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Depois de ser enviada de volta da luz, Alona Dare - ex-rainha do baile e atual Rainha dos Mortos - encontra-se fazendo algo que nunca esperava fazer: trabalhar. Ao invés de passar dias aperfeiçoando seu bronzeado na piscina (sua rotina típica de verão, quando ela estava, você sabe, viva), Alona deve agora atender às necessidades de outros espíritos perdidos. Ao seu lado para tudo isso de "ajudar os outros" - ugh - está Will Killian: pária social, vidente dos mortos, e alguém com quem Alona se preocupa mais do que gostaria. Antes de Alona poder fazer uma decisão final sobre o status de Will como "amigo" ou "mais", porém, ela descobre problemas em casa. Sua mãe está jogando fora os bens mais valiosos de Alona, e seu pai está esperando uma nova filha com sua esposa malvada. É possível que a sua família já esteja seguindo em frente? Olá! Ela só está morta há dois meses! Felizmente, Alona sabe exatamente o cara que pode pôr fim a esta confusão. Infelizmente para Alona, Will tem outras coisas em sua mente, e Mina, uma jovem (e bela) vidente, está no topo da lista. Ela é a única vidente que Will já conheceu – para além de seu pai - e ela pode ter respostas sobre o passado conturbado de Will. Mas ela é de confiança? Alona imediatamente a coloca na coluna "claramente não" coluna. Mas Will está - ahem - disposto a descobrir, mesmo que isso signifique deixar uma Alona magoada e com raiva a seus próprios estratagemas, o que nunca é uma boa ideia. Embalado com romance, personagens adoráveis e um cliffhanger matador, Queen of the Dead é a sequela fora-deste-mundo de The Ghost And The Dead.
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Na televisão, as pessoas capazes de falar com fantasmas têm lojas de antiguidades, solucionam crimes, ou ficam de pé em um palco vestindo um belo terno e dando ao público choroso um sorriso dentuço, mas simpático. Eu, porém, estava entrando na minha segunda hora de estar escondido em um arbusto espinhoso com uma guia espiritual cada vez mais irritada, tudo por um fantasma que podia nem aparecer. A Mansão Gibley na zona histórica de Decatur estava caindo aos pedaços há anos. Mas a demolição estava oficialmente marcada para amanhã de manhã, o que significava que esta noite era a última chance da Sra. Ruiz fazer as pazes com o lugar onde serviu como uma dona de casa durante a maior parte de sua vida. Então, nós estávamos esperando (e esperando e esperando) por ela no lado leste da casa, no antigo jardim de rosas, onde ela caiu há 20 anos atrás, ao escavar um buraco para um arbusto novo. Infelizmente, os fantasmas não fazem sempre o que você espera. — Podemos ir agora? — Alona me cutucou, parecendo irritada. — Eu tenho que fazer xixi. Caso em questão. Encarei-a. Como ela não tinha comido ou bebido nada em bem mais de um mês, eu duvidava seriamente que essa fosse uma preocupação genuína. Além do que, eu nunca tinha ouvido falar de quaisquer fantasmas visitarem um
4 banheiro a menos, claro, que eles morressem lá. (Não, eu nunca conheci Elvis, mas é um palpite.) Alona tentou novamente. — Estou com frio? Essa era pelo menos possível, especialmente tendo em conta o que ela estava usando. Alona Dare, antiga Rainha do Baile, cocapitã do time de líderes de torcida, fashionista e garota malvada suprema de Groundsboro High, tinha morrido em suas roupas de ginástica, shorts curtos vermelhos e uma camisa branca barata. Se você não acreditasse em karma, só isso devia dar-lhe motivo para reconsideração. Mas dado que era uma noite de segunda-feira do que tinha sido um ardente dia quente de junho e eu ainda podia sentir o calor subindo do chão debaixo de nós, ela provavelmente estava mais confortável do que eu estava de jeans e t-shirt de manga comprida que eu tinha escolhido para me proteger dos espinhos desenfreados. — Ótimo. — Ela falou a palavra sobre um suspiro impaciente. — Eu estou morta e entediada. Quanto tempo mais nós temos que esperar? — Ela vai chegar, — eu sussurrei. — Logo. — Tentei soar com mais certeza disso do que realmente tinha. — Por que você está sussurrando? — Ela perguntou com um olhar severo. — Porque ao contrário de você, eu ainda posso ser preso, — apontei. Aparentemente temendo que a mansão pudesse ser alvo de vandalismo ou partidas de última hora, a cidade tinha tapado todas as janelas, pendurado cerca de 900 sinais de ‘NÃO INVADA A PROPRIEDADE’, colocado fita amarela por todo o perímetro, e contratado seguranças para fazer patrulhas regulares. Nós entramos escondidos na propriedade quando os guardas mudaram de turnos. Alona retirou importância às minhas palavras com um movimento de sua mão. — Dunga1 não poderia pegar o próprio rabo se ele estivesse no banco ao lado dele. 1
Do original Dopey, cuja tradução é Dunga. Refere-se a alguém estúpido ou atrapalhado.
5 Ela podia estar certa sobre isso. Na verdade, eu meio que esperava que assim fosse. Dunga, como Alona tinha apelidado o segurança de plantão, estava a dormitar atrás do volante de seu carro alugado do estilo policial, que estava estacionado na garagem a cerca de vinte metros de distância. Roncos emergiam das janelas do carro abertas. Eu só esperava que ele continuasse no ronco até depois da nossa aventura com a Sra. Ruiz estar concluída, supondo que ela ia aparecer. Às vezes, fantasmas, quando confrontados com a resolução final das suas questões terrenas, entram em pânico. — Você, por acaso, pensou em tentar descobrir em que altura ela morreu? — Alona perguntou com apenas o suficiente de sarcasmo para sugerir que ela já sabia a resposta. — Não. — O que eu podia ver agora que tinha sido um lapso. Mas a Sra. Ruiz tinha me pegado desprevenido, aproximando-se de mim na mercearia. Tinha sido desafio suficiente descobrir o que ela queria sem pirar todo o corredor de produtos, incluindo a minha mãe. — Eu teria descoberto, — ela murmurou. — Você não estava disponível para consulta, — eu disse entre dentes. Para alguém que estava morto, Alona tinha uma vida social ativa. Ela estava sempre saindo para espionar a família viva e amigos, apesar das minhas advertências contra isso, e tentar socializar com outros fantasmas. Este último, eu suspeitava, não tinha ido tão bem. A maioria dos fantasmas seguia para a luz depressa demais para se preocupar com fazer amigos enquanto estava neste lugar intermediário, o que eu chamava meio termo. Os que permaneciam tendiam a ser um pouco obcecados com o que os mantinha aqui - uma injustiça, amor não correspondido, encontrar o seu assassino, etc, - para ser boa companhia por muito tempo. Confie em mim, eu sei - passei anos ouvindo-os. Mas eu também achava que poderia ser porque Alona realmente não fazia amigos facilmente. Em vida, ela havia coletado seguidores. Havia uma grande diferença entre os dois, como ela descobriu depois que morreu um par
6 de meses atrás e teve que ouvir todos os seus antigos “amigos” falarem sobre ela. Havia alguns fantasmas que pairavam em torno dela, como a garota da irmandade de Milliken, que tinha se afogado em um acidente de trote e agora andava com erva do lago enfiada em seu cabelo e deixava pegadas molhadas em toda a parte. Às vezes eu me perguntava se eles achavam que fazer amizade com Alona iria ganhar-lhes um lugar mais alto na lista de espíritos que estávamos tentando ajudar a seguir para a luz. Às vezes, acho que Alona se perguntava sobre isso também. Mas ela continuava tentando, algo pelo que eu tinha que lhe dar crédito, mesmo que isso significasse que ela ia embora, por vezes, quando eu precisava dela, como no supermercado com a Sra. Ruiz. Se não soubesse melhor, eu teria suspeitado que ela encenava suas ausências deliberadamente para me lembrar o quanto eu era dependente de sua ajuda para manter os fantasmas à distância. Alona tinha sido enviada de volta da grande luz branca há cerca de um mês atrás, e ajudar outros fantasmas que estavam presos no meio termo rendialhe pontos de karma, por falta de um termo melhor, para lhe permitir recuperar a entrada no futuro. Pelo menos essa era a teoria. Eu tinha a impressão de que as fontes de Alona na luz branca não tinham sido tão específicas. Ela se recusava a falar muito - completamente, na verdade - sobre o seu tempo lá. Como ela me disse uma vez, não era como se ela tivesse sido recebida nos portões por um cara grande de vestes brancas, e sandálias do estilo das de Jesus. Era mais um sentimento do que qualquer outra coisa. Alona mexeu-se impaciente. — Por que precisamos da Sra. Ruiz de qualquer maneira? Não podemos simplesmente entrar e pegar a coisa, qualquer que seja, e trazê-la para ela? Balancei minha cabeça. — Ela não disse o que era ou onde estava. — A capacidade da Sra. Ruiz de fazer as pazes com o seu passado estava, evidentemente, ligada a algum objeto que ainda estava escondido dentro da casa. — Então, a menos que você queira procurar em cada piso e em todas as paredes…
7 Ela suspirou. — Ok, ok. Mas ela não tinha terminado ainda. Eu podia sentir as rodas girando em sua mente. Mesmo que andássemos na mesma escola há muitos anos, eu só tinha conhecido Alona - e efetivamente falado com ela, - desde que ela tinha morrido. Mas isso foi tempo suficiente para saber que ela não ia desistir tão facilmente. Ela se levantou abruptamente. — O que você está fazendo? — Eu assobiei. Ela olhou para mim, indiferente. — O quê? Se vamos ficar, eu preciso me esticar. Estamos sentados aqui por horas. E Dunga não poderia me ver, mesmo que seus olhos estivessem abertos, o que, — ela olhou na direção do guarda de segurança no carro — não estão. Ela se inclinou para trás, pegou o tornozelo dela e puxou a perna em direção a cima por trás, inclinando-se ligeiramente. Seus longos cabelos loiros escorregaram para a frente por cima do ombro, e uma onda de seu perfume florido suave tomou conta de mim. Eu desviei o olhar. Alona Dare, tinha as melhores pernas que eu já vi. Longas e tonificadas, com a pele lisa que te fazia ansiar tocá-las para ver se se sentiam tão bem quanto pareciam. Eu tinha fantasias sobre ela e as suas pernas desde a sexta série. E ela sabia disso. Eu me mexi desconfortavelmente e mantive o olhar firmemente travado em um emaranhado de folhas nas proximidades. — Se o guarda vir os ramos em movimento, ele vai vir correndo para cá, — eu avisei. Graças ao meu “dom”, se é isso que você quer chamar, Alona - e todos os outros fantasmas – tinha essência física em torno de mim, a mesma que ela teria se estivesse viva. Dunga podia não ser capaz de vê-la, mas ele definitivamente notaria os arbustos se deslocarem de uma forma que não parecia gerada pelo vento. — Ele teria que estar acordado em primeiro lugar, — respondeu ela, imitando meu tom de aviso. Com o canto do meu olho, eu vi-a trocar de perna e esticar a outra, dando um pequeno suspiro de prazer.
8 Engoli em seco. Acho que alongamentos ainda faziam bem, mesmo quando você era um fantasma. Pelo menos pareciam fazer bem. — Há. Muito melhor. — Ela se sentou ao meu lado de novo, mais perto do que antes. Seu ombro pressionava contra mim, e uma perna dela descansava contra a minha. Há trinta segundos atrás, eu estava preocupado com nada mais do que encontrar a Sra. Ruiz e entrar e sair da casa sem ser detectado. Agora tudo o que eu conseguia pensar eram esses dois pontos de contato entre nós, conectando-se em uma linha quente de consciência. Eu me virei para encontrá-la me observando, muito perto, tão perto de mim. — O quê? — Perguntou ela. Limpei a garganta. — Você tem um... — Eu estendi a mão e puxei um pedaço de folha de seu cabelo. Os fios loiros como a seda deslizaram pelos meus dedos. Eu havia tocado seu cabelo antes, tinha envolvido minhas mãos nele quando a beijei, na verdade, eu não queria nada mais do que fazer isso de novo agora. — Obrigado. — Sua boca curvou em um sorriso, e eu estava perdido, mesmo que soubesse melhor. Inclinei-me mais perto, atraído para a sua boca como se estivesse me puxando com uma certa gravidade misteriosa, meio esperando que ela me afastasse. Mas ela não afastou. Sua boca era quente e macia sob a minha. Sentei-me reto, sem quebrar o beijo e deslizei a mão para a nuca, puxando-a para mais perto e escorregando os dedos em seus cabelos novamente. Ela moveu-se com boa vontade e fez esse mesmo som de prazer que eu tinha ouvido dela antes. Podia sentir sua suavidade pressionando contra meu peito. Oh, Deus. Ela se sentia tão bem.
9 Eu me afastei por um segundo e viu seus olhos se abrirem lentamente. Ela parecia tão confusa como eu me sentia, mas com um toque de autosatisfação. Ela tinha planejado isso, é claro. — Então é agora que você tenta me convencer a sair de novo? — Eu perguntei, sem fôlego. Eu estava muito ciente de que Alona sabia meus pontos fracos e não tinha medo de usá-los contra mim. Não que eu me importasse neste exato momento. Ela não tentou negá-lo. Ela se inclinou e beijou a ponta da minha boca. — Talvez eu não esteja tão entediada agora. Bom o suficiente. Ela ficou de joelhos e equilibrou-se com as mãos sobre meus ombros antes de colocar uma série de pequenos beijos ao longo de minha bochecha. Sua respiração estava quente, e os seus cílios vibraram contra a minha pele como pequenas carícias. O cheiro dela me encheu, me cobriu com o desejo de calar tudo, exceto ela. Esta garota que igualmente me deixava louco e me fazia importar com ela mais do que devia. Ela era a única que entendia. A única que poderia ajudar a fazer o que eu era mais suportável, mesmo que ocasionalmente me torturasse no processo. Deslizei minha mão de suas costas para seu quadril, onde a extremidade de sua camisa encontrava seus shorts. E ela me deixou. Mais do que isso, ela se aproximou, a sua boca de repente faminta na minha. Minha mão deslizou sob a barra, e eu acariciei a pele nua e quente de sua barriga com o meu polegar. Ela se afastou bruscamente, pegando minha mão e segurando-a no lugar. — Espere. Eu balancei minha cabeça, tentando pensar enquanto meu corpo estava gritando para eu continuar. — Desculpe, eu só… — Não. — Ela apertou minha mão. — Eu ouvi alguma coisa. Não me importo! Eu queria gritar, mas engoli as palavras. Ela largou minha mão e empurrou-se cautelosamente até seus pés para olhar para fora e sobre o emaranhado de arbustos que nos protegia da linha de visão de alguém que passasse.
10 — É Dunga? — Eu sussurrei, aproveitando sua distração momentânea para tentar ajustar a frente das minhas calças. Se eu tivesse que correr agora, estaria em apuros. — Não. — Sua voz tinha uma nota estranha. — Não é ele. — Bem, então o que… Ela se virou para mim, e eu percebi que o que tinha ouvido em sua voz era riso sufocado. A mesma coisa dançava sobre sua expressão. — É a Sra. Ruiz, — disse ela. — Eu acho. — Ela parecia quase alegre. Ah, agora fazia sentido. Como Alona tinha estado desaparecida a fazer o que quer que fosse quando a Sra. Ruiz havia se aproximado de mim, este era seu primeiro vislumbre da mulher... — Não, — eu disse a ela. — Estamos aqui para ajudar. Levantei-me, cuidadosamente, e olhei para fora para ver por mim mesmo. Alona estava certa. Diretamente em frente a nós, a Sra. Ruiz tinha finalmente se materializado, sua pá de jardim na mão. Ela estava olhando em volta como se estivesse procurando apenas a localização certa para cavar o buraco que iria matá-la. — Tem certeza que é Sra. Ruiz? — Alona sussurrou em meu ouvido, claramente satisfeita. Ok, então a Sra. Ruiz não era uma mulher pequena ou particularmente... feminina. Ela era robusta, com ombros largos que pareciam pertencer a um mineiro de carvão. O vestido de dona de casa disforme mas cheio de padrões que ela usava não ajudava, fazendo-a parecer muito mais como um homem travestido. O esboço não tão fraco de um bigode no lábio superior era um pouco... estranho também. Mas, ainda assim, ela precisava da nossa ajuda. — Pare, — eu disse a Alona. Então eu saí de trás do emaranhado de galhos, mantendo um olho em Dunga, que, felizmente, continuava a roncar guturalmente. Alona seguiu-me. A Sra. Ruiz nos viu chegando e me deu um breve aceno de cabeça de reconhecimento. Ela franziu a testa para Alona, que teve o desastroso efeito de
11 transformar suas duas sobrancelhas em uma gigante. Eu quase podia sentir Alona tremendo com a necessidade de dizer algo malvado, mas engraçado. — Algumas pessoas não são tão obcecadas com as aparências como você é, — eu disse baixinho por cima do meu ombro a Alona. — Sim, bem, eu não estaria obcecada com a minha aparência, se eu fosse ela, também, — disse Alona, não tão silenciosamente como eu teria gostado. — Por aqui, — a Sra. Ruiz disse quando estávamos perto o suficiente. Ela deu a Alona outro olhar escuro e depois pendurou a pá sobre seu ombro e começou a ir em direção à casa, ignorando Dunga e seu carro como se eles não estivessem lá. — Pare com isso, — eu disse a Alona sob a minha respiração, uma vez que tinha passado o guarda de segurança e a Sra. Ruiz estava muito à frente no caminho gasto para a porta da frente. — Oh, vamos lá, — disse ela. — Mesmo você não pode me culpar por esta. — Estou falando sério. Ela ficou quieta por um segundo. Então ficou pensativa. — Aposto dez dólares em como ela tem uma tatuagem de uma âncora em algum lugar em seu corpo. — Alona! — Eu sussurrei tão alto quanto me atrevi. — O que, você já a viu? Encarei-a. — Ela tem um bigode que iria envergonhar uma estrela pornô - olá, há uma coisa que se chama depilação? - e você está me dando palestras sobre… Apontei para os pés dela, que estavam começando a tremer dentro e fora de existência, como se um projetor de cinema com defeito estivesse envolvido. Ela suspirou. — Droga. Como um ser principalmente feito de energia, ela era dependente de manter a energia fluindo, permanecendo positiva, ou seja, agradável. Algo que a incomodava sem fim, infelizmente. Permitia-me alguns momentos muito divertidos, no entanto.
12 — Ela parece muito forte e era provavelmente muito... capaz em seu trabalho, — disse Alona cuidadosamente. Eu podia ver que ela estava morrendo de vontade de fazer algum comentário adicional, por exemplo, como era difícil derrotar um homem bom. Ou, como era útil que ela pudesse carregar as vacas por aí, enquanto as ordenhava, ou algo semelhante. — Você tira a diversão de tudo, — disse ela para mim. Não era a minha regra, apenas uma regra de existência aqui, mas eu sabia que ela odiava ser lembrada disso. — Tudo? — Eu perguntei, olhando o seu cabelo amassado e a forma como seus lábios ainda pareciam mais cheios do que o habitual, graças à nossa sessão de beijos. Suas bochechas ficaram rosa, mas ela revirou os olhos e ultrapassou-me para onde a Sra. Ruiz estava esperando na varanda da frente. Legal. Eu ia aceitar isso como um elogio. Eu fiquei um pouco para trás, usando um dos grandes pinheiros velhos que dominavam o jardim da frente para bloquear-me da visão de quaisquer carros que passassem, até que vi Alona passar pela pesada porta de madeira com a mesma facilidade como se fosse névoa. Uma vez que eu tinha certeza que ela estava em casa, corri para a varanda, onde a minha presença lhe deu a fisicalidade que ela precisaria para destrancar e abrir a porta para mim. Só que ela não o fez. Cinco segundos se passaram. Em seguida, 10. E eu estava me sentindo muito exposto, ali de pé na varanda da frente, à vista da estrada, até que a porta finalmente gemeu e abriu cerca de 60 centímetros. Alona enfiou a cabeça para fora. — Bem-vindo ao Feudo Nojento, — disse ela com uma careta, recuando para eu me espremer para dentro. O salão da frente estava escuro e cheirava a mofo e negligência. O piso de madeira cheio de cicatrizes parecia bastante sólido, pelo menos, mas as paredes estavam fraturadas até às vigas em vários lugares, se era devido ao trabalho pré-demolição ou decadência, eu não sabia. Tentei fechar a porta atrás de mim, mas só consegui movê-la alguns centímetros. Tinha obviamente inchado nos últimos dias de calor e umidade para um ponto onde deixava de caber realmente dentro da moldura. Ótimo.
13 Seria bom ter o ar fresco e a luz extra além da pequena lanterna que eu tinha colocado no meu bolso no último minuto. Mas qualquer um que olhasse perto o suficiente na parte da frente da casa iria ver que a porta estava aberta. — Precisamos avançar rapidamente, — eu disse. — Você não precisa me dizer, — disse Alona com nojo, recuando e esfregando as mãos nos lados de seus shorts, criando faixas cinzentas de poeira visível mesmo à luz limitada. — Onde ela foi? — Perguntei. — Você disse alguma coisa? — Por que você é sempre tão rápido em me culpar? — Ela exigiu. — Porque geralmente você é culpada? — Eu ofereci. — Por aqui. — A Sra. Ruiz emergiu das sombras atrás de nós, fazendo nós dois saltarmos. Ela passou por nós, ainda carregando a pá de jardim, em direção ao que tinha sido uma grande escadaria arrebatadora. Agora, com a maioria dos fusos faltando e alguns dos degraus podres, mais parecia um sorriso horripilante de dentes quebrados. Comecei a segui-la. — Espere, — disse Alona atrás de mim. Eu fiquei tenso, esperando que ela tivesse ouvido algo no exterior, mas quando me virei, encontrei-a olhando para a escuridão do primeiro quarto à direita da porta da frente. — O que há de errado? — Dê-me a lanterna. — Eu podia ouvir o desagrado em sua voz. Liguei-a e entreguei-lha. Ela passou o feixe de luz sobre os restos do quarto. Parecia ter sido um escritório ou uma sala de estar de algum tipo. No fundo da sala, uma porta escura para a cozinha ou qualquer sala que estivesse do outro lado era uma mancha sólida de escuridão negra. Enormes buracos retangulares dominavam as paredes onde parecia que estantes embutidas haviam sido removidas. Alguns esparsos livros mofados ainda estavam no chão junto com... Eu fiz uma careta e me aproximei para ver melhor.
14 — O que é isso? — Alona perguntou, expressando a minha pergunta exata. No centro da sala, cinco caixas de metal pretas tinham sido colocadas no chão em um arranjo de cinco pontos precisos, cada caixa equidistante das outras. Um cabo preto grosso saía de todas elas para o que parecia ser um gerador portátil. As caixas pareciam bem desgastadas. As laterais estavam amassadas e gastas, e a tinta preta estava descascando em muitos lugares. As bordas grosseiramente soldadas das caixas não pareciam com nada que sairia de uma fábrica. Alguém as tinha feito. Balancei minha cabeça. — Algo a ver com a demolição, talvez? Explosivos ou algo assim. Não toque em nada. Ela deu um suspiro exasperado. — Não é um arranha-céus de Vegas. Eles vão derrubá-lo, não explodi-lo. Balancei minha cabeça. Alguma coisa sobre isso parecia errada. — Eu não sei. Vamos apenas fazer isto, e sair daqui antes… — Por aqui! — A voz da Sra. Ruiz veio de cima, fazendo-nos saltar. A exempregada soava irritada, beirando a raiva. — Será que ela sequer sabe outras palavras? — Alona perguntou. — Vamos, — eu disse. Peguei a lanterna dela e me dirigi para as escadas. Guiando a luz à minha frente, eu encontrei a Sra. Ruiz esperando por nós na primeira curva da escada. — Por aqui, — disse ela mais uma vez, soando um pouco mais relaxada. — Bonita e uma grande conversadora, — Alona murmurou atrás de mim. — Você realmente sabe como escolhê-los. — Preste atenção a seus pés, — eu murmurei de volta. — Cale a boca, — ela retrucou. Mas então eu ouvi seus elogios murmurados sobre a arquitetura original da casa e o seu estilo — Pisos de madeira de verdade! — Então eu sabia que estava certo mais uma vez. A escada rangeu e gemeu sob o nosso peso, mas aguentou, felizmente. No topo das escadas, a Sra. Ruiz guiou-nos por um corredor longo e escuro com
15 portas em ambos os lados. As portas, que provavelmente levavam aos quartos da família, estavam abertas, mas apenas a luz mais tênue era filtrada pelas janelas cobertas por tábuas, e eu realmente não queria apontar a lanterna dentro de qualquer um dos quartos. Eu não tinha ideia do que ia ver, se alguma coisa, e honestamente, mesmo meu nível de assustador estava subindo. Se acontecesse de eu olhar em um e ver um rosto pequeno olhando para mim, eu provavelmente piraria. Dois fantasmas eram mais do que suficiente por agora, obrigado. À nossa frente, a Sra. Ruiz parou na última porta à direita, a única que estava fechada. Ela olhou por cima do ombro enorme para mim. — Por aqui, — disse ela, ao mesmo tempo que Alona sussurrou a mesma coisa zombeteiramente no meu ouvido. A Sra. Ruiz girou a maçaneta e abriu a porta, o ranger alto das dobradiças ecoando na casa vazia. Ela deu um passo em frente na porta e parou. A pá escorregou de seu ombro, a parte de metal pousando no chão com um baque forte e oco, e sua estrutura mais-que-resistente começou a tremer. Alguma coisa estava errada. Passei por ela para entrar no quarto, com Alona logo atrás de mim, e a razão para a aflição da Sra. Ruiz ficou imediatamente clara. Em todo o quarto, placas de piso aleatórias haviam sido arrancadas com esforço descuidado, partindo a madeira antiga em picos perigosamente afiados. Pó de gesso revestia o piso originado pelas dezenas de buracos recentes perfurados ou cortados nas paredes. Claramente, alguém estava procurando por algo. — Eu te disse, — Alona murmurou, referindo-se ao seu plano de entrar sem a Sra. Ruiz. Eu a ignorei. — Sra. Ruiz, — eu disse, aproximando-me dela com cautela. Ela não olhou para cima, fixada sobre a destruição, e me perguntei se isso tinha sido o quarto dela. Faria sentido que o que ela queria teria estado no mesmo quarto que ela considerava seu.
16 — Sra. Ruiz, — Tentei de novo. Desta vez, ela encontrou o meu olhar, e sua fúria foi suficiente para me fazer dar um passo atrás. — Você, — ela disse entre dentes. — Ei, uma nova palavra! — Alona, que tinha passado por mim para continuar a inspecionar os danos e, possivelmente, o armário vazio, disse. Eu mantive minha atenção voltada para a Sra. Ruiz. — Não. Eu não fiz isso. Mas as minhas palavras tiveram pouco efeito. — Disse apenas a você, — ela disse com aquela voz rouca, aprofundada pela raiva. Ergui minhas mãos em um gesto de pacificação. — Tenho certeza de que pode parecer assim, mas certamente alguém… Ela ergueu a pá pesada de volta até ao ombro, apertando o cabo de madeira como se fosse um taco de beisebol. Oh, merda. Outra desvantagem do elemento de dar-essência-física-aosfantasmas do meu dom era que os que estavam putos da vida poderiam usá-lo para tentar me matar. Recuei lentamente. — Alona? Pelo canto do meu olho, eu a vi olhar para cima acentuadamente, registrando a nota de pânico mal reprimido na minha voz. Ela suspirou e começou a ir em direção a Sra. Ruiz, passando por cima e ao redor das tábuas que faltavam com uma graça que fez parecer que ela fazia isso todos os dias. — Ok, olha, eu sei que ele pode ser chato, mas ele não rouba coisas. Acredite em mim. Ela me deu um olhar exasperado. Evidentemente, ela ainda estava irritada por eu me recusar a tomar parte em seu elaborado plano para pôr as mãos em um iPad. Ela tinha estado convencida de que a tela sensível ao toque seria sensível o suficiente para ela o usar mesmo quando eu não estivesse por perto para lhe dar a essência física para fazê-lo. Blogs, Twitter, e uma página do Facebook - tudo para uma garota morta. Acho que não.
17 — Então, não há necessidade de ficar louca, — Alona continuou. — Ele não levou o seu... o que quer que seja. Além disso, você precisa passar por mim… Para chegar até ele. Aquelas palavras tinham uma espécie de efeito de ritual, temporariamente congelando os fantasmas que pretendiam me prejudicar. Mas antes de Alona poder falar, a Sra. Ruiz formou um punho de carne e conectou-o solidamente com o rosto de Alona. Alona não é uma garota pequena e frágil. Ela é atlética, tonificada, e musculosa de anos de duros treinos de torcida e busca incessante de extinção da celulite. Mas ela não era páreo para a Sra. Ruiz e o poder por trás desse golpe. Ela voou para trás, acertando a parede atrás dela antes de deslizar para baixo em uma pilha inconsciente no chão. — Alona! — Corri para ela, a Sra. Ruiz temporariamente esquecida. Sim, Alona estava, em teoria, já morta, mas você não passa dezoito anos sendo capaz de falar com fantasmas sem perceber que existem todos os tipos de morte, e alguns tipos são preferíveis a outros. Eu caí de joelhos na frente dela, mas antes que eu pudesse tocá-la, ela piscou e desapareceu. Eu me afastei. Ela tinha esgotado sua energia neste plano de existência. Alona raramente desaparecia completamente agora, tendo apanhado o jeito da coisa de energia positiva. Mas toda vez que isso acontecia podia ser a última, ou seja, ela podia não ser capaz de voltar. Isso iria acontecer algum dia. Era inevitável. Alona ia desaparecer, ou porque tinha desaparecido demasiadas vezes ou porque a luz tinha voltado para buscá-la. A questão era, seria hoje? Eu me senti mal só de pensar nisso. Não queria que acontecesse assim, Alona sacrificando-se para me salvar. O ar assobiou acima da minha cabeça em uma advertência de uma fração de segundo, e eu me atirei para trás quando a pá passou por onde eu tinha estado ajoelhado. Caí duro nas minhas costas, e estilhaços cortaram através de
18 minha camisa e para a minha pele. A outra questão mais imediata era, sem Alona, eu poderia sobreviver a Sra. Ruiz? Cerrei os dentes e me forcei a levantar quando a Sra. Ruiz trouxe a pá ao ombro novamente. Recuei para a porta, minhas costas protestando e trilhas de sangue escorrendo pela minha pele. Eu caí mais do que entrei no corredor, apenas grato por estar fora. Então eu ouvi os passos pesados da Sra. Ruiz atrás de mim. Me empurrei até meus pés, esperando o crack de uma pá de novo a qualquer segundo, desta vez, talvez contra a minha cabeça. Em vez disso, as portas de cada lado de mim fecharam com força, seguidas pelas duas seguintes, e acontecendo o mesmo pelo resto do corredor. Ela estava me fechando aqui dentro. Porra, ela tinha que ter uma maldita energia para conseguir fechar portas sem tocá-las. A velocidade não era a sua força; força era. Se eu não chegasse rápido à porta da frente, ela podia ser capaz de fechar essa também, e então eu estaria preso. Eu poderia ser capaz de chutar a madeira compensada cobrindo uma das janelas, mas eu não tinha certeza de que poderia fazer isso antes que a Sra. Ruiz me pegasse com a pá. Ofegante e rangendo os dentes contra todas as minhas dores, eu manquei para as escadas o mais rápido que pude. No topo das escadas, a borda do meu sapato ficou presa nos restos apodrecidos da plataforma da escada, e eu escorreguei para baixo os primeiros degraus. Estendi a mão para o corrimão para me levantar, e a pá da Sra. Ruiz bateu na madeira, por pouco não acertando nos meus dedos. Fusos soltos choveram no andar de baixo. Eu puxei minha mão para trás com um grito. — Eu só estava tentando ajudá-la, ok? Não roubei as suas coisas, — gritei para ela. — Eu fiz. — Uma nova voz falou de baixo. Arrisquei tirar o meu olhar da Sra. Ruiz para apontar a lanterna, que eu de alguma forma consegui continuar segurando, para a curva da escada. Uma garota que eu nunca tinha visto antes estava ao pé da escada, o rosto pálido na luz. Cabelo longo encaracolado escuro flutuava em uma nuvem em torno da
19 sua cabeça, como se tivesse vida própria. Ela estava vestida toda de preto, o que a ajudava a se misturar na penumbra envolvente. Outro fantasma? Ótimo. Mas então eu vi que ela segurava o que parecia ser uma lanterna, apontada para a escada, mas não estava ligada, por algum motivo. Na outra mão, ela tinha uma fronha de travesseiro velha e suja, cheia de algo com bordas duras e com um peso considerável. O tecido parecia prestes a rasgar. Então, não era um fantasma. Alguém em busca de adrenalina? Uma saqueadora? A garota balançou a fronha, e ela fez um som pesado e estridente, como moedas, mas mais alto. — Procurando por isso? — Perguntou ela. — Não, — eu disse lentamente, mas ela não estava olhando para mim. Ela estava olhando para algo ou alguém acima de minha cabeça. A Sra. Ruiz resmungou, e eu senti a escada agitar quando ela começou a descer. Levantei-me e cambaleei para baixo o resto das escadas. Eu não queria estar no seu caminho. Quando cheguei ao fundo, o olhar da menina veio para mim por uma fração de segundo antes de voltar a acompanhar a descida pesada da Sra. Ruiz. E uma realização tardia finalmente surgiu em mim. Esta garota sabia que alguém estava lá. Ela podia ver ou ouvir - talvez ambos - a Sra. Ruiz. Ela era capaz de falar com fantasmas. De verdade. Como eu. Puta merda. — Colheres de prata? — A garota apertou o saco de novo. — Sério? Eles deixaram a mansão para você e você roubou todas as suas colheres boas? De mais de um conjunto, também. Ainda recuperando da minha descoberta sobre esta garota mistério, eu me forcei a focar na conversa que estava acontecendo. Era disso que se tratava? Talheres? — Este lugar não era um presente! — A Sra. Ruiz gritou. — Era uma prisão, da qual eu teria escapado quando a velha finalmente morresse, mas ela me fez arrendatária deste lugar, em vez de me dar a separação que havia
20 prometido. Eu não o possuía. Não podia vendê-lo. Depois de anos de me dedicar a todas as necessidades dela, eu ainda não podia sair. — Aparentemente, ver o seu tesouro recuperado havia soltado suas cordas vocais. Alona teria ficado impressionada. A Sra. Ruiz bateu a pá no corrimão, como um jogador All-Star em esteróides. A madeira velha fraturou e desabou. Pedaços foram pulverizados em todas as direções. Ela sorriu, uma expressão horrível e escura. Ela não tinha estado protegendo a casa de pessoas indignas, como nós pensávamos. Ela tinha estado protegendo seu tesouro, sua recompensa auto-atribuída que ela nunca tinha conseguido aproveitar. — Isso deve ter realmente deixado você puta da vida. — A garota abanou a fronha com força novamente e começou a recuar, passando na frente da porta da frente ainda parcialmente aberta, para o escritório/sala de estar. O lugar onde Alona tinha encontrado todos os equipamentos estranhos. De repente, as peças desse quebra-cabeça estavam se encaixando. O que quer que o material fosse, Alona estava certa. Não tinha nada a ver com a demolição. Pertencia a essa garota e o que fosse que ela tinha planejado para a Sra. Ruiz. Nós obviamente interrompemos... o quê? Uma investigação? Um exorcismo? A Sra. Ruiz, com o olhar fixo na fronha do travesseiro na mão da garota, estava seguindo para a sala, como um cão fixado em um regalo. Um regalo de prata. Quando a ex-empregada passou por mim, desloquei-me para a seguir, mesmo estando tão dolorido e sangrento como estava. Eu tinha que ver o que ia acontecer a seguir, uma vez que a garota a levasse para essa sala. Isso foi um erro. A Sra. Ruiz, evidentemente decidindo que a garota e eu estávamos juntos nisto ou que a minha existência continuada era apenas uma afronta que ela não aguentava mais, virou para mim com a pá. Eu joguei-me no chão, a lanterna deslizando dos meus dedos dormentes.
21 Ela falhou, mas eu senti o vento sobre a minha cabeça quando a pá passou. E não havia nada para impedi-la de outra tentativa, agora que ela tinha os seus olhos em mim. A porta da frente estava só a cerca de um metro e meio de distância, mas a Sra. Ruiz estava muito mais perto. Pelo canto do meu olho, eu vi a garota erguer a lanterna. Um feixe de luz azul emergiu do dispositivo, apanhando a Sra. Ruiz no lado direito. Raiva contorceu o seu rosto, e ela inclinou seu corpo como se para me atacar novamente. Eu recuei em antecipação. Mas, mesmo enquanto eu observava, os dedos se contraíram em torno do punho da pá, mas nem pá, nem o braço se moveram. Ela tentou de novo e de novo, com pânico crescente. O feixe parecia segurá-la no lugar onde ele tocava. Deixei escapar um suspiro de alívio. Então ela veio para mim com a mão que não estava presa pelo feixe. Seus dedos nodosos e sujos passaram raspando pelo meu nariz. — Mais para a esquerda, — eu gritei para a garota. Ela xingou baixinho e corrigiu seu objetivo rapidamente. O feixe abrangeu todo o fantasma e a Sra. Ruiz congelou. Então sua boca abriu num grito silencioso. Um zumbido forte encheu o ar, e eu podia sentir os pelos em meus braços se levantarem. A luz ficou mais brilhante por um segundo, e então a Sra. Ruiz desapareceu com um pop que fez meus ouvidos doerem. A garota desligou o feixe imediatamente, soltando uma torrente de palavrões quase tão cruéis e dolorosos como o pop que os precedeu. — O que foi isso? — Eu perguntei, ainda atordoado. — Foi você estragando a minha vida. Obrigado. — Então ela se virou nos calcanhares e entrou em velocidade na sala com o equipamento. Eu me levantei, pegando minha lanterna de onde ela tinha caído, e a segui mais lentamente. Observei a garota recolher as caixas de metal do chão, desligando os fios e colocando tudo em uma mochila enorme preta que ela tinha produzido de algum lugar.
22 — Estou falando sério. O que foi isso? — Depois de uma batida, percebi que havia uma pergunta melhor. — Quem é você? — A única outra pessoa capaz de falar com fantasmas que eu já tinha conhecido tinha sido meu pai. E ele tinha morrido, - suicidou-se - há três anos. Eu sempre assumi que havia provavelmente mais de nós, tão raro quanto parecia ser. Era, afinal, transmitido através das famílias. Eu não poderia ser o único lá fora a acertar na loteria genética, por assim dizer. Mas eu tinha deduzido que a maioria deles estavam ou loucos ou mortos, dado que eu tinha estado em um ou ambos esses caminhos até muito recentemente. — Eu sairia daqui se fosse você, — disse ela. — Ralph está com muito medo de vir aqui por conta própria, mas ele vai pedir reforços. — Ela pendurou a bolsa agora cheia por cima do ombro, e foi em direção a porta da sala ao lado, carregando o gerador com ela. A fronha de talheres e o dispositivo de lanterna que salvou a minha vida estavam longe de ser vistos. Talvez eles estivessem na bolsa também? — Ralph... — Eu não tinha ideia de quem ela estava falando. — O guarda de segurança? — Ela perguntou com desdém. Enquanto ela falava, eu ouvi o som das sirenes do lado de fora. Porra. — Espere. Diga-me quem você é, como posso encontrá-la. — Eu não podia deixá-la ir embora sem saber alguma coisa. Tudo que eu sabia sobre ser capaz de falar com fantasmas havia sido montado a partir de pedaços de informação que meu pai tinha relutantemente deixado escapar, e informações pouco realistas que eu poderia encontrar em livros e na Internet. A maior parte era muito blá blá blá, porcaria espiritual, nada muito prático. A chance de comparar notas, de aprender com alguém como eu, seria ótima. E então havia a arma que ela tinha usado na Sra. Ruiz. Se eu tivesse uma dessas... de repente eu poderia imaginar uma vida onde eu nem sempre tinha que estar em guarda. Ela se virou, exasperação escrita em seu rosto, e depois outra coisa... medo. Ela largou o gerador e sua bolsa com uma velocidade que me surpreendeu, e puxou o dispositivo lanterna de um dos muitos bolsos de suas calças.
23 — Caminhe em direção a mim, — ela ordenou. — Agora. Uma vibração de movimento à minha direita me chamou a atenção, e eu olhei, meio que esperando ver a Sra. Ruiz novamente. Em vez disso, eu reconheci a forma vaga de Alona se rematerializando, um borrão indistinto de cabelo louro, camisa branca e calção vermelho. Graças a Deus. Deixei escapar um suspiro de alívio em múltiplas contagens. — Está tudo bem. Ela é uma amiga. A garota olhou para mim com um misto de pena e nojo. — Você é um amante de Casper. Olhei para ela. — Um o quê? Ela balançou a cabeça e colocou o aparelho de volta no bolso. — Idiota, — ela murmurou. Mas eu nem sabia o suficiente sobre o que estava acontecendo para contradizê-la. Ela pegou seu equipamento novamente e começou a se afastar. Então ela parou com um suspiro. — Se eu te deixar aqui, você vai conseguir ser preso, não é? Uh... — Vamos. — Ela fez um gesto para mim impaciente. — Eu não posso arriscar que você conte para os policiais. — Você tem outra saída? — Eu perguntei. Pelo que eu tinha visto, toda a casa, além da porta da frente, estava bloqueada e tapada hermeticamente. Ela sorriu. — Você não? Ela empurrou pela porta escura para a próxima sala, deixando-me a correr atrás dela.
24
Desaparecer é uma droga. É, literalmente, se tornar nada - simplesmente não existir - por uma quantidade indeterminada de tempo. E isso simplesmente não pode ser bom. Mas, ocasionalmente, reaparecer é pior. Como guia espiritual oficial de Will, eu sempre reapareço ao lado dele, geralmente cerca de meio metro para a direita. Mas eu nunca tenho ideia de quanto tempo passou, e se ele se deslocou desde que eu estava presente, eu poderia estar em um local completamente diferente do da última vez que me lembrava. O que, francamente, é mais do que um pouco confuso. E de vez em quando, só para fazer as coisas interessantes, eu me encontro no meio do caos. — Vamos, vamos. — Will agarrou meu braço, logo que eu era sólida o suficiente para ele fazer isso, e começou a puxar-me junto. — Ir para onde? — Eu perguntei para a parte de trás da cabeça dele, que estava generosamente revestida com pó, transformando seu cabelo preto em cinza e embaçando o brilho dos brincos em sua orelha esquerda. Estávamos agora lá embaixo, eu sabia pelo menos isso. Tinha praticamente a certeza que estávamos no quarto que tinha todo o equipamento estranho, mas ele já não estava lá. Droga. Quanto tempo eu tinha desaparecido?
25 Podia ouvir sirenes da polícia do lado de fora, e estavam se aproximando. — O que aconteceu? Will ignorou as perguntas e me puxou pela porta escura do outro lado da sala, a luz de sua lanterna dançando e balançando de forma vagamente nauseante. E então um flash de movimento à frente de nós chamou minha atenção. Nós não estávamos sozinhos. — Sra. Ruiz? — Eu perguntei. Oh, eu e ela íamos ter uma conversa. Com certeza. Quer dizer, o que diabos? Viemos tentar ajudá-la. E simplesmente não havia desculpa para atacar uma pessoa assim. Foi uma jogada de cadela. — Não, — disse Will. Ele parecia sombrio, mas havia também esse tom estranho de excitação em sua voz. Ele me soltou o tempo suficiente para a lanterna ficar firme e centrar-se sobre a pessoa à nossa frente. Era uma garota, alguém que eu nunca tinha visto antes. E sim, eu sei que ela estava de costas para mim, mas com suas calças pretas de aparência surrada com bolsos cheios ao ponto da explosão, botas que pareciam excedentes do exército, e uma massa de cabelos negros ondulados completamente frisados, eu teria me lembrado dela. E agendado uma intervenção. O cabelo dela estava gritando por condicionador e, possivelmente, um tratamento profundo de óleo. Ela também levava a maior mochila que eu já tinha visto, com uma das maiores peças de equipamento em sua outra mão. — Eu não sei o nome dela, mas ela é como eu, — disse ele em voz baixa. — Viva? — Duh. Eu sabia isso pela forma como ela se movia, muito consciente de arestas e cantos. Quando você pode passar por esse tipo de coisa, para de prestar tanta atenção. A menos, claro, que você esteja perto de Will muitas vezes. Eu perdi a conta das vezes que tinha batido com minhas canelas nas mesas de café e batido com os cotovelos nas portas enquanto entrava e saía do campo em torno dele que me dava substância física. — Não, capaz de falar com fantasmas, — disse ele. Seu olhar, fixo sobre ela, era brilhante, com interesse.
