Época Clássica da Literatura Portuguesa: Renascimento
Gil Vicente
Elaborado por Burghard Baltrusch
Gil Vicente (1465?-1536) 1
"Gil Vicente influenced many great writers in Spain, notably Calderón and Lope de Vega, and [...] indirectly at least, this influence may have extended to Shakespeare and Molière". (Aubrey Bell)
→ Primeiro grande poeta dramático português, colaborador do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. → Presume-se que tivesse estudado em Salamanca, ourives (?). → Organizador das festas palacianas na corte de D. Manuel I. → Protegido da rainha D. Leonor, viúva de D. João II. → Acompanha a grande viragem epistemológica, cultural e estética do Renascimento, conciliando o universo mental medieval e o moderno. → Gozou de certa autoridade, porque interveio, sem sofrer consequências conhecidas, contra a propaganda favorável à introdução da Inquisição em Portugal: Depois do terramoto em 1531, frades de Santarém lançaram o pânico no povo, falando de um castigo de Deus por consentir Judeus no seu seio. Esta campanha tramava a introdução da Inquisição (cf. diligências de D. João III). Gil Vicente reaccionou com um sermão, no qual caracterizava o terramoto como um fenómeno da Natureza, e dizia que os hereges devem ser convertidos pela persuasão (cf. carta a D. João III, Santo Ofício com partidários e adversários, ainda era possível defender na corte a política tolerante de D. Manuel). 1.ª ed. das obras: Copilaçam de todas as obras de G.V., ed. em 1562 pelos filhos Luís e Paula Vicente, 2.ª ed. em 1586 (mutilada pela censura inquisitorial). A verdadeira dimensão do autor só foi reconhecida a partir da 3.ª ed. de Hamburgo de 1834. Informação geral:
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/gvicente.htm http://pt.wikipedia.org/wiki/Gil_Vicente http://www.gilvicente.eu/ http://www.infopedia.pt/$gil-vicente
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Gil Vicente
Lista das obras 1502 Auto da Visitação (ou Monólogo do Vaqueiro) 1504 Auto de S. Martinho (ou «Milagre» de São Martinho) 1506 Sermão perante a Rainha D. Leonor (ou Sermão de 2 Abrantes) 1509 Auto da Índia (ou Farsa da Índia); Auto Pastoril Castelhano (ou Écloga em pastoril castelhano) 1510 Auto dos Reis Magos (ou Écloga dos Reis Magos); Auto da Fé Imagem inserta na Compilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente..., Livro Primeyro, M. D. LXXV 1512 Velho da Horta (ou Farsa do Velho da Horta) 1513 Auto dos Quatro Tempos (ou Moralidade dos Quatro Tempos); Auto da Sibila Cassandra (ou Moralidade da Sibila Cassandra) 1514 Exortação da Guerra (ou Auto da Exortação da Guerra) 1515 Quem Tem Farelos (ou Farsa Quem Tem Farelos); Auto da Mofina Mendes (ou Moralidade dos Mistérios da Virgem) 1517 Auto da Barca do Inferno 1518 Auto da Alma (impropiamente chamado Auto da Barca do Purgatório) 1519 Auto da Barca da Glória 1520 Auto da Fama 1521 Cortes de Júpiter (ou Comédia das Cortes de Júpiter); Comédia de Rubena; Auto das Ciganas 1522 D. Duardos (ou Comédia de D. Duardos) 1523 Farsa de Inês Pereira; Auto Pastoril Português; Auto de Amadis de Gaula (ou Comédia de Amadis de Gaula) 1524 Comédia do Viúvo; Frágua do Amor (ou Comédia da Frágua do Amor); Auto dos Físicos (ou Farsa dos Físicos) 1525 O Juiz da Beira (ou Farsa do Juiz da Beira) 1526 Templo de Apolo (Comédia do templo de Apolo); Auto da Feira (ou Moralidade da Feira) 1527 Nau de Amores (ou Comédia da Nau de Amores); Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra; Farsa das Almocreves; Tragicomédia da Serra da Estrela (ou Comédia pastoril da Serra da Estrela); Breve Sumário da História de Deus seguido do Diálogo dos Judeus sobre a Resurreição (ou Diálogo sobre a Resurreição de Cristo); Auto das Fadas 1528 Auto da Festa 1529 Triunfo do inverno (e do Verão; ou Comédia do Inverno e Verão) 1530 O Clérigo da Beira (ou Farsa do Clérigo da Beira) 1532 Auto da Lusitânia 1533 Romagem de Agravados (ou Comédia Romagem dos Agravados) 1534 Auto da Cananeia 1536 Floresta de Enganos (ou Comédia Floresta de Enganos) 10 obras escritas em castelhano, 18 bilíngues.
