PAISAGENS URBANAS CONTEMPORÂNEAS DE MONTANHA

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PAISAGENS URBANAS CONTEMPORÂNEAS DE

MONTANHA

METODOLOGIA PARA UMA ABORDAGEM CONCEPTUAL EM ARQUITECTURA NA COVILHÃ

Tese de Doutoramento Europeu na área científica de Arquitectura

Maria João Pereira de Matos Orientação científica: _Professor Doutor Arq.to João Sousa Morais _Professor Doutor Arq.to José Barros Gomes _Professor Doutor Arq.to Yann Nussaume Covilhã – Maio 2010

Universidade da Beira Interior − Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura Université Paris 8 − École Doctorale Sciences Sociales − ENS d’Architecture de Paris−La Villette



PAISAGENS URBANAS CONTEMPORÂNEAS DE MONTANHA METODOLOGIA PARA UMA ABORDAGEM CONCEPTUAL EM ARQUITECTURA NA COVILHÃ Tese de Doutoramento Europeu na área científica de Arquitectura Maria João Pereira de Matos Orientação científica: Professor Doutor Arq.to João Sousa Morais / Professor Doutor Arq.to José Barros Gomes / Professor Doutor Arq.to Yann Nussaume Universidade da Beira Interior − Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura & Université Paris 8 − École Doctorale Sciences Sociales − ENS d’Architecture de Paris−La Villette − Équipe de recherche Architectures, milieux, paysages

Covilhã - Maio 2010

Financiamentos: Composição gráfica:

Catarina Morais


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Paisagens Urbanas Contemporâneas de Montanha – Metodologia para uma Abordagem Conceptual em Arquitectura na Covilhã


Paisagens Urbanas Contemporâneas de Montanha – Metodologia para uma Abordagem Conceptual em Arquitectura na Covilhã

Agradecimentos Aos professores João Sousa Morais, José Barros Gomes, Jean-Pierre Le Dantec e Yann Nussaume, pela orientação, amparo e confiança depositada no meu trabalho; Aos meus queridos Pais, sempre presentes; Aos meus familiares e amigos que seguiram de perto o percurso desta tese, sobretudo à Rita e à Mafalda; À Ana Puga e à Catarina Morais, pela generosidade e auxílio precioso na conclusão da tese; A todos os que ajudaram, com o seu contributo directo, ao desenvolvimento desta investigação, em particular aos arquitectos Bartolomeu Costa Cabral, Nuno Teotónio Pereira, Luis Cabral e Aurélio Galfetti; Os meus sinceros e muito reconhecidos agradecimentos.

Bem hajam!

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Resumos

português/francês/inglês

Palavras-chave: arquitectura / paisagem /cidades de montanha / Alpes / Chambéry / Merano / Bellinzona / Covilhã

Resumo Paisagens Urbanas Contemporâneas de Montanha. Metodologia para uma abordagem conceptual em arquitectura na Covilhã Esta investigação – cujas problemáticas são consideradas sob uma perspectiva qualitativa e cujos terrenos são analisados segundo uma metodologia baseada na percepção através dos sentidos – situa-se nos campos da arquitectura contemporânea e da paisagem consideradas como componentes da imagem da cidade. O contexto alpino, paradigma da montanha europeia, é analisado de maneira a contribuir para o estabelecimento de pistas para a constituição de uma médiance num contexto urbano português situado na montanha: a cidade da Covilhã, na Serra da Estrela. Os eixos de investigação sobre a realidade alpina centram-se em três aspectos principais: a influência do paradigma alpino no espaço europeu, a arquitectura alpina como construtora de paisagem, desde o Movimento Moderno, e as particularidades do contexto urbano alpino. Este último diz respeito à evolução da relação cidade-montanha e aos desafios e tendências actuais, observados a diferentes níveis, desde a escala das relações internacionais até à escala do troço de cidade. A esta escala mais reduzida, a arquitectura de novas intervenções, ao tomar em consideração a paisagem envolvente, poderá assumir um papel importante para a reconstrução de um genius loci entre cidade e montanha e para a competitividade de um meio urbano em território de montanha. Segundo esta perspectiva, são estudados e comparados três espaços em três cidades alpinas: o conjunto Curial em Chambéry, as novas termas de Merano et a reconversão do Castelgrande em Bellinzona. Da observação crítica destes três casos e do contexto urbano e arquitectónico da Covilhã, resulta a proposta de uma metodologia de aproximação ao local de implantação do antigo castelo desta cidade, metodologia esta centrada na paisagem, para a concretização de uma intervenção arquitectónica expressando a arte de um lugar entre cidade e montanha. Para mais, esta proposta considera ainda a importância da arquitectura como ícone no contexto actual de competitividade urbana.


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Mots clés: architecture / paysage / villes de montagne / Alpes / Chambéry / Merano / Bellinzone / Covilhã

Keywords: architecture / landscape / mountain cities / Alps / Chambéry /

Résumé

Abstract

Paysages urbains contemporains de montagne. Méthodologie pour une approche conceptuelle en architecture à Covilhã

Mountain Contemporary Urban Landscapes. Methodology for a Conceptual Approach in Architecture in Covilhã

Cette recherche − dont les problématiques sont considérées sous une perspective qualitative et dont les terrains sont analysés selon une méthodologie basée sur la perception par les sens − se situe dans les champs de l’architecture contemporaine et du paysage considérés comme des composants de l’image de la ville. Le contexte alpin, paradigme de la montagne européenne, est analysé de façon à contribuer à l’établissement de pistes pour la constitution d’une médiance dans un contexte urbain portugais en montagne: la ville de Covilhã, dans la Serra da Estrela. Les axes de recherche sur la réalité alpine se centrent sur trois aspects principaux: l’influence du paradigme alpin dans l’espace européen, l’architecture alpine comme constructrice de paysage, depuis le Mouvement Moderne, et les particularités du contexte urbain alpin. Ce dernier axe concerne l’évolution du rapport ville-montagne et les enjeux et tendances actuels, observés à différents niveaux, de l’échelle des relations internationales jusqu’à l’échelle du morceau de ville. A cette échelle plus réduite, l’architecture de nouvelles interventions, prenant en compte le paysage environnant, pourra assumer un rôle important pour la reconstruction d’un genius loci entre ville et montagne et pour la compétitivité du milieu urbain dans son territoire de montagne. Trois espaces dans trois villes alpines sont étudiés et comparés dans cette perspective: l’ensemble Curial à Chambéry, les nouveaux Thermes de Merano et la reconversion du Castelgrande à Bellinzone. De l’observation critique de ces trois cas et du contexte urbain et architectural de Covilhã, découle la proposition d’une méthodologie d’approche à l’emplacement de l’ancien château de cette ville, centrée sur le paysage, pour la réussite d’une intervention architecturale exprimant l’art d’un lieu entre ville et montagne. En outre, cette proposition prend aussi en compte l’importance de l’architecture comme icône dans le contexte actuel de compétitivité urbaine.

This research is positioned within the field of contemporary architecture and landscape as components of the image of the mountain city. Its issues are framed in a qualitative perspective and enquiry fields are analysed using a methodology based on perception by the senses. An analysis of the Alpine context - paradigm of the European mountain in every sense -, aims to provide clues leading to a médiance in a Portuguese mountain urban context: the city of Covilhã, in the Serra da Estrela. The research axis regarding Alpine reality focus on three main aspects: the influence of the Alpine paradigm in the European space, the Alpine architecture as landscape construction since the Modern Movement, and the specificities of the Alpine urban context. The latter concerns the evolution of the relation between city and mountain, and the current issues and trends, observed from different levels. These range from the scale of international relations to the scale of the localised urban fragment. On this smaller scale, the architecture of new interventions, while considering its surrounding landscape, can assume an important role both for the reconstruction of a genius loci between city and mountain, and for the competitiveness of the urban milieu in association with its territory. Three spaces in three Alpine cities have been studied and compared from this perspective: the Curial ensemble in Chambéry, the new Thermal Baths of Meran and the renewal of Castelgrande in Bellinzona. From the critical observation of those three case studies and of the urban and architectural context of Covilhã, ensues the proposition of a methodology to approach the site of the ancient castle of Covilhã, focused on landscape, aiming for a successful intervention which will express the art of a place between city and mountain. Moreover, this proposition considers also the importance of architecture as an icon in the current context of urban competitiveness.

Merano / Bellinzona / Covilhã


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Índice

INTRODUÇÃO 1.Justificação da importância do estudo 2.Objectivos e hipóteses 3.Âmbito disciplinar 4.Objecto empírico e delimitações territoriais 5.Revisão de literatura. Estado da arte 6.Estrutura da tese

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METODOLOGIA PARTE I – O CONTEXTO 1.Montanha, paisagem, arquitectura, cidade 2.Os Alpes e a descoberta da montanha europeia 2.1.Os Alpes. Mito e paisagem 2.2.Difusão do paradigma alpino através da Europa 2.3.Representação da montanha portuguesa. Influenciada pelo paradigma alpino? 3.Arquitectura na paisagem Alpina 3.1.O Movimento Moderno entre tradição e paisagem 3.2.Dinâmicas de renovação recentes na arquitectura alpina 4.Arquitectura moderna e contemporânea na Serra da Estrela 5.Parte I. Conclusão – Uma arquitectura singular para um novo mito alpino PARTE II – OS CASOS DE ESTUDO ALPINOS 1.Contexto urbano alpino 1.1.A cidade na montanha. A montanha na cidade 1.2.Cidades alpinas. Panorama geral 1.3.Apropriação do paradigma alpino em assentamentos urbanos. Tendências 1.4.Síntese conclusiva – Para um novo paradigma urbanomontanhesco

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2.Três cidades alpinas 2.1.Chambéry – França. Procura de afirmação num contexto centralizado 2.2.Merano – Itália. Herança austríaca numa cidade italiana 2.3.Bellinzona – Suíça. Sensibilidades mediterrânicas num cantão suíço 2.4.Síntese conclusiva – Três modos contemporâneos de integração cidade-montanha 3.Três intervenções de referência 3.1.Conjunto Curial – Chambéry (Mario Botta, Aurelio Galfetti) 3.2.Termas Merano – Merano (Zillich & Baumann, Matteo Thun, Müller & Wehberg) 3.3.Reconversão do Castelgrande – Bellinzona (Aurelio Galfetti) 3.4.Síntese conclusiva – À procura da arte do lugar 4.Parte II. Conclusão – Para uma médiance na cidade de montanha PARTE III – A COVILHÃ 1.Covilhã, cidade histórica de montanha. Semelhanças com as cidades alpinas? 1.1.Registos literários e pictóricos 1.2.Evolução urbana da cidade e da sua relação com a montanha 1.3.Importância actual da montanha 1.4.Projectos recentes de referência 1.5.Síntese conclusiva – Possibilidades para a reinvenção de uma cidade de montanha 2.Síntese analítica. Proposta de abordagem conceptual a um lugar na Covilhã 2.1.O sítio. Evolução e descrição

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2.2.Projectos recentes para o local 2.3.A imagem do sítio. Uma leitura in situ 2.4.Passos para a expressão da arte do lugar 2.5.Síntese conclusiva – A arte do lugar e o espírito do tempo 3.Parte III. Conclusão – Para uma nova paisagem na Covilhã

CONCLUSÕES FINAIS 100

BIBLIOGRAFIA E FONTES

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ÍNDICE DE FIGURAS ANEXOS A.Cidades alpinas intermédias ou grandes. Quadros gerais B.Cidades pré-seleccionadas. Fichas C.As quatro cidades estudadas. Documentos urbanísticos D.Os quatro espaços observados. Registos de uma análise in situ E. Résumé en Français

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Abreviaturas

A ADS ANMP ARE ASSH ASSN CAI CAUE CEP CERTU CIPRA CMC CNRS CoReTi COTRAO CPS CTVA DGOTDU DIREN DRAC EFUA ENSAG ENSAPLV ESDP F EFUA GEA GPA I ICNB

Áustria Archives départementales de Savoie Associação Nacional de Municípios Portugueses Office fédéral du développement territorial Académie suisse des sciences humaines et sociales Académie suisse des sciences naturelles Club Alpino Italiano Conseils d’architecture, d’urbanisme et de l’environnement Convenção Europeia da Paisagem Centre d’études sur les réseaux, les transports, l’urbanisme et les constructions publiques Commission internationale pour la protection des Alpes Câmara Municipal da Covilhã Centre national de la recherche scientifique Associazione Comuni e Regione di Montagna Tecinesi Communauté de travail des alpes occidentales Conception “Paysage suisse” Communauté de travail des villes des Alpes Direcção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano Direction régionale de l’environnement Direction régionale des affaires culturelles European Functional Urban Area École nationale supérieure d’architecture de Grenoble École nationale supérieure d’architecture de Paris − La Villette European Spacial Development Perspective França European Functional Urban Areas Associazione dei Geografi (Suíça Italiana) Grupo Planeamentoe e Arquitectura Itália Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade


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ICAS IGE IFA IGA IGE IHRU INRA INSEE IPC ISTAT KKL KUB LAT LIM LPN OCDE OeAV OFEV OTIA PDM PGU PLU PME POPNSE PP PPC PR PUC REK RESALP

Commission interacadémique Recherche alpine en Suisse Instituto Geográfico do Exército Institut français d’architecture Institut de geographie alpine Instituto Geográfico do Exército Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana Institut national de recherche agronomique Institut national de statistique et des études économiques Instituto Politécnico da Covilhã Istituto nazionale di statistica Kultur- und Kongresszentrum Kunsthaus Bregenz Loi sur l’aménagement du territoire Loi sur l’aide en matière d’investissements dans les régions de montagne Loi sur la protection de la nature et du paysage Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico Oesterreichischer Alpenverein Office fédéral de l’environnement Ordine Ingegneri e Architetti del Cantone Ticino Plano Director Municipal Plano Geral de Urbanização Plans Local d’Urbanisme Plan municipal d’environnement O Plano de Ordenamento do Parque Natural da Serra da Estrela Piano del Paesaggio Piano Paesaggistico Comunale Piano Regolatore Piano Urbanistico Comunale Räumliches Entwicklungskonzept Réseau d’information et de documentation sur la montagne alpine

S SALVAR SCOT SOIA UNCEM URCAUE VAI WSL WWF ZAC ZAD ZPPAUP

Suíça Società Azionaria Lavorazione Acque Radioactive Schéma de cohérence territoriale Sistema de Observação e de Informação dos Alpes Unione Nazionale Comuni Comunità Enti Montani Union régionale des Conseils d’architecture, d’urbanisme et de l’environnement Vorarlberger Architektuinstitut Institut fédéral de recherches sur la forêt, la neige et le paysage World Wide Fund for Nature Zone d’aménagement concerté Zones d’aménagement différé Zone de protection du patrimoine architectural, urbain et paysager

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Introdução A indignação perante a paisagem descaracterizada da cidade da Covilhã constituiu o factor decisivo para a escolha da problemática desta tese. No âmbito da arquitectura como disciplina, e considerando-se a obra arquitectónica e urbana no diálogo com o contexto paisagístico, buscam-se abordagens ao “construir com sentido de lugar” num território singular que é o urbano-montanhesco. A investigação partiu portanto de uma impressão pessoal, apreendida inicialmente por via da experiência sensível de uma paisagem, do ponto de vista de um sujeito com formação em arquitectura. Pareceu por isso natural explorar o potencial de uma abordagem baseada na observação directa e qualitativa do objecto, na busca da compreensão daquela realidade paisagística, tanto mais que as intervenções recentes naquele território revelavam quase sempre uma total insensibilidade ao genius loci (ou espírito do lugar)(1).

1_Justificação da importância do estudo Como já referimos, o ponto de partida para o presente estudo foi a constatação do estado da paisagem urbana covilhanense. Desta constatação decorreu inevitavelmente a necessidade de compreender esta realidade, para de seguida se poder prestar algum contributo no sentido de inverter a tendência para a sua degradação. Assim sendo, talvez a principal justificação do estudo seja o seu possível efeito de despertar a consciência e a acção colectiva, contra esta propensão para a deterioração da paisagem urbana na Covilhã e território envolvente que, cremos, não é irreversível. Os contributos da presente dissertação para que tal aconteça apresentam-se sob diferentes formas. Em primeiro lugar, expressam-se através da reafirmação – RE-afirmação porque outros já alertaram para este facto(2) – do problema que constitui a relação deficiente da cidade com o seu território em termos de sustentabilidade. Tenta-se contribuir com novos elementos para a problematiza1.Para o conceito de genius loci, noção de origem romana, (também designado como “espírito do lugar“, “génie du lieu” em francês), tomamos a definição de Mouvance II – soixante-dix mots pour le paysage: Emoção que sentimos perante certos lugares, acompanhada da convicção de que são habitados de uma espécie de espírito [génie], estético e místico, que lhes pertenceriam em exclusivo” (“Émotion que nous éprouvons devant certains lieux, accompagnée de la conviction qu’ils sont habités d’une sorte de génie, esthétique e mystique, qui leur appartiendrai en propre.”). Estes espíritos do lugar têm um fundamento cultural : “se assombram os lugares é porque assombram os nossos olhares” (“s’ils hantent les lieux c’est parce qu’ils hantent nos regards”). Roger, Alain in AA.VV. (2006) p. 52. Norberg-Schulz nota ainda que a “intensidade do lugar” implícita no genius loci se manifesta quando espaço, forma e figura cooperam para aproximar a paisagem do homem. Norberg-Schulz, Christian (1997) p. 55.

ção deste facto, passando obrigatoriamente pela questão da paisagem – pois consideramos que a paisagem é o aspecto mais visível desta conjuntura e que poderá servir de veículo para operar uma transformação de fundo na consciência cívica e nas políticas urbanas locais. Identificam-se paralelamente as potencialidades da Covilhã em termos territoriais e patrimoniais, bem como intervenções e projectos recentes que valorizam e reinventam o espírito do lugar, podendo servir como estímulo e como exemplos de boas práticas. Depois, apresentam-se propostas concretas para a reinvenção do diálogo da Covilhã com o território em termos paisagísticos. Sugerem-se medidas a tomar pelas instituições locais relativamente a opções estratégicas e de planeamento urbano, designa-se uma zona histórica específica cuja reconversão poderia estabelecer-se como agregadora das comunidades locais e como elemento icónico e identitário da Covilhã e, finalmente, cria-se uma ferramenta metodológica de abordagem à concepção do objecto arquitectónico numa paisagem urbanomontanhesca. Do nosso ponto de vista, o estudo justifica-se ainda porque vai preencher uma lacuna, a nível nacional, no âmbito de investigações actuais centradas na relação das cidades de montanha com o seu território na área disciplinar da paisagem. Embora existam estudos incidindo sobre a paisagem da Serra da Estrela, estes ignoram as cidades médias aí existentes. O estudo Serra da Estrela. A não ser no âmbito da arquitectura sanatorial(3), não temos conhecimento de outros estudos que confrontem os Alpes com a Serra da Estrela (ou qualquer outro território de montanha em Portugal), considerando as dinâmicas urbanas e a produção arquitectónica razão pela qual o presente estudo contribui com uma nova abordagem a estas realidades, abrindo novas vias de aproximação à cidade de montanha portuguesa e à sua arquitectura. 2.Ver Parte III cap. 1. 3.Destaca-se o livro de André Tavares Arquitectura Antituberculose. Trocas e Tráficos na Construção Terapêutica entre Portugal e Suíça (Tavares, André (2005)) e a tese de mestrado O Sanatório da Covilhã : Arquitectura, Turismo e Saúde (Monteiro, Ana Helena Simões (2009)).


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2_Objectivos e hipóteses Neste contexto, definiu-se como propósito pragmático contribuir para o despertar de um novo olhar sobre o território Covilhã-Serra da Estrela e, consequentemente, potenciar uma transformação positiva na paisagem urbana covilhanense. Assim sendo, o objectivo central da presente dissertação é o de gerar uma metodo- logia de abordagem em arquitectura, num contexto urbano em território de montanha, centrada na relação da arquitectura com a paisagem, considerada elemento crucial do espírito do lugar. Para tal, definiram-se três interrogações principais a esclarecer ao longo da investigação, devendo as respostas a estas questões levar finalmente ao objectivo que nos propomos. Sabendo-se que o contexto contemporâneo de competitividade urbana é decisivo para as políticas urbanas adoptadas e que o marketing das cidades intermédias ou menores assenta frequentemente na atractividade do território em que se inserem e nas qualidades da paisagem, surgiu a primeira interrogação: Poderão as políticas urbanas de renovação e de marketing – de alguma maneira associáveis à montanha – interferir nas transformações da paisagem urbana no sentido de um reforço do espírito do lugar associado à paisagem de montanha? Paralelamente, interessava interpretar as duas realidades estudadas (as cidades intermédias alpinas e a Covilhã) de forma a destacar semelhanças ou diferenças. Para isso, procurou-se responder à dupla questão: Nestes processos de transformação urbana, que diferenças e semelhanças entre o contexto urbano alpino e a cidade da Covilhã? Que ensinamentos retirar da consolidada experiência alpina? Esclarecidas estas questões, estaremos finalmente em posição de clarificar a última interrogação, que nos levará naturalmente a elaborar um contributo metodológico para intervenções no espaço urbano-montanhesco da Covilhã: Como se poderá traduzir, num espaço urbano, o espírito do lugar associado à paisagem de montanha, através da formalização arquitectónica? 4.The term ‘phenomenology’ designates two things: a new kind of descriptive method which made a breakthrough in philosophy at the turn of the century, and an a priori science derived from it; a science which is intended to supply the basic instrument (Organon) for a rigorously scientific philosophy and, in its consequent application, to make possible a methodical reform of all the sciences. Husserl, Edmund (1927) 5. Ricoeur, Paul (1987) p. 183.

Passamos agora a enquadrar o âmbito disciplinar de desenvolvimento deste estudo, escolhido de forma a permitir encontrar respostas às questões colocadas.

3_Âmbito disciplinar As problemáticas levantadas pela relação entre formalização arquitectónica e pai- sagem num tipo de enquadramento territorial específico só poderiam ser tratadas conjugando diversas áreas disciplinares. Impôs-se portanto a interdisciplinaridade ou, mais precisamente, uma conjugação de disciplinas para uma abordagem estruturada por dois eixos: o primeiro convergindo para a leitura cruzada da paisagem e das formas urbana e arquitectónica; o segundo eixo centrado na compreensão dos contextos territoriais e culturais, implicando aspectos da geografia, da história, da arquitectura e das políticas territoriais que moldaram os espaços em questão. A nossa abordagem às obras estudadas e à paisagem situa-se no campo da fenomenologia. Esta abordagem admite a subjectividade como parte integrante do conhecimento da essência das coisas, negando a suficiência da ciência cartesiana quantificável e racionalista. Impõe-se uma postura científica em que razão e sensibilidade se conjugam, na reaprendizagem de um modo relacional homemterritório – perdido na era moderna e devendo ser retomado –, adaptado aos contextos actuais. Para enquadrar a nossa abordagem partimos da introdução à definição de fenomenologia, redigida para a Encyclopaedia Britannica em 1927 por Edmund Husserl(4), considerado por Ricoeur(5) o personagem nuclear na teorização desta ciência: O termo “fenomenologia” designa duas coisas: um novo tipo de método descritivo que foi uma descoberta na filosofia na viragem do século, e uma ciência apriorística dele derivada; uma ciência que é destinada a fornecer o instrumento básico (Organon) para uma filosofia rigorosamente científica e, na sua aplicação consequente, tornar possível uma reforma metodológica de todas as ciências. Não cabe no âmbito deste estudo desenvolver a problemática da fenomenolo-


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gia enquanto ciência. No entanto, importa-nos considerar o seu aspecto mais operativo como método(6) de abordagem ao real – no nosso caso, à paisagem, ao espaço urbano e à arquitectura. Isto porque, tal como Husserl observa, a fenomenologia aproxima-se, como método, da nossa maneira natural de pensar, propondo uma apreensão do mundo desprovida de preconceitos científicos, assente na observação da expressão dos fenómenos. A nossa abordagem, desde o início, baseia-se numa percepção sensível – apreendida através dos sentidos e das sensações – dos fenómenos do espaço, pretendendo-se precisamente abordar o espaço considerando a complementaridade entre racionalidade e sensação, duas componentes da nossa maneira natural de pensar. Merleau-Ponty retoma os ensinamentos de Husserl, adoptando uma “filosofia da ambiguidade” muito própria(7), desenvolvendo a partir daí a problemática da percepção fenomenológica do espaço. Na sua obra La phénoménologie de la perception(8) Merleau-Ponty propõe uma nova maneira de ver o mundo indissociável da condição do homem, do nível humano da existência: o vivermos no “entre-os-dois do non-sens e do absoluto”(9). Estabelece uma relação entre as ciências humanas, o método fenomenológico e o existencialismo, tornando o corpo lugar da “simbólica geral do mundo”(10). O espaço vivido é entendido como algo mais do que as relações espaciais entre objectos e o seu carácter geométrico. A experiência desse espaço implica um campo perceptivo, a ancoragem de um sujeito num meio e a inerência do sujeito ao mundo, sujeito este que interpreta o espaço segundo o seu passado. Esta espacialidade exclusiva de cada sujeito não é objectiva mas tem um sentido implícito não menos importante: “a reflexão não pode fechar-se no pensamento objectivo” que recusa os “fenómenos do sonho, do mito e, em geral, da existência, porque os acha impensáveis”. Até porque “o fenómeno mítico não é uma representação, mas uma verdadeira presença”(11). Também Heidegger foi discípulo de Husserl e seguidor dos seus princípios filosóficos. O texto O meu caminho na fenomenologia(12) comprova-o. Heidegger explica o percurso de aprendizagem do que seria a fenomenologia, através de determina-

das obras filosóficas, incluindo as de Husserl. Apresenta a dado momento o que conside- ramos ser uma definição sintética esclarecedora da fenomenologia como método: A fenomenologia conservava as “vivências da consciência” como o seu âmbito temático, mas dedicar-se-ia doravante à exploração, agora projectada de forma sistemática e segura, da estrutura dos actos vividos, tal como à exploração dos objectos vividos nos actos de consciência, do ponto de vista da sua objectualidade(13). Mais uma vez se validava a conjugação de objectividade e subjectividade no método fenomenológico. Paralelamente à apreensão fenomenológica do espaço, interessa-nos também a apreensão da sua dimensão poética, muito presente no texto de Heidegger Bâtir, Habiter, Penser,(14) que analisaremos na Parte I desta dissertação. Gaston Bachelard, como mais nenhum, vai celebrar a dimensão poética do espaço em La poétique de l’espace(15). Este epistemologista apresenta uma abordagem ao espaço, associando psicologia e filosofia, apoiando-se em referências literárias de uma forma criativa e inovadora, carregada de simbolismo e poesia, inaugurando uma nova perspectiva multidisciplinar na análise dos espaços, conjugando racionalidade e imaginação. Ainda na área da interpretação do espaço urbano e arquitectónico considerando uma dimensão poética, não esquecemos o contributo valioso prestado por Roland Barthes(16) ao abordar esta realidade do ponto de vista da semiologia(17). Encara a cidade como espaço significante e simbólico que dialoga connosco: A cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala aos seus habitantes, nós falamos a nossa cidade, a cidade onde nos encontramos, simplesmente enquanto habitante, percorrendo-a, olhando-a(18). Barthes afasta-se ainda de uma metodologia rígida para a aproximação a uma semiologia da cidade, entendendo que a melhor leitura semântica será feita através de “uma certa ingenuidade do leitor”(19), partindo de uma relação pessoal com a cidade, a acrescentar à interpretação feita por outros e constitu-

6. Para Ricoeur, a fenomenologia é um método mais do que uma doutrina. Idem p.184. Também para Norberg-Schulz a fenomenologia é antes de tudo um método, uma ciência da experiência imediata do mundo. Norberg-Schulz, Christian (1997) p. 29. 7. Ricoeur, Paul (1992) p. 159. 8. Merleau-Ponty, Maurice (1945). 9.“nous nous mouvons dans l’entre-deux du non-sens et de l’absolu”. Ricoeur, Paul (1992) pp. 158-159. 10.Idem p. 159. 11.“(…) la réflexion ne peut pas s’enfermer dans la pensée objective (...). (…) la pensée objective refuse les prétendus phénomènes du rêve, du mythe et, en général, de l’existence, parce qu’elle les trouve impensables(…)”. “(…) le phénomène mythique n’est pas une représentation, mais une véritable présence.” Merleau-

Ponty, Maurice (1945) pp. 332-343. 12.Heidegger, Martin (2009). 13.Idem pp. 6-7. 14.Heidegger, Martin (1984a). 15.Bachelard, Gaston (1992). 16.Barthes, Roland (1985b). 17.A semiologia pode definir-se sinteticamente como a ciência que estuda os signos em diferentes domínios. Recorremos à semiologia da significação segundo Barthes que, na interpretação dos objectos, decompõe o signo em significante e significado, sendo que o primeiro constitui o plano da expressão, a matéria, e o segundo constitui o plano do conteúdo, a representação psíquica. Barthes, Roland (1985a) pp. 36-46.


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indo assim o conjunto destas leituras uma “língua da cidade”. Destaca o papel importante que os escritores têm desempenhado nestas leituras, que poderão ser pontos de partida para estudos mais específicos, mas que nunca deverão tornar rígidos nem finitos os significados encontrados “porque a cidade é um poema”(20). A interpretação dos signos é também desenvolvida por Pascal Sanson(21) de forma exaustiva na análise de contextos urbanos. Roger Brunet(22) contribui por sua vez para uma percepção semiológica da paisagem, em que recusa a utilização de “signos” na interpretação das mesmas, adoptando antes “indícios”. A interpretação dos signos na paisagem constitui, sem dúvida, uma abordagem interessante, de que fazemos uso neste contexto. Simon Schama revela-o na sua obra cativante Landscape and memory(23). No entanto, como bem lembra François Walter(24), delimita uma aproximação incompleta ao objecto, devendo por isso ser conjugada com outros métodos de interpretação. Reforçando a importância de uma aproximação ao território no âmbito da experiência sensível, lembramos que investigadores de renome, de diferentes origens geográficas e formações científicas, defendem a necessidade deste tipo de aproximação. Entre eles Augustin Berque, Bernard Debarbieux, Claude Reichler, Michael Jakob, Christopher Tilley, John Brinckerhoff-Jackson e Denis Cosgrove(25). A importância da percepção através dos sentidos para além da visão, reco- nhecida na abordagem à paisagem de montanha, nomeadamente por Claude Reichler, também se manifesta inevitavelmente na percepção da paisagem urbana e do espaço arquitectónico. Importa no entanto fazer a distinção, enunciada por Arnauld Laffage, entre leitura e interpretação aquando da abordagem às paisagens(26). A leitura baseia-se na identificação de elementos concretos existentes no território. A interpretação da paisagem pode basear-se nesses mesmos elementos mas implica que lhes sejam atribuídos outros significados, significados esses pertencentes ao domínio do imaginário. Relevante é ainda o testemunho de François Walter(27), na defesa da fenomenologia como método de aproximação à paisagem, como meio de ultrapassar a aparente oposição entre “real” e “representação”. O autor evoca por sua

vez a abordagem de Augustin Berque(28) ao conceito de médiance – que retomaremos mais à frente –, ou seja, o sentido de relação entre a sociedade ou o indivíduo com o seu meio, que conjuga ecologia e simbolismo com físico e fenomenal. O valioso contributo de Berque é transversal à problemática desta investigação, estabelecendo uma ponte entre diferentes áreas disciplinares através dos conceitos por ele definidos – nomeadamente os conceitos de médiance e de écoumène(29) –, desempenhando a paisagem sempre um papel central. No contexto da arquitectura observada segundo uma perspectiva fenomenológica, destaca-se Christian Norberg-Schulz. Usando uma abordagem qualitativa e a fenomenologia como método de aproximação à arquitectura, defende que é “enquanto arte do lugar que a arquitectura pode contribuir para resolver a fractura entre pensamento e sentimento”(30). Em suma, não poderemos contar com a razão e a objectividade como instrumentos suficientes para o conhecimento das paisagens e para estruturar intervenções nas mesmas. O sentimento, a subjectividade e a intuição são inerentes à busca do conhecimento de espaços e lugares. Um certo grau de incerteza é uma constante, não anulando no entanto a importância de abordagens constituídas de dados quantitativos. Razão e sentimento deverão estar presentes na procura de conhecimento flexível e adaptável às sociedades e lugares de hoje, lugares estes variados nos tipos, em constante mutação, ocupados por seres humanos emotivos e comunidades heterogéneas, com interesses distintos. Salientamos que, dentro da área de estudo da paisagem, se impõe ainda neste caso a abordagem a duas temáticas distintas. Por um lado à paisagem urbana e por outro à paisagem de montanha. Paisagem, paisagem urbana e paisagem de montanha serão objecto de desenvolvimento enquanto instrumentos conceptuais no primeiro capítulo da Parte I, em confronto com o domínio da arquitectura. Se, no primeiro eixo de análise podemos designar como principais disciplinas a fenomenologia – como preponderante na definição de um método de análise dos espaços – e a paisagem e a arquitectura como os campos disciplinares gerais para o desenvolvimento de problemáticas, o segundo eixo de aproximação aos

18.La cité est un discours, et ce discours est véritablement un langage: la ville parle à ses habitants, nous parlons notre ville, la ville où nous nous trouvons, simplement en habitant, en la parcourant, en la regardant. Barthes, Roland (1985b) p. 265. 19. “(..) l’approche la meilleure, à mon avis, comme du reste pour toute entreprise sémantique, sera une certaine ingénuité du lecteur”. Idem p. 270. 20.Idem p. 271. 21.Sanson, Pascal (2007). 22.Brunet, Roger (1995). 23.Schama, Simon (1999). 24.Walter, François (2004) pp. 191-92.

25.Berque, Augustin (1990;1995, 2000, 2008), Debarbieux, Bernard (2005a), Reichler, Claude (2002), Jakob, Michael (2004a), Tilley, Christopher (1994), Brinckerhoff-Jackson John (1984), Cosgrove, Denis (1984). 26.Laffage, Arnauld in AA. VV. (2006) p. 61. 27.Walter, François (2004) p. 11. 28.Berque, Augustin (1990). 29.Para os conceitos de médiance e de écoumène, ver Parte I cap. 1. 30.“C’est en tant qu’art du lieu que l’architecture peut contribuer à résoudre la fracture entre pensée et sentiment”. Norberg-Schulz, Christian (1997) p. 20. Para a noção de “arte do lugar” ver Parte I cap. 1.


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objectos de estudo será orientado pela história e pela geografia, suportadas ainda pela abordagem a questões enquadráveis na sociologia urbana. O recurso à história foi necessário para compreendermos e contextualizarmos as realidades culturais e territoriais presentes, começando com a problemática do paradigma alpino e da sua difusão. Ainda no âmbito da história, impunha-se considerar a evolução das dinâmicas nos espaços de montanha, a percepção destes espaços nos diferentes períodos, bem como compreender a evolução das cidades em questão. Nesta abordagem diacrónica aos espaços, importava essencialmente aprofundar a evolução da relação destas com a montanha (tanto da cidade como do lugar específico da intervenção estudada). Os contributos de François Walter, Michael Jakob, Hervé Gumuchian e Bernard Debarbieux(31) serão dos mais relevantes para o enquadramento histórico no caso dos Alpes, não esquecendo também a informação recolhida acerca da evolução de cada um dos casos de estudo e, claro, acerca da Covilhã. Os estudos sobre a arquitectura alpina desde o período modernista não podiam deixar de ser considerados para o desenvolvimento da temática em causa. Sobretudo as obras designadas na revisão de literatura, relativamente à arquitectura e à montanha, foram as que serviram de base para compreendermos a evolução da afinidade da arquitectura de montanha com a paisagem, contribuindo para a contextualização da arquitectura alpina no âmbito desta problemática. Propositadamente, não aprofundámos a arquitectura tradicional das regiões em causa, cuja importância não negamos. Esta opção justifica-se por o presente estudo se centrar, repetimos, na relação da arquitectura com a paisagem num contexto urbano-montanhesco actual. O factor urbano e o paradigma hipermoder-no(32) não deverão ser negados, pelo que propomos que a “arte do lugar”(33) se expresse aqui pela reinvenção do genius loci, passando sobretudo por uma relação forte com a paisagem e evitando a folclorização da arquitectura tradicional(34). A contribuição de estudos nas áreas da geografia e sociologia urbanas revelou-

se importantíssima para o segundo eixo. Os artigos da Revue de géographie alpine e as publicações da CIPRA – em ambos os casos redigidos pelos mais conceituados investigadores da temática alpina – foram decisivos, bem como outros textos desses mesmos autores, destacando-se os de Bernard Debarbieux(35) centrados na questão da paisagem, os de Marie-Christine Fourny(36), focados na problemática da identidade alpina das cidades, os de Werner Bätzing(37), sobre a geografia urbana da área alpina. Para o território da Covilhã, observado do ponto de vista da geografia geral, Orlando Ribeiro constitui uma referência incontornável. A geografia é ainda a disciplina a partir da qual se desenvolve a nossa abordagem à paisagem(38) – lembramos que tanto Augustin Berque como Bernard Debarbieux, considerados autores centrais para este estudo, são geógrafos e têm prestado um valioso contributo na reconceptualização da paisagem no contexto de crise do paradigma actual(39). A geografia é ainda a disciplina que se conjuga com a sociologia quando tratamos de questões ligadas às identidades e às políticas territoriais. A abrangência da abordagem a essas políticas varia entre a escala europeia, nacional, regional e urbana, considerando-se sempre o contexto alpino ou a Covilhã inserida em território serrano.

31.Walter, François (2004, 2005), Jakob, Michael (2004 a, 2004b), Gumuchian, Hervé (1999), Debarbieux, Bernard (1999). 32.Para a justificação da escolha do termo “hiper-moderno”, ver Parte I cap.1. 33.Ver Parte I cap.1. 34.Álvaro Domingues nota que o revivalismo folclórico é “uma das piores vias de reconstrução de identidades. Domingues, Álvaro (2001) p. 63. 35.Debarbieux, Bernard (1998, 1999). 36.Fourny, Marie-Christine (1997, 2000, 2004a, 2004b). 37.Bätzing, Werner (1999). 38.Para uma abordagem panorâmica à indissociabilidade destas duas áreas, ver o texto Paisagem e geografia

de Salgueiro, Teresa Barata (2001). Para uma noção de como tem sido entendida a paisagem no âmbito da geografia, ver A Paisagem Revisitada de Domingues, Álvaro (2001). 39.Para uma perspectiva esclarecedora sobre esta crise de paradigma da paisagem no contexto da geografia, ver Domingues, Álvaro (2001). 40.Usamos o termo branding por não encontrarmos equivalente em língua portuguesa, considerando-se que implica a atribuição e divulgação de uma marca exclusiva, de uma imagem de marca, a algo. No âmbito deste estudo, interessa-nos este conceito aplicado às cidades e à arquitectura. Ver Klingmann, Anna (2007) para o desenvolvimento deste conceito associado aos espaços urbanos e à arquitectura.

4_Objecto empírico e delimitações territoriais Esta investigação desenvolve-se com base em dois territórios distintos e analisando os objectos empíricos a diferentes escalas de aproximação. As montanhas no contexto europeu são desde logo definidas à partida como área geográfica geral para o desenvolvimento do estudo. Dentro desta seleccionaram-se dois territórios de base para análise mais aprofundada: a Serra da Estrela como território do caso de referência e os Alpes como território dos casos de estudo. Certos fenómenos, relacionando a montanha com a sociedade de consumo e com novas experiências de uso do espaço (tais como as várias formas de turismo e o branding(40)), têm surgido inicialmente nos Alpes, propagando-se depois a outras regiões montanhosas europeias e não só, como veremos. As cidades de montanha

[1] [5, 6] [2]


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[1] Europa Carta de geografia física

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!

