Cartas - Livro de Bordo

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CARTAS Livro de Bordo Projeto 1 - Grupo B


Dhul-Fâgar al-Attar Parque Público de Aleppo 8400-205 Aleppo, Síria

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Aleppo, 11 de janeiro de 2016 Assunto: ‫( وداع‬despedida) -> só uma palavra

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Este parque está irreconhecível! Ainda me lembro quando vocês me traziam aqui para jogar à bola e mergulhar na fonte. O Othman não chegou a conhecê-lo antes de ter sido bombardeado. 
 Por falar nele, não se preocupem porque fui buscá-lo à biblioteca e ele ainda não largou o livro do Harry Potter. Estamos à espera do resto do grupo para partir. Espero que o carro seja grande porque ainda vai ser uma hora de viagem e somos 6 pessoas. 
 Os vizinhos do prédio da frente, o carpinteiro e a senhora que faz aquela tarte de mirtilo espetacular, também vêm. Eles são mais velhos, espero que não atrasem a nossa viagem… 
 A Adilah, que conheci na universidade, traz uma amiga que, tal como ela, se revoltou contra o regime e pretende revelar as atrocidades cometidas pelo mesmo. Sei que vocês os dois irão ter connosco a Portugal assim que organizarem os vossos negócios. Resolvi, por isso, escrever-vos estas cartas para saberem o que vos espera em cada país que vamos atravessar. Nem acredito que vou passar por países tão bonitos como a Turquia ou a Itália. Mas nem vou poder apreciar esta viagem. Vamos passar o tempo todo em comboios, autocarros ou andar a pé de cabeça baixa, escondidos da polícia. Só voltaremos a erguer a cabeça quando chegarmos sãos e salvos a Portugal. Estou aterrorizado com a responsabilidade de tomar conta do meu irmão mais novo. Othman é tão frágil, que temo não conseguir protegê-lo durante a viagem. Parou agora um Toyota à frente do parque. É a Adilah e só há quatro lugares…

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Campo de refugiados de Kilis 8530-407 Kilis, Turquia.

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Kilis, 12 de janeiro de 2016 Assunto: ‫( راحة‬alívio)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Finalmente conseguimos sair do país sãos e salvos. Foi por pouco que o fizemos pois, dez minutos após termos iniciado a nossa viajem até Kilis, bombas começaram a atingir Alepo. A primeira caiu sem qualquer aviso, um estrondo mais alto e violento do que qualquer trovão, seguido por uma grande nuvem de fumo cinzento e uma chuva de pedras e pó. No carro, o medo e pânico era tal que apenas se ouviam as nossas respirações e o ocasional grito. Adilah tentava manter-se calma enquanto guiava o carro em ziguezagues bruscos para tentar evitar o pior dos estilhaços das bombas que caiam mais perto. Um pesadelo que apenas durou vinte minutos mas pareceu prolongar-se eternamente. Agora, no campo, estamos todos mais relaxados. Othman, antes silencioso e tenso com aquilo que presenciou, já recuperou a sua energia e fala sem parar com Adilah, que se revelou uma grande contadora de histórias. Kilis em si é uma pequena cidade na fronteira com a Turquia. O campo de refugiados que construíram aqui é grande, embora não o suficiente para albergar a quantidade de migrantes que aqui se encontram. Assim, tivemos que dormir no chão duro e sujo, enrolados em mantas que trazíamos connosco e encostados uns aos outros para preservar o pouco calor que se conseguia obter numa noite de Inverno. Felizmente, apenas pernoitámos no campo e hoje dirigimo-nos para a estação de comboios de modo a continuarmos a nossa viagem. Preocupo-me com vocês. As noticias que li na internet disseram que as bombas caíram longe de nossa casa, na zona dos mercados e lojas. Espero que isto signifique que nenhum de vocês ficou magoado e que estejam de boa saúde. Rezo por vocês e peço-vos que rezem também por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Comboio em direção a Izmir, Turquia

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Izmir, 12 de janeiro de 2016 Assunto: ‫( مجتمع‬comunidade)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

É impossível ter uma ideia da enorme quantidade de pessoas a fugir à guerra até tentarmos caber todos num comboio! Os assentos são logo ocupados pelas crianças e mulheres que chegam primeiro, enquanto que o resto se espalha pelo chão, costas com costas, pernas e braços entrelaçados com estranhos. Embora se ouçam conversas, os corpos vão quietos, anormalmente estáticos, algo necessário para manter o equilíbrio que evita confusão e acidentes possivelmente dolorosos. Um exemplo é o meu atual vizinho do lado, que levou com um cotovelo no nariz quando o homem à sua frente começou a gesticular. Seria de esperar que esta situação fosse extremamente desconfortável, com as más condições em que viajamos, o calor que se forma dentro da carruagem e a falta de ar fresco. No entanto, o facto de nos encontrarmos todos na mesma trágica situação parece criar entre nós laços, ligações temporárias que nos transformam numa enorme comunidade. Nem todos reagiram calmamente a este ambiente claustrofóbico e abafado. Zahra, a amiga de Adilah, foi ficando cada vez mais ansiosa, até que atingiu o seu limite e sofreu um ataque de pânico. Felizmente, Tarik, um dos nossos vizinhos, tem experiência em acalmar pessoas nestas situações, algo que fez no exército com os outros soldados, e conseguiu acalmá-la. O comboio chega agora a Izmir, onde vamos passar a noite num hotel antes de continuarmos a nossa viagem por barco. Temo pela nossa segurança, especialmente por Othman. Esta é a parte mais perigosa da nossa jornada.