26 Bem, isso explicava tudo. Pessoas que podiam legitimamente ver e ouvir espíritos eram poucas e distantes entre si. Menos ainda eram os que conseguiam lidar com isso sem ficarem completamente insanos. O único outro que eu tinha ouvido falar era o pai de Will, que tinha se suicidado há alguns anos atrás, quando o estresse de tudo isso o tinha atingido. Não exatamente um grande exemplo a seguir. Ainda assim, eu não gostava do jeito que ele estava olhando para ela, como se ela fosse algum tipo de milagre entregue à sua porta. Então, ela podia ver espíritos. Grande coisa. Eu podia, também. — Sério? — Eu perguntei. — Ela não parece… A garota parou e virou-se para espetar o dedo para Will. — Se você e a Miss Rainha dos Mortos quiserem continuar conversando até serem apanhados, por favor, sejam meus convidados. Mas esperem até que eu tenha escapado, ok? Eu fiquei boquiaberta com ela. Ninguém falava comigo assim. Não quando eu estava viva, morta, ou outra coisa pelo meio. — Desculpe-me? Só porque você se veste como uma pessoa sem-teto com o regime de cuidado de cabelo correspondente não significa que eu… Will se colocou entre nós. — Entendido. Ela assentiu com a cabeça bruscamente e voltou-se para começar a avançar novamente. Eu dei um tapinha no ombro de Will e ele estremeceu. — Que diabos você está fazendo? — Eu exigi. Ele olhou para mim. — A polícia está chegando… — E de quem é a culpa? — … mas ela tem outra saída, — continuou ele. — Então, se você não quer acordar na prisão comigo amanhã de manhã... Estremeci. Onde quer que Will estivesse às 7:03 da manhã, a hora da minha morte, era onde eu aparecia. E eu tinha um problema com germes e locais públicos. Sim, eu sei que estou morta. Não torna os germes menos repugnantes. — Tudo bem, — eu murmurei.
27 A garota passou pelas salas escuras e empoeiradas, sem hesitação, mesmo com pouca luz. Ela sabia onde estava indo. Ou assim eu pensei até que ela nos levou a um beco sem saída, uma sala perto da parte traseira da casa com nada a não ser grandes janelas e nenhuma porta para além da que tínhamos usado para entrar. Ótimo. — Então... ou ela está planejando um tiroteio, ou apenas espera que se ficarmos realmente parados ninguém vai nos notar. — Cruzei os braços sobre o peito. Eu poderia ter partido a qualquer momento, é claro, dada a distância suficiente de Will para passar através da parede, mas eu não estava inclinada a deixá-lo sozinho de novo tão cedo, especialmente não com ela. — Ela sabe exatamente o que está fazendo e nunca convidou você para vir junto de qualquer maneira, — a garota revidou com um olhar para mim. — Como se eu precisasse de um convite para ver você falhar, — eu respondi. Meu Deus, ela não se calava. Ela colocou a peça de equipamento para baixo - um gerador portátil, de acordo com a etiqueta do lado - e depois tirou seu saco pesado do ombro e empurrou-o para Will. — Aqui. Como você estragou tudo lá em cima, o mínimo que pode fazer é ser útil. — Hey! — Eu disse, em seu nome. Ela não o conhecia bem o suficiente para falar com ele desse jeito, não como eu. Will balançou a cabeça para mim, avisando-me para ficar quieta. Certo. Como se isso fosse acontecer. A garota ignorou-nos, alcançando através da janela quebrada a madeira compensada que a cobria do lado de fora. Eu bufei. — Você não vai ser capaz de afastar isso com suas mãos nuas… Com apenas um pequeno grunhido de esforço, ela deslocou o pedaço de madeira compensada até que ele virou para cima e para a esquerda. Ela deve ter removido os parafusos ou pregos ou qualquer outra coisa na parte inferior da madeira compensada e soltou os que estavam no topo até que a madeira balançasse de um lado para o outro. E a menos que alguém andasse na zona e a
28 visse escalando para dentro ou para fora, eles provavelmente nunca perceberiam o que ela tinha feito. Fale sobre planejamento. Eu estava quase impressionada. Mas flashes momentâneos de inteligência não desculpavam alguém vagar por aí como uma pessoa que usava um carrinho de supermercado como seu armário. Segurando o compensado de lado com uma mão, ela virou-se de volta e pegou sua bolsa de Will, baixando-a para fora da janela com cuidado. Então ela seguiu, balançando as pernas sobre a moldura da janela e, em seguida, pulando para o chão. Ela virou-se para enfrentar-nos novamente. — Apresse-se, — ela sussurrou para Will, balançando a mão com impaciência para o gerador. Assim que ele deu para ela, eu meio que esperava que ela deixasse a madeira compensada fechar e, em seguida, fugisse da casa e de nós. Mas ela não fez. Ela segurou-a aberta para ele, esperando semi-pacientemente apesar de ele estar se movendo mais lentamente que o normal. Na pálida luz minguante azul do crepúsculo, pude ver pela primeira vez que a parte traseira de sua camisa estava rasgada e ele estava sangrando em vários lugares. O que eu tinha perdido? Uma vez que Will estava no chão, inclinei-me para a frente para começar a passar pela janela. E foi nessa altura que a garota largou o compensado com um pequeno sorriso zombeteiro. Eu gritei e recuei um instante antes que batesse em minha cabeça. Oh, ela não fez isso. Afastei o compensado de lado e saltei no chão. Estava mais escuro do que quando tínhamos entrado na casa, mas eu podia vê-los com clareza. Eles não tinham ido longe, a poucos metros da janela. Andei na direção deles. A
garota
estava
ajustando
sua
bolsa
no
ombro,
quando
eu
acidentalmente esbarrei nela. Com força. Ela cambaleou para a frente, quase caindo de cara no chão sob o peso de tudo.
29 — Oh, desculpe, — Eu disse docemente. — Não vi você ali. — Capaz de falar com os mortos, ou não, você não mexe comigo. Essa é uma regra. Meu pai, que é um excelente negociador da empresa, sempre diz que se você deixar as pessoas pisarem você mais de uma vez, elas vão transformá-lo em sua trilha favorita. Ou algo vagamente semelhante a um bolinho da fortuna desse gênero. Ela recuperou o equilíbrio e endireitou-se, mudando sua bolsa de volta para a posição certa. — Não tenho tempo para isso, — disse ela com um suspiro irritado. Ela se virou para mim com algo pequeno, prateado e brilhante em sua mão. Parecia uma lanterna, mas não estava ligada. — Não! — Will gritou. — O que é isso? — Eu exigi. — O que ela está fazendo? — Agora não, Alona, — Will disse firmemente. Moveu-se para ficar entre nós. — Vamos focar em sair daqui, ok? — Ele disse para a garota. Atrás de nós, os sons de passos pesados e homens gritando dentro vieram claramente, mesmo com as janelas fechadas com tábuas. Os policiais estavam na casa agora. Seu olhar foi em direção à casa e depois voltou para mim. — Que seja, — disse ela. — Eu vou embora. — Espere. — Will disse atrás dela. — Eu ainda não sei o seu nome. Oh, por favor. Ela se virou. — Olha, a brincadeira acabou, — ela retrucou. — Esta foi a minha terceira chance de um confinamento. E você estragou-a. Percebeu? — Não, — ele disse, parecendo perplexo. — Deixe-a ir, — eu disse. — Nós não precisamos dela. — Sério, ela era um pouco mais baixa do que eu e nem de perto tão atraente. E sim, eu sou qualificada para julgar. É sempre importante saber como você ficaria classificada em comparação com outras fêmeas nas imediações. Conheça a sua concorrência. Não que ela o fosse. Competição, quero dizer. Acho que ela tinha um pouco de apelo exótico com todo aquele cabelo e os olhos poderiam ser bonitos se eu conseguisse dar uma boa olhada para julgar, mas para além disso? Nada. Bem, a coisa de falar com fantasmas, eu acho.
30 Ela riu. — Princesa, você não tem ideia do que precisa. — Por que isso soava como uma ameaça? Tentei mover Will para chegar a ela, mas ele levantou um braço para me parar, e eu não queria machucá-lo ainda mais. — Tenha uma boa vida, amante de Casper, — disse ela a Will. — Fique fora da minha. — Então ela partiu em uma corrida rápida, todo o seu equipamento fazendo barulho enquanto ela ia. Will deu um passo atrás dela. — Oh, não. — Puxei sua manga. — O carro está naquela direção. — Apontei na direção oposta da garota. Ele não respondeu e, por um segundo, eu pensei que ele iria se livrar de mim e persegui-la de qualquer maneira. Sério? Senti um aperto pequeno de pânico, pela primeira vez em muito tempo. Será que ele realmente faria isso? Trocar-me, Alona Dare, por ela, alguma garota aleatória que apenas era capaz de falar com fantasmas? Oh, não me parece. Sim, eu podia achar meu caminho para fora daqui facilmente, mas esse não era o ponto. Nós estávamos juntos nessa. Ponto final. Fim da história. — Hey. — Balancei meus dedos na frente do seu rosto. — Acorde. Precisamos ir. Finalmente, ele concordou e nós começamos a correr na direção do carro. Graças a Deus. Mas isso não o impediu de olhar para trás a cada dez segundos, ou de eu perceber que ele o fazia. Droga. Isso teria de ser resolvido.
31
− Ai! − Saí do alcance de Alona e das pinças que ela empunhava com um pouquinho a mais de entusiasmo necessário. − Você está tentando piorar? − Você tem, tipo, metade do chão do quarto aqui, − ela disse sem simpatia alguma. − Além do mais, se eu estivesse tentando piorar é porque você merece, − disse. Ela estava assim comigo desde que saímos do terreno da Mansão Gibley, e reconheço, ela até tinha justificativa nisso... Até certo ponto. Depois que a menina simplesmente nos deixou lá, foi Alona quem segurou as pontas e me indicou o caminho pelo jardim e pelo próximo quarteirão, onde eu estacionei o Dodge. Estava cambaleando ainda, tentando decidir entre seguir a menina capaz de falar com fantasmas ou simplesmente sair dali antes de ser pego. Alona não tinha escrúpulos. Ela me arrastou para o carro e aí, no caminho para a minha casa, me fez contar tudo que ela perdeu enquanto estava longe. Sem surpresas, nenhum dos detalhes - a prataria que havia sido roubada e então devolvida, a Sra. Ruiz me atacando, a arma que a menina usou contra a Sra. Ruiz e, quase, contra Alona – havia melhorado o humor dela. Agora no banheiro na minha casa, onde os primeiros socorros supostamente deveriam estar acontecendo, ela estava evidentemente ainda resmungando de algo e exagerando as coisas sem proporção, a meu ver. Ainda
32 bem que a minha casa estava vazia. Minha mãe estava no cinema com Sam, o quase namorado/patrão da lanchonete onde ela trabalhava. − Então, ela poderia me matar com aquela coisa, o que quer que fosse, nas mãos dela? − Alona exigiu. − Apenas extinguir a minha existência porque ela não gostou do jeito que eu a estava olhando ou algo do tipo? Hesitei, começando a reconsiderar a sabedoria dessa conversa quando eu não tinha suficientes - ou nenhuns - fatos... E quando Alona estava obviamente brava comigo e a ponto de me causar dor. − Eu não sei, − eu disse finalmente. − Não sei o que aquele dispositivo faz exatamente, mas definitivamente fez algo a Sra. Ruiz. Alona retirou outra farpa das minhas costas com uma brutal eficiência, e eu estremeci. − Eu a parei antes dela te machucar, − apontei com os dentes cerrados. − Está tudo bem. Você está bem. − Ah, sim, estou ótima. − Ela acenou com a pinça em mãos. − Sua nova melhor amiga é uma maníaca homicida com armas misteriosas e cabelo que pode ser usado para remover ferragem de um para-choque. Ao menos ela tinha arrumado as prioridades. Resisti a vontade de apontar que desde que Alona estava tecnicamente morta, não seria homicídio. Eu realmente tenho um pouco de autopreservação. − Olha, ela não sabia, − eu disse. − Até onde ela sabia, você era outro fantasma que estava tentando machuca-la. − Tão rápido para tomar o lado dela, − ela murmurou. Ela tropeçou em mim para lavar as mãos na pia. Olhei-a. − O que há de errado com você? − Você não sabe nada dela, porque ela estava lá, nem o que aquelas coisas com ela fazem. − Ela esfregou as mãos fortemente embaixo de água. − Você ao menos sabe o que aconteceu com a Sra. Ruiz? Onde ela foi parar depois que a sua amiga a fez desaparecer? − Eu...
33 − Não, você não sabe, − Ela respondeu por mim. − Essa garota simplesmente balança por aí as suas armas legais e você está cativado. Sem perguntar nada. − Ela passou por mim para secar as mãos numa toalha. − Não acho que isso é um problema desde que você não a verá nunca mais, provavelmente. − Eu disse. − Ela nem me deu o próprio nome, − O que era uma merda. Talvez eu pudesse descobrir algum outro jeito de rastreá-la, só para conversar, trocar informações. Ela virou o rosto para mim. − Sério? Você não realmente caindo nessa, está? − O quê? Por quê? − parecia que estávamos em duas conversas completamente diferentes… Ou não no mesmo planeta. − Antes de tudo, não te dizer o nome é uma forma de manipulação. Isso apenas te faz querer saber mais. − Ela balançou a cabeça para mim em desgosto. − Clássico movimento de garotas. Como você não sabe disso? Ela pausou e então disse − Esquece. Esqueci com quem estava falando. Ótimo. Só porque eu passei a maior parte do ensino médio evitando contato social... − Ou, é possível que ela realmente não queria me conhecer, − apontei. − Então porque não inventar algo? Como você saberia? Eu abri a boca e a calei sem falar nada. Era um bom ponto. Ela colocou o cabelo atrás dos ombros e assinalou outro ponto com os dedos. − Segundo, outra pessoa capaz de falar com fantasmas, uma raça rara e em extinção, de acordo com você, simplesmente acontece de aparecer no mesmo lugar e hora que você? − Ela perguntou. − Bem, sim. − Eu disse. − É possível. − Por favor. Você tem ideia de quais as chances disso acontecer? − Não, mas não importa. − Argumentei. − Ela não tinha jeito de saber que eu estaria ali essa noite. − Aham. − Ela soou menos que convencida. − Porque ninguém sabia que a demolição é amanhã e dos problemas da Sra. Ruiz.
34 Aparentemente, nenhum de nós sabia da extensão dos problema da Sra. Ruiz, mas o lugar de assombro dela era bem comumente conhecido, e a demolição - e também os esforços da Sociedade Cultural de Decatur para impedi-la - estiveram nas notícias locais por semanas. Balancei a cabeça. − Isso é loucura. Você acha que é um tipo de plano elaborado? Para conseguir o quê? Ela jogou as mãos para cima. − Como eu vou saber? Pergunte a sua nova namorada. Fiz uma careta para ela. − Ela não é a minha... − Tanto faz, agora não importa se ela queria te achar ou não, − Alona continuou. − Não importa, − repeti. − Não. O fato é: ela te achou. E se há só umas poucas pessoas que podem falar com fantasmas por aí, você acha que essa é uma oportunidade que eles deixarão passar? − Quem? − Eu estava começando a pensar que talvez um de nós sofreu lavagem cerebral hoje à noite. Honestamente, não estava certo sobre quem de nós era o candidato mais provável. − As pessoas para quem ela trabalha, − Alona disse com exasperação. − Não ouviu a parte de “Essa foi a minha terceira chance de confinamento” que ela falou. A olhei boquiaberto. − Nós nem sabemos o que isso quer dizer... − Eu posso te dizer que isso quer dizer que alguém está avaliando o que ela fez ou não fez à Sra. Ruiz hoje à noite. E não acho que é um comitê de antigos patinadores artísticos. Ela dobrou os braços no peito e esperou pela minha resposta. − Você pensa tanto assim sobre tudo? − perguntei, não tendo certeza sobre o que mais dizer. Era distintamente possível que Alona não havia percebido o seu dom para teórica da conspiração. Apesar de ser melhor vestida que a maioria.
35 Ela se inclinou para mais perto de mim. − Rainha do baile por três anos seguidos, − ela disse. − Você realmente acha que isso aconteceu por acidente? Ela realmente tinha um bom senso das pessoas, tenho que admitir. Na maior parte do tempo, ela não se importa a menos que a afete. O que, nesse caso, suponho que a tenha afetado, indiretamente. Tirei importância as palavras dela com um aceno da minha mão. − Ok, certo. Se ela aparecer novamente, eu me lembrarei de perguntar qual o misterioso e sombrio motivo da visita. − Ótimo. − Ela acenou, satisfeita. Jesus. Ela se virou e começou a colocar os primeiros socorros de volta na caixa. − Você gostou dela? Inclinei a cabeça, não tendo muita certeza do que tinha acabado de ouvir. − Como é que é? − Eu disse, você gostou dela? − Ela se manteve de costas para mim. Parecia que ela estava tentando arrumar o conteúdo da caixa em ordem alfabética ou algo do tipo. Não deveria demorar tanto para colocar as pinças, bandagens e o creme antibacteriano. − Eu... − Meu Deus, não havia um jeito certo de responder isso. "Sim" era obviamente errado. Ela detectaria "não" como uma mentira imediatamente. E "não a conheço o bastante para saber se gosto dela" era idiota. − Eu estava curioso, − disse finalmente. − Quão curioso? Merda, outra pergunta impossível de se responder. Eu estava começando a suar. − Não entendo o que você... − Ela não parecia ter um guia espiritual. Ao menos, não agora. − Alona deu de ombros. − E se ela tivesse um, ele provavelmente desapareceu de propósito só para ficar longe dela, − adicionou, os lábios numa linha fina. Ok... Havia uma pergunta em algum lugar aí. Eu podia senti-la vindo. Mesmo não tendo ideia de qual seria a direção. Deixe com Alona, a pessoa mais
36 direta que conheço, abordar o que quer que fosse isso da maneira mais obliqua possível. − Com aquele dispositivo que ela usou contra a Sra. Ruiz, ela provavelmente não precisa de um, − ela continuou. O silencio que ficou no ar após aquelas palavras tinha um valor fracamente diferente, como se ela estivesse testando águas verbais e esperando por um “Muito quente” ou “muito frio” como resposta. Ah, espera. Agora eu estava entendendo. Acho. − Eu estava curioso, − disse com cuidado. − Não procurando mudar as coisas. − Ela está viva. Sua mãe gostaria disso. Deixei um silencioso suspiro de alívio. Entendi certo. Ela estava preocupada que eu fosse substitui-la ou me livrar dela ou algo do tipo, mas do jeito Alona, ela não poderia simplesmente dizer. Não, isso significaria admitir que se importa. − Minha mãe ainda está... Se acostumando, − eu disse. A coisa de falar com fantasmas foi bem difícil de a minha mãe aceitar, especialmente quando ela realmente sabe o que significa. Uma vida normal para mim... Não seria tão normal assim, mesmo agora. Me inscrevi em faculdades, como havíamos conversado, mas até agora, nada além de uma pilha de rejeição. Não podia dizer que estava surpreso. Tente explicar porque há tantas faltas, mais detenções do que uma pessoa razoável se importaria em contar, e meia dúzia de suspensões, e só Deus sabe que tipo de notas do diretor no seu histórico permanente, (o que, além do mais, realmente existe e as escolas enviam por aí) sem mencionar “fantasmas” ou “habilidade paranormal”. Havia escolas que provavelmente estariam de boa comigo dizendo a verdade – se eu quisesse me especializar em cristais ou algo do tipo. Mas não era isso o que a minha mãe tinha em mente.
37 Adicione então que a pessoa com quem eu mais passava tempo era uma linda garota que por acaso era um espírito, mas que ainda vivia (do jeito dela) e bem tocável? É. Por algum motivo, aquilo significava apenas uma coisa para a minha mãe – a possibilidade de eu ter SEXO estranho, não-morto e interdimensional. É. Quem dera. De qualquer forma, minha mãe esteve um pouco menos que cooperativa nas poucas vezes em que teve que ser forçada a reconhecer a presença invisível de Alona. Mas eu não havia percebido que isso incomodava tanto Alona... ou sequer que a incomodava. − Ela vai acostumar, − eu disse. − Só precisa de tempo. Alona fechou o kit de primeiro socorros e o trancou antes de virar o rosto para mim. − Você sabe que eu encontraria outro jeito, se tivesse. Eu não preciso de você. − Ela encontrou os meus olhos desafiadoramente, me desafiando a contradizê-la. − Eu sei. − Não tinha certeza de como ela iria ajudar pessoas - ganhar os pontos, aprender a lição dela ou o que quer que fosse que a trouxe de volta para conquistar - sem mim, seu único ponto de acesso aos vivos, mas eu sabia melhor do que substimá-la. Eu já havia aprendido aquela lição. − Mas isso não é... Não acho…− Blá blá blá. Se recomponha. Me forcei a parar e recomeçar. Respirei fundo. − Estive sozinho nesse negócio de falar com fantasmas a minha vida inteira − disse, escolhendo as palavras com cuidado. Isso tinha um grande potencial de explodir bem na minha cara. − Mesmo quando o meu pai era vivo, ele não queria nada relacionado com isso.
Então, sim, achar alguém
como eu é meio que algo importante. Ela endureceu. − Mas isso não muda nada, − eu disse. − Não mesmo. Ela não parecia convencida. Hesitei e dei um passo adiante. Segurei a mão dela e ela não a puxou imediatamente. Era um bom sinal, né? − Não quero fazer isso - o que nós fazemos - com mais ninguém, ok? − disse rapidamente. Aí. Me senti perigosamente exposto e meio que um idiota,
38 mas ao menos eu disse. Deus, não é a toa que Alona dançava ao redor desse tipo de coisa. Seus olhos se arregalaram, e ela tirou a mão da minha. Estremeci em antecipação. Era perfeitamente possível que eu estivesse mal interpretando as suas preocupações, e agora eu ia ouvir tanto disso... Ela tocou o meu rosto, seus dedos leves contra a minha bochecha, e então ela estava me beijando. A boca dela era morna, macia e, como sempre, tinha o vago gosto de gloss de baunilha. A língua dela roçou em meus lábios e eu mal podia pensar. Uh. Talvez eu devesse tomar chances assim mais vezes.
39
Will Killian beija surpreendentemente bem. Quer dizer, você nunca adivinharia olhando para ele. Ele é perpetuamente pálido com cabelo preto desalinhado, um guarda-roupa seriamente questionável, e uma atitude que faz Bisonho2 parecer como um raio de sol. Seria de pensar que ele não teria tido a oportunidade de ficar muito experiente em beijar, especialmente tendo em conta que a maioria das pessoas o considera louco. E ainda... wow. Parei na calçada do lado de fora da casa de Will, correndo um dedo hesitante sobre minha boca. Sua mãe tinha voltado para casa antes que as coisas pudessem ficar muito intensas, e eu tive que sair de seu quarto antes que ela o invadisse. Mas meus lábios ainda estavam inchados daquele jeito de ‘eu-fui- completamentebeijada’. Alguns caras parecem ter a impressão de que devem tentar engolir a metade de seu rosto. Mas, surpreendentemente, Will não. Ele era gentil e doce, e ainda não de todo com medo de intensificar e tomar a liderança. Eu tremi de prazer com o pensamento. Em um ponto, ele me puxou para seu quarto e...
2
Bisonho (Eeyore, no original em inglês), é um personagem da turma do Ursinho Puff. É um burro cinzento (as vezes azulado) com pernas curtas, orelhas caídas e crina negra. Bisonho é conhecido por ser muito pessimista e resmungão.
40 — Só uma noite aconchegante, hein? — Uma voz sarcástica perguntou atrás de mim. Eu congelei, assustada, e então gemi interiormente quando percebi que reconhecia a voz. Ela tinha me encontrado novamente. — Com ciúmes? — eu perguntei, virando-me. Liesel Marks estava na calçada a poucos metros atrás de mim. A luz da rua transformava seu vestido de baile rosa com bolinhas em um tom de branco com brilhantes manchas brancas. Atrás dela, como sempre, pairando sobre a borda das sombras, estava o seu par do baile de longa data, Eric Hargrove. Ele estava vestido com o melhor dos smokings azuis-claros. Eles pareciam exatamente como o que eram: fugitivos de um baile de formatura nos anos setenta. Mas eles realmente não tinham escapado de nada. Eles ficaram presos aqui, no meio, assim como o resto de nós. Liesel e Eric tinham morrido em um acidente de carro com fogo na noite do baile, uma história de advertência para os estudantes do ensino médio em toda parte. Bem, os vivos, de qualquer maneira. Eu, pessoalmente, não poderia ter me importado menos. Karma é uma cadela, e você recebe o que merece quando rouba o cara de outra pessoa. — Certo, — Liesel bufou. — Como se eu quisesse ser o animal de estimação do que consegue falar com fantasmas. No meu primeiro dia como espírito guia de Will, tinha sido Liesel a explicar, muito ironicamente, todas as desvantagens do trabalho. Não era tão ruins, na sua maioria. Eu aparecia onde Will estava no momento de minha morte ou a qualquer momento que eu desaparecesse. E eu poderia ser “chamada” por ele, se ele se concentrasse. Era isso. Mas eu não tinha poderes sobre ele, infelizmente. Era algo em que eu não gostava de pensar, e uma vez que Will sabia melhor do que tentar fazer-me rastejar, isso não era realmente merecedor de consideração. Exceto quando Liesel falava disso apenas para esfregar no meu rosto, é claro.
41 — O que você quer? — Eu perguntei entre dentes. Porra, minha felicidade pós-sessão de amassos estava desaparecendo. — Nós precisamos que o medium faça algo por nós, — disse ela sem sequer olhar para trás, para Eric. Ele balançava em seus calcanhares no fundo, as mãos enfiadas nos bolsos das calças, parecendo desconfortável. Eu quase me senti mal por ele, amarrado a essa harpia por toda a eternidade, ou pelo menos o previsível futuro, só porque seus hormônios levaram a melhor sobre ele. Mais uma vez, a minha regra sobre não namorar alguém a menos que seja digno de você se revela verdadeira. Você sabe... não sair com alguém que realmente não gosta - ou gosta só para uma coisa - porque você pode morrer e depois ficar preso com ele/ela para sempre. Não há inferno pior. — Sim, eu sei, — eu disse a Liesel. — Já percebi. Fazer a Sra. Pederson perdoá-la por ter roubado seu homem e por transar com ele antes de fazer com que ele fosse morto. Liesel e Claire LaForet Pederson, que também era a professora de Literatura Britânica na nossa antiga escola, tinham sido melhores amigas enquanto cresciam, até que Liesel tinha roubado seu homem e, em seguida, tinha morrido. É claro, nada disso explicava por que Eric ainda estava preso aqui. Tecnicamente, pelo que eu tinha sido capaz de perceber do queixume constante de Liesel durante os vários momentos como este em que ela me tinha perseguido, Claire e Eric não tinham estado realmente namorando. Claire tinha apenas reivindicado Eric primeiro. Olha, eu sou... ou era uma jogadora de poder no ensino médio de Groundsboro. Eu conheço todos os aspetos da nossa hierarquia social como conheço o conteúdo do meu armário. Dê-me 15 minutos, e eu provavelmente poderia fazer a mesma coisa em qualquer outra escola, também. Você tem que saber quem são os concorrentes, como fazer amigos... e os inimigos certos. (Um inimigo bom, ou amigo-inimigo, vai lhe dar mais credito do que você poderia acumular com anos de apenas as roupas certas, cabelo, etc.) Mas uma coisa que você não faz? Mexer com a paixão de outra garota. Sim, dá-lhe um impulso temporário na reputação, e se você acabar em um
42 relacionamento com ele (veja a minha melhor amiga, Misty, e meu ex, Chris), então a maioria das pessoas vai desculpar o assunto como sendo ‘verdadeiro amor’. Mas isso é arriscado. E fazê-lo só porque você pode? Porque está entediada, solitária, precisando de uma correção na auto-estima? Quando a relação cair por terra, espere prostituição instantânea. Porque você acaba de anunciar, em poucas palavras, para cada menina na escola que você não tem intenção de respeitar os limites dos acordos nãoditos de reivindicação de caras, e suas paixões podem ser as próximas. Sim. Não é uma boa ideia. Nunca. — Você é o número 936 na lista ou algo assim, — eu disse. Eu tinha enviado Liesel para o fim, apenas por ser uma dor no meu traseiro. — Como se costuma dizer, hoje não é o seu dia e amanhã não está parecendo muito bom, também. — Eu tinha certeza de que Will tinha isso em uma t-shirt em algum lugar. — Você precisa mover-nos para o topo, — disse Liesel bruscamente. Eu fingi pensar sobre isso. — Não. — Você fez isso para a Sra. Ruiz, — ela ressaltou em uma voz estridente horrível. — Você colocou-a diretamente no topo. — E olha como isso deu certo, — eu murmurei. Ela franziu o cenho. — O que? Evidentemente, o trem das fofocas dos mortos-vivos, que normalmente viajava com a velocidade e precisão de uma bala, não a tinha atingido com os últimos detalhes ainda. Eu suspirei. — Nada. — Estamos ficando sem tempo. — Ela tocou sua franja cheia de laquê com cuidado, para garantir que tudo ainda estava no lugar. Muito provavelmente um hábito nervoso de quando era viva que permaneceu, quando coisas como o vento estragavam sua aparência. A menos, claro, que você tenha usado 12 latas de spray para cabelo.
43 Apertei os olhos para ela e depois para Eric atrás dela. — Vocês parecem bem para mim. — Nenhum deles parecia estar em perigo de desaparecer mais do que antes. Suas formas eram tão sólidas como sempre. — Claire começou a namorar alguém, — disse ela. — Seu nome é Todd. Eu levantei minhas sobrancelhas. O divórcio da Sra. Pederson de um par de anos atrás tinha sido lendário, especialmente após o dia em que ela apareceu para ensinar, alegadamente meia-bêbada. Felizmente, tinha acabado por ser um sábado. Infelizmente, mais do que um número suficiente de pessoas estavam no edifício – tendo práticas, anuário, detenção, etc, - para o rumor estar vivo e no topo na segunda-feira. — Então... você quer impedi-la? Você não pode ser feliz, então ela não pode ser feliz até que te perdoe? Will nunca vai concordar com isso. — Eu me virei. — De que lado você está? — Ela me perguntou. — Não do seu, — eu disse sobre o meu ombro. — Sim, eu notei. Nós todos notámos. Virei-me. — O que é que isso quer dizer? — Tudo o que importa é o que ele faz. — Ela cruzou os braços sobre o peito. — Nós nem sequer importamos para você. Eu assumi que o ‘nós’ a que ela se referia era a população geral de fantasmas da área de Decatur/Groundsboro ao invés de apenas Eric e ela especificamente. — Eu sou a guia dele, — apontei. — Mas você é uma de nós, — ela atirou de volta. Balancei a cabeça. — Você acha que é melhor do que nós só porque trabalha para o vivo? — Ela exigiu. — Trabalho com o vivo. — Eu corrigi com um tom afiado. — E não, eu acho que sou melhor que você porque sou melhor do que você. — Continuei andando.
44 — Você não está mais viva, sabe! — ela gritou para mim. — Não como ele está. E ser a guia dele não te faz ficar mais perto de sê-lo. Você precisa parar de fingir. É patético. Eu congelei e girei para encará-la novamente. — Desculpe? — Ela estava me provocando, eu sabia disso, e ainda não consegui parar. Ela não sabia de nada; estava apenas chutando no que pensava que podia ser um ponto fraco. E, no entanto, esta noite, essa área em particular estava maior e mais vulnerável do que de costume. Ela se aproximou, seu vestido farfalhando ruidosamente no ar tranquilo da noite de verão. — Você não é diferente do resto de nós, exceto que acha que deixar o médium te usar faz de você algo especial. — Qualquer uso acontecendo é mútuo, garanto a você, — eu disse tensa. Ela revirou os olhos. — Sério? Você acha que ele vai querer você por perto para sempre? Alguém que ninguém mais pode ver? Você trabalha para ele. O resto é temporário. Você está apenas disponí… Eu suspeitava que teria sido ‘disponível’ mas me lancei para ela antes que ela pudesse terminar. Descemos em um emaranhado de tule no quintal vizinho de Will. Deus, eu esperava que Will não estivesse assistindo. Mas mesmo que estivesse, eu não poderia deixar isso ir. — Você não vê? Não é certo o que ele está fazendo, — insistiu ela, enquanto nós lutávamos e rolávamos na grama. — Eu não estou fazendo isso por ele. Eu fui enviada de volta da luz para… — Correção, você foi expulsa! Estendi a mão para sua garganta, para acabar com suas palavras e seu ar. Infelizmente, não podíamos realmente ferir uns aos outros. — Ei, parem com isso! — Eric alcançou entre nós e nos separou, uma mão na parte de trás do vestido de Liesel e outra na gola da minha camisa. — Vocês estão desaparecendo.
45 Nós duas olhámos para nós mesmas. Secções inteiras do tronco de Liesel estavam transparentes, e minhas pernas tinham desaparecido do joelho para baixo. Droga. — Você parece muito determinada a compensar o seu erro, o que eu admiro, — ofereci a contragosto. — Eu gosto do seu cabelo, — disse ela com desdém igual. Mas deve ter sido genuíno, de ambas as partes, porque o desaparecimento gradual parou. — Olha, nós não queremos que Claire seja infeliz. Exatamente o oposto, — disse Liesel rapidamente como se ela pensasse - corretamente - que eu ia começar a andar novamente agora que tinha as minhas pernas de volta. — Nós temos um número de oportunidades muito limitado aqui. Ela não namora muito frequentemente, e quando o faz, quase nunca corre assim tão bem. Agora, ela está feliz e animada com Todd. Então, ela pode ser mais aberta, mais… — Fácil para ela perdoar? — Exatamente. — Liesel acenou com a cabeça veementemente. O fato de eu apenas considerar isso já quebrava cada regra que eu tinha sobre a lista dos mortos que precisavam de nossa ajuda – funcionava totalmente na base do primeiro a chegar, primeiro a ser servido; a menos que você me irritasse e eu te enviasse para o fim, ou devido a circunstâncias atenuantes o trouxesse para o topo. Não havia favoritos. Eu tinha que manter ordem forte e imparcial, ou eles estariam andando em cima de mim para chegar ao Will, e eu não tinha tempo ou energia, literalmente, para lutar com todos eles. Mas talvez Liesel tivesse um ponto, desta vez, sobre a Sra. Pederson estar em um humor potencialmente mais otimista. A parte cadela de mim queria dizer-lhe para esquecer, mas a verdade era que, se eu não fosse um pouco flexível quando necessário, eu perderia o controle tão rápido como perderia se fosse demasiado flexível. Além disso, o
46 papai sempre disse, o favor bem-cronometrado ganha mais respeito do que mais um exemplo de ser um cara durão. Além disso, ela disse que gostava do meu cabelo e era verdade. — Eu vou pensar sobre isso e depois te digo a resposta, — eu disse. Claro, no final, não era a minha decisão de todo, mas eu com certeza não ia dizer isso agora. Eu sabia que Will ficaria aborrecido, como ele sempre ficava quando se tratava de lidar com pessoas vivas que ele conhecia. Mas ele se formou. Como sua ex-professora, a Sra. Pederson já não estava realmente em posição para lhe dar problemas. Eu poderia ser capaz de convencê-lo dessa vez. — Hoje à noite, — disse Liesel. Eu olhei para ela. — Não abuse da sorte. Amanhã. Ela abriu a boca para responder e pareceu pensar melhor, o que, francamente, seria uma primeira vez. — Tudo bem, — disse ela com um revirar de olhos. — E nem sequer pense em ir lá para tentar falar com ele. — Eu apontei um dedo para ela. Seria muito tentador para ela, eu sabia isso, com ele tão perto. Era uma coisa para a Sra. Ruiz, alguém que nunca o conheceu antes, fazer uma abordagem direta com uma necessidade imediata. Era algo diferente Liesel continuamente assediá-lo. — Eu não vou, — disse ela com exasperação. — Deus. — Porque eu vou colocá-la ainda mais para baixo na lista, atrás de pessoas que ainda nem estão mortas. — Franzi a testa. — Como você me encontrou aqui? Nós éramos muito cuidadosos sobre não nos encontrarmos com espíritos na casa de Will. Era o único lugar onde ele poderia ter um pouco de paz e tranquilidade. E uma vez que eles não eram oniscientes após a morte mais do que eram em vivos, e tinham acesso significativamente menor a um livro de telefone ou a Internet, a maioria dos espíritos não tinha ideia de onde ele morava. — Eu te segui aqui há alguns dias atrás, — ela confessou.
47 Droga. Eu ia ter que começar a ser ainda mais cuidadosa. Só mais uma coisa para me preocupar. — Não faça isso de novo, e se você contar a alguém onde ele vive, está fora da lista completamente, — Eu disse a ela, embora não tinha certeza de que tinha a autoridade para tomar essa decisão. — Agora vá, antes de eu mudar minha mente. Mas ela não correu para longe como eu esperava. Ela limpou a frente de seu vestido, embora não houvesse manchas de sujeira ou grama. — Eu quis dizer o que disse anteriormente... — disse ela, mantendo os olhos focados em sua tarefa. Fiquei tensa. — Você vai ter que escolher um lado, em algum momento, o dele ou o nosso. — Ela olhou para cima, um desafio em seu olhar. — Eu estou no meu próprio lado, — eu disse. Ela assentiu com a cabeça, mas eu podia ver que ela não estava convencida. Que seja. Eu me virei e fui embora. O que Liesel Marks pensava não era importante para mim. Eu não estava trabalhando em seu nome. Will e eu tínhamos um entendimento. Ele me ajudava. Eu o ajudava. Isso era tudo, e a única coisa que importava.
***
Discutir com Liesel tinha me colocado em um humor menos do que estelar - quero dizer, quem ela pensava que era, afinal? - então eu andei até casa em vez de tentar pegar uma carona... ou dez. Confie em mim, não há nada mais frustrante do que deslizar em um carro para pegar uma carona só para que ele vire trinta segundos depois em uma direção para onde você não quer ir. Mas quando atravessei a porta da frente da minha antiga casa, literalmente atravessei - esse negócio de atravessar coisas sólidas era incrível
48 desde que Will não estivesse por perto para me ferrar - eu estava me sentindo melhor. Casa, apesar de ter sido um pesadelo caótico quando eu estava viva, era uma espécie de conforto agora pela sua familiaridade. Escola estava fora de questão. Meus amigos (e inimigos) tinham se formado. Eu estava morta. Mas casa ainda era casa, sabe? A única coisa que realmente não tinha mudado. O andar de baixo estava vazio. As luzes estavam acesas na cozinha, mas minha mãe não estava lá, o que era meio estranho. Agora que ela não estava mais bebendo, eu geralmente a encontrava na cozinha comendo um Lean Cuisine3 direto da bandeja preta para microondas enquanto ela assistia um seriado cafona ou conversava online com seus antigos amigos de faculdade. (Eu sei; assustador, não é? Os mais velhos invadiram o Facebook. Isso é simplesmente errado de tantas maneiras.) Praticamente o resto do tempo, ela estava ou numa reunião de AA ou no trabalho. Ela conseguiu um emprego no balcão Clinique em Von Maur e pode usar um daqueles jalecos brancos legais de laboratório. — Olá? — Eu chamei mais para a minha paz de espírito do que qualquer outra coisa. Ocasionalmente, eu ainda tinha problemas com a ideia de que eu estava no mundo, mas não fazia parte dele, se isso fazia sentido. Era reconfortante manter os hábitos e convenções da vida. Não houve resposta, é claro. Mas eu pensei que ouvi ela se mover lá em cima. A nossa casa é grande, com uma fachada de tijolo, dois andares, um hall de entrada dramático aberto para o segundo andar e uma escadaria no salão da frente, que, deixe-me dizer-lhe, teria arrasado para fotos de formatura se eu alguma vez pudesse ter trazido alguém para minha casa. Eu comecei a subir os degraus, observando que todas as pilhas de revistas, lavanderia e coisas da escola que eu tinha empilhado nas escadas
3
Marca de refeições congeladas.
49 individuais durante os últimos dias da minha vida haviam desaparecido. Também, muito estranho. No topo, eu descobri que a luz estava acesa no meu quarto, e meu coração começou a bater como louco. (Sim, eu estou morta. Sim, eu assisti meu funeral e assisti-os colocar o meu corpo no chão. Mas eu ainda sinto coisas. Meu batimento cardíaco, respiração, rir, chorar, tudo isso. Eu não consigo explicar e realmente nem mesmo quero tentar. Basta lhe chamar Síndrome de Corpo Fantasma ou algo assim.) Eu tinha estado morta e vivendo, se você pode chamá-lo assim, como espírito por cerca de dois meses. Nesse tempo todo, a porta do meu quarto na casa da minha mãe tinha estado fechada. Assim como eu tinha deixado quando saí da porta para a escola naquela manhã. Ok, sim, minha mãe tinha, provavelmente, olhado lá de vez em quando ou o que seja. Eu definitivamente tinha olhado. Era meio perturbador e triste, de uma forma que eu não entendia muito bem. Quer dizer, eu ainda sou eu, ainda estou aqui. E apesar disso, quando eu via meus shorts de dormir ainda sobre a cama onde eu os tinha jogado, as cobertas empurradas para trás, como se eu tivesse acabado de levantar, e minha roupa de reserva para o dia - um colete super fofo com gravata combinando sobre uma camisa branca com manga até o cotovelo, e uma mini saia preta plissada - pendurada na frente da porta do armário, me dava essa pontada estranha no meu peito. Era como um memorial - ou uma exposição de museu - para uma garota que já não existia. E sim, enquanto um pouco assustador, também era reconfortante, como uma prova sólida de que eu tinha estado uma vez aqui e que eu poderia ainda de alguma forma, voltar para minha vida, neste momento congelado no tempo. Mas agora... com a porta aberta, a luz acesa, e os sons de movimento vindo de dentro do meu quarto, qualquer indício de confiança estava sendo substituído por pânico cego. O que ela estava fazendo no meu quarto?
50 Isso era inaceitável. Eu passei anos treinando os meus pais para ficar de fora, a menos que eles fossem convidados, o que - Olá - não ia acontecer. Eu dei os últimos passos para o meu quarto, um protesto que ela não seria capaz de ouvir já se formando em meus lábios, e então parei na porta, minha boca caindo aberta. Minha mãe não estava bisbilhotando, pegando itens aleatórios e chorando, como você poderia esperar. Nem estava olhando para o meu diário secreto. (Eu não tenho um, demasiado arriscado. Porque dar a uma rival tudo o que ela precisa para derrota-la facilmente?) Não, minha mãe estava no meio do meu quarto com um saco de lixo preto ENORME em sua mão, e ela estava jogando coisas fora! Minha vida estava sendo jogada no lixo! Enquanto eu olhava, ela arrancou o copo de viagem da Krebel com Diet Coke da minha cômoda, onde tinha estado se desintegrando em uma poça de lodo e pasta de papel durante as últimas oito semanas ou mais, e jogou-o no saco. O copo podia não parecer importante para ela ou para qualquer outra pessoa, mas tinha sido tecnicamente a minha última refeição, ou parte dela. — O que você está fazendo? — Eu exigi, quando consegui respirar novamente. — Não é tudo. Apenas o lixo. Olhei para ela por um longo segundo. Ela não tinha me ouvido falar... tinha? Não. Quando eu olhei mais perto, eu notei a inclinação estranha de sua cabeça e seu telefone celular preso entre seu ombro e seu ouvido. Assim livrarse do acúmulo de minha vida não valia mesmo a pena toda a sua atenção? Agora eu estava chateada. — Pare! — Eu atravessei o quarto e dei um tapa no saco. Minha mão praticamente atravessou-o - não exatamente um choque - mas ele pulou um pouco em sua mão, que era o máximo que eu conseguia fazer por conta própria. Ela olhou para o saco com o cenho franzido. Então, a conversa por telefone distraiu-a novamente. — Não, Russ, eu prometo. Eu não faria isso.
