Revista Grafias ed.10 - Dez / 2021

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Ano 9 - nº10 - 12/2021


POIESIS – ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Correa | Diretor Administrativo Financeiro Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva Ivanei da Silva | Museólogo CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA REVISTA GRAFIAS - revista do Centro de Apoio a Escritores Marcelo Tápia | diretor Reynaldo Damazio | editor Capa: Martins Porangaba Revista Grafias- Ano IX - n° 10 - Dezembro de 2021 São Paulo – Poiesis / Casa das Rosas ISSN 2358-9035 1.Literatura Brasileira. 2.Literatura 3. Escrita criativa - Prosa Brasileira.




sumário 8 12

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ENSAIO / Antropofagia como máquina de guerra Eduardo Sterzi MÁRIO DE ANDRADE / Uma leitura do poema “O rebanho”, no centenário de Pauliceia Desvairada e da Semana de Arte Moderna Carolina Serra Azul LUÍS ARANHA / Ou como era ousado o meu Modernismo Paulo Ferraz RESENHA / Sobre o livro Makunaimã, o mito através do tempo (Editora Elefante, 2019) Julia Bac ARTIGO / Narrativas e percursos que ligam Mário de Andrade e Aimé Césaire Dayane Teixeira CRIAÇÃO / Prefácio menos interessantíssimo Bruna Kalil Othero CRÔNICA / No horizonte de Itapira ainda se tem a visão do poeta que tocou o historiador Ricardo Pecego



editorial Comemorar o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, um marco indiscutível na história e na estética não só brasileira, mas da América do Sul também, com a releitura crítica de suas propostas, obras, dilemas, provocações, para buscar novos olhares, diálogos e perspectivas, é a proposta desta edição de Grafias. Um movimento literário e artístico dessa natureza e importância se mantém vivo enquanto o presente reprocessa e se apropria, antropofagicamente (vale dizer, recriando obras e reflexões) do que ficou no imaginário cultural e que transformou, de maneiras diversas, o passado. Que país emerge de 22? Em que medida a literatura e a arte transformam a sociedade e nos transformam ao longo do tempo? A revista Grafias número 10, que marca e celebra também os dez anos de existência do Centro de Apoio a Escritores (CAE), do museu Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, reúne nesta edição textos de alguns de nosso/as colaboradore/as, como Eduardo Sterzi, Carolilna Serra Azul, Paulo Ferraz, Julia Bac e Dayane Teixeira; e traz novas parcerias: Bruna Kalil Othero e Ricardo Pecego. A diversidade e a pertinência de suas abordagens demonstram que o presente ainda está vivo para transcriar o biscoito fino e às vezes indigesto dos modernistas. “A alegria é a prova dos nove”. Reynaldo Damazio


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ENSAIO /

Antropofagia como máquina de guerra Eduardo Sterzi


9 Sem desmerecer tudo mais que há de precioso na obra múltipla de Oswald de Andrade, pode-se afirmar que suas realizações mais importantes se deixam agrupar sob a noção de Antropofagia. É interessante verificar, nos seus textos anteriores a 1928, ano de publicação do «Manifesto antropófago», o quanto já há de Antropofagia implícita — e até explícita: deslocações do olhar, descentramentos ou desdobramentos do ser. Nos poemas de PauBrasil, já se ouve uma voz excêntrica e dialética que se situa entre o descobridor e o selvagem, entre o estrangeiro e o nativo, jamais se reduzindo a um dos pólos, colocando em questão a própria polarização, escapando a qualquer identidade estável; nos do Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, assiste-se a uma combinação das experiências da criança e do adulto, do infante (aquele que não fala ou que, ao falar, insiste na zona muda ou, melhor, balbuciante da emergência da palavra) e do poeta (aquele que só existe pela e na palavra). Acredito, portanto, que uma leitura atual da obra oswaldiana deva, antes de tudo, chamar a atenção para a originalidade e a atualidade da Antropofagia, que, longe de se resumir ao manifesto, se dissemina — contemporaneamente, prospectivamente e mesmo retrospectivamente — por vários outros textos (inclusive de outros autores, como Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Raul Bopp, Flávio de Carvalho, e também Vicente do Rego Monteiro, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade...), até culminar na tese A crise da filosofia messiânica, de 1950. Como bem disse Augusto de Campos, num ensaio de 1975, a Antropofagia é nada menos que a «única filosofia original brasileira».1 Mais do que uma teoria estrita e restritamente literária ou artística, o que temos ali, desde o início, é uma verdadeira e inovadora ontologia política: ou seja, uma teoria

do ser, que não é mais concebido a partir do que lhe seria supostamente próprio, mas, sim, a partir daquilo que ele consegue absorver e transformar. «Só me interessa o que não é meu», resume Oswald no «Manifesto antropófago».2 «Nada existe fora da Devoração. O ser é a Devoração pura e eterna», propõe, quase duas décadas depois, na «Mensagem ao antropófago desconhecido», de 1946.3 Abalamse, neste lance de gênio, todas as noções de próprio e de propriedade, que são fundamentais para o modo ocidental de pensar — e de agir e deixar de agir, de governar e ser governado etc. Com a Antropofagia, Oswald nos oferece uma potente «máquina de guerra» — o vocabulário deleuziano-guattariano é preciso — com a qual enfrentar o poderoso «aparelho de Estado» cuja função é imobilizar e neutralizar toda forma de vitalidade política.4 Décio Pignatari foi quem melhor entreviu esta característica guerreira da obra oswaldiana, ao reivindicá-la como uma das fontes principais de sua «Teoria da guerrilha artística»: «Nada mais parecido com uma constelação do que a guerrilha, que exige, por sua dinâmica, uma estrutura aberta de informação plena, onde tudo parece reger-se por coordenação (a própria consciência totalizante em ação) e nada por subordinação. Em relação à guerra clássica, linear, a guerrilha é uma estrutura móvel operando dentro de uma estrutura rígida, hierarquizada. Nas guerrilhas, a guerra se inventa a cada passo e a cada combate num total descaso pelas categorias e valores estratégicos e táticos já estabelecidos. Sua força reside na simultaneidade das ações. Abrem-se e fecham-se frontes de uma hora para outra. [...] Nas guerrilhas, as tropas, se de tropas se pode falar, não tomam posição para o combate; elas estão sempre em posição, onde quer que estejam. [...] Só a guerrilha é de fato total (excluindo

1

Augusto de Campos, «Revistas re-vistas: os antropófagos», in Revista de Antropofagia, ed. fac-similar, São Paulo: Círculo do Livro, 1975, página não numerada.

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Oswald de Andrade, «Manifesto Antropófago» (1928), in A utopia antropofágica, São Paulo: Globo e Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 47.

3

Oswald de Andrade, «Mensagem ao antropófago desconhecido» (1946), em Estética e política, org. Maria Eugenia Boaventura, São Paulo: Globo,

1992, p. 286. 4 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, «Tratado de nomadologia: a máquina de guerra», in Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia (1980), v. 5, trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa, São Paulo: 34, 1997, pp. 11-110.


10 a [guerra] atômica...). Constelação de liberdade sempre se formando».5 Da atuação deste «guerrilheiro da idade industrial» que foi Oswald, é significativo que, no seu texto, Pignatari destaque uma iniciativa malograda, que, porém, no seu malogro mesmo, parece dirigir-se, mais até do que alguns esforços bem sucedidos, ao futuro; não por acaso, uma iniciativa que lhe chega em forma de rumor e possibilidade: «Já na década de 40, creio, Oswald de Andrade desejou lançar no Rio de Janeiro um novo projeto ou movimento artístico, que se denominaria algo assim como “Projeto Zumbi”, pelo qual propunha uma espécie de frente ampla dos artistas modernos, no sentido de organizarem uma resistência sistemática — até o último homem — a todas as tentativas de institucionalização (absorção) da arte moderna. Segundo me informou Pompeu de Souza, que ficou encarregado da redação final do manifesto Zumbi (não sabemos se foi sequer publicado) e que serviu de mediador nas tratativas, a frente ampla não pôde ser formada porque os intelectuais solicitados a julgaram uma manobra de Oswald para se reaproximar e fazer as pazes com Mário de Andrade (já bem composto com o sistema, diga-se de passagem). De outra parte, sabe-se que Murilo Mendes respondeu a “Zumbi” com uma blague: “Seria mais revolucionário fundar novamente a Academia Brasileira de Letras”. No entanto, a proposta de Oswald era historicamente correta e trazia no seu bojo a possibilidade de uma verdadeira “revolução cultural”, destinada a impedir a sedimentação e a diluição das conquistas de 22 e a desentorpecer os seus membros. O “Projeto Zumbi” se insere no processo geral da vanguarda, deflagrado no século passado sob a pressão da revolução industrial, processo esse que vem estabelecendo um desenvolvimento marginal da arte em relação ao sistema artístico estabelecido e em oposição a ele. Sua estrutura dinâmica só é 5

significante dentro de uma visada sincrônica e não diacrônica, ou seja, simultânea e não cronológica».6 É essa vitória da simultaneidade sobre a cronologia que convida Pignatari a um vaticínio sobre a vingança triunfal das ideias e práticas oswaldianas por meio do teatro, e mais exatamente do contraste entre o Oficina e o Arena, que estreara em 1965 o espetáculo Arena conta Zumbi: «Mas, por ora, se alguém conta ninguém canta esse Zumbi. Cantarão, porém: A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico (O. Andrade). A sua peça O rei da vela será montada por José Celso [Martinez] Corrêa, em agosto próximo, para espanto e escarmento de todos os lineares teatrais».7 Porém, antes de Zumbi, coube à Antropofagia, nas palavras de Oswald, «salv[ar] o sentido do modernismo».8 Apoiando-se numa compreensão aguda do que estava em jogo na antropofagia indígena (o que ele chamou de «absorção do inimigo sacro» e «transfiguração do tabu em totem»), abriu para nós, seus pósteros, ou contemporâneos anacrônicos, algo como a possibilidade de um pensamento pós-ocidental, que ao contrário, por exemplo, do dadaísmo (outra posição teórica, mais do que apenas uma tendência artística, tão fundamental quanto a Antropofagia e tão próxima dela em alguns aspectos, e da qual até hoje também não se extraíram todas as consequências filosóficas), não quis simplesmente fazer tabula rasa do patrimônio cultural que, para o bem e para o mal, vincula América e Europa, mas, sim, estabelecer uma angulação que nos permitisse lidar de maneira renovada com esse patrimônio. Fazendo-nos ver, antes de tudo, que os próprios europeus podem ser tão antropófagos quanto os habitantes da América. Lembremos que Oswald constata: «Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem».9

Décio Pignatari, «Teoria da guerrilha artística» (1967), in Contracomunicação (1971), São Paulo: Perspectiva, 1973, pp. 158 e 160.

6 Id., pp. 157 e 161. 7

Id., pp. 161-162.

8 Oswald de Andrade, «O caminho percorrido» (1944), in Ponta de lança, São Paulo: Globo, 2004, p. 167. 9 Oswald de Andrade, «Manifesto antropófago» cit., p. 48.


