Revista Grafias ed.9 - Dez / 2020

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Ano 8 - nยบ9 - 12/2020


POIESIS – ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Correa | Diretor Administrativo Financeiro Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva Ivanei da Silva | Museólogo CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA REVISTA GRAFIAS - revista do Centro de Apoio ao Escritor Marcelo Tápia | diretor Reynaldo Damazio | editor Revista Grafias- Ano VIII - n° 9 - Dezembro de 2020 São Paulo – Poiesis / Casa das Rosas ISSN 2358-9035 1.Literatura Brasileira. 2.Literatura 3. Escrita criativa - Prosa Brasileira.




sumário 8

LEONARD COHEN: senhor do amor e da morte Michaela von Schmaedel

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HORROR E RUÍNA: A atualidade da tragédia Marcelo Tápia

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ORELHA DE LIVRO COMO GÊNERO LITERÁRIO Franklin Valverde

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ANOTAÇÕES UM – CORRESPONDÊNCIAS Cristina Paiva

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ESCREVERMOS, A QUE SERÁ QUE SE DESTINA? Reynaldo Damazio

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DIREITO AUTORAL E DE IMAGEM Adriano Souza Silva



editorial A revista eletrônica Grafias chega a sua nona edição compartilhando com leitores os caminhos possíveis da escrita literária, desde os processos mais íntimos de construção de linguagens à circulação de textos e obras. Da antiguidade ao presente, a literatura se transforma ao nos transformar, dando vozes às subjetividades que se constroem no conturbado tempo histórico, no cotidiano e nas relações. A revista traz ainda o diálogo da literatura com outras artes, como a música e o drama: são múltiplas as conexões das palavras com a sensibilidade e a experiência. “As imagens vivem uma vida própria, autônoma e paralela. Elas perduram e atravessam o tempo, assumem formas distintas, tomam corpo dentro e fora das superfícies, nos habitam”, anota Cristina Paiva, no início de seu ensaio, quase resumindo a trajetória da palavra como extensão do nosso corpo e de nossa consciência. Além de promover sempre a reflexão sobre os processos de criação e escrita, Grafias também apresenta artigos sobre os textos que ocupam as “orelhas” dos livros como um gênero literário possível e sobre a lei de proteção de direitos autorais e de imagem, para que abusos sejam evitados ou combatidos. Boa leitura! Reynaldo Damazio


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LEONARD COHEN

SENHOR DO AMOR E DA MORTE Michaela von Schmaedel

Temas sagrados, desespero, humor, erotismo. A poesia e as anotações do poeta e cantor canadense em A Chama valem uma vida.


9 Aos vinte e poucos anos, aprendi que não devemos sonegar indicações. Isso porque muito da minha inspiração, do tempo acompanhada por versos como “There is a crack in everything/ that’s how the light gets in”, devo a um amigo que, certo dia, me disse: “Comprei um disco de um cantor canadense. Acho que você vai gostar muito”. Começou aí, como escreveu o poeta português Manuel de Freitas, num verso sobre Cohen “o meu primeiro encontro com a poesia”. No meu caso, não foi bem o primeiro – já andava às voltas com Leminski, Pessoa, Rilke – mas, sem dúvida, foi um dos meus melhores. Amor e morte. Dá para dizer com alguma segurança que estes são os dois grandes temas da poesia – e, consequentemente, da música – de Leonard Cohen. Como um poeta antigo ou um monge que busca a transcendência, Cohen sempre se debruçou sobre questões profundas. Nada em sua poesia é banal. Isso fica evidente em seu último livro A Chama (editora Relógio D’Água, tradução de Inês Dias), que reúne 63 poemas inéditos, as letras de seus três últimos álbuns (além de Blue Alert, uma gravação de 2006 com sua ex-vocalista Anjani Thomas), e notas e desenhos (principalmente autorretratos) dos muitos cadernos que Cohen preencheu ao longo da vida. Adam, filho de Leonard, contou em entrevistas que costumava encontrar os bloquinhos do pai espalhados pela casa, nas gavetas, nas estantes, nos bolsos do paletó e até dentro do freezer. “Uma vez perguntei-lhe se tinha tequila, e indicou-me o frigorífico, onde encontrei um caderno de notas perdido e gelado”, escreve Adam, no prefácio de A Chama. Adam foi o responsável pela finalização do livro, junto dos editores Robert Faggen e Alexandra Pleshoyano, mas conta que não se trata de uma obra inteira editada postumamente. Segundo ele, Cohen não deixou nada ao acaso, o livro estava organizado, já que ele sabia que esta seria a sua última oferenda. E cita uma declaração do pai que servia tanto como uma afirmação de sua grande devoção pela literatura como de seus remorsos: “Religião, professores, mulheres, drogas, viagens, fama, dinheiro… nada me excita e alivia tanto o sofrimento

como escurecer páginas, escrever.” Adam conta que ele muitas vezes apresentava sua entrega à escrita como justificativa ao que considerava seus fracos desempenhos. “Como pai, para as suas relações falhadas, e para a sua falta de atenção às finanças e à saúde”, conta. Na poesia de Cohen, os pilares do amor e da morte parecem ter sido construídos desde muito cedo. Um dos primeiros poemas que ele contou ter escrito foi aos nove anos, logo após sofrer uma grande perda familiar. Um poema que enterrou no jardim de casa, junto com um pedaço de uma gravata-borboleta que achou no armário do pai recém-falecido. Aí estava sua pedra fundamental, o sacramento da linguagem ancorado na dor do amor e da morte. No livro, ele reafirma a sua busca constante pelos temas que o acompanharam deste então: “Fiquei velho/ de uma centena de maneiras/ mas o meu coração continua jovem/ & ainda brinca/ com o tema do amor/ com o tema da morte”. Cohen foi criado num bairro rico de Montreal. Sua família era considerada a dos judeus mais prósperos da cidade. Ele frequentou as melhores escolas e nunca encontrou motivo para ser rebelde. Era grato à boa educação e aos privilégios a que teve acesso desde criança. Começou tarde na música, aos 32 anos, descoberto pelo mesmo produtor musical de Bob Dylan, John Hammond. “Meu pai era, sobretudo, um poeta”, escreve Adam em A Chama. Quanto cursou literatura inglesa na Universidade McGill, Cohen fez parte de um grupo literário, no qual se incluía o poeta canadense de origem romena Irving Layton. “Ensinei Layton a se vestir, e ele me ensinou a viver para sempre”, disse, certa vez. Nesta época, aos 17 anos, lia com voracidade Pound, Eliot, Yeats, Lorca, Proust, Tolstói – e já sofria de depressão, doença que o perseguiu pela vida toda. A coragem para encarar a morte, como um aprendiz de Sêneca em Cartas a Lucílio, está presente nos poemas inéditos do livro e também em seus últimos álbuns, como no lindíssimo You Want it Darker, concluído pouco antes de sua morte, onde canta: “Não preciso de razões/ Para aquilo em que me tornei /Arranjei estas desculpas/ Já velhas e esfarrapas/ Não preciso de perdão/ Não há ninguém


10 a culpar/ Vou sair da mesa/ Estou fora do jogo”. Seja nas letras, seja nos escritos esparsos, Cohen procurou até o fim, sempre num tom confessional, reverter em poesia a sombra da mortalidade: “Rezo por coragem/ Quando estiver no fim/ Para ver chegar a morte/ Como uma amiga”.