51 Russ. Meu pai. Minha mãe estava falando no telefone com o meu pai? Meus joelhos ficaram cambaleantes, de repente, como se eu fosse desmaiar. Eu não sabia se isso era possível na minha condição, mas não estava ansiosa para descobrir. Meus pais não tinham falado de bom grado e sem a presença de terceiros em anos. E de alguma forma eu duvidava seriamente que isso era uma chamada de três vias com seus advogados. Mas que diabos? Eu afundei lentamente no chão, ao lado dos pés da minha mãe e do saco de lixo. Eu podia ver o topo da colagem ridícula que eu tinha sido forçada a fazer para a classe de psicologia da Sra. Johnson com o tema: Como o sexo vende em Publicidade, saindo da abertura da bolsa. — É melhor. Não é fácil, mas melhor. — Ela tomou uma respiração profunda. — Cada passo ajuda. — Alcoólicos Anônimos, ela tinha que estar falando sobre seus encontros. Minha mãe tinha sido uma desesperada e impotente alcoólica desde o divórcio dos meus pais há três anos. Que era outra razão pela qual essa conversa estava atingindo altos níveis de loucura. Ela estava realmente sóbria. Sóbria e séria, tanto quanto eu poderia dizer. Antes do último par de meses, minha mãe tinha sido a rainha da discagem bêbada... e de mandar mensagens bêbada, e e-mails bêbados, e até mesmo passagens de carro bêbadas. Nada bom. — Eu aprecio que você tenha me contado para que eu não tivesse que descobrir por outra pessoa. — Ela limpou o pó de sua mão em suas calças de moletom e puxou o telefone de entre seu ombro e seu ouvido e sentou-se à beira da minha cama. Então, ela deu um suspiro e forçou um sorriso. Estando perto dela e com seu rosto sem maquiagem, eu podia ver todas as pequenas linhas nos cantos dos olhos dela. — Parabéns para você e Gigi. Realmente. É algo para se comemorar. Eu sei que Alona ficaria satisfeita. Um frio pressentimento tomou conta de mim. Nada envolvendo Gigi, segunda esposa do meu pai e ex-assistente administrativa, poderia ter me agradado. Minha mãe tinha se tornado uma bagunça ensopada de álcool patética após o divórcio, sim, e eu tinha passado algum tempo culpando-a por
52 minha morte. Eu estava vindo para casa, depois de fugir de ginástica, para arrastar sua bunda de ressaca para fora da cama para que ela pudesse encontrar-se com o meu pai (e seus advogados) quando o ônibus matinal e eu nos encontrámos em um nível bastante súbito. Mas Gigi... ela era apenas uma cadela. Quando eu estava viva, ela tinha estado constantemente tentando convencer meu pai a cortar em sua pensão alimentícia e apoio à criança, para que ela pudesse ter mais do que ela queria. Tínhamos um ódio bem documentado e mutuamente entendido uma pela outra. Qualquer coisa que ela queria comemorar claramente significava problemas para mim. Minha mãe desligou o telefone, sem esperar por uma resposta. Seu rosto se enrugou, e ela largou o saco para puxar-se na minha cama, seus joelhos dobrados contra o peito. Ela chorou por alguns minutos no meu travesseiro, que eu sabia da minha última visita que já tinha começado a cheirar a pó e desuso em vez de Pantene e loção corporal pepino-melão. Então, ela sentou-se, e para minha surpresa, em vez de ir lá embaixo para olhar ansiosamente para o agora vazio armário de bebidas ou para acabar com o último estoque de bebida que eu tinha certeza que ela tinha escondido em algum lugar, levantou-se, agarrou o saco de lixo de novo e começou a jogar fora mais de meus pertences, murmurando baixinho algo que soou suspeitamente como uma oração. Lá se foi à impressão da minha planilha meticulosamente criada, que compilava todas as potenciais possibilidades de roupa a partir do conteúdo de meu armário e rastreava quando eu tinha usado cada última combinação. Os ingressos de quando Misty, minha melhor amiga, e eu fomos ao concerto dos Boys Like Girls em outubro passado. O pedacinho de cetim que eu tinha cortado na parte de trás da faixa de Rainha do Baile antes de devolvê-la. (Sim, eles reciclavam a faixa de ano para ano. É por isso que não havia nunca um ano impresso. Brega e barato, era assim o ensino médio de Groundsboro.) Eu me senti como se pudesse vomitar. Essas coisas não eram lixo. Eram memórias, símbolos da vida que eu vivi, e as únicas coisas que eu tinha deixado
53 dela. — Mãe! Pare! — Estendi a mão para o saco de novo, com ainda menos sucesso desta vez. O saco nem sequer se moveu. Meu protesto passou despercebido, e ela continuou amassando e jogando fora os meus bens mais preciosos. Quando ela finalmente terminasse, não seria mais o meu quarto. Claro, ela ia deixar o mobiliário, as fotos emolduradas (uma de cada um dos meus pais, algumas de Misty e eu, e vários namorados em bailes e regressos), meu despertador e rádio... tudo isso ficaria. Mas as coisas que o tinham feito meu, realmente meu? Ela estava jogando-as fora, como se não significassem nada. Como se eu não significasse nada. Não era suposto os pais manterem todas as coisas de seus filhos para sempre? Todos aqueles colares de macarrão, pinturas com dedos e primeiros testes de ortografia? Não eram tesouros do passado ou algo assim? Tudo isso não seria ainda mais pungente se seu filho estivesse morto? Assistindo a eficiência da minha mãe com o saco de lixo, não parecia. Uma ideia indesejável me invadiu. Will estava certo. Ele tentou me avisar sobre isso, e eu tinha o ignorado. Afastei esse pensamento, fugindo do meu quarto e da casa. Eu não tinha que ficar aqui e assistir isso. Ela não era, graças a Deus, minha única parente. Ela nem sequer era a minha favorita. Quinze minutos mais tarde, depois de atravessar quintais, navegar por valas de drenagem íngremes, e atravessar algumas ruas movimentadas (outra coisa agradável sobre estar morto, se você foi atropelado uma vez, nunca tem que se preocupar com isso acontecendo de novo), eu cheguei na calçada para a casa nova de meu pai, uma coisa do tipo bangalô que ele compartilhava com Gigi. E realmente não era tão nova. Fazia três anos que ele tinha deixado a minha mãe, e dois anos e meio desde que ele e Gigi tinham casado. Percebi logo que o adorável VW Eos prateado, o meu presente de formatura pretendido, já não tinha um lugar de honra na parte superior da unidade, bloqueando a metade da garagem que meu pai usava para armazenar seu equipamento de golfe. Em vez disso, uma minivan gigante e horrível havia tomado seu lugar.
54 Não, não, não. Eu não parei para pensar, apenas corri para o escritório do meu pai, nem mesmo me preocupando em passar a soleira da porta. Portas, paredes, eram todos a mesma coisa agora mesmo. Eu encontrei o meu pai exatamente como esperava. Ele estava cabisbaixo em sua mesa, com a cabeça apoiada por sua mão, e olhando para uma foto de nós de uma dança pai e filha na quinta série. Naquela época, eu ainda não tinha aprendido a magia do creme de alisamento para domar os cabelos frisados e eu ainda tinha aparelho nos dentes, ugh. Mas ele parecia gostar. Era a única foto em sua mesa, a única em toda a sala, na verdade. Um copo de conhaque estava em frente a ele, a centímetros de sua mão. E mesmo na luz fraca oferecida pela lâmpada de imitação Tiffany, eu podia ver que ele estava chorando. — Graças a Deus. — Eu desabei no sofá de couro atrás dele, lançando meu cabelo sobre o braço para que ele não ficasse todo emaranhado, mais por hábito do que por necessidade. — Alguém ainda sente a minha falta. — Meu pai e eu sempre tínhamos sido mais próximos de qualquer maneira. — Você sabe o que a mãe está fazendo? — Eu perguntei. — Você tem que pará-la. Ele não respondeu, é claro, e mesmo se tivesse por algum milagre sido capaz de me ouvir, eu seriamente duvidava que teria sido capaz de convencê-lo a ir até sua casa, sua antiga casa, por qualquer razão. Ele saiu de lá como se estivesse fugindo de uma cidade infestada de pragas. Voltar seria um desejo de morte... e a execução seria cortesia de Gigi. Mas eu ainda sentia a necessidade de tentar. — Ela não entende, papai. Ela está jogando tudo fora. — Para meu horror, senti lágrimas em meus olhos e um nó na garganta. Na minha vida, quando eu estava realmente viva, raramente chorava, se alguma vez o fiz. As lágrimas eram uma fraqueza, um luxo que você não pode pagar, se quer permanecer no poder. Eu tinha uma vez governado o topo da sociedade do ensino médio de Groundsboro. Agora eu estava morta, e quase todos que eu conhecia tinham se formado. E eu estava chorando… novamente. Minha vida após a morte era uma droga.
55 A porta para o escritório abriu sem uma batida, e eu me sentei, limpando meus olhos. Gigi. Minha Mothrasta4, assim apelidada porque ela era uma criatura do mal, destruindo tudo em seu caminho, apareceu na porta. Mesmo que ela não pudesse me ver, eu não queria que houvesse sequer uma sugestão de vulnerabilidade no ar em torno de minha madrasta. Gigi não iria marcar nenhum ponto em mim, mesmo na vida após a morte. Ela fez um som de nojo e depois caminhou até a mesa do meu pai e jogou nela um pedaço de papel. — Eu ia esperar para mostrar-lhe isso, mas obviamente você precisa de algo para superar, — Ela deu um passo para trás, ainda vestida com suas roupas de trabalho: jaqueta preta-e-branca curta, uma saia preta e sapatos de salto alto assassinos. Sim, eu odiava-a, mas isso não queria dizer que eu não poderia respeitar a sua capacidade de reconhecer tecidos finos e um par de saltos maravilhosos. Queria dizer, no entanto, que fui capaz de perceber com alguma alegria a forma como sua saia estava puxando para cima e forçando as costuras, como se sua bunda fosse um prisioneiro lentamente tentando estourar o seu caminho para a liberdade. — Gigi com bunda gi-gante. — Eu ri. Perfeito. Por força do hábito, olhei para as minhas mãos, bem a tempo de ver meus dedos começarem a ficar transparentes. Droga. — Mas ela parece fazer meu pai feliz, — eu disse respeitosamente. Meu pai olhou por um longo tempo para o papel que Gigi tinha dado a ele, e então ergueu-o para a luz em sua mesa com a mão trêmula. Ele precisava de óculos - todos sabiam disso, exceto ele, - mas ele era demasiado vaidoso para admitir que eram seus olhos e não o mundo que tinha ficado embaçado. Deus. Atire em mim se eu ficar assim quando for velha. Oh... esqueça. — Isso está correto? — Ele perguntou em um sussurro rouco. — O que diz no topo? Sentei-me um pouco mais reta. Da minha perspectiva, sobre o ombro de meu pai e ao lado da bunda sempre em expansão de Gigi, o papel que ele 4
Mothra, é uma mariposa fictícia que possui 25-180 metros de altura e pesa 3,000-20,000 toneladas e sua primeira aparição foi no filme ‘Mothra’ de 1961. Motharasta: Mothra + Madrasta. Mothra é uma mãe gigante que tenta lutar com o Godzilla.
56 segurava parecia uma daquelas coisas abstratas que o Dr. Andrews usava para tentar me fazer identificar em nossas sessões completamente inúteis. (Eu apenas lhe disse que tudo parecia como bolsas, variando o designer para manter as coisas interessantes. Aparentemente Steve Madden significa que estou sofrendo de hostilidade reprimida grave.) Mas esta página era principalmente preta com uma forma branca em vez do contrário. Mas o meu pai tinha certamente reconhecido, fosse o que fosse. Gigi fungou e assentiu. Fungou? Ela estava chorando? Empurrei-me para fora do sofá e me desloquei para um olhar mais atento do que poderia ter provocado tal reação de minha Mothrasta, tendo o cuidado de não esbarrar em meu pai ou Gigi. Eu os atravessaria, e enquanto eles poderiam sentir um toque de frio que seria atribuído a um acontecimento aleatório, eu sentiria meu estômago às voltas e estonteantes explosões de tontura. Mesmo a centímetros do papel, eu ainda não tinha ideia do que estava olhando. Parecia uma fotografia granulada de algum grande borrão branco com pequenas setas e minúsculas letras correspondentes apontando - eu estreitei os olhos, inclinando-me mais sobre o ombro do meu pai – espinha, coração, pés, e... Oh, merda. Lá, no topo da página. Bebê Menina Dare. Data de Nascimento: 12/24. Gigi estava gerando a minha substituição. Eu tropecei para trás e meu cotovelo atravessou o peito de Gigi. Ela estremeceu, e eu caí de joelhos, tentando respirar, e lutando contra a vontade de vomitar, enquanto o quarto girava em torno de mim. Um bebê? Mothrasta estava reproduzindo? Mas meu pai sempre disse que tinha terminado com as crianças. Muito caro, ele reivindicou, e, além disso, porque ele precisava de outro quando já tinha uma perfeita? Isso era o que ele costumava me dizer quando Gigi reclamava e se lamentava sobre seus ovos decrépitos. — Uma filha, — meu pai disse fracamente.
57 Gigi assentiu novamente. — Eu sei que não é o mesmo. Mas você está tendo um momento difícil com a ideia de um bebê, e enquanto nada pode trazer Alona de volta, eu pensei que poderia ajudar de alguma forma. — Ajudar? — Eu gritei com Gigi. — Como é que isso pode ajudar? — Eu cambaleei para os meus pés. — Você não pode substituir uma pessoa por outra! Você não pode simplesmente trocar-me por uma imitação... da coisa real, como uma de suas imitações baratas da Gucci. Ele é meu pai. Ele sabe a diferença. Ele sabe o que você está tentando fazer e nunca vai funcionar. Eu sou única. — Eu podia ouvir-me perder o controle e ficando um pouco histérica, o que levaria a mais partes do meu corpo desaparecendo. E com certeza, quando olhei para as minhas mãos elas haviam desaparecido, junto com meus pés e tornozelos. Acalme-se. Respire. Se eu perdesse o controle agora, após o golpe que tinha sofrido da Sra. Ruiz antes, eu ia desaparecer e, provavelmente, só voltaria amanhã de manhã... na melhor das hipóteses. Apertei a minha boca fechada e esperei sem fôlego pelo infame temperamento de meu pai aparecer, para ele gritar com ela por ter sequer insinuado que alguma coisa podia fazer a perda de sua única filha mais suportável. Em vez disso, ele enxugou o rosto com as costas da mão, e vi com horror quando ele apoiou a imagem do ultra-som contra a foto emoldurada de nós dois, me bloqueando por completo, exceto o topo da minha cabeça ultrafrisada. — Papai, — eu sussurrei. — Não. Ele sorriu para Mothrasta e puxou-a para perto, enterrando o rosto no que eu percebi agora que era uma cintura em expansão. — Estou ansioso. — Sua voz estava abafada, mas a alegria quebrada em sua voz estava muito percetível. E o meu último pensamento antes de desaparecer pela segunda vez hoje foi o seguinte: a minha meia-irmã ainda era praticamente microbiana, pouco mais que um punhado de células, e já tinha me batido. Inaceitável. Isso era guerra.
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Eu não consegui adormecer imediatamente. Não pela razão óbvia. Bem, ok, talvez isso fosse parte do motivo. Eu ainda podia sentir o cheiro de flores do shampoo de Alona em meu travesseiro e até imaginei que ainda podia sentir o calor dela contra o meu. Mas havia mais. Nem cinco minutos depois de Alona desaparecer através da parede do fundo do meu quarto, minha mãe aparece para dizer boa noite, e vamos encarar, provavelmente para verificar como eu estou. Seu rosto estava radiante de felicidade. Ela deve ter se divertido com Sam no cinema. No qual, eu estava absolutamente certo de que eles não fizeram nada mais do que de fato assistir ao filme, eu me recusava a acreditar em qualquer evidência do contrário. Era demasiado...estranho. — Só queria dizer que já cheguei, — ela disse, sorrindo para mim. Meu Deus, aquilo no queixo dela era uma mancha vermelha de tantos amassos? Não, não, eu não estava olhando. — Bem na hora do toque de recolher, — eu falei, embora não tivesse ideia de que horas eram. — Haha, muito engraçado. Boa noite. — Ela alcançou a porta do meu quarto e a fechou.
59 — Espere, — eu hesitei. Não queria destruir o bom humor dela, mas eu tinha que saber. De todas as coisas malucas que Alona falou mais cedo sobre a garota capaz de falar com fantasmas, uma parte disso tudo realmente fazia sentido. Se havia uma por aqui, talvez houvesse mais. — O pai falou alguma coisa sobre mais alguém? Como nós, eu quero dizer. — Seu sorriso desvaneceu um pouco. — Querido, eu nem mesmo sabia o que ele era...o que havia de especial sobre ele até que você me contou sobre o seu...dom. Bela escolha de palavras mãe, conseguiu evitar as palavras 'errado' e 'problema'. — Não, eu sei, mas ele recebeu alguma visita ou falou sobre pessoas que não era do seu trabalho, ou algo assim? Ela ficou em silêncio por um tempo. — Seu pai era um homem complicado, lidando com muitos... problemas. — Como ser diagnosticado com esquizofrenia, ao invés de ser apenas um cara que podia ver e ouvir os mortos. — Quando ele estava tendo um dia difícil, eu não queria piorar a situação fazendo perguntas. — Eu me lembrava disso, meu pai chegando do trabalho mais cedo, e minha mãe me silenciando logo que entrava em casa da escola. Nesses dias, a casa tinha que estar o mais silenciosa, escura e quieta possível. Eu nunca realmente consegui entender, até recentemente, que ele precisava de paz e tranquilidade, porque provavelmente tinha passado o dia inteiro tentando sintonizar todos os fantasmas que encontrava através dos colegas de trabalho e os vários locais que ele tinha que ir para o trabalho. Deve ter sido muito infeliz. Pelo menos quando eu estava na escola, eu tinha uma básica ideia de que fantasmas estavam por lá, o que eles poderiam fazer e o quão cientes eles estavam dos vivos, em particular, de mim. Para ele, com o trabalho que fazia na companhia ferroviária, ele sempre estava se encontrando com novos espíritos e novos problemas. — Quando ele estava tendo um bom dia, — minha mãe continuou, — Eu... não queria arruiná-lo. Sinto muito. Isso deve parecer terrivelmente egoísta para você agora, — ela me deu um sorriso triste e seus olhos lacrimejaram. Estremeci.
60 — Mãe... — eu comecei a levantar, mas ela me parou com as mãos para cima. — Estou bem. — Ela limpou a garganta e piscou as lágrimas. — Ele não era sempre assim, no entanto. Ele costumava ser mais feliz, mais social. Na verdade, quando você era muito, muito mais jovem, ele sempre saía nos finais de semana com os 'caras'. — Ela riu. — Ele chamava de clube do livro, no entanto que tipo de clube do livro envolve voltar para casa exausto e todo machucado, não tenho ideia. Eles provavelmente jogavam paintball ou faziam algum trabalho pesado idiota, e não queriam que suas mulheres soubessem. — Ela deu uma risada tingida com tristeza e olhou para longe, encarando a distância uma memória que eu não podia ver. — Eu costumava ficar tão brava com ele. Então ela se aproximou de mim novamente e apertou meu pé através das cobertas. — Só porque você é diferente não significa que tem que estar sozinho, querido. Oh. Era com isso que ela pensava que eu estava preocupado. Melhor do que a verdade. — Eu sei. — Falei. Essa era sua vez de hesitar. — É por isso que eu acho que pode ser uma boa ideia para você se ramificar, passar mais tempo com seus outros amigos, — ela sorriu demasiado animada. Em outras palavras, chega de Alona. Eu poderia ter explicado que meus outros amigos estão escassos nos dias de hoje, nunca tive muitos em primeiro lugar. Joonie ainda estava se ajustando a viver na casa de grupo, sem mencionar que ela está tendo que acompanhar as aulas de verão que a deixarão receber seu diploma do ensino médio. Erickson está na Califórnia com seus primos para um último verão de surf e fumo e Lily... bem, ela está exatamente onde tem estado pelos últimos dez meses. Em coma no hospital St Catherine. Sua alma se foi, indo para a luz imediatamente após o acidente de carro que a deixou em uma cama de hospital em primeiro lugar, mas seu corpo ainda
61 estava basicamente funcional. Alguns meses atrás, Alona salvou minha vida, fazendo parecer que Lily estava se comunicando do além (longa história). Ela escreveu uma mensagem em uma tábua Ouija, e até conseguiu colocar a mão dentro da mão de Lily por um momento, para movê-la. Desde então, seus pais desistiram da ideia de remover seus tubos de alimentação para deixá-la ir. Pelo menos, sua mãe tinha desistido da ideia. Eu não tenho certeza de que o pai dela estava convencido. Eu os visitei algumas vezes depois desse incidente, e a tensão entre eles foi o suficiente para tornar essas visitas bem curtas. Se Lily estivesse consciente e capaz, eu tenho certeza de que ela mesma teria ido embora. Sua mãe estava sempre por perto, para garantir que uma tábua Ouija estivesse sempre ao alcance dos dedos frouxos de Lily. Seu pai parecia estar a ponto de estourar um vaso sanguíneo toda vez que sua mãe sequer mencionava a palavra 'comunicar'. Mas ao invés de contar tudo isso para minha mãe, que sabia pedaços, mas não tudo, era apenas mais fácil concordar. — Claro. — Eu falei. — Não tem problema. — Ela sorriu satisfeita por ter ajudado, eu tenho certeza. — Eu tenho um turno cedo amanhã. Você vai passar aqui para almoçar? Eu acho que Sam te colocou à tarde. — Agora que a escola tinha acabado, eu estava trabalhando apenas algumas horas como ajudante de garçom no restaurante de Sam. O trabalho não era glamoroso, mas o dinheiro para a gasolina era bom. Nos dias em que eu e minha mãe trabalhávamos, eu geralmente voltava cedo para casa, assim não tinha que ficar procurando o que comer por aqui. — Sim. — Falei. Alona não ficaria satisfeita. Ela odiava passar tempo no restaurante. Dizia que conseguia sentir o cheiro de gordura no cabelo por horas. Mais uma vez, altamente improvável, mas quem sou eu para dizer? Minha mãe balançou a cabeça, e caminhou em direção à porta — Ei mãe? Os caras do clube do livro... eles era do trabalho do papai? — Não era provavelmente nada, mas eu tinha que perguntar.
62 — O que? Oh. Na verdade eu não sei, — Ela franziu a testa — Eu não me lembro, acho que sim. Foi há muito tempo, não tenho certeza, — ela estreitou os olhos para mim — Por que? Você não acha que eles eram...assim, acha? Como a garota da Mansão Gibley? Como eu, mãe? — Não. — Falei. Porque se sim, por que meu pai nunca me falou sobre eles? Uma coisa é você se recusar a falar muito sobre esse dom/maldição que ambos compartilhávamos. Outra coisa completamente diferente era me deixar pensar que estávamos sozinhos nisso quando ele sabia do contrário. — Definitivamente não. Ela assentiu com a cabeça novamente, aparentemente tranquila, uma faísca induzida de seu encontro feliz com o Sam reaparecendo. — Boa noite, querido. — Ela apagou a luz e fechou a porta ao sair. Depois de alguns segundos eu escutei a água correndo no banheiro e o som de seus passos passando pelo corredor até seu quarto. Alguns minutos depois disso, nada além do silêncio pesado que vem com alguém que está dormindo. Eu queria que pudesse ser tão fácil para mim. Mas a minha mente não conseguia desacelerar, reproduzindo os acontecimentos da noite em repetição, de novo e de novo, rápido, rebobinando, devagar e cada combinação possível. Nenhuma resposta adicional surgiu, no entanto. Eu estava finalmente começando a cochilar quando um barulho engraçado soou na janela atrás da minha cabeceira. Meu primeiro pensamento ilógico, meio dormindo e confuso como eu estava, era que a Sra. Ruiz conseguiu se puxar de volta e que ela estava brava e vindo atrás de mim. Eu tinha certeza que não era Alona. Ela sempre conseguia entrar e sair do meu quarto sem fazer um som. Me levantei da cama, engolindo o instinto e a urgência de criança de pedir ajuda. Desastrado e caindo no caminho, tentei alcançar a luz em minha mesa de cabeceira. A janela guinchou para cima e eu me amaldiçoei por sempre deixá-la destrancada. Tirei o abajur da mesa e coloquei sobre a minha cabeça,
63 como uma arma improvisada, assim que um rosto familiar, cercado por quantidades maciças de cabelo escuro selvagem, apareceu na abertura. — Graças a Deus. — A garota da Mansão Gibley disse, se segurando na moldura da janela. Eu não me movi, não conseguia me mover. Não estava inteiramente certo de que estava acordado. — Você sabia que todos os fantasmas da cidade sabem o seu nome mas não aonde você mora? — Sem esperar por uma resposta ela entrou, subindo em cima da minha cama e depois no chão. — O que você está fazendo? — Ela perguntou com uma carranca, encarando o abajur em minhas mãos acima da minha cabeça. Como se fosse eu que estivesse em um lugar onde não deveria estar. Eu não poderia ter ficado mais surpreso se Jessica Alba de repente tivesse aparecido no meu quarto. Felizmente eu tinha colocado uma camiseta depois que Alona se foi, e ser apanhado de cuecas nem é grande coisa. — O que você quer? — Eu perguntei, quando recuperei a capacidade de falar. Os terríveis avisos de Alona sobre uma vasta conspiração soaram em meus ouvidos, soando menos loucos a cada segundo. Me sentindo um pouco idiota de repente com o abajur ainda acima da minha cabeça, eu o coloquei cuidadosamente em seu lugar. — Tão desconfiado, — ela disse franzindo a testa. Agora eu estava ficando irritado. — Era você ou não a pessoa que estava me acusando de arruinar sua vida apenas algumas horas atrás? Ela suspirou. — Você vai dificultar isso, não vai? — Sem esperar pela minha resposta, ela avançou e eu dei um passo para trás, a ponta afiada da minha escrivaninha batendo em minhas costas, antes que eu pudesse perceber que ela estava apenas pegando a cadeira da minha escrivaninha. Ela virou a cadeira para si mesma com um sorriso que dizia que ela me viu recuar e achou divertido. Virou a cadeira para trás e se sentou, com seus braços descansando na mesma.
64 — Onde está a rainha? — Ela perguntou. Levou um segundo para eu perceber que ela estava falando de Alona. — Não está aqui. — Eu falei cautelosamente. — Por que? — Ótimo. — Ela assentiu com a cabeça. — O que você quer? — Repeti, ainda incerto sobre como me sentia sobre sua presença aqui. Sim eu estava curioso, mas não sei se estava curioso o suficiente para uma estranha estar em meu quarto, tarde da noite, quando eu nem a tinha convidado. A voz da Alona sussurrou em minha cabeça. Invasão de seu território, é uma jogada de poder. Merda. Talvez minha mãe estivesse certa. Eu estava passando demasiado tempo com ela. A garota não respondeu de imediato. Ela apenas me encarou daquela maneira fria, me avaliando, isso me fez sentir como se eu estivesse de volta no escritório do Diretor Brewster. Aproveitei a oportunidade para olhá-la melhor e tentei encará-la, exatamente como ela estava fazendo comigo, olhar intimidante como o dela, duvido que eu consegui. Ela ainda estava usando suas calças cargo surradas e botas de combate. Fita adesiva prata estava enrolada no pé da sua bota, aparentemente segurando. Seu cabelo escuro que eu pensei que ia dar com Alona em louca, mais cedo, estava em torno de sua cabeça como uma aureola, mas agora parecia menos um resultado de falta de higiene e mais como um cabelo descontroladamente encaracolado e eventualmente por estar preso em um capuz que eu agora podia ver estar na parte de trás de sua camiseta. — Sabe, eu acho que te subestimei. — Ela disse finalmente, usando seus pés para girar minha cadeira alguns centímetros em uma direção e depois de volta, de novo e de novo. — O que isso significa? — Eu perguntei, não tendo certeza se queria saber.
65 Ela se acomodou mais confortavelmente na minha cadeira, como se fosse dela. — No começo eu achei que você era apenas um curioso buscando informações, ou algum sem talento local pra ver o que conseguia ver. Hum, ouch? — Então eu pensei que você talvez fosse um amante de Casper5 tentando interferir. — Sua boca torceu com desgosto. De novo esse termo. Eu entendia o sentido no contexto - e claramente significava um insulto - mas foi a forma como ela disse, como se fosse algo real. Alguma parte reconhecida do vocabulário, que de alguma forma eu perdi durante a preparação para o SAT6. — Mas… — Ela se aproximou. — Então eu tive um tempo para pensar sobre isso, e você não é nenhuma dessas coisas, é? Você nem mesmo sabe do que eu estou falando. — Bem, a parte do 'sem talento' foi bem clara. — Eu falei. Ela sorriu e algo perigoso brilhou em seus olhos, que eu notei com um choque, pareciam ser de duas cores diferentes, verde e azul. — Engraçado. Eu gosto disso. — Ela disse. E a terceira vez é a certa... — Então o que você… — Quero propor um acordo. — Ela disse, escolhendo as palavras com cuidado. — Uh-Huh. — Até eu conseguia ouvir a desconfiança em minha voz — Você me ajuda com uma coisinha, e eu te dou informação. — Informação sobre o quê? — Ela sorriu novamente, — Tudo que você não sabe. — O que te faz pensar que eu não… — Ela puxou algo pequeno, brilhante e prateado de seu bolso, segurando-o e balançando-o para mim. Era, eu tinha quase certeza, o dispositivo que salvou a minha vida, vencendo a Sra. Ruiz bem diante dos meus olhos. Eu podia ver que havia botões na parte superior e fios saindo de uma entrada, detalhes que eu tinha perdido antes. — Coisas comuns da empresa. — Ela disse. 5 6
É o garoto gasparzinho do filme que se apaixona pela garota humana. Preparação para entrar na faculdade.
66 — Para quem você trabalha? — Eu não consegui deixar de perguntar. Ela sorriu. Sabia que tinha me ganhado. Então sua expressão se tornou mais cautelosa. — As primeiras coisas primeiro. Você pode vê-los, não pode? Quer dizer, melhor do que eu. — Sua boca se apertou como se doesse ter de admitir esse último fato. Eu presumi que ela estava falando dos fantasmas. — Não sei. Eu posso… — Você soube quando ela saiu do meu alcance. — Ela disse rapidamente. Cara, ela não gostava de me deixar terminar meu pensamento. — Sim, mas não foi uma distância muito... — Quando eles se movem, eu os perco. — Ela disse amargamente. — Eu posso vê-los muito bem quando estão parados, mas quando começam a se mover, eu não consigo acompanhá-los. — Balançou a cabeça. — É como se meus olhos não conseguissem acompanhar meu cérebro. Isso era algo estranho, algo que eu nunca considerei antes, quando estava ponderando a possibilidade de existirem outras pessoas capazes de falar com fantasmas por aí. Que haveria disparidades no nível de habilidade. Embora fizesse um pouco de sentido. Só porque um monte de gente pode tocar trompete não significa que todos pudessem tocar igualmente bem, com aptidões iguais para as notas altas e baixas, ou o que seja. Ela olhou para mim como se estivesse me desafiando a ter pena dela. — Eu posso ouvi-los melhor do que ninguém, no entanto. Eu ouvi a princesa se lamentar bem antes de conseguir vê-la. — Ela fez uma careta para mim. — Como na terra, você acabou com essa te seguindo para todos os lados? De alguma forma, eu senti que explicar essa coisa toda de guia espiritual podia não ser uma boa jogada no momento. — Nós somos amigos. — O que era mais ou menos a verdade. Ela levantou uma sobrancelha. — Amigos ou amigos amigos? Eu não tinha certeza do que isso significava, mas seu tom sugeria que 'amigos amigos' era algo a mais, e não era uma área que eu particularmente
67 queria discutir neste exato momento, porque realmente não sabia a resposta de qualquer forma. Alona e eu éramos...nós apenas éramos nós. Isso era tudo. — O que você quer que eu faça em troca dessa suposta informação que você vai me dar? — Perguntei. Ela deu de ombros, parecendo um pouco mais auto-consciente do que eu tinha visto antes. — Essa é a minha última chance de uma contenção se eu quiser a adesão plena. Eu posso precisar de uma ajudinha para colocar a Sra. Ruiz na caixa. — Sua voz tinha uma nota defensiva. Ignorando, no momento, que a maior parte do que ela disse soava como loucura - 'na caixa' era um pouquinho sinistro, e adesão plena do quê? - eu tinha uma preocupação maior. — Sra. Ruiz? Mas... ela se foi. Eu vi você disparar essa coisa e… A garota sorriu de novo, claramente apreciando minha ignorância. — Não, o disruptor apenas dispersa sua energia, o suficiente para quebrá-la temporariamente. Leva vários disparos se você quiser que seja permanente e mesmo assim, às vezes não funciona. Em alguém como ela? De jeito nenhum. Você viu o jeito que ela estava fechando as portas em você? — Eu pensei que ela iria me prender lá com ela. — Falei com uma careta. Ela riu. — Ela poderia ter feito isso. É conhecido entre nós que aconteceu com alguns que adormeceram ao volante, por assim dizer. Não com ela obviamente, mas com outros de nível verde. — Nível verde? — Eu perguntei. Ela apenas sorriu. Sem mais informações, não até que eu concordasse em ajudar. Entendi. — Então... você quer minha ajuda para encaixotar a Sra. Ruiz, o que quer que isso signifique, e você vai me contar sobre… — Tudo. — Ela terminou. — Ou só o que eu sei, como disse eu ainda não tenho a adesão plena. Do quê? Eu queria perguntar, mas eu sabia que não deveria tentar, pelo menos agora. — E depois? Ela franziu o cenho. — O que você quer dizer?
68 — Eu quero dizer, você consegue a Sra. Ruiz e eu a informação, e depois? — Eu não poderia deixar de pensar na teoria de Alona de que isso era algum tipo de esquema de recrutamento complicado. — Eu vou conhecer os outros ou… — Não. — Ela disse rapidamente. — Isso tem que ficar entre nós. Oh. — Ok. — Eu falei. Qual é o ponto então? Ela fez um barulho impaciente e levantou-se, empurrando a cadeira para fora do caminho. — Olha, nós podemos nos ajudar aqui. É isso. Eu apenas olhei para ela. Ela deu um suspiro pesado. — Se em um mês ou dois você quiser entrar em contato, eu vou te mostrar como fazer isso. Mas você e eu nunca nos conhecemos antes, entendeu? Concordei com a cabeça. Ela se aproximou, agarrando a frente da minha camisa com seu punho. — Estou falando sério. Eu sei onde mantemos todos os piores de nível verde. Não levaria a noite inteira para eu colocar alguns desses em sua sala de estar, se você não puder manter sua boca fechada. Assenti rapidamente. Ela era durona. Eu meio que gostei disso. Ela empurrou a cadeira para mim e foi em direção à janela, claramente esperando que eu a seguisse. Não sem os meus jeans, obrigado. — E mais uma coisa. — Falei. — Seu nome. Seu nome real. Ela me encarou e hesitou. Levantei as minhas mãos, eu não iria à lugar algum sem ele. Ela já sabia o meu nome e onde me encontrar, eu não estava completamente certo de que gostava da ideia. — Mina. — Ela disse finalmente. — Mina Blackwell. Eu esperei. — Oh, pelo amor de Deus. — Ela disse em um acesso de raiva.
69 Enfiou a mão no bolso de trás da calça, tirando um cartão meio acabado, e me entregou. Era uma carteira de habilitação com uma foto que mostrava uma Mina Blackwell um pouco mais jovem e mais feliz. Ela estava com aparelho dentário na foto, o que a fez parecer ainda mais vulnerável. De acordo com as informações, ela tinha um olho verde e um azul, assim como eu pensava, e era seis meses mais velha do que eu. — St. Louis? — Perguntei. Ela encolheu os ombros. — Eu vou para onde sou enviada. — É uma longa viagem. — Entreguei de volta sua habilitação e ela colocou-a em seu bolso. — Nem de perto tão longa se eu tiver que voltar sem o que eu vim para pegar. — Ela disse incisivamente. Ok, entendi. Aos negócios.
***
Pela segunda vez em vinte e quatro horas, eu acabei debruçado em uma roseira espinhosa na Mansão Gibley. Desta vez porém, apenas para variar um pouco, nós estávamos no lado oposto do antigo jardim. A maioria dos policiais que vieram rugindo mais cedo, já tinham partido. Apenas dois carros de policia ainda continuavam na frente da casa. Dunga e um casal de policiais se revezavam patrulhando o interior e o perímetro imediatamente ao redor da Mansão. O resto do tempo eles ficavam na frente, certificando-se de fazer sua presença notável. Mina e eu estávamos apenas a um metro e meio de distância de onde Alona e eu tínhamos visto a Sra. Ruiz se materializar. Só que dessa vez, ao invés de estarmos de frente para ela, estaríamos por trás dela. Se ela aparecesse. Já parecia que estava esperando por esse fantasma a dias. As caixas misteriosas da Mina estavam de volta, cercando o lugar exato, ou mais perto de onde a Sra. Ruiz apareceria, os cordões à direita diretamente atrás do nosso esconderijo e o gerador portátil que Mina ia deixar desligado até
70 o último segundo. Estávamos contando com as sombras para escondê-los bem o suficiente, até que fosse a hora de eles fazerem o que quer que faziam. Além disso, nenhum dos policias em serviço parecia muito interessado no pátio ao redor, apenas preocupados em manter as pessoas fora e longe da casa. — Então, como você sabe sobre isso? Sobre a Sra. Ruiz, eu quero dizer? — Sussurrei para Mina. Contanto que ficássemos em silêncio, os policias não conseguiriam nos ouvir lá da frente, especialmente por cima da música do rádio e de suas próprias fofocas tediosas. Até agora, pelo que nós ouvimos já sabíamos que eles consideravam o que tinha acontecido mais cedo como uma combinação de um animal selvagem preso na casa e os nervos do Dunga/Ralph. Ela encolheu os ombros, seu ombro esfregando contra o meu com o movimento, e seu cabelo roçando o lado do meu rosto. Ela tinha um cheiro picante, como canela e chá, algo do tipo. Não era um cheiro ruim, apenas diferente. — Alguém do governo de Decatur e do Comitê de desenvolvimento nos chamou. Eles queriam que fosse feita uma varredura antes que a casa fosse destruída para evitar quaisquer problemas futuros. A liderança achou que seria uma boa oportunidade para eu terminar meu treinamento. — Eu podia ouvir o sarcasmo em sua voz na última parte, mas não tinha certeza do por que. De acordo com o que Mina me disse no carro no caminho para cá, a 'Liderança' era o corpo dirigente da ordem dos Guardiões e um cruzamento entre uma sociedade secreta e uma pequena empresa, composta inteiramente por pessoas como nós. Eu nunca tinha ouvido falar deles antes, e acredite em mim quando digo que fiz a minha cota de google nesse tema. Essa coisa com a Sra. Ruiz era parte da iniciação de Mina para a adesão plena, ou um trabalho em tempo integral, dependendo de como você olha para isso. — Nós fazemos esse tipo de coisa o tempo todo. Limpamos tudo depois de algo ruim acontecer em um lugar, varremos a casa antes que alguém novo se mude. — Ela encolheu os ombros. — Na maioria das vezes não é um nível verde, no entanto.
71 Eles classificavam os espíritos com base em uma estimativa de seu potencial para causar danos aos seres humanos. Como a capacidade da Sra. Ruiz em bater portas. Se ela conseguia fazer isso, não levaria muito tempo para ela conseguir jogar alguém escada abaixo. E com base na história da casa, parecia que ela poderia muito bem já ter feito isso, provavelmente mais de uma vez. Eu não conseguia bem assimilar esta nova informação com o que eu acreditava - que para manter uma presença aqui, o espírito tinha que se focar no positivo ao invés do negativo. Mas se isso fosse verdade, sem exceção, a Sra. Ruiz já teria se mandado há muitos anos. Aparentemente o sistema não era tão simples como eu sempre assumi que fosse. O princípio era verdade, sim, mas havia fatores adicionais como nível inicial de energia, algo que eu nunca considerei. Fazia sentido no entanto, ou então não haveria fantasmas raivosos e vingativos, e eu conheci muitos desses ao longo dos anos. Evidentemente, havia também diferentes classificações para a variedade de espíritos que andava por aí. Alguns não tinham ideia de que estavam mortos e frequentemente reviviam os acontecimentos que antecederam a sua própria morte. Outros como Alona e a Sra. Ruiz, tinham plena consciência de que estavam mortos... e no caso da Sra. Ruiz, não estavam muito felizes sobre isso. Eu ainda não tinha conseguido tirar muitas informações de Mina, mas sabia que em uma escala, o nível verde estava mais perto do topo do que do fundo. Daí o porquê dela ter sido mandada aqui, para provar a si mesma. Sabendo disso, eu talvez estivesse um pouquinho desconfortável com o meu papel nesse teste. Eu estava essencialmente ajudando Mina a 'roubar'. Além das éticas disso, o que eu realmente não me importava, eu também estava meio que preocupado de que se ela 'passasse', podia acabar em uma situação em que não poderia lidar bem o suficiente sozinha. Tentar trazer isso à tona, no entanto, tinha provado ser perigoso. Ela não disse nada, apenas me encarou e se recusou a falar comigo, a não ser para emitir mais ameaças se eu não recuasse.
72 Ok, então eu aprendi essa lição. O que quer que ela ganhasse com essa adesão plena, Mina achava que valia à pena o risco. — Como as pessoas sequer sabem como pedir isso a vocês? — Eu perguntei. Ela encolheu os ombros. — As pessoas que precisam saber, sabem. Temos uma rede de contatos entre o Clero e todas as outras grandes religiões, do governo estadual, local e federal; hospitais, funerárias, até mesmo alguns policiais e bombeiros. Eu acho que eles até já tem um desses programas de investigação paranormal. — Sério? Ela bufou. — Apenas no caso de um dos 'investigadores' realmente tropeçar em algo verdadeiro, eu acho. — E vocês encaixotam todos eles? Todos os fantasmas, eu quero dizer. Encaixotar pelo que eu entendi, era o que ela queria dizer com contenção. Outra parte disso tudo com a qual eu estava um pouco desconfortável. A tecnologia naquelas caixas - o que quer que fosse, e Mina não sabia dizer outra coisa que não: — Quem se importa? Elas funcionam - dividia a energia dos espíritos e prevenia que eles se re-formassem. Ela então poderia descartar essas caixas e sem mais assombrações. O que acontecia com o fantasma depois disso, ela se importava menos ainda. Algumas dessas caixas eram enviadas para os cientistas da Ordem para serem estudadas, os mesmos que criaram o hardware das caixas que ela levava para cima e para baixo. As outras... ela não sabia ou não queria dizer. Ela me olhou com pena. — Nós já discutimos isso. Eles não são almas. Almas não podem ser medidas ou capturadas. Eles são sombras, ecos de energia, imitações. Tanto faz. Eu não tinha tanta certeza. Entendia seu argumento, até certo ponto. Almas não registravam em uma escala eletromagnética. Mas isso não significava que eles não eram mais do que ecos estúpidos como ela estava implicando.
73 — Se eles não incomodam os vivos, nós não os incomodamos. — Ela disse. — Há muitos deles de qualquer maneira. Como se eles fossem algum tipo de formiga ou praga doméstica. — Mas… — Ela me deu uma cotovelada. — Nós servimos aos vivos, não os mortos. Lembre-se disso. Isso certamente explicava sua atitude em relação à Alona. Quero dizer, além da atitude que todo mundo tinha em relação a Alona. Ela nem sempre era fácil de gostar. Mas isso não significava que eu estava disposto a renegá-la, a transformá-la em algum tipo de... nulidade. A dúvida deve ter aparecido em meu rosto. — Deixe me adivinhar, você entrou nisso para ajudar os pobres mortos a fazer as pazes com seus negócios inacabados. — Mina disse soando divertida. — Vocês não fazem isso? — Parece que não. Eu tinha descrito a luz branca para ela, e ela prontamente reconheceu como um fenômeno com o qual estava familiarizada, no entanto para ela era simplesmente um efeito colateral de um eco voluntariamente se rendendo ao que sobrava de sua energia. O que isso significa para Alona, alguém que tinha ido para a luz e havia voltado, eu não tinha ideia. — Qual parte do Vivis servimus non mortuis você não entendeu? — Tudo? Ela se movimentou cuidadosamente no chão ao meu lado, ficando mais confortável, o que me lembrou visceralmente da última vez que eu estive em uma situação semelhante com uma garota. De repente, me bateu uma saudade de Alona. Ela me mataria se descobrisse que eu estava aqui. E no entanto eu não estava pronto para ir embora. Ainda havia muitas coisas que eu não sabia. — Será que não lhe ocorreu que toda vez que você está ajudando um deles, pode estar prejudicando alguém que ainda esta vivo? — Mina me perguntou com certa exasperação. — Como? — Eu exigi. — Shhh. — Ela me deu uma cotovelada, mais forte dessa vez e eu resmunguei.
74 — Em primeiro lugar, — ela disse em uma voz mais calma — porque você está aceitando o que uma pessoa diz como verdade, isto se você sequer consegue pensar em um fantasma como algo semelhante a uma pessoa. Esse perigo eu conhecia bem o suficiente. Eu nunca sabia com certeza se os fantasmas que procuravam um final em seus negócios inacabados estavam sendo honestos comigo - ou até mesmo com eles próprios - sobre o que esses negócios poderiam ser. — Em segundo lugar, mesmo que eles estejam te dizendo a verdade, como pode ajudar dizer para um cara que sua falecida esposa está arrependida de algo que ela fez há trinta anos atrás e que ele pode nem mesmo sequer saber o que é? Isso era, mesmo eu odiando ter de admitir, uma boa pergunta. Mina deu de ombros — Talvez ele estivesse mais feliz pensando que ela estava em paz ou algo assim. E agora você está dizendo que sua esposa, ou alguma versão da energia dela, está vagando por aí e miserável, observando ele o tempo todo? De jeito nenhum. — Então, se eles não estão aqui por conta de seus negócios inacabados, por que estão aqui? — Me sentia como se o mundo que eu conhecia estivesse escorregando pelos meus dedos, pouco a pouco. Ela fez um barulho impaciente. — Você está pensado demasiado sobre isso. Por que estamos aqui? Por que qualquer um está aqui? — Ela balançou a cabeça. — Isso não importa, você só tem que olhar para o bem maior. Isso também fazia sentido. — Nosso trabalho é proteger os vivos. Nós somos os heróis aqui, não os vilões. — Ela acrescentou. Os vilões em sua cabeça eram os amantes de Casper. Eles não eram uma organização, pelo menos não como a Ordem. Eles eram os equivalentes paranormais aos ambientalistas radicais, aparentemente pessoas que elevavam os espíritos acima da vida, quase ao ponto de adorá-los como uma divindade ou emissários de tal, e se recusavam a considerar a partida destes espíritos desta existência como uma coisa boa sob qualquer circunstância.