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Campo de refugiados de Lesbos 8400-340 Lesbos, Grécia.

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Kilis, 24 de janeiro de 2016 Assunto:

‫( مأساة‬tragédia)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Sinto um grande vazio no meu peito e uma névoa persistente na minha mente. O mundo em meu redor parece estar mais longínquo, como se esta realidade em que vivo fosse apenas um sonho terrível. Como se, a qualquer momento, fosse acordar na minha cama em Aleppo, a voz do meu irmão soando pela casa num “Bom dia!” alto e alegre. Mas isto é impossível, porque o meu irmão mais novo, o vosso querido filho, morreu ontem, afogado nas águas frias do Mar Egeu. Foi no último dia da viagem e ele já sofria há quatro dias de uma intensa e inexplicável febre, que o levava a contorcer-se nos meus braços e a gritar por vocês. Um dos solavancos mais violentos do barco fê-lo cair ao mar, demasiado rápido para que o conseguisse agarrar, e as ondas arrastaramno logo para o fundo, independentemente do colete salva vidas que ele usava. Tarik, Adilah e Sami tiveram que me agarrar para que não saltasse atrás dele. Se não fossem eles vocês teriam perdido dois filhos naquele dia, em vez de um. Ele não foi a única vítima desta viagem. Junto a mim ia uma mulher com três filhos, um dos quais caiu ao mar com Othman. Chorámos juntos, companheiros na nossa tragédia, e acho que a sua presença a meu lado foi a única coisa que me permitiu sobreviver os primeiros dias neste campo de refugiados em Lesbos. Peço que me perdoem, pai e mãe. Sinto que, enquanto irmão mais velho deveria ter sido capaz de evitar isto. Eu prometi-vos que o iria proteger e, ainda assim, fui incapaz de cumprir a minha promessa. Por favor, perdoem-me.


Dhul-Fâgar al-Attar Campo de refugiados de Atenas 8600-670 Atenas, Grécia.

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Atenas, 2 de fevereiro de 2016 Assunto: (salvação)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Após uma semana passada no campo de refugiados em Lesbos, consigo pensar mais claramente. Fomos levados para o campo de refugiados de Atenas por um grupo de soldados da marinha entre os quais reconheci um dos que nos resgatou do mar. Adilah disse-me que se chama Alexis e que está completamente encantado com a Zahra. Pelos vistos, começaram a conversar quando chegámos a Lesbos e a atitude inteligente, sarcástica e um pouco brusca da nossa companheira de viagem despertou-lhe curiosidade. Adilah contou-me que se comportam como se fossem amigos de infância, tagarelando rapidamente acerca de séries, livros e equações matemáticas (aparentemente, o amor por esta terrível disciplina é algo que têm em comum, quem diria). Fico feliz por saber que, mesmo no meio da desgraça e tristeza, ainda é possível encontrar pequenos momentos de alegria e esperança. Alexis também se ofereceu para nos deixar na estação de comboios de Atenas, para que possamos prosseguir a nossa viagem. Prometeu-nos, de igual modo, que nos iria visitar a Portugal assim que pudesse, se bem que, pelo vermelho da cara da Zahra, ela percebeu a quem a promessa verdadeiramente se destinava. A dor da morte do meu irmão continua presente, assim como a sensação de vazio que parece abafar tudo à minha volta, mas sinto que já não é tão forte como na semana passada, muito provavelmente devido à presença dos meus companheiros de viagem e à beleza da Grécia, que me espanta e delicia depois de tanto tempo a viver o horror e a destruição do nosso país.

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Garden Vila Hotel Goce Delcev 70, 1480 Gevgelija, Macedonia.