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Sobre a obra Nos tempos de G.V. havia uma grande diversidade linguística em Portugal, com diferenças entre regiões e classes socias: Por isso, os tipos rústicos empregam sempre uma fala arcaica (p. ex. "ergueja" em vez de "igreja"), têm danças e canções que já não são usuais na cidade. A corte era bilíngue (cf. o facto de todas as rainhas do século XVI terem sido espanholas) e autores castelhanos eram lidos na corte. Para a representação dos pastores G.V. emprega o sayaguez (< Sayago, dialecto castelhanoleonês), popularizado por Juan de Encina (por homenagem à rainha D. Maria, esposa de D. Manuel). Não há exemplos de Mistérios, Moralidades e Milagres no Portugal medieval (só sermões burlescos, pequenas farsas, momos alegóricos): G.V. parece fugir desta tradição: A sua primeira obra (Auto da Visitação) é o monólogo de um vaqueiro, no qual se celebra o nascimento do príncipe e futuro rei D. João III (peça de circunstância). Depois de uma fase pastoril, a obra distancia-se dos modelos iniciais: Prevalecerá a observação aguda da realidade nacional, a severidade crítica e as sátiras contundentes. A maior parte da obra é um teatro de costumes / teatro do mundo: Há uma progressão da personagem ao tipo e deste ao arquétipo (→ categorias morais / paradigmas de comportamento). Perfeita adaptação entre linguagem e personagem (p. ex.: ciganas, mouros, judeus, negros, franceses e italianos, rústicos e cortesãos, crianças). Emprega fontes antigas (cf. Trilogia das Barcas), inspira-se nas ilustrações de livros de horas do séc. XVI. A obra apresenta muitas sátiras (p. ex. anticlericais, alusões às tensões entre clero e aristocracia), sempre mantendo o conceito tradicional da sociedade (cf. Arcipreste de Hita, Libro de Buen Amor): Faz–se uma análise da sociedade portuguesa: desfilam frades corruptos, mulheres adúlteras, maridos enganados, alcoviteiras, magistrados venais, funcionários subornados, moças frívolas. Não arrisca muito com a crítica social (cf. a veia satírica dos Portugueses). Limitava-se a transpor para palco a voz corrente nas ruas.
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Conserva os valores tradicionais do povo. Não há nenhuma crítica da burguesia em ascendência (como em Sá de Miranda, p.ex.). O estrato social inovador - os negociantes - é ignorado ou indirectamente demonizado (cf. Auto da Feira: "Diabo mercador", comércio = demoníaco na ética feudal, sendo o maior perigo para a aristocracia). Ainda que não tenha sido erasmista, mostra-se por vezes heterodoxo e contrário ao concílio de Trente (cf. Auto da Barca da Glória). A realidade e sua observação e representação são um meio para sublinhar o carácter inalterável do sobrenatural: Conceito da vida: Realidade aparente é uma ilusão, só os valores atemporais são reais. Obra de G.V. ilustra processo de decomposição do teatro medieval. Subdivide-se nos seguintes géneros teatrais (segundo Saraiva 1942): 1. Mistério (dramatização duma narrativa bíblica, cf. Mistérios da Virgem), 2. Moralidade (apresentação duma doutrina por figuras alegóricas, cf. Auto da Alma), 3. Fantasia alegórica (momo, cf. Auto da Lusitânia), 4. Milagre (cf. Auto de S. Martinho), 5. Teatro romanesco (temas romanescos, cf. Tragicomédia do Amadis de Gaula), 6. Farsa ("farsa de folgar", "farce à rire", "sotties"; farsas com intriga: cf. Farsa de Inês Pereira; desfiles de tipos cómicos: cf. Juiz da Beira), 7. Écloga ou o auto pastoril (de intençao religiosa: cf. Auto dos Reis Magos; ou de intenção profana: cf. Auto Pastoril da Serra da Estrela), 8. Sermão burlesco ("sermons joyeux", cf. Frade Sandeu no Auto de Mofina Mendes), 9. Monólogo (cf. Monólogo do Vaqueiro).