Legend

!

Augsburg

!

National border Perimeter Alpine Convention !

City

!

GERMANY

Freiburg

River !

Lake !

Glaciated area (> 3000 m)

Basel !

!

Zürich

Bern !

!

Luzern

!

!

Kempten

Salzburg

!

!

!

Lyon

!

AUST RIA

Vaduz

Thun

!

Lausanne

Bolzano

Villach !

!

Graz

!

Klagenfurt

!

!

Trento !

Chambéry

!

Novara

!

Bérgamo

Milano

Nova Gorica

Bréscia !

Verona

!

!

Kranj !

Ljubljana

SLOVENIA

! !

Maribor

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Genève

Annecy

!

!

Leoben

LIECHTENSTEIN

!

!

!

Wien

Bregenz

!

!

Linz

München

Innsbruck

S WI TZ E R LAN D !

!

Pádova ! Venézia

!

Rijeka

ITALY

FRANCE !

!

!

O

Bologna

Firenze

Scale: 1 : 3,300,000 0

25

50

Date: 100

SOIA RSA 2008

Overview map perimeter Alpine Convention

La Spézia

Nice

MONACO

(Report on the State of the Alps 2008)

Parma

Génova

!

!

!

150

[3] Alpes Carta com limites definidos pela Convenção Alpina

200 km

2008

Author:

Austria

Data source (base data): DEM (hillshade): SRTM (NASA 2000), modified by Zebisch, EURAC (2006); DEM (elevation classes, glaciated area): GTOPO30 (USGS 1996); Perimeter Alpine Convention: SABE (Vers. 1.1) & Ruffini, Streifeneder, Eiselt (2004), processed by Zebisch, EURAC (2006) based on EuroBoundaryMap (2004) and modified by ifuplan (2007) and Umweltbundesamt (2007); National Borders, Cities: EuroGlobalMap (EuroGeographics, 2004); Rivers & Lakes: CCM River and Catchment Database (European Commission - JRC, 2007)

Alpine Convention

Torino

2nd Report on the State of the Alps - Water

Marseille

Zagreb

Grenoble !

!

!

Trieste

[2] Alpes Carta de relevo

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[4] Alpes Carta com cidades dentro dos limites definidos pela Convenção Alpina


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[5] Portugal Carta de geografia física

[6] Serra da Estrela Carta de geografia física

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não constituem excepção à regra. Desta feita, a observação de alguns destes espaços urbanos alpinos, da relação com o seu meio, da maneira como evoluíram e continuam a mudar e os efeitos dessas mutações na sua sustentabilidade, podem facultar-nos pistas para orientar o desenvolvimento de outras áreas urbanas num meio deste tipo. Por esta razão, destacam-se para análise cidades contidas nestas duas áreas, nomeadamente as cidades intermédias históricas alpinas, dentro dos [3, limites definidos para os Alpes pela Convenção Alpina(41), e a cidade da Covilhã na 4] Serra da Estrela. Poderá colocar-se a questão: porquê a escolha desta convenção como orientação? Da mesma forma que a noção do que é “alpino” não é constante no tempo, a definição de “cidade alpina” tem sofrido mutações ao longo das épocas. E mesmo dentro de um determinado paradigma socioeconómico, esta noção pode variar(42). Perante esta realidade, adoptou-se a delimitação da Convenção Alpina, por constituir hoje em dia um instrumento aceite oficialmente pelas instituições políticas, organizações de variados tipos e grupos de investigação de diferente áreas(43). A atribuição anual do label “Cidade dos Alpes”, por esta mesma convenção, define como exigência para a elegibilidade a localização no interior deste perímetro. Muito embora se reconheça a existência de casos de cidades, exteriores a esta fronteira, com uma forte identificação com a montanha(44), a opção de delimitar a área geográfica e de escolher apenas casos “oficialmente” alpinos, permitirá um estudo mais objectivo e estruturado(45). A Covilhã é o único território português abordado no estudo, porque constitui o objecto de referência que originou a escolha da problemática tratada ao longo da tese; o caso sobre o qual se vai incidir com o auxílio da reflexão baseada noutros casos. A comparação com a realidade urbana alpina impôs-se simplesmente porque os Alpes constituem o paradigma da montanha europeia e, seguindo esta lógica, as suas cidades geram fenómenos que se vão reflectir em cidades de outros territórios de montanha europeus. Neste enquadramento são analisadas as cidades grandes e intermédias alpinas, 41.Convention Alpine (1991). 42.Perlik, Manfred et al (2001). Para a noção de cidade alpina, ver Parte II cap. 1. 43.Nomeadamente a União Europeia, signatária deste documento. O documento fundador da Convenção Alpina, redigido em 1991, entrou em vigor em 1995. Define os princípios das actividades da Convenção e designa as medidas gerais a tomar para um desenvolvimento sustentável desta região montanhosa. Convention Alpine (1991). 44.Turim, por exemplo apresenta este perfil sob diversos aspectos: a relação visual com os picos montanhosos, a existência de equipamentos culturais ligados à montanha, de centros de investigação relativos aos Alpes e até o acolhimento dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2006. O mesmo se poderá observar acerca de Milão. Ambroise, Sophie et al. (1999).

relativamente a determinados parâmetros, cuja escolha é explicada na parte deste documento referente à metodologia. Dessa análise decorre a selecção de cidades intermédias reunindo uma forte ligação à montanha com a mediatização de intervenções arquitectónicas recentes, com o intuito de levar ao decifrar da relação estabelecida entre a identificação das cidades com a montanha e as transformações da sua paisagem urbana em função da montanha como suporte físico e presença visível. As intervenções recentes destas cidades foram, por sua vez, objecto de uma análise de base documental ou de observação in situ quanto a uma relação clara com a paisagem envolvente, que permitiu filtrar os três projectos a aprofundar. A escolha de cidades intermédias e históricas prendeu-se com a sua comparabilidade com o caso da Covilhã, no contexto das temáticas em causa. Importava aqui escolher cidades que tivessem uma dimensão média ou importância económica, administrativa e funcional intermédia no sistema de cidades nacional ou europeu. Como demonstra Eduarda Marques da Costa(46), não parece possível encontrar uma definição de cidade média aplicável universalmente (devido a diferenças de critérios entre épocas, países, organizações e investigadores, desde logo na definição do conceito de de “cidade”). Também não se tratava aqui de definir um conceito complexo como este, mas sim de adoptar critérios razoáveis para a escolha dos casos de estudo. Optou-se então por seleccionar as características que permitiriam obter exemplos comparáveis entre si no que diz respeito a dimensões, variedade de actividades e tipo de fenómenos urbanos. Relativamente à dimensão designada para uma cidade média, as discrepâncias entre os diferentes países são significativas: em França, por exemplo, o número mínimo de 20 000 habitantes – ou por vezes 30 000 – é geralmente aceite, enquanto que em Itália este número salta para 50 000 habitantes – ou por vezes 100 000(47). Foram por isso considerados os limiares mínimo de 20 000 habitantes e máximo de 100 000 habitantes, de forma a restringir a análise prévia que permitiu posteriormente, deste conjunto, seleccionar casos com características comuns. Algumas excepções foram abertas para casos com menor número de habitantes mas com um papel administrativo superior ao concelhio 45.Perlick, Manfred et al. (2001) optaram, no seu estudo relativamente à urbanização alpina, por considerar a área perialpina. Esta opção faz sentido neste caso, visto serem consideradas as inter-relações urbanas. Já noutro texto de Bätzing (que também colaborou no estudo atrás referido), relativo à bibliografia sobre cidades alpinas, optou-se pela delimitação da Convenção Alpina. Bätzing, Werner (1999). No âmbito da presente dissertação, a análise centra-se no espaço municipal das cidades. 46.Costa, Eduarda Marques da (2000). 47.Idem, para mais detalhes sobre esta questão. 48.O conceito de cidade intermédia surgiu nos anos 80, estando associado a questões qualitativas e não à dimensão das cidades. Prende-se com as funções e sinergias desenvolvidas, implicando a sua participação em redes territoriais e um certo grau de inovação. Idem.


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(caso de Bellinzona, capital cantonal). Escolhemos por isso o termo “cidade intermédia”(48), julgado mais indicado. As cidades maiores – ou seja, com uma população superior a 100 000 habitantes – não foram consideradas para casos de estudo principais, visto terem já uma dimensão e características funcionais de um nível mais complexo, não se adequando à comparabilidade com uma cidade do tipo da Covilhã. Foi no entanto útil considerá-las numa análise prévia, visto concentrarem em si, frequentemente e com bastante visibilidade, actividades e equipamentos ligados à montanha, bem como a promoção de intervenções mediáticas como estratégia de competitividade no contexto da globalização. Definido o objecto empírico e as suas delimitações geográficas, a explicação do processo de selecção será desenvolvida quando tratarmos da metodologia de investigação. Vejamos por agora as obras mais significativas dos últimos vinte anos que sustentam as problemáticas abordadas.

5_Revisão de literatura. Estado da arte Apresentamos aqui os textos estudados, mais recentes e mais relevantes, apresentando pontos em comum com as questões abordadas nesta tese. Neste capítulo apenas são designados os documentos recentes, porque correspondem a abordagens coerentes com paradigmas epistemológicos actuais, aspecto importante para o modelo de análise adoptado nesta tese. Para situar a complementaridade entre eles e a presente investigação, agrupamo-los pelas principais temáticas que participam na construção das problemáticas do estudo. Outros textos mais antigos serão igualmente importantes, nomeadamente na construção da metodologia de análise dos sítios, sendo por isso referidos na parte intitulada “Metodologia.” – No campo da teorização de uma abordagem fenomenológico-sensível à paisagem adaptada ao paradigma contemporâneo marcado pela ecologia e pela procura de referências identitárias, Augustin Berque ocupa um lugar cimeiro. Designamos apenas duas das suas obras neste campo, consideradas mais significativas porque desenvolvem dois conceitos importantes para a presente in49.Berque, Augustin (1990). 50.Berque, Augustin (2000). 51.Berque, Augustin et al. (1994). 52.Pereira, Luz Valente (1996). 53.Grosjean, Michèle et al. (2001). 54.Panerai, Philippe et al. (2005). 55.Fortuna, Carlos (1999). 56.Sansot, Pierre (2004). 57.Norberg-Schulz, Christian (1997) 58.Rivas, Juan Luis de las (1992).

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vestigação: Médiance de milieux en paysages(49) e Ecoumène - Introduction à l’étude des milieux humains(50). A obra colectiva Cinq propositions pour une théorie du paysage(51), na qual Berque também participa, reúne nomes importantes na área da teoria da paisagem e da prática do paisagismo. Os autores propõem modos de interpretação das paisagens através da experiência e da observação in situ, sugerindo ainda vias para a intervenção nas mesmas. Para a construção de um método de leitura dos espaços urbanos estudados, três publicações tiveram um contributo essencial. A Leitura da Imagem de uma Área Urbana como Preparação para o Planeamento/Acção da sua Reabilitação(52), de Luz Valente Pereira, constitui um exemplo prático e útil relativamente à identificação dos aspectos a considerar na leitura in situ da imagem de uma área urbana. Também importantes na elaboração do método de leitura foram alguns textos contidos nos livros L´espace urbain en Méthodes(53), dirigido por Michèle Grosjean e Jean-Paul Thibaud e Analyse urbaine(54) de Philippe Panerai, que consideram a importância da interacção objecto/sujeito. Na linha da experiência sensível, Carlos Fortuna, lança um outro olhar sobre as paisagens culturais não só no campo do visível, mas num sentido mais amplo de atmosferas sensíveis, experimentadas através do corpo, em Identidades, percursos, paisagens culturais(55). Mas será sobretudo Pierre Sansot o inspirador para o método de leitura do espaço adoptado nesta tese. Com a obra Poétique de la ville(56) desenvolve uma abordagem ao objecto “cidade” com uma acentuada vertente poética e feno-menológica. É um método de interpretação dos lugares urbanos, a que chama “aproximação objectal”, que combina uma abordagem subjectiva com outra objectiva e que pressupõe o posicionamento do sujeito em relação com os outros. – Relativamente às problemáticas cruzando arquitectura, paisagem e lugar, um autor central no desenvolvimento da presente dissertação é sem dúvida Christian Norberg-Schulz. Destacamos L´Art du lieu – Architecture et paysage, permanence et mutations(57) como a sua obra mais relevante neste contexto,


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porque expõe a noção de “arte do lugar” expressa através da arquitectura. Juan Luis de las Rivas elabora uma aproximação do mesmo tipo, relacionando o lugar com a forma urbana, explicitada em El espacio como lugar – sobre la naturaleza de la forma urbana(58). Desenvolve o debate em torno do conceito de lugar associado à análise urbana e ao projecto urbano. Duas interessantes teses de Doutoramento em Arquitectura, muito recentes, debruçam-se sobre a obra arquitectónica na sua relação com o contexto físico onde se implanta, usando como objectos empíricos obras de arquitectura em território português. A de Maria Teresa Madeira da Silva, com o título O lugar arquitectónico: um modelo teórico de interpretação(59), centra-se na elaboração de um modelo de interpretação do lugar arquitectónico que ultrapassa o ponto de vista formal. Já a tese de João Paulo Cardielos – A construção de uma arquitectura da paisagem(60) – é suportada por um estudo aprofundado do conceito de paisagem para, depois, fundamentar a necessidade de ancorar o projecto arquitectónico numa visão abrangente de paisagem. Por último, no contexto destas problemáticas, consideramos ainda relevante e muito actual a visão de Anna Klingman(61) sobre o posicionamento da arquitectura perante os contextos urbanos da hipermodernidade, expressa numa obra intitulada Brandscapes. Architecture in the Experience Economy(62). A autora debruça-se sobre a emergência da arquitectura como imagem de marca, encontrando-se hoje intimamente ligada ao fenómeno de branding. Consequentemente, considera que a arquitectura actual deve integrar-se na sociedade do consumo e, sobretudo, na “sociedade da experiência”, dando resposta à procura de identidade das pessoas, comunidades e lugares, gerando uma “identidade sustentável”(63). – No âmbito da paisagem associada à montanha europeia, consideram-se algumas obras recentes que debatem esta problemática. Estas obras posicionamse deliberadamente num paradigma epistemológico contemporâneo, ou seja, analisam a problemática orientadas por um olhar crítico e consciente das diferenças de fundo entre as épocas tratadas e a contemporaneidade. Podemos distinguir dois grupos dentro desta temática.

No primeiro, encontramos análises críticas centradas na história da relação montanha-paisagem e no seu papel simbólico desde a Época Moderna. Incluem-se neste tipo três estudos interessantíssimos do ponto de vista do significado do paradigma alpino, relacionando-o com o valor simbólico da paisagem: Des monts et des mythes. L’imaginaire social de la montagne(64) de Jean-Paul Bozonnet e, já no nosso século, La découverte des Alpes et la question du paysage(65) de Claude Reichler e o texto La montagne alpine: un dispositif esthétique et idéologique à l’échelle de l’Europe(66), escrito por François Walter e publicado na Revue d’histoire moderne et contemporaine. Dois autores incontornáveis no âmbito da teoria da paisagem vão também deter-se na análise da importância da montanha para a formação da ideia de paisagem na modernidade: Augustin Berque em várias obras, das quais destacamos Les raisons du paysage – de la Chine antique aux environnements de synthèse(67) ; Alain Roger no seu Court traité du paysage(68) e também num texto intitulado Du “pays affreux” aux sublimes horreurs. Esta última referência foi publicada no livro Le paysage et la question du sublime(69), lançado no âmbito de uma exposição no Museu de Valence, que reuniu obras de pintura emblemáticas retratando paisagens de montanha. O livro contém outros textos de diferentes autores que debatem o papel da montanha na construção da categoria estética do sublime e na produção artística associada à montanha. No segundo grupo, situamos um texto refrencial de Bernard Debarbieux – Du paysage magnifié à l’empaysagement(70) – e um estudo do Laboratoire Architecture et Anthropologie (LAA) da ENSA Paris La Villette – Paysages imaginés et paysages construits. En-quête d’un imaginaire contemporain des Alpes(71). Tentam ambos deslindar as transformações recentes na paisagem no geral e, em particular na paisagem alpina, na perspectiva de novas relações do homem com essa nova paisagem. Bernard Debarbieux defende a tese de que nos encontramos actualmente perante uma mudança no tipo de relação homem/paisagem, residindo essencialmente em questões antropológicas e políticas. Para o demonstrar, e considerando os Alpes um laboratório experimental das problemáticas em torno da

59.Silva, Maria Teresa Madeira da (2008). 60.Cardielos, João Paulo (2009). 61.Klingmann, Anna (2007). 62.Idem. 63.Idem p. 3. 64.Bozonnet, Jean-Paul (1992). 65.Reichler, Claude (2002). 66.Walter, François (2005). 67.Berque, Augustin (1995). 68.Roger, Alain (1997a).

69.Saint Girons, Baldine, et al. (1997). 70.Debarbieux, Bernard (2005a). 71.Laboratoire Architecture et Anthropologie da ENSA Paris La Villette (2007).


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paisagem, desenvolve a sua teoria no âmbito do território de montanha. A abordagem do LAA vai mais longe. Assente nas mesmas convicções – a da mudança na relação homem/paisagem e a do papel central da paisagem de montanha neste fenómeno –, elabora um projecto interactivo de intervenção na paisagem alpina, com forte componente artística, pretendendo despertar as consciências para o novo paradigma, através da criatividade e do insólito como detonadores de emoções diversas. – Naturalmente foi necessária a leitura de monografias e outros textos sobre a arquitectura moderna e contemporânea dos países e regiões em que se inserem os casos de estudo, bem como sobre os autores das obras. Só assim poderíamos interpretar cada obra influenciada, entre outros factores, pelo contexto cultural, um dos aspectos essenciais na construção do lugar arquitectónico. Estas obras não são apresentadas nesta parte da tese devido à sua quantidade e especificidade. Expomos antes alguns estudos mais generalistas que nos permitem entender o contexto da produção arquitectónica alpina e sua relação com a paisagem de forma mais abrangente. Relativamente à arquitectura moderna, talvez o texto mais emblemático seja Quand les architectes modernes construisent en montagne(72), de Bruno Reichlin. O autor apresenta a evolução da arquitectura alpina desde o início da arquitectura moderna, sublinhando a sua procura de novos tipos de relação com a paisagem. Lyon-Caen dirige a publicação Montagnes: territoires d’inventions(73), associada a uma exposição itinerante com a mesma designação. Aqui apresenta-se a evolução da arquitectura europeia de montanha até à actualidade, insistindo-se no carácter experimental e criativo da produção arquitectónica neste território. A experimentação é igualmente destacada no livro Urbanisme et architecture contemporaine en pays de neige(74) de Denys Pradelle. Neste caso, são apresentados projectos realizados em montanhas de todo o mundo, para diferentes funções, ressaltando a originalidade e variedade dos mesmos. Duas obras em língua italiana prestam um contributo valioso para o aprofundamento das temáticas da arquitectura e da paisagem alpina como dois fenómenos

interdependentes, associados a questões relativas à organização do território alpino. São o recentíssimo livro Abitare molto in alto. Le Alpi e l’archittetura(75), de Luciano Bolzoni, e a obra colectiva Paesaggi in verticale. Storia, progetto e valorizzazione del patrimonio alpino(76). Estes dois livros podem ser complementadas por L’architecture alpine contemporaine(77), um texto importante de Michel Clivaz que elabora uma síntese do panorama actual da produção arquitectónica nas regiões alpinas. Terminamos com a referência a uma tese de Doutoramento intitulada Contribution de l’architecture à la définition du concept de montagnité(78), que foi apresentada pelo arquitecto e geógrafo Jean-Paul Brusson em 1993. O autor baseia-se em três casos de ocupações humanas no território alpino, de características muito diferentes, para indagar sobre a expressão, na arquitectura, de um carácter associável à montanha, ou seja, uma montagnité. – No quadro dos estudos sobre cidades alpinas são de salientar quatro publicações colectivas, reunindo textos dos mais importantes investigadores, sobretudo no âmbito da geografia, interessados nas cidades de montanha e, mais especificamente, nas cidades alpinas. Em 1999 surgiram dois números da publicação científica Revue de géographie alpine, editada pelo conceituado Institut de géographie alpine de Grenoble, sobre o papel e as dinâmicas das cidades alpinas. Os subtítulos das publicações tinham nomes sugestivos – Les enjeux de l´appartenance alpine dans la dynamique des villes(79) e L’avenir des villes des Alpes en Europe(80) –, e reflectiam o crescente interesse por esta temática. Cinco anos mais tarde, é a vez da publicação periódica sobre temáticas alpinas, L’Alpe, lançar um número intitulado La cité dans la montagne(81). Também aqui se reúnem contribuições de destacados investigadores em áreas como a geografia, a história e a arquitectura. A CIPRA (Commission Internationale pour la Protection des Alpes) organiza em 2005 a conferência Alpes, entre villes et campagnes – La responsabilité des villes des Alpes pour l’avenir de l’espace alpin, publicando mais tarde um livro(82) com as contribuições apresentadas. Emerge deste documento a tomada de consciência do papel central das cidades no desenvolvimento sustentável do

72.Reichlin, Bruno (1998). 73.Lyon-Caen, Jean-François (dir.) (2003). 74.Pradelle, Denys et al. (2002). 75.Bolzoni, Luciano (2009). 76.Callegari, Guido et al. (2006). 77.Clivaz, Michel (2006). 78.Brusson, Jean-Paul (1993). 79. AA. VV. (1999a). 80.AA. VV. (1999b). 81.AA. VV. (2004).

82.CIPRA (2007). 83.Hoyaux, André-Frédéric (2000).


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território alpino, reconhecido como um território urbanizado. Relevante para o nosso estudo é ainda a tese de Doutoramento de André-Frédéric Hoyaux – Habiter la ville et la montagne: essai de géographie phénomenologique sur les relations des habitants au lieu, à l’espace et au territoire (exemple de Grenoble et Chambéry)(83) –, tanto pela aproximação fenomenológica como pelo objecto em questão: a cidade e sua relação com a montanha. Todavia, esta investigação envereda por uma abordagem mais antro-pológica. Não podemos deixar de referir ainda o site Villes des Alpes de l’année (http:// www.villedesalpes.org/), como repositório de informação sobre o que define (ou o que deverá definir) uma “cidade alpina”. – Relativamente à Covilhã e ao seu desenvolvimento urbano e arquitectura, apenas identificamos quatro publicações recentes, consideradas centrais para a compreensão das dinâmicas implicando a relação da cidade e da sua arquitectura com o sítio, a paisagem e a montanha. A primeira é o livro Cidades médias e desenvolvimento. O Caso da Cidade da Covilhã(84), de Domingos M. Vaz, publicado em 2004 pela UBI. Resultado de uma investigação para Doutoramento em Sociologia, esta obra chama a atenção para problemas fundamentais da cidade, constituintes de entraves ao seu desenvolvimento sustentável, incluindo a forma como tem evoluído a urbanização e refere ainda aspectos relacionando a cidade com a montanha. No âmbito mais específico do urbanismo e da arquitectura, merecem destaque duas monografias, ambas editadas em 2005. Uma designa-se A Universidade e a Cidade – Universidade da Beira Interior. Covilhã. 1974-2004(85), onde se analisa em detalhe a obra exemplar de Bartolomeu Costa Cabral para a UBI. Enquadra no contexto do desenvolvimento urbano da cidade esta intervenção estendida no tempo, salientando o seu carácter excepcional relativamente à arquitectura das últimas décadas na Covilhã. A outra intitula-se Uma Ideia para a Cidade da Covilhã. Nuno Teotónio Pereira (86). Esta ideia constitui um marco porque lança um projecto de cidade visionário. Com o pretexto do Programa Polis, Teotónio Pereira identifica as carências estruturais daquele núcleo urbano e propõe soluções ousadas para a resolução 84.Vaz, Domingos M. (2004). 85.Cabral, Bartolomeu Costa et al. (2005). 86.Pereira, Teotónio et al. (2005). 87.AA.VV. (2009b).

de problemas funcionais e de circulação de fundo, explorando o potencial simbólico, ecológico e paisagístico da Covilhã. Muito recentemente, a revista Monumentos. Cidades, Património, Reabilitação dedicou um número à Covilhã, a que chamou Covilhã, a Cidade-Fábrica(87). Consta de uma compilação de textos, escritos por investigadores de diferentes áreas, focando diferentes aspectos do património construído e do desenvolvimento urbano da cidade desde a sua fundação até à actualidade.

6_Estrutura da tese O corpo da presente dissertação divide-se em três partes intituladas “O contexto”, “Os casos de estudo” e “A Covilhã”. Na Parte I (O contexto), expõem-se as sinergias entre os conceitos base da problemática geral num primeiro capítulo; o segundo capítulo refere-se ao contexto alpino e sua paisagem como paradigmas e suas influências noutros territórios de montanha europeus; o capítulo seguinte apresenta um panorama da arquitectura alpina desde os modernos; por último, no quarto capítulo, observam-se as obras de arquitectura moderna e contemporânea na Serra da Estrela. A Parte II trata dos casos de estudo, localizados em território alpino. Começa-se por analisar o contexto urbano alpino, primeiro numa perspectiva geral – onde se expõe a evolução da relação cidade-montanha e se apresenta uma aproximação à definição de cidade alpina – e depois numa perspectiva centrada em cada um dos países considerados (França, Itália, Áustria, Suíça). Num segundo capítulo, desenvolve-se a análise das três cidades alpinas escolhidas como casos de estudo – Chambéry (França), Merano (Itália) e Bellinzona (Suíça) – em duas vertentes: a sua relação com a montanha a diferentes níveis (artístico, paisagístico, histórico, formal, funcional e simbólico) e a sua postura perante intervenções urbanas recentes, identificando-se as mais mediáticas. No último capítulo é estudada uma obra recente em cada uma destas cidades – o conjunto Curial em Chambéry, as Termas em Merano, a reconversão do Castelgrande em Bellinzona. A análise centra-se, por um lado, na problematização da influência da paisagem e do sítio na sua concepção; por outro, no resultado final


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depois da obra acabada. Do cruzamento destas duas situações, decorrem ilações sobre modos de fazer arquitectura em contextos urbano-montanhescos. A Parte III vai finalmente abordar a realidade covilhanense. Analisa-se num primeiro capítulo a cidade segundo os mesmos parâmetros usados para o estudo das três cidades alpinas. Identificam-se igualmente as obras recentes mais significativas. No capítulo seguinte, elabora-se uma metodologia de abordagem para uma intervenção arquitectónica baseada nas problemáticas tratadas no decorrer da investigação. Para isso, analisa-se um local específico – a antiga zona do castelo da Covilhã –, segundo os mesmos critérios usados no estudo das obras alpinas, e depois propõe-se para o local escolhido a aplicação de uma metodologia de abordagem ao projecto como expressão da “arte do lugar” num contexto urbano-montanhesco. Ao longo de toda esta última parte, vão sendo estabelecidas comparações com a realidade alpina sob os vários aspectos problematizados nos capítulos anteriores. Para terminar, nas Conclusões finais traçam-se as linhas gerais de uma metodologia de aproximação à concepção arquitectónica nestes casos, dando-se também respostas às questões iniciais. Referem-se ainda outros contributos da presente dissertação e lançam-se pistas para novas investigações, emergindo das problemáticas abordadas.

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Metodologia O modelo de análise adoptado nesta tese situa-se no quadro de uma investigação predominantemente qualitativa, por as problemáticas abordadas serem indissociáveis do reflexo dos fenómenos urbanos na paisagem e da nossa percepção dessa mesma paisagem – aspectos que, como já vimos, implicam o qualitativo. Adoptou-se portanto uma abordagem qualitativa, centrada na observação dos fenómenos estudados em diferentes casos e fazendo uso de técnicas de investigação flexíveis. Mais precisamente, usou-se a metodologia do estudo de casos, tal como definida por Robert Yin(1). Considerou-se esta metodologia – que comporta a recolha de informação de documentos variados, entrevistas e observação directa – a mais adequada ao presente estudo, não só por se poder cruzar múltiplas técnicas de abordagem ao objecto, mas também porque a utilização de casos múltiplos validará de forma mais consistente os resultados obtidos. Para além da observação directa, central nesta investigação, também foi indispensável a recolha e análise crítica de documentos e dados pré-existentes diversos. Numa fase exploratória anterior à escolha dos casos de estudo, a análise de documentos de texto permitiu a construção de um corpo teórico baseado na definição de conceitos próprios operativos – discutidos na Parte I – e estabelecer um enquadramento da matéria de estudo no contexto alpino em termos de paradigma, do entendimento da paisagem, de expressões arquitectónicas e de dinâmicas urbanas. Também a realização de entrevistas informais a investigadores ou observadores privilegiados e de entrevistas semi-directivas a autores das obras de arquitectura estudadas foi essencial, tanto para a construção de um modelo de análise geral, como para desenvolver a abordagem aos objectos empíricos interpretados. Através do cruzamento da informação recolhida nestes diferentes tipos de 1.Yin, Robert (1994). 2.Para a introdução a uma comparação extra-europeia, quanto à urbanização nas montanhas (Alpes, Pirinéus, Andes e Himalaias), ver o estudo The Mountains in Urban Development:Introduction de Mathieu, Jon (2003). 3.Ville des Alpes de l’année: http://www.villedesalpes.org/

abordagem, desenvolveu-se a problemática geral de forma a dar resposta às questões iniciais. A escolha dos casos de estudo decorreu de uma contextualização prévia, realizada a partir da leitura de documentos relativos à problemática da montanha enquanto paisagem e espaço urbanizado. A investigação preparatória estabeleceu-se assim com base numa fase analítica, referenciada ao estado da arte, explorando-se e aprofundando-se conceitos e teorias existentes sobre as temáticas a abordar no contexto da tese. A escolha dos Alpes como área geográfica impôs-se, pois representam o paradigma da montanha, pelo menos na Europa(2), como já referido. A abordagem à realidade alpina permitiu ainda o distanciamento necessário relativamente a um contexto conhecido empiricamente e sobre ele elaborar um olhar conceptual. Algumas das cidades históricas alpinas foram então escolhidas como exemplos paradigmáticos e como contexto privilegiado para a observação dos fenómenos em causa. Este caminho levar-nos-á à clarificação do caso português. Num primeiro tempo, identificaram-se todas as cidades intermédias ou grandes alpinas – segundo os critérios já enunciados no capítulo 4 da Introdução. Interes- sava-nos sobretudo saber quais das cidades intermédias tinham um passado histórico, eram multifuncionais e revelavam uma forte ligação com a montanha. Impunha-se observar os fenómenos em causa num meio urbano que não consistisse num núcleo de criação recente, que não fosse monofuncional (exclusivamente dependente do turismo, por exemplo) e que tivesse uma população residente detentora de laços de identificação com o espaço. As premissas da CIPRA para a elegibilidade dos núcleos urbanos a “Cidade dos Alpes” orientaram a escolha de critérios relativos à avaliação da identificação com a montanha(3). Em simultâneo, as cidades deveriam apresentar uma tendência assinalável para


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a auto-promoção através de intervenções arquitectónicas contemporâneas. Com vista à identificação destas características – que tornariam os casos de estudo comparáveis com a Covilhã no âmbito do modelo de análise definido – cada cidade foi analisada quanto aos requisitos prévios que deveria cumprir numa pré-selecção, a saber: − ser uma cidade intermédia; − assumir uma vocação para a preservação e animação do património construído, sendo activa na sua reabilitação e divulgação; − caracterizar-se pela multifuncionalidade; − Pertencer a redes ou organizações a nível internacional, nacional ou regional ligadas à montanha; − apresentar acções de marketing urbano, actividades ou equipamentos associáveis à montanha; − incidir, na sua autopromoção, em novas intervenções arquitectónicas. Todas as cidades obedeciam aos dois primeiros critérios. Apenas se encontraram cidades que correspondessem a todos estes requisitos em França, Itália, Áustria e Suíça. Nenhuma das cidades intermédias alemãs ou eslovenas em território alpino revelou investimento significativo em operações de marketing centradas em intervenções arquitectónicas recentes. No Lichtenstein, único estado inteiramente situado nos Alpes, apenas encontramos cidades muito pequenas, (com menos de 6.000 habitantes). Inquiriu-se ainda sobre outros dois aspectos complementares: a existência de investigação científica sobre a montanha e de associações ou organizações ligadas à divulgação da arquitectura contemporânea. Sem carácter eliminatório, são contudo relevantes no reforço dos dois aspectos centrais a identificar (a identificação com a montanha e o investimento em intervenções arquitectónicas de qualidade). Os resultados, obtidos sobretudo através de uma pesquisa nos sites oficiais das cidades, regiões ou países, e na informação documental relativa ao turismo dispensada pelas mesmas entidades, encontram-se sintetizados em apêndice com a designação “Cidades alpinas intermédias ou grandes. Quadros gerais”. As cidades pré-seleccionandas foram seguidamente objecto de uma análise

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mais aprofundada, realizando-se um levantamento exaustivo das diversas formas de presença da montanha no seu espaço físico e simbólico. Esta informação aparece sistematizada no apêndice intitulado “Cidades pré-seleccionadas. Fichas”. Identificam-se eventos, equipamentos, participação em redes e organizações, tentando-se perceber de que forma são reveladores de políticas urbanas e de alguns aspectos do imaginário da cidade centrados na figura da montanha. Paralelamente, procede-se ao levantamento das intervenções arquitectónicas consideradas mais significativas ou mediáticas em cada uma destas cidades, apresentadas também nas mesmas fichas. Após a análise de informação sobre as cidades seleccionadas, que permitisse identificar o contexto geral de realização das intervenções recentes, visitaram-se as cidades e obras que, no seu conjunto, foram consideradas mais pertinentes como potenciais casos de estudo. Finalmente escolheram-se três casos de obras em contextos urbanos. Estes diferentes casos revelavam sólidas políticas urbanas incidindo sobre a competitividade das cidades ou regiões em que se inseriam e exibiam uma forte relação com a paisagem envolvente. Para além de se situarem cada um num país diferente, o contexto regional e cultural da cada um dos três casos envolve questões complexas e diferenciadas que os tornam muito abrangentes, se estudados no seu conjunto, através de comparações e confrontando resultados. Esta escolha considera simultaneamente os universos territoriais e culturais francês, italiano, austríaco e suíço: Chambéry será um caso claramente inserido no território e na cultura francesa; Merano situa-se numa região em território italiano mas fortemente influenciada pela cultura austríaca; Bellinzona é uma cidade da Suíça italiana. As questões territoriais e culturais vão reflectir-se sob vários aspectos nestas cidades (políticas urbanas, expressões arquitectónicas, …) e gerar contextos singulares, cuja variedade vai ajudar a encontrar as respostas às questões iniciais. A selecção da zona objecto de análise na cidade da Covilhã prendeu-se com outros aspectos. O espaço escolhido para propor estratégias de intervenção situa-se no centro histórico, coincidindo com a área correspondente ao antigo castelo. Este espaço quase totalmente devoluto encerra em si um forte poten-


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cial para a revitalização da zona histórica por diversas razões. Em primeiro lugar, a sua localização privilegiada como ponto elevado, dominando a encosta da cidade e todo o vale da Cova da Beira, permite vistas deslumbrantes sobre a paisagem. Destaca-se ainda o facto de se situar numa zona ligada à fundação da cidade, rica em memórias históricas de diferentes épocas, importantes para a identidade da cidade. Ocupa ainda um local de charneira entre a cidade consolidada e os espaços naturais da Serra. Por estas razões, o estado de degradação avançada dos conjuntos aqui construídos pede uma intervenção urgente e dignificadora, que poderá constituir uma referência simbólica de boas práticas na requalificação dos espaços urbanos covilhanenses. Como já referimos, as leituras de ordem fenomenológica e sensível da arquitectura e do espaço urbano em relação com a paisagem constituem o método de aproximação inicial aos objectos empíricos – as três intervenções seleccionadas em cidades alpinas e a área estudada na Covilhã. Este método apoia-se em diferentes autores. Relativamente à fundamentação teórica deste tipo de abordagem ao espaço, dois autores já referidos são incontornáveis: Merleau-Ponty(4), pela sua abordagem fenomenológica e Gaston Bachelard(5), pela sua visão poética do espaço. Nesta linha, Pierre Sansot(6), pela sua aproximação poética ao espaço e à cidade, estabelece-se como inspiração para o conhecimento da paisagem urbana através dos sentidos e dos sentimentos, enquanto que Michel Collot(7), ao sistematizar o processo de aproximação à paisagem, no âmbito da fenomenologia e da psicanálise, fornece pistas metodológicas relevantes. Mas é Roger Brunet(8) que, ao definir a paisagem objecto de análise simplesmente como “o que se vê”, vai fundamentar a nova abordagem. “O que se vê” é decomposto por Brunet em duas partes complementares: aquilo que existe pertencendo ao mundo real, independentemente de nós, podendo teoricamente ser objecto de uma análise objectiva, e aquilo que é vivido e sentido de maneiras diferentes pelos sujeitos, ou seja, a percepção da paisagem. Este autor lembra a necessidade de adaptar o método de análise à escala do objecto e de dar um valor relativo aos signos, cujas interpretações podem ser muito variadas. A

paisagem objecto de análise é entendida como um dos grupos constituintes do conjunto dos fenómenos espaciais, comportando um conjunto de indícios cujos significados devem ser procurados. A sistematização da observação de espaços urbanos, os instrumentos de análise sugeridos e a focalização na imagem e na paisagem apresentados através de casos concretos, constituiu a base para a elaboração de um método analítico de aproximação aos casos de estudo. Destacamos os estudos de Gordon Cullen, Kevin Lynch, Robert Ventury/Denise Scott Brow/Steven Izenour e Vittorio Gregotti(9), juntamente com os mais recentes de Allan Jacobs e Luz Valente Pereira(10). Tomando como referência o trabalho dos autores acima referidos, elaborou-se um método de análise adaptado aos objectos e aos objectivos deste estudo, idêntico para os três casos de estudo e para a zona do castelo, possibilitando a colocação em paralelo dos diferentes objectos de análise e tornando a sua comparação operativa. Este método de análise comporta diversas fases, por vezes intercaláveis. A primeira fase corresponde à observação directa da obra e da sua envolvente quanto à fisionomia, podendo subdividir-se nas seguintes componentes: − Primeira visita ao local (que é realizada sem se saber se constituirá um caso de estudo) – leitura do espaço, deambulação, período de impregnação, observação sensível (tomada de notas, de apontamentos gráficos, de fotografias). − Após a selecção do local, outras visitas ao local irão servir para determinar aspectos mais objectivos constituintes da imagem do lugar. A exploração de todo o espaço, mais registos escritos, gráficos e fotográficos e a interpretação da espacialidade da obra em relação com a paisagem. Os registos efectuados são organizados e sistematizados sob a forma de texto e de representações gráficas(11), de maneira a identificar-se as sinergias entre a paisagem e a obra construída, segundo parâmetros definidos: as características físicas do conjunto (adaptação à topografia, elementos dominantes, volumes e altimetrias, cheios-vazios, enfiamentos visuais e transparências, planos verticais-

4.Merleau-Ponty, Maurice (1945). 5.Bachelard, Gaston (1992). 6.Sansot, Pierre (2004) 7.Collot, Michel (1995). 8.Brunet, Roger (1995).

