GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Rodrigo Garcia | Governador
Sérgio Sá Leitão | Secretário de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo | Frederico Mascarenhas | Secretário Executivo de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo Maithê Rocha da Costa Monteiro | Chefe de Gabinete
POIESIS – ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA
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CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA REVISTA GRAFIAS - revista do Centro de Apoio ao Escritor Marcelo Tápia | diretor Reynaldo Damazio | editor
Revista Grafias- Ano X – nº 11 – Dezembro 2022
São Paulo – Poiesis / Casa das Rosas
ISSN 2358-9035
1.Literatura Brasileira. 2.Literatura 3. Escrita criativa - Prosa Brasileira.
Imagem da capa: “O cavalo vê a morte”, de Marcelo Ariel
sumário
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BRÁS DO BRASIL DO MUNDO: O ROMANCE PARQUE INDUSTRIAL E AS SINFONIAS URBANAS CINEMATOGRÁFICAS Cecilia Furquim
POEMAS DE LUTO | O CARÁTER INAUGURAL, A FORÇA DO IMPULSO ARTÍSTICO E OS POSSÍVEIS CAMINHOS PARA UMA ESCRITA SOBRE A MORTE Michaela Schmaedel
A DECOLONIALIDADE NA OFICINA DE ESCRITA OU A RODA COMO PRINCÍPIO DE (RE)CRIAÇÃO OFICINEIRA. Bianca Gonçalves
CORPO, IDENTIDADE E INSUBMISSÃO: CARTOGRAFIA DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ESCRITA POR MULHERES. Laura Redfern Navarro
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LITERATURAS DO APOCALIPSE Tiago Novaes
DA ORALIDADE AFRICANA EM “ÁGUA FUNDA”, DE RUTH GUIMARÃES Dayane Teixeira
A SAGA DE ZÉ LIMEIRA NO PAÍS DOS EXCLUÍDOS. Paulo Dantas
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O PÁSSARO COM ONZE ASAS. Marcelo Ariel e Al Berto 47 50
editorial
O Centro de Apoio a Escritores (CAE) completou dez anos de atividades em 2022, fomentando a escrita e a leitura em todas as suas dimensões, gêneros, vozes e plataformas, além de contribuir para a democratização do acesso ao livro e à cultura. Para comemorar essa década de tantos desafios e conquistas, reunimos nesta edição de Grafias colaborações preciosas de autora/es que fazem parte da história do CAE e sem os quais certamente não chegaríamos a resultados tão extraodinários na programação formativa do museu.
Oficinas de escrita são o tema dos textos de Michaela Schamaedel, poeta e ex-aluna do Curso Livre de Preparação de Escritores (Clipe), do CAE, e da poeta e professora do Clipe Jovem Bianca Gonçalves. Ambas se defrontam com os limites e potências do trabalho com o processo criativo. A poeta e também professora dos Clipes, adulto e jovem, Cecilia Furquim escreve sobre o romance modernista emblemático de Patrícia Galvão, Parque industrial , resgate urgente e necessário dessa narrativa experimental e de denúncia social que sofreu por muito tempo injusto apagamento. O romance Água funda , de Ruth Guimarâes, publicado em 1946, é analisado sob a perspectiva da oralidade por Dayane Teixeira, que trabalha na equipe do CAE.
Laura Redfern Navarro, poeta e ex-aluna do Clipe, enviou capítulo de seu TCC em Jornalismo sobre poesia brasileira contemporânea escrita por mulheres, dedicado a autoras como Adelaide Ivânova e Angélica Freitas, entre outras.
Completam a edição o ensaio do escritor e professor do Clipe, Tiago Novaes, comentando narrativas do apocalipse, tendência que sempre retorna em tempos distópicos e pandêmicos, como o que vivemos, em que o fim dos tempos já é um consenso; a crônica poética do cordelista Paulo Dantas em torno da figura singular de Zé Limeira, sua vida e obra; e o poema colagem de Marcelo Ariel, evocando o português Al Berto. Que esse cardápio de tramas e trilhas inspire novas escritas e leituras!
BRÁS DO BRASIL DO MUNDO: O ROMANCE PARQUE INDUSTRIAL E AS SINFONIAS URBANAS CINEMATOGRÁFICAS
Cecilia Furquim
INTRODUÇÃO
O romance de Patrícia Galvão, Parque Industrial, lançado no início de 19331, tendo como subtítulo “romance proletário”, foi uma obra com olhar marxista produzida com intuito político, uma “novela de propaganda” segundo sua própria autora. No entanto, a obra resultou em algo que vai além de sua primeira intenção, revelando várias camadas de tensões e contradições estético-filosófico-sociais que acenam tanto para a utopia revolucionária como para a desesperança crítica. Contribuem para essa instabilidade reveladora suas escolhas estéticas, que passeiam entre a vanguarda e antropofagia do primeiro modernismo dos anos 20 e o engajamento político social do ‘romance de trinta’, como bem assinalou Augusto de Campos ao dizer: “é uma última péro-
la modernista engastada na pedreira do nascente romance social de 30” (CAMPOS, 1982, p 102)2 Várias são as correntes inspiradoras de Parque Industrial : o telegrafismo da prosa de Oswald de Andrade, o futurismo de Marinetti, o expressionismo alemão, o “cine olho” do cinema soviético, o cubismo plástico de Pablo Picasso, o romance proletário russo. Neste artigo pretendo desenvolver o fecundo diálogo que o romance estabelece com o subgênero documental cinematográfico “sinfonias urbanas”, que floresceu durante os anos vinte, e que incorporam questões modernistas significativas daquele momento. É um diálogo de ressignificação crítica, bem ao gosto dos antropófagos.
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1 GALVÃO, Patrícia. Parque industrial – romance proletário. São Paulo: Linha a linha, 2018. 2 CAMPOS, Augusto de. Pagu vida-obra. São Paulo: Brasiliense. 1982. 3 Imagem disponível em: https:// juorosco.wordpress.com/2020/09/12/resenha-livro-parque-industrial-pagu-patricia-galvao/ 4 Imagem disponível em: https://mag.
sapo.pt/cinema/filmes/berlin-sinfonia-de-uma-capital. 5 Imagem disponível em: http://www.cinevitor.com.br/um-homem-comuma-camera/. 6 Imagem disponível em: https://www.archdaily. com.br/br/01-93587/cinema-e-arquitetura-sao-paulo-symphonia-da-metropole
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AS CINE SINFONIAS
Segundo José Francisco Serafim 7, tais sinfonias urbanas são uma proposta de renovação dessa linguagem artística iniciada pelos irmãos Lumiére, em 1895. O cinema, que havia explorado num primeiro momento o documento de cenas do dia a dia no âmbito familiar, passou, já no início do século XX, a investir fortemente em narrativas ficcionais produzidas em estúdio. Na década de vinte porém, alguns cineastas reagiram ao desgaste desse gênero voltando ao documentário, que desta vez procurou ampliar seu objeto para o que havia de novo num mundo por muito tempo dominado pela vida rural e por pequenos povoados: as grandes metrópoles, sua estrutura, tecnologia, ritmo. Outra importante preocupação desse tipo de filme foi evitar o uso de uma narrativa contínua com desenvolvimento de um conflito principal, entrelaçado de alguma forma por outros secundários. As cine sinfonias sustentavam o seu desenrolar pela apresentação breve, aparentemente solta, de vários aspectos dessas cidades, com flashes de seus meios de transporte (trens, bondes, automóveis, aviões, zepelins, balsas e barcos), ruas e calçadas, edifícios, transeuntes, fábricas, serviços e máquinas que revolucionaram a vida moderna. Tinham muitas vezes a duração do dia como referência para o andamento do filme e abusavam de cenas externas e técnicas de montagem que ressaltavam a movimentação urbana.Como o som só foi incorporado às películas em 1930, são produções de cinema mudo, que eventualmente se utilizam de intertítulos (textos breves em cartelas que se intercalam às imagens) e acompanhamento ao vivo de uma orquestra com música que pode ser colada ao filme ou trocada conforme a apresentação. O primeiro exemplo que se tem notícia foi Manhatta (1921), que usa o poema Mannahatta de Walt Whitman em seus intertítulos, com um tom elogioso à natureza de Nova Iorque, seus arranha
céus, trânsito e muita fumaça. Já a partir daí múltiplos planos são explorados, de aéreas para planos de chão/nível, do geral para detalhes. A metrópole parisiense tem dois exemplos: um de 1926, Rien que les heures (Somente as horas) , do cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti; e outro de 1928, Etudes sur Paris, de André Sauvage. Mas aquele que viria a ser considerado o clássico desse gênero veio em 1927, Berlin: die sinfonie der grosstadt (Berlim, sinfonia da metrópole), dirigido por Walter Ruttmann. Ele iria diretamente inspirar o nosso conservador e algo fascista São Paulo: sinfonia da metrópole, de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny (dois imigrantes húngaros), estreado em setembro de 1929. Nesse mesmo ano, em janeiro, Dziga Vertov teria lançado o seu inovador Tcheloveks kinoapparatom (Um homem com uma câmera) , que retrata quatro diferentes cidades russas. Apesar de Vertov ter produzido sua sinfonia depois, seu trabalho prático e teórico de renovação da montagem documental cinematográfica já existia desde seus primeiros filmes, e sabemos que exerceu grande influência nas outras cine sinfonias, de maneira geral, especialmente em Ruttmann 8 Um homem com uma câmera se destaca dos demais pela ausência de intertítulos, por valer-se de recursos metalinguísticos (é frequente a aparição do cameraman fazendo seu trabalho) e pelo fato de equilibrar o enfoque da população trabalhadora mascwulina e feminina, visto que a tendência das tentativas anteriores se concentrou na representação dos homens. Se, nos exemplos de sinfonia de Nova Iorque, Paris e Berlim, as trabalhadoras já são consideravelmente ausentes, revelando o apagamento da mulher das esferas não íntimas, que o patriarcalismo empreendeu, chega a ser chocante observar a absoluta invisibilidade das mulheres, e negros em geral, na sinfonia de São Paulo. Entre as representações
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que todos esses filmes fazem das transformações tecnológicas urbanas do transporte, comunicações (jornal), cultura e entretenimento (cinema), há um destaque considerável para a presença da fábrica, impulsionadora da indústria, em imagens externas de chaminés e cenas internas de trabalhadores manipulando máquinas. Na obra sobre São Paulo fica evidente a intenção de ignorar a figura humana das operárias quando se apresenta a indústria fab-
ril. Apesar de sabermos que esse complexo de fábricas é dominado pelo trabalho feminino, na sinfonia dos imigrantes húngaros sua presença fica restrita a uma visão panorâmica paisagística, de cima e de longe, acompanhada de duas cartelas (“para apreciar melhor a cidade fabril: Braz, Móoca, Belém” e “resfolegando pelas chaminés, expluindo fumo negro de fornalhas crepitantes”).
7 SERAFIM, José Francisco. “A cidade no cinema documental dos anos 20”, disponível em: http://www.redobra.ufba.br/wp-content/uploads/2014/12/RD14_D02_A-cidade-no-cinema-documetal-dos-anos-1920.pdf. 8 “O cinema soviético teve em Dziga Vertov um defensor do documentário realista. O cineasta criou o cine-olho, manifesto que lançava o conceito de associar a câmera ao olho humano, na tentativa de captar os vários lances da realidade.
Quando Lenin afirmou que o cinema era o principal veículo de divulgação da nova ordem política, social e econômica, o cineasta se colocou à disposição do comitê de cinema de Moscou em 1918 ...” in HOLANDA, Sarah Pinto de. Um caminho à liberdade: O legado de Pagu. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014, p 116.
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Nenhuma cena interna das responsáveis pela atividade nos teares aparece, pois em seguida há um corte para a indústria metalúrgica com um homem operando uma máquina.
Do ponto de vista político, as cine sinfonias desses três países capitalistas estrangeiros não exploram abertamente uma posição de elogio ou crítica ao sistema, apesar de aparecerem alguns sinais de simpatia socialista pelos explorados e oprimidos, ou pelo menos, o reconhecimento de sua existência. No caso de Alberto Cavalcanti, isso se dá de forma mais evidente, apoiado inclusive por intertítulos logo no início: “Não é a representação de uma vida elegante e chique” / corte para uma foto de mulheres bem-vestidas descendo a escada, que em seguida aparece sendo rasgada em pedacinhos / corte para outra cartela: “mas a vida quotidiana dos humildes sem classe”. Somente as horas, inclusive, mostra uma ação criminosa, claramente ficcional, em que uma prostituta é pressionada a ajudar o cafetão a roubar e esfaquear uma mulher na rua. Já a sinfonia de São Paulo faz uma evidente apologia ao militarismo, positivismo e ideologia dominante, evitando qualquer questionamento de luta de classes, como exemplificam imagens e cartelas na qualificação de presidiários como sendo “enfermos morais”, dizendo também que a religião católica e a disciplina seriam importantes elementos da regeneração da ordem. A imagem que acompanha mostra que a disciplina aqui referida é a militar, através de cenas de prisioneiros em fila, realizando manobras de soldados.
Também contribui para esse enfoque ideológico conservador, entre outros exemplos, a reconstituição de movimentos que supostamente antecipariam a ação do “Grito do Ipiranga”, congelando numa imagem semelhante à do famoso quadro de Pedro Américo, num tom de glorificação da cena como símbolo da liberdade do Brasil. Logo em seguida, outras cartelas também nomeiam a “mão obreira” como: “construtores de cidades que fizeram o nosso conforto”. Fica implícito e normalizado que
essa liberdade e esse conforto não são daqueles que trabalham, e sim de uma classe, gênero e raça privilegiadas, que usufrui. É com esse conjunto de experiências, com suas similaridades e contrastes, que Patrícia Galvão parece dialogar quando escreve sua sinfonia literária do Brás, o bairro de maior concentração industrial da américa latina naquele momento.