G.V. não era um escritor/autor de textos literários no sentido em que o são Camões e Sá de Miranda: → Era dependente de circunstâncias estranhas à obra literária: Espectáculos com variedades de atracção suficiente para os serões da corte, para "uma festa" (cf. prólogo de Triunfo do Inverno).
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→ Unidade, não apenas de acção, mas ainda de género literário, era muitas vezes sacrificada a esta circunstância exterior. → Exibição de quadros cénicos, bailados, música e guarda-roupa ocupava por vezes no conjunto artístico um lugar tão importante como o texto literário. 5
Nna sua obra não há conflitos psicológicos (só esboços) como no teatro clássico, não há caracteres individuais (mas só tipos, sátira social e teatro de ideias): → Representa na trajectória do teatro romanesco/ da tendência dramática uma fase muito atrasada. → Quando G.V. põe no seu teatro um problema, esse problema é exterior às personagens e supõe, não um drama num sujeito, mas um jogo de tipos.
Há, porém, uma decomposição das alegorias: → Muitas alegorias desempenham uma função meramente decorativa e plástica. → Várias alegorias tendem a fazer-se típicas. → Papel perfeitamente incaracterístico e inespecífico que compete a várias outras.
Comparação Gil Vicente – Calderón de la Barca: "O que encontramos em Calderón é precisamente aquilo que se vê morrer em G.V. [...]: a alegoria, que no escritor português perdera o significado próprio e deixara de corresponder à entidade. E o que em G.V. é sinal de vida, tendência evolutiva, Calderón não o continuou [...]. Dir-se-á que o teatro medieval, numa fase que G.V. já ultrapassara, cristalizou em Calderón e encontrou neste o seu lapidário." (ibid.:183)
Trilogia das Barcas (1517-19): → "Alegoria de fundo": o Bem e o Mal, representadas pelas duas Barcas, à qual se sobrepõe um desfile de personagens moldados à maneira da farsa. → Influência das danças macabras, p.ex., Diálogos dos Mortos de Luciano de Samosata (125-192, que ironizou as vaidades das grandezas niveladas pela morte).
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→ Figuração cénica dos 3 estados da alma cristã depois da morte. → Angústia humana (cf. medieval - morte). → Barca de Caronte. 6
→ Cf. as duas barcas no Leal Conselheiro ("uma forte e segura e mui bem aparelhada, e em que raramente algum se perde e por a maior paerte todos em ela se salvam, e outra velha, fraca, podre, rota, em que todos se perdem e alguns poucos se salvam"). → Trilogia das Barcas influenciou p. ex. El viaje del alma de Lope de Vega ou El gran teatro del mundo de Calderón. Auto da Barca do Inferno: → Fresco da sociedade do tempo e da sua relação com a morte, juízo de Deus. → Pecadores vão para o inferno, não os livra a condição social nem o estado eclesiástico. → Tipos: fidalgo arrogante, frade cortesão, alcoviteira, procurador, entre outros. Auto da Barca da Alma: → Originada por críticas de ordem teológica, hipótese intermédia. → Lavrador traz a sociedade de pé e dele se alimentam todos como parasitas, Nós somos vida das gentes e morte das nossas vidas. → Tipos: lavrador, pastor, regateira, etc. Auto da Barca da Glória: → Escrita por razões de ordem estética, para oferecer um fecho para ter quadro completo. → A alma é redimida pelas "dignidades altas", a fé aparece como fonte da redenção, artificial (salvação de "tales señores" = concessão às exigências da condição de cortesão do artista). → Tipos: imperador, rei, duque, papa.
