igual ou muito superior de mortes inocentes em resultado de conflitos que, no fundo, talvez tenham algo a ver com a tragédia do Charlie Hebdo? No mesmo dia, 37 jovens foram mortos no Yemen num atentado bombista. No verão passado, a invasão israelita causou a morte de 2000 palestinianos, dos quais cerca de 1500 civis e 500 crianças. No México, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por defenderem a liberdade
de imprensa e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em Ayotzinapa. Certamente que a diferença na reação não pode estar baseada na ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale mais que a vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de culturas assentes noutras religiões ou regiões. Será então porque estes últimos estão mais longe dos europeus ou são pior conhecidos por eles? Mas o mandato cristão de amar o próximo permite tais distinções? Será porque os grande media e os líderes políticos do Ocidente trivializam o sofrimento causado a esses outros, quando não os demonizam ao ponto de fazerem pensar que eles não merecem outra coisa?
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Somos todos o quê? Saul Leblon A nostalgia da guilhotina é só o primeiro degrau. O endurecimento contra imigrantes, na verdade, já avançava em marcha batida antes do massacre em Paris.
O emblema totalizante, ‘somos todos Charlie’ teve curta unanimidade no ambiente trincado de uma Europa onde, de fato, não há lugar para todos serem a mesma coisa em parte alguma. Os números da exclusão em marcha no continente são suficientes para esfarelar essas ‘uniões’ nascidas da emoção da tragédia, como é o caso, mas que historicamente se mostram insuficientes para regenerar as partes de um todo que já não se encaixava mais. Como recompor o cristal da liberdade, da igualdade e da fraternidade, diante de uma Europa unificada pela lógica do mal estar social? 10 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
Com políticas públicas que hoje irradiam chantagem, regressão , niilismo, intolerância e medo diante do futuro rarefeito? Somos todos o quê? É justo perguntar quando o Estado a serviço dos mercados mastigou todas as pontes para a construção de uma cidadania convergente e soberana. A polêmica linha de humor do ‘Charlie Hebdo’ deve seu sucesso, em grande parte, justamente à acentuação dessa rachadura em uma chave religiosa. Deve-se respeitar a sua liberdade. Mas a
forma como escolheu exerce-la fez do jornal parte do estilhaçamento que procurava criticar; tornou-se assim mais um referido do que referência. A Europa tem hoje 8 milhões de imigrantes sem papéis; 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados. Após seis anos de arrocho neoliberal, o desemprego e o esfarelamento do padrão de vida dos trabalhadores e da classe média –condensado em uma geração de jovens que dificilmente repetirá a faixa de renda dos país, turbinou a rejeição ao estrangeiro, criou o medo da ‘islamização da sociedade’, alimentou a extrema direita e liberou a demência terrorista. Não necessariamente nessa ordem, mas com essa octanagem abrangente. A imponente marcha em Paris neste domingo não escapou do liquidificador de nitroglicerina. Seria irônico , não fosse trágico. Na comissão de frente da principal coluna da manifestação, que reuniu um milhão de pessoas, ao lado do presidente François Hollande , e de Merkel, lá estava Benjamin Netanyahu. Sim, o premiê de Israel. Ele que acaba de se aliar à extrema direita para transformar o Estado israelense em um estado religioso. Responsável por alguns dos mais impiedosos massacres do século XXI, contra populações civis encurraladas por Israel na Faixa de Gaza, a presença de Netanyahu a engrossar o ‘somos todos Charlie’ convida a pensar sobre o alcance das unanimidades. É um silogismo barato afirmar que a recusa ao bordão dominante endossa o abismo ensandecido do terrorismo. Num texto de 1911, ‘Porque os marxistas se opõem ao terrorismo individual’, e quando ainda nem desconfiava que ele próprio seria uma vítima futura, León Trostsky criticou exemplarmente aquilo que, nas suas palavras, ‘mesmo que obtenha “êxito” (e) crie confusão na classe dominante (...) terá vida curta; o estado capitalista não é eliminado; o mecanismo permanece intacto e em funcionamento. Todavia, a desordem que um atentado terrorista produz nas fileiras da classe operária é muito mais profunda. Se para alcançar os objetivos basta armar-se com uma pistola, para que serve esforçar-se na luta de classes? Se um pouco de pólvora e um pedaço de chumbo bastam para perfurar a cabeça de um
inimigo, que necessidade há de organizar a classe? Se tem sentido aterrorizar os altos funcionários com o ruído das explosões, que necessidade há de um partido?’, criticava o líder da Revolução de Outubro, banido e assassinado por Stálin, para concluir em seguida: ‘Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência e (desvia) seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador, que algum dia virá cumprir sua missão’. Cento e quatro anos depois, o alerta ganha atualidade diante das medidas cogitadas após o massacre em Paris. Os indefectíveis Le Pen, pai e filha, pedem, nada menos que a restauração da pena de morte, abolida em 1981. A nostalgia da guilhotina é só o primeiro degrau do patíbulo. O endurecimento contra os imigrantes, na verdade, já avançava em marcha batida antes do massacre da quarta-feira (07/01). Agora, porém, que ‘somos todos Charlie’, quem irá detê-lo – se até Netanyahu aderiu? Ofuscados habilmente pelo ‘consenso’, os antecedentes da tormenta esticam o elástico de uma gigantesca armadilha histórica. Desemprego com deflação e captura do Estado e da política pela alta finança. É disso que se trata a tragédia europeia, vista de corpo inteiro. A zona do euro enfrenta deflação recessiva; a Itália tem desemprego recorde; Alemanha e França assistem a uma espiral de xenófobia; Grécia tem 59% da juventude fora do mercado; Portugal tem 500 mil desempregados e Espanha devastou sua rede de proteção social.
“A Europa tem hoje 8 milhões de imigrantes sem papéis; 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados. Após seis anos de arrocho neoliberal, o desemprego e o esfarelamento do padrão de vida dos trabalhadores tomou conta do continente” 11
Assim por diante. Foi preciso que um economista moderado, Thomas Piketty, coligisse uma enciclopédia estatística do avanço rentista sobre a riqueza da sociedade para que o tema da desigualdade merecesse algum espaço –fugaz— no debate econômico e midiático sobre a crise europeia. E mesmo assim colateral às decisões da troika, que estala o relho no lombo da cidadania e exige ordem unida ao abismo. É sobre essa base de rigidez que a alavanca da tragédia move o curso da história. Não Maomé, não Charlie Hebdo, não a juventude niilista. Não os filhos de imigrantes pobres , que se convertem cada vez mais ao islamismo como ponto de fuga à meia cidadania da desordem neoliberal que nada tem a lhes propor hoje. E não o fará amanhã também. Entregue aos ajustes fi scais, na ressaca dos mercados após o fastígio neoliberal, a Europa é hoje um museu de lembranças do acolhimento humanitário e político, 12 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
que a transformaria em legenda da civilização e da fraternidade. Na Itália, sob o afável Berlusconi, o Estado elevou para seis meses o tempo que imigrantes ilegais podem ser detidos em ‘ centros especiais’ e autorizou a criação de falanges civis para “ajudar a polícia a combater o crime nas ruas”. Na Grécia,
“Foi preciso que um economista moderado, Thomas Piketty, coligisse uma enciclopédia estatística do avanço rentista sobre a riqueza da sociedade para que o tema da desigualdade merecesse algum espaço”
onde as taxas de desemprego triplicaram sob o chicote de Frau Merkel, os integrantes do partido Aurora Dourada sequer dissimulam a inspiração nazista: sua faxina étnica avança contra árabes, africanos, ambulantes, ciganos e homossexuais. ‘Somos todos Charlie’? As notícias contraditórias que chegam dos EUA, surfando em uma recuperação feita de empregos com salários aviltados, e da Europa sem Estado à altura para reagir, evidenciam a profundidade de uma desordem que não cederá tão cedo, nem tão facilmente. A consciência dessa longa travessia é um dado fundamental para renovar a ação política em nosso tempo. Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço pelos interditos neoliberais, alargaram os vertedouros ao espraiamento de uma dominância financeira que agora produz manifestações mórbidas em todas as esferas da vida. Quando a economia se avoca um templo sagrado, dotado de leis próprias, revestido de esférica coerência endógena, avessa ao ruído das ruas, das urnas e das aspirações por cidadania plena, o que sobra à democracia? A pauta dos mercados autorregulados revelou- -se uma fraude. Gigantesca. Era o fim da história, replicava o colunismo áulico. Não era, mostrou setembro de 2008. Pior que isso. O sete de janeiro francês avisa que se a sociedade continuar apartada do seu destino, os próximos capítulos serão dramáticos. No Brasil, os que incitavam o governo a jogar o país ao mar em 2008, retrucam que o custo de não tê-lo afogado na hora certa acarretou custos insustentáveis. E eles terão que ser pagos agora. Na forma de um afogamento incondicional. Recomenda-se vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada em 2008 em uma talagada única. Não há alternativa, diria Margareth Tatcher. As escolhas intrínsecas a uma repactuação do desenvolvimento brasileiro, de fato, não são singelas. Nada que se harmonize do dia para a noite. Por isso, o crucial é erguer linhas de passagem, repactuar metas, ganhos, perdas, salvaguardas
e prazos. Mas há um requisito para isso: tirar a economia do altar sagrado da ortodoxia e expô-la ao debate democrático do qual participem todas as forças sociais. Quando a mídia conservadora tenta tropicalizar o bordão ‘somos todos Charlie’, seu objetivo mal disfarçado vai no sentido oposto. Tenta-se reduzir uma tragédia ciclópica a um atentado à liberdade de expressão. E de forma rudimentar desdobrar a comoção aqui em um veto ao projeto de regulação da mídia brasileira. Para quê? Justamente para interditar o debate sobre o passo seguinte do desenvolvimento do país. O apego da emissão conservadora à liberdade de expressão, como se sabe, é relativo. No dia seguinte ao massacre em Paris, a Folha de São Paulo, por exemplo, dedicou 256 palavras, uma nota de rodapé, para tratar do caso do blogueiro saudita, Raif Baddawi. Baddawi dirigia o fórum on-line ‘Liberais Sauditas Livres’; foi condenado por isso a dez anos de prisão e multa de US$ 260 mil. Seu caso é uma referência do padrão de justiça que impera na democrática sociedade saudita, principal aliada dos EUA no mundo árabe, onde mulheres não podem dirigir sequer automóveis e inexiste judiciário independente da vontade dos mandatários. Além de dez anos de prisão, Baddawi também será punido com mil chibatadas por “insultar o Islã” – 50 por semana, durante 20 semanas. A primeira cota foi aplicada na última sexta-feira. Uma nota com 256 palavras foi tudo o que o liberal Baddawi obteve de um dos principais veículos de informação do país. Compare-se com as cataratas de tinta, imagem e som dedicadas à blogueira cubana Yoani Sánchez que, livre, leve e solta, viajando pelo mundo, mereceu da mesma Folha de SP mais de 90 mil citações; 155 mil no Globo e 110 mil no Estadão. É difícil imaginar algo do tipo ‘somos todos Baddawi’ alastrando-se pelo colunismo pátrio que dispensou às visitas de Yoani um tratamento de chefe de Estado. São dois pesos e mil chibatadas. Uma diferença sugestiva. Que recomenda cautela com as unanimidades produzidas pela mesma fonte. Aqui ou em Paris.
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Assange: ‘O serviço secreto francês tem muitas perguntas para responder’ Marcelo Justo - exclusivo para Carta Maior Em entrevista à carta maior, julian assange falou sobre vigilância massiva e as relações dos serviços secretos internacionais com os atentados de paris.
Londres – A interpretação do massacre da Charlie Hebdo se transformou em um território em disputa. A liberdade de expressão e a relação com a minoria muçulmana, a dicotomia entre multiculturalismo à britânica ou integração secular à francesa, a luta antiterrorista e privacidade são alguns dos eixos do debate. No Reino Unido, o diretor do MI5 Andrew Parker propôs uma nova lei antiterrorista que 14 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
concede mais poderes de vigilância eletrônica aos serviços secretos. Um importante editor e historiador conservador, Mark Hastings, não hesitou em acusar como corresponsáveis do que aconteceu o fundador do Wikileaks Julian Assange e o ex-agente da CIA Edward Snowden. Da Embaixada do Equador em Londres, onde está há dois anos e meio esperando uma autorização para deixar o país, Julian Assange falou à Carta Maior.
Qual é sua interpretação do massacre da Charlie Hebdo? Como editor, foi um fato extremamente triste que aconteceu com uma publicação que representa a grande tradição francesa da caricatura. Mas agora temos que olhar adiante e pensar o que ocorreu e qual deve ser a reação. É preciso entender que a cada dia acontece um massacre dessa magnitude no Iraque e em outros países do mundo árabe. E isto aconteceu graças aos esforços desestabilizadores dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França. A França participou do fornecimento de armas para a Síria, Líbia e da recolonização do Estado africano de Mali. Isto estimulou o ataque neste caso, usando um alvo fácil como a Charlie Hebdo. Mas a realidade é que o serviço secreto francês tem muitas perguntas para responder sobre o acontecido. Acredita que houve um fracasso dos serviços secretos franceses? É o que estão tentando esconder. Os serviços de segurança da França sabiam das atividades dos responsáveis pelo massacre e, no entanto, deixaram de vigiá-los. Por que os irmãos Kouachi, conhecidos por seus laços com extremistas, não estavam sob vigilância? Cherif Kouachi havia sido condenado por crimes terroristas. Longe de estar enviando mensagens criptografadas, eles se comunicaram centenas de vezes antes e durante os ataques com celulares comuns. Há muitas perguntas. Por exemplo, por que os escritórios da Charlie Hebdo não estavam mais protegidos dadas as duras críticas da revista ao Islã? Como os conhecidos jihadistas conseguiram armas semiautomáticas na França? Apresentaram os assassinos como supervilões para ocultar a própria incompetência dos serviços. A verdade é que os terroristas eram amadores bastante incompetentes que bateram o carro, deixaram suas cédulas de identidade à vista e coordenaram seus movimentos por telefone. Não era preciso uma vigilância massiva da internet para evitar este fato: era necessária uma vigilância específica. Uma percepção bastante ampla é que você e o Wikileaks se opõem à vigilância eletrônica. Na verdade, você faz uma clara distinção entre
vigilância massiva e vigilância com objetivos definidos. A vigilância massiva é uma ameaça à democracia e à segurança da população, pois outorga um poder excessivo aos serviços secretos. O argumento para defendê- la é que assim se pode encontrar gente que não se conhecia de antemão. O que vemos, no caso de Paris, é que os protagonistas foram identificados. Deveria haver uma investigação profunda de como foram cometidos esses erros, apesar de minha experiência ser que isto não vá acontecer porque estes serviços são corruptos e são assim por serem secretos. A vigilância massiva não é gratuita e, neste sentido, é uma das causas do que aconteceu, porque restaram recursos e pessoal para o que teria de ter sido a vigilância específi - ca contra uma ameaça terrorista. Uma das reações mais virulentas na imprensa britânica foi a do historiador e jornalista Max Hastings que acusou você e Edward Snowden de responsabilidade nestes fatos. Hastings não está sozinho. Há muitas vozes que pedem que fechem ainda mais o certo sobre o Wikileaks. Percebe que o Wikileaks está ameaçado pela atual situação? Há um ano que os setores vinculados a este modo de ver as coisas propõem um aumento da vigilância massiva e um corte das liberdades. Estão em retrocesso por todas as denúncias que houve sobre os excessos de espionagem cometidos pelos governos, inclusive com seus próprios aliados. O que estão tentando fazer é aproveitar esta situação para recuperar o território perdido. O Wikileaks publicou as caricaturas da Charlie Hebdo utilizadas como pretexto para o atentado, algo que não fi zeram vários jornais como o Guardian ou o Times porque têm muito medo. Mas uma das coisas positivas que surgiram nos últimos dias é a defesa da liberdade de expressão. Digo isto apesar de, na manifestação de domingo, estarem presentes figuras que são os piores inimigos da liberdade de expressão, como Arábia Saudita e Turquia. Mas, por mais que estejam tentando aproveitar a situação, o Wikileaks funciona há bastante tempo e desenvolvemos técnicas para lidar com este tipo de ameaças. Não vão nos intimidar. Esperemos que outras mídias em nível mundial também não se deixem intimidar. 15
A extrema-direita e o suicídio europeu Colunista Flávio Aguiar
O ato terrorista contra os jornalistas do charlie hebdo é apenas a ponta do iceberg. A europa inteira está assentada sobre uma bomba-relógio.