A U/DISTOPIA SINFÔNICA DO BRÁS
Além de aproveitar elementos do bairro proletário observados quando a autora fora moradora do Brás, dos dois até os quinze anos, Pagu incorpora também na obra sua experiência de militante do Partido Comunista, entre 1931 e 1932, na sua fase obreirista, que exigia a proletarização dos simpatizantes da pequena burguesia como condição para serem admitidos na organização. Ela havia se afastado do marido e filho pequeno para trabalhar em Santos e no Rio de Janeiro com atividades na tecelagem, na metalúrgica, como engarrafadeira, arrumadeira e copeira, mas teria sido colocada à margem da militância por conta da exposição midiática de sua recente prisão política. Incomodada com sua paralisação e ansiosa para contribuir com a causa, decide escrever essa “novela de propaganda”, jogando os holofotes de sua representação às operárias tecelãs e outras mulheres ao redor (costureiras, donas de oficina, normalistas, prostitutas, encarceradas). Faz um contraponto provocador à literatura que pouco ou nada retratava a mulher operária, especialmente as negras, e à ínfima presença dessa intersecção de classe, gênero e raça nas cine sinfonias do mundo capitalista. Nesse aspecto aproximou-se do trabalho soviético de Vertov, mas foi além. Como ressalta David Kennedy Jackson, em um artigo de 1993, no Brás do início do século XX, mulheres compunham 70% da força de
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trabalho e 38% dos trabalhadores tinham entre oito e catorze anos de idade (JACKSON, 2018, p 175) 9
Homens trabalhadores também aparecem, brancos, negros e pardos, porém expostos em menor intensidade, assim como alguns homens e mulheres da alta sociedade, que vem como contraponto. Tais personagens são apresentados por uma voz onisciente em terceira pessoa, identificada com a revolução do proletariado, que descreve parcelas de situações e seu cenário nas ruas, edifícios, casas de moradia, estabelecimentos públicos e comerciais, dando prioridade ao Brás, apesar de trazer também alguns poucos redutos da área ocupada pela burguesia paulistana. E o faz enfatizando, com pequenas pinceladas, a plasticidade, as cores, o barulho e a atmosfera geral da ambientação, reforçando esse ritmo com a mudança rápida do foco e da posição à maneira da câmera em movimento, utilizada nas sinfonias. Tudo é trabalhado de modo a não se deter longamente em nenhum personagem ou situação, indicando que a grande protagonista é mesmo a cidade, em especial essa parte da cidade que dá nome ao livro: o parque industrial do Brás. O tipo de enquadramento também é instável, há momentos em que o narrador apenas mostra as situações criadas, deixando que elas falem por si, com seu olhar seletivo e inquieto, exibindo flagras curtos de diálogos em primeira pessoa e a narração concisa daquilo que vê, com uma montagem aparentemente solta, entremeando frases de densidade poética e linguagem prosaica, num tom seco e dessacralizante. E, seguindo a imagética das sinfonias, a imagem da chaminé se apresenta logo no segundo capítulo:
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A rua Sampson se move inteira na direção das fábricas. Parece que vão se deslocar os paralelepípedos gastos.
Os chinelos de cor se arrastam sonolentos ainda e sem pressa na segunda feira. Com vontade de ficar para trás. Aproveitando o último restinho da liberdade.
As meninas contam os romances da véspera espremendo os lanches embrulhados em papel pardo e verde.
– Eu só me caso com um trabalhador.
– Sai azar! Pra pobre basta eu. Passar a vida inteira nesta merda!
– Vocês pensam que os ricos namoram a gente a sério? Só pra debochar.
– Eu já falei pro Bralio que se é deboche, eu escacho ele.
– O Pedro está ali!
– Está te esperando? Então deixa eu cair fora! O grito possante da chaminé envolve o bairro. Os retardatários voam, beirando a parede da fábrica, granulada, longa, coroada de bicos. Resfolegam como cães cansados para não perder o dia. Uma chinelinha vermelha é largada sem contraforte na sarjeta. Um pé descalço se fere nos cacos de uma garrafa de leite. Uma garota parda vai pulando e chorando alcançar a porta negra.
O último pontapé na bola de meia.
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JACKSON, Kenneth David. “A dialética negativa de Parque Industrial”. In: Parque industrial – romance proletário. São Paulo: Linha a linha, 2018.
Em outros momentos a narração comenta, critica, analisa e arrisca previsões de crença no futuro da revolução, com terminologia militante.
Os vacilantes e os próprios indiferentes são empurrados para a questão social. Não é permitido a ninguém mais se desinteressar. É a luta de morte entre duas classes irreconciliáveis. A burguesia se estraçalha, se divide, se esfarela, marcha para o abismo e para a morte. O proletariado ascende, se afirma, se culturiza. Qualquer militante compreende e estuda questões de economia com a mesma facilidade com que uma burguesinha folheia um número idiota de Femina. (GALVÃO, 2018, p 90)
Quando isso acontece, a câmera hábil que ele carrega escolhendo e mostrando o que teria fora, volta-se para dentro, disfarçando objetividade, mas inevitavelmente revelando suas próprias expectativas, inconformações, medos, inexperiências.
O narrador (ou narradora) é claramente um alter ego da escritora jovem de 23 anos, que se esforça pela submissão ao controle do PC obreirista denunciando a opressão burguesa, louvando a resistência e capacidade operária militante, lamentando a inconsciência dos despolitizados e corroborando com a desconfiança do apoio individualista da pequeno burguesia intelectual de esquerda, incluindo ela mesma.
Esse aspecto da composição de Patrícia, ao ser apreciado sem levar em conta o que escapava às suas primeiras intenções, recebeu muitas críticas que ajudaram a minimizar a potência da obra. “Descontados os sestros panfletários...” (CAMPOS, 1982, p 102) foram as palavras de Augusto de Campos ao analisar o romance, antes de ressaltar as qualidades que teria ali reconhecido. Porém, um outro olhar é capaz de perceber que a narradora, inadvertidamente, já em seu aparente alinhamento, denuncia
uma igual desconfiança dessa rigidez controladora, dos olhares plenos de certezas. Pagu, na medida em que viveu de fato uma série de situações e impasses trazidos para o enredo do romance, apresenta, ao lado da consciência daquela jovem “panfletária” que estava disposta a tudo para contribuir com a causa, a elaboração de partes de sua memória, que desconfia, que questiona, que não sabe sabendo. É o que a fala de Lélia Gonzales demonstra quando diferencia consciência de memória:
Como consciência, a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. A consciência exclui o que a memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se expressa como discurso dominante (ou efeito desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso ela fala por meio das mancadas do discurso da consciência. (GONZALES, 2019b, p240-241) 10
Nesse ponto, também se aproxima do trabalho de Vertov 11, que, em sua montagem, sugere um elogio ao sistema soviético por um lado, e denuncia contradições internas, por outro. As cenas em que operárias de teares ou costureiras são expostas mostram alegria, sorrisos, brilho no olhar. Depois do trabalho, ao entardecer, muitas atividades de lazer, na praia, na dedicação aos esportes, constroem a impressão de vigor, competência e realização.
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Por outro lado, cenas de rua flagram as diferentes classes de mulheres transeuntes, com posturas, indumentária e viço físico contrastantes, indicando o fracasso da experiência comunista soviética no cumprimento da promessa de abolição das desigualdades.
10 GONZALES, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: ARRUDA, Andela ... [et al.]. Pensamento feminista: formação e contexto. Organização Heloisa Buarque de Holanda. Rio de Janei-
ro: Bazar do Tempo, 2019b. 11 VERTOV, Dziga. Man with a movie câmera. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cGYZ5847FiI
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A aproximação que Parque Industrial estabelece com a sinfonia soviética é, no entanto, relativa, já que Um homem com uma câmera seria, no conjunto, um trabalho otimista, como esperado pelo realismo socialista russo jdanovista12. No romance de Patrícia, o pessimismo é que predomina, não há heroísmo redentor. As personagens proletárias militantes vão presas, Rosinha é exilada, Alexandre é morto, e Otávia desaparece de cena logo após obedecer de maneira abrupta e pouco convincente às pressões feitas pelo partido para que abandonasse e até punisse seu companheiro julgado traidor. As personagens alienadas não dão mostras de que se modificaram ao longo do tempo, com exceção de Matilda. A tentativa de integração de Alfredo é rechaçada. Os marginalizados caminham cada vez mais para o abismo, como a prostituída Corina, cuja tragédia se desdobra atingindo um ápice de intensidade no meio do livro ao matar seu próprio bebê, que havia nascido sem pele, culminando com seu total rebaixamento no fecho do romance. Enquanto a narradora afirma que a revolução há de chegar para pôr fim a essa desigualdade sombria, a perspectiva exposta em suas microcenas adivinham o aprisionamento, a longuíssimo prazo, persistente num sistema que finge que dá liberdade, finge que avança, mas segue retrocedendo. Adivinha também, na resistência, sinais de fragilidade e uma complicada mistura de boas intenções e oportunismo nos quadros do PC, o que viria a ser o objeto por excelência de seu segundo romance: A famosa revista (feito, a quatro mãos, com o segundo marido, Geraldo Ferraz, em 1945).
Outro aspecto dessa contradição entre proposta e resultado na obra, foi comentado por Thelma Guedes, ao analisar a escolha do romance como gênero. Guedes afirma que seu apoio na fragmentação, sua falta de acabamento, subverte a escolha pretendida, e que o chocante nascimento do bebê de Corina seria uma metáfora dessa incongruência:
Desponta num buraco negro, entre as pernas de Corina: lá está a parte nuclear do seu romance, seu ser-ou-não-ser, a prova de seu crime, sua essência inorgânica, como uma massa sanguínea e sem pele, mas viva. Tem nervos, pois chora, mas não pode viver por não ter a cobertura que lhe daria a inteireza. Seu inacabamento é fruto de uma série de golpes mortais.
O pobre e frágil bebê sem pele de Corina, que não pode permanecer vivo pela impossibilidade de contato com o mundo exterior, parece existir em Parque Industrial não só como metáfora do próprio romance de Pagu.
Imagem de uma essência violentada em seu nascedouro – do descarne de um corpo infantil causado por incessantes golpes externos, de um estado de infância abortado em sua origem, de uma esperança traída, enfim, de um absurdo e de uma culpa sem tamanho – o natimorto bebê da mulata de Parque Industrial parece estar lá como emblema desse proletário desprotegido, abandonado; e de sua consciência sem pele, impossibilitada da comunicação com a realidade que a cerca. (GUEDES, 2003, p136)13
Do ponto de vista da comparação com as cine sinfonias, a escolha “romance” seria, oposta ao documentário cinematográfico, este naturalmente mais próximo, no plano da literatura, da reportagem jornalística, de estudos geográficos ou mesmo pequenas biografias, na medida em que todos eles se propõem a representar a realidade. O romance, ao trabalhar com histórias, enredos ficcionalizados, estaria distante disso. De fato, ainda que colocando a região do Brás como sendo a grande protagonista, mesmo falando de ruas, fábricas, estabelecimentos, situações existentes na São Paulo da época, e de usar muito da vivência e memória, o enredo composto por Patrícia lida com personagens, falas
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e ações todas inventadas. E não se detém ao minimalismo puro, pois é explorado um prolongamento de duas trajetórias de personagens: a da militante Otávia (branca) e a da inconsciente Corina (negra). De certo modo, a maioria dos outros pequenos nichos de ambientação se cruzam, de alguma forma, com uma dessas mulheres, tornando menos solta a montagem final. Por isso flerta com o romance, mas sem uma estrutura firme, sem acabamento final, um corpo “sem pele”, como apontou Guedes. Por outro lado, é de se ressaltar que não só a novela de Patrícia tem uma natureza híbrida. Também as cine sinfonias não seriam documento pleno da realidade, já que a maior parte das cenas com pessoas que nelas aparecem é também ficção, no sentido de serem planejados e muitas vezes ensaiados, desde alguns close-ups até cenas de multidão. O resultado final, a montagem, procura esconder um hibridismo, que na realidade é parte de sua natureza.
No caso de Parque Industrial , a imprecisão de fronteiras entre ficção e realidade rendeu-lhe inclusive uma forte crítica pelo poeta Murilo Mendes14 Ele teria acusado Patrícia de ter feito, não um “romance proletário”, mas uma “reportagem impressionista, pequeno-burguesa, feita por uma pessoa que está com vontade de dar o salto, mas não deu”, questionando com razão a sua solidez como gênero, reconhecendo nele o caráter impressionista a montar um painel geral com um amontoado de borrões, mais próximos de cenas reais independentes do que de uma criação de fôlego bem armada, enfim, uma “reportagem”. O poeta sugere ainda a invalidez desse retrato enquanto representante do proletariado, já que feita pela ótica de alguém pertencente à
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“O realismo socialista foi lançado no governo stalinista como veículo de regulação da atividade artística, o que provocou um dos maiores traumas à inteligência e à liberdade criativa. Mesmo que já se divulgassem suas ideias, as bases do realismo socialista foram lançadas em 1934, no I Congresso dos Escritores Soviéticos, que teve em Andrei Jdanov (daí o termo jadanovismo) e Máximo Gorki
pequeno-burguesia, a partir de vanguardas europeias concebidas por uma intelectualidade privilegiada. Alguém que está em embate com o que sonha e o que de fato realiza. Enquanto tentativa de flertar com os primórdios de considerações a respeito da legitimação de um discurso pelo “lugar de fala”, que a partir do feminismo interseccional, dos anos setenta aos anos noventa, ganha conceituação e relevante significação, as palavras de Murilo fazem sentido. Mas se contaminam negativamente pelo incômodo que se insinua logo em seguida quando ele procura exemplificar o que impediria Patrícia de “dar o salto”: “Assiste-se a entrada de fábrica, a saída de fábrica, a encontros do filho do grande capitalista com a filha do operário, etc. parece que para a autora o fim da revolução é resolver a questão sexual./ Sobre o parque industrial propriamente, pouca coisa se fica sabendo”. Aqui o deslize, a “mancada”, comentada por Lelia Gonzales, se revela. Para satisfazer as expectativas masculinas do que seria um retrato significativo de um proletariado nascente e em busca de autonomia e igualdade, não interessavam questões femininas de natureza sexual. Parque Industrial , como dito, vai além do que se produzia até então, tanto no contexto literário, como no contexto cinematográfico, ao abordar a problemática da mulher, ao expor sem receio uma série de opressões especificamente direcionadas às questões de gênero. Abundam cenas com esse tipo de conflito: a costureira Corina tem uma desqualificação maior por ser mulher e negra; o seu salário é apropriado pelo padrasto; o mesmo a expulsa de casa por estar grávida; a dona da oficina de costura, falsa moralista, também a expulsa pelo mesmo
seus mentores.” (HOLANDA, 2014, p 96). 13 GUEDES, Thelma. Pagu: literatura e revolução: Um estudo sobre o romance Parque Industrial. Cotia S.P.: Ateliê Editorial; São Paulo: Nankin Editorial, 2003. 14 Murilo Mendes. Nota Sobre Cacau. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, no 12 (set. de 1933). 14 Muril o Mendes. Nota Sobre Cacau. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, n o 12 (set. de 1933)
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motivo; Corina é obrigada a se prostituir pela ausência de qualquer oportunidade de trabalho a partir daí; tem um filho com problemas de formação por conta das doenças sexualmente transmissíveis; é obrigada a tê-lo e mantê-lo mesmo sem nenhuma condição de cuidar dele; operárias não conseguem cuidar de suas crianças por trabalharem mais horas e ganharem menos; são abusadas sexualmente pelo patrão (ou mesmo patroas) para não perderem o emprego; normalistas são seduzidas e descartadas pelos filhos de burgueses; filho de político estupra uma jovem virgem e o caso é abafado; militante comunista é pressionada a abandonar o companheiro; militantes feministas de classe alta não incorporam as necessidades da classe baixa em suas pautas. De fato, a intensidade de exemplos que expõem a opressão sexual, e que já incorpora diferenças na intersecção de sexo, classe e raça, ameaça, nessa “novela de propaganda”, a estabilidade patriarcal, que, como lembra Simone de Beauvoir, mesmo nos redutos de esquerda ou nos sistemas comunistas, persiste15. Para evitar o incômodo e preservar olhares legitimados, é preciso reduzir todas essas manifestações a “pouca coisa”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O romance proletário de Patrícia Galvão é uma tentativa de incorporar a realidade do bairro proletário onde cresceu e as experiências proletárias que viveu, em Santos e no Rio de Janeiro, no início dos anos 30, a uma escrita questionadora das crueldades que testemunhou provindas do sistema capitalista patriarcal e de seus habitantes no âmbito das cidades, lugar privilegiado de construção do “conforto” destinado à classe dominante e parte da classe média, por mãos operárias. Vimos que, nos anos vinte, tais cidades foram exploradas numa linguagem artística nova, que se desenvolveu alimentada por invenções e por aglomerações modernas: o cinema. Mais especificamente: as então novíssimas cine sinfonias. Na medida em que a metrópole é também o maior receptáculo das experiências culturais de vanguarda, esse gênero documental procurou explorar, em seu retrato, novos paradigmas estéticos de narração, a partir de sua própria negação, ao costurar minimalismos independentes, pregando a captação da realidade e superação da ficção, com variedade de planos de curta duração a
15“Acreditava que devíamos militar pela revolução, sou completamente de esquerda e busco a derrocada do sistema, a queda do capitalismo. Pensava que só faltava isso para que a situação da mulher fosse igual à do homem. Depois me dei conta de que me equivoquei. Nem na URSS, nem na Tchecoslovaquia, e nem em nenhum país socialista, nem nos partidos comunistas, nem nos sindicatos, nem sequer nos movimentos de vanguarda, o destino da mulher é o mesmo que o do homem. Isto foi o que me convenceu a converter-me em uma feminista de maneira bastante militante. Compreendi que existe uma luta puramente feminista, e que ela briga contra os valores patriarcais, que não devemos confundir com os capitalistas. Parece impossível que o destino da mulher se transforme profundamente se o destino da sociedade
não se transformarprofundamente com relação à luta de classes. Mas também parece ilusório pensar que a luta de classes sirva por completo. Tem que existir uma luta específica para a mulher. É uma luta que deve nascer especificamente das mulheres”. In BEAUVOIR, Simone de. “Porque sou feminista”. Programa Questionnaire. Entrevista concedida a Jean Louis Servan Schereiber. Acesso em 11 de setembro de 2021. Disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=nR1h4CEdasc.