SAGRADO E PROFANO Na contramão da iminência do final da vida, Cohen continuou se apoiando no que o movia: o desejo, o erotismo, o romance, estados de prazer dos quais nunca desistiu. Neste aspecto, era intenso como García Lorca, poeta que tanto admirava — e do qual musicou o poema “Pequeño vals Vienés”, que resultou na maravilhosa Take This Waltz, além de batizar a filha com o sobrenome do poeta espanhol. Nunca chegou a se casar, mas teve muitas paixões, e fazia um sucesso estrondoso com as mulheres: entre elas, a norueguesa Mariannne Ihlen, com quem morou na ilha grega de Hidra, Janis Joplin, a quem se refere na música “Chelsea Hotel”, Suzanne Elrod, com quem teve Lorca e Adam, Rebecca de Mornay, uma linda atriz norte-americana, e a cantora Anjani Thomas, seu último grande amor, e para quem escreveu estes versos: “Estou sempre a pensar numa canção/ Para Anjani cantar/ Será sobre a nossa vida juntos/ Será muito leve ou muito profunda/ Nada de intermédio”. Toda a profundidade do mestre supremo da melancolia, do trovador da tristeza, como era conhecido, toda a sua busca por versos que falem algo de relevante sobre as questões humanas, como os que aparecem em “Hallelujah” (cuja letra teve 80 rascunhos antes de virar sua música mais gravada), é balanceada com um humor cansado, uma autodepreciação e uma linguagem coloquial. Algo que pode ser visto em versos como o do intitulado “A minha carreira”: “Tão pouco para dizer/ Tão urgente/ dizê-lo”. Ou no texto em prosa “Como falar poesia”, que está no livro Atrás das linhas inimigas de meu amor (editora 7 Letras), onde Cohen dá os passos de sua busca por simplicidade: “Evite florear. Não tenha medo de ser fraco. Não tenha vergonha de

estar cansado. Você fica bem quando está cansado. Você fica como se pudesse avançar para sempre. Agora venha para meus braços. Você é o retrato de minha beleza.” Talvez esta seja a mistura mais interessante na poética de Cohen, não a tentativa de fazer com que as palavras se reinventem ou atinjam o patamar de seus temas sagrados, como buscam muitos poetas, mas de tratá-las como velhas amigas para, magistralmente, falar do que o importa. Dos vinte anos para cá, minha obsessão por Cohen, claro, cresceu exponencialmente a cada álbum lançado, a cada show, a cada entrevista no Youtube. Tanto que, quando Leonard Cohen morreu, no dia 7 de novembro de 2016, depois de uma queda em seu modesto apartamento em Los Angeles, passei o dia seguinte, em São Paulo, atendendo a telefones de pêsames. Sim, os amigos me ligavam ou me mandavam mensagens como se eu tivesse perdido um parente querido. E o meu sentimento era mesmo este: havia perdido um mundo em que Leonard Cohen existia, porque até então eu gostava de lembrar que ele estava vivo, pensando, cantando, escrevendo. Ao mesmo tempo, fiquei aliviada que a morte o livrou, por apenas um dia, de saber da vitória de Donald Trump – e, por alguns anos, da existência de Bolsonaro.


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POEMAS E NOTAS DE A CHAMA Autocomplacência, humor e grandes temas na poesia de Leonard Cohen

ENQUANTO VIA O CANAL DA NATUREZA

A MINHA GUITARRA ERGUEU-SE HOJE

o tédio de Deus

A minha guitarra ergueu-se hoje

é desolador

e saltou para os meus braços a tocar

tretas, tretas, tretas

uma canção espanhola para orgulhosos bailarinos sapatearem e gritarem contra o destino que nos esmaga sob a sangrenta coroa de espinhos da doença, da idade e das ilusões paranoicas que eu, pelo menos, não consigo evitar

AQUILO QUE FAÇO

CORRENTE

Não é que eu goste

Saí uma destas noites

de viver num hotel

Com a maré vazia

num sítio como a Índia

E sinais no céu

e escrever sobre D-us

Mas mal sabia eu

sempre atrás de mulheres

Que seria apanhado

Mas parece que é

Pela força da corrente

aquilo que faço E largado numa praia Aonde o mar odeia ir Com uma criança nos braços Um calafrio na alma E o coração em forma De tigela de pedinte


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ACONTECE AO CORAÇÃO (trecho)

QUANDO O DESEJO REPOUSA Sabes que estou a olhar para ti

Eu trabalhava sem parar

sabe em que estou a pensar

Só que nunca lhe chamei arte

Sabes que está interessada

Financiava a depressão

sou muito hábil

Encontrando Jesus, lendo Marx

vais esquecer-te de que sou velho

Claro que falhou, o meu pequeno fogo

a menos que te queiras lembrar

Mas a centelha moribunda é forte

a menos que queiras ver

Vai dizer ao jovem messias

o que acontece ao desejo

O que acontece ao coração

como ele se torna livre e desavergonhadamente interessado no amor

Não condenes

por cada mulher

ninguém à morte

e pelas suas meias.

antes de tomares

Quando o desejo repousa,

o teu café

fazem-lhe sinal duas pessoas distantes sobre uma manta verde

Espero sinceramente

(ou serão as flores do musgo?);

que não tenhas

duas pessoas que se acenam ao longe

acreditado

estendidas como coisas

que, só porque fugiste & te casaste nas

que têm de secar com sorrisos ternos nos seus rostinhos redondos;

minhas costas,

acenam ao desejo

tens direito

enquanto este repousa em primeiro plano

a ficar com

maciço, tranquilo, fiel como um cão feito de lágrimas.

a minha fita métrica


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PARA V. R.

SEGUIR EM FRENTE (trecho)

e nem tudo será vinho e rosas de agora até ao fim

Amei o teu rosto, o teu cabelo

mas nunca, nunca mais

as tuas t-shirts e roupa de noite

voltará a ser tão escuro

Quanto ao mundo, ao emprego, à guerra Deixei tudo isso para te amar mais E tu desapareceste, desapareceste mesmo Como se nunca tivesse havido um tu Que partiu o coração e o refez Quem segue em frente, quem engana quem? Porque nunca houve nada melhor que eu fizeste no mundo humano do que deitar-me nos campos de incenso contigo

Michaela von Schmaedel é jornalista e editora de cultura. Nos últimos anos, tem se dedicado à poesia, além de escrever resenhas sobre literatura para jornais e revistas. Cursou o CLIPE (Curso Livre de Preparação do Escritor), na Casa das Rosas, e oficinas de poesia com Angélica Freitas, Tarso de Melo, Ismar Tirelli Neto, entre outros poetas brasileiros. É autora do livro “Coração cansado” (Penalux, 2020) e “Quênia – poemas de viagem”, que sairá pela Cas’a Edições, em 2021.