11 Menos do que uma posição nacionalista, como poderia sugerir a reivindicação baseada no nós, o que temos aí é a postulação da América como lugar de deslocamento, como território de desapropriação. Já dizia Dante Alighieri, que situou a montanha do Purgatório na região onde um século e meio depois Colombo encontraria o novo continente, que «de la nova terra un turbo nacque»: «da nova terra um turbilhão nasceu». A política antropófaga de Oswald ameaça a catastrófica estabilidade do mundo — do mundo «datado» e «rubricado»10 — com a força renovadora desse turbilhão. [Uma primeira versão, reduzida, deste texto foi publicada no site do jornal O Globo em julho de 2011.]

Eduardo Sterzi (Porto Alegre, 1973) é professor de Teoria Literária na Unicamp. Publicou, entre outros, A prova dos nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria e Por que ler Dante. É autor também de livros de poesia (Prosa, Aleijão, Maus poemas) e de teatro (Cavalo sopa martelo). Foi um dos curadores das exposições Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo e Caixa-preta. Atualmente prepara, sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, um livro (com Veronica Stigger) e uma exposição (com a mesma Veronica, mais Marta Mestre). 10 Id., p. 50.


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MÁRIO DE ANDRADE /

Uma leitura do poema “O rebanho”, no centenário de Pauliceia Desvairada e da Semana de Arte Moderna Carolina Serra Azul


13 Em fevereiro de 1922, o Teatro Municipal da cidade de São Paulo recebia a Semana de Arte Moderna, ocasião em que um grupo de artistas dava um pontapé inicial no sentido de atualizar a arte brasileira, conectando-a com outras formas culturais existentes no Brasil e além. Poucos meses depois da Semana, Mário de Andrade publica Pauliceia Desvairada, livro de poemas que marcaria definitivamente as letras brasileiras. O livro de Mário não é exatamente um resultado da Semana de Arte Moderna – a obra foi escrita entre 1920 e 1921; pode-se dizer que a obra é uma expressão artística paralela ao evento do Municipal, índice de que o movimento engendrado em fevereiro não terminaria ali e geraria debates longevos: cá estamos, 100 anos depois, referindo-nos todos nós à Semana, seja para aceitá-la ou rejeitá-la. A Semana de Arte Moderna e as obras que gravitam em torno dela são tradição, no sentido vivo e dinâmico que Antonio Candido conferiu ao conceito em Formação da Literatura Brasileira. Certamente, a Semana também pode ser encarada como produto na prateleira a ser combatido por concorrentes no mercado; a concorrência recusa o pensamento e investe em destruição do oponente, prática cara à mentalidade neoliberal da qual o mundo da cultura não escapa. A competição não é característica apenas do nosso tempo, é claro. A Semana de Arte não deixa de ser também expressão de elites em conflito - e, como se sabe, a oligarquia cafeeira, sobretudo aquela ligada a Paulo Prado, que financiou o evento, julgava-se mais “civilizada” do que certa “aristocracia do nada”, para mobilizar um termo certeiro de Paulo Emilio Salles Gomes, que o empregou para se referir a um outro momento histórico. De um lado, uma arte moderna e atualizada, que formularia uma noção de progresso tão sui generis quanto interessante (termo que, quase sempre, leva em conta um outro conceito que a mentalidade neoliberal quer expulsar do debate público: contradição). Do outro, uma arte academicista, pautada pela cópia acrítica de modelos europeus e pela abstração dos problemas (daquela) contemporaneidade. Pauliceia Desvairada é, nesse sentido, um livro de combate (assim como a Semana que precedeu a publicação do livro); combate

à arte passadista e a uma certa concepção de país que a fundamentava. Porém, como a poesia de Mário não se configura como uma transposição do ideário da elite que financia a explosão modernista, a dimensão crítica de sua obra pode se voltar – e constantemente se volta – contra aqueles que materialmente estavam, digamos, a seu lado. Desse modo, Mário de Andrade logra empreender em Pauliceia Desvairada um pensamento autônomo e contundente sobre, por exemplo, a República, àquela altura jovem (e, como é fácil de observar em 2021, sempre ameaçada, se é que ainda existe). Vejamos, nesse sentido, o poema “O rebanho”: O rebanho Oh! minhas alucinações! Vi os deputados, chapéus altos, sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas, saírem de mãos dadas do Congresso... Como um possesso num acesso em meus aplausos aos salvadores do meu estado amado!... Desciam, inteligentes, de mãos dadas, entre o trepidar dos táxis vascolejantes, a rua Marechal Deodoro... Oh! minhas alucinações! Como um possesso num acesso em meus aplausos aos heróis do meu estado amado!... E as esperanças de ver tudo salvo! Duas mil reformas, três projetos... Emigram os futuros noturnos... E verde, verde, verde!... Oh! minhas alucinações! Mas os deputados, chapéus altos, mudavam-se pouco a pouco em cabras! Crescem-lhe os cornos, descem-lhe as barbinhas... E vi que os chapéus altos do meu estado amado, com os triângulos de madeira no pescoço, nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde, se punham a pastar rente do palácio do senhor presidente... Oh! minhas alucinações!


14 Os elementos centrais do poema são adiantados por Mário no “Prefácio Interessantíssimo”, texto introdutório de Pauliceia Desvairada: loucura e blague entrelaçam-se com vistas a configurar, pelos versos, uma imagem onírica e engraçada do moderno sistema de governo – o qual os senhores do café articularam para implementar em solo brasileiro. Apesar do poema apresentar uma progressão – inicialmente, os deputados são vistos como as pessoas que são, com seus trajes distintos metonimicamente fixados por chapéus e pálio, e terminam de quatro, pastando como as cabras em que se transformam – a ótica da alucinação se coloca já no primeiro verso. Não há, no poema, imagem que não seja balizada pelo olhar daquele que está alucinado. Assim, é já dentro de uma condição alucinada que o eu aplaude os salvadores e heróis do seu “estado amado”. Seus aplausos são comparados aos gestos de um “possesso num acesso”, isto é, aos de alguém possuído por alguma instância sobrenatural – geralmente pelo diabo, se pensarmos na tradição cristã, figura a qual também se liga a imagem da cabra, assim como a do bode. O diabo aparece, assim, enviesadamente neste poema de Mário. Apesar de ser o pai da mentira, nem só dela vive o demo: como a tradição literária ocidental mostra – especialmente a alemã, a qual Mário de Andrade é intensamente ligado – o diabo pode revelar a quem o adora um saber infinito, sobretudo quando a ciência e o esclarecimento mostram seus limites. Nesse sentido, a configuração de “O rebanho”, como outros poemas de Pauliceia Desvairada, afinado com as vanguardas históricas, aponta para a necessidade de baliza do pensamento forjado no ocidente que, embora hasteie a bandeira da Razão, não se furta a utilizá-la para perpetuar opressões e encobrir (quando não justificar) formas de dominação “irracionais”. Com isso, não quero dizer exatamente que a possessão diabólica entrega ao eu do poema um saber sobre o mundo; na verdade, ela é um dos elementos que, atravessado pela blague, auxilia a compor uma imagem que desvela as pretensões modernizantes da Primeira República, como se revelasse o seu

fundamento: mais do que bestas ligadas à iconografia cristã, as cabras com cornos e barbinhas em que os deputados se transformam sob a ótica alucinada do eu se relacionam a quadrúpedes que são propriedade de alguém – no caso, pastam “rente do palácio do senhor presidente”, como animais que procuram seu dono. A alucinação marioandradina transmuta a República, repleta de chapéus altos e táxis, em um pasto; o alucinado, como um vate, entrevê no país urbano o país rural. Como apontei, a ótica alucinada do eu abre o poema e o atravessa por inteiro. Ele está possesso tanto quando aplaude os deputados quanto no momento em que eles se transformam em bichos. Desse modo, as esperanças que o eu deposita nas ações dos homens de Estado são subsumidas por suas alucinações. Se, por um lado, o sujeito possesso tem esperanças de “ver tudo salvo” e acredita que os “futuros noturnos” do país se afastam diante da forma de governo “civilizada”, é revelador o verso que se coloca entre essas duas imagens: “Duas mil reformas, três projetos...” – mesmo quando aplaude os deputados e está tomado pelo otimismo esperançoso, ao observar o Congresso o eu entrevê duas mil reformas e três projetos para o país. A disparidade dos números não deixa de configurar mais uma blague do poema, e parece balizar as esperanças do sujeito que deseja a salvação total e um futuro de Luzes: os deputados podem oferecer ao país milhares de reformas, mas projetos – cujo sentido encerra noções como as de desígnio e futuro -, há apenas três. O eu alucinado mas que, a essa altura já percebemos, enxerga algumas verdades, este eu aponta que os deputados que aplaude oferecem ao país mais retificações do que propostas efetivamente inovadoras, pensadas com método, para o futuro. Esse grupo de homens públicos que reformam demais – ligam-se mais ao passado, buscando emendá-lo – e projetam de menos é tragado pelo passado a que não enfrentam (porque não querem, têm seus próprios interesses): se não pastam rente ao Palácio do Imperador, pastam rente ao do presidente, eis a imagem (alucinada) do país das duas mil reformas.


15 É certo que o verbo reformar também significa formar de novo. Pensando desse modo, o número hiperbólico – duas mil reformas – pode corresponder quase ao contrário do que aventei acima, isto é, nas milhares de reformas entrevistas pelo eu do poema pode estar contida uma vontade de formar o país de vez, pra valer: superando a Colônia, superando o Império, eis a República e duas mil propostas imaginativas do que o país poderia ser. Ainda assim, o desdobramento dos deputados em cabras que pastam desfaz essa ilusão compulsiva de re-formar o país. Da República, restam o presidente e seu Palácio – e, ainda assim, há menos dessemelhanças entre um presidente e um monarca do que podemos supor: como mostra Marx em 18 do Brumário, quando uma figura como um presidente não representa um partido ou uma causa, mas uma nação; quando sua relação com o país é pessoal e algo como um “espírito nacional” nele se encarna, “o presidente possui (...) uma espécie de direito divino, pois ele detém o seu cargo pela graça do povo”.1 Nesse poema, a República configurada por Mário de Andrade afasta-se da imagem de uma democracia e aproxima-se da imagem de um país cujos homens de Estado são nada menos que animais submissos que pastam a serviço de um Senhor – um presidente, um monarca, um proprietário de terras. Entre a blague e a loucura, o eu entrega aos leitores a Primeira República transmutada em algo que o Brasil buscava superar, ou dizia buscar superar: uma terra privada, em que poucos mandam e muitos obedecem, de forma submissa: como gado, pastam. Dessa forma, o poema aponta para a autonomia artística (e, consequentemente, de pensamento) de um egresso da Semana de Arte Moderna, apesar da elite simpática à República que a financiava. Dentro da alucinação do eu, re-formação, projetos e futuros iluminados são obnubilados pelos 400 anos de história do país. Nesse sentido, “O rebanho” mostra que Mário não desrecalcava – aludindo ao termo certeiro mobilizado por Antonio Candido para falar dos modernistas de 1

1920 – apenas culturas populares desprezadas pela cultura oficial; a configuração do poema desrecalca as contradições internas à própria cultura e política oficiais e seus compromissos com a “falange sagrada da ordem”, para falar mais uma vez com Marx: família e propriedade. O mecenato de uma elite que buscava combinar sociabilidade colonial a elementos modernizantes não impede que o poeta pinte o retrato daqueles que o financiam: os versos do arlequim alucinado pensam, e não mentem.

