Origens: como a periferia me levou para a política e me fez vice-governadora

Page 1

JACQUELINE MORAES

COMO A PERIFERIA ME LEVOU PARA A POLÍTICA E ME FEZ VICE-GOVERNADORA



JACQUELINE MORAES

Origens COMO A PERIFERIA ME LEVOU PARA A POLÍTICA E ME FEZ VICE-GOVERNADORA


Edição, Textos e Pesquisa Histórica 1440, por Cassius Gonçalves & Carolina Júlia Pinto dos Santos Depoentes Adilson Avelina dos Santos Andrea Moraes da Silva Aylton Pereira Clério Hermenegildo Pereira Jorge Rodrigues Filho Maria Miguel dos Santos Barcelos Necilda Pereira Odmar Péricles Renato Casagrande Saulo Andreon Vera Lúcia Moraes da Silva Design editorial Jargo, por Jarbas Gomes Revisão de Texto Elaine Cristina Borges de Souza Fotografia de Capa Victor Deprá

Impressão Gráfica Quatro Irmãos

Consultoria de Imagem Lorrayne Maia

Patrocínio Secretaria Nacional de Mulheres do PSB

Maquiagem Ellen Cardoso Faria

Apoio Fundação João Mangabeira

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Biblioteca Pública do Estado do Espírito Santo “Levy da Rocha Cúrcio” M827o

Moraes, Jacqueline Origens: como a periferia me levou para a política e me fez Vice-Governadora / Jacqueline Moraes, Cassius Gonçalves, Carolina Júlia Pinto dos Santos ; Fotografia de Victor Deprá ; Revisão de Elaine Cristina Borges de Souza. – Vitória, ES : Editora 1440.press, 2022. 96 p. ; il.; fot. ; 18 x 24 cm ISBN 978-65-81165-02-4 1. História política. 2. Negros – Atividades políticas. 3. Espírito Santo (Estado). II. Título.

2ª tiragem: 2.000 exemplares

CDD:305.896


JACQUELINE MORAES

Origens COMO A PERIFERIA ME LEVOU PARA A POLÍTICA E ME FEZ VICE-GOVERNADORA

• •

VITÓRIA ES 2022


Se a polític para fazer jus não serve pa mais nada


ca não servir ustiça, para


A mulher que desafiou o impossível


Há pessoas que chamam a atenção pelo que fazem ou pelo que dizem. Outras – poucas – somam a essas características a capacidade de nos impressionar pelo que são. É o caso de Jacqueline Moraes. Além da inteligência luminosa e da rapidez de raciocínio, da sensibilidade para as causas populares e do enorme carisma, ela demonstra com a própria vida que não há limite para quem sonha, acredita em seus sonhos e luta para realizá-los. Mulher, negra e nascida em família humilde, enfrentou preconceitos que a tantos parecem intransponíveis. Mas nunca se rendeu à opinião dos preconceituosos ou se deixou abater diante das barreiras sociais e econômicas que dificultam e muitas vezes impedem o crescimento e a emancipação da maioria dos brasileiros. Conheci Jacqueline em Cariacica, ainda militante de movimentos comunitário e classista. E não tive como ignorar a força e a determinação que ela transmite em cada gesto e em cada palavra. A política nos aproximou, e não demorei a perceber que havia encontrado uma companheira de lutas lúcida e determinada. Mais do que isso, tive a certeza de haver encontrado uma grande amiga. Daí em diante, a cada passo que demos juntos, aprendi um pouco mais sobre as inúmeras batalhas que ela foi obrigada a travar em busca de crescimento pessoal, afirmação na sociedade e igualdade de direitos para todos. E a cada passagem descortinada dessa vida tão rica e exemplar, vi crescer minha admiração e meu respeito. Por isso, tê-la ao meu lado como vice-governadora do Espírito Santo foi, para mim, motivo de alegria e muito orgulho. O orgulho que imagino presente no coração de cada capixaba, por ter como representante alguém com a trajetória e os compromissos sociais de Jacqueline. Essa mulher de fibra, nascida no subúrbio carioca de Duque de Caxias e desde menina radicada em terras capixabas, fez de si mesma um exemplo incontestável de resiliência e superação. E tenho certeza de que ainda irá muito mais longe. Afinal, para quem enfrentou tantas dificuldades e conquistou tantas vitórias, impossível é palavra vazia, sem tradução.

Renato Casagrande Governador do Espírito Santo


1

Por uma vida melhor


Estou em São Mateus, cidade ao norte do Espírito Santo. É o município mais negro deste estado que chamo de meu. Aqui temos um centro histórico, uma praça esquadrada, cercada por sobrados em estilo colonial voltados para o rio São Mateus, onde era o porto. Encostada nas grades da antiga fonte e de frente para as águas do rio, fico a imaginar os diversos barcos cheios de escravizados subindo por ele até chegar nesta praça para serem comercializados. Este é um lugar de reflexão. Mas é também um lugar de ressignificação. Nesta praça, várias pessoas tiveram que dar novos rumos às suas vidas. Por isso, aqui possui múltiplos sentidos para mim: o primeiro me evoca sofrimento, pranto, perda de si. O segundo, força, resiliência, transformação. Este espaço é um lugar de apagamento de memórias. Tudo que formou cada uma dessas pessoas escravizadas já não fazia mais sentido na colônia brasileira, como aconteceu com Zacimba Gaba. Zacimba Gaba foi uma princesa guerreira do reino de Gabinda, em Angola, África. Seu território foi dizimado na época do tráfico negreiro entre Brasil e Angola, no final do século XVII. Imagino essa mulher amarrada, amordaçada, trancada aos ferros nas mãos e pés sendo jogada do barco, que a trouxe como um objeto, nesta praça. Não sei se ela chegou aqui assim, mas as histórias de sofrimento do meu povo me fazem pensar que sim. Ser princesa já não fazia mais sentido nestas terras. Seu senhor, José Trancoso, sabia que lidava com uma majestade. A estuprou e a torturou o quanto pode para que esta informação não chegasse aos demais negros de sua fazenda e impedir uma insurreição. Como grande líder, Zacimba Gaba administrou essa terrível situação de opressão e crime até conseguir o objetivo de libertar todos os escravizados da fazenda. Essa história conta sobre como ela resistiu - e estou me lembrando de uma das versões que para alguns é apenas uma lenda. Zacimba matou o seu senhor ao usar o veneno da cobra preguiçosa (cascavel) administrando-o em doses homeopáticas. Muitos senhores só comiam depois do escravo provar o prato, pois envenenar a refeição era uma prática recorrente. Se nada ocorresse, tudo bem. Mas Zacimba foi mais esperta e o enfraqueceu até poder matá-lo. Feito isso, liderou a insurgência, venceu também os capatazes e, em um gesto nobre de uma soberana, poupou a família de Trancoso. Fugiu com todos os escravizados fundando um quilombo, hoje Itaúnas, lugar de beleza e resistência.

10 11


Zacimba ilustra meu gabinete. Tenho um quadro com uma pintura onde esta mulher é apresentada com a expressão da força. Força essa que me inspira e motiva cada dia a seguir meu mandato. Tudo conspirando contra a princesa. Era para ela ter sucumbido, porém, foi forte. Nós, mulheres, precisamos a cada dia lutar por nossos espaços. E é assim até hoje. Mas ainda continuo nesta praça, olhando para o rio, imaginando os barcos, ouvindo os prantos, vendo lágrimas se transformando em força. Pessoas sem suas casas, sem seus familiares, sem sua terra. Vejo mães sem filhos, vejo histórias apagadas. E vejo também coragem, luta, resistência, ressignificação. E me vejo. Vejo-me, porque o meu povo vive de lutas diárias. Estamos no meio de todos e muitos insistem em não nos ver. Angola, reino da Zacimba Gaba, foi uma grande fornecedora de mão de obra escravizada. De lá saíram cerca 4 milhões de pessoas trazidas para as Américas1. Aportaram 3,3 milhões no Brasil. A maioria chegou pelos portos do Rio de Janeiro. Como sabemos, muitos dos problemas sociais do Brasil de hoje têm origem na escravatura. Porém, a luta pela inclusão nunca cessou ao longo do século XX. Rejeitamos viver à própria sorte e caminhamos, diariamente, na conquista de nosso lugar por direito. Hoje, a cota2 é uma expressão dessas conquistas. O direito de mulheres negras, analfabetas votarem é outro exemplo. Sou descendente dessas pessoas escravizadas. Sou uma mulher fincada em minhas origens e em constante transformação. *** Minhas origens em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Família de vida simples, com recursos limitados, dividíamos o terreno junto com outros parentes maternos. 1

https://www.sohistoria.com.br/ef2/culturaafro/p5.php

2 Política criada com o propósito de dar a negros e índios o acesso a oportunidades em função do legado de desigualdade social existente no Brasil. Essas garantias são regidas pela Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, garantidas no governo de Dilma Rousseff (PT).

Capítulo 1: Por uma vida melhor


Lembro que meus pais decidiram ir para o Espírito Santo. Ouvíamos dizer que lá era um lugar que estava crescendo. Chegamos em 1986, quando estava com os meus 11 anos. Sem residência, moramos de favor por meses na casa de uns amigos, no bairro São Francisco, em Cariacica, município da Grande Vitória.

Nós morávamos no quintal da casa da minha avó. Moravam os tios, a minha mãe, todo mundo. A gente foi crescendo nesse ambiente de família. Andrea Moraes, irmã

A propaganda sobre o crescimento do Espírito Santo ia longe. Tanto é que também atraiu a minha família no estado do Rio de Janeiro. Ouvia-se falar da abertura de muitas empresas que já iniciavam suas operações quando chegamos, em 1986. Minha mãe até hoje conta que o Espírito Santo era como uma “nova canaã”, um lugar de prosperidade de tudo e para todos, referindo-se à história dos judeus. Viemos atrás de oportunidades melhores. Vivenciávamos e éramos fruto daquele momento: a cidade é o espaço onde o homem é responsável por sua mudança3. Sabíamos das dificuldades e da necessidade de nos encontrarmos por aqui. No entanto, não deixei de ser mulher periférica na nova terra. Agora era a minha vez de ressignificar minha vida neste novo lugar. Precisávamos logo encontrar uma forma de nos sustentar e meu pai foi trabalhar como camelô no centro de Vitória; da mesma forma que no Rio de Janeiro. Era o que estava ao seu alcance para nos garantir o sustento. Ele tinha uma cobrança sobre si pois, em sua mentalidade, o homem deveria ter condições de manter a casa. Essa era uma condição para ele ser respeitado e bem visto pelos outros. Uma forma de pensar que refletia uma época4. Vitória era pequena, mas movimentada. Todo o comércio estava lá no centro da cidade. Por ser uma ilha, é central aos outros municípios. Então as pessoas desciam na Praça Costa Pereira vindas de todos os lugares. Os caminhoneiros paravam perto 3 DUARTE, Maurizete Pimentel Loureiro. A expansão da periferia por conjuntos habitacionais na região da Grande Vitória (1964-1986). Vitória: Grafitusa, 2010, p. 30. 4

https://www.youtube.com/watch?v=59EfkOb3w_o

12 13


da nova estação Pedro Nolasco, ainda sem pista dupla, atravessavam pela segunda ponte e iam para o centro de Vitória fazer compras ou vender seus produtos. Não sei bem, mas a primeira sensação era que aquele ‘Centro da Cidade’ me acolhia de alguma forma. Era um ótimo local para o comércio ambulante, mas também tinha um ar que me inspirava confiança, progresso e vida diferente. E assim foi. No entanto, estar na rua não é fácil. Você vê todo movimento da cidade e percebe a dificuldade de inserção nela. ***

Capítulo 1: Por uma vida melhor


UM ESTADO EM TRANSFORMAÇÃO A história econômica do Espírito Santo tem na crise do café um divisor de águas. O estado era dependente da cafeicultura e a maioria dos cafezais foram erradicados na década de 1960, provocando uma depressão econômica. O motivo era a baixa qualidade da produção local e também para regularizar a oferta no Brasil. Assim, um antigo plano foi executado: a troca da matriz econômica de agrícola para industrial. Os resultados vieram rápidos e, em meados da década de 1970, muitas indústrias estavam em construção ou entrando em operação, atraindo pessoas de diversos lugares. No período dos governos militares, desenvolveram-se projetos para criar indústrias e o Espírito Santo foi um dos locais escolhidos para receber os investimentos de grandes grupos estatais e privados, sejam nacionais ou estrangeiros. Isso provocou um acelerado crescimento5, 6. O Espírito Santo trocava sua matriz agrícola, baseada principalmente no café e na exploração da madeira, pela industrial. Com a crise do café vinda desde a quebra da bolsa de Nova York (1929), o seu agravamento na década de 1960 levou à erradicação dos cafezais de baixa qualidade, sendo o Espírito Santo o estado mais afetado do Brasil. As pessoas começaram a vir do interior para as cidades. E este projeto nacional de industrialização com forte impacto na cidade deixou de priorizar os projetos urbanos e sociais. Neste período, o Brasil vivia o maior movimento migratório para as cidades visto na história da humanidade, mas, a capital, Vitória, estava despreparada para receber aquelas pessoas nos anos de 1970. Os dados estatísticos e econômicos7 demonstram o processo de favelização da região da Grande Vitória, em virtude da diáspora sofrida pelo núcleo rural em busca de colocação no mercado de trabalho e da implantação dos grandes projetos.

5 ROCHA, H. C.; MORANDI, A. M. Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito Santo (1955-1985). Vitória: Espírito Santo em Ação. 2.ed. p. 114 6 Mas é preciso salientar que essa é uma narrativa, e não um consenso, e que existem autores e visões divergentes em torno dessa abordagem. Nossa análise se concentra no sentido de considerar que, apesar de pretender ser hegemônica e propagada como tal, essa narrativa não é única, pois existe uma disputa em torno dessa construção social. 7 SIQUEIRA, M. P. S. Industrialização e empobrecimento urbano o caso da Grande Vitória. 1950-1980. 2. ed. Vitória: Editora Grafitusa, 2010.

14 15


Nesse contexto, a infraestrutura criada pelos governos da época para atender às demandas da grande indústria não foi capaz de se estender para a criação do planejamento urbano que, de fato, tivesse a dimensão social de acolher com dignidade o contingente populacional com moradia e aparelhos sociais. Essa falta de política pública logrou o processo grave de favelização e empobrecimento que eclodiu em fins de 1980 e 1990. Se, por um lado, a erradicação dos cafezais trouxe os agricultores rurais do interior para a capital, por outro, a entrada de operação das indústrias criadas nas décadas de 1970 e 1980, começou a atrair pessoas de outros estados. O perfil era diverso: aqueles que buscavam oportunidade de emprego nas novas empresas, desde peão para as obras, mas também um grande número de profissionais qualificados que vieram de outros estados para trabalhar aqui, aliado a um afluxo de estrangeiros, profissionais ligados às tecnologias industriais importadas para essas unidades fabris. Até então, a cidade do Rio de Janeiro era o principal mercado urbano nacional e, até 1961, era a capital do país. Ocorria também a expansão da economia cafeeira fluminense. O Rio de Janeiro absorvia 60% da exportação capixaba e fornecia 51,7% das importações do Estado8. Os cinco principais produtos vendidos pelo Espírito Santo ao território nacional eram os seguintes: café em grãos (51,8% do total exportado); madeira (5,2%); combustíveis (4,9%); animais vivos (4,1%); produtos metalúrgicos (3,1%); todos esses produtos somados, formavam 69,1% do total exportado9. Tudo isso era somado a um comércio local fraco no Espírito Santo. Há duas linhas conjunturais apontadas pelos estudiosos: 1) conjuntura agrícola da década de 1960: a crise do café capixaba; e 2) fortalecimento de Vitória como centro regional10. Nesse contexto, surgiram as primeiras organizações de classe em torno dos comerciantes no Rio de Janeiro e São Paulo, cujos esforços deram origem às organizações em volta da indústria. O mesmo caminho foi percorrido no Espírito Santo, a começar com a criação da Associação Comercial de Vitória (ACV) em 190911 e as 8 MOTA, Fernando Cezar Macedo. Integração e dinâmica regional: o caso capixaba (19602000). 2002. Campinas. Tese. Universidade Estadual de Campinas/ Instituto de Economia; pós-graduação em economia aplicada. 9 MOTA, Fernando Cezar Macedo. Integração e dinâmica regional: o caso capixaba (19602000). 2002. Campinas. Tese. Universidade Estadual de Campinas/ Instituto de Economia; pós-graduação em economia aplicada. 10 1987.