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HORROR E RUÍNA

A ATUALIDADE DA TRAGÉDIA Marcelo Tápia


15 A antiga visão trágica de mundo nos serve nestes dias? Embora dois milênios e meio nos distanciem dos tragediógrafos gregos cuja obra conhecemos (Ésquilo – 524-456 a.C., Sófocles – 496-406 a.C. e Eurípides – 480-406 a.C.), seu legado nos fornece referência insuperável acerca das ações humanas – na conceituação de Aristóteles, a tragédia é “a representação de uma ação grave, [...] com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções” (na tradução de Jaime Bruna). Mesmo hoje, quando se multiplicam desmedidamente os meios pelos quais se podem produzir compaixão e medo, e a possibilidade de expurgação de sentimentos, o ambiente mítico da tragédia é capaz de nos falar mais profunda e substancialmente de nossas desgraças do que todo o potencial de ódio, ameaça, difamação – e, em contrapartida, de piedade – das chamadas redes sociais. Falaremos, logo, de tragédia e sua atualidade; mas, antes, vejamos uma possível ideia mais geral associada ao tema que pretendemos apresentar. Se o mundo antigo é ruína, esta é, penso, um agente de fascinação em nossa cultura multifacetada, feita de ruínas sobrepostas que se articulam em novas concepções do novo, que será, por sua vez, nova ruína a sobrepor-se às antigas camadas de nossa história. Esse fascínio revela-se de muitos modos, e há fartos indícios dele na própria busca pelo conhecimento: do empenho para a descoberta de restos de edificações antigas à sua contemplação, da procura de fragmentos de escritos à sua obstinada análise, o interesse pelo arruinado e pelo lacunar é elemento evidente de nosso modo de agir no mundo. A esses óbvios exemplos, somam-se as recorrências exaustivas a temas, estruturas e modos de composição, assim como as reescritas sucessivas de obras literárias, cuja história se pode entender, metaforicamente, como um palimpsesto (pergaminho que se raspava para nele se escrever de novo). O multiastuto pensador George Steiner tira proveito do fascínio pela ruína em um livrinho seu, ainda inédito em português do Brasil (que ora traduzo): o estimulante Fragments (Somewhat Charred)

– Fragmentos (Um Pouco Queimados), feito do que seriam “fragmentos aforísticos” provenientes de um rolo de pergaminho chamuscado, cujo texto teria sido redigido no séc. II a.C. por um (in)certo Epicarno de Agra. Trata-se de um modo de enfeixar breves ensaios seus de temática diversa, encimados pelos fictícios aforismos, e fazê-los galgar uma dimensão mais ampla de significação. (Uma das marcas da contemporaneidade é exatamente explorar a mescla de ficção e história, como bem se sabe; são muitas as obras que disso se valem). Mas menciono Steiner para me servir de um trecho de seus Fragmentos antes de retomar o foco deste artigo: Por todo o planeta, crenças e mitologias coincidem em suas narrativas de uma original transgressão ou erro (hamartía) cuja catástrofe, de alguma rebelião, trouxe o mal e a ruína ao nosso mundo. [...] De que outro modo se pode explicar a interminável sequência de desastres, sofrimento imerecido, desolação pública e privada que caracterizam a circunstância humana? De que outro modo podemos racionalizar os impulsos homicidas, as crueldades, a autodestrutiva cegueira ou a absurdez que tornam as questões políticas um catálogo de fatalidades?

Sim, o catálogo de desgraças que sempre renovamos – “a boa sorte não se firma entre nós”, canta o coro na tragédia Orestes, de Eurípides – encontra correspondências essenciais no ancestral sentimento trágico do mundo; retomá-lo por meio da releitura criativa da história é, certamente, um digno meio de salvação. Nesse sentido, nada mais contemporâneo que uma obra como Lícidas, do poeta, músico e tradutor Leonardo Antunes. Trata-se de uma peça teatral criada a partir de texto de outra natureza: um sucinto episódio das guerras pérsicas narrado pelo historiador Heródoto (séc. V a.C.) no Livro IX de suas Histórias. Como lembra Rafael Brunhara em seu Prefácio ao livro de Leonardo, para Aristóteles “não diferem o historiador e o poeta senão em que diz um as coisas que sucederam, e outro, como poderiam suceder”.


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A peça é atualíssima por contar o destino trágico do conselheiro ateniense Lícidas, apedrejado devido à duvidosa acusação de traição por favorecimento aos invasores persas, e de sua mulher e filhos, também apedrejados apesar de inocentes, por um grupo em desvario de ódio, após uma rápida corrente difamatória. Nestes nossos tempos, em que se pode “linchar” virtualmente alguém em poucos minutos nas redes sociais, e nos quais o ímpeto destruidor prepondera solenemente em diversas camadas do real, uma história como essa soa mais que presente, apesar de situar-se em passado remoto. De linhagem oriunda da mais antiga tragédia da qual temos o texto completo, Os persas, de Ésquilo – que apresenta o sofrimento dos persas por sua derrota na famosa batalha de Salamina (480 a.C.) –, Leonardo Antunes, no dizer de Francisco Marshall (no Posfácio do volume), “não apenas poetiza o que foi narrativa histórica como amplia a potência da reflexão histórica, fazendo-nos ver fenômeno reincidente e muito atual, portanto, prenhe de historicidade”. Para Marshall, “hoje temos um quadro etiológico da violência muito mais complexo, devido às condições da vida moderna”; suas causas, contudo, “parecem estar um grau adiante da causa mais profunda, que arma e dispara o quadro da maniose violenta, como o que matou a Lícidas e a sua família”. Veja, você que me lê, se não lhe causa intensa sensação a seguinte passagem (note, ademais, a harmoniosa composição em versos decassílabos): A multidão, conforme sabes bem, / partiu daqui em direção ao porto. / Lá, as mulheres dos atenienses / foram atrás dos filhos e da esposa / do ímpio Lícidas, o traidor. / [...] O medo nos seus olhos quando viram / a multidão se aproximando deles / foi claro indício da culpa que tinham. / [...] Choveram pedras com força divina, / justiça manifesta em violência. / A mãe se debruçava sobre os filhos, / tentando protegê-los, mas em vão. / Seu vestido tingia-se em vermelho / pelo sangue que à testa

lhe escorria / e pelas carnes dos filhos, rasgadas / em sucessivos incessantes golpes. / Quando tombou sobre eles, sem vida, as crianças ainda soluçavam, / desesperadas de medo e de dor, / sem jamais se soltar da própria mãe [...]

O texto em questão associa rigor formal e fluidez semântica, construção estética e comunicabilidade oral: o metro é um elemento que não parece impor restrições ao fluxo da fala; associa-se a ele, como convém a uma representação cênica. Escrever uma tragédia à moda grega, que reescreve a história e a torna poeticamente intemporal, é oportuna façanha heroica: ARISTEU: Mas que justiça pode haver assim? / Como os deuses seriam favoráveis / ao sacrifício de gente inocente? HETERÓCRATES: Não sei e francamente não me importo. [...]

Leonardo Antunes cria como quem traduz, e traduz como quem cria; afinal, criação e tradução são operações análogas. Édipo Tirano, sua tradução da peça de Sófocles, é outro exemplo de intimidade com o original e eficiência de composição, na qual o ritmo dos versos do Coro é recriado em nossa língua, “almejando uma performance musical”. A musicalização – nesse caso e no de outras “recriações rítmicas” de Leonardo – é o meio para que “o português se adapte a uma prosódia que não lhe é própria da fala cotidiana [pois não há, nela, distinção entre sílabas longas e breves, como no grego], mas pode ser induzida pela melodia”. Eis, para ser entoada, uma fala do Coro sobre Édipo – o arquiconhecido herói que, sem saber, matou o próprio pai (o rei Laio), tornou-se rei (ou tirano, a opção do tradutor) por solucionar o enigma da esfinge de Tebas, desposou sua mãe Jocasta, e, após saber dos fatos, furou os próprios olhos ao encontrar morta sua mãe-esposa:


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CORO: Pais de Tebas, cidadãos, olhai para este Édipo, / que sabia o enigma insigne e foi varão tão poderoso. / Quem dos cidadãos não teve inveja, ao vê-lo, o seu acaso? / Vede a que maré de horrível perdição chegou agora! / Antes que qualquer mortal contemple aquele derradeiro / dia que contemplará, ninguém o chame de feliz / sem que cruze o fim da vida não sofrendo alguma dor.