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Gevjelija, 6 de fevereiro de 2016 Assunto:

‫( التحويل‬transposição)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

A passagem da gentileza e aceitação da Grécia para a brutalidade e frieza da Macedónia é um choque. Ainda há umas semanas, este país decidiu fechar as suas fronteiras àqueles que fugiam em desespero. Após viajar de comboio até Salónica e de taxi até perto de Indomeni (cidade fronteiriça), vimos a nossa passagem barrada por polícias armados. Mesmo antes de chegarmos já era possível ouvir a violência, os gritos dos adultos e o choro das crianças. A polícia empurrava brutalmente quem quer que se aproximasse demasiado da sua barreira e, quando isso deixou de resultar, começaram a usar gás lacrimogéneo. A maior parte de nós, mais atrás na multidão, não foi atingida mas Adilah, incapaz de suportar injustiça, tinha corrido para a frente para impedir um grupo de crianças de serem espezinhadas. Ela puxou-as para trás de si e o gás atingiu-a em cheio nos olhos. Por momentos, o pânico que senti foi tão grande que superou a depressão que me envolvia desde a morte de Othman. Sami foi a única no nosso grupo que permaneceu calma. Ela guiou Adilah, que se contorcia com uma tosse terrível e chorava sem parar, para um local com menos gente e sentou-a, agarrando-lhe as mãos para que não pudesse esfregar os olhos. Depois, pegou na sua garrafa de água e, calmamente, como se já tivesse repetido este processo inúmeras vezes, limpou os olhos e a cara de Adilah. Passados alguns minutos, o efeito do gás passou e pudemos continuar a andar, Sami ao lado de Adilah, ainda a acalmá-la. Com a sua aparência carinhosa, tendemo-nos a esquecer que Sami foi, na sua juventude, uma ativista, que saía para a rua e enfrentava a policia e as forças militares sem medo nem hesitação. Conseguimos passar a fronteira pelas linhas de comboio, que a polícia não estava a vigiar. Espero que, quando for a vossa vez de viajar, a Macedónia já tenha aberto novamente as fronteiras e não tenham que passar por este pesadelo.

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Comboio para Miratovac, Sérvia

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Miratovac, 7 de fevereiro de 2016 Assunto:

‫( شك‬incerteza)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Quando quarenta pessoas viajam numa mesma carruagem de comboio, os resultados não são os melhores. Aprendi isso hoje. O ar em meu redor é abafado e quente. É impossível conversar sem gritar, e a cacofonia que enche esta carruagem está-me a provocar uma dor de cabeça insuportável. Os bebés que vêm com as famílias não pararam de chorar desde que o comboio deixou a estação e, pelo meu contar, pelo menos três discussões já foram iniciadas entre diferentes grupos. Este comboio dirige-se para Miratovac, cidade na fronteira da Sérvia, onde iremos ter de apresentar os nossos documentos à Polícia fronteiriça. Dado que já fomos entrevistados na Macedónia e foi-nos permitido continuar a nossa viagem independentemente da nossa passagem ilegal pela fronteira, não me preocupo com a aceitação dos nossos documentos, que está garantida. O meu lugar no chão é perto o suficiente de uma janela para observar a neve que cai lá fora. É uma visão linda que nunca observámos em Aleppo mas o facto de Othman não estar aqui para a presenciar, uma vez que, ver neve, sempre foi um dos seus maiores desejos. O mundo parece cinzento e vazio sem a sua presença animada e curiosa ao meu lado e, por vezes, pergunto-me se vale a pena continuar esta viagem sem ele. De momento, apenas sigo em direção a Portugal porque sei que é isso que vocês quereriam.

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Campo de refugiados de Presevo 8600-670 Presevo, Sérvia.

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Presevo, 8 de fevereiro de 2016 Assunto: ‫( تقرير‬determinação)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Não sei porque esperava mais deste campo de refugiados do que dos outros mas, como sempre desde que saí de Aleppo, fiquei desiludido com o que encontrei. Chegámos a Presevo há já um dia e ainda estamos à espera numa longa fila, aparentemente sem fim, para entrar no campo de refugiados. Desde manhã que ainda não parou de chover e os lábios de Sami já estão a ficar azuis, juntamente com os arrepios cada vez mais violentos que lhe fazem tremer as mãos e bater os dentes. Um pouco mais à frente de nós está um grupo de 5 crianças que aparentam ter por volta de 10 anos. Organizam-se num círculo, chegados uns aos outros para tentar preservar um mínimo de calor e, apesar de terem sorrisos na cara (um dos meninos parece estar a contar uma história que envolve um dragão e um grupo de anões), há algo nos seus olhos que me leva a pensar que eles estão bastante conscientes da situação precária em que se encontram. Pergunto-me se o meu irmão também estava ciente do mesmo. Se, a partir do momento em que saímos de casa, sabia os riscos que iríamos correr e estava consciente da possibilidade de que nem todos nós chegaríamos a Portugal. Sabendo ele o que lhe poderia acontecer, o que diria se me visse neste estado? Calado, deprimido, vazio de curiosidade. Acho que gritaria comigo, dir-me-ia bem alto que achava as minhas ações idiotas e que há tanto para ver neste maravilhoso mundo, tanta gente para conhecer! Não sei porque demorei tanto tempo a compreender isto mas, sinto-me mais determinado agora que tenho um novo objetivo. Se não consigo viver propriamente por mim mesmo, então viverei pelo meu irmão, explorarei aquilo que ele não teve a oportunidade de explorar. Chegou um voluntário à fila, carregado de mantas e chapéus de chuva. A probabilidade de sobrevivermos esta noite aumenta.