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refletir o ritmo apressado dos novos tempos. Tendo participado da revista de Antropofagia, na sua segunda dentição, com imagens e alguns versos, e convivido intensamente com as propostas destruidoras do academicismo e conservadorismo feitas pelo primeiro modernismo de Oswald, Tarsila e outros participantes, Patrícia encontrava-se imbuída de uma tendência a aliar conteúdo e forma revolucionária nas suas intervenções. Ao partir para a escrita de seu primeiro livro, ainda que sem grandes pretensões artísticas, procurou construir algo que em muito se aproxima de aspectos Avant-Garde das sinfonias de Nova Iorque, Berlim, Paris e especialmente a soviética, procurando destacar mais a generalidade do todo do que a parte. Apesar de não possuir o lugar de fala a validar a ‘realidade’ da classe trabalhadora que defende, nem pertencer à raça das suas personagem negras, Patrícia empresta à sua obra sua legítima condição de mulher. E constrói uma arguta narradora a olhar como uma câmera e reconstruir em linguagem verbal a sua percepção do parque industrial dessa grande metrópole. Se a sua São Paulo contrasta, surpreende e incomoda a representatividade feminina até então feita pelos homens cineastas e mesmo literários que a influenciaram, é certo que sua jovem experiência, cheia de elementos díspares, resultou também em algo desarmônico, incompleto, cambiante, o que pode ser visto como defeito, mas também como espelho revelador. A obra permaneceu à margem do cânone literário por um longo tempo, sendo desconsiderada tanto pelo PC e outras correntes de questionamento político alinhadas à esquerda, como pelos apreciadores de obras não explicitamente engajadas. Em sua homenagem, ofertei um poema, com que pretendo fechar este artigo:
CARA 16
para patrícia galvão el arte debe ser como ese espejo que nos revela nuestra propia cara. jorge luís borges
a jovem era pequeno-burguesa e achou o mundo muito pequeno e buscou um mundo além do pequeno não nasceu operária nem burguesa mas os homens que eram da política diziam: abaixo a vida operária diziam: um viva à vida operária os homens que eram contra a política mas os burgueses que eram da arte diziam: um viva à obra burguesa diziam: abaixo a obra burguesa os operários que eram da arte e embora tenha lutado com eles, os operários, não sendo operária não foi aceita não sendo operária ainda assim permaneceu com eles e nem a uns nem a outros foi cara solta e presa no fundo do espelho a arte deve ser como esse espelho que nos revela a nossa própria cara
Cecilia Silva Furquim Marinho, agosto de 2022
Cecilia Furquim nasceu em 1967, em São Paulo. É poeta, tradutora e pesquisadora. Escreveu três livros de poemas, lançados pela editora Melhoramentos (A coruja, o gato e os filhotes, 2014), e pela editora Urutau (Mulheres salgadas , 2019, e Brusco, 2021). Tornou-se mestra com a dissertação Gota d’água: entre o mito e o anonimato (2013) e atualmente estuda autoria feminina no doutorado, ambos pela FFLCH-USP. 16 FURQUIM, Cecilia. Brusco. Bragança Paulista, SP: Urutau, 2021, p 19.
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POEMAS
DE
O CARÁTER INAUGURAL, A FORÇA DO IMPULSO ARTÍSTICO E OS POSSÍVEIS CAMINHOS PARA UMA ESCRITA SOBRE A MORTE
LUTO Michaela Schmaedel
A partir da exposição Renascimento, do artista plástico goiano Siron Franco, que homenageou as vítimas da Covid-19 e os profissionais de saúde que trabalharam durante a pandemia, foi elaborada uma oficina de escrita, aberta ao público, para discutir, ler e criar poemas sobre o luto, seja ele pessoal ou coletivo. Aqui, conto um pouco como abordamos, eu e o poeta Reynaldo Damazio, coordenador do Centro de Apoio ao escritor, da Casa das Rosas, a poesia de luto e de luta, já que toda manifestação artística é também uma forma de resistência. Na exposição, que ficou em cartaz em fevereiro deste ano, no jardim do museu, 365 manequins de diversos tamanhos, vestidos com roupas femininas, masculinas e infantis, foram pendurados para representar as vítimas da pandemia no país.
Para compor as aulas da oficina sobre poemas de luto, que incluíam também a visitação da exposição e os sentidos gerados por ela, começamos por uma ideia simples e valiosa de Wislawa Szymborska, poeta polonesa, no livro Correio Literário – ou como
se tornar (ou não) um escritor (editora Âyiné, 2021), que reúne algumas de suas criticas, entre os anos de 1953 e 1981. A poeta começa afirmando que, se você não tem algo de novo para dizer num poema, se tudo o que estiver lá já foi dito de alguma forma, se não há uma surpresa em relação à forma, ao ritmo ou ao sentido do poema, então é necessário parar e repensar o trabalho. Para ela, é preciso ter sempre um elemento surpresa no poema, algo que tire o leitor do eixo, daquilo que já é muito conhecido. Então, para se criar poemas de luto, tema já tão escrito ao longo da história, a diretriz de Szymborska é ainda mais pertinente.
Conseguir este susto, ou, como definia o poeta russo Joseph Brodsky, o “salto no pensamento”, é preciso levar em conta, segundo ele, a reunião de três elementos-chave num poema: análise, intuição e revelação, sendo a revelação algo que Brodsky dizia pertencer apenas a poemas extremamente bem-sucedidos. Quando se atinge esta revelação na poesia e consegue-se gerar o susto, isso faz com
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que o nosso pensamento mude – e Brodsky costumava afirmar que dar este salto é o que faz a poesia ser algo viciante, tanto para quem lê quanto para quem escreve. Se a originalidade é, portanto, ainda mais importante quando pensamos em grandes temas, como a morte e o amor, é necessário num primeiro passo livrar-se das imagens já pré-estabelecidas, das coisas facilmente reconhecidas ao nosso pensamento. Trilhar um caminho alternativo para se evitar o clichê, o sentimentalismo ou a escrita estritamente confessional, que não causa um abalo, que não tira o leitor do lugar. Os relatos, a vivência, a dor, isso ainda não é poesia.
Segundo o ensaísta e crítico literário francês Roland Barthes, a poesia necessita de uma certa opacidade, é uma espécie de filosofia deformada. Ou, como dizia o filósofo alemão Hegel, é “o arrepio de sentido”. Então, para se pensar num poema de luto, começamos destacando o aspecto deste arrepio de sentido que devemos ter ao ler um poema. Quando isso se dá, acontece também o fenômeno de transformar o poema de luto num poema capaz de gerar uma nova ideia no mundo. Barthes, no livro Inéditos vol. 1 – teoria (editora Martins Fontes, 2004), diz que uma das razões de nós escrevermos é justamente “para contribuir para furar o sistema simbólico da nossa sociedade” e “para produzir sentidos novos, ou seja, forças novas, apoderar-me das coisas de um modo novo, abalar e modificar a subjugação dos sentidos”. Nesta mesma linha, o poeta e filósofo alemão Novalis também diz que “a poesia é, entre as ciências, a juventude”. Uma pequena definição que, por si só, consegue nos causar dois abalos: uma é chamar a poesia de ciência, algo para lá de inusitado, e a outra é compará-la com a juventude, não como um elemento carregado de inocência, mas como algo que representa o inaugural. Inspirado pela frase de Novalis, o escritor português Gonçalo M. Tavares escreve, no livro Investigações. Novalis (editora Chão da feira, 2020):
“Está sempre a começar; A inaugurar, a fundar, a inventar, a descobrir. É outro órgão do corpo, a Poesia; não detectada por tecnologia nem por manuais anatómicos. Dito de outro modo: esconde-se por detrás da Anatomia.”
Pensar em conjunto este caráter inaugural, que é da natureza da poesia, e o tema do luto, que pode ser visto como uma presença na ausência, o afeto que surge quando perdemos algo ou alguém que nos era muito precioso e somos tomados por esta onipresença do objeto perdido. O filósofo alemão Peter Sloterdijk, no livro Pós-Deus (editora Vozes, 2019), refere-se aos mortos como seres pegajosos, pensando naqueles dos tempos antigos, quando as pessoas acreditavam que os mortos interferiam na vida dos vivos, eram invejosos, pregavam peças etc. Mas esta noção do morto pegajoso, mito atrelado ao sujeito vivo, pode ser sempre percebida no luto, onde tudo remete ao objeto ausente.
Alguns exemplos de poemas que foram trabalhados na oficina, cujos temas são diretamente a morte ou a tristeza relacionada a ela (a perda de uma pessoa, um país, uma situação, um sentimento):
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IUns ventos te guardaram. Outros guardam-me a mim. E aparentemente separados Guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram. Será lícito guardarmo-nos assim? Pai, este é um tempo de espera. Ouço que é preciso esperar Uns nítidos dragões de primavera, mas à minha porta eles viveram sempre, Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.
Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto Te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.
Tocaram-te nas tardes, assim como tocaste Adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos A pequena raiz, a fibra delicada que a si se construía em solidão? Pai, assim somos tocados sempre. Este é um tempo de cegueira. Os homens não se veem. Sob as vestes Um suor invisível toma corpo e na morte nosso corpo de medo É que floresce.
Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados Uns espaços de luz rompem a treva. Meu pai: Este é um tempo de treva.
Hilda Hilst, em Odes maiores ao pai (1963-1966)
A poeta paulista Hilda Hilst conviveu pouco com o pai Apolônio de Almeida Prado Hilst, que muito cedo foi internado com esquizofrenia. Ela dizia que toda a sua obra tinha sido feita em torno da ausência/presença do pai. Havia uma aura mágica relacionada à figura deste pai que não estavamorto, mas também não estava presente. Neste poema, Hilst faz a transição do luto pessoal para o coletivo. Ela vai do pai (dor pessoal) para o tempo de tre-
va (dor coletiva), num eu-lírico que fala diretamente com o morto/ausente no poema, como se ela contasse para ele os novos e tristes tempos.
Outro exemplo usado na oficina de um poema de luto que consegue unir diversos aspetos (originalidade, luto pessoal e metalinguagem) é o 13 lições, do livro Casa do Norte (editora Corsário-Satã, 2020, do poeta baiano Rodrigo Lobo Damasceno, a seguir:
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13 LIÇÕES
de pai pa fio Luiz Gonzaga
aprendi com meu pai de 65 anos (mesmo morto desde os seus 62) que a poesia é a redescoberta das coisas novas que eu já vi a tarde passando mais lenta na lapa quando se entra no calor do comércio um susto na temperatura máxima repetida: a chegada do cangaceiro (marco nanini) no auto da compadecida o mistério dos bairros antigos (distantes do centro) envolto em fuligem, fumo,
neblina - a fábrica escarra na paisagem a sombra dos vizinhos mortos (levados por tiros velhice vírus) intrometidas no tempo o verso: ruído rangente da rede suspensa no centro da sala em são paulo: cheia de fios entre laçados lenta contra wireless chavões jargões imprestáveis sintaxes su cateadas das máquinas :o verso
aprendi com meu pai de 65 anos (mesmo morto desde os seus 62) que o poema é quando acontece algo a alguém além de mim
Rodrigo Lobo Damasceno, em Casa do Norte
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Um terceiro poema que foi usado na oficina foi o do iraniano Mohsen Emadi, que trata de um luto coletivo, onde o próprio poema é o protagonista. Um poema em que é narrado um acontecimento aterrorizante e, ao mesmo tempo, banal no país (uma bomba explodir num trem). Também pode-se observar o caráter fanopaico do poema, com a imagem forte que ele nos dá das bicicletas que ficaram abandonadas na estação:
O poema não está parado na frente de um pelotão de fuzilamento. Nem o pelotão de fuzilamento, no poema, sabe para qual direção deve apontar. Eles só têm subido o preço dos serviços básicos, do aluguel e dos gastos com o enterro. Não posso comprar cigarros para três mil mortos, mas posso devolver-lhes a vida. Não quero que o poema os devolva a um cemitério que não existe mais, somente quero lembrar que todas as bicicletas abandonadas já estão ruídas, que ninguém voltará nunca a escutar o som de suas sinetas. Os mortos vão permanecer na estação, e, se o poema pode assegurar um bilhete para cada leitor, ele será entregue no primeiro trem de ida. Em meu país, é normal três mil mortos em uma estação. Três mil mortos em um trem é normal.