Por meio da recriação das tragédias, é possível tornar – no dizer do referencial tradutor Jaa Torrano – “acessível ao leitor o que possam ser os Deuses, os Numes e a vida heroica como referências existenciais e, sobretudo, os diversos modos trágicos de interlocução do mundo”. A reintegração (sempre renovada) à contemporaneidade, pela arte, de ruínas de antigas culturas é um meio de cruzarmos as fatalidades e enfrentarmos os horrores e perdições da vida com a suprema força da beleza.

Marcelo Tápia é professor de programa de pós-graduação da Faculdade de Letras da USP, tradutor e poeta, autor de “Refusões – poesia 2017-1982” (Perspectiva), entre outros.


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ANOTAÇÕES UM – CORRESPONDÊNCIAS Cristina Paiva


19 As imagens vivem uma vida própria, autônoma e paralela. Elas perduram e atravessam o tempo, assumem formas distintas, tomam corpo dentro e fora das superfícies, nos habitam. Foi a partir de uma visão, quando aquele ser fundido à natureza abriu os olhos e projetou na sombra das árvores a imagem de um sonho, que se fez o contorno do verbo. E, se passamos a vida tentado retê-las, decifrá-las, ou, ao menos, articulá-las de modo a compor uma superfície espelhada que reflita algo do nosso rosto, é porque disso depende a nossa sobrevivência. Queria coloca-las lado a lado e interrogá-las sobre sua natureza, sobre seu poder de nos fazer lembrar, sondar quais são os fios e as correspondências que as unem – mas sei que, para mim, são como fragmentos de uma língua estrangeira da qual não tenho a chave. Tal é a condição crônica da vida, de todas as vidas, imersas na obscuridade natural das coisas. O ato de contar é a primeira – e talvez a última – forma de consciência. *** Uma imagem: num longo corredor, homens e mulheres com trajes que lembram o de operários de uma usina nuclear correm de um lado para outro, aflitos. Gesticulam com pressa num esforço de vencer a resistência daquela cobertura estufada, meio amorfa. Não se vê seus rostos, nem se ouve sua voz. Apenas sabemos que alguns são baixos, outros altos, quando postos lado a lado (nem podemos ter certeza se são humanos). Em torno das paredes brancas, há outros homens e mulheres, deitados, e suas cabeças são evolvidas por balões, que inflam e murcham como um grande coração translúcido. O movimento desse escafandro plástico é repetido pelos corpos anexos, e a pele do ventre se estica para cima e para baixo, côncavo e convexo, como as guelras de um peixe fora d’água. O som que emana dali não é humano, é o ruído estridente de máquinas que apitam e vibram seus motores contra um muro de azulejos, e, por um segundo, acreditamos que tudo aquilo que vemos não é um conjunto de médicos e enfermeiros

movimentando-se entre aparelhos e macas com pacientes agonizantes num hospital de campanha – não, aquilo não passa da engrenagem interior de um único ser, um robô, um replicante cujas entranhas são feitas de carne e ferro. *** Apago a televisão e a imagem é chupada para o centro da tela, como um poltergeist. Ouço um barulho de metal batendo – demoro um pouco a identificar, mas logo percebo que vem da rua. A essa hora as ruas costumam estar desertas – na verdade, a cidade tem estado deserta o tempo todo, abrindo espaço para uma paisagem que nos remete, ao mesmo tempo, à desolação de um mundo em extinção e à paz que vem da lembrança de alguma rua do interior. Olho pela janela para o outro lado e procuro pelas fachadas dos sobrados. Esqueço que eles já não existem – encontro apenas um grande vazio assentado sobre ruínas de tijolos, telhas e caibros, alguns esqueletos de telhados na sombra da noite, aqui e ali. Faz dois meses que as casas se foram, junto com um casal e seus dois bebês (lembro da dificuldade do pai saindo numa manhã fria para trabalhar, terno e gravata e celular na orelha, descendo as escadas com um bebê na cadeirinha seguro por uma das mãos, o esforço para depositar a cadeirinha no banco do carro, depois outro bebê, depois o carro de novo, e posso ver os rostos dos bebês tão pequenos, seus olhinhos feito botões de ônix, negros, brilhantes e atentos, alheios a toda maquinação do mundo, sendo levados de casa àquela hora da manhã para não sei onde – meu coração de mãe se contorce no peito vendo a cena lá de cima); foi-se também um grupo de amigos da casa bem em frente, uma turma festeira chegada num samba; a garagem de conserto de carrões e seus mecânicos fortões tatuados (já foi tarde); uma editora de livros de psicologia (há uns quinze anos, sem imaginar que um dia estaria aqui ao lado, me apeguei muito a um livro dessa editora, sobre desenhos e pinturas de pacientes de hospitais psiquiátricos – o logotipo na capa me parecia muito


20 apropriado e me fazia sonhar junto com a leitura: um redemoinho com um olho no centro, um “olho d’água”) e outras histórias que não conheço, e agora nunca saberei. Serão substituídas por outras, muitas outras, que se empilharão num edifício enorme e homogêneo, com varandas gourmet onde nunca se vê ninguém. Em meio aos fantasmas das casas, ecoa novamente aquela batida seca, e procuro, apertando os olhos contra o breu, algum movimento humano lá embaixo. Dois vultos se equilibram sobre os restos de uma viga como malabaristas sobre a corda esticada de um circo, arrastando consigo alguns tubos de alumínio. É quando vejo estacionado, sob a sombra projetada de uma árvore pela luz amarelada do poste, uma carroça, feita de restos de madeirite e papelão, com dois meninos pequenos dentro e um cachorro. As lajes das casas já foram perfuradas pela demolição, tudo é ruína, e antevejo, aflita, aquele corpo negro despencando no solo, sobre os tijolos, e penso na imagem de um operário estirado no chão depois de vencer dez metros de ar, inerte no piso do quintal do vizinho, um fio espesso de sangue escoava de seu crânio serpenteando na argamassa como um pequeno rio. Ensaio um grito de alerta, mas retenho a boca aberta, muda, os olhos fixos nos vultos que emergem e submergem do escuro, como espectros da vida que um dia habitou aquele lugar e agora se esforçam para não se desmaterializarem por completo. *** Abri meu caderno de anotações e encontrei a descrição de um sonho, intercalada com transcrições de trechos de livros, além de algumas instruções dadas a mim mesma: com frequência, ou melhor, todos os dias, em algum momento, faço uma lista de orientações para tentar me disciplinar – tenho o hábito infeliz de me dispersar atrás de pensamentos sem propósito. No meio de ordens contraditórias como “escrever projeto de doutorado” e “ganhar dinheiro”, havia a seguinte ordem: “parar durante o dia e perguntar-se: isso é um sonho? agora, nesse instante, estou sonhando ou acordada?”