O ato terrorista contra os jornalistas do Charlie Hebdo francês, em Paris, que também provocou a morte de um funcionário da revista, de dois policiais no ato e possivelmente de mais um em tiroteio posterior, é apenas a ponta de um iceberg. A Europa inteira está assentada sobre uma bomba-relógio. Não é uma bomba comum, porque casos como o do Charlie Hebdo mostram que ela já está explodindo. Nas pontas da bomba estão duas forças antagônicas, com práticas diferentes, porém com um traço em comum: a intolerância herdeira dos métodos fascistas de antanho. De um lado, estão pessoas e grupos fanatizados que reivindicam uma versão do islamismo incompatível com o próprio Islã e o Corão, mas que agem em nome de ambos. Os contornos e o perfil destes grupos estão passando por uma transformação – o que aconteceu também nos Estados Unidos, no atentado em Boston, durante a maratona, e no Canadá, no ataque ao Parlamento, em Ottawa. Cada vez mais aparecem “iniciativas individuais” nas ações perpetradas. Este tipo de terrorismo se fragmentou em pequenos grupos – muitas vezes de familiares – que agem “à la cria”, como se dizia, em ações que parecem “espontâneas” e até “amalucadas”, mas que obedecem a princípios e uma lógica cuja versão mais elaborada, para além da “franquia” em que a Al-Qaïda se transformou, é o Estado Islâmico que se estruturou graças à desestruturação do 16
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Iraque e da Síria. São fanáticos que negam a política consuetudinária como meio de expressão de reivindicações e direitos: negam, no fundo, a própria ideia de “direitos”, inclusive o direito à vida, como fica claro no gesto assassino que vitimou o Charlie Hebdo. Do outro, estão os neofascistas – ou antigos redivivos – que se agarram à bandeira do anti-islamismo também fanático como meio de arregimentar “as massas” em torno de si e de suas propostas. Agem de acordo com as características próprias dos países em que atuam, mobilizando, de acordo com as circunstâncias, as palavras adequadas. No Reino Unido, criaram o United Kingdom Independence Party – UKIP, Partido da Independência do Reino Unido, nome malandro que oculta e ao mesmo tempo carrega a ojeriza pela União Europeia. Na França têm a Front Nationale da família Le Pen, que mobiliza o velho chauvinismo francês que lateja o tempo todo desde o caso Dreyfus, ainda no século XIX. Na Alemanha é feio ser nacionalista alemão, desde o fi m da Segunda Guerra. Então criou-se um movimento – PEGIDA – que se declara de “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente”, procurando uma fachada pseudamente universalista para seus preconceitos anti-Islã e anti-imigrantes. Esta, aliás, é a bandeira comum destes movimentos: fazer do imigrante ou do refugiado político ou econômico o bode-expiatório da situação de crise
que o continente vive, assim como no passado se fez com o judeu e ainda hoje se faz com os roma e sinti(ditos ciganos). Na Itália este fascismo latente se organiza com o nome de “Liga Norte”, mobilizando o preconceito social contra o sul italiano, tradicionalmente mais empobrecido. São movimentos que, embora busquem por vezes o espaço da política partidária, como é o caso do UKIP e da Front Nationale, ou mesmo da Liga Norte, têm como cosmovisão a negação da política como espaço universal de manifestação de direitos e reivindicações. Negam a política como campo de manifestação das diferenças, barrando ao que consideram como alteridade o direito à expressão ou mesmo aos direitos comuns da cidadania. O exemplo histórico mais acabado disto foi o próprio nazismo que, chegando ao poder pelas urnas, fechou-as em seguida. O caldo de cultura em que vicejam tais pinças contrárias à vigência dos princípios democráticos é o de uma crise econômico-financeira que se institucionalizou como paisagem social. Na Europa a tradição é a de que crises deste tipo levam a saídas pela direita. O crescimento do UKIP e da Front Nationale, partidos mais votados nas respectivas eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2013, é eloquente neste sentido. Na Alemanha as manifestações de rua do PEGIDA vêm crescendo sistematicamente, atingindo o número de 18 mil pessoas na última delas, na cidade de Dresden, reduto tradicional de manifestações nostálgicas em relação ao passado nazismo devido a seu (também criminoso) bombardeio ao fim da Segunda Guerra pelos britânicos. Deve-se notar, como fator de esperança, que manifestações contra estas formas de intolerância – o terrorismo que reinvindica o Islã como inspiração e os movimentos de extrema-direita – têm tomado corpo também. Houve manifestações de solidariedade aos mortos na França em várias cidades europeias e na Alemanha manifestações contra o PEGIDA reuniram milhares de pessoas em diferentes cidades. Mas pelo lado da exprema-direita cresce a aceitação de suas palavras de ordem na frente institucional (líderes do novo partido alemão Alternative für Deutschland têm acolhido reivindicações do PEGIDA) e junto à opinião pública. Na Alemanha recente pesquisa trouxe à baila o dado preocupante de que 61% dos entrevistados se declararam “anti-islâmicos”.
Como ficou feio alegar motivos racistas, o que se alega agora no lado intolerante é a “defesa da religião” ou a “incompatibilidade cultural”. Os assassinos do Charlie Hebdo gritavam – segundo testemunhas – estarem “vingando o profeta”, referência a caricaturas de Maomé consideradas ofensivas. Na outra ponta jovens da Front Nationale, também no ano passado, recusavam a pecha de racistas e declaravam aceitar o mundo muçulmano – em “seus territórios”, não na Europa agora dita “judaico-cristã”, puxando para seu aprisco a etnia ou religião que a extrema-direita europeia antes condenava ao ostracismo, ao campo de concentração e ao extermínio. Os partidos e políticos tradicionais, em sua maioria, estão brincando com fogo, sem se dar conta, talvez. Não aceitam o reconhecimento, por exemplo, que grupos por eles apoiados na Ucrânia são declaradamente fascistas, homofóbicos e até antissemitas. Preferem exacerbar o sentimento antirrusso e anti-Putin. Durante mais de uma década as duas agências do serviço secreto alemão concentraram-se em esmiuçar a vida dos partidos e grupos de esquerda (além dos possíveis terroristas islâmicos) e negligenciaram criminosamente o controle sobre os grupos e terroristas alemães. No momento o “grande terror” que se alastra no establishment europeu não é o de que a extrema-direita esteja em ascensão, embora isto também preocupe, mas é o provocado pela possibilidade de que um partido de esquerda, o Syriza, vença as eleições na Grécia (marcadas para 25 de janeiro), forme um governo, e assim ponha em risco os sacrossantos pilares dos planos de austeridade. Nega-se o pilar da democracia: contra o Syriza agitam- -se as ameaças de expulsão da Grécia da zona do euro e até da União Europeia; ou seja, procura-se castrar a livre manifestação do povo grego através da chantagem política e econômica. Se as coisas continuarem como estão, poderemos estar assistindo o suicídio da Europa que conhecemos. O que nascerá destes escombros ainda se está por ver, mas boa coisa não será, nem para a Europa, nem para o mundo.
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Je ne suis pas Charlie (Eu não sou Charlie) José Antonio Gutiérrez D. - semanariovoz.com Não me identifico com a representação degradante e ‘caricatural’ que charlie hebdo faz do mundo islâmico com toda a carga racista e colonialista.
Começo esclarecendo, antes de mais nada, que considero uma atrocidade o ataque às redações da revista satírica Charlie Hebdo em Paris e que não acredito, em qualquer circunstância, ser justificável transformar um jornalista, por mais duvidosa que seja sua qualidade profissional, em um objetivo militar. O mesmo é válido na França, assim como na Colômbia ou na Palestina. Tampouco me identifico com qualquer fundamentalismo, nem cristão, nem judeu, nem muçulmano, nem tampouco com o bobo-secularismo afrancesado, que considera a sagrada “République” uma deusa. Faço esses esclarecimentos necessários porque, por mais que insistam os gurus da alta polí18 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
tica que na Europa vivemos em uma “democracia exemplar” com “grandes liberdades”, sabemos que o Grande Irmão nos vigia e que qualquer discurso que fuja à cartilha é castigado duramente. Mas não acredito que censurar o ataque contra a Charlie Hebdo seja sinônimo de celebrar uma revista que é, fundamentalmente, um monumento à intolerância, ao racismo e à arrogância colonial. Milhares de pessoas, compreensivelmente afetadas por esse atentado, fizeram circular mensagens em francês dizendo “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie), como se esta mensagem fosse o último grito em defesa da liberdade. Pois então, eu não sou Charlie. Não me identifico com
a representação degradante e “caricatural” faz do mundo islâmico em plena época da chamada “guerra contra o terror”, com toda a carga racista e colonialista que isso traz. Não posso ver com bons olhos essa constante agressão simbólica que tem como contrapartida uma agressão física e real, mediante os bombardeios e ocupações militares a países pertencentes a esse horizonte cultural. Tampouco posso ver com bons olhos essas caricaturas e seus textos ofensivos quando os árabes são um dos setores mais marginalizados, empobrecidos e explorados da sociedade francesa, tendo recebido historicamente um trato brutal: não me esqueço de que no metrô de Paris, no começo dos anos 60, a polícia massacrou a pauladas 200 argelinos por demandar o fim da ocupação francesa em seu país, algo que já havia deixado um saldo estimado de um milhão de “incivilizados” árabes mortos. Não se trata de inocentes caricaturas feitas por livres pensadores, mas sim de mensagens produzidas pelos meios de comunicação de massas (sim, ainda que se coloque como alternativa, Charlie Hebdo pertence aos meios de massas) carregadas de estereótipos e ódios, que reforçam um discurso que entende os árabes como bárbaros aos quais é preciso conter, desaraigar, controlar, reprimir, oprimir e exterminar. Mensagens cujo propósito implícito é justificar as invasões a países do Oriente Médio assim como as múltiplas intervenções e bombardeios que, pelo o Ocidente, são orquestradas em defesa da nova partilha imperial. O ator espanhol Willy Toledo disse, em uma declaração polémica – por apenas evidenciar o óbvio –, que “O Ocidente mata todos os dias. Sem fazer barulho”. E isso é o que Charlie e seu humor negro ocultam sob a forma de sátira. Não me esqueço do número 1099 da Charlie Hebdo, na qual se banalizava o massacre de mais de mil egípcios por uma brutal ditadura militar, que tem o consentimento da França e dos EUA, mediante uma uma capa que diz algo como: “Matança no Egito. O Corão é uma merda: não detém as balas”. A caricatura era a de um homem muçulmano todo furado, enquanto se protegia com o Corão. Haverá quem ache isso
engraçado. Também, na sua época, os colonos ingleses na Terra do Fogo acreditavam que era engraçado tirar fotografias junto com indígenas que eles haviam “caçado”, com amplos sorrisos, espingarda na mão, e com o pé sobre o cadáver sangrento ainda quente. Em vez de engraçada, essa caricatura me parece violenta e colonial, um abuso da tão fictícia como manipulada liberdade de imprensa ocidental. O que aconteceria se eu fizesse agora uma revista cuja capa dissesse o seguinte: “Matança em Paris. Charlie Hebdo é uma merda: não detém as balas” e fizesse uma caricatura do falecido Jean Cabut perfurado com uma cópia da revista em suas mãos? É claro que seria um escândalo: a vida de um francês é sagrada. A de um egípcio (ou a de um palestino, iraquiano, sírio etc.) é material “humorístico”. Por isso, não sou Charlie, pois para mim a vida de cada um dos egípcios perfurados é tão sagrada como a de qualquer desses caricaturistas hoje assassinados. Já sabemos o que vem de agora em diante: haverá discursos para defender a liberdade de imprensa por parte dos mesmos países que em 1999 deram a bênção ao bombardeio da OTAN, em Belgrado, da estação de TV Pública sérvia por chamá-la de “o ministério de mentiras”; que se calaram quando israel bombardeou em Beirute a estação de TV AL-Manar em 2006; que se calam diante dos assassinatos de jornalistas críticos colombianos e palestinos. Logo, da bela retórica pró-liberdade virá a ação liberticida: mais macartismo dito “antiterrorismo”, mais intervenções coloniais, mais restrições a essas “garantias democráticas” em vias de extinção, e, é claro, mais racismo. A Europa se consome em uma espiral de ódio xenófobo, de islamofobia, de antissemitismo (os palestinos são semitas, de fato) e este ambiente se faz cada vez mais irrespirável. Os muçulmanos já são os judeus do século XXI na Europa, e os partidos neonazistas estão se fazendo novamente respeitáveis 80 anos depois graças a este repugnante sentimento. Por tudo isso, em que pese a repulsa que me causam os ataques de Paris, Je ne suis pas Charlie. Tradução de Daniella Cambauva 19
Je ne suis pas Charlie, eu não sou Charlie Colunista Leonardo Boff
As charges polêmicas do charlie hebdo, como os comentários políticos de colunistas da veja, são perigosas e de péssimo gosto.
Nos envios anteriores este artigo saiu sem o nome do autor, por distração minha. Vinha num e-mail quatremains@uol.com.br e era atribuido ao Pe. Antonio Piber. Posteriormente coloquei o nome do Pe. Antonio Piber. Por fim vim a saber que o verdadeiro autor é o jornalista Rafo Saldanha. Encontra-se no seu blog:emtomdemimi. blogspot.com.br/2015/01 je-ne-suis-pas-charlie. html Aqui vai o texto original sem os acréscimos feitos pelo Pe. Antonio Piber. El Rafo Saldanha Je ne suis pas Charlie Em primeiro lugar, eu condeno os atentados do dia do 7 de janeiro. Apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou um cara pacífico. A última vez que me envolvi em uma briga foi aos 13 anos (e apanhei feito um bicho). Não acho que a violência seja a melhor solução para nada. Um dos meus lemas é a frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobramos sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro. Ninguém merece. A morte é a sentença final, não permite que o sujeito evolua, mude. Em momento nenhum, eu quis que os 20 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem. Após o atentado, milhares de pessoas se levantaram no mundo todo para protestar contra os atentados. Eu também fiquei assustado, e comovido, com isso tudo. Na internet, surgiu o refrão para essas manifestações: Je Suis Charlie. E aí a coisa começou a me incomodar. A Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970 e identificada com a esquerda pós- 68. Não vou falar de toda a trajetória do semanário. Basta dizer que é mais ou menos o que foi o nosso Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita européia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais… O editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet – críticas que foram resolvidas com a saída dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob
o comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã – ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011. Uma pausa para o contexto. A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”. Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou. Já ouvi de pessoas que saíram de um restaurante “com medo de atentado” só porque um árabe entrou. Lembro de ter lido uma pesquisa feita há alguns anos (desculpem, não consegui achar a fonte) em que 20 currículos iguais eram distribuídos por empresas francesas. Eles eram praticamente iguais. A única diferença era o nome dos candidatos. Dez eram de homens com sobrenomes franceses, ou outros dez eram de homens com sobrenomes árabes. O currículo do francês teve mais que o dobro de contatos positivos do que os do candidato árabe. Isso foi há alguns anos. Antes da Frente Nacional, partido de ultra-direita de Marine Le Pen, conquistar 24 cadeiras no parlamento europeu… De volta à Charlie Hebdo: Ontém vi Ziraldo chamando os cartunistas mortos de “heróis”. O Diário do Centro do Mundo (DCM) os chamou de “gigantes do humor politicamente incorreto”. No Twitter, muitos chamaram de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos. O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. (Isso gera situações interessantes, como o filme A Mensagem – Ar Risalah, de 1976 – que conta a história do profeta sem desrespeitar esse dogma – as soluções encontradas são geniais!). Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a estátua de Nossa Senhora para atacar os católicos. Qual é o objetivo disso? O próprio Charb
“No Twitter, muitos chamaram de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até” falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. Ok, o catolicismo foi banalizado. Mas isso aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi imposto externamente. Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses – famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerâmcia (ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a revista. Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã. Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo alusões à violência (quantos trocadilhos com “matar” e “explodir”…). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não 21
critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam… E aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Se a piada é preconceituosa, ela transmite o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas. No artigo do Diário do Centro do Mundo, Paulo Nogueira diz: “Existem dois tipos de humor politicamente incorreto. Um é destemido, porque enfrenta perigos reais. O outro é covarde, porque pisa nos fracos. Os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo pertenciam ao primeiro grupo. Hu22 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
moristas como Danilo Gentili e derivados estão no segundo.” Errado. Bater na população islâmica da França é covarde. É bater no mais fraco. Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus. Isso me lembra o já citado gênio do humor (sqn) Danilo Gentilli, que dizia ser alvo de racismo ao ser chamado de Palmito (por ser alto e branco). Isso é canalha. Em nossa sociedade, ser alto e branco não é visto como ofensa, pelo contrário. E – mesmo que isso fosse racismo – isso não daria direito a ele de ser racista com os outros. O fato do Charlie Hebdo desrespeitar outras religiões não é atenuante, é agravante. Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado. “Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça francesa tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”. “Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados
da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados – como o racismo ou a homofobia – isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim. Por coincidência, um dos assuntos mais comentados do dia 6 de janeiro – véspera dos atentados – foi a declaração do comediante Renato Aragão à revista Playboy. Ao falar das piadas preconceituosas dos anos 70 e 80, Didi disse: “Mas, naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam.”. Errado. Muitos se ofendiam. Eles só não tinham meios de manifestar o descontentamento. Naquela época, tão cheia de censuras absurdas, essa seria uma censura positiva. Se alguém tivesse dado esse toque nos Trapalhões lá atrás, talvez não teríamos a minha geração achando normal fazer piada com negros e gays. Perderíamos algumas risadas? Talvez (duvido, os caras não precisavam disso para serem engraçados). Mas se esse fosse o preço para se ter uma sociedade menos racista e homofóbica, eu escolheria sem dó. Renato Aragão parece ter entendido isso. Deixo claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que balas de fuzis. Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada” (grifo meu). Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda),
“Muitos se ofendiam. Eles só não tinham meios de manifestar o descontentamento. Naquela época, tão cheia de censuras absurdas, essa seria uma censura positiva. Se alguém tivesse dado esse toque nos Trapalhões lá atrás, talvez não teríamos a minha geração achando normal fazer piada com negros e gays.” é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até… charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados – um deles com granadas! – nessa madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos” – e ela sabe disso). Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro de ontem, eu não sou Charlie. No twitter, um movimento – muito menor do que o #JeSuisCharlie – começa a surgir. Ele fala do policial, muçulmano, que morreu defendendo a “liberdade de expressão” para os cartunistas do Charlie Hebdo ofenderem-no. Ele representa a enorme maioria da comunidade islâmica, que mesmo sofrendo ataques dos cartunistas franceses, mesmo sofrendo o ódio diário dos xenófobos e islamófobos, repudiaram o ataque. Je ne suis pas Charlie. Je suis Ahmed.