Carolina Serra Azul é pesquisadora e professora de literatura. É mestre em Teoria Literária pela FFLCH-USP, com dissertação sobre as relações entre Guimarães Rosa e o primeiro modernismo brasileiro. Atualmente, é doutoranda na mesma instituição, onde pesquisa os nexos entre cinema e literatura brasileiros na década de 1970.

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, pp. 43-45.


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LUÍS ARANHA /

Ou como era ousado o meu Modernismo Paulo Ferraz


17 Que o pensamento moderno no Brasil cria suas primeiras sinapses antes de 1922, e não apenas em São Paulo, todos estão mais do que convencidos. Portanto, não é preciso ninguém perder seu tempo para promover polêmicas desnecessárias às vésperas do centenário da Semana de Arte Moderna. O próprio Mário de Andrade, em 1942, ao fazer uma das mais coerentes avaliações do movimento, publicada inicialmente no jornal O Estado de São Paulo, entre 22 de fevereiro e 15 de março, e em seguida apresentada em sua forma definitiva na biblioteca do Palácio do Itamaraty, reconhece que aqui e ali havia iniciativas que somavam à arte e ao pensamento brasileiros características que destoavam do que fora feito pelo nosso academicismo moribundo, estranho à realidade nacional e incapaz de criar obras relevantes ao longo, pelo menos, das duas décadas que antecederam a Semana, com exceções muito, mas muito, pontuais. O fato é que, coletivamente, a distorção da noção de progresso e civilização reforçava um autoengano que confundia cultura e literatura com erudição, correção gramatical e retórica. Para que autocrítica de nossa formação histórica se nos sobrava bazófia? Era uma mentalidade tão hegemônica que os primeiros a se libertarem de suas amarras já podiam ser considerados bizarros e estranhos. Era esse o tipo de julgamento que recebiam os cautelosos Ribeiro Couto e Ronald de Carvalho, que dão os primeiros passos numa poesia que abandonava o tom grandiloquente e os temas abstratos para se concentrar na singeleza do cotidiano, assumindo um meio tom que já antecipava a coloquialidade que viria em seguida. Nesse contexto, as vanguardas europeias não eram uma novidade no Brasil. Novidade era um grupo de artistas e intelectuais levarem a sério seus ideais e não tachá-las de antemão como equivalentes a excentricidade, deficiência, incompetência ou pura alienação. Até então, a arte ideal para a aristocracia tropical era aquela que a embalava no sonho de equilíbrio e harmonia beletrista, algo incompatível com o espírito genuinamente moderno que se vivia nos centros urbanos na esteira de uma guerra mundial, uma revolução proletária, a ascensão vertiginosa

de uma nova potência e uma economia global cada vez mais interligada, com preços, como o do café, sendo definidos por algum operador de Bolsa sabe-se lá onde. Enquanto a imprensa mais conservadora teve fôlego, tudo o que fosse ruim, malfeito ou estranho era logo achincalhado como futurista, pois, mais que oposição, o que se via mesmo era uma absoluta incapacidade de compreender que a arte mudara. Foi assim já em 1909, logo após a publicação do manifesto de Marinetti, e continuou a ser mesmo após 1922, com a diferença de que, paulatinamente, ficou claro o quanto os sons da Klaxon repercutiam bem mais que os da Fon-fon. Procurando bem, mesmo Pauliceia desvairada, publicada alguns meses após os escândalos do Municipal, apresenta ainda alguns elementos que envelheceram depressa, ou porque carregavam uma certa ascendência simbolista, ou porque foram ensaios de um modernismo que se exauriu ao cumprir seu papel, sobretudo o apelo ao verso harmônico, que tem seu mérito apontar para a percepção da simultaneidade, mas que não se descola da fixação pela melodia como parte integrante do poema. Aliás, em defesa do verso livre, Mário via com reservas o poema em prosa, em que pese sua utilização no poema ser procedimento indispensável para se atingir um maior grau de ruptura em relação à lírica rotineira. A renovação definitiva viria apenas em 1925, com Pau Brasil de Oswald de Andrade, cujos recursos de composição inauguram um novo padrão poético que atravessou o século passado e chegou aos dias atuais como uma voz poderosa para registrar estética e criticamente o lugar do sujeito na realidade nacional. Contudo, mesmo Oswald teve que se desvencilhar de muitos cacoetes acadêmicos e certos vícios bacharelescos que estavam na base da formação dessa geração nascida nos primeiros dias da República. Entre Pauliceia e Pau Brasil não há nenhum livro que rivalize com ambos. Mas talvez tenha havido um poeta, Luís Aranha, cuja obra só veio a ser difundida após 1984, com a publicação de Cocktails, já que, antes dessa data, contribuíra com quatro poemas na Klaxon e, até onde se sabe, por sua vontade, mais nada, conhecendo-se outros poemas por iniciativa alheia, como de Mário de Andrade,


18 Sérgio Millet e Manuel Bandeira, além de excertos em comentários esparsos. Sobre Aranha e seus poemas vale a pena elaborar um breve mosaico de opiniões para que a conjectura anterior possa ser investigada: “é, entre nós, o que melhor percebeu a simultaneidade exterior da vida moderna” e “página genial, dum sopro épico raro conseguido em poesia brasileira” (Mário de Andrade), “versos da primeira fase modernista. Defeituosos graças a Deus. Deliciosos, porém de inspiração” (Sérgio Millet), “poemas estranhos” (Manuel Bandeira), “interessantíssimos poemas de vanguarda” (Cassiano Ricardo), “a voz de Maiakóvski vibrando no Planalto” (Domingos Carvalho da Silva), “quem se a essa obra parca falta amplitude, sob uma perspectiva quantitativa, sobra-lhe intensidade e “épico do mundo das máquinas” (José Lino Grünewald), “reflete expressivamente o espírito de 22” (Mário da Silva Brito), “uma antena captando os signos da modernidade estética e experimentando-os na prática.” (Antonio Risério), “estes três poemas são excelentes e inteiramente originais. Nada há de parecido com eles na literatura brasileira” (Nelson Ascher). Por esses fragmentos de sua acanhada fortuna crítica, podemos vislumbrar algo da inusitada dicção de Luís Aranha, feita da mesma corrente elétrica que acionava teares e prensas rotativas, iluminava as ruas, impulsionava os bondes e transformava películas em cenas em movimento. Seus ritmos imagéticos traduzem, como nenhum outro poeta de 1922, o frescor não tanto do poeta, cujos vinte anos hão de ter sugestionado Mário de Andrade a interpretar sua poesia como ginasiana, mas do próprio século que efetivamente acabara de nascer entre as trincheiras da I Guerra e da revolução bolchevique. O velho século XX se anunciava naqueles dias como uma era de promessas, que para se concretizarem demandavam um solo fertilizado pela destruição das formas e padrões que as antecederam, pois qualquer convivência com o passado se anunciava, então, como inconciliável. Em A escrava que não é Isaura, Mário de Andrade, em sua argumentação favorável às inovações introduzidas pelas vanguardas, se apoia diversas vezes nos poucos poemas que Aranha havia escrito, mais que qualquer outro poeta contemporâneo. Nessa sua

primeira manifestação, na qual não há nem sombra do estereótipo de um estudante cioso em recitar lições aprendidas, Mário era categórico ao afirmar que ele já era “um filho da simultaneidade contemporânea”. Isso porque, em Aranha, dois ou mais corpos aparentam ocupar o mesmo espaço. Geografia e história tornam-se categorias fluidas, cujas fronteiras a imaginação poética atravessava com facilidade e descomprometimento: o Palácio das Indústrias era o Kremlin; o Brás, Istambul; São Paulo, Nova Iorque, não por mero floreio metafórico, mas por força de uma fusão de experiências intelectuais e sensíveis (“combinações de ideias e reações de sentimentos”) que exprimiam a compreensão de o mundo estar se convertendo em uma coisa só, com revoluções, guerras, comércio, relações de trabalho, cotação do dólar, desastres naturais vividos pelos sujeitos in loco, mas também pelos moradores das cidades modernas mundo a fora, nesse caso como uma segunda realidade, a da linguagem cotidiana que circulava pelos telégrafos, jornais e cinema. O que hoje parece tão corriqueiro, há um século era uma transformação que abalava os padrões de representação dos dados empíricos. De início, o que Aranha parece propor em seus poemas é que essa circulação de informações se dá em uma via de mão dupla. Assim sendo, a voz do poeta também poderia se mover pelos eventos, pelas paisagens e pelas mercadorias, apropriando-se da velocidade com que as notícias se sobrepõem e do mecanismo de sucessão de imagens cinematográficas que constituíam novas narrativas. A leitura dos seus poemas é uma aventura da modernidade por meio dos procedimentos que ela própria inspirava, pois dava ensejo a uma nova fruição sensorial do real. Basta que pensemos num autor citado textualmente por Aranha, Blaise Cendrars, que, com sua monumental La prose du transsibérien et de la petite Jehanne de France, de 1913, cria um ritmo imagético tão exuberante e inusitado que permitia ao poema transitar pela geografia europeia com a desenvoltura de uma locomotiva estética. Curiosamente, em Aranha também aparece essa fantasia de a distância entre os países estar se estreitando, de estar ao alcance das mãos ou pelo menos mediado por um