Talvez alguns segundos de hesitação tenham se passado até que eu pudesse ouvir um entregador de aplicativo cortar a rua com o barulho do motor esfomeado de uma motoca esquálida, gasosa, e concluir que não, naquele momento eu poderia dizer com alguma segurança que me encontrava no que chamamos de “estado de vigília”. Sou muito suscetível a qualquer tentativa de manipulação da mente, então sinto que essa instrução, dada por um famoso neurocientista para nos ajudar não apenas a lembrar dos sonhos, mas também podermos assumir a direção desses estados inconscientes, ou seja, “dirigirmos” os sonhos, tem tido em mim o efeito contrário – passo a crer que já não seguro as rédeas da minha própria vontade, que estou presa numa espécie de simulacro de real cuja porta de entrada ou saída fechou-se há tempos. *** A anotação que se seguia era assim: “Era dia. Um conjunto pequeno de pessoas discutia contra o fundo de uma paisagem campestre, um grande morro gramado pontuado aqui e ali por tímidos exemplares de pinheiros e outras árvores de reflorestamento, compondo uma paisagem um tanto árida e melancólica. Um homem se destaca do grupo e gesticula em minha direção de modo não muito acolhedor – entendo que era um guia turístico e que o grupo me aguarda. A intenção de mover-me bastou para que o cansaço reivindicasse a posse de meus membros inferiores, e meus pés latejassem como naquelas ilustrações das antigas enciclopédias, no verbete elefantíase: um par de pernas sem corpo emergindo de pés informes, monstruosos, traçados em cores pálidas, a serviço da observação científica – as duas imagens que mais me atraíam no tempo perdido em que eu folheava a enciclopédia, agachada num canto da garagem de casa, era a do globo terrestre sem um quarto do volume, de onde se via o pobre planeta, sempre tão imenso, misterioso e imponente, agora desnudado e fatiado sem maiores cerimônias, exibindo quase obscenamente camadas subterrâneas até um


21 horrendo miolo em chamas, pronto a transbordar e estraçalhar tudo a sua volta caso seu capricho assim desejasse; e aqueles pés do homem-elefante, ardente, doloridos, suportando o peso de todo um corpo em almofadas de pele, que me causavam infinita aflição. E virar a página rapidamente não era uma alternativa, já que a atração pela possibilidade de tal deformidade atraía mais o olhar do que a certeza de ser atormentada nos sonhos. O guia virou-se novamente pra mim e, constatando que eu ainda jazia sentada naquela pedra, pescoço pendendo para baixo na direção dos pés, cabelos cobrindo o rosto numa cortina escura como se prestes a ser tragada pela terra começando pelo rosto, mobilizou todas as suas forças num apito que me impeliu ao movimento, numa atitude brusca. Obediente ao comando, saquei do bolso uma chave philips comprida de cabo azulado e meia dúzia de parafusos grossos e enferrujados. Introduzi uma a uma essas pequenas hélices na sola dos pés, rosqueando com força para que não se soltassem durante a longa caminhada que haveríamos de dar por algum parque ecológico. Enquanto atarraxava os parafusos na sola, fazendo com que entrassem devagar no casco duro (a despeito da imagem fofa da enciclopédia, meus pés eram duros e insensíveis, rachados) o guia e mais alguns turistas me olhavam com impaciência, bufando. Não sei se já havia feito isso antes, mas os parafusos funcionaram perfeitamente, e pude acompanhar toda a caminhada turística, não só daquela tarde, mas de uma semana toda, sem as frequentes dores nos pés. Devo ter ficado uns cinco dias com aqueles parafusos. Sabia que isso poderia me trazer problemas, causar uma infecção séria, mas, como fiz algumas vezes na vida, abandonei o problema irresponsavelmente. Sabia que estava errada e sentia culpa por isso, mas não havia aprendido a ter muito amor próprio. Depois de cinco dias, tive a ideia de derramar um pouco de água quente nos pés; isso traria uma sensação maravilhosa, pensei: o líquido quente escoando pela pele, o casco duro das solas amolecidas. Só então me ocorreu que seria hora de tirar os

parafusos, quando um pouco de areia verteu de um deles, junto com a água. Saquei a chave do bolso e puxei-os apressadamente, num gesto desesperado, porém controlado, como quem não quer admitir que agora já podia ser tarde demais. E era. Não apenas os parafusos saltaram do corpo, mas toda a planta dos pés se despregou, despencando chapada sobre a terra. Olhando para aquele pedaço de corpo que jazia abandonado na grama rala, senti culpa e vergonha por ter negligenciado meus próprios pés. Temi que alguém passasse por ali e com razão me repreendesse por querer andar por aí sem o casco. Vi-me obrigada a dar uma espiada dentro daqueles buracos – meus olhos hesitaram do mesmo modo como se negavam e eram atraídos pelos pés elefânticos. Fiquei horrorizada: não havia entranhas, ou sangue, ou músculos expostos. Era pior; um tubo oco, turvo, de paredes um tanto gastas, sem começo nem fim. Não quis ficar olhando. Achei melhor simplesmente mais uma vez ignorar, me pôr em pé (ou em cima daqueles buracos), e seguir andando. Era aflitivo, mas menos do que ter que olhar para o escuro”. *** Até hoje tenho medo de abrir os olhos dentro d’água quando estou nadando. A sensação de prazer por estar imersa em um monte de água, de eliminar o peso do corpo e flutuar, é sempre contrastada pelo pavor que sinto em olhar para as aberturas envidraçadas de dentro da piscina, que refletem pouco da minha imagem no vidro sob uma fina crosta verde – olhar de frente para o escuro, imaginar o infinito turvo por trás daquelas escotilhas. Abrir os olhos dentro do mar me traz esses mesmos sentimentos: de atração pelo desconhecido, pelo silêncio, e pavor de ver-me misturada a ele, sequestrada e dissolvida nesse turvo. *** Nas últimas páginas do caderno, escritas de cabeça pra baixo (como se o caderno começasse também do final, da contracapa), encontrei essas anotações:


22 “O sonho do poeta, o ‘bordel-museu’: o poeta desce da carruagem de seu amigo Castille, dizendo-lhe que o aguarde. “Castello de Espanha” deverá permanecer naquele caixote escuro, silencioso, estacionado no meio da noite, enquanto o amigo resolve suas pendências: o poeta tem um dever a cumprir, entregar um exemplar de seu livro que acaba de sair à dona de um prostíbulo, e, claro, aproveitará o ensejo para trepar (ele sente que, mesmo sendo conhecido no bordel, não se deve visitá-lo sem um bom argumento). Já em frente, Baudelaire percebe que tem os pés nus e molhados, metidos dentro de uma poça d’água; além disso, seu pênis pende da abertura da calça. Envergonha-se, não sabe se mais por conta dos pés nus ou do membro exposto, mas, no fundo, sabe que aquela obscenidade tem a ver com a vergonha de existir, e, por isso, é uma dor sem solução. (Os pés nus: a mãe já atribuíra todas as desgraças do filho à falta de solas de borracha. Então ele lhe respondeu reivindicando ser um especialista em forrar seus sapatos com palha ou papel. Recursos precários, que não funcionam quando se pisa numa poça, como acabava de acontecer-lhe...) O poeta adentra o edifício e vê-se perambulando por uma infinidade de galerias, comunicantes entre si, de aspecto triste e decadente como os velhos cafés, antigos gabinetes de leitura ou casas de jogos vagabundas. Sente-se triste e intimidado, teme que as garotas vejam seus pés. As paredes das galerias servem de espaço de exposição para uma centena de quadros emoldurados, organizados por temas, como nos salons que costumava frequentar com assiduidade. Projetos de arquitetura, imagens do Egito, desenhos de pássaros de plumagens muito brilhantes cujos olhos são vivos, vão se sucedendo naqueles longos corredores. Ao final, um conjunto de imagens de seres estranhos, monstruosos, quase amorfos, que representam seres (fetos natimortos) que vieram à luz naquela casa, filhos das prostitutas e que agora servem como objeto de análise científica – cada desenho é acompanhado de anotações sobre a mãe, sua idade, ano em que deu à luz etc. Ele pensa: realmente só um jornal suficientemente