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Os outros Charlies Amy Goodman – Truthdig Entre os líderes mundiais que foram a paris condenar os ataques encontravam- se alguns dos maiores responsáveis pela repressão contra jornalistas do mundo. O massacre da Charlie Hebdo, o posterior assassinato de um policial e a matança no supermercado kosher Hyper Cachet comoveram o mundo. Jovens fanáticos com armas automáticas desencadearam uma torrente de violência e morte, alimentada por uma fervorosa intolerância. Na redação da revista satírica Charlie Hebdo em Paris, doze pessoas foram assassinadas e onze ficaram feridas. A única culpa que as vítimas podiam ter era a de expressar as suas ideias. Sem dúvida, fiéis à sátira, várias das ideias eram muito ofensivas para muitas pessoas; neste caso, as caricaturas do profeta Maomé. Depois do massacre, pessoas de todo mundo expressaram a sua solidariedade com as vítimas e com o povo de França. Entre os líderes mundiais que foram a Paris condenar os ataques encontravam-se alguns dos maiores responsáveis pela repressão contra jornalistas do mundo, em particular de jornalistas árabes e muçulmanos. A Repórteres Sem Fronteiras tem a sua sede central em Paris, não muito longe da redação da Charlie Hebdo. A notícia do ataque chegou rapidamente à sua sede. Lucie Morillon, diretora de programas da RSF, foi uma das primeiras pessoas a chegar ao local após o massacre contra os jornalistas da Charlie Hebdo. Entrevistei-a na cidade de Nova York, no dia seguinte à sua participação na marcha solidária de domingo 11 de janeiro em Paris, que juntou mais de um milhão de pessoas. Ela recordou assim os acontecimentos da quarta-feira sete de janeiro: “Estávamos numa reunião a tratar de questões importantes, quando um colega meu entrou na sede gesticulando como se se passasse algo importante e nos quisesse interromper. Eu fiz-lhe um olhar severo como que a dizer-lhe ‘Espero que seja importante’. E ele disse: ‘Passou-se algo de grave. Parece que houve 24 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
disparos contra a Charlie Hebdo e poderá haver mortos’. Foi completamente comovente, totalmente surrealista. Agarramos nas nossas malas, cadernos e telefones e corremos para a sede da Charlie Hebdo. Fica a cinco estações de metro da nossa sede, pelo que chegámos depressa. Não havia ninguém, exceto os vizinhos juntos nas áreas restritas, até que chegaram o Ministro do Interior, o presidente da Câmara de Paris e um conjunto de oficiais. Um dos oficiais reconheceu-nos, a mim e ao secretário-geral da Repórteres Sem Fronteiras, Christophe Deloire, e pudemos entrar com eles na área restrita. Terminamos à frente da sede. Não entrámos porque era a cena do crime, mas podíamos ver as balas no solo e pessoas a chorar.
Um homem saiu da sede e lançou-se nos braços do Presidente [François] Hollande, que já tinha chegado, e disse entre lágrimas, ‘Charb est mort’, ‘Charb está morto’”. Referia-se a Stephane Charbonnier, caricaturista principal e diretor editorial da Charlie Hebdo. No domingo, dia das marchas de solidariedade em toda a França, onde se juntaram cerca de quatro milhões de pessoas, o grupo declarou num comunicado de imprensa: “A Repórteres Sem Fronteiras saúda a participação de muitos líderes estrangeiros na marcha de hoje em Paris, em homenagem às vítimas dos ataques terroristas da semana passada e em defesa dos valores da república francesa; mas está indignada com a presença de autoridades de países que restringem a liberdade de informação”. O grupo declarou que estava “consternado pela presença dos líderes de países onde jornalistas e blogers são perseguidos sistematicamente, como Egito, Rússia, Turquia e Emiratos Árabes Unidos”. Em todo o planeta foram difundidas fotos e vídeos dos líderes mundiais de pé, de braços dados, encabeçando a grande manifestação. Houve muito barulho nos Estados Unidos devido à ausência
de autoridades de alto nível do governo Obama. Apesar de o promotor geral Eric Holder estar em Paris nesse dia, inexplicavelmente não assistiu à marcha. Por outro lado, assistiu o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Egito, Sameh Shoukry, cujo governo encarcerou muitos jornalistas; particularmente três jornalistas da Al Jazeera, que permanecem detidos há mais de um ano: Peter Greste, Mohamed Fahmy e Baher Mohamed. O embaixador da Arábia Saudita na França também participou na manifestação. Dois dias antes, o seu governo tinha chicoteado o blogger Raif Badawi, que foi condenado a mil chicotadas que a monarquia saudita administra a um ritmo de cinquenta por semana. Delphine Hagland, diretora da Repórteres Sem Fronteiras nos Estados Unidos, explicou: “Decidiram dividir as mil chicotadas em várias sessões porque tinham medo de matá-lo”. Agora foi informado que os líderes mundiais não estavam na marcha, mas que se reuniram numa rua fechada, longe da manifestação e sob vigilância para fazer a sessão de fotos, da qual saiu a imagem que o mundo viu. Em poucas palavras, foi o povo que tomou a liderança nesse dia, não os líderes. “Je Suis Charlie” ou “Eu sou Charlie”, foi o lema de muitos. Outros publicaram no Twitter fotos ou transportaram cartazes que diziam “Eu não sou Charlie”, condenando a violência sem apoiar as caricaturas da Charlie Hebdo. Uma muçulmana tinha um cartaz que dizia “Je Suis Juif” (“Eu sou judia”, em espanhol), em solidariedade com as vítimas judias. Outras pessoas tinham cartazes que diziam “Eu sou Ahmed” por Ahmed Merabet, o polícia francês muçulmano que foi assassinado em frente à sede da revista. Cerca de quatro milhões de pessoas saíram às ruas de França no passado domingo exigindo uma sociedade mais pacífica, na qual a liberdade de imprensa e a tolerância religiosa sejam mais fortes que a violência e o ódio. Artigo publicado em Truthdig em 14 de janeiro de 2015. Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna. Texto em inglês traduzido por Inés Coira para espanhol para Democracy Now. Tradução para português de Carlos Santos para Esquerda.net 25
A miséria do terror islâmico Reginaldo Nasser Nos EUA, desde 11/09/01, extremistas de extremadireita mataram mais do que extremistas islâmicos. Veja outros dados que desmentem teorias sobre o islã. O recente atentado terrorista em Paris, praticado por homens fortemente armados e determinados, trouxe, novamente à tona, a nefasta conexão entre terrorismo e islamismo. Tanto o terrorismo como a religião, no caso o islamismo, são fenômenos sociais e, portanto, são passíveis de ser entendidos como tais a partir de pesquisas que se inserem dentro do campo das ciências humanas. Não que os números sejam suficientes para nos fazer compreender o fenômeno, mas sem eles o acontecimento presente, ainda mais quando se trata de um pais como a França, se sobrepõe sobre o processo histórico atrapalhando nossa visão sobre o fenômeno. No dia 24 de setembro de 2013 militantes argelinos, ligados ao ISIS, executaram um refém francês, após terem solicitado ao governo frances que interrompesse seus ataques aéreos no Iraque. No vídeo divulgado, os militantes denunciavam a intervenção dos “cruzados criminosos franceses” contra os muçulmanos na Argélia, no Mali e no Iraque. Naquele contexto, o governo de Hollande já havia declarado guerra ao ISIS, meses antes, sendo, inclusive, o único pais a autorizar envio de armas aos “rebeldes” na Siria. Após os ataques terroristas em Paris, foi a vez do primeiro ministro francês, Manuel Valls, declarar guerra contra o “terrorismo e o islamismo radical”, sinalizando que a França seguirá o roteiro traçado pelo presidente George Bush, após os ataques do dia 11 de Setembro, quando conclamou os EUA e seus aliados a empreender uma longa guerra global contra o terror. São declarações de guerra que produzem um duplo efeito. Ao mesmo tempo em que conferem um estatuto de “quase estado” a essas organizações, a declaração de guerra vai mais além se dirigindo, mais especificamente, contra fenômenos tais 26 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
como: “islamismo radical e “terrorismo”. Ora, uma das primeiras consequências desse tipo de guerra é que ela tende a assumir característica de ser perpétua, pois será impossível eliminar por completo o terrorismo ou, mais ainda, o chamado islamismo radical. Além, disso à medida que a guerra é empreendida uma sucessão de outras “guerras” vai aparecendo, gradativamente, revelando os mais diversos inimigos e objetivos a serem alcançados. Como sempre acontece após atentados terroristas, que ganham notoriedade internacional, os políticos, pressionados pela sociedade que se sente insegura e fragilizada, fazem questão de dizer que serão tomadas novas medidas de segurança. Sendo que o destaque para o novo procura se justificar tentando mostrar que a ameaça atual seja sempre percebida como pior que a anterior.
“Ao mesmo tempo em que conferem um estatuto de ‘quase estado’ a essas organizações, a declaração de guerra vai mais além se dirigindo, mais especificamente, contra fenômenos tais como: “islamismo radical e “terrorismo”. Ora, uma das primeiras consequências desse tipo de guerra é que ela tende a assumir característica de ser perpétua”
Já notaram que os europeus se esqueceram dos atentados em Madrid e Londres em 2005? Mas como esquecer que foram gastos pelos EUA e aliados trilhões de dólares para promover ações contra-terroristas? Como esquecer os milhares de inocentes mortos nas invasões do Afeganistão e Iraque sob o argumento do combate ao terrorismo, além de milhares inocentes detidos? Como esquecer que a tortura passou a ser praticada de forma sistemática e a vigilância das pessoas se tornou algo permanente com significativa restrição dos direitos individuais? Não se
pode esquecer também que as forças armadas dos EUA já invadiram, ocuparam ou bombardearam 13 paises islâmicos desde 1980. Os EUA possuem mais de 20 bases militares em 6 países da região (Afeganistão, Bahrein, Djibuti, Emirados Árabes Unidos, Omã e Turquia) e destacamentos militares de larga escala em muitos outros, incluindo o Egito, Kuwait, Qatar, e Arábia Saudita. Não se pode esquecer que a partir do Governo Sarkozy a França triplicou seu orçamento de Defesa e Segurança, liderou as intervenções militares na Líbia e Mali e pressiona os EUA e aliados para intervir na Siria. 27
Todas essas ações se justificam em torno da guerra contra o terror. Bem, qual o resultado de tudo isso? Vamos aos dados. No ano 2000, portanto, antes dos atentados do 11 de Setembro de 2001, por volta de 3800 foram mortas por ações terroristas no mundo. Já em 2013 foram cerca de 18 mil pessoas assassinadas por ataques terroristas, ou seja, cinco vezes mais do que em 2000. Durante o mesmo período, aumentou o número de países que sofreram mais de 50 mortes por terrorismo, subindo de 15 para 24. Ou seja, não só a intensidade do terrorismo é crescente, mas, sobretudo, sua amplitude. Por outro lado, apesar de ser um fenômeno globalmente distribuído, apenas 5% das mortes atribuídas ao terrorismo ocorreu em nações que fazem parte da OCDE que inclui algumas das mais ricas economias do mundo. Já 85 % das 18 mil mortes se concentram em 5 paises (Afeganistão, Iraque, Nigéria, Paquistão e Síria). Não precisamos elaborar muito esses dados para constatar que, não por acaso, esses paises são cenários de conflitos, que contam com a participação (direta ou indireta) das chamadas potencias ocidentais (incluindo a Rússia no caso da Síria); e que a grande maioria das vitimas do terrorismo no mundo são islâmicos. Cabe destacar que o Iraque é o pais com o maior numero de mortos por terrorismo. Sendo que não há referencia a respeito de um único atentado terrorista se quer, nesse pais, antes da invasão militar em 2002. No que se refere aos EUA, durante o período 1991- 2000 foram 217 mortes por atentados, e 50 apenas no período 2002-2013. A exposição dos norte-americanos às ameaças terroristas no exterior em 2013 permaneceu baixa: 16 cidadãos norte-americanos foram mortos num universo de 18 mil mortos no mundo inteiro e 7 foram feridos dentre os 32 mil no total. Em relação à Comunidade Europeia: 7 pessoas foram mortas em ataques terroristas em 2013: um soldado do exército Britânico e um muçulmano no Reino Unido; 2 membros de um partido de extrema-direita na Grécia e 3 membros do (PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão) em Paris (França). Com todos os possíveis problemas que esses dados possam ter, será que podemos aceitar 28 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
“Em 2013, em toda Europa, apenas 1 pessoa foi vitima de ataque terrorista jihadista” aquilo que tem sido divulgado, à exaustão, que o “Ocidente” é a maior vitima dos atentados terroristas no mundo? Com esses dados e possível afi rmar que a guerra contra o terror tem tido sucesso? Alguém poderia responder afi rmativamente, cinicamente ou não, dado o pequeno numero de mortos na Europa e EUA; mas seria difícil não imputar responsabilidade as intervenções militares nos países islâmicos. Em 2013, 4 grupos terroristas (Taleban, Taleban do Paquistão, Isis e Boko Haram) foram responsáveis por 66% de todas as mortes provocadas por atos terroristas no mundo e, pelo menos, 25 mil pessoas, em uma década. As origens da al-Qaeda e do Taliban podem ser encontradas na guerra soviética no Afeganistão, quando foram apoiados e armados pelos EUA e Arábia Saudita, assim como foi criado o Isis com o objetivo de derrotar Assad na Síria. Em relação à autoria dos atentados em países ocidentais, consta que nos EUA, desde 11/09, extremistas afiliados com uma variedade de ideologias de extrema-direita, incluindo supremacistas brancos, extremistas antiaborto e militantes anti-governo, mataram mais pessoas (34 pessoas) do que extremistas motivados pela ideologia islâmica ( 21 pessoas). Em 2013, em toda Europa, apenas 1 pessoa foi vitima de ataque terrorista jihadista. Mas, apesar de seu caráter fantasioso, contrariando todos os dados mencionados acima, o mito do terror islâmico é realimentado a cada episódio de ataque terrorista que acontece no Ocidente. Temos que admitir que não há, até o momento, uma falácia tão útil como essa que permite aumentar a produção de armas, fazer mais guerras, restringir cada vez mais a liberdade das pessoas, praticar a tortura e, no final de tudo isso, ter a coragem de dizer que essas ações são feitas para proteger-nos do mal que assola o mundo civilizado: o “islamismo radical” Fonte: Global Terrorism Database
ŽiŽek: pensar o atentado ao charlie hebdo Slavoj ŽiŽek – Blog da Boitempo Quem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia liberal deve também se calar sobre o fundamentalismo religioso.