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Comboio para Torvanik

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Torvanik, 18 de fevereiro de 2016 Assunto: ‫( حشد‬multidão)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Depois da nossa estadia em Presevo, onde apenas haviam 12 casas de banhos para a multidão de migrantes que lá se encontrava, enfiámo-nos em mais um comboio para chegar a Berkasovo. A localidade em si era bonita, campos verdes que se estendiam por quilómetros com a ocasional árvore para quebrar a monotonia. No entanto, o campo de refugiados em que descansámos durante três dias, se é que é possível descansar num chão duro e lamacento da chuva, mostrouse igual aos outros no sentido em que não estava de nenhum modo preparado para nos receber. O ambiente de desolação de frustração que nos rodeava era quebrado com conversas entre várias famílias e grupos. Adilah encontrou um casal com filhos que eram seus amigos de infância e fez logo questão de os pôr a par de tudo o que tinham acontecido na nossa viagem desde que saímos de Aleppo. Sami, por outro lado, conseguiu encontrar um grupo de homens e mulheres que eram todos cozinheiros, tendo dois deles o seu próprio restaurante. Acho que nunca a vi tão animada do que quando estava a trocar receitas com eles. Zahra e eu tornámo-nos mais próximos durante esses dias. Eu revelei a minha nova determinação em aproveitar a vida e as maravilhas que ela me tinha para dar pelo meu irmão e Zahra disse que o seu objetivo de vida era bastante semelhante. Enquanto rodava nas mãos o cubo de rubik que lhe tinha sido dado por Alexis (uma ação que a acalmava), contou-me acerca do seu amigo Mohamed Hariri, um ativista como ela, que foi perseguido e executado pelo Daesh. Desde então, ela prometeu a si mesma que iria continuar o seu trabalho de ativismo, independentemente do quão perigoso poderia ser, tanto por ela mesma como pelo seu grande amigo, que já não estava vivo para lutar pelo que acreditava. Sinto-me honrado que ela confie em mim o suficiente para partilhar comigo algo tão pessoal que ainda hoje, um ano depois da morte de Mohamed, a afeta. Estamos agora no comboio que nos levará até Torvanik onde passaremos a fronteira para a Croácia.

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Comboio até Pribanjci

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Pribanjci, 26 de fevereiro de 2016 Assunto: ‫( ضعف‬fraqueza)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Quando chegámos a Torvanik de comboio foi-nos dito que teríamos de atravessar a fronteira a pé. A passagem não teria sido tão cansativa se não fosse pelo facto de que a travessia foi feita à noite e ao frio, com chuva e vento a bater-nos de todos os lados. A caminhada de uma hora foi feita sem intervalos, a policia em frente sempre a andar. De vez enquanto, um dos oficiais virava-se e avisava-nos que segurássemos bem as nossas crianças. A fronteira da Croácia ainda se encontra minada, por causa da Guerra da Croácia nos anos 90, e qualquer passo em falso poderia ser o nosso último. Quando finalmente chegámos a Opatovanik, ficámos uma semana no campo de refugiados onde descobrimos que Tarik é muito bom com crianças, visto que houve um enorme grupo delas que, quando foi altura de irmos embora, se agarrou às suas pernas a chorar baba e ranho. Foi preciso pelo menos meia hora para ele as acalmar e as conseguir despegar. De seguida, apanhámos o comboio em direção a Pribanjci, de onde agora escrevo. Esta carruagem não vai tão cheia, pelo que conseguimos arranjar lugares sentados. Ao pé de nós vai uma família, um casal com quatro filhos. A mulher chora, inconsolável, e tanto as crianças como o pai parecem também tristes. Adilah, sempre determinada a ajudar de qualquer maneira que possa, chega-se a eles, perguntando o que se passa. Quando ela volta, dez minutos mais tarde, a mãe parece mais calma, embora ainda muito deprimida, com os filhos e o marido em seu redor a abraçarem-na. Adilah, por outro lado, está pálida e claramente revoltada. Em sussurros, de modo a não importunar a família com que acabou de falar, conta-nos das redes de tráfico humano, que se têm aproveitado das nossas desgraças e da confusão dos campos de refugiados para raptar crianças que encontrem sozinhas. O filho mais novo da mulher com que acabou de falar foi uma das vítimas, um menino de 6 anos, do qual ela tirou os olhos por apenas cinco minutos e depois virou-se e viu que tinha desaparecido. Sinto-me tão revoltado como cansado; sempre que pensamos que já vimos o pior do que as pessoas são capazes, aparece alguém ainda mais cruel.