9.Cullen, Gordon (1988), Lynch, Kevin (1990, 1995), Venturi, Robert (1977)Gregotti, Vittorio (2001). 10.Jacobs, Allan B. (1982), Pereira, Luz Valente (1996). 11.Ver anexo D.


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-níveis de profundidade, materiais e sombra, luz e cor), as temporalidades (estações, condições climatéricas, o dia e a noite). Consideraram-se estas categorias por serem generalizáveis aos três casos de estudo e definidoras de aspectos decisivos na determinação das relações espaciais, formais e sensoriais contidas no triângulo paisagem-arquitectura-espaço urbano, determinação esta que constitui o cerne da interpretação destes espaços, com vista à elaboração de uma metodologia aplicável a uma intervenção na Covilhã. Intercalada com a observação directa das obras, encontramos a fase que corresponde à reunião de informação documental e iconográfica sobre as cidades em que as obras se encontram. A análise desses dados foi realizada com dois intuitos. Primeiro, o de identificar o tipo de ligação cidade-montanha existente em cada uma das cidades, o que foi averiguado com base nos registos literários e pictóricos ao longo dos tempos, na evolução urbana da cidade e da sua relação com a montanha e na importância actual da montanha. Segundo, o distinguir o tipo de realizações arquitectónicas recentes com projecção mediática. Numa outra fase, posterior à leitura das obras in situ, foi igualmente necessário recolher documentos textuais e iconográficos – bem como testemunhos – relativamente à história do local de implantação, ao contexto de concretização de cada projecto (antecedentes, objectivos políticos, processo de escolha dos autores, …) e aos autores (percurso profissional, influências culturais, figuras de referência, princípios teóricos, opções conceptuais e métodos de abordagem aos lugares de intervenção). A obra ficará assim enquadrada relativamente aos fenómenos que a moldam na sua relação com a paisagem. As técnicas de pesquisa foram diferentes, consoante os casos. Para Chambéry, por exemplo, não existiam publicações sobre o processo de concurso. Operou-se portanto uma pesquisa de arquivo mais exaustiva do que nos outros casos, sendo de seguida organizadas as fontes primárias não trabalhadas. Só então, cruzando a interpretação das informações recolhidas in situ com a matéria das fontes documentais e orais, foi possível proceder a uma análise crítica de cada obra, com vista a compreender o papel da paisagem, e mais especificamente, da paisagem de montanha, desde a concepção em projecto até

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à sua conclusão como construção, implicando a transformação dessa mesma paisagem. Arquitectura e paisagem são interpretadas à luz de um processo interactivo, levando ao aprofundamento e reestruturação das problemáticas e à elaboração de um método de abordagem ao projecto para uma intervenção na antiga zona do castelo da cidade da Covilhã. Para tal, aplicaram-se os mesmos critérios e parâmetros de análise utilizados nos casos de estudo, agora no local destinado a intervenção. Decorreu da conjugação desta interpretação do sítio com um estudo da cidade – seguindo igualmente os mesmos critérios usados nas cidades alpinas, mas aprofundando-se melhor alguns aspectos – a proposta final do método de abordagem àquele espaço, tendo em conta especificamente as já referidas inter-relações contidas no triângulo paisagem-arquitectura-espaço urbano, a influência da conjuntura da cidade neste projecto e uma análise do sítio, potenciadora do diálogo com a paisagem.


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Paisagens Urbanas Contemporâneas de Montanha - Metodologia para uma abordagem Conceptual à Arquitectura na Covilhã

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PARTE I

O contexto

Montanha, paisagem, arquitectura e cidade constituem realidades entrecruzadas no decorrer desta investigação. Por essa razão, começa-se por analisar o quadro conceptual em que se desenvolvem as sinergias entre elas. Através de uma perspectiva diacrónica, trata-se da dinâmica iniciada com a descoberta do mito alpino, inseparável da descoberta da paisagem de montanha, e continuada através da expressão arquitectónica, tendo o movimento moderno contribuído em larga escala para este fenómeno. Linguagens arquitectónicas de grande originalidade e carácter continuam a surgir ainda hoje em certas regiões do território alpino, expressando diferentes culturas e, consequentemente, diversos tipos de diálogo com o território e a paisagem de montanha em constante transformação. No entanto, persistem frequentemente nos indivíduos representações mentais de paisagens e arquitecturas idealizadas e ultrapassadas. O grau das repercussões destes processos noutros territórios europeus de montanha é variável, mas acabará por marcá-los, mesmo que tardiamente e de uma forma subtil, como no caso da Serra da Estrela. Nas páginas que se seguem clarificam-se conceitos, contextos e fenómenos que permitirão entender e identificar causas para a existência ou ausência de processos de elaboração de arquitecturas dialogantes com o meio montanhesco. Passam-se ainda em revista expressões singulares de arquitectura alpina em regiões de França, Itália, Áustria e Suíça e exemplos de arquitectura moderna e contemporânea dignos de nota na Serra da Estrela.


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1_Montanha, paisagem, arquitectura, cidade (...) a arquitectura “de montanha” ou “alpina”, pouco importa se dos modernos ou dos contemporâneos, é sobretudo uma hipótese de trabalho para a crítica arquitectónica e um estímulo cultural para o projecto(1). A frase acima transcrita, retirada do texto de Reichlin Quand les architectes modernes construisent en montagne, serve também de advertência para os leitores desta tese. Não se considera objectivo da mesma definir o que poderá ser entendido como “arquitectura alpina” ou “de montanha”. Nem tampouco dissertar acerca do conceito de regionalismo(2) ou derivados – regionalismo crítico, novo regionalismo – que alimenta o debate opondo modernidade e tradição(3). Será necessário, no entanto, compreender de que formas este meio e esta paisagem interagem com a concepção e construção de novos espaços, ou melhor, com a arquitectura e a composição urbana, na actualidade. Montanha, paisagem, arquitectura e cidade são componentes essenciais do tipo de lugar que abordamos, ou seja, são indissociáveis de um genius loci a partir do qual se poderá estabelecer a “arte do lugar”(4). O conceito de paisagem ocupa um lugar central nesta investigação, simultaneamente como objecto e como âmbito disciplinar. O objecto arquitectónico, em contexto urbano-montanhaesco vai ser considerado na articulação com a paisagem e dentro do seu âmbito disciplinar. No território de montanha, a paisagem assume um papel muito significativo, como iremos demonstrar mais adiante, tanto em termos genéricos (estéticos, simbólicos e identitários) como na sua influência na formalização arquitectónica. A figura da montanha – ainda antes da figura do mar –, desempenhou um papel central, no mundo ocidental, para [1] o nascimento de um conceito de paisagem próprio da modernidade(5). Pressupondo que a indissociabilidade dos conceitos de paisagem e de montanha ainda perdura, como poderá expressar-se hoje o signo da montanha nestas paisagens simultaneamente urbanas e montanhescas, sendo que a paisagem parece afastar-se cada vez mais das memórias e práticas sociais e de trabalho locais(6)? Para tentar dar resposta a esta questão, a paisagem de montanha será aqui con1.“(...) l’architecture “de montagne” ou “alpine”, des modernes ou des contemporains peu importe, est surtout une hypothèse de travail pour la critique architecturale et une stimulation culturelle pour le projet.” Reichlin, Bruno (1998) p. 24. 2.Vigato, na sua obra em que questiona a pertinência da postura regionalista na arquitectura, situa o seu nascimento no final do século XIX, fundando-se na convicção de que, para integrar as construções de forma harmoniosa numa região, se deve adoptar o estilo arquitectónico dessa mesma região. O autor defende a adopção de novas noções como o “sujeito topográfico” (“sujet topographique”) ou o “naturalismo modernista” em vez do “regionalismo crítico”, evitando-se tornar a pertença étnica ou da nacionalidade critérios de avaliação estética. Vigato, Jean-Claude (2008) p. 73. Sobre a noção de “regionalismo crítico”, ver Frampton, Kenneth (1992) pp. 314-327.

siderada como central na sua relação com a arquitectura, muito embora não se renegue a tectónica intrínseca à singularidade do objecto geográfico e icónico da montanha. A montanha… a que representações corresponderá esta palavra? O conceito apresenta variáveis de continente em continente, de região em região, de cultura em cultura, bem como consoante a perspectiva temática ou científica através da qual o objecto é observado. Têm-se verificado, apesar disso, algumas constantes transversais a diferentes culturas, como Debarbieux(7) bem observa, dando vários exemplos. Por todo o mundo, a montanha apresenta-se indiscutivelmente como um objecto que se diferencia topograficamente e paisagisticamente em relação ao lugar de onde é nomeado, contém frequentemente uma carga religiosa ou espiritual e é muitas vezes considerado um meio hostil e selvagem. Constata-se ainda uma diferenciação entre sociedades e habitantes da montanha e da planície (a atribuição de uma ou outra designação para um mesmo grupo pode diferir, segundo a perspectiva). Esta diferenciação social leva hoje, por vezes, ao renascer de práticas ancestrais e ao desenvolvimento de tudo o que tenha a ver com uma certa identidade montanhesca. Não podemos também esquecer a divulgação generalizada pelo globo da figura da montanha como lugar turístico, embora o turismo de montanha possa assumir formas muito variadas, desde a prática de desportos de Inverno até ao turismo religioso (8). Neste contexto, os Alpes persistem como re- presentantes do paradigma na generalidade das abordagens ao objecto “montanha”, no espaço europeu e mesmo por vezes fora deste, como teremos oportunidade de [1] Tempestade num vale alpino – Leonardo da Vinci, c. 1508-10 3.Lyon-Caen, Jean-François; Préau, Pierre in Pradelle, Denys et al. (2002) p. 7. 4.Norberg-Schulz, Christian (1997). 5.Roger, Alain (1997a, 1997b), Jakob, Michael (2004a), Debarbieux, Bernard (2005a). 6.Ver Debarbieux, Bernard (2005a). 7.Debarbieux, Bernard (2001). 8.Idem.


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observar mais à frente. Quanto à teorização actual do conceito de paisagem, constituem referências incontornáveis as obras de Augustin Berque e Alain Roger. Berque cruza a geografia com a fenomenologia na análise da paisagem como um produto cultural e dinâmico. Propõe a abordagem à paisagem como a componente visual da nossa relação com o ambiente envolvente e como uma das mediações possíveis dos indivíduos e das sociedades com o meio(9). Considera a paisagem hoje como um conceito operativo estreitamente ligado à emergência da fenomenologia e da ecologia como ciências que recusam o dua-lismo sujeito/objecto, introduzido pelo paradigma moderno, entendendo antes sujeito e objecto como as duas partes de um todo – a ecúmena (écoumène)(10) –, mutuamente influenciáveis. Alain Roger analisa a evolução do conceito “paisagem” de um ponto de vista cultural e reflecte sobre os debates em torno do mesmo(11). Menos holística, esta visão enquadra-se numa perspectiva “artializada” da paisagem, enraizada no conceito de paisagem exclusivamente como objecto estético e naturalizado defendido entre outros por Georg Simmel em Filosofia da Paisagem(12). Na nossa abordagem, distanciamo-nos desta visão por a considerarmos limitadora e ultrapassada. Vamos antes de encontro à definição de paisagem presente na Convenção Europeia da Paisagem (CEP)(13), considerada como um conceito implicando um ou vários sujeitos, englobando uma realidade territorial e material – ou uma representação desta –, apreendida pelos sentidos, incluindo, na sua interpretação, noções estéticas e imaginárias, assim como significações sociais e políticas, estabelecendo-se como geradora de sinergias e reflexo das realidades socioculturais do território(14). Actualmente, a paisagem estabelece-se como disciplina de análise e de intervenção no território, não podendo ser considerada apenas do ponto de vista da estética ou através de uma visão científica apoiada na geografia. Como instrumento operativo, terá que aglomerar diversas disciplinas, poderá ser considerada a diferentes escalas e será objecto de interpretações culturalmente construídas, considerando-se sempre como base a relação do homem (como indivíduo

ou comunidade) com o território. É uma noção polissémica e não desprovida de ambiguidades, originadora de discussões entre defensores de perspectivas diferentes sobre ela(15). Também polissémica é a reclamação de mais respeito pela paisagem que, apesar de muitas vezes vaga, permanece actualmente de forma indelével, dirigindo-se aos eleitos, aos interventores no território e aos seus utilizadores de uma forma geral(16). Perante esta nova conjuntura, Conan lembra a necessidade de encontrar novas maneiras de pensar as paisagens, para que a intervenção nas mesmas se enquadre nas exigências das sociedades contemporâneas em busca de símbolos identitários(17). É neste quadro que surge a afirmação da paisagem na construção de uma simbólica colectiva, crucial na afirmação de identidades. A paisagem poderá então estabelecer-se como lugar simbólico(18). A premência das questões ecológicas é outro fenómeno que tem motivado o renovar do interesse pela paisagem como conceito reconstruído no seio da geografia, enriquecendo e reformulando a própria geografia como ciência, como assinala Álvaro Domingues(19). Este geógrafo detecta mais razões para este ressurgimento, das quais destacamos: o resgatar do conceito de paisagem a áreas de onde nunca desapareceu (a história de arte, a estética, a literatura, a etnologia), a valorização das questões patrimoniais e a elaboração de instrumentos de protecção do património, a explosão da divulgação da “paisagem” em diferentes contextos culturais. Michael Jakob desenvolve este último aspecto na sua obra L’émergence du paysage(20). Reconhece que o fenómeno da paisagem tornada hoje um objecto generalizável não se verifica só na sua infiltração numa variedade de disciplinas mas aparece sobretudo, de uma forma transversal, no quotidiano de todos os estratos socioculturais, sob várias formas – basta pensar no seu uso sistemático em áreas tão diferentes como a indústria turística ou a arte – nomeadamente na popularidade crescente da Land-art. Se o conceito de paisagem, só por si, já se revela polémico e de definição complexa, o de “paisagem urbana” constitui frequentemente alvo de contestações, até mesmo relativamente ao reconhecimento da sua existência(21).

9.Por meio (milieu) entende-se uma entidade relacional de uma sociedade com o seu ambiente físico. Berque, Augustin (1994) pp. 26-30. 10.Ecúmena (a écoumène designada por Berque) é um termo derivado do grego antigo oikoumenê, usado em geografia desde a antiguidade, designando a parte da terra ocupada pela humanidade. Hoje, superado o espaço neutro cartesiano da modernidade, dá-se-lhe outro significado. A fenomenologia e a antropologia revelaram que o espaço dos humanos é feito de lugares onde a subjectividade está presente. A ecúmena é ambivalente: é dependente da existência humana e simultaneamente fundamenta-se nos sistemas físicos e ecológicos do planeta. Berque, Augustin in Lévy, Jacques et al. (2003) pp. 298-299. Em síntese, designa a “relação simultaneamente ecológica, técnica e simbólica com a extensão terrestre”. (“relation à la fois écologique, technique et symbolique de l’humanité à l’étendue terrestre”. Berque, Augustin (2000) p. 14.

11.Roger, Alain (1997a). 12.Simmel, Georg (1988). 13.Definição da CEP (Cap.1, Art. 1º): “’Paisagem’ designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da acção e da interacção de factores naturais e ou humanos.” Conseil de l’Europe (2000). 14.Ver Berque, Augustin (1995), Roger, Alain (1997a). 15.Debarbieux, Bernard (2005a). 16.Conan, Michel (1994) p. 33. O fenómeno de procura social da paisagem também é observado por Domingues, Álvaro (2001) 17.Conan, Michel (1994) pp. 33-34.


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Esta investigação adopta o conceito de paisagem urbana no campo da arquitectura e do urbanismo, enquanto noção referida às imagens sensoriais da cidade, como construção material e simbólica de máxima relevância no âmbito da prática da intervenção na cidade. O conceito de paisagem urbana entende a cidade segundo uma lógica da forma, inscrevendo-a numa perspectiva interpretativa de maneira que faça sentido para os que a habitam e a observam(22). A cidade é entendida ainda como sistema de significação polissémico, objecto de interpretações variáveis consoante os sujeitos(23). Apesar da génese da noção de paisagem como instrumento operativo na arquitectura, extrapolando a composição de jardins, ter surgido no século XVI(24), a noção consciente de paisagem urbana é mais recente. A origem da noção de paisagem urbana – que surge na literatura e na crítica de arte – encontra-se nas transformações urbanas do final do século XIX e início do século XX(25). A obra de 1889 Construção das Cidades Segundo seus Princípios Artísticos, de Camillo Sitte constitui um marco importante na mudança de percepção do espaço urbano no seio da urbanística, adoptando uma forte componente estética associada à imagem e à arte. No entanto, a percepção visual da cidade parece perder protagonismo depois das cidades jardim e durante algum tempo, retomando novo alento nos anos 60 do século XX(26) a partir de The Image of the City (A imagem da cidade)(27) de Kevin Lynch e de Townscape (Paisagem urbana)(28) de Gordon Cullen. Lynch define e sistematiza os elementos que considera importantes na imagem da cidade para a constituição de uma identidade urbana própria. Cullen enquadra-se numa observação do espaço urbano quase exclusivamente visual, baseada na experiência sensível dos lugares, no seu simbolismo e na percepção de uma estética urbana narrativa ligada ao pitoresco, mas também assente na morfologia e inter-relação dos espaços urbanos entendidos como sistemas complexos. É uma aproximação holística e predominantemente empírica do urbano, abarcando a dimensão crucial do sujeito(29). Pousin(30) designa ainda Learning from Las Vegas(31), de Venturi, Brown e Izenour como obra fundadora de um novo olhar sobre o urbano, interpretando, no campo da imagem da arquitectura, a representação das experiências urbanas. A

realidade imagética de Las Vegas é aí registada através de instrumentos variados de forma inovadora tal como no caso de Cullen. Ambas as obras desenvolvem técnicas de interpretação do urbano que têm como objectivo indicar métodos de intervenção nesse espaço(32). Desde as mudanças económico-sociais, operadas a partir dos anos 70(33), as paisagens urbanas de todo o mundo têm sofrido transformações significativas. Na Europa, e não só, as questões sociais, os interesses económicos e a competitividade entre áreas urbanas parecem constituir os principais motores destas transformações. Os sistemas urbanos reajustam-se às novas realidades, surgindo novos tipos de espaços urbanos como a Metapolis descrita por François Ascher(34) ou a Informational city de Manuel Castells(35). Em simultâneo, desenvolvem-se paisagens complexas, caracterizadas pela coexistência de espaços urbanos ditos tradicionais com novos tipos urbanos e arquitectónicos, por vezes comparadas a palimpsestos ou hipertextos(36). No contexto da globalização, equipamentos ligados à circulação, ao comércio, ao lazer, à cultura e ao turismo constituem hoje referências prioritárias na transformação das urbes ocidentais e da sua envolvente(37). A paisagem urbana contemporânea revela cada vez mais uma sociedade baseada no consumo e no lazer, de que já nos falava Baudrillard em 1970(38). Esta problemática tem vindo a complexificar-se à medida que os territórios urbanos sofrem transformações profundas, acompanhando rápidas mutações económicas, sociais e culturais. As transformações paisagísticas das cidades ligadas ao fenómeno do consumo têm vindo a ser objecto de estudo de investigadores como o já referido Venturi na área da arquitectura, mas também de outros em diferentes áreas(39). Tais temáticas remetem para várias obras referenciais na análise das novas relações território-arquitectura da contemporaneidade: Mutations(40), Territorios(41), Paysages en mouvement(42) e La ville franchisée(43) são algumas delas. Aqui se reconhece a existência de uma condição urbana actual em constante mutação, dominada por novos espaços do trânsito e do consumo, recreio e circulação. Desdobrados pelos media, num contexto urbano em que realidade

18.O lugar simbólico (haut-lieu) é aqui entendido como “Lugar que exprime simbolicamente, através das suas representações e dos seus usos, um sistema de valores colectivos ou uma ideologia” (“Lieu qui exprime symboliquement, au travers de ses représentations et de ses usages, un système de valeurs collectives ou une idéologie”) Debarbieux, Bernard in Lévy, Jacques et al. (2003) p. 448. Relativamente à paisagem entendida como lugar simbólico associada ao mito, ver ainda Gregotti, Vittorio (2001) pp. 65-66. 19.Domingues, Álvaro (2001). 20.Jakob, Michael (2004a). 21.Aubry, Pascal in AA.VV. (2006) pp. 79-80. 22.Sanson, Pascal (2007) p. 6. 23.Ibidem.

24.Gregotti, Vittorio (2001) p. 79. 25.Ver Berque, Augustin (1995), Pousin, Fréderic (2000), Pousin, Fréderic et al. (2007). 26.Panerai, Philippe et al. (2005). 27.Lynch, Kevin (1990). Publicado pela primeira vez em 1960. 28.Cullen, Gordon (1988). Publicado pela primeira vez em 1961. 29.Pousin, Frédéric (2000). 30.Idem. 31.Venturi, Robert et al. (1977). 32.Pousin, Frédéric (2000) p. 9. 33.Década reconhecida como a que marca a transição para um novo modo organizativo da sociedade, um


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física e imagem virtual se confundem, tais espaços destituídos de referências identitárias ou relacionais são apelidados por Marc Augé de “não-lugares”(44). Por vezes estes espaços criam universos paralelos de representação, imitações de modelos urbanos ou arquitectónicos, idealizados através da disneylização(45) ou da folclorização. Paralelamente, verifica-se também uma exposição forçada de realidades ultrapassadas. Este fenómeno constitui uma preocupação para Berque: “gelar as paisagens privaria o mundo de sentido não menos certamente que nelas deixando pulular formas anárquicas”(46). Estes fenómenos territoriais aparecem com características particulares em determinadas cidades de montanha europeias, onde a indústria turística pode exercer grande pressão na transformação paisagística. Ligadas ao forte simbolismo da paisagem e a situações geográficas e sociais particulares, estas cidades adoptam estratégias de promoção da sua imagem(47), associando-a frequentemente à qualidade de vida (pela comunhão com espaços naturais preservados) e ao imaginário paisa- gístico da montanha. No caso das cidades alpinas, as referências à qualidade de vida, à ecologia e ao património (que inclui a montanha) tornam-se particularmente presentes no discurso político relativo às transformações urbanas. Nesse sentido, verifica-se uma clara tendência para integrar no espaço urbano equipamentos culturais, de lazer e desportivos, associáveis de alguma forma à montanha, como tere- mos oportunidade de ver na Parte II desta tese. Da generalidade dos estudos sobre as realidades urbanas contemporâneas ressalta a sua associação a uma sociedade composta de indivíduos, grupos e comunidades heterogéneos, apoiados sobre os valores da imagem, da competitividade e do consumo. Perante esta realidade e o falhanço de vários modelos, cada vez mais especialistas dos fenómenos urbanos defendem uma abordagem no âmbito da paisagem, como forma de compreender e ultrapassar uma eventual crise dos ambientes(48). Sendo que a abordagem paisagística conjuga uma série de disciplinas relativas ao território, muito para além das motivações estéticas, a paisagem é reconhecida como uma referência identitária forte e como um instrumento através do qual se podem estabelecer vínculos sociais. A requalificação

paisagística tornou-se “um meio para o político retrabalhar o que há de comum entre indivíduos heterogéneos”(49). Nesta conjuntura, relembramos que a noção de paisagem tem vindo a ganhar uma importância renovada, como resultado da inquietação gerada pelas rápidas transformações territoriais associadas à perda de carácter dos lugares. A preocupação com o esvaziamento da identidade dos lugares é claramente expressa por Walter e Norberg-Schulz(50). O primeiro refere-se sobretudo às paisagens identitárias. Norberg-Schulz valoriza principalmente a relação da arquitectura com o lugar, da mesma forma que Vigato(51). Inevitavelmente, associada às noções de paisagem e de paisagem urbana estará a noção de lugar, embora sejam conceitos diferentes, como observa Walter: o lugar é específico; a paisagem é genérica(52). No entanto, tal como a paisagem, o lugar não deverá ser considerado como algo estático mas como uma entidade multifacetada e cambiante – “Os lugares são de natureza intertextual porque compostos eles mesmos de textos vários e de práticas discursivas baseadas noutros textos anteriores”(53) –, que deve ser abordada de um ponto de vista qualitativo e fenomenológico (entre outros). Juan Luis de las Rivas, no seu estudo El espacio como lugar – sobre la natureza de la forma urbana(54), explora o papel da ideia de lugar na compreensão e no projecto do espaço urbano através de uma perspectiva diacrónica. Baseia a sua problemática na análise da evolução desta relação desde o Movimento Moderno até aos anos 90 e o retorno à “forma do lugar”, passando obviamente pela teorização do conceito de lugar partindo da arquitectura. Para Norberg-Schulz(55) está no lugar a chave de uma arquitectura e de cidades que dêem sentido aos espaços em que vivemos. Através da captação do genius loci, a arquitectura poderia expressar a arte do lugar, contribuindo para sarar a fractura entre racionalidade e sentimento, herdada do paradigma cartesiano, e para inverter a crescente perda de sentido das paisagens urbanas contemporâneas. Está implícita na abordagem que faz ao lugar a carga identitária que contém e que o distingue do espaço. Nas palavras de Yi-Fu Tuan, “o que à partida é um espaço qualquer torna-se um lugar desde o momento em que o conhecemos melhor e

novo paradigma económico-social a nível mundial, marcado pelo globalização da economia, pelo enfraquecimento do controle dos governos nacionais sobre a economia, pelo investimento nos serviços, por uma revolução tecnológica, pela flexibilidade laboral e descentralização produtiva, paralelamente à centralização de determinadas funções, em que as metrópoles ocupam um lugar dominante. Sobre este novo paradigma, destacam-se os estudos de Castells, Manuel (1996), Harvey, David (1992), Borja, Jordi et al (1997), Sassen, Saskia (2000), Ascher, François (1995, 2005), Veltz, Pierre (1996). 34.Ascher, François (1995). 35.Castells, Manuel (1996). 36.Corboz, André et al. (2001), Conan, Michel (1992). 37.Ver, entre outros, Augé, Marc (1992), Corboz, André et al. (2001), Ascher, François (1995), Borja, Jordi et

al. (1997). 38.Ver La société de consommation - ses mythes, ses structures. Baudrillard, Jean (2005). 39.Venturi, Robert et al. (1977), Kostof, Spiro (1992), Harvey, David (1992), Zukin, Sharon (1996). 40.Koohlaas, Rem et al. (2000). 41.Solà-Morales, Ignasi de (2002). 42.Desportes, Marc (2005). 43.Mangin, David (2004). 44.Augé, Marc (1992). 45.Para uma abordagem detalhada ao conceito de disneylização ver Klingmann, Anna (2007). 46.“Geler les paysages priverait le monde de sens non moins sûrement que d’y laisser foisonner des formes


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2_Os Alpes e a descoberta da montanha europeia A montanha é uma forma de relevo saliente caracterizada por altitudes, formas e volumes que são objecto de convenções variáveis consoante os contextos(1). 2.1 Os Alpes. Mito e paisagem Quando os primeiros raios de Sol douram as pontas dos rochedos, e que um dos seus olhares dissipa as brumas, descobre-se de uma montanha, com um prazer sempre renovado, o espectáculo mais soberbo da natureza. O teatro de um mundo inteiro aí se apresenta num instante através dos vapores transparentes de uma nuvem ligeira: a permanência imensa de vários povos descobre-se simultaneamente, uma agradável confusão força-nos a fechar os olhos, demasiado fracos para percorrerem um círculo sem limites que se estende sob os nossos pés.(2) Os Alpes estabelecem, pelo menos a partir do século XVIII, o paradigma da MONTANHA, o símbolo e a génese do conceito de “paisagem de montanha” e um arquétipo da categoria estética do sublime, inventada por uma sociedade urbana(3). É nesta época, rica em transformações sociais, que Reichler situa o nascimento do “mito alpestre” ou mito alpino, consequência de uma ansiedade generalizada perante as mudanças e da ilusão da redescoberta, nos Alpes, da “idade de ouro” – tão antiga como a origem do homem. Tal mito desenvolveu-se mais especificamente a partir dos Alpes suíços e consistia na crença que este território e esta sociedade encarnavam o imaginário da origem idílica(4). Bastante antes disso, em 1336, Petrarca redige A Ascensão do Monte Ventoux (5), texto basilar descrevendo a escalada deste pico alpino e as impressões sentidas pelo autor no seu topo. Será considerado por muitos como a primeira descrição de uma paisagem – mesmo se persistem dúvidas sobre a veracidade do acontecimento(6). Augustin Berque associa a descoberta dos Alpes, de um ponto de vista estético e científico, à modernidade. Como acontecimento simbólico refere a “conquista”

do Monte Aiguille por Antoine de Ville em 1492, sob as ordens de Carlos VIII. De Ville, na sua descrição do lugar, exprime duas noções essenciais da modernidade: a mensurabilidade e a apreciação da beleza. Salienta-se que a descoberta da montanha é simultaneamente de ordem estética, científica e moral(7). Figuras relevantes, de âmbito cultural ou científico, contribuíram para gerar a atracção pelos Alpes sob diferentes aspectos, seja através de representações literárias ou pictóricas, seja por via de trabalhos científicos. Montaigne foi um dos primeiros a descrever várias paisagens alpinas, no final do século XVI, através dos seus relatos de viagens. É manifesto o deslumbramento pela paisagem de montanha e o interesse pelos costumes locais(8). Albrecht von Haller, célebre autor suíço do poema Os Alpes escrito em 1729, ficou para a história como dos que mais contribuiu para a popularidade dos Alpes, tendo sido pioneiro simultaneamente no papel de escritor e de homem de ciência interessado por estas montanhas. Outras duas referências incontestáveis surgem no mesmo século: os escritos de Jean-Jacques Rousseau et Horace-Bénédict de Saussure. O primeiro, grande inspirador dos Românticos, revela-se o precursor da descoberta dos Alpes como paisagem associada a um meio preservado dos males da sociedade urbana. O seu Romance Julie ou la nouvelle Héloïse(9) tornar-se-á em grande medida responsável pelo encantamento dos Românticos por estas montanhas. Quanto a Saussure, conseguiu associar um olhar sensível perante a beleza da montanha a uma visão científica e etnológica. A sua obra Voyages dans les Alpes(10) estabelece-se então como um texto encorajador da exploração do território alpino. Quanto aos modelos de representação pictórica, destacam-se aqui alguns incontornáveis como os Alpes de Caspar Wolf – que passa pelo seu inventor na pintura, reproduzindo-os com emoção e rigor. Mais tarde, os desenhos e pinturas de Joseph Mallord William Turner e de John Ruskin destacam-se pela originalidade e expressão dramática, associadas ao espírito romântico, expressando o fascínio característico do sublime. No contexto do romantismo, Carpar David Friedrich vai deixar-nos uma das obras mais emblemáticas deste período, onde a paisagem de montanha assume uma forte carga simbólica.

1.La montagne est une forme de relief saillante caractérisée par des altitudes, des formes et des volumes qui font l’objet de conventions variables selon les contextes. Debarbieux, Bernard in Lévy, Jacques et al. (2003) p. 642. 2.Quand les premiers rayons du soleil dorent les pointes des rochers, et qu’un de ses regards dissipe les brouillards, on découvre d’une montagne, avec un plaisir toujours nouveau, le spectacle le plus superbe de la nature. Le théâtre d’un monde entier s’y présente dans un instant au travers des vapeurs transparentes d’un nuage léger: le séjour immense de plusieurs peuples se découvre à la fois, une agréable confusion nous force à fermer les yeux, trop faibles pour parcourir un cercle sans bornes qui s’étend sous nos pieds. Extracto de Les Alpes de Albert von Haller in Le Dantec, Jean-Pierre (1996) p. 158. 3.Berque, Augustin (1995) p. 119, Burgard, Chrystèle et al. (1997), Donadieu, Pierre et al. (2007) p. 12. É de

notar que a figura da montanha aparece por vezes como metáfora por excelência desta categoria, sendo que a categoria estética do “sublime” contém em si a conotação de elevação. 4.Reichler, Claude (2002) p. 10. 5.Petraca in Ritter, Jaochim et al. (1997) pp. 36-56. 6.Jakob, Michael (2004), Schama, Simon (1999) p. 478. 7.Berque, Augustin (1995) p. 117. François Walter e outros apresentam a invenção da paisagem como um fenómeno ligado à modernidade, apoiando-se em exemplos de representações pictóricas da época. Delort, Robert et al. (2001) p. 90, Walter, François (2004) p. 152. 8.Montaigne, Michel de (1774). 9.Rousseau, Jean-Jacques (1761).

[1] [2] [3, 4] [5]


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[1] Vista de Bänisegg sobre o glaciar inferior de Grindelwald no vale de Grindwald Caspar Wolf, 1774 [3] Alpine Peaks – John Ruskin, c. 1846

[2] The Passage of Mount Cenis – Joseph M. William Turner, 1820 [4] The Aiguille Blaitière – John Ruskin. c. 1856

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Por seu lado, os desenhos de Eugène Viollet-Le-Duc sobressaem pelo rigor [6] científico associado à sensibilidade estética. As telas e fotografias de Gabriel [7, Loppé ficarão para a história pelo realismo e majestade que emanam – a fo8] tografia, no início da sua história, terá um papel fundamental na divulgação da

alta montanha, até então desconhecida do grande público. No início do século XX, Jean Grand-Carteret publica uma notável antologia sobre o papel da montanha ao longo da história, reforçando a importância da figura montanha inserida no paradigma cultural da modernidade(11). Também Paul Vidal de la Blache, fundador dos Annales de Géographie e renovador da geografia francesa, vai estudar exaustivamente algumas regiões montanhosas, centrando-se na paisagem, observada de um ponto de vista objectivo, e na geografia humana(12). Raoul Blanchard, algumas décadas mais tarde, virá revolucionar a visão da montanha, associando geografia, economia e política nas suas descrições do meio alpino(13). Ao abordar a história da paisagem alpina, torna-se imprescindível referir ainda nomes como Jean-Paul Bozonnet, que se interessou pelo imaginário social da montanha e suas diferentes representações(14); Simon Schama e a sua obra sobre a percepção e representação da paisagem, onde dedica uma parte significativa à montanha(15); Alain Roger e Augustin Berque, que desenvolvem a temática da paisagem de montanha como objecto fundador de uma sensibilidade paisagística moderna(16). Recentemente, Claude Reichler desenvolve este assunto na sua obra La découverte des Alpes et la question du paysage(17), defendendo a tese de que os viajantes do século XVIII teriam já a intuição de que a paisagem dos Alpes constituía uma médiance, no sentido que Augustin Berque lhe dá: o de uma relação ecológica, cultural e individual com a paisagem(18). Segundo Reichler, a teoria desta paisagem “absoluta” – associando os dados naturais, culturais e individuais para compor um “lugar total” entre a natureza alpina, os homens que aí habitam e aqueles que a admiram – pode ser hoje elaborada com os instrumentos gerados por Berque. A tripla dimensão da paisagem alpina polissensorial permitiria enunciar uma base analítica para todas as paisagens: Reichler relembra 10.Saussure, Horace-Bénédict de (2002). 11.Grand-Carteret, John (1903-1904). 12.Blache, Paul Vidal de la (1903). 13.Blanchard, Raoul (1952, 1956, 1958). 14.Bozonnet, Jean-Paul (1992). 15.Schama, Simon (1999). 16.Roger, Alain (1997) pp. 83-117, Berque, Augustin (1995) pp. 117-123. 17.Reichler, Claude (2002). 18.“este complexo orientado simultaneamente subjectivo e objectivo, físico e fenomenal, ecológico e simbólico a que chamo médiance”. (“ce complexe orienté à la fois subjectif et objectif, physique et phénoménal,

[5] Der Wanderer über dem Nebelmeer – Caspar David Friedrich, 1818


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que a realidade social, cultural e individual da paisagem continua a ser, no meio alpino, de extrema importância, actualmente por razões ecológicas, socioculturais e psicológicas, como modo de resistência aos desgastes múltiplos provocados pela sociedade contemporânea. Reichler não é o único a defender a importância da paisagem alpina como plataforma para uma nova relação do homem com o seu meio em transformação. Debarbieux dá-nos uma pista para o desbloqueio do impasse em torno da percepção da paisagem contemporânea, através do papel importante dos Alpes nesse campo. Não pela “ressurreição nostálgica e cosmética desse tipo de paisagem sobre os despojos das nossas territorialidades passadas”(19), mas de uma forma alternativa. Ele explica que, ao descrever a experiência da paisagem alpina, Victor Hugo a define como monstruosa, caótica e louca(20), porque a sua sensibilidade estética não estaria preparada para sentir coerência neste tipo de paisagem, assim como nós hoje não encontramos coerência na heterogeneidade e complexidade das paisagens urbanas contemporâneas. Também Walter se questiona sobre a nossa capacidade de apreensão das paisagens de hoje, em constante mutação, por estarmos presos a códigos perceptivos rígidos, ancorados em referências passadas(21). Sintetizando: as representações tendem a fixar-se nas memórias, enquanto as paisagens reais se modificam, levando a um sentimento de não identificação com as mesmas. Um estudo do laboratório “Architecture et Anthropologie” (LAA) propõe uma aproximação inovadora ao espaço alpino na procura de uma resolução para esta crise. Seria veiculada através de intervenções artísticas na paisagem alpina, in situ e in visu como forma de surpreender, de acordar o sujeito para uma nova perspectiva da realidade(22). No passado, filósofos, artistas e geógrafos trabalharam para tornar a paisagem de alta montanha inteligível e espectacular de uma maneira moderna. Talvez agora o trabalho de compreensão das paisagens, à vista de um novo paradigma social e cultural, possa passar pela interpretação da paisagem urbano-montanhesca recente. Ainda para mais, sendo os habitantes dos Alpes maioritariamente urbanos, existe hoje uma imagem destas montanhas que se distingue [6] Glacier de Saleinoz, 15 juillet 1871 - Eugène Viollet-le-Duc [7] Crevasses sur la mer de glace – Gabriel Loppé, 1885

[8] Montagne, étude de ciel – Gabriel Loppé, c. 1890

écologique et symbolique, que j’appelle médiance”). Berque, Augustin (1990) p. 32. 19.“résurrection nostalgique et cosmétique de ce type de paysage sur la dépouille de nos territorialités passées”. Debarbieux, Bernard (2005) p. 13. 20.“ce ne sont plus des paysages, ce sont des aspects monstrueux. L’horizon est invraisemblable, la perspective est impossible: c’est un chaos d’exagérations absurdes et d’amoindrissements effrayants (..) le paysage est fou”. Victor Hugo in idem p. 13. 21.Walter, François (2006). 22.Laboratoire Architecture et Anthropologie (2007).