É agora – quando estamos todos em estado de choque depois da carnificina na sede do Charlie Hebdo – o momento certo para encontrar coragem para pensar. Agora, e não depois, quando as coisas acalmarem, como tentam nos convencer os proponentes da sabedoria barata: o difícil é justamente combinar o calor do momento com o ato de pensar. Pensar quando o rescaldo dos eventos esfriar não gera uma verdade mais balanceada, ela na verdade normaliza a situação de forma a nos permitir evitar as verdades mais afiadas. Pensar significa ir adiante do pathos da solidariedade universal que explodiu nos dias que sucederam o evento e culminaram no espetáculo de domingo, 11 de janeiro de 2015, com grandes nomes políticos ao redor do globo de mãos dadas, de Cameron a Lavrov, de Netanyahu a Abbas – talvez a imagem mais bem acabada da falsidade hipócrita. O verdadeiro gesto Charlie Hebdo seria ter publicado na capa do semanário uma grande caricatura brutalmente e grosseiramente tirando sarro desse evento, com cartuns de Netanyahu e Abbas, Lavrov e Cameron, e outros casais se abra-
çando e beijando intensamente enquanto afiam facas por trás de suas costas. Devemos, é claro, condenar sem ambiguidade os homicídios como um ataque contra a essência de nossas liberdades, e condená-los sem nenhuma ressalva oculta (como quem diria “Charlie Hebdo estava todavia provocando e humilhando os muçulmanos demais da conta”). Devemos também rejeitar toda abordagem calcada no efeito mitigante do apelo ao “contexto mais amplo”: algo como “os irmãos terroristas eram profundamente afetados pelos horrores da ocupação estadunidense do Iraque” (OK, mas então por que não simplesmente atacaram alguma instalação militar norte-americana ao invés de um semanário satírico francês?), ou como “muçulmanos são de fato uma minoria explorada e escassamente tolerada” (OK, mas negros afro-descendentes são tudo isso e mais e no entanto não praticam atentados a bomba ou chacinas), etc. etc. O problema com tal evocação da complexidade do pano de fundo é que ele pode muito bem ser usado a propósito de Hitler: ele 29
também coordenou uma mobilização diante da injustiça do tratado de Versalhes, mas no entanto era completamente justificável combater o regime nazista com todos os meios à nossa disposição. A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças. Nada disso é suficiente – temos que pensar adiante. E o pensar de que falo não tem absolutamente nada a ver com uma relativização fácil do crime (o mantra do “quem somos nós ocidentais, que cometemos massacres terríveis no terceiro mundo, para condenar atos como estes?”). E tem menos ainda a ver com o medo patológico de tantos esquerdistas liberais ocidentais de sentirem-se culpados de islamofobia. Para estes falsos esquerdistas, qualquer crítica ao Islã é rechaçada como expressão da islamofobia ocidental: Salman Rushdie foi acusado de ter provocado desnecessariamente os muçulmanos, e é portanto responsável (ao menos em parte) pelo fatwa que o condenou à morte etc. O resultado de tal postura só pode ser esse: o quanto mais os esquerdistas liberais ocidentais mergulham em seu sentimento de culpa, mais são acusados por fundamentalistas muçulmanos de serem hipócritas tentando ocultar seu ódio ao Islã. Esta constelação perfeitamente reproduz o paradoxo do superego: o quanto mais você obedece o que o outro exige de você, mais culpa sentirá. É como se o quanto mais você tolerar o Islã, tanto mais forte será sua pressão em você… É por isso que também me parecem insuficientes os pedidos de moderação que surgiram na linha da alegação de Simon Jenkins (no The Guardian de 7 de janeiro) de que nossa tarefa seria a de “não exagerar a reação, não sobre-publicizar o impacto do acontecimento. É tratar cada evento como um acidente passageiro do horror” – o atentado ao Charlie Hebdo não foi um mero “acidente passageiro do horror”. Ele seguiu uma agenda religiosa e política precisa e foi como tal claramente parte de um padrão muito mais amplo. É claro que não devemos nos exaltar – se por isso compreendermos não sucumbir à islamofobia cega – mas devemos implacavelmente analisar este padrão. 30 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
O que é muito mais necessário que a demonização dos terroristas como fanáticos suicidas heroicos é um desmascaramento desse mito demoníaco. Muito tempo atrás, Friedrich Nietzsche percebeu como a civilização ocidental estava se movendo na direção do “último homem”, uma criatura apática com nenhuma grande paixão ou comprometimento. Incapaz de sonhar, cansado da vida, ele não assume nenhum risco, buscando apenas o conforto e a segurança, uma expressão de tolerância com os outros: “Um pouquinho de veneno de tempos em tempos: que garante sonhos agradáveis. E muito veneno no final, para uma morte agradável. Eles têm seus pequenos prazeres de dia, e seus pequenos prazeres de noite, mas têm um zelo pela saúde. ‘Descobrimos a felicidade,’ dizem os últimos homens, e piscam.” Pode efetivamente parecer que a cisão entre o Primeiro Mundo permissivo e a reação fundamentalista a ele passa mais ou menos nas linhas da oposição entre levar uma longa e gratificante vida cheia de riquezas materiais e culturais, e dedicar sua vida a alguma Causa transcendente. Não é esse o antagonismo entre o que Nietzsche denominava niilismo “passivo” e “ativo”? Nós no ocidente somos os “últimos homens” nietzschianos, imersos em prazeres cotidianos banais, enquanto os radicais muçulmanos estão prontos a arriscar tudo, comprometidos com a luta até sua própria autodestruição. O poema “The Second Comming” [O segundo advento], de William Butler Yeats parece perfeitamente resumir nosso predicamento atual: “Os melhores carecem de toda convicção, enquanto os piores são cheios de intensidade apaixonada”. Esta é uma excelente descrição da atual cisão entre liberais anêmicos e fundamentalistas apaixonados. “Os melhores” não são mais capazes de se empenhar inteiramente, enquanto “os piores” se empenham em fanatismo racista, religioso e machista. No entanto, será que os terroristas fundamentalistas realmente se encaixam nessa descrição? O que obviamente lhes carece é um elemento que é fácil identificar em todos os autênticos fundamentalistas, dos budistas tibetanos aos amistas nos EUA: a ausência de ressentimento e inveja, a profunda indiferença perante o modo de vida dos não-crentes. Se os ditos fundamen-
talistas de hoje realmente acreditam que encontraram seu caminho à Verdade, por que deveriam se sentir ameaçados por não-crentes, por que deveriam invejá-los? Quando um budista encontra um hedonista ocidental, ele dificilmente o condena. Ele só benevolentemente nota que a busca do hedonista pela felicidade é auto- -derrotante. Em contraste com os verdadeiros fundamentalistas, os pseudo-fundamentalistas terroristas são profundamente incomodados, intrigados, fascinados pela vida pecaminosa dos não-crentes. Tem-se a sensação de que, ao lutar contra o outro pecador, eles estão lutando contra sua própria tentação. É aqui que o diagnóstico de Yeats escapa ao atual predicamento: a intensidade apaixonada dos terroristas evidencia uma falta de verdadeira convicção. O quão frágil não tem de ser a crença de um muçulmano para que ele se sinta ameaçado por uma caricatura besta em um semanário satírico? O terror islâmico fundamentalista não é fundado na convicção dos terroristas de sua superioridade e em seu desejo de salvaguardar sua identidade cultural-religiosa diante da investida da civilização global consumista. O problema com fundamentalistas não é que consideramos eles inferiores a nós, mas sim que eles próprios secretamente se consideram inferiores. É por isso que nossas reafirmações politicamente corretas condescendentes de que não sentimos superioridade alguma perante a eles só os fazem mais furiosos, alimentando seu ressentimento. O problema não é a diferença cultural (seu empenho em preservar sua identidade), mas o fato inverso de que os fundamentalistas já são como nós, que eles secretamente já internalizaram nossas normas e se medem a partir delas. Paradoxalmente, o que os fundamentalistas verdadeiramente carecem é precisamente uma dose daquela convicção verdadeiramente “racista” de sua própria superioridade. As recentes vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam o velho insight benjaminiano de que “toda ascensão do fascismo evidencia uma revolução fracassada”: a ascensão do fascismo é a falência da esquerda, mas simultaneamente uma prova de que havia potencial revolucionário, descontentamento, que a esquerda não foi capaz de mobilizar.
E o mesmo não vale para o dito “islamo-fascismo” de hoje? A ascensão do islamismo radical não é exatamente correlativa à desaparição da esquerda secular nos países muçulmanos? Quando, lá na primavera de 2009, o Taliban tomou o vale do Swat no Paquistão, o New York Times publicou que eles arquitetaram uma “revolta de classe que explora profundas fi ssuras entre um pequeno grupo de proprietários abastados e seus inquilinos sem terra”. Se, no entanto, ao “tirar vantagem” da condição dos camponeses, o Taliban está “chamando atenção para os riscos ao Paquistão, que permanece em grande parte feudal”, o que garante que os democratas liberais no Paquistão, bem como os EUA, também não “tirem vantagem” dessa condição e procurem ajudar os camponeses sem terra? A triste implicação deste fato é que as forças feudais no Paquistão são os “aliados naturais” da democracia liberal… Mas como ficam então os valores fundamentais do liberalismo (liberdade, igualdade, etc.)? O paradoxo é que o próprio liberalismo não é forte o suficiente para salvá-los contra a investida fundamentalista. O fundamentalismo é uma reação – uma reação falsa, mistificadora, é claro – contra uma falha real do liberalismo, e é por isso que ele é repetidamente gerado pelo liberalismo. Deixado à própria sorte, o liberalismo lentamente minará a si próprio – a única coisa que pode salvar seus valores originais é uma esquerda renovada. Para que esse legado fundamental sobreviva, o liberalismo precisa da ajuda fraterna da esquerda radical. Essa é a única forma de derrotar o fundamentalismo, varrer o chão sobre seus pés. Pensar os assassinatos de Paris significa abrir mão da auto-satisfação presunçosa de um liberal permissivo e aceitar que o conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo é essencialmente um falso conflito – um círculo vicioso de dois polos gerando e pressupondo um ao outro. O que Max Horkheimer havia dito sobre o fascismo e o capitalismo já nos anos 1930 – que aqueles que não estiverem dispostos a falar criticamente sobre o capitalismo devem se calar sobre o fascismo – deve ser aplicada também ao fundamentalismo de hoje: quem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia liberal deve também se calar sobre o fundamentalismo religioso. 31
Charlie Hebdo: Terror de Paris pode ter origem na Argélia de 1954 Robert Fisk Nada ocorre sem um passado. A argélia é a ferida póscolonial que ainda sangra na frança, e o terrorismo de hoje tem claras ligações com estas chagas. Muito antes da polícia francesa revelar a identidade dos suspeitos do assassinato – inclusive, antes de eu ter ouvido os nomes de Cherif e Said Kouachi –, murmurei a palavra “Argélia” a mim mesmo. Tão logo escutei os nomes e vi as faces, disse outra vez a palavra “Argélia”. E então a polícia francesa disse que os homens eram de “origem argelina”. Pois a Argélia continua sendo a mais dolorosa ferida no corpo político da República – exceto, talvez, por sua contínua autoanálise da ocupação nazista – e proporciona um contexto temeroso para cada ato de violência árabe contra a França. A guerra argelina pela independência, que durou seis anos, e na qual talvez 1 milhão de muçulmanos árabes e muitas milhares de mulheres e homens franceses morreram, continua sendo uma agonia sem fim e sem resolução para ambos os povos. Há pouco mais de meio século, quase teve início uma guerra civil francesa. Talvez todos os informes jornalísticos e televisivos devessem conter um “pedaço de história”, uma pequena recordação de que nada – absolutamente nada – ocorre sem um passado. Massacres, derramamento de sangue, fúria, tristeza, caçadas policiais (“aumentando” ou “diminuindo”, como subeditores gostam) ganham manchetes. Sempre é o “quem” e o “como” – mas raramente o “porquê”. Peguem o crime de lesa-humanidade em Paris esta semana – as palavras “atrocidade” e “barbárie” de alguma forma diminuem a selvageria deste ano – e suas consequências imediatas. Nós conhecemos as vítimas: jornalistas, 32 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
caricaturistas e policiais. E como morreram. Homens armados e encapuzados, fuzis automáticos Kalashnikov, indiferença cruel, quase profissional. E a resposta ao “porquê” foi proveitosamente dita pelos assassinos. Queriam vingar “o Profeta” pelas irreverentes (para os muçulmanos) e altamente ofensivas caricaturas. E, é claro, devemos repetir o mantra: nada – nada mesmo – poderia justificar esses atos cruéis de assassinato em massa. E não, os assassinos não podem recorrer à história para justificar seus crimes. Mas há um contexto importante que, de alguma forma, esteve fora da história desta semana, o “pedaço de história” que muitos franceses e argelinos preferem ignorar: a batalha (1954-1962)
de um povo inteiro por liberdade contra um regime imperial brutal, uma guerra prolongada que continua sendo a briga fundacional de árabes e franceses até os dias de hoje. A crise desesperada e permanente nas relações franco- -argelinas, como a recusa de um casal divorciado em aceitar uma narrativa acordada de sua tristeza, envenena a convivência desses dois povos na França. No entanto, Cherif e Said Kouachi justificaram suas ações, eles que nasceram em um tempo no qual a Argélia havia sido invisivelmente mutilada por 132 anos de ocupação. Talvez 5 milhões dos 6,5 milhões de muçulmanos na França sejam argelinos. A maioria é pobre e muitos se consideram cidadãos de segunda classe na terra da igualdade. Como em todas as tragédias, a Argélia ilude a explicação de um só parágrafo dos despachos das agências de notícias e inclusive as histórias mais curtas escritas por ambos os lados após os franceses terem abandonado a Argélia, em 1962. Diferente de outras importantes colônias francesas, a Argélia foi considerada como uma parte integrante da França metropolitana, enviando representantes ao parlamento francês em Paris e até mesmo fornecendo a Charles de Gaulle e aos aliados uma “capital” francesa por meio da qual invadir o Norte da África e a Sicília, então ocupados pelos nazistas. Mais de 100 anos antes, a França havia ela própria invadido a Argélia, subjugando sua população muçulmana nativa, construindo pequenas cidades francesas e castelos no interior e até mesmo (em um século XIX de Renascimento católico, que deveria “recristianizar” o Norte da África) transformando mesquitas em igrejas. A resposta argelina ao que hoje parece um monstruoso anacronismo histórico variou no curso das décadas entre a lassidão, a colaboração e a insurreição. Uma manifestação pela independência na população nacionalista e de maioria muçulmana de Setif, o Dia da Vitória – quando os aliados haviam liberado as nações europeias –, desembocou na morte de 103 civis europeus. A vingança do governo francês foi impiedosa: até 700 civis muçulmanos – talvez muito mais – foram mortos por enfurecidos “colonos” franceses com um bombardeio das cidades próximas com aviões e também por um cruzeiro naval
da França. O mundo prestou pouca atenção. Mas quando uma insurreição em grande escala se iniciou em 1954 – a princípio, é claro, com poucas perdas de vidas francesas e logo ataques ao exército francês –, a sombria guerra de libertação argelina foi quase predeterminada. Vencido nessa clássica batalha anticolonial do pós-guerra em Dien Bien Phu, o exército francês, logo após seu desastre em 1940, parecia vulnerável aos mais românticos nacionalistas argelinos, que notaram a nova humilhação da França em Suez, em 1956. O que o historiador Alistair Horne descreveu com justeza em sua magnífica história da luta argelina como “uma selvagem guerra de paz” custou a vida de centenas de milhares. Bombas, minas, massacres por forças governamentais e guerrilheiros da Frente de Libertação Nacional (FLN) no bled – a campina no sul do Mediterrâneo – conduziram à brutal supressão de setores muçulmanos em Argel e ao assassinato, tortura e execução de líderes guerrilheiros por paraquedistas franceses, soldados, pessoal da Legião Estrangeira – entre eles, ex-nazistas alemães – e policiais paramilitares. Inclusive, franceses brancos simpatizantes dos argelinos foram “desaparecidos”. Albert Camus se pronunciou contra a tortura e funcionários civis franceses ficaram com asco da brutalidade empregada para manter a Argélia como território francês. De Gaulle parecia apoiar a população branca, e disse isso em Argel: “Je vous ai compris”, ele lhes disse, e logo começou a negociar com representantes da FLN na França. Os argelinos compunham a maioria dos habitantes muçulmanos franceses e, em outubro de 1961, até 30 mil deles fi zeram uma marcha proibida pela independência em Paris – de fato, a apenas 1,5 km do cenário da recente matança –, atacada por unidades da
“a França havia ela própria invadido a Argélia, subjugando sua população muçulmana nativa, construindo pequenas cidades francesas e castelos no interior” 33
“Argelinos foram mortos a pancadas em quartéis da polícia ou arremessados ao Sena. O chefe da polícia que supervisionou as operações de segurança e que, ao que parece, dirigiu o massacre em 1961 não foi outro senão Maurice Papon, que, quase 40 anos depois, foi condenado por crimes de lesa-humanidade” polícia francesa que assassinaram, como agora se sabe, até 600 manifestantes. Argelinos foram mortos a pancadas em quartéis da polícia ou arremessados ao Sena. O chefe da polícia que supervisionou as operações de segurança e que, ao que parece, dirigiu o massacre em 1961 não foi outro senão Maurice Papon, que, quase 40 anos depois, foi condenado por crimes de lesa-humanidade cometidos durante o regime de Petain, em Vichy, durante a ocupação nazista. O conflito argelino terminou com um banho de sangue. Colonos franceses pied-noirs se negaram a aceitar a retirada, apoiaram os ataques da Organização do Exército Secreto (OAS, em sua sigla em francês) a muçulmanos argelinos e encorajaram unidades militares francesas a se amotinar. Houve um momento em que De Gaulle temeu que paraquedistas franceses tentassem tomar Paris. Quando chegou o fim, em que pesem as promessas da FLN de proteger cidadãos franceses que haviam escolhido permanecer na Argélia, houve assassinatos em massa em Orã. Até um milhão e meio de homens, mulheres e crianças franceses – diante da opção de “maleta ou caixão” – fugiram para a França, junto com milhares de leais combatentes harki argelinos que lutaram com o exército, mas que em sua maioria foram depois abandonados a sua própria sorte por De Gaulle. Alguns foram obrigados a engolir suas medalhas francesas e foram jogados em valas comuns. Mas os antigos colonos franceses, que ain34 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
da consideravam a Argélia parte do território da França – junto com uma exausta ditadura da FLN, que tomou conta da nação independente –, instituíram uma fria paz na qual a raiva residual dos argelinos, na França e igualmente na sua pátria, se assentou em um ressentimento de muitos anos. Na Argélia, a nova elite nacionalista embarcou em uma inviável industrialização de estilo soviético em seu país. Ex-cidadãos franceses demandaram copiosas reparações; de fato, durante décadas, os franceses detiveram todos os mapas do deságue das cidades argelinas, de modo que os novos donos do país tinham que escavar quilômetros quadrados de ruas a cada vez que arrebentava uma tubulação. E quando começou a guerra civil argelina da década de 1980 – logo que o exército argelino cancelou um segundo turno de eleições na qual era certa a vitória dos islâmicos –, o corrupto poder da FLN e os rebeldes muçulmanos se envolveram em um confl ito tão espantoso como a guerra com a França das décadas de 1950 e 1960. As torturas, os desaparecimentos e as matanças haviam voltado. A França apoiou discretamente uma ditadura cujos líderes militares acumularam milhões de dólares em bancos suíços. Uma nova causa Muçulmanos argelinos que voltavam da guerra contra os soviéticos no Afeganistão se uniram aos islâmicos nas montanhas e mataram alguns dos poucos cidadãos franceses que restavam no país. E muitos partiram depois para combater nas guerras islâmicas, no Iraque e mais tarde na Síria. Entram em cena os irmãos Kouachi, em especial Chérif, que esteve na prisão por recrutar franceses para combater norte-americanos no Iraque. E os Estados Unidos, com o apoio francês, agora respalda o regime da FLN em sua contínua batalha contra os islâmicos nos desertos e nos bosques das montanhas da Argélia, armando um exército que torturou e assassinou milhares de homens na década de 1990. Como disse um diplomata norte-americano pouco antes da invasão ao Iraque, em 2003, os Estados Unidos “têm muito o que aprender” com as autoridades argelinas. Pode-se ver por que alguns argelinos foram lutar pela resistência iraquiana. E encontraram uma nova casa... Tradução de Daniella Cambauva
Não é sobre o islã: Nunca foi Ramzy Baroud – Counterpunch Por que quando acontecem ataques como os de Paris começamos a discutir o islã e não nos referimos às verdadeiras raízes da violência? Ainda não é sobre o Islã, mesmo que a mídia e os militantes atacando alvos ocidentais digam que sim. Na realidade, nunca foi. Mas foi importante para muitos fundir política com religião, pois é conveniente. Primeiro, sejamos claros em alguns pontos. O Islã botou em ação um sistema para abolir a escravidão mais de 1200 anos antes de o tratado de abolição chegar ao seu pico no mundo ocidental. Libertar os escravos, que pertenciam a tribos árabes pagãs, foi um tema recorrente no Alcorão, sempre ligado aos sinais mais básicos de piedade
e virtude: “As caridades vão para os pobres, aos necessitados, aos que trabalham para coletá-las, àqueles cujos corações se uniram, aos escravos livres, aos em dívidas, aos unidos com Deus e aos viajantes. Uma tarefa de Deus, e Deus é Conhecedor, Sábio.” [Alcorão. 9:60] Infelizmente, lembretes como esse devem ser regularmente relembrados, graças à constante propaganda anti-Islã em muitos países ocidentais. O comportamento estranho e frequentemente bárbaro do então chamado Estado Islãmico (EI) forneceu maior impulso às propagandas
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e aos preconceitos existentes. Segundo, a igualdade de gênero no Islã tem sido consagrada na linguagem do Alcorão e no legado do Profeta Mohammed. “Para os homens e mulheres muçulmanos, para os homens e mulheres crentes, para homens e mulheres devotos, para homens e mulheres honestos, para homens e mulheres pacientes, para homens e mulheres humildes, para homens e mulheres caridosos, para homens e mulheres que realizam o jejum, para homens e mulheres castos e para homens e mulheres que frequentemente se lembram de Deus - para eles Alá preparou o perdão e uma grande recompensa.” [33:35] Terceiro, a santidade da vida é suprema no Islã à medida que “…se qualquer um mata uma pessoa (...) seria como se ele tivesse matado todas as pessoas: e se qualquer um salvar uma vida, seria como se ele tivesse salvado a vida de todos.” [5:32] Ainda assim, isso não é sobre o Islã. Isso é sobre o porque de o Islã ser o sujeito dessa discussão em primeiro lugar, quando deveríamos estar nos referindo às verdadeiras raízes da violência. Quando o Islã foi introduzido à Arábia muitos séculos atrás, era, e de fato continua a ser, uma religião revolucionária. Era e se mantém radical, certamente o tipo de radicalismo que, se visto objetivamente, seria considerado um verdadeiro desafio à divisão de classes na sociedade, à desigualdade em todas as suas formas, e mais importante, ao capitalismo e sua insaciabilidade, ganância e insensibilidade. Para evitar uma discussão racional sobre problemas reais, muitos transformam os não-assuntos na cruz do debate. Então o Islã é discutido juntamente com o Estado Islâmico, conflitos tribais e sectários nigerianos, resistência palestina à ocupação israelense, problemas de imigração na Europa e muito mais. Enquanto muita violência se propaga ao redor do mundo no nome do cristianismo, judaísmo, até budismo em Burma e Sri Lanka, raramente coletivos inteiros são estigmatizados pela mídia. Ainda assim, todos os muçulmanos são diretamente tidos como responsáveis por muitos, mesmo se um criminoso que por um acaso era muçulmano iniciou um tumulto violento. Sim, ele ainda pode ser designado como “lobo solitário”, mas pode-se 36 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
“Porque a mídia faz com que os muçulmanos se sintam responsáveis por qualquer coisa feita em nome do Islã, até mesmo por uma pessoa desequilibrada? Porque os membros de outras religiões não são responsabilizados pelos mesmos padrões? Porque os cristãos suecos não são questionados para explicar e se desculpar sobre o comportamento do Exército de Resistência Senhor de Uganda” ter quase certeza de que os muçulmanos e o Islã de alguma forma se tornarão relevantes ao debate da mídia no desenrolar dos eventos. Em sua forma desesperada de rechaçar acusações, muitos muçulmanos, frequentemente liderados por intelectuais e jornalistas têm, por quase duas décadas, se esforçado para distanciar o Islã da violência e para lutar contra o estereótipo persistente. Com o tempo, esses esforços culminaram em um fluxo constante de desculpas coletivas em nome do Islã. Quando um muçulmano no Brasil ou na Líbia reage a uma crise de reféns em Sidney na Austrália, condenando a violência em nome do Islã, e tentando defender o Islã e negando a militância, a pergunta é, por que? Porque a mídia faz com que os muçulmanos se sintam responsáveis por qualquer coisa feita em nome do Islã, até mesmo por uma pessoa desequilibrada? Porque os membros de outras religiões não são responsabilizados pelos mesmos padrões? Porque os cristãos suecos não são questionados para explicar e se desculpar sobre o comportamento do Exército de Resistência Senhor de Uganda, ou os judeus argentinos a explicarem diariamente a violência sistemática e o terror continuados por judeus extremistas em jerusalém e na Cisjordânia?