BITTENCOURT, G. A formação econômica do Espírito Santo. Rio de Janeiro: Cátedra/DEC,

11

OLIVEIRA, C. C. Convergência de interesses: a relação entre a Federação das Indústrias do Es-

Capítulo 1: Por uma vida melhor


demais — Findes e Fecomércio —, a partir da década de 1950. Eram os esforços para mudar a realidade comercial do estado. O Espírito Santo passou a viver um paradoxo: a elite agrícola do Rio de Janeiro e a de São Paulo usaram seus recursos para fomentar a indústria, pois ocorria a queda dos preços do café desde a década de 1930, seria um caminho natural que a elite capixaba cafeicultora e a comerciante usassem os recursos para favorecer a implantação da indústria. Todavia, isso não ocorreu no Espírito Santo. Apesar da alta produção, era um café de baixa qualidade, usado como mistura aos de melhor qualidade. O movimento de industrialização favoreceu a pequena elite econômica local ligada à indústria e ao comércio, desenvolveram o discurso que o governo militar estava sendo bom para o estado, apesar de não serem protagonistas dessa transformação, em função do projeto ser de interesse do governo central. 12, 13, 14 O Espírito Santo começou um processo de adensamento populacional e de muitas transformações. ***

pírito Santo e o poder público capixaba (1958-1971). 2016. 143 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade de Vila Velha. Vila velha, 2016. 12 OLIVEIRA. F. A Critica a Razão Dualista o Ornitorrinco. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013; e OLIVEIRA, C. C. Convergência de interesses: a relação entre a Federação das Indústrias do Espírito Santo e o poder público capixaba (1958-1971). 2016. 143 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade de Vila Velha. Vila velha, 2016. 13 Ao seguir a crítica a essa narrativa, Nascimento (2016) destaca que, desde as décadas de 1960 e 1970, foi percebida a instituição de pesquisas em que a narrativa histórica de superação do atraso dentro do contexto de modernização econômica se dá por meio de discursos políticos em defesa do modelo de desenvolvimento econômico que privilegia a industrialização como a única forma de superar o défice histórico: “[...] o discurso da superação do atraso é constituído por meio de um conjunto de enunciados e imagens que se repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas [...] no presente e no passado” (NASCIMENTO, 2016, p. 60). 14 SANTOS, Carolina Júlio Pinto dos. A construção da memória positiva sobre a ditadura: a narrativa da federação das indústrias do estado do espírito santo (1970-1983). Dissertação (mestrado em Sociologia Política) - Universidade Vila Velha, 2018.

16 17



Minha banca era na Praça Costa Pereira, próxima ao Teatro Carlos Gomes e material escolar era um dos produtos que costuma vender.


Minha família tem um lugar especial em toda minha trajetória. Ela é a base de quem sou.


Zacimba, para mim, expressa a força que necessitamos ter para vencermos as batalhas. Os dias nunca foram fáceis para mim, mas transformei a adversidade em instrumento para buscar algo melhor para mim e para o meu próximo.


2

Mãe na praça


Envolver-me com as pessoas e as suas necessidades foi me forjando ao longo dos anos. Muitas circunstâncias eram fatos novos para mim, desconhecidos, devido ao contexto social em que vivia. Porém, eu encarei esses incômodos, mudei a maneira de me perceber bem como a realidade em que estava, no que era possível fazer naquele momento. Hoje, eu compreendo esse processo que vivi como sendo o início do meu desenvolvimento como uma liderança local. Fui escolhida por pessoas que tinham as mesmas carências socioeconômicas que as minhas e as dos meus familiares. Então, às vezes, indagava: ‘o que fazer diante de uma comunidade em que faltava tudo, sobretudo, crença em si mesmo?’. Em um período de cerca de 15 anos, três fatores importantes ocorreram e me ajudaram a amadurecer enquanto pessoa: ser líder comunitária em dois bairros, ser representante de pais no Conselho Escolar e estar à frente da luta junto com meus colegas ambulantes. Sempre fui de batalhar, de estar ao lado de quem precisava de suporte. Caso não soubesse como agir, corria atrás para resolver. Era um senso de pragmatismo que a vida me impunha e que, em certos momentos, era consciente em outros iam pelo incômodo que existia no meu peito. Lutar era a minha opção. *** Fui residir num bairro novo, em um loteamento que a construtora acabara de entregar, por volta dos meus 18 anos, em função do meu primeiro relacionamento conjugal. Fui uma das primeiras residentes e lá faltava toda parte de infraestrutura a ser executada. Então, junto com meu vizinho Clério, nos organizamos para solicitar os serviços. Ele me procurou dizendo que estava organizando a associação e era necessário uma pessoa para ocupar a cadeira de Secretária, uma exigência do estatuto. Precisava fazer as atas, organizar a papelada e, mesmo sem entender muito bem do que se tratava, tudo deu certo. Criamos a associação de moradores, a AMOPLA – Associação de Moradores do Bairro Planeta II. Lembro que redigi a ata e fui eleita a primeira vice-presidente. Fiquei pouco tempo na associação porque residi brevemente por lá. Tudo isso se intensificou com o trabalho de camelô, a segunda experiência que julgo me formar. Mudamos para o Espírito Santo quando eu estava por volta dos meus 12 anos. Aos 15 anos, comecei a trabalhar de forma constante com meu pai na banca. Fomos morar

22 23


no Bairro Santo Antônio, em Vitória. Depois de um curto período nos mudamos para Cariacica e de lá eu não saí mais. Fizemos uma casa em Flexal. Lembro-me que a construímos em regime de mutirão, com o apoio de lideranças comunitárias que já moravam no bairro há mais tempo, como Aylton Pereira, hoje assistente social. Eu gostava do ambiente do comércio, das pessoas e, principalmente, de ter o meu próprio dinheiro. Para mim era mais instigante o trabalho que os estudos. Por isso, evadi duas vezes da escola na quinta série. Minha mãe dizia que deveria ir para escola, mas meu pai permitia que eu faltasse aula para ir para a banca. As circunstâncias fizeram com que meu pai partisse cedo, vítima da violência urbana. Então, tive que assumir o seu lugar, sendo responsável pelo sustento de minha família, por volta dos meus 20 anos de idade. O centro de Vitória era o local do comércio. As pessoas vinham da Grande Vitória ou de cidades do interior para fazer compras. O Transcol ainda não existia, logo, todos tinham que descer no centro para baldear e, claro, aproveitavam para fazer umas comprinhas. E nós, camelôs, também íamos ali para vender nossos produtos e tirar o sustento de nossas famílias. Então era perceptível ver dois grupos de pessoas: um, geralmente mais pobres e que viviam em bairros longe do centro e com o qual eu me identificava. O outro perfil era de pessoas que vieram para atender o movimento de industrialização, pessoas estudadas. Todos frequentavam o centro15. Minha mãe tinha uma banca em frente à loja Casas Franças, perto do Parque Moscoso. Ela havia conseguido a licença para estar naquele ponto. Meu pai tinha uma banca no outro extremo, perto da faculdade de música. Estar na rua regularizada era pacífico. Tanto que alguns comerciantes guardavam os nossos produtos, como acontecia com minha mãe. Dona Vera França, a proprietária, foi a primeira a me dar uma oportunidade formal de trabalho. O problema residia com aqueles que não conseguiram a licença. A prefeitura cobrava pelo alvará e os ambulantes se sentiam no direito daquele espaço. O município percebeu que limitar a liberação de alvarás era uma forma de forçar, a longo prazo, a nossa retirada.

15 DUARTE, Maurizete Pimentel Loureiro Duarte. A expansão da periferia por conjuntos habitacionais na região da Grande Vitória (1964-1986). Vitória: Grafitusa, 2010, p. 38.

Capítulo 2: Mãe na Praça


Já ocorreu de chegarmos para o trabalho e encontramos tapumes onde ficávamos, no início dos anos de 1990. Pensamos ser uma obra, mas logo nos demos conta que era uma ação da prefeitura para nos remover. Tínhamos uma associação, porém ela estava inativa. Houve um movimento de reorganização para nos representar melhor. Adilson Avelina assumiu essa frente e o nosso diálogo com a prefeitura municipal e a associação dos comerciantes melhorou. As primeiras ações de ordenamento no nosso trabalho ocorreu no governo de Vitor Buaiz (PT) como prefeito de Vitória16. A prefeitura buscava organizar melhor o espaço público, visando a melhor ocupação dos espaços. O pedido dos comerciantes e da prefeitura era para não montarmos as bancas ao longo da Avenida Jerônimo Monteiro, nem na Praça Costa Pereira, mas sim, nas ruas transversais. Alguns ambulantes ocupavam a calçada impedindo a passagem de pedestres, que precisavam utilizar a rua, além, claro, de escondermos as lojas. A convivência com os comerciantes era boa e o pedido deles era que fôssemos organizados, que as barracas tivessem padrão, usássemos uniformes, dentre outras coisas. Esse padrão fazia sentido para eles, mas não para todos nós. Fomos para as ruas transversais. Apesar da melhoria no fluxo da cidade, com a segurança nossa, dos pedestres e dos motoristas, nossos colegas que tinham bancas mais ao meio, reclamaram de um fluxo de comércio menor. O ordenamento também nos deu um lugar fixo para montarmos nossas bancas. De certa forma, ter esse local protegia os ambulantes “mais fracos” do domínio de alguns que exerciam negativamente influência no local de montar as bancas. Colocar-se na cidade era difícil, porque os equipamentos da rua, como uma lixeira, a pavimentação, as pedras portuguesas das calçadas, às vezes, eram mais importantes do que a gente. Estávamos lutando pelo nosso sustento, porém, sem reconhecimento do poder público. Precisávamos vender e quando não eram respeitados esses “acordos”, a fiscalização era chamada e “vinha o rapa”. Os fiscais pegavam nossos produtos, colocavam na caminhonete. Era necessário ir até a prefeitura tentar reaver nossas mercadorias mediante pagamento de multa.

16 CIPRIANO, Perly. Projeto Jacqueline Moraes. 2022. Depoimento concedido a Cassius Gonçalves. Vitória, 12 fevereiro 2022.

24 25


Começamos a pedir a construção ou destinação de uma área onde pudéssemos estar. Muitas cidades já haviam construído seus camelódromos, mas essa discussão não tomou corpo por aqui. Nossa luta maior residia neste aspecto.

Eu conheci a Jaqueline em 1997, no centro de Vitória. Ela trabalhava de camelô e eu também. Ela na Praça Oito e eu na Praça Costa Pereira. Ali, naquele momento, eu estava inserido na associação e eu vi nela um potencial muito grande para nos ajudar. Começamos a conversar um pouco sobre os trabalhos da associação. Bem mais à frente nos aproximamos e estamos juntos há 22 anos nessa luta. Adilson Avelina, esposo.

Casei-me com Adilson Avelina em 2001, um homem que tem paixão pela política. Ele me ajudou a entender um universo do qual estava muito distante: a política. Aos poucos, eu começava a dar direções àquele ímpeto de justiça que pulsava dentro mim, aquele pragmatismo de resolver os problemas. Adilson me proporcionou ferramentas e percepção, o que veio a me ajudar a articular os nossos anseios enquanto ambulantes. Certo dia, estudantes da graduação de direito apareceram no Centro de Vitória para colher depoimentos para um trabalho acadêmico. Queriam nosso relato para abordarem sobre a precarização e a marginalização do trabalho do ambulante. Tomei um susto, pois não me percebia como marginal. Afinal, o trabalho árduo e digno na banca permitiu que comprássemos um carro usado e que erguêssemos uma casa humilde. Isso não é coisa de marginal. Mas foi dessa provocação que compreendi o que diziam e me reconheci. Eu e meus colegas estávamos fora do jogo do comércio17, pois não havíamos constituído empresa com CNPJ para o recolhimento dos impostos. Nossos custos eram baixos porque não 17 ELIAS, Norbert; e SCOTSON, John. L.; Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma comunidade; tradução Vera Ribeiro; tradução do posfácio à edição alemã, Pedro Süssekind – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

Capítulo 2: Mãe na Praça


tínhamos imóvel alugado para a venda de nossos produtos. A nossa folha de pessoal inexistia porque, no meu caso, era meu pai, eu e minha família que íamos à luta.

A Jaqueline eu conheço desde criança aqui na rua trabalhando junto com o pai dela e ficou nesta luta até ir para a política. Ela brigava muito pela gente, chegou a ser presidente da associação, numa época difícil, de pouca conversa com o prefeito e uma fiscalização intensa.

Necilda Pereira, camelô

Durante todos aqueles anos no centro de Vitória, meus colegas e eu tivemos muitos embates com o poder institucional. Por meio da associação conseguimos ter voz e nos inserir no debate público, levando nossas necessidades e direitos. Certa vez, tivemos confusão com a polícia. Criamos a estratégia de, quando a tensão chegasse a este ponto, as mulheres ficariam à frente, evitando o confronto físico. Eu sempre fui impetuosa e levantava a voz contra formas de injustiça. Esse destemor fazia com que meus colegas sempre me indicassem para também representá-los. Com isso, tornei-me presidenta da associação com o término do mandato do Avelina, substituindo-o na presidência da associação de ambulantes, dando prosseguimento às nossas lutas. Essas lutas estavam representadas em um pequeno documentário, para o qual fui convidada a assisti-lo. Lá, a professora me elogiou e plantou a semente de que eu deveria fazer Direito, pois era muito articulada. Foi quando me percebi com a quinta série, somente. A primeira muralha a vencer era pessoal e no campo da educação. As palavras daquela professora falaram ao meu coração e, sem que ela soubesse, foi um solo fértil. Eu gostava de estudar, tenho uma lembrança afetiva da escola muito forte, embora tenha parado os estudos ainda muito menina. Eu ainda me lembro do cheiro da merenda sendo preparada lá na escola do Rio de Janeiro. Nunca esqueci aquele aroma de feijão das tias da cozinha. Hoje, quando visito as

26 27


escolas de nossa rede estadual, faço questão de visitar esse espaço e reconhecer a importância do trabalho de nossas cozinheiras, pois são fundamentais no processo educativo, além de constatar que são quase sempre mulheres negras das periferias como eu mesma. Representar meus colegas em nossas lutas como ambulantes me impulsionou a retornar aos estudos. Então me matriculei no Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Estudava na barraca nos momentos de folga, entre um cliente e outro. O Ensino Fundamental cursei pelo sistema de apostilamento. Pegava as disciplinas por módulos e tirava as dúvidas na unidade do EJA da Ladeira São Bento, no Centro de Vitória, o Centro Estadual de Ensino de Jovens e Adultos - CEEJA. Enquanto estudava, identifiquei-me com História, gostava de entender os meandros da política. Aqueles fatos que me capturaram de alguma forma e, por vezes, perguntava-me se não poderia ter outro desfecho, como as eleições. No Colégio Campo Grande, em Cariacica, cursei o Ensino Médio e o completei em 2000, com 26 anos, onde conheci o professor Saulo Andreon18. Ele se tornou uma referência em minha vida. Percebi nele uma pessoa sempre atuante nos movimentos sociais. Além de professor, Saulo foi vereador pelo município por dois mandatos (2001-2008). Eu o admirava como mestre e representante do povo. Os meus colegas de barraca se acostumaram a me ver a estudar. E quanto mais eu aprendia, mais ampliava a minha capacidade de perceber a realidade, tanto minha quanto a deles. Mais tarde, Saulo e eu nos encontramos no Partido Socialista Brasileiro (PSB), situação que, quando estudante, não imaginaria acontecer. Nas mudanças que a luta nos proporcionou, Saulo candidatou-se a prefeito de Cariacica pelo PSB em 2020 e eu, como Vice-governadora, caminhei lado a lado com ele, debatendo nossas propostas e visão de gestão pública para Cariacica. Política se faz com o coração e as mulheres fazem política assim. Apoiei o professor que me escolheu. Talvez alguns possam entender, neste meu relato, um pouco do meu posicionamento político de 2020 em Cariacica. Porque a política fala da vida, do povo. E se fala do destino do povo, não pode ser só com a razão. 18

http://www3.camaracariacica.es.gov.br/spl/parlamentar.aspx?id=32#tab_biografia

Capítulo 2: Mãe na Praça


*** O trabalho parece ser mais pesado para nós, mulheres. Precisava fazer o tempo render além dos negócios. Ali, também, estava como mãe na praça. Precisava levar minha filha todos os dias junto comigo porque não havia com quem deixá-la, pois era impraticável pegar o dinheiro e pagar uma babá, ir ao trabalho e depois estudar.

A jornada dupla muitas vezes era percebida na sua feição cansada após um longo dia de trabalho. Em sala interagia muito, acredito que toda sua história e vivência enquanto camelô era refletida na sua boa relação interpessoal na sala e na escola como um todo. Saulo Andreon, ex-professor no EJA.