19 bilhete que lhe possibilitasse viajar num expresso do Alasca à Terra do Fogo. Não era o mundo que havia se estreitado (“o mundo é estreito para minha instalação industrial”), mas o ocidente que havia criado condições técnicas de tal modo poderosas que proporcionavam a nós a miragem de sermos maiores que nossa estatura física. Nos poemas centrais de Aranha, “Drogaria de éter e de sombra”, “poema pitagórico”, “poema giratório” e, ocasionalmente, em poemas menores como “Cocktail”, “Telegrama”, “Minha amada” e o “Poema pneumático”, nos deparamos com esse sujeito que não se restringe às amarras da realidade objetiva, transformando seu entorno no cenário de sua sensibilidade, alterada pela febre, pelos entorpecentes, pela eletricidade e, especialmente, pela ampliação formal promovida pelas vanguardas europeias, libertando o poema das convenções gramaticais e sintáticas que condicionavam a poesia a uma manifestação unicamente do pensamento estruturado pela lógica do idioma. Do mesmo modo, também as fronteiras dos gêneros eram desafiadas por uma benéfica permeabilidade, com um frequente emprego da prosa combinada com o verso livre, este sim a grande inovação para os mais tímidos, além de outras variedades da linguagem não literária, como a escrita jornalística, o apelo publicitário e a comunicação telegráfica, permitindo inclusive o uso de palavras isoladas e a valorização da tipografia, muitas vezes conduzindo o texto sob o signo do humor e da irreverência. Nenhum modernista ousara tanto, malgrado o que para alguns podem ser lidos como falhas ou exageros. Contudo, mesmo esses, como ver no rosto amado um disco de Newton, ainda hoje preservam a vivacidade de quem exerceu plenamente o direito de errar. Seu suposto enciclopedismo está bem longe da exibição de quem almeja ser aprovado com louvor num exame, já que a demonstração de estar a par dos últimos acontecimentos ou dominar um ramo da ciência não são um fim em si, mas um meio pelo qual desestabiliza os mecanismos obsoletos de compreensão e cultura vigentes, pois, onde se leem notícias, personagens, eventos ou dados, devemos pressentir a ação de procedimentos técnicos

inovadores como a colagem, a apropriação, a justaposição, a montagem, a enumeração caótica, a sintaxe visual, enfim, um diversificado trabalho textual capaz de representar uma atmosfera que tinha a surpresa, o inesperado, a inconstância e a mudança como marcas. Fosse a lição de um aluno aplicado, seria só mais um passadista com roupas modernas. Em Aranha se anuncia a “alvorada de metal”, que mobilizará todas as forças disponíveis para vencer a estagnação: Andar com a força de todos os automóveis Com a força de todas as usinas Com a força de todas as associações comerciais e industriais Com a força de todos os bancos Com a força de todas as empresas agrícolas e as explorações de linhas férreas Os capitais amontoados em pilhas elétricas Forças presidenciais e forças diplomáticas A força do horizonte vulcânico As forças violentas as forças tumultuosas de Verhaeren (...) Sou uma força centrífuga e centrípeta

Certamente inspirada de início pela Pauliceia e municiada pela atualizadíssima biblioteca vanguardista da Lopes Chaves, a poesia de Aranha apresenta um indivíduo no ponto em que se percebe arrancado da inércia provinciana, poeticamente atrelada à estabilidade parnasiana e ao conforto dos salões, então substituída pelo alvoroço das vias públicas, onde as certezas se dissipam e a imagem ultrapassada do poeta colide com o pregão comercial. Extraordinariamente, “Drogaria de éter e sombra”, escrito em 1921, inicia com uma colagem publicitária, na qual não se emprega nenhum verso em sentido estrito, nenhuma metáfora, nenhuma figura, apenas um radical desvio funcional que extrai poesia dessa mina de ouro que a propaganda já dava sinais de ser, em especial, por sua capacidade ímpar de mobilizar informação técnica e estímulo emocional, na medida em que a publicidade mais que convencer, seduz. Daí o incômodo de, após esse preâmbulo, vir em tom de lamento a primeira intervenção propriamente lírica, “Eu era poeta”, descrição


20 posta no passado, pois o que se entendia como tal já havia se perdido (algo que Drummond recuperará bem depois, “O último trovador morreu em 1914./ Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.”), pois “o prestígio burguês dessa tabuleta/ explodiu na minha alma como uma granada”. Essa alma reduzida a escombros. por certo, não elimina de imediato a cultura no qual fora formado (e ser pouco mais que um garoto era sem dúvida uma vantagem), razão pela qual seus poemas, explorando a força sugestiva dos contrastes, preservam ironicamente traços antiquados do que se quer superar, aquilo que ele chama de “arte fóssil”, como ecos de metros, restos de rimas e metáforas retóricas, que dispersos no livro evidenciam o quão velhos chegávamos a uma sociedade industrial que em outras partes do mundo permitia tanto a acumulação de riquezas, como a dos “milionários norte-americanos/ que via no “cinematógrafo”, quanto a luta por emancipação da classe trabalhadora. A poesia, que fizera pouco caso de nossa base material nessa passagem para uma economia interligada ao mercado internacional, é aqui apresentada ao universo das finanças, das relações de trabalho e das ideologias que se constroem em torno dos conflitos de classe. Nesse contexto, Aranha propõe o abando do mundo etéreo das musas (“Minha musa romântica/ Morreu após o seu primeiro parto,/ Que foi para a cesta com mal de sete dias.”) para assumir seu posto no mundo dos bens de produção e de consumo, a despeito de o valor do objeto-poema continuar a ser dos menos cotados. As mulheres que passam no triângulo são o melhor da Bolsa Um Paulista raid Rio-Buenos Aires pela primeira vez 2400 km. A Bolsa é uma arena Alta do dólar, baixa do café Mercadorias alemãs O céu está cheio de aeroplanos que voejam como corvos Dólar 9$000 Imigração japonesa O porto de Santos atravancado de mercadorias americanas que os compradores recusam

New-York Herald Eu Recebo livros de versos da França e da Itália Porque sou poeta

Aliás, uma ligeira referência à Ilíada pode até parecer uma tentativa de manter-se a aura culta, com o risco de boa parte dos leitores assim interpretar, mas tem verdadeiramente outro sentido, já que sua função ali é distinta, pois a citação se insere no poema como uma espécie de recorte transposto de uma epopeia para apresentar outra, a que ele vê nas ruas e lê no jornal, da mesma forma que as lombadas com os nomes de Shakespeare, Dante e Whitman se confundem com os rótulos de remédios, drogas e outros produtos químicos. A sua epopeia é a saga dos imigrantes que vagam pelo mundo empurrados pelas guerras e pela fome, atraídos por oportunidades de trabalho e de reconstrução de sua vida, ainda que com o risco da perda de sua identidade, as quais ainda carregam na face e nas roupas, mas que já começam a se diluírem misturados aos demais passageiros do bonde, o veículo modernista por excelência, que a todos transporta do trabalho para o lar e vice-versa, vigiados todos pela lente alucinante da poesia. Ao anunciar sua geração como “os primitivos de uma nova era”, Aranha reconhece esse estágio embrionário de nossa intelectualidade, que ainda engatinhava como coletividade orientada também para a intervenção política. A modernidade além da face tecnológica, que alterava hábitos e costumes, tinha outra menos evidente, mas não menos importante, a do novo conjunto de ideias que começava a abrir fissuras nos dogmas positivistas, liberais e conservadores seguidos às cegas pelo grosso da sociedade. Psicanálise, antropologia e o comunismo, por exemplo, haviam há pouco sido admitidos, a contragosto dos formadores de opinião, nos círculos educados e, da mesma forma que as vanguardas, municiaram os artistas de ferramentas analíticas e de acercamento com a contingência histórica. A revolução bolchevique mal havia se consolidado na Rússia, mas seu exemplo já inspirava operários ao


21 redor do mundo, que começam a trazer na ponta da língua os nomes de Lênin e Trótski, personagens que, para o descontentamento dos ouvidos mais delicados, também chegavam à literatura. No “Poema giratório”, em meio ao delírio de uma febre, cuja medição da temperatura é habilmente empregada como uma marcação dos trechos do poema, Aranha mescla memória e alucinação, motivado pelo primeiro livro bolchevique que lera, devidamente ocultado embaixo do travesseiro como convinha à uma leitura censurada, o que testemunha o quanto certas ideias eram perseguidas, enquanto a enfermeira lê o jornal e no quarto vizinho era assoviado um ragtime. A revolução russa era proletária, mas também futurista, afinal “todas as explosões são revolucionárias”. Aranha aparenta estar longe de ser entusiasta dos escassos e titubeantes comunistas brasileiros que, naquele mesmo ano de 1922, finalmente lograram a fundação do seu partido, porém é um dos primeiros a perceber o potencial poético que um corte tão radical no modo de organização social oferecia à imaginação artística. Em sua recriação poética desse novo cotidiano, a revolução, desde suas raízes ligadas às práticas que aceitavam a violência como justa, incluindo ações extremistas como as da Naródnaia Volia, é apresentada como num roteiro cinematográfico: Como o russo Jalturin tinha cefalalgia [por] dormir com a cabeça sobre dinamites Eu por ter sob o travesseiro um livro bolchevista... Ele minou a sala de jantar do czar Alexandre II Tomei parte no atentado contra o imperador de todas as Rússias Minei a estrada de ferro de Crimeia a Moscou (...) E o livro que me dava dor de cabeça e exaltava os bolchevistas A enfermeira lia o jornal que relatava os últimos acontecimentos na Rússia Eu estava na lista vermelha Fuzilado no parque de Petrovsky

Massacre em massa das populações A imperatriz e as czarinas assassinadas pelos sovietes Regime do terror Fábricas e oficinas nas mãos de Lenine e Trotsky Governo do gorro da blusa Na praça do Kremlin o sangue se mistura à neve derretida A peste a fome a cólera e a guerra A feira dos ladrões se estende por toda a cidade de Moscou Dentro das muralhas rubras do Kremlin os sinos repicam festas carnificinas E o mundo como o globo que eu fazia girar no escritório de meu pai Gira velozmente em torno do seu eixo... (...) Bombas bolchevistas passando de mão em mão Todas as pontes do mundo Incêndio no Kremlin Granadas bombas tiros de canhão se cruzam como confete numa noite de carnaval (...)

Gira o disco na vitrola, gira o globo terrestre, gira o quarto, giram os cenários, gira o enquadramento que de um verso para o outro salta do Kremlin para o Brooklyn, de Lênin para Wilson (ambos, por sinal, ainda dividiriam a cena no poema 150.000.000 de Maiakóvski). E entre esses polos, Berlim, Paris, Londres, Buenos Aires, além de muita explosão, incêndio e cataclismos: “E o mundo eletrizado gira furiosamente em torno do seu eixo confundindo todos os países”. Em meio a esse ritmo frenético, chama atenção para a inserção abrupta de um “boletim médico” que interrompe o delírio justamente quando atinge a temperatura mais elevada de 41º. Ali nos é revelado que o doente é o próprio planeta, com “manchas vermelhas em quase toda a superfície”, cujo tratamento implicaria o “repouso absoluto” ou “quando muito a rotação antiga do tempo de Galileu” e a sua “deseletrização imediata”. Obviamente, a terra estaria condenada por esse diagnóstico anacrônico. Entre os participantes da Semana, Aranha estava entre os mais jovens, nascido em 1901, por isso,


22 talvez, tivesse menos compromisso com o passado e menos receio em dinamitar as pontes com os poetas que o antecederam. Por mais inconsequente que essa postura hoje nos possa parecer, deveria ter sido, naquela circunstância, a esperada de todos, pois atitudes dúbias ou hesitantes acabavam por conceder sobrevida a vozes irrelevantes, mas influentes, seguramente mais adversas ao avanço da poesia brasileira que qualquer arroubo mais cabotino de um vanguardista. Entretanto, por razões que não são conhecidas, aparentemente Aranha não teve o interesse suficiente que o motivasse a levar adiante seu projeto intitulado Cocktails e simplesmente emudeceu para a literatura. A comparação com Rimbaud é inevitável (que, por sinal, aparece justamente no poema intitulado “Cocktail”, logo após Cocteau e Cendrars, que juntos personificam uma espécie de declaração de princípios: (“Espontaneidade/ Simultaneísmo/ O só plano intelectual traz confusão/ Associação/ Rapidez/ Alegria/ Poema/ Arte moderna”), e foi feita desde o início, pois aos vinte e um anos mal começara a escrever e já abandonou a poesia. Todavia a semelhança entre ambos não deve ser procurada na renúncia, e, sim, na colossal entrega com que se lançaram à tarefa de unir a escrita e o agora. Aranha participará de convenções internacionais, visitará palácios, caminhará por ruas ouvindo línguas exóticas, mas não como poeta, tampouco como traficante de armas, pois o fará como diplomata, mesmo ofício ao qual irão se dedicar os modernistas Ribeiro Couto e Raul Bopp. É preciso honestidade para reconhecer que Cocktails é um livro desigual, pois era ainda um esboço promissor, jamais “um desastre definitivo”, como Mário severamente o julga após dez anos no ensaio “Luís Aranha ou a poesia preparatoriana”, considerando-o resultado dos “cacoetes da época”. Contudo, embora aponte deslizes de execução, talvez pesando a mão mais do que o necessário, os elogios que faz a Aranha são, sem dúvida, mais sinceros e mais abrangentes, sendo graças a esse artigo que a memória de sua poesia continuou latente, só voltando a ser valorizada quando os poetas brasileiros recuperaram seu interesse pelos procedimentos hostis à retórica que as vanguardas dos anos 1950 ofereciam.