Desde que Francis Fukuyama declarou o “Fim da História” em 1992 - revelando que os livres mercados e as “democracias liberais” reinariam supremos para sempre - seguido pela suposta visão contrastante de Samuel Huntington, mas ainda assim igualmente pretensiosa, do “embate das civilizações e a necessidade de “refazer a ordem mundial”, uma nova indústria intelectual envolveu muitos em Washington, Londres e outros lugares. Uma vez que a Guerra Fria havia terminado triunfante com um senso inflado de validação política, o Oriente Médio se tornou o novo quintal para ideias sobre domínio e aparatos militares. Desde então, tem sido uma guerra aberta, instigada por ou envolvendo vários poderes ocidentais. Foi uma guerra prolongada e multi-dimensional: uma guerra destrutiva no chão, uma guerra econômica (bloqueios em uma mão e globalização e exploração do livre mercado na outra), invasão cultural (que tornou o ocidentalismo equivalente à modernidade); concluída com uma propaganda de guerra massiva mirando a religião principal do Oriente Médio: o Islã. A guerra ao Islã foi particularmente vital, pois parecia unificar uma gama de intelectuais ocidentais, conservadores, liberais, religiosos e seculares. Tudo feito por boas razões: – Islã não é somente uma religião, mas um modo de vida. Demonizando o Islã, você demoniza tudo ligado à ele, incluindo é claro, os muçulmanos. – A vilificação do Islã a qual levou a uma massiva Islamofobia liderada pelo ocidente, ajudou a validar as ações dos governos ocidentais, violentos e abusivos. A desumanização dos muçulmanos se tornou uma arma essencial na guerra. – Também foi estratégico: odiar o Islã e todos os muçulmanos é uma ferramenta bem flexível que tornaria as sanções e intervenções militares possíveis em qualquer lugar onde o ocidente tenha interesses políticos ou econômicos. Odiar o Islã se tornou um grito uníssono desde advogados de sanções no Sudão a grupos neo-nazis anti imigrantes na Alemanha e em vários outros lugares. O problema não é mais os meios violentos usados para alcançar dominação política e controle dos recursos naturais, mas, magicamente, tudo
foi reduzido a uma única palavra: Islã; ou, no melhor, Islã e mais alguma coisa: liberdade de expressão, direitos das mulheres, e por aí vai. Portanto, não foi surpresa ver os likes de Ian Black comentando no Guardian, horas depois do atentado contra Charlie Hebdo em Paris, com a linha de inicio: “Sátira e Islã não sentam bem juntos..” Nenhuma palavra sobre o exército francês e as intervenções militares no Oriente Médio; seu papel destrutivo na Síria; sua liderança na guerra na Líbia; sua guerra no Mali, e por aí vai. Nenhuma palavra sobre a declaração recente de Hollande sobre estar “pronto” para bombardear os rebeldes na Líbia, mesmo tendo sido feita alguns dias antes do atentado. Claro, a sátira pornográfica de Charlie Hebdo e seu alvo no Profeta Mohammed foi mencionado, mas pouco foi dito, por Black, ou pelos muitos outros que foram rápidos em ligar o assunto ao “Islã do século 7”, às guerras hediondas e suas manifestacoes pornográficas de tortura, estupro e outros atos; atos que vitimaram milhões de pessoas; muçulmanos. Ao invés, é sobre a arte ocidental e a intolerância muçulmana. A linha fi na foi: sim, de fato, é um “embate de civilizações.” Algum desses intelectuais parou para pensar que talvez, só talvez, as respostas violentas aos símbolos islâmicos degradados refl etem um sentimento politico real, por exemplo, um sentimento coletivo de humilhação, dor e racismo que se estende a todos os cantos do globo? E que é natural que a guerra que é constantemente exportada do ocidente para o resto do mundo, possa ser ultimamente exportada de volta para as cidades do ocidente? Não é possível que os muçulmanos estejam com raiva de algo muito mais profundo do que a arte sem gosto de Charlie Hebdo? Evitar a resposta irá atrasar a tentativa de achar uma solução, a qual deve começar com o fi m do intervencionismo ocidental no Oriente Médio. Tradução de Isabela Palhares
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Charlie Hebdo: Ironia e tragédia Alejandro Nadal – La Jornada Aqueles que promovem a guerra contra o terror e os que semearam o terrorismo por todos os cantos do mundo estão tentando se apropriar dos ataques. A luta para se apropriar de um duelo político tem longa trajetória, sobretudo quando o luto tem origem em um crime. Plutarco narra, em Vidas paralelas, como, depois do assassinato de César, no Senado romano, as distintas facções batalharam para ocupar o vazio que engendra o desolamento público para se consolidar no poder. Cássio e Brutus disputam a aflição popular com Antônio, mas este conseguiu com sua elegia fúnebre colocar o povo de Roma contra os assassinos 38 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
de César e desencadear uma guerra civil. Um paralelismo pode ser traçado com os esforços para recuperar espaços públicos após o ataque contra a Charlie Hebdo. Esta sempre foi uma revista irreverente com o poder, militar ou econômico, iconoclasta com todos os símbolos de hierarquias, laicas ou religiosas. É e foi inimiga do racismo e da discriminação em todas suas manifestações. Sempre lutou contra as ditaduras e a arbitrariedade, o poderio militar e o interven-
“A blasfêmia não é uma das restrições, como deixa claro a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789” cionismo neocolonial. Mas agora, em pleno duelo social, buscam de todas as formas se apropriar dos símbolos e bandeiras que acompanharam a Charlie em sua luta. Estão buscando instrumentalizar a tragédia para promover o terrorismo de Estado. Hoje, corre-se o risco de transformar tudo isto em um episódio mais da luta contra o terror e do suposto choque entre civilizações. A concentração em Paris, no domingo passado, teve dois públicos. No primeiro, o povo e suas organizações, sindicatos, associações civis, manifestando repúdio ao covarde assassinato dos redatores da Charlie Hebdo e dos reféns do metrô de Paris. Muitos deles seguiram de perto a épica luta do semanário e de seu predecessor, Hebdo HaraKiri, desde 1969. Luta a partir da esquerda contra o despotismo, exploração, engano e intimidação. Mas, naquele dia, marcharam em Paris também chefes de Estado e líderes políticos de partidos e organizações que sempre abriram as portas para a guerra, para o comércio de armas e para o capital financeiro. Marcharam lado a lado Merkel, Rajoy e Renzi, chefes da austeridade neoliberal que atualmente destrói a Europa. Não faltaram Netanyahu e outros amigos do militarismo. Também se somaram a eles alguns notáveis como guardiões da ordem moral burguesa e da obesa hipocrisia dos bons costumes, amigos do racismo e da descriminação. Faltaram somente Marine Le Pen e os neonazistas para completar o quadro. Outros, nem sequer tiveram que viajar a Paris para explorar o momento. Em Atenas, o primeiro-ministro aproveitou a oportunidade para fazer investidas contra o Syriza por sua postura sobre a imigração. Do México, o governo manifestou seu pesar: deve saber que isso não anula sua grave responsabilidade nos assassinatos (Tlatlaya) e desaparecimentos (Ayotzinapa).
A ironia é brutal: os inimigos da Charlie Hebdo estão lutando para disputar o duelo, os que promovem a guerra contra o terror e os que semearam esta praga por todos os cantos do mundo. Criticou-se a imprudência dos caricaturistas da Charlie Hebdo. Mas é preciso responder com uma reflexão política, porque é disso que estamos falando, de política, não de bons costumes ou de etiqueta. Por que é tão importante a liberdade de expressão? A resposta é clara: a liberdade de expressão é irmã gêmea da liberdade de consciência, e as demais liberdades carecem de sentido sem elas. Em particular, sem liberdade de expressão, a liberdade de associação política fica sem sentido. Não é exagero afirmar que a liberdade de consciência e a liberdade de expressão são as mais importantes do catálogo de liberdades republicanas. Por isso, os limites da liberdade de expressão são apenas três: a não incitação à violência ou um crime e a difamação. A blasfêmia não é uma das restrições, como deixa claro a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Na imprensa internacional, sobretudo no mundo anglo-saxão, a Charlie Hebdo tem sido apresentada como um veículo obstinado em ridicularizar o fundamentalismo islâmico, como se este tivesse sido seu único trabalho. Nada mais afastado da verdade. Os primeiros inimigos da Charlie foram o fascismo, o racismo, o neocolonialismo, o militarismo e a pena de morte. O fanatismo religioso e seu apoio hipócrita a estruturas de exploração esteve sempre em seu catálogo de inimigos a vencer, mas não é o único nesta lista. O luto público é a parteira de uma análise política fraca porque a dor e a sede de vingança escurecem o raciocínio e tornam a racionalização difícil. Por isso, o oportunismo encontra nas lamentações um terreno fértil para seus estratagemas. Hoje, mais do que nunca, é necessária uma análise política cuidadosa. A tragédia em Charlie Hebdo não é parte dessa farsa chamada guerra contra o terror, nem de um suposto choque de civilizações. Tradução de Daniella Cambauva 39
França: O mais perigoso é a islamofobia Santiago Alba Rico – Rebelión Somente os fascistas matam para impor seriedade. Por isso é urgente alertar contra a islamofobia, para evitar a vitória do que os assassinos querem. O atentado fascista em Paris contra a redação da revista semanal “Charlie Hebdo”, que arrebatou a vida de 12 pessoas, entre elas as de quatro cartunistas, Charb, Cabú, Wolinsky e Tignous, deixa uma dupla ou tripla sensação de horror. Ela é agravada por uma espécie de eco amargo e sujo, além de uma sombra de ameaça iminente e geral. Há, sem dúvidas, o horror da matança por parte de assassinos que, independentemente de suas motivações ideológicas, situaram a si próprios à margem de qualquer ética comum, e por isso mesmo fora de todo marco religioso em seu sentido mais rigoroso e preciso. Mas há também o horror pelo fato de suas vítimas se dedicarem a escrever e a desenhar. Não é que alguém não posso prejudicar escrevendo e desenhando – em seguida falaremos disso –; é que escrever e desenhar são tarefas de uma longa tradição histórica compartilhada
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que se situa no extremo oposto da violência; em se tratando da sátira e do humor, ninguém nos parece mais protegido do que aquele que nos faz rir. Em termos humanos, sempre é mais grave matar o bobo da corte do que o rei, porque o bobo da corte diz o que todos queremos ouvir – ainda que seja improcedente ou até mesmo hiperbólico – enquanto os reis falam somente de si mesmos e de seu poder. Quem mata um bufão mata a própria humanidade. Também por isso os assassinos de Paris são fascistas. Somente os fascistas acreditam que existem objetos não cômicos ou não ridicularizáveis. Somente os fascistas matam para impor seriedade. Porém, há ainda um terceiro elemento de horror que tem menos a ver ainda com o ato do que com suas consequências. Agora mesmo – confesso – é o que mais medo me dá. E é urgente advertir. A urgência não é em impedir um crime
que já não podemos impedir; também não é condenar os assassinos. Isso é normal e decente, mas não é urgente. Também não é, claro, esbravejar contra o Islã. Pelo contrário. O que é verdadeiramente urgente é alertar contra a islamofobia, exatamente para evitar o que os assassinos querem – e já estão conseguindo – provocar: a identificação ontológica entre o Islã e o fascismo criminoso. A grande eficácia da violência extrema tem a ver com o fato de que se apaga o passado, o que não pode ser evocado sem justificar de alguma maneira o crime; tem a ver com o fato de que a violência é atualidade pura, e a atualidade pura está sempre carregada do pior futuro imaginável. Os assassinos de Paris sabiam muito bem em que contexto estavam perpetrando sua infâmia e que efeitos produziriam. O problema do fascismo e de sua violência atualizadora é que se trata sempre de uma resposta. O fascismo está sempre respondendo; todo fascismo se alimenta de sua legitimação reativa em um marco social e ideológico no qual tudo é resposta e tudo é, portanto, fascismo. O contexto europeu (pensemos na Alemanha anti-islâmica destes dias) é a de um fascismo ascedente. Na França, concretamente, este fascismo branco e laico tem alguns protetores intelectuais de muito prestígio que, à sombra da Frente Nacional de Le Pen, agitam o ambiente a partir de púlpitos privilegiados com base no pressuposto, anunciado com falso empirismo e autoridade midiática, de que o Islã é um perigo para a França. Pensemos, por exemplo, no último romance do grande escritor Houellebecq, “Submissão” (tradução literal do termo árabe “islã”), em que um partido islâmico ganha da Frente Nacional nas eleições de 2021 e impõe a “charia” na pátria das luzes. Ou pensemos no grande êxito das obras do ultradireitista Renaud Camus e do jornalista político do jornal “Le Figaro” Eric Zemour. O primeiro é autor de “Le grand remplacement”, em que se defende a tese de que o povo francês está sendo “substituído” por outro, neste caso – obviamente – composto por muçulmanos alheios à história da França. O segundo, por sua vez, escreveu “O suicídio francês”, um grande sucesso de vendas que reabilita o general Petain e descreve a decadência do estado- nação, ameaçado pela traição
“O problema do fascismo e de sua violência atualizadora é que se trata sempre de uma resposta. O fascismo está sempre respondendo” das elites e pela imigração. Faz alguns dias que o escritor Edwy Plenel, no “Le Monde”, referia-se a estas obras como depósito de uma “ideologia assassina” que “está preparando a França e a Europa para uma guerra”: uma guerra civil, diz - “da França e da Europa contra elas mesmas, contra uma parte de seus povos, contra esses homens, essas mulheres, essas crianças que vivem e trabalham aqui e que, graças às armas do preconceito e da ignorância, foram previamente construídos como estrangeiros em razão de seu nascimento, sua aparência ou suas crenças”. Este é o fascismo que estava já presente na França e que agora “reage” - puro e presente – diante da “reação” - pura atualidade assassina – dos islâmicos fascistas de Paris. Dá muito medo pensar que, às 7 da noite, enquanto escrevo estas linhas, o trending tipic mundial no Twitter, após o tranquilizador e emocionante “Je suis Charlie”, é o aterrorizante “matar todos os muçulmanos”. A islamofobia tem tanto fundamento empírico – nem mais nem menos – do que o islamismo jihadista; os dois, de fato, são fascistas reativos que se ativam reciprocamente, incapazes de fazer essas distinções que caracterizam a ética, a civilização, o direito: entre crianças e adultos, entre civis e militares, entre reis e bobos da corte, entre indivíduos e comunidades. “Mate todos os infi éis” é contestado e precedido por “mate todos os muçulmanos”. Mas há uma diferença. Enquanto se exige que todos os muçulmanos do mundo condenem a atrocidade de Paris e todos os dirigentes políticos e religiosos do mundo muçulmanos condenem, sem exceções, o ocorrido, o “mate todos os muçulmanos” é justificado de alguma forma por intelectuais e políticos que legitimam com sua autoridade institucional e midiática a criminalização de cinco milhões de franceses muçulmanos 41