estúpido como o Le Siècle, com sua mania de progresso, de ciência, de difusão das luzes, para abrir uma casa de prostituição e instalar ali, ao mesmo tempo, uma espécie de museu médico. A difusão das luzes fomentada pelo Le Siècle parecia a Baudelaire uma corrida nas trevas. Mas logo em seguida reflete que a estupidez e a tolice modernas têm sua utilidade misteriosa, e que muitas vezes, por uma mecânica espiritual, aquilo que foi feito para o mal se transforma em bem – e admira em si mesmo a justeza filosófica. Entre todos os seres, há um que viveu: é um monstro nascido na casa, e que se mantém eternamente sobre um pedestal. Embora vivo, faz parte do museu. Não é feio, seu aspecto é até gracioso, de uma cor oriental. Está agachado, mas numa posição contorcida, e, de sua cabeça pende uma grande serpente negra, elástica, que se enrola em torno dele e de seus membros, como se o cérebro ofidiano daquele ser prosseguisse para fora da cabeça. Baudelaire logo se afeiçoa ao monstro – que é, na verdade, um simulacro, ou um duplo dele mesmo – e eles conversam longamente sobre tédios e pesares. O monstro fala do constrangimento que é sua existência, obrigado a carregar pra todo lado aquele apêndice que o desequilibra, o torna cambaleante, diante das belas moças do prostíbulo e do público em geral, que vai até lá para observá-lo em seu pedestal. Poeta e monstro, dois seres condenados a viver entre tédios e pesares, oprimidos por um problema que se poderia chamar de “estético” – mas por acaso não são esses os mais graves, sobretudo se ligados a um elemento de humilhação? Compartilham um agudo sentimento de estranheza de si, ao mesmo tempo em que são capazes de encararem como outro. ”


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Cristina Paiva é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pesquisa sobre oficinas e processos de criação contemporâneos em artes e literatura. Trabalhou no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e na Folha de São Paulo. Atualmente desenvolve atividades como pesquisadora e crítica de artes para exposições e espaços institucionais, como Instituto Tomie Ohtake. É membro do Grupo de Pesquisa em Processos de Criação, coordenado por Cecilia Almeida Salles, e do Conselho Curatorial da Intermeios Casa de Arte e Livros.


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ORELHA DE LIVRO COMO GÊNERO LITERÁRIO Franklin Valverde


25 Em um de seus livros, o linguista Marcuschi comenta que o número de gêneros textuais é infindável e variado. Cita, entre outros, bilhetes, cardápios, romances, cartas, receitas, aulas expositivas, lista de compras, conversas espontâneas, e-mails etc. Entre esses gêneros, também temos a orelha de livro que, com certeza - sem medo de errar, é muitas vezes mais lida que a própria obra da qual ela trata. Presente na maioria dos livros, cuja capa apresenta uma dobra interna, a orelha faz a apresentação da obra, do seu autor ou de outras publicações da editora. A título de curiosidade, a nossa orelha de livro é conhecida como solapa em espanhol, flap em inglês, rabat em francês, alette em italiano e Klappentext em alemão. Seu objetivo, fundamentalmente, é convidar o leitor à leitura, despertando sua curiosidade intelectual, induzindo-o a embarcar em uma viagem pelas páginas do livro. Ela tanto pode ser anônima como assinada por um crítico literário, um estudioso de literatura ou outro escritor. As anônimas mostram, assumidamente, a voz do editor, travestindo-se em uma peça publicitária, defendendo o seu produto, sempre tentando convencer o leitor a levar consigo aquele exemplar. A segunda modalidade busca a transferência do prestígio do orelhista que, com seu texto, passa a valorizar o conteúdo da obra, também convidando à sua aquisição e virtual leitura. Elaborar uma boa orelha pressupõe alguns requisitos básicos, tais como demonstrar ser um bom leitor, daqueles que conseguem captar toda a essência do texto, transmitindo exatamente de uma forma sintética, aquilo que o leitor irá encontrar na obra. Há muitas formas de se fazer isso, seja dando destaque para dados biográficos do autor do livro, seja aprofundando o perfil psicológico dos personagens (no caso de uma obra de ficção), dando um panorama histórico do momento em que a obra foi produzida ou simplesmente fazendo um trailer da obra tendo o cuidado de não dar spoiler. Bons exemplos de orelhas de livros não faltam. Façamos uma breve radiografia em algumas delas. O poeta José Paulo Paes, autor da orelha de O Evangelho segundo Jesus Cristo (Companhia das

Letras), de José Saramago, usa toda sua erudição a serviço da valorização do texto do autor. Inicia dizendo: “Para que as histórias permaneçam vivas, é preciso recontá-las. Conto: racconto: reconto. Daí serem mais de um os evangelhos, testemunhos de presença a que se foram sucessivamente juntando incontáveis testemunhos de imaginação, dos mistérios medievais aos autos folclóricos, deles ao romance de um Lägerkvist ou de um Kazantzákis. Essa tradição ininterrupta porque viva, viva porque ininterrupta, agora se enriquece com este Evangelho segundo Jesus Cristo.” Vemos que Paes põe em ação sua vasta cultura para demonstrar o talento de Saramago na construção do seu romance, fato também comprovado quando, mais adiante pergunta: “E onde melhor exemplo de esmiuçamento crítico que as páginas de socrática agudeza e voltaireana ironia acerca do debate travado por Cristo com Deus e o Diabo na barca perdida em meio ao nevoeiro de quarenta dias?” A construção de Paes nessa orelha mostra claramente a qualidade do texto que o leitor encontrará nas páginas que lhe seguem. Já em A coleira do cão (Codecri), de Rubem Fonseca, o crítico literário Fábio Lucas preferiu introduzir o leitor dizendo que, quando o autor surgiu, “o conto passava pelo quadrante da moda, sendo o gênero preferido dos escritores nacionais. Os nossos grandes nomes eram quase todos mestres da história curta” e apresenta na sequência um panorama sobre a obra de Fonseca, desfilando depois breves comentários a respeito dos contos que compõem a obra, deixando os futuros leitores interessados no que vão ler. Lucas arremata sentenciando que “quem ler A Coleira do cão, apogeu da manifestação do gênero em determinado momento da literatura brasileira, se dispensa de ler uma torrente de obras epigônicas que servem apenas para completar o clima de época.” Outra forma de se elaborar uma orelha de livro é tomar emprestados conceitos elaborados por outros autores que já analisaram a obra do autor em foco. É o caso de Mário da Silva Brito, autor da História do Modernismo Brasileiro, ao falar sobre


26 o livro Poesias reunidas (Civilização Brasileira), de Oswald de Andrade. A utilização das considerações de Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Vinícius de Moraes, sobre os versos de Andrade, avalizam não só a obra do poeta, como também o próprio texto da orelha elaborada pelo estudioso do movimento modernista. Outros orelhistas procuram avaliar e analisar a obra fazendo comparações com outras produções do autor. Esse foi o recurso utilizado pelo poeta e compositor Arnaldo Antunes ao apresentar o livro de poemas Não (Perspectiva), de Augusto de Campos. Antunes traça um paralelo entre os poemas do livro com outros já publicados em obras anteriores de Campos. Nesse texto Arnaldo Antunes mostra um profundo conhecimento da obra do seu analisado, além de, em muitos momentos, demonstrar pleno domínio do texto, aproximando-se até de uma prosa poética, já que a essência do que se estava analisando era pura criação de poesia. Há quem prefira mostrar os aspectos literários da obra por um viés psicológico, explorando os aspectos de formação dos personagens do livro. Esse foi o caso escolhido por João Gilberto Noll ao falar sobre o volume de contos BaléRalé (Ateliê), de Marcelino Freire. Noll sintetiza a obra dizendo que “a poesia desse contista notável é de recorte insuspeitado para um prosador: não-raro a pulsação de seus personagens contagia de tal modo o leitor, que este passa a somatizar os conteúdos ficcionais como se carnavalizados pelo artista. Ali estão essas criaturas da deriva social, é certo; só que, com elas, reforçamos nossa própria biologia, seja no riso, na excitação, seja na soma de arrepios...”. Há também aqueles orelhistas que se inspiram no perfil do autor e em seu eu-poético para elaborarem o texto da orelha. Esse foi o caso de Joca Reiners Terron com a obra Poemas de muito longe (Patuá), de Ivana Arruda Leite. Terron inicia dizendo que a autora “ficou conhecida por sua prosa mais seca que garganta de tuaregue no Saara”. A partir dessa imagem vai construindo seu texto mostrando a aridez e a crueza da poesia que encontramos