Seu livro permaneceu inédito por mais de sessenta anos e já vão quase quarenta desde sua única edição. Ainda assim, seu semidesconhecimento não impediu que, nesse tempo, encontrasse interlocutores que puderam com isenção avaliar sua produção à luz das novas leituras que a crítica brasileira possibilitava, o que nos permitiu ir além das pistas que o próprio Aranha dera como leitor francófono de Apollinaire, Cendrars, Verhaeren e Cocteau, vislumbrando a presença direta ou indireta do imagismo anglo-americano e do futurismo russo, podendo estar na assimilação, ainda que superficial, dessas duas correntes a chave para a elucidação da singularidade de sua voz dentro do grupo modernista. Ao completar o centésimo aniversário de seu silêncio, faz-se necessária uma releitura da tão breve quanto concentrada poesia de Luís Aranha, em favor do prazer singular que proporciona e de seu valor histórico por associar primorosamente uma audaciosa pesquisa formal ao contexto social, dentro de uma ousadia e irreverência juvenil, não por ser pueril ou imatura, mas por irradiar uma contagiante jovialidade que nos faz falta, já que, no sentido oposto, a década de 20 do século XXI não tem inspirado tanta esperança. Resgatar essa alegria é uma forma de impedir que não nos transformemos, nós, nos sapos-tanoeiros de antes.


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Paulo Ferraz (Mato Grosso, 1974) é autor dos livros de poemas Constatação do óbvio (1999), Evidências pedestres (2007), De novo nada (2007), publicado também no Equador e no México, e Vícios de imanência (2018). Organizou a antologia Roteiro da poesia brasileira: anos 90 (2011) e traduziu livros de poetas mexicanos contemporâneos como Abigael Bohórquez, Jorge Granados, José Javier Villarreal, Luis Aguilar, Luis Armenta Malpica, entre outros, para a editora mexicana Mantis. Participou de eventos literários em Cuba, Equador, Estados Unidos, Espanha, México e Ucrânia, e mais recentemente no Uruguai e Colômbia, por meio de videoconferência. É graduado em Direito e História, doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo e ministra cursos de criação literária com ênfase em poesia e ensaio, colaborando com a Casa das Rosas, em especial no Curso Livre de Preparação de Escritores – CLIPE.


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RESENHA /

Sobre o livro Makunaimã, o mito através do tempo (EDITORA ELEFANTE, 2019) Julia Bac


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A cabeça é a de um homem negro com a boca semi-aberta e óculos pretos de aro grosso, redondos, está dentro de um cesto de palha indígena ao lado de um livro, com o título na capa “Macuinaíma” e um pequeno bilhete dizendo “Aqui jaz o simulacro macunaíma, jazem juntos a ideia de povo brasileiro e a antropofagia temperada com bordeux e pax mongolica. Que desta longa digestão renasça makunaimî e a antropofagia originária q… pertence a nós indí…”. O que acabei de descrever é uma parte da pintura “Re-Antropofagia”, feita em 2018 pelo artista indígena Danilson Baniwa, e a cabeça retratada é a de Mário de Andrade, escritor modernista, autor de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. O livro da peça Makunaimã, o mito através do tempo, assim como na pintura, denuncia e propõe a rediscussão e revisão dos cânones, é uma resposta dos povos indígenas, uma possibilidade de diálogo, e também de espaço para algumas das vozes impactadas, principalmente a dos povos originários, com o livro de Mário de Andrade, publicado em 1928. Através das falas entre os personagens — que existem na peça mas também fora dela, como o próprio Mário —, aborda questões como a generalização da palavra índio, a violência colonial, o genocídio, a evangelização dos indígenas e o estereótipo desses povos, tidos como preguiçosos desde a época da colonização, como por exemplo na fala eternizada do herói de Mário de Andrade: “ai! que preguiça!”. Logo no prefácio, Cristino Wapichama nos apresenta a diferença de pronúncia entre Makunaimã, ou seja, “a divindade indígena do tempo imemorial, (que) habita o Monte Roraima, no extremo norte do Brasil, e faz parte do sagrado de alguns povos indígenas” e Macunaíma, palavra que deu título à rapsódia

modernista. A essa diferença, Mário de Andrade, o personagem da peça, justifica: “Curioso. O alemão, como se referem ao Theodor Koch-Grünberg, havia registrado uma grafia indicando o acento aberto no segundo ‘a’, por isso cometi esse deslize”. Mário, o autor, nunca escondeu que se apropriou de textos do pesquisador alemão, feitos a partir de trabalho de campo no início da década de 1920. A peça é dividida em dois atos e se passa na Casa de Mário de Andrade, em São Paulo, hoje uma casa-museu. Na primeira parte, “Visitante”, aparece o autor, morto em 1945, com direito a vinho e charuto. Na segunda, “Mito”, são comparadas três versões do mito de origem da Piaimã: uma versão narrada na peça por Akuli-Pa (indígena taurepang), outra coletada por Koch-Grünberg e uma terceira, publicada na rapsódia. Foi através deste livro que quis voltar a Macunaíma, lido ainda na adolescência para o vestibular. Precisamos ler Makunaimã talvez como uma reparação histórica para reler Macunaíma, rediscutir Macunaíma e respeitar o sagrado das diferentes etnias. Se Mário de Andrade se apropriou dos textos de Koch-Grünberg para a sua rapsódia, tanto na pintura de Denilson como na peça os indígenas se apropriam do corpo de Mário para reverter essas narrativas. Julia Bac (1982) nasceu em São Paulo. É formada em História (PUC/SP, 2004), em Artes Visuais (Centro Universitário Belas Artes/SP, 2009), e mestre em Arte e Patrimônio (Maastricht University, Holanda, 2011). Na área literária, se formou no núcleo de ficção do Curso de Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz (SP/2018) e no CLIPE/Poesia da Casa das Rosas (SP/2017). Publicou o livro duas mortes pela editora 7letras (2021).


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ARTIGO /

Narrativas e percursos que ligam Mário de Andrade e Aimé Césaire Dayane Teixeira


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INTRODUÇÃO Mário de Andrade e Aimé Césaire, dois grandes nomes do universo intelectual e literário. Ambos expoentes de movimentos de vanguarda, respectivamente, Semana de Arte Moderna de 22 e Movimento da Négritude1. Ambos contemporâneos, apesar da diferença de idade. Dois homens que tinham em comum a negrura, no corpo, na gênese, no texto; homens diaspóricos, cuja ferramenta de atuação social principal foi a literatura, marcada pela negritude. Casualidade – ou não —, ambos estiveram conectados, mesmo não tendo ciência disso. E é sobre essa conexão que gostaria de falar por aqui. *** O PONTO [.] ONDE TUDO COMEÇA SERENDIPIDADE: substantivo feminino 1 Faculdade ou o ato de descobrir coisas agradáveis por acaso. 2. Coisa descoberta por acaso.

Fazendo uma rápida consulta com o mestre Google, descobri algumas fontes que explicam a origem desta palavra. Consta que “serendipidade” ou “serendipismo”, se origina “serendipity”, palavra inglesa criada pelo escritor britânico Horace Walpole em 1754, e usada no conto persa infantil intitulado Os três príncipes de Serendip. O conto narra as aventuras de três príncipes do Ceilão — atual Sri Lanka — que viviam fazendo descobertas inesperadas, coisas que não estavam realmente tentando encontrar. Na História, há diversos casos dessas descobertas inesperadas e auspiciosas, principalmente no

campo científico e filosófico. Bem, no meu caso, não foi nada tão inovador ou revolucionário, mas não deixa de ser, como dizem… Um achado! Não acredito em casualidades, e como gosto de palavras bonitas, prefiro pensar em Serendipidade – vocábulo interessante e curioso que um dia ouvi alguém dizer, e que se encaixa melhor neste caso. Um acontecimento fortuito e agradável, cujo culpado atende pelo nome de Mário de Andrade. Sim, pois foi este o nome com que me deparei lendo o prólogo de um dos livros célebres de Césaire, que estava lendo na ocasião. A minha surpresa não é de surpreender. Quem poderia imaginar que os dois se conheciam? Logo meu entusiasmo foi por água abaixo. Que maçada! Para minha decepção, aquele Andrade não era o nosso. Na verdade, era o de Angola: Mário Pinto de Andrade, ensaísta e político africano, um dos fundadores do movimento de libertação de seu país. Confundi os homens (rsrs); tudo por causa dos nomes! De qualquer forma, a partir de então, a culpa passou a ser compartilhada. Mas, porém, contudo, todavia… Depois da decepção, deu na veneta de querer provar por A mais B que havia alguma relação entre Andrade e Césaire. Fiquei com a pulga atrás da orelha e meu sexto sentido me impulsionou a obter a resposta que queria. Sim, deu na minha veneta de caçar pelo em ovo, botei chifre na cabeça de cavalo, joguei verde, mas colhi maduro. Então, foi bem assim: a teimosia me deu uma mãozinha para eu poder ajuntar os dois... ***

1 O movimento da Négritude, nasceu a partir da atuação de alguns estudantes envolvidos com o Pan-Africanismo (ideologia era solidariedade e consciência de uma origem comum entre os negros do Caribe e dos Estados Unidos. Ambos estavam envolvidos numa luta semelhante contra a violenta segregação racial. Propunha, então, a união de todos os povos da África e diápora como forma de potencializar a voz do continente no contexto internacional). A Revista L’etudiant noir, é considerado marco que inaugura o movimento, encabeçado por Aimé Césaire, Léon Damas, Leopold Sedar Senghor, Birago Diop, entre outros.