75 Eu não estava completamente nesse lado também, obviamente. Tecnicamente a Ordem e eu fazíamos o mesmo trabalho. Eu apenas fazia isso descobrindo o que estava mantendo o espírito aqui e ajudando ele ou ela a seguir em frente. — Falando nisso… — Ela sorriu para mim. — Acho que temos companhia. Olhei através do emaranhado de galhos e folhas em nossa frente para a configuração das caixas. Eu mal podia vê-las no escuro. O luar estava desaparecendo e o sol iria surgir em breve. Um fraco barulho começou a aparecer no espaço aberto entre as cinco caixas, quase diretamente em cima da fronha suja, coberta com os talheres. Mina tinha espalhado o resto das colheres dentro do círculo feito pelas caixas em uma tentativa de distrair a Sra. Ruiz. Estávamos contando com a obsessão da Sra. Ruiz com seus tesouros - de jeito nenhum ela gostaria de perder sequer uma dessas colheres - para mantê-la distraída. Esperançosamente, tentar pegá-las novamente - pelo que eu sabia ela podia conseguir tendo em conta a sua força - a manteria tão ocupada que ela não perceberia a armadilha de fechamento em torno dela, até que fosse tarde de mais. Este aparentemente havia sido o plano de Mina antes. Atrair a Sra. Ruiz para a sala de estar - um lugar com muitas saídas, ao contrário do quarto onde os talheres estavam escondidos - e contê-la lá. Exceto que eu precisei ser salvo primeiro e ela teve que parar. Eu devia isso a ela pelo menos. Mina ficou tensa ao meu lado. — Pronto? — Perguntou. Meu papel era bem simples, acionar o interruptor do gerador, guiar a Mina se a Sra. Ruiz tentasse se mover para fora das caixas, e correr para cacete quando terminássemos, porque aparentemente, não havia nenhuma maneira de os policiais não notarem o show de luzes que ia acontecer. Não. — Sim. — Eu falei. Ela assentiu com a cabeça, um movimento que eu mais senti do que vi nessa escuridão. Embora eu não pudesse vê-lo, sabia que ela estava com o
76 controle da caixa em sua mão. Ela me mostrou quando estávamos descarregando tudo de seu carro. Era um aparelho simples que iria desencadear as caixas que estavam no chão, para abrir e dividir a energia que era a Sra. Ruiz em cinco partes iguais. Ela não poderia fazê-lo muito cedo, antes da Sra. Ruiz se materializar por completo, pois não iria funcionar. Eu observava atentamente, sentindo a intensidade através de Mina perto de mim. Ela estava determinada a fazer isso funcionar. O padrão do vestido feito em casa da Sra. Ruiz se solidificou em algo parecido com tecido verdadeiro, ao invés de uma projeção do mesmo, mais ou menos ao mesmo tempo que ela notou as colheres no chão. Ou assim eu acho, pois ela se abaixou para tentar pegá-las e Mina me cutucou. Eu acionei o gerador, que ligou com o que parecia um rugido ensurdecedor, apesar de que provavelmente era mais porque estava muito perto de nós e eu estava morrendo de medo de ser pego. A Sra. Ruiz levantou bruscamente e girou para enfrentar-nos e a fonte do ruído, movendo-se rapidamente para uma mulher de seu tamanho. — Agora. — Eu falei para Mina. Ela não reagiu por um segundo e eu percebi que mesmo no ligeiro movimento da Sra. Ruiz de se virar, Mina a perdeu de vista. Droga. Ela realmente não podia vê-los muito bem. — Mina... Ela apertou os botões, e os topos divergentes sobre a caixa se abriram, enviando raios de luz branca-amarelada para o céu. Oh inferno. Não havia nenhuma maneira de sair daqui sem ser detetado. Enquanto eu olhava, os cinco feixes separados convergiram para a Sra. Ruiz, dividindo-a em pedaços, como uma fotografia separada em seções. Seu rosto ainda estava congelando em uma expressão de fúria, e em seguida os raios começam a se retrair lentamente, cada um puxando com ele o desfoque de cores que antes tinha sido uma parte da Sra. Ruiz. Vozes vindas da frente da casa, seguidas imediatamente pelo som de portas de carro sendo abertas e passos correndo, me alertaram.
77 — Mina. — Sussurrei urgentemente. — Espera. — Ela disse com o rosto brilhando com o desbotamento dos feixes, intensidade e concentração, e franzindo suas sobrancelhas. — Mina! Ela remexeu em sua bolsa e tirou um punhado de alguma coisa. Ela abriu essa coisa, e o nosso esconderijo brilhou verde. Tubos de plástico que brilhavam, mas o tipo grande e de profissionais, do tipo que usavam para explorar cavernas ou algo assim. Em seguida ela se levantou e atirou-os no chão tão forte quanto podia para longe de nós e do nosso caminho de fuga. Eles giraram e arquearam para longe de nós, como mini-discos voadores. Dois deles se chocam contra a lateral da casa com uma paulada alta. Os passos correndo diminuíram e pararam. Uma lanterna passou sobre os arbustos que nos escondiam e em seguida se moveu na direção dos tubos de plásticos. — Agora. — Ela sussurrou. Ela apertou outro botão e o topo das caixas fechou, eliminando os feixes de luz. Eu desliguei o gerador e o abandonei, conforme o plano, e ela agarrou os cabos das caixas transportando-as sobre seu ombro. Nós fugimos pelo pátio, indo para a rua atrás da casa e para a rua além dela, onde tínhamos estacionado seu carro, um acabado Malibu que poderia ter sido um gêmeo do meu Dodge, por todos os seus sinais de ter vivido uma vida dura. — Ei! — O primeiro grito veio atrás de nós e eu coloquei mais velocidade em minha corrida. Eu não queria ter de explicar isso para minha mãe. Olhei para trás, para ver como Mina estava fazendo com o peso adicional de seu equipamento e encontrei ela se desviando de mim. Mas que diabos. Ela deve ter sentido meu olhar sobre ela, porque parou apenas tempo o suficiente para olhar por cima do ombro e me dar uma saudação alegre que eu mal consegui ver na luz fraca. Comecei a me virar para ir atrás dela, mas essa
78 volta iria me colocar em rota de colisão com todos os oficiais agradáveis nos perseguindo com suas lanternas e armas. Não obrigada. Droga. Eu sabia que deveria ter vindo com meu próprio carro. Fiquei nas sombras e ao invés de ir para a rua como tínhamos planejado, eu fui para a lateral dos pátios e quintais das casas circundantes da Mansão Gibley. Mina afinal de contas, estava com as chaves de seu carro. Chegar ao Malibu não mudaria muita coisa sem aquelas chaves. Cachorros latiram e eu tropecei várias vezes ao longo das mangueiras de jardim, brinquedos de crianças e cadeiras nos gramados. Mas fiquei em pé e continuei a me mover. A sociedade histórica aparentemente proibia cercas nesta parte da cidade, graças a Deus. Após cerca de seis quadras, eu tive que parar. Debrucei-me no meio do pátio lateral de uma monstruosidade vitoriana que tinha janelas gigantes, tentando respirar sem vomitar. Os cortes nas minhas costas, do meu encontro anterior com a Sra. Ruiz, pulsavam e ardiam. O que Mina estava fazendo? Deixando-o para se defender sozinho, agora que ela tem o que precisa. Duh. A voz parecida com a da Alona em minha cabeça era desprezível. Eu tentei ouvir o som de alguém atrás de mim, mas não consegui ouvir nada sobre as batidas do meu coração e o meu pânico ofegando por ar. Aparentemente meu acordo com Mina, o que tinha sido dele, acabou. Nunca confie em uma garota misteriosa que aparece em seu quarto no meio da noite, não importa o quanto vocês podem ou não ter em comum. Parecia uma simples - e óbvia - conclusão agora, parado aqui, sozinho no escuro, a quilômetros da minha casa. Eu esperei mais alguns longos momentos, ainda recuperando o ar e tentando reunir meus pensamentos. Os cães da vizinhança pararam de latir, e eu não ouvi mais sirenes. Não desta vez. Ou eles tinham pego Mina ou desistiram de me procurar.
79 Ela mentiu sobre me colocar em contato com a ordem. E agora que eu estou pensando, só fazia sentido. A versão de Alona faz um ruído desdenhoso em minha cabeça. Claro. Mina arriscou muito para passar nesse teste, e ela iria confiar em mim, um estranho, para manter a boca fechada? Merda. Alona teria percebido isso a milhas de distância. Ela planejava coisas assim em seus sonhos...ou o que quer que ela estivesse fazendo agora. Inferno, pelo que eu sabia, Mina podia ter mentido sobre tudo, inclusive sobre a existência da Ordem. Mas ela pertencia, ou queria pertencer a algo. Isso estava claro. E a sua convicção de servir aos vivos e não aos mortos claramente parecia suficientemente genuína. Então novamente, talvez eu não fosse o melhor juiz de sinceridade no momento. Para a minha sorte, eu tinha uma longa caminhada de volta para casa para separar a ficção da possível realidade.
80
Estava acostumada a ver o Will em todos os tipos de desordem pela manhã: cabelo em pé, emaranhado entre as cobertas, braços abertos, olhos semiabertos e uma expressão mal-humorada. Muito mal-humorada, geralmente (ele não é uma pessoa diurna. Eu nunca tive esse luxo na minha vida, as aulas de ginástica no começo da manhã7 não esperavam por ninguém, e aparentemente não esperam agora. Eu não poderia ter morrido no caminho para o almoço?!) Essa manhã entretanto, foi diferente. Ele estava deitado de bruços na cama, por cima dos cobertores, completamente vestido, com seus Chucks8 cobertos de grama ainda fresca. Em suma, definitivamente não como eu o deixei na noite passada. Isso foi o suficiente para me parar momentaneamente, distraindo-me do meu objetivo de levantá-lo de imediato. — O que aconteceu com você? — Perguntei. Ele pulou um pouco com o som da minha voz, como se o tivesse assustado, então gemeu em resposta sem levantar a cabeça. — Que horas são? — Ele murmurou. Eu revirei os olhos, mesmo sabendo que ele não estava me vendo. Como se de repente eu tivesse começado a aparecer ao meio-dia. — Que horas você acha que são?
7 8
Do inglês zero hour, significa a primeira hora da manhã ou muito cedo. É um all star modelo antigo.
81 Ele trocou de posição na cama, dessa vez de costas, levantando a mão para bloquear a luz vinda da janela. — Muito cedo. Eu apertei meus olhos para ele. Alguma coisa aconteceu. — A Liesel veio aqui ontem à noite? Porque eu falei para ela... — O que? Liesel? Não. — Com um esforço ele se ergueu para ficar em uma posição sentada na cama. — Estou bem. Só preciso acordar. — Você parece que quase não dormiu. — Eu poderia ter levado o crédito pela minha exemplar habilidade em amassos, exceto que da última vez que eu o vi ele estava usando menos roupa. Seu olhar azul pálido, avermelhado nas bordas, encontrou o meu. — Não é nada. Eu apenas... ouvi um barulho lá fora na noite passada. — Então você se vestiu para ir verificar, e esqueceu de tirar a roupa quando voltou? — Perguntei incrédula. — É, algo assim. — Ele esfregou o rosto com as mãos. Espera um minuto... — O Erickson passou por aqui? — Exigi. Essa coisa de dessintonizar os espíritos, por todos esses anos antes de eu me juntar ao Will, deu à ele um par de maus hábitos que eu ainda não consegui quebrar. O primeiro era a tendência que ele tinha de colocar os fones de ouvido quando está sendo incomodado, e quando não quer ouvir o que tenho a dizer. A segunda é a ocasional atitude de “fumar seus problemas” que ele tinha quando seu amigo Erickson estava por perto, o que felizmente não era com tanta frequência. Quero dizer, tanto faz, mas depois de ver minha mãe se perder na garrafa em uma tentativa de esquecer, ficava um pouquinho ardilosa quanto a ver outra pessoa com quem eu me preocupava, só um pouquinho, desenvolvendo esses hábitos de vez em quando. — Não, ele está na Califórnia, lembra? — Will levantou lentamente da cama, como se seu corpo estivesse dolorido, e se arrastou até o guarda-roupa. Por que? Eu não sabia, desde que seu guarda-roupa estava praticamente vazio, graças a sua mais recente viagem a lavanderia, e as roupas estavam empilhadas em cima de sua escrivaninha, como de costume.
82 Eu me movi ao redor da cama para segui-lo. — Você está meio desligado. — Eu falei com uma careta. — Não dormi bem. — Ele disse empurrando os cabides, na maioria vazios, fazendo um barulho. — O que está acontecendo? Franzi a testa. Alguma coisa ainda estava errada aqui, mas podia sentir o tempo escorregando para longe de mim. Eu perdi praticamente a noite passada inteira, e a cada minuto que passava minha vida estava sendo jogada na entrada da garagem de casa em um saco de lixo, e meu pai estava mais e mais ligado a minha substituta, a desova da Gigi. — Eu preciso que você fale com meus pais. — Disse. Ele enrijeceu. — O que aconteceu? Está tudo bem? — Sim está. Eles estão apenas sendo idiotas, e eu quero lembrá-los que eu costumava existir. — Isso era o que eu queria dizer em uma voz muito legal e indiferente. Mas o que saiu foi. — Ela jogou fora minha faixa de Rainha de boasvindas. — Eu mal consegui dizer isso devido ao caroço que se formou na minha garganta. Merda. Pensei que já tinha passado do ponto de estar chateada com isso... pelo menos na frente de alguém. Will se virou. — Ela fez o que? O fato de ele ter levado isso a sério (embora talvez, ele não tenha entendido o que eu disse) conseguiu quebrar qualquer pedacinho de contenção que eu tinha e as lágrimas começaram a vazar... de novo. Droga! Ele pareceu assustado. — Está tudo bem. — Ele se aproximou e hesitantemente colocou a mão no meu ombro. Inclinei-me sobre seu toque, e ele passou seus braços em volta do meu corpo. Seu cheiro era fresco com cheiro de ar, um pouco de suor e outra coisa, quase como canela mas não completamente. Fez o meu nariz coçar, como um espirro preso, o que era no mínimo irritante. Mas eu não ia me afastar desse pouquinho de conforto inesperado.
83 — Sua mãe fez isso? Jogou sua faixa no lixo? — Ele perguntou. Eu podia sentir sua voz em seu peito contra o meu rosto. Ele evidentemente ainda estava tentando entender o que eu disse. — Bem, não a coisa toda. — Falei tentando recuperar meu fôlego entre os soluços. — Apenas este pequeno pedaço que eu cortei antes de devolver, ninguém fica com a faixa. — E agora até mesmo esse pequeno pedaço que eu tinha, se foi. Uma nova onda de lágrimas começou. — Sinto muito. — Ele murmurou acariciando meu cabelo, era tão bom que quase valia a pena perder algumas das minhas - não todas, no entanto estimadas posses. — O que mais? — O que mais ela jogou fora? Tipo, tudo que não estava pregado. — Não, eu digo aconteceu mais alguma coisa? Eu me afastei para olhá-lo com uma careta. — Isso não é o suficiente? — Sim. — Ele disse rapidamente. — Claro, eu apenas pensei... — Meu pai vai ter um bebê. — Falei. — Não diretamente é claro, minha Mothrasta. — Mothrasta? — Ele perguntou, e eu podia ouvir o riso reprimido em sua voz. Eu concordei com a cabeça contra sua camiseta. — Porque ela toma o lugar dos outros e destrói tudo. Ele ficou quieto por um longo momento então disse: — Você sabe que em alguns filmes, Mothra na verdade é o herói, certo? Me empurrei para longe dele. — Esse não é o ponto. — Ok, ok. — Ele levantou as mãos em defesa. — Você está certa. Ligeiramente mortificada, permiti que ele me puxasse para perto novamente e continuasse a acariciar calmamente o meu cabelo. — Gigi é o nome dela. Minha madrasta, quero dizer. E ela está grávida. — A última palavra escapou com um suspiro exausto. — Eu acharia que era uma coisa boa. — Will disse cautelosamente.
84 — Você acharia, talvez se a Gigi não fosse uma cadela, e se você não soubesse que meu pai dizia a ela que não queria mais filhos porque tinha a mim. E agora ele não tem mais. — Alona, eu tenho certeza... — Ele pegou a foto do ultra-som e colocou em cima da minha foto. — As palavras saíram com uma pressa humilhante, e eu enterrei meu rosto em seu ombro para não ter a chance de encontrar seu olhar. Eu nem falei sobre a coisa toda da minha foto ser a única em seu escritório. Era muito patético e triste. Seus dedos pararam em meu cabelo. — Você sabe que eles ainda te amam, sempre te amarão, não importa quantos quartos limpem ou quantos filhos tenham. Ah tá! Ele não conhecia meus pais. — Então você vai falar com eles? — Perguntei. Ele endureceu. — Eu não quis dizer que você precisa falar diretamente. — Ele odiava as missões cara-a-cara. Eu podia ser flexível, entretanto. — Só manda uma carta, como nós geralmente... — Sua mãe voltou a beber? — Ele perguntou em voz baixa. — O que? — Eu me afastei para olhá-lo. Sua expressão estava séria. Enviou uma onda de medo inexplicável sobre mim. — Não que eu saiba. — Seu pai está feliz? — Apenas porque ele não sabe. — Argumentei. — Ele provavelmente acha que eu estou aprendendo a tocar harpa ou relaxando em uma nuvem, ou qualquer coisa parecida. — Nós temos as ideias mais ridículas da vida após à morte. Ele me largou e voltou para o guarda-roupa. Não tirou nada, apenas encarou lá dentro, como se tivesse todas as respostas das perguntas que eu nem mesmo sabia. — Qual é o seu problema? — Eu exigi, isso não tinha nada de diferente do que fazíamos para as pessoas todos os dias. — Como isso vai ajudá-los? — Ele perguntou.
85 — O que? — Perguntei certa de que ouvi errado. — Se eles estão finalmente chegando a um ponto onde podem seguir em frente e... — Finalmente? Faz apenas dois meses! Ele me encarou com uma expressão apertada de frustração. — E se isso piorar as coisas? E se sua mãe “cair do vagão”, por que se sente culpada por você ainda estar por aqui, ou então seu pai decidir que não pode amar essa nova criança por que pode magoar seus sentimentos? Então o que? Quantas pessoas podem acabar pior do que estavam antes? Eu resisti a urgência de gritar, E daí?! Porque eu realmente não queria que isso acontecesse, mas algum reconhecimento de que eu tinha estado aqui, de que eu era importante, seria legal. Ao invés disso, parecia que eles estavam melhor sem mim. E Will não estava entendendo. — Desde quando nós nos preocupamos com isso? — Exiji. — Quantas cartas e telefonemas e tudo mais o que fizemos, sem sequer pensar sobre as pessoas que receberam do outro lado? Ele se encolheu. — Talvez nós devêssemos ter pensado. — Ele falou. — Não. — Falei com uma paciência exagerada. — Nosso trabalho não é se preocupar com os vivos. Eles ainda podem mudar as coisas para si mesmos, é o resto de nós que precisa de ajuda. — Quem disse? — Ele argumentou. — A luz? Você nem mesmo ao certo me disse o que aconteceu quando esteve fora, disse? Eu o encarei boquiaberta. — Quem é você? Desde quando você pensa assim? Parece que da noite para o dia você se transformou em um tipo... — Parei. Pedaços caíram e se ligaram em meu cérebro. Will na cama e feliz quando o deixei ontem. Will vestido e louco quando voltei essa manhã, e cheirando a algum tipo de aventura noturna e um perfume picante e desconhecido de garota, fazendo perguntas sobre meu propósito aqui, seu propósito, nosso trabalho juntos.
86 — Oh. — A palavra escapou involuntariamente mais como uma lufada de ar para acompanhar a sensação de chute no estômago que eu estava sentindo no momento. Seus olhos se arregalaram, então ele sabia. Ele sabia que eu sabia. — Você se encontrou com ela novamente, não foi? — Perguntei, só de dizer as palavras parecia como um sangramento. — Não foi culpa minha. — Ele disse rapidamente. — Ela me encontrou, veio na minha janela e... Eu balancei a cabeça. É claro. Alona idiota. Erro de principiante. Eu subestimei meu inimigo. Eu pensei que não teria que me preocupar com ele em casa, apenas quando estivéssemos na rua e juntos. Ela não sabia seu nome ou endereço, mas ocorreu-me agora que tudo que ela precisaria fazer era perguntar para qualquer espírito na cidade, e conseguiria seu nome; Will é relativamente famoso, pelo menos na comunidade morta-mas-não-muito-morta. Eu não estou acostumada com a existência de outras pessoas com acesso a essa população específica. Depois disso era só 'googlar' o nome dele em seu telefone, ou então ir a uma escola velha e conseguir uma lista telefônica. Os Killian provavelmente estavam listados, e acho que não devia ter sido uma tarefa muito difícil achar o Killian certo. Eu me afastei dele lentamente sem ter certeza do que fazer, apenas de que eu não conseguia ficar tão perto dele assim agora. — Não é nada do que você está pensando. — Ele disse me seguindo. — Ela precisou da minha ajuda para encaixotar a Sra. Ruiz. Eu congelei. — Encaixotar a Sra. Ruiz? Suas bochechas pálidas coraram. — Ela não tinha ido embora. Era demasiado poderosa para o dispositivo, então nós a contivemos, assim ela não faria nada de mal a ninguém. — E então? — Perguntei com uma calma que não sentia. — Então o que? — Então o que você fez com a Sra. Ruiz?
87 Ele faz uma careta. — Mina a levou. As caixas, quero dizer, os pedaços da... não importa. Eu me sentia como se estivesse ficando doente. Sendo eu alguém que sentiu a fúria desse espírito em particular, eu até podia entender a motivação por trás disso, para parar a Sra. Ruiz, mas entregar esse espírito para uma pessoa que ele não conhecia? Alguém que podia ou não e eu estava mais inclinada para o não - se preocupar com o destino da Sra. ruiz. Alguém que a encaixotou... em pedaços? Não que ela fosse uma pessoa maravilhosa ou incrível, mas eu acho que não somos nós que decidimos quem vai para a luz, e quem vai ficar preso em algum tipo de caixa. Como saberíamos onde traçar a linha? Mais importante, onde ele a desenharia? E quanto a mim? Tudo aquilo de não querer mudar as coisas, de não querer fazer isso com mais ninguém além de mim? E se ele decidisse que eu pertencia a uma caixa? Will deu um passo em minha direção e eu me afastei imediatamente com as mãos para cima em minha frente, como se ele pudesse se lançar para mim. — Eu não te conheço mais. — Falei. Ele empalideceu. — Eu não... ela não... nós apenas conversarmos, ela disse que poderia me dizer mais sobre as pessoas como eu. Mas eu descobri que ela estava apenas me usando para encontrar a Sra. Ruiz, assim que ela conseguiu o que queria, ela sumiu. Mas ela voltaria, ou então ele não iria parar até encontrá-la. Ela já garantiu isso só por sumir, eu podia até prever. — Agora eu não sei o que é mentira e o que é... — Espera. — Eu não podia acreditar. — Você realmente está esperando que eu sinta pena de você? — Ela mentiu e eu não sei... — Você fez a mesma coisa. — Não. — Ele disse enfaticamente balançando a cabeça. — Não, eu não estava tentando mudar nada. Eu só queria saber mais sobre quem eu sou e o que deveria estar fazendo.
88 — Você sabe o que deveria estar fazendo. — Até mesmo eu consegui ouvir o pânico estridente em minha voz. Ele apenas me olhou, e através do véu borrado de lágrimas que eu me recusei a deixar vazar, podia dizer que ele não tinha mais tanta certeza. O que quer que ela tenha dito ontem à noite plantou uma semente de dúvida em sua cabeça. E isso foi mais do que suficiente para arruinar tudo. Ele não ia me ajudar, acho que ele não ia ajudar mais nenhum de nós. Com Mina a Magnífica, e todos os seus brinquedinhos ele não precisava mais. E ele também não precisava mais de mim. Eu recuei dele, evitando por pouco a borda da escrivaninha, onde eu poderia passar por esse campo em torno dele e atravessar a parede. Eu precisava sair daqui antes que começasse a chorar. — Alona, — Ele falou. — Por favor, não. Eu ignorei e continuei. Ele suspirou. — Eu não estou dizendo que vou parar o que estamos fazendo, só que... talvez devêssemos pensar sobre isso por outra perspetiva. — A perspetiva dos vivos. — Falei. Ele limpou a garganta. – Sim. — Seus olhos me implorando para entender. Eu escutei um barulho lá fora, característico do som de caminhão de lixo fazendo ronda no bairro. Era dia do lixo em Groundsboro. Se minha mãe estivesse motivada o suficiente para arrastar todos aqueles sacos de lixo do meu quarto para o meio-fio, minha vida inteira estava prestes a desaparecer em um aterro sanitário, para sempre. — Eu só preciso de um tempo para pensar sobre tudo isso. — Ele disse. Eu concordei com a cabeça ferozmente. — Eu te garanto que você terá muito tempo para pensar e muitas coisas sobre o que pensar. — Em menos de um dia todas as pessoas que um dia disseram se importar comigo, arruinaram tudo. Ia levar muito mais do que um apelo sincero de compreensão para mudar as coisas agora, e eu não estava disposta a esperar pelo que quer que fosse. Não, chega de esperar. Minha vida após a morte estava em minhas mãos agora.
89 — O que isso quer dizer? — Ele disse me olhando alarmado. Ele me conhecia muito bem. Bom. — Isso quer dizer que desde que eu não atinjo sua definição de “importante” porque não estou “viva” não é da sua maldita conta. — Então eu virei e atravessei a parede. Se por nada mais, você teria que amar estar morto pelas saídas dramáticas. Tem sempre aquela coisa, né? Uma ação em especial que é a sua linha pessoal na areia. A ameaça nuclear que você mantém em seu bolso de trás, sem nem sequer mencionar, porque vai escalar qualquer conflito para além da chance de reconciliação. E ainda assim, aqui estou, declarando guerra, transformando essa linha na areia em um ponto simples na distância atrás de mim. O lobby do hospital St. Catherine estava cheio a essa hora do dia. Alguns estavam esperando por suas consultas com um médico ou outro. Outros estavam realizando vigílias para os entes queridos nos andares acima. Meu pai andou por este espaço, não há muito tempo, exigindo informações sobre sua filha e um acidente de ônibus. Não pela primeira vez, eu gostaria de um “fazer de novo” uma chance de reviver aquele dia novamente. Quando meu pai ligasse naquela manhã eu diria a ele para superar e lidar com a minha mãe ele mesmo. Então eu teria me recusado a falar com os dois até que eles se entendessem. Imaturo? Possivelmente, mas teria resolvido o problema de eu ser o intermediário, o que causou tudo isso em primeiro lugar. Bem, não isso especificamente. Isso de eu estar aqui no hospital St. Catherine, me preparando para medidas de última hora, meu último recurso, isso era culpa do Will. Ele te deixou sem escolha, eu fiquei me lembrando. Mesmo assim eu sabia que ele nunca iria me perdoar depois disso. O qualquer “mais que amigos” que tenha acontecido entre nós, acabou, estava morto, muito além de ressuscitação.
90 Mas a minha mensagem seria entregue, e ele saberia que eu não precisei dele para fazê-lo. Essa era a parte importante. Eu caminhei para o elevador e fiquei ao lado de uma mulher com um balão gigante escrito “Fique bem logo” e um urso de pelúcia enorme com um braço peludo em uma tipóia. Ela parecia que estava indo ao lugar certo. Agora que tomei minha decisão eu não queria perder tempo subindo e descendo nos andares errados. Minhas mãos estavam suando. Eu só tinha feito isso uma vez e foi em uma ação desesperada. E se não funcionasse? Balancei a cabeça. Não, tinha que funcionar. Embora honestamente, o pensamento do que era preciso fazer para funcionar quase me assustava mais do que a possibilidade de fracassar. Quase. O elevador sinalizou sua chegada, e eu segui a mulher e seus balões. Como eu esperava ela apertou o botão para o quinto andar. Pediatria. Quando as portas se abriram, revelaram os mesmos rostos sorridentes e os arco-iris de quando estive aqui na minha primeira viagem. A mulher dirigiuse com o urso e seus balões para a direita e eu para a esquerda, passando pela mesa das enfermeiras, sob a memória de uma tarde que eu preferia esquecer. Enquanto eu caminhava, contei as portas alinhadas ao corredor e parei quando vi uma parcialmente fechada. No meio do corredor. Essa parecia a certa, pelo que eu recordava. Olhei para dentro. O quarto estava escuro com a maioria das cortinas fechadas e a televisão desligada, mas ainda era o suficiente para saber que estava no lugar certo. Lily Turner parecia exatamente a mesma de quando eu a vi da última vez, há alguns meses. Sem muitas surpresas, dado ao seu estado de coma permanente. Ela estava meio elevada na cama, seu cabelo marrom brilhante estava espalhado sobre seu travesseiro. Desta vez pelo menos seus olhos estavam fechados, vê-la encarar o nada era assustador para caramba. Eu entrei no quarto, passando parcialmente através da porta, e não pude deixar de notar que Lily permanecia a mesma, embora seu quarto tenha mudado drasticamente.
91 Há alguns meses, ela só tinha alguns porta-retratos aqui e ali. Era como se a família estivesse esperando ela voltar para casa, ou... morrer a qualquer instante. Agora, porém, parecia que seu quarto em casa tinha sido trazido meticulosamente, peça por peça e reagrupado em torno de sua cama de hospital. Um lençol com castelos, fadas e carruagens sendo puxadas por cavalos, foi pregado a uma parede em uma tentativa de encobrir o bloco de concreto. Claramente Lily não redecorou seu quarto desde os seus seis anos. Livros e álbuns de fotos estavam amontoados em uma pilha desleixada em sua mesinha de cabeceira. Animais de pelúcia bem vestidos e faltando vários apêndices, foram colocados no peitoril da janela. Próximo a eles estava um abajur de bailarina, seu tutu cor-de-rosa dando ao quarto um brilho pálido rosa. E depois eu vi as tábuas Ouija9, elas estavam em todos os lugares. Estava pior do que eu imaginei. Will me disse que estava ruim, mas eu nunca imaginei isso. Além da tábua de madeira antiga na cama com os dedos flácidos da Lily repousando sobre a prancheta, uma dúzia de variedades e múltiplas tábuas estavam espalhadas pelo quarto. Feitas de plástico, madeira, cor-rosa-brilhante (tem algo errado com isso, certeza) em padrão preto, marrom, velhas, novas, grandes, pequenas (Ouija em tamanho para viagem), tinha até algumas feitas daquele material amarelado que provavelmente brilhava no escuro. Algumas estavam empilhadas no chão, outras foram aleatoriamente colocadas em torno do quarto, no criado-mudo, sobre a cama vazia que teria pertencido ao companheiro de quarto, em cima da mesa de rodinhas usada para servir refeições, se ela pudesse comer dessa maneira. Embalagens de pelo menos duas tábuas novas estavam na lata do lixo, e uma pilha de caixas fechadas com tábulas Ouijas estava em cima da cadeira de visitante. Essa tábuas eu sabia que não tinham nada a ver com redecorar o quarto de Lily, mas sim com Will e eu. No ano passado Lily deixou uma festa - a festa 9
Usadas para a comunicação com espíritos.
92 do primeiro nível, uma em que eu mesma estive - em lágrimas, após uma briga com seu “namorado” Ben Rogers. Ben é um galinha, especialmente quando se trata de garotas como Lily. Ela deveria ter sabido melhor, mas de novo, evidentemente ela não tinha muita experiência em nosso cenário social. Isso tudo de acordo com Will, que foi um dos poucos amigos de Lily antes dela subir alguns degraus na nossa escada social. De qualquer forma, o carro dela acabou colidindo com uma árvore, no caminho para casa, da festa, e ela acabou nessa cama de hospital. Ela não estava exatamente morrendo, mas também não estava ficando melhor. Will disse que seu espírito se foi, ela encontrou a luz imediatamente, porém seu corpo continuava vivo, pelo menos por enquanto. E depois alguns meses atrás, a outra amiga de Will a Joonie, sequestrou o corpo de Lily e o trouxe para Will, na esperança de que ele encontraria seu espírito e colocaria de volta no lugar. Joonie descobriu o segredo de Will conseguir falar com fantasmas, graças ao seu comportamento esquisito e pistas de contextos diferentes. Ela sentia que o acidente da Lily era sua culpa - elas tiveram uma briga antes, quando os três ainda eram amigos - e ela queria a ajuda do Will para consertar. Na verdade ela estava mais do que louca, para consertar. Will disse a ela que colocar o espirito da Lily de volta não era possível, mas ela não acreditou. Então
essa
energia
negativa
da
Joonie
-
medo,
frustração,
culpa,
arrependimento - em combinação com a presença do Will e da Tábua Ouija, manifestou uma força física. Frustrada com Will por ele não cooperar, ela direcionou essa força para ele, que sufocou seu ar e sua habilidade de respirar, lentamente matando-o. Joonie estava tão apegada em seu estado miserável que nem mesmo percebeu o que estava acontecendo. Então eu fiz o que precisava fazer para chamar sua atenção. No calor do momento, e com a vida de Will em perigo, foi fácil. Utilizando a fisicalidade que vem de Will por estar por perto, eu escrevi uma mensagem que a Joonie precisava ouvir da tábua Ouija, e então coloquei minha
93 mão dentro da de Lily, e toquei a Joonie. Funcionou e a Joonie parou. Isso salvou Will. Mas evidentemente eu dei a família de Lily uma esperança. A quantidade e as qualidades das tábuas ouija nesse quarto gritavam desespero. Se essa não funcionasse, talvez a outra iria. Talvez ela não goste de plásticos. Talvez devêssemos comprar uma em sua cor favorita. Eles depositavam suas esperanças em cada compra nova, sem saber é claro, que não existia tábua perfeita, e mesmo que existisse Lily não estava por perto para usar. Lily se foi da única maneira que importa. Ela encontrou a luz, a paz, aquele espaço feliz, vazio de medo e preocupação, aquele que eu só consigo lembrar nos meus breves e frustrantes flashes. Mas graças a mim, sua família achava que ela ainda estava vagando por aí, e na verdade eu estava aqui para usar essa crença em minha vantagem. Engoli em seco, olhando para a pálida e pequena garota hospitalar, que quase se perdia entre os cobertores e almofadas. Ela não era exatamente bonita, ou tinha sido, mas ela poderia ter sido marcante; com um pouquinho de confiança e a educação certa em maquiagem e produtos de cabelo. Agora também, havia a questão da cicatriz irregular que se estendia desde a linha dos cabelos até a beira da mandíbula do lado esquerdo do rosto. Mas isso sim parecia estar ficando melhor em passos pequenos, parecia menos inchado e avermelhado. Essa parte dela estava cicatrizando, mesmo que nada mais estivesse, e provavelmente estivesse dando a sua família outra razão para esperança. Eu poderia realmente fazer isso? Se fosse em outra época eu não teria hesitado. Eu usava as pessoas em todos os tipos e formas quando estava viva, sem nem pensar duas vezes. Minha perspetiva era que, se você estava disposto a ser usado, ou era fraco o suficiente para permitir que acontecesse, então você teve o que mereceu. Se você não é o predador, é a presa, sabe? Mas agora... Uma vez. Só isso. Eu só precisava passar a mensagem para os meus pais.
94 Me aproximei da cama para esperar, meu coração batendo muito rápido. Eu meio que estava esperando o Will aparecer e gritar comigo. Ele sabia o que eu podia fazer. Na verdade eu era o único espirito que ele já viu e ouviu, com essa habilidade. Ele sabia que eu estaria pensando nisso... certo? Mas Will não apareceu. O quarto estava quieto, apenas com o sinal continuo do monitor cardíaco de Lily em segundo plano, para quebrar o silêncio. Então uma mulher com o mesmo cabelo marrom brilhante de Lily, entrou no quarto carregando uma bandeja hospitalar com um sanduíche de aparência patética, uma salada murcha, e duas laranjas. A mãe dela, tinha que ser. Segundo o Will, ela raramente saía desse quarto, esperando que sua filha acordasse o suficiente para se comunicar novamente. Eu assisti ela se aproximar, se movendo como se cada passo fosse doloroso. Seu cardigan marrom parecia ser três números maiores para sua estrutura magérrima. — Eu te trouxe laranjas, querida. — Ela disse suavemente, como se Lily estivesse cochilando e não quisesse assustá-la. Ela caminhou com cuidado em torno da cama e se sentou na cadeira de visitante ao lado da cabeça de Lily. — Eu sei o quanto você ama. Pensei em descascá-las aqui, assim você poderia sentir o cheiro. Talvez comer uma fatia ou duas se você acordar. — Sua voz rouca pelo cansaço. Essa mulher estava dando tudo que tinha a sua filha, cada pedaço de energia, cada grama de força. Se Lily não estivesse sendo alimentada por tubos eu tenho certeza que ela já a teria alimentado. Essa era a pior parte. Para conseguir mandar a mensagem através da Lily, eu precisaria de alguém vivo para anotar as palavras. Eu ia usar sua mãe tanto quanto ia usar Lily. Da primeira vez as consequências de me comunicar com a Joonie através da Lily não me ocorreram de imediato, apenas o benefício - Joonie iria parar e Will iria viver. Eu não pensei em sua família esperando meses a fio que sua filha acordasse, e quando isso aconteceu por alguns instantes, em que ela demonstrou alguma consciência momentânea, eles não estavam por perto. Deve ter sido devastador e... cruel.
95 Não foi intencional, de forma alguma, mas agora seria e ao contrário do que a maioria das pessoas, incluindo o Will, parecia acreditar sobre mim, eu tinha consciência. Dizer a alguém que ela está parecendo uma abóbora inchada em seu vestidinho canela (verdade) está a mundos de distância de dar a mãe de alguém aflito, falsas esperanças (cruel). Ahhh acaba logo com isso. Você só vai fazer isso uma vez, e talvez quando você se acalmar, pode voltar e dizer adeus a sua família por ela. Ela provavelmente ficaria grata por isso. Eu esperei até que sua mãe terminou de descascar a laranja, antes de começar. Eu não queria ter que fazer isso duas vezes. Me lembrava muito bem da sensação de me perder junto com o corpo de Lily, como se estivéssemos nos fundindo em uma única pessoa. Foi assustador, muito, muito assustador, e eu não estava ansiosa para experimentar novamente. Eu me aproximei da cama, alinhando minha mão com a dela. Então respirei fundo deixando sair devagar, e coloquei minha mão em cima da de Lily. Por um segundo eu pensei que nada ia acontecer. Eu podia sentir o calor de sua pele contra a palma da minha mão, mas era só. Então como se tivesse quebrando a tensão superficial em uma piscina, minha mão escorregou para dentro da dela. Em nossos pulsos, a fronteira de separação entre nós ficou manchada, tornando-se um borrão da minha pele bronzeada e a dela brancahospitalar. Tentando ignorar a sensação de calor subindo no meu braço, ainda mais rápido do que da primeira vez, pelo que parecia, eu forcei minha mão para frente e Lily deu uma guinada. A prancheta de plástico mergulhou na madeira da tábua sobre o peso da mão de Lily, mas eu ainda podia movê-la. Foi mais fácil da primeira vez, quando o Will estava por perto e eu consegui mover a peça em torno da tábua, mas isso também ia funcionar, ia ter também mais efeito, eu admiti relutantemente. MÃE Fiz uma careta. Era errado e me senti mal por estar usando essa palavra para alguém que não era a minha mãe. Mas então novamente, minha mãe
96 sequer se preocupou em manter as minhas coisas, muito menos coloca-las em outro lugar. Ela estava tentando apenas sobreviver do único jeito que conhecia. Eu entendia, mas ainda! O monitor cardíaco de Lily bateu uma ou duas vezes mais forte, nada que soasse muito ruim. MÃE Demorou alguns segundos para a mãe de Lily reconhecer o som da prancheta raspando na tábua. Ela pulou - a bandeja em seu colo escorregou e caiu de encontro com o chão, com um chocalho de plástico e da cerâmica partindo - e olhou a tábua de Ouija do outro lado da cama. MÃE UGH, eu já estou suando do esforço... e odiava suar. O calor do braço de Lily se estendeu do braço para meu ombro e uma estanha sensação de puxar começou, como uma sucçao, me puxando para baixo. Os músculos das minhas costas estavam doendo com o esforço de me manter em pé. Dessa vez a Sra. Turner entendeu. Ela empalideceu, levantando uma mão trêmula sobre a boca, seu olhar fixo na tábua, como se se ela desviasse o olhar desapareceria. OK e agora? Ummm... OI Sua mãe começou a rir, uma risada estranha, uma coisa de choro, com os ombros tremendo e lágrimas, mas sem nenhum som. Ela veio para o meu lado e tocou a mão de Lily, a parte estranha é que eu senti em minha mão. NÃO FIQUE TRISTE, ESTOU BEM Sua mãe concordou com a cabeça violentamente, lágrimas voando de seu rosto e caindo em seus braços e na cama. É eu definitivamente ia ter que voltar aqui e dizer adeus em nome da Lily. Eu não poderia deixá-la assim com sua mãe. Ela não merecia isso. Ela acariciou nossos braços e eu tremi com a sensação.
97 — Querida, eu estou tão feliz que está aqui. Eu preciso que você me faça um favor. — Ela disse. Ok, eu não estava esperando por isso. — Seu pai precisa ver isso, só assim ele vai acreditar em mim. — Ela pegou o celular do bolso do cardigan e começou a discar. — Eu poderia gravar, mas você conhece seu pai, ele não acredita em nada até que ele mesmo veja. Então o que eu deveria fazer? Ficar por aqui até que seu pai venha de onde quer que esteja? Acho que não. Começo a soletrar meticulosamente minha mensagem, rezando para que ela possa entender abreviações. MSG10 DA ALONA — Espere, por favor, querida? Ele precisa ver isso. — Ela cobriu o telefone com a mão. — Você sabe que ele não quis dizer aquilo, toda aquela coisa de te levar para casa...para morrer. Ele apenas não entende. O que? Essa força, do que quer que seja que estava me puxando para Lily, deu um puxão grande, até que meu braço inteiro era parte do dela e meu queixo ficou fundido em seu ombro. Eu comecei a entrar em pânico. Essa força dentro do corpo da Lily estava me puxando para dentro. Eu precisava sair. AGORA. Minha mensagem podia esperar. Eu tentei me afastar mas descobri que nem mesmo tinha forças para ficar de pé. Merda. — Jason, ela está aqui. Ela está fazendo isso agora. — A mãe de Lily disse animadamente ao telefone. — Você precisa vir vê-la. A voz do outro lado do telefone disse algo que eu não consegui ouvir por cima do barulho de sangue em meus ouvidos. A sensação de fraqueza que geralmente me acompanhava quando eu desaparecia, agora estava em cascata sobre mim. Pela força eu podia adivinhar que não tinha mais nada do joelho para baixo. O poder do meu medo estava me dissolvendo onde eu estava, mesmo com o corpo da Lily se apertando para controlar o que restou.
10
Mensagem.
98 A mãe de Lily franziu a testa para baixo, em nossa tábua. — Nada neste momento, mas ela estava fazendo. — Ela disse ao telefone. O monitor cardíaco no canto, buzinou mais rápido e mais alto agora. Se acalme, pense em coisas boas. Eu precisava parar de desaparecer. O calor sufocante subiu para o meu rosto, me afogando, enchendo o meu nariz até que eu não conseguia mais respirar. Me assustei e ataquei com tudo o que me sobrou, tentando me libertar... E meus dedos dentro dos da Lily sofreram um espasmo. Apenas isso. Eu escutei a prancheta deslizar sobre a tábua lisa, e a Sra. Turner dar um grito angustiado. O monitor cardíaco gritou... e depois nada.