Certo dia surgiu a irmã Amélia, uma freira, e me pergunto se eu trazia minha filha todos os dias para a rua. Ela estava somente com seis meses e a respondi que sim, pois não havia creche de tempo integral em Cariacica e, por trabalhar, mas não morar em Vitória, não podia matriculá-la nas creches da capital. Ela orientou para que, no dia seguinte, a procurasse, pois resolveria este problema. Irmã Amélia ficou com a minha filha para que eu pudesse trabalhar e estudar. Conseguiu também uma creche para ela. Ao cuidar de minha filha, por tabela, cuidou de mim, dos seis meses aos seis anos da minha pequena. Lembro que o desejo dos meus pais era nos proporcionar uma vida melhor em um lugar melhor. No entanto, o vento virou, e, por consequência das crises econômicas, o estado estava com vários meses de atraso. Com a chegada do Plano Real, as vendas melhoraram muito. As pessoas passaram a comprar mais, pois o dinheiro tinha muito valor. Paradoxalmente, havia muita mão de obra desempregada e sem salário. Lembro-me de um médico que chegou a fazer uma compra à fiado de um presente para o filho, pois não tinha dinheiro naquele momento. E eu ajudava, na medida do possível, aqueles que já conhecia. Trabalhei como ambulante até 2010, quando passei a atuar com meu marido na

28 29


política, pois ele já estava no mandato de vereador por Cariacica e eu muito envolvida na presidência da associação de moradores de meu bairro, Operário. A fase de líder comunitária foi a terceira circunstância que me amadureceu. Havia tido aquela breve experiência no meu bairro anterior, Planeta II, como contei. Quando eu me casei com Adilson e mudei para o bairro Operário por volta de 2001. Assim como na associação dos camelôs, Avelina estava envolvido como líder comunitário19, na presidência da associação do bairro Operário e me juntei a ele. Havia um problema com a associação: os moradores se queixavam por não poderem votar porque não eram membros. Eu e Adilson criamos um movimento de recuperação da associação. Mudamos a diretoria e passamos a resolver os problemas do bairro. Matriculei minha filha na escola Luzbel Pretti. Certo dia, houve uma reunião e os pais apresentaram um problema. Eu sugeri fazer um mutirão porque percebi que dávamos conta de solucionar aquela necessidade. Alguns dias depois, recebi a ligação da diretoria comunicando que fui eleita pelos pais como representante deles. Detalhe: sem me candidatar.

A Jacqueline foi uma mãe do bairro. Tanto ajudava a família dela quanto os moradores. Ela morava aqui no bairro Operário. A gente estava sempre juntos, daí começou a associação de moradores. Ela juntou as pessoas para poder formar associação. Jaqueline, tanto faz a pessoa ser pobre, ser preto, seja o que for, pediu a ela e, podendo ajudar, ela não diz não. Ela só sabe dizer aquele sim alegre, de esquecer até, muitas vezes, dela mesma.

Maria Miguel dos Santos Barcelos, moradora e colega na Associação de Moradores do bairro Operário.

Tínhamos uma luta por melhorias da urbanização, uma saga. Eram mais de 36 ruas e somente uma era urbanizada. 19 SANTOS, Adilson Avelina dos. Projeto Jacqueline Moraes. 2022. Depoimento concedido a Cassius Gonçalves. Vitória, 19 mar. 2022.

Capítulo 2: Mãe na Praça


Assim como ocorria com a associação dos ambulantes, ampliamos nosso diálogo com o poder público, mediante as grandes necessidades do bairro. Reestruturamos a associação tendo o Avelina à frente e eu vim a sucedê-lo na presidência. Mesmo que poucos percebessem e/ou entendessem, um bairro organizado é equivalente à nossa casa com a obra terminada, arrumada e limpa. Em outras palavras, a nossa moradia também expressa se estamos ou não inseridos na sociedade20. E nas condições que o nosso bairro estava era claro que o poder público não nos percebia como deveria. Longe fisicamente, longe socialmente. As periferias de nossas cidades abrigam os migrantes, trabalhadores formais de baixa renda, desempregados, trabalhadores informais e desempregados21. Essas pessoas querem dignidade para viver. Para os que trabalham, seus empregadores estão a quilômetros de distância. O aluguel, para a maioria, é algo a ser evitado. E ter uma “terrinha” implica estar longe das áreas estruturadas de nossas cidades. Em alguns pontos, nem regularização fundiária existia. Certo dia, fui surpreendida com a chegada de um envelope branco timbrado do Congresso Nacional à presidente da Associação de Moradores. Como me encontraram? Era do gabinete do então Deputado Federal Renato Casagrande, para um evento de prestação de contas de seu mandato. O gabinete dele tinha o controle de todos os líderes comunitários. Era o convite para o congresso a ser realizado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e lá estava o então Ministro da Integração Nacional do governo Lula, Ciro Gomes (PSB, à época)22. Ele dizia que havia recursos em Brasília, porém, era necessário desenvolver projetos locais e acionar as prefeituras para a captação dos recursos. Foi nesse momento quando conheci o Renato Casagrande.

20 DUARTE, Maurizete Pimentel Loureiro Duarte. A expansão da periferia por conjuntos habitacionais na região da Grande Vitória (1964-1986). Vitória: Grafitusa, 2010, p. 19. 21 DUARTE, Maurizete Pimentel Loureiro Duarte. A expansão da periferia por conjuntos habitacionais na região da Grande Vitória (1964-1986). Vitória: Grafitusa, 2010, p. 20. 22

Ciro Ferreira Gomes (PSB) foi o 6º ministro a ocupar a pasta no período entre 2003 a 2006.

30 31


Conheci a Jacqueline quando ela era líder comunitária e eu era deputado federal23. Eu fazia a prestação de contas do mandato em reuniões que ocorriam no Teatro da Ufes. Como líder comunitária, ela recebeu um dos convites e esteve presente em um desses encontros. A partir de então, ela começou a acompanhar o meu mandato e eu a dar informações sobre.

Renato Casagrande, Governador do Espírito Santo

Ao voltar do congresso, reunimos nossa associação e elencamos as necessidades. Criamos uma agenda positiva de propostas, nem sempre conciliadoras com o poder público e os demais interessados. Passamos a ter várias conversas com a Prefeitura, na época liderada por Helder Salomão24 (PT). Nada foi fácil, mas, depois de muito diálogo, estruturamos e enviamos uma proposta para ser apreciada em Brasília. Havia a possibilidade de termos dois projetos pilotos no Espírito Santo. E um dos escolhidos foi o da nossa associação. Conseguimos que cerca de 80% de nossas ruas fossem pavimentadas. Esses recursos vieram do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Recebemos 12,8 milhões de reais, liberados de acordo com os andamentos das obras25. Eu era uma mulher de vinte e poucos anos de idade a assumir a dianteira dos problemas do meu bairro e colocá-los sobre os ombros, tomando a responsabilidade de conduzir as melhorias. Nesse trajeto, encontrei muralhas, venci preconceitos e me consolidei como defensora dos direitos dos moradores de Cariacica. ***

23 Renato Casagrande (PSB) foi Deputado Federal de 2003 a 2007. Depois elegeu-se Senador entre 2007 a 2010 e o Governo do Espírito Santo pela primeira vez entre 2011 a 2015 e pela segunda vez de 2019 a 2023, sempre pelo PSB. 24

Helder Salomão (PT) foi prefeito de Cariacica por dois mandatos consecutivos (2005 a 2012).

25 html

http://www3.camaracariacica.es.gov.br/Arquivo/Documents/legislacao/html/L45542007.

Capítulo 2: Mãe na Praça


UM RÁPIDO OLHAR SOBRE O ESPÍRITO SANTO DEPOIS DA CRISE DO CAFÉ A economia capixaba é dividida em ciclos, sendo o agrícola o primeiro, com predomínio do café (1850-1960), o segundo marcado pela industrialização (1960-1990) e o terceiro (1990-atualidade), marcado pela “diversificação concentradora”, tendo o petróleo como um expoente. Apesar de toda crise no sentida no estado, a economia local cresceu mais do que a nacional: 1960/70 (ES: 8,1%, BR: 7,7%); 1970/1980 (ES: 11,5%, BR: 10,3%), 1980/1990 (ES: 2,9%, BR: 2,0%), 1990/2000 (ES: 3,9%, BR: 2,4%), 2000/2006 (ES: 5,3%, 3,7%). As commodities fazem do Espírito Santo um dos maiores estados exportadores do Brasil26. Na virada da década de 1980 para a de 1990, as grandes empresas construídas pelo governo militar estavam em operação e atraíram um grande número de pessoas para o Estado - pelotizadoras da Vale, Samarco, Aracruz Celulose (Atual Suzano), CST (atual ArcelorMittal, os portos de Tubarão, Praia Mole, Capuaba, Ubu. Por outro lado, o Espírito Santo voltava a um novo processo de crise, afetando profundamente a administração pública, e um dos expoentes eram os meses de atraso do funcionalismo público. O peso do estado como empregador era alto nesse momento. A dinâmica populacional se refletia na geografia da Grande Vitória. Cariacica tornou-se uma cidade onde as pessoas de menor renda residiam, além do poder público municipal não conseguir atender às necessidades dos moradores. Para se ter uma dimensão, a população da Grande Vitória na década de 1980 era de 458,3 mil pessoas. Cariacica tinha 189,1 mil habitantes, sendo 116,8 mil pessoas vindas de fora27. O programa de desestatização começou no estado, com a Cofavi e depois prosseguiu com a Companhia Siderúrgica de Tubarão, a primeira grande empresa nacional a ser desestatizada. Logo em seguida, foi o impacto das telefônicas. Esses acontecimentos colocaram um grande contingente de mão de obra disponível no mercado. Enquanto os grandes negócios conseguiam imprimir bons números, a população de classe média e mais carente sentia profundamente os impactos. 26 CAÇADOR, Sávio Bertochi. A Evolução Recente da Economia do Espírito Santo: Um Estado Desenvolvido e Periférico? Disponível em: <http://www.anpec.org.br/encontro2009/inscricao.on/arquivos/000-acbb55edea8d55d858feb624d6b49f0d.pdf>. acesso em: 2 mai. 2022 27 SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da Grande Vitória (1950-1980). Vitória: Grafitusa, 2010, p. 127.

32 33


A chegada do plano Real foi um fato positivo para todos, pois permitiu uma mudança cultural: o planejamento financeiro. Com a moeda valorizada, a população de baixa renda foi beneficiada, pois havia poder de compra. A partir de então, começou o processo gradual de aumentar o valor do salário mínimo. Ocorreu também a implementação do Transcol, projeto de mobilidade que interligou a Grande Vitória por terminais, racionalizando o transporte público. Antes, o centro de Vitória funcionava como um grande terminal. Todos os ônibus chegavam e partiam de lá. Era o local do transbordo, o que favorecia o comércio local. Com o início da operação, o centro foi gradativamente mudando, pois tornou-se um lugar de passagem. As pessoas não precisavam mais descer, somente aquelas que de fato tinham algo a fazer no centro. O centro experimentava um movimento imobiliário, que era a transferência para a região da Praia do Canto. Apesar do bairro existir desde o início do século, somente a partir da década de 1970 é que ele começou a chamar a atenção. Isso se deu pelo último movimento de aterros, onde foram criados os bairros Bento Ferreira e Praia do Suá, bem como a ligação com a Ilha do Boi e a Praça dos Namorados. Esse movimento se dava pelo crescimento constante da Vale que, após 1966, passou a operar no Porto de Tubarão. O Campus da Ufes também entrou em operação em Goiabeiras. Sob o ponto de vista do comércio, o Shopping Vitória entrou em operação em 1992. Sua escala era grande e atraiu o público de melhor renda. O Centro foi tomando novos contornos e as lojas passaram a se dedicar a um público mais simples e de menor poder aquisitivo, com produtos de maior giro e baseados em menores preços. Essas mudanças, claro, foram gradativas e lentas. Se, por um lado, os números mostravam que o crescimento do Espírito Santo era maior que o do Brasil no período, por outro, Cariacica era um município com uma população muito carente nos idos de 1990. Tomemos o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como parâmetro. No Espírito Santo, temos 78 municípios e Cariacica, à época, era o 21º IDH (0,613), e o 1317º em relação a todos os municípios brasileiros, conforme o censo IBGE de 2000. O IDH do estado era baixo em 1970, de 0,415, e foi para 0,802, alto, em 2006. A renda per capita, no mesmo período, saltou de R$ 2.100,00 para R$ 9.071,0028. De 1945 até 1989, o 28 CAÇADOR, Sávio Bertochi. A Evolução Recente da Economia do Espírito Santo: Um Estado Desenvolvido e Periférico? Disponível em: <http://www.anpec.org.br/encontro2009/inscricao.on/arquivos/000-acbb55edea8d55d858feb624d6b49f0d.pdf>. acesso em: 2 mai. 2022

Capítulo 2: Mãe na Praça


Espírito Santo representava em média 1,7% da população total do Brasil e a mesma proporção em eleitores. Na virada do século XXI, o estado experimentou um grande ajuste nas contas públicas e, junto com o bom cenário brasileiro, passou a ser uma referência nas contas públicas. A descoberta do petróleo do pré-sal em território marítimo capixaba, beneficiou o estado, ampliando sua produção de óleo e gás, antes restrita a uma pequena exploração terrestre no município de São Mateus. Os cenários interno e externo favoráveis, permitiram grandes investimentos, tanto do poder público estadual, quanto do federal, como o saneamento de esgoto na capital Vitória e as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). ***

34 35


As circunstâncias me ensinaram como acessar o poder público e apresentar as necessidades de quem precisa. Aprendi a dialogar e a requerer nosso espaço na sociedade.


Aprendi a importância do debate e soube ensinar a importância de debater com o público. Tive que correr atrás para entender e conhecer os caminhos de reivindicar pelos direitos como cidadãos.



Nosso bairro é extensão de nossa casa. Com diálogo e luta, conseguimos que o poder público olhasse para nós. Realizou-se a pavimentação, o saneamento e a regularização fundiária.


3

Tecendo vidas, construindo cidadania!


Mudei de posição na luta pela igualdade social, mas não mudei de lado. Deixei a barraca de camelô para trilhar a luta comunitária no bairro Operário, em Cariacica. Essa luta coletiva elegeu meu companheiro Adilson Avelina vereador29, em 2008, pelo Partido Social Democrático (PSD). No entanto, em função das experiências com os camelôs e nos bairros, muitos pediam para eu considerar uma eventual candidatura também. Para apoiá-lo, também ingressei na política partidária e me filiei ao Partido Progressista (PP)30. Meu esposo sempre gostou da política partidária e era atuante. Por causa dele, acabei também me ingressando, muito mais para acompanhá-lo neste sonho. Mediante o envolvimento de Adilson com a política, mesmo com os pedidos, entendemos em nossas conversas conjugais que aquele era um momento propício para ele, pois ele estava em condições reais de eleição. E assim foi. Decidimos juntos e ele teve meu apoio. Ajudei na articulação da campanha, no convencimento com as lideranças, no entendimento com o candidato majoritário a prefeito, no caso, Helder Salomão (PT). Foi uma campanha carregada de significados. Uma campanha feita com doações, trabalho voluntário, com os jovens do bairro, com as pessoas da associação de moradores, com pessoas de várias agremiações partidárias. Houve muito engajamento. A poucos dias para as eleições, a campanha do prefeito Helder Salomão (PT) nos chamou para apresentar uma pesquisa na qual o Avelina estava com chances reais de ser eleito. Conhecer aqueles dados trouxe esperança à nós, ao nosso bairro e à nossa região. A periferia teria voz no ambiente político de Cariacica. Nós não tínhamos dinheiro para fazer pesquisa nem ter uma equipe remunerada para o processo de campanha. Foi tudo articulado tendo como princípio a defesa das demandas historicamente defendidas pela nossa associação. E deu certo. Avelina se elegeu com 2.838 votos pelo Partido Social Democrático (PSD)31. Eleito, defendeu as políticas públicas em favor da urbanização da nossa região, dentre outras melhorias. O terno de posse e o vestido foram um presente da então secretária de serviços urbanos Lucia Dornelas.

29

http://www3.camaracariacica.es.gov.br/spl/parlamentar.aspx?id=1

30 Jacqueline deixou o Partido da Mobilização Nacional (PMN) e filiou-se ao Partido Progressista (PP) de 2007 a 2011, seguindo para o Partido Social Democrático (PSD). 31

http://www3.camaracariacica.es.gov.br/spl/parlamentar.aspx?id=1

40 41


Atuei ao lado do meu esposo como voluntária no suporte ao seu mandato e como líder comunitária de nosso bairro, Operário. Cariacica passava por importantes mudanças na resolução das carências sociais existentes. Como Adilson tornou-se presidente da Câmara de Vereadores, a função exigia maior tempo no Gabinete. Logo, passei a representá-lo junto à comunidade. Essa caminhada ao seu lado ampliou o desejo de muitos para que eu viesse a pleitear um cargo como vereadora para próximas eleições32 e, ao seu tempo, aceitei considerar o desafio. Uma oportunidade de dar voz à mulher na Câmara Municipal. Como contei no capítulo anterior, o programa de revitalização de nosso bairro seria financiado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Com a aprovação em Brasília, foram destinados 12,8 milhões de reais. Com foco em infraestrutura, foram programadas obras para drenagem, instalação de rede de esgoto, pavimentação e uma estação de tratamento de esgoto. Para as regiões altas, contemplou também a construção de muros de contenção e, nas baixas, remoção das famílias ribeirinhas, próximas ao Rio Formate, sujeitas a alagamentos. Um fator social importante seria a regularização fundiária de várias famílias, pois havia muitas áreas irregulares. Assim, bairros seriam oficializados e o poder público passaria a atender oficialmente àquelas áreas. Se elas não existem, não há como liberar verbas. Escolhi o lugar do canteiro de obras, passei a levar currículos dos moradores do bairro para as empresas para serem empregados e gerar renda. Todos os dias visitava as obras com os moradores e colegas de trabalho da Associação. Para nós, brasileiros, a casa é um lugar muito simbólico. E também o bairro onde nossas casas estão. O lugar da nossa moradia representa prosperidade e melhoria das condições de vida, de valorização do trabalho, de resposta social, de crescimento e gratidão. Mas também representa espaço de realização, contemplação, símbolo de prosperidade, luta, poder, segregação e esquecimento. No entanto, optamos por fazer nossas vozes serem escutadas e fazer com que o poder público olhasse para nós33. E deu certo. Era muito mais do que havíamos pensado. Começamos desejando uma pavimentação e tivemos um projeto de urbanização e regularização fundiária. Porém, nem tudo foi rosas. Dada a dimensão e a complexidade técnica das obras, os prazos desejados não puderam ser cumpridos num primeiro momento. *** 32

Pleito 2012-2016

Capítulo 3: Tecendo Vidas, Construindo Cidadania!