28 A LEMBRANÇA: ALINHAVANDO FATOS

europeia. Mesmo os discursos que se alçaram como fundadores da nacionalidade literária brasileira, no

Minha avó sempre diz:

século dezenove, tinham na série e dicção literárias ocidentais sua âncora e base de criação literária. A

“Quem não pode com o pote não pega na RUDILHA”

textualidade dos povos africanos e indígenas, seus repertórios narrativos e poéticos, seus domínios de

Quando eu quero alguma coisa, sou teimosa! Eu peguei no pote e na rodilha, trilhei o caminho mais longo: aquele que nos leva até as águas fluviais da memória. Matutei, matutei e concluí: Se eu quero saber alguma coisa sobre o Mário, vou “bater na casa dele”. E quando cheguei por lá, me abriram a porta... Eu topei com três mulheres que alumiaram meu caminho: Bianca Góes, Angela Grillo e Lígia Ferreira. Bianca falava de Serendipidade — foi o que aconteceu com ela, e que também aconteceu comigo. Achei bonito e poético, por isso usei a palavra para explicar esse enredo. Angela me falou sobre Mário e seus Sambas Insonhados, Lígia, por sua vez, me falou sobre o Africanista. Todas três me deram a direção – muito obrigada! E eu, tomei meu rumo.

linguagem e modos de apreender e figurar o real, deixados à margem, não ecoaram em nossas letras escritas. Bastide em 1943 já isto antes observara. Risério o reitera: Quando os europeus principiaram a produzir textos no território hoje brasileiro, os indígenas já vinham, há tempos, produzindo os seus. E assim como os europeus transportaram para cá um dilatado e fecundo repertório textual, também os africanos, engajados à força no maior processo migratório de toda a história da humanidade, conduziram suas formas verbais criativas ao outro lado do Atlântico. Logo, ao se voltar pioneiramente para a história do texto criativo em nossa extensão geográfica, o romantismo deveria se defrontar, em tese, com os conjuntos formados por textos ameríndios e textos africanos. Em tese. De fato, não foi bem isto o que aconteceu. (...) O texto criativo africano foi ladeado ou ignorado, invariavelmente, naquele nosso ambiente. (...) Dito de outro modo, palavras negras

*** AFRODESCENDÊNCIA CALIGRAFADA NA LITERATURA Leda Maria Martins, mulher negra, escritora, poeta, ensaísta e dramaturga, traz em A fina lâmina da palavra, reflexões importantes sobre a produção afro-brasileira e alguns de seus aspectos. Destaco, pois, um trecho deste texto que considero pertinente mencionar por aqui, bem como a citação de Antônio Risério, que Leda faz na sequência:

passaram em brancas nuvens. (Martins, 2007)

Leda e Antônio falam sobre o repertório da oralidade, da oralitura2, presente tanto na cultura dos povos originários do Brasil, quanto nas culturas dos povos africanos trazidos para cá, e que foram completamente eclipsados, mas que não podem/devem ser ignorados. A professora e escritora Graça Graúna também discorre sobre este fato – ou melhor, fardo: Há outras manifestações que autenticam a existência da arte nativa para o mundo. Basta um olhar sobre as itacotiaras, e aguçar a sensibilidade para ouvir as

Na literatura escrita no Brasil predomina a he-

histórias de tradição oral e escrita dos povos indíge-

rança dos arquivos textuais e da tradição retórica

nas e africanos. […] A abordagem que se faz do índio

2 Segundo Margarete Nascimento dos Santos, professora do curso de Letras – Língua Francesa e Literaturas da Universidade do Estado da Bahia, o conceito de oralitura foi adotado pelos escritores antilhanos, pois estes viam a literatura tradicional, da forma como é concebida, não oferecer espaço para abrigar satisfatoriamente as questões ligadas à produção literária nas Antilhas.


29 na história da literatura brasileira não é indígena, mas indigenista ou indianista. A contribuição do Padre José de Anchieta (indevidamente classificada como literatura informativa) inaugura o que se pode chamar de

Em seu texto Tradição Viva, Bâ Afronta, contesta e põe em xeque, a ideia de que a oralidade e todos os conhecimentos advindos dessa prática, não têm validade e que não podem se equiparar à escrita.

cenário oficial da literatura brasileira, mas sua poesia e o seu teatro de intenção pedagógica e moralizante

Para alguns estudiosos, o problema todo se resu-

marginalizam o nativo. (Graúna, 2013)

me em saber se é possível conceder à oralidade a mesma confiança que se concede à escrita quando

A presença deste pretuguês – Salve Lélia Gonzalez! - grafado, falado e mesclado com línguas indígenas deste nosso imenso e plural Pindorama, nos mostra como são sorrateiros e perversos os esforços para apagar e desvalorizar nossa história, nossa língua, nossos costumes, presentes no cotidiano. Há sim, uma tentativa ininterrupta de diminuir, desvalorizar e demonizar os saberes ancestrais pautados pela oralidade. Não é de hoje que as sociedades ocidentais tentam inculcar e enfiar goela abaixo os seus paradigmas ideais de perfeição e superioridade – valores estes que não conseguem mais se sustentar. Amadou Hampaté Bâ, etnólogo e escritor nascido no Mali, é hoje considerado como um dos grandes mestres da transmissão oral, isso porque, se empenhou em apresentar África como protagonista, desvinculando sua história dos manjados discursos imperialistas carregados de estereótipos. Bâ nos deixou um legado importantíssimo: A valorização de África e da tradição oral africana – herança ancestral presente entre nós, frutos da diáspora. É dele a famosa frase: “Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”, uma referência a todo repertório presente na existência dos anciãos – aqueles que, normalmente, são os grandes depositários de conhecimentos a serem transmitidos (oralmente) às novas gerações.

se trata do testemunho de fatos passados. No meu entender, não é esta a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem. Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra. Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a geração. (Bâ, 2010)

Hampaté Bâ, Leda, Risério e Graça Graúna, são cirúrgicos ao observar e apontar a marginalização do vasto e denso repertório dos saberes indígenas, africanos e diaspóricos, sempre desvalorizados. Os saberes ancestrais, presentes na nossa Literatura Brasileira ou negro-brasileira3, grafam os seus traços nas narrativas de escrevivência4, cheias de banzo5 pesando no peito, e que são prova da resistência dos povos desta nação. ***

3 Ver: Livro Literatura Negro-Brasileira, de Cuti, São Paulo: Selo Negro, 2010. 152 p. 4 No livro Escrevivências: Identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo, a professora Cristiane Cortês define “escrevivência” como um neologismo, cuja ideia é juntar a escrita e a experiência de vida. Segundo ela, as autoras e autores imprimem em seu texto o desejo de que as marcas da experiência étnica, de classe ou gênero, estejam realmente representadas no corpo do texto literário. 5 O sentido do termo banzo que utilizo aqui, é o mesmo que aparece no livro Becos da Memória, de Conceição Evaristo: estado de dor profunda, tristeza, melancolia - certa nostalgia, até. Reflexões e memórias longínquas, reminiscências da escravidão, mas onde, também, nasce a força, o posicionamento de luta, como aponta Marcelo de Jesus de Oliveira “tomadas de decisões de alto impacto para a construção de um movimento negro com mais autonomia e legitimidade. ”


30 A LINHA DE COR: GRITARAM-ME NEGRO! As especulações sobre a relação de Mário com sua ascendência negra, têm tomado força nos últimos tempos. Diante de um Brasil marcadamente racista, hostil e excludente, os movimentos negros e antirracistas levantam discussões ligadas direta ou indiretamente à identidade, representatividade, racismo e temas afins. O âmbito literário, portanto, não está livre do crivo da crítica: pensadores e pensadoras, professoras e professores, pesquisadores em geral, escrevem sobre os efeitos da escravidão, miscigenação e discriminação na história da literatura nacional, que importou os valores e a estética europeia e marginalizou os saberes, as poéticas, os fundamentos e valores dos povos autóctones brasileiros e dos povos africanos trazidos forçosamente ao país. O mesmo acontece com outros grandes nomes do cânone brasileiro — Machado de Assis é um exemplo clássico desse fenômeno. Às más-línguas acusatórias dão seu veredito: não se assumem! Em Aspectos do Folclore Brasileiro e Sambas Insonhados: o negro da perspectiva de Mário de Andrade, Angela Grillo discorre sobre a (possível) origem da acusação que pesa sobre Mário: o depoimento de um dos fundadores da Frente Negra Brasileira6, Francisco Lucrécio: Na época surgiu, depois do Movimento de 22, o Movimento Pau-Brasil, o petróleo é nosso, o movimento nacionalista. E a Frente fazia parte desse movimento, junto com os intelectuais brancos; entrosavam-se muito bem conosco, embora Mário de Andrade sempre tenha se escondido. E ele era constantemente abordado. Ele chegou a me dizer: ‘Falam que eu sou negro’. Perguntei: ‘O que você responde? ’ Eu digo: ‘Vou passando muito bem, obrigado’. Não assumia.7

Sobre tal calúnia, a pesquisadora nos alerta que é preciso analisar/avaliar a questão a partir de uma ótica diferenciada. A resposta pode estar (antes) nos escritos do que (essencialmente) na biografia do autor de Macunaíma No livro Sambas Insonhados, Grillo traça sumariamente a genealogia do folclorista, enfatizando a dupla ascendência negra, o que denota dupla transgressão, visto que, a conduta familiar de Mário em aceitar a mestiçagem, não era comum para os padrões da época: Seu avô materno, Joaquim de Almeida Leite Moraes, se casou com Ana Francisca de Andrade, filha de sua lavadeira. Manuel Veloso, envolve-se com a prima de Ana Francisca, Manuela Augusta de Andrade. Esta, por sua vez, concebe Carlos Augusto – fruto desta relação não oficial.

6 Frente Negra Brasileira (FNB) foi uma das primeiras organizações no século XX a exigir igualdade de direitos e participação dos negros na sociedade brasileira. Criada em outubro de 1931 na cidade de São Paulo, teve como líderes Arlindo Veiga dos Santos, José Correia Leite, entre outros. A organização desenvolvia diversas atividades de caráter político, cultural e educacional para seus associados: palestras, seminários, cursos de alfabetização, oficinas de costura e festivais de música. 7 BARBOSA, Márcio (org.). “Francisco Lucrécio” In: Frente Negra Brasileira: Depoimentos. São Paulo: Quilombhoje, 1998, p. 12.


31 Anos mais tarde, Joaquim de Almeida, acolhe, o filho bastardo da prima de sua mulher, que em 1887, casa-se com Maria Luíza, segundo filha do amigo. Desta união, nasce, em 1893, Mário Raul de Andrade. (Grillo, 2016, p. 20)

Angela prossegue sua defesa, muito bem embasada por sinal, afirmando que, embora Mário tenha feito poucas declarações sobre sua cor, não se pode/deve esquecer que o mesmo era contemporâneo dos ideais do racismo científico e do Eugenismo. Sua cor — continua a pesquisadora — provavelmente pesa ao modernista, que conviveu com uma elite intelectual branca. Tal fato pode ser sentido, quando lemos o artigo A superstição da cor preta, originalmente publicado numa revista de propaganda de remédios, intitulada Publicações Médicas, em 1938, e que faz parte da última edição de Aspectos do Folclore Brasileiro. Se qualquer de nós, brasileiros, se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é frequente chamar-lhe: - Negro!

“Negro drama, cabelo crespo e a pele escura A ferida, a chaga, à procura da cura Negro drama, tenta ver e não vê nada

Eu mesmo já tive que suportar esse possível insulto

A não ser uma estrela, longe, meio ofuscada… ’’

em minhas lutas artísticas, mas parece que ele não foi lá muito convincente nem conseguiu me destruir, pois que vou passando muito bem, obrigado.