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— Você está bem? — Sam, o meu patrão e o semi-namorado da minha mãe, parou na cabine que eu estava limpando em seu caminho para a cozinha. — Você não falou muito hoje. — Ele parecia preocupado. — Estou bem. — Nada que dez horas de sono e menos frustração em minha vida não resolvesse. Eu persegui Alona quando ela fugiu essa manhã, mas ela era muito mais rápida do que eu, incluindo a parte que eu tenho que abrir portas para sair e chegar do outro lado. Então eu dirigi até a casa da mãe dela, pensando que poderia alcançá-la antes dela chegar lá, mas não tive essa sorte. Ou ela foi para outro lugar, ou chegou lá mais rápido do que eu poderia imaginar, e já estava acomodada com segurança lá dentro na hora em que cheguei. Não que eu pudesse tocar a campainha e perguntar por ela. Enquanto eu estive lá, não pude deixar de notar a pequena montanha de sacos de lixo preto no pé da garagem de sua mãe, dando mais credibilidade a história da Alona. Ignorando os olhares estranhos dos vizinhos que estavam por ali, eu peguei aleatoriamente alguns sacos para Alona, e joguei no meu carro. Esperava ter pego algo que não restos das refeições de sua mãe, algo valioso. Eu não estava tentando magoá-la essa manhã. É só que... tudo estava tão confuso agora.
100 Depois disso voltei para casa e passei três infrutíferas horas com os olhos presos na tela do computador, procurando na internet, apenas para não achar quase nada sobre a Ordem dos Guardiões. Apenas algumas menções sobre teorias de conspiração e vários Blackwells na área de St. Louis. E agora? Eu não tinha ideia. E agora Alona estava furiosa comigo. Isso não poderia acabar bem. Não era costume ela passar tanto tempo fora, mesmo com raiva de mim. Especialmente se ela estivesse com raiva. Sua teoria quando se tratava de conflito é que: é apenas eficaz se a outra pessoa estiver dolorosamente consciente de sua perspetiva - ênfase no dolorosamente - até que ele/ela não tivesse escolha senão se render. Alona só pensava em vencer. Mas agora, um pouco depois das nove, já se tinham passado mais de doze horas desde a última vez em que eu a vi. — Você talvez queira limpar uma mesa diferente? — Sam me perguntou, chamando minha atenção de volta para a conversa. Eu olhei para baixo, a mesa que uma vez estava cheia de migalhas e coberta de xarope pegajoso agora estava molhada e reluzente. As cabines do meu lado, que eu poderia jurar que estavam cheias de pessoas alguns segundos atrás, agora estavam vazias, exceto pela pilha de pratos sujos e guardanapos enrolados para eu limpar. Há quanto tempo eu estava brisando? Precisava de cafeína. Imediatamente. — Certo, — eu disse. — Desculpa, eu só preciso dormir um pouco mais, acho. Assumindo que Alona me deixaria fazê-lo. Eu já conseguia até ver uma legião de fantasmas furiosos na minha casa - conhecendo Alona, no meu maldito quarto - agora mesmo. — Bem, então vá para casa. — Sam sorriu. — Você já terminou seu turno à quinze minutos atrás, de qualquer forma. — Oh. — Acorda Will. — Eu não me importo em ter ajuda extra, mas acho que sua mãe ficará nervosa se você não estiver em casa logo. — Ele disse. Eu concordei com a cabeça. Ele estava certo, como de costume.
101 — Mais uma coisa. — Ele se inclinou um pouco. — Só para você saber, a mesa 16 está te encarando à dez minutos, quase fazendo buracos em você, — Sua boca se contorceu. — O que quer que tenha feito, espero que tenha valido a pena. — Ele me deu um tapinha no ombro e se afastou. Por um minuto minha mente forneceu a imagem da Alona, olhando para mim do canto da cabine, mas eu sabia que isso não era possível. Bem na verdade era, mas Sam não seria capaz de vê-la. Eu me virei e contei as mesas, até que cheguei a área dos adolescentes. Ainda não tinha conseguido decorar a organização das mesas, então não tinha total certeza de qual mesa era a 16. Mas não importava, porque assim que me aproximei eu vi de quem exatamente Sam estava falando. Mina. E “fazendo buracos em mim” era uma maneira educada de dizer. Ela estava me olhando de uma maneira como se estivesse ateando fogo, só com o olhar. Ela alegremente me veria queimar. Que diabos era isso? Como se ela tivesse uma razão para estar brava comigo. Inacreditável. Eu deixei meu pano cair na mesa e cruzei o restaurante até chegar em sua cabine. — Graças a Deus. — Ela disse com um suspiro irritado quando me aproximei de sua mesa. — Estava começando a pensar que teria de alugar um sinal de neon para conseguir sua atenção. — Ela ainda estava usando as mesmas roupas em que a vi na noite passada, mas parecendo ainda mais amarrotada e a tênue mancha de contusão agora tinha escurecido em sua bochecha esquerda. Um copo meio vazio de café estava em sua mesa, rodeado de meia dúzia de pacotes de açúcar vazios. — O que você está fazendo aqui? — Exigi. — Eu pensei que você estava em casa, celebrando seu sucesso, e rindo do idiota que você deixou para trás para ser pego. — Eu irritado? Não, claro que não. — Engraçado é que eles estavam nos vendo. — Ela disse amargamente. — Quem? — Eu alcancei o nó na parte de trás do meu avental, para tirálo. Só assim Rosalee, a garçonete principal e tecnicamente minha supervisora, não iria me interromper por ''papear'' durante o horário de serviço. Eu ainda
102 não tinha batido o ponto, mas Rosalee iria supor, já que não estava mais usando o avental. — A Liderança. — Mina assentiu firmemente. — Eles disseram que foi para minha proteção, mas agora... agora eu não tenho tanta certeza. Considerando que eles estão bem mais interessados em você do que no fato que eu trapaceei. — Ela tocou seu rosto delicadamente, com uma risada infeliz. — Não entendo. — Falei lentamente, e sentando no lado oposto da mesa. — Foi um risco, um risco que eles não saberiam se iria funcionar, mas era apenas a minha vida, meu futuro em jogo. — Mina balançou a cabeça. — Do que você está falando? — Ela se inclinou sobre a mesa, seu cabelo roçando sobre o topo de sua xicara de café. — Você deveria ter me dito quem era. — Ela sussurrou. — Não fui eu que me recusei a dar nomes. — Argumentei. Ela riu novamente. — Certo. Eu deveria ter adivinhado. Desculpa mas memorizar a história da sua família nunca esteve entre as minhas prioridades. Eu a encarei perplexo. Por que a história da minha família seria uma prioridade? Em algum momento, entre a noite passada e agora algum de nós parou de fazer sentido, e eu tinha certeza de que não fui eu. Ela inclinou a cabeça para o lado. — Você realmente não sabe, não é? Você nunca ouviu sobre os contos sem fim sobre o famoso ''Clube do livro''? Ele chamava de 'clube do livro', no entanto que tipo de clube do livro envolve voltar para casa exausto e todo machucado, eu não tenho ideia. As palavras da minha mãe ecoaram em minha cabeça e eu senti um calafrio. — Que clube do livro? — Perguntei cautelosamente. Mina fez um barulho de nojo e bateu um cartão em cima da mesa. — Esteja nesse endereço em uma hora. Eles querem te conhecer, ver o que é capaz de fazer. Deixe-os responder às suas perguntas. — A Liderança? — Arrisquei um palpite. Ela se levantou. — Você não merece isso. Eu nem sabia o que “isso” era, mas sentia que discutir com ela sobre isso agora não era provavelmente uma boa idéia.
103 — Você sabe o que me assustaria para cacete se eu fosse você? Se eles estão dispostos a ir tão longe para te ter, o que você acha que eles fariam para te manter? Eu teria ficado mais preocupado se tivesse entendido metade do que ela falou. — Aqui, — ela puxou o disruptor do bolso da calça. — Basta lembrar, este, — ela bateu com o dedo na extremidade aberta com os fios expostos sobressaindo um pouco. — É o fim perigoso. — Ela jogou o disruptor em minhas mãos e eu o peguei com os dedos desajustados. — E então, acho que veremos se você é tudo aquilo que eles acham que é. — Ela me deu um sorriso zombeteiro e se virou para ir embora. Bem isso não soou nada bom.
***
— Sim, deve ser divertido. Não espere acordada. — Fiz malabarismos com o telefone, colocando-o entre a orelha e meu ombro tentando achar o número do prédio enquanto dirigia. Essa parte da cidade - um dos bairros mais velhos de Decatur - não era dos melhores e a iluminação era bem imprecisa. Essa parte havia sido um centro da cidade muito movimentado, mas agora consistia principalmente de lojas vazias cobertas com papel, como olhos cegos nos encarando. — Divirta-se querido. — Minha mãe disse. — Estou tão feliz que você esteja se divertindo. Te vejo pela manhã, ok? Como minha mãe não estava acostumada a me ver tendo uma vida social, foi surpreendentemente fácil mentir para ela, algo pelo que já estava me sentindo culpado. Ela estava tão ansiosa para eu ter amigos, que minha história de topar com alguns amigos da escola que gostariam de assistir um filme tarde não levantou nem uma bandeira vermelha, quando deveria ter içado várias. — Ok, boa noite. — Esperei ela responder, e então fechei meu telefone e joguei-o para o banco do passageiro. Eu poderia ter ido para casa. Eu
104 provavelmente deveria ter ido para casa ao invés de vir para cá, que na melhor das hipóteses era uma perda de tempo, ou na pior da hipóteses uma armação da Mina para me colocar em problemas. Mas tinha duas coisas que me incomodavam nessa conversa com Mina que eu não conseguia ignorar. Primeiro: o quanto ela realmente, realmente não queria que eu viesse nessa reunião, do que quer que fosse. Dada a falta de interesse de Mina em minha saúde e bem estar, estava um pouco intrigado com o que poderia causar tal preocupação. Na verdade, eu suspeitava que ela estava mais preocupada consigo mesma do que comigo. Em segundo lugar, poderia ter sido coincidência que as duas, minha mãe e Mina tenham mencionado um clube do livro, um que não tinha nada a ver com leitura, em menos de vinte e quatro horas? Eu duvidava. E o que era isso de ”História de família?” Eu não tinha idéia do que ela quis dizer, se não algo que envolvesse meu pai. Eram muitas coincidências. Se tudo isso tivesse algo a ver com ele eu queria... não, eu precisava saber. Olhei o endereço rabiscado -- 2600 Avenida Lincon -- na parte traseira do cartão que Mina me deu. Na frente do cartão constava apenas um número começado por 800. Eu ainda não tinha tentado ligar, mas iria se não encontrasse o endereço. Já estava na Avenida Lincon, e os números estavam descendo a leste para onde eu estava indo, portanto devia estar no caminho certo… Lá. No canto à minha frente, um enorme cartaz anunciava novos estilos de condomínio na Avenida Lincon 2601, e do outro lado da rua... O que sobrou do Teatro Archway. Merda! Eu freiei duramente, por sorte ninguém estava atrás. O Teatro Archway estava no topo da minha lista (junto com o Ground Zero em Nova York) para nunca, nunca visitar. Ele era uma lenda. Foi construído na década de vinte, antes da grande depressão. Em teoria, tinha um certo valor cultural para Decatur como um dos poucos teatros convertidos em cinema ainda existentes, embora tenha estado fechado por décadas. A sociedade histórica tentou trazê-lo de volta à vida, mas as pessoas
105 continuavam a se machucar ou morrendo durante as inúmeras tentativas de renovação ao longo dos anos. Trabalhadores caíam do velho palco, tiveram ataques cardíacos imprevistos ou foram eletrocutados quando a energia deveria estar desligada. Sempre foi dito que era coincidência e superstição, mas a verdade era que existia algo fundamentalmente errado com o Archway, que qualquer idiota poderia perceber e nem arquitetos ou contratantes poderiam reparar. Nos anos vinte, quando os planos para o teatro foram aprovados, algum gênio teve a idéia de construí-lo em um lugar abandonado no centro da cidade... exatamente por cima de um velho hotel que havia pegado fogo no meio da noite, uma década antes. Sessenta e poucas pessoas morreram no incêndio desse hotel, e alguns dos corpos não foram recuperados. Então menos de dez anos depois, equipes de construção começaram a cavar o terreno para construir o teatro. Não querendo bancar o Poltergeist em você, mas você tem que ser um tipo especial de estúpido para fazer algo assim. Esse tipo de evento em massa, tantas mortes violentas tudo de uma vez no mesmo lugar, cria uma energia única, própria. Meu palpite era que o teatro ficou preso em uma repetição fantasmagórica do fogo no hotel, os mesmos eventos acontecendo uma e outra vez e terminando da mesma forma que naquela noite. Pelo que eu li online, Gettysburg tinha um par de situações semelhantes. Batalhões de soldados ainda lutavam por suas vidas, mesmo depois de estarem mortos há mais de um século e meio. Todo ano um grupo de garotos idiotas se desafiavam a invadir o teatro e passar a noite de halloween, e a maioria saía de lá assustado, algumas vezes seriamente machucados e se recusando a falar de suas experiências. E ainda assim, aqui estava eu. Balancei a cabeça. Por que a Liderança marcou de se encontrar em um dos lugares mais assombrados da cidade, possivelmente do estado? Alguém buzinou atrás de mim e eu pulei. Tirei o pé do freio e virei na Springfield para olhar o prédio. O teatro estava na esquina, com entrada em
106 ambos os lados, embora tudo parecesse estar escuro e trancado. Felizmente. Eu realmente não tinha nenhum interesse de entrar. Então quando estava passando para ir embora, um clarão vermelho chamou minha atenção. Um banner pendurado em cima de um letreiro antigo dizia: “AGORA EM REFORMA. ABERTURA EM BREVE!” Ótimo. Bem, isso explicava. Pelo menos a Mina estava dizendo alguma verdade. Esta organização estava envolvida com o governo de Decatur e o comite de desenvolvimento. Eu não tinha a menor idéia do que esse comite fazia - algo sobre licenças e permissões, algo assim? - Mas se alguém estava preocupado em “limpar” a propriedade Gibley antes de construir o estacionamento, então faria sentido que a mesma pessoa estivesse interessada em garantir que o teatro estivesse completamente “limpo” antes da abertura. Então talvez a misteriosa Liderança de quem Mina tanto falava, realmente estivesse aqui em algum lugar. Cheguei ao fim da rua e dei meia-volta. Desta vez, notei um espaço aberto na parte de trás do teatro onde obviamente um prédio foi demolido. Em meio a pilhas ainda em pé de escombros, uma meia dúzia de carros estavam estacionados a esmo. Todos eles apontados para o alambrado entre o lote vazio e a parte de trás do teatro. E um deles, embora fosse difícil de ter certeza na luz reduzida, eu pensei que poderia ser o surrado Malibu de Mina. Eu estacionei meu carro nesse lote, rangendo os dentes enquanto meu pobre Dodge sacudia nesse terreno irregular. Estacionei perto de uma pilha de tijolos, peguei o cartão que Mina me deu e coloquei-o no bolso, peguei meu celular do banco do passageiro e saí. O som da minha porta sendo fechada ecoou no silêncio envolvente. Até mesmo o barulho dos meus sapatos nesses cascalhos parecia absurdamente alto. O que você esta fazendo aqui Will? Você não deveria estar aqui. Meu bom senso decidiu aparecer, no final, como de costume. Cala a boca por apenas um segundo. Deixe-me ver se estou no lugar certo. Andei através dos carros, meio que esperando alguém pular em cima de mim. Até que alcancei aquele carro que parecia ser de Mina. Olhei pela janela,
107 encontrando restos de embalagens de Fast-foods, lixo no chão do passageiro e o adesivo do escritório de zoombies colado em seu painel, exatamente como eu lembrava. Esse era definitivamente o carro dela. Estava no lugar certo. Mas e agora? — Olá. — Eu falei e imediatamente me arrependi. Todo mundo sabe que essa é uma maneira de tornar-se um alvo fácil. Além disso se este fosse um filme de terror e eu dissesse, — Tem alguém aí? — Estaria morto agora. Provavelmente sendo arrastado, chutando e gritando em um dos carros, por uma criatura cheia de garras. Eu achava que em teoria poderia esperar aqui fora. Eles não podiam ir embora sem carros, certo? Mas senti que isso era meio desrespeitoso, como se eu estivesse recusando o convite deles. Não era uma boa tática para usar em pessoas que você estava esperando bombardear com perguntas. Dirigi-me até a cerca e encontrei um lugar onde os fios foram cortados, o metal recém exposto brilhando na luz de segurança posicionada no telhado do teatro. Segurando a cerca para o lado eu escorreguei para dentro da propriedade do teatro. Essa parte provavelmente fazia parte do hotel. Eu precisava começar a prestar mais atenção, e não apenas para sinais de pessoas deste mundo. A parte de trás do teatro não parecia muito, apenas um prédio antigo feito de ruínas de tijolos com um par de lixeiras de construção ordenadamente em uma fileira. Certamente não parecia “O lugar mais assombrado da cidade!” A luz de segurança acima de minha cabeça centralizava seu feixe sobre uma porta, a única que não estava emparedada ou tampada. Era feita de um metal oxidado com tinta verde em descamação que só de olhar você poderia pegar tétano, muito menos tocar. Não tinha maçaneta apenas um buraco aberto e afiado, onde a mesma tinha estado. A porta estava entreaberta, mantida assim por um bloco de concreto. E ainda assim, nenhum sinal de qualquer outra pessoa ao redor.
108 Droga. Essa coisa toda cheirava a armadilha, ou teste, ou algo igualmente desagradável como uma das duas alternativas. Mina disse que eles queriam me conhecer para ver o que eu podia fazer. Estava começando a achar que isso ia ser muito menos conversinha furada e mais sobrevivência do mais apto. Mas então, todos os donos daqueles carros estavam aqui em algum lugar, certo? Talvez eles já estivessem lá dentro. Segundo informações de Mina, eles não eram exatamente atenciosos então eu estava achando meio difícil eles deixarem alguém aqui fora apenas para me cumprimentar. Basta virar e ir para casa, meu bom senso sugeriu. O que quer que você descubra não valerá a pena o pesadelo vivo dentro desse prédio. E então? Perdê-los para sempre? Perder a chance de conhecer pessoas como eu? Nunca saber se Mina estava falando sobre meu pai? Não tinha certeza se estava pronto para desistir dessas respostas só porque estava com medo. Quero dizer, eu tinha razão para estar com medo. Os fantasmas de dentro desse prédio poderiam me matar. Eles mataram pessoas que não conseguiam falar com fantasmas. Era um risco. Um grande risco. Mas talvez fosse esse o ponto. Era um teste. Para ver se eu merecia, se era digno. Eles permitiram, não, encorajaram Mina a conter a Sra. Ruiz sozinha. Se isso fosse realmente verdade, então isso pelo qual estava passando seria um comportamento típico deles. Eu fiquei lá, a quatro metros da porta tentando pesar minhas opções. Eu tinha o disruptor de Mina no bolso da calça, se apenas soubesse como usar. Tinha vários botões no topo e eu ainda não tinha conseguido descobrir a combinação certa para fazer o raio azul aparecer, mesmo tentando várias vezes no estacionamento da lanchonete. Estava com meu celular também. E se as coisas ficassem muito ruins eu poderia invocar Alona, ela ficaria furiosa, mais até do que antes, mas ela não teria outra escolha senão vir ao meu chamado. Essa era a maneira que o sistema funcionava, no entanto, ela não era obrigada a me ajudar e eu estava adivinhando com base em seu comportamento mais cedo, que ela não me ajudaria. Além disso, eles ou Mina podiam vê-la chegando.
109 Ainda debatendo, eu mudei o peso para o outro pé, inquieto, com o coração batendo muito rápido. E foi aí que senti essa súbita sensação de estar sendo observado. Olhei em volta, mas não vi ninguém, não que isso necessariamente significasse alguma coisa. Havia dezenas de lugares para se esconder nas sombras, sem mencionar o fato de que todos os prédios em torno do teatro eram bem mais altos, permitindo uma variedade fácil de visualização. Se eles viram Mina e eu na mansão Gibley, por que não dizer que eles estavam me vendo agora? Mesmo sem ouvir o Tick-tack do relógio eu podia sentir os segundos se esvaindo. Em algum ponto eu pensei que se continuasse aqui, minhas chances iram acabar muito antes de começar. A porta podia literalmente fechar essa oportunidade. Isso era definitivamente um teste. E o primeiro passo era saber se eu iria entrar no prédio. Alcancei a porta, meus joelhos tremendo e uma parte de mim perguntando de novo e de novo 'Estamos realmente fazendo isso?' Subi as escadas de madeira e escutei o ranger da porta e então com apenas um segundo de hesitação, contornei o bloco de concreto no pé da porta. Imediatamente o cheiro de madeira, poeira, mofo e apodrecimento me envolveu. Fiz uma careta. A luz estava bem fraca aqui, mas ainda assim eu podia ver muito bem graças a luz de segurança do lado de fora da porta, ainda entreaberta. Claramente essa era parte dos bastidores do teatro, mas agora estava coberta de pilhas de pedaços de gessos descartados, cadeiras antigas com veludo apodrecido, destinadas as latas de lixo do lado de fora. Um caminho estreito cortava por dentro dos escombros e eu podia ver pegadas recentes, mais do que um conjunto liderando o caminho através da poeira. Fantasmas não deixavam pegadas, a não ser que estivessem ao redor de alguém como eu. Então de qualquer forma, se essas pegadas foram deixadas pelos membros da ordem ou por fantasmas que ganharam fisicalidade com a sua presença, esse provavelmente era o caminho certo.
110 Tirei o disruptor do meu bolso, esperando não ter que usá-lo, porque eu realmente não sabia como, e comecei a seguir as pegadas. Eu gostaria de dizer que fiquei surpreso quando a porta se fechou atrás de mim me deixando completamente e absolutamente na escuridão. Congelei por um segundo. Não entre em pânico Não entre em pânico. Mais fácil dizer do que fazer, no entanto. Se eu me deixasse pensar nisso, podia até mesmo sentir a respiração na parte de trás do meu pescoço. Eu não estava aqui sozinho, não mesmo. Troquei o disruptor para a outra mão e cavei no meu bolso a procura do meu celular. Tirei-o, meus dedos instáveis com a minha pressa. Como o celular era completamente ancião eu tinha que pressionar um botão para acender a luz. O beep soou extremamente alto no silêncio ao meu redor, iluminando uma pequena área em torno de mim e revelando a falta de sinal, piscando no canto esquerdo da tela. Não era surpreendente, dado a idade do prédio a espessura das paredes e da 'merdeza' do meu celular. E agora? Continue indo... no escuro. Ótimo. Eu comecei a andar novamente, seguindo as pegadas que se destacavam ainda mais na luz branca do meu celular. Depois de apenas alguns passos, a perna da minha calça ficou presa em alguma coisa no corredor apertado e lotado e algo afiado perfurou a minha canela. Engoli o barulho de dor. Quanto menos atenção conseguisse atrair melhor. Se o Archway estava preso em uma repetição fantasmagórica, como todos os batalhões de fantasmas em Gettysburg (outro lugar na minha lista de sítios para nunca visitar), então as energias mais poderosas não apareceriam até a hora da noite em que o hotel ardeu. Por isso, se eu conseguisse ficar quieto e chegar até onde os outros estavam antes do pior acontecer, eu podia ficar bem. Os primeiros indícios de que podia não ficar tudo bem foram os quatro rapazes de terno. Na penumbra do meu celular, era difícil pegar um monte de detalhes, mas eu podia ver que as gravatas eram curtas demais e gordas demais para serem modernas, e grandes e pesadas malas com aparência de couro
111 descansavam em seus pés. Definitivamente fantasmas. Eles estavam encostados na parede do lado esquerdo, fumando. Na verdade apenas dois deles estavam encostados na parede os outros dois estavam no meio da parede. Um era apenas pernas, cruzadas nos joelhos. Ele claramente estava sentado em uma cadeira, provavelmente do lobby destruído. O outro ficava de frente para os outros em um ângulo quase dividido ao meio pela parede, correndo pelo seu corpo. No entanto ele não parecia incomodado. Ele sorriu, com seu dentes brilhando na escuridão enquanto acenava com a cabeça para os outros, de acordo com algo que um deles disse. Provavelmente o cara na parede, já que eu não consegui ouvir nada. Maluco como era, aquilo fazia sentido. O teatro para eles não era real. O lobby do hotel era, e obviamente aquela parede não estava ali quando eles estavam vivos. E ao contrário de Alona, da Sra. Ruiz e alguns dos fantasmas mais sensíveis, eles estavam presos em seu próprio tempo, sem saber de nada. Até é claro, quando eu tentei passar por eles, minha cabeça baixa. — Hey amigo, você sabe que horas são? — Um deles perguntou. Fiz uma pausa, hesitando por um segundo. Se eu não respondesse eles podiam esquecer que me viram. Mas pelo menos um deles me viu em primeiro lugar, indicando que podia não ser totalmente cego para eventos e pessoas fora da sua própria existência fantasmagórica. — Uh, não? — Eu disse sem me virar, não era verdade é claro, mas se eu olhasse para o meu celular, quem diabos saberia que tipo de conversa isso provocaria? Eu escutei o toque acentuado de seus sapatos no chão de madeira velha. — Você é daqui? — Ele exalou as palavras e fumaça me rodeou como uma nuvem. Me virei lentamente. Ele, o fantasma, não parecia suspeitar de mim, mas no entanto estava me observando de perto. Pareceu me possível que depois de tantos anos revivendo sua morte pelo fogo, alguns desses fantasmas podiam ter iniciado uma caça para a causa de sua morte, mesmo sem perceber que o estavam fazendo. Se assim fosse, boa sorte para eles. Bernard Shaw, um
112 porteiro adolescente, que tinha adormecido na sala de bagagem enquanto fumava, foi quem começou o fogo. Ele sobreviveu acordando em tempo de escapar com vida. Ele não se preocupou em contar a ninguém sobre o fogo, temendo por seu trabalho. — Não, estou apenas de passagem. — Falei para o fantasma. — Acho que não. Não nesse traje. — Ele riu apontando para as minhas roupas. Uh-huh. Certo. Ok. — Eu tenho que ir. Meu... — O que faria mais sentido para ele? Namorada poderia levantar sobrancelhas se ele achasse que isso era um hotel, assim como a palavra “amigo” se eu parecesse muito jovem para ele, iria ficar se perguntando o que eu estava fazendo vagando à noite. — Meu pai, — Eu disse finalmente. — está me esperando. — Ele faz parte da convenção? — Suas palavras despertaram uma vaga lembrança. A razão de o hotel estar lotado naquela noite, foi por conta de um convenção de vendedores ambulantes que estava sendo realizada na cidade. “Deroluxe Aspiradores”. — Nós só estamos de passagem. — Eu falei. Ele acenou com a cabeça e apagou o cigarro no chão entre nós com seu pé. Segurei a respiração. Esse lugar cheio de madeira seca, cadeiras de veludo apodrecidas, poeira e lixo eram um fogo esperando para acontecer. Eu pisei rapidamente na ponta do cigarro. Fogo era uma das partes traiçoeiras de ser capaz de falar com fantasmas. Estar perto de um fósforo de fantasma, cigarro ou, inferno, fogos de artificio, - qualquer coisa dessas com que o espírito tenha morrido - era o suficiente para desencadear um incêndio que poderia causar dano suficiente ou até mesmo a morte. — Obrigado garoto. — Ele apertou meu ombro e eu vacilei, esperando ele fazer a conexão de que realmente me tocou, uma pessoa viva, mas ele não o fez. Porém, para ele, até que o fogo começasse de novo, ele era uma pessoa viva também. Depois disso, tudo seria diferente. Uma vez que meu novo amigo voltou a conversar com seus amigos, eu comecei a andar novamente. À frente o corredor se abria em uma vasta área ou
113 assim parecia. Tudo que eu poderia dizer era que a luz do meu celular não chegava além das bordas da escuridão, e eu também não estava vendo os montes de lixo empilhados ao meu lado que me acompanharam nessa jornada até agora. Avancei para lá das últimas pilhas de lixo à vista e entrei no espaço aberto. Eu podia sentir o teto acima de mim ficar mais alto, como quando você sente que ar se desloca em torno de você. Passei de um corredor muito apertado, para um espaço maior, mais aberto. E o barulho de ruído era diferente aqui. O chão debaixo de mim tinha mudado também. Cada passo que eu dava ressoava agora com um barulho cavernoso. Levantando o telefone mais alto, tive um vislumbre de fios esfarrapados de tecidos brancos fantasmagóricos pendurados no teto, movendo-se. No topo, o que eu conseguia ver, estava bem mais intacto, ainda com um pouco da forma retangular original. A tela. Eu tinha chegado ao teatro. Provavelmente o velho palco. Isso explicaria o oco sobre meus pés. Mas ainda nenhum sinal de qualquer outra pessoa. Onde eles estavam? Na distância, no que provavelmente seria o topo do corredor na área do público, um flash rápido de luz como uma lanterna chamou a minha atenção. — Olá? — Corri para frente apontando meu celular mais longe em busca da borda do palco ou até mesmo o brilho de metal de uma cadeira ainda não removida na área da platéia para uma indicação de onde terminava o palco. Poderia haver uma queda para o chão, não muito grande, mas não precisaria de muito para quebrar um tornozelo ou... pescoço. Mas tirar minha atenção do chão foi um erro, ou eles já começaram a renovação no chão do palco em si ou apenas não tinham chegado perto de consertar onde o chão já tinha cedido. Em um minuto eu estava andando muito bem e no outro meu pé esquerdo pegou nada, a não ser o ar.
114 Meu coração deu uma guinada em minha garganta e eu caí para frente, com as minhas mãos e depois com a cabeça batendo na madeira, ainda no lugar do outro lado do buraco que eu tinha encontrado. Arranhei o chão para parar minha queda antes que o resto de mim seguisse meus pés e pernas. O disruptor voou para frente deslizando fora da minha vista e meu celular caiu da minha mão, brilhando todo o caminho até o chão debaixo do palco oco, golpeando o que soou como travessas metálicas. Merda. Meu coração batia em meus ouvidos e minha respiração soou tão alto quanto um grito. A borda do piso de madeira lascado e afiado cavou na parte de trás dos meus braços. Meus dedos travaram no lado de uma placa ligeiramente levantada, e agora meus braços estavam presos entre o peso do meu corpo e o chão comigo pendurado em uma posição esquisita. As placas estavam escamosas e secas sob meus dedos suados e meus braços estavam começando a tremer. Eu não tinha certeza qual seria a primeira parte a ceder. Deslizei uma mão livre sentindo minha pele rasgar enquanto a arrastava em toda a borda irregular e plantava minha palma da mão no palco. Com um esforço, forcei meus trêmulos e agitados músculos a me puxar, e fiquei metade no palco e metade no buraco, ofegante e respirando pó e sujeira. Eu conseguia fazer isso. Eu conseguia sair daqui. E então atrás de mim uma explosão de luz, o cheiro de fumaça e dezenas de vozes gritando. O fogo do Hotel Archway tinha começado.
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Quando acordei, uma sufocante escuridão - o tipo de escuro contra o qual seu cérebro se rebela, criando fogos de artifícios e faces do nada, só para ter algo em que se concentrar - me pressionava de todos os lados. Não conseguia me mover, não conseguia ver... não conseguia respirar. Mantenha a calma. Uma boa sugestão, mas que não me ajudava com o sentimento apertado em meu peito e o desejo gritante de inalar. Este era o fim? O nada, a não-existência da qual Will estava falando? Eu tive visões de poços ardentes ou assistindo-me desintegrar como cinzas de fogueira ao vento. Nunca essa escuridão e essa proximidade insuportável a algo que não conseguia ver. Eu não sentia essa claustrofobia desde que tinha seis anos e meu pai acidentalmente me trancou no armário, designado para as dúzias de casacos, jaquetas e estolas de pele da minha mãe (Eu estava brincando de desfile de moda novamente, mesmo tendo estado de castigo na semana anterior. Por isso é que estava escondida no armário com as peles ao invés de as ter arrastado para o corredor principal, que qualquer pessoa razoável percebia que tinha sido feito para desfilar. Era como se eu estivesse presa dentro de um animal... um que estava de dentro para fora.)
116 Mas a parte mais estranha sobre isso, além da escuridão sem fim, era que eu ainda era eu. Supostamente, no esquecimento - como Will descreveu -, eu não deveria deixar de existir? Como se talvez seu nome e sua memória estivessem sempre ali no limite de sua consciência, mas você não conseguiria recordar... nunca mais. O fato aqui era o “lembrar.” Eu sabia que havia uma existência que não era esta, e esse era o meu castigo. Ficar presa aqui sabendo de tudo que eu não poderia ter novamente, presa nessa escuridão implacável para sempre. Não, algo sobre isso não parecia certo, e não apenas do tipo gigantesco e cosmicamente injusto. Quando eu desapareci antes, perdi o controle e deixei a energia negativa me levar, eu não me lembrava de nada, não tinha nenhum tipo de memória. Eu não existia durante esse tempo. Eram apenas espaços em branco. Como uma noite em uma festa muito ruim. Isso, no entanto, era diferente. Eu estava “aqui”, onde quer que “aqui” fosse. Eu lutei para me concentrar, tentando ignorar a sensação de que meus pulmões estavam prestes a explodir. A última coisa da qual eu me lembrava era... Demorou um segundo para a memória aparecer e cair no lugar. Eu tinha estado no quarto de Lily no hospital, e peguei emprestada a sua mão para entregar a minha mensagem, mas algo deu errado. A força conectando minha mão com a dela cresceu ficando muito poderosa e começou a me puxar para baixo. E eu, infelizmente admito que me assustei, presa entre o poder desconhecido me puxando para baixo e meus próprios sentimentos de medo e raiva, que lentamente começaram a me consumir. Então se esta não era a inexistência final, o que parecia improvável já que eu ainda estava aqui e consciente, ao contrário dos meus outros episódios de inexistência temporária, isso me deixava apenas uma opção... OH, não. Não, não, não. Se eu pudesse ter sacudido minha cabeça violentamente em recusa o teria feito. Isso não podia ser. Seria apenas errado, em muitos níveis. Mas meu cérebro insistia que fazia sentido, pelo menos no geral. Eu senti a força da conexão da primeira vez em que usei a mão de Lily para tocar a
117 Joonie. O que quer que fosse não queria me deixar, e isso foi apenas por alguns segundos. Dessa vez foi mais forte e mais relutante em me deixar, adicione isso a total escuridão, ao silêncio em torno de mim, e a sensação de estar completamente fechada. Eu tinha que pelo menos considerar a possibilidade... Havia uma boa chance de eu ter sido puxada para dentro do corpo de Lily Turner. Engasguei só de pensar nisso. Eu, presa no corpo de outra pessoa. Como isso funcionava? Era mesmo possível? Não, tanto fazia, eu não me importava. Se era aqui que eu estava, precisava sair. Agora. Comecei a entrar em pânico, e a minha respiração ou tentativas de respirar aceleraram. Eu chicoteei com meus pés e mãos, sentindo o esforço dos meus candidatos a membros lutando contra a pressão do meu ambiente sem luz. A escuridão deu uma trégua, com meus movimentos frenéticos, mas não recuou. Cobriu meu nariz e boca me puxando para mais perto com a minha tentativa frenética de inalar. Era como tentar respirar com um daqueles grandes sacos de lixo preto bem apertados em meu rosto. Pare com isso, acalme-se! Obriguei-me a ficar parada, mesmo que a cada movimento em que não fazia nada me sentisse como se estivesse morrendo uma eternidade lentamente. Pense Alona. Você pode fazer isso, eu disse a mim mesma, tentado soar o mais calma e reconfortante possível. Você entrou aqui. Você pode sair. Exceto que, eu não tinha certeza de que fui eu que me coloquei aqui. Algo me puxou para baixo. Será que essa mesma coisa me deixaria ir? Tudo bem. Obriguei-me a acalmar e diminuir a minha respiração. Vamos pensar que isso é… Um raio invisível me bateu, rasgando o pouco de respiração que eu ganhei. Agonia se derramou em mim, com minhas costas arqueadas eu me torci contra a superfície de tudo que me segurava no lugar, minha boca aberta em um grito silencioso. Ok, ok! Sinto muito. Eu não tive a intenção de…
118 Um segundo raio, igualmente furtivo como o primeiro me atingiu, me paralisando em outra onda interminável de dor, estalando ao longo das terminações nervosas que não deveriam existir. Como algo poderia doer tanto quando eu não tinha nem aparência de corpo, muito menos um real? Estremeci. Incapaz de me mover para longe, incapaz de lutar, forçada a simplesmente esperar a próxima explosão inevitável rasgar o que sobrou de mim. Segundos - apesar de que poderiam ter sido horas, pelo que eu sabia passaram, um intervalo de tempo maior do que aquele entre o primeiro e o segundo raio, e nada aconteceu. Talvez... talvez fosse isso. Talvez tivesse sido apenas dois… Eu nem mesmo baixei minha guarda para começar este pensamento quando a luz voltou, ainda mais poderosa do que antes. Só que desta vez algo estava diferente. No silêncio que se seguiu - eu nem conseguia respirar através da dor, era pior do que aquela vez em que fiquei queimada do sol e fiz esfoliação muito cedo - eu escutei algo que não tinha escutado antes. Vozes. Elas
estavam
abafadas
além
do
reconhecimento
ou
mesmo
entendimento, mas eram vozes no entanto. Alguém estava lá fora. Várias pessoas, assim parecia. Mas assim que os efeitos dos raios diminuíram, o mesmo aconteceu com as vozes. Até que fui deixada na mesma escuridão silenciosa em que tinha acordado. Mas agora eu sabia. Estava pronta. Quando o quarto raio me atingiu, eu não lutei contra ele. Lutar não adiantava, eu o deixei rolar através de mim, fazendo o meu melhor para imaginá-lo passando pelo meu corpo, o que eu costumava ter e que eu ainda via na minha mente. E me concentrei nas vozes.
119 Meus primeiros indícios de que algo estava acontecendo foram sutis. A sombra preta ao meu redor mudou para um cinza mais claro, mais confuso. Meus batimentos cardíacos? Estavam muito altos. As vozes ficaram mais altas e mais distintas e eu as segui, com a intenção de fugir. Onde havia vozes havia outras pessoas. Pessoas que NÃO estavam presas em outros corpos. — Dê-me três cinquenta. — Espere! Temos um ritmo. — BP está oitenta por sessenta. — Coloque outros vinte cc's. As vozes falavam uma por cima da outra, o equipamento batia ruidosamente e uma mulher chorava em algum lugar próximo. — Ela está se estabilizando. Espere. Isso tudo soava muito familiar. Era conversa de hospital. A mesma coisa de quando eles estavam tentando me salvar, melhor, salvar meu corpo, naquele dia depois do acidente com o ônibus escolar. Só que naquela vez, não tinha nenhum “ela está se estabilizando,” nenhum ritmo, nenhum alívio nas vozes tensas, como houve agora. Eles estavam salvando minha vida. Não, não a minha, a da Lily? Eu precisava sair daqui agora. Se ela estivesse morrendo eu não queria ficar presa aqui. Eu abri meu caminho através das camadas restantes de cinza e apareci finalmente! - em uma piscina de luz muito brilhante. Joguei minha mão para cobrir meus olhos já fechados... ou melhor eu tentei. Eu senti um ou talvez dois dedos se contraírem, mas nenhum movimento real. Meu braço estava demasiado pesado... carnudo. Como se subitamente eu tivesse ganhado vários quilos. Você está apenas fraca, eu disse a mim mesma. Mas algo sobre isso não parecia inteiramente certo. Meu corpo todo doía, como se tivesse sido atada na mesma posição por dias. Como quando você acorda depois de dormir por doze horas sem se
120 mover. Meu lado esquerdo todo, mas especialmente minha perna esquerda parecia... fora de forma. Minha cabeça latejava com uma ferocidade que eu nunca tinha experimentado antes. Eu podia sentir mãos me cutucando e me apertando, removendo os equipamentos e checando meu pulso. Não, não, não. Isso não estava certo. Com meu coração batendo muito rápido - e um beep que parecia acompanhá-lo - eu forcei meus olhos a abrirem uma fenda e a permanecerem abertos, apesar da luz que os fazia lacrimejar ferozmente. Eu não conseguia movimentar minha cabeça, mas aquela pequena visão embaçada e dolorosa era o suficiente. Eu olhei para o lençol rosa de menininha com castelos e fadas pendurado na parede oposta a onde eu estava. Eu o tinha visto antes, mas nunca sobre essa perspetiva. Do ponto de vista de para quem ele foi pendurado. Braços que não eram meus - muito pálidos e sardentos - descansavam em meus lados. A elevação nos cobertores mais abaixo que tinham que ser pés e dedos, estava bem próxima, e ainda, quando eu me concentrei com intensidade, aquela que eu tinha reservado para sair daqui, esses dedos se moveram. Só um pouco, provavelmente não era percetível para qualquer outra pessoa. Mas era o suficiente, mais do que suficiente. Eu não escapei do corpo de Lily Turner. Não, ao invés disso eu, de alguma forma, acabei presa no banco do motorista. Ok, então a coisa importante era não entrar em pânico. Certo. Eu apenas estava presa dentro do corpo de outra pessoa! E nem mesmo em um que eu escolhi para mim mesma, só para constar. Fique calma. Meus olhos se fecharam novamente e eu permiti, a queimação de mantê-los abertos era demasiado para aguentar nesse momento. Uma coisa era pegar emprestada a mão dela. Eu estava consciente da minha mão dentro da dela, como em uma luva, se você me permite a metáfora grosseira (não pense muito sobre isso). Mas isso aqui era muito diferente, eu não tinha nenhuma noção de mim dentro dela. Estava tudo misturado e desfocado ao mesmo tempo. Nós juntas estávamos misturadas e turvas.
121 Isso não era bom. O monitor ao meu lado apitou um pouco mais alto e mais rápido como se tivesse sentido meu pânico. E aparentemente eu não era a única tendo sérios problemas para não pirar. Assim que alguém empurrou o carrinho de equipamentos e o doutor saiu com palavras murmuradas que eu não consegui ouvir, a cadeira ao meu lado rangeu alto quando alguém se sentou e começou a soluçar. A mãe da Lily. Tinha que ser. Seus dedos quentes se enrolaram em torno dos meus, me assustando, e ela apertou forte. — Vamos lá querida, você não pode desistir de mim agora. A angústia na voz dela me corroeu. Eu causei isso, mesmo sem ter certeza de como, minhas tentativas de usar sua filha causaram isso. Deus, eu era uma pessoa horrível. Não que fosse completamente minha culpa, Will também tinha sua parcela de culpa nisso tudo. Se ele tivesse feito o que deveria fazer ou seja, o que eu disse - nada disso teria acontecido! Eu queria puxar a minha mão para longe da Sra. Turner, mas apenas consegui mexer os dedos. Ela exalou uma respiração forte e eu podia sentir ela me encarando. — Você quer sua tábua de volta, querida? Merda. Esse monstro era todo meu... e do Will. Will. Ele podia ser capaz de consertar isso. Sim, ele provavelmente poderia chegar e me tirar ou melhor ainda, apenas me “chamar” de algum lugar mais longe, e eu teria que sair para atendê-lo. Era assim que funcionava, eu não poderia ignorar sua chamada. Ponto final. Nunca. E acredite em mim, eu tentei. Então... tudo o que eu precisava fazer era trazer Will aqui. Eu poderia fazer isso. Era possível que eu nem estivesse aqui pela manhã, e sim ao seu lado, como de costume. Possivelmente, mas eu não estava disposta a correr esse risco. Além disso, eu não queria gastar um segundo a mais do que o necessário nesse corpo, muito menos as horas que tinham de passar antes das 7:03. — Você pode ligar para o Will Killian, por favor? — Isso foi o que eu me imaginei dizendo em uma voz rangente com o desuso.
122 Ao invés disso, o que saiu foi... nada. Minha garganta funcionava, e minha língua batia e estalava no céu da boca, mas apenas um grunhido surgiu. Mas que diabos? Eu estava presa aqui sem qualquer controle ou voz? Um arrepio de medo correu sobre mim, e eu o senti de uma forma que não tinha sentido há algum tempo, com arrepios na barriga e tudo. Quase foi demasiado intenso. — Vou pegar a sua tábua, — ela deu um último aperto em meus dedos e se afastou. Eu olhei novamente, e desta vez a luz não era tão insuportável. Não me entenda errado, ainda era como olhar diretamente para o sol em termos de dor, mas estava começando a ajustar. Se eu evitasse olhar diretamente para cima - o que eu estava começando a suspeitar que eram luzes fluorescentes, aquelas de ambiente comum, muito brilhantes para meus olhos recém-sensibilizados - eu podia ver um pouco mais. Forçando meus olhos para a direita, eu vi a mãe de Lily se virar e ir de encontro com as pilhas de tábuas Ouija em minha mesa de cabeceira. Mas antes que ela pudesse pegar uma tábua e eu pudesse testar a minha provável e inexistente habilidade motora, passos soaram no corredor, fora de contexto, sem alarmes sendo soados ou o aviso de código azul. Eles pararam do lado de fora da minha porta. A mãe de Lily congelou, seus braços em torno de uma versão de plástico rosa da Tábua Ouija. Ela empurrou em torno de sua cadeira e eu lutei para seguir com a minha gama limitada de visão. — O que aconteceu? — Uma voz irregular masculina perguntou da porta. — Está tudo bem? Ela está... — O que você está fazendo aqui? — A Sra. Turner se levantou e virou para encará-lo bloqueando minha visão. — Eu não te chamei. — Uma longa pausa se seguiu. — Eu deixei uma nota aos enfermeiros para ligar no meu celular caso ela... — O que, morresse? — A Sra. Turner disse. — Desapontado, Jason?