(e de outros milhões mais em toda a Europa). Essa é a diferença – sabemos isso historicamente – entre o totalitarismo e o delírio marginal: o totalitarismo é o delírio naturalizado, institucionalizado, compartilhado ao mesmo tempo pela sociedade e pelo poder. Se, além disso, nos lembrarmos de que a maior parte das vítimas do fascismo jihadista no mundo também são muçulmanas – e não ocidentais –, deveríamos talvez medir melhor nosso senso de responsabilidade e de solidariedade. Pinçados entre dois fascismos reativos, os perdedores são os de sempre: os imigrantes, os esquerdistas, os bobos da corte, as populações dos países colonizados. Uma das vítimas dos islâmicos, por certo, era policial. Chamava-se Ahmed Mrabet e era muçulmano. Do jihadismo fascista, não espero senão fanatismo, violência e morte. Ele me repugna, mas me dá menos medo do que a reação que precede – valha o paradoxo einsteniano – seus crimes. O “matai todos os muçulmanos” está, de alguma forma, justificado pelos intelectuais que “preparam a guerra civil europeia” e pelos próprios políticos que respondem aos crimes com discursos populistas religiosos laicos. Quando Hollande e Sarkozy falam de “um atentado aos valores sagrados da França” para se referir à liberdade de expressão, estão raciocinando da mesma forma que os assassinos dos caricaturistas da “Charlie Hebdo”. Não aceito que um francês me diga que defender os valores da França implica necessariamente defender a liberdade de expressão. Por mais laica que se pretenda, essa lógica é sempre religiosa. Não temos que defender a França; temos que defender a liberdade de expressão. Porque defender os valores da França é talvez defender a revolução francesa, mas também o Termidor; é defender a Comuna, mas também os fuzilamentos de Thiers; é defender Zola, mas também o tribunal que condenou Dreyfus; é defender Simone Weil e René Char, mas também o colaboracionismo de Vichy; é defender Sartre, mas também as torturas da OAS e o genocídio colonial; é defender maio de 68, mas também os bombardeios de Argel, Damasco, Indochina e, mais recentemente, Líbia e Mali. É defender agora, frente ao fascismo islâmico, a igualdade diante da lei, a democracia, a liberdade 42 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
de expressão, a tolerância e a ética, mas também defender a destruição de tudo isso em nome dos valores da França. Dá muito medo ouvir falar dos “valores da França”, “da grandeza da França”, da “defesa da França”. Ou defendemos a liberdade de expressão ou defendemos os valores da França. Defender a liberdade de expressão – e a igualdade, a fraternidade e a liberdade – é defender a humanidade inteira, viva onde viver ou acredite no Deus em que acreditar. A frase “os valores da França”, pronunciada por Le Pen, Hollande, Sarkozy ou Renaud Camus não se distingue em nada da frase “os valores do Islã”, pronunciada por Abu Bakr Al-Baghdadi. São, na realidade, o mesmo discurso frente a frente, legitimado por sua própria reação assassina, que bombardeia inocentes de um lado e metralha inocentes do outro. Perdem os de sempre, os que perdem quando dois fascismos não deixam nem o menor resquício para o direito, a ética e a democracia: os de baixo, os do lado, os pequenos, os sensatos. Disso sabemos muito na Europa, cujos grandes “valores” produziram o colonialismo, o nazismo, o stalinismo, o sionismo e o bombardeio humanitário. Dois mil e quinze mal começa. Em 1953, “refugiado” na França, o grande escritor negro Richard Wright escrevia contra o fascismo que “temia que as instituições democráticas e abertas não sejam mais do que um intervalo sentimental que precede o estabelecimento de regimes inclusive mais bárbaros, absolutistas e pós-políticos”. Proteger-nos do fascismo islâmico é proteger nossas instituições abetas e democráticas – ou o que sobrou delas – do fascismo europeu. A islamofobia fascista, na Europa e nas “colônias”, é agrande fábrica de islâmicos fascistas e tanto uma como outra são incompatíveis com o direito e a democracia, os únicos princípios – e não “valores” – que ainda poderiam nos salvar. Boa parte de nossas elites políticas e intelectuais estão mais interessadas no contrário. Descansem em paz nossos alegres e valentes companheiros bufões da “Charlie Hebdo”. E que ninguém em seu nome levante a mão contra um muçulmano nem contra o direito e a ética comuns. Essa sim seria a verdadeira vitória dos fascismos dos dois lados.
O riso dos outros: Há limites para o humor? Léa Maria Aarão Reis O documentário ‘o riso dos outros’ foi feito sob medida para ser visto, revisto e pensado neste momento pósatentado ao charlie hebdo. Um filme documentário brasileiro chamado O riso dos outros, de Pedro Arantes, realizado há dois anos, foi feito sob medida para ser visto, revisto e pensado neste momento pós-atentado ao Charlie Hebdo. Ideologias se desfazem em tons de cinza, ou se enfraquecem, e debates tensos dividem opiniões infl amadas - às vezes até surpreendentes - discutindo o direito da liberdade de expressão humorística irrestrita e absoluta de um lado, e, do outro, o dever de respeitar limites – mas quais? - para fazer humor, caricaturar, ironizar, desconstruir e, no nível mais pesado,
insultar o outro: o ‘diferente’. O filme do humorista Arantes, que vem de trabalhos no Canal Brasil e no Multishow, parece premonitório dos debates que viriam depois e estão aí agora, nas ruas encharcadas de medo, protestos e passeatas dos cidadãos e nos discursos cínicos de dirigentes de governos. Aqui, por motivos diversos daqueles europeus; mas medo é medo - de terroristas, assaltantes, estupradores, assassinos. E há também os terroristas de estado sobre os quais pouco, na mídia daqui, se fala. Produzido pela TV Câmara, O riso dos outros
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fez enorme sucesso nas redes sociais, na época em que foi lançado. Ele traz entrevistas com comediantes, humoristas, quadrinistas, acadêmicos, um deputado e escritores. O seu recorte é a comédia stand up, a que vem atraindo muitos da jovem nova geração de humoristas, nos rastros do trabalho inicial de Woody Allen. O doc foi o vencedor de licitação da TV Câmara para produção de trabalhos sobre ética. E acabou sendo um trabalho que reacende o debate sobre os limites do humor. Como tema central, a profissão do humorista e, dentro dela, o que seria o polìticamente correto. Os temas que se seguem, no filme, são consequência, mas nem por isto menos importantes. É o olhar do humorista dirigido à tragédia. O diálogo do humor com os preconceitos. E talvez o que mais provoca: “Há sempre uma dose de crueldade no humor” como diz o cartunista Laerte, dos mais brilhantes humoristas brasileiros, teórico e analista do seu ofício. “Olhar para a tragédia e fazer humor depende da ausência de compaixão,” ele diz. O colega André Dahmer tem outra visão: “Como não ser ofensivo fazendo humor?” “Existem maneiras de fazer humor sem humilhar os outros,” diz um. E outro: “O humor sempre namorou com a truculência e com a violência.” Em nome do humor toda piada será válida? “Chamar um negro de macaco não é e nem nunca foi engraçado”, replica um entrevistado. Na época, Pedro Arantes declarou, em entrevista, que tinha consciência de que estava mexendo em um vespeiro ao levantar esta questão: até onde vai a liberdade – ou o direito - de expressão através do humor? No filme, ele conversa com a blogueira feminista Lola Aronovich e Rafinha Bastos. Com Laerte, André Dahmer e Arnaldo Branco, o comediante Danilo Gentilli, deputado Jean Wyllis, escritor Antonio Prata, com Fernando Caruso, Ben Ladmer, Nancy People, Marília Meirelles, Hugo Possolo, e vários outros. “Eu acho,” disse ele, nessa entrevista de 2012: “que não existe tema proibido no humor. Agora, você tem que se cercar de cuidados para poder trabalhar com determinados assuntos.” A observação pode ser estendida e ampliada, do nível intelectual para o da segurança física, no caso 44 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
do Charlie Hebdo, atingido pela tragédia e pela violência talvez evitadas caso medidas de proteção mais rígidas tivessem sido adotadas para proteger e monitorar uma equipe de humoristas que trabalhavam com personagens de assunto altamente explosivo – os islamitas. “O que eu acho é que tem setores da sociedade que são mais organizados que outros,” observa Arantes. “Então, parece que fazer piada de anão é menos ofensivo do que fazer piada com negros. Mas a verdade é que os negros são um grupo muito melhor organizado historicamente do que o grupo dos anões. É só isso.” Além do fato de os primeiros contarem com recursos legais mais à mão para exigir retratação e punição, na justiça, do que os outros. “Em determinado momento, tal grupo histórico pode estar mais ou menos organizado, o que muda o quanto você pode falar dele. Por exemplo: hoje em dia, fazer piada de judeu é muito complicado. Mas 50 anos atrás era banal fazer piada com judeus, por mais pesada que fosse a piada. Então, se construiu uma questão que impediu as pessoas de fazer esse tipo de piada. Mas é tudo uma construção e só depende do tempo.” No mar de ofendidos, de intolerantes, de muita raiva e ódio, como agora, “sempre vai haver alguém ofendido quando se faz uma piada. A questão é como a gente negocia essa ofensa historicamente,” diz Laerte. Sempre haverá ofendidos nas multidões de crentes porque, afinal, temos todos, religiosos ou não; iconoclastas, blasfemos, céticos, progressistas, ateus, reacionários e conservadores, cínicos ou indiferentes, temos todos uma fé. Duas observações de Arantes permanecem, a propósito de O riso dos outros, um filme (50 minutos de duração) que não deve deixar de ser (re)visto. Primeira: “Ninguém deve ficar sentindo culpa porque riu de alguma coisa.” Segunda: “Às vezes você vai rir de alguma coisa e depois vai pensar que não deveria ter feito isso. (Mas) não é para ninguém ficar sentindo culpa porque riu de alguma coisa. Não precisa se culpar; basta refletir.” A observação da comediante stand up Marcela Leal pode ser uma boa conclusão: “As pessoas querem rir e liberar endorfina porque a vida delas é um saco”.
Como pensar para além do medo Martín Granovsky Em meio à dor, à incerteza e à angústia produzidas pelo atentado contra a Charlie Hebdo e outros assassinatos, surgem reflexões. Reproduzimos algumas delas Formular problemas sem desespero para encontrar respostas fáceis e rápidas é um exercício que pode ser feito revisando a imprensa internacional, com seus dados e seus matizes. O que é o terrorismo. O brasileiro Leonardo Boff escreveu uma coluna em seu site. Após lembrar que “os Estados Unidos e seus aliados ocidentais fizeram no Iraque uma guerra preventiva com uma incontável mortandade de civis”,
analisa o atentado de Paris “como resultado dessa violência e não como causa originária”. De fato, segundo Boff, consiste em instalar o medo em toda a França e na Europa em geral. O objetivo do terrorismo seria “ocupar as mentes das pessoas e mantê-las reféns do medo”. Para o teólogo brasileiro, “o significado principal do terrorismo não é ocupar territórios, como fizeram os ocidentais no Afeganistão e no Iraque, mas ocupar as mentes”. 45
Se eles conseguirem, esta será sua vitória sinistra. Quer “ocupar as mentes das pessoas, mantê-las desestabilizadas emocionalmente, obrigá-las a desconfiar de qualquer gesto ou de pessoas estranhas”. Isso se faz segundo a estratégia por meio da qual “os atos têm que ser espetaculares, porque se não, não causariam comoção generalizada” – ainda que sejam odiados, devem provocar admiração pela sagacidade, “devem sugerir que foram minuciosamente preparados”, devem ser imprevisíveis para dar a impressão de que são incontroláveis, devem provocar medo e distorcer a percepção da realidade. A definição sintética de terrorismo por Boff é esta: “Toda violência espetacular, praticada com o propósito de ocupar as mentes com o medo e o pavor”. A compreensão como dever. A coluna leva este título: “Entender é o mínimo que podemos fazer pelos mortos”. É assinada por Hari Kunzru e foi publicada no The Guardian em 8 de janeiro. Kunzru disse que não espera o fim da atual situação antes de uma geração e de uma grande mudança geopolítica, sempre, claro, que haja a decisão de interromper a escalada. Fará falta, no mínimo, que os jovens que hoje preferem a abstração da morte a uma vida com sentido mudem, e que os poderosos que financiam as ações dos poderosos acabem; que não haja mais imigrantes encurralados e que os supostos “realistas” deixem de aumentar a intensidade do enfrentamento bélico. O colunista escreve: “Sobretudo, não quero escutar qualquer coisa sobre a barbárie. A caricatura de um jihadista como homem medieval animado por antigas paixões pode ser confortável para os que colocam a si mesmos na civilização e pousam com um Voltaire, mas é pouco para entender qualquer coisa”, e “entender é o mínimo que podemos fazer para honrar os mortos”. Para Kunzru, em parte o ataque à Charlie Hebdo tenta aumentar o preço por exercer a liberdade de expressão, e é preciso ter em conta que desde a condenação de Salman Rushdiem, a sátira religiosa passou a se tornar rara, “mas o ataque também procurou aprofundar contradições, endurecer posições e polarizar opiniões, empurrando a França e o resto do mundo para fora do cenário das complexidades e dos matizes e em direção à sequência binária da guerra”. Nesse âmbito binário, 46 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
“Fará falta, no mínimo, que os jovens que hoje preferem a abstração da morte a uma vida com sentido mudem, e que os poderosos que financiam as ações dos poderosos acabem; que não haja mais imigrantes encurralados e que os supostos “realistas” deixem de aumentar a intensidade do enfrentamento bélico” para o autor, a autorização de George Bush para torturar não apenas não garantiu a segurança de ninguém como se transformou “na fonte mais eficiente para recrutar militantes da jihad”. Sem seu olhar absoluto, o jihadismo resultaria em nada. O risco é atuar no espelho. Burocratas antilibertários. No The Guardian, Simon Jenkins pediu para se abandonar o medo. Escreveu que o terrorismo é uma técnica de conflito, não um objetivo. É uma arma, não uma ideologia. O terrorismo contra a Charlie Hebdo buscou aterrorizar os demais e reduzir o Estado francês a uma condição de paranoia. “Quiseram fazer com que gente comprometida com as liberdades cometesse ações contra elas”. Jenkins disse que, nos últimos 25 anos, o Ocidente interpretou mal o significado do crescimento do sentimento fundamentalista no mundo muçulmano e não entendeu o que estava por trás dos movimentos como a Irmandade Muçulmana, no Egito, os talibãs, no Afeganistão, os Aiatolás, no Irã, Bin Laden e a Al Qaeda e, mais recentemente, o ISIS no Iraque e na Síria. Alguns desses movimentos substituíram com califados regimes seculares tradicionalmente sólidos, como os baathistas. De início, a dinâmica gerada por esses movimentos, e inclusive as ameaças contra os interesses comerciais ocidentais, ficaram circunscritas ao território regional. Mas logo tudo mudou, e em grande medida porque o petróleo sempre precisa ser vendido. Logo após o ataque às torres gêmeas, a caracterização da retaliação como “guerra”
piorou as coisas. Tal como advertiu Tom Paine: “O castigo sanguinário corrompe o ser humano”. Agora, os terroristas buscam aumentar a histeria, algo que compartilham com “os burocratas da indústria antilibertária”. No entanto, para Jenkins, é importante o fato de que “o terrorismo não é um crime comum”, mas que sua efetividade depende das consequências. “Pode matar pessoas e danificar a propriedade. Pode impor um custo. Mas não pode ocupar um território ou derrubar um governo. Inclusive para provocar o medo, requer a colaboração do resto, desde os meios de comunicação até os políticos”. Por isso, a saída seria não exagerar no tom, não mostrar medo, e tirar a satisfação dos terroristas. “É a única maneira de derrotar o terrorismo”. Guantánamo. L’Obs e Rue 89, duas publicações francesas, publicaram uma nota sobre o que definem como “cumplicidade francesa” com a prisão norte-americana de Guantânamo, onde os Estados Unidos não apenas torturaram prisioneiros como mantiveram sob custódia muitos detidos que haviam sido declarados inocentes nos tribunais. Citando telegramas revelados pelo Wikileaks, informaram que, inclusive, interrogadores franceses participaram das sessões. Barack Obama havia prometido fechar a prisão quando assumiu seu primeiro