Fiz mais uma troca partidária e me lancei candidata pelo Partido Social Democrático (PSD), que estava iniciando suas atividades, mesmo partido pelo qual meu marido era vereador em 2008. Agora, eu seria a protagonista de um processo eleitoral, aquela pessoa que coloca seu nome à disposição do partido e da comunidade para uma disputa eleitoral. O fato do Avelina ocupar a presidência da câmara, fez com que dedicasse mais tempo ao gabinete. Ao analisar as possibilidades de reeleição, percebeu que o melhor cenário seria a minha candidatura, pois estava muito presente junto com a população. Em contrapartida, Adilson seria candidato a prefeito como uma estratégia de projetar o seu nome, mesmo que não viesse a ser eleito. Nos alinhamos em um projeto futuro34. Surgiu a opção de Adilson Avelina ser candidato a prefeito por Cariacica. Meu entendimento era que ele deveria se reeleger a vereador, no entanto as ideias amadureceram e ele se lançou candidato a prefeito. Eu sempre gostei da ideia de estar mais livre e próxima à comunidade. Conversar com as pessoas, fazer reuniões. A direção da campanha entendeu que, como candidata à vereadora, ajudaria a elegê-lo também. Minha maior dificuldade na campanha: pedir voto. Logo eu, tão acostumada a pedir para Avelina e inúmeros outros candidatos que eu apoiei ao longo de minha atuação como agente política, inclusive para o meu atual governador Casagrande, quando foi candidato ao seu primeiro governo do estado. Foi mais uma vez uma eleição feito à moda militante, de casa em casa, de rua em rua, apertando a mão das pessoas, pactuando com o povo para chegar ao parlamento como representante de uma causa, de uma ideia: a vez e a voz das mulheres da periferia em uma cidade ainda muito carente de políticas públicas. Na campanha a gente vê de tudo: as carências, os desejos republicanos, os desejos individuais historicamente negados, o público se confundindo com o privado… enfim, já vislumbrava o tamanho do desafio a ser alcançado caso eleita. Das várias demandas, uma em especial me toca fundo o coração: o pedido de vaga em creche. Eu, que vivi isso na pele, bem sei, e imagina, fui salva pela freira! A única certeza, vou 33 DUARTE, Maurizete Pimentel Loureiro Duarte. A expansão da periferia por conjuntos habitacionais na região da Grande Vitória (1964-1986). Vitória: Grafitusa, 2010, p. 167. 34 SANTOS, Adilson Avelina dos. Projeto Jacqueline Moraes. 2022. Depoimento concedido a Cassius Gonçalves. Vitória, 19 mar. 2022.

42 43


brigar com todos minhas forças e história para resolver a falta de políticas públicas que garantam uma maternidade segura às nossas crianças. E assim foi. Minha eleição foi marcada por uma votação pulverizada, em vários colégios eleitorais. Fui a primeira colocada do meu partido, eleita com 2.562 votos, a sexta mais votada entre 15 eleitos. Muito embora tivesse os dois pés fincados no bairro Operário, os votos vindos de vários bairros aumentou minha área de atuação e abrangência política, bem como a responsabilidade. Isso qualificou minha atuação não somente no âmbito regional, mas nas diversas pautas da cidade por educação de qualidade, pela lutas das mulheres, contra o racismo, em favor dos direitos das pessoas com deficiências, pela mobilidade em nossa cidade e, consequentemente, a melhora da qualidade de vida do cariaciquense. A minha pauta identitária se formava com a defesa dos direitos humanos. *** Estendi o cuidado para com a cidade da mesma forma que realizei no meu bairro. Há muitas localidades carentes de mobilidade e acessibilidade. O poder público precisa atentar-se, solucionando de forma imediata, bem como desenvolvendo projetos para uma resolução. Como são ações do poder executivo, levava na forma de Indicações tais necessidades para que o prefeito atuasse. Desde um patrolamento de ruas, feitura de rede de água, pluvial e esgoto, melhorias em iluminação, calçamento e, principalmente, o cuidado com a acessibilidade no entorno das escolas. O cargo exige um trabalho de gabinete, articulações com os colegas e seus partidos, porém, meu foco era realizar ações que permitissem o contato com as pessoas. Fui ser presidente da comissão de Educação, Saúde, Turismo e Assistência Social da Câmara. Somente no final do mandato, fui 1ª Vice-presidente da Mesa Diretora. Ser vereadora ia além das ações da liderança comunitária. Tive que aprender mais e entender este novo ambiente que passei a atuar. Enfrentei mais uma muralha: o preconceito contra as mulheres parlamentares. Precisei ser mais uma vez firme e não deixar a voz do machismo prevalecer. Passei por um episódio emblemático na Câmara de Vereadores: fui verbalmente agredida por um colega parlamentar com a tentativa de ser silenciada. A situação extrapolou os limites legislativos e acabou em um boletim de ocorrência.

Capítulo 3: Tecendo Vidas, Construindo Cidadania!


Esse fato lembrou-me das reflexões de Djamila Ribeiro35, quando fala do “outro”. Eu era o estranho àquele lugar, não pertencia a ele. Uma mulher negra, que veio da periferia, militante e defensora de causas populares. Aquele vereador sentiu-se no direito de me atacar, ignorando minha possível reação. Como pessoa de origem humilde e popular, imaginava que ambientes públicos que congregavam lideranças eram lugar de respeito. Eleita democraticamente, deveria ter, no mínimo, o direito de fala. A casa legislativa do município deveria, a princípio, ser o lugar da defesa das causas feministas. Deveria respeitar as mulheres. Mas, não foi assim. E minha reação, foi a altura de minha causa. Atuei forte, eu reagi com veemência, não me deixei silenciar pelo histórico machismo que prevalecia naquele parlamento. A repercussão rendeu boas páginas nos jornais local e estadual. Em meio a tantas narrativas machistas, sexistas ou de apoio a minha atitude, o recado foi dado. Estava ali para representar a voz de quem não tinha voz, da população periférica, negra, da mulher que luta, cobra e sobretudo, faz, transforma a realidade, mostra a diferença. Defendi com bravura o meu lugar de fala. Lugar de fala ainda se relaciona a este “outro”, que geralmente é homem e branco. Eu passei a ocupar um lugar de poder, mas era vista ainda como “de fora”, como define a socióloga Patricia Hill Collins. Logo, eu era uma “outsider within”36, ou uma “forasteira de dentro”, pois, eu e aquele senhor, representávamos grupos de poder desiguais na Câmara de Vereadores. Esse lamentável episódio machista me fortaleceu na ampliação do meu mandato, reescrevendo uma outra história: a necessidade de apresentar e defender a mulher, bem como exigir mais presença feminina na política partidária. Hoje compreendo o que ocorreu comigo à época, não foi um embate político por pensamentos divergentes, foi uma violência política de gênero que vem crescendo junto à representatividade feminina nos espaços de poder. Um novo capítulo se abriu em minha vida política: atentar para as necessidades da mulher, principalmente no campo da política.

35

Ribeiro, Djamila. Lugar de Fala (Feminismos Plurais). Editora Jandaíra. Kindle Edition.

36 Outsider within, ou forasteiro de dentro, apresentado por Ribeiro, Djamila. Lugar de Fala (Feminismos Plurais) . Editora Jandaíra. Kindle Edition.

44 45


Recentemente, percebemos um esforço institucional do Legislativo para combater as diversas manifestações de violência contra as mulheres que estão na representação, no parlamento. Mas, ainda temos que avançar muito. A política de tentar silenciar as representantes feministas pela voz grossa, insultos, é fruto de uma cultura machista, patriarcalista, presente na sociedade de diversas formas, basta relembrar como, até pouco tempo, eram tratadas as mulheres em programas de televisão, de humor. Tanto o machismo como o racismo se perpetuaram usando essa lógica. O tema da violência contra o gênero feminino e da violência política contra as mulheres perpassam por dois movimentos, pelo legal para estabelecer punições severas contra todos que a praticam de forma explícita, ou implícita e pelo movimento de conscientização da sociedade, visando desconstruir no imaginário social a muito arraigado que os espaços de poder são lugares privilegiados como espaços masculinos, por definitivamente não o são. Somos a maioria da sociedade brasileira e precisamos garantir não só nossa representatividade, mas nosso lugar de fala, como a voz de todas. Minha atuação política como vereadora, cidadã e mulher foi pautada nessa premissa37. Descrevo aqui outro episódio, mas que deixa claro como é o sentido da minha atuação: no último ano do meu mandato de vice-governadora, participei de um evento de inauguração do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Ao ser apresentada pelo Reitor Jadir Pela ao representante do poder federal, ele me caracterizou como primeira vice-governadora, mulher e negra, o que de fato sou. Mas, rapidamente, o representante federal o interpelou: “não precisa dizer assim, mulher negra, para quê? Ela é linda, não precisa ser apresentada assim”. Eu não o perdoei, e em tom enfático, frisei sobre a importância dessa afirmação de representatividade para as mulheres e para os negros. Quando nós mesmos nos conhecemos e falamos da nossa condição, informamos a sociedade. De fato, quando afirmo e me percebo como mulher negra, de periferia e no comando do executivo estadual, há um sentido didático para muitos. Para pessoas da mesma origem que a minha, vindas de ambientes pobres, com dificuldades de estudo, negras, afirmo a eles que é possível para nós romper os padrões da sociedade de origem escravocrata e patriarcalista. A esses, afirmo que a sociedade é mais ampla e que os espaços de poder também pertencem às classes mais pobres.

37 Sobre a questão da violência de gênero na política, recomendo a obra “Sempre foi sobre nós, de Manuela D’Avila.

Capítulo 3: Tecendo Vidas, Construindo Cidadania!


E faço isso com a certeza que outras ‘Jacquelines’ estão surgindo em diversos setores da sociedade: na política institucional, nos empreendimentos econômicos e nos sociais. *** Comecei meu mandato de vereadora mostrando a luta identitária em favor das minorias. Compreendia a necessidade de participar de discussões que percebi ter um forte impacto social. Do outro lado, sempre gostei do contato direto com a comunidade. Assim estabeleci uma forma de agir. Depois de eleita, eu comecei já a participar das reuniões estratégicas. Compreendi como é fundamental participar dessa rotina e fui eleita vice-presidente da Câmara na chapa que ganhou a mesa diretora. Foram quatro anos de mandato e dois biênios de mesa diretora. Em ambos eu fui Vice-presidente. Montei um grupo técnico para me auxiliar nos projetos e comissões da câmara. Eu fui ser presidenta da Comissão de Saúde, Educação e Assistência Social. Eu fazia questão de ler todos os projetos. Com foco na comunidade, no final do mandato do Avelina eu comprei, com recursos próprios, uma kombi e, ainda durante meu mandato, com ela criamos um gabinete móvel. O mandato itinerante foi a busca por uma identidade e, como símbolo, criamos o Jack Móvel. No trabalho em equipe, do gabinete, organizamos a marca, a plotagem, a arte, tudo muito único e simples. A manutenção do veículo bem como o combustível eram bancados com recursos próprios e não do gabinete. Mas tive ali um simbolismo político importante para quebrar as barreiras existentes entre o parlamento e sua cultura política formal versus a proximidade com a população que mais tinha direito de ser ouvida pelo mandato. O Jack Móvel percorreu todos os bairros, escutava a população, os pedidos, as reivindicações diversas. Organizava as necessidades da população e as levava para o prefeito Helder Salomão (PT) e os secretários. Por vezes, conseguia com que os secretários fossem no Jack Móvel visitar os bairros para escutar diretamente as queixas da população. Em outros momentos, organizava uma representação e íamos ao gabinete do secretário em questão. Consegui estabelecer um bom relacionamento com a estrutura do executivo e ser uma ponte. Criamos um bom relacionamento, nas divergências e nas concordâncias.

46 47


Além disso, o carro acabava servindo a população para atender as mais diversas situações, desde levar a hospital, ajudar com frete que o morador não podia pagar, dentre outras situações. Estar próxima à comunidade me permitiu promover uma educação social sobre o papel do vereador. A população pede muitas coisas que são responsabilidade do executivo, como asfaltar uma rua. Outra coisa percebida foi a diversidade de pedidos puramente de cunho individual. Pedidos de emprego lideravam. Compreendi que o meu papel seria colaborar com conscientização social, ensinado o caminho e os meus limites na função. Às vezes, quando alguém procurava um emprego, por exemplo, eu já perguntava sobre a sua formação. “Você tem um currículo, você tem algum curso?” Se a resposta fosse negativa, contava a minha experiência, incentivava voltar aos estudos, por exemplo. Outro instrumento que tinha era o recurso das ‘Indicações’, meio pelo qual o vereador mostra ao executivo pautas que precisam de atenção, uma vez não ser papel do legislativo realizar obras. Sem resposta não ficava. O gabinete móvel era um meio de comunicação rápida, simples e eficaz com a população cariaciquense. Ouvia tantas histórias, ora de tristeza, ora de superação. Ouvia elogios da nossa coragem de frequentar os bairros mais longínquos do nosso bairro de origem. Fizemos o mandato percorrer não somente os bairros, mas o imaginário da população. Buscando evidenciar que o parlamento e o parlamentar eram ou deveriam ser o porta voz da população e não apenas de um segmento ou região geopolítica. O gabinete móvel permitiu ampliar minha visão acerca das necessidades da população, uma mulher ainda mais sensibilizada com as causas das mulheres cariaciquenses. Em uma situação limítrofe de escassez e pobreza, as mulheres sofrem mais e, por isso, buscam por mais condições de dar dignidade aos seus. Percebi, nesse instante do meu mandato, que era preciso ampliar meus horizontes. E comecei a me questionar qual partido me abrigaria e acolheria minha visão de mundo a partir das perspectiva das lutas sociais, das lutas pela diminuição das desigualdades, por uma política para as mulheres, numa visão mais completa, mais holística. Um partido que buscasse contribuir de forma mais ampla com o alcance dos direitos das pessoas, a urbanização e humanização das cidades, com o foco na geração de emprego e renda, sobretudo para as mulheres. Nessa perspectiva de ampliar o meu universo de atuação política, optei por não disputar a reeleição. Na época, recebi vários questionamentos, pois tinha uma boa

Capítulo 3: Tecendo Vidas, Construindo Cidadania!


aceitação e abrangência política em vários nichos eleitorais, mas precisava atuar em outras frentes, voltar a estudar e concluir o tão sonhado curso de direito. Uma decisão difícil, mas essencial para o meu crescimento pessoal e político.

Jacqueline tem o lado de ouvir, acolher e estar preocupada com a melhoria das condições de vida das pessoas.

Jorge Rodrigues Filho, Chefe de Gabinete Encerrei meu mandato deixando cinco requerimentos; cinco moções, quando homenageamos uma pessoa; 275 indicações, a principal forma de acionar o executivo para realizar ações para os moradores; 45 Projetos de Lei; nove projetos de Decreto Legislativo; quatro Projetos de resolução e três emendas à Constituição Municipal38. Decido não me reeleger. Avelina, meu esposo, havia mudado de partido, para o PSB, se disponibilizando para ser candidato a prefeito, mais uma vez. Considerei ser a melhor opção ele vir como candidato desta vez e eu parti para uma jornada de militância partidária. Era uma pausa no exercício de mandatos. Os cumpri de forma seguida, como líder comunitária e depois como vereadora. Um tempo para balanço, reposicionamento. Voltar aos estudos e cuidar da minha gestação. Sem, no entanto, abandonar o exercício da política e da militância. ***

38 http://www3.camaracariacica.es.gov.br/spl/parlamentar.aspx?id=38#tab_proposicoes_apresentadas

48 49


Aprendi a importância do debate e soube ensinar a importância de debater com o poder público. Tive que correr atrás para entender e conhecer os caminhos para reivindicar pelos direitos como cidadã.


Meu esposo Adilson Avelina foi quem me apresentou a política como instrumento de luta.