Mohsen Emadi, em El poema (mudado para o português por Cinara de Araújo)
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A ESCRITA COM SANGUE
Em um segundo movimento da oficina sobre poemas de luto, pensamos em como se pode propiciar o impulso para fazer vir à tona o poema. Um aspecto que pode ajudar na criação poética está descrito em Lições de poética, de Paul Valéry (editora Âyiné, 2020). Trata-se do impulso original, o estímulo que recebemos de algo e que nos movimenta a criar. Segundo Valéry, nosso cérebro funciona sempre de uma maneira desorganizada, pensamos em algo, depois aquilo nos escapa. Quando temos o impulso artístico, temos uma necessidade, que não é da ordem fisiológica, de organizar o que, teoricamente, não poderia ser organizado. “É a indeterminação interior, são as incontáveis possibilidades que são oferecidas quando não estamos dominados por uma necessidade direta assinalada pelo organismo, que caracterizam a ordem das coisas mentais. Porém, na produção de uma obra, chega fatalmente um momento em que saímos da indeterminação. Se traço alguma coisa com uma caneta ou com um pincel, esse traço, que posso apagar, assim como a palavra que pronuncio neste momento, é um ato externo e, portanto, um ato subtraído ipso facto à indeterminação do intelecto. É, portanto, um ponto sólido, um elo claro, que nos permite considerar a obra do intelecto como o resultado de uma transformação que veremos mais tarde, mas que chega necessariamente a um ato único e perfeitamente determinado.”. A escritora americana Natalie Goldberg, autora do livro Escrevendo com a alma (editora Martins Fontes, 2008), sinaliza que, para dar espaço a este impulso originário, que é racional, porém ainda desorganizado, devemos primeiro escrever o que vier à cabeça, fazendo associações livres, durante algum tempo determinado, todos os dias. Depois, rever estes escritos e perceber se há neles uma força motriz, algo que valha a pena ser
trabalhado. “É preciso ter caos dentro de si para dar à luz a uma estrela dançante”, escreveu Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra (editora Companhia das Letras, 2011). Lá ele também diz que só há interesse genuíno no que é escrito com sangue, que tem uma ideia encarnada, a escrita como um atravessamento, quando o artista se deixa dominar por algo.
Julia Bac, poeta de São Paulo, mistura em seu poema duas mortes, a da baleia e a da mãe, de uma forma confessional, mas sem cair em lugares comuns. Para isso, dá dados científicos, coloca números, que é um recurso que tira o sentimentalismo que o poema de luto pode facilmente carregar:
a orca J35 empurrou com a cabeça o seu filhote morto por 17 dias no mar. os cientistas ficaram preocupados com a saúde da orca, preocupados que pudesse se machucar. os cientistas não entenderam. os cientistas estão preocupados com a reprodução da espécie enquanto J35 empurra seu filhote morto. os cientistas não entenderam nada. o filhote viveu somente 30 minutos, os cientistas acham que a orca criou um laço emocional. enquanto isso, J35 empurra seu filhote. os cientistas ainda não entenderam. há 2.190 dias empurro o seu corpo no mar, mãe, e não sinto peso algum, tampouco tenho medo de me machucar. os cientistas não entendem.
Julia Bac, em Duas mortes
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Danez Smith, poeta americano, também foi um dos autores trabalhados na oficina, com um poema que aborda o luto coletivo, as atrocidades que sofrem ainda os negros em diversas partes do mundo, ambientado numa cena ensolarada de verão. O autor usa uma linguagem coloquial, evitando assim o ar solene que há em muitos poemas sobre o luto, algo que muitas vezes distancia o leitor:
VERÃO, ALGUM LUGAR
algum lugar, um sol. lá longe, moleques da cor dos feijões brincam de bola & de caçoada, pulam no ar & param por lá. moleques viram luas novas, breu de boca em todo lado, suplica ao hema-
toma água pra voar, ao menos a maré, ao menos, cuspisse de volta um pai ou dois. nem entro nessa. história é o que é sabe ela o que fez. cão ruim. sangue ruim. dia ruim pra ser um moleque da cor de um verão surrado. mas aqui, nem terra nem céu, não conseguimos lembrar nossas blusas brancas transformadas em becas rubras. aqui, não há língua pra polícia ou leis, cor não há pra chamar de branca. se caísse neve, cairia preta, por favor, não digam que estamos mortos, digam que estamos vivos num lugar melhor. dizemos nossos próprios nomes quando rezamos. saímos atrás de balas & voltamos.
Há pessoas cujos cabelos a dor embranquece de um dia para o outro e pessoas que morrem um mês uma semana depois de finadas as pessoas que adoram e ouvi mesmo falar de um cão cuja vida acabou debaixo do caixão de seu dono Não vejo como algo assim poderia acontecer comigo: é pelas beiradas (como tudo) que a dor me come
Simone Brantes, em Quase todas as noites
Meus mortos não estão encarapitados no alto das árvores não são eles que balançam os galhos quando eu passo nos dias de calmaria não estão debaixo da terra nem voam pálidos sobre minha cabeça debaixo do céu azul Aparecem nos sonhos e desaparecem quando são cinco ou seis da manhã meus mortos são covardes não têm coragem de viver
Simone Brantes, em Quase todas as noites
Danez
Smith, em Não digam que estamos mortos
A poeta carioca Simone Brantes também consegue este efeito seco em seus poemas de luto, algo que deixa seu trabalho extremamente forte. Há um tom confessional, mas há também um quê de raiva e revolta que coloca a morte (e os mortos) num lugar não habitual:
Por fim, foi pensada a edição dos poemas de luto, como trabalhar o material bruto, depois de já ter levado em conta o “salto do poema” e o impu so original artístico. O que cortar, quais são as palavras que podem ser substituídas, o que mexer para tornar o poema de luto mais contundente? O treino de cortar, mudar os versos de lugar e não subestimar o leitor são caminhos que podem fazer o poema aumentar de sentido ou tomar uma direção inusitada. Quando se trata do luto, um tema tão vivido
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por todos, não é preciso deixar tudo tão explícito. O poema deve ser aberto, porque é isso que fará com que ele possa ter múltiplas leituras. Barthes escreve que “leitura é aquilo que não para”, então se o poema for muito conclusivo, não há mais nada que o leitor possa fazer com ele – neste caso, muitas vezes, o corte funciona para deixá-lo maior em termos de sentido. A poeta Orides Fontela, como um último exemplo, entre os diversos poetas que foram trabalhados na oficina, fazia poemas curtos sobre a morte e outros temas com maestria. Poemas concisos que conseguem ser imensos, como os que estão a seguir. Como escreveu a poeta portuguesa Ana Hatherly: “quando o poema é bom/ não te aperta a mão:/aperta-te a garganta”.
TEOLOGIA
Não sou um Deus, graças a todos os deuses!
Sou carne viva e sal. Posso morrer.
Orides Fontela, em Poesia completa
NOTÍCIA
Não mais sabemos do barco mas há sempre um náufrago: um que sobrevive ao barco e a si mesmo para talhar na rocha a solidão.
Orides Fontela, em Poesia completa
Michaela Schmaedel nasceu e mora em São Paulo, é editora de cultura e poeta. Cursou o CLIPE (Curso Livre de Preparação de Escritores), na Casa das Rosas, além de oficinas de escrita com diversos poetas brasileiros. É autora do livro Coração Cansado (Penalux, 2020), Quênia – poemas de viagem (Cas’a edições, 2021) e Paisagens inclinadas (editora 7letras, 2022). Está na antologia As mulheres poetas na literatura brasileira (Arribaçã, 2021) e é editora do podcast Poesia pros Ouvidos.
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A DECOLONIALIDADE NA OFICINA DE ESCRITA OU A RODA COMO PRINCÍPIO DE (RE)CRIAÇÃO
Bianca Gonçalves
Uma vez consciente de que escritores não são seres eleitos por uma ordem superior divina, convém ao projeto de (auto)formação de beletrança 17 pesquisar modos e meios de se fazer literatura; e, em nível mais avançado, desfazer os modos e meios daquilo que se convencionou chamar de literatura. Dou início a essa reflexão resgatando a noção senso-comum do “dom” pois, como autora com formação acadêmica em letras, pude assistir às mais absurdas hipóteses sobre o talento supostamente inato de autores como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e grande elenco de nosso sistema literário brasileiro (e fora dele). Docentes com extensos currículos em suas respectivas áreas podiam discordar entre si sobre um assunto ou outro, mas convergiam quando a questão era a suposta crise (uma episteme que
eles amam) de qualidade (termo igualmente questionável) da literatura contemporânea. A eles nada prestava, a não ser eles mesmos e seus objetos (que quase sempre orbitavam entre os três autores citados acima), reservando o deboche, típico de certa casta da crítica literária, aos seus próprios contemporâneos.
Se há, de fato, uma crise qualitativa na literatura contemporânea, ela talvez esteja intrincada no processo formativo de escritores. Como, tradicionalmente, romances, novelas, contos, poemas são apresentados a nós? No continuum escolar, que toma uma perspectiva canônica, “grandes autores” são concebidos de modo sincrônico, ou seja, são vistos dentro de categorias didaticamente artificiais – como o conceito de“escola literária” – em suas dezenas de características, igualmente artificiais.
17 Emprego o neologismo “beletrança”, cunhado por mim, para me opor à noção eurocêntrica de belles lettres , discurso que funda o esteticismo moral e, não obstante, elitista, que monopoliza aquilo que deve ser lido e estudado nos espaços institucionais. Reporto-me à sufixação da nossa língua em modalidade popular (-ença), evocando Luiz Gama que, em poema intitulado “Lá vai verso!”, atravessa referências europeias e africanas, reivindicando para si as últimas. Ou, como o poeta evoca: “Com sabença profunda irei cantando/ Altos feitios da gente luminosa,/
Que a trapaça movendo portentosa/ À mente assombra, e pasma à natureza!/ Espertos eleitores de encomenda,/ Deputados, Ministros, Senadores,/ Galfarros [,] Diplomatas – chuchadores/ De quem reza a cartilha da esperteza/ (...)/ Nem eu próprio à festança escaparei;/ Com foros de Africano Fidalgote/ Montado num Barão com ar de zote –/ Ao rufo do tambor, e dos zabumbass,/ Ao som de mil aplausos retumbantes,/ Entre os netos da Ginga, meus parentes,/ Pulando de prazer e de contentes –/ Nas danças entrarei d’altas caiumbas.” (FERREIRA [org.], 2011, p. 50-51).
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Tal empenho configura um projeto linear cujo extremo oposto se encontra o aluno – ou, quem sabe, o jovem escritor. Não por acaso, abundam, em cursos livres de escrita e oficinas de criação, indivíduos que demandam uma Formação, maiusculada, que intui um currículo mais ou menos padrão
Trata-se dos chamados “clássicos”: gregos, latinos, franceses, alemães, ingleses, portugueses (esses últimos incluídos única e exclusivamente por compartilharmos da “mesma língua”) e, se der tempo, alguns latino-americanos. O problema, claro, não é ler o cânone. Pelo contrário: aquilo que ganha o status de clássico, naquela concepção de Italo Calvino, é exatamente o que necessita leitura, releitura e desleitura. Algo que também faz parte do empenho de bons escritores. Para ficarmos em um exemplo pouco conhecido: a dramaturga inglesa Sarah Kane concebeu, nos anos noventa, em plena era thatcherista, uma re/desleitura da tradição de Hipólito e Fedra , que “começa” 18 com Eurípides, passa por Sêneca e sobrevive até a Europa moderna com Racine. Em Phaedra’s Love , Kane atualiza personagens e seus respectivos dramas, enfatizando a crítica aos costumes da realeza – o que também nos remete à coroa britânica – e, talvez mais importante, ao debate acerca da definição de estupro, tratamento obviamente ausente nos textos que o antecedem. Uma pedagogia formativa de escritores carece, portanto, de outro(s) modelo(s). E isso não diz respeito apenas ao currículo, ao que se trabalha em espaço de aula-oficina, de modo a incluir autorias historicamente menorizadas pelo grande circuito editorial, uma revisão, inclusive, já dada a cabo nesses últimos dez anos. Há, principalmente, a necessidade de outro método e, por extensão, outro modo de ler/reler/desler/fazer/desfazer literatura. Se aquilo que conhecemos por “literatura” é, também, parte de um projeto colonial bem sucedido – a medida em que foi a literatura a responsável por difundir as imaginações de fronteira e de nacionalidade, como diz Benedict Anderson, assim
como, sendo o meio privilegiado do suporte escrito, pelo estabelecimento do grafocentrismo – temos, desse modo, um espaço potente de produção crítica decolonial que busque a desnaturalização de divisões positivistas e demais binarismos. Jamais me esqueço de um episódio que ocorreu na minha graduação: uma estudante intercambista, de Guiné-Bissau, pediu à professora, numa disciplina geralmente cursada por veteranos, a definição de literatura. Após a explicação mais rotineira possível, a aluna questionou: “então a boneca que costuro com outras mulheres da minha família é literatura?”. A docente, pacientemente, disse que não. A intercambista insistiu. Ao final, a definição pronta, que todos nós conhecemos, venceu. Ao menos, naquele espaço institucional.
Aquele “cabo de guerra” entre a minha professora e a minha colega dispunha, em cada uma de suas pontas, de perspectivas diferentes. Se na primeira encontrávamos a linearidade de um projeto crítico-literário, que não visava absorver quaisquer tipos de críticas e/ou concepções distintas de disputa ao lugar do literário, ou seja, tratava-se do mero incômodo com as margens; na segunda havia um questionamento ao centro, uma proposta que buscava derrubar os acordos ocidentais outrora estabelecidos entre as artes/artesanatos, nesse binarismo também limitador – não por acaso, provocação suscitada por uma estudante africana.