mandato, em janeiro de 2009. Não existe uma “comunidade muçulmana”. No Huffington Post, o acadêmico especialista em temas islâmicos Oliver Roy constata que existem duas narrativas. Uma sustenta que o problema é o islã da França, com sua doutrina sobre a preeminência da adesão à fé sobre a adesão à nacionalidade francesa. Outra sustenta que o problema são as condições de marginalidade de muitos dos imigrantes ou filhos de imigrantes. Roy diz que ambas as narrativas partem de uma limitação: pressupõem a existência de uma “comunidade muçulmana” na França da qual os terroristas seriam uma espécie de “vanguarda”. Ele coloca em dúvida essa suposta verdade. Defende que muitos dos jovens radicalizados não apenas não são uma vanguarda do restante, mas também se opõem ao islã professado por seus pais e acreditam em um islã a partir da periferia do mundo muçulmano. Não estão relacionados às mesquitas locais e, quando viajam à Síria, vão escondidos da família. Praticam uma radicalização mutualmente estimulada pela internet em busca de uma jihad global. “Não estão interessados nas preocupações concretas do mundo muçulmano, como a Palestina”, opina Roy. “Não buscam a islamização da sociedade em que vivem, mas a realização de sua fantasia doente de heroísmo, como os assassinatos na Charlie Hebdo, 47
quando disseram ter sido convocados pelo profeta Mohammed”. Os muçulmanos estão mais integrados do que se supõe, fato que parece comprovado até pela identidade de Imad Ibn Ziaten, o soldado francês morto por Mohamed Merh em 2012, ou a do oficial Ahmed Merabet, assassinado pelos terroristas na Charlie Hebdo. Para Roy, o ruim é que “no lugar de serem citados como exemplos, esses casos aparecem como contraexemplos”, o que seria falso: “Na França, existem mais muçulmanos no exército, na polícia e na gendarmaria do que na Al Qaeda, e isso sem mencionar a administração pública, os hospitais, a justiça ou o sistema educacional”. O outro elemento que, para Roy, é subestimado, é o nível massivo de rechaço dos atentados por parte dos muçulmanos nas redes sociais. Ao mesmo tempo, não existe um “voto muçulmano”, não existe um lobby muçulmano e não há um partido muçulmano. As escolas muçulmanas não passam de uma dezena. Não há uma “comunidade muçulmana”, mas sim uma população muçulmana. Segundo Oliver Roy, “admitir esta simples verdade seria um grande antídoto contra a histeria, a atual e a que virá”. O lepenismo. No Le Nouvel Observateur, Renaud Dély argumenta que qualquer cidadão deve ser bem recebido se participar da manifestação convocada em Paris, mas que a Frente Nacional de Marine Le Pen não tem direito a participar como tal porque não é republicana. “Desde sua origem, e ainda hoje, a Frente Nacional vai contra o universalismo dos ideais republicanos”, escreve. “Categoriza e hierarquiza as populações segundo suas origens, distingue entre os que chama de ‘franceses de papel’ e os que estariam por cima em razão de sua ascendência e de sua ‘preferência nacional’, recentemente rebatizada ‘prioridade nacional’, um princípio discriminatório que abarca ajudas sociais, moradia e emprego. Isso é claramente antirrepublicano”. As raízes do terrorismo. Uma pessoa conhecida como Hermano Rachid subiu no YouTube um chamado público a Obama. Foi visto por 500 mil pessoas. Já não está disponível por problemas de direito autoral, mas o colunista do The New York Times Thomas Friedman o citou em uma nota sobre a organização Estado Islâmico, também conhecida como ISIS ou ISIL, escrita antes do 48 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
“Val pediu uma carta de desculpas, mas Siné disse: ‘Antes disso, eu corto meu saco’. Não precisou fazê-lo porque ficou fora da Charlie Hebdo. A nota de Lalami termina assim: ‘Não sei qual dos relatos em torno da Charlie Hebdo é verdadeiro. Talvez nenhum, ou talvez todos. Estou cansada. Cansada do fato de que desenhar uma caricatura de Mohammed causa mais ira do que o derramamento de sangue’” atentado contra a Charlie Hebdo. Rachid dizia: “Senhor presidente, se o senhor quer de verdade combater o terrorismo, então combata suas raízes. Quantos xeiques da Arábia Saudita estão pregando o ódio? Quantos canais islâmicos estão doutrinando as pessoas e as ensinando o valor da violência? Quantas escolas islâmicas estão produzindo gerações de docentes e estudantes que acreditam na jihad e no martírio como forma de combater os infiéis?”. Segundo Friedman, o ISIS tenta encabeçar o islã recorrendo às distintas frustrações do mundo muçulmano e defendendo a visão puritana imperante nas madrassas, as escolas confessionais da Arábia Saudita. Mas, ao mesmo tempo, as redes sociais mostram o surgimento de um grande debate de ideias sobre o ISIS, sobre sua doutrina e inclusive sobre o islã em geral, e em torno do direito secular a não seguir as leis de origem religiosa. Sauditas. A Anistia Internacional informou que o blogueiro Raif Badawi, acusado de insultar o islã, foi sentenciado a mil chibatadas e recebeu as primeiras cinquenta na última sexta-feira. A rigor, o que Badawi havia feito foi abrir um site chamado Free Saudi Liberals – Progressistas Sauditas Livres. A página foi fechada. Os professores sabem pouco sobre o islã.
O Rue 89 entrevistou o sociólogo das religiões Olivier Bobineau. “O problema não é o choque de civilizações, mas o choque de ignorâncias”, provocou o especialista, que acaba de publicar o livro A laicidade e as religiões no espaço público. Bobineau disse que, para lutar contra a cruz de ignorâncias, existe um conteúdo, o laicismo, e um método, falar colocando-se no lugar do outro. Na opinião do sociólogo, é incorreto pensar a escola como um espaço no qual cada aluno deixa de fora sua identidade, seu corpo, suas ideias e seus sentimentos. Nesse caso, qualquer adolescente poderá ir atrás de quem quer que ofereça um sentido a sua vida em um espaço diferente da sala de aula. Bobineau opinou que os adolescentes sabem muito pouco do islã e que, além disso, a socialização depende de uma política escolar, uma política familiar e uma política para as ruas. Nas ruas, é preciso garantir espaços de encontro e locais públicos abertos a todos. Nas famílias, é fundamental o problema de garantir moradias sem aglomerações. “A Igreja Católica tem em sua tradição acompanhar os casais. É preciso pegar essa tradição e transformá-la em uma prática laica”. Em todos os âmbitos, é preciso ajudar para que a violência simbólica tenha sua catarse e sua racionalidade, para que não se transforme em violência física. Cansaço. A romancista norte-americana nascida no Marrocos Laila Lalami, em uma polêmica nota publicada pelo The Nation, o semanário progressista dos EUA, disse que resiste às absolutizações observadas depois do atentado à Charlie Hebdo. Lê que tudo é produto do choque de civilizações. Que se trata de um ataque ao último bastião da expressão livre. Que os líderes das populações muçulmanas ficaram calados. Que a França falhou na integração dos filhos dos imigrantes do Magreb. Que tudo é porque a França enviou tropas a países muçulmanos. Que há dois pesos e duas medidas. Disposta a colocar os temas em discussão, não teme em dizer, por exemplo, que no passado a Charlie Hebdo publicava desenhos satíricos de todo mundo, desde Jesus a Moisés, passando por Mohammed, pelo Papa, François Hollande, Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen, mas nos últimos anos aumentou a frequência das sátiras com personagens muçulmanos ou situações
como as quais viveram as estudantes sequestradas em 2014 na Nigéria pela organização islâmica violenta Boko Harum. Ainda que não repare na presença atual dos 1200 soldados franceses no contingente internacional que combate o Estado Islâmico, Lalamio observa que, quando Cherif Kouachi, um dos terroristas da Charlie Hebdo, entrou para as fileiras dos islâmicos radicais, a França se opôs à intervenção norte-americana no Iraque e não enviou tropas, apesar do pedido norte-americano. Simplesmente como um dado em meio à polêmica, a escritora lembra que satirizar figuras individualizadas ou gerais do islã não leva a qualquer condenação, mas que, para a legislação francesa, a sátira sobre o Holocausto levaria à condenação. O famoso desenhista Siné foi acusado pelo então diretor da Charlie Hebdo Philippe Val de ironizar quando o filho de Sarkozy se casou com Jessica Sebaoun-Darty, de origem judia, e diante dos rumores de que Sarkozy Jr. tivesse se convertido ao judaísmo, pressagiou para ele um futuro de bem-estar. Val pediu uma carta de desculpas, mas Siné disse: “Antes disso, eu corto meu saco”. Não precisou fazê-lo porque ficou fora da Charlie Hebdo. A nota de Lalamitermina assim: “Não sei qual dos relatos em torno da Charlie Hebdo é verdadeiro. Talvez nenhum, ou talvez todos. Estou cansada. Cansada do fato de que desenhar uma caricatura de Mohammed causa mais ira do que o derramamento de sangue. Cansada de que a intolerância leviana seja equiparada à crítica séria. Cansada do fato de que prover um contexto seja visto como dar desculpas. Também tenho medo pelos direitos de escritores e artistas. Medo pelos inocentes que sofrerão. Medo da legislação restritiva que virá. Tudo o que sei é que estamos todos juntos nessa. Devemos aceitar que não podemos andar pela vida sem ser ofendidos. Devemos aceitar que o direito à ofensa é uma parte fundamental do direito à liberdade de expressão. Mas também temos que aceitar que devemos assumir responsabilidades diante dos demais. Devemos falar contra o racismo, o sexismo e a intolerância em todas as suas formas. Usemos a razão, mas também nossos corações”.
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Para se entender o terrorismo contra o Charlie Hebdo de paris Colunista Leonardo Boff
O efeito deste atentado é instalar um medo generalizado. esse efeito é visado pelo terrorismo: ocupar as mentes das pessoas e mantê-las reféns do medo.
Uma coisa é se indignar, com toda razão, contra o ato terrorista que dizimou os melhores chargistas franceses. Trata-se de ato abominável e criminoso, impossível de ser apoiado por quem quer que seja. Outra coisa é procurar analiticamente entender porquê tais eventos terroristas acontecem. Eles não caem do céu azul. Atrás deles há um céu escuro, feito de histórias trágicas, matanças massivas, humilhações e discriminações, quando não, de verdadeiras guerras como as do Iraque e Afegasnistão que sacrificaram vidas de milhares e milhares de pessoas ou as obrigaram a ir para o exílio. Os USA e países europeus estavam presentes nesta guerra. Na França vivem alguns milhões de muçulmanos, a maioria nas periferias em condições precárias. Muitos, mesmo nascidos na França, são altamente discriminados a ponto de surgir uma verdadeira islamofobia. Logo após o atentado aos escritórios do Charlie Hebdo, uma mesquita foi atacada com tiros, um restaurante muçulmano foi incendiado e uma casa de oração islâmica foi atingida também por tiros. Trata-se de superar o espírito de vingança e 50 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
“Os USA e países europeus estavam presentes nesta guerra. Na França vivem alguns milhões de muçulmanos, a maioria nas periferias em condições precárias. Muitos, mesmo nascidos na França, são altamente discriminados a ponto de surgir uma verdadeira islamofobia. Logo após o atentado aos escritórios do Charlie Hebdo, uma mesquita foi atacada com tiros, um restaurante muçulmano foi incendiado e uma casa de oração islâmica foi atingida também por tiros”
de renunciar à estratégia de enfrentar a violência com mais violência ainda. Ela cria uma espiral de violência interminável, fazendo vítimas sem conta, a maioria delas inocentes. E nunca se chegará à paz. Se queres a paz prepara meios de paz, fruto do diálogo e da convivência respeitosa entre todos. Paradigmático foi o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos. A reação do Presidente Bush foi declarar a “guerra infinita” contra o terror e instituir o “ato patriótico” que viola direitos fundamentais dos cidadãos. O que os USA e aliados ocidentais fizeram no Iraque e no Afeganistão foi uma guerra moderna com uma mortandade de civis incontável. Se nestes países houvesse somente ampla plantação de tâmaras e de figos, nada disso ocorreria. Mas lá há muitas reservas de petróleo, sangue do sistema mundial de produção. Tal violência deixou um rastro de raiva, de ódio e de vontade de vingança em muitos muçulmanos vivendo em seus países ou pelo mundo afora. A partir deste transfundo, se pode entende que o atentado abominável em Paris é resultado desta violência primeira e não causa originária. Nem por isso se justifica. O efeito deste atentado é instalar um medo generalizado. Esse efeito é visado pelo terrorismo: ocupar as mentes das pessoas e mantê-las reféns do medo. O significado principal do terrorismo não é ocupar territórios, como o fizeram os ocidentais no Afeganistão e no Iraque, mas ocupar as mentes. A profecia do autor intelectual dos atentados de 11 de setembro, Osama Bin Laden, feita no dia 8 de outubro de 2001, infelizmente, se realizou: “Os EUA nunca mais terão segurança, nunca mais terão paz”. Ocupar as mentes das pessoas, mantê-las desestabilizadas emocionalmente, obrigá-las a desconfiar de qualquer gesto ou de pessoas estranhas, eis o objetivo essencial do terrorismo. Para alcançar seu objetivo de dominação das mentes, o terrorismo persegue a seguinte estratégia: 1 – os atos de terror têm de ser espetaculares, caso contrário, não causam comoção generalizada;
“Formalizemos um conceito do terrorismo: é toda violência espetacular, praticada com o propósito de ocupar as mentes com medo e pavor. O importante não é a violência em si, mas seu caráter de espetáculo, capaz de dominar as mentes de todos”. 2 – os atos, apesar de odiados, devem provocar admiração pela sagacidade empregada; 3 – os atos devem sugerir que foram minuciosamente preparados; 4 – os atos devem ser imprevistos para darem a impressão de serem incontroláveis; 5 – os atos devem ficar no anonimato dos autores (usar máscaras) porque quanto mais suspeitos, maior é o medo; 6 – os atos devem provocar permanente medo; 7 – os atos devem distorcer a percepção da realidade: qualquer coisa diferente pode configurar o terror. Basta ver alguns rolezinhos entrando nos shoppings e já se projeta a imagem de um assaltante potencial. Formalizemos um conceito do terrorismo: é toda violência espetacular, praticada com o propósito de ocupar as mentes com medo e pavor. O importante não é a violência em si, mas seu caráter de espetáculo, capaz de dominar as mentes de todos. Um dos efeitos mais lamentáveis do terrorismo foi ter suscitado o Estado terrorista que são hoje os EUA. Noam Chomsky cita um funcionário dos órgãos de segurança norte-americano que confessou: “Os USA são um Estado terrorista e nos orgulhamos disso”. Oxalá não predomine no mundo, especialmente, no Ocidente, este espírito. Aí sim, iremos ao encontro do pior. Somente meios pacíficos têm a força secreta de vencer a violência e as guerras. Essa é a lição da história e o conselho dos sábios como Gandhi, Luther King Jr. Francisco de Assis e Francisco de Roma. 51
A batalha de argel: Um fantasma sempre presente Léa Maria Aarão Reis A ‘batalha de argel’ mostra como muitos dos problemas que a europa está precisando resolver hoje são consequência do seu passado colonial.