Política, para mim, é estar próxima das pessoas que represento também. Levei o meu gabinete até elas e as ajudei a compreender o papel da coisa pública. Chamo isso de educação social, uma ação que faz parte da minha trajetória desde líder comunitária.


Conheci Renato Casagrande prestando contas de seu mandato como Deputado Federal. Desde então, passamos a acompanhar e a apoiar o mandato um do outro.


4

Mulheres que Transformam


No Partido Socialista Brasileiro (PSB), encontrei-me com tudo que havia feito nos movimentos comunitários, na minha militância política em outras agremiações partidárias e nas políticas públicas defendidas no meu mandato de vereadora. Já havia recebido o convite para fazer parte da legenda, no entanto, candidatei-me por um partido e me via na obrigação de terminar no mesmo, uma forma de respeitar tanto o partido quanto a população, mesmo compreendendo que as pessoas pouco percebem e entendem do campo da articulação. Quando recebi o convite do Governador Renato Casagrande para me filiar ao PSB, em 2017, não pensei duas vezes. Era a consagração de uma trajetória com a qual já me identificava de forma explícita: as causas do Partido Socialista Brasileiro. Casagrande vislumbrava uma atuação militante em relação aos núcleos de mulheres e nas questões de defesa dos interesses dos municípios, com base na experiência de minha cidade, Cariacica. Após a vereança, dediquei-me de forma intensa às causas partidárias e de formação política.

Quando Jacqueline foi vereadora, tivemos a oportunidade também de trabalhar juntos. Eu já era governador em 2011. Ela, então, passou a acompanhar o meu mandato também como vereadora. A gente sempre teve uma boa sintonia e relação desde quando nos conhecemos, mesmo ela sendo de outro partido.

Renato Casagrande, Governador do Espírito Santo Nesse processo, fui muito bem acolhida por todos os militantes do partido. Aqui destaco a cumplicidade de Odmar Péricles, militante histórico PSB, apresentando, para mim, leituras, teses e a história do PSB com um todo. Esse processo rico de debate me motivou a buscar novas compreensões para velhas causas, como o fato de termos ainda participação pequena no processo eleitoral nacionalmente.

54 55


Vi na Jaqueline uma possibilidade real de que ela pudesse se colocar no projeto de ser uma líder, pois ela tem esse conteúdo, liderava com muita facilidade. Fui trabalhando, então, para que ela pudesse resolver as questões internas com a Secretaria das Mulheres do PSB, mas também de produzir um projeto maior. Odmar Péricles, PSB-ES

Ingressei no PSB por perceber nesse partido alinhamento com minha visão sobre como fazer política. Eu me envolveria em causas historicamente defendidas na organização dos movimentos sociais e no compromisso histórico de promover eleições com a presença de mais mulheres nos cargos de prefeitas e de vereadoras. Os partidos políticos têm dentro de si áreas para cuidar de grandes temas da sociedade, como grupo de Jovens, mulheres, negros ou negras, de LGBTQIA+39. E na minha chegada, Odmar Péricles e Casagrande já me apresentaram o desafio de cuidar da Secretaria da Mulher. Era necessário reestruturar a comissão que cuidava do assunto mulher. As discussões eram na perspectiva de combater o homem e não da mulher assumir o seu papel de equivalência na sociedade, de estar em posição de igualdade. Junto à direção do partido, eu trouxe propostas e caminhamos bem acertando as perspectivas. Quando fui vereadora, participei de vários fóruns, debates e descobri que tudo o que é questão social primeiro afeta primeiro a mulher. E em muitos casos, afeta antes a mulher negra. Levei um tempo para amadurecer a minha consciência e mergulhar neste conhecimento. Aprender a relevância de destacar a mulher negra, suas diferenças e seu lugar. E entender também o papel da mulher numa condição de empoderamento. Empolgada com tanta confiança, eu assumi junto com demais companheiras o movimento “Não Seja Laranja”. Questionávamos os partidos políticos em geral, que indicavam mulheres candidatas com o objetivo de driblar a lei e a obrigação da “cota 39 NASCIMENTO, Odmar Péricles. Projeto livro Jacqueline Moraes. 2022. Depoimento concedido à Cassius Gonçalves. Vitória, 15 mar. 2022.

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


entre gêneros”, mas sem qualquer pretensão eleitoral. Foi o primeiro grande enfrentamento ao machismo incrustado dentro dos partidos. Ganhar este espaço dentro do meu novo partido foi o primeiro enfrentamento. Trazer essa pauta levou um tempo, fui até ao Renato Casagrande buscar seu apoio e aceno. Foi necessário um período para absorver e tivemos a primeira vitória em levar o assunto adiante. Fiz um trabalho corpo a corpo. Um dos locais públicos onde há concentração feminina são os salões. Sempre ia em diferentes e puxava o assunto. Nem todas compreendiam, mas era necessário continuar com o espírito de promover a consciência social. Renato começou a me convidar também para alguns lugares. Eu falava que as mulheres tinham que se colocar no campo da política por seus ideias, independentemente da quantidade de votos. Só não deveriam se colocar no campo da política como uma forma de perpetuar o sistema machista. O espaço da política, contraditoriamente, é um ambiente onde a presença feminina não é bem vista. Além disso, somos humilhadas e alvo de violência, como a que eu mesma sofri quando vereadora. Quando o assunto é a proporcionalidade de mulheres em exercício de mandatos políticos, o Brasil ocupa a posição 142ª posição dentre 192 países. São 513 deputados na Câmara de Deputados, sendo 161 deputadas, ou 15,54% eleitas em 201840. No Senado Federal são 81 senadores, sendo sete eleitas, representando 13% dos cargos41. Nas eleições municipais de 2020, havia 58.208 vagas de vereadores nos 5.567 municípios brasileiros42. Foram eleitas somente 898 vereadoras, representando 16,51% do total de vagas. Em 900 municípios brasileiros, nenhuma mulher foi eleita. Somente 12% das prefeituras elegeram mulheres no executivo e 16,4% na função de vice-prefeitas43. 40 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/11/brasil-e-142o-no-ranking-de-participacaode-mulheres-na-politica.shtml 41 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/10/08/com-sete-senadoras-eleitas-bancada-feminina-no-senado-nao-cresce 42 https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Novembro/eleicoes-2020-58-208-vagasde-vereadores-estarao-em-disputa-neste-domingo-15 43 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/11/brasil-e-142o-no-ranking-de-participacaode-mulheres-na-politica.shtml

56 57


Há cotas para mulheres a serem supridas pelos partidos ao compor o quadro de candidatos em todas as eleições desde 2007. No entanto, o caráter machista desvirtuou este sentido da lei. Mulheres estavam sendo indicadas somente para o partido ter direito às verbas da cota. Um movimento supra partidário cresceu, esclareceu e denunciou o uso político do nome de mulheres para compor as chapas que correriam as eleições somente para cumprir a legislação eleitoral de 30% do gênero44, aprovada na minirreforma eleitoral de 2009. O movimento “Não seja Laranja” causou um incômodo em legendas que historicamente faziam uso das cotas com reafirmação do poder masculino também nas chapas partidárias. Muitos partidos registram as candidaturas, pegam o recurso destinado às cotas do gênero, mas não investem na divulgação das campanhas. Atitude questionável. Em vários casos havia mulheres que tampouco sabiam que eram candidatas. E vários partidos políticos ficaram descontentes com nossa atuação. Mas, graças a um conjunto de mulheres aguerridas, o movimento ganhou notoriedade e apoio institucional de muitos órgãos. Às vezes penso: Bertha Lutz, Luiza Grimaldi devem ter ficado felizes com a gente e, ao mesmo tempo, assustadas de, em pleno século XXI, ainda termos que brigar por essas bandeiras. Fizemos a diferença nessa pauta e em várias outras. Não é compreensível a sub-representação feminina nos espaços de poder, se somos a maioria, 51,8% dos brasileiros45, e eleitores deste país, 58,87%46. Não é mais possível nos mantermos dependentes dos homens para vermos realizadas as políticas públicas de interesse das mulheres. *** 44 As cotas para mulheres na política surgiu em 2007 com a Lei nº 9.504. Já a Lei n° 12.034 (primeira minirreforma eleitoral), aprovada em 2009, criou uma cota de 30% de candidaturas para mulheres. A norma obrigava que as candidaturas aos cargos proporcionais – deputado federal, estadual ou distrital e vereador – fossem preenchidas (e não apenas reservadas, como era antes) com o mínimo de 30% e o máximo de 70% de cidadãos de cada sexo. Verificou-se, no entanto, que os partidos lançaram candidaturas de mulheres apenas para preencher a cota, sem investir em suas campanhas 45 https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html#:~:text=A%20popula%C3%A7%C3%A3o%20brasileira%20 %C3%A9%20composta,estimativa%20superior%20a%20das%20mulheres. 46 https://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/estatistica-do-eleitorado-por-sexo-e-faixa-etaria

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


“DEUS QUER, O HOMEM SONHA E A OBRA NASCE” Fernando Pessoa A causa feminina que sempre me encantou e os diversos movimentos em favor de uma política de fato inclusiva para as mulheres, somados à minha trajetória pessoal de lutas, me credenciaram internamente no PSB como um quadro político para assumir outros desafios eleitorais. Nesse período, as articulações para a campanha majoritária do PSB já estavam bem adiantadas, tendo Casagrande como franco favorito, congregando uma coligação de 18 partidos47, chamada Espírito Santo mais Igual, composta por PSB, PHS, PROS, PV, PSC, AVANTE, PTC, PSDB, PP, PCdoB, DEM, PDT, PPL, DC, SD, PRP, PSD e PPS. Em uma de nossas muitas conversas sobre a construção partidária, o então candidato a governador me pediu para disputar uma vaga na Câmara Federal. Primeiro, um susto, pois sabia que a minha densidade eleitoral não me projetava para esse nível de disputa. Mas um líder é aquele que lhe aponta caminhos e vê mais longe, vê aquilo que a sua visão ainda não é capaz de vislumbrar. Disse: aceito. E comecei a construir minha tímida candidatura. Fui conversar com o deputado Helder Salomão, à época, disputando a reeleição para a câmara federal. Helder, sempre elegante, me disse “ora, assim me atrapalha!”. A conversa bem republicana, de gente que pensa a cidade de Cariacica com muita responsabilidade e que tem compromisso orgânico com a construção partidária. Lembro-me com muito carinho das mulheres do PSB que prontamente embarcaram na minha campanha. Elas tinham convicção do papel político que exerceriam e a certeza que mais uma vez a vida estava me dizendo: “coragem é o seu outro nome”. Mas, no meio da jornada, o sonho de caminhar ao lado do meu maior líder para o congresso nacional mudou de rota. No processo da formação das chapas faltava ainda o nome de uma pessoa para compor a vice-governadoria. A lógica do processo é trazer um nome de um partido parceiro da coligação para esse lugar, ao invés de compor com um quadro do mesmo partido. Hoje, sabemos que Renato tinha em mente ter uma mulher na vice-governadoria em 2018 para, de fato, trazer a representação feminina. 47

https://pt.wikipedia.org/wiki/Renato_Casagrande

58 59


Os ventos começaram a soprar para um novo rumo. Os vários partidos ao organizarem suas chapas, considerando o número de mulheres nesse processo de conta matemática e de conta política, a vaga da Câmara Federal que em tese iria disputar, precisou de ser revista. Coisas das nuvens da política, como bem dizia Ulisses Guimarães.

Esse debate [de ter uma pessoa de outra chapa] impediu que [o nome de uma candidata] pudesse, então, vir a ser minha vice-governadora e eu, quando vi que tinha esse problema faltando uns 20 dias para fazer o fechamento [da chapa], comecei a pensar em uma alternativa. Discuti só com duas pessoas da minha relação de confiança e foi levantado o nome da Jacqueline, mas sem ela saber.

Renato Casagrande, Governador do Espírito Santo As nuvens mudaram e fui chamada para uma conversa particular junto com várias outras pessoas do PSB na sede. Eu vi o pessoal entrando, mas não sabia do que se tratava. Ele veio, chegou na porta e fez um famoso “vem cá, Jacqueline” que virou até meme do Vitor Vogas. Ele todo italiano, fala direto. Entrei na sala, ele pediu para eu sentar e disse: “você não pode mais ser candidata a deputada federal”. Aí eu cruzei o braço e falei bem assim: “você está brincando comigo, né?”.

No último dia de fechamento para buscar alianças, já era quase sete horas da noite, eu chamei a Jaqueline lá na sede do PSB, lá em Jucutuquara, e numa salinha conversei com ela e disse: “Jacqueline, você precisará ser a minha vice”. Até aquele momento ela não sabia de nada.

Renato Casagrande, Governador do Espírito Santo O final, estava por vir: “eu quero te fazer um convite para você ser a minha vice-governadora, você aceita?”. Um filme passou sob a minha retina! Eu sou mulher, negra

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


e de Cariacica. Era a certeza de que a chapa estava passando um recado ao mercado político. E, com esse ato, o candidato Casagrande estava indiretamente dizendo o que era mais caro em sua plataforma eleitoral.

Quando debatemos o nome da vice e chegamos ao nome da Jacqueline, sabia que era fundamental que as mulheres pudessem fazer parte das decisões do centro do poder do Estado. Renato Casagrande, Governador do Espírito Santo

Na foto com o governador, todo mundo queria aparecer. A foto ficou engraçada, eu bem pescoço para o alto, assim tentando aparecer lá do lado do governador. Renato continuou falando que formaríamos uma chapa “pão com pão”, por sermos do mesmo partido. Na emoção, queria ligar para a minha família e contar, mas a imprensa já estava lá. Eu só lembro da secretária de comunicação, a Flávia Mioni, falar no meu ouvido assim: “evita dar entrevista, depois a gente conversa”. E ao passar no meio dos jornalistas, eles perguntando sobre como estava acerca da escolha como vice-governadora, limitei a dizer que a emoção era tão grande que eu não conseguia falar.

Nós já sabíamos que a Jacqueline seria, de fato, um quadro importante do ponto de vista eleitoral. A vontade de apresentá-la à política, ao eleitorado, mas muito, principalmente, por conta de que ela pudesse fazer um desempenho, um tipo de política nova, que ela é, pois ela se movimenta muito bem. Deu certo. Jaqueline é uma revelação, porque ela é uma mulher muito inspiradora. Ela faz política com muita dedicação, com muito empenho. Odmar Péricles, PSB-ES

60 61


A Justiça eleitoral dá 10 dias entre a divulgação da chapa e sua efetivação com o registro, uma janela para impugnações e possíveis mudanças. Nesse período, a imprensa levantou várias teses que era uma forma de atrair outro partido e que não ficaria como vice. Houve falas pesadas que envolviam machismo e racismo de vários segmentos da sociedade. Um momento marcante depois de pensar os inúmeros questionamentos acerca da decisão da vice, mulher negra da periferia de Cariacica, foi a primeira caminhada em Flexal, rever amigos de luta, a presença da minha família foi a certeza do que eu representaria na campanha e no futuro governo. Se a escolha da vice causou surpresa no meio político capixaba, a campanha pode ser considerada dentro do esperado. A nossa chapa ‘puro sangue’, Renato Casagrande e Jacqueline Moraes, sempre esteve em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, mas, nem por isso, deixamos de fazer o debate com a população capixaba, fazendo as alianças com o povo para vindouramente governar. Tínhamos o compromisso de dialogar com os cidadãos e cidadãs capixabas e esclarecer nossa plataforma eleitoral, explicitando nosso diferencial frente à efervescência política e a polarização em âmbito nacional.

Esse perfil dela, a vida que teve, uma mulher negra, pessoa do movimento popular, vir para ser vice-governadora, vir para o centro do poder no estado era um resgate ou era, na verdade, o início de um empoderamento concreto e real da mulher. Nós nunca tivemos uma vice-governadora mulher. É a primeira vez que tem. Estamos fazendo história no Espírito Santo.