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gar que nos acolhe mas que este vai ser vivido de outra forma(17). Esta dualidade, remetendo para dois espaços de referência distintos – a montanha natural e rural versus a urbanidade confortável, moderna e lúdica – vai estampar-se na paisagem. Os novos chalets desenvolvem-se preferencialmente em altura – por razões económicas mas também por razões estéticas, seguindo o espírito do tempo —, opondo-se à horizontalidade predominante nas construções tradicionais locais. Destacam-se ainda na paisagem pelas cores vivas que os revestem, e os pormenores decorativos cuidados em contraste com a austeridade da arquitectura vernacular em pedra, criando um ambiente alegre e moderno. Os materiais artificiais conjugam-se com materiais tradicionais num mesmo edifício, onde os grandes vãos envidraçados e as varandas generosas em nada se assemelham às morfologias tradicionais(18). Megève renasce assim como cidade de vilegiatura, paisagem colorida e única pela sua originalidade, graças ao novo tipo arquitectónico moderno de Le Même, que fez escola. Também os sanatórios do arquitecto, concebidos em parceria com Pol Abraham, no planalto de Assy em Passy, constituem marcos da arquitectura mo[12] derna(192), hoje protegidos e objecto de reconversão. Na verdade a inovação formal introduzida pela arquitectura sanatorial teve origem na Suíça, nomeadamente nas construções de Leysin na primeira década do século XX, ao que se seguiram, até à Segunda Guerra, realizações do mesmo tipo noutras localizações alpinas, com uma evolução progressiva na expressão de uma linguagem arquitectónica moderna. Clivaz(19) considera mesmo que só a partir dos anos 90 se retomou uma criatividade comparável a esta época nos Alpes, impulsionada pelo prémio “Neues Bauen in den Alpen” e os “novos modernos” – temáticas de que trataremos mais adiante. Estes edifícios sanatoriais racionalistas, de dimensões consideráveis, organizados em comprimento, com as suas linhas puras e fachadas ritmadas por varandas voltadas ao sol, vieram impor-se como objectos isolados e transformar profundamente as antigas paisagens de pastagem. Lyon-Caen apelida-os mesmo de “paquetes das montanhas”(20), metáfora justificada pela sua semelhança com os grandes transatlânticos – o alinhamento de cabines/quartos, as salas de refeições, de leitura, de música e outros peque17.Ainsi, entre nature et culture, le chalet est investi d’une mission bien délicate. Il doit parler de la montagne et des citadins, rendre compte de la façon dont ils se représentent la montagne, de la façon dont ils veulent vivre la montagne, arborer certains signes de la ruralité locale, montrer que l’on salue le lieu qui nous accueille mais que l’on vient y vivre autrement. Brusson, Jean-Paul (1996) p. 45. 18.Idem pp. 48-49. 19.Union régionale CAUE Rhône-Alpes (2004); CAUE de Haute Savoie (2002). 20.Clivaz, Michel (2006) p. 1. Sobre o tema da arquitectura sanatorial na Suíça e em Portugal, ver Tavares, André (2005). 21.Lyon-Caen, Jean-François (dir.) (2003) p. 38.

[11] Chalet Rotschild. Megève, Alta Sabóia, Ródano-Alpes (F) – HenryJacques Le Même, 1920


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cios e montanhas são descritos como se de organismos vivos se tratassem, numa simbiose total da arquitectura não só com o meio envolvente mas com a própria vida. Montanha e cidade tornam-se uma entidade única. Ricamente ilustrada pela mão do autor, a influência deste documento será seminal tanto para o desenvolvimento da arquitectura expressionista como para o funcionalismo alemão de entre guerras. A sua marca aparece igualmente nalgumas construções recentes da arquitectura em vidro, como salientam Richards e Gilbert(13), incluindo edifícios de que falaremos mais adiante. A importância desta obra vai muito para além da arquitectura como representação da identidade de uma região: constitui uma prova da força inspiradora dos Alpes e do seu papel como laboratório experimental no campo da arquitectura como disciplina e como prática indissociável da paisagem e do lugar(14).

Contudo, a primeira cidade de desportos de Inverno concebida ex nihilo vai nascer nos Alpes italianos, na continuidade do trabalho de arquitectos que, embora tivessem como referência aspectos da arquitectura tradicional, projectaram villas alpinas, imbuídos cada vez mais de um forte espírito de modernidade. Gio Ponti será talvez o arquitecto italiano mais emblemática do início de uma abordagem moderna à montanha, não só revelada nas casas, mas sobretudo nas várias centrais eléctricas que desenhou para o território alpino e lhe vão imprimir uma marca de modernidade. Adopta uma abordagem inédita a estes edifícios como contentores emanando luz, afirmando-se na paisagem alpina materializados por formas depuradas e [13] volumes contrastantes com a paisagem pelo seu rigor geométrico(24). É graças à iniciativa da família Agnelli que, em 1931 se inicia a construção da estação de Sestriere, na província de Turim, materializada por uma arquitectura depurada e racionalista, imposta numa zona de “deserto alpino”(25). O

[12] Sanatório Martel de Janville, fachada Sul. Passy, Alta Sabóia, Ródano-Alpes (F) Henry-Jacques Le Même e Pol Abraham, 1937

[13] Central eléctrica di Prata. Sondrio, Lombardia (I) - Gio Ponti, 1950 [14] Sestriere, Piemonte (I) - Bonadé Bottino, 1932-34

22.Ibidem. 23.CAUE de Haute Savoie (2004). 24.Bolzoni, Luciano (2009) p. 47. 25.De Rossi, Antonio (2005) p. 34. Sobre a organização de Sestriere, ver Pace, Sergio (2006).


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empreendimento constitui um ponto de viragem nos modos de construir na (e a) montanha, do ponto de vista da imagem – estabelecendo-se as duas torres circulares do arquitecto Bonadé Bottino como fortes presenças na paisagem, [14] ícones da modernidade imposta à montanha. Vai-se mais além, ao determinar uma nova forma de pensar a arquitectura em diálogo com o território alpino: o objecto arquitectónico, reduzido à geometria pura, impondo-se em contraste com a paisagem natural. Igualmente inédita é toda a montagem de uma estratégia de planificação e de promoção do local. Esta obra integral – estando nas mãos de uma única entidade decisora, desde a escolha do local até à promoção da imagem, passando pela concepção espacial e a comercialização –, inaugurou um novo modo de gestão dos empreendimentos turísticos de montanha. Só mais tarde a França vai iniciar a construção em grande escala de várias cidades novas - as chamadas “estações em sítio virgem” –, segunda geração de estações, especificamente destinadas à prática de desportos de Inverno. Tal como no caso italiano, as estações francesas da Sabóia e da Alta Sabóia materializar-se-iam sob a forma de edifícios inovadores em múltiplos aspectos, numa época conhecida como “trente glorieuses”, correspondendo às três décadas entre o pós-guerra e a crise petrolífera dos anos 70. A arquitectura vanguardista vem responder à procura de modernidade e eficiência por parte de uma população de classe média crescente, saturada das dificuldades da guerra e sequiosa de progresso. A formação dos técnicos da École des Ponts permitiu então realizar estruturas arrojadas em áreas de alta montanha, dantes inabitáveis. Neste contexto, Courchevel 1850, de Denys Pradelle, Jean-Marc Legrand e Laurent Chappis, acabará por ser a primeira estação a ser construída, em 1946. Apoiadas pelas políticas e financiamentos estatais, concebidas como centros de lazer e desporto invernais, estas estruturas re- tomam a lógica funcional de Sestriere, aproximando pistas e residências. Courchevel – com edifícios hoje protegidos pelos Monumentos Históricos franceses (Monuments Historiques) –, terá sido, na altura da sua concepção, objecto de reflexão sobre a aldeia alpina, materializada por meio de uma arquitectura acompanhando a topografia, numa busca de co26.Union régionale CAUE Rhône-Alpes (2004). 27.Pradelle, Denys et al. (2002) p. 28. 28.Lyon-Caen, Jean François (2008).

munhão com a paisagem(26). [15, Segue-se um outro tipo de estação: a estação integrada, (adoptada aquando da 16] implementação do Plan neige, entre 1965 e 1971 e assim chamada porque a sociedade encarregue do planeamento urbano se torna geralmente gestora do seu funcionamento)(27). Consta de um empreendimento em grande escala que pode ir até às dezenas de milhares de camas, concretizado através de uma arquitectura inovadora em termos técnicos e formais, dando resposta a programas complexos(28). Resultam conjuntos de aspecto por vezes insólito – como as construções brutalistas de Flaine, por Marcel Breuer, os enormes edifícios revestidos [17] a madeira e voltados às paisagens espectaculares de Avoriaz, por Jacques Labro, [18] ou as inovações ao nível urbanístico, arquitectónico e tipológico de Les Arcs, pelo trio Charlotte Perriand, Gaston Regairaz e Rey-Millet –, cuja alta densidade tenta [19] recriar um ambiente urbano, com torres, edifícios em banda ou em cascata, com a sua praça central, os seus caminhos pedonais, serviços públicos e comércio. Estes grandes volumes de construção não são geralmente concebidos tendo em conta um plano paisagístico geral. O objectivo principal é a comercialização, baseada na promoção privada clássica e na rentabilização máxima do investimento e dos terrenos. Apesar disso, os Alpes continuavam a gerar investigação e inovação na arquitectura, fosse nos tipos de módulos de habitação mínima ou dos novos cha[15] Courchevel 1850, pro [16] Courchevel 1850, vista geral. Sabóia, Ródano-Alpes jecto de ordenamento, (F) – Denys Pradelle, Jean-Marc Legrand e Laurent des. de Laurent Chappis. Chappis, 1946 Sabóia, Ródano-Alpes (F) – Denys Pradelle, JeanMarc Legrand e Laurent Chappis, 1946


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lets, fosse nos aspectos formais, funcionais ou estruturais. Na Itália alpina do pós-guerra constrói-se a uma escala menor. Um dos protagonistas deste período será Carlo Mollino, autor de edifícios com diferentes funções, todos notáveis pelo acento na fruição da paisagem, que Mollino explora através de grandes aberturas, varandas e suspensões sobre o vazio. Referimos apenas três exemplos significativos: a estação-albergue Slitovia del Lago Nero (Salice d’Uzio, 1946-47) – que Bolzoni compara com a Casa Settari no tipo de [20] relação com a paisagem(29) –, a Casa Lora Totino (Cervinia, 1946) e a Casa del Sole (Cervínia, 1955). Também Franco Albini, com uma postura mais marcadamente regionalista, deve ser lembrado, nomeadamente pelo albergue Pirovano, [21] em Breuil, onde conjuga tradição e modernidade com mestria(30). Nesta época, a Suíça verá nascer um novo tipo arquitectónico alpino para alojamento de vilegiatura: o “jumbo chalet”(31). Consta de uma mega-estrutura agarrada à encosta, sob um grande telhado, ampliação e adaptação do chalet tradicional suíço. Foi rara, na Suíça, a construção de grandes estações criadas do zero. Por um lado, porque já existiam desde há muito numerosos centros de desportos de Inverno, decorrentes da expansão de localidades antigas; por outro lado, não houve uma estratégia nem investimento estatal nesse sentido, ao contrário do caso francês. Crucial foi ainda a força dos movimentos ecologistas suíços, exercendo grande influência nos poderes de decisão(32). O espírito ecologista remete ainda para os acontecimentos na província austríaca do Vorarlberg. Este sítio viu nascer, nos anos 60, um movimento baseado em convicções ecológicas, estabelecendo-se como crítica e alternativa às políticas regionais. A repercussão deste movimento iniciado por um grupo de intelectuais foi enorme, durando as suas consequências até hoje, como veremos no capítulo sobre a arquitectura contemporânea. Hans Purin foi um dos pioneiros e mentor da geração seguinte de construtores do Vorarlberg. As suas primeiras obras constavam de pequenas casas económicas, geralmente em madeira com isolamento interior, de grande simplicidade e severidade(33). O conjunto habitacional Halde, em Bludenz, será provavelmente o seu trabalho mais revelador do novo espírito: este modelo exemplar de construção participativa consegue [17] Hotel “Le Flaine”. Flaine, Arâches, Alta Sabóia, Ródano-Alpes (F) Marcel Breuer, 1967

[18] Avoriaz, Alta Sabóia, Ródano-Alpes (F) – Jacques Labro e Jean-Jacques Orzoni, 1967

[19] Arcs 1600, Résidence La Cascade. Les Arcs, Sabóia, Ródano-Alpes (F) - Charlotte Perriand e Guy Rey-Millet, 1969

29.Bolzoni, Luciano (2009) p. 31. 30.Idem p. 120. 31.Clivaz, Michel (2006) p. 2. 32.Idem p. 4. 33.Kapfinger, Otto (dir.) (2003) p. 10.


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obter, com um investimento financeiro muito baixo, um grande nível de con[22] forto e um objecto moderno, integrado na paisagem.

A partir do final dos anos 70, a maioria das grandes estâncias francesas entra num período difícil, não só por causa da crise mas também devido à procura turística de outros ambientes, em detrimento dos grandes empreendimentos colectivos. Os aspectos ambientais e de preservação das características locais passam a ser palavra de ordem. O pastiche do chalet e da falsa aldeia tornam-se frequentes (assim como a expansão controlada da área construída na continuidade de povoações existentes). Clivaz refere duas obras controversas de Jean-Louis [23] Chanéac, já na entrada dos anos 90, como exemplos paradigmáticos: Val Village

– reestruturação da aldeia de Val-d’Isère – , e o hotel “Bateau Ivre”, obra assumidamente neo-regionalista em Courchevel. É o período da aldeia revisitada(34), também com repercussões na Suíça. Um exemplo suíço, interessante nesta linha, será a intervenção de Pierre Dorsaz, no Hameau de Verbier, em que a grande parte dos materiais tradicionais utilizados são reciclados a partir de construções da região. A vasta adesão a esta iniciativa reflecte uma cultura com forte consciência de salvaguarda patrimonial e de sustentabilidade, gerando uma na [20] Estação-albergue Slitovia del Lago Nero. Salice d’Ulzio, Piemonte (I), Carlo Molino, 1947

tendência apelidada de “Spirit of Verbier”(35). Este será um caminho possível, alternativo ao “espectro da “Disneylização” dos Alpes, tendo como corolário a perda progressiva do valor semântico/simbólico bem como do espaço arquitectónico.”(36) No início do século XXI, Clivaz afirma que a solução reside no “reencontrar, de maneira crítica, a cultura, a economia, o equilíbrio e a sustentabilidade do “chalet walser”(37). Dá como exemplo a experiência do hotel INTO em Zermatt (cantão do Valais, Suíça), liderada por Heinz Julen, que encarnou uma performance artística como reacção à sua destruição, permitida pelas autoridades. Procurou-se aqui [24] dar um novo sentido ao tipo do chalet local, através de uma abordagem assente

criatividade, na sustentabilidade e na cooperação e envolvimento directo dos diferentes actores, empenhados numa “estratégia de compromisso conjugando inovação e tradição, estética e funcionalidade”(38). Poderá, efectivamente, ser esta uma das respostas. Contudo, não será certamente a única, com poderemos constatar na diversidade de abordagens contemporâneas de qualidade que de seguida se analisam.

[21] Albergue Pirovano. Breuil, Cervinia, Vale d’Aosta (I) Franco Albini, 1949

34.Lyon-Caen, Jean-François (dir.) (2003), Clivaz, Michel (2006). 35. Clivaz, Michel (2006) p. 5. 36.Idem p. 8. 37.“retrouver, de manière critique, la culture, l’économie, l’équilibre et la durabilité du “chalet walser””. Ibidem. 38.Idem p. 8-9.

[22] Halde II. Bludenz, Vorarlberg (A) - Hans Purin, 1967


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3.2 Dinâmicas de renovação recentes na arquitectura alpina Esta fuga, fácil, de homens do nosso tempo para um passado expirado, provém, a maior parte do tempo, de uma consciência inexacta das condições reais de TEMPO, de LUGAR e de PROGRAMAS cracterísticas da obra autêntica situada AQUI e não ALGURES; da sua ÉPOCA e NÃO DE UMA OUTRA, e do seu PAPEL SOCIAL e CULTURAL ESPECÍFICO e não BANALIZADO(39). É já comum falar-se do fenómeno da banalização dos lugares e da procura desesperada de identidade que despoleta, originando frequentemente novas intervenções que são verdadeiros cenários montados de grande artificialidade. Pretendem por vezes reproduzir estilos locais – ultrapassados ou mesmo inventados – mas ainda assim, revelam uma desconexão flagrante com os modos de vida locais e actuais. Paralelamente, na cena arquitectónica alpina surgem diversos modelos de boas práticas, reagindo a esta pressão da sociedade global que vem uniformizando – ou levando à folclorização – a arquitectura e as paisagens. A inquietação sobre quais as arquitecturas desejáveis para o futuro dos Alpes tem-se revelado, nomeadamente na organização de colóquios internacionais, reunindo os especialistas na matéria desde finais dos anos 90(40), bem como no lançamento de publicações sobre a temática da arquitectura alpina, como Montagnes, territoires d’invention(41) – publicação associada também a uma exposição itinerante. As razões a apontar são múltiplas. Um certo isolamento da área alpina, em relação à rede internacional de metrópoles, poderá ter contribuído, por um lado, para a preservação de uma noção de identidade particular em certas regiões e, por outro, pode ter provocado uma luta criativa pela sobrevivência, contrariando o esquecimento a que poderia ficar votada. Acrescenta-se ainda um outro factor já referido: a vocação alpina para laboratório experimental, não constituindo excepção o domínio da arquitectura. Roman Hollenstein(42) lembra que, há pouco mais de vinte anos, se destacou internacionalmente a arquitectura do cantão suíço-italiano do Tessino. Mais tarde foi a vez da Áustria, através da arquitectura expressionista da Estíria e da arquitectura de madeira do Vorarlberg; da Suíça novamente com a simplicidade [23] Val Village. Val-d’Isère, Sabóia, Ródano-Alpes (F) - Jean-Louis Chanéac, 1989 [24] Hotel INTO. Zermatt, Valais (S) - Heinz Julen, 2000

39.Cette fuite, facile, d’hommes de notre temps dans un passé révolu, provient, la plupart du temps, d’une conscience inexacte des conditions réelles de TEMPS, de LIEU et de PROGRAMMES particuliers à l’œuvre authentique située LÀ et pas AILLEURS; de son ÉPOQUE et NON D’UNE AUTRE, et de son RÔLE SOCIAL et CULTUREL SPÉCIFIQUE et non BANALISÉ. Pradelle, Denys et al. (2002) p. 17. 40.Clivaz, Michel (2006) p. 7. Sion em 1999; Genebra, Grenoble, Sierre e Turim em 2001; Sierre, Kandersteg, Elm e Courchevel em 2002; Chambéry, Passy, Zermatt, Bergamo e Aosta em 2004. 41.Lyon-Caen, Jean-François (dir.) (2003). 42.Hollenstein, Roman (2006) p. 44.


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francês, em detrimento dos governos ou das organizações cívicas locais, gerando assim alguma inércia nas iniciativas locais em grande escala? A legislação urbanística? A regulamentação da construção? Interrogado sobre esta problemática, Lyon-Caen(51) sugere a combinação de todos estes factores, com peso significativo dos efeitos de um governo fortemente centralizado, impondo um modelo cultural, normas e regulamentações únicos para todo o país. Lembra ainda o facto de os Alpes serem um território marginal no conjunto do território nacional. Pierre Préau(52) vem reforçar esta ideia, lembrando que a região dos Alpes franceses é a única área desta cadeia montanhosa pertencente a um estado unitário e centralizador, cuja administração desenvolve um forte poder legislativo e económico, e que essa mesma região sofreu um intensivo êxodo rural que esgotou as possibilidades de uma iniciativa local bem estruturada. Dá também uma justificação cultural para a forma como tem evoluído a construção nos Alpes [54] franceses:

[53] Urbanização na zona de Bellinzona, vale do Ádige, Tessino (S) 124.Galfetti, Aurélio (2009) p. 12. 125.Magnol, Jacques (2007). 126.Frampton, Kenneth (1992) p. 322-323 127.Idem p. 323. 128.Idem p. 322. 129.AA.VV. (1995). 130.Vigato, Jean-Claude (2008), p.71.

A mira universalista da cultura francesa abafou as expressões regionalistas submetendo-as de alguma forma a uma norma nacional. É bem difícil nestas condições de fazer emergir uma especificidade alpina, seja ela savoyarde, dauphinoise, provençal ou niçoise.(53) Apesar desta aparente estagnação em termos de produção arquitectónica com um cunho local original, a Union régionale des conseils d’architecture, d’urbanisme et de l’environnement Rhône-Alpes (URCAUE Rhône-Alpes) tem vindo a desempenhar um papel fundamental na divulgação da arquitectura moderna e contemporânea da região alpina francesa, embora num âmbito nacional. A missão desta união é a de promover a arquitectura de interesse público (54), o que foi feito nomeadamente através de uma exposição acompanhada da edição de um guia em 2004, sugerindo percursos arquitectónicos, com o objectivo de dar a conhecer o valor das obras inventariadas pelas diferentes CAUE dos departamentos da região. Também um jornal, bastante detalhado, acompanha a exposição e foi disponibilizado online, servindo de instrumento pedagógico do ponto de vista da arquitectura e das paisagens da região. Igualmente indiscutível é o esforço do estado no sentido de alertar para o valor do património arquitectónico recente, ciente de que “o estudo e a educação pela arquitectura permanecem as melhores garantias de uma verdadeira tomada de cons-ciência a favor do [55] património contemporâneo.”(55) No entanto, es[54] Biblioteca Cantonal de Lugano, Lugano, Tessino (S) - Rino Tami, 1940


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sas medidas concretas centram-se, mais uma vez, na protecção dos objectos modernos do século XX – facto demonstrado por medidas como a atribuição do Label XXe siècle e do instrumento de planeamento Zone de protection du patrimoine architectural, urbain et paysager (ZPPAUP). À divulgação da arquitectura por organizações estatais – que se centram ainda muito na arquitectura moderna do século passado – acrescenta-se o papel dinamizador de determinados municípios no campo da arquitectura contemporânea, nomeadamente Grenoble e Chambéry. A primeira cidade, seguindo [56] uma tradição de mais de um século(56), acolhe uma concentração considerável de centros de investigação e ensino universitário ligados à montanha. Inclui-se a investigação sobre a arquitectura e a paisagem contemporâneas na montanha, levada a cabo pela Escola de Arquitectura de Grenoble (ENSAG). Mas, mais uma vez, a ênfase é posta no estudo da arquitectura até ao século XX. [57] O caso de Chambéry, cidade empenhada na promoção de uma imagem ligada à montanha e simultaneamente a uma arquitectura assumidamente contem-

[55] Atelier de Livio Vacchini. Locarno, Tessino (S) – Livio Vacchini, 1986 131.Büchler, Marco et al. (2006) p. 177. 132.Idem p. 178. 133.Idem.

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porânea, será aprofundado na terceira parte deste trabalho. Identificam-se, apesar de tudo, algumas tendências predominantes no campo da arquitectura erudita. As obras recentes na região alpina francesa caracterizam-se, no general, por uma adesão às expressões arquitectónicas internacionais globalizadas. Contudo, vão surgindo alguns sinais de produção arquitectónica criativa, associados a preocupações de cariz ecológico enraizadas nos lugares(57). Nesta linha de acção, nota-se uma preferência crescente por materiais ditos “ecológicos”, preferência clara na construção da aldeia em terra da cidade nova de L’Isle d’Abeau (Isère)(58). Lyon-Caen sugere que poderá existir, em ingredientes como o evento da construção baseada nos recursos locais, nas preocupações ecológicas e nas necessidades das sociedades actuais, o potencial para germinação de uma nova arquitectura. Pois não serão estes “ingredientes que deveriam permitir escrever o espaço, conceber a arquitectura, a construção, da qual se poderia esperar uma aproximação criativa, inventiva, cujas ligações com o “já aqui”, o território, a sua paisagem, a sua geografia e a diversidade das ins-

[56] Capela de Santa Maria degli Angeli. Monte Tamaro, Tessino (S) – Mario Botta, 1990-96

[57] Praça Locarno – Aurelio Galfetti, 1988


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vernaculares combinam-se com influências de arquitectos de renome internacional, resultando numa peça conseguida. Perto desta, também a “casa de férias Torralta” (1972), nas Penhas da Saúde, [5] deve ser referida. Módulo de habitação turística concebido por Conceição Silva(7), inova pela forma inteligente como reinterpreta a casa de montanha, através do seu telhado/parede de forte pendente e a utilização da madeira e da chapa de forma moderna. A casa Ascensão Santiago em Trancoso (1970), de Sérgio Fernandes, seguida das pousadas de Santa Bárbara em Oliveira do Hospital (1971) e de Nossa Senhora das Neves em Almeida (1971-1987), respectivamente de Manuel Tainha e da dupla Cristiano Moreira e J. Coutinho, surgem já sob influência da publicação Arquitectura Popular em Portugal(8), de 1961, resultado do Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa.

Na obra de Tainha, estruturada por efeitos surpresa, por enquadramentos pai[6] sagísticos que cria desde o interior e pela adequação sensível ao terreno e à envolvente, é notória ainda a inspiração na arquitectura regionalista italiana, nomeadamente no repescar dos pilares do Albergue Pirovano, desenhado por [21 Franco Albini em 1949 para Breuil, nos Alpes italianos. cap.3] Para terminar, e ainda no contexto da arquitectura moderna, referimos a Casa [5] Casa de férias Torralta. Penhas da Saúde, Covilhã – Conceição Silva, 1972 7.Idem pp. 153. 8.AA.VV. (1961). 9.Bandeirinha, José António (2005) p. 19.

[6] Pousada de Santa Bárbara. Oliveira do Hospital – Manuel Tainha, 1971

da Raínha do Mundo (1960), um convento construído em Gouveia segundo projecto de Ernest Von Drop. Segue a mesma linha de Teotónio Pereira e do Movimento para a Renovação da Arte Religiosa, no que diz respeito à inventividade aplicada ao espaço religioso, numa materialização despojada e indiscutivelmente moderna(9). A partir da década de 70, destaca-se no diálogo com o lugar o conjunto de edifícios da Universidade da Beira Interior, da autoria da equipa de Bartolomeu Costa Cabral, projecto de que trataremos na Parte III deste trabalho. Já no século XXI, continuam a escassear os exemplos dignos de referência. Vale a pena, contudo, registar dois equipamentos hoteleiros recentemente inaugurados: a Casa das Penhas Douradas, de Pedro Brígida e Alice Faria, e o H2otel, de [7] Jorge Palma, em Unhais da Serra. [8] No projecto da Casa das Penhas Douradas vamos encontrar um objecto cuidadosa-

[7] Casa das Penhas Douradas, Manteigas – Pedro Brígida e Alice Faria, 2006 [8] H2otel. Unhais da Serra, Covilhã – Jorge Palma, 2004-09


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mente desenhado para o usufruto da paisagem envolvente, remetendo na sua arquitectura simultaneamente para os abrigos em chapa metálica da serra, para as construções isoladas de Grisões ou do Vorarlberg e para uma contemporaneidade cosmopolita, tudo isto num conjunto emanando uma arte do lugar surpreendente. Também o autor do equipamento de Unhais da Serra parece ir beber à fonte de um tipo de edifícios frequente nos Alpes, nomeadamente alguns equipamentos hoteleiros do final do século XX. O potencial da relação interior/exterior na zona de piscinas não é no entanto explorado, ao contrário do que vimos nas termas de Merano – analisadas em detalhe mais à frente. A paisagem enquadra o edifício, mas este não interage com ela (sintomática é ainda a quase ausência de varandas, espaços de fruição da paisagem e do sol por excelência. Para além das opções formais que materializam estes hoteis, sobressai ainda uma tendência presente nos Alpes: a do turismo de qualidade, frequentemente associado aos equipamentos termais ou spas, interdependentes da paisagem e natureza envolventes. A designação “H2otel****Sup Congress & Medical SPA” e “Aquadome – The Mountain SPA” espelha bem essa realidade. Do ponto de vista da atenção dedicada a esta paisagem de montanha, destacase a classificação da área da Serra da Estrela como Parque natural em 1976, tendo pesado significativamente o seu reconhecido valor paisagístico e as ameaças a que este meio estava sujeito(10). Como nas áreas alpinas, o valor do meio montanhoso passa a ser protegido e prossegue o seu estudo paisagístico numa perspectiva pluridisciplinar. O projecto de investigação “Estrela”(11) representa um exemplo deste fenómeno. Combinando especialistas de diferentes áreas, consta de um estudo que tem por objectivo estabelecer as relações entre a fisionomia e a dinâmica da paisagem num meio montanhoso. O Plano de Ordenamento do Parque da Serra da Estrela tardou, mas foi finalmente aprovado em 2009. No âmbito da paisagem urbana das cidades serranas, os programas Pólis da Guarda e da Covilhã deveriam ter solucionado muitos dos problemas de degradação paisagística, o que nem sempre sucedeu, como veremos para o caso da Covilhã. Tal como no campo científico, as influências alpinas no campo da arquitectura foram 10.Ver ICNB: http://portal.icnb.pt/. 11.Ferreira, António de Brum et al. (2001).

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tardias e pouco sistemáticas. Tampouco se verificou na Serra da Estrela o surgimento de uma expressão arquitectónica particular, nem a construção repetida de tipos de edifícios ligados à montanha. Como vimos, alguns casos isolados são no entanto assinaláveis pela sua qualidade e coerência no diálogo com a paisagem de montanha.


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5_Parte I. Conclusão – Uma arquitectura singular para um novo mito alpino Poucos territórios oferecem a um arquitecto a ocasião para fazer prova de imaginação, de criação, de investigação. Poucos territórios abrem a via à inspiração, à fantasia, eventualmente à ousadia.(1) Confirmou-se que o paradigma alpino tem vindo a desempenhar, desde o século XVIII, um papel revolucionário e uma influência significativa nas abordagens científicas, estéticas, funcionais e de práticas sociais identificadas nos territórios europeus de montanha, incluindo Portugal. Fundamentais em todas estas dimensões são os aspectos ligados à paisagem. As práticas arquitectónicas não constituem excepção. No campo da arquitectura, um aspecto inegável sobressai da análise feita ao longo destas páginas: a montanha, e particularmente os Alpes, têm uma “força: a de conduzir os construtores, em todos os períodos e seja qual for o seu estatuto, a pôr em causa os seus modelos para responder às suas próprias exi- gências”(2). Este fenómeno ficou claro na análise dos momentos chave da arquitectura moderna nos Alpes, bem como na observação das expressões arquitectónicas recentes neste território. As correntes de arquitectura alpina contemporâneas surgem na continuidade da busca de expressões arquitectónicas de carácter local conjugadas com um espírito moderno, algumas iniciadas ainda no século XIX, a par com os movimentos regionalistas, outras bem mais recentes. Actualmente, as expressões arquitectónicas assumindo um carácter local estão associadas a identidades socioculturais empenhadas na diferenciação e a fortes políticas regionais empenhadas na valorização da paisagem da região. Neste contexto, o diálogo com a paisagem desempenha sempre um papel central, embora assumindo-se através de opções formais muito diferentes, influenciadas pelos também diferentes enquadramentos culturais. Assim, a materialização dos objectos arquitectónicos e a linguagem através da qual se expressam os arquitectos apresentam características diversificadas de zona para zona, bem como internamente aos territórios “demarcados”, apre1.Peu de territoires ouvrent la voie à l’inspiration, à la fantaisie, voire à la hardiesse. Chappis, Laurent et al. (2003). 2.“(...) force: celle de conduire les constructeurs, à toutes les périodes et quel que soit leur statut, à remettre en cause leurs modèles pour répondre à ses propres exigences”. Chappis, Laurent et al. (2003). 323. Clivaz, Michel (2006) p. 6.

sentando não só variações evolutivas, mas revelando também uma adaptabilidade criativa e sensível às diferentes funções e lugares. Enquanto nalgumas regiões prevalece uma abordagem de carácter urbano à arquitectura (regiões influenciadas pela cultura mediterrânica), noutras, a preservação da natureza e a ecologia dominam o cenário da produção arquitectónica (regiões englobadas numa cultura germânica). A arte do lugar é contudo praticada com empenho pelos projectistas alpinos de algumas regiões, levando ao reconhecimento da qualidade da arquitectura destas zonas. Os níveis de projecção para o exterior permanecem variáveis, o que nem sempre se relaciona com a maior ou menor qualidade das intervenções, mas sim com o marketing. A Suíça é um exemplo notável do investimento na divulgação da arquitectura contemporânea dos seus cantões, nomeadamente através dos canais institucionais de promoção turística. Apesar das diferenças encontradas entre as tendências arquitectónicas regionais, cuja qualidade e originalidade são reconhecidas, certos traços perpassam todas estas tendências: − a relação dialéctica das obras com a paisagem, revelando mais uma vez a sua importância no contexto montanhesco. Ressalta aqui também o valor (político, identitário ou ecológico) atribuído às paisagens naturais e culturais, como motor de dinamização de expressões arquitectónicas, onde tradição e contemporaneidade se associam com criatividade; − a procura de uma “nova autenticidade” assente num processo de investigação continuado e no conhecimento profundo das culturas locais conjugado com a integração na cultura global. Este aspecto está bem patente no espírito dos prémios de arquitectura alpinos(323); − a preocupação com a sustentabilidade e a procura de sistemas inovadores de eficiência energética, que espelha a importância da ecologia no paradigma hipermoderno actual, mas também com a procura de soluções para as condições climatéricas extremas que podemos encontrar na montanha. A questão ecológica na construção dos edifícios está presente em diferentes graus. O Vorarlberg distingue-se pelo acento nesta questão,


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seguindo uma linha iniciada na região há décadas atrás, como pudemos constatar. Mas até em França, onde não se identificaram expressões arquitectónicas recentes de carácter regional, esta preocupação tem sido ponto de concórdia. Destes traços, pode-se inferir um quadro geral e simplificado da arquitectura digna de nota produzida em território alpino. Os sinais de fenómenos semelhantes na arquitectura do território montanhoso da Serra da Estrela aparecem de forma ténue, dispersa e tardia. No entanto, o exemplo alpino e os poucos casos portugueses podem estabelecer uma base para reinventar o diálogo do construído com a paisagem serrana de um modo actual e criativo, envolvendo as populações locais neste processo.

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PARTE II

Os casos de estudo alpinos

Na Europa, a relação entre montanha e cidade tem assumido diferentes formas ao longo dos tempos. Decorre daí também a dificuldade de definir o conceito de cidade alpina. Podem identificar-se padrões relativamente ao desenvolvimento destas cidades, onde as questões da competitividade urbana e da sustentabilidade são incontornáveis. Inevitavelmente, surgem interrogações acerca da existência, ou não, de uma especificidade da paisagem urbana e da arquitectura contemporânea das cidades em causa. O paradigma alpino vai ser interpretado e apropriado sob diversas formas pelas cidades, consoante os contextos culturais e políticas de cada país ou região. As diferentes abordagens à paisagem no meio urbano-montanhesco também vão reflectir a influência dos contextos. Igualmente variáveis serão as posturas das cidades perante a importância atribuída a intervenções arquitectónicas contemporâneas. Nesta parte da tese desenvolvem-se estas problemáticas, começando por uma perspectiva diacrónica da relação cidade-montanha, introduzindo-se uma visão geral do panorama urbano alpino na actualidade. Segue-se uma abordagem ao perfil de cada um dos países alpinos estudados em termos de políticas urbanas, de estratégias de identificação com o meio alpino, da postura perante a paisagem no contexto alpino e da postura das cidades alpinas perante a arquitectura contemporânea. Sucede-se a análise das três cidades alpinas escolhidas, dando-se ênfase ao tipo de relações que estabelecem com a montanha a diferentes níveis. Primeiramente, ao nível paisa- gístico e artístico; em segundo lugar, através da sua evolução urbana em relação com o território; por último, avalia-se o papel que a montanha representa actualmente na cidade segundo diversos parâmetros. Um último ponto é dedicado ao panorama das intervenções arquitectónicas e paisagísticas contemporâneas nestas cidades. Para terminar, a escala do objecto de análise centra-se numa intervenção localizada em cada uma das três cidades anteriormente estudadas. Após ter-se efectuado a leitura da imagem do local, sem recolha de informação prévia sobre as intervenções(1), procede-se ao aprofundamento progressivo da obra sob diferentes parâmetros. A abordagem é elaborada com base nos mesmos critérios para os três casos, indagando-se sobre a relação com a envolvente, efeitos visuais e impacto na paisagem. Por último, estabelece-se uma comparação entre os três casos, destacando-se aspectos que influenciaram o tipo de relação estabelecido pela obra com o lugar e os modos como se manifesta o diálogo da sua arquitectura com a paisagem. Algumas das constatações decorrentes desta análise comparativa irão sugerir boas práticas a aplicar noutros casos. 1.Ver em anexo “Registos de uma análise sensível aos casos alpinos”


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1_Contexto urbano alpino

[1, 2] [3]

[4]

1.1 A cidade na montanha. A montanha na cidade São já numerosos os estudos centrados na definição da “cidade de montanha” (2) na Europa, podendo encontrar-se pontos convergentes nas diferentes abordagens. Ao mesmo tempo que a localização num território reconhecido como montanhoso, outros elementos contribuem para a montanhidade:(3) Como veremos, não é evidente a obtenção de uma definição clara de cidade de montanha. Ainda assim, importa estabelecer alguns parâmetros no âmbito deste trabalho. Começaremos por uma sintética perspectiva diacrónica da relação da cidade com a montanha europeia, que trará alguma luz sobre a influência do espaço geográfico montanhoso no desenvolvimento dos núcleos urbanos. Debarbieux(4), analisando o binómio cidade/montanha, explica a evolução da relação cidade-montanha na Europa, partindo da antiguidade, quando a sacralidade da montanha seria decisiva para a fundação das cidades. Com o Renascimento, a cidade passou a estar associada à socialização, enquanto a montanha representava os perigos de um meio selvagem, bem como a solidão e a comunhão com Deus. Esta percepção atribui-se à tendência, no final da Idade Média, para abandonar os assentamentos urbanos situados nas encostas montanhosas – fundados por razões militares ou religiosas – substituídos por melhores situações topográficas para a troca comercial e para a agricultura. Algumas cidades alpinas de planície passaram então a assumir um papel importante económica e culturalmente, caracterizando-se pela independência comunal. Jakob(5) também analisa a percepção da montanha como uma invenção originária da cidade, representando durante séculos a antítese da cultura urbana. Cidade e montanha mantêm-se separadas física e geograficamente, simbolizando noções opostas mas complementares. Nas gravuras de Matthäus Merian representando cidades alpinas é bem visível esta separação física: as montanhas aparecem como cenário natural dos burgos concentrados no interior de cercas muralhadas. Aliás, antes de surgir o interesse pela montanha propriamente dita, foram as cidades alpinas que atraíram humanistas, artistas, comerciantes e perso2.Ver Coppola, Gauro (2000) para a clarificação da noção de “cidade alpina” ou de “cidade de montanha”. 3.Ver Parte I cap. 1 para a noção de montanhidade. 4.Debarbieux, Bernard (1999). 5.Jakob, Michael (2004b).