Não há, praticamente, crítico de cinema nem jornalista de editoria internacional que não tenha escrito, ou ao menos não conheça o filme do italiano Gillo Pontecorvo, A Batalha de Argel (1966/Premio Leão de Veneza), um dos clássicos mais admirados do cinema político. Do ponto de vista estrito, cinematográfico, o filme de Pontecorvo é obra prima de agilidade, ritmo, clareza e beleza plástica. É resultado da admirável fotografi a rústica, preto-e-branco, utilizada propositadamente para sublinhar a natureza dos cine jornais da época, da trilha musical perfeita de Enio Morricone e do roteiro emocionante que equilibra diálogos esclarecedores para o leigo com as cenas e sequências memo52 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
ráveis, das ações da Frente Nacional de Libertação da Argelia (a FLN) nas ruas, nos anos 50/60, e do povo árabe na luta para se libertar da opressão e da expropriação das suas terras. Uma colonização francesa que durou 130 anos. Tão contundente, volta e meia a situação mostrada pelo filme é evocada como consequência do mundo Sykes-Picot*, o período histórico da década dos anos 30 do século vinte, no qual as grandes potências ocidentais, França e Inglaterra, decidiram, numa cruel e insolente ação entre amigos, dividir o Oriente árabe e a África entre si, ao bel prazer dos interesses econômicos das suas corporações. Aí, a origem de todo tipo de terrorismo, seja de estado e das mais variadas formas de fundamenta-
lismo, reconhecida, dez anos atrás, até por um ministro britânico reacionário, das Relações Exteriores, Jack Straw. Candidamente ele declarou: “Muitos dos problemas que estamos precisando resolver, hoje, são consequência do nosso passado colonial”. La Batagllia dei Argeli mostra o confronto entre os árabes e as forças militares francesas. Entre elas, oito mil paraquedistas, os pará, com experiência na Indochina e na resistência aos nazistas, na Normandia e na Itália, como se vê no relato. Desembarcaram em Argel em 1957. “Entre eles, as brigadas dos temíveis ‘leopardos’ que lutariam para manter a ‘França africana” – ou como diziam os generais enviados para lá: ‘Para proteger as pessoas e a propriedade privada’ – ou seja, as terras roubadas dos árabes – e para isolar e destruir a Frente Nacional de Libertação. Mas a independência do país só ocorreu em 62. Apenas quatro anos depois, ainda sob o calor das lutas sangrentas, Pontecorvo fazia seu filme baseado no livro de Saadi Yacef, Lembranças da Argélia. Robert Fisk, um dos mais respeitados jornalistas europeus, correspondente de experiência notável, que vive no Líbano e é um dos melhores conhecedores e analistas da história do mundo árabe, conta (inclusive, aqui, em Carta Maior) que quando ouviu as primeiras notícias sobre o massacre aos jornalistas do Charlie Hebdo, imediatamente murmurou para ele próprio: ”Argélia...” Horas depois foram divulgadas as identidades dos assassinos: os irmãos Chérif e Said Kouachi eram de origem argelina. E mais: a pensar na idade da dupla, na casa dos 30 anos, deveriam ser filhos de cidadãos que presenciaram ou participaram das ferozes lutas pela independência argelina relatadas no filme, quando o terrorismo de ambas as partes era usado como recurso de dissuasão. Os pais dos Chérife poderiam, talvez, ter imigrado para a França por volta dessa época. Pouco ou nada se conhece sobre a origem mais remota dos dois, exceto informações sobre a infância em um orfanato francês. Parece, realmente, que uma ferida não fecha, 53 anos depois da independência do país do norte da África, entre a França e a Argélia, como aponta Fisk. Um fantasma ronda, relembrando o terror continuado das bombas carregadas em suas sacolas pelas mulheres árabes da Casbah de Argel e detonadas nos cafés franceses do bairro
“Quando ouviu as primeiras notícias sobre o massacre aos jornalistas do Charlie Hebdo, imediatamente murmurou para ele próprio: ‘Argélia...’ Horas depois foram divulgadas as identidades dos assassinos: os irmãos Chérif e Said Kouachi eram de origem argelina.” europeu - onde se dançava cumbias ao som das juke Box - e o terror de milícias e militares, até nas ruas de Paris não só contra argelinos, mas contra os árabes em geral. Os alvos, às vezes, eram marroquinos, caso do célebre episódio em que o dirigente de esquerda Ben Barka foi sequestrado, anos depois, já em 65, defronte de um cinema, em pleno dia, no Boulevard Saint Germain. Depois, foi assassinado. O corpo nunca foi encontrado. O atentado é atribuído aos agentes secretos franceses com a colaboração do Mossad e da CIA. O vigor de A Batalha de Argel é tal que, através dele, as lembranças emergem. O filme se inicia em 1954, primeiros tempos da organização da FLN entre os moradores da Casbah. Mostra como ela ocorreu. O uso do álcool e das drogas era usado livremente e estimulado pelos colonizadores para controlar melhor a população dos 400 mil cidadãos árabes da cidade. Mesma estratégia usada pelos ingleses com as populações chinesas e seus vizinhos durante a Guerra do Ópio. Sete atentados por dia era o saldo da violência na capital argelina. Bombas explodiam as residências de prisioneiros com suas famílias dormindo dentro delas. Cercos policiais montados com check points faziam a vida miserável no bairro transformado em gueto. Começava a chamada Operação Champanha. Em resposta, os da FLN retaliavam, fuzilavam e esfaqueavam policiais. Muitos dos apanhados eram guilhotinados. Pouco a pouco os árabes promovem uma limpeza entre habitantes da Casbah. Nesta segun53
da parte do filme, vemos como se formando forte e organizada resistência e consciência política. Alguns aspectos, sempre oportunos, são sublinhados no filme de Pontecorvo: – O voto da ONU pela não-intervenção de forças de paz na Argélia. A guerra se prolongava e se tornava uma chacina. Discutiu-se a questão argelina e votou-se a favor dos franceses. – A importância do papel da imprensa de Paris escondendo ou deturpando fatos que não eram de interesse do governo francês divulgar. “Muito depende do que vocês escreverem”, dizia o coronel Mathieu, o insolente comandante dos paraquedistas, nome fictício para o general Jacques Massu** (de triste memória), nas muitas entrevistas coletivas convocadas, se referindo à vitória. “Escrevam bem,” ele exortava. No dia seguinte as manchetes dos jornais franceses diziam: “Tudo calmo no bairro muçulmano.” Era mentira. Mathieu/Massu declarava: ”A palavra tortura não consta das nossas ordens...” – As técnicas sistematizadas de torturas de prisioneiros depois exportadas para os Estados Unidos, América do Sul e para o Brasil. Afogamen54 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
tos, choques elétricos, queimaduras com maçaricos, pau-de-arara. Torturas promovidas nas residências dos árabes sob as vistas das famílias. – E a sequência fi nal de A Batalha de Argel com cenas antológicas de rebelião popular. Desde 11 de dezembro de 1960 até o dia 29 do mesmo mês a população árabe não deixou as ruas embora muitos tenham sido metralhados e esmagados pelos tanques. Milhares de bandeiras do país, com o símbolo da meia lua e da estrela foram feitas de retalhos, trapos, com qualquer pedaço de pano encontrado. “Tudo virou bandeira!” anunciavam os cine jornais e as emissões de rádio. Agitadas na brisa marinha do céu da Casbah e, depois, de toda a cidade, elas são uma visão emocionante no filme. Em 1962, foi, enfim, dada a resposta à pergunta que Mathieu/Massu costumava fazer aos jornalistas nas arrogantes entrevistas em que negava praticar a tortura: “A FLN quer nos ver fora da Argélia e nós queremos ficar. E vocês?” Os franceses tiveram que sair. Robert Fisk pode ter mesmo razão: há ainda contas a ajustar entre a França e a Argélia? Quanto permanece de ressentimento pelo passado violento para ambas as partes? Entre os pieds noirs,*** obrigados a devolver as terras que tinham sido confi scadas aos árabes e retornar à Europa, e os habitantes do interior, das montanhas argelinas, e os da Casbah de Argel que se viram obrigados a imigrar? *Os diplomatas Mark Sykes e François Georges-Picot arquitetaram um ‘novo’ Oriente Médio, depois da I Guerra Mundial, desenhando linhas arbitrárias de fronteiras e criando vários países árabes que não existiam antes. Ver aventuras de T. E. Lawrence, o Lawrence da Arábia. **Massu declarou ao Le Monde em 2000: “ O mais duro de suportar foi o fato de meu nome ficar para sempre associado à tortura.” Ficou. ***Descendentes de colonos europeus, em particular de franceses, que regressaram aos seus países depois das guerras de independência do norte da África.
O que está acontecendo conosco? Michel Plon A consideração rigorosa do passado colonial francês, daquilo que foi reprimido por grande parte da sociedade francesa me parece uma tarefa incontornável. Para responder à proposta de amigos brasileiros de escrever sobre o que está acontecendo na França após o trágico início de 2015, gostaria, antes de responder sucintamente, de fazer algumas observações. A primeira é que, embora eu seja um psicanalista, não é enquanto tal que faço essa reflexão, pela razão fundamental de que a psicanálise não
é uma profissão ou é, como Freud observou diversas vezes, uma profissão impossível. Ser ou tentar ser psicanalista consiste em ocupar uma posição que permite escutar o sofrimento de uma pessoa, de alguém com problemas consigo mesmo, e tentar ajudá-la a resolver essas dificuldades. Portanto, pretender falar de uma situação política e social, aquela vivida pela França hoje ou por
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qualquer outro país, na condição de um analista que se utiliza das ferramentas teóricas que Freud e Lacan nos deixaram, consiste em incorrer neste engano que é geralmente chamado de “psicanálise aplicada”. A psicanálise só se aplica, como nos lembrou Lacan, a sujeitos aos quais nos dedicamos a escutar. A segunda observação consiste em estabelecer uma diferença fundamental entre uma abordagem que busca compreender e avançar algumas explicações para um evento trágico e outra que procura justificar e desculpar atos que não são, de modo algum, passíveis de justificativa e desculpa. Compreender ou tentar compreender, tentar explicar, não significa de modo algum desculpar, menos ainda diminuir ou relativizar o caráter atroz – evitarei aqui falar de barbárie – dos atos cometidos em Paris nos dias 6 e 7 de janeiro deste ano. Depois da emoção e da tristeza que se sentiram naqueles dias trágicos, após o entusiasmo provocado pela imensa manifestação de 11 de janeiro, quaisquer que sejam seus limites, após a espécie de fadiga que se seguiu à escuta e à leitura de inumeráveis intervenções, entrevistas, artigos e debates nos jornais, rádios e canais de televisão, ficou o sentimento de um tipo de indecência diante da ânsia de acrescentar um “ponto de vista” próprio a essa sequência infindável de “opiniões”. Então, por que falar sobre isso? A desculpa que consiste em lembrar a distância entre a França e o Brasil, uma distância não somente geográfica, não é suficiente. A razão que eu posso apresentar para justificar a enunciação de algumas ideias a respeito tem a ver com a ausência notável e marcante nas análises propostas de qualquer consideração de dimensão histórica que me parece amplamente necessária – há outras, certamente – para lançar uma luz sobre esses eventos trágicos. Há cerca de 30 anos, Rossana Rossanda, grande figura intelectual do comunismo italiano, lembrou seus compatriotas que, quaisquer tenham sidos os abusos, crimes e assassinatos praticados pelas Brigadas Vermelhas, esses jovens eram “nossos filhos”, que carregavam com eles, em seu pensamento e ação, as marcas de 56 Revista Digital Carta Maior – Jan 2015
“Me parece que não podemos dispensar um olhar sobre a história da França nesses dois últimos séculos, o que implica levar em conta prioritariamente a história do colonialismo francês e dos crimes de toda ordem que ele cometeu” uma sociedade que não havia se confrontado com sua história, a história do fascismo de Mussolini. Considerando a França de hoje e os crimes antissemitas, mas não somente eles, cometidos há alguns anos e que precederam aqueles desse triste mês de janeiro, me parece que não podemos dispensar um olhar sobre a história da França nesses dois últimos séculos, o que implica levar em conta prioritariamente a história do colonialismo francês e dos crimes de toda ordem que ele cometeu. Algumas datas para nos limitarmos a um período relativamente recente, que começa após o fim da segunda guerra mundial, do qual muitos pais, avós e bisavós daqueles que chamamos hoje de “jovens da periferia”, imigrantes africanos e norte-africanos (argelinos principalmente) participaram nas fileiras do exército francês. Em 1945, a França é libertada, o nazismo derrotado, e o país começa a se reconstruir. Em 1946, as Nações Unidas são criadas em São Francisco, estabelecendo entre suas primeiras resoluções o direito dos povos à autodeterminação. Na lógica dessa resolução, surgem movimentos de emancipação na região então chamada de Indochina. Ao contrário de acolher esse desejo de independência, a França deslocou para a região um contingente militar para reprimir essa aspiração. Essa foi a primeira guerra da Indochina que terminará com os acordos de Genebra de 1954, após a derrota francesa em Diên Biên Phu. Em 1945, um número significativo de argelinos, entre eles muitos veteranos da luta contra o nazismo, se manifesta em Argel e nas grandes cidades da Argélia não pela independência do seu país, mas para ter...o direito de voto! Um número
importante deles, pelo menos 20 mil, foi massacrado pelo exército, especialmente em Setif. Este será o início oficial do que se tornará, a partir de 1954, a guerra da Argélia, pudicamente chamada até... 1999 de “operação de pacificação” ou ainda designada pelo eufemismo “os acontecimentos da Argélia”, que serão marcados pelo lado francês pela prática da tortura, por assassinatos de todas as ordens e execuções de patriotas argelinos considerados criminosos. Esta guerra monstruosa que, por suas consequências, marcará a sociedade francesa, deixou entre 200 e 400 mil mortos no lado argelino, termina em 1962 com os acordos de Evian e com a independência da Argélia. Apesar dessa guerra e das turbulências políticas que ela provoca, a França viveu então o que chamamos de “30 anos gloriosos”, três décadas de crescimento, de modernização do país e de melhoria das condições de vida, especialmente das camadas médias da população. Mas tudo isso envolverá a vinda de uma força de trabalho em grande parte... argelina, para a qual nenhuma moradia decente foi fornecida. Reside aí o nascimento e desenvolvimento de cidades de lata nos subúrbios, verdadeiras vilas de papelão e lata, que serão sucedidas por “cidades” sem serviços básicos de educação e de saúde. Esse será o cenário para gerações da população imigrante, “zonas”, como dizem alguns comentaristas (diziam antes dos recentes acontecimentos), onde a vida da maioria carece de qualquer horizonte, sendo marcado pelo desemprego, tédio, tráfico de drogas e toda sorte de abandonos. Tudo isso é apenas um resumo, mas a falta de conhecimento ou ignorância desse contexto, ao mesmo tempo histórico e atual, torna impossível compreender a influência sobre muitos destes jovens eufemisticamente chamados “vindos da imigração” dos movimentos extremistas que lhes apresentam a ilusão de ter um propósito, uma razão para viver... e morrer. O primeiro-ministro, que não se notabiliza por usar a palavra certa, desta vez não se enganou quando disse, em tom alto e claro, que a sociedade francesa é hoje palco de um apartheid econômico, social e racial, embora este último não esteja inscrito na lei, como foi o caso na África do Sul.
“Há certamente muitos outros fatores a considerar para esclarecer o que acaba de acontecer na França, mas a consideração rigorosa do passado colonial, da sua repercussão nas consciências, daquilo que foi reprimido por uma grande parte da sociedade francesa me parece uma tarefa incontornável se quisermos tentar entender “o que está acontecendo conosco” Há certamente muitos outros fatores a considerar para esclarecer o que acaba de acontecer na França, mas a consideração rigorosa do passado colonial, da sua repercussão nas consciências, daquilo que foi reprimido por uma grande parte da sociedade francesa me parece uma tarefa incontornável se quisermos tentar entender “o que está acontecendo conosco” - a fórmula é de Michel Foucault que a tomou emprestado de Kant - se quisermos curar, reparar e não apagar o desastre. * Michel Plon é psicanalista em Paris, co-autor, com Elisabeth Roudinesco, do Dicionario da Psicanàlise e co-autor do Manifesto pela Psicanalise, que serà lançado no Brasil no mês de maio pela Civilização Brasileira. Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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EXPEDIENTE Carta Maior Publicações, Promoções e Produções Ltda. DIRETOR GERAL Joaquim Ernesto Palhares REDAÇÃO Editor Chefe Joaquim Ernesto Palhares Sub-editores: Saul Leblon, Marco Aurélio Weissheimer, Roberto Campos Brilhante Andre Roschel; Assistente de Direção: Claudio Cerri; Repórteres Especiais: Maria Inês Nassif Dario Pignotti; Repórteres: Najla Passos, Léa Maria Aarão Reis, Daniella Fernandes Cambaúva; Najar Tubino; Marcel Gomes; Correspondentes Internacionais: Flavio Wolf Aguiar (Berlim); Martin Granovsky (Buenos Aires); Marcelo Justo (Londres); Luis Hernandez Navarro (México); Estagiários: Isabela Palhares. COLABORADORES Antonio Lassance Doutor em Ciência Política - UNB/BR Boaventura de Souza Santos Doutor em Direito - YALE/USA Emir Sader Doutor em Sociologia - USP/SP),
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Eric Nepomuceno Escritor, Jornalista e Cineasta Ermínia Maricato Doutora em Arquitetura - USP/SP Fabiano Santos Doutor em Ciência Política - UFRJ/RJ Fábio de Sá e Silva Doutor em Direito - UNB/BR Francisco Carlos Teixeira da Silva Doutor em História - UFRJ/RJ Francisco Fonseca Doutor em Ciência Política - FGV/SP Gilberto Maringoni Doutor em História - USP/SP Ignacio Ramonet Doutor em Comunicação - Universidade de Paris José Luís Fiori Doutor em Ciência Política - UFRJ/RJ), José Roberto Torero USP/SP Juarez Guimarães Doutor em Ciência Política - UFMG/MG Ladislau Dowbor Doutor em Economia - Universidade de Lausanne - Suiça Larissa Ramina Doutora em Relações Internacionais - UNILA Laurindo Leal Filho Doutor em Comunicação - USP/SP Leda Paulani Doutora em Economia - USP/SP Leonardo Boff Doutor em Filosofia e Teologia - Universidade de Munique/AL Lincoln Secco Doutor em História - USP/SP
Luiz Gonzaga Belluzzo Doutor em Direito - USP/SP Márcio Pochmann Doutor em Economia - UNICAMP/SP), Raquel Rolnik Doutora em Arquitetura - New York University Reginaldo Nasser Doutor em Ciências Sociais - PUC/SP Rodrigo Alves Teixeira Doutor em Economia - PUC/ SP Rosa Maria Marques Doutora em Economia - PUC/SP Samuel Pinheiro Guimarães Embaixador Sebastião Velasco Cruz Doutor em Ciência Política - UFRJ/RJ Theotonio dos Santos Júnior Pós-doutor em Teoria Antropológica - UFRJ/RJ) Venício Lima Doutor em Sociologia PROJETO GRÁFICO e diagramação Roman Atamanczuk Capa Roberto Brilhante ENDEREÇO Av. Paulista, nº 726, 15º andar, Bela vista CEP 01310-100 - São Paulo/SP www.cartamaior.com.br
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