no livro, correndo em paralelo com o perfil de um eu-poético que se encontra em poemas “habitados por uma mulher bêbada, que fuma demais, que pensa demais. E solitária, tão sozinha que daria para qualquer um, pro primeiro que assoviar” e que “vaga pelos corredores do supermercado à procura de algo que não está à venda”. Traçado esse panorama, Terron mostra que “a poesia de Ivana Arruda Leite é a última coca-cola do deserto”, creditando a ela um poder balsâmico, que recupera os sentidos de qualquer tuaregue poético. Assim, vemos que as orelhas dos livros têm um papel fundamental entre a obra e os seus leitores, seja como aquele texto que desperta entendimentos sobre o que irá ser lido, seja como uma forma de trailer que os convida a disfrutar de seus meandros literários. Se tudo isso não fosse o suficiente, a orelha também funciona como dublê de marcador de página. Pode parecer um papel menor, mas quando o leitor voltar à leitura, ela estará sempre presente, tendo a possibilidade de novamente ser lida, valorizando o trabalho do orelhista. E também não devemos esquecer, com uma certa dose de humor, que a orelha de livro é a maior aliada dos pseudo-intelectuais. Eles são os seus maiores leitores. Devoram todas de todos os livros, saem “disseminando” conhecimento como se tivessem lido a obra inteira. Fazem sucesso com desavisados, mas aqueles bons apreciadores de uma orelha de livro, que a usam somente como ponto de partida, sabem que esse sujeito está somente na superficialidade, sendo facilmente desmascarado.


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Franklin Valverde é escritor, poeta, jornalista e professor universitário. É graduado em Jornalismo (PUC-SP), mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispanoamericana pela USP e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Trabalhou nos quatro grandes grupos de comunicação brasileiros (Estadão, Folha, Abril e Ed. Globo), além de outras publicações e emissoras. Como poeta tem desenvolvido trabalhos na área da poesia experimental, tanto visual como sonora, além de realizar poemas-objeto e ministrar cursos e oficinas sobre essa expressão artística. Participou de exposições de poesia visual e experimental no Brasil, Alemanha, Argentina, Chile, Cuba, Espanha, Itália, México, Portugal e Uruguai. Publicou “Banco de versos” (Terceira Margem), “Antes do zoológico” (Patuá), “Babylonia Blues” (Patuá), entre outros.


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ESCREVERMOS, A QUE SERÁ QUE SE DESTINA? Reynaldo Damazio


29 A escrita e, por extensão, a literatura não curam. Não funciona como remédio, panaceia, unguento, placebo. A posologia do poema é corrosiva: corrói a linguagem, porque a poesia ocupa a escrita como um vírus e faz dela o que bem entende, até se desfaz às vezes. Talvez por isso Barthes tenha dito que o escritor sofre de doença da linguagem, está contaminado por ela e não tem salvação. “Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra”, escreve Clarice Lispector (Água viva). É o corpo que escreve, qualquer corpo, o corpo todo, com sua matéria, memória e imaginário. E na escrita o corpo acolhe e é palco da luta sem fim entre Eros e Tanatos, desejo e finitude, razão e sentimento, concretude e abstração, força e afeto, passado, presente e futuro. Tudo misturado. Hilda Hilst anota com muita precisão que “tu não te moves de ti”. A escrita acontece quando o tempo e a matéria do corpo se encontram na palavra do poema, da narrativa, do diário, do ensaio, da crônica, do drama, do canto, da dança, em qualquer forma de expressão. A aventura dessa confluência causa vertigem e nos desnuda para a potência do ser e do dizer. Afinal, somos a nossa escrita, o que nos escrevemos e o que ela nos escreve. A escrita não apaga a dor, o sofrimento, o trauma, pelo contrário, por isso ela não pode curar. Mas ao nomear a dor e transformá-la num texto que se torna um desdobramento (ou transbordamento) do nosso corpo e da nossa mente, ela cria então um novo espaço para a compreensão de si mesmo e do outro, do entorno, ou do que nos fere e nos mobiliza, daquilo que nos atravessa. “The blood jet is poetry / There is no stopping it”, diz o poema de Sylvia Plath. A poesia muitas vezes sangra. A escrita nos faz sangrar para que o seu movimento em nossas veias ganhe um sentido, trace rotas, seja percurso, e não um simples bombear mecânico, automático. Fernando Pessoa escreve que o poeta finge a dor, real ou imaginada, para nos alertar que a dor

escrita já não tem mais ligação imediata e direta com a dor original e que esta segunda dor só se completa com uma terceira, a do leitor. Nesse trajeto entre a experiência, a escrita e a leitura, a dor ganha um corpo próprio, de linguagem, e se universaliza, tornando-se um corpo vivo de escrita: o corpo escrito. Na dor escrita aprendemos a sentir o que nos falta, ou que é lacuna, ausência, incompletude. Muitas vezes é assim que a escrita, mesmo não sendo remédio, atua como uma espécie de antídoto: a cura está no próprio veneno. Ao escrever a dor, sozinha, buscando a ressonância do outro em mim, há neste constante movimento, a ilusão-esperança, da dupla sonância nossa.

A estrofe do poema “Ao escrever”, de Conceição Evaristo (Poemas da recordação e outros movimentos), fala dessa comunhão entre a dor que se sente, a que se diz e a que se compartilha, ampliando o campo da experiência e dos sentidos para além do eu que sofre, ou da subjetividade apenas. Porque somos seres de linguagem e a escrita, ao manusear física e psiquicamente a linguagem, toca no que há de mais íntimo na capacidade de expressão, naquilo que constitui a nossa identidade. Ao nomear a dor, a fome, o medo, as incertezas, os desejos, as utopias, o escrevente (escritor ou escritora) se apropria da realidade, ou desse torvelinho que chamamos vida, colocando-se como protagonista do mundo. Algo como: escrevo, logo existo. Há um verso muito bonito de Fernando Pessoa, que diz: “o que em mim sente está pensando”, que poderíamos adaptar, a partir do poema de Conceição Evaristo, para: o que em mim sente, ressoa. É justamente essa ressonância que nos conecta com o outro, com o ambiente, com a natureza, com o oculto, com o ancestral e com o desconhecido, com o que


30 sentimos e pensamos. Podemos até, como queria Rimbaud, “ser” o outro. Quando narramos, não contamos somente uma história, nova ou antiga, mas religamos a tribo, embaralhamos os tempos, refundamos o real. Cada escrita, narrativa ou poema, é como uma origem: a história da comunidade que recomeça e se renova, um parto feito de palavras. Novos corpos geram novas escritas, que por sua vez reinventam a história da sociedade. “As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias”, escreve Octavio Paz (O arco e a lira), lembrando que cada um de nós não está isolado, ou perdido, e não escreve apenas para si mesmo, ainda que cada texto seja único, singular, e que a linguagem é a ferramenta que nos permite criar e viver o coletivo, ou recriar permanentemente a história. Como seres de linguagem, tocamos com a escrita o nervo da palavra, a nervura da linguagem, da realidade. Entre os índios, a palavra falada encanta e espanta os maus espíritos, ela dá vida aos seres e objetos. É a mesma palavra, o mesmo canto, a mesma narrativa, os mesmos corpos falantes, que guardam a memória do povo e que dizem e relembram a cada geração o seu lugar no tempo. As palavras, como diz o xamã Yanomami Davi Kopenawa (A queda do céu), “ficam gravadas dentro de nós”. Talvez a escrita nos salve do esquecimento, da solidão, da dor de viver, da angústia profunda diante do nada e, especialmente, de nós mesmos. Em sua origem etimológica, a palavra cura significa cuidado. E cuidar da linguagem é o trabalho de quem escreve. Fazer da escrita corpo, reinício.