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Farsa de Inês Pereira (1523): → Por causa desta farsa GV foi acusado de plágio e de falta de originalidade; pedira um mote para uma obra: "Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube". → A jovem protagonista, a ambiciosa e rebelde Inês, escolhe um marido "discreto" e bem-falante. → Vê-se sopeada/reprimida ao ser impedida de cantar: Porque o homem sesudo Traz a molher sopeada. [...] Vós não haveis de mandar em casa somente um pêlo. → É fechada em casa quando o marido parte para a guerra de Marrocos a fim de conquistar o grau de cavaleiro. → Inês reconsidera a sua situação e aprende as lições da experiência: Cuidei que fossem cavaleiros/[...] Não cheos de desvarios.[...] Quem sua mulher maltrata [...] Nunca mata drago em vale[..] Juro em todo meu sentido Que, se solteira me vejo Assi como eu desejo, Que eu saiba escolher marido, A boa fé, sem mau engano, Pacífico todo o ano, E que ande a meu mandar: Havia-me eu de vingar Deste mal e deste dano... → Mulher que reage pela inteligência e pelo sarcasmo, encontrando forças para se reconstruir a partir de um falhanço. → Aceita a proposta do segundo casamento com Pêro Marques que antes desprezara: Asno que me leve quero, E não cavalo folãm; Antes lebre que leam, Antes lavrador que Nero. → Cf. Shakespeare, The Taming of the Shrew (Petrúcio/Catarina vs. Inês/Brás da Mata, cf. cinismo dos homens; Catarina amansada vs. Inês indomável e vingativa).
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Bibliografia escolhida Edições Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente. Introd. e normalização do texto de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: INCM 1984. Estudos
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Bell, Audrey 1940. Estudos Vicentinos. Lisboa: INCM. Bernardes, José Augusto Cardoso 1997. Sátira e Lirismo. Modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente. Coimbra: Universidade de Coimbra. Cruz, Maria Leonor Garcia da 1990. Gil Vicente e a Sociedade Portuguesa de Quinhentos. Lisboa: Gradiva. Dias, Graça da Silva 1980. De Gil Vicente a Camões: Culturas e Mentalidades. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra. Encarnação, José da 1993. Panorama Social Vicentino. Coimbra: Minerva. Garay, René Pedro 1988. Gil Vicente and the Development of the Comedia. Chapel Hill: University of North Carolina. Gonçalves, Artur Ribeiro s.d. Auto da Feira de Gil Vicente. Lisboa. Hart, Thomas 1972. Gil Vicente, Farces and Festival Plays. Oregon: University of Oregon. Mateus, J. A. Osório s.d. Auto da Índia de Gil Vicente. Lisboa: Comunicação. Michaëlis de Vasconcelos, Carolina 1949. Notas Vicentinas. Preliminares duma Edição Crítica das Obras de Gil Vicente, Notas I a V. Lisboa: Ocidente. Parker, Jack Horace 1967. Gil Vicente. Nova Iorque: Twayne. Picchio, Luciana Stegagno 1969. "Gil Vicente", in id: História do Teatro Português, trad. do italiano por Manuel de Lucena, Lisboa: Portugália. Quaderni portoghesi 9-10, 1981 [número inteiramente dedicado a Gil Vicente]. Reckert, Stephen 1983. Espírito e Letra de Gil Vicente. Lisboa: INCM. Révah, I. S. 1951 e 1955. Recherches sur les œuvres de Gil Vicente. 2 vols. Lisboa. Rodrigues, Maria Idalina Resina s.d. Auto da Alma de Gil Vicente. Lisboa: Comunicação. ------ s.d. Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Lisboa: Comunicação. Saraiva, António José 1942, 1981. Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval. Lisboa: Bertrand. ------ 1995. "Gil Vicente", in id.: Para uma História da Cultura em Portugal, vol. II., Lisboa: Gradiva, 239266. ------ 1996. Poesia e Drama: Bernardino Ribeiro, Gil Vicente, Cantigas de Amigo. Lisboa: Gradiva. ------ / Lopes, Óscar 161996. "Gil Vicente", in História da Literatura Portuguesa, Porto: Porto Editora, 189224. Temas Vicentinos. Actas do Colóquio em Torno da Obra de Gil Vicente. Lisboa: ICALP 1992. Teyssier, Paul 1959. La langue de Gil Vicente. Paris: Klincksieck. ------ 1982. Gil Vicente: o Autor e a Obra. Lisboa: ICALP. Bibliografias A Gil Vicente Bibliography. 1975-1995. Bethlehem, PA: Lehigh Univ. Press / London Associated Univ. Presses 1997. Gil Vicente: Todas as Obras. Org. por José Camões. Lisboa: Comissão Nacional de Comemoração dos Descobrimentos Portugueses 1999.
Obras completas em versão digital: http://purl.pt/252 (Lisboa: Biblioteca Nacional 1928)
Elaborado por Burghard Baltrusch