Oswaldo de Camargo, crítico, jornalista, escritor e divulgador da cultura afro-brasileira, em Negro drama: ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade, assim como Angela Grillo, defende a ideia de que Mário não negava seu status de homem negro/mestiço. No capítulo intitulado “Um dos nossos”, afirma que, como sugere o título, Mário foi aceito e considerado como um literato negro/mulato, para tanto, cita o artigo “Grandeza de Mário de Andrade”, publicado pela revista Quilombo8, fundada e dirigida por Abdias do Nascimento, um dos grandes ativistas negros do Brasil, que descreve o poeta como “o mulato Mário de Andrade”. Segundo Abdias, Mário foi 8 Jornal da imprensa negra que funcionou dos anos 1940 até 1950.

“motivador de autoestima para o elemento negro”, e acrescenta que entre os homens pretos das letras era considerado como um igual. No capítulo “Eu sou trezentos”, alusão ao poema homônimo, Camargo menciona o estudioso e crítico da obra MariodeAndradiana Luiz Lafetá, que considera o poema como “símbolo da diversidade brasileira e ainda como símbolo personalidade fragmentada e dividida do homem contemporâneo. ” Assim como Lafetá, Angela Grillo e Camargo, falam sobre esse homem vário e complexo. Ambos citam “Reconhecimento de Nêmesis”, poema em que, segundo Angela, “a voz negra é patente e o sujeito lírico promete concertar (Com C) ‘as cruzes do seu destino’, o que, de certa forma, ratifica a afirmação da pesquisadora, quando esta diz que foi por meio


32 das artes, dos escritos, das pesquisas, que Mário – o mestiço —encontrou fuga e acolhimento.

os livros que o senhor gentilmente me mandou [...] Eles serão para mim o guia mais seguro para penetrar as profundezas da alma negra...”

PERCURSOS E CONEXÕES: INTELECTUAIS EM REDE E continua: Mário estava enredado numa trama interessantíssima! Simples, mas muito bem tecida. Uma trama repleta de retalhos coloridos, como o traje arlequinal, onde o losango negro é o protagonista. Sendo ele 300, 350!, atuou como etnólogo e folclorista; foi não só um incessante mecenas do patrimônio cultural (material e imaterial) brasileiro, como também, idealizador do Departamento de Cultura de São Paulo. É de se esperar que sua atuação dentro e fora da Literatura tenha lhe dado a oportunidade de estabelecer diálogos com pessoas dentro e fora do país – algo comum entre os intelectuais da época. Entre os nomes que fazem parte desta rede, podemos citar Arthur Ramos, Roger Bastide, Melville Herskovits, Fernando Ortiz, Jean PriceMars entre outros. Roger Bastide9, logo que chegou ao Brasil, a fim melhor compreender o país, aproximou-se da intelectualidade paulistana e logo chegou a Mário de Andrade. Sobre esse primeiro contato, a professora Lígia Ferreira, menciona uma carta do sociólogo ao Departamento de Cultura de São Paulo:

“[...] por sua vez, em retribuição ao gesto simpático do escritor paulista, Bastide oferece-lhe um exemplar de seu último livro publicado na França – Éléments de sociologie religieuse. A dedicatória é reveladora e inspirou-nos o título deste ensaio: Au grand romancier et africaniste brésilien, em témoignge d’admiration/ Roger Bastide (Ao grande romancista e africanista brasileiro, Mário de Andrade, como prova de admiração/ Roger Bastide). Vê-se, então, que Bastide reconhece Mário de Andrade como grande especialista em assuntos negros e acrescenta, ao multifário escritor, uma faceta que lhe é raramente atribuída.

Sobre o termo usado por Bastide para designar Mário - o de Africanista -, Ligia, nos explica: Pode-se dizer que, grosso modo, o termo “africanista” remete a especialistas, negros ou brancos, oriundos de diversas disciplinas e de diversos países da Europa, da África e das Américas, voltados para o estudo dos povos, línguas e culturas africanas, bem como para os fenômenos associados

“Não querendo incomodá-lo o tempo todo em seu

à sua transplantação a outras regiões, como afro-

trabalho, envio-lhe esta mensagem para agradecer

diáspora originada pela escravidão, e os efeitos do

9 Sociólogo francês que veio ao Brasil para ocupar a cátedra de sociologia na recém-criada Universidade de São Paulo.


33 contato entre culturas.

*** SEGUINDO O FIO DA MEADA Arthur Ramos, Fernando Ortiz e Jean Price-Mars — na opinião de Melville Herskovits10, notáveis africanistas —, estavam em constante diálogo acerca dos estudos sobre o negro, África e diáspora. Arthur Ramos, além de médico, foi também psiquiatra, etnólogo, folclorista e antropólogo brasileiro, referência nos estudos antropológicos, tanto no Brasil, como no exterior. Este, manteve contato com Jean Price-Mars, também médico, professor, diplomata, escritor, etnógrafo, antropólogo e um dos fundadores da Universidade Pública do Haiti – que teve como influência, a figura do também antropólogo Anténor Firmin. As mensagens trocadas por Ramos e PriceMars, como explica profª Ligia Ferreira, fazem parte do acervo da Biblioteca Nacional, e configuram um material praticamente inexplorado. Na emenda, seguimos com a notável trama Antropologista: Joseph Antenor Firmin (1850 – 1911), foi um notório antropólogo, que esteve na linha de frente combatendo os modelos teóricos fomentados e consolidados pela antropologia eurocentrada, fortemente baseada nos pressupostos do racismo científico – destaca-se aqui, a publicação dos ideais racistas de Arthur de Gobineau11 “Essai sur l’inégalité des races humaines”, título que Firmin toma emprestado para escrever De l’égalité des races humaines”, resposta ao desastroso ensaio do filósofo. Antenor, fez críticas ferrenhas ao conceito de determinismo biológico, muito em voga no âmbito na antropologia francesa do século XIX e XX. Tais ideologias, foram responsáveis por criar e incitar o

Figura 1 Carta a Arthur Ramos informando sobre o interesse de Price-Mars de conhecer seus trabalhos acerca de negro brasileiro

movimento Eugenista, de expansão e exploração colonial12 e segregação racial. Firmin foi banido, varrido para debaixo do tapete, muito embora tenha um trabalho vasto e extremamente significado dentro dos estudos da Antropologia. Ele participou do Primeiro Congresso Pan-Africano, estabelecendo contato, inclusive, com o sociólogo W.E.B. Du Bois. Além disso, foi um grande influenciador do também antropólogo Jean Price-Mars, um dos fundadores da Universidade Pública no Haiti e autor do célebre “Ainsi parla l’Oncle”, primeiro manifesto da condição negra, publicado pela primeira vez em 1928, cujo intuito era reavaliar as contribuições

10 Antropólogo de origem judaica, pioneiro dos estudos africanistas nos EUA. 11 Diplomata, escritor e filósofo francês 12 É importante mencionar que neste período, acontecia a Conferência de Berlim, reuniões organizadas pelas grandes potências europeias, cujo intuito era a partilha de África. Os ideais baseados no racismo científico foram usados como subterfúgio para explorar e subjugar indivíduos e territórios africanos.


34 da África nas civilizações universais e reavaliar os costumes e práticas culturais africanas na diáspora negra, especialmente em solo haitiano. Jean Price-Mars apresentou as tradições, as lendas populares, o Vodu13 e toda a herança africana que estão na base das culturas negras – trajetória bastante parecida com a de Mário. Sua obra “Ainsi parla l’Oncle”, influenciou o pensamento de autores do movimento da Négritude como Léon-Gontran Damas e Aimé Césaire. Não foi à toa que Léopold Sédar Senghor o chamou de “Pai da Négritude”. “Pra ficar mais claro, eu escureci”

Mário de Andrade, além de poeta, escritor, foi um grande apreciador e estudioso da cultura popular brasileira, onde o negro e tudo que estava relacionado a ele, lhe era caro. Não é à toa que dedicou (aproximadamente) vinte anos de sua vida focado na criação do Manuscrito Preto, dossiê composto por 371 documentos – notas de trabalho que abarcam a coleta de assuntos e tópicos sobre o negro. Não à toa, foi o idealizador do Cinquentenário da Abolição, projeto curatorial voltado para valorização da cultura negra, e que mais tarde, com sua ausência, serviu apenas para reforçar imagens de um império belevolente. Mário, estava em diálogo com os Africanistas Roger Bastide e Arthur Ramos; este, por sua vez, trocava cartas, ideias e livros com Jean PriceMars, que assim como Antenor Firmin, atuou em prol da valorização da cultura popular ancestral de seu país e de todo repertório oral inerente a ele, sendo ambos, inspiração para Aimé Césaire, fundador do conceito Négritude, e que lutou contra o imperialismo colonial. Seu livro Discurso sobre o colonialismo, que deu origem a esta história, tem grande importância e influência para todos os militantes anticolonialistas. Inspirou não só o movimento Pan-africanista, como também os Panteras Negras e o colossal Frantz Fanon.

As lutas são muitas, de longa data. Literatura e Resistência! Luta armada de palavras, cujo alcance transcende o tempo e o espaço. A labuta contra o preconceito de cor, em prol da valorização da cultura das nações diaspóricas, marcadas pelo julgo colonial e suas mazelas. Luta que começa com o poeta empunhando sua pena, escrevendo seus versos, seus trechos, tecendo sua teia e seu texto afrografado, seu banjo, seu banzo, seus medos, suas escrevivências... Registros de sua existência, de suas memórias… Vai traçando um caminho, tentando chegar em algum lugar, onde não se sabe onde é. Redefinindo ou redescobrindo suas origens, ressignificando a negrura do seu corpo e de sua alma, carimbados pelas eloquentes sequelas do cativeiro, seculares, hostis e tenebrosas. Rebatendo a branquitude e seus privilégios, desmentindo as mentiras deslavadas, perversas e sorrateiras. Dizia ele: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo…”

Quem sabe, numa dessas andanças, quem sabe nessa grande teia labiríntica que teceu, ele não encontrou o fio que o levou topar consigo mesmo? Quem tá gemendo? Negro ou carro de Boi? Carro de boi geme quando quer Negro não Negro geme porque apanha Apanha pra não gemer Gemido de negro é cantiga Gemido de negro é poema Geme na minhalma A alma do Congo Do Níger da Guiné De toda a África enfim

13 O termo Vodu tem origem na tradição religiosa animista, com raízes entre os primeiros povos Fon-Ewe da África Ocidental. Sobre a palavra “Vodu”, principalmente entre as tribos pertencentes à família linguística dos Fon, no Daomé e no Togo, significa um Deus, um espírito e sua imagem.


35 A alma da América A alma Universal Quem tá gemendo Negro ou carro de Boi? _______________________________________ Ouço um novo canto, que sai da boca De todas as raças, Com infinidade de ritmos... Canto que faz dançar, Todos os corpos De formas, E coloridos diferentes... Canto que faz vibrar, Todas as almas, De crenças, E idealismos desiguais... É o canto da liberdade Que está penetrando, Em todos os ouvidos...