Penso, com isso, na roda: um dispositivo afrorreferenciado, um conceito pedagógico, nas palavras de Renato Noguera, que evoca outras rodas. Do candomblé ao jongo, da capoeira ao samba. Assim, a roda enuncia um tipo de método, uma tática que coloca perspectivas diversas no crivo do debate intelectual, reconhecendo que o consenso é uma impossibilidade, o diálogo em torno de abordagens diversas não serve para que cheguemos a algum tipo de “senso comum”. A roda é a possibili-
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dade de assumir que os interesses são diversos e que o embate não cessa pelo alcance de uma razão universal que diferencie o “verdadeiro” do “falso”. A roda nos convida para decidir tendo o encantamento como critério (NOGUERA, 2017,
Dentro da prática oficineira, a roda é uma ferramenta abundante: ela faz girar saberes e sabenças que transitam por outros corpos e espaços de produção, acolhe a oralidade de casa, os gestos ancestrais, as reinvenções possíveis da língua; ao mesmo tempo em que os sujeitos ao seu em torno fazem, tal qual uma ciranda, uma espécie de brincadeira de (re)criação performática: quando ministro oficinas, costumo oferecer dois ou três exercícios de escrita que devem ser feitos até certa data-limite, que geralmente marco um dia antes da última aula. Com os textos das/os/es participantes em mãos, estabeleço, a partir de combinações motivadas – ou seja, não se trata de sorteio ou qualquer outra sorte de aleatoriedade – quem vai ler o texto de quem. Por exemplo: se Renata, Cris, Pedro, Sol e Alice participam da minha oficina e, se na minha leitura de cada um de seus textos, identifico possíveis diálogos, sejam eles formais ou temáticos, faço assim:
Sol lê Cris
Cris lê Pedro Pedro lê Renata
Renata lê Alice
Alice lê Sol
Uma versão imagética desse esquema nos ajuda a enxergar melhor o princípio da roda:
Tal circulação de leituras põe, na roda das/os/es participantes, além do contato com a obra do outro, a investigação, via performance, do projeto literário alheio. Propõe-se tipos de vocalidade, corporeidades, gestos e, talvez mais importante, a partilha de uma crítica generosa através da construção de um ambiente que produz um sentido prático de alteridade. Há, com isso, um exercício multidisciplinar, cujo propósito maior seja até ambicioso demais: a possibilidade da oficina de escrita ser também um lugar que promova um espaço alternativo de educação, de forma autônoma e que promova, com isso, outras visões possíveis de literatura.
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Referências:
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Trad. Denise Bottman.
CALVINO, Italo. Porque ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. Trad. Nilson Moulin.
FERREIRA, Ligia Fonseca (org.). Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011, p. 50-51.
KANE, Sarah. Phaedra’s Love. Bloomsbury Academic, 2008.
NOGUERA, Renato. Entre a Linha e a Roda: Infância e Educação das Relações Étnico-Raciais. Revista do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes (UNIGRANRIO). Vol 1, n. 17, 2017.
Bianca Gonçalves é poeta, prosadora, pesquisadora, professora, oficineira e performer. É doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp, mestra e graduada em Letras na USP. Tem dois livros de poesia: como se pesassem mil atlânticos (2019) e a sexualidade de meninas ex-crentes (2021). Já publicou em diversas antologias, como o segundo número da Antologia Poética da Revista Cult (2019), Poetas Negras Brasileiras (org. Jarid Arraes) e Poesia Hoje: Negra (org. Ricardo Aleixo), ambas de 2021.
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CORPO, IDENTIDADE E INSUBMISSÃO: CARTOGRAFIA DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ESCRITA POR MULHERES
Laura Redfern Navarro
Este ensaio faz parte da pesquisa de TCC em andamento “Mulheres, corpo e testemunho em O Martelo, de Adelaide Ivánova” pela Faculdade Cásper Líbero, com orientação do prof. Heitor Ferraz Mello
A ocupação feminina nos espaços culturais tem se tornado, cada vez mais, uma discussão acesa e relevante. Num mundo patriarcal, em que prevalecem os cânones de autoria majoritariamente masculina, a recente presença de mulheres em galerias de arte, eventos culturais, feiras literárias e premiações levanta novos questionamentos. Afinal, o que estas mulheres estão produzindo, trazendo de novo para o cenário cultural? O que essa presença representa num escopo maior? Para onde estamos indo, tomando como norte o rompimento das desigualdades de gênero no campo cultural?
Localizando esse debate dentro do cenário da literatura brasileira contemporânea, em especial da poesia, esses questionamentos vêm ganhando força principalmente nos últimos anos, em que vem se construindo, a todo vapor, um novo panorama para a poesia brasileira. Assim, as questões de gênero dentro da produção literária no país não apontam somente para esse campo em específico,
como também para a discussão, mais abrangente, do que é a poesia produzida no país hoje.
O Brasil, até meados do século XX, estabeleceu um cânone literário majoritariamente masculino, de nomes como Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e os irmãos Haroldo (1929-2003) e Augusto de Campos (1931).
Há algumas exceções, caso das poetas Cecília Meireles (1901-1964), Gilka Machado (1893-1980) e Henriqueta Lisboa (1901-1985). Entretanto, é importante considerar a falta de visibilidade dessas escritoras dentro do contexto em que estavam inseridas, sendo muitas vezes redescobertas ou estudadas apenas após a sua morte. Este foi o caso, por exemplo, de Gilka Machado, cuja obra passa a reverberar apenas em 2017, com a publicação de sua Poesia Completa , pelo Selo Demônio Negro, com organização de Jamyle Rkain.
A presença feminina passa a ter mais destaque a partir dos anos 1970. A pesquisadora Heloísa
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Buarque de Hollanda, organizadora da antologia As 29 poetas hoje (2021, Companhia das Letras) pontua a importância da poeta Ana Cristina César (19521983) na composição deste novo cenário. Segundo ela, César não teria aderido de fato a um movimento em prol da escrita de mulheres, mas teria questionado o lugar do feminino na poesia:
“seria possível mexer com ‘literatura de mulher’ sem ocupar o lugar do feminismo nem cair na confusa ideologia do eterno feminino? (...) Onde ancorar esse conceito? Não seria melhor deixá-lo à deriva, errante conforme nos sopra o que há de feminino na linguagem?” César (1979 apud. HOLLANDA, 2021)
Assim, para César, o que estaria em jogo seria a escrita enquanto única possibilidade de uma mulher significar o seu desejo ou seu lugar. Nesse caso, a escrita não pode calar nem seus temas nem aderir a fórmulas poéticas ou políticas prontas, mas construir uma subjetividade que se sobressaia. Mais para frente, a presença das mulheres na literatura vai se tornando mais robusta.Nos anos 1990, figuras como Cláudia Roquette-Pinto (1963) e Simone Brantes (1963) passam a compor, de maneira ativa, o cenário da poesia daquela época. Assim, o questionamento proposto por Ana Cristina César passa a se tornar uma reivindicação central: a da escrita feminina enquanto ressignificação de um lugar de liberdade e não mais de silenciamento.
O FENÔMENO ANGÉLICA FREITAS
O rompimento de um silêncio estruturante, como colocado por Ana Cristina César, parte de um desejo coletivo que culmina na construção da subjetividade. Portanto, ao tratar da poesia de mulheres hoje, é preciso entender que se trata de um movimento político, acima de tudo.
Na antologia As 29 poetas hoje (Companhia das Letras, 2021), Heloísa Buarque de Hollanda busca organizar essa poética do enfrentamento feminino, trazendo poetas brasileiras contemporâneas que trabalham o desejo de expressar o corpo. No prefácio, ela afirma que “(...) a nova poesia de mulheres não reflete apenas a produção individual de cada poeta. Ela se faz em coro, em ressonância. Lembra e não lembra o ‘poemão’ que Cacaso identificou na prática da poesia marginal dos anos 1970. Lembra porque, como Cacaso observou, vista em conjunto, a poesia daquela hora parecia um só poema. Da mesma forma, ao ler esse segmento feminista da poesia de mulheres hoje, também sinto um éthos comum (sem falar de certa dor comum) que se expressa numa sucessão de ecos ligando uma poeta e outra”.
Nesse sentido, se faz crucial localizar o estopim da construção desse éthos comum: a publicação de Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify), em 2012, pela poeta gaúcha Angélica Freitas. O livro traz temas que, até então, eram pouco tratados dentro da poesia, em especial o corpo da mulher e sua intimidade, numa linguagem bem-humorada, despretensiosa e irônica, como se vê em trecho do poema que abre o livro:
“porque uma mulher boa é uma mulher limpa e se ela é uma mulher limpa ela é uma mulher boa há milhões, milhões de anos pôs-se sobre duas patas a mulher era braba e suja braba e suja e ladrava” (Um útero é do tamanho de um punho, p.12)
No poema citado acima, por exemplo, há uma crítica explícita ao papel da mulher enquanto impecável e bem-comportada (“uma mulher boa / é
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uma mulher limpa”) que se constrói a partir de uma linguagem coloquial. Freitas, então, desafia os limites daquilo que é tradicional à poesia, de maneira despretensiosa, trazendo o lugar social da mulher enquanto tema.
Em entrevista à Heloísa Buarque de Hollanda (2021), Freitas afirma que trabalhou o livro a fim de construir um lugar para si dentro da poesia: “(...) eu me perguntava sobre o que era escrever sobre a mulher do jeito que eu queria. Comecei a pesquisar textos sobre o corpo da mulher e como dar forma ao corpo nos poemas. Vi que não havia nada em poesia sobre o assunto mulher. Como leitora de poesia, vi que a poesia feita por mulheres no Brasil não me representava. Só as americanas. Poetas lésbicas não tinham voz. Ser uma grande poeta dentro das regras não me interessa. E comecei a pesquisar o que é dizer. Eu queria ver o que a poesia pode suportar. Poesia é uma investigação séria. Ler outros poetas, é importante estudar para escrever”
Assim, ao assumir um eu-lírico que não é “um grande poeta dentro das regras”, Freitas consegue abrir para as novas gerações “o caminho da desobediência, do corpo, de que escrever é investigar o avesso das regras que regem a poesia.” (HOLLANDA, 2021). É possível entender, assim, que o que Angélica Freitas traz não se trata apenas de um reposicionamento, mas de uma postura política. É uma mulher escrevendo, mas não apenas: é uma mulher escrevendo sobre seu corpo de mulher, sobre seus anseios, nojinhos, violências.
E, na possibilidade de partilhar essas experiências, outras mulheres se encontram na escrita, a partir da leitura do livro de Angélica, trocando as escritas entre si, o que também ocorre em decorrência da popularização das redes sociais e da disseminação das pautas feministas pela internet. Assim, o choque inicial em Um útero é do tamanho de um punho vem se tornando uma característica das poéticas femininas produzidas hoje.
Infelizmente, essa ressonância ocorre pelo mes-
mo motivo que Um útero é do tamanho de um punho foi considerado um marco - o silenciamento frente às questões das mulheres, que permanece ainda hoje. A corporeidade feminina ainda é considerada tabu. Há pouco estímulo ao protagonismo - e à autonomia - das narrativas de mulheres. Se considerarmos a revitimização e o silenciamento diante das vítimas de violência masculina, em que configuram a violência doméstica, o estupro e as relações abusivas, podemos entender que se trata de um movimento que extrapola tanto o campo do sujeito quanto o campo do coletivo, estando em sua intersecção. Logo, essa poesia que trabalha o corpo é uma poesia de enfrentamento, de denúncia e de reconstrução (ou de construção) de uma identidade.
O FENÔMENO
DA INTERNET
Para além da influência de Angélica Freitas, Hollanda compreende um outro fator que tem um papel importante na construção desse éthos comum: a disseminação da internet e das redes sociais, tornando possíveis trocas mais intensificadas entre pessoas com interesses comum que trazem temas diversos, incluindo discussões com propósito social. Isto ocorre a partir dos anos 2010.
Nesse contexto, podemos citar o surgimento das primeiras comunidades de slam no Brasil, modalidade de competição em poesia que envolve elementos do rap, da poesia falada e da performance, representando um símbolo de resistência e expressão por parte de grupos marginalizados no contexto urbano. Emprestada dos Estados Unidos, a modalidade foi trazida para o Brasil por intermédio da poeta Roberta Estrela d’Alva, que funda, em 2008, o ZAP! Slam.
A disseminação da internet também traz, como consequência, uma menor distância entre o autor e a publicação. Afinal, há a possibilidade de se postar
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um texto em blog ou na página pessoal do Facebook, desafiando processos editoriais tradicionais, que tendem a ser criteriosos, demorados e limitados apenas às parcelas mais abastadas ou bem relacionadas dentro do universo literário.
Nesse sentido, vale também considerar que as mídias digitais, os blogs e a própria internet permitem a interlocução com um público mais amplo e diverso, podendo conectar pessoas de diferentes localidades e realidades. Logo, um texto publicado pode ser acessado por qualquer pessoa.
No contexto das mulheres escritoras, esse aspecto é relevante porque, com a maior facilidade de trânsito dos textos, os encontros se tornam possíveis. Pode-se notar, a partir dos anos 2010, esse efeito a partir do surgimento de diversos coletivos e grupos de leitura voltados para a literatura produzida por mulheres, caso do #LeiaMulheres, grupos de leitura espalhados pelo Brasil com o propósito de estimular a leitura de autoras mulheres; e da iniciativa Mulheres que Escrevem, que promove a publicação, a pesquisa e a escrita de literatura produzida por mulheres.
Vale ressaltar, ainda, que o fenômeno das mídias digitais também contribuiu para a maior disseminação de informação e questionamentos acerca da posição da mulher na sociedade. Debates que trazem temas como aborto, sexualidade da mulher e identidade de gênero tornam-se mais acessíveis. O feminismo, ainda que muito ancorado em propostas liberais ou discussões superficiais, se vê mais tangível e deslocado da academia.
Percebe-se que esses coletivos trazem não apenas um espaço para a chamada “literatura feminina” (termo atualmente em questionamento), mas também a reunião de um público majoritariamente feminino. São mulheres, de diferentes contextos, que frequentemente assumem a ausência de referências femininas dentro da literatura, e que se veem encorajadas a partir da possibilidade de um apoio mútuo.
Portanto, torna-se cada vez mais relevante a discussão de mulheres ocupando os espaços literários e, principalmente, podendo experimentar a partilha, a cumplicidade e a identificação na escrita da outra.
Podemos destacar, ainda, esses espaços estarem sendo ocupados por mulheres que publicam ou de maneira autônoma, pela autopublicação, ou pelas pequenas editoras independentes, caso da Editora Patuá, da Macondo Edições, da Editora 7Letras, da Editora Urutau, dentre outras. São livros com tiragens baixas, mas que circulam entre nichos específicos.
Nesse contexto, é importante pensar a literatura feita por mulheres a partir do conceito de comunidade, em que há a formação de laços entre mulheres que ultrapassam a literatura, tornando-se verdadeiras redes de apoio, amizade e afeto. Este é o caso das poetas Érica Zíngano, Danielle Magalhães e Adelaide Ivánova. Nelas, percebe-se um forte movimento de interlocução, que envolve, inclusive, a escrita de paratextos (como o “Pós-Fax” de Érica Zíngano para o livro 13 Nudes , de Adelaide Ivánova) e referenciar umas às outras em trabalhos acadêmicos, caso do capítulo da Tese de Doutorado de Danielle Magalhães, pela UFRJ, em Teoria Literária, intitulado “PÓSESCRITO:Dosegredoàfofoca: Mulheres que reescreveram a história”, em “IR AO QUE QUEIMA: NO VERSO, O AMOR, NO VERSO, O HORROR – Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea” , que menciona também o livro O martelo, de Adelaide Ivánova.