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Pribanjci, Croácia

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Pribanjci, 27 de fevereiro de 2016 Assunto: ‫( انتظار‬espera)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Cheguei hoje à conclusão que não sou nada paciente, estamos à 20 minutos nesta fila para sermos revistados pela polícia fronteiriça, e a minha paciência está a chegar ao fim. Foi por isso que resolvi escrever esta carta, para me abstrair do ruído das pessoas que conseguem ser mais impacientes que eu. Sinceramente, parece que nunca mais vejo a Eslovénia! Planeámos ficar num hotel assim que lá chegarmos, precisamos de uma cama com um colchão que não seja lamacento e rijo como o alcatrão. Ainda falta atravessar quatro países até chegarmos a Portugal e precisamos de recarregar baterias. Só estão a deixar passar 2500 pessoas por dia e, pelo que se ouve, a caminhada é atribulada. Vamos escoltados por polícias a pé e a cavalo. Há pessoas que não aguentam e desmaiam a meio do caminho, as crianças mais pequenas vão ao colo, enquanto as outras lutam contra o cansaço das suas fracas pernas para alcançar Vinica. A comida que nos dão não é suficientemente nutritiva para permitir que tenhamos forças suficientes para andar durante 40 minutos, em terrenos íngremes rodeados de idosos e crianças a cambalear tão devagar que às vezes parece que não saem do mesmo sítio. Entretanto as medidas policiais para acalmar as pessoas que esperam nesta fila infinita são cada vez mais violentas. Eu percebo que queiram manter-nos calmos, mas têm de perceber que são pessoas que andam a viajar há quase dois meses, outros até há mais tempo, e chega uma altura em que não é suportável para ninguém. Então a solução que arranjaram foi o gás lacrimogéneo. O cheiro é insuportável, sempre que se ouve um apito, já se sabe que vem aí outra coluna de fumo, alguns são atingidos mais violentamente, outros conseguem fugir a tempo, e tapar a cabeça e as vias respiratórias. Fomos chamados, finalmente! Agora a próxima vez que vos escrever já estaremos na Eslovénia!

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Viagem de autocarro Vinica-Hotel Lahinja

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Vinica, 27 de fevereiro de 2016 Assunto: ‫( االتحاد‬união)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Foram os 40 minutos mais longos da minha vida. Estava desejoso de ouvir "Já chegámos", mas esse grito ainda demorou a vir. Não houve paragens, sempre que alguém abrandava, ouvia-se a polícia "Se pararem, nós não voltamos para trás para vos vir buscar". Houve quem não aguentasse e desmaiava ou vomitava a meio do caminho. Eu ainda levei algumas crianças às costas, quando as suas mães ou avós já não as conseguiam transportar, iam sedentas e esfomeadas, com trapos na cabeça para proteger do sol, que teimava em aquecer os corpos que se arrastavam naquele caminho interminável de terra batida. Mas o que interessa é que chegámos bem a Vinica e apanhámos agora o autocarro para o Hotel. Foi difícil explicar ao motorista que queríamos um bilhete, porque o inglês dele era tão bom como o meu esloveno... Espero que esta estadia no hotel nos ponha um sorriso na cara. Andamos todos exaustos e ansiosos porque estamos quase a alcançar Itália, e a partir daí a viagem é quase direta e menos monótona. Vamos poder apreciar as paisagens italianas. Há sítios que eu adorava visitar por toda a história que têm, mas não sei se terei essa oportunidade, primeiro porque o percurso que iremos fazer provavelmente não passa por aqueles locais mais emblemáticos, e segundo porque acho que mais ninguém quereria vir passear comigo, estão todos impacientes pela chegada a Lisboa. Talvez o Tarik que, pelas histórias que conta, também é um apaixonado por História.

Que as vossas rezas nos fortaleçam,


Dhul-Fâgar al-Attar Hotel Lahinja 3400-234 Črnomelj, Eslovénia

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Črnomelj, 1 de março de 2016 Assunto: ‫( بقية‬descanso)

Masa'u Al-Khair (boa noite),

Já é a terceira noite neste pequeno hotel, Hotel Lahinja. Bastante acolhedor. Sinceramente, agora qualquer coisa me parece acolhedora, depois de passar por comboios atulhados e descampados sem qualquer tipo de saneamento, só pedia um pouco de espaço pessoal, estou farto de andar rodeado de pessoas. Creio que até desenvolvi algum tipo de claustrofobia, algo que antes não me fazia qualquer confusão. O calor humano já não é algo agradável, mas tresanda a suor e mau hálito. Quanto à organização dos quartos, a Adilah e a Zahra quiseram ficar no mesmo quarto e, para eu não ficar sozinho noutro, o Tarik e a Sami não se importaram de eu ficar com eles. A Sami sempre teve alguns sentimentos maternais para comigo, então é muito protetora. Também o era com Othman, e com a morte dele não quer que eu sofra sozinho. Fomos a lojas locais para comprarmos mais algumas peças de roupa para o resto da viagem porque as minhas t-shirts já não têm cor, com a quantidade de vezes que eu já as esfreguei com sabonete. No entanto, voltámos com pouca coisa, ninguém queria gastar dinheiro em roupa nova, quando ainda pode haver algum percalço de última hora no resto do percurso. Até foi bastante agradável poder sair à rua e caminhar sem estar rodeado de polícias, apesar desta zona da Eslovénia não ser a mais agradável à vista. Poucos edifícios com não mais de 4 andares, com zonas verdes e com pessoas sem medo de serem bombardeadas a cada meia hora, fez lembrar-me Aleppo nos seus tempos de glória. Uma cidade elevada, com história, com vidas a serem vividas. Custou-me, e ainda me custa, ter-vos deixado para trás, ter deixado a cidade que me viu nascer para trás, mas precisamos de mostrar ao resto da Europa que a Síria já não é habitável como era antes. Vamos continuar durante mais duas noites neste hotel e na manhã seguinte, apanharemos o comboio na estação que fica a 3 minutos daqui, até Nova Gorica. Depois, atravessamos a fronteira até Gorizia em Itália e aí espero enviar-vos outra carta.