123 — Isso não é justo! Ela é minha filha também. — Sério? — Ela se moveu em direção à porta, fora do meu campo de visão. — Então onde você esteve pela manhã? Quando ela estava presente e tentando se comunicar? Ele suspirou. — Corrine, ela não está... — Ele respirou profundamente. — Deixa para lá. O que aconteceu? A Sra. Turner fungou. — Seu coração parou. De repente. Sem aviso. — Ela parece diferente. — Outra pessoa disse, também perto da porta. Deus, por favor, poderia todo mundo entrar dentro do quarto para que eu pudesse ter alguma noção do que estava acontecendo? Essa nova voz era esganiçada do tipo que zune. Igual a dos meninos calouros que haviam tentado falar comigo. Irmão mais novo de Lily? — Ele não deveria estar aqui, — A Sra Turner sussurrou. — Ele não tem que ver isso. — É a irmã dele. — O Sr. Turner supostamente sussurrou de volta, daquele jeito que pais geralmente usam para discutir na frente dos seus filhos. Sério? Será que eles pensavam que nós éramos tão estúpidos? Claro que meus pais passaram de sussurros raivosos à gritaria, depois piorou e se tratavam com um silêncio tortuoso, há algum tempo atrás. Então nada disso era uma novidade para mim. Não parecia surpreender o irmão de Lily também. Ele os deixou rosnando e assobiando na porta e veio para perto de mim, sapatos rangendo no chão enquanto se aproximava. Ele entrou no meu campo de visão, mantendo uma distância prudente ao lado da minha cama, mas ainda assim perto o suficiente para me dar uma boa olhada. Deus, nerdeza devia ser de família. Ele devia ter doze ou talvez treze anos, alto e magro, com cabelos marrom claros que estavam de pé, no pior topete do mundo na parte de trás de sua cabeça, ele estava vestindo uma camiseta pólo (pontos para ele) que era cerca de três tamanhos maiores do que sua estrutura, em um tom espetacularmente amarelo brilhante. Sério? Será que
124 eles não tinham espelhos em casa? Pelo que eu estava vendo aqui, e das fotos que eu havia visto de Lily, você pensaria que não. Ele andou mais para frente, um pouco mais perto, franzindo a testa. Atrás dele, seus pais continuavam a discutir em tons vigorosos, mas abafados. — Corrine, você ouviu eles. Mesmo que ela acorde, o que nunca vai acontecer, ela não será a mesma pessoa. — Não aqui, não na frente dela. — A Sra. Turner retrucou. O irmão acenou sua mão à milímetros acima do meu rosto, liberando o cheiro de sabão antiséptico e garoto suado e eu pisquei em irritação. Ele inclinou a cabeça para o lado. — Vocês deveriam ver isso. Ela está abrindo e fechando os olhos. — É apenas um reflexo, Tyler. — A mãe de Lily parecia exausta. — Se lembra, eles explicaram isso. Ele me encarou com um careta. – Não. — ele disse. — Isso é diferente. — Ele pousou sua mão ao lado da minha cama e se inclinou para um olhar mais atento. Ter ele pendurado em cima do meu rosto era francamente mais do que um pouco chato, mais chato até do que o que eu passei com a Sra. Turner. Agora faça-os me dar aquela maldita tábua. Eu tentei dizer a ele com os meus olhos, seria um começo pelo menos. Mesmo se eu não conseguisse logo de cara, talvez eles percebessem que eu estava tentando. Mas seus pais o ignoraram. — Eu acho que é hora de levá-la para casa. — O Sr. Turner disse. Isso soava como um bom plano para mim. Se “Lily” fosse para casa Will teria que ir visitá-la. Com certeza. — Levá-la para casa para morrer, você quer dizer. — A Sra. Turner disse com desdém. Espere, o que? — Sim, para morrer. — Ele disse. — Ela não está melhorando. E você está... — Ele suspirou. — Isso não é bom para você também. — Não finja se importar comigo e com a Lily.
125 Eu gostaria de poder vê-la. A Sra. Turner parecia que estava a centímetros de bater ou dar um soco nele. Pelo que eu vi dela apostava que ela poderia, provavelmente, colocar um pouco de força por trás dele também. — Você está disposto a deixá-la escapar, assim não terá que viver com o seu erro. — Ela disse. — Isso não é... — Você deu à ela o carro! — Esse grito repentino da Sra. Turner era o famoso corta conversa. Até mesmo Tyler se virou para encarar seus pais. — Sim, — ele disse sem hesitação. — Eu dei a nossa filha de dezesseis anos, sóbria e responsável, as chaves do carro e a permissão para passar tempo com seus amigos. Você teria feito a mesma coisa, mas eu sou o único que irá carregar a culpa pelo resto da minha vida, de que eu poderia ter feito algo, — sua voz falhou — Poderia tê-la parado, mas eu não sabia. — O som de uma respiração quebrada e rouca reprimindo soluços veio de sua direção. Eu me virei para o som instintivamente e descobri que podia virar minha cabeça no travesseiro. Só um pouco, mas o suficiente para vê-los agora. O Sr. Turner era um cara grande com barba, mas sua voz era suave. E eu o perdoei por usar uma camisa jeans, ele claramente estava sofrendo. — Sinto muito. — A Sra. Turner disse cansada. — Eu não quis dizer aquilo. — Ela descansou a cabeça em seu ombro e ele permitiu, acariciando as costas dela com sua pata gigante de urso. — Se levarmos ela para casa, — o Sr. Turner continuou, se forçando a falar através das lágrimas. — Ela estará confortável, estará conosco. Sem testes, sem tubos de alimentação, sem médicos. A Sra. Turner se inclinou e balançou a cabeça. — Eu não sei... ela estava tentando falar comigo Jason, eu sei. — Então por que os testes não mostraram nenhuma melhora? Por que ela não se comunica quando pedimos? — Eu não sei mas... — Seus dedos se movem por conta própria - reações musculares. Se você prestar muita atenção achará sentido a partir do nada.
126 — Ela me disse para não ficar triste. — O quanto daquilo era realmente o que você queria ver? — Ele perguntou gentilmente. — Como você pode ter certeza de que ela estava querendo o “T” ao invés do “Y” ou “Q”? Peça desculpas, eu bati nessas letras com precisão. Bem o máximo de precisão que eu poderia ter usando a mão de outra pessoa. — Eu sei o que vi. — A Sra. Turner disse mas sua voz parecia ter perdido a convicção. — Nós não precisamos esquecer, nunca iremos. Mas ela irá nos deixar e precisamos fazer o mesmo. — ele disse calmamente. E me levar com ela? Acho que não. Eu ainda nem tinha certeza de como vim parar aqui em primeiro lugar. Se Lily morresse seu corpo me libertaria? Eu podia até pensar em uma coisa pior do que ficar presa em um corpo vivo que eu não queria, e isso era ficar presa em um morto. Estremeci por dentro. O irmão de Lily ainda estava na minha cama, sentado meio encostado na borda, como se tivesse esquecido que eu estava lá, no drama criado pelos seus pais. Não poderia culpá-lo. Eu não estava no modo tagarela ultimamente também. Dessa vez eu nem sequer tentei falar. Se eu queria impedi-los de deixar Lily morrer tempo suficiente para encontrar um jeito de sair, eu precisava avisá-los que estava aqui. Eu parecia estar com sorte já que a conversa diminuiu e a mão do irmão estava descansando em minha cama, a poucos centímetros da minha. Se eu apenas pudesse tocá-lo, isso poderia ser o suficiente para chamar sua atenção, e ele chamar a seus pais para verem. Eu me concentrei, todo meu esforço em minha mão direita. Eu só precisava mover os dedos um pouco mais para baixo e... Como de costume, quando eu realmente queria algo e me concentrava, eu conseguia. Sempre.
127 Olhei quando minha mão disparou para frente e travou em torno do pulso de Tyler. Tyler se levantou com um grito, mas a minha mão ainda estava presa ao seu pulso, então ele me arrastou com ele, até que eu estava em uma posição esquisita no lado em que ele esteve na cama. — Lily! — A Sra. Turner gritou. Ela empurrou o Sr. Turner para longe e correu para a cama. Empurrando o Tyler e quebrando o meu agora enfraquecido aperto no pulso do irmão. Ela pegou metade da parte superior do meu corpo em um abraço apertado. — Eu sabia que você iria voltar. Eu sabia que havia uma razão para manter a esperança. — Ela sussurrou em meu ouvido, suas lágrimas molhadas contra meu rosto. Merda. Isso ia ficar complicado.
128
A fumaça cresceu rapidamente. Engasgando com ela, eu me arrastei para fora do buraco, rezando para as tábuas podres manterem o meu peso. O ar embaixo do palco provavelmente era o mais limpo. Fumaça de fantasma parecia seguir as mesmas regras que a verdadeira. O único problema seria sobreviver à queda. Embora meus pulmões estivessem gritando para eu parar e respirar um pouco de ar limpo que nunca viria, eu me obriguei a rastejar através das tábuas ásperas e irregulares, permanecendo mais abaixo onde a fumaça era mais fina. Estilhaços das tábuas podres rasgaram minhas mãos, parecendo mais como mordidas de insetos, mas eu continuei. Uma luz vacilante, como a que me lembrava de folhas queimadas no outono, acendeu no teatro em torno de mim de uma maneira nada calmante ou nostálgica. Agora eu conseguia ver a área da platéia, as fileiras de assentos ainda em seus lugares e os buracos onde algumas já haviam sido removidas. Através da fumaça, eu tive um vislumbre de portas duplas, suas dobradiças flácidas no topo do corredor principal. Exatamente onde eu havia visto o flash de luz, para onde eu precisava ir. Provavelmente uma saída deste edifício. Atrás de mim um grito de agonia encheu o ar, tão alto e penetrante que eu congelei.
129 Virei minha cabeça para ver algo vagamente em forma de pessoa coberto em chamas e se contorcendo. Dois braços agitados no ar, duas pernas tropeçando para frente, tudo areolado no fogo amarelo e laranja. Um buraco negro escancarado no incêndio englobava a cabeça ou o que poderia ter sido a boca. Mexa-se Will, mexa-se! Eu me movi para a beira do palco. O homem em chamas me seguiu, iluminando a escuridão enquanto se movia. Seus gritos já não eram mais humanamente reconhecíveis. Se eu sobrevivesse a isso, nunca mais seria capaz de dormir novamente sem ouvir esses sons em minha cabeça. Frenético para escapar disso eu caí para fora da borda do palco, caindo duro e desajeitadamente nos escombros. Acima de mim o homem em chamas se aproximou, à centímetros de cair e pousar em cima de mim. Eu me empurrei para trás, mãos e pés procurando por uma saída. Meus dedos rasparam a borda lisa de algo que não parecia madeira podre, e sim um pedaço de gesso se desintegrando ou um metal enferrujado. O disruptor, ele chegou aqui antes de mim. Eu me atrapalhei, rezando para estar certo. Levou-me algumas tentativas para conseguir pegá-lo com os meus dedos trêmulos. Sim definitivamente o disruptor. Eu podia ver o brilho das bordas de metal em meio à luz de fogueira. O homem em chamas acima de mim vacilou, oscilando no limite. Fechando minhas mãos em torno do disruptor, virando o que eu esperava que fosse a extremidade aberta para longe de mim, comecei a apertar os botões em desespero. Mas nada aconteceu, e o homem em chamas se inclinou em direção ao palco, caindo em minha direção. Fechei meus olhos e me joguei para trás, sabendo que não seria o suficiente. A pilha de detritos estaria em chamas em questão de segundos, e eu junto com elas. Alona. O que aconteceria com ela se eu... Então por trás dos meus olhos fechados eu vi uma explosão de luz azul. Abri meus olhos, para encontrar um feixe de luz vindo de algum lugar atrás de
130 mim. Essa luz pegou o fantasma em chamas quase a ponto de cair, segurando-o no lugar, apenas à um metro acima de mim. O homem ainda estava coberto em chamas, mas elas não se moviam ou contorciam sobre o que restava de sua pele. Contra a minha vontade, minha mente viu feições do rosto mutilado do fantasma, o que provavelmente foi seu nariz, onde seus olhos haviam estado... E então ele desapareceu em um silencioso poof. Eu caí de costas no chão, ciente de repente de uma dor aguda do meu lado do corpo e um sentimento nefasto de calor. — Movam-se. — A voz de um homem gritou atrás de mim. Uma lufada de ar fresco me inundou. Figuras escuras, talvez uma meia dúzia ou algo assim, passaram por mim rapidamente, mais do que apenas sombras. Eu observei-as saltarem com facilidade para o palco, seus rostos desfigurados
e
esquisitos
nas
sombras
das
chamas
dançantes.
Eles
alternadamente, usaram extintores de incêndio e disruptores, revestindo tudo com explosões de espuma branca e azul. Os membros da Ordem! Finalmente. Aparentemente eu apenas precisava quase morrer para eles aparecerem. — Você está bem? — Alguém gritou. Eu sentei lentamente, olhei para trás e encontrei dois homens e uma mulher correndo em minha direção. O mais próximo era um homem de cabelo escuro com uma camisa de flanela, jeans e botas de trabalho surradas e ele me parecia um pouco familiar. A mulher atrás dele parecia estar em seus trinta anos e parecia uma boneca Barbie da vida real com cabelo loiro e tudo mais, e seus seios estavam em uma camisa apertada com estampa de leopardo. Eu não estava reclamando aqui. Ela se moveu para mais perto da melhor maneira possível, em uma saia que cortava seus passos pela metade. O último dos três era um homem mais velho com cabelo branco em um terno de três peças completo. Corpulento seria um adjetivo bondoso. Bolas de praia com roupa seria mais exato, eu até conseguia ouvir Alona dizendo.
131 Seria essa a toda poderosa Liderança, da qual Mina tanto falava? Eles não pareciam pessoas responsáveis por uma organização secreta, eles estavam mais para um grupo em happy hour no Buffalo Wild Wing11. O primeiro homem se ajoelhou ao meu lado e me estendeu algo. Uma máscara transparente ligada à uma garrafa de metal. — Coloque-a. — Ele acenou para ela. — Você precisa de ar. Eu podia ouvir o barulho do ar saindo da máscara de oxigênio, podia sentir o cheiro simplesmente pela ausência de fumaça, poeira e tudo mais. Eu peguei a máscara e segurei-a contra o meu rosto. — Por que você não usou o disruptor, garoto? É por isso que o temos. — O homem mais velho com o terno me perguntou ofegante. Ele se inclinou, mãos sobre os joelhos, tentando segurar o fôlego. — Você está bem Silas? — A mulher perguntou. Ela sorriu para mim, aparentemente imperturbável pelo caos ao seu redor, ocasionalmente batendo as cinzas de fumaça antes que elas alcançassem seu cabelo. Silas, o cara corpulento, assentiu com a cabeça. — Ele tentou usá-lo. — O primeiro homem respondeu por mim, severamente — Não sabia como. Os outros dois olharam para mim em confirmação, e eu assenti mais do que contente em salvar a fala para depois, concentrando-me em apenas respirar por agora. — Mina! — O homem com a camisa de flanela gritou em direção ao palco. Uh- Oh. Eu me virei a tempo de ver uma das figuras se virar e vir em direção a nós... lentamente. Ela tirou a máscara e colocou em cima de seu ombro quando se aproximou da beira do palco, olhando para todos nós desafiadoramente. — Eu não deixei claro qual era a sua missão para esta noite? — Seu tom de voz era frio o suficiente para enviar um calafrio através de mim. Mina trocou o peso de uma perna para outra, inquieta. — Sim. 11
Fast food/restaurante.
132 — Você lhe deu o disruptor, mas não o ensinou como usá-lo. — Ele não perguntou. — Ela retrucou. — E essa não era a primeira regra, nunca pegue uma arma que você não sabe como usar? É isso que você sempre diz. — Você nem me deu uma chance. — Eu argumentei, minha voz abafada pela máscara. — Isso não importa. — Ela me lançou um olhar amargo. — Eu sabia que eles iriam te salvar. Não poderiam arriscar perdê-lo. — Essa sua filha está fora de controle, John. — Silas disse com clara desaprovação. Filha? Bem isso explicava o porque de eu achá-lo tão familiar. Agora olhando para trás e para frente, olhando-os se enfrentar eu conseguia ver as semelhanças. O mesmo queixo teimoso, a forma como os dois estreitavam os ombros. — Mina espere por mim lá fora. Vamos discutir isso mais tarde. — John disse. Ela vacilou, como se algo tivesse passado pelo seu corpo, e então se virou e caminhou para o outro lado do palco. De repente eu me pus a pensar sobre o hematoma que notei em seu rosto antes. — Eu peço desculpas pela minha filha. Eu a enviei para falar com você porque pensei que seria um rosto familiar. — John disse. — Eu não sabia que as preocupações pessoais dela iriam interferir. — Ele fez uma careta. — Mais uma razão para o menino vir comigo para o treinamento. — Silas disse rapidamente. — Como é que é? — A Barbie disse colocando as mãos em seus quadris. — Ah não vamos começar Lucy. — Silas disse. — Eu estou apenas dizendo que... — Ele mora aqui. Ele deve, pela regulamentação, treinar com a Divisão Central. — John disse. — Ah sim, porque a sua filha obteve selvagemente sucesso sobre sua supervisão. — Silas retrucou.
133 Eu tirei a máscara — Ei. Eles continuaram brigando. — Ei, eu estou bem aqui. — Me forcei a levantar. Nada parecia estar quebrado, mas eu podia sentir um arranhão do meu lado do corpo, mesmo sem olhar. — Eu não vou a lugar algum com ninguém. Eu vim aqui essa noite em busca de respostas. Os três se viraram para olhar para mim, surpresos. Eu esperei pela explosão, para alguém me dar algum sermão ou dizer que era uma falta de respeito eu interrompê-los. Ao invés disso, Lucy começou a chorar. — Me desculpa, — ela disse, batendo as mãos em seu rosto como se estivesse se acalmando. — Você parece tanto com seu pai. Congelei. — Meu pai? Lucy não respondeu, apenas cambaleou pelo corredor em seus insanos sapatos de salto alto e me abraçou, um abraço bem quente e esquisito. — Nós não sabíamos de você, não até agora. — Ela disse em meu ouvido. — Danny te registrou como nulo há muito tempo atrás. Por que ele fez isso? Por quê? Então, meu pai não tinha apenas me mantido no escuro sobre a Ordem. Ele também tinha mantido a Ordem no escuro sobre mim. Quero dizer, era claro que eles sabiam da minha existência, mas não das minhas habilidades de falar com fantasmas. Por que ele esconderia isso deles? Por que ele me escondeu de pessoas que poderiam me ajudar? Nada disso fazia sentido. Eu me desvencilhei do abraço de Lucy cuidadosamente e recuei. — Acho que alguém precisa começar isso do início. Então, ao que parece, a Ordem dos Guardiões era dividida em três seções geograficamente: ocidental, central e oriental. Eles seguiam as linhas de fuso horário, com a parte ocidental e oriental dividindo os estados ao meio, no que teria sido a região da montanha. Um líder é nomeado para cada divisão em um processo eleitoral complicado que ainda não consegui entender, mesmo depois de Silas e Lucy tentarem me explicar cada um uma parte.
134 Cada líder é responsável por gerenciar os pedidos de ajuda e serviços que vierem através do número 800, marcando assim uma reunião para sua região, canalizando-os para os membros que trabalham para ele/ela. Ocasionalmente, a inter-regional requer cooperação, como no desenvolvimento de novas tecnologias, um local com uma assombração grave ou um teste de certificação de um novo membro. Mas para o que interessa: Silas cuida do Leste, Lucy do Oeste, e John de tudo ao meio. Mas a parte mais interessante e chocante em toda essa informação burocrática era simplesmente essa: O antecessor de John Blackwell, o líder da Divisão Central, era nada mais nada menos que meu pai Daniel Killian. — Eu não entendo. Ele nunca disse nada. — Sentei pesadamente em uma das cadeiras descartadas, ignorando a nuvem de poeira que resultou. Estávamos no Lobby agora, longe da fumaça das chamas, enquanto que os outros membros que John, Lucy e Silas trouxeram terminavam o trabalho. Eu vi muitas dessas caixinhas de metal pequenas entrando e ainda não tinha conseguido decidir como me sentia sobre isso. Os três deles trocaram olhares e então finalmente John falou: — Danny e eu treinamos juntos. Sempre foi difícil para ele porque a mãe dele, sua avó, não estava de acordo com sua decisão. — Decisão de servir aos vivos. — Lucy disse. — Ela não entendia a importância do que fazemos. Ela preferia brincar de ajudar os ecos. — John fez uma careta, enquanto andava para frente e para trás, na minha frente. Ajudar os ecos? Oh, os mortos, os fantasmas. Isso faria bastante sentido com a história que a minha mãe me contou, sobre a minha avó tentando passar uma mensagem da avó da minha mãe para ela. Um membro da Ordem provavelmente nunca teria feito isso. — Ele estava em conflito. Não foi culpa dele. — Lucy protestou. — Ele não podia ver o bem que estávamos fazendo, apenas que estávamos machucando os fantasmas e vice-versa. — Ela disse para mim.
135 — Ele começou a se afastar de suas responsabilidades há muito tempo atrás, logo depois que você nasceu, mas ele nunca renunciou completamente, não até cinco anos atrás. — John disse. — E o Clube do livro? — Eu perguntei. John me olhou assustado. — Você se lembra disso? — Não, foi algo que minha mãe me disse. Ele fez uma careta. — Danny não queria que ninguém soubesse o que estávamos fazendo nos finais de semana, quando trabalhávamos para a ordem, então ele começou a chamar de “Clube do livro”. Tornou-se uma piada interna, eu acho. — Tentamos convencê-lo a não sair. — Lucy disse, implorando-me para compreendê-la. — E então ele apenas... — Se matou. — Eu falei. John e Lucy vacilaram. — Tudo isso está no passado. As escolhas dele não precisam ser as suas. — Silas disse brevemente, colocando as mãos no bolso. — Nós realmente poderíamos usar alguém com as suas habilidades. Vimos você interagindo com eles. É uma jogada inteligente quando você está em desvantagem. — Lucy disse esperançosa. Ela virou a lanterna entre suas mãos, fazendo a luz girar loucamente no teto. — Vocês tiveram que me salvar no final. — Eu apontei. — Treinamento. — John disse com um aceno de desconsideração. — Sim, treinamento. — Silas disse com uma ênfase diferente. — E ele precisa. De muito. — Mas você tem a capacidade inerente de vê-los, de rastreá-los, nós percebemos isso, — Lucy disse ansiosamente. — Isso é raro, especialmente sem os anos de prática intensa. Você pode ser um membro por completo em questão de meses. O silêncio foi mantido por um longo momento, suas palavras esperançosas ainda pairando no ar.
136 — Então, o que isso significa? — Eu perguntei finalmente. — O que vocês querem de mim? — Minha cabeça estava girando, mas não tanto para me fazer perder a distinta corrente de tensão na sala. Havia um final aqui, mesmo sem eu saber exatamente do que. — Você passará por um treinamento formal, para ver se poderá oficialmente se tornar um de nós. — Silas disse, encolhendo os ombros. — Se? — Lucy disse zombando dele. — Se ele continuar na Divisão Central. — John disse. — Pode continuar vivendo em sua casa e... — Exceto que sua última estagiária não completou o treinamento e nem conseguiu o certificado. — Silas disse bruscamente. John se virou para encarálo. — Silas, não. — Lucy falou. — Não há sentido em negar, — Silas disse, puxando um lenço de dentro do seu casaco e enxugando seu rosto. — Além disso, minha divisão possui os recursos mais amplos para... — Assim você diz. — John retrucou. — Mas eu ainda tenho que... — Parem. Apenas parem. — Eu disse em voz alta. — Ontem, eu não sabia nada sobre isso ou conhecia qualquer um de vocês. E agora vocês querem que eu tome algum tipo de decisão? Eu nem mesmo sei o que estou escolhendo! — Você precisa de algum tempo para pensar. — Lucy disse imediatamente. — Não muito tempo. — Silas disse, colocando o lenço de volta em seu bolso com uma careta. — Isso tudo deve ser muito surpreendente, eu tenho certeza. — John disse. Não brinca. — Você tem o nosso número. — Ele continuou. — Nós esperamos que você entre em contato com um de nós em breve. — Ele deu uma encarada em Silas.
137 Acenei com a cabeça. Sim, sim. Imediatamente. Depois que tivesse processado tudo o que me tinham dito... e talvez, até depois de dar uma olhada nas caixas e papéis que meu pai deixou para trás no porão. Eu queria ter uma independência para verificar tudo isso. Tinha a nítida sensação que eles teriam me dito qualquer coisa, para eu me juntar à eles. Saí pela porta da frente do teatro, depois de Lucy demonstrar que elas não estavam tão fechadas como pareciam estar à primeira vista, entretanto eu tive que dar a volta no edifício para chegar até o meu carro. Mina estava encostada contra seu carro quando me aproximei do terreno baldio. — Eles ainda estão lutando por você? — Ela me perguntou quando passei por ela. Não falei nada. — Sim. — Ela disse, dando um sorriso apertado, o rosto pálido na luz de segurança brilhante do teatro. — Como eu pensei. Você é dinheiro vivo, meu amigo. Eu parei. — O que isso quer dizer? Ela se endireitou. — Quero dizer que, quanto melhor o talento de sua região, mais serviço você consegue, mais dinheiro você ganha. — Eles não me disseram nada sobre isso. — Claro que não. Isso é tudo sobre a missão, certo? — Ela revirou os olhos para a minha aparente estupidez. — Todos eles tem outro trabalho. Meu pai em construção. Lucy é uma agente imobiliária de Los Angeles. Silas faz algo em um banco. Quanto mais dinheiro eles conseguem fazer da Ordem, menos eles tem que tirar do próprio bolso pela causa. — Tem de haver outros que... — Nós somos uma raça em extinção. A cada geração a habilidade fica mais fraca. A Ordem em breve terá que relaxar seus padrões, ou mal existirá um membro depois que eles morrerem. — Ela disse inclinando a cabeça em direção ao teatro. — Exceto é claro, por você, o jovem prodígio que realmente
138 possui um talento real mesmo com apenas um dos pais talentoso. O resto de nós... — Ela encolheu os ombros. — Você faz parecer que é meio-cega. Você ainda pode ver e ouvir os ecos... — Esse termo não soava bem. Apenas o gosto em minha boca parecia... errado. — Sim, e se eles ficarem completamente parados, eu consigo pegá-los muito bem. — Ela disse ironicamente. — Pegá-los não é tudo. Você pode ajudá-los de outras maneiras. — Sendo amiga deles, como você? — Ela sorriu para mim. — Mais isso você não contou à eles contou, Superestrela? — Olhei para longe. — Você vai ter que escolher, sabe. A Ordem não endossa esse pensamento livre. Me aproximei dela e levantei seu queixo inclinando-o para a luz. O hematoma parecia pior ainda nessa luz com sombras. — E é esse o jeito deles mostrarem? Ela se afastou. — Exercícios de treinamento. — Certo. — Falei. — Seu pai? John parecia ser um cara legal o suficiente, exceto quando ele gritou com Mina. Então... parecia como se eu tivesse um vislumbre de alguém ou algo mais do que só a superfície. Eu tinha dificuldade em ver meu pai, que foi o pai mais descontraído que eu já conheci, sendo amigo dele. Ela olhou para mim. — Não, eu já disse. Treinamento. Eu não me movi rápido o suficiente. — Ela soltou um suspiro. — Nunca sou rápida o suficiente. — Você pode sair, — falei — Você é maior de dezoito anos e... — E vou para onde? Fazer o que? — Ela exigiu. — Essa é a minha vida inteira. — Não precisa ser. — Não, — ela balançou a cabeça — Tudo o que preciso fazer é passar nesse último teste e me tornar um membro por completo, daí então eu poderei ir a qualquer lugar, — ela disse — Eu posso ir morar com Lucy ou até mesmo
139 me mudar para o território de Silas. — Mina revirou os olhos, com um tom saudoso em sua voz. Ela pareceu ouvir a si mesma e então se endireitou, cruzando os braços em seu peito. — Você, se preocupe com seus próprios problemas amante de Caper. Deixe que eu cuido dos meus. — Ela me deu um sorriso feroz. — Afinal de contas, não sou eu que terei de contar tudo isso para minha majestade. Ela até que tinha razão.
140
Mesmo sendo meio da noite, o hospital ainda estava em alta velocidade, graças à recuperação milagrosa da menina em coma. Tomografias, ressonâncias magnéticas, raios-x e um neurologista sonolento em um dia terrível de bed head12 foram chamados para cá. De certa forma era quase pior do que os últimos meses sendo invisível. Todo mundo me perguntando como estava, se isso machucava, se eu conseguia mexer os dedos dos pés, me dizendo para não ter medo. Todo esse intenso cuidado e atenção focada em mim, quer dizer, não exatamente em mim... e eu não conseguindo escapar. Era quase uma tortura. Aqui está o que você quer, mas não pode ter. A Sra. Turner ficou comigo o tempo todo, em todos os testes e exames. Ela me seguia até onde podia e esperava na porta, como o mais persistente dos cães de guarda, até que os enfermeiros ou técnicos me trouxessem de volta para seu campo de visão. Era um tanto tranquilizador (eu não queria que alguém me esquecesse em algum canto quando eu não podia exatamente falar ou lembrálos) quanto um pouco triste. Era como se ela estivesse com medo que Lily fosse desaparecer... ou voltar a dormir. Ela estava certa é claro, mesmo sem saber ainda. Eu me sentia mal por isso. Ela me parecia uma mulher legal o suficiente, aparte pelo seu 12
Aqueles dias em que nosso cabelo está um desastre.
141 gosto horrível por blusas. Ela não merecia ter suas esperanças esmagadas - mas isso inevitavelmente ia acontecer, uma vez que eu saísse e Lily voltasse a ‘dormir’. E eu ia sair. Me recusava a contemplar qualquer outra possibilidade. Era tudo uma questão de como e quando. Durante uma das pausas dos testes, eu usei uma das várias tábuas Ouija e meticulosamente soletrei um pedido para a Sra. Turner ligar para o Will - ela estava com o celular de Lily carregado e esperando na mesa de cabeceira, apenas aguardando por esse dia... ou melhor o dia em que ela pensou que seria o retorno de sua filha. A ligação caiu na caixa postal, mas ela deixou uma mensagem, dizendo que Lily estava acordada e perguntando por ele. Isso seria o suficiente para desencadear uma ligação ou mais provavelmente uma visita frenética pra saber o que estava acontecendo, porque eu sabia que ele sabia que Lily se foi, muito além do ponto de acordar e perguntar por qualquer coisa. Mas não, ainda não. — Você está bem? — A Sra. Turner me perguntou quando voltamos para o meu quarto - não, o quarto de Lily - depois do último teste. Assenti, uma nova habilidade que eu podia adicionar ao meu repertório. O doutor Bed head (eu não conseguia me lembrar de seu nome) estava ‘maravilhado’ com o repentino progresso e melhora de Lily, progresso esse que não podia ser justificado com base nos testes iniciais. Medicamente havia tido um aumento incomum nas atividades cerebrais - algo que eu não queria contemplar - mas nada que permitiria Lily estar acordada e se movimentando desse jeito. Enquanto isso, a cada hora que passava eu ganhava mais e mais controle sobre o corpo dela, o que estava me assustando. Apresse-se Will, apresse-se. Eu repeti as palavras de novo e de novo em minha cabeça. Eu também estava começando a ficar um pouco mal-humorada. Estava cansada, minha cabeça doía - ou a da Lily doía e eu podia sentir - e tinha acabado de descobrir, em uma das muitas vezes em que fui virada de uma máquina para uma maca, para outra, que Lily podia ter uma cintura ainda
142 menor do que a minha; seus quadris e coxas eram o suficiente para me fazer sair correndo gritando. Se eu, você sabe, pudesse de fato correr para qualquer lugar. Lily era toda curvilínea e suave onde eu tinha os meus bem merecidos músculos. Deus, isso era horrível. Olha, eu entendo que ela esteve em coma por meses e meses. Então pode me chamar de superficial, me acusar de ser cruel com uma menina machucada, tanto faz, mas esse não era meu corpo. Eu não gostava dele e não o queria. Estar presa nisso era como se... bem, estivesse usando um dos meus piores medos do lado de fora. Não que alguém soubesse que eu estava aqui, mas eu sabia. — Vários testes, mas deve acabar logo. — A Sra. Turner continuou, apertando minha mão me tranquilizando enquanto ela retornava para seu assento ao meu lado da cama. Graças à Deus. Eu estava surpresa de não estarmos verde brilhante de toda a radiação, contraste, tinta, e tudo aquilo que tivemos de passar pelas últimas horas. — Você quer tirar uma soneca? — Ela me perguntou cautelosamente, claramente dividida entre o instinto maternal e seus próprios medos do que poderia acontecer se eu... voltasse a dormir. Honestamente, eu não tinha certeza se queria ou não descobrir. E se eu ficasse presa naquela escuridão novamente e não conseguisse achar meu caminho de volta? Isto não era o ideal mas era melhor do que aquilo. Balancei minha cabeça em resposta. Estava ficando cada vez mais fácil fazer isso. — Que tal um pouco de televisão? — Ela sugeriu, estendendo a mão para o controle remoto. Ela ligou a televisão e trocou de canal, para um que estava passando um comercial de espremedor. Relaxei um pouco em meus travesseiros. Era bom ter alguém cuidando de você ao invés de sempre ter de cuidar de alguém. Uma novidade para mim, realmente. Mesmo que a minha experiência com a família de Lily tenha sido apenas pelas últimas horas, eu já tinha visto o suficiente para ficar com um
143 pouquinho de inveja. Eles se importavam com ela. Eles não jogaram as coisas dela fora, mesmo quando parecia que ela não iria voltar. Cara, eles recriaram o quarto dela aqui no hospital. Não tinha nenhum saco de lixo com os pertences dela, nenhuma doação para o exército da salvação com suas memórias mais preciosas. E ela tinha estado nesse coma irreversível há MUITO mais tempo do que eu tinha estado morta. Se tivesse sido eu nesse coma ao invés de Lily... Você estaria aqui sozinha. Joguei esse pensamento para longe, mesmo sabendo que era verdade. Quando eu tinha catorze anos, caí da pirâmide13 no treino - estúpida da Ashleigh Hicks e seus joelhos bambos - e machuquei meu pulso. A treinadora me levou para o hospital para tirar um raio-x, mas ela não podia ficar lá comigo. Eles tentaram ligar para os meus pais, mas ninguém atendeu na casa da minha mãe (chocante) e meu pai estava na Alemanha (ou possivelmente nos dias em que passava com sua então amante agora esposa, no centro da cidade. Sem atender nenhuma ligação, mantendo a ilusão de indisponibilidade internacional). Eu poderia ter ligado para meus amigos ou quem quer que eu estivesse namorando naquela época - nem me lembro quem era - mas quem quer colocar sua família problemática em exposição desse jeito? Oi, meus pais são tão problemáticos que nem ao menos se importam de eu estar em um hospital? Eu mais provavelmente os teria convidado a ir a minha casa assistir minha mãe tropeçando em seu roupão de banho. Então eu fui para casa de táxi com o braço na tipóia. Meu pai só descobriu isso quando o hospital enviou-lhe a conta, e aí sim ele ficou furioso. Aparentemente eu tinha usado o seguro do cartão errado. Isso nunca teria acontecido com Lily. Tanto faz, isso não importava. Nada disso importava agora. Eu só precisava me concentrar em sair daqui.
13
Movimento comum das líderes de torcida.
144 Por que o Will ainda não tinha retornado a ligação? E se o motivo era por ele estar com Mina, a Sra. Frizztástica14. Só a ideia me deixou doente. Mas mesmo que ele estivesse, de jeito nenhum ele ignoraria uma ligação sobre a Lily. Ele sabia melhor do que isso. Então qual era o problema. Se ela o colocou em algum tipo de encrenca, eu ia ter que me envolver e eu a mataria. Aí sim nós iriamos ver como ela se sentia sendo encaixotada, não era mesmo? A Sra. Turner trocou de canal, para um programa matutino de notícias, e a cintilação e o brilho feriram os meus olhos. A primeira vez que eu tinha visto Lily ela estava olhando fixamente para a televisão, as reflexões da imagem dançando em seus olhos vidrados. Será que ela ainda se parecia assim, mesmo comigo aqui? Estremeci. Talvez... mas talvez não. Tyler notou alguma diferença em Lily. Eu me perguntava o que o tinha alertado. Não poderia perguntar - nem mesmo com o intensivo e laborioso método de soletrar através do tabuleiro Ouija. (Isso estava ficando seriamente e rapidamente ultrapassado.) O Sr. Turner saiu para levar o Tyler a casa - que aparentemente estava mais do que abalado - há algumas horas atrás. Eu assustei Tyler, claramente, mas não tive intenção. E então novamente funcionou, e os Turner não estavam mais falando sobre levar Lily para casa para morrer... portanto ia considerar isso como uma vitória. Ela tinha que permanecer viva por tempo suficiente para o Will me tirar daqui, bem no mínimo. Eu tentei me mover para aliviar a dor e a pressão acima e abaixo do meu lado esquerdo, mas não conseguia me mover muito ainda. E realmente não queria ficar por aqui tempo suficiente para atingir esse novo nível de habilidade. E ainda assim o celular sobre a mesa de cabeceira, teimosamente se recusava a tocar. A Sra. Turner me pegou olhando para o telefone. — Ele não retornou a ligação, eu juro. — ela disse. — Acabei de verificar. Quando? Eu não havia visto ela fazer isso.
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Uma piada sobre o cabelo de Mina que é frisado com a palavra fantástica.
145 — Você está brava comigo, — ela disse com um tom de admiração em sua voz. Sim, bem, ela deveria se acostumar com isso. Quão difícil seria para ela verificar novamente e me mostrar? Quero dizer, sério. Meus dedos se contraíram com o desejo de pegar o telefone e ver por mim mesma. — Eu sei o que você está pensando, — ela disse, achando graça. — Eu ainda sou sua mãe. Uh. Não. — Vá em frente. Se você conseguir pegá-lo, pode ficar com ele. — Ela cutucou o telefone, fazendo-o ficar apenas à alguns centímetros de mim, mas ainda assim estava muito longe de onde o pulso de Tyler esteve. Depois de uma última olhada para ela, o que pareceu surtir algum efeito em sua seriedade, eu convoquei todas as minhas forças e fiz uma garra cambaleando dos lados para pegá-lo. O telefone escorregou para longe dos meus dedos e mergulhou no chão. A Sra. Turner o pegou antes que atingisse o chão. Ela o colocou novamente na mesa e depois me pegou pelos ombros na cama até que eu estivesse de sentada novamente. — Tente outra vez. Por quê ela simplesmente não me dava? Por quê? Isso era algum tipo de jogo para ela? Fiz uma careta, o que não pareceu incomodá-la. — Está tudo bem. — Ela falou. — Você não precisa tentar, se for muito difícil. Certo. Eu queria aquele telefone, e ia pegá-lo. Ponto final. Respirei fundo, focada no telefone tentando controlar minha queda/deslize em direção à ele. Desta vez eu consegui travar meus dedos nele antes que caísse novamente. Eu gritei em frustração no meu interior, mas nada mais do que um bufo irritado escapou dos meus lábios. A Sra. Turner colocou o telefone no lugar e me ajeitou novamente na cama sem dizer uma palavra. Ocorreu-me então que ela realmente estava jogando algum tipo de jogo; ela estava usando algo que eu queria para me empurrar para o progresso.
146 Como era maravilhoso para ela e Lily. Mas só ME de o maldito telefone. Eu não queria fazer nenhum progresso. Eu só queria o Will e sair daqui! Encarei a Sra. Turner, fazendo o meu melhor para transmitir este sentimento sem palavras. Uma batida na porta assustou nós duas. Minha cabeça girou, o tempo de resposta quase tão rápido como se tivesse realmente sido eu ao invés de Lily, ao invés de Alona na casca de Lily. Um padre estava na porta, sua mão ainda estava levantada em posição de bater. — Sinto muito, eu não queria perturbá-las. — Claro que não, Padre. Minha filha e eu estávamos apenas tendo um desentendimento. — Ela sorriu para mim com carinho, o que me fez querer chutá-la. Eu não seria tão facilmente descartada. — Eu sou o Padre Hayes daqui do St. Catherine. Estava visitando um outro paciente aqui no corredor, e fiquei sabendo da recuperação milagrosa da sua filha. Eu tive que vim ver por mim mesmo. — Ele nos deu um sorriso trêmulo e incerto. Hum, ok Padre. Você já teve sua visão de milagre em mim. Agora vá embora para que possamos tratar do assunto em questão. Mas, oh não... não poderia ser tão fácil. — Entre. — A Sra. Turner acenou para ele se aproximar. — Eu sou Corrine Turner e essa é a minha filha Lily. — Ele entrou no quarto e acenou para nós. Seu olhar encontrou o meu por um segundo antes de ele se virar rapidamente e focar na Sra. Turner. — É verdade que ela esteve em coma por quase um ano? — Ele perguntou, seu pomo de adão balançando acima de sua gola como se fosse uma criatura independente tentando escapar de sua garganta. O que estava fazendo ele ficar tão nervoso? Além disso, Olá, eu estava aqui e podia te ouvir. — Desde setembro do ano passado, — ela disse.
147 — Agora ela está acordada. Assim, do nada? — ele perguntou, parecendo mais preocupado do que radiante. A Sra. Turner não pareceu notar. — Sim. — ela disse radiante. — E eles não tem idéia do porquê. Os testes não mostraram nada ainda, mas como você sabe, algumas coisas ainda estão além da compreensão da ciência. — Deus realmente trabalha de maneiras misteriosas, — disse ele com um sorriso apertado. Eu realmente não estava gostando da vibe que ele estava emanando. — Posso perguntar, você notou alguma mudança na personalidade dela ou algum comportamento incomum? — Ele disse rapidamente. Mas que diabos? Eu o encarei mais uma vez, seu olhar encontrou o meu e em seguida se afastou, como se estivesse com medo de olhar para mim por muito tempo. Será que ele... realmente suspeitava que algo estava acontecendo? Eu supostamente, em uma forma técnica, poderia ser vista como uma forma de possessão, mesmo sendo longe do que eu pretendia. E padres e possessões, bem, eu não precisava de Will e seu banco sem fundo de curiosidades sobre filmes para saber que havia uma estória. Para dizer o mínimo. — Minha filha está acordada apenas algumas horas depois de sair do que foi chamado de coma irreversível, eu diria que tudo isso tem sido incomum, não é? — É claro, — Ele balançou a cabeça, frustrado. — Há algo em especial que você está querendo saber, Padre Hayes? — Pela primeira vez desde o início da conversa, a Sra. Turner tinha um tom de suspeita em sua voz. — Não, não. — Ele passou a mão pelo seu cabelo cor de areia, sem saber o que fazer, em uma tentativa tardia de alisá-lo para baixo. — Só estou tentando encontrar pedaços de esperança em sua estória para compartilhar com outros pacientes que possam precisar. Ela assentiu com a cabeça lentamente, não convencida. — É difícil saber o que tem sido sua experiência, porque ela não começou a falar ainda...