[1] Paisagem com São Jerónimo – Joachim Patinir, c. 1520

[2] A conversão de São Paulo - Peter Bruegel o Velho,1567

[3] Batalha nos Alpes na fronteira de França e de Itália - Carta do século XVII


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[5] nalidades em busca das curas termais – razão

da estadia de Montaigne na Suíça(6). Mais tarde, Jean-Jacques Rousseau muda o modo de considerar estes elementos. Em Les confessions(7), desloca-se frequentemente da montanha selvagem à cidade civilizada, admirando as duas paisagens em relação uma com a outra, destacando a identidade da cidade pelo seu contraste com as montanhas circundantes, estabelecendo um cânone para o modo de as olhar e representar em conjunto(8). É no início do século XVIII que tem origem um novo interesse pelos Alpes, começando pelos viajantes ingleses que seguem a moda do “Grand Tour” e procuram os Alpes, atraídos pelas suas paisagens, num período da história europeia caracterizado pela transformação de modelos culturais(9). Chamonix será a primeira cidade a desenvolver-se como base do turismo alpino, asso[6] ciada ao magnetismo do Monte Branco. Esta forma de perceber a montanha e a cidade torna-se a base do turismo de montanha do século XIX. Artistas, escritores, homens cultos e burgueses procuram paisagens sublimes e uma sociedade idealizada, ao mesmo tempo que as cidades tiram proveito desta tendência, promovendo a sua imagem associada à figura da montanha. É o início dos trabalhos de urbanismo visando reforçar a visibilidade dos picos, através de enfiamentos visuais, e [4] Coira – Gravura de Matthäus Merian, 1655 [5] Bains de Saint-Gervais - Félix Benoist, 1864 [6] La Vallée de Chamonix et le Mont-Blanc (Vue prise de la route d’Argentière, près de Chamonix) - Félix Benoist, 1864 [7] Aix-les-Bains et le Lac du Bourget (Vue prise des Rochers-du-Roi) - Félix Benoist, 1864

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da comunhão cidade-montanha por via de miradouros estrategicamente localizados. As paisagens de montanha tornam-se o cenário para o teatro da vida [7] urbana. Paralelamente a estas intervenções, a cidade como parte inseparável da sua envolvente natural é vendida ao mundo inteiro, veiculada por meio de objectos iconográficos, difundidos para promover a indústria do lazer e do turismo de [8, saúde. Ela passa a apresentar-se aos seus habitantes, visitantes e possíveis in- 9, 10, vestidores como detentora de uma identidade única, ligada à qualidade de vida, 11] como geradora de uma força especial que lhe permite entrar em competição com outras cidades europeias. Algumas cidades centralizam a exploração dos recursos da montanha para a

indústria. Esta exploração, conjuntamente com a construção de infraestruturas de transportes ligando os núcleos urbanos, representa uma transformação radical no paradigma alpino e uma nova ameaça para o meio montanhesco. Para além da presença da montanha na paisagem urbana, outro fenómeno vai [12, reflectir a apropriação da montanha pela cidade: o recriar de elementos da 13] paisagem montanhosa no seio de um meio urbano. Para além da descoberta da fotografia, que permite trazer a montanha para a cidade, através de imagens realistas de grandes dimensões, exibidas em exposições,(10) registam-se ou-tros fenómenos sintomáticos, nomeadamente o aparecimento de jardins “alpinos”, [8] Poster de pro[9] Poster de promoção de turismo moção de turismo em Chamonix, 1956 em Grenoble

[10] Poster de promoção de turismo em Lucerna

[11] Poster de promoção de turismo em Sankt Gallen


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de grandes exposições onde são reproduzidos ambientes alpinos, de museus mostrando representações ou elementos da montanha, de edifícios ao estilo chalet, ou de parques de lazer temáticos reproduzindo os estereótipos da montaha. Se bem que hoje estes elementos poderão surgir em qualquer lugar – até no Dubai encontramos pistas de neve –, nas cidades associáveis aos territórios de montanha esta tendência adquire uma dimensão especial, com particular ênfase na arte urbana, na arquitectura, nos museus, nos eventos e nos parques temáticos ligados à figura geográfica e simbólica da montanha, como veículo de reforço identitário – o que verificaremos mais à frente nos casos estudados. Tal como a oposição tradição/modernidade deixou de fazer sentido na arquitectura alpina, também a distinção cidade/campo – e consequentemente cidade/natureza ou cidade/montanha – perdeu objectividade no contexto actual pós-industrial. As fronteiras físicas, simbólicas ou sociais entre estes universos, dantes opostos, dissolvem-se e transformam-se; novas formas híbridas nascem(11). No entanto cidade e montanha persistem, embora assumindo novas relações complexas, sendo por isso necessário adoptar modelos de desenvolvi[15] mento territorial inovadores, integrando as duas realidades(12).

[15] Grenoble, Isère, Ródano-Alpes (F) 6.Reichler, Claude (2002) p. 7.

Neste enquadramento, e no contexto alpino, tornou-se necessário estabelecer [16] parâmetros definidores do objecto “cidade alpina” para entender esta dupla realidade e operacionalizar estratégias de desenvolvimento. Na nossa aproximação a uma definição de cidade alpina partimos de um princípio essencial: A cidade alpina é assim antes de mais nada uma cidade que se sente alpina mesmo se tal definição não resulta objectiva ou científica.(13) Quando falamos de cidade alpina, falamos obrigatoriamente de cidade de montanha e da procura de definição para este último tipo de cidade. A definição de “cidade de montanha” tem vindo a ser procurada desde há algumas décadas. De uma forma geral, é dado aceite que deverá encontrar-se em território montanhoso e que a montanha será visível desde a cidade, mas também que as cidades de uma mesma região montanhosa apresentam transformações sociais e urbanas específicas. Mais importante ainda é o sentido de identificação com a montanha, usado como city brand (imagem de marca da cidade) e por vezes também como base de um desenvolvimento sustentável. De qualquer maneira, pensar a cidade e a montanha como um elemento unificado apresenta-se ainda como tarefa complexa e difícil de concretizar. Gumu-

7.Rousseau, Jean-Jacques (1999). 8.Debarbieux, Bernard (1999). 9.Reichler, Claude (2002) p. 7. 10.Jakob, Michael (2004b). 11.Corboz, André (1999).


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chian(14) dá três razões que justificam esta dificuldade: são dois objectos que podem ter definições múltiplas e mesmo contraditórias; ainda são associados a temas diferentes: a cidade à cultura, a montanha à natureza (mesmo o conceito de montanha sendo uma construção social); as escalas dos dois objectos são diferentes: a cidade é geralmente pontual ou linear, enquanto a montanha se estende em três dimensões. Talvez por isso seja tão difícil inserir os signos da montanha no urbanismo das cidades alpinas com uma história antiga – na sua generalidade, estas cidades mantêm-se nos vales, obedecendo a um modelo urbano universal – o que se torna mais evidente para as cidades com uma certa dimensão, porque elas se desenvolveram durante muito tempo negando a montanha(15). Ainda Gumuchian sintetiza em quatro tipos os olhares possíveis sobre as cidades na relação com o seu território de montanha: situacional, expressa nos trabalhos do geógrafo Raoul Blanchard(16); paisagística, justapondo a cidade e a montanha de um ponto de vista estético; paradoxal,(17) em que os dois elementos são vistos como opostos e complementares; territorial, reunindo a materialidade do suporte geográfico, a acção dos homens, o símbolo, e ainda a identidade(18).

Sugere-se no presente estudo a hipótese de esta última abordagem estabelecer uma base sólida para um desenvolvimento sustentável das cidades de montanha, activando outros tipos de relação cidade/montanha de uma forma positiva e operacional. É neste contexto que o conceito de paisagem se torna importante, visto que ela pode constituir um agente de coesão de grupos sociais diferentes que ocupam o mesmo território, encorajando o seu empenho em questões públicas, a favor ou contra as instituições no poder(19). No que diz respeito concretamente aos Alpes, a percepção do carácter alpino de uma cidade não é óbvia, sofrendo alterações com a história. As especificidades das cidades alpinas, sob diversos aspectos (económico, funcional, social, geográfico), constituem hoje objecto de estudo de numerosos especialistas e de projectos de investigação nas mais diversas áreas(20). No entanto, nem sempre assim foi. As tentativas de definição da materialidade e das representações identitárias da “cidade alpina” (oficialmente a expressão aparece em 1988, com a criação da “Communauté de travail des villes des Alpes“ (Comunidade de Trabalho das Cidades dos Alpes – CTVA)(21), surgem pelo menos no início dos anos 70, constituindo a obra Città Alpine, de Giuseppe Dematteis(22), um marco pioneiro do aprofundamento desta temática. O fenómeno coincide com o declínio de um ciclo, baseado na urbanização intensa, copiado de outros centros urbanos, declínio este portador da consciência da necessidade de encontrar uma nova figura como base do renascimento das cidades de montanha. A noção de “identidade das cidades alpinas” – um misto de valores urbanos e montanhescos – foi a escolhida, reforçada por algumas alianças estabelecidas entre cidades dos Alpes. Podem destacar-se determinadas especificidades das cidades alpinas, apesar dos critérios não serem facilmente determináveis. Se a localização geográfica pode constituir um argumento ambíguo nalguns casos, a identidade baseada numa unidade territorial aparece como um elemento importantíssimo. A relação com o território assume maior significado do que a localização(23). Consequentemente, aspectos dificilmente quantificáveis – ou mesmo subjectivos – e aspectos simbólicos podem tornar-se decisivos, tais como a identificação com

[16] Innsbruck, Tirol (A)

bém a análise crítica de Fourny, Marie-Cristine (1999). 17.Debarbieux, Bernard (1999). 18.Gumuchian, Hervé (1999). 19.Donadieu, Pierre (2002). 20. Como exemplos referimos os projectos da Communauté de Travail des Villes des Alpes (Comunidade de Trabalho das Cidades dos Alpes – CTVA), criada em 1988, e o programa de investigação G.I.N.C.O – Grenoble, Innsbruck, Nagano et Chambéry – de la ville à la ville Alpine ; identités urbaines et espaces montagnards (da cidade à cidade alpina; identidades urbanas e espaços de montanha), criado em 1995. 21.Città delle Alpi na designação original.

12.Salomon-Cavin, Joëlle (2007) p. 16 13.“La città alpina è dunque prima di tutto una città che si sente alpina anche se tale definizione non risulta oggettiva o scientifica.” Gaido, Luigi (1999) p. 116. 14Gumuchian, Hervé (1999). 15.Idem. 16.Blanchard, Raoul (1956, 1958), Blanchard, Raoul et al. (1958). Relativamente a esta abordagem, ver tam-


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uma região, uma cultura ou uma paisagem. [21] Partindo do par cidade-montanha, alguns investigadores pensarão [23] na “busca de uma identidade improvável com uma dimensão simbólica.”(24) Porém, será esta identidade verdadeiramente improvável, ou apenas demasiado abstracta para ser captada ou quantificada? Fourny(25) dá um exemplo da importância desta noção: nos seus estudos demonstra que, no caso das cidades médias do Sulco(26) Alpino (Sillon Alpin), as lógicas relacionadas com a identidade simbólica das cidades influenciam fortemente as escolhas dos actores políticos e económicos, no que respeita à constituição de parcerias, ou seja, as escolhas não dependem apenas de lógicas racionais ou da análise de dados quantitativos, mas igualmente da apreciação subjectiva dos lugares – feita de imagens, de sistemas de valores e de significações simbólicas atribuídas aos locais escolhidos. A mesma autora observa que várias cidades se definem

[20] França - Carta de relevo

[21] Ródano-Alpes - Carta de relevo

[22] Ródano-Alpes - Carta de departamentos [23] PACA - Carta de relevo

[24] PACA - Carta de departamentos 22.Dematteis, Giuseppe (1975). 23. Ver CTVA: http://www.cittalpi.net.


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a si próprias como alpinas, através dos seus representantes políticos, sem bases científicas ou administrativas(27). Apresenta a hipótese de a identidade, baseada sobre uma unidade territorial, representar um recurso importante para agir perante a cidade alpina. Este argumento constitui uma base sólida se se partir [22] do princípio que a identidade de um espaço nasce da relação entre um território [24] geográfico e um grupo social que se reconheça neste território(28). Muito antes desta tese de Fourny, já Dematteis(29) expunha três possíveis definições de cidade alpina. A primeira definição possível basear-se-ia somente no critério da localização, considerando-se as cidades em território indiscutivelmente montanhoso. A segunda hipótese consideraria a posição e a presença de funções susceptíveis de estreitarem a relação da cidade com o ambiente alpino. Em último lugar, definir-se-iam como alpinas todas as cidades que se evidenciassem como produto de uma cultura dita alpina – definição que poderá parecer pouco precisa ou até subjectiva mas que, na verdade, se enquadra no paradigma actual. Esta última hipótese era defendida pelo próprio Dematteis como a mais pertinente, e é hoje aceite pelas instituições e organizações oficiais. Em 1998 tiveram lugar duas conferências sobre cidades alpinas, uma em Grenoble (F) e outra em Villach (A). Estes eventos podem interpretar-se como um sinal do interesse crescente pela cidade alpina, tanto do ponto de vista político, como do ponto de vista da investigação(30). O principal objectivo da conferência de Villach foi o de clarificar as especificidades das cidades alpinas, pequenas e médias, em comparação com cidades de tamanho idêntico fora do território alpino. Como conclusão deste encontro ressaltou que o território montanhoso não é responsável pelas oportunidades e principais problemas destas cidades, isto porque os tipos de desenvolvimento económico, social e urbano são semelhantes aos que se verificam fora da montanha. No entanto, nesta mesma conclusão, reconhece-se que a especificidade do território desempenha um papel relevante. Luigi Gaido clarifica esta ideia, indo de encontro à observação de Dematteis: Acontece-me frequentar cidades alpinas de diversos países, e de diversas dimensões e, excluindo as montanhas que as circundam, não encontro mais 24.“quête d’une identité improbable avec une dimension symbolique”. Gumuchian, Hervé (1999) p. 200. 25.Fourny, Marie-Christine (1997) p. 70. 26.“Sulco Alpino”: designação atribuída a um espaço geográfico e económico que inclui as cidades de Genebra, Annecy, Chambéry, Grenoble e Valence. Ver Sillon Alpin: http://www.sillon-alpin.fr 27.Fourny, Marie-Christine (1999). 28.Donadieu, Pierre (2002) p. 59. 29.Referência de Guaran ao texto Città Alpine, de 1974, de Giuseppe Dematteis. Guaran, Andrea (2002) pp. 364-365. 30.Perlik, Manfred (1999).

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nenhuma distinção clara do modelo de cidade de planície.(...). Onde está a “alpinidade”, é esta a questão. Mas obviamente trata-se apenas de impressões baseadas na prática quotidiana e não de demonstrações científicas(31). Mais à frente acaba por reconhecer que o que faz a diferença nestas cidades está na contiguidade com “um território montanhoso, carregado de memórias e de simbologias, que também é um espaço lúdico desportivo e recreativo específico,” formando assim cidade e território um conjunto de grande qualidade, “uma qualidade que os técnicos de localização das actividades ou os do marketing territorial consideram fundamental para as instalações produtivas humana e tecnologicamente avançadas”(32). Numa outra perspectiva, é sabido que a globalização leva à centralização funcional em cidades grandes, o que enfraquece o poder de cidades mais pequenas, grupo em que se enquadra a quase totalidade das cidades alpinas. Não obstante, estas últimas podem ocupar um lugar vantajoso na rede global de cidades se desenvolverem actividades competitivas. Obviamente, existem dificuldades e riscos, sendo que se torna necessário estabelecer um equilíbrio difícil de gerir entre preservação e desenvolvimento. O contexto alpino actual ilustra de forma clarificadora estas dinâmicas, como veremos de seguida. 1.2 Cidades Alpinas. Panorama geral As cidades alpinas, médias ou grandes, tiveram a sua origem em aldeias rurais, pontos defensivos ou centros comerciais ao longo de vias principais encaixadas nos vales, evoluindo ao longo dos séculos de forma variável. Foi com o império romano que surgiram as verdadeiras cidades, que ainda hoje perduram no território alpino – centro geográfico, de circulação e de trocas comerciais desta civilização. Desde cedo que se verifica a tendência para o grande número de cidades, mas de tamanho modesto. Paul e Germaine Veyret(33) fundamentam este fenómeno na relação funcional com a natureza e na limitação à expansão imposta pela topografia, combinando frequentemente uma actividade de passagem com uma actividade de âmbito regional. A conjugação da orientação para o exterior – nomeadamente pela integração em redes –, e simultanea31.Inoltre mi capita spesso di frequentare delle città alpine di diversi paesi, e di diverse dimensioni e, togliendo le montagne che le circondano, non trovo mai un distacco netto dal modello delle città di pianura. (...) Dove è la « alpinità », questa è la domanda. Ma ovviamente si tratta qui di impressioni tratte dalla pratica quotidiana e non di dimostrazioni scientifiche. Gaido, Luigi (1999) p. 107. 32.Un territorio montano carico di memorie e di simbologie, che è anche uno spazio ludico sportivo e ricreativo specifico, forma un connubio altamente qualitativo. Una qualità che le tecniche di localizzazione delle attività o quelle di marketing territoriale considerano fondamentale per gli insediamenti produttivi umanamente e tecno-logicamente avanzati. Gaido, Luigi (1999) p. 116. 33.Veyret, Paul et al. (1964) pp. 8-9.


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mente para o interior através da ligação forte com o hinterland, é considerada, ainda hoje, condição fundamental para a o equilíbrio social e funcional destes núcleos(34). Com a industrialização, os recursos naturais desta região, tradicionalmente rural e fracamente urbanizada, são explorados em vista do progresso e da modernização da humanidade – embora, no geral, a industrialização tenha afectado as cidades alpinas de uma forma menos pronunciada do que as cidades de planície, devido à sua marginalização(35). São sobretudo as cidades situadas nos eixos de circulação internacional que mais se expandem, primeiramente ajudadas pela máquina a vapor e depois pela hidroelectricidade. No início do século XX, as mudanças físicas e sociais do território alpino são já detectáveis. Quanto às cidades, elas sofrem transformações particulares segundo a sua dimensão, localização e dinâmicas que aí se produzem. Trataremos mais adiante do desenvolvimento particular da estrutura urbana e das cidades dos quatro países alpinos alvos deste estudo. Todavia podemos desde já salientar que, de uma forma transversal às fronteiras nacionais, durante os anos seguintes à segunda guerra mundial, o desenvolvimento e expansão das áreas urbanas alpinas é muito significativo. Os anos 60 trazem ainda transformações radicais à paisagem, associáveis ao pico a uma nova forma de lazer: o turismo de massas para as classes médias, com grande ênfase no território gaulês, onde surgem as cidades concebidas ex-nihilo, já referidas. Todas estas mudanças violentas transformaram os espaços naturais, bem como os espaços urbanos. O modelo de ocupação urbana muda neste período, devido à utilização de grandes áreas para novas produções, às diferentes procuras para a habi[19] tação e o lazer e à vulgarização do automóvel, permitindo a suburbanização. O que se produziu de uma forma geral na Europa veio a repetir-se na região alpina: com a chegada da sociedade de consumo, as cidades industriais condensadas transformaram-se em regiões urbanas difusas e os centros urbanos perderam habitantes. No entanto, estas e outras mudanças processam-se a um ritmo e uma escala menores nas montanhas, condicionadas pela topografia e pela localização excêntrica(36). A partir dos anos 80, as cidades maiores esten34.Perlik, Manfred (2004) p. 6. 35.Perlik, Manfred et al. (2001) pp. 244-45. 36.Perlik, Manfred et al. (2001) p. 246. 37.Gaido, Luigi (1999) p. 116. 38.Bätzing, Werner (2001).

dem-se ao longo de quilómetros pelas áreas periféricas de vale, tendo absorvido gradualmente a população oriunda das terras mais altas(37) No início dos anos 70, a par com a crise petrolífera, surge na Europa a consciência de uma crise ambiental, multiplicando-se os estudos e encontros focados nesta questão, visando a criação de uma estratégia transfronteiriça de gestão do território alpino. Os resultados acabaram por se revelar decepcionantes, em grande parte devido às divergências entre nações. Mais tarde, o programa ManAnd-Biosphere (MAB) da UNESCO trouxe à ribalta o espaço alpino como terreno privilegiado de reflexão sobre o desenvolvimento sustentável(38). Hoje, como já os Veyret previram nos anos 60(39), os Alpes são actualmente uma região urbanizada, fortemente estruturada pelas cidades, onde a maioria da população leva um estilo de vida urbano, vivendo em cidades(40). Isto acarreta, por um lado, a densificação da construção nos vales, por outro, a transformação dos Alpes num enorme comutador(41), visto estarem situados no âmago de um contexto territorial dinâmico e num importante centro económico da Europa, servido por sistemas complexos de estradas e caminhos de ferro. Se é verdade que estes factores provocam fluxos intensos e a degradação do espaço alpino, também o é que integram este espaço na dinâmica da economia europeia. A uma escala global, as cidades alpinas apresentam uma posição vulnerável (localização periférica, tamanho pequeno, poder económico reduzido). Mas podem fazer a diferença partindo de alguns factores positivos de relevo, tais como a qualidade de vida, o facto de serem cidades de fronteira, de se encontrarem unidas por um sentido de pertença a uma entidade territorial e por terem uma história de relações inter-municipais fortes, levando à formação de redes de cidades. Estes factos constituem um valor acrescentado e uma base para a geração de identidades positivas. Para mais, particularidades como a topografia, as limitações físicas à expansão urbana, a exposição aos riscos naturais, os estilos de vida específicos e uma relação especial com o ambiente natural geram oportunidades de inovação e criam desafios para o desenvolvimento da investigação, mesmo que a especificidade alpina seja menos importante para definir o papel destas cidades no contexto [25] global do que o facto de serem pequenas ou médias cidades europeias(42). Ape- [26] 39.Veyret, Paul et al. (1964). 40.Sacareau, Isabelle (2002), YEAN (2005), Diener, Roger et al. (2006). 41.Raffestin, Claude (1999). 42.Perlik, Manfred (1999). 43.Perlik, Manfred et al. (2001) pp. 244-245. 44.Gaido, Luigi (1999).


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sar da forte urbanização, continua a não existir, dentro do perímetro alpino, uma única metrópole ou capital e a maioria das cidades são de tamanho médio ou pequeno, com excepção de sete cidades maiores (Grenoble, Trento, Bolzano, Innsbruck, Salzburgo, Klagenfurt e Maribor)(43). O sistema de cidades alpinas condensa as características associadas às particularidades topográficas e ao tipo de relações intermunicipais e transfronteiriças de um laboratório de investigação original, onde as mudanças económicas e as políticas regionais podem ser observadas com maior clareza do que noutros locais(44). A este respeito, Gaido destaca um aspecto importante: o sistema urbano alpino não constitui um sistema christalleriano clássico, nem um sistema policêntrico hierarquizado, mas parece integrar as forças dos dois. Define-o como um sistema urbano em que cada localidade conserva as suas próprias “identidade e visibilidade e “magnitude e trajectória”, associadas à “sua “massa” socio-económica e à distância relativa dos outros centros com os quais interage”(45). Justifica assim a sua teoria de a paisagem (landscape) já não ser o elemento diferenciador das estruturas, mas sim a “mindscape”, ou seja, a ideia de uma cultura [25] Grenoble, Isère, Ródano-Alpes

urbana comum que estabelece uma continuidade, mesmo que imaginária. Esta mindscape é o resultado da adaptação de uma cultura urbana ocidental ao território alpino, território este que, pela sua morfologia especial, forma um terreno propício à criatividade para lidar com as limitações. O que poderia ser [27] um constrangimento torna-se uma oportunidade: os limites entre a cidade e a montanha constituem um vínculo entre as duas. Assim: as cidades dos Alpes são um extraordinário lugar de observação dos fenómenos urbanos e metropolitanos na sua dinâmica natural, mas a escalas e dimensões reduzidas em relação à planície. Por isso talvez mais compreensíveis mas não menos complexos. Consequentemente, as cidades alpinas também são um formidável laboratório para aí se experimentarem novas modalidades de gestão social e económica do território.(46) O território alpino impõe-se, mais uma vez, como gerador de inovação. No entanto, nem sempre assim foi no que diz respeito às áreas urbanas. De um modo geral, investigadores de diferentes áreas partilham da opinião que, até há muito recentemente e desde a industrialização, as cidades alpinas não

[26] Albertville, Sabóia, Ródano-Alpes

45.“Si tratta di un sistema dove ogni località conserva la propria identità e visibilità, la propria magnitudine e traiettoria, che per analogia possiamo ipotizzare dipendere dalla sua « massa » socio-economica e dalla distanza relativa degli altri centri con cui interagisce”. Gaido, Luigi (1999) pp. 117-119.

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[27] Annecy, Alta Sabóia, Ródano-Alpes

46.Così, a causa di questi limiti, le città delle Alpi sono uno straordinario luogo di osservazione di fenomeni urbani e metropolitani nella loro dinamica naturale, ma a scale dimensionali ridotte rispetto alla pianura. Quindi appaiono forse più comprensibili anche se non meno complessi. Di conseguenza, le città alpine sono


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2_Três cidades alpinas 2.1 Chambéry – França. Procura de afirmação num contexto centralizado Nós queríamos, antes de deixar Chambéry e o seu querido vale, ir visitar juntos a pequena casa de Jean-Jacques Rousseau. Uma paisagem não é senão um homem ou uma mulher. O que é o Vaucluse sem Petrarca? o que é Sorrente sem Tasso? o que é a Sicília sem Teócrito? o que é o Paraclet sem Héloïse? o que é Annecy sem madame de Warens? O que é Chambéry sem Jean-Jacques Rousseau?(1) – Registos literários e pictóricos Via à minha frente, do outro lado da ravina, a estranha cidade de Chambéry, com os seus telhados de ardósia escura, sem reflexos, enquadrados de metal brilhante, como uma exibição de mortalhas negras semeados de lâminas de prata. As montanhas de forma fantástica que a dominam, o ruído das torrentes que a atravessam, os seus velhos edifícios, as suas cinturas de árvores seculares, tudo isso se agitava à minha frente como num sonho.(2) Uma análise diacrónica dos registos literários e pictóricos relativos à cidade permite-nos compreender, numa primeira abordagem, as origens desta relação consciente de complementaridade paisagística Chambéry/Alpes. Mesmo se Montaigne já havia caracterizado Chambéry como “cidade principal da Sabóia, pequena, bela e mercantil, plantada entre os montes, mas em um lugar onde eles recuam muito e formam uma bem grande planície”(3), Jean-Jacques Rousseau será aparentemente o primeiro a deitar um olhar revelador de sensibilidade estética em relação à paisagem da cidade e ao seu espaço envolvente. Rousseau [4] percorreu esta região durante os anos de juventude vividos em Chambéry, nas Charmettes, e descritos pelo próprio como os mais felizes da sua vida(4). A sua obra Les Confessions contém testemunhos da estima pela cidade e da importância que ele dava ao seu enquadramento paisagístico: Levantava-me todas as manhãs antes do Sol; subia por um pomar vizinho [5] num muito bonito caminho que ficava por cima da vinha e seguia a 1.Nous voulions, avant de quitter Chambéry et sa chère vallée, aller visiter ensemble la petite maison de Jean-Jacques Rousseau. Un paysage n’est qu’un homme ou une femme. Qu’est-ce que le Vaucluse sans Pétrarque? qu’est-ce que Sorrente sans le Tasse ? qu’est-ce que la Sicile sans Théocrite ? qu’est-ce que le Paraclet sans Héloïse ? qu’est-ce qu’Annecy sans madame de Warens ? Qu’est-ce que Chambéry sans JeanJacques Rousseau? Lamartine, Alphonse de (1849) p. 176. 2.Je voyais devant moi, de l’autre côté du ravin, l’étrange ville de Chambéry, avec ses toits d’ardoise sombre, sans reflet, encadrés de fer-blanc brillant, comme une exhibition de linceuls noirs semés de lames d’argent. Les montagnes à forme fantastique qui la dominent, le bruit des torrents qui la traversent, ses vieux édifices, ses ceintures d’arbres séculaires, tout cela s’agitait devant moi comme dans un rêve. George Sand citada por Juttet, François (2005) p. 87.

encosta até Chambéry. Aí, passeando-me, fazia a minha oração que não consistia num vão balbuciar de lábios, mas numa sincera elevação de coração ao autor desta amável natureza cujas belezas estavam sob os meus olhos.(5) Em torno da figura de Rousseau, e da sua relação com a cidade e a paisagem envolvente, desenvolve-se ainda hoje grande número de actividades culturais e artísticas, pretendendo prestar-lhe homenagem, mas também constituindo um instrumento de marketing turístico. Às estruturas permanentes de carácter cultural e artístico que lhe são associadas – como a mediateca com o seu nome, uma estátua num jardim público e o Museu das Charmettes –, acrescentam-se as exposições temporárias neste último museu e outros eventos culturais na cidade, ligados de alguma forma à sua figura ou à sua obra. A evocação deste humanista está igualmente omnipresente na promoção turística da cidade, através de brochuras, visitas guiadas, websites, cd-roms e souvenirs. A forte ligação entre Rousseau e Chambéry torna-se ainda mais relevante, no âmbito da paisagem, porque ele é reconhecido como figura central na emergência da paisagem de montanha como objecto estético. [4] Chambéry - Claude de Chastillon, c.1600 [5] Chambéry - Andrea Toresani, séc. XVII 3.“ville principale de Savoie, petite, belle & marchande, plantée entre les mons, mais en un lieu où ils se recu-

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casinha se abriu, não sei que cheiro húmido me levou de volta ao passado, como se, entre mim e esse passado, o lugar tivesse ficado vazio, mudo e fechado.(6) Grande admiradora das paisagens de montanha, ela aprecia a paisagem envolvente da cidade em constante relação com as montanhas: (…) subimos a encosta de carruagem sobre as Charmettes e atingimos a pé o alto da colina de onde se tem uma vista magnífica sobre Chambéry, o vale, o lago, os montes do Chat e da Epine, o Nivolet, o Margeria – atrás de nós os Alpes [10] nevados, o Monte Granier com as colinas rasgadas e pitorescas que lhe servem de repelente.(7) Naturalmente, a cidade de Chambéry aproveitou a ocasião do bicentenário do nascimento de Sand, em 2004, para organizar exposições e leituras ligadas à escritora, às Charmettes e ao Musée Savoisien. O seu nome,

Os românticos admiram este personagem, o que traz à Sabóia e a Chambéry uma outra referência da literatura, em busca dos seus vestígios: George Sand. Por admiração a Rousseau, Sand visita as Charmettes, descrevendo por estas palavras a sua chegada ao sítio: A Sabóia era um bouquet, todas as neves haviam derretido em torno de Chambéry. Este país e este momento do ano são tão belos só por si que, contra minha vontade, chegando ao fim da peregrinação, tinha esquecido Jean-Jacques, e disfrutando do mundo exterior para mim própria, já não me questionava muito onde ia nem onde estava, mas, quando a porta da [6] Vue générale de Chambéry – [8] Chambéry (Vue générale, prise de Lemenc). – J. F. M. de Martinel, séc. XVIII Félix Benoist, 1864

[11] Vista cavaleira de Chambéry, retirada de Theatrum Sabaudiae, 1660-1682

[7] Vue de Chambéry prise de la [9] Château de Chambéry – Félix Benoist, 1864 route d’Aix - A. Debelle, 1829

[12] Plano dos canais de Chambéry, place SaintLéger – 1781-1787

[9] La Fontaine aux Éléphants – Anon., séc.XIX

[13] Rede viária de Chambéry, 1809


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como o de Rousseau, é empregue como imagem de marca cultural da cidade. [11] Bem como o de Lamartine. Alphonse de Lamartine, outro admirador de Rousseau que viveu em Chambéry, [12] faz desta cidade o cenário de uma parte do seu romance Raphaël, onde abundam as referências à paisagem, às Charmettes e a Rousseau. Também alguns pintores valorizaram o par Chambéry-Alpes ao representarem a cidade. Um dos primeiros desenhos conhecidos data de cerca de 1600. Esta representação é idêntica a uma gravura que Merian incluirá na Topographia Palatinatus Rheni(8). A cidade aparece cercada pela sua muralha, com o castelo em destaque, e dominada por montanhas imponentes à volta, da mesma forma que na série de desenhos de 1700 Vistas de Diversas Cidades na Europa, do ilustrador italiano Andrea Torresani. No século seguinte, Martinel pinta a sua Vue générale de Chambéry, introduzindo [13] as montanhas como cenário e Debelle realiza a sua Vue de Chambéry prise de la route d’Aix, dotando a cidade de um carácter misterioso numa cova das montanhas. Benoist reproduz este ambiente, por ocasião da sua série sobre os sítios pitorescos de Nice e da Sabóia. Bem ao estilo romântico, o quadro de autor anónimo La fontaine aux éléphants mostra-nos as montanhas sob um céu de tempestade em pano de fundo do mo[14] numento que dá nome à obra. Desta vez a paisagem alpina entra na cidade como se dela fizesse parte integrante, em vez de servir de cenário como nas representações precedentes. As montanhas aparecem grandiosas e ameaçadoras sob a tempestade, dominando a cidade. Mesmo se representada sob diferentes modelos de compreensão, a evidência da inseparabilidade Chambéry-Alpes traduz-se pelo não questionamento da mesma desde há séculos. As memórias de Chambéry, a sua paisagem e a sua existência são inerentes à montanha como território geográfico e simbólico. – Evolução urbana da cidade e da sua relação com a montanha(9) De igual forma, a história da cidade fornece-nos indicações fundamentais para a leitura da sua evolução sob influência da montanha. Lugar escolhido para lent fort & font une bien grande plaine”. Montaigne, Michel de (1774) p. 120. Embora estas viagens tenham sido realizadas em 1580 e 1581, o seu relato é publicado pela primeira vez em 1774. 4.Rousseau, Jean-Jacques (2001). Redigido entre 1776 e 1778. 5.Je me levais tous les matins avant le soleil; je montais par un verger voisin dans un très joli chemin qui était au-dessus de la vigne et suivait la côte jusqu’à Chambéri. Là, tout en me promenant, je faisais ma prière qui

[14] Teatro Charles-Dulin - Jacques-Bernard Trivelli, 1820-1824


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[15, instalação dos Duques de Sabóia graças à sua localização central e características 16] geográficas, Chambéry é hoje uma cidade com forte concentração de serviços

administrativos. Também desempenha, desde a sua fundação, um papel importante de entroncamento, centralizando vários percursos de vale, situação privilegiada que valeu a prosperidade de muitas cidades alpinas. Esta antiga [17] capital da Sabóia detém uma herança arquitectónica e cultural rica, juntamente com uma relação privilegiada com a paisagem de montanha e um considerável sentido de identidade regional. Conhece-se muito pouco sobre a ocupação humana do local antes do século XI, de[18] preendendo-se que aqui existiu um sítio galo-romano entre os séculos I a. C. e IV d.

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C. Apelidada de “entroncamento alpino” e “porta dos Alpes”, Chambéry foi, desde a Idade Média, um lugar de eleição pela sua posição central e pela geografia da região. A primeira menção de um conjunto urbano data do século XI, conjunto este marcado pela existência de um castelo na colina de Montjay, controlando o estreito. A cidade rapidamente ocupou a zona baixa e pantanosa aos pés do castelo, cercada por uma muralha e sofrendo constantes inundações. Os numerosos itinerários que convergiam para o vale de Lemenc foram decisivos para a aquisição de Chambéry pelos Duques de Sabóia, bem como para a escolha da cidade como capital do Ducado no século XIII. Desenvolveuse economicamente e culturalmente de maneira significativa e com uma forte

[15] Planta de Chambéry, 1887

[16] Planta de Chambéry, 1906

ne consistait pas en un vain balbutiement de lèvres, mais dans une sincère élévation de cœur à l’auteur de cette aimable nature dont les beautés étaient sous mes yeux. Rousseau, Jean-Jacques (1999). 6.La Savoie était un bouquet, toutes les neiges avaient fondu autour de Chambéry. Ce pays et ce moment de

l’année sont si beaux par eux-mêmes, que, malgré moi, en touchant au but du pèlerinage, j’avais oublié Jean-


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vocação comercial, sofrendo grandes transformações e ampliações urbanísticas. Uma nova muralha vai duplicar a superfície da cidade em meados do século XII, limites que se mantêm intactos até ao século XVIII. O burgo medieval de ruas estreitas organiza-se em torno de uma rua principal, a Grande Rue (actualmente [38] Praça Saint Léger) , espinha dorsal do aglomerado, conduzindo às três portas da muralha e às estradas alpinas. A prosperidade desta época revela-se nas numerosas igrejas construídas – sendo a Sainte Chapelle do castelo a mais notável – bem como nos faustosos palacetes da nobreza local. Até que, em 1573, Turim toma de Chambéry o lugar de capital. A partir desse momento, a expansão e a transformação da cidade retraem-se, sobretudo em comparação com a dinâmica de Turim, mantendo um aspecto medieval que fascinará os românticos. Napoleão escolhe ainda assim Chambéry para a construção de importantes quartéis militares, graças à sua situação estratégica(13). As muralhas haviam entretanto sido demolidas após a Revolução Francesa. Dois outros momentos revelam-se importantes relativamente à transformação urbanística da cidade. O primeiro teve lugar entre os anos vinte do século XIX, graças ao General De Boigne, abastado benfeitor da cidade, que investiu

a sua fortuna arrecadada na Índia no embelezamento de Chambéry. Novas [39] vias, valorizando o cenário alpino no seu enfiamento, e novos edifícios – como o novo teatro – vêm dignificar a cidade. O segundo momento acompanha a anexação pela França em 1860, caracterizando-se pela criação de numerosos equipamentos para o município, mas sem uma significativa expansão urbana. O período industrial não introduziu grandes transformações se compararmos o sucedido com outras cidades alpinas de dimensões semelhantes. Como

[31] Vista de Merano - Gabriel Bodenehr, entre 1700-1766

[32] Merano vista de Sul - Josepf Benedikt Auer, entre 1780-1790

Jacques, et jouissant du monde extérieur pour mon propre compte, je ne me demandais plus trop où j’allais ni

[33] Vista de Merano - Carl Ludwig Frommel, 1840

[34] Merano – autor desconhecido, c.1850


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Blanchard salienta, a situação vantajosa de Chambéry para o tráfego tornou-a [40] a cidade mais comercial dos Alpes franceses. Deste modo, o comércio, tradição antiga como a história da cidade(11), permanece a actividade mais importante, apesar da instalação de algumas indústrias. Nesta época, o crescimento de Chambéry mantém-se menos significativo do que o de Annecy ou de Grenoble, cidades que se apoiaram mais consistentemente na indústria(12). Com a vinda do comboio em 1856, nasce uma nova artéria ligando o centro à estação. A situação de entroncamento vai ainda levar à construção da emblemática “Rotonde”. O edifício de planta circular com cobertura em estrutura metálica, único no país, permitia orientar as máquinas para as diferentes linhas. O crescimento da cidade é tímido durante a primeira metade do século XX, registando-se no entanto a criação de novas zonas habitacionais seguindo os princípios da cité-jardin(13). Após a Segunda Grande Guerra, a cidade, parcialmente destruída pelos bombardeamentos, reconstrói-se através de uma expansão pouco controlada e sacrificando a zona histórica. Só a partir de 1969, com a criação de um Sector de Salvaguarda (Secteur sauvegardé), se inicia a revalorização da parte antiga da cidade. Desde 1985, Chambéry detém o label “Ville d’Art et d’Histoire” (Cidade de Arte e de História), atribuído pelo Ministério da cultura e da comunicação francês. Neste caso, os objectivos principais enquadrados por esta designação passam pela conservação do Sector de Salvaguarda, conjugada com o boa organização das funções urbanas contemporâneas, pela criação de ligações entre o centro e o território adjacente e pela sensibilização da população em relação à arquitectura e às questões urbanas actuais(14). No seguimento desta lógica, o Centre d’Interprétation de L’Architecture et du Patrimoine (Centro de Interpretação da Arquitectura e do Património) tem inauguração prevista para [34] breve no centro histórico da cidade. O desenvolvimento recente de Chambéry permanece ligado à concentração de serviços administrativos e, paralelamente, ao seu papel importante para as redes de transportes – ponto vital para o caminho de ferro alpino, centro de um [35] Merano in the Snow - Friedrich Wasmann, c.1840 [36] Garden at Merano – Friedrich Wasmann, c.1840

[37] Castelo do Tirol - Leo Putz, 1938

où j’étais; mais, dès que la porte de la maisonnette s’ouvrit, je ne sais quelle odeur humide m’a reporté vers le


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sistema de autoestradas organizado em estrela e, ultimamente, passagem do TGV ligando Lyon a Milão. Ao rico património urbano e cultural acrescenta-se uma relação privilegiada com a sua envolvente natural. A montanha está visualmente presente como paisagem mesmo no centro da cidade, cujas ruas se prolongam até às encostas das montanhas, se transformam em escadas para aceder aos pontos mais altos ou terminam abruptamente junto às falésias. Património construído e espaços naturais constituem a base do potencial turístico da comuna e de uma determinada qualidade de vida. Assentando nestes factores, as estratégias de desenvolvimento actuais baseiam-se na reabilitação [67] urbana e na exploração das indústrias da cultura e do turismo. Novas construções acompanham estas políticas de desenvolvimento, cujos principais objectivos são a preservação dos espaços naturais envolventes e a reconversão do património construído, associadas ao equilíbrio social com ênfase nas actividades culturais ligadas ao território montanhoso. Em resumo, o papel estruturante da montanha na forma urbana de Chambéry tem-se manifestado desde a sua fundação, originada pela localização de planície, [66] Planta de Bellinzona. Estrada Francesca e três castelos. [67] Piazza Indenpendenza

entre montanhas, no cruzamento de caminhos de vales e junto a um curso da água. Partindo da fortificação edificada sobre uma colina dominando o vale, expandiu-se para a zona baixa, confinada até finais do século XVIII ao interior das muralhas e estruturada pela rua principal – Grande Rue – disposta no sentido longitudinal do vale e ligando os caminhos alpinos. As obras de reestruturação do [68, século XIX vieram realçar 69] propositadamente o cenário alpino em redor. Actualmente, a densa mancha urbana de Chambéry serpenteia nas zonas de vale, apresentando [70] uma configuração decorrente da topografia acidentada do território. A ligação [68] Planta de Bellinzona, 1857 [69] Planta de Bellinzona – estruturas defensivas


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física da cidade com a montanha é procurada essencialmente através do prolongamento de caminhos e de ligações visuais.