Rezem por nós,


Dhul-Fâgar al-Attar Propriedade dos Dolavalle 4500-123 Gorizia, Itália

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Gorizia, 5 de março de 2016 Assunto: ‫( ذهل‬deslumbre)

Masa'u Al-Khair (boa noite),

A minha opinião quanto aos comboios está a mudar lentamente. Na viagem até Nova Gorica, na fronteira com a Itália, o comboio era bastante confortável. Acho que fomos as únicas pessoas daquela carruagem que fizeram a viagem até ao fim daquela linha de comboio. Senti-me como fazendo parte de uma comunidade ativa, onde as pessoas vivem as suas vidas, se cumprimentam quando se encontram e partilham interesses. As paisagens tinham maioritariamente grandes campos cultivados e, de vez em quando, uma grande propriedade, com criação de animais. No entanto, tivemos que fazer uma paragem em Ljubljana para comprar medicamentos para as dores de cabeça da Adilah, já que a sua cara ficara cada vez mais vermelha e a sua temperatura aumentava a olhos vistos. Ela agora está melhor, a febre baixou, mas a cabeça ainda teima em doer a meio dos nossos jogos de cartas à luz da lua. Sim, porque hoje estamos a passar a noite numa daquelas grandes propriedades que vimos no comboio, só que em Itália. Quando atravessámos a fronteira até Gorizia, um agricultor que cuidava delicadamente da sua pequena plantação de trigo, avistou-nos a caminhar cada um com a sua mochila ao pôr-do-sol, cansados e já sem água, e ofereceu-nos a estadia de uma noite na sua modesta casa. Tivemos direito a um banquete cozinhado pela Giovanna, mulher do senhor Enrico, com comida tipicamente italiana. Contámos a nossa viagem, ou melhor, a Zahra contou-a, porque mais nenhum de nós sabia uma única palavra em italiano, e eles ficaram muito surpreendidos. Só acompanhavam estas histórias pela televisão e era-lhes difícil acreditar em todas as peripécias por que já tínhamos passado. Eram uma família pacata, já nos seus 70 anos, que nunca tinha saído de Itália, apesar de viverem perto da fronteira com a Eslovénia. Já é de manhã e já estamos de barriga cheia com o pequeno-almoço que nos foi presenteado. Caminharemos até ao centro da cidade de Gorizia para apanhar o comboio até Turim.

Rezarei por vocês e pelos meus colegas,


Dhul-Fâgar al-Attar Paragem de autocarros de Modane 1200-237 Modane, França

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Modane, 7 de março de 2016 Assunto: ‫( إزعاج‬desconforto)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Acabámos de chegar a Modane, em França, e estamos à espera do próximo autocarro para Lyon. Itália é um pequeno mundo onde parece que ainda vivemos na época dos artistas renascentistas, com pequenas casas, sem prédios gigantescos ou qualquer tipo de contemporaneidade à vista. Infelizmente, pouco ou nada vimos, porque a viagem foi toda feita de comboio e a maior parte das fotografias que tirei foram através das suas janelas. Não consegui escrever-vos nessa altura, por isso deixo-vos algumas fotografias que entretanto consegui imprimir. Pensei que era só eu, mas o Tarik chegou a comentar o mesmo. Começamos a sentir alguns olhares de lado. É verdade que a nossa aparência não é a melhor, o último banho que tomámos já foi há três dias, nuns balneários públicos algures numa paragem de comboio italiana. Mas penso que estes olhares se devem a outra coisa. A nossa cultura. O facto de rezarmos os cinco nas viagens de comboio provoca alguns olhares preconceituosos. Às vezes, só me apetece gritar “Sim, somos da Síria. Não. Não somos terroristas”. Também não queríamos ter que sair do nosso país, onde nos sentimos confortáveis, e de um dia para o outro ter que fazer uma viagem de meses em direção a um lugar desconhecido. No entanto, a vida na Síria está a ser cada vez menos humanizada. As ruas das nossas cidades transformaram-se em campos de batalha que parecem saídos dos filmes que se vêem nesta parte da Europa. A partir daqui, a viagem vai ter cada vez menos paragens, estão todos ansiosos por chegar finalmente a Portugal. Agora que falta tão pouco, há uns que reagem melhor ou pior ao tédio. A Zahra anda muito impaciente, são poucas as vezes em que apanha alguma rede de internet no seu computador, enquanto a Sami cada vez mais a vejo a fazer os seus exercícios de ioga para afastar o stress. As nossas conversas começam a dissipar-se e agora está cada um para seu lado, cada um com os seus pensamentos, cada um com as suas memórias, cada um com as suas ambições.