148 E se eu estivesse falando estaria encontrando muitas maneiras de dizer à ele “Vá embora”. As palavras escaparam dos meus lábios, chocando mais a mim do que ninguém. Eu estava pensando tanto, concentrada o suficiente para realmente dar-lhes voz. A voz da Lily era de fato mais baixa e mais rouca do que a minha. — Lily! — A Sra. Turner parecia ao mesmo tempo emocionada e horrorizada. — Está tudo bem, — ele disse com uma risada que soou mais como um latido de cachorro nervoso, do que qualquer coisa relacionada com humor verdadeiro. — Para alguém que passou por tanto quanto sua filha, eu entendo querer ser deixado sozinho. Ela merece um pouco de paz e somos nós que temos de garantir que ela a tenha, — ele disse, seu olhar me penetrando com um aviso. Estaria ele tentando me ameaçar com um exorcismo? Ha, manda vê! Exceto que... espera, espera, o que acontecia com espíritos exorcizados? Se ele estivesse apenas tentando me tirar de Lily tudo bem, mas e se a intenção dele fosse se livrar de mim, enviando-me para o esquecimento? Não, obrigada. — Hum, sim. — A Sra. Turner disse, soando confusa agora. — Falando nisso eu acho que é melhor ela se concentrar em descansar agora… Em outras palavras, vaza cara. Ele acenou com a cabeça, entendendo a mensagem. Finalmente. — Uma benção rápida? — ele perguntou, mas já estava de pé na minha frente antes que pudéssemos responder. Seu polegar fresco e pegajoso, traçou uma cruz levemente em minha testa enquanto murmurava palavras de benção. Ele puxou sua mão o mais rápido possível assim que terminou, como se estivesse esperando eu queimar em chamas. E francamente, eu não tinha tanta certeza de que ele estava errado; exceto que eu tinha estado na luz e então fui mandada de volta para cá e não eliminada da existência. Então eu não era tão ruim, certo? De qualquer forma nada aconteceu, o que pareceu deixá-lo confuso. Era provavelmente uma coisa boa eu não ter o controle completo do corpo de Lily,
149 porque se eu tivesse eu teria tentado me lançar na cama só um pouquinho, o suficiente para assusta-lo. A Sra. Turner se levantou. — Muito obrigada, Padre. Nós certamente apreciamos o seu tempo. Ele acenou com a cabeça novamente e lentamente caminhou em direção à porta até que estava longe de mim. E então ele se virou e saiu do quarto de forma abrupta e sem outra palavra. Ela suspirou e afundou em sua cadeira. — Algumas vezes eu não sei como eles acham essas pessoas que trabalham para a igreja. Eu esperei até ter certeza que o Padre realmente se tinha ido. — Ligue para a casa do Will. — Eu falei, enunciando cuidadosamente. A Sra. Turner inclinou a cabeça para mim. — Você está uma tagarela agora Lily. — Liga. — Lily, é quatro da manhã, — ela disse com exasperação. — Eu não vou ligar para casa dele agora e acordar todo mundo. — Exceto que eu sabia que Julia trabalhava no turno da madrugada no restaurante quase todos os dias e provavelmente já estava acordada. — Por favor. Preciso de Will. Ela suavizou. — Eu ligarei quando for razoável, depois das oito no máximo. — Ela estendeu e apertou a minha mão com um sorriso tranquilizador. — Mas querida, o que você precisa dizer à ele, eu tenho certeza que ele já sabe. Eu seriamente duvidava disso.
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— Onde ela está? — Uma alta voz feminina perguntou e, por um segundo, pensei que Alona, de alguma maneira, já tinha descoberto sobre Mina e estava preparando fazer algum dano para um ou ambos de nós. Mas quando forcei meus olhos sonolentos a se abrirem, não era Alona, mas Liesel de pé no meu quarto em frente a minha porta. Minha porta fechada. Você pensaria que ela teria levado isso como uma sugestão, mas aprendi há muito tempo que fantasmas não são muito sutis. Gemi. Era cedo - o céu fora da minha janela era ainda um amanhecer cinzento - e duas noites de pouco ou nenhum sono estavam começando a aparecer em mim e em minha paciência. — O que você quer, Liesel? Ela cruzou os braços sobre o peito e foi até o pé de minha cama, seu vestido sussurrando alto. — Ela nem falou com você sobre nós, não é? Lutei para manter o foco e me sentei. — Quem? — Alona! Algo sobre isso estava tocando um sino, vagamente. Alona tinha mencionado alguma coisa sobre Liesel ontem de manhã, mas nada específico. Balancei minha cabeça. — Eu sabia, — ela cuspiu. — Ela está sempre me sabotando. Aposto que ela nem te contou sobre Claire e Todd.
151 Todd? Quem era Todd? Não, eu não me importava. Eu ainda não estava acordado o suficiente para me importar. Esfreguei as mãos sobre meu rosto. — Onde está Eric? — perguntei, percebendo, de repente, que ele não estava com ela. Ninguém nunca me culpou por ser o meu melhor na manhã. Ela desviou o olhar com uma fungada. — Ele não podia ser incomodado. Não sei por que; é só nossa vida futura inteira em jogo. Ou talvez ele soubesse algo que ela não sabia, o que eu esperava que fosse o caso. Eric e eu tivemos algumas conversas nas últimas semanas geralmente enquanto Liesel e Alona estavam se criticando - o que me levou a acreditar que a Sra. Pederson e sua vida de amor (ou de falta dele) talvez não fosse o maior obstáculo de Liesel e Eric. — Você precisa conversar com Eric, — disse cansado, — e você precisa não estar aqui quando Alona aparecer. — Porque eu realmente não queria testemunhar as inevitáveis consequências quando Alona descobrisse que Liesel veio aqui sem permissão. Olhei para o meu relógio para ver quanto tempo passou e me estarreci. Era 7:58 da manhã. Senti uma onda de susto e me inclinei para mais perto para me certificar de que estava lendo corretamente. Eu estava. Outra olhada para a janela revelou chuva sobre o vidro. O que eu assumira como cedo da manhã era, na verdade, apenas o início de um dia nublado. — Qual o seu problema? — Liesel perguntou com grande desdém. — Você viu Alona? — perguntei. — Ela esteve aqui? — Nesta manhã? — ela perguntou. Confirmei com um aceno, sentindo como se minha cabeça pudesse explodir com minha ansiedade em perguntar e ter sua resposta. — Entrei há poucos minutos. Ninguém estava aqui exceto você, — ela disse, encarando-me como se eu estivesse louco. Mas eu não estava. Alona estava atrasada, cinquenta e cinco minutos para ser exato, e isso nunca aconteceu. Não podia. Ela aparecia aqui toda manhã
152 precisamente às 7:03, a hora de sua morte. Era uma função do nosso vínculo de conversador-de-fantasmas/guia espiritual. Algo estava errado. Lutando contra um sentimento de pânico, levanteime, tirei minhas calças jeans do chão, vesti-as e comecei a arrancar as roupas sujas do chão, procurando pelos meus sapatos. Eles pareciam ter desaparecido em uma pilha ou em outra ontem a noite quando os joguei. — O que está acontecendo? — Liesel perguntou. — Alona sumiu. — Eu disse severamente. Ela saiu daqui ontem toda cheia de fúria e com algum tipo de plano de vingança (contra mim, claro). Algo deve ter acontecido. Eu a imaginava procurando por Mina para lhe contar exatamente o que achava do cabelo de Mina, entre outras coisas. Ah, Deus. Isso provavelmente a deixaria encaixotada, com certeza. Mas Mina teria mencionado algo como isso noite passada, não teria? Ou talvez não considerando tudo o que aconteceu. Eu podia ver facilmente Mina esperando deixar cair aquele pequeno pedaço de informação, exatamente no momento em que aquilo a beneficiaria mais. — Como você sabe que ela apenas não desistiu? — Liesel perguntou. Parei minha frenética busca pelos calçados e olhei para ela. — O que você quer dizer? Ela encolheu os ombros. — Alona aparece aqui toda manhã porque ela é sua guia espiritual, certo? — Sim, e então? — Então, talvez ela não esteja aqui porque ela desistiu. — Liesel soou auto-satisfeita um pouco demais. — E por que ela faria isso? — Perguntei sob os dentes cerrados. — Porque eu disse a ela que um dia você a trocaria por alguém que estivesse viva, que ela era apenas conveniente, por ora. — Liesel disse. — Que droga, Liesel! — Eu não podia acreditar naquilo. — O quê? Não é verdade? — Ela me olhou com astúcia. — Você sabe que é. Você não vai passar o resto de sua vida...
153 — Minha vida não é da sua conta, — falei rispidamente. — Quando isso aconteceu? — Duas noites atrás. Não é a toa que ela reagira tão mal ontem de manhã, com Liesel enchendo sua cabeça com toda essa porcaria. Não que Alona alguma vez teria ficado feliz que eu tivesse saído com Mina ou que eu estivesse recusando seu pedido sobre seus pais, mas ela não seria tão apoplética sobre isso. — Isso é culpa sua, — eu disse a Liesel, apontando a única Chuck que tinha conseguido encontrar para ela. — Minha? — ela perguntou, apoiando uma mão em seu peito, ofendida. — O que eu fiz? Uma batida soou na porta. — Will, está tudo bem aí dentro? — Minha mãe perguntou. — Eu ouvi um grito. Fiz uma careta. Claro, a única manhã em que ela não tinha o turno matutino no restaurante. — Estou bem. Já vou sair! — gritei e então me aproximei de Liesel. — Você não viu Alona desde então? — perguntei numa voz calma. — Eu estaria aqui procurando por ela, se tivesse? — perguntou, em um tom bastante arrogante. Ótimo. Que seja. Sentei para colocar meu sapato, e em virtude de pura sorte, encontrei o que estava faltando ao sentar-me nele. Excelente. Eu precisava encontrar Alona para me certificar de que ela estava bem, pelo menos. Se, depois disso, ela ainda não quisesse ser minha guia espiritual... bem, então, eu teria que lidar com isso quando a hora chegasse. Somente a idéia, porém, de ela não estar em minha vida era difícil de imaginar e eu não queria imaginar. Eu sentiria sua falta. Pergunte-me se eu já pensara que seria possível um ano atrás. Inferno, dois meses atrás. O problema era que eu não tinha idéia de onde começar a procurá-la. Em teoria, se ela desistisse de ser minha guia espiritual - poderia fazê-lo sem eu ter consciência disso? - então provavelmente ela acordaria novamente na Rua
154 Henderson onde ela morrera. Mas isso fora a quase uma hora atrás. Ela podia estar em qualquer lugar, agora. Minha mãe bateu na porta novamente. — Mãe, eu disse que estou bem. — disse, lutando para manter a irritação fora da minha voz. — Não é isso, — ela disse, abrindo a porta. Ela estava pálida, ali de pé em um roupão xadrez de flanela esfarrapado com o telefone de casa apertado contra o peito. Eu nem ao menos o ouvira tocar. — Está tudo bem? — perguntei, com a súbita certeza de que não estava. Ela assentiu com a cabeça, seus olhos brilhantes com as lágrimas. — É o hospital. St. Catherine. Ah. Ah, não. Lily. Parecia que todo o ar foi eliminado de mim de repente, mesmo que eu estivesse esperando por essa ligação por meses, agora. Balancei a cabeça entorpecidamente. — Quando ela morreu? Ontem a noite ou... — Não, não, querido. — Minha mãe entrou no quarto e se ajoelhou para me dar um abraço com um braço só. — Não é isso. Ela está acordada! Lily está acordada. Eu a encarei. — Lily Turner? Minha mãe riu. As lágrimas eram claramente de felicidade. — É claro. Quantas Lilys você conhece? — Ela segurou o telefone para mim. — A mãe dela está no telefone. Ela diz que Lily tem perguntado por você. Mas isso não era possível. Eu procurara em todo lugar pelo espírito dela depois daquele acidente. Lily se foi. Não morreu, mas certamente não estava viva e definitivamente nada capaz de acordar e perguntar por mim. E ainda assim, eu duvidava que sua mãe, a Sra. Turner, inventaria algo assim em um milhão de anos. Então... aonde aquilo levava? Eu não tinha ideia. Com a minha cabeça zonza, fiquei de pé e peguei o telefone. — Você. — Apontei para Liesel. — Não vá a nenhum lugar. — Ela ajudou a causar esse problema com Alona; ela me ajudaria a resolvê-lo, por Deus.
155 Minha mãe ergueu as sobrancelhas para mim, mas não disse nada. Liesel se atirou ao chão, de mau humor, nos pés de minha cama, — Que seja. É melhor você estar pronto para ajudar Eric e a mim depois disso. Essa coisa com o Todd não vai durar para sempre. Todd de novo, quem diabos ele era? Ignorei-a e pus o telefone na minha orelha. — Alô? — Will, é a Sra. Turner. Lily gostaria de... Ao fundo, eu podia ouvir um barulho, uma voz familiar, que eu não ouvira há quase um ano e pensei que nunca ouviria novamente, dizendo algo em um tom exigente. Isso deu um arrepio a minha pele. Se eu estava enganado sobre o espírito de Lily ter ido, Deus, de que mais eu estava enganado? Eu tinha tanta certeza... — Em um minuto, Lily, — a Sra. Turner disse, soando um pouco abafada. — Ela ainda é um pouco difícil de entender às vezes. — A Sra. Turner disse para mim. — Mas estamos trabalhando nisso. Ela tem perguntado por você desde o momento em que acordou. Eu a fiz esperar até que fosse uma hora decente, e como você pode ouvir, ela não está feliz comigo. — E ainda assim a alegria na voz da Sra. Turner, porque sua filha estava acordada e irritada com ela, era evidente. — Eu vou passar para ela, agora. — Ela disse. O telefone sacudiu um pouco e ouvi a Sra. Turner dizer, — Aqui está, querida, — ao longe. — Will? Mesmo que eu estivesse esperando por isso, ouvir Lily dizer meu nome sugou o ar para fora dos meus pulmões e fez meus olhos arderem com lágrimas. — Sim, — Consegui dizer. — Preciso ver você. — Ela estava enunciando cuidadosamente, mas para além disso ela parecia quase, bem, normal. — Você pode vir ao St. Catherine, por favor? Agora?
156 Ouvi a mãe dela repreendendo-a ao fundo pelo pedido. Mas Lily persistiu. — Agora? — Estou indo. — disse. Lily Turner se mudara para Groundsboro há um ano e meio atrás vinda de uma pequena cidade em Indiana. Com suas roupas conservadoras e sotaque pesado, quase do sul, ela não se enturmou em nossa escola, o que foi bom, já que nem eu me enturmei. A maioria das pessoas achava que eu era gótico. Na verdade, eu estava apenas tentando ser o mais invisível possível. Roupas escuras, fones de ouvido o tempo todo, quieto na sala de aula - era o meu jeito de desaparecer. Eu estava tentando evitar atrair a atenção de todos os fantasmas perambulando pelos corredores, mas funcionou muito bem também quanto a repelir a maioria dos vivos. Eu gostava de Lily, apesar de tudo. Ela era diferente. Eu ia para a escola com as mesmas pessoas desde o jardim de infância e a maior parte do tempo era como se todos eles tivessem tido uma lavagem cerebral pelo mesmo líder de culto. Qualquer faísca de personalidade verdadeira foi morta pela necessidade de conformidade com todas as panelinhas individuais. Os jogadores usavam suas jaquetas com letras em determinados dias. Os caras da banda criaram umas camisetas patetas com dizeres que ninguém mais entendia. A turma de Alona subiu para o topo empurrando todo mundo para baixo. Mas Lily era uma intrusa. Ela fazia perguntas inteligentes e realmente ouvia as respostas, dando opiniões que talvez não fossem as “certas”. Ela não conhecia as certas, não para a nossa escola. Não no começo, pelo menos. Ela era bonita, também, embora não da mesma maneira fantasiosa que Alona era. Ela era mais como a garota que você gostaria como sua parceira de laboratório e como seu par no Baile de Boas Vindas, mesmo se tudo que vocês fossem fazer era sentar a uma mesa no fundo e assistir com diversão as garotas populares chorarem e se enraivecerem pela perda na corrida pela coroa de rainha. Em um ponto, eu pensara que pudesse existir algo entre nós, uma chance de sermos mais que amigos.
157 No final, porém, as coisas mudaram, como elas sempre fazem. Lily nutrira uma obsessão secreta com a primeira fila (também conhecidas por ‘pessoas populares’) - vendo-os como realeza de Hollywood. No início, pensei que fosse só porque ela nunca vira nada parecido antes, exceto na televisão e filmes. Seu ensino médio consistira em cem pessoas no total e eles se conheciam desde o nascimento. Então, muitos dos mistérios e intrigas se foram. Mas não aqui na Escola de Groundsboro: aqui nós tínhamos mistérios, intrigas e drama ah, o drama sem fim - de sobra. Era como assistir uma novela se passar diante de seus olhos... ou viver numa. Sem que eu soubesse, nossa amiga mútua Joonie, uma dos outros únicos amigos de Lily, se apaixonara pela Lily desde o primeiro dia. Ela teve uma chance numa tarde e confessou seus sentimentos para Lily com um beijo. Embora Lily tentasse lidar com isso da maneira correta e desapontasse Joonie gentilmente, a vida de Joonie em sua casa (nada era bom o suficiente para seu pai, um pastor controlador e conservador) era uma merda tão grande que ela meio que enlouqueceu, com medo de que seu pai descobrisse o que acontecera. Acusações e ameaças eram feitas e as duas pararam de se falar sem antes me contar o que acontecera. Lily nos deixou e começou a andar ao redor do pessoal popular, procurando pedaços da sua relutante aceitação. E então Ben Rogers, um canalha extraordinário, arrancou-a da obscuridade. Ele “namorou” com ela mais ou menos por um mês e então ele a trocou em público numa festa da primeira fila. Lily ficara devastada, percebendo finalmente que Ben e seu pessoal não eram tão maravilhosos como todos pareciam pensar. Ela deixou a festa em lágrimas e tentou ligar para Joonie e para mim em seu caminho de casa. Então ela perdeu uma curva em sua direção e se chocou contra uma árvore. Ela nunca acordara desde aquela noite. Até hoje, aparentemente. No caminho para o hospital, coloquei o Dodge no limite de velocidade, arriscando uma multa. Eu não conseguia tirar o medo irracional que de alguma
158 maneira ela ficaria inconsciente novamente se eu levasse muito tempo para chegar. Acalme-se. Se ela está acordada agora, ela estará acordada em quinze minutos. Exceto, talvez não. Depois do acidente de Lily, eu fizera uma tonelada de leituras sobre comas e pessoas que saem deles (ou não). Às vezes, a pessoa acordava por um dia ou mesmo poucos minutos, aparentemente coerente, apenas para cair de volta naquele sono nada natural... ou pior ainda, para morrer. Eu lera que isso tinha acontecido - a pessoa acordando apenas para morrer pouco depois - pelo menos umas duas vezes. Os artigos interpretavam a ocorrência cada vez como um presente de Deus para aquela pessoa ter uma chance de dizer adeus. Eu esperava demais que isso não fosse o que estava acontecendo aqui. Embora, honestamente, eu não tivesse certeza do que pensar sobre isso. Até essa manhã, Lily acordando ao menos para dizer adeus e então morrer tinha estado longe do reino das possibilidades em minha mente. Foi um alívio, finalmente, ver o hospital em distância e então virar para a entrada. Quase lá. É claro, parecia que todos no mundo devem ter estado no hospital nessa quarta-feira peculiar, porque o estacionamento estava cheio e os terrenos estavam lotados de carros. Depois de dez minutos de procura por um espaço na seção de visitante, eu finalmente desisti e parei no grande espaço vazio, que estava reservado para o estacionamento ambulatorial. O meu era o único carro na fileira inteira. Tinha muito mais visitantes hoje do que pacientes, eu achava. Que seja. Deixe me rebocarem. Isso valeria a pena só por entrar. Saí do carro e corri até a entrada principal, as chaves tilintando na minha mão. Eu nem ao menos quis gastar o tempo para socá-las em meu bolso. O mau cheiro avassalador de anti-séptico e de hospital encheu meu nariz assim que empurrei a porta giratória do saguão. Passei pelo centro de informação aos visitantes no meio do saguão. Estive aqui mais que suficiente
159 para saber para onde eu estava indo e, embora eu tecnicamente deveria ter me registrado como um visitante, não tive paciência para aquilo nessa manhã. Em acordo com todo o resto, o elevador levou muito tempo para descer e, quando eu estava lá dentro, outra eternidade para alcançar o quinto andar. Quando as portas do elevador começaram a se abrir, torci-me para os lados para passar e corri pelo corredor, meus Chucks rangendo no chão recém enxugado. Ouvi Lily antes de vê-la, sua voz flutuando para o corredor. — E eu estou dizendo que não me importo. Estaria mais confortável em minhas próprias roupas. — Ela parecia um pouco revoltada. Estar em um coma certamente fez Lily um pouco mais estridente. Se existisse alguma coisa que me incomodava mais nela, além de sua obsessão com aquele idiota do Rogers e seu pessoal, era que ela tendia a rolar com as coisas como elas aconteciam, assumindo que todos sabiam melhor do que ela. Não mais, aparentemente. Quando cheguei a sua porta aberta, a cena lá dentro ainda foi um pouco chocante. Lily estava sentada na cama sem qualquer apoio, embora ela estivesse se inclinando um pouco de lado e olhando furiosamente para o médico cujo cabelo se levantava em todas as direções, como se cada fio estivesse tentando escapar de sua cabeça ao mesmo tempo. A Sra. Turner sentada ao seu lado, como de costume, só parecia que ela poderia flutuar de felicidade. Ela parecia fisicamente mais leve, menos cansada, agora aliviada da preocupação por sua única filha. Lily parecia... bem. Diferente de alguma maneira, no entanto. Talvez fosse apenas a cor em suas bochechas e o brilho furioso nos olhos, ou simplesmente que fazia tanto tempo desde que eu a vira em nada exceto um estado opaco e insensato. Mas parecia mais que isso, como se alguém tivesse acendido fogo dentro dela. Bati na porta e vi quando cabeças se viravam em minha direção. Alívio, tão claro como eu nunca vira, lavou o rosto de Lily. — Graças a Deus. — ela disse, o que era um pouco estranho. Se qualquer coisa, não deveria
160 ser aquela a minha linha? Eu me perguntava o que ela estava pensando para ter aquela reação. Do que ela se lembrava daquela noite? Ela achava que eu evitara sua ligação, ainda zangado com ela como Joonie estava? — Oi. — eu disse, sentindo-me um pouco estranho pela primeira vez. Ocorreu-me então que eu não tinha escovado meus dentes antes de sair de casa. Eu tomara um banho ontem a noite depois de chegar do cinema, então pelo menos eu estava relativamente limpo. Mas meus braços estavam visivelmente raspados depois da minha queda no palco e, se eu tivesse que adivinhar, apostaria que meu cabelo não estava em um formato melhor do que o do médico. Tudo junto, uma imagem suficientemente com má reputação. A Sra. Turner, com círculos escuros sob seus olhos e um olhar um pouco desgastado, fez as apresentações. — Dr. Highland, este é Will Killian, o amigo que Lily tem estado esperando tão ansiosamente. Acenei com a cabeça para o doutor, que parecia menos do que satisfeito com a interrupção. — Podemos ter um minuto a sós, por favor? — Lily perguntou. — Não seja rude, — a Sra. Turner censurou levemente. Então ela virou sua atenção para mim com um sorriso conhecedor. — Estou certa de que vocês têm muito para colocar em dia. Lily revirou os olhos. A Sra. Turner ficou de pé e fez seu caminho até a porta, seguida pelo Dr. Highland. — Não fique surpreso de ela não se lembrar de algumas coisas, — ele disse para mim em silêncio enquanto passava. — Ela está tendo um pequeno problema com os detalhes. — Só porque eu não me lembro de alguns nomes, — Lily murmurou. — Incluindo seu próprio nome do meio? — A Sra. Turner perguntou da porta. Lily bufou. — Ela também está passando por algumas mudanças de personalidade. — o Dr. Highland disse cuidadosamente. — Novamente, não é incomum com esses tipos de ferimentos na cabeça.
161 Assenti com a cabeça. — Eu lhe darei uma mudança de personalidade, — Lily disse sob sua respiração. Uau. Ok... — Apenas tente não aborrecê-la, — o médico disse com um último olhar exasperado para Lily. Então ele e a Sra. Turner saíram, fechando a porta parcialmente atrás deles. Lily acenou para eu me aproximar e eu obedeci, movendo-me para o lado de sua cama. — Ouça, — ela disse em um sussurro urgente. — Eu sei que você não vai gostar disso, mas não tenho tempo para lhe explicar gentilmente. Preciso que você me tire daqui. — Do hospital? — Quem era essa garota? A Lily que eu conhecia nunca sonharia em ir contra a sua mãe e provavelmente um time inteiro de médicos. — Não sei se... — Não, não do hospital, — ela sussurrou, impacientemente. — Daqui. — Ela gesticulou para si mesma, com as mãos em seu peito. Balancei minha cabeça, confuso. — Não entendo. Ela fez uma careta. — Estava com medo disso. Ela colocou minhas mãos nas dela e puxou-me para ela até que estivéssemos olho a olho. — Não sou a Lily, como você deveria saber muito bem, — ela disse uniformemente. — Lily se foi. Você foi quem me contou isso, lembra-se? O frio tomou conta de mim e o mundo girou. Peças dos dois quebracabeças separados que eu pensava que não se relacionariam, formavam uma imagem
completa.
Alona
desaparecendo.
Lily
inesperadamente
e
inacreditavelmente acordando e em uma possessão de personalidade que parecia nada com o que eu conhecera dela. Com o meu coração batendo muito forte, encarei o familiar rosto em formato de coração de Lily - as sardas sobre o nariz, as rugas perto do canto de seus olhos que sugeriam sua vontade de rir, a irregular, mas cicatrizante marca
162 de seu acidente - e o igualmente familiar, mas definitivamente não-como-o-deLily, brilho em seus olhos castanhos, o que era, mesmo agora, um estreitamento naquela forma arrogante, quase sexy, que era a marca do olhar de desdém de apenas uma garota que eu conhecia... — Alona? — perguntei pelos meus lábios dormentes.
163
Eu sabia que seria ruim quando Will descobrisse. É por isso que mantive meu pedido de ajuda tão comum. Eu não poderia ter a chance de ele ficar tão furioso que não viria para o hospital. E ainda, de alguma maneira, vê-lo fazer a descoberta, colocar todas as peças juntas, era pior do que eu imaginara. Talvez contar a ele pelo telefone teria sido melhor. Ele ficou pálido, exceto por duas manchas de vermelho em cima de suas maçãs do rosto e ele parecia como se eu o tivesse socado. Não, ele parecia como se eu tivesse socado sua mãe e então o pisoteado para uma boa medida. Ele se afastou de mim e soltou minha mão como se ela estivesse em fogo. Eu estava esperando por isso e ainda assim, doía ver aquela expressão de nojo no rosto dele. — Você fez isso para se vingar de mim? — Ele não iria encarar meu olhar e seus punhos estavam fechados aos seus lados. Sua acusação me chocou. — Não! — Ok, eu começara por querer provar um ponto de vista, mas não era aquele. Eu queria apenas lhe mostrar que não precisava dele. Mas eu tinha feito exatamente o oposto. Ele me lançou um olhar cheio de fúria e ceticismo.
164 — Sério, você realmente acha que se eu tivesse feito isso para tripudiar, eu estaria em um vestido de hospital? — Arranquei o tecido azul pálido solto no meu pescoço. — As coisas só saíram do controle. — Estou percebendo, — ele disse firmemente. — Ei, isso é culpa sua, também, — falei rispidamente. — Isso deve ser bom, — murmurou, meio que me repreendendo. Ele realmente não via seu papel nisso tudo? — Se você não tivesse ficado todo pego na propaganda dessa garota sobre os vivos serem mais importantes que os mortos e apenas tivesse entregado minha mensagem como eu pedi, eu não teria sido forçada a usar essas medidas extremas, — argumentei. — Então, eu te digo não e isso é uma luz verde para você começar a arrebatar o corpo dos meus amigos? — Ele esfregou as mãos sobre o rosto e percebi os arranhões profundos e de aparência enraivecida e cortes sobre seus pulsos e antebraços. Uma pontada de preocupação fez meu peito apertar. Quando aquilo acontecera? Agora provavelmente não era a hora pra perguntar. — Primeiro de tudo, é uma amiga e se chama empréstimo de corpo. — Funguei. — Eu estava apenas usando a mão dela. Você sabe, como quando EU SALVEI A SUA VIDA? Ele revirou os olhos. — Exceto que... — mordi o lábio. — algo de diferente aconteceu desta vez. — Cruzei os braços sobre o peito, um gesto que parecia familiar e errado ao mesmo tempo. De acordo com as outras curvas dela, o peito de Lily era visivelmente maior que o meu. Não era de admirar que Will gostara dela. Tá, ok, ele era um cara que gostava de pernas - acredite, era óbvio - mas peitos ainda eram peitos. — Claramente algo muito diferente, — Will disse. — Cala a boca, — interrompi. — Você não estava lá. Você não sabe como foi. — Parei, estremecendo com a lembrança daquela escuridão total e absoluta para a qual eu acordei. — Depois que isso começou a me puxar, eu não consegui parar. Isso não queria me soltar.
165 — Você já percebeu como isso é culpa de todo mundo, mas não sua? — perguntou ele. Fiz uma careta para ele. — Que seja. Só me tire daqui e então você pode gritar comigo o quanto quiser, ok? — Bem, não de verdade, mas o que quer que fosse que o fizesse parar de reclamar e começasse a convocação era uma mentira com a qual eu poderia viver. Ele hesitou e então balançou a cabeça devagar. — Não acho que isso vá dar certo. Senti o primeiro pulso de verdadeiro pânico. — Por que não? — Porque se você ainda é minha guia espiritual, você teria aparecido nesta manhã no meu quarto, como de costume, — ressaltou. — Seja lá o que você fez... mudou as coisas. Balancei a cabeça. — Você não sabe disso. — Recusei-me a aceitar a ideia ou o medo crescente em meu intestino de que ele pudesse estar certo. — Além disso, — argumentei, — eu não fiz nada. Isso só aconteceu. — Você não colocou suas mãos nas dela? — Ok, tudo bem, sim, — disse, exasperada. — eu fiz isso, mas eu certamente não comecei a pegar o corpo inteiro dela. — Não, isso foi só sorte, — disse ele. — Você acha que eu queria estar aqui? — gritei. — Esse é o último corpo que eu escolheria para mim. É pequeno e gordo e fraco e... — Eu conheço pelo menos uma pessoa que estava muito feliz com isso e que talvez gostasse da oportunidade de tê-lo novamente, — ele disse calmamente. Lembrei-me tarde de que esta era sua amiga. Que bom, Alona. Irrite-o ainda mais. Isso vai ajudar. — Olha, eu não quis dizer... — Cerrei os dentes. — Podemos, por favor, parar de discutir apenas o tempo suficiente para tentar me tirar daqui? Isso tinha que dar certo. Era meu primeiro e único plano. Eu não tinha outras ideias, o que não era de mim, mas isso não era exatamente uma situação
166 normal na qual pode se desenvolver um plano B ou dois, como o que fazer se você acidentalmente senta em molho de espaguete no restaurante. A boca de Will se contraiu, mas moveu-se ao redor da cama e sentou na cadeira de visitantes que a Sra. Turner normalmente ocupava. Ele respirou fundo e fechou os olhos. Esperei uma batida ou duas, mas ele não disse nada. — Você está tentando? — perguntei. — Estou tentando me concentrar, ok? — disse ele, soando irritado. Calei-me. Um minuto se passou e então outro. Concentrei-me, desejando a sensação de ser libertada. Eu não estava muito certa de como seria a sensação, então imaginei a resistência dentro do corpo de Lily, a força que havia me atraído, agarrando-se a mim como lama preta ao mesmo tempo que Will me arrancava com um estalo forte de sucção. Mas o problema era que eu não sentia nada, na verdade. Nenhum puxão. Nem mesmo um formigamento vagamente místico. Só o mesmo sentimento cansado, dolorido que esteve aqui desde que eu acordara no comando deste corpo. Merda. Will abriu os olhos e encontrou meu olhar, embora eu achasse que ele talvez tivesse se encolhido um pouco ao fazê-lo. — Não está funcionando, — ele disse. — Sim, percebi. Talvez você não esteja se esforçando o suficiente. — Eu conseguia ouvir a borda aguda de pânico na minha voz. — Você poderia tentar, tipo, chegar e me puxar para fora? Em resposta, ele esticou o braço e enrolou sua mão em volta de meu pulso, seu toque quente e confortavelmente familiar, mesmo que ele estivesse com raiva. — Eu não sou aquele que poderia atravessar as pessoas, lugares e coisas, lembra? — Ele balançou meu braço preso para mim. — Não posso ficar aqui. — sussurrei. — Você estava certamente ansiosa o suficiente para entrar, — disse ele.
167 Lágrimas encheram meus olhos e deslizaram pelas minhas bochechas sem praticamente nenhuma resistência. Merda, Lily era uma chorona. — Você estava me deixando para trás, como todo mundo! — Que merda, Alona, se recomponha. — O que eu deveria fazer? Ele passou as mãos pelos cabelos. — Não sei, mas sequestrar alguém não estaria no topo da minha lista. — Não foi minha culpa, também! — Limpei meu rosto, as costas da minha mão balançando e batendo sobre o terreno desconhecido. Ele soltou um suspiro lento. — Eu não estava te deixando para trás. Eu não fiz nenhuma decisão sobre... — O fato de que de repente exista uma decisão que precise ser feita meio que diz tudo, não acha? — Perguntei. — Isso não justifica... — Eu nunca disse que justificava, — disse calmamente. Sua expressão suavizou um pouco, mas foi isso. Ele não me abraçou, não fez nenhum movimento para me confortar. Não que eu esperasse isso, exatamente. Eu sabia que ele não estaria no humor de perdoar tão cedo, ou nunca, mas isso não me fez parar de desejar que ele estaria. Eu poderia usar um pouco de simpatia, mesmo se não o merecesse inteiramente. Não era como se isso fosse fácil para mim, também. Mas ele estava frio e distante, talvez ainda mais do que estivera na primeira vez que conversámos. — Só precisamos descobrir isso, — disse ele, esfregando a testa como se doesse. — Se você entrou, tem que ter um jeito de tirá-la. — E os seus livros? — perguntei. Ele me olhou fixamente. — Você tem todos aqueles livros em casa sobre fantasmas e depois da vida e... — É, tenho certeza de que não me esqueci de todos os capítulos sobre empréstimo de corpo. E antes que você pergunte, duvido de que haja um vídeo instrutivo no YouTube. — Ele balançou a cabeça. — Nem sei se isso é possível. — Ele franziu a testa para mim. — Deve ser alguma coisa diferente em você. Ou
168 Lily, talvez. Ou alguma combinação. Se fantasmas pudessem pegar corpos o tempo todo, as pessoas não seriam nada mais que uma porta giratória de espíritos. Precisamos de mais informações sobre como isso funciona. Mordi
meu
lábio
e,
então,
parei,
sentindo-me
terrivelmente
autoconsciente. Esse não era meu hábito nervoso. Quando eu comecei a fazer isso? Meu tique nervoso era morder a unha do meu dedão, embora eu tenha passado anos lutando contra o hábito. — Tinha um padre aqui mais cedo, — falei, finalmente. — Ele parecia saber que algo não estava certo. Como se talvez ele pensasse que eu estava... bem, Lily... estava possuída. Ele recuou, como se considerasse a ideia pela primeira vez. — Possessão. Eu sabia o que ele queria dizer. Esta não era como qualquer representação de posse que eu tenha visto, embora Will tenha provavelmente assistido a mais daqueles filmes do que eu. Mas não havia nenhuma luta aqui, nenhuma violência, nenhuma cabeça girando para trás. Era mais como duas metades de fivela de cinto clicando juntas, só que não necessariamente uma feita para a outra. — Se eu pedisse a Sra. Turner para trazê-lo de volta... — Não, — Will disse imediatamente e, se possível, ele virou um tom ainda mais pálido. Acho que respondia minha pergunta sobre o que acontecia com espíritos exorcizados. Esquecimento. Nada. — Você tem certeza? — Perguntei. — Talvez se pedíssemos a ele para meio que, não sei, fazer isso com metade ou não todo o poder? — Talvez uma mistura de água benta e água da torneira ou alguma coisa ao invés da versão completa com chumbo? Ele me encarou. — Você realmente é tão superficial que arriscaria ser transformada em nada? — Você realmente está determinado a ter sua amiga de volta? — Respondi. Ele me deu um olhar de nojo. — Não faça isso. Você não poderia se importar menos com ela.
169 A Sra. Turner enfiou a cabeça na porta, assustando nós dois. — Está tudo bem? — Só mais um minuto... Mãe. — disse, quase engasgando com a palavra. Ela acenou com a cabeça e se afastou, mas eu suspeitava que ela não estava indo longe. — Eles vão querer levá-la... levar-me para casa logo, — falei a Will em um silvo. — Não posso fazer isso. — Fingir ser alguém era desgastante e, por alguma razão horrível, senti-me obrigada a fazer a coisa certa. Ou o mais próximo disso que eu pudesse. Eu odiava ver os flashes ocasionais de dor e confusão que atravessavam o rosto da Sra. Turner quando eu me comportava mais como eu e menos como a filha que ela conhecia. Isso me fez sentir como se eu estivesse fazendo um teste e falhando com todas as questões. Eu não estava acostumada a falhar com nada. A ideia de sentar a mesa da cozinha deles ou sei lá, tentando agir como se eu reconhecesse as coisas e me lembrasse das pessoas... Deus, eu não poderia nem ao menos imaginar esse tipo de pressão. — Quando? — Will perguntou. — Amanhã, talvez no dia seguinte. — Deus, e se eu ainda estivesse presa aqui? Três dias como Lily Turner? As últimas vinte e quatro horas tinham sido mais que suficientes. — Temos pouco tempo, então, — ele disse, aparentemente, mais para si do que para mim. — Tempo para quê? — Perguntei. Mas ele apenas balançou a cabeça. — Você tem uma ideia. — Acusei. — Não uma boa, — ele disse, severamente. Sentei-me ereta, automaticamente corrigindo para meu lado esquerdo, que era o mais fraco, graças aos danos do acidente inicial e às cirurgias que sucederam, aparentemente. Lily tinha umas cicatrizes graves, até mesmo além daquela em seu rosto. — Não me importo. Farei qualquer coisa. Conte-me. Mas ele apenas balançou a cabeça.
170 — Que, então você agora está guardando segredos? — Perguntei. Ele me encarou. Ok, então talvez não a melhor resposta em termos de evitar a hipocrisia, mas essa era a minha vida em jogo... mais ou menos. Tive um súbito lampejo de visão. — Isso não a envolve, envolve? — Quem? — Mina, a Pequena Miss Rambo do mundo espiritual. — Joguei minhas mãos para cercar o quarto e tudo além dele. Ele fez uma careta. — É um pouco mais complicado que isso. — O que significa, o que, sim, você vai dizer a ela? — Em pânico, eu nem sequer esperei pela resposta dele. — Ela vai me colocar nas caixas, com certeza. — Não existir não seria ruim. Existir como pequenos pedaços separados, cada um, talvez, consciente e alerta para sempre, talvez fosse pior. — Ela se livrou da Sra. Ruiz apenas por bater algumas portas, então... — E quase me matar, — ressaltou ele, virando para me encarar. — O que você acha que ela vai fazer comigo quando descobrir sobre isso? — Gesticulei para mim. — Talvez você devesse ter pensado nisso antes, — ele disse. Fitei-o. Ele fez uma careta, começou a falar, parou, então tentou novamente. — Ela era minha amiga, Alona, e você não se importou. Você fez o que você quis, não importasse a quem doesse. — Ele balançou a cabeça. — Pensei que você estivesse mudando, que você estava diferente agora, mas não tenho mais certeza. Senti as lágrimas arderem em meus olhos novamente. — O que você está dizendo? — Não sei. — Ele levantou os ombros, impotente. — Vou fazer o meu melhor para tirar você daí, porque Lily merece isso, a família dela, também, ainda que isso provavelmente vai matar a mãe dela. Mas depois disso... Acho que talvez devêssemos ir em nossos caminhos separados.
171 Ainda que eu soubesse que isso era uma possibilidade, de alguma maneira isso ainda me pegou de surpresa e eu não pude respirar por um segundo. Lágrimas derramaram, quentes e úmidas, pelo meu rosto, caindo na parte da frente do meu vestido de hospital Will não se abalou. Ele se levantou. — Voltarei assim que puder. Deixe o telefone dela com você. Ele já estava indo? — O que eu devo fazer enquanto você está descobrindo seu grande plano? — Tentei me manter calma. Não tinha escapado de meu conhecimento que ele não respondera minha pergunta sobre Mina. — Apenas continue fazendo o que você tem feito. Acenei com a cabeça, esfregando meu rosto na ponta do lençol. Ele caminhou em direção a porta e, então, parou. — Valeu a pena? — ele perguntou sem se virar. — O quê? — Fazer isso para que você pudesse falar com seus pais? Forçá-los a voltarem a ficar de luto por você? Encolhi-me. Ele fez isso parecer tão cruel. Não podia contar a ele a verdade. Eu não tivera muitas oportunidades para sequer fazer uma ligação com privacidade e as poucas que eu tinha... Não era capaz de me convencer a aproveitá-las. Era uma coisa mandar a Will uma mensagem e ver as consequências em um pouco de distância. Mas agora que eu tinha dedos para discar o telefone e a capacidade de falar com eles e de ser ouvida diretamente... Eu estava com um pouco de medo de ouvir o que eles diriam. Will estava preocupado se ouvir de mim os enviaria a uma pirueta de luto. Eu estava preocupada se isso não iria. — Sim, — menti. O que mais eu poderia dizer? — Espero que sim, — Will disse. Então ele saiu. Depois de alguns segundos, a Sra. Turner enfiou a cabeça por trás da porta, cautelosamente. — Tudo bem se eu entrar de novo? Confirmei com a cabeça, não confiando muito em mim para falar.
172 Ela veio mais longe no quarto, indo em direção a sua cadeira, mas então parou, a cabeça inclinada para um lado enquanto via minha expressão e provavelmente meus olhos vermelhos de lágrimas. Quero dizer, quais eram as chances de Lily ser atraente enquanto chorava quando até eu não era capaz de gerenciar isso? Seus ombros cederam e ela olhou para mim com simpatia. — Ah, querida. Isso só vai levar algum tempo. Eu sabia que ela nem tinha ideia do que estava acontecendo, mas não me importei. Ouvir o carinho genuíno em sua voz fez meus olhos arderem com as lágrimas de novo e, então, comecei a chorar. Soluçar, na verdade. Grandes soluços engolidos, barulhentos e constrangedores. Uns que eu nunca me permiti fazer na frente de outras pessoas quando estava viva. Reestruture-se, Alona. Mas eu não conseguia me fazer parar. Era como se uma torneira em algum lugar tivesse sido arrancada e tudo estava derramando. Ela veio se sentar na ponta da minha cama, puxando minha cabeça para descansar em seu ombro. — Está tudo bem. Vai ficar tudo bem. — Ela repetiu as palavras de novo e de novo, o que deveria ter dado certo, só que eu sabia que se conseguisse o que eu queria, não ficaria ok, não ficaria tudo bem, pelo menos não para ela. Ela acariciou meu cabelo. — Vocês eram amigos e então não eram mais. E depois do acidente... — Ela colocou o queixo levemente em cima da minha cabeça. — Está sendo confuso para ele. Para vocês dois. Houve uma batida na porta. Olhei para ver o Sr. Turner de pé na porta desajeitado, um buquê de flores silvestres em uma das mãos e o maior feixe de brilhantes balões coloridos na outra. Ele estava vestindo outra camisa de brim, em um tom mais claro de azul desta vez. Tyler pairava ao seu lado, parecendo um pouco menos assustado do que ontem, mas ainda cauteloso. Ele estava torcendo um pedaço de tecido branco nas mãos. — Agora é uma hora ruim? — O Sr. Turner perguntou. Senti a Sra. Turner se enrijecer ao meu lado. — O que você está fazendo aqui, Jason? E o...
173 — Tirei o dia de folga do trabalho, — ele disse rapidamente. — Isso merece uma comemoração. — Ah, — a Sra. Turner disse em uma pequena, mas feliz voz. Ele se aproximou, arrastando o balão no teto. — Não sei se você ainda gosta deste tipo de flores ou não, — ele me disse, rispidamente. — Quando você era pequena, você costumava implorar-me para parar o carro nas viagens à casa da vovó em Wisconsin para que você pudesse pegar as flores ao lado da rodovia. Acho que aquelas eram na maioria ervas-daninhas, mas essas me lembraram delas. Ele empurrou as flores para mim e eu as peguei. Elas eram só flores de supermercado baratas ainda no plástico, mas eram bonitas e ele as escolheu sozinho. Sempre que meu pai me mandava flores, elas eram enormes, arranjos ornamentais e vindas da floricultura mais cara da cidade... com um cartão na letra de seu assistente. Eu agradecera a meu pai uma vez e ele não tinha nenhuma ideia do que eu estava falando. Eu era só um item na lista de afazeres de alguém. A Sra. Turner deu uma risada abafada. — Elas são lindas, Jason. Mesmo. — Ela parecia que estava chorando agora, também. — E Tyler tem algo para você, também. — Ele acenou para seu filho, que ainda estava de pé na ponta do corredor. Tyler se aproximou lentamente. — Você sabe daquele lugar no seu quarto que eu não deveria saber, onde você esconde as coisas em que eu não deveria tocar? Então assim que é ter um irmão. Eu concordei e esperei que ele perguntasse por detalhes sobre o local secreto ou o seu conteúdo. — Aqui. — Ele jogou o tecido que estava torcendo em suas mãos para mim. Ele voou até pousar no topo das minhas cobertas. Peguei-o. Era um pedaço de cetim branco macio, usado e esfarrapado nas bordas e de mau aspeto, mas eu sabia que deveria ser importante apenas pelo modo que Tyler e o Sr. Turner estavam me olhando pela minha reação. Peguei-
174 o cuidadosamente, porque senti que poderia desmoronar. O que quer que fosse, ou era muito velho ou muito usado, ou os dois. — Você achou Blankie, — a Sra. Turner exclamou. Oh, isso soou constrangedor. Mas também importante. Sem pensar, olhei para ela para uma explicação e outra daquelas expressões tristes atravessou seu rosto. Falhei em outra questão no teste da Lily. — Ah, sim, Blankie, — repeti, sentindo o calor em minhas bochechas. Claramente, existia alguma lembrança de infância associada a esta coisa. A lógica poderia sugerir que era, ou foi uma vez, um cobertor, algo que Lily tinha, evidentemente, valorizado o suficiente para esconder de seu irmão. Gostei da ideia de ter alguma coisa com aquele tipo de história. Com a mania de redecoração da minha mãe, ocasionalmente movida pelo álcool, eu raramente tinha uma cama no meu quarto por tempo suficiente para que a novidade se desgastasse, e muito menos para uma ligação sentimental se formar. Passei meus dedos ao longo da borda rasgada gentilmente. — Muitas crianças guardam um pedaço dos seus cobertores da segurança, — a Sra. Turner disse, seu tom censurado, mas de aprovação. — Você levava isso para todo lugar até mais ou menos a terceira série e, ainda assim, você dormia com ele debaixo do seu travesseiro, lembra? Acenei com a cabeça. Eu podia imaginar. — Eu procurei e procurei por isso quando eu estava recolhendo as coisas para trazer aqui para o seu quarto. — Ela descansou a cabeça na minha por um tempo. — Pensei que talvez ele se perdera ou você jogara fora. Eu estava tão chateada. Imagine isso. Uma mãe que queria manter as coisas que foram importantes para sua filha. A Sra. Turner dobrou a tira de tecido na palma da minha mão e fechou meus dedos sobre ele e, então, ela beijou minha testa com um suspiro que parecia indicar agora que Blankie e Lily se juntaram, tudo estaria bem no mundo.