POÉTICA CURATIVA: O CARÁTER TESTEMUNHAL NA POESIA ESCRITA POR MULHERES
O caminho iniciado por Angélica Freitas em Um útero é do tamanho de um punho traz, como elemento central de uma poética de mulheres, o corpo
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feminino. Esta literatura, portanto, precisa ser analisada sob um olhar político - afinal, como discorrido ao longo do texto, a escrita do corpo traz uma reivindicação: a de tratar temas comuns às existências femininas, mas que são cerceados, colocados como tabu ou, até mesmo, silenciados. Logo, trata-se de uma poética que se propõe a romper uma violência estrutural.
Nesse sentido, um eixo central na investigação da poesia contemporânea escrita por mulheres é o conceito de testemunho. A literatura testemunhal designa uma escrita que parte da expressão de um evento desestruturante, isto é, um evento traumático, do qual se torna impossível a elaboração racional ou mesmo a verbalização1. O termo costuma ser associado à literatura produzida por vítimas e sobreviventes do Holocausto, caso de Anne Frank (1929-1945) e do poeta romeno Paul Célan (19201970).
De acordo com a poeta Bruna Mitrano em entrevista ao quadro Megamíni, realizado pela editora 7Letras em junho de 2021, a incapacidade de uma elaboração racional diante de um evento desestruturante também está condicionado por uma estrutura hegemônica e social que implica no silenciamento de determinados corpos. Se pensarmos o Holocausto, por exemplo, há a desestruturação por meio da violência física, mas também pela violência simbólica, como a impossibilidade de fugir ou de ser ouvido em meio à tortura e à discriminação.
No contexto das mulheres, esse aspecto se torna relevante ao levarmos em consideração as múltiplas violências a que o corpo feminino está submetido, incluindo as várias formas de violência física, psicológica e sexual, e a maneira como sua denúncia é abordada.
Nesse sentido, podemos destacar o caso da influenciadora digital Mari Ferrer que, em 2019, expôs a violência sexual que viveu no ano anterior, no beach-club Café de La Musique , em Florianópolis (SC). Ferrer, porém, foi desacreditada, tendo sofrido humilhações, perseguições e ameaças, inclusive por
parte da Justiça Brasileira, que avaliou o caso enquanto “estupro culposo”, absolvendo o réu. Durante o julgamento, transmitido à público, Ferrer foi julgada por suas roupas, aparência e fotos na internet.19
É possível depreender, a partir deste caso, a estrutura silenciadora que ainda cerca as existências femininas, em especial quando denunciam o que vivenciaram, levando à um novo ciclo de violência - o da revitimização, que impossibilita a elaboração do trauma, mas condena a vítima à revivê-lo constantemente.
Logo, a poética testemunhal do corpo da mulher traz uma forma de justiça pessoal às violências vividas, oferecendo a possibilidade de elaboração dos próprios sentimentos de maneira crítica e curativa. Afinal, o testemunho ultrapassa a barreira da literatura, podendo ser enxergado (e até adotado) de maneira clínica. Segundo Danielle Magalhães, “recriar-se pelas palavras significa, também, permitir-se outra história, inclusive, que possibilite não se fixar no ‘paradigma da dor’, transformando esse paradigma pela ‘afirmação do direito ao devaneio”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MAGALHÃES, Danielle. Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror — Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura — Teoria Literária) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 361–388. 2020.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). É importante começar começar essa história de algum lugar, ainda que arbitrário. In: As 29 Poetas Hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
FELMAN, Shoshana. Educação e Crise ou as Vicissitudes do Ensinar in: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.) Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000
SLAM: Voz de levante. Direção: Tatiana Lohmann, Roberta Estrela D’Alva. Produção: Marisa Reis. Brasil, 2017
MAGALHÃES, Danielle; MITRANO, Bruna. megamíni encontros #4. Entrevistador: Alexandra Maia. YouTube, 17 mai. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=YHlGeQokpMY&t=769s> Acesso em: 15 mar. 2022
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LITERATURAS DO APOCALIPSE
Tiago Novaes
“Preparem-se.” É assim que começam estes livros. Devemos conceder o devido crédito a alguns de seus precursores, aqueles homens roucos da Praça da Sé com seus paletós folgados para os ombros finos, o couro de suas bíblias feito o pandeiro de uma marcha fúnebre, o discurso motivacional do medo na convicção de que os sinais já estão presentes entre nós. As literaturas do apocalipse ecoam, afinal, o próprio livro do Apocalipse e seus protagonistas a cavalo, sua nuvem de gafanhotos e suas vacas magras, seus primogênitos imolados, seu anticristo e sua festa inconsequente. Das ruas para as telas, para a aquisição de emissoras, para as versões monetizáveis da desgraça, seus advogados se confundem com os âncoras televisivos da violência urbana. Arrependam-se.
Agora que o fim dos tempos já é praticamente um consenso, estes homens não se aventuram mais na Praça da Sé. A mensagem ganhou o mundo. Em São Paulo, Tóquio e Barcelona, as livrarias têm reservado toda uma seção para estes livros – variações sobre a ideia do desastre sob os títulos mais sugestivos: “A terra inabitável”, de David Wallace-Wells, “Viver nas ruínas”, de Anna Tsing, “A sexta extinção”, de Elizabeth Kolbert, “O grande desatino: mudanças climáticas e o impensável”, de Amitav Ghosh. Ativistas, filósofos, cientistas políticos, jornalistas. O fim é fértil. O desespero galopante estimula, na melhor das hipóteses, um pensamento que duvida de si mesmo. Diante de um estímulo desagradável, nossos mecanismos de defesa se eriçam. As valas abertas da memória estão cheias de mensageiros das más notícias, e o que pode ser
pior que a extinção? Conhecemos bem as nossas reações: o messianismo (a ciência vai dar um jeito), a melancolia e resignação (impotência criativa diante da potência destrutiva), a banalização (o novo normal) e um fenômeno de recusa de todas as descobertas científicas e seus métodos complicados. A lei da atração e a positividade tóxica, em escala global, não passam deste negacionismo furioso que quer sobrepor ameaças fantasiosas (conspirações Illuminati, o comunismo) aos riscos concretos e iminentes.
Já os leitores destes livros queremos saber o que vai acontecer. Como vamos terminar. Se temos tempo. Se é reversível. Se devemos botar filhos no mundo. Se eles vão poder desfrutar de uma infância ao menos parecida com a nossa. O que vamos comer, o que vamos respirar. Os pragmáticos querem saber as profissões que deixarão de existir e quais irão prosperar. Se vale comprar ações, se existe oportunidade na crise, se é aconselhável vender o imóvel em Santos. Se devemos nos deslocar para alguma parte, o que faremos com os nossos pais e avós. Se há maneiras de lutar, se algo nasce disso. Se existe algo curioso, ou até bonito, na catástrofe. Se a catástrofe será espetacular. Queremos entender se havia naqueles sonhos de criança, naquelas ondas que engoliam tudo, algo de profecia. Se os filmes de ficção científica acertavam, e se as nossas próprias especulações também não podem estar se esquecendo de algo.
O que dizem os cientistas é que a coisa vai de mal a pior do que se pensava. Preparem-se. Não será uma outra geração a pagar a conta, é a nos-
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sa, a mesma responsável por esta bagunça. Os fenômenos globais se retroalimentam. No escurecimento das geleiras que passam a absorver o calor que antes refletiam; na liberação das pluritoneladas de metano do Permafrost; nas labaredas de oitenta metros que engolfam uma biodiversidade da qual dependemos; na desertificação dos oceanos; no branqueamento dos corais; na secura dos mangues; no empobrecimento do solo; no surgimento de regiões inabitáveis; na fúria da Terra e na confusão de todos os elementos. As condições de prosperidade da vida, a vida mesma se incumbiu de limitá-la. Para além ou para aquém dos tantos graus Celsius, não existimos. E alas, nós conseguimos mexer com esta fina película que garantia a água doce, um solo cultivável, uma natureza mais ou menos previsível. E desandamos meio que a troco de nada ou de muito pouco. Em nome da comodidade – uma comodidade que geração nenhuma antes da nossa teve o luxo de provar – da fantasia de onipotência dos eletrodomésticos, do design apetitoso dos celulares. Foi em nome da disponibilidade diuturna para saciar qualquer apetite, da abundância da carne, do oásis de recursos infinitos – e isso para aqueles pouquíssimos que podiam realmente provar desta comodidade e desta abundância. O que nos enganou foi o mito do progresso e a ideia de que enfim começávamos a acertar como sociedade.
Acertar como?, contestarão. Ora, havia sinais de prosperidade. Nos últimos vinte e cinco anos, a população mundial a viver em estado de extrema pobreza caíra pela metade (de 1,9 bi a 735 mi entre 1990 e 2015). A expectativa de vida da população aumentou. As taxas de vacinação, de educação escolar, vinham crescendo. O acesso aos bens de consumo, ainda que concentrados, começavam a chegar à classe C. Não se falava mais em fome no Brasil. A situação melhorava, o que não queria dizer que estava boa. O trabalho seguia precarizado e inseguro, o capital estimulava desigualdades perver-
sas, abusos sistêmicos e guerras endêmicas. Mas quem sabe isso também não mudaria nos próximos anos? Um tímido otimismo parecia razoável e embasava o projeto democrático. O que as literaturas do apocalipse aventam, contudo, é que esta prosperidade das últimas décadas foi financiada pela emissão dos gases. Um mundo sem petróleo jamais teria um crescimento anual médio de três por cento do PIB. As conquistas sociais, estimuladas pela necessidade de um mercado consumidor global, bebiam da exponencialidade das cadeias produtivas e nós enxergávamos isso como bem-estar social: onde plantávamos cinquenta, vamos plantar trezentos. O que custava dez agora custa cinco. Um projeto inviável.
O que joga contra nós é que se quisermos sobreviver, tudo vai ter de mudar. As matrizes energéticas, o maquinário das fábricas, as redes de produção e de escoamento dos produtos. A transformação global deverá se dar em um ritmo humanamente impossível, e não mais em nome da prosperidade, mas da sobrevivência. E para que isso aconteça, teremos de superar divisões pessoais e sociais, as bravatas políticas e a confusão das pseudociências. Pelo que vimos, vencer o ceticismo e a inércia custará muito mais do que o prejuízo e o sofrimento de uma única pandemia. A Europa anuncia um plano. Os Estados Unidos aprovaram um pacote ambiental bilionário. A China investe seu soft power em tecnologias verdes, como cidades permeáveis e sistemas de reaproveitamento das chuvas. Em contrapartida, este mesmo país terceiriza a degradação ambiental para outros países. A Rússia, um petro-Estado, tem muito a lucrar com o aquecimento e nenhum interesse em concertações com o Ocidente. Os Estados Unidos são dos maiores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa e as Nações Unidas estão longe de constituírem uma governança global efetiva.
Mas não é apenas de profecias científicas que as
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literaturas do apocalipse são feitas. Uma corrente indireta se debruça sobre a cognição humana e esmiuça as falhas mais comuns dos automatismos do pensamento. É um debate que pressupõe a falibilidade recorrente de nossa capacidade de pensar. Se vamos morrer é porque a nossa espécie não consegue agir de forma independente de estímulos negativos ou positivos. Em situação de miséria ou pobreza, uma família pode não ter condições de fazer escolhas benéficas para a própria saúde ou para o planeta. E mesmo quando não é o caso, quando se tem uma margem de compra e de cálculo, a tendência é gastar o dinheiro ao invés de poupar. Comprar o produto mais barato com a pegada de carbono mais cara. O paladar de hoje não pode se importar menos com a doença coronariana de amanhã. É muito difícil – e não apenas para os negacionistas –inibir comportamentos recompensados de imediato, e este é um traço elementar de nossa espécie. Precisamos de estímulos para mudar: na pior das hipóteses, cidades costeiras naufragadas, migrações massivas, escassez de água doce; na melhor das hipóteses, uma arquitetura de escolhas inteligente (sinalizadores desagradáveis que nos lembram de quando passamos de determinado limite de consumo de energia elétrica, sanções e punições pesadas a empresas e corporações).
Uma terceira corrente estimula um olhar para a complexidade dos organismos vivos e para os mistérios do mundo invisível. São livros que se dedicam a investigar a existência dos bichos, das plantas, dos fungos. As noções de natureza e cultura se confundem, e descobrimos outras formas de inteligência que não a nossa. É como se apenas agora, prestes a perder o que sempre tomamos por certo, pudéssemos voltar os olhos para algo que não seja o demasiado humano, a tragédia ordinária, a história recorrente de conquistas e conquistadores. Uma vez que condenamos uma quantidade dantesca de espécies à extinção, e enquanto faze-
mos isso, somos tomados por uma saudade profunda, uma consciência tardia e ainda platônica de que não passamos de uma espécie dentre bilhões de outras. Neste momento, a noção de indivíduo perde importância para a simbiose, a biologia se faz ecologia – um estudo das relações entre os organismos e o ambiente. Vamos percebendo que o mundo não vai acabar: quem vai acabar somos nós, e não como sinal da indiferença do Universo perante a dor humana, mas a de nossa própria indiferença. Se criaturas tão fascinantes como o leopardo-nebuloso-de-formosa, o rinoceronte-negro-ocidental e a tartaruga-das-galápagos-de-pinta desapareceram do planeta em decorrência da ação humana apenas nos últimos vinte anos (dentre muitas outras espécies), por que afinal isso não pode acontecerconosco?
Uma última corrente nos faz recordar que os arautos do apocalipse da Praça da Sé não foram os únicos precursores do fim dos tempos, e nem os mais antigos e interessantes. As culturas indígenas, as mitologias africanas, as narrativas aborígenes, todos têm a sua escatologia, a sua versão do crepúsculo do mundo. Como bem lembra Eduardo Viveiros de Castro, devemos voltar a nossa atenção a estes grupos inclusive porque eles já viveram muitas vezes a extinção e sobreviveram a ela ainda mais vezes. Um resgate deste saber cosmológico e desta sabedoria ancestral não representa, ao menos não necessariamente, um revival do movimento hippie ou o regresso do mito do “bom selvagem”, mas uma conciliação com o destino da espécie, um aprendizado da morte, uma abertura para aquilo que Natassja Martin chama de “intencionalidade não humana”. O eixo do mundo, que antes atravessava catedrais, universidades e centros financeiros, volta-se para a floresta, a cordilheira, o oceano, o deserto. É a ferida narcísica derradeira, a próxima revolução copernicana, esta em que os nossos sonhos voltam a povoar-se daquilo que não
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somos. Preparem-se.