Dayane Teixeira é Graduada em Letras, Licenciatura Português/Inglês pela Universidade Paulista (2012) e técnica em Museologia pela Escola Técnica Estadual de São Paulo (2015); fez diversos cursos em História da Arte, Museologia e Afins. Tem experiência considerável na área de museus, sendo eles: Museu de Arte Sacra de São Paulo, Museu da Imagem e do Som, Museu de Arte Brasileira, Museu da Língua Portuguesa, entre outros. Atualmente, trabalha como pesquisadora independente de Literatura Africana e Indígena brasileira, ministrando palestras e cursos sobre ambos os temas, e também como auxiliar administrativo de museus no museu Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, desenvolvendo ações junto ao acervo da biblioteca Espaço da Palavra, acervo Casa das Rosas, acervo Haroldo de Campos e organização de eventos Literários. Cursa Pós-Graduação em História e Cultura Afro-brasileira, via Instituto Nacional de Ensino.


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CRIAÇÃO /

Prefácio menos interessantíssimo Bruna Kalil Othero


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2022. um século. a.C. d.C. antes e depois do canibalismo. a democratização da cultura tão sonhada & ainda distante. o mundo na palma da mão, ao alcance dos dedos. para alguns, somente. 280 caracteres. um clique. memes: palavra derivada da clássica mimesis, conceito da teoria literária que discute a complexidade de representação entre realidade & ficção. memes: imitação, repetição infinita das sacadas humorísticas. boneca russa. expressão da identidade cultural do brasileiro, um povo tragicômico que ama fazer piada da própria desgraça. “Numa terra radiosa vive um povo triste”, disse o Paulo. “Independência ou morte”, disse? o Pedro. “A diferença única entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da revolução”, disse o Joaquim. um dos meus versos preferidos da poesia brasileira é do Casimiro: Minh’alma é triste como a rola aflita. na adolescência eu ficava chatiada d+, hoje leio isso e só vejo a conotação sexual.

e continuo achando lindo comparar tristeza com um pau aflito uma apoteose da identidade nacional. tristes, mas com tesão. twitter: casa dos memes, casa dos fios, esse desenrolar de tweets consecutivos. Ariadnes. – fazer das redes sociais um espaço de discussão, reflexão & contemplação.


38 comer Lady Gaga no VMA e vomitar a polêmica de 1922. a compreensão histórica das vanguardas como rupturas que incomodam, portanto, tendem a causar reações negativas. vanguarda: termo militar que se refere às primeiras tropas de um exército, também quem apanha as primeiras porradas. Teatro Municipal, 1922: tomatadas & vaias. VMA, 2010: choque & nojo. Monteiro Lobato está para Justin Bieber assim como Brás Cubas está para o congresso nacional. (branco, burro, infantil e masculino)

a minha dissertação, com sorte, será lida por cinco pessoas. minha orientadora, a revisora e a banca. expulsar os deuses do Olimpo. ir além dos muros da universidade. (tentar) universalizar. esforçar-se para não ser um chatoboy, como reclamava o Oswald. esforçar-me. chatogirl? chatowoman. contra a frieza das grandes cidades, coercitiva e opressora, que quer nos robotizar – pelo cotidiano rudimentar, com nossos vícios de

linguagem, afetos corporais, cafezinhos com as visitas e fofocas na janela. ah mas o Abaporu é feio. ah mas não é não. é sim. né não. é sim. né não. – a beleza não existe – – a beleza não importa –

a vantagem: não estar restrita às quatro paredes de uma sala de aula. a desvantagem: perder o controle. a vantagem: perder o controle. “Que tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que construí.” Mário de Andrade. destruir é mais fácil que construir, penso. acabar com um Ministério é coisa de cinco minutos & uma canetada.


39 RIP MINISTÉRIO DA CULTURA (1985-2019) 33 anos, como Jesus. o MinC foi criado pelo Sarney. não, essa não é a piada. o Sarney é imortal da Academia Brasileira de Letras. essa é a piada. assim inicia seu discurso de posse:

[Texto originalmente publicado no livro de poesia Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas (Letramento, 2019), selecionado pelo último edital do Ministério da Cultura antes da sua extinção em 2019, o Prêmio de Incentivo à Publicação Literária 100 anos da Semana da Arte Moderna.]

Casa de Machado de Assis, símbolo dos nossos valores espirituais. À sombra dos meus deuses o sortilégio dos meus caminhos me fez chegar. Nada mais alto, aqui é o infinito. O deus primeiro, o Deus da minha fé, da minha submissão à sua voz semeadora dos destinos, que me guardou nas dúvidas, encheu de certezas os meus clarões de perplexidades, estendeu-me a mão firme de pai para que eu a apertasse o calor de suas crenças; que me criou José, que me fez Sarney e cobriu a minha cabeça da coroa fria e sem vaidade dos dias que me entregou e eu plantei.

podemos concluir que ele fez o dever de casa, olhando pro espelho. amém. que horas são? meu deus, estamos atrasadíssimos. já fizeram tudo antes da gente. ai que preguiça. a nós, cabe a destruição. pra comer tudo do zero. do zero e meio. um século, dois. já alguns vieram, outros virão. virão? isso é problema de vocês. o meu problema está aqui, agora. poderia ter citado Mário. evitava o prefácio menos interessantíssimo.

Bruna Kalil Othero é escritora, performer, professora e pesquisadora. Doutoranda na Indiana University (EUA) e mestra em literatura brasileira pela UFMG. Autora das obras de poesia Oswald pede a Tarsila que lave suas cuec-

“O passado é lição para se meditar, não para reproduzir.”

as (2019, premiado pelo Ministério da Cultura), Anticorpo (20 17), Poétiquase (2015), e do livro-objeto de ficção Carne (2019). Organizou as coletâneas A Porca Revolucionária: ensaios literários sobre a obra de Hilda Hilst (2018) e Poéticas do devir-mulher: ensaios sobre escritoras brasileiras (com

BKO em Belo Horizonte Ano 100 da Semana de Arte Moderna

Constância Lima Duarte e André Magri, 2019). Seu livro inédito Tinha um Pedro no meio do caminho foi premiado pela Secretaria Especial de Cultura (2019).


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CRÔNICA /

No horizonte de Itapira ainda se tem a visão do poeta que tocou o historiador Ricardo Pecego


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O penhasco, ou simplesmente a Penha como foi conhecida Itapira antes do assassinato do abolicionista Joaquim Firmino (Crime da Penha), inspira ainda hoje quem chega ao mirante do antigo Parque Municipal e de lá observa a Serra da Mantiqueira tentando desdobrar a terra, desafiando a gravidade, com sua sequência de corcovas irregulares cobertas de mata. Foi esta visão que pelos idos de 1915 inspiraram o poeta Menotti del Picchia. Observando àquele tempo a natureza ainda mais exuberante, sem uma invasão tão efetiva da cidade com suas ruas asfaltadas, fios, postes e uma diversa coleção de casas. Isso permitia uma intensa experiência visual. Em contraste com essa natureza na época, o poeta percebeu, lá no fundo do penhasco, as lavadeiras na beira do ribeirão da penha. Mulheres negras, pobres que tinham de levar seus filhos ao trabalho. Ao mesmo tempo que Menotti lá do mirante constatava essa triste realidade, convivia com os fazendeiros locais, brancos hegemonicamente, ricos produtores do café que na época lhes dava status e prestígio. Uma realidade bastante diferente entre estes dois universos e que serviam ao observador poeta, como fonte para o conteúdo do seu poema mais conhecido: Juca Mulato, que seria lançado em 1917. Mostrar essa faceta do Brasil na época, mesmo que adornada por uma poética profunda, rica e socialmente questionável nos dias de hoje, trazia algo diferente para o universo das letras. Um movimento que começou a ser pauta das correspondências entre Menotti, Mário, Oswald, Villa, Anita, Tarsila, Guilherme e tantos outros representantes das artes deste tempo.

Cada qual destes, dentro de sua seara, buscava sua firmação, seu espaço. Mas foi na coletividade e na conjunção de suas ideias que a Semana de Arte Moderna de 1922 foi concebida e realizada. O impacto deste Menotti na nossa cidade, cuja distância da capital só diminuiu conforme o chamado progresso avançou, modernizando estradas e transportes, não foi tão grande na época como é atualmente. A cultura, os movimentos culturais eram sentidos nos grandes centros urbanos, principalmente por grupos de intelectuais a quem a arte era presente no cotidiano. Décadas após o movimento de 22, Itapira mantinha seu ar provinciano, seu jeito de interior com erres pronunciados sem tremer a língua, como faziam os paulistanos. O poeta utilizou a cidade como seu refúgio da metrópole paulista, onde tudo acontecia. Seus livros ganhavam o mundo em traduções até para o esperanto. Em 1951 o então Parque Municipal, o mesmo que lhe dera visão inspiradora recebia o nome da sua obra. Passou a ser conhecido como Parque Juca Mulato. Neste tempo o jovem Jácomo Mandato um cidadão itapirense, despertava seu interesse pela História, na época assim grafada. Desvendava a própria cidade, trazia à tona em seus escritos aquilo que passava despercebido pela população, mas que era fundamental não ser esquecido ou apagado pelo tempo. Obviamente leu Juca Mulato e quem sabia o quanto isso o afetou nesse caminho, já não está por aqui fisicamente para testemunhar. Em 1959 ele lança seu primeiro livro: Relíquias da Terra Natal.


42 Fato é que Menotti e Jácomo se entrelaçam na vida. Mestre e pupilo? Confidentes? Ídolo e fã? Amigos? Talvez todas estas alternativas. Essa relação foi o que preparou com muita solidez para que o Menotti hoje, prestes a completar 100 anos da façanha da Semana de 22, esteja na pauta de grupos da sociedade civil, das escolas e de projetos da cultura em Itapira. Sem este vínculo o poeta não deixaria à cidade o imenso acervo que representa toda esta passagem modernista, sua correspondência acadêmica e íntima, as ilustrações que fazia enquanto formulava seus poemas. As fotografias de uma vida cheia de acontecimentos, prêmios, fardas e tudo mais que Menotti realizou e representou. Em 1987 Jácomo levou a empreitada de tornar o Parque Juca Mulato, num espaço que ampliasse o contato do itapirense com a inspiração do poeta observada do mirante. Seu trabalho foi organizar o acervo doado em vida e fundar a Casa Menotti Del Picchia. Foi daquele pequeno espaço, hoje reformado, que se difunde o que a inspiração deste ilustre itapirense, junto de seus amigos modernos trouxeram para o Brasil. Um eco que cem anos depois ainda reverbera, se estuda e se discute amplamente. Um estrondo que percorreu despercebido por caminhos tortuosos e hoje uma parcela (ainda pequena) da população itapirense percebe e sentese participante, pois ainda consegue enxergar bem os contornos do ribeirão e da mantiqueira junto do nosso Juca Mulato.


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Ricardo Pecego é produtor cultural e escritor; autor de Caparaó e itapirense de coração.


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