Renato Casagrande, Governador do Espírito Santo Em nosso programa de governo registrado no Tribunal Regional Eleitoral, consta uma agenda de retomada dos investimentos e redistribuição de forma a garantir mais equidade na implantação de políticas públicas. Durante o processo eleitoral, e durante os debates, Casagrande destacou como pontos cruciais de seu governo a resolução dos problemas dos presídios, agricultura,

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


violência contra mulher, tratamento de lixo, recuperação de rodovias, conclusão das obras paradas, maior mobilidade urbana, previdência social, geração de emprego e saúde. Em destaque, a descentralização dos serviços de saúde, com o maior apoio aos municípios na atenção primária à saúde, com a ampliação do aporte aos municípios e a construção do Hospital Geral de Cariacica e retomar o programa “Estado Presente”, ligado à segurança pública. Casagrande ainda destacava que as pastas de saúde, educação, esporte, cultura, desenvolvimento urbano teriam que atuar em conexão, fazendo que o desenvolvimento social e urbano não estivesse descolado, sobretudo, da saúde e da educação. Na educação, o plano de governo previa o aumento das escolas de tempo integral, a construção e a reforma onde fosse necessário. O resultado foi que a população capixaba entendeu nosso projeto. A chapa Renato Casagrande (PSB) foi eleita no 1º turno com 55,49%, com 1.072.224 votos48. *** Era a primeira vez que uma mulher no centro do poder e vinda da periferia da cidade de Cariacica era, de fato, uma representante do povo. Desde Luiza Grimaldi, a primeira mulher a governar o Espírito Santo (1589), o poder executivo foi exercido somente por homens. E eu, desde a campanha, assumi meu papel de vice muito consciente de estar ao lado do governador para colaborar, ajudá-lo a administrar, ser solidária nos momentos difíceis, sonhar juntos a reconstrução de pilares importantes do desenvolvimento capixaba que ficaram relegados: o desenvolvimento social e a diminuição das desigualdades. E para tamanha empreitada, precisei me dedicar aos projetos, ler, escrever, ouvir todos os segmentos do governo, estar atenta às demandas como as causas da mulher numa perspectiva de ampliação dos direitos e da divulgação de alguns conceitos como o empoderamento feminino, o fomento do empreendedorismo num sentido mais amplo, não somente, o sócio econômico, buscando ir além, tratando focalizar os debates que envolvem a gênero feminino no sentido mais plural possível. Tarefa de governo, missão de vida. Somada à experiência de cuidar da causa feminina no PSB, a vice-governadoria me colocou de vez na pauta da mulher. Até então, eu estava voltada a resolver as 48

Fonte: TSE/ES

62 63


questões das pessoas relacionadas ao seu bairro e a também olhar com atenção para os problemas da cidade. A minha estada na vice-governadoria é uma prova de empoderamento da mulher, de que ela pode ocupar o espaço que ela quiser ocupar. Um dos momentos mais especiais no exercício do mandato foi quando assumi o governo pela primeira vez em 2019, numa viagem que Renato fez à Itália. Voltei ao cargo oficialmente por mais duas vezes. Renato pontuou bem esse momento em seu discurso na primeira transferência do cargo:

Quando a gente tem a primeira mulher efetivamente a assumir o governo, isso marca a nossa história. Mesmo que lá no passado, na época do descobrimento, tenha tido uma mulher a governar e que temos de fazer referência, [mas] essa é a primeira vez que temos uma mulher eleita assumindo o cargo de governadora.49

Renato Casagrande, Governador do Espírito Santo No dia da transmissão do cargo, Renato fez um ato marcante. Ele colocou um “A”, numa plaquinha onde estava escrito “Governador”, transformando a palavra em “Governadora”. Casagrande relembrando esse dia disse que “era necessário que todos soubessem que Jacqueline estava no comando, principalmente a minha equipe”. Nessa cerimônia, expus que viria uma importante agenda em torno da mulher, que estávamos focados na construção dentro do gabinete. Essa cerimônia é histórica e deve sempre ser retomada por seu simbolismo. Estava muito alegre e ciente da responsabilidade, que demonstrei no discurso naquele dia:

49 https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2019/09/20/jaqueline-moraes-assume-governo-do-es-interinamente-e-e-a-1a-mulher-no-posto-em-130-anos.ghtml

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


Trata-se de um marco histórico e simbólico para nós mulheres. E eu não poderia deixar de ressaltar esse simbolismo em um momento em que é tão necessário afirmar as conquistas das mulheres. Em terras capixabas, não podemos nos esquecer de D. Luiza Grimaldi, mulher que governou por quatro anos o Espírito Santo, sucedendo ao seu marido, o Donatário Vasco Fernandes Coutinho Filho, quando de seu falecimento; Maria Ortiz, nossa heroína contra o invasor estrangeiro; Geny Grijó, a primeira mulher vereadora, na Câmara Municipal de Vitória; Judith Leão Castello Ribeiro, professora, educadora e a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Assembleia no Estado do Espírito Santo; e de tantas outras mulheres que fizeram história e fizeram a diferença no nosso Estado. Fico feliz por ser representante de gênero à frente do Governo e poder partilhar com o nosso governador, Renato Casagrande, os desafios do Estado do Espírito Santo.50

Jacqueline Moraes, Vice-governadora Das inúmeras mulheres que me inspiram, também destaco Dona Virgínia Casagrande, uma pessoa que conheci e tornou-se uma referência por sua postura firme frente aos ataques que recebemos como governo, pela sensibilidade e pelo apoio às políticas de enfrentamento das desigualdades sociais. *** 50 https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2019/09/20/jaqueline-moraes-assume-governo-do-es-interinamente-e-e-a-1a-mulher-no-posto-em-130-anos.ghtml

64 65


Quando o governador Casagrande me convidou, tinha uma narrativa de campanha de eu ser a voz das mulheres: “Ela representa a voz das mulheres no centro do poder do Espírito Santo”, disse ele. Foi muito marcante e, agora, era o momento de transformar as propostas de campanha em realidade. Como chegar no governo e me envolver com outras coisas e não continuar na luta de representação da mulher? Em nossas conversas sobre como deveria ser o meu papel no governo, disse a Casagrande que gostaria de ser uma vice empoderada. Ele logo me questionou como seria isso. Coloquei a necessidade de aprofundar o que já fazia no partido no desenvolvimento de políticas para as mulheres. Compreendia ser uma ação conjunta com todas as secretarias, evitando me isolar em um tema ou criar uma “Secretaria da Mulher”. O fortalecimento da mulher é uma pauta transversal, pois trata da saúde, da educação, da segurança, do empreendedorismo, etc. Pensar desta forma também definiu a minha atuação no governo. É de costume o vice assumir uma secretaria. No meu caso, eu assumi uma articulação política em torno de uma causa com ações dentro de todas as secretarias: do empoderamento feminino e do desdobramento em políticas públicas. Percebemos ser mais interessante expandir a temática dentro da estrutura de governo já existente.

Eu já fui vice-governador e secretário. Achei muito bom ter sido secretário porque eu, como vice-governador naquela época, talvez não tivesse o espaço que a Jaqueline tem hoje. Como a Jaqueline é uma pessoa de total confiança e de total colaboração, a decisão de não assumir uma secretaria foi bom para ela, porque ela se coloca na posição de vice-governadora de forma muito objetiva; foi bom pra mim, porque eu tenho do meu lado alguém para colaborar e contribuir no dia a dia; e foi bom para o governo, porque o governador não alcança com a sua presença física todos os locais ao mesmo tempo; então ela esteve presente tanto na representação institucional.

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


Um trabalho que ela conseguiu desenvolver sendo vice-governadora e não necessariamente precisando ser secretária.

Renato Casagrande, Governador do Espírito Santo Assim, a política pública de nosso governo destinada às mulheres é denominada “Agenda Mulher”. Sob minha coordenação, desde que assumi, foi idealizada na minha vice-governadoria, em 2019, atuando de forma transversal e intersetorial, visando atacar todos os gargalos relativos à inserção da mulher na sociedade, em reuniões de trabalho e coordenando uma área de empoderamento das mulheres e de trabalho também com os empreendedores, com as pequenas e médias empresas, com os microempreendedores individuais. O surgimento do programa foi curioso e, ao mesmo tempo, sintomático de uma cultura que privilegia os homens. Estava procurando um profissional para compor a equipe da Agenda Mulher. Quando verifiquei as reuniões do dia, havia três homens a serem entrevistados. Então, disse ao meu chefe de gabinete, o Pastor Jorge, que gostaria de conhecer as proposições de uma mulher. E conseguimos dar este primeiro passo dentro de casa, com a Gerente de Projetos da Vice-governadoria, Maraney Lopes. A Agenda Mulher busca fomentar o empreendedorismo de maneira mais holística, pensando a mulher em seu aspecto emocional, cultural e econômico. Reconhecemos a necessidade de abordar todos eles para focalizar e abranger um universo cada vez maior de mulheres, e empoderá-las, independente da sua condição social. Esboçamos as premissas na primeira reunião e Maraney Lopes disse que isso nos levaria à Organização das Nações Unidas (ONU), sendo que eu nem sabia ao certo como fazer isso. No primeiro ano, nós fomos reconhecidas como mulheres que geram felicidades pela ONU na campanha “Lighting Talks: Mulheres que promovem a felicidade”, em que fiz parte de um vídeo divulgado pela instituição no mês da mulher de 202051. Por que fazer tais políticas? Os estudos da filósofa Nancy Fraser me inspiram e me ajudam a discernir acontecimentos do nosso dia a dia. Fraser tem se dedicado aos 51 https://www.agazeta.com.br/colunas/renata-rasseli/historia-da-vice-governadora-do-es-integra-campanha-da-onu-mulheres-0220

66 67


estudos do feminismo e outros temas como o debate acerca do capitalismo, reconhecimento, políticas afirmativas, democracia e justiça. E entrelaça estas questões com a mulher, como ela é afetada. Segundo ela, os estudos sobre a mulher na década de 1960 abordavam somente sobre a diferença entre homem e mulher. Depois, o debate avança para compreender que há diferenças entre as mulheres. Há mulheres negras, de grupos de minorias étnicas, mães independentes, trans, que sustentam sua casa, lésbicas, dentre outras formas de as percebermos. Elas não se viam no debate entre homens x mulheres, porque estavam falando das mulheres brancas e dentro do contexto heteronormativo. No entanto, nossa sociedade é plural. Os estudos de Nancy avançam e trazem uma provação de que a busca pela igualdade considera o entendimento de justiça. Precisamos resolver as questões sem estereotipar, logo, precisamos levar em conta a cultura, a pluralidade de formas de vida, identidades, culturas distintas, grupos e indivíduos. Faz-se necessário o reconhecimento das diferenças, mas também eliminar as injustiças promovidas pela dimensão econômica. É bonito no discurso, mas não pode ser para um grupo mínimo da sociedade. É necessário mudar as estruturas promotoras das injustiças, substituindo-as por novos modelos que permitam que as mulheres se posicionem socialmente e vão além. É dentro desses ideais que a Agenda Mulher se firma: estabelecer políticas públicas que estabeleçam estruturas promotoras de justiça social. Quero destacar a minha experiência junto aos alunos da nossa rede de ensino público, em meio a tantos bons e desafiadores momentos de implantar essa agenda política. No espaço escolar, me reencontrei, pois vivenciei muitas meninas e meninos se identificando comigo e contato o que as mães passam, sobretudo, as que sofriam algum tipo de violação dos seus direitos. Lembro-me que a nossa Superintendente de Cariacica, a Carolina Júlia Pinto dos Santos, ficou preocupada de que os estudantes pudessem fazer perguntas desconcertantes mas, logo na primeira escola, que foi a Hunney Everest Piovesan, percebeu que dava conta de debater com os jovens de forma muita tranquila, didática e respeitosa. Sobre essa experiência, as alunas comentaram: “nossa, é muito simpática, usa tênis e ainda tem o cabelo cacheado”, “não fez progressiva!” Outros: “ela ainda estuda”, “tem filho pequeno e recebe cônsul”. Após nossa participação na escola, os professores

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


aprofundam o tema, fazem debate sobre a política de cotas na política, o combate ao feminicídio em forma de rodas de conversa e redação. É um debate necessário fomentado pela nossa participação direta e pessoalmente com os alunos. *** Nosso mandato foi pego pelo inesperado: a pandemia. Começou um grande esforço para entendermos com o que estávamos lidando. Todas as decisões foram difíceis, contudo, tínhamos o dever, como governantes, de cuidar da população. Todos pensaram que a pandemia fosse se dissipar rápido e o que vimos foi a sua crescente escalada. Entendíamos o impacto do comércio fechado, principalmente para os micro e pequenos empresários, bem como as trabalhadoras e trabalhadores ligados a este universo. Por outro lado, salvar vidas estava acima de tudo. A covid 19 se aproximou como uma onda. Eu ouvia falar de pessoas distantes a mim até que chegou o dia que testei positivo. Felizmente os impactos foram menores e lamento muito pelas muitas vidas ceifadas por causa da doença. Enquanto pessoa pública, é triste ver um problema tão sério ter sido tratado da forma que foi no campo político. Então agimos para contornar, da melhor forma possível, os impactos locais. Os impactos da pandemia foram muito além das questões da saúde. A vida social foi afetada e políticas públicas precisam surgir de maneira enérgica e eficaz. Criamos o Programa AlimentarES, em que unimos quem produz e recebe pelo trabalho àqueles que precisam receber o alimento com qualidade e valor nutricional para somar nas defesas do organismo. O Espírito Santo não parou com a pandemia e estamos encontrando caminhos, através das políticas públicas e da criação coletiva deste Governo, em que a saúde e a solidariedade estão sendo fortalecidas. São esses os nossos valores e também os valores deste programa52 O setor educacional foi um dos mais afetados. As escolas foram fechadas e 115 mil alunos deixaram de frequentar. No entanto, foi por meio da Secretaria Estadual de Educação que desenvolvemos um dos maiores acompanhamentos sociais da pandemia. Muitos alunos têm na escola seu local de alimentação. Compreendendo 52 https://www.es.gov.br/Noticia/governo-do-estado-lanca-programa-alimentares-com-objetivo-de-fortalecer-economia-rural-e-promover-a-saude

68 69


essa realidade, distribuímos cestas básicas para os alunos cadastrados no Cadastro Único do Governo Federal, em um investimento de 11,5 milhões de reais. Além disso, aproveitamos as escolas fechadas para um grande investimento estrutural, permitindo que o espaço físico estivesse reformado e pronto para o retorno dos alunos. Não imaginávamos que isso levaria 2 anos. Durante a pandemia, todos tiveram de aprender e se adaptar ao sistema remoto para garantir a continuidade dos estudos e isso revelou o impacto da digitalização e a falta do acesso à internet em nosso estado53. Com foco nas mulheres, os Conselhos de Escolas receberam uma verba para a compra de absorventes para as meninas que, cadastradas, elas puderam contar com o item de higiene pessoal54. Para a retomada do setor educacional, nosso governo criou o Fundo Estadual de Apoio à Ampliação e Melhoria das Condições de Oferta da Educação Infantil e do Ensino Fundamental no Espírito Santo (Funpaes), repassando 231 milhões de reais às prefeituras cadastradas no edital para investimentos em obras de construção, reforma e ampliação de unidades escolares, bem como nas aquisições do Sistema de Microgeração de Energia Elétrica (Fotovoltaica), além de equipamentos e mobiliários, recursos tecnológicos, veículos e instrumentos musicais55. No mesmo propósito, atendemos, também, a população de rua durante a pandemia em ação conjunta com a sociedade civil organizada, a Secretaria de Direitos Humanos com o suporte de outras entidades relacionadas. Buscamos dar dignidade a esse segmento de nossa população preservando também suas vidas56. E, no campo da saúde, é preciso destacar todos os esforços feitos na Secretaria da Saúde liderada pelo Dr. Nésio Fernandes de Medeiros Júnior e sua equipe. As palavras não são suficientes para descrever todos os feitos. Para uma mostra, precisamos destacar as 8,7 milhões de doses distribuídas, a contagem de cerca de 1 milhão de pacientes recuperados, mas tivemos 14,3 mil mortes em nosso estado57. 53 https://www.es.gov.br/Noticia/governador-acompanha-entrega-de-cestas-basicas-a-alunos-da-rede-estadual 54 https://sedu.es.gov.br/Not%C3%ADcia/sedu-repassa-quase-r-5-milhoes-para-conselhos-de-escolas-adquirirem-absorventes-para-alunas 55 https://www.es.gov.br/Noticia/governo-do-estado-destina-mais-de-r-231-milhoes-aos-municipios-para-investimentos-em-educacao 56

https://sedh.es.gov.br/acoes-para-a-populacao-em-situacao-de-rua-ante-a-pandemia-da-covid-19

57 Dados da Secretaria de Saúde do Espírito Santo em 19 de abril de 2022. disponível em: https:// coronavirus.es.gov.br

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


Fizemos a proposição de se criar o Bosque da Memória, em Viana. A escolha se deu pelo esforço de vacinação dado no município. Com o aceite de família, será plantada árvores para identificar este ente querido. Como muitos não puderam ser velados, essa seria o ato simbólico tardio de o velar e uma forma de homenagem58. Quanto a mim, chorei algumas vezes. Eu chorei em uma reunião inteira sobre a covid-19, chorei à mesa dizendo sobre a minha indignação com algumas coisas. Eu não tenho essa visão de que choro é sinônimo de fraqueza, porque eu não sou uma pessoa fraca, mas quando a emoção vem é impossível conter, ainda mais nessa circunstância. ***

58 https://www.agazeta.com.br/es/cotidiano/es-tera-bosque-da-memoria-em-homenagem-asvitimas-da-covid-19-1021