Algumas leituras recomendadas: “Diante de Gaia” (Bruno Latour), “A terra inabitável”, (David Wallace-Wells), “Viver nas ruínas” (Anna Tsing), “A sexta extinção”, (Elizabeth Kolbert), “O grande desatino: mudanças climáticas e o impensável” (Amitav Ghosh), “Homo Deus” (Yuval Harari), “Racionalidade” (Steven Pinker), “A trama da vida” (Merlin Sheldrake), “A planta do mundo” (Stefano Mancuso), “Outras mentes” (Peter Godfrey-Smith), “O manifesto das espécies companheiras” (Donna Haraway), “Metamorfoses” (Emanuele Coccia), “A queda do céu” (Bruce Albert e Davi Kopenawa Yanomami), “Uma ecologia decolonial” (Malcom Ferdinand), “Banzeiro òkòtó” (Eliane Brum), “Escute as feras” (Natassja Martin).
Tiago Novaes (1979) é escritor, professor de criação literária e doutor em Psicologa pela USP. É autor de Dionísio em Berlim (Quelônio), Os amantes da fronteira (Dobra) e Documentário (Funarte), dentre outras obras.
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DA ORALIDADE AFRICANA
EM “ÁGUA FUNDA”, DE RUTH GUIMARÃES
Dayane Teixeira
O Continente africano sofreu com as calúnias e a falsificação histórica por parte das ações coloniais, que, segundo Fanon, destruiu o negro no mais profundo da sua substância . No livro “A Consciência Histórica Africana”;, o doutor Cheikh M’Backé Diop comenta os esforços da intelectualidade europeia para invalidar o negro enquanto ser humano. De acordo com ele, o africano é colocado como incapaz de criar uma civilização, e prossegue dizendo que foi exatamente por este motivo que o Egito foi “arrancado”; da África negra. Sendo assim, o projeto colonial foi sagaz ao fomentar e perpetuar um discurso que atribui uma imagem negativa aos povos africanos, descendentes de uma nação altamente desenvolvida e tecnológica, a quem devemos, inclusive, o uso da palavra. O berço da civilização foi “arrancado” da África precisamente com este intuito, o de eliminar qualquer vestígio civilizatório de seus herdeiros. O plano de dominação, portanto, se revelou devastador, porém, não o suficiente para tirar o que estava entranhado nos africanos: a própria África.
Sabendo que o Brasil foi um dos países que mais recebeu africanos e africanas no processo migratório colossal denominado diáspora , cuja finalidade era suprir mão de obra escrava, é imprescindível destacar que, como afirma o professor e pesquisador Petrônio Domingues, esse desloca-
mento não foi algo sem desdobramentos, visto que produziu interlocuções e epistemologias. Essas pessoas trouxeram consigo o pensamento, a filosofia, os conhecimentos, todo repertório adquirido na e pela oralidade . Repertório que faz parte da grande cadeia de transmissão passado de geração a geração ao longo dos séculos. E essa tal oralidade, vinda com nossos ancestrais, é a fonte para entendermos os aspectos das ciências, da origem, do modo de transmissão dos saberes, que ecoa, até hoje, nos afrodescendentes deste país. Se faz necessário, pois, conhecer a outra versão, para que possamos compreender a nação brasileira, a literatura brasileira, a literatura negro-brasileira. É essencial ir de encontro ao que nos diz a biblioteca colonial , que por meio de conceitos, ideias, definições e epistemologias, visam deturpar e silenciar a existência do sujeito negro e indígena.
A ideologia eurocentrada nunca compreendeu, ou melhor, nunca tentou compreender outros modos de ser e estar no mundo. A falácia da intelectualidade ocidental impôs sua presença, seu valores, suas ideias, suas epistemologias, porque Narciso acha feio o que não é espelho . Mongobe Ramose, filósofo sul-africano, afirma que o ato de coisificar foi exponencial nessa ação redutiva do ser negro, o papel da escravização nos povos africanos foi determinante na invisibilização do legado africano.
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Cria-se uma necessidade lógica e prática para satisfazer as necessidades psicológicas e materiais do colonizador, eliminando do negro seu lugar e suas referências.
Nesse sentido, como destaca Ramose, o referencial é de suma importância para o africano, visto que o passado é sempre revivido, experienciado e trazido para situações presentes. Em África, o indivíduo é a continuação de seus antepassados e de seus ensinamentos. Esta proposição também é explicitada nos escritos de outros pensadores, como Amadou Hampâté Bâ, um dos autores-referência no campo dos estudos africanos. Bâ é considerado um dos intelectuais mais importantes do século XX por conta de seu trabalho como mestre da transmissão oral, poeta, etnólogo e pesquisador. No intuito de promover as culturas africanas e se colocar contra as mentiras do ocidente, Hampâté registrou em seus textos concepções filosóficas, sociais, religiosas, políticas e cosmológicas, um verdadeiro legado deixado por um dos últimos depositários da tradição africana. Entre tantas questões apresentadas por Hampâté, está a dicotomia Oral X Escrita, em que este refuta a ideia de que a escrita prevalece sobre a oralidade, conceito que serviu para justificar a hierarquização entre sociedades, uma das tantas estratégias de exclusão dos povos cuja textualidade se baseia no campo da oralidade. Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra. Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade
mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a geração. (BÂ, 2010, pág. 168).
Leda Maria Martins, poeta, ensaísta e dramaturga, discorre, igualmente, sobre esses dois lados opostos:
O domínio da escrita foi instrumental na tentativa de apagamento dos saberes considerados hereges e indesejáveis pelos europeus. Tornando exclusiva a escrita letrada como fonte de conhecimento, seu domínio se superpunha, negligenciava e tentava abolir outros sistemas e conteúdos, não considerados pelo colonizador saberes qualitativos, ou sequer um saber. [...] A escrita alfabética se instalava como veículo instrumental de ostracismo, segregava, estigmatizava. Não era uma adição ou um suplemento, mas, sim, uma imposição, um recurso exclusivo de difusão, assim como os valores que disseminava. [...] visava o desaparecimento simbólico ou literal do outro, o seu apagamento. (MARTINS, 2021, pág. 34-35).
Visando o aniquilamento, a imposição da escrita alfabética serviu para diminuir, marginalizar e estigmatizar a textualidade dos povos autóctones e seus descendentes. No entanto, nada prova que as fontes documentais escritas estejam isentas de interpretações errôneas, equivocadas e mal intencionadas, pois sabemos que a falsificação documental não é algo incomum. Já nas narrativas de Tradição Oral repousam valores onde as transgressões, como a mentira, por exemplo, não são admitidas, pois colocam em xeque o equilíbrio e a harmonia da sociedade. A fim de elucidar tal afirmativa, invoco, novamente, Hampâté Bâ. De acordo com ele: A palavra é um elemento derivado do próprio Ser Supremo, por isso, entre os antigos residia a concepção de que o homem está ligado à palavra que profere.
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Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. (BÂ, 2010, pág. 168).
O mestre prossegue suas considerações reafirmando:
Nas tradições africanas – pela menos nas que conheço e que dizem respeita a toda a região de savana ao sul do Saara –, a palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de “forças etéreas”, não era utilizada sem prudência. Inúmeros fatores – religiosas, mágicos ou sociais – concorrem, por conseguinte, para preservar a fidelidade da transmissão oral. (BÂ, 2010, pág. 169).
Para Hampâté esta é a razão de ser atribuída à palavra total confiabilidade no contexto tradicional africano, porque ela provém do divino. Segundo ele, a mentira corrompe e vicia o sangue das pessoas. O mal uso da palavra – exortação que também encontramos em textos bíblicos – tem o poder de estabelecer tanto a paz quanto a guerra. No intuito de melhor situar o leitor sobre essa transmissão que dá pela palavra e pela oralidade , bem como sobre o que significa/constitui Tradição Oral Africana , Bâ faz uma breve explanação de sua definição: Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitida de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. (BÂ, 2010, pág. 167).
Sendo assim, a Tradição Oral, essa herança do saber que é transmitida entre gerações, vinculada às origens, esculpe a alma do africano. A oralidade é o nexo norteador presente em toda África e, portanto, nos permite falar em uma Tradição Oral Africana. Ela é, ao mesmo tempo, religião, matemática, dança, ciência natural, geografia, geometria, iniciação à arte, história, recreação. Por sua particularidade divina, a palavra carrega a força vital originária do próprio Ser Supremo, que é quem dá início a toda cadeia iniciática de transmissão do saber. A palavra é o agente mágico originário, que continua reverberando em nós, afrodescendentes, apesar dos esforços do dominador.
Em “A fina lâmina da palavra”, Leda Maria Martins problematiza a questão da marginalização dos saberes ancestrais, africano e/ou indígena, no âmbito literário aqui do Brasil. Segundo ela: Na literatura escrita no Brasil predomina a herança dos arquivos textuais e da tradição retórica europeia. Mesmo os discursos que se alçaram como fundadores da nacionalidade literária brasileira, no século dezenove, tinham na série e dicção literárias ocidentais sua âncora e base de criação literária. A textualidade dos povos africanos e indígenas, seus repertórios narrativos e poéticos, seus domínios de linguagem e modos de apreender e figurar o real, deixados à margem, não ecoaram em nossas letras escritas. (MARTINS, 2007, pág. 57).
E continua afirmando que, mesmo num contexto onde predomina o imaginário, valores, ideias, conceitos e tradições retórico-discursivas européias, o negro se coloca e, de certa forma, se destaca como escritor. Então, vai apontando toda a genealogia masculina da literatura negro-brasileira, citando nomes como Gonçalves Dias, Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto, homens das letras,
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intelectuais forjados na/pela diáspora. Tal como eles, as mulheres também despontaram nas letras escritas brasileiras – elas, que sempre estiveram na base hierárquica das relações e da estrutura social do país. Mas, apesar de todos os empecilhos e dificuldades, apesar de marcadas e atravessadas pelas questões de gênero, classe e raça, percorreram e escoaram suas águas ancestrais por entre as pedras de rios pedregosos, fizeram suas palavras inundar; trouxeram vida para aquelas e aqueles que pereciam de sede. Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus, Anajá Caetano, Conceição Evaristo… Seus Olhos d’Água testemunham suas escrevivências
Entre elas também está Ruth Guimarães, jovem interiorana, que com a sua petulância e persistência, marcou sua grafia de mulher negra na Literatura dita brasileira. Se fez entender por seu intelecto, sua sabedoria e a força da palavra diásporica . Com “Água Funda”, se põe do outro lado do rio e nos oferece outra perspectiva. Rema contra as águas da branca gênesis. É ela quem escreve e descreve a sua própria realidade, não a que é descrita , como diz Grada Kilomba.
“Se era boa? Tão boa como mel de jati. É que a Mãe de Ouro tinha enfeitiçado o homem. A Mãe de Ouro mora do outro lado da serra. Pra lá fica Juruna, no Itaparica, e é um estirão de mais de cem vezes a distância de Nossa Senhora dos Olhos D’Água a Maria da Fé. Pois ele bateu a pé, moço, bateu a pé com o sapicuá de farinha nas costas. Água não era preciso. Água dá à toa por aí, brota no chão, e nenhum filho de Deus nega água a quem tem sede. Mas é melhor contar do começo…”
A força imagética da água, líquido essencial que simboliza vida, fertilidade, transformação, purificação e cura, que é fluida, dinâmica e feroz, aparece não apenas no título, mas é evocada reiteradamente durante toda a narrativa, indicando a sinuosidade do movimento dos tempos, as entranhas e mazelas do povo, dos fatos. Águas que vão e vêm diante da tirania do cronos, que fluíram por uma época
transcorrida, mas que, mesmo assim, ainda expõe os resquícios, as reminiscências de um passado que foi e não foi, marcos históricos de um Brasil que se apresenta nesta ficção e também fora dela.
Um tempo de outrora, onde os negros morriam debaixo do açoite , que respinga na cara da cidade, nas paisagens, no modo de vida, na culinária, no nome de cada objeto, no nome dos bichos, nos sentimentos, na cura, na doença, na relação com a natureza, em seus modos de explicar e figural o real e o sobrenatural; nos modos de dizer as coisas, na língua… Essa língua, que Lélia Gonzalez chamou de Pretuguês , pois foi subvertida e ressignificada para marcar a resistência que dela fizeram os negros e indígenas . As oralidades ancestrais se encontraram e pariram essa nova língua que tagarela em tupi e quimbundo. “Água Funda” tem guainumbi , caititu, embaúva, jacá, itê, uru; tem o cabinda de Angola, tem candonga nas águas curvas de Curiango. Em “Água Funda” tem Mãe De Ouro, Saci, Curupira, o diabo, mau-agouro, coisas de outro mundo…
“Onde mora? Mora no fundo da terra. Onde ela está o ouro brota no chão, que nem mato. [...] Eu já vi. Vi com esses olhos que a terra há de comer, a Mãe de Ouro se mudando de Olhos D’Água.”
Em “Água Funda” tem sonho, premonição…
“Quefrio!Éamorte.Passe,morte,queestoubem forte!”
Tem gente sentada à porta, com o saião cobrindo os pés, e fumando pito com canudo de palmo e meio, para ver os conhecidos passarem. Em “Água Funda” tem noite de luar com cantiga, viola, violeiros, caboclada e terreiro:
“Ai moreninha, Moreninha, meu amor! Na roda do seu cabelo Corre água e nasce flor.”
Em “Água Funda” tem povo sertanejo que fala referenciando:
“Foi. Estava assim de gente lá. Os homens do roçado, trabalhando e cantando. A mulherada em casa preparando as comezainas. A mulher do Joaquim Martins com as três filhas, uma solteira e duas
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casadas; a mulher do Santana [...] a Saninha do seu Candinho…”
Em “Água Funda” tem narradora, mas, principalmente, tem contadora de estórias. Tem água que dá à toa, brota no chão, para saciar a sede da gente, das gentes que moram no livro, e que moram fora dele também. Sacia nossa sede, nossa sede de saber como foi a história que a “História” não contou. “Água Funda” começa no engenho, onde o chicote alcançava os lombos negros dos homens e mulheres destituídos de suas pátrias, onde o chicote dilacerava a carne, desaprumava o corpo, oprimia o espírito, alquebrava a moral, mas nunca lhes extraiu a sede de luta, resistência e fugor pela liberdade! Nunca, jamais, lhes extirpou a erudição ancestral.