Que as vossas rezas nos fortaleçam,


Dhul-Fâgar al-Attar Viagem de autocarro Lyon-Girona Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Girona, 9 de março de 2016 Assunto: ‫( تحيز‬preconceito)

Marhaban (olá),

Já é a segunda viagem de autocarro em dois dias. O primeiro autocarro que vemos a passar para o destino que queremos, é logo onde nos metemos. Em Lyon, resolvemos apanhar um para Girona, em Espanha, de modo a poupar mais viagens e paragens. A má notícia é que este autocarro demorou imenso tempo a chegar. Pelo que percebi, tinha havido um acidente numa das estradas principais e havia perturbações no trânsito, o que provocou um atraso de quase sete horas. Pretendíamos seguir viagem às quatro horas da tarde mas o transporte só chegou às dez da noite. Andamos todos um pouco alterados com as mudanças bruscas de fusos horários, o que nos afeta tanto psicologicamente como fisicamente. Eu, pessoalmente, sinto-me sempre inundado por uma enorme vontade de dormir e a capacidade de andar é cada vez menor. Felizmente, a viagem foi durante a noite e conseguimos por todos o sono em dia. Estou a escrever-nos agora que acabamos de passar a placa que diz “ESPANHA”, com o azul da União Europeia e as respetivas 12 estrelas. A partir da fronteira de Itália com França, a paisagem tornouse bastante mais rochosa. Primeiro atravessámos um pequeno vale por entre a imensidão verde e branca dos Alpes. E agora é a altura de viajarmos acompanhados pela paisagem de cortar a respiração que são os Pirenéus. Contudo, a viagem não foi tão agradável do lado de dentro das janelas. Um grupo de quatro turistas franceses entraram em confronto com membros da nossa comunidade, por causa de um atentado a uma sala de espetáculos que tinha havido em Paris. Tarik exaltou-se com os insultos que vinham da parte deles, que insinuavam que a culpa tinha sido nossa. Felizmente, não passaram de uma troca acesa de palavras e gestos, uma vez que consegui controlar o corpo nervoso de Tarik a tempo. Zahra ia a dormir junto a uma janela, na zona mais central do autocarro e não deu por nada, enquanto Adilah assistia à cena no lugar junto a ela com medo do que pudesse vir a acontecer. Sami não gostou de ver o seu marido assim, mas também não concordava com o que aqueles turistas insinuavam. O seu passado como ativistas veio ao de cima mas o seu bom senso também. Fizeram-se fortes e ignoraram os insultos.

Não nos deixaremos levar por olhares alheios, não se preocupem,


Dhul-Fâgar al-Attar Estação de comboios de Barcelona 5670-569 Barcelona, Espanha

Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Barcelona, 11 de março de 2016 Assunto: ‫( توقع‬antecipação)

As-salam alaykom (que a paz esteja convosco),

Passámos a noite num quarto aqui na estação de comboios de Barcelona. Lisboa está cada vez mais perto e as nossas novas vidas também. De manhã, ouvi a Sami a levantar-se e resolvi acompanhá-la. Ela queria comprar alguma comida para a viagem, então fomos dar um passeio nas redondezas, enquanto procurávamos uma mercearia. Consegui tirar algumas fotografias, principalmente à paisagem desta cidade que difere de todas por aquelas por onde já passámos. Por entre pequenos edifícios via-se a imponente Sagrada Família. Espantou-me o espanhol de Sami, enquanto comprávamos fruta e alguns produtos de higiene. Pelo que me contou, participou em algumas comemorações em Espanha, na altura do aniversário da Guerra Civil. Tinha um avô de raízes espanholas que participou nesta Guerra e aproveitava para visitar a sua avó todos os anos. Já desde os 23 anos que não vinha a Espanha, a idade pesava e o dinheiro não abundava. Apesar de nunca ter vindo a Barcelona, comportava-se como se já conhecesse os cantos à casa. Quando visitava a sua avó, ficava sempre durante uma ou duas semanas e essa estadia, todos os anos desde criança, deu-lhe alguns conhecimentos de espanhol. Entretanto, quando voltámos, já todos tinham acordado. O sol já aquecia aquele pequeno quarto e estava na hora de ir comprar os bilhetes para aquela que seria a nossa última viagem. Se o aborrecimento atacar, escrever-vos-ei novamente enquanto estiver no comboio.