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– Importância actual da montanha(15) Hoje em dia, a presença da montanha na cidade manifesta-se antes de mais como cenário: os picos (o Nivolet, o maciço de Bauges e de Chartreuse, a cadeia de Belledonne) são visíveis de quase toda a cidade. Além disso, o município promove um número considerável de eventos relacionados com a montanha, escolhida em 2002 pelo governo como “Ponto Focal Francês” para o “Ano Internacional das Montanhas” organi-

zado pela ONU. É ainda eleita “Cidade dos Alpes” de 2006 por um júri internacional, graças às suas políticas orientadas para o desenvolvimento sustentável aplicando a Convenção Alpina, passando a pertencer à rede de cidades de montanha, “Communauté d’Intérêt Ville Alpine de l’Année” (Comunidade de Interesse Cidade Alpina do ano). Este label foi concedido com base no esforço empreendido pelo município para chegar mais perto das montanhas, nomeadamente, assumindo responsabilidades em relação aos três parques envolventes (Parque de Vanoise, Maciço de Bauges e Parque de Chartreuse) e investindo na cooperação com as regiões contíguas. Demonstra assim que “A população e as autoridades compreenderam que a atractividade e a qua-

[70] Planta de Bellinzona, posterior ao caminho de ferro, 1909

[71] Planta de Bellinzona, posterior à A2, 1938

[71]

61.UNESCO (2000).


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3_Três intervenções recentes mediáticas em cidades alpinas 3.1 Conjunto Curial (Mario Botta, Aurelio Galfetti) O sítio. Evolução e descrição(1) A área estudada situa-se na fronteira entre a cidade histórica e espaços naturais de montanha. No quadrante Sudeste, o terreno plano é delimitado por uma falésia que chega a mais de uma dezena de metros de altura, dispersando-se entre ela e o conjunto Curial alguns edifícios habitacionais dos anos 80 do século XX, não ultrapassando os cinco pisos. A falésia vai-se suavizando e transforma-se na colina da Calamine no limite Sul, ocupada por edifícios habitacionais por entre a verdura. Nos limites Norte e Poente, situa-se a cidade histórica, cujas ruas estreitas desaguam na zona aberta em torno do Carré, direccionando o olhar para a cadeia montanhosa de L’Épine a Poente e para o Maciço des Bauges

[22] Local de implantação da Maison de la Culture André Malraux (quartel Curial à direita) 1.Ver anexo D. 2.Assim chamada em honra de um general da Sabóia 3.“compatible avec le paysage urbain actuel de Chambéry”. Mairie de Chambéry (1975). 4.“la proposition architecturale alliant le respect du passé avec l’imagination contemporaine”. Anon. (1976). 5.“un temple de la consommation capitaliste”. Juttet, François (2005). 6.Pensou-se na hipótese de transformar o quartel Curial em habitações. 7.As associações cívicas da cidade foram muito activas em relação à conservação deste edifício. Mairie de

a Norte, no horizonte para lá da cidade. Os elementos vegetais são parcos, contrastando com as zonas arborizadas acima da falésia e na encosta da colina da Calamine, elevações que ensombram grande parte do terreno ao final da [22] tarde, devido à sua localização a Sul. Se bem que próximo de áreas muito naturalizadas, este lugar apresenta um carácter indiscutivelmente urbano pelo predomínio do mineral construído e pela relação formal que se estabelece com o centro da cidade consolidada. É de referir a permanência do peso simbólico e identitário das antigas estruturas militares, que ocuparam em tempos toda a área como veremos de seguida, peso este que se revelou nas tensões geradas entre a população quanto ao destino dessas estruturas. A ocupação do terreno, fora dos limites da cidade, a Sudeste desta e aos pés de uma falésia, tem início no século XIII com a instalação de congregações religiosas. A proximidade dos dois elementos – cidade e montanha – permitelhes um benefício duplo: por um lado, a protecção e as trocas culturais, sociais e económicas proporcionadas pelo burgo; por outro lado, o isolamento e a comunhão com Deus e a natureza, representados pela montanha. Pouco [23] a pouco, esta zona é absorvida pelo tecido urbano de Chambéry. Após a Revolução Francesa, as três ordens religiosas são expulsas e o exército instalase nos edifícios religiosos. Algumas destas construções são substituídas por novas estruturas. A Caserne d’Infanterie Curial (Quartel de Infantaria Curial), [24] ou simplesmente Carré, terminada em 1817, será a mais imponente pela sua dimensão: um edifício de três andares e de planta quadrada, medindo 100 metros de lado, organizado em torno de um pátio central, onde os princípios [25, de composição racionais característicos da arquitectura do início do século XIX 26] estão bem presentes. Uma outra construção militar ergue-se em 1820, a Caserne de Cavalerie Barbot (Quartel de Cavalaria Barbot)(2) e, finalmente, o Manège de Cavalerie (Picadeiro de Cavalaria). Uma antiga construção do convento das Ursulinas torna-se Gendarmerie Impériale (Esquadra Imperial). A decisão, em 1804, de empreender uma obra militar da importância do quartel Curial justificava-se pela localização estratégica de Chambéry para as tropas de


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Napoleão: era uma passagem obrigatória nos Alpes para chegar a Itália. Este exemplar da arquitectura militar napoleónica, único no seu estilo, simbolizava o poder do império exercido sobre a cidade. O edifício mantém depois a sua vocação militar, abrindo as portas ao público em algumas situações excepcionais [27] (como a Feira da Sabóia). A partir dos anos 30, a Câmara expressa a vontade de adquirir o quartel Curial ao exército, com vista à extensão da cidade nestes terrenos. Este desejo só se realizará quarenta anos depois. A reabilitação do quartel estabelece um ponto de partida para a transformação [28, de edifícios antigos através de intervenções contemporâneas, valorizando- 29] se construções dantes ignoradas, nesta cidade com o selo de Ville d’Art et d’Histoire (Cidade de Arte e de História). A zona do Curial vê o seu carácter simbólico reforçado, pela combinação de memórias importantes do passado através de uma reconversão projectada para o futuro. Vejamos então o historial desta transformação. Em 1975 a Câmara adquire finalmente o Quartel Curial através de uma troca de terrenos com o exército, o que permitirá iniciar o processo de reabilitação [30] do bairro. Torna-se um sector protegido, com a intenção de o transformar no [23] Proposta de A.U.A [24] Proposta de Gaudin [25] Proposta de Botta, vista geral Chambéry (1979). 8.Como, por exemplo, os movimentos cívicos da Société des Amis du Vieux Chambéry e da Association de Sauvegarde du Secteur Monge - Dacquin - Calamine. 9.“le pastiche et l’immeuble gigantesque”. Ville de Chambéry - Le Cabinet du Maire (1980).

[26] Proposta de Botta, planta geral

[27] Mediateca, vista geral – desenho de Aurelio Galfetti


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bairro cultural por excelência da conurbação em crescimento e em carência de equipamentos culturais. No que diz respeito à zona em geral, será objecto de diversos projectos urbanos, até ao seu estado actual, passando por um concurso de ideias nos anos 70, originando as primeiras propostas para a zona Curial. O dossier do concurso de ideias Concours Curial (Concurso Curial), lançado em 1975, explicita, como objectivo central em termos de imagem, a complementaridade com o centro antigo, mais concretamente através da criação de um conjunto “compatível com a paisagem urbana actual de Chambéry”(3), não havendo referência à paisagem de montanha. A escolha de conservar ou não o quartel Curial é deixada ao critério dos autores dos projectos. Observando as propostas das cinco equipas finalistas, constatamos que só muito raramente a montanha envolvente é um aspecto tido em conta. Apenas a proposta da equipa Demossand, classificada em segundo lugar, demonstra uma vontade explícita de prolongar a intervenção às montanhas contíguas, preservando o Carré como elemento centralizador. O primeiro lugar é atribuído a um projecto da autoria da equipa Bicking. Será eleito como “a proposta arquitectónica aliando o respeito pelo passado com a imaginação contemporânea”(4). Este projecto, centrado em torno do Carré – que seria parcialmente destruído mas que se manteria como elemento regenerador da lógica funcional e formal –, cobre de construções a zona da falésia e da colina, retirando-lhe todo o seu carácter natural e o enquadramento paisagístico. A maquete do projecto dá mesmo a impressão que o desnível existente resultaria imperceptível. Aquando da mudança de administração municipal o projecto é abandonado. O novo Presidente da Câmara, Francis Amps, considera-o “um templo de consumo [31] capitalista”(5). Uma nova era apresenta-se à cidade e, naturalmente, à zona Curial. Contexto de realização dos projectos Na consequência de uma mudança de estratégia para a zona, é criada em 1980 [32] [28] Mediateca, planta – Aurelio Galfetti

[29] Mediateca, corte – Aurelio Galfetti

[30] Mediateca, implantação – esquiço de Aurelio Galfetti

10.“le salon d’un morceau de ville” Mairie de Chambéry (1981). 11.Destruição polémica, estas aberturas serão mais tarde tapadas pela Mediateca.


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[31] Casa da Cultura e Mediateca [32] Maison de la culture – Mario Botta

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uma Zone d’aménagement concerté (Zona de Ordenamento Concertado – ZAC) prevendo uma grande parte da ocupação para habitação (cerca de 300 fogos), tendo em vista o melhoramento da qualidade de vida de uma população crescente(6). A ZAC Curial prevê ainda a implantação de comércio, de serviços e de equipamentos cívicos: espaços públicos, uma escola, a Casa da Cultura, uma biblioteca e estacionamento. A preservação do Carré é considerada(7) e finalmente decidida. Opta-se pela demolição do quartel Barbot e da Esquadra Imperial. O quartel Barbot é destruído em 1982, mas o quartel Curial, o Picadeiro e a Esquadra Imperial são preservados, tendo ajudado os movimentos cívicos defendendo o seu valor para a memória da cidade(8). É previsto um edifício para albergar a Direction Départementale de l’Équipement (DDE - Direcção Departamental do Equipamento) e um centro de escritórios a Sudeste do Carré - este último da autoria de Galfetti. Estes edifícios nunca foram realizados. A administração municipal incumbe Ciriani e Fortin do projecto do novo bairro de habitação social, a construir no lugar do antigo quartel Barbot. A comunhão com o meio natural e de montanha envolvente não é uma prioridade da ZAC. Mesmo assim, o projecto de Ciriani levará em conta este aspecto, sob indicação da Câmara. As instruções recomendam evitar “o pastiche e o edifício gigantesco”(9) e buscar inspiração na envolvente: a cidade antiga, o quartel Curial e a montanha. A filosofia do projecto é audaciosa, pretendendo aliar a urbanidade – através do prolongamento do centro da cidade – à proximidade da natureza. As tipologias inovadoras são desenhadas de maneira a captar o sol e organizam-se em torno de um pátio intitulado “o salão de um pedaço de cidade”(10). No entanto, muitas vozes se levantam contra este projecto inspirado na arquitectura e nos princípios de Le Corbusier. A Câmara, após consulta dos citadinos, acaba por ceder e o projecto é abandonado. Um novo plano, com um desenho mais tradicional e mais denso, será adoptado. Este novo projecto, da autoria de Novarina, acabará por ser construído com uma ocupação menos densa que o previsto, por razões económicas – havendo [42] no final menos investimentos do que o esperado. 12.Ver Parte II cap. 2. 13. Uma das localizações possíveis seria contra a falésia. 14.Mairie de Chambéry (1981b).

As sucessivas alterações da ZAC tendem geralmente para a redução da superfície ocupada e destinada à habitação, para a diversidade de funções e a miscigenação social. Assim, os novos grandes equipamentos culturais resultarão mais visíveis, graças ao espaço deixado livre. A ligação visual com a paisagem montanhosa também sairá de certa forma reforçada. As várias transformações nas funções e formas deste espaço urbano, ao longo do processo de renovação, materializam as mudanças rápidas e um certo grau de imprevisibilidade do contexto económico e social contemporâneo. A primeira intervenção no quartel Curial, para além da demolição do muro à sua volta, tratou da abertura de três grandes entradas atravessando todo o corpo Norte até ao pátio interior, pretendendo-se com isto abrir a estrutura à cidade (11). Em 1991, o picadeiro encontra-se finalmente transformado em centro de congressos, com projecto da autoria de Jean-Jacques Morisseau. Exteriormente, esta intervenção distingue-se pelo seu paralelepípedo em vidro justaposto à fachada preservada. No interior do paralelepípedo transparente, quatro palmeiras completam o cenário, cintilando na noite. Mais uma vez, o bairro acolhe um edifício reunindo antigo e contemporâneo, contribuindo para a formação de uma paisagem urbana composta de camadas contrastadas. Da Casa de Cultura, terminada em 1987, e da Mediateca, concluída em 1993 falaremos em detalhe um pouco mais à frente. A transformação da Esquadra Imperial em Maison des Parcs et de la Montagne (Casa dos Parques e da Montanha), em 2006, será a última intervenção no âmbito da ZAC Curial, dada como encerrada no verão de 2007. De novo Morisseau projecta o espaço, que alberga também diferentes organizações ligadas à montanha, como já vimos. Esta realização marca a posição de Chambéry como a “cidade porta” de três parques naturais. Não introduz grandes modificações na paisagem urbana, reduzindo-se a ligeiras alterações e a uma extensão discreta, tornando o antigo edifício mais transparente e aberto ao exterior. No dealbar do século XXI, é tomada a decisão da integração desta área estratégica para a valorização da cidade, na Zone de Protection du Patrimoine Architectural, Urbain et Paysager (ZPPAUP – Zona de Protecção do Património 15.Chaslin, François (1982). 16.AUA (1982).


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Arquitectónico, Urbano e Paisagístico). Esta resolução acompanha a revisão do Plano Local de Urbanismo (PLU) de Chambéry, em 2006, prevendo a extensão do sector central protegido às zonas próximas da cidade antiga. As directivas desta nova ZPPAUP recomendam que o bairro seja integrado no espaço urbano histórico e, ao mesmo tempo, requalificado pela introdução de espaços verdes e a valorização das vistas ligando a cidade baixa e os pontos altos. Estas medidas reforçam o carácter duplo deste espaço: urbano consolidado mas também em comunhão com a natureza e a montanha. O bairro Curial vem estabelecer-se como ponto de ligação entre a cidade histórica e o promontório das Charmettes, associado à memória de Rousseau e, inevitavelmente, à paisagem de montanha, que é aliás uma das principais preocupações deste instrumento urbanístico. Da análise das propostas arquitectónicas e urbanísticas para a reconversão desta zona, constata-se que só recentemente a montanha começa a assumir-se conscientemente como símbolo, recurso e paisagem no bairro Curial. O ano de 1992, data dos Jogos Olímpicos de Albertville, marca o início de uma mudança [42] Cidade das Artes - Aurelio Galfetti, Yann Keromnès, 1998-2001 17.Gaudin, Henry (1982). 18.Conseil Municipal (1982). 19.“rappeler aux habitants l’importance de la dimension culturelle d’une ville”. Francis Ampe citado em Juttet, François (2005) p. 412. 20.Centre de Recherches et d’Applications Psychologiques et Sociologiques et al. (1978). 21.Galfetti, Aurelio et al. (2010). 22.Ver Briault, Marianne et al. (1996). 23.Ver desenvolvimento no anexo D.

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progressiva nesse sentido, centrada no Bairro Curial, como já vimos(12). Até então, os discursos e as escolhas dos decisores, assim como as soluções propostas pelos autores de projectos, parecem confirmar – com algumas excepções – o esquecimento da montanha. No entanto, nos últimos anos, esta tendência parece perder força, ganhando terreno a paisagem, os Alpes e a natureza como referências tidas em conta nas intervenções urbanas, com forte incidência no Bairro Curial – fronteira entre a cidade antiga e a montanha. Os processos de concepção e as funções da Maison de la Culture (Casa da Cultura) e da Mediateca reflectem esta nova tendência. Após a sugestão de alguns locais para a tão esperada Casa da Cultura – também designada como Teatro, Centro ou Espaço Malraux (13) –, é lançado o concurso de propostas para a sua localização definitiva, colada à fachada Este do Carré. Os aspectos funcionais requeridos são descritos em detalhe, incluindo: uma grande sala de espectáculos, uma sala de cinema, uma sala de recepções e espaços para actividades diversas. O programa não transige sobre um ponto: a entrada do centro cultural deverá fazer-se pelo quartel Curial, num enxerto que 24.For Mario Botta, however, working in the public sphere means reclaming, through architecture, the integrity and coherence that the city can express by means of the symbolic value of the constructed image. Cappellato, Gabriele (1998) p. 31. 25.Frampton nota que, para além da sensibilidade doméstica (moderna e tradicional), o aspecto mais crítico de Botta regista-se nas suas obras públicas. Frampton, Kenneth (1992) p.323. 26.“Inside this emptiness, apparently impossible to fill, the project searches for a dimension of its own.”


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a transformará em fachada do novo equipamento. O desafio será propor uma obra simultaneamente emblemática e dependente do Carré, tanto formalmente como funcionalmente(14). Desde o início, o antigo quartel assume-se como peça central de futuros projectos. Dos concorrentes, três equipas são escolhidas para a fase final do concurso: o gabinete AUA (Atelier d’Urbanisme et d’Architecture), a equipa de Gaudin e a de Botta(15). A equipa AUA, na sua proposta caracterizada pela discrição, apenas refere os edifícios habitacionais próximos como influência no desenho da nova estrutura que, para se fundir com o quartel, obrigaria à destruição de uma parte deste(16). Quanto a Gaudin, do ponto de vista da integração urbana e da estética arquitectónica, afirma ter-se preocupado sobretudo com a relação do Carré com a cidade, inspirando-se nas torres medievais e nas cores das construções envolventes. A montanha não é referida na sua memória descritiva(17). Já Mário Botta propõe uma peça urbana de forte presença. O projecto deste [52] 1975 [53] 2001 Botta, Mario et al. (1993) p. 130. 27.Carloni, Tita (1993) pp.6-7.

[54] Termas Gelmi e zona histórica

[55] Termas Zillich e Baumann/ Matteo Thun e zona histórica


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arquitecto, natural do cantão suíço-italiano do Tessino, onde é residente, será finalmente o escolhido. O júri considera a propsota de Botta de grande qualidade arquitectónica, na sua simplicidade e na boa relação com o Carré e a envolvente. O projecto de AUA foi criticado relativamente às modificações impostas ao Carré, que implicariam custos elevados, e ao aspecto estético da obra. À proposta de Gaudin, a que se reconhece o respeito do programa, foi apontada a excessiva complexidade da arquitectura exterior(18). A obra, inaugurada em 1987, representa a última casa da cultura financiada pelo estado, no quadro do programa lançado por André Malraux em 1962. O objectivo da criação de um equipamento desta natureza, com uma sala de espectáculos de 1000 lugares, seria “relembrar aos habitantes a importância da dimensão cultural de uma cidade”(19), sabendo-se que esses mesmos habitantes demonstravam interesse nesse sentido(20). No que diz respeito à Mediateca, viria responder sobretudo à necessidade de uma nova biblioteca associada ao aumento do número de estudantes, ao interesse crescente pela leitura e ao Festival du Premier Roman (Festival do Primeiro Romance). A Mediateca Jean-Jacques Rousseau, projecto do arquitecto Aurelio Galfetti, preenche esta lacuna. Oficialmente, o projecto era da autoria de Botta com a colaboração de Galfetti. Mas, na verdade, havendo urgência em construir este equipamento para o ano dos Jogos Olímpicos, a maneira encontrada pelo Presidente da Câmara para o conseguir passou por atribui-lo a Botta, como extensão da Casa da Cultura. Este, não tendo disponibilidade, entregou o projecto a Galfetti que, após alguma troca de ideias com o colega e amigo, e com a concordância do município e do governo, projectou a mediateca(21).

A Mediateca Jean-Jacques Rousseau inaugura-se em 1992, coincidindo estrategicamente com o ano dos Jogos Olímpicos de Inverno em Albertville. Este espaço regista uma importante afluência de utilizadores de todas as idades à procura de diferentes tipos de documentos e de informações(22). Paralelamente à função de biblioteca, com grande diversidade de obras e fundos documentais ligados à região e aos Alpes, dispõe de meios de comunicação inovadores. Na cave do edifício encontra-se a Galerie Eurêka – centro de cultura científica, técnica e industrial, dedicado à montanha, com forte pendor pedagógico. O vasto projecto de transformar Chambéry em lugar de reflexão sobre a montanha e o ambiente, iniciado por ocasião dos Jogos Olímpicos de Albertville, esteve na origem deste espaço, inaugurado três anos depois.

[56] Projecto Casciaro e Zöschg

33.Frampton, Kenneth (1992) p.323. Gubler e Durán também destacam a influência de Gregotti e de Aldo Rossi na postura de Botta. Gubler, Jacques (1997) p. 7, Lopéz Durán, Fabiola (1995) p. 21.

28.Frampton, Kenneth (1992) p.323. 29.Gubler, Jacques (1997) p. 6. 30.“Every building by Botta fits in its territory”. Carloni, Tita (1993) p.6. 31.“We percieve Botta as a ‘man of his territory’, as a man of the building site”. Gubler, Jacques (1997) p. 8. 32.“L’architecture est toujours la prise de possession d’un terrain, d’un site qui est toujours unique au monde.” Botta, Mario (1995) p. 18.

Diálogo da obra com o sítio. Síntese de uma leitura in situ(23) A partir de uma leitura centrada em diferentes aspectos do espaço físico, tentase clarificar o tipo de relação que as novas construções, concebidas para a zona Curial, estabelecem com este sítio e a imagem global resultante. A leitura do espaço físico estruturado em diferentes categorias permitiu-nos distinguir os aspectos principais da paisagem urbana do conjunto Curial. Desde logo, a posição de destaque da massa compacta, isolada e monumental dos três edifícios aparece como indiscutível, centralizando o olhar. Esta ilha, com o vazio do espaço público de asfalto à volta, contrasta com os edifícios envolventes pela escala monumental e pela abstracção das formas, sendo que a identificação dos signos domésticos (janela, porta,…) não é imediata porque se expressa através de significantes pouco convencionais. Outro aspecto que ressalta desta leitura é o carácter eminentemente urbano do lugar. A montanha e a natureza estão presentes, mas são personagens secundárias neste teatro urbano. Interpretemos agora estas observações através de uma análise crítica, enquadrada na abordagem dos autores ao programa e ao lugar. Arte no lugar? Análise crítica da obra sob o ponto de vista da expressão do


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espírito do lugar [65, 66]

– Mario Botta – Casa da Cultura André Malraux No entanto, para Mario Botta, trabalhar na esfera pública representa reclamar, através da arquitectura, a integridade e a coerência que a cidade pode expressar por meio do valor simbólico da imagem construída(24). Esta observação de Cappellato sobre a postura de Botta, corroborada por Frampton(25), revela-se em pleno no projecto da Casa da Cultura André Malraux, implantado num tipo de lugar que estimula a sua criatividade: as rupturas nas áreas urbanas onde se torna difícil de encontrar elementos comparáveis aos das cidades históricas e que antecipam o declínio da qualidade do espaço urbano. É “neste vazio, aparentemente impossível de preencher”, que os projectos de Botta “procuram uma dimensão própria”(26). Qual a aproximação de Botta à dupla dimensão de edifício público e da sua integração num meio urbano palimpséstico? À laia de fio condutor na procura de resposta a esta questão, orientamo-nos por um texto elucidativo de Tita Carloni (27) – arquitecto tessinês de quem Botta foi pupilo(28) –, enumerando os principais traços do primeiro período criativo de Botta – situado entre 1960 e 1985 –, traços estes que se têm desenvolvido até hoje, sedimentando o estilo único e inimitável do arquitecto(29). Começamos pela primeira afirmação de Carloni: “Cada edifício de Botta encaixa no seu território“(30). Gubler também reconhece esta faceta: “Nós entendemos Botta como um ‘homem do seu território’, como um homem do ‘local de construção’”(31). As palavras do [67] próprio Botta comprovam-no: “A arquitectura é sempre a tomada de posse de um terreno, de um sítio que é sempre único no mundo”(32). Também Frampton refere, sobre as casas de Botta no Tessino, que em vez de de se adaptarem ao sítio, elas constroem o sítio, remetendo esta postura para a tese defendida por Vittorio Gregotti em O Território da Arquitectura(33).De facto, Gregotti defende aí a importância da paisagem – no sentido de “ambiente total” – e do “lugar” como conceitos operativos para a concepção projectual, bem como o papel central do projecto na reinvenção da paisagem através da 34.Gregotti, Vittorio (2001) pp. 61-104 35.“the act of building is always an act of culture based primarily on geometry”. Carloni, Tita (1993) pp.6-7. 36.Botta, Mario (1995) p. 18. 37.Concordamos com Frampton quando este identifica um dos traços essenciais na obra de Botta: uma postura crítica associada à preocupação constante com o sítio. Frampton, Kenneth (1992) p. 323.

arquitectura(34). A atenção ao espírito do lugar será talvez a chave mestra – consciente ou inconscientemente, constitui uma das principais preocupações na abordagem ao projecto dos principais arquitectos da tendenza tessinesa. Para Botta, as formas primárias do território são consideradas um elemento fundamental do genius loci, sendo explicitamente transpostas na concepção e reveladas na geometria do desenho, pois para o arquitecto “o acto de construir é sempre um acto de cultura baseado em primeiro lugar na geometria”(36), através da qual transforma [65] Termas, planta do piso das piscinas, cortes e alçados - Zillich e Baumann [66] Termas, planta de implantação e maquete - Zillich e Baumann


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um pedaço de natureza num pedaço de cultura. Assim sendo, Botta não só constrói com consciência do território, como vai mais longe, reconstruindo esse mesmo território(37). Neste caso concreto, ao dispor o edifício obliquamente em relação à fachada do quartel, Botta procura uma integração formal na envolvente, orientando o objecto segundo as pré-existências urbanas e naturais. Mais importante ainda: esta grande obra é pensada como charneira unificadora entre cidade e montanha, impondo-se na paisagem, como é hábito nas suas obras: A sua arquitectura irrompe na paisagem, é compacta, tranquila, bem assente quando é necessário, dinâmica outras vezes, contraditória se for preciso. Sabe amparar um golpe, esmagar com a sua força a mediocridade do ambiente. Sabe situar os eixos que ordenam de novo as paisagens. Sabe respeitar um lugar, sabe prolongar uma configuração antiga, mas, ao mesmo tempo, sabe estabelecer um diálogo com a história, sem ficar em desvantagem.(38) A importância atribuída a Botta na relação da Casa da Cultura com o lugar destaca-se nas suas próprias palavras, expressas numa entrevista, relativamente à urbanização dos espaços livres junto à falésia: Não sou muito favorável a esta urbanização. Pareceme que o sopé da falésia, pela sua orientação (Norte), pela tradição histórica, estará mais apto a tornar-se um espaço livre, um grande parque. Um limite natural da cidade que dará força à parte construída. Penso que um tal “vazio” seria um acordo formidável entre estes dois elementos. (…) Esta falésia, montanha no interior da cidade, é uma grande riqueza que se deve sublinhar, apreciar. É preciso encontrar um enquadramento que dê conta deste dualismo entre um elemento de

natureza contra um elemento de cultura.(39) Revelam-se aqui os ensinamentos de Kahn, que Botta sintetiza como uma visão da “arquitectura como construção e não como aparição, o facto de criar uma relação entre o espaço do habitat e o ciclo das estações, o ciclo solar, os tempos longos”(40). A opção de conservar a Esquadra Imperial faz parte das medidas de Botta para criar uma praça que relacionaria a Casa da Cultura com a cidade, recompondo as relações entre os elementos pré-existentes e redefinindo os traçados viários e alinhamentos dos edifícios respeitando a história da cidade A expressão desta intenção enquadra o edifício de Chambéry na segunda observação de Carloni respeitante ao trabalho do colega: “Cada edifício estabelece uma próxima ou remota relação com a cidade”(41), sobretudo com a cidade histórica e antiga, fazendo renascer das paisagens caóticas contemporâneas o sentido de urbanidade ancestral: Perante o caos formal da anti-cidade, Mario Botta executa uma operação de salvamento. Cancela mentalmente do mapa todos os produtos duvidosos da construção maciça, e permite o reemergir das linhas e do relevo purificados da cidade histórica.(42) O próprio Botta reconhece-se seguidor de uma abordagem à concepção arquitectónica de cariz mediterrânico , ou italiano, fundada na urbanidade e nas “memórias e valores do território”(43), em oposição a uma abordagem norteeuropeia com um “discurso arquitectónico essencialmente anti-urbano” (44). O facto de ter passado os seus anos de formação para arquitecto em Veneza, sob influência do mestre Carlo Scarpa, será decisivo neste aspecto. A terceira característica designada por Carloni remete precisamente para a influência sobre Botta de três mestres – Scarpa, Le Corbusier, Kahn (45)–, mas também de Wright. Carloni coloca a hipótese de o domínio da geometria, revelado nas obras de Botta, ser o resultado da influência destes arquitectos. Nota ainda que este domínio da geometria em duas vertentes - as formas fundamentais e [68] as maneiras de as agrupar – pode resultar também do convívio de Botta com a arquitectura românica da sua região e com a dos edifícios classicizantes da urbe

[67] Hotel das termas, plantas - Zillich e Baumann

naturelle de la ville qui donne force à la partie bâtie. Je pense qu’un tel “vide” serait un accord formidable entre ces deux éléments. (…) Cette falaise, montagne à l’intérieur de la ville, est une grande richesse que l’on doit souligner, apprécier. Il faut trouver un aménagement qui rende compte de ce dualisme entre un élément de nature contre un élément de culture. Mario Botta em Borgo, Pierre (1987). 40.Botta, Mario et al. (1992) p.25. 41.“Every building establishes a close or remote relationship with the city”. Carloni, Tita (1993) p. 6. 42.In the face of the formal chaos of the anti-city, Mario Botta performs a salvage operation. He mentally

38.Su arquitectura irrumpe en el paisage, es compacta, tranquila, bien asentada cuando es necesario, dinâmica outras veces, contradictoria si hace falta. Sabe parar un golpe, aplastar con su fuerza la mediocridad del ambiente. Sabe situar los ejes que ordenan de nuevo las paisajes. Sabe respectar un lugar, sabe prolongar una configuración antigua, pero, al mismo tiempo, sabe entablar un diálogo con la historia, sin quedar en desvantaja. Chaslin, François (1984) p. 16. 39.Je ne suis pas très favorable à cette urbanisation. Il me semble que le pied de la falaise, par son orientation (nord), par sa tradition historique est plutôt apte à devenir un espace libre, un grand parc. Une limite


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italiana, bem como do seu interesse pela arte moderna e/ou da sua necessidade de libertar os volumes de tudo o que seja supérfluo(46). Fabiola López Durán revê em Botta a marca de Kahn ainda sob a perspectiva da busca da transcendência na arquitectura através da monumentalidade, monumentalidade esta presente na maioria das obras de Botta(47). É certo que, para Kahn, “a monumentalidade na arquitectura pode ser definida como uma qualidade, uma qualidade espiritual inerente numa estrutura que expressa o sentimento da sua eternidade, que não [72] pode ser acrescentada ou modificada”(48). [71] Pergola Residence - Matteo Thun, 2002-04 [72] Vigilius Mountain Resort - Matteo Thun, 2001-03 cancels from the map all the spurious products of mass construction, and allows the purified lines and relief of the historical city to remerge. Carloni, Tita in Botta, Mario (1993) p. 6. 43.Botta, Mario et al. (1992) p. 23. Gubler reforça esta ideia, lembrando que “o trabalho de Botta pertence à paisagem cultural entre Veneza e Milão”. Gubler, Jacques (1997) p.7. 44.Pierluigi Nicolin in Botta, Mario et al. (1992) p. 22. 45.Estes arquitectos são constantemente referidos como influência central na obra de Botta (nomeada-

Tanto o domínio da geometria como a monumentalidade estão presentes, em termos formais, no centro cultural. Este compõe-se de um semi-cilindro, ao qual se adicionam volumes simples distintos, assinalando também funções distintas, ligados ao Carré por uma curta passagem em vidro. Chaslin ressalta neste detalhe o domínio da articulação das transições entre elementos distintos, deixando entrever momentaneamente ambos os edifícios. Num outro texto descrevendo a obra, chama-se a atenção para a forma inteligente como Botta resolveu a tensão entre o seu edifício e o Carré: A dificuldade de uma comparação com o volume do quartel é resolvida empurrando a nova estrutura para cima das suas paredes, de onde se separa apenas pela fina divisão de vidro da passagem de ligação. Isto acentua a tensão da perspectiva criada pelo encontro entre a superfície plana pré-existente e a superfície curva do novo teatro.(49) Os dois volumes monumentais vêm deste modo complementar-se. E chegamos assim à quarta característica: o uso de um vocabulário e de uma gramática muito próprios, baseados nas figuras primárias, que o arquitecto conjuga para formar os espaços. Carloni designa, como principais figuras, a parede – sempre espessa –, a fenda – acentuando a espessura da parede –, a cavidade – abertura substituindo a figura da janela –, o arco e a coluna. Outro autor, Loderer, vai mais longe encontrando a razão do sucesso de Botta no uso de um vocabulário inteligível por todos, porque “diz imenso com muito pouco” (50). Esse “muito pouco” é reduzido por Loderer a sete palavras: parede, volume, cave, fresta, simetria, ornamento e luz. Todas elas estão presentes na Casa da Cultura, sabiamente dispostas de forma a realçar a monumentalidade da obra e, simultaneamente, fazendo-a interagir com as pré-existências. Há ainda quem intitule a linguagem de Botta de “repetição de maneira diferente”, em que uma “linguagem formal do anagrama serve como método de combinação formal” (51), essência da sua arte. [73] Na Casa da Cultura, Botta trabalha com volumes praticamente cegos, apenas com aberturas estrategicamente colocadas, sugerindo aqui umas escadas interiores, ali a repetição de compartimentos alinhados e idênticos. Usa ainda os espaços mente por Chaslin, François (1984), López Durán, Fabiola (1995), Gubler, Jacques (1997)). Na verdade, Botta trabalhou pontualmente no gabinete de Paris de Le Corbusier, já após a sua morte e, em Veneza, cruzou-se


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entre os volumes como fugas de luz para um interior protegido pela massa de paredes pesadas. Subverte o signo mesmo de janela, jogando com figuras fora das convenções e, como bem refere Chaslin, devolve à arquitectura o “sentido do cheio”(52). O mesmo autor suspeita que a maior contribuição de Botta seja esta “nova via” para a arquitectura: o “domesticar” dos vãos, que deixam de se alinhar monotonamente nas fachadas para fazerem parte da forma, acentuando o jogo de volumes com grande efeito, convertendo o edifício em massa(53). E nessa arquitectura da massa, a fachada deixa de ser um invólucro perfurado para se tornar uma pele “que se dobra, se inverte; o interior e o exterior unem-se em continuidade e o bloco de betão, material único, assegura a sua coesão. Por fora é cinzento, um pouco áspero, por dentre é branco e mais suave; é ao mesmo tempo concha e cofre. A inserção da intimidade produzse de forma harmoniosa dentro de uma concha que é, no entanto, dura: como o nácar no interior da ostra ou a membrana suave dentro da noz”(54). Esta distinção propositada interior/exterior é ainda coerentemente associada por Loderer à tradição mediterrânica:

Botta separa. Botta nunca acreditou que dentro e fora são o mesmo. Ele sempre teve em consideração a separação mediterrânica de espaço privado e público. A natureza é fora e a cultura dentro. Entre as duas, transições bem elaboradas.(55) [74, Mais uma vez, um aspecto bem presente na Casa da Cultura: ao exterior maciço 75] e rude opõe-se o interior iluminado, branco e acolhedor. Sob a escada exterior, o arco - elemento que pela mão de Botta readquiriu uma posição nobre(56) – introduz novos enquadramentos da envolvente, enriquecendo-a. Para acentuar este diálogo, Botta reproduziu, na forma desta escada, a plataforma da falésia que aparece em fundo. Infelizmente, novas construções interpuseram-se entre estes dois elementos, anulando o efeito de apropriação explícita do signo montanhoso. A relação das obras de Botta com a paisagem não é no entanto da ordem da fusão com esta, seguindo antes a tradição clássica em que a obra se destaca do fundo(57). Nicolin refere a edificação de Chambéry como exemplar desta posição, revendo a utilização de certas formas ou configurações recorrentes na obra de Botta, sobretudo o tema romano do Panteão – adição de um espaço

[73] Miradouro, Jardins de Trauttmansdorff – Matteo Thun, 2005

[74] Termas de Merano, imagem virtual

com Kahn, que cita com frequência como referência. Botta, Mário et al. (1995). Gubler compara ainda Botta com James Stirling na justificação da ideia através da construção e do “on-site checking”, bem como vê em Stirling um mestre para a aprendizagem de Botta da arte da figuração expressiva, da expressão do imaginário totémico através da abstracção geométrica. Gubler, Jacques (1997) pp. 6-7. 46.Carloni, Tita (1993) p. 6. 47.Lopéz Durán, Fabiola (1995) p. 17.

48.“Monumentality in architecture may be defined as a quality, a spiritual quality inherent in a structure which conveys the feeling of its eternity, that it cannot be added to or changed”. Kahn, Louis (1944) p. 576. 49.The difficulty of a direct comparison with the volume of the barracks is resolved by pushing the new structure right up to its walls, from which it is separated only by the thin glass divider of the connecting walkway. This accentuates the perspective tension created by the meeting between the pre-existing straight surface and the curved surface of the new theatre. Botta, Mario et al. (1993) p. 130.