No tempo do engenho – tempo da escravatura – tinha senzala, casa grande, capataz. Tinha também Sinhazinha soberba com sua ruindade. Sinhá separou negra Joana de seu angola. Joana entristeceu, engoliu o choro, mas foi o coração de Sinhá que endureceu…
“Ruindade, às vezes, é só falta de imaginar a tristeza dos outros. Imaginar mesmo pouco adianta. Ter dor de barriga é uma coisa. Pensar na dor de barriga alheia é outra coisa muito diferente. Sempre parece que a dos outros dói menos”
E disseram os antigos que foi a ruindade de Sinhá que tinha chamado a desgraça. Disseram por aí que foi praga…
“Quando aconteceu o que aconteceu, o povo que está só dando com a língua nos dentes, começou num diz-que-diz, que a Joana dos Anjos é que tinha arrumando coisa-feita com um mundrungueiro do Alegre. [...] ninguém teve mais coragem de falar nisso. E daí, quando aconteceu o desastre, não faltou quem disse que a culpada foi a Joana dos Anjos, de parceria com o cabinda que fazia feitiço no Alegre. Mas ninguém sabe se é verdade. Dizem que foi a Mãe de Ouro que pragueou o Joca e a praga pegou em meio mundo…
“Ele agravou a Mãe de Ouro, porque era abu-
sante como ele só. Mas pagou. Ela escutou a praga e veio. Porque, se não fosse a praga, podia bem ser que ele escapasse”
Em “Água Funda” o tempo não é marcado, não se segue ordem, começa do fim para ir explicando o resto. Para gente não se perder é preciso ouvir bem, prestar atenção nos causos contados pela contadora: “Antigamente isto aqui não era assim. Quero dizer, era e não era. [...] os antigos dizem que foi praga. É ver que foi, pois aquilo não era coisa que se fizesse para um cristão. O
engenho é do tempo da escravatura [...]”
“Veja daqui a estrada onde passa a jardineira! Hoje chamamos jardineiras esses ônibus abertos do Zé Luiz e são muito diferentes do que era a condução de antes. Naquele
tempo era uma caranguejola puxada a burro.”
O tempo, portanto, é marcado não apenas pela palavra – assim como grande parte das narrativas orais de origem africana –, mas também é ritmado e significado por ela. A marcação histórica é dada pela transição do engenho, onde a cana era carregada pelos burros, para a Companhia, onde a cana era transportada por caminhões.
Em “Água Funda”, a vida continua, mas o tempo não perdoa. As coisas mudam… Só não mudam as mazelas do povo cor de cuia… “A gente nasce, cresce, e morre. Não sai disso. Mas enquanto cresce e enquanto vive, quantas coisas acontecem! Esta fazenda teve uma vida, como a vida da gente. Antes a cana era trazida da baixada em tropas de boi e, do morro, em jacá, no lombo da tropa.
A Companhia mudou isso. Andava muito devagar. Então a cana do vale pegou a ser carregada
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em caminhões. Para isso, alargaram as estradas.””
Em “Água Funda”, tudo gira em torno da palavra e acontece em razão dela: o mau agouro, o encosto, o mau-olhado, o disse que disse na boca alheia, a praga…
Em “Água Funda”, os acontecimentos deixam marcas, traumas, tristezas, lembranças amargas, principalmente para aqueles que não vigiam a língua. A palavra tem poder – já diziam os antigos. Em “Água Funda”, água dá à toa e brota no chão, como a palavra que corre solta na língua dos habitantes. Por isso que a contadora bota a culpa no povo!
“A notícia correu como rastilho de fogo em mato seco. E era tudo admiração só.”
“Mas quem é que pode com a língua do povo?”
“Água Funda” é Tradição Oral Africana porque carrega e exalta a força da palavra ancestral, porque é onde se fala a língua dos homens, dos sonhos, da natureza e dos seres do outro mundo. Em “Água Funda”, tudo que vai, volta. “Agora que fechou a volta, a praga pode subir a serra, atrás de quem a rogou. A troco de tudo isso que aconteceu, não sei. [...]bom. Não sei. Não sei…Deus sabe o que faz e a gente não sabe o que diz. [...] Se aconteceu era porque era bom que acontecesse…”
Nunca diga “desta água não beberei”, porque Boca falou, corpo pagou. Cuidado com a praga e com a língua…
Dayane Teixeira é formada em Letras pela Universidade Paulista e em Técnico em Museologia pela ETEC, atua na área de museus há mais de 5 anos, sendo um deles o museu Casa das Rosas, onde desenvolve ações junto aos acervos da biblioteca Espaço da Palavra e Haroldo de Campos, além de participar da organização de eventos literários. Também trabalha como professora e pesquisadora independente de Literatura Africana, Negro-brasileira e Indígena brasileira, ministrando palestras e cursos sobre estes temas. É idealizadora da página literária @sy_ jigeen e, atualmente, cursa Pós-Graduação em História e Cultura Afro-brasileira, via Instituto Nacional de Ensino.
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A SAGA DE ZÉ LIMEIRA NO PAÍS DOS EXCLUÍDOS
Paulo Dantas
Faz muitos anos, desde a primeira vez que o nome Zé Limeira baixou pelas minhas oiças. Não consigo precisar o tempo exato, mas deve ter sido em algum lugar entre a minha pré-adolescência e início da adolescência. À época, havia construído uma carrocinha de madeira e trabalhava na feira, auxiliando quem exagerava nas compras e findava precisando de ajuda pala levá-las até suas casas. Vivíamos o início do Plano Real e eu adorava as pratinhas de 25 ou 50 centavos que recebia por cada frete, a depender da lonjura da viagem.
Eram outros tempos. Eu vivia entrincheirado por detrás das serras de Santa Luzia e recebia, diariamente, a visita de dona Escassez. Aliás, como todo mundo, ali; tirando “os mandão do pudê”, claro! Acontece que, por mais tentador que fosse o vil metal, o que eu mais gostava da feira, era o teatro mambembe que se formava toda vez que apareciam emboladores, cantadores, adivinhos, cordelistas ou folheteiros. Bastava algum desses personagens aparecer pela feira que eu já ia encerrando o expediente e me posicionando para apreciar o fuzuê que os artistas aprontavam. Era ótimo!
Foi numa destas brincadeiras que topei com o nome do famoso Bardo Surrealista, Andarilho do Teixeira, Kumba das Estradas, Lampejo Psicodélico, Filósofo dos Sertões ou, como escreveu o jornalista e poeta Orlando Tejo, Poeta do Absurdo: Zé Limeira. Na ocasião, além da alcunha forjada por Tejo, lembro também de ter ouvido a expressão “verso limeiriano” saltar de alguma sextilha e correr pelo
meio do povo; para o divertimento geral da plateia e o meu, em particular. Façamos uma pausa.
Preciso tentar me redimir com os ditos cantadores de outrora e com vocês que, ora, correm as vistas por tão mal engendrado texto. Aos primeiros, perdoem-me por não poder mencionar seus nomes ou, sequer, recordar seus semblantes. Quanto a estes, desculpem-me por não ter memorizado as divertidas estrofes de modo a comungá-las nesta prosa que vamos tecendo. Como sabemos, embora o tempo guarde, nos bolsos, histórias com sortimento, algumas já se perderam nos confins do pensamento, mas, felizmente, de outras tantas, tomamos conhecimento. São essas que, com esforço descomunal, vou tangendo, reconstruindo por estas linhas. Sigamos.
Nosso Preto Velho do “fôigo de sete gato”, a quem consagro respeito & devoção, chegou a este mundo no ano de 1885/86, no Sítio Tauá, Serra do Teixeira, Sertão Paraibano. Segundo a Pedagogia do Invisível, Zé Limeira teria se espichado em vida até o ano de 1954 quando, transgredindo e esgarçando a compreensão de existência, encantou-se em todas as estradas sertanejas por onde andam poetas mastigando versos. É de lá, do quase inalcançável ao nosso pequeno entendimento, que Zé Limeira segue bebendo a sua “zinebra”, tocando seus baiões de viola e cantando a Pavoa Devoradora com a consciência, perspicácia e ironia de quem diz: “Eu sou um nego moderno, / Foi não foi, estou pensando.”
Pois bem, vou debulhando meu rosário de “in-
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utensílios”, no terreiro da poesia, para dizer que é preciso desfolclorizar Zé Limeira. Isso mesmo! Não me refiro a derrubá-lo do andor de devaneios poéticos que envolvem a figura mítica do poeta. Também não há mais necessidade de discutir a originalidade dos versos que fecham a sextilha “Eu já cantei no Recife / Dentro do Pronto-Socorro / Ganhei duzentos mil réis / Comprei duzentos cachorro / Morri no ano passado / Mas esse ano eu num morro!”. Se o livro de Tejo não pode atestar a autoria dos versos, há o relato do senhor Miguelzinho que, segundo o próprio, os teria memorizado quando tinha “uns oito anos” (1942/43), no meio da feira, em Teixeira. Além disso, temos o jornalista, pesquisador e poeta Astier Basílio que, desferindo um bonito golpe de misericórdia, encerra a contenda no seu “Diário de uma descoberta”; artigo publicado no Correio das Artes.
Não quero também que estes fraseados soem como intriga, despeito ou desrespeito pela trajetória de Tejo, Belchior ou, muito menos, Emicida. Definitivamente, não quero. Sobre estes últimos, não vejo grandes problemas em terem cosido os versos limeirianos às suas canções. Em se tratando de poesia em alta voltagem, esta algaravia é mais comum do que imaginamos. Acerca daquele, é certo que seu livro “Zé Limeira: Poeta do Absurdo” apresentou o cantador para todo o Brasil e, mesmo aos trancos e barrancos, o trouxe até o nosso tempo. Ainda assim, como sabemos, não deixou de corroborar para a sua folclorização e injustíssimo fuá envolvendo a sua pessoa. Nas palavras de mestre Suassuna: “Orlando Tejo não tratou Zé Limeira como um personagem histórico, tratou como um personagem.”
Fechando as cortinas desta minha toada quixotesca, desconfio que, para além da atualidade dos versos “Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro” , há muito mais em Zé Limeira que
deveríamos prestar atenção. No rastro desse mote, finalizo com a transcrição de um pedacinho do documentário de Douglas Machado, onde o cineasta conversa com o poeta João Furiba (1918-2019), a respeito do gigantesco José Limeira (ou José Gomes da Silva, seu verdadeiro nome). Enfim, “para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos” , deixo, aqui, este meu despacho na encruzilhada da poesia:
Douglas Machado
“- Diz, pelo menos, que o Zé Limeira quando sabia que tinha um cantador em dificuldade, ele sempre dava um jeito de chamar pra cantar junto com ele porque ele sabia que as pessoas gostavam muito dele e, aí, os dois ganhavam e ele sempre dividia.
João Furiba
- Ele fez muito isso. Comigo mesmo, ele fez isso.
Douglas Machado
- Em que situação, o senhor lembra, assim, com o senhor?
João Furiba
- Em Lagoa Seca, nós fizemos uma cantoria, eu tinha que mandar um dinheirinho pra casa, que eu trabalhava. O dinheiro que eu ganhava, mandava pra meus pais. Aí, eu falei com ele. A cantoria, eu não me lembro se foi, num sei se foi 10 mil reis que saiu. Foi um dinheiro bom que dava pra comprar umas três ou quatro feiras e ele não quis um tostão, me deu todinho o dinheiro. Eu mandei pra casa. Ele onde chegava, dava dinheiro às crianças, comprava coisas pras crianças, dava dinheiro às mulher, dava dinheiro aos velho. O dinheiro dele era, era, só tirava o dele e o resto ele dava todinho ao povo. Tinha essa virtude muito grande.”
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Paulo Dantas nasceu em Santa Luzia, sertão da Paraíba, em 1984, e vive em São Bernardo do Campo, São Paulo, desde 2005. É poeta, professor e pesquisador da poesia popular nordestina. Publicou os livros a butija dos dizer (coleção Mimo, Alpharrabio, 2018) e folheto (Alpharrabio, 2021). Recentemente, lançou o Manifesto do Cordel, pela Lida Poética Edições.
REFERÊNCIAS:
BASÍLIO, Astier. Diário de uma descoberta. Correio das Artes, Suplemento Literário do Jornal A União, n. 10, p. 17-19, dez. 2021. Filha de Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, tem 67 anos e vive na cidade de Patos. Folha Patoense, 23 jul. de 2017. Disponível em: http://www.folhapatoense.com/2017/07/23/filha-de-ze-limeira-opoeta-do-absurdo-tem-67-anos-e-vive-na-cidade-de-patos/ (acesso em: 04 jul. 2022).
NA estrada com Zé Limeira. Direção de Douglas Machado; Produção de Gardênia Cury. [S.l.]: TrincaFilmes, 2011. 1 vídeo (90 min). Disponível em: https://youtu.be/pi149pCOkrc. Acesso em: 21 jan. 2022.
O Homem que viu Zé Limeira. Direção de Maurício Melo Júnior: Produção de Lorena Maria. [S.l.]: TV Senado, 2013. 1 vídeo (60 min). Disponível em: https://youtu.be/VIqDZvXC2Bk. Acesso em: 21 jan. 2022.
RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
TEJO, Orlando. Zé Limeira: o Poeta do Absurdo. 9. ed. Recife: Cia Pacífica, 1997.
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O PÁSSARO COM ONZE ASAS
Marcelo Ariel e Al Berto
“Um romance é aquilo que o autor quiser que seja. O Herberto Helder tem razão quando diz que está tudo misturado: não se sabe quando é que a poesia não dá origem a um romance, quando é que um ensaio não é um romance, quando é que no interior de um ensaio não aparece um poema… Não vejo por que é que essas coisas hão-de ser catalogadas. Há páginas de grandes romances que são grandes páginas de poesia. Bom, mas isto é mais um pressentimento que uma certeza, que o início de uma teoria… É uma interrogação. O meu problema é que sempre li mais prosa que poesia. Na verdade, a poesia aborrece-me mais. Não é bem isso… é no sentido de que ocupa um espaço muito menor nas minhas leituras. A poesia é assim: abro um livro, leio este poema, leio aquele, depois arrumo, um dia volto…”
Al Berto, in Entrevista à revista Ler (1989)
destino-te a tarefa de me sepultares impossível guardar-te, mesmo nos mares no segredo mineral da noite o dia era teu açoite
com um lápis e uma máquina fotográfica riscar a pedra-cinzel da morte depois fica atento ao correio onde se ouve cantar um espelho do secular laboratório nocturno enviar-te-ei devidamente autografado o retrato da solidão que te pertenceu como o relâmpago e numa encomenda à parte receberás a revelação desta arte que do amor roubou a melhor parte onde a vida cinzelou o precário corpo na luz afiada de um vestígio de tinta e inesperadamente o anjo esquecido de Klee canta “She lost control” para ti
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Marcelo Ariel nasceu em 1958 em Santos. É poeta e ensaísta, autor, entre outros, dos livros Tratado dos anjos afogados (Letra Selvagem, 2008), Ou o silêncio contínuo – Poesia Reunida 20072019 (Kotter Editorial, 2019) e Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter Editorial, 2020).
Al Berto (1948-1997), pseudônimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, foi um poeta, pintor, editor e animador cultural. Autor de Uma existência de pape e A secreta vida das imagens , entre outros.
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