Nunca desistiremos,


Dhul-Fâgar al-Attar Viagem de comboio Barcelona-Lisboa Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Madrid, 12 de março de 2016 Assunto: ‫( وعد‬promessa)

Marhaban (olá),

Estas cartas têm servido como um porto de abrigo. É como ter-vos aqui perto de mim. É uma forma de vos contar esta aventura que serei incapaz de apagar da minha memória. Estamos agora a passar por Madrid, portanto metade de Espanha já está. São cinco horas da tarde por isso ao nascer do sol devemos estar a chegar a Lisboa Santa Apolónia. Esta viagem aproximou-nos bastante, espero que em Lisboa continuemos a falar uns com os outros para relembrarmos esta viagem, que me tirou o irmão mas me deu amigos para a vida. As relações que mantinhamos na Síria fortaleceram e agora confiamos mais uns nos outros. Nesta viagem de comboio, conversámos muito e refletimos sobre este caminho . A Adilah, muito sorridente, prometeu que, quando estabilizasse a sua vida, nos convidaria para a grande casa que queria comprar no Alentejo, onde iria constituir uma família, talvez com um português por quem se apaixonasse. Ensinaria aos seus filhos a cultura síria mas também os deixaria absorver a cultura portuguesa, uma vez que, seria o ambiente onde eles tinham nascido. Poderia voltar a Damasco, mas se se estabelecesse em Portugal, só iria para férias, já não havia lá nada para ela, o pai deserdara-a e a sua casa tinha ficado destruída com bombardeamentos. Zahra, mais misteriosa, não deixou passar a tristeza que sentia, mas a verdade é que se notava à distância. Ela não tinha o futuro assim tão delineado, as suas ambições não eram definidas. Preferia chegar a Lisboa, ver o que a vida lhe trazia, talvez um trabalho estável na sua área, uma casa no centro de Lisboa, e depois logo pensaria em voltar para Damasco. Tarik e Sami, esperançosos, só queriam desfrutar de uma reforma calma, a sua vida em manifestações ativistas e no meio da guerra estava em vias de acabar, a idade já pesava e estava na altura de assentar. Planeavam viajar por Portugal e apreciar as paisagens. Possivelmente, regressariam a Aleppo quando tudo se resolvesse nessa região. Já eu, vou terminar os meus estudos, continuar a ver o mundo pela lente da objetiva da minha máquina fotográfica e a reportar tudo o que acontece em meu redor, para nunca me esquecer daquilo que vivi.

O destino está cada vez mais perto,


Dhul-Fâgar al-Attar Residência da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 
 Universidade Nova de Lisboa 1069-568 Lisboa, Portugal Azim e Amina al-Attar Qestaki Homsi Street, Nº4, 4B 5600-648 Aleppo, Síria Lisboa, 26 de março de 2016 Assunto: ‫( نهاية‬fim)

Masa'u Al-Khair (boa noite),

Já estou há duas semanas em Lisboa, e por enquanto as coisas correm às mil maravilhas. Os professores e os outros estudantes são muito simpáticos e a residência aqui da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa é muito acolhedora. Ontem resolvi reunir as cartas que fui escrevendo ao longo da viagem que fiz em janeiro, bem como outros objetos que fui recolhendo, e faltava uma para concluir. Já ando a pensar o que escrever aqui há muito tempo. É a última que vos vou escrever, preciso de entrar em paz comigo mesmo e deixar-vos a vocês em paz, perceber que é impossível voltarem, e que apesar de tudo me acompanharão nesta minha nova vida, com novas rotinas e novos companheiros. Perdi uma parte de mim quando Othman partiu, e fui-me degradando psicologicamente cada vez que me afastava mais da Síria, da minha casa, mas percebi agora que realmente, o meu país não é habitável. Pude atualizar-me no que toca a notícias de bombardeamentos que lá vão acontecendo e as coisas tendem a piorar. No entanto, espero um dia voltar. Não vou reconhecê-lo de certeza, a minha casa já não vai existir, a minha família já não vai lá viver, eu já não vou ser capaz de lá viver por muita nostalgia que sinta. Mas enquanto repórter que sou, sinto necessidade de relatar o que acontece a pessoas inocentes, por isso um dia ainda vou lá voltar e não deixarei que os sírios sofram sozinhos. Tenho falado bastante com as pessoas que me ajudaram a chegar até Lisboa. O Tarik e a Sami já iniciaram a sua viagem por Portugal e resolveram começar no Norte, por Braga. A Adilah ainda está por Lisboa a escrever mais dos seus contos, e à espera de uma oportunidade para os publicar. Quanto a Zahra, arranjou um trabalho na sua área em Coimbra e ao telefone parecia bastante feliz. Estas cartas ajudaram-me bastante. Senti-me mais perto de vocês, apesar de estarem tão longe. Espero que não vos tenha desiludido e que saibam que, onde quer que estejam, as minhas memórias com vocês nunca hão-de desaparecer.


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