[75] Termas de Merano, imagem real


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central a um pronaos rectangular(58). Finalmente, Carloni aborda a questão dos materiais: “o betão é usado para substituir a pedra e o aço herda muitas das características expressivas da madeira”(59). São os vestígios da arquitectura bárbara românica cisalpina, captada na sua essência e traduzida em novos materiais, materiais esses usados em Chambéry. Também no revestimento podemos encontrar indícios de determinada arquitectura local vernacular. Os materiais de revestimento do edifício são o betão e a pedra rosa, desenhando riscas horizontais. Este acabamento em riscas horizontais, muito frequente nas obras de Botta mas também nas obras de outros arquitectos tessineses, pode igualmente ser visto como a reinterpretação de uma tradição das aldeias do Tessino. Magnol(60) refere a utilização da decoração raiada em alguns meios rurais como meio de dignificar as construções, nomeadamente os edifícios civis. Mas não será esta a única marca da cultura natal que Botta imprime nas suas obras. Na Casa da Cultura identificam-se [84, outros sinais característicos da linguagem arquitectónica deste cantão suíço, 85] com origens numa tradição ancestral. As formas maciças despojadas, o contraste de um exterior rude com um interior acolhedor e funcional, são provavelmente reminiscências da arquitectura tradicional desta região pobre e austera(61). Por via da associação com a tradição arquitectónica local, Frampton inclui Botta na abordagem nomeada por ele “regionalismo crítico”(62). Dá o exemplo da casa Riva San Vitale na sua referência às casas-torre tradicionais, tipologia frequente da paisagem cultural do Tessino. Botta assume efectivamente a influência da arquitectura cisalpina, referida [83] Castelgrande, evolução da ocupação 50.Loderer, Benedikt (1998) p. 6.

frequentemente pelos conhecedores da sua obra, como já mencionámos. Relacionam-na com a arquitectura vernacular e religiosa da região do Tessino, nomeadamente pelo uso de volumes simples depurados e paredes grossas, pela maneira especial de abrir frestas nestas paredes, pelo contraste entre exteriores rudes e interiores suaves, pelo uso inteligente da luz. Esta luz é na verdade uma matéria-prima central das suas obras: Botta constrói uma profusão de luz. (…) Tudo o que ele faz, fá-lo pela luz. (…) a melhor luz vem sempre de cima. Por isso os edifícios de Botta são abertos em direcção ao céu.(63) É que, para Botta, a parede pode definir-se como uma textura, “uma maneira de tomar a luz, de definir o horizonte e a relação com o terreno, e tudo isto representa uma infinidade de riquezas que a arquitectura pode dar como valor do habitar ao utilizador”(64). A mestria com que guia a luz no interior dos seus edifícios, através dos diferentes pisos, desde as clarabóias, justifica por si só a observação com que Loderer termina o seu texto sobre o arquitecto: Os bons arquitectos podem ser reconhecidos pela maneira como guiam a luz. Botta? Um dos Grandes.(65) A Casa da Cultura não constitui excepção. Aqui, como em muitas das suas obras, a luz penetra filtrada, sobretudo por cima, e a única paisagem visível é o céu. Isso não significa que Botta se abstraia da paisagem envolvente. Antes selecciona criteriosamente a paisagem enquadrada desde o interior das suas obras: “ Em Botta a paisagem é estratificada e administrada através das diferentes dimensões, formas e localizações das janelas, mas é o céu, e em alguns [86, casos também o cimo das montanhas, o elemento natural que usualmente 87] entra nas suas casas através das clarabóias e das cúpulas.(66) O contexto paisagístico é sempre decisivo na concepção das suas obras, que procuram captar o espírito do lugar. Remetemos, como exemplo, para duas obras no cantão do Tessino que conseguem uma notável simbiose com a paisagem: a já referida casa de Riva San Vitale mas também a admirável Capela de Santa Maria degli Angeli(67), no Monte Tamaro. Aqui, como noutras obras, Botta consegue concretizar o acto de habitar do ponto de vista heideggeriano, o que valida a [88, 89]


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afirmação de que “(…) as obras de Botta não são simplesmente edifícios para habitar, mas sim esculturas poéticas para habitar”(68), não fosse para Botta a memória “o verdadeiro território da arquitectura”(69). E esta poética está intimamente ligada, na obra de Botta, ao conceito de narratividade de Ricoeur, cuja importância o próprio Botta reconhece: Quando se constrói, é o passado, o grande passado que é concretizado. É a lembrança de pessoas passadas, de forças atávicas, mistérios mágicos, perdidos na escuridão do tempo, uma memória de tudo o que foi esperado, mas sublimada, de forma a responder às exigências da vida de todos os dias.(70) Tristemente, no caso da Casa de Cultura, tal acabou por não se concretizar plenamente: o desenho do espaço público em torno do teatro, previsto por Botta, foi desvirtuado e o que encontramos aos pés da Casa da Cultura são automóveis ocupando um enorme parque de estacionamento ao ar livre. –Aurelio Galfetti – Mediateca Jean-Jacques Rousseau Galfetti, de que voltaremos a falar no [84] Castelgrande visto de Nascente, 1930

[85] Castelgrande visto de Poente, 1946

[88] Castelgrande e castelo de Montebello

[86] Castelgrande visto de Montebello, antes da reconversão

[87] Castelgrande visto de Montebello, 2010

[89] Castelos de Montebello e Sasso Corbaro

51.“his formal language of the anagram serves as a method of formal combination”. Gubler, Jacques (1997) p. 8. Expressão também usada por Nicolin, Pierluigi (1984) p. 8. 52.Chaslin, François (1984) p. 13.


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contexto de Bellinzona, nasceu em Lugano, onde mantém o seu atelier(71). Ao contrário de Botta, formado em Itália, Galfetti formou-se em Zurique, onde absorveu alguns aspectos da abordagem centro-europeia à expressão [90] arquitectónica. Como teremos oportunidade de ver, os seus projectos revelam uma extrema sensibilidade à paisagem, seja em meio natural ou urbano; uma sensibilidade que se vai revelar de forma diversa da de Botta, não fosse Galfetti considerado o mais enigmático e “uneasy member” da tendência Tessinesa(72). Para tentarmos compreender a Mediateca Jean-Jacques Rousseau, impõe-se a sua análise estabelecendo um paralelo com a obra de Botta ali ao lado; uma pré-existência onde Galfetti vai ancorar o seu projecto. É que, embora ambos “construam paisagem” fundamentando-se no estudo minucioso do território, a abordagem de Galfetti ao lugar é de uma natureza diferente da de Botta. Este impõe a sua linguagem inconfundível no lugar; aquele adopta uma nova linguagem a cada lugar. É dentro desta lógica que Galfetti concebe, para o Bairro Curial, um edifício à imagem dos de Botta: o cilindro, a monumentalidade, os materiais, o padrão raiado do revestimento, o contraste interior/exterior. Para Galfetti, projectar assim não constitui uma contrariedade, mas antes um exercício estimulante: o de “fazer quase igual mas muito diferente”(73). Importa realçar as influências mútuas patentes nas obras destes dois arquitectos, desde há décadas. A primeira revelação do talento de Galfetti foi, para Botta, a Casa Rotalini, obra pioneira, marcada por uma forte influência dos aspectos mais poéticos da arquitectura de Le Corbusier(74). Zardini nota que esta obra [91] inicia uma relação diferente com o sítio: A introversão do edifício e a procura de um claro contraste entre a forma construída e a paisagem. A articulação da casa com a inversão da organização tradicional.(75) A maneira como se erguia em desafio à paisagem atormentada era, para Botta, “uma imagem que trazia de volta as sensações primárias que testemunham a luta ancestral entre o homem e a natureza” e que demonstrava a possibilidade, nos tempos de hoje, de uma confrontação positiva e mutuamente enriquecedora [90] Castelo de Sasso Corbaro [91] Castelo de Montebello

53.Ibidem. 54.“que se dobla, se invierte; el interior y el exterior se unen en la continuidad y el bloque de hormigón, material único, asegura su cohesión. Por fuera es gris, un poco áspero, por dentro es blanco y más suave; es a la vez concha y cofre. La inserción de la intimidad se produce de forma armoniosa dentro de un caparazón


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entre o homem e a natureza – materializada no diálogo formal com as estruturas fortificadas da cidade. E remata afirmando que “aquela geometria construída na colina era o sinal de uma resistência e poesia ainda possíveis”(76). Esta admiração teve resultados concretos nas primeiras casas de Botta, com marcas visíveis, nomeadamente na casa de Riva San Vitale(77). Botta admira ainda, na postura do colega e amigo, “a experimentação contínua na criação de uma linguagem pessoal e expressiva evidente nos projectos, concursos e construções que despontaram no ‘território’ geográfico do pequeno ‘estado’ do cantão do Tessino para se dirigir a toda uma dimensão e a todo um debate europeus”(78). Lembra o papel fundamental de Galfetti quando, no contexto de desenvolvimento alucinante da sociedade de consumo a partir dos [92, anos 60, este se mantinha fiel a uma poética própria e a uma constante procura 93] de um modo de expressão único, em que cada projecto seria o pretexto para a investigação e a compreensão. Como resultado, Galfetti responderia, segundo Botta, sempre com qualidade(79). Zardini(80) reforça esta ideia, observando que Galfetti parece ser o arquitecto “da Incerteza”, procurando constantemente novas hipóteses e direcções para o seu trabalho prosseguir, depois de um período inicial muito ligado aos ensinamentos de Le Corbusier, que continua aliás a ser a sua influência principal, o seu “mestre”(81). Não é por acaso que Galfetti recupera a expressão de Le Corbusier “l’architecture est le jeu savant, correct et magnifique des volumes assemblés sous la lumière”, como uma definição sintética e intemporal da arquitectura(82). No seu experimentalismo “cada projecto é completo e autodefinido a um ponto tal que esses trabalhos podem ser interpretados como uma série de ensaios, cada um como exploração de uma direcção diferente, com impasses, desenvolvimentos inesperados e reviravoltas inesperadas”(83). Galfetti admite-o sem complexos. Relembra que, no início da sua carreira, um crítico de arquitectura se referiu a ele como “ecléctico”. Reconhece que: Isso ajudou-me muito porque nunca me preocupei por ter a minha linguagem, por ter a minha personalidade em ter as minhas raízes, por ter que es, sin embargo, duro: como el nácar en el interior de la ostra o la membrana suave dentro de la nuez.” Chaslin, François (1984) p. 13. 55.Botta draws lines. Botta never believed that inside and outside are the same. He always held up high the Mediterranean separation of private and public space. Nature is outside and culture inside. In between, there are well-considered transitions. Loderer, Benedikt (1998) p. 6. 56.Carloni, Tita (1993) p. 7. 57.Nicolin, Pierluigi (1984) p. 10. Também López Durán destaca “o contraste com a natureza da envolvente” praticado por Botta através das suas obras. López Durán, Fabiola (1995) p. 18.

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a minha identidade. (…) E por isso pude fazer o que gostava. Mas acho que há de qualquer forma elementos que se repetem, pensamentos que se repetem em relação à ideia de espaço geográfico como matriz do que fazes. O espaço público como um projecto que vem antes do projecto do objecto.(84) A Mediateca vem confirmar todos estes pontos. Apelidada de Bateau-livre (Barco-livro), foi oficialmente inaugurada em 1992 mas totalmente terminada um ano mais tarde. Estabelece voluntariamente uma relação harmoniosa com a Casa da Cultura, sobretudo pela similaridade dos materiais: O edifício de Botta é feito de betão, de pedra e de metal pintado de negro. Peguei no betão, na pedra e no ferro com a ideia de fazer, com estes materiais, uma arquitectura completamente diferente. Repito, o importante era o vazio, o espaço entre o novo edifício e a cidade antiga.(85) O edifício demonstra a capacidade de adaptabidade de Galfetti a diferentes linguagens arquitectónicas, sem perder nunca a essência do que é para ele a arquitectura: “o projecto do espaço”(86). Para este arquitecto, a linguagem desempenha um papel secundário mas, por vezes, é confundida com o essencial da arquitectura, que é o espaço(87) – o espaço é a verdadeira linguagem do arquitecto (88) –, devendo-se esclarecer que Galfetti não faz distinção entre o espaço arquitectónico e o espaço urbano. [92] Piazza del Sole, vertente Nordeste do rochedo, 1971

[93] Piazza del Sole, vertente Nordeste do rochedo – Livio Vacchini, 1991-98


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Durán observa, com pertinência, que a influência de Kahn nos arquitectos tessineses ultrapassa a adesão à monumentalidade e à utilização dos volumes depurados, manifestando-se na expressão de uma visão existencialista associada à arquitectura, na linha de pensamento de Heidegger(89). É precisamente esta visão o aspecto mais incontestável no caso de Galfetti – em Botta e Vacchini, por exemplo, a monumentalidade está muito mais presente. A mediateca constitui uma das excepções na obra de Galfetti também neste sentido: monumentalidade, volumes simples e simetria à imagem de Kahn e Botta marcam o objecto. Composta de um volume em forma de meia-lua, preenchendo toda a fachada Norte do Carré, a mediateca reveste-se, nos pisos térreos, dos mesmos materiais que encontramos na Casa da Cultura. Nos últimos pisos aligeira-se, materializada em vidro a toda a extensão da fachada, permitindo admirar a paisagem urbana [94, e montanhosa do seu interior e reflectindo essa mesma paisagem no exterior, 95] mesmo se, para este trabalho, Galfetti admita que o aspecto considerado mais importante foi a relação com a cidade antiga.(90) O Barco-livro de Galfetti atenua a austeridade do Carré, adicionando à fachada Norte uma curva envidraçada e dando acesso ao pátio através de grandes aberturas, prolongamento das ruas do centro histórico. Encontramos, no projecto da mediateca, a materialização da sua convicção de que “um projecto arquitectónico-urbanístico é essencialmente um projecto de vazios”(91), feito sobre os espaços intersticiais, a pensar no percurso que liga os dois vazios principais: o do parque da Casa da Cultura e o da praça triangular a poente. Procura, através do estreitamento junto à zona histórica, provocado pela fachada curva, dramatizar a relação entre o novo e o antigo(92). A fachada curva e envidraçada enfatiza ainda a sensação de movimento e convida ao percurso naquele espaço urbano. Reencontramos aqui o percurso como elemento central do projecto, característica sempre presente nos seus projectos e que identificaremos também no Castelgrande. A forma como o edifício interage com o meio – cuidando das memórias urbanas mas também da paisagem circundante – demonstra uma obra acabada expressando plenamente o genius loci. Esta mesma sensibilidade está bem 58.Nicolin, Pierluigi (1984) p. 10. 59.“concrete is used to replace stone and steel inherits many of the construction and expressive characteristics of wood”. Carloni, Tita (1993) p. 7. 60.Magnol, Jacques (2007). 61.Idem.

presente numa obra mais recente de Galfetti em parceria com Yann Keromnès, também em Chambéry: a Cidade das Artes (1999), em que o diálogo dos edifícios com a cidade consolidada e com o jardim onde se implantam consegue um efeito mágico. A relação destes edifícios de Galfetti com a paisagem difere claramente da relação estabelecida nas obras de Botta em alguns aspectos. Em primeiro lugar, não existe, na obra de Galfetti, a diferenciação inequívoca interior/exterior que encontramos em Botta. Galfetti abre os edifícios ao exterior, enche-os da presença da paisagem. Podemos identificar aqui uma atitude que se distancia de certa forma da tradição mediterrânica de voltar os edifícios para dentro de si mesmos. Depois, a maneira como a Casa da Cultura e a Cidade das Artes assentam no território: uma aderindo à estrutura dominante pré-existente – o Carré – servindo a sua monumentalidade, humanizando-a; a outra, dois cubos brancos, destacando-se em oposição aos elementos naturais do jardim mas, pela sua escala, negando-se à monumentalidade. Duas posturas distintas entre si – revelando-se a adaptabilidade de Galfetti ao genius loci mediante a reinvenção [96] de si mesmo e, é preciso dizê-lo, mediante o culto da dúvida como possibilidade [94] Castelgrande, vista geral – Aurelio Galfetti


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de se interrogar sobre a essência do seu trabalho a cada novo projecto.(93) Relativamente ainda à forma e à implantação, para além de captarem a atenção de quem chega da zona histórica, estas terão um efeito significativo no espaço interior: a superfície envidraçada, curva, voltada a Norte faculta a iluminação ideal para uma biblioteca. Antes de tudo, Galfetti pretende, com a ajuda do seu projecto, que o conjunto dos novos edifícios do bairro dialogue com o limite Sul do centro histórico da cidade e estabeleça um espaço público vivenciado.(94) Mesmo não sendo a montanha um elemento directamente inspirador do projecto, a maneira inteligente como este interage com a envolvente – tanto do ponto de vista estético como funcional –, contribui para a formação de uma paisagem urbana actual, sensível à paisagem montanhosa, e de um espaço público aberto às diversidades e sobreposições da sociedade contemporânea. [41] Referindo-se ao espaço envolvente do seu projecto, Galfetti parece bem [95] Castelgrande, planta piso 0, cortes e alçados– Aurelio Galfetti 62.Frampton, Kenneth (1992) pp. 314-327. 63..“Botta builds a wealth of light. (…) Everything he does, he does for light. (…) the best light always comes

[96] Castelgrande


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consciente disso: A exigência de comunicação e de continuidade entre o passado e o presente representa-se e concretiza-se nesta nova “praça pública”. Este lugar de encontro e de troca, gerado por uma série de projectos espacialmente e temporalmente autónomos quer-se articulado, dinâmico, aberto, receptor, em contínua transformação assim como, penso eu, são as relações entre as coisas e os homens.(95) O englobar dos elementos constituintes daquele todo como paisagem e lugar vem confirmar a sua crença de que o respeito pela paisagem natural ou cultural é central para toda e qualquer intervenção. Esta paisagem será reconstruída [97] pela sua arquitectura(96), corroborando também Galfetti a tese de Gregotti referida mais atrás. Importa ainda referir que nestes dois projectos de Chambéry, Galfetti põe de lado o seu vocabulário mais frequente – a linha e o plano(97) – para adoptar figuras volumétricas simples: o cilindro e o paralelepípedo, aproximando-se mais da expressão arquitectónica habitual dos colegas. A capacidade camaleónica de assimilação de linguagens próximas da dos colegas com quem trabalha é uma característica que o próprio assume como positiva: No que diz respeito à linguagem, eu trabalho com toda a gente. Trabalho com Mario Botta, com Vacchini, com Tami… Porque sou capaz de participar, de compreender a realidade geográfica e espacial.(98) Prova da abertura de Galfetti à aprendizagem com os colegas é a forma como relata a transformação que Botta introduziu na arquitectura tessinesa e a influência que teve na sua própria abordagem à arquitectura. Reconhecendose influenciado pela concepção racionalista da arquitectura suíça-alemã – decorrendo daí a sua não preocupação com a linguagem, visto que a forma deveria decorrer de um processo “racional e correcto”(99) –, lembra como a chegada de Botta trazendo os ensinamentos de Veneza, nos anos 70, veio pôr em causa estas convicções e abrir novos caminhos à sua arquitectura(100). Fabiola López Durán deixa-nos uma análise interessante deste conjunto, designando-o como “Uma das experiências mais felizes do construir o lugar from above. Therefore, Botta’s buildings are opened up towards the sky.” Loderer, Benedikt (1998) p. 7. 64.“un mur, c’est une texture, c’est une manière de prendre la lumière, de définir l’horizon et le rapport avec le terrain, et tout ça représente une infinité de richesses que l’architecture peut donner comme valeur habitative à l’usager”. Botta, Mario (1995) p. 22. 65.Good architects can be recognized by the way they guide light. Botta? One of the Great. Loderer, Benedikt (1998) p. 7. 66.En Botta el paisaje es estratificado y administrado a través de las diferentes dimensiones, formas y ubicaciones de las ventanas, pero es el cielo y en algunos casos también la cima de las montañas el elemento natural que usualmente entra en sus casas a través de los lucernarios y de las cúpula. López Durán, Fabiola (1995) p. 32.

fora do Tessino”(101). Lembra que Botta foi para além do exigido pelo concurso, reformulando as relações existentes entre os conjuntos edificados e que é para este contexto que Galfetti propõe o seu volume semi-circular dez anos depois, reformulando por sua vez a percepção da paisagem urbana. Observa ainda o respeito pela construção antiga do Carré, reconciliando-a com o centro histórico, “numa atitude de elegante reverência”(102). A arte do lugar associada à presença da montanha no conjunto Curial? [97] Castelgrande – Aurelio Galfetti 67.Gravagnuolo, Benedetto (1998) p. 13. 68.“(...) Botta’s works are not simply buildings to be inhabited, but poetic sculptures of inhabiting.” Masullo, Aldo (1998) p. 24. 69.“Je pense que le vrai territoire de l’architecture reste la mémoire.” Botta, Mario (1995) p. 19. 70.When building it is the past, the great past wich is fulfilled. It is the remembrance of past peoples, of atavist forces, magical mysteries, lost in the darkness of time, a memory of all that which was longed for, but sublimated, so as to come to terms with the demands of everyday life. Mario Botta citado por Gubler, Jacques (1997) p. 7. (Excerto do texto de Mario Botta “L’arcaicità del nuovo” in Zardini, Mirko (1985). James Stirling,


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Não podemos concordar em absoluto com a visão de Durán. Consideramos que [98] o conjunto Curial não concretiza a simbiose acabada com o lugar, que Botta e

Galfetti desejavam, sobretudo porque as áreas de espaço público não resultaram como haviam sido concebidas. Tendo a zona Curial perdido o interesse para a administração municipal, o espaço público foi abandonado como projecto que unificaria as partes e dignificaria a paisagem urbana e as vivências(103). Apesar disso, a “arte do lugar” está presente nestas obras sob vários aspectos, em certa medida associada ao respeito pela memória e ao renovar da identificação – componentes essenciais na concretização da arte de determinado lugar(104) – passando ainda pela reapropriação do símbolo da montanha. O urbano foi o elemento primário com que os arquitectos trabalharam, desde logo porque o urbano tinha uma presença mais forte do que a montanha em torno do quartel Curial. Ainda assim, os ecos da montanha poderão identificar-se nesta paisagem urbana por duas vias, embora, é certo, de forma mais subtil do que nos outros [98] O rochedo e o vale – desenho de Aurelio galfetti Michael Wilford and associates. La nuova Galleria di Stato a Stoccarda. Milano: Quaderni di Casabella). 71.Aurelio Galfetti Architetto: http://www.aureliogalfetti.ch 72.Zardini, Mirko (1989) p. 9. 73.Botta, Mario et al. (1995) p. 40. 74.Botta, Mario (1989), López Durán, Fabiola (1995) p. 21. 75.the introversion of the building and the research for a clear contrast between the built form and the landscape. The articulation of the house whith its inversion of the traditional organization. Zardini, Mirko (1989) p. 9. 76.“an image wich brought back the primal sensations that testify to the age-old struggle between man and

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dois casos alpinos que analisaremos ainda neste capítulo. Em primeiro lugar temos a montanha como realidade visível em plano de fundo ou sob a forma das elevações da Calamine e da falésia Saint Martin. Mesmo que a legitimidade de designar como “montanha” estes dois últimos significantes seja discutível, eles podem remeter para a montanha pela associação de significados. Botta, como vimos, toma esta transposição como um dado aceite, como se a presença destes elementos trouxesse para o local de intervenção signos da montanha: a rocha, a falésia, a elevação, a floresta. Isto a uma escala menos grandiosa do que a da alta montanha, é certo, mas mesmo assim significativa. Observando as fotografias antigas, parece que esta relação seria mais intensa há algumas dezenas de anos atrás, quando os quartéis se encontravam isolados da cidade e as construções na colina eram quase inexistentes. É notório que, desde o século XIII, a evolução deste espaço tende para um afastamento dos espaços naturais e uma integração no urbano(105). Mesmo actualmente, a expressão da visibilidade das montanhas não é permanente e imutável, como pudemos observar ao longo das estações do ano, das condições climatéricas e da hora do dia. Significativo é ainda o facto de, no edifício de Galfetti, o reflexo das montanhas operar a sua transposição destas para o interior do sítio, com forte presença visual. Em segundo lugar, o ícone da montanha pode ser lido, de forma menos directa, nos signos ou índices das construções, particularmente no edifício de Botta. A analogia à montanha remete para um imaginário simbólico particular em duas vertentes. Por um lado, temos as referências, indirectas que sejam, a uma arquitectura alpina ancestral da região do Tessino. Por outro lado, remete ainda para uma interpretação semiológica. A Casa da Cultura materializa-se mediante monólitos verticais em tons de pedra e praticamente sem aberturas. A analogia à rocha, ou mesmo à falésia próxima, surge facilmente. Simultaneamente, a monumentalidade da construção pertence a uma escala não humana e o aspecto compacto assume uma força esmagadora, tal como a montanha que [99, se eleva sob o céu. Por sua vez, as escadas exteriores remetem para a noção 100] de ascensão, própria da montanha, e para as escadas existentes em Chambéry, nature(…). That geometry constructed on the hill was the sign of a resistance and a poetry which were still possible”. Botta, Mario (1989) p.6. 77.Características como a entrada pelo último piso, a galeria, a redução das janelas, o betão realçando o carácter plástico da construção, serão encontradas posteriormente na obra de outros arquitectos, incluindo obviamente Botta. Zardini, Mirko (1989) p. 10. 78.“the continual experimentation in the creation of an individual and personal expressive language evident in projects, competitions and constructions which have broken out of the geographical “territory” of the little “state” of the canton of Ticino to address a fully European dimension and debate.” Botta, Mario (1989) p. 8.


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tendo em vista transpor os declives de acesso às zonas montanhosas. Assim, podemos ler nesta obra de Botta uma série de signos atribuíveis ao ícone da montanha, que em nada reduzem o seu valor como edifício representativo de uma urbanidade reinventada. Afinal, talvez não seja um acaso a escolha de Botta e Galfetti para a concepção das obras mais mediáticas desta cidade de montanha e de cultura mediterrânica. Estes arquitectos, embora construam por todo o mundo, manifestam, como vimos, um forte sentido de urbanidade associado a uma sensibilidade ao lugar ligada à omnipresença da paisagem no território montanhoso que é o deles, o que poderá servir os objectivos de uma cidade que se esforça para brandir uma sólida identidade alpina(106).

3.2 Termas Merano – Merano (Zillich & Baumann, Matteo Thun e Müller & Wehberg)

[99] Castelgrande, vertente Sul, parte da murata, anterior à reconversão

[100] Castelgrande, vertente Sul, parte da murata, após reconversão

79.Idem p. 7. 80.Zardini, Mirko (1989) p.9. 81.Galfetti, Aurelio et al. (2010) 82.Galfetti, Aurelio (2009) p. 14, citando Le Corbusier em Vers une architecture. 83.“each project is complete and self-defined to such a degree that these works can be interpreted as a series of essays, each one as exploration of a different direction, with dead ends, unexpected developments and surprising returns.” Zardini, Mirko (1989) p.9. 84.Ça m’a aidé beaucoup parce que je n’ai jamais été préoccupé d’avoir mon langage, d’avoir ma person-

O sítio. Evolução e descrição(107) O terreno em questão caracteriza-se por uma relação privilegiada com a paisagem de montanha: o perfil montanhoso é presença constante desde os seus limites. Alongado no sentido Norte-Sul, desenvolve-se numa pendente suave, descendo à medida que se afasta do rio e do centro histórico para Sul. Esta configuração permite uma boa insolação, aspecto importante para um edifício termal do tipo pretendido. A zona é limitada a Norte pelo rio Passirio, a Sul pela Via Petrarca e a Poente e Nascente respectivamente pela Via Piave e a Via G. Garibaldi, ambas servindo


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edifícios habitacionais, de pouca altura, entre o arvoredo. O arvoredo marca aliás presença em todo o perímetro do terreno, mascarando durante parte do ano as construções envolventes, mas deixando sempre aparecer, mais acima e mais ao fundo, as montanhas. A própria zona de intervenção já dispunha de vastas áreas arborizadas, que foram em grande parte mantidas. O limite Norte, definido pelo Passirio, deixa esta frente do terreno aberta ao cenário do centro histórico, tendo como primeiro plano, do outro lado do rio, o Kurhaus. O Monte Benedetto ergue-se como plano de fundo desta paisagem urbana. Embora integrado no espaço urbano, o lugar recria um ambiente pitoresco, em certos momentos muito distante das imagens geralmente associáveis a um ambiente urbano. Veremos mais à frente como o novo edifício vai entrar em diálogo com este lugar. Recordamos agora apenas que, para além dos aspectos visíveis relativos à paisagem, o valor simbólico do lugar também se assume no genius loci. E este valor estará aqui inevitavelmente ligada à anterior existência de edifícios emblemáticos – primeiro o Grande Hotel e depois o edifício termal de Gelmi (108) – que, de certa forma, vão encontrar algum eco na arquitectura das novas Termas de Merano. Esta área encontrava-se originalmente num solo aluvial do rio Passirio. Após a construção do muro em pedra para contenção das águas, no século XVIII, transformou-se em terreno de pradaria usado para pastagem. As primeiras construções neste local surgiram no século XIX, acompanhando o início do turismo termal na cidade. Nasce então em 1873, pela iniciativa de uma sociedade vienense, o enorme edifício do Wienerhotel, mais tarde renomeado Meraner Hof Hotel ou Grande Hotel. O longo edifício desenvolvia-se no sentido este-oeste, acompanhando a frente ribeirinha e formando uma barreira considerável entre o centro histórico e as novas zonas da cidade que se constituíam pouco a pouco a Sul. A Via Garibaldi, dantes apelidada de Meranerhof Allée partia do hotel e a ele servia de acesso, delimitando a Este o seu parque e o primeiro hipódromo de Merano(109), adjacente ao espaço ajardinado do hotel. Devido

a problemas financeiros, o estabelecimento hoteleiro permaneceu inacabado e vazio durante um longo período. Só em 1907 é aberta ao público uma zona na ala Oeste do hotel. Alvo de críticas por a sua grande massa obstruir a vista desde o Kurhaus para Sul, o Meranerhof foi ainda assim terminado, mas demolido em 1950 devido à fraca rentabilidade de um hotel de tão grandes dimensões. Poucos anos antes chegou a prever-se cobrir o Passirio ao longo de toda a a extensão da fachada do hotel, o que nunca se concretizou. A descoberta das nascentes de água radioactiva do Monte S. Vigilio em 1933 vieram dar um novo impulso à actividade termal da cidade. A Società Azionaria Lavorazione Acque Radioactive (Sociedade Accionária Funcionamento Águas Radioactivas – SALVAR)(110) despoletou o lançamento de um concurso nacional para a construção de um novo complexo termal. Em 1960 é atribuído o primeiro lugar a Michelangelo Perghem Gelmi. A obra deste arquitecto engenheiro e pintor do Trentino é concluída em 1967, sob a forma de uma estrutura funcionalista bem ao seu estilo. O conjunto entra em funcionamento em 1971. Edificado no centro da cidade, frente ao Kurhaus, no antigo terreno do Grande Hotel, o longo edifício principal com a piscina, sob cobertura abobadada, abria os seus francos vãos a Sul e ao jardim e piscina exterior. O impacto da sua volumetria era muito menor do que o do Grande Hotel: mais baixo, ocupava uma zona de cota inferior e mais afastada da margem Sul do Passirio. Para mais, apesar de construído em betão, este edifício transparente aparentava ligeireza, parecendo a sua cobertura saliente pairar sobre os finos pilares. Privilegiava a continuidade paisagística interior/exterior usando-se da transparência e da localização das piscinas em continuidade com [101, os espaços ajardinados – algumas destas características estarão presentes, como 102, 103] veremos, no recente projecto que veio substituir a obra de Gelmi. Nos últimos anos do século XX, as termas de Merano, outrora famosas, vinham perdendo atractividade para os visitantes estrangeiros. A estrutura dos anos 60, aninhada num vasto espaço verde, tornara-se incapaz de dar resposta ao novo conceito de spa procurado pelos turistas, para além de se encontrar desconectada do centro histórico, tanto funcionalmente como visualmente.

nalité, d’avoir mes racines, d’avoir mon identité. (…). Et donc ça m’a permis de faire ce que j’aimais. Mais je trouve qu’il ya quand-même des éléments qui se répètent, des pensées qui se répètent par rapport à l’idée de l’espace géographique comme matrice de ce que tu fais. L’espace public comme un projet qui vient avant le projet de l’objet. Galfetti, Aurelio et al. (2010). 85.L’édifice de Mario Botta est fait de béton, de pierre et de métal peint en noir. J’ai repris le béton, la pierre et le fer avec l’idée de faire, avec ces matériaux une architecture complètement différente. Je répète, l’important était le vide, l’espace entre le nouvel édifice et la ville ancienne. Galfetti, Aurelio (2001) pp. 50-51. 86.Galfetti, Aurélio (2009) 87.Galfetti, Aurelio et al. (2010) 88.“lo spazio è il vero linguaggio dell’architetto”. Galfetti, Aurelio (2009) p. 18.

89.López Durán, Fabiola (1995) p.21. 90.Galfetti, Aurelio (2001) pp. 50-51; Galfetti, Aurelio et al. (2010). 91.Galfetti, Aurelio (2009) p. 41. 92.Ibidem, Galfetti, Aurelio et al. (2010).


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Da percepção desta realidade, nasce em 1997 uma proposta interessante de reestruturação da área adstrita ao complexo termal. Publicada num número da revista da Ordem dos Arquitectos da província, dedicado a Merano(111), esta proposta marca um ponto de viragem para a percepção do sítio. Resultado do trabalho final para a obtenção do diploma de Arquitectura de Alessandro Casciaro e Heinrich Zöschg, o projecto situa-se numa abordagem acentuadamente experimental, pois é na verdade um exercício académico destinado a permanecer no papel. Propõe-se tornar público o parque privado

das termas e a demolição do edifício de Gelmi, considerado desadequado face às exigências actuais, tanto do ponto de vista da dinâmica urbana, como relativamente às características de um equipamento termal atractivo. Procurase, a partir desta zona, coser com coerência a cidade histórica às zonas de expansão a sul do Passirio. Esta transformação é formalizada através de uma grande cobertura metálica atravessando o rio sobre uma larga ponte, unindo a nova zona termal e cultural à zona histórica. O conceito do projecto funda-se no dualismo natureza-artifício, essência desta

[101] Castelgrande, elevador – Aurelio Galfetti

[102] Castelgrande, elevador – desenhos de Aurelio Galfetti [103] Castelgrande, elevador, plantas e cortes – Aurelio Galfetti

93.Galfetti, Aurelio (2009) p. 14. 94.Galfetti, Aurelio (2008). 95.L’exigence de communication et de continuité entre le passé et le présent se représente et se concrétise donc dans cette “nouvelle place publique”. Ce lieu de rencontre et d’échange, généré par une série de projets spatialement et temporellement autonomes se veut être articulé, dynamique, ouvert, récepteur, en continuelle transformation tout comme, je le pense, le sont les rapports entre les choses et les hommes. Idem. 96.Lopéz Durán, Fabiola (1995) p. 32. 97.Galfetti, Aurelio (1995).

98.“en ce qui concerne le langage, moi je travaille avec tout le monde. Je travaille avec Mario Botta, avec Vacchini, avec Snozzi, avec Tami… Parce que je suis capable de participer, de comprendre la réalité géographique et spatiale.” Galfetti, Aurelio et al. (2010). 99.Galfetti, Aurelio (2009) p. 18. 100.Idem p. 30-32.


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cidade termal, considerando o tipo urbano da passeggiata como modelo por excelência deste dualismo: “por um lado evento de total domínio da natureza pelo engenho do homem, por outro, manifestação ostentada de um possível eidos do natural”(112). O jogo das relações paisagísticas interior-exterior e cidade-natureza constitui uma peça chave. Se, por um lado, este projecto se tornava excessivo nalguns aspectos, devido certamente ao seu carácter experimental – pensamos no impacto da cobertura gigante -, por outro lado lançava questões de grande pertinência para o futuro da cidade, propondo algumas soluções inteligentes. Entre elas, a geração de um [104] espaço urbano centralizador, a desprivatização do parque, a forte presença nos espaços exteriores do tema da água e o reforço de uma identidade urbana singular, associada a uma relação forte com os elementos naturais e a paisagem. Dois anos mais tarde, o governo provincial, maior detentor de acções da Meraner Kurbad AG – Terme di Merano S.p.A.(113), decide redinamizar este sector, começando por lançar um concurso de arquitectura para um novo complexo termal. Apesar de os responsáveis pelo programa de concurso afirmarem que o projecto académico em nada influenciou o programa do concurso(114), algumas ideias lançadas no projecto experimental de Casciaro e Zöschg vão estar presentes nas exigências do programa, sendo que estes já haviam deixado recomendações explícitas para “o programa de um futuro concurso”(115). Também algumas propostas vão apresentar pontos semelhantes com o projecto de Casciaro e Zöschg, por coincidência ou não, o que veremos de seguida no decorrer da análise do contexto de realização do novo conjunto urbano. Contexto de realização do projecto(116) O concurso para realização das novas termas integra-se em toda uma lógica de relançamento da cidade, na esfera internacional, constituindo uma operação conjunta de marketing e de requalificação urbana generalizada, em que se enquadra também a reelaboração do PUC de Merano(117). Lançado em 1999, o concurso foi aberto a equipas de países membros de União Europeia, da Suíça, do Liechtenstein e da Noruega. Estas equipas deveriam 101.“Una de las experiencias más felices del construir el lugar fuera del Ticino”. Lopez Durán, Fabiola (1995) p. 22-23. 102.“en una actitud de elegante reverencia”. Ibidem. 103.Galfetti, Aurelio et al. (2010). 104.Norberg Schulz, Christian (1997) pp. 47-48. 105.Matos, Maria João (2007). 106.Magnol, Jacques (2007). 107.Ver anexo D. 108.Constatável nos sites saudosistas com imagens destes edifícios (como o sítio web Anni settanta a Merano: http://www.meran70.it/) e pela na edição do Livro Meranerhof – Storie Meranesi sobre a historia

obrigatoriamente ser constituídas por arquitectos ou engenheiros e especialistas na área do planeamento paisagístico. Chama-se a atenção para a abertura a concorrentes provenientes de dois países alpinos para além dos pertencentes à UE, e ainda à Noruega, outro país com um vasto território de montanha, com o qual a cidade parece ter desde há algum tempo uma relação simbólica – Merano foi apelidada pelo artista Fritz [104] O Parque de Castelgrande – Aurelio Galfetti do Grande Hotel).



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PARTE III A Covilhã

Procede-se à análise do caso de referência – a Covilhã – seguindo os mesmos parâmetros usados para a análise das cidades alpinas. Pretende-se, agora na cidade portuguesa, identificar o tipo de relações estabelecidas com a montanha a vários níveis – artístico, histórico, formal, paisagístico, funcional e identitário. Esta realidade será comparada com os casos alpinos, anteriormente observados segundo as mesmas categorias de interpretação. Poder-se-á assim estabelecer uma análise crítica levando ao decifrar da situação actual da Covilhã – relacionada com uma história particular de desenvolvimento urbano, económico, social, cultural e de produção arquitectónica da cidade - na sua relação com o território montanhoso. Com base num método comparativo, levantar-se-ão algumas pistas para a resolução de problemas prementes nesta cidade, frequentemente associáveis a um desequilíbrio entre expansão urbana e valorização do património local – seja ele natural ou construído, paisagístico ou ambiental. Partindo desta perspectiva, centra-se depois o estudo na zona do antigo castelo, tomando-se os critérios de leitura e interpretação já utilizados para os casos alpinos. A uma breve análise da evolução da zona, segue-se a passagem em revista dos projectos recentes para a mesma. Com base no contexto sociocultural e de desenvolvimento urbano da cidade e na interpretação da imagem e tectónica do sítio, propõe-se uma metodologia de abordagem conceptual para a expressão da arte do lugar numa futura reconversão do sítio. A adopção de um método de análise idêntico para os quatro casos permitirá estabelecer comparações, identificando-se semelhanças e diferenças, bem como sugerir modos de abordar lugares simultaneamente urbanos e de montanha, com vista à realização de obras arquitectónicas em sintonia com a dupla natureza destas paisagens.