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Reynaldo Damazio é coordenador do Centro de Apoio ao Escritor (CAE), do museu Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura; autor de “Crítica de trincheira: resenhas” (Giostri) e “Movimentos portáteis” (Kotter), entre outros.


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DIREITO AUTORAL E DE IMAGEM Adriano Souza Silva Proposta de filmar professores em sala de aula e compartilhar no Whastapp fere Direito de Imagem e Direitos Autorais de professores

“Cala a boca já morreu” Carmen Lúcia, ministra do STF.


33 Muito tem se falado ultimamente sobre a ideia/ projeto “Escola Sem Partido”, onde, segundo seus defensores, tem por objetivo “inibir a prática da doutrinação política e ideológica em sala de aula e a usurpação do direito dos pais dos alunos sobre a educação moral dos seus filhos”. Entendem que, grosso modo, os professores e professoras em sala de aula supostamente estariam impondo suas próprias ideologias com viés mais à esquerda do espectro político aos alunos, aproveitando-se da chamada “plateia cativa”. E isto estaria “cooptando” jovens para suas organizações e esta prática teria que ser combatida. Não vou me ater aos aspectos educacionais e pedagógicos atinentes à este Movimento, pois já existem diversos artigos e reportagens a respeito (Criticando e defendendo), mas algo nisso tudo chama muito a atenção, e é aí que mora a ilegalidade: A ação para denunciar “professores doutrinadores”, que supostamente abusariam da liberdade de cátedra. Na página do Movimento na internet, há um campo chamado “Enviar Denúncia”, cuja função é receber vídeos, fotografias e a descrição do acontecido em sala de aula. Alunos e alunas são incentivados a filmar e fotografar a aula do professor e enviar o material para o site. Ocorre que tal prática de filmar professores em sala de aula sem sua prévia autorização e compartilhar em grupos é ilegal. Isto porque cada pessoa possui o direito à imagem, voz e honra protegidos pelo nosso ordenamento jurídico, como um direito fundamental e inalienável. É necessária autorização da pessoa filmada/fotografada, ainda mais se tratando de um ambiente fechado, restrito à quem lá está, diferente de uma pessoa manifestando-se numa passeata em via pública ou comemorando o gol de seu time num estádio lotado com transmissão televisiva. A Consituição Federal, no art. 5º, inciso X diz que: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, e ainda, o Código Civil afirma, em seu art. 20: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção

da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.” Assim, a legislação brasileira quis proteger acima de tudo, a dignidade da pessoa humana e o modo como o restante da sociedade enxerga e percebe aquela pessoa (honra objetiva). Ou seja, filmar e fotografar o professor com câmeras de celulares, sem autorização, viola seu direito à imagem, e ainda, divulgar esta imagem imputando-lhe uma conduta supostamente reprovável e nociva à crianças e adolescentes fere sua honra objetiva. Em que pese a escola ser considerada um local de acesso público com restrição ou apenas acessível ao público mediante horários determinados (se for escola privada), ela não é como uma rua ou uma praça ou parque. É um local fechado com objetivo específico de ensinar e aprender determinados conteúdos, como numa palestra num clube ou casa cultural, por exemplo. Tratando-se especificamente de aulas cotidianas ministradas em ambiente escolar, não há pertinência, tampouco conveniência ou relevante interesse público em divulgar a imagem com juízo de valor e teor denuncista/alarmista sobre o professor em redes sociais, aplicativos de conversa e websites, portanto tal prática é ilegal e sujeita a pessoa e/ ou seus responsáveis às respectivas sanções legais, como indenização por danos morais e outros danos que por ventura ocorrerem. Além disso, a aula ministrada pelo professor é protegida por direitos autorais, sendo vedada sua reprodução não-autorizada por ele. A Constituição Federal, no art. XXVII diz que: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”; O objeto da proteção conferida pelo Direito de Autor é a obra intelectual. A Lei 9.610/98, que regula o assunto no Brasil lista algumas obras, a título de exemplo, no art. 7º:


34 “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: [...] I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; II - as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; Portanto, a aula é uma criação intelectual do professor, protegida pelo Direito de Autor, para ser usufruída em determinado ambiente e sob determinado contexto para os alunos, que, devidamente autorizados, podem tomar nota do conteúdo fornecido em seus cadernos (ou tablets/notebooks). Até mesmo a exceção à regra, calcada no art. 46, IV desta Lei proíbe a publicação das aulas sem a autorização do professor. Vejamos: Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: [...] IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; Importante lembrar que tal autorização deve ser prévia e expressa, conforme diz o art. 29 desta Lei: Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: I - a reprodução parcial ou integral; Então já sabemos que não há autorização tácita, é preciso que o professor diga com todas as letras que autoriza a filmagem da imagem, fala e a fotografia da lousa escrita, caso contrário este ato certamente irá ferir seus direitos autorais. Entretanto, é preciso saber no que consiste a chamada “Reprodução”. A Lei define logo no início, senão vejamos: Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: [...] VI - reprodução - a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro

meio de fixação que venha a ser desenvolvido; E logo abaixo: VII - contrafação - a reprodução não autorizada; A captação e armazenamento das aulas em dispositivo eletrônico e sua posterior disseminação sem a devida autorização do professor constituem uma Contrafação, prática absolutamente vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ainda que se utilize o argumento de que as filmagens e fotografias são apenas para obter prova para instruir processo judicial ou administrativo, não se pode cometer um ato ilícito para basear eventual e incerto pedido de indenização. Ademais, a Lei discorre sobre as sanções às quais estão sujeitos aqueles que violarem direitos autorais, a partir do art. 101, que afirma: “As sanções civis de que trata este Capítulo aplicam-se sem prejuízo das penas cabíveis”. As penas cabíveis que ela se refere está no art. 184 do Código Penal, vejamos: Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. Ainda, o art. 102 da Lei de Direitos Autorais é categórico: “O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada, poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível”. Sendo menor de idade a pessoa que comete tais violações, quem responde por eventuais danos são os pais e/ou responsáveis, conforme o art. 932 e 933 do Código Civil. Vejamos: Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos. Por fim, vale colocar aqui a expressão máxima do Estado Democrático de Direito, calcada no Art. 5º ,


35 IX da Constituição Federal: IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; Portanto, sob a ótica do Direito de Autor e também do Direito de Imagem, é totalmente revestido de ilegalidade tal prática estimulada pelos entusiastas do movimento ESP, porquanto fere o direito de imagem, honra e direitos autorais do professor.

Adriano Souza Silva é advogado, especialista em

Direitos Autorais, e pós-graduado em Gestão Cultural pela Universidad Nacional de Córdoba (Argentina).


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