70 71


COMO A AGENDA MULHER FUNCIONA? Desenvolver uma política de estado em torno da mulher demanda a construção de uma estrutura para executar os programas desenvolvidos. Foi uma ação tanto para as secretarias de estado quanto em parceiras com a sociedade civil organizada. A vice-governadoria foi o lugar da proposição política. Era necessário, então, desenvolver todo o processo executivo. Isso se deu no Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), autarquia vinculada à Secretaria de Estado de Economia e Planejamento (SEP) do Espírito Santo, o instituto tem como finalidade produzir conhecimento e subsidiar políticas públicas através da elaboração e implementação de estudos, pesquisas, planos, projetos e organização de bases de dados estatísticos e georreferenciados, nas esferas estadual, regional e municipal, voltados ao desenvolvimento socioeconômico do Espírito Santo59. Dentro do IJSN criou-se o Observatório MulherES, com o objetivo de otimizar a tomada de decisões em relação às políticas públicas para mulheres, por meio de uma base de dados consolidada, com pesquisas, estudos e debates60. Ele extrai dados e acompanha as políticas desenvolvidas no Plano Estadual de Políticas para as Mulheres do Espírito Santo (PEPMES), no Pacto Estadual pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS 5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas) e nas áreas de atuação da ONU Mulheres61. Isso instrumentaliza as ações. O observatório conta com uma equipe técnica com foco na gestão, composta pela Vice-Governadoria (VG), Secretaria de Estado de Economia e Planejamento (SEP), Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH), Instituto de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Espírito Santo (PRODEST) e Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), sendo que a coordenação executiva fica com a Vice-governadoria e a SEDH, com Secretária Nara Borgo, assessorados pela Diretoria de Integração e Projetos Especiais (DIPE/IJSN). Assim, todos as ações são direcionadas e acompanhadas tanto nos órgãos ligados ao governo, bem como com a sociedade civil62. 59

http://ijsn.es.gov.br/institucional/quem-somos

60

http://ijsn.es.gov.br/artigos/6030-encontro-marca-lancamento-do-observatorio-mulheres

61

http://ijsn.es.gov.br/observatorio-mulheres

62

Diretoria de Integração e Projetos Especiais (DIPE/IJSN)

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


Como resultado, tem-se o painel de indicadores, boletim anual, estudos, pesquisas, seminários temáticos e legislação, tudo isso para contribuir com o debate sobre as questões de gênero no Estado. O lançamento do observatório foi em 202163, fruto do trabalho que se iniciou em setembro de 2019. Prefeitos, vereadores e qualquer pessoa da sociedade que queira defender a boa política para mulheres, bem como o governo, já contavam com o banco de dados. Nas palavras do governador Renato Casagrande, “ter essas discussões são necessárias para mudar a realidade que vivemos”. E foi nessa perspectiva o programa que conseguiu empoderar e dar visibilidade às mulheres nos seus diversos propósitos de vida. Inovou-se na customização de cursos para qualificação profissional, utilizando diversas tecnologias e ferramentas. Tudo isso para fortalecer as mulheres em seus desafios diários como profissional, como mãe que muitas vezes é a única responsável pelo sustento de seus lares. É com essa visão ampla e com a presença interdisciplinar que o programa atua em todas as secretarias de governo. Conheça a série de projetos direcionados ao empoderamento feminino:64 “Bolsa Atleta” - em parceria com a Secretaria de Estado do Esporte; “Empoderamento da Mulher com Deficiência” - com a Secretaria de Estado do Esporte; “Cidadania e Empreendedorismo” - com a Escola de Serviço Público do Espírito Santo; “Criativa” - com a Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo; “Curso de Aperfeiçoamento e Especialização Empenhad@s” - com a Universidade Federal do Espírito Santo; “Empreendedorismo Feminino” - com o Sebrae-ES; “Mulheres (in)formadas” - com a Secretaria de Estado de Direitos Humanos;

63

http://ijsn.es.gov.br/artigos/6030-encontro-marca-lancamento-do-observatorio-mulheres

64 https://www.es.gov.br/Noticia/jacqueline-moraes-apresenta-resultados-do-agenda-mulher-para-vereadoras

72 73


“Plataforma Agenda Mulher” - com a Prodest e Secretaria da Ciência, Tecnologia, Inovação, Educação Profissional e Desenvolvimento Econômico (Secitdes); “D’Elas” - em parceria com a Agência de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas e do Empreendedorismo do Estado (Aderes); “Elas no Campo e na Pesca” - com a Secretária Estadual da Agricultura (Seag), sob a gestão técnica e operacional do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper); “Ela Pode” - com o Instituto Rede Mulher Empreendedora e apoiado pelo Google; “Corte de Lovelace” - com o Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes); “Qualificar Mulher ES” - em parceria com a Secretaria da Ciência, Tecnologia, Inovação, Educação Profissional e Desenvolvimento Econômico (Secitdes). “Linha de Crédito para Mulheres Empreendedoras” - com o Banestes “Oficina Pense Grande” - Fundação Telefônica, Vivo e Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável; “Agenda Mulher nas Escolas Públicas Estaduais” - com a Secretaria de Educação (SEDU) - consiste em uma roda de diálogos com os estudantes acerca do papel de cada um na busca por igualdade de direitos, o respeito à condição feminina, bem como os reflexos emocionais para as mulheres. É importante destacar como cada secretaria tem abordado estes programas. Começamos estruturando com o “Observatório MulherES”, no Instituto Jones dos Santos Neves, onde está todo controle das políticas, tanto sobre o que fazer quanto seus resultados e análise dos dados. O “Elas no Campo e na Pesca” tem como premissa o empreendedorismo, a liderança feminina e autonomia das trabalhadoras rurais. Esse programa é, para mim, o exemplo de parcerias profícuas dos diversos segmentos governamentais e da sociedade civil e produtiva, pois envolve assessoria técnica ofertada pelo Instituto Capixaba de Pesquisa e Assistência Técnica e Extensão Rural, o Incaper, os setores de Crédito e Microcrédito do Bandes e as cooperativas e associações das trabalhadoras.

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


O projeto atendeu milhares de mulheres de norte a sul do Estado em todos os arranjos produtivos rurais, das empreendedoras do café artesanal às mulheres que produzem comidas típicas nas pequenas propriedades rurais. Dando continuidade ao ideário de parcerias entres os diversos setores governamentais e não governamentais, implementamos dentro da Agenda Mulher a parceria com Google por meio do projeto “Ela Pode”, com o Instituto Rede Mulher Empreendedora e apoiado pelo Google. O objetivo é qualificar e capacitar 135 mil mulheres brasileiras em situação de vulnerabilidade social, buscando diminuir os danos da pobreza, falta de oportunidades, garantindo, por meio da formação profissional independência financeira, bem como da potencialização do poder decisório dos negócios em mão femininas, a confiança na sua capacidade de mudar o próprio destino, das suas vidas, em favor da liberdade emocional e financeira. Aqui, em solo capixaba, o programa atuou fortemente no período da pandemia da covid-19, qualificando on-line e presencialmente em todo território nacional. No âmbito acadêmico, temos o “Corte de Lovelace”, projeto em parceria com o Ifes que tem como meta o fortalecimento do empreendedorismo feminino no meio acadêmico e escolar. O nome é uma homenagem à condessa Ada de Lovelace, a primeira mulher programadora do mundo65. O projeto tem como objetivo o ensino de programação, linguagem computacional e robótica para meninas, através de oficinas, workshops presenciais, usando como instrumento as ferramentas de ensino a distância, utilizando uma abordagem e metodologia de ensino híbrido, buscando potencializar o pensamento computacional, programação e robótica e promover uma oportunidade para desconstruir a ideia machista de que ciência e tecnologia é coisa de homem. A oferta de cursos de programação computacional e robótica para meninas e mulheres em regiões de alta vulnerabilidade social é a porta de entrada para a autonomia econômica e social, tem uma abrangência educacional fantástica. Ainda com o Ifes, através do Programa Agenda Mulher, o governo assinou o Acordo de Cooperação Incubadora do Ifes, denominado “Cooperação Incubadora do Ifes e Agenda Mulher”, visando o desenvolvimento de políticas e agendas de sensibilização, seleção, prospecção e qualificação buscando potencializar o empreendedorismo feminino de meninas e mulheres dentro da temática ciência e programação computacional. O “Programa Qualificar ES” foi implantado em maio de 2019, ainda no primeiro ano de mandato, um dos pilares do plano de governo. O objetivo é promover a quali65

https://meninas.sbc.org.br/portfolio-3/corte-de-lovelace/

74 75


ficação profissional do cidadão capixaba, tendo como princípio o empreendedorismo, empregabilidade e a inovação. A secretária de Ciência, Tecnologia, Inovação, Educação Profissional e Desenvolvimento Econômico (Sectides) é a responsável por ofertar os cursos nas mais diversas áreas, contribuindo, assim, para a formação profissional de milhares de cidadãos. Dada sua relevância e na busca de potencializar a cidadania ativa, o gabinete da Vice-governadoria procura impulsioná-lo. Dentro dessa lógica de empoderamento feminino usando o empreendedorismo como motor condutor da ação coletiva, o Qualificar ES precisava investir fortemente na qualificação profissional, sobretudo, nas regiões do já premiado programa “Estado Presente”. Com essa premissa de inclusão social através da qualificação dos trabalhadores e trabalhadoras, utilizando da experiência da primeira gestão do Casagrande, o programa foi ampliado, ganhando o braço “Qualificar ES Mulher”.

Essa parceria entre o Qualificar ES e o Agenda Mulher é uma soma de esforços extremamente relevantes na busca por este propósito. Aproveitamos também o difícil momento da pandemia para desenvolvermos nossos cursos no formato on-line, seguindo a orientação do nosso governador Renato Casagrande em ampliar a capilaridade e o alcance da oferta de educação profissional aos capixabas Thiago Hoffmann, Secretário Sectides

Sabemos que a educação é o que transforma a vida das pessoas. Neste momento de pandemia, os cursos on-line tornaram-se ainda mais relevantes. Por isso, foram ofertadas mais 7.500 vagas, em dez cursos diferentes, somente para mulheres. Ter uma qualificação não significa que o emprego está garantido, porém é um caminho que permite à mulher ter uma ocupação e poder desenvolver seu talento, sua capacidade. A primeira versão da Agenda Mulher nas Escolas Públicas começou pela Superintendência Regional de Cariacica, que acompanha a educação em quatro municípios: Cariacica, Viana, Santa Leopoldina e Marechal Floriano. De fato, começamos conversando com todas as diretoras e diretores escolares, através da superintendência.

Capítulo 4: Mulheres que Transformam


O primeiro encontro foi na sede da superintendência, em Cariacica, para explicar nossa proposta. Lembro-me que fui bem acolhida com café, coral das escolas, mas havia um certo estranhamento, de como uma vice-governadora vai entrar nas escolas e falar com os estudantes, além da preocupação legítima desse evento atrapalhar o bom andamento da escola, e questões políticas interferirem no processo. Mas, após abordar o tema de forma transversal, deixando claro que meu papel era institucional e ancorado numa proposta de governo sensível e comprometida com o combate à violência de gênero na política, a violência doméstica e todas outras formas de violência, os gestores escolares abriram as portas das escolas para o debate. Em 2019, percorremos as principais escolas de Ensino Médio de Cariacica, discutindo a Agenda Mulher, falando das pautas de empoderamento feminino, dos cursos do Qualificar ES, apresentando histórias de superação, como a da vice-governadora, falando do racismo, da misoginia e das formas coletivas de juntas sair dessa condição. Os resultados positivos dessa experiência levaram à expansão dessa agenda para as 11 Superintendências Regionais de Educação e, agora, também, para os IFES espalhados pelos municípios capixabas. Além da política de Segurança Pública, que trata do enfrentamento da violência doméstica, o grave problema social do feminicídio. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos (SEDH) existiam no Espírito Santo 16 “Conselhos Municipais dos Direitos das Mulheres”, até julho de 2019. Na medida em que avançamos com a adoção de políticas públicas para as mulheres, o nível de organização vai correspondendo. Essa movimentação tem trazido muitas mulheres para cima do palco, quando antes eram meras espectadoras. Hoje vejo prefeitos me ligando para comunicar com alegria que darão posse ao conselho de mulheres de suas cidades. Há mudança de comportamento. Claro, tem pressão social, baseada na provocação que fazemos, mas isso é muito positivo. Os processos de formação, qualificação e especialização são muito necessários. Principalmente se tratando de atendimento público, que exige múltiplas e complexas formas de atuação. O foco tem que ser nas redes de atendimento municipais, que são primeiramente acionadas e tem boa compreensão dos ambientes locais, mas o próximo ano promete nos recompensar dos atrasos de 2020 promovidos pela pandemia e, certamente, vamos avançar muito.

76 77


Chegar à vice-governadoria foi inesperado e uma recompensa por todas as lutas já empenhadas. E é só uma parte desta jornada de pública pública.


Trabalhava perto do Palácio Anchieta e tinha pouca percepção do que aquele prédio representava. Agora trabalho neste local local que era difícil imaginar frequentar. O povo chegou ao poder.


O que tenho é um mandato, um tempo determinado para desenvolver políticas públicas de forma a promover justiça a quem precisa. Sei de onde vim, logo, compreendo na pele as reais necessidades.


O dia histórico de uma mulher democraticamente eleita assumindo o governo do Espírito Santo.

A pandemia foi uma das dores mais difíceis de enfrentar. Lidamos com o desconhecido e choramos com tantos que não podem mais abraçar os seus amados. Uma das maiores batalhas foi a defesa da vida, tanto para evitar a contaminação quanto para garantir o sustento da população.


5

Sonhos coletivos: mulheres no poder!


Daqui do meu gabinete, no Palácio da Fonte Grande, diariamente tenho a inspiração de Zacimba Gaba. Ao ser destronada e trazida como escravizada, ela foi tirada também do meio de sua família. Nesse ponto, vejo como sou uma mulher privilegiada de ter minha família em torno de mim. Todos os momentos da minha vida eu os tive do lado. Aprendi a trabalhar com meus pais. Juntos, cuidava e era cuidada por meus irmãos, Andréa e César.

A minha palavra para Jacqueline é bem simples, é uma coisa que nós temos que ter sempre no nosso coração: que é nunca esquecermos da nossa essência, das nossas raízes. Vera Moraes, mãe.

Constituí minha família ainda cedo. Tenho duas filhas, um filho e um neto. Cada um deles representa uma fase importante da minha vida, do meu amadurecimento enquanto mulher. Mirielly, a primeira, veio aos 19 anos. Ali eu era o espelho de como fui criada por meus pais, um pouco mais rude. Avellyna veio quando tinha 26 anos, em um momento de maior estabilidade na vida e uma visão de mundo mais ampliada. Estava mais madura e tinha uma melhor percepção da vida. Isac, o caçula, veio aos 42 anos, ele experimenta a mãe com açúcar. Ele e o meu primeiro neto têm a mesma idade. Ambos representam a fase na qual vivo. A sabedoria popular diz que a mulher nasce pronta para ser mãe. Penso que não é bem assim. Temos fases na vida na qual precisamos fazer um diagnóstico pessoal, reafirmando nossas escolhas ou tomando novos rumos. E por várias vezes eu tomei novos rumos. As diversas fases da vida pelas quais passei foram me constituindo enquanto pessoa. Sempre soube onde queria chegar: ter vida com dignidade. Ao olhar para trás, sem dúvidas a alcancei ainda muito nova. No entanto, os dias de hoje são frutos de muita luta, de muito choro, de momentos de desesperança, mas também de muita alegria.

82 83


Envolver-me coletivamente com as pessoas e suas causas foi outra maneira de amadurecer. Estar com elas nos diferentes momentos da vida, a escolha pelas batalhas ao longo da jornada, algumas perdidas, porém, muitas ganhas, também ampliaram meu sentido de ser. O senso que possuo sobre a justiça também é moldado pela minha espiritualidade cristã. Ele compõe o conjunto de valores e baliza minhas atitudes. No entanto, estamos num estado laico que comporta diferentes sistemas religiosos. A fé é pessoal e deve ser respeitada dentro do conjunto de direitos individuais que todos têm. Hoje, na minha leitura, a forma como falam de Deus é deturpada. Estão vinculando uma percepção de Deus à práticas conservadoras e os mais simples estão sendo vítimas dessa maneira equivocada de pensar. Os cristãos ponderados e os progressistas estão sendo silenciados. E o lado que está gritando e tendo espaço na mídia é o reacionário. Não percebo o cristianismo dessa forma. O estado é laico e não teocrático, como essa ruidosa minoria pensa e age. Se você é cristão e deseja os espaços da política, que venham com propostas para promover justiça, ganhe a confiança da população, mas não em nome de um grupo religioso. Um exemplo de pessoas que usaram seu conjunto de valores e sua espiritualidade para promoção de Justiça é o trabalho de Gary Haugen. Como eu, ele é advogado e criou a International Justice Mission (IJM), instituição que reúne advogados, investigadores criminais e assistentes sociais cristãos que atuam em todo o mundo na área de direitos humanos. Conheci seu trabalho lendo a história dos Batistas do nosso estado e compartilho com você como a espiritualidade pode pautar nossas ações na promoção de políticas afirmativas. Haugen faz perguntas desafiadoras: “Que tipo de liderança tem importância para Deus? Pelo que Deus é apaixonado? Como esperamos que as pessoas que sofrem saibam que Deus é bom?”66 Suas respostas são: “a liderança que importa para Deus é aquela que se envolve no que Ele se interessa. Jesus e eu estamos interessados pela mesma coisa? Podemos seguir por esse caminho para avaliar o tipo de liderança exercido. Assim, caminhamos para descobrir pelo que Deus é apaixonado. Ele é apaixonado pelo mundo e 66 GONCALVES, Cassius. A história dos Batistas no Espírito Santo. Vitória: Convenção Batista do Estado do Espírito Santo, 2012.