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[2] Covilhã - Carta topográfica, 2000

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a vida dos operários das indústrias nos anos de 1940, descrevendo nalgumas passagens a cidade enquadrada pela serra: Um dia, quando os operários da Covilhã e da Aldeia do Carvalho saíram de suas casas, viram todas as encostas, todas as dobras do terreno, todos os caminhos vestidos de branco. A cidade, num esporão da serra, parecia obra de fantasmagoria, com telhados e perfis inverosímeis.(8) O facto de as descrições literárias sobre a paisagem montanhosa covilhanense serem raras poderá explicar-se em parte pela situação flagrantemente excêntrica da Serra da Estrela em relação à Europa, quando a comparamos com a centralidade dos Alpes. Assim foi e continua a ser em termos de localização geográfica mas também, e sobretudo, em termos culturais. Como já referimos mais atrás, a Serra da Estrela acolheu ecos de alguns fenómenos característicos do meio montanhesco, iniciados nos Alpes, contudo tardiamente e com um impacto atenuado. Não nos surpreende que, por isso, e devido à pequena dimensão relativamente a outras cadeias montanhosas europeias, a abundante literatura deixada por viajantes ilustres e redigida para turistas em busca de experiências estéticas marcantes nos Alpes não tenha correspondência comparável na Serra da Estrela, que só em 1881 foi objecto da primeira expedição científica(9). A ligação cidade-montanha prolongou-se aqui de uma forma mais primitiva, numa cidade que, embora cedo se tenha industrializado, manteve paralelamente modos de vida fortemente ruralizados, como nos descreve Ferreira de Castro. A carência da expressão mais erudita de uma simbiose cidade-montanha, através dos valores paisagísticos, revela-se ainda na ausência de representações pictóricas ilustrando esta visão. A beleza e carácter singular da cidade em diálogo com a montanha, que descreveram estes poucos autores, parece hoje ter-se diluído na paisagem urbana covilhanense. Perguntamo-nos quais as razões que levaram a que a expansão urbana desordenada tivesse um efeito tão devastador na paisagem, efeito este que Teotónio Pereira acredita não ter paralelo em nenhuma outra cidade portuguesa(10). Para além de um planeamento urbanístico ineficaz, arriscamos sugerir razões culturais. 8.Castro, Ferreira de (1947). 9.Ver Parte I cap. 2.3. 10.Pereira, Nuno Teotónio (2010). 11.Torga, Miguel (1967) p. 80. 12.Silva, José Aires da (1996) pp. 125-133. 13.Idem p. 129.

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Quiçá Torga tenha alguma razão quando afirma: “pouco sensível à estética, o beirão não cuida da beleza dos seus burgos”, ou ainda quando fala “dessa pobreza artística que o marca”, mencionando, não obstante, que a beleza surge nalgumas vilas “sem ele querer” mesmo se “a pobreza do solo, a aspereza do clima e a configuração moral e mental do habitante não consentiram nunca nem os vagares da criação gratuita, nem os ócios da sua fruição”(11). Como vimos nos casos alpinos, ao existir, a noção cultural e simbólica do valor da paisagem serve muitas vezes como travão da descaracterização da imagem do território, arrastada pela expansão urbana das sociedades pós-industriais. Ora, seja na região beirã, seja no contexto mais restrito da cidade da Covilhã, essa noção parece não marcar significativamente a cultura local. Esta falta poderá ter contribuído para o início da descaracterização da paisagem, que prosseguiu depois alimentada também pela expansão urbana desregrada, presente um pouco por todo o país. Aires da Silva(12) reforça esta tese. Passa em revista as realizações, instituições e eventos de âmbito cultural merecendo destaque na cidade, referindo áreas como o património, a arquitectura, a arte pública, a música, o teatro e a recreação, mas realçando as graves falhas de âmbito cultural da cidade, que se prolongam desde há séculos atrás: A falta de monumentos e edifícios de notável valor arquitectónico devese à pobreza da terra, sujeita a crises da sua indústria, à interioridade, e, como se disse, a falta de Mecenas e de homens ricos voltados à cultura. O próprio granito da montanha é aqui impróprio para a cantaria e mais adequado à feitura de muralhas e castelos. E a degradação das muralhas começou, afinal, com uma ordem do próprio Rei D. José I (…)(13) A pintura – arte desde sempre ligada à paisagem de montanha e à identidade das mais belas cidades alpinas –, também é abordada por este autor. Contudo, os artistas que refere são recentes e não se dedicaram à representação pictórica da Covilhã inserida na paisagem montanhosa, mas antes a retratos – Eduardo Malta (1900-1967) – ou a recantos pitorescos da cidade – Alberto Roseta (1915-1990). Confirmando esta realidade, salienta-se que mesmo no Museu de Arte e


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década do século XX, é decidida a expansão da universidade mediante um novo pólo na zona norte, reutilizando-se as antigas instalações industriais da empresa Ernesto Cruz, junto à ribeira da Carpinteira, alargando-se depois a ocupação a outros edifícios industriais devolutos – como a antiga firma João Roque Cabral, transformada em residência universitária por Conceição Trigueiros(66). Contudo, nesta zona, a maioria dos edifícios continua ainda devoluta e em ruínas. Reconverteram-se, graças à Universidade, alguns dos edifícios mais significativos e simbólicos da cidade, erguidos para servir a indústria, sua função principal durante séculos. A memória deste aspecto central da história da Covilhã pôde assim ser preservada(67). A função universitária estabelece-se então como o principal motor da economia e do desenvolvimento da urbe. Dos pontos de vista urbanístico, arquitectónico e paisagístico, as transformações associadas à UBI e sobretudo à equipa de Bartolomeu Costa Cabral, que veremos mais à frente, foram muitíssimo significativas(68): O que marca a edificação universitária na Covilhã é o entrosamento que foi tecendo com a própria cidade; e, diríamos agora, com a paisagem. (…) No âmago dos edifícios mais qualificados da universidade, encontramos um competente tratamento dos pronunciados declives que são atributo da cidade; e um redentor acolhimento da luz natural. (…) A arquitectura dos edifícios universitários constrói urbanidade e aponta futuros possíveis ao corpo da urbe.(69) Inevitavelmente, a cidade saiu revitalizada pelo novo grande equipamento, que, em contrapartida, fez disparar a expansão urbana desregrada na zona baixa(70). Em 2006, concluiu-se nesta zona a construção da Faculdade de Ciências da Saúde, desenhada por José Carlos Loureiro, revelando uma atenção particular quanto à integração volumétrica no local. Não obstante, temos que concordar com Madalena Cunha Matos(71) quando esta lembra que se perdeu a oportunidade de instalar determinadas funções [32 ] Fábrica Ernesto Cruz, 1995 65.Matos, Madalena Cunha (2009) pp. 110-111. 66.Pinheiro, Elisa Calado (2009) p. 99. 67.Idem p. 100. 68.Idem pp. 98-109, Matos, Madalena Cunha (2009). 69.Matos, Madalena Cunha (2009) p. 119. 70.Fernandes, José Manuel (2009) p. 52. 71.Matos, Madalena Cunha (2009) p. 115.

[33 ] Antiga fábrica Ernesto Cruz, actualmente Pólo IV da UBI


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menores da Universidade no centro histórico, o que poderia contribuir para a reabilitar o edificado em estado de degradação e trazer população para esta zona da cidade. Em síntese, da análise diacrónica e da observação da cidade actual, podemos deduzir, como bem nota, Domingos Vaz, que “à importância económica da cidade não correspondeu um interesse arquitectónico ou artístico de especificidades notáveis”(72). Esta é uma opinião partilhada por outros, incluindo Aires da Silva: Salvo raras excepções, tem sido a Covilhã parca em mecenas, capazes de promover na sua terra a construção de grandes monumentos, ou sequer palácios de apreciável valor arquitectónico.(73) O desenvolvimento precoce da indústria e alguma riqueza não se fizeram acompanhar por um investimento consistente na valorização dos espaços urbanos da cidade, ao contrário do que aconteceu nalgumas cidades alpinas, como por exemplo na zona austríaca do Vorarlberg. Daí que os monumentos grandiosos ou construções de excepção não marquem a imagem da Covilhã, associável antes a uma morfologia particular, moldada em grande medida pela topografia acidentada, em anfiteatro, que constitui a sua riqueza paisagística: uma morfologia tradicional tipicamente serrana, com um traçado labiríntico e uma assinalável densidade de bairros, recantos, pequenos largos, ruas irregulares, o jardim-varanda e outros belvederes.(74) Tal como nos casos alpinos estudados, a cidade, a dado, momento expandiuse para a zona de vale e acompanhou o eixo Tortosendo – Covilhã – Teixoso (usualmente designado por eixo TCT). A cidade mantivera-se concentrada nas encostas íngremes da serra até meados do século XX, configurando uma morfologia adaptada à topografia em torno das indústrias de lanifícios. A expansão deu-se de uma forma desconexa da cidade antiga e, sobretudo nas últimas décadas, sem a preservação das vistas para a paisagem, sem um desenho de conjunto coerente com a topografia do território e sem um ordenamento digno desse nome. Teotónio Pereira, salvaguardando as reconversões destinadas a albergar a UBI, salienta como razão principal da degradação paisagística, generalizada, [34 ] Estrutura urbana da Covilhã adaptada à morfologia do terreno 72.Vaz, Domingos M. (2004) pp. 99-100. 73.Silva, José Aires da (1996) p. 127. 74.Vaz, Domingos M. (2004) p. 101.

[35 ] Covilhã – degradação paisagística

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norte da Rua Marquês de Ávila e Bolama (fase I), ligado ao edifício principal por uma ponte sobre a rua, edifício este que veio a ser intervencionado numa segunda fase. A reconversão destas construções e das estruturas industriais em volta viriam a constituir, no seu conjunto, o Pólo I da UBI. Para a reconversão correspondente à fase I, terminada em 1974, foram tomadas algumas opções que marcaram também as intervenções subsequentes. Neste edifício longo, acompanhando a Rua Marquês de Ávila e Bolama e sobrelevado em relação a esta, ensaiam-se as escolhas em termos de materiais, que acabaram por ser retomadas. Costa Cabral joga com a tensão entre a densidade das paredes de granito e os vãos transparentes. Explora o sentido longitudinal do edifício através da luz natural e das ligações visuais entre os diferentes espaços interiores, bem como entre o interior e o exterior. Realça a nobreza do material original, ao mesmo tempo que vai introduzir notas modernas na estrutura preexistente: as transparências e a fluidez interior-exterior; os contrastes cromáticos entre o cinza do granito e do betão contrastando com o branco do reboco, a madeira e a cortiça e o vermelho de todos os elementos metálicos e da tijoleira; a textura brilhante dos novos pavimentos; a iluminação zenital de modo a preservar as fachadas. No edifício principal da Real Fábrica, Costa Cabral vai aprimorar estes efeitos. Esta estrutura havia entretanto sofrido severas alterações para aquartelar, primeiro, o Regimento de Infantaria 21 e, depois, o quartel do Batalhão de Caçadores 2, ocultando-se partes importantes da indústria pombalina. Consequentemente, durante as obras iniciadas em 1975, descobriram-se vestígios arqueológicos importantes, entre os quais as tinturarias da Real Fábrica, classificadas Imóvel de Interesse Público em 1982 e dando origem à ao primeiro núcleo do Museu de Lanifícios (MUSLAN) da UBI, inaugurado em 1992. Aqui, o uso de estruturas metálicas pintadas a vermelho é mais ousado, tanto no pátio central como nas comunicações interiores, zonas técnicas e detalhes do museu, destacando-se propositadamente pela cor e ligeireza das pesadas paredes em pedra. O edifício, albergando o MUSLAN e outras funções da universidade, mantém-se voltado para o grande pátio, tal como a fábrica [42] Fase I, plantas [43] Fase I


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original, mas exploram-se novamente os atravessamentos interiores, através das transparências, e a luz natural é captada pelas francas aberturas superiores – tal como Botta, também Costa Cabral usa a luz zenital com sabedoria, criando ambientes de grande riqueza lumínica. A fase III, já construída nos anos 80, veio ocupar uma área existente de râmolas de sol, disposta em socalcos. O novo espaço edificado, destinado a acolher laboratórios, foi concebido em estrutura metálica e desenvolve-se longitudinalmente encostado ao desnível do terreno, com paredes de vidro dando para terraços verdes voltados para a paisagem a sul. Tendo sido utilizados os mesmos materiais e princípios que nas fases anteriores, houve ainda uma preocupação especial de considerar estes espaços verdes integrados na estrutura em socalcos, preservando nomeadamente árvores existentes no local. Ainda na década de 80, conclui-se a fase seguinte (fase IV). Constitui um conjunto edificado com planta em L que vai ligar todos os outros edifícios. Concentra o bar dos alunos, zonas de convívio a céu aberto, serviços administrativos e zonas de gabinetes, ao mesmo tempo que formaliza a entrada principal e serve de charneira às principais distribuições verticais e horizontais de todo o complexo. Esta parte do projecto será uma das mais surpreendentes pela variedade nos tipos de espaços que congrega, sem que se perca o sentido de unidade entre eles. Voltamos a encontrar a dignificação do percurso, concretizada com forte sentido poético no desenho dos espaços exteriores em torno do bar: pátios arborizados de escala humanizada, espaços de repouso e convívio, pontos de tranquilidade no percurso entre dois edifícios ou dois pontos da cidade, ora mais contidos entre muros de granito e betão, ora mais abertos ao exterior. Acrescenta-se um novo passadiço sobre a rua conectando ao bloco da fase anterior. Os blocos dispostos dos dois lados da rua passam assim a ficar ligados por duas passagens aéreas – a existente em granito e a nova em betão, metal e vidro. A importância atribuída a estas passagens não só cumpre a função de facilitar a circulação mas, não menos importante, introduz um apontamento lúdico, característico da arquitectura moderna: o gosto pelo efeito cénico da promenade architecturale, o projecto dando grande ênfase ao percurso e às [44] Fase II, plantas [45] Fase II


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ligado à nova construção em betão para as vastas zonas de leitura, depósitos e garagem. A obra é concebida de forma a valorizar a Capela de São Martinho, que enquadra respeitosamente, e revela uma clara noção do diálogo com a paisagem em sintonia com a função do espaço: (…) o lado sul do terreno dá sobre a zona verde da ribeira da Degoldra, com uma extensa vista, o que confere ao edifício um desafogo e uma calma adequados à sua função como biblioteca e lugar de leitura. (112) Mais uma vez, Costa Cabral procurou a horizontalidade, que acentuou através de um grande plano cego na zona superior do novo edifício que, graças à sua colocação avançada, permite a iluminação controlada do interior da biblioteca. Encontramos novamente a coexistência de espaços francamente abertos à paisagem exterior e de espaços mais intimistas, nomeadamente os pátios de ligação entre as diferentes partes. Reencontramos igualmente a interpenetração públicoprivado, estendendo-se as zonas verdes em socalcos desde o estacionamento até ao fundo do vale Poucos anos depois, construiu-se finalmente a última obra desta série de [52] Centro de informática, plantas

[54] Biblioteca, plantas

[53] Centro de informática

[55] Biblioteca

112.Idem p. 183.


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Costa Cabral: o Museu/Arquivo Histórico na antiga fábrica Mendes Veiga, que remata as outras obras de Costa Cabral a sul. O projecto divide-se em duas partes: num volume situam-se os depósitos e o estacionamento; no outro a zona de exposição e outros serviços de apoio. Neste caso, a intervenção é marcada por uma mudança nas opções relativamente aos materiais: desaparece o metal vermelho, sendo substituído nalgumas situações pelo cinzento e, na área de exposições e gabinetes, utiliza-se sobretudo madeira. Os contrastes cromáticos atenuam-se e criam-se ambientes acolhedores, apesar da grande dimensão de alguns espaços. No museu, a sábia modelação da luz natural e a comunicação visual entre os diferentes níveis geram espaços que convidam a ser percorridos. Continuamos a identificar, portanto, o cuidado com o tratamento da luz e espaços dialogantes entre si, através de aberturas e transparências, bem como a valorização das preexistências, embora o edifício apresente um carácter mais introspectivo do que a generalidade dos anteriores, voltando-se predominantemente para o interior, tal como o primeiro pólo do MUSLAN. A paisagem aparece, mas enquadrada pelo ritmo espaçado dos vãos da antiga fábrica. Neste pedaço de cidade de Costa Cabral é apreciável a forma com as diferentes fases encaixam umas nas outras formalizando um todo dotado de uma identidade própria, de uma coesão formal e, simultaneamente, variado na riqueza de espacialidades. Ao mesmo tempo que se afirmam com uma imagem forte e singular, integram-se na paisagem urbana desta zona, reinventando-a a partir das memórias do lugar. Não podemos deixar de encontrar semelhanças no tipo de abordagem adoptado por Costa Cabral na Covilhã com o tipo de aproximação que Galfetti usa na intervenção do Castelgrande – embora, na realidade, os arquitectos não conheçam o trabalho um do outro(113). Tanto a análise das obras como o discurso de ambos o demonstram: a interacção com o sítio, a adaptação ao terreno, a relação consciente com a paisagem, o gosto pelo percurso, a contenção ao essencial, o respeito e admiração pelas estruturas preexistentes e o assumir das intervenções novas, distinguindo-as claramente das antigas. Dois espíritos 113.Segundo as entrevistas realizadas a ambos. Galfetti, Aurelio et al. (2010), Cabral, Bartolomeu Costa et al. (2010).

[56] Museu/Arquivo, plantas [57] Museu/Arquivo

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Esta transformação da cidade passaria pela criação de postos de trabalho, pela dinamização do sector turístico e do comércio tradicional, pela promoção cultural a nível nacional e internacional e pelas mais-valias sociais e psicológicas adquiridas pelos habitantes, associadas à implementação de um equipamento desta natureza. Um aspecto que importa salientar, no âmbito da presente investigação, é a consciência, já neste esboço de intenções, da relevância do papel da arquitectura para o êxito do equipamento: Existem dois factores que são fundamentais para a imagem do museu: a arquitectura e a identidade. O primeiro é, nos dias que correm, o mais iconográfico e sem dúvida alguma, o principal (senão o único) factor de sucesso ou fracasso na nova geração de museus. A identidade prende-se

sobretudo com a tipologia do equipamento e do espólio que expõe. Por tudo isto importa definir uma estratégia que conjugue ambos e que proporcione o encontro entre o público e o museu, sendo necessário um imóvel com elevada qualidade arquitectónica e urbanística, onde exista atracção e vontade de usufruir de um espaço aprazível e lúdico.(24) As escolhas arquitectónicas são consideradas decisivas para que uma intervenção deste tipo possa desempenhar o papel que se lhe impõe, o de ícone para a cidade. O forte valor simbólico que se lhe associa será fundamental para a bem sucedida regeneração urbana e, como não poderia deixar de ser, para que o museu se assuma como veículo central de marketing urbano da cidade(25). Encontrámos abordagens semelhantes nas políticas urbanas de Chambéry e de Merano, que

[18] Casa da família Pintassilgo ao centro

[19] Núcleo intramuros da Covilhã. Traçado urbano

25.Idem p.6. 26.Ibidem.


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levaram à elaboração de programas de concurso e, posteriormente, à escolha de projectos e arquitectos que satisfizessem esta vontade de colocar a cidade no mapa. Revelando plena consciência de nos encontrarmos num tempo e numa sociedade [20] Plano de Pormenor da Zona Intra-Muralhas do Centro Histórico da Covilhã. Planta Síntese

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apegados aos valores do consumo e da arquitectura como imagem de marca, componentes centrais das novas brandscapes, o documento base para a realização do Museu da Cidade da Covilhã defende a escolha, por concurso, de um projecto concebido por um arquitecto “possuidor de um curriculum emblemático de forma a transportar mais-valias estéticas e arquitectónicas para este empreendimento”(26). Parece-nos, no entanto, que a escolha de um “arquitecto estrela” jamais deveria sobrepor-se à qualidade da proposta, ao respeito pelas pré-existências e a uma apropriação sensível dos valores paisagísticos na formalização da arquitectura, forma de aproximação ao sítio adoptada por Galfetti e de Costa Cabral nas obras estudadas, que expressam a arte do lugar associada a uma clara noção das solicitações funcionais e representativas da actualidade. Paralelamente à arquitectura, considera-se de importância primordial o local de implantação do Museu da Cidade. Logo, tendo sido inicialmente consideradas quatro opções para a sua localização(27), resultou de uma análise prévia de cada uma das opções a preferência pela zona do antigo castelo. As razões desta escolha são explicitadas no documento base(28). Para além da localização central e da necessidade de reabilitação de um local patrimonialmente rico, pesou o “excelente posicionamento perante a Covilhã e toda a Cova da Beira com uma panorâmica de 360o”(29). Reconhece-se, portanto, o espectáculo da paisagem envolvente de montanha e de vale como um privilégio a não desperdiçar, enriquecedor desta intervenção que se quer simbólica para a cidade. A paisagem serrana seria parte essencial de “um Genius Loci, característico e muito específico deste simbólico local”, ajudando à “transfiguração do mito histórico num espaço de centralidade, lazer, futuro e memória”(30), fenómeno que vimos ter acontecido nos casos estudados de Chambéry e, sobretudo, de Bellinzona. Resta-nos mencionar o interesse dedicado à área do castelo e das râmolas de sol pelo curso de Arquitectura da Universidade da Beira Interior, resultando nomeadamente em propostas arquitectónicas no âmbito da disciplina de Projecto. Referimos dois exercícios neste âmbito: no ano lectivo de 2004/2005, 27.Opções consideradas para local de implantação do museu: Campo das festas, antigas instalações da central eléctrica, uma unidade industrial, zona do antigo castelo. 28.Pinheiro, Elisa Calado et al. (2004) pp.9-10. 29.Idem p. 10. 30.Idem p. 13


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3_Parte III. Conclusão – Para uma nova paisagem na Covilhã Embora contexto urbano alpino apresente diferenças óbvias em relação ao contexto serrano da Covilhã – a dimensão, a localização em relação ao espaço europeu, a economia, as sociedades, as culturas – muitas situações apresentam paralelos entre si, podendo os casos alpinos inspirar boas práticas nas cidades de montanha portuguesas. No caso específico da Covilhã, é notória a tentativa de associar a cidade à montanha sob diferentes aspectos, mas por vezes de uma forma superficial e contraproducente para um desenvolvimento sustentável. É neste ponto que o conhecimento da realidade alpina poderá prestar um contributo mais relevante, pois regista investigação e iniciativas pioneiras nesse campo, associadas à cooperação entre instituições universitárias e estatais/regionais e à participação activa dos cidadãos, na construção de uma identidade urbana ligada ao território. Assim sendo, podemos dividir a relação entre os dois contextos segundo dois vectores. O primeiro será a identidade urbana de montanha enquadrada no paradigma actual da hipermodernidade. Esta identidade está ainda em fase de construção no âmbito do território alpino, onde, apesar disso, existe plena consciência de que urge clarificar esta questão, como nos demonstram nomeadamente os estudos de Fourny(1), caminhando-se para a sua resolução. No contexto português, como pudemos verificar, ainda não foram estabelecidas as bases na construção de um desenvolvimento sustentável da cidade enquadrada no seu território de montanha, o que permite recorrer às experiências alpinas para fundamentar essa construção. O segundo vector, que nos interessa particularmente, consta da utilização da arquitectura de expressão contemporânea como veículo de entrosamento entre espaços urbanizados e espaços naturalizados de montanha. Plenamente desenvolvido e explorado nalgumas regiões alpinas, este aspecto encontra-se de igual forma presente nas propostas pioneiras de Costa Cabral e de Teotónio Pereira para a Covilhã, mas necessita ser desenvolvido em mais intervenções e no quadro de uma estratégia global de reconstrução de uma imagem para a 1.Ver Parte II cap. 1

cidade de montanha através da arquitectura. Mais uma vez, os exemplos alpinos poderão indicar-nos vias eficazes para o fazer a dois níveis: divulgando-se as obras alpinas de referência no contexto português e, paralelamente, seguindose estratégias semelhantes às usadas nos Alpes para a promoção da produção arquitectónica local. A divulgação das obras e do trabalho dos arquitectos alpinos, no nosso contexto, poderá passar por parcerias entre instituições portuguesas e alpinas, promotoras do intercâmbio no âmbito universitário, acolhimento de exposições itinerantes sobre arquitectura contemporânea e tradução de publicações sobre o tema. São estas as estratégias usadas pelas regiões alpinas mais activas no campo da promoção da arquitectura local, estratégias essas que poderão ser usadas no contexto serrano, gerando progressivamente uma consciência mais generalizada da importância da arquitectura para a reconstrução da paisagem, dinamizando uma produção arquitectónica local com qualidade, que integre urbanidade e valorização do património construído, bem como a paisagem. É precisamente nesses valores, quanto a nós essenciais na construção de uma imagem com sentido de lugar na cidade histórica de montanha, que assenta a nossa proposta metodológica para uma abordagem em arquitectura, exemplificada aqui em relação à antiga zona do castelo da Covilhã.


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Conclusões Finais

O “pequeno” difere do mínimo que é microscópico, e do máximo ou mesmo do grande (puro conceito que, quando se sensibiliza em imagem, tem como limite superior a serra da Estrela, com 2 000 metros de altitude. Para além desta medida o tamanho torna-se incomensurável, como uma abstracção nevoenta.(1) As palavras de José Gil acima transcritas vêm, mais uma vez, reconhecer a dimensão mítica da serra da Estrela no imaginário nacional. Essa dimensão assume inevitavelmente uma importância significativa na reconstrução da imagem da Covilhã, porque a Covilhã pertence indiscutivelmente a esse território mítico. Sendo, como vimos, os mitos, ainda hoje, fundamentais na existência humana, poder-se-á de facto desenhar um quadro de referência para a reconstrução de uma paisagem urbana da Covilhã com a Estrela como base, tanto no plano simbólico como no plano material, através da paisagem. Podemos afirmá-lo, agora que percorremos os caminhos ao encontro das questões colocadas de início, definidoras do modelo de análise das realidades urbano-montanhescas europeias sob pontos de vista culturais, urbanísticos e arquitectónicos. Pretendia-se, deste modo, contribuir para a transformação positiva da paisagem urbana covilhanense, o que, por enquanto, não podemos afirmar que venha a acontecer. De regresso às questões iniciais − Começámos portanto por nos questionar se as políticas urbanas de renovação e de marketing – de alguma maneira associáveis à montanha – poderiam interferir nas transformações da paisagem urbana no sentido de um reforço do espírito do lugar associado à paisagem de montanha. Pudemos verificar que, apesar deste aspecto ser decisivo para o desenvolvimento sustentável das cidades de montanha e, na região alpina, em muitos casos, existirem instrumentos de planeamento para 1.Gil, José (2005) p. 51. 2.Costa Cabral, Bartolomeu et al. (2010), Pereira, Nuno Teotónio et al. (2010).

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que tal acontecesse, as estratégias de marketing e as intervenções no espaço urbano nem sempre consideram a relação dos novos espaços com a montanha. Se bem que os planos paisagísticos, ao existirem, procurem um diálogo entre a cidade e a montanha em termos de vistas e a criação de espaços verdes ligados física ou tematicamente ao meio natural circundante, ao tratar-se de intervenções arquitectónicas, os programas propostos pelas entidades competentes para a realização dos projectos, geralmente, não destacam a interacção visual ou formal com a paisagem de montanha. No caso português, tal como esperávamos, a dissociação é ainda mais flagrante, não existindo instrumentos de planeamento urbano específicos centrados no valor da paisagem. − Mesmo se as políticas urbanas descuram por vezes a interacção da cidade com a montanha através da paisagem, vimos que, não só nos Alpes, mas também em casos pontuais na Covilhã, esse valor único é percebido pelos autores das intervenções arquitectónicas e transposto para as suas obras, reinventando-se os lugares e promovendo-se a médiance. Sendo que os autores destes projectos na Covilhã, segundo eles próprios referem, não se inspiraram directamente no urbanismo ou na arquitectura alpinos(2), este fenómeno reforça a nossa convicção de que a intuição, baseada na observação sensível e atenta do sítio, é fundamental para a concretização de obras plenas em diálogo com a paisagem envolvente. Depreendemos portanto que, mais válidas do que a reprodução de determinadas configurações arquitectónicas existentes noutras cidades de montanha, são a cultura e experiência arquitectónica dos autores, conjugadas com uma criatividade consciente do valor das preexistências e da paisagem. Seguindo esta lógica, os exemplos dos casos alpinos não deverão ser usados como receitas prontas a aplicar no contexto urbano-serrano, mas


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− antes como referências desencadeadoras de reflexão sobre esse contexto e sobre novas formas de nele intervir. − Em consequência, o processo operado para compreendermos, nos casos das transformações urbanas estudadas, que diferenças e semelhanças existiriam entre o contexto alpino e a cidade da Covilhã, e que ensinamentos poderíamos retirar da consolidada experiência alpina, obtivemos respostas de valor significativo para o desenvolvimento de uma aproximação construtiva às dinâmicas cidade-montanha na Covilhã. Se contexto alpino tem vindo a constituir um centro gerador de sucessivos paradigmas culturais, com repercussão na Europa e mais além, é natural que a sua análise contribua para compreender outras realidades. Assim se fez neste estudo, no âmbito do papel das cidades na sua relação com a montanha, estabelecendo-se comparações entre a realidade alpina e o caso de partida - a Covilhã. Inseridos ambos os territórios no contexto sociocultural europeu – cujos paradigmas assentam hoje em grande medida na competitividade, no consumo, na uniformização das paisagens e dos modos de vida mas também, paralelamente, na ecologia e na busca de referências identitárias ao nível dos lugares e dos grupos –, impõe-se a existência de pontos comuns nestes dois contextos. Isto, obviamente, para além das particularidades do suporte físico comum: a montanha como objecto topográfico e paisagístico. As diferenças encontradas entre ambos permitiram precisamente compreender que o meio alpino apresenta exemplos muito positivos de sinergias entre os dois meios – montanhesco e urbano -, não identificados no contexto português. Porque, se já se encontra em construção uma identidade urbana alpina enquadrada nos paradigmas contemporâneos, a identidade urbana serrana enquadrada nesses paradigmas ainda permanece em estado embrionário. Podemos, consequentemente, sintetizar em dois pontos essenciais os ensinamentos a retirar da experiência alpina para o desenvolvimento dessa interacção de forma sustentável: o reconhecimento da paisagem como valor a preservar e a reinventar; a utilização da arquitectura contemporânea 3.“(…) an understanding of both place and landscape as events, as happenings, as moments that will be again dispersed”. Massey, Doreen (2006) p. 21. 4.“Ni objective ni subjective, par conséquent, la médiance est trajective. Elle réalise une trajection, c’est-àdire la conjugaison, au cours du temps de l’histoire et dans l’espace des milieux, des facteurs subjectifs et des facteurs objectifs qui concourent à élaborer les milieux.” Berque, Augustin (1994) p. 28. 5.Ricoeur, Paul (1998) 6.Heidegger, Martin (1984).

como veículo de ligação entre espaço urbano e espaço natural, assim como ponte entre tradição e contemporaneidade. − Este último ponto leva-nos à derradeira questão que nos colocámos, a saber: como se poderia traduzir, num espaço urbano, o espírito do lugar associado à paisagem de montanha, através da formalização arquitectónica. Esta interrogação impeliu-nos a elaborar um contributo metodológico para intervenções no espaço urbano-montanhesco da Covilhã, através da sistematização de uma metodologia de abordagem ao projecto para a expressão da arte do lugar. Ressalvamos que o que se defende, usando esta metodologia, não é a preservação integral da paisagem, nem a imutabilidade do genius loci, porque acreditamos “numa interpretação do lugar e da paisagem como eventos, como acontecimentos, como momentos que serão novamente dispersados”(3) e cremos que a médiance é trajectiva, processando “no correr do tempo da história e no espaço dos meios, factores subjectivos e objectivos que concorrem na elaboração dos meios”(4). Estamos convictos de que um olhar atento às pré-existências, tal como o conhecimento da história do lugar, são fundamentais para se intervir no espaço, justificando a sua transformação e, eventualmente, dotando-o de um novo simbolismo, inscrevendo na arquitectura a narratividade e o sentido metafísico de que nos falam Ricoeur(5) e Heidegger.(6) De entre os casos alpinos estudados, todos contributos importantes para o construir de uma abordagem pertinente ao meio urbano-montanhaesco, foi sobretudo a atitude de Galfetti perante a criação arquitectónica que nos ensinou a interrogarmo-nos permanentemente, usando a intuição, perante o território e a paisagem. Para mais, além desta atitude exemplar, também as posturas de Costa Cabral e Teotónio Pereira constituem referências assinaláveis para a construção de meios inspiradores e poéticos, induzindo relações de médiance e reinventando a identidade dos lugares. Para que a imagem da cidade se transforme e se reinvente, é essencial a abertura a ideias e exemplos vindos do exterior, com espírito crítico e enquadrando esses ensinamentos no contexto


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local, como o fizeram estes dois arquitectos portugueses, seguidores de alguns princípios fundamentais da arquitectura moderna, como pudemos verificar(7). Mais uma vez, José Gil justifica esta necessidade de abertura: Os múltiplos efeitos – na esfera da pintura, da escultura, da arquitectura, da arte em geral – das transformações da escala tradicional revelam-se complexos, se bem que se possa afirmar com um certo grau de certeza que os novos edifícios, o novo espaço físico alargado, são e serão, por muitos anos ainda, habitados e utilizados por unidades mentais encolhidas, “pequeninas”. Também é verdade que, mesmo imposto de fora, mesmo em desfasagem com a paisagem espiritual e cultural, o alargamento do espaço material tem e terá cada vez mais efeitos na expansão do espaço do corpo e da consciência dos portugueses.(8) A proposta metodológica de abordagem a um sítio específico, em arquitectura, considera precisamente essa duplicidade: a inspiração em casos exteriores ao contexto português e a interacção com um meio cultural e paisagístico particular, tornando-se a figura − inserida de determinada maneira num determinado fundo −, o meio através do qual a essência do lugar é revelada. Para além das questões iniciais. Constatações e propostas Ainda no decorrer desta investigação – que nos levou a aprofundar conceitos teóricos e dois objectos geograficamente distantes –, ao tentarmos encontrar respostas às dúvidas colocadas como pontos de partida, inevitavelmente, surgiram novas questões associadas às problemáticas desenvolvidas, nomeadamente no âmbito das interacções cidade-montanha e arquitectura-paisagem. Em primeiro lugar devemos reconhecer que uma abordagem ao sítio centrada no conceito de paisagem não é suficiente para se formular uma imagem abrangente do seu carácter, tal como é apreendido pelo corpo e pela mente na relação plena do homem com o espaço. A noção de “atmosfera”, que apenas aflorámos, será talvez a mais abrangente para se operar uma análise completa da percepção dos espaços arquitectónico e paisagístico porque vai para além da de “paisagem”, englobando todos os aspectos do carácter do lugar. Por isso, seria do maior

interesse interpretar estes espaços também do ponto de vista das atmosferas. Contudo, precisamente por ser mais abrangente, a operacionalização deste conceito para a abordagem à paisagem e à arquitectura implica a incursão noutras disciplinas, divergindo em várias direcções (por exemplo, a antropologia e a psicologia) e, simultaneamente, o desenvolvimento de outro tipo de análise quantitativa aos espaços (por exemplo, registos lumínicos, sonoros e térmicos). Implicaria ainda, provavelmente, a aceitação de um maior grau de subjectividade e abstracção na sua definição, como reconhece Norberg-Schulz, que defende ainda assim a sua relevância: Esta atmosfera ou marca particular, tão difícil de representar porque não é uma substância que se possa nomear nem uma qualidade susceptível de servir como adjectivo, é ao mesmo tempo o ponto de partida e o objectivo para o qual tende a arte do lugar. Inefável e omnipresente, ela condiciona o lugar e só poderá ser apreendida enquanto genius loci, espírito escapando a qualquer caracterização.(9) Afinal, é através de atmosferas que Calos Fortuna associa as identidades a determinadas paisagens culturais(10); é a diferentes atmosferas que Gaston Bachelard associa distintas poéticas do espaço(11); é na atmosfera como categoria estética que Zumthor vai fundamentar a qualidade arquitectónica (12). Mesmo referindo-se apenas estes três autores, já se poderá fazer uma ideia da abrangência e da complexidade do conceito, digno de constituir objecto de vastos estudos. Paralelamente, constatámos a importância do mito (indissociável da noção de atmosfera), como elemento de identificação nas cidades de montanha, estreitamente ligado à importância da paisagem envolvente para a sua construção e consolidação. Tanto no caso da Covilhã como no de outras cidades de montanha portuguesas, seria interessante verificar a dimensão e os traços deste mito urbano e montanhesco, simultaneamente na população local e na imagem idealizada por agentes exteriores à região, definindo-se, com base nessa verificação, estratégias apontando para a qualidade de vida nestes meios urbanos. Para tal poderiam ser realizados inquéritos(13), seguindo-se assim

7.Parte III cap. 1.4. 8.Gil, José (2005) p. 58. 9.Cette atmosphère ou empreinte particulière, si difficile à représenter car elle n’est ni une substance que l’on pourrait nommer ni une qualité susceptible de servir comme adjectif, est à la fois le point de départ et le but auquel tend l’art du lieu. Ineffable et omniprésente, elle conditionne le lieu et ne peut être saisie qu’en tant que genius loci, esprit échappant à toute caractérisation. Norberg-Schulz, Christian (1997) p. 198. 10.Fortuna, Carlos (1999). 11.Bachelard, Gaston (1992). 12.Zumthor, Peter (2008)

13.Lembramos os inquéritos realizados em Innsbruck e em Bregenz, dentro desta linha, por Borsdorf, Axel (1999a, 1999b)


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uma abordagem de cariz mais sociológico ou antropológico, que não coube no contexto da presente investigação, embora se considere complementar para a construção de uma médiance na Covilhã. Compete-nos ainda apontar outras ligações, de cariz operativo, a estabelecer, a partir deste trabalho, no âmbito das temáticas cruzadas montanha-paisagemarquitectura-cidade. De um modo geral, seria útil aplicar investigações deste tipo a outras cidades da Serra da Estrela, do País e da Península Ibérica, onde não se conhece que esta problemática tenha sido aprofundada. A participação de equipas da UBI em projectos de investigação nestas áreas, colaborando com instituições nacionais e estrangeiras, deveria igualmente ser promovida, pela mais-valia que constituiria para o desenvolvimento do conhecimento científico e para o desenvolvimento sustentável da cidade da Covilhã, aspecto que já desenvolvemos no primeiro capítulo da Parte III. A tradução e elaboração de documentos sobre estas temáticas também seriam iniciativas a estimular, permitindo a sua difusão de dentro da região para fora, e vice-versa, através de publicações. Os temas abrangidos podem ser tão diversos como a divulgação do trabalho de arquitectos de referência, de estudos sobre a sustentabilidade em contextos urbanos de montanha, ou ainda inventários detalhados da arquitectura moderna em regiões de montanha. Em termos práticos, esta tese constitui sobretudo um contributo inicial para hipotéticos ramos de investigação que, ao desenvolverem-se, terão consequências directas na transformação de um território onde muito resta por fazer. A UBI poderá deter um papel de significativa relevância na promoção desta tarefa, fulcral para a qualidade de vida na Covilhã. Contudo, a maior ambição desta investigação é o despertar de alguns espíritos para um olhar mais atento sobre as paisagens, reconhecendo nelas o seu valor único e cuidando-as como bens preciosos de ligação do homem ao mundo.


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