Capítulo 5: Sonhos Coletivos: Mulheres no Poder


por justiça. Seu amor pelo mundo fez com que Cristo se encarnasse e viesse habitar entre os homens. É nesse mesmo mundo que diariamente morrem 25 mil crianças; 1,5 bilhão de pessoas não possuem assistência médica; vários outros não têm teto para se abrigarem; falta comida e a lista pode continuar de forma infinita”. Daí vem mais uma pergunta de Haugen: “como essas pessoas podem acreditar que Deus é bom diante de tanto sofrimento? O plano de Deus para que as pessoas saibam da sua bondade são os cristãos - sua igreja -, agentes Dele para atuar nesse estado de miséria. A igreja (pessoas) é o seu plano e não há um substituto. Quando ela agir nessas circunstâncias, modificando as vidas das pessoas, tirando-as da miserabilidade, elas verão o corpo de Cristo se revelar e conseguirão crer que Ele é bom.”67 Ele continua: “Mas existe uma outra categoria de pessoas que sofrem, são aquelas que estão padecendo por causa do abuso intencional e da opressão de outras pessoas. Sofrem por causa da injustiça. A segunda coisa pela qual Deus é apaixonado é por justiça. A injustiça do ponto de vista de Deus é o abuso de poder de uns sobre outros; é privar pessoas das coisas que Deus preparou para elas, como a vida, dignidade, liberdade, o fruto do seu trabalho, dentre outras. Como essas pessoas injustiçadas podem conceber a ideia de que Deus é bom? A resposta é a mesma: a sua igreja que revela Deus a elas. Só pela ação dessas pessoas intervindo na diminuição da injustiça social é que elas saberão que Deus é bom.”68 Vim do meio menos favorecido da sociedade, onde pouco experimentamos sobre a justiça. A vida é dura com a gente, o trabalho é mais pesado, os acessos às oportunidades são limitadas. Quem tem tido oportunidades nesta desigual sociedade brasileira, às vezes glamouriza a pobreza, usam ao seu favor, ao invés de lutar para modificar os sistemas de injustiça. Lourenço Stenio Rega diz que “pobre se torna em categoria epistêmica que se ampliando em sua abrangência, a começar do índio, mas também incluindo o negro, o trabalhador rural, a mulher e todos quantos foram excluídos da História oficial e dos sistemas oficiais e religiosos de vida.”69 O indiano C. K. Prahalad, um dos pensadores da escola da gestão estratégica, em seus estudos sobre a pobreza, nos lança alguns desafios: 1) “O que estamos fazendo 67

GONÇALVES, id. ibid. 2012.

68

GONÇALVES, id. Ibid., 2012.

69 REGA, Lourenço Stênio. Por outra história da igreja na América Latina. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p. 11.

84 85


pelos mais pobres do mundo? Por que, com toda essa tecnologia, know how gerencial e capacidade de investimento, somos incapazes de fazer uma contribuição, mesmo que mínima, ao problema da alastrante pobreza e alienação globais? Por que não conseguimos criar um capitalismo de inclusão? 2) Por que não podemos mobilizar a capacidade de investimentos das grandes empresas com o conhecimento e o comprometimento das ONG’s e das comunidades que precisam de ajuda? Por que não podemos criar um conjunto de soluções diferentes? 3) O problema da pobreza deve forçar-nos a inovar e não a exigir direitos de impor soluções”70 A escolha pela vida pública me posicionou a lutar em favor de quem precisa e, estando em funções eletivas, a propor e construir sistemas novos. Isso não é um discurso ou uma “causa bonita”, como as elites dizem. É um posicionamento com base na minha história, nas minhas cicatrizes, nos meus erros e acertos, nas minhas conquistas e derrotas, nos meus desejos e frustrações. Tudo isso me fez e faz inteira, tudo isso me torna madura. Entender as dificuldades reais da maioria de nossos cidadãos, me dá estrutura emocional para os desafios aos quais me proponho. Por isso eu digo que se a política não servir para fazer justiça não serve mais pra nada. Compreendi que trazer mulheres conscientes de si e de seu lugar no mundo para a política é uma forma de promover mudanças estruturais que erguerão um ambiente de justiça, muito inspirada na ex-presidenta do Chile Michelle Bachellet: “muitas mulheres na política mudam a política” .

UMA MULHER NA POLÍTICA, MUDA A PRÓPRIA MULHER. MUITAS MULHERES NA POLÍTICA MUDAM A POLÍTICA. Michelle Bachelet, ex-presidenta do Chile. *** Tenho uma biografia de faltas e, contrariando todas as expectativas em relação a uma mulher negra e da periferia de Cariacica, me considero uma vencedora. O mais importante disso: a minha atuação comunitária e política busca incessantemente fazer com os meus semelhantes, mulheres e homens, se tornem protagonistas do 70 PRAHALAD. C. K. A riqueza na base da pirâmide: erradicando a pobreza com lucro. Porto Alegre: Bookman, 2010, p. xii-ix.

Capítulo 5: Sonhos Coletivos: Mulheres no Poder


seu destino, irrompendo as barreiras sociais e econômicas desse processo de emancipação social. Uma dessas faltas, que lamento em minha vida, está no campo da educação, às vezes me cobro pelo abandono escolar na quinta série e isso ter me obrigado a cursar o EJA e feito toda minha formação fora do seu processo convencional. Consideremos: o EJA é um instrumento de promoção da justiça para aqueles que precisam ter seu ciclo educacional fora do período normal. Sem essa estrutura educacional nunca poderia ter retornado à escola. Iniciei a faculdade de direito aos 36 anos. Por causa da atuação política fui obrigada a trancar a faculdade várias vezes. Essa é a realidade de muitos brasileiros que precisam garantir o seu sustento e também desejam um título acadêmico. O problema é que muitos desses não retornam. Quando assumi a vice-governadoria, Renato me deu dois conselhos: “continue a ser quem você é e volte a estudar”. Concluí meu curso de direito em 2020. Uma vice-governadora sentada no banco da faculdade. Por isso as políticas educacionais para mim são temas prioritários e caros. Faço questão de estar com o Secretário de Educação, Vitor de Angelo, e atender as necessidades da pasta. Passei a fazer uma rodada de palestras nas escolas públicas e descobri como a minha experiência de vida se conecta com a realidade dos alunos. Eu os incentivo a continuarem sempre a estudar, mesmo com as dificuldades, pois será a forma de modificarem suas vidas. A educação - e o diploma - são os instrumentos reconhecidos para se ter acesso ao mercado de trabalho melhor. Sem eles, torna-se mais difícil a difícil vida dos menos favorecidos. *** Minha trajetória foi marcada por episódios emblemáticos, perdas, reconstruções e muita resistência. Resistir não era uma condição, era obrigação; obrigação de sobreviver para viver dias melhores. Tal processo me legou esse lugar privilegiado de fala hoje. Tornei-me pela força de minha atuação e representatividade uma vice-governadora incomum. Não somente pela origem humilde, popular, mas pela escolha que fiz de como exercer meu papel constitucional de vice-governadora sempre ao lado do Governador Renato Casagrande. Às vezes, fui entendida como submissa, fraca, dócil. Mas Renato sabe que não é isso. No meio político muitas vezes, companheirismo, gratidão e respeito é entendido assim. Contudo, devo destacar que minha atuação política e minha contribuição a gestão carrega minha característica mais genuína, a conciliação, o pegar para fazer, respei-

86 87


tando as diferenças, e fazendo a diferença nos processos, a partir da escuta ativa, e aos poucos imprimindo minha visão estratégica nos temas, debates e políticas que me eram muito caros, como foi o caso, da transversalidade dos programas que fomentamos em várias secretarias, que tratavam de empoderamento feminino, distribuição de renda para combater a exclusão social. “As mulheres têm uma capacidade de adaptação, é muito própria delas. Nossas trajetórias têm semelhanças: Jacqueline foi presidente de associação de moradores, eu também fui presidente da associação de moradores. Desde criança, eu trabalhando e estudando, ela também, trabalhando, parou de estudar um pouco, voltou a estudar depois. Nossas famílias vieram do interior, a dela, do interior do Rio de Janeiro, talvez, mais simples do que a minha, que é do interior de Castelo. A minha era de pequenos comerciantes de verduras, legumes e frutas e a dela com as suas barracas tentando sobreviver. Então acho que nossas origens sempre foram lutando muito para poder ganhar espaço, não espaço político, mais espaço na vida. Tudo isso fez com que a gente tivesse sintonia. Penso que não está ligado só a questão de ser mulher, está ligada à questão da personalidade. Mais da personalidade do que do gênero. A personalidade traz facilidade ao relacionamento em função da identidade que nós temos”. Renato Casagrande, Governador A força para a construção de um futuro ou de um “presente expandido” como disse Boaventura de Sousa Santos, vem da nossa ancestralidade. Ao meu entender, a política é um exercício de futuro. E esse futuro está sendo redesenhado neste momento por agentes políticos, sobretudo mulheres, que estão exercendo o poder independente dos espaços institucionalizados, formais, comunitários, representativos de poder. Acredito de forma muito mais específica que as mulheres que trabalham para mudar o seu entorno, transformam a sociedade ocupando espaços políticos e com isso modernizam as instituições que se apresentam em todas as esferas. É essa visão de mundo que exerço no meu mandato de vice e no meu papel de protagonista para ajudar outras pessoas a fazerem o mesmo. O Instituto Update, em seu estudo sobre a obrigação das mulheres na política, diz que “a busca das mulheres por mais direitos é um movimento ancestral e em constante construção. No século 21, esse movi-

Capítulo 5: Sonhos Coletivos: Mulheres no Poder


mento ganhou mais pluralidade e o poder de alcance da internet. Tornou-se um movimento massivo e tomou conta de várias sociedades, como uma onda impossível de ser detida”71. E, considerando o último ano dessa experiência pessoal e política juntamente com governador Casagrande, colocando-me em perspectiva, buscando intensificar a identidade popular para inserir o maior número de capixabas na economia produtiva, visando potencializar talento de pessoas empreendedoras que como a mim precisavam de uma oportunidade para crescer, representar e ser representado na política e na sociedade. Nossos espaços de poder precisam a cada dia mais ter amplitude cultural e étnica para inserir e defender a ancestralidade como ponto de partida para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É por isso que nossa ação enquanto governo sempre será combater as desigualdades sociais, e promover a igualdade de gênero é um horizonte a ser trilhado. Nessa esteira, a política partidária precisa continuar evoluindo e inserindo pessoas de todos os guetos na sua composição, pois, se a definição de partido é “parte de”, essa parte precisa ser a mais ampla e diversa possível, para de fato ser a fiel representação dessa sociedade plural. E o melhor exercício para começar a ser plural, é avançando na pauta das reivindicações femininas. Pois de acordo com dados apresentados por instituições governamentais e não governamentais, o perfil das mulheres eleitas no legislativo nos últimos 85 anos, são de mulheres na sua grande maioria branca, com formação superior, de idade de 30 a 40 anos, a maioria com formação em direito, tendo o iniciação da carreira política na Câmara Federal72. Independente do espaço que eu possa ter no futuro, qualquer política pública ou de governo precisa ocorrer com o princípio da igualdade de gênero, pois é ela que solidifica e edifica a construção de uma sociedade mais igualitária, justa, sustentável do ponto de vista das relações socioeconômica, mais efetiva e plural. Nossa assertiva partidária, aqui no PSB, a partir do PSB Mulher, é ampliar a discussão interna e externa acerca do sistema partidário, visando avançar a passos largos as reformas políticas e criar as condições de disputas políticas reais para as ampliar a voz das mulheres 71 INSTITUTO UPDATE. Eleitas: mulheres na política. [2021]?, p. 13. Disponível em: https:// www.institutoupdate.org.br/publicacoes/ 72

Fonte: FGV, Câmara Federal

88 89


em todos os espaços de poder, do legislativo ao executivo. Das ruas aos gabinetes, como assessoras ou parlamentares. Essa é minha causa, essa é minha bandeira. Nos últimos quatro anos aqui no Estado Espírito Santo, nós avançamos em relação a alavancar os espaços da mulher na sociedade capixaba, alargando as oportunidades em diversos setores, o que não ocorreu no governo federal. Em nosso estado conseguimos transformar em políticas públicas premissas que acreditamos, como, no plano econômico, fomentar projetos para a promoção da igualdade por meio da capacitação. Promovemos a cidadania por meio da diversidade cultural, buscando não promover segmentação, mas entendendo as condições de cada uma delas em função de suas “múltiplas identidades, sejam elas cis, LBTs (lésbicas, bissexuais, transexuais), idosas, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, ciganas, jovens, adolescentes, em situação de rua, privadas de liberdade, com deficiência, mães”73, lutando contra o machismo e o patriarcado. Quanto às políticas de gênero, promovemos a conscientização com respostas práticas, tendo “a criação ou fortalecimento de mecanismos legais de controle social, como o Conselho de Direitos da Mulher e fundos de enfrentamento à violência contra as mulheres, e a criação de creches públicas como instrumento de emancipação”74. Todas essas ações contribuem para mudar uma realidade nacional, que é a baixa representatividade feminina na política. Dados do Tribunal Superior Eleitoral mostram que as mulheres ainda são sub-representadas nos espaços de poder e no parlamento federal. Mesmo representando 52% da população brasileira, 51% do eleitorado, e 43% da população economicamente ativa, elas ocupam apenas 15% da Câmara dos Deputados e do Senado”75. Sigo na luta em mudar esta realidade e já comecei a colher os resultados e ver as transformações. *** A política pública foi escrita sem as mulheres e somente há 90 anos nós estamos escrevendo essa história. Então, nós não podemos escrever e não vamos escrevê-la como os homens fizeram. 73

https://www.psb40.org.br

74

https://www.psb40.org.br

75

https://www.psb40.org.br

Capítulo 5: Sonhos Coletivos: Mulheres no Poder


Em um futuro próximo, acredito, teremos um jovem escrevendo sobre essa nova presença das mulheres na vida pública. Tenho a pretensão de deixar esta proposta. Antes, porém, deixo a minha verdade no coração delas, nua e crua, sobre o que eu penso da vida e de como deve ser a sociedade. Desejo que elas sintam o que eu sinto. Preciso dar o primeiro passo para levar esse desejo. Em minhas palestras, quando eu abro para o debate, às vezes é difícil para alguém fazer a primeira pergunta. Daí vem uma sequência de dúvidas e comentários que torna impossível responder a todos, infelizmente. também é assim com as proposições para a vida pública, parece ser difícil até que vem a primeira pessoa e abre o caminho. Como mulher que milita nessa representação, me vejo como uma eterna aprendiz. Olhando para a realidade do Brasil, percebo que nossa nação precisa de projetos como o desenvolvido aqui. Neste intuito, eu tive a oportunidade de levar a Agenda Mulher em 6 estados diferentes em 2019, antes da pandemia. Virou um caso de sucesso. Eu rodei muitos estados, ministrei palestras em muitas empresas. É com essa visão e com essa sensibilização que o empoderamento feminino precisa acontecer no Brasil inteiro. O Brasil teve uma mulher presidenta quando as próprias mulheres não estavam preparadas para defendê-la. Então, eu acho que nós chegamos em um ponto ao qual nos unimos em prol de uma pauta que nos é cara, que é ser mulher. Eu disse na Câmara dos Deputados, em um evento sobre mulheres na política: “sejam a voz da mudança” e vamos construir este caminho juntas. Complementei dizendo que nós não sabemos exatamente ainda como essa mudança ocorrerá, mas sem dúvida será pelas nossas vozes. ***

90 91


Tenho em minha família a conexão constante com minhas origens. Hoje sou mãe e avó e sei que atuo para colaborar com um mundo melhor as gerações futuras.


A espiritualidade cristã é um norte em meus valores e baliza o meu senso de justiça, que expresso no desenvolvimento das políticas públicas.


Renato Casagrande e eu compartilhamos das mesmas origens e valores. Aquela pessoa que sempre tive como referência, agora estamos juntos um no suporte do outro para construirmos um Espírito Santo mais justo à todos os capixabas.





Futuros Este livro foi impresso nos últimos dias do outono de 2022, e muitas outras estações virão de uma vida feminina voltada para o público que, a cada novo Futuro, recomeça plenamente.



Quando a gente tem a primeira mulher efetivamente a assumir o governo, isso marca a nossa história. Mesmo que lá no passado, na época do descobrimento, essa é a primeira vez que temos uma mulher eleita assumindo o cargo de governadora

Renato Casagrande Governador do Espírito Santo

A mulher que desafiou o impossível


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.