175 Desviei o olhar, encarando o canto distante no quarto para que eu não começasse a chorar novamente quando eu mal tinha parado. Não era justo. Por que Lily Turner tinha esses pais, essa família e não eu? Ela nem parecia apreciálos. Ela provavelmente não os apreciou mesmo quando estava por perto. Não tanto quanto eu teria.
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Alona Dare tinha roubado um corpo, e não apenas um corpo qualquer, embora isso tivesse sido ruim o suficiente. Não, ela tinha que escolher Lily. Realmente não deveria ter me surpreendido. Ela sempre pensou que tinha o direito de tomar o que queria, e que se danem as consequências. Mas meu Deus, de todas as coisas egoístas para fazer. Ela disse que foi um acidente e talvez tivesse sido, mas isso não mudava o fato de que ela não tinha considerado qualquer outra pessoa nessa confusão, exceto a si mesma. Isso era típico de Alona Dare, exatamente. Caminhei pelo hospital até que saí para o meu carro, fúria alimentando o meu passo acelerado. Eu estava meio tentado a chamar Mina, deixá-la aparecer na sala com todas as suas caixas a retinir, e talvez Alona aprendesse alguma coisa. Mas isso não era o meu trabalho. Eu não era o responsável por ensiná-la. A luz a tinha enviado de volta, a luz ia decidir se isso era um erro, não eu. No entanto, isso não mudava o fato de que eu precisava de ajuda. Cheguei ao meu carro − que não havia sido rebocado, graças a Deus − e subi para dentro. Eu precisava de privacidade e um segundo para pensar antes de tomar qualquer tipo de decisão seguinte.
177 Eu estava disposto a apostar que alguém dentro da Ordem sabia mais sobre o que Alona tinha feito, não especificamente que ela tinha feito isso, mas como isso tinha acontecido e talvez como desfazê-lo. O problema era o que fariam com Alona depois. Não importa o que eu deixasse Alona pensar, não ia chamar Mina para esta situação. De jeito nenhum. Remover e colocar Alona nas caixas seria um troféu demasiado atraente para ela resistir. Mas a Ordem ainda era a minha melhor opção para obter informações. O único problema era como obtê-las sem que eles viessem ao hospital lidar com Alona e Lily. Mina tinha dito que a Sra. Ruiz era um fantasma de nível verde, o que quer que isso significasse, mas isso insinuava que havia níveis mais elevados do que esse. E se eu tivesse que adivinhar, diria que eles classificariam Alona como pertencente a uma das categorias mais potentes. O que significava que a Ordem não ia simplesmente deixá-la ir embora. Mas isso não significa que eu não poderia tentar um pequeno subterfúgio e ver o que podia aprender. Se fosse cuidadoso, seria como se eu fosse apenas um estudante ansioso. Enfiei a mão no bolso para o cartão amassado com o número 800 nele. Lucy parecia ser a mais simpática entre os Líderes e a mais disposta a negligenciar a preocupação peculiar de papai com os mortos em vez dos - ou em adição aos - vivos. Ela podia estar mais disposta a dar-me respostas que os outros dispensariam como informação que eu não precisava saber. Puxei o telefone celular da minha mãe do meu bolso. Ela insistiu que eu o levasse para que pudesse chamá-la e dar-lhe uma atualização após a minha visita com Lily, que eu teria que fazer imediatamente depois de ligar à Ordem. Caso contrário ela podia surtar e começar a tentar me localizar. Abri o telefone e comecei a discar o número da Ordem, tentando organizar os meus pensamentos em uma história coerente que não soasse muito suspeita. Tocou uma vez e depois uma voz de mulher eficiente mas nasal disse: — Serviço de atendimento.
178 Eu não esperava isso. Não que eu pensasse que a Ordem estaria anunciando seu nome e propósito, mas essa saudação genérica me fez pensar por um segundo se eu tinha ligado para o número errado. — Hum, ei, você pode conectar-me com Lucy? — Percebi tardiamente que eu não sabia o sobrenome de Lucy. Mas isso não pareceu perturbar a operadora. — Um momento, por favor. A conexão clicou no meu ouvido e depois começou a tocar novamente, metálico e distante. Esperançosamente, a mulher estava me transferindo para o celular de Lucy e não para um telefone de mesa na Califórnia em algum lugar. Eu supunha que Lucy estava ainda na cidade depois de ontem à noite, ou talvez em seu caminho de volta. — Lucy Shepherd, — respondeu ela, parecendo mais profissional e nítida do que tinha soado no teatro. — Oi Lucy, é Will... Killian, — acrescentei rapidamente. — Will! — Ela chorou de alegria, tanto assim que o telefone vibrou em meu ouvido com as reverberações da voz dela. Estremeci. — Eu não estou interrompendo nada, pois não? — Perguntei. Se ela estava em uma reunião com John e Silas, eu queria saber. Isso podia afetar as respostas que ela estaria disposta a dar. — Claro que não, querido. Eu estou apenas arrumando as coisas para o meu vôo de volta esta tarde. O que posso fazer por você? — Eu só tinha algumas perguntas, se você não se importar. — Oh, com certeza. — Sua voz suavizou. — Eu entendo. E percebi que ela pensava que eu queria perguntar sobre o meu pai. Eu queria − muito − mas agora não era a altura. Só que eu não pude deixar de pensar, e se não houvesse outra altura? Quem era este Danny Killian que Lucy e os outros conheciam? Como pessoa, não como apenas o cara secreto e infeliz que era o meu pai? — Will, você ainda está aí? — Oh, sim, desculpe, apenas me distraí por um segundo. — Eu precisava manter o meu foco no problema imediato. Libertar Alona. — Escute, eu sei que
179 isso vai soar estranho, mas eu só estou tentando esclarecer as coisas na minha cabeça, e ouvi algumas coisas que eu queria confirmar com você. — Ok, — ela disse com cautela. — É possível que um fantasma possua uma pessoa? Não o que eles mostram nos filmes, onde é tudo louco e há aquele denso nevoeiro, mas quase indetetável? A pessoa pode parecer normal ou próxima disso. Ela ficou calada por um longo momento, um silêncio que se arrastou por demasiado tempo. Merda, eu tinha acabado de me expor? — Lucy? — Você tem falado com Mina, — disse ela com um suspiro. — O quê? — Eu perguntei, confuso. — Quero dizer, sim, mas não... — Ela está insistindo para que tomemos esta chamada do padre a sério, mas o que ela está esquecendo é que manifestações de nível vermelho são muito raras. Eu nunca vi uma antes e… — Espere, que padre? — O capelão em Santa Catarina. — Agora ela parecia confusa. — Mina não te disse isso? Apesar do calor no carro, senti um calafrio repentino. Alona havia mencionado um padre. — Aparentemente, uma menina que estava em coma por meses e meses acordou esta manhã, e ela já está falando e se movendo com facilidade. Oh, não. Não, não, não. — Isso pode ser um dos sinais, — Lucy continuou, ignorando a minha angústia. — Ecos de nível vermelho como esses tendem a ir atrás de alvos enfraquecidos e fazê-los seus. Como eu disse, no entanto, eles são incrivelmente raros. — O que a Ordem está fazendo sobre isso? — Obriguei-me a perguntar no que eu esperava que fosse uma voz normal ou a coisa mais próxima a isso que consegui neste momento. — Fazer? — Ela riu. — Não há nada a fazer. Esta é apenas uma tentativa da pobre garota para ganhar mais uma chance de se tornar um membro
180 completo da organização com uma contenção. Mas eu duvido que eles encontrem alguma coisa. Eu congelei. — Eles estão procurando encontrar alguma coisa? — Procurar era ruim. Procurar significava que estariam membros da Ordem com disruptores e caixas na vizinhança de Alona. — Pensei que você disse que tinha conversado com Mina, — disse ela com uma questão em sua voz. — John levou-a para ao hospital para analisar a situação, embora… Fechei o telefone, joguei-o no chão, e saí correndo do carro.
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A coisa estranha sobre um hospital é que você acha que seria executado como uma rotina, a mesma coisa cada dia, cada hora. Em vez disso, era mais como se eles planejassem jogar elementos aleatórios em você em intervalos irregulares apenas para te manter desequilibrado. O Sr. Turner tinha acabado de sair para levar Tyler ao refeitório, quando um enfermeiro apareceu no meu quarto com uma cadeira de rodas. — Fisioterapia, — ele gritou muito alegre quando empurrou a cadeira para a minha cama. Sua roupa tinha ursos de pelúcia dançando. Eca. — Você está falando sério? — Eu perguntei. A última coisa que eu queria fazer nesse corpo era alguma coisa física. — O Dr. Highland nunca disse nada, — a Sra. Turner falou com uma careta. O enfermeiro não se intimidou. — Quanto mais cedo começarmos, mais rápido ela estará de volta em seus pés. — Ok, — A Sra. Turner disse, ainda incerta. Ela pousou o seu livro, uma cópia esfarrapada que ela levava para todos os lugares sem nunca parecer progredir nela, e se levantou.
182 — Pode ser melhor você esperar aqui. A terapia é difícil para o paciente, mas às vezes é mesmo mais difícil de assistir, — disse o atendente. Ótimo. Isso soava como mais diversão a cada minuto. — Não, eu acho que deveria… — ela começou. — Vou ficar bem, — eu disse. Agora que eu podia falar, não estava completamente desamparada. E seria provavelmente uma boa ideia começar a colocar alguma distância entre nós. Se Will conseguisse encontrar uma maneira de eu sair disso - e ele parecia determinado, embora mais por causa de Lily do que minha - então quanto menos tempo passássemos juntas agora, melhor. Não que fosse ajudar tanto assim depois de tudo o que tinha acontecido, mas não faria as coisas ainda piores. — Você tem certeza, querida? — A Sra. Turner perguntou com um franzir de testa. O estranho era que a perspetiva de deixar a Sra. Turner aqui e ir para a terapia sozinha não gerou exatamente o sentimento de alívio que eu esperava. Era quase como se eu quisesse que ela fosse comigo. Não, não, não. Não é o seu corpo, não é a sua vida. Nem a sua família. — Sim, eu tenho certeza — disse com firmeza, tentando convencer-me a mim tanto quanto a ela. — Tudo bem — disse ela, radiante. Oh. Ela via isso como um sinal de melhora. Fabuloso. Bem, pelo menos isso a fazia feliz. Depois de algumas manobras muito estranhas que revelaram muito mais do corpo do que eu teria querido se ele fosse meu, o enfermeiro conseguiu me colocar na cadeira de rodas. Só isso já foi suficiente para me esgotar, mesmo que eu tivesse feito pouco mais do que apenas manter o equilíbrio durante a transferência. Ele girou a cadeira habilmente para enfrentar a porta, e só então percebi que eu tinha deixado o celular de Lily na mesa de cabeceira. Droga. Bem, quanto
183 tempo poderia uma sessão de fisioterapia demorar de qualquer maneira? Eu provavelmente estaria de volta antes de Will ligar. Se ele ligasse. — Adeus, Lilybean,— A Sra. Turner disse quando saímos. Esta garota tinha mais apelidos ridículos do que eu tinha sapatos bonitos. Ou, costumava ter. Que seja. Eu queria saber se minha mãe tinha acabado de limpar o meu quarto. Estariam todas as minhas roupas e sapatos já nas prateleiras do Exército da Salvação, ao lado de feios casacos xadrez desportivos e saltos sensíveis que ninguém queria usar? Afastei esse pensamento. Eu tinha o suficiente com que me preocupar agora. O enfermeiro nos levou para o fundo do corredor rapidamente, como se estivéssemos atrasados ou algo assim. O impulso, especialmente nas esquinas, tornou um pouco complicado eu conseguir manter-me direita. Mais de uma vez eu pensei que ia deslizar diretamente para fora da cadeira formando uma grande pilha de roupa hospitalar nos apoios de pés. Mas eu não pedi para abrandar. Porque cada segundo a menos nessa pequena aventura era um segundo a menos no corredor onde todos me encaravam enquanto passávamos. Alguns deles até me seguiram pelo corredor, cochichando entre si. Olha, eu entendo. Parece um milagre, fala como um milagre, mas... não é. Alcançar o elevador de serviço − eles nunca utilizavam os elevadores de visitantes para mover pacientes como eu tinha descoberto durante os meus infinitos testes esta manhã – foi, francamente, um alívio. Cantarolando um conjunto desafinado de notas sob sua respiração, o enfermeiro me levou para dentro e apertou o botão para o porão. O porão? Isso parecia vagamente estranho. Não que eu tivesse alguma ideia de onde ficava a zona da fisioterapia, mas eu tinha visto a maior parte do porão em vários momentos. Afinal, o necrotério estava lá embaixo, tal como a máquina de RM15 - outra descoberta desta manhã. 15
Ressonância magnética.
184 Olhando para trás no tempo, eu deveria ter perguntado. Eu deveria ter falado e dito algo, qualquer coisa. Talvez isso teria sido suficiente para empurrar os eventos de volta ao curso certo. Mas não o fiz. Eu estava cansada do esforço de manter-me sentada durante o passeio de cadeira de rodas (relativamente) selvagem, e honestamente, no hospital, com tantas pessoas empurrando e puxando você, te levando a um lugar, apenas para arrastá-lo para outro lugar, você meio que entrega o seu destino para os poderes deles com a ideia de que sabem o que é melhor. Eu não tinha orgulho disso, mas era apenas como as coisas funcionavam. O enfermeiro me levou de maca para fora do elevador e do corredor principal antes de deslizar para um pequeno hall que eu nunca tinha notado antes. Ele parou na frente de uma porta não marcada e bateu. A porta se abriu e a primeira coisa que notei foi o cheiro: míldio e pinheiro falso. O enfermeiro me empurrou para dentro, e então eu vi os esfregões de pé no balde de metal, a prateleira ferrugenta e inclinada, que segurava garrafas de produtos de limpeza industrial com aspecto irritável, e um tanque enorme. O padre Hayes estava ao lado do tanque industrial, as mãos cruzadas na cintura, como se tivesse estado orando enquanto esperava por nós. — O que está acontecendo? — Eu exigi, sentindo a primeira centelha de medo. Apesar de alguma forma, na parte de trás da minha cabeça, eu ainda estar pensando que isto devia ser um erro. Um caminho errado. — Raymond, obrigado. — Ele se aproximou e estendeu a mão para o enfermeiro que a sacudiu. — Você está realmente fazendo o trabalho do Senhor. Oh, isso não era bom. Estiquei o pescoço em volta para encontrar Raymond ou tanto dele quanto eu podia ver deste estranho ângulo. Ele sacudiu a mão do padre e voltou-se para sair. Ele ia simplesmente abandonar-me aqui em baixo no
185 armário do zelador! — Não, não, não. Volte, Raymond. Tire-me daqui. E quanto à fisioterapia? Mas ele apenas continuou andando, a uma velocidade muito próxima do normal ao invés da rápida velocidade a que ele se tinha movido antes. E foi aí que eu percebi que ele não tinha feito isso para me poupar constrangimento ou desconforto. Não, ele estava tentando não ser pego. Bastardo. A porta se fechou atrás de Raymond, e eu me virei para o padre Hayes novamente, mas ele não estava olhando para mim. Sua atenção estava voltada para algo atrás de mim. — Eu suponho que este espaço será adequado para as suas necessidades? — Perguntou ele. Virei para o outro lado, esticando o pescoço para ver com quem ele estava falando, e quando o fiz, a minha respiração ficou presa na minha garganta e meu coração explodiu em um ritmo frenético. Lá, onde a porta a teria ocultado, estava Mina, algoz do mundo espiritual. Ela tinha sua enorme mochila presa por cima do ombro, e seu cabelo encaracolado se destacava na cabeça dela como um halo crespo. E, na mão direita, ela segurava a arma disruptora brilhante que tinha eliminado a Sra. Ruiz, apontada para mim. Will. Ele a tinha chamado para mim? Eu queria vomitar, não apenas pelo medo, mas pela traição. Ele tinha ameaçado, mas eu nunca realmente pensei que ele ia avançar com isso. Mina se moveu para bloquear a porta. — Isso é bom, — disse ela ao padre Hayes, com a mão que tinha a arma constante e inabalável. Ela estendeu a mão e tirou a mochila com a mão livre, pousando-a no chão com um som alto. Mas se Will era responsável, onde estava ele? Ele podia me dar para Mina, mas nunca abandonaria Lily ao acaso. E o que o padre estava fazendo aqui? Isso não fazia sentido. — Acho que houve algum tipo de erro, — eu disse, tentando parecer calma, como uma pessoa normal estaria se se encontrasse no armário de um zelador com pessoas aparentemente malucas, em vez de fisioterapia.
186 — Não. Nenhum engano, — disse Mina, me circulando. — Eu quase posso ver você aí dentro, piscando um pouco abaixo da superfície. — Ela se inclinou, elevando o disruptor para mais perto do meu rosto. Eu não sabia se iria funcionar em mim dessa forma, mas tinha quase a certeza que sim, ou ela não estaria apontando isso para mim. — Toque-me com isso, sua cadela de cabelos loucos, e eu vou fazer você se arrepender do dia em que decidiu fazer uma permanente em casa, — eu disse cortante. Mina parou, sua boca aberta. Então ela inclinou a cabeça para o lado, um olhar avaliador em seu rosto. — Alteza? É você que está aí? Porra. — Você é o nível vermelho. — Ela sorriu. — Isso vai ser divertido. — Ela recuou de mim e se ajoelhou ao pé da mochila, com cuidado para manter sua atenção em mim. Com a mão livre, ela começou a puxar pequenas caixas de metal, umas eu reconheci como semelhantes, se não idênticas, às da sala da frente da Mansão Gibley. Era isso. Mina ia me puxar para fora, me colocar em pedacinhos nas caixas, e manter-me em uma prateleira em algum lugar. Pense, Alona, pense! Convencê-la a não o fazer nunca ia acontecer. Eu não podia correr. Esconder-me estava definitivamente fora de hipótese, duh. Então, fiz a única coisa que eu podia. Eu gritei assassinato sangrento... porque tinha a sensação de que era exatamente para onde isto se dirigia.
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Eu não me incomodei com esperar pelo elevador, apenas corri através do lobby para as escadas de emergência e subi até o quinto andar, dois degraus de cada vez. Amaldiçoei-me por deixar meu telefone no carro. No mínimo, eu poderia ter ligado e tentado avisar Alona enquanto estava correndo, mas foi como se tivesse parado de pensar no segundo em que ouvi que Mina estava no hospital. Escancarei a porta e peguei o corredor do quinto andar, surpreendendo uma enfermeira que estava a passar por lá ao mesmo tempo. — Posso ajudar? — Perguntou ela, irritada. Eu a ignorei e passei correndo pelo posto de enfermagem e pelo corredor em direção ao quarto de Lily. A porta estava aberta, eu podia ver isso, mas não podia ouvi-la, como antes. Desespero me encheu, mas forcei-o a recuar com uma tentativa de lógica. Ela podia estar dormindo. Ou, talvez eles a levaram para mais testes. Corri para a porta, me movendo mais lentamente do que antes, quase com medo de olhar para dentro. E quando olhei, eu vi exatamente o que esperava e temia. A cama vazia de Lily, os lençóis empurrados para trás. Meu coração se afundou.
188 A Sra. Turner ergueu os olhos do livro, assustada. — Will? Você esqueceu alguma coisa? — Onde está Al... Lily? — Eu troquei meu peso de pé para pé, sentindo segundos potencialmente vitais passarem. Ela franziu a testa. — Na fisioterapia. Há algo errado? Você parece em pânico. Fisioterapia. Isso realmente parecia legítimo. Quais eram as chances de que fosse? Eu poderia ter chegado primeiro do que Mina e John? — Ela provavelmente vai estar de volta em uma hora, eu acho. — Ela parecia pensativa. — Na verdade, o enfermeiro nunca disse quanto tempo isso levaria. Instinto sussurrou para mim, me dizendo que algo estava errado. — Ela estava programada para terapia esta manhã? — Perguntei. — Ela não me mencionou isto mais cedo. A Sra. Turner pousou o livro. — Sabe, nós não sabíamos nada sobre isso também, mas eu acho que eles a estão preparando para ir para casa. — Ela me deu um sorriso cansado, mas esperançoso. Não. A Ordem estava aqui em algum lugar. E eles tinham Alona. Mas tinham-na levado do hospital, ou ainda estavam aqui com ela em algum lugar? Seria arriscado levá-la do hospital, porque, mesmo se eles conseguissem remover Alona, ainda teriam que lidar com Lily. Eles teriam que trazê-la de volta aqui de alguma forma. Então, não era apenas conseguir sair, mas também conseguir voltar. Podia ser mais fácil encontrar um lugar isolado dentro do hospital. Mas onde? — Você foi com ela para ajudar a prepará-la? — eu perguntei. — Não, o enfermeiro recomendou que ela fosse sozinha, e era isso que ela queria, também, — A Sra. Turner disse. — Tem sido difícil para ela, eu acho, se adequar a essas novas circunstâncias. — Mais do que você sabe, — eu murmurei.
189 — O quê? — Nada, — eu disse. Então, ou Mina e John iam tentar pegá-la entre o quarto e a fisioterapia... ou o enfermeiro estava envolvido. Lembrei-me, de repente, de Lucy dizendo que o capelão do hospital estava envolvido. Ele, de todas as pessoas, provavelmente conhecia o pessoal do hospital bem o suficiente para encontrar um verdadeiro crente ou alguém disposto a olhar para o outro lado por algum dinheiro. — Você tem certeza que está bem? — Ela perguntou de novo. — Você parece... abalado. — Ela me ofereceu um sorriso amável, tão semelhante ao de Lily, e deu um tapinha na cama. — Quer sentar e me falar sobre isso? Engoli um riso histérico que podia sentir borbulhando no fundo da minha garganta. Bem, você vê Sra. Turner, a sua filha não é realmente a sua filha, pelo menos não agora. Balancei minha cabeça. — Obrigado, mas eu estou bem. — Você é bem-vindo a esperar por ela aqui, se quiser. Mas eu não sei em que tipo de forma ela vai estar quando voltar. Você poderia dizer isso de novo. — Eu sei que as coisas têm sido difíceis, — ela continuou, — mas sua amizade significa o mundo para ela. Você deve ter visto a forma como ela reluziu antes, quando você entrou, — A Sra. Turner deu-me um olhar significativo. Alona. Meu peito doía com a necessidade de encontrá-la. Se eu não os encontrasse e detivesse a tempo, ela estaria... em caixas, então a nossa última conversa seria a que tivemos esta manhã. Não, eu não podia deixar isso acontecer. — Eu sei que as coisas têm sido difíceis entre vocês, mas espero que consigam resolver tudo. Eu também. — Sra. Turner, você se lembra de alguma coisa sobre o enfermeiro que pegou... Lily? Ela franziu a testa para mim. — Por quê?
190 Ah, boa pergunta, uma para a qual eu não tinha resposta. Pensei rapidamente, tentando lembrar de algo que parecesse legítimo, sem causar pânico. A última coisa que eu queria era todo o hospital em alvoroço. Isso podia fazer Mina tentar apressar as coisas, ou pior ainda, levar Alona e Lily daqui, assumindo que elas estavam aqui. — Eu só estava me perguntando se era o mesmo cara que eu vi no elevador esta manhã com um paciente, — menti. — Ele é um cliente regular do restaurante, eu acho. — Oh. — Ela parecia levemente confusa. — Eu não sei. Ele era alto, com dreadlocks16. Mas não peguei o nome dele. Droga. Ela se animou. — Suas roupas eram adoráveis. Eram de um azul escuro com balões e ursinhos de peluche com chapéus de festa. Yeah. Isso era útil. Então eu percebi que ela estava esperando por uma resposta. — Oh, sim, isso soa como ele, — eu disse rapidamente. — Cara legal. Ela assentiu novamente, ainda parecendo perplexa com o rumo da nossa conversa. — Vou só andar um pouco, esticar as pernas, verificar as coisas, enquanto estou esperando por Lily. — Como se eu já não tivesse passado tempo demais neste hospital. Mas agora, a única pista sólida que eu tinha era o padre. Eu provavelmente poderia rastrear o seu escritório com bastante facilidade, assumindo que ele estava lá e não com Mina e John. Tinha sido ele a chamá-los, então eu tinha dificuldade em imaginá-lo sentado de braços cruzados, arrumando papelada ou algo assim, enquanto eles trabalhavam para remover esta - o que Lucy lhe tinha chamado? - manifestação. — Ok, — A Sra. Turner disse, — mas não fique no caminho ou incomode as pessoas enquanto elas estão supostamente trabalhando. — Ela apontou o dedo para mim. — Entendido. — Girei sobre os calcanhares e comecei a voltar do jeito que tinha vindo. Eu não sabia o nome do padre, mas aposto que alguém no 16
O dreadlock é uma forma de se manter os cabelos que se tornou mundialmente famosa com o movimento rastafari, consiste em bolos cilíndricos de cabelo que aparentam "cordas" pendendo do topo da cabeça.
191 posto de enfermagem poderia direcionar-me ao escritório do capelão. Se eu tivesse que fazê-lo, mandaria chamá-lo e fazia-o vir até mim. Aí, eu teria que descobrir o que dizer, outra mentira, mas pelo menos estaria indo na direção certa. No posto de enfermagem, uma mãe com três filhos agarrados a suas pernas tinha a atenção de ambas as enfermeiras enquanto expressava descontentamento sobre alguma coisa a ver com um quarto filho e a falta de Jell-O em sua bandeja de ontem do almoço. Vamos lá, vamos lá. — Posso ajudar? — Uma das enfermeiras, finalmente, voltou sua atenção para mim. Era a mesma que tinha me olhado com desaprovação quando eu apareci nas escadas, e ela não parecia mais feliz comigo agora. — Eu estou procurando o… — Um flash de cor vermelha sobre um fundo azul escuro, passou pela orla da minha visão. Virei-me rapidamente para ver um homem alto com dreadlocks curtos que se movimentava no ramo oposto do hall, empurrando uma maca à sua frente. Sua camisa era azul escura com ursinhos com chapéus de festa e balões vermelhos impressos. Sim! Meu coração bateu mais forte pela descarga de adrenalina. Esse tinha que ser ele, certo? O enfermeiro que tinha levado Alona para onde ela estava. — Jovem, — a enfermeira perguntou, com a boca bem franzida. — Não importa, — eu disse rapidamente, e persegui o enfermeiro. — Ei, espere, pare. Ele congelou e, em seguida, virou-se para dar-me um olhar desconfiado por cima do ombro. Sim, esse era o cara. — Ouça. — Me aproximei mais. — Eu fui separado dos outros, mas é suposto eu ajudar. Ele balançou a cabeça, os olhos ainda vigilantes. — Eu não sei do que você está falando. Tenho que voltar ao trabalho, portanto…
192 — A situação com o quarto 512 e a Ordem, — eu disse com uma voz um pouco acima de um sussurro. Se eu estivesse errado, e ele não tivesse ideia do que eu estava falando, eu ia parecer um louco. Mas reconhecimento brilhou em sua expressão. — Yeah. Sim, está bem. — Ele se inclinou para mim. — Eles estão lá embaixo. Senti um enorme alívio. Eles ainda estavam no hospital. — Onde? — Eu perguntei, tentando não parecer desesperado e como se estivesse pronto para sacudi-lo pela informação. Devo ter sido apenas parcialmente bem-sucedido, embora, porque ele se afastou um pouco para franzir a testa para mim. — Vou ter tantos problemas por estar atrasado. Eu deveria estar treinando, mas me enganei no tempo, e então não conseguia achar minhas anotações sobre onde deveríamos nos encontrar, e você sabe como a Ordem é sobre pontualidade. — Podia ouvir-me divagar, dizendo demasiado, qualquer coisa que pudesse abrir a porta para a informação que ele tinha e que eu precisava. — Está tudo bem, — disse ele, as mãos erguidas como se para me acalmar. — Nós vamos colocar você lá. Basta pegar o elevador até ao porão. Vire à direita para o corredor, e depois à esquerda na primeira entrada. Primeira porta sem janelas. Sim, isso não soava nada sinistro. — Obrigado, cara, eu realmente aprecio isso. — O alívio na minha voz, pelo menos, era genuíno. — É melhor se apressar, porém, — ele disse. — O padre Hayes disse que não iria demorar muito tempo. E eu tenho que estar lá em pouco tempo para ir buscá-la e trazê-la de volta. Eu não podia deixar de me perguntar o quanto ele sabia, o que ele pensaria quando fosse buscar Lily daquele espaço sem janelas e encontrasse uma concha vazia, uma vez mais. Ele estava esperando isso? Ou dar-lhe-ia arrependimentos sobre o seu envolvimento em algo que ele provavelmente não entendia completamente? De qualquer maneira, eu não queria esperar para descobrir.
193 Acenei os meus agradecimentos para ele e parti para o elevador.
194
O padre Hayes parecia alarmado. — Alguém vai ouvi-la gritando, mesmo aqui em baixo. Boa. Eu tomei uma respiração profunda e continuei no topo dos meus pulmões, embora a minha voz já tivesse passado de um grito para um guincho irritante. Mina parecia afobada, ocupada entre manter o disruptor apontado para mim e se mover mais rápido para alinhar as caixas. — Apenas me ajude, — ela ordenou o padre. — Coloque as caixas no chão e… Atrás de mim, ouvi a porta abrindo abruptamente. Tanto Mina como o padre deram um salto. — O que diabos vocês estão fazendo? — Uma voz de homem exigiu. Sim! Eu fui salva. Tentei me virar para vê-lo, mas só consegui um vislumbre de jeans e o punho de uma camisa de flanela desbotada. — Eles me raptaram, — eu disse, minha voz rouca. — Chame a polícia. — Você vai ter a metade do hospital aqui em baixo, Mina, — disse ele, visivelmente irritado. O meu coração caiu. O homem, meu salvador em potencial, era, evidentemente, parte do grupo de Mina.
195 Um segundo depois, mãos enfiaram um tecido áspero que cheirava fortemente a lixívia e detergente em minha boca, apertando e amarrando-o na parte de trás da minha cabeça, pegando um pouco do meu cabelo de forma dolorosa no processo. O material sugou toda a umidade da minha boca, e tinha um gosto horrível. — Se você vai sobreviver como um membro pleno, as suas habilidades de planejamento precisam ser melhoradas, — disse ele, soando reprovador. Eu estava apenas escutando metade, mais focada na tentativa de soltar a mordaça. Ele apertou-a tanto que eu não a conseguia morder. Não que eu sequer tivesse a chance no inferno de mastigá-la durante horas para me soltar, pois isso era muito mais tempo do que seria necessário para eles fazerem o que iam fazer. — Eu teria conseguido, — disse ela tristemente. — Só precisava de mais alguns segundos. Ele fez um som de nojo, e ela se retraiu um pouco. Isso chamou a minha atenção. Quem quer que este cara fosse, Mina tinha medo dele. — Vamos em frente com isso, — disse ele. — Ou você precisa de mim para fazer isso também? Ela balançou a cabeça rapidamente, com os cabelos voando ao redor de seu rosto tenso e pálido. Com a orientação de Mina, o padre terminou de dispor as caixas e de ligar os cabos individuais a um maior que jazia no chão perto de uma tomada de parede disponível, e depois Mina moveu-se para ficar ao meu lado. Ela trouxe o disruptor mais perto, pressionando-o com força contra meu ombro. Os fios na extremidade aberta escavaram na minha pele através da roupa hospitalar. Contorci-me na cadeira, mas a minha metade inferior ainda estava surpreendentemente pouco cooperante. Não havia maneira de eu sair daqui com meu próprio poder, mesmo se pudesse de alguma forma passar por eles os três. Eu gritava contra a mordaça, mas o som abafado que surgia nunca iria passar a porta fechada. Então... era isso.
196 Meu coração estava batendo mil vezes por minuto, balançando-me com ele. Gostaria de saber se dói ser colocada em caixas, ou se eu não sentiria mais nada. Lágrimas escorriam pelo meu rosto para ser absorvidas pelo tecido ao redor da minha boca. Will. Eu queria tanto que ele estivesse aqui. Quero dizer, se isso era o fim, então pelo menos eu não estaria sozinha. — Pronto? — Mina perguntou. O padre concordou com ansiedade, com o rosto coberto por um suave brilho de suor. — É o seu show, — o homem por trás de mim disse, soando impaciente. Ela respirou fundo e pressionou alguns botões em seu dispositivo. Um fraco brilho azul surgiu e eletricidade correu através de mim, fechando a minha boca e arqueando as minhas costas. A dor parecia como fogo sobre todo o meu corpo. Choramingos agonizantes escaparam da minha boca, apesar de meus melhores esforços. Então, a mais estranha sensação me impregnou, uma separação, um tornando-se dois, como descascar a parte de trás de um autocolante ou remover essa camada de pele queimada pelo sol. Eu podia sentir-me, distinta novamente, dentro de Lily. A mão livre de Mina percorreu a superfície do meu braço. Meu braço real, não o de Lily. Encarando-me, eu podia ver o fantasmagórico - sem trocadilhos - esboço de meu próprio corpo sobreposto em Lily. Eu poderia ter chorado com alívio só que eu sabia que isso significava que eu estava provavelmente a um passo de ir para essas malditas caixas no chão. Eu lutei para me livrar do corpo de Lily, mas ele me prendeu, como um rato em uma dessas armadilhas de cola desagradáveis que minha Mothrasta insistia em usar na garagem de sua casa. — Prepare-se, ou você vai perdê-lo, — o homem por trás de mim disse, mas ele não fez nenhum movimento para ajudá-la. — Essa coisa vai lutar com você. Essa coisa? Oh, não inferno. E você pode apostar sua vida que eu vou lutar.
197 Mina assentiu, mas não olhou para cima. Sua mão pairou sobre meu pulso, quase em contato, e da próxima vez que eu balançasse para cima na tentativa de me libertar, seus dedos se fechariam em torno de meu braço. Eu assisti com espanto como ela assentou os pés no chão, abraçando-se e começou a puxar-me com uma mão - não muito gentilmente, devo acrescentar enquanto usava a outra para manter o fim do disruptor pressionado contra o ombro onde Lily e eu ainda estávamos unidas. Em poucos segundos, ela me puxou para fora da cintura para cima. Eu podia ver minha camisa branca com a marca de pneu novamente, e meu cabelo longo e loiro roçou minha bochecha. Eu estava quase em liberdade! Parecia estranho depois de tantas horas como Lily. — Olha, foi um acidente, — eu disse rapidamente, torcendo meu pulso na mão de Mina, tentando me libertar. — Eu estou fora agora. Prometo que não vou voltar para dentro dela, confie em mim. — Eu estava suando com o pânico. Não podia correr. Ainda estava fundida com o corpo de Lily da cintura para baixo. — Transição, Mina. Avance, ou você vai perdê-la, — o homem ordenou. Atrás de mim, senti movimento e olhei para ver Lily caindo contra o lado da cadeira. Oh, Deus. Lembrei-me da Sra. Turner me segurando/Lily em seu ombro. Ela ficaria destruída ao ver sua filha assim. Meu coração doía pela menina que nunca iria acordar para ver as flores que seu pai havia lhe trazido, a maneira como a mãe cuidava dela, e até mesmo seu irmão trazendo algo para ela que sabia que ela iria querer. O padre estava olhando para Lily e parecia enojado. — Isso é normal? — Perguntou ele. O padre tinha um ponto. Lily não parecia bem, e eu não acho que isso era apenas a ausência de vitalidade e movimento. Na verdade, ela parecia pior do que antes. Ela estava pálida, sua pele mais cinzenta. O homem da camisa de flanela assentiu tristemente. Eu podia ver mais dele agora. Ele tinha cabelos escuros grossos que pareciam ser encaracolados se ele deixasse crescer. Seu rosto era rígido com linhas profundas esculpidas na
198 testa e em ambos os lados de sua boca, como se ele trabalhasse fora ou tivesse muito estresse. — Eles devem ter se ligado. Se a entidade ficar incorporada o tempo suficiente, o hospedeiro torna-se dependente da energia da entidade. E a entidade… Todos mudaram os seus olhares para mim. — … torna-se dependente do hospedeiro, alimentando-se da energia elétrica fornecida pelo corpo. É um ciclo. Olhei para mim mesma e vi que meus braços estavam desaparecendo. Ofeguei. Eles não estavam piscando, como todas as vezes antes, apenas estavam desaparecendo lentamente como se nunca tivessem estado lá. E eu não sentia nada. Atrás de mim, Lily começou a arquejar, um som horrível. Ela estava morrendo, eu estava desaparecendo, e era tudo culpa minha. — Se apresse, — ele virou-se para Mina. — A posse drenou-o. Se isso desaparecer agora, vai desaparecer definitivamente. A Ordem quer a chance de estudá-lo primeiro, — o cara da camisa de flanela disse. Estudar-me? Por quê? Por quanto tempo? Eu seria enjaulada ou separada em pedaços? Minha garganta fechou com medo. Eu queria lutar, mas não tinha meios para isso. Eu não podia nem me afastar. Mina se atrapalhou com o disruptor, movendo-se para o meu pescoço. — Eu estou trabalhando nisso, — ela retrucou para o cara atrás de mim, que parecia ser um chefe de algum tipo. — Você pode me deixar fazer isso? Ela se abaixou e conectou o cabo gigante na parede. Instantaneamente, as caixas no chão começaram a brilhar com uma luz amarela doentia que saía de uma rachadura fina ao longo do topo. Em seguida, os topos começaram a retrair, e essa terrível paródia da luz branca começou a escoar para fora, para mim, como dedos longos e assustadores me alcançando. Eu gritei, mas ninguém sequer se encolheu. Em meio a este caos, a porta se abriu mais uma vez. Como um, todos, exceto Lily, se viraram para olhar.
199 Como se o meu desespero o tivesse convocado como um farol, Will Killian estava na porta, sem fôlego, suas bochechas normalmente pálidas lavadas com a cor. O cara em flanela sorriu. — Will, — disse ele, parecendo satisfeito. — O que você está fazendo… Will o ignorou. — Pare, — ele gritou para Mina. — Desligue-o. — Ele correu para a frente e empurrou-a, afastando a mão dela para longe de mim, enviando o disruptor voando pela sala em direção ao padre. Mas já era tarde demais. Eu podia sentir a luz daquelas caixas me puxando, cada uma dando uma sensação um pouco diferente. Algumas espinhosas como alfinetes, algumas quentes como o calor escaldante subindo do asfalto fresco, todas dolorosas. Estava me cortando em pedaços. Nesse segundo, tudo abrandou, tornando-se muito calmo e claro. Eu podia deixar as caixas levar-me e me separar, e a Ordem iria me estudar, qualquer que fosse a provação infernal que isso envolvesse. Eu poderia simplesmente deixar-me ir. Bastava desaparecer. Não seria tão ruim, não é? Ser nada seria nada... certo? Ou, eu poderia tentar. O corpo de Lily iria me proteger das caixas. Foi por isso que eles tiveram que usar o disruptor em primeiro lugar. Mas, regressar voluntariamente ao seu corpo que estava a morrer, sabendo que estaria presa? Eu me senti doente apenas com a ideia. Isso me faria o que Will tinha me acusado de ser, uma ladra de corpo, e nem mesmo de um corpo que eu queria. Eu não podia ser Lily Turner. Mas se o cara de flanela estava certo sobre Lily e eu estarmos dependentes uma da outra, ela podia sobreviver com a minha ajuda. Ela podia viver por causa de mim. Tinha que haver uma razão para eu ter sido enviada de volta da luz, certo? Talvez fosse isso. Talvez nós poderíamos salvar uma à outra. E se sobrevivêssemos a isso, podia haver outra chance para nós. Uma oportunidade para Lily se manter viva e eu ser eu mesma de novo, certo? Mas se eu não aproveitasse esta oportunidade agora, estávamos ambas acabadas. E
200 eu não podia deixá-la morrer, não quando tinha sido eu a causar isto e podia ser capaz de pará-lo... Na minha mente, eu vi o rosto da Sra. Turner molhado de lágrimas diante de mim de novo, no momento em que ela percebeu que sua filha tinha acordado. Eu sabia que você ia voltar. Eu sabia que havia uma razão para manter a esperança. Virei a cabeça e encontrei o olhar de Will. De olhos arregalados, ele balançou a cabeça para mim como se pudesse ouvir o que eu estava pensando. Sinto muito. Então eu me puxei para trás em direção a Lily, orando que a Sra. Turner tivesse razão.
201
— Não! — Gritei. Mas Alona tinha ido. As caixas permaneceram abertas e brilhantes, embora, e nenhum dos outros no armário parecia certo sobre onde procurar. Mas eu sabia. Eu conhecia Alona. Auto-preservação nunca estava muito embaixo na lista dessa garota. Fiquei olhando para Lily. Ela não parecia diferente, ainda lutando para respirar e tão pálida que poderia muito bem ter ficado transparente. Mas eu tinha quase a certeza sobre onde Alona tinha ido. Ela tinha usado Lily para seus próprios propósitos novamente, e desta vez, podia matar Lily. Droga. Mas curiosamente, esse último olhar que ela me deu não tinha sido de triunfo. Nem um pouco. Ela havia parecido triste, desesperada talvez, e... resignada, se eu tivesse que descrevê-lo. — Será que desapareceu? — Mina perguntou. John adiantou-se em torno de nós dois para desconectar o cabo da caixa principal na parede. — É possível. Mas há apenas uma maneira de saber com certeza. Vamos esperar. — Ele acenou para Lily. — A menina está morrendo de qualquer maneira. Eu congelei. — O quê?
202 — A entidade esteve no lugar por tanto tempo, que ela não vai sobreviver sem ela, — disse ele. — Mas mesmo que a entidade conseguisse repossuí-la, está severamente esgotada. Removê-la não será um problema, especialmente quando a menina morrer. Pensamentos giravam em torno de minha cabeça, o que tornava difícil me concentrar em um. Lily estava morrendo? Alona tinha conhecimento disso? Ela tinha descoberto que Lily não sobreviveria sem ela? Isso teria explicado a expressão em seu rosto mesmo antes de ela desaparecer. Alona tinha acabado de tentar salvar a vida de Lily? A ideia despertou demasiados pensamentos para eu conseguir raciocinar direito. Claro, tentar salvar Lily ao possuí-la teria benefícios para Alona, também, como não ser colocada em caixas, mas ela tinha que ter sabido que ficar permanentemente presa a Lily era uma possibilidade. E ainda ela tentou de qualquer maneira. — Devemos mudar de local. Alguém pode ter ouvido o barulho. — John pegou nos puxadores da cadeira de rodas de Lily. Movi-me para bloqueá-lo. — Não. Ele me olhou, surpreso. — Você diz que está preocupado com os vivos, mas os mortos estiveram vivos uma vez. Você não pode ignorar isso só porque é mais conveniente para a sua filosofia e te ajuda a dormir melhor à noite, — Eu disse. John empalideceu. — Sim, ouça o novo recruta, — Mina disse suavemente. — Aquele por quem todos vocês estão brigando. Eu a ignorei. — Se o espírito tiver sobrevivido, se Alona tiver sobrevivido, — Deliberadamente usei o nome dela, observando as sobrancelhas de John se elevarem em direção ao céu, — eu com certeza não vou simplesmente sentar aqui e assistir Lily morrer para que você possa pegar Alona mais rápido. — Abaixei-me e cuidadosamente retirei a mordaça da boca
203 dela. A boca de Lily estava vermelha e em carne viva nas bordas devido aos gritos de Alona. — Um Killian chega para o resgate de novo. Todas as coitadas pessoas mortas que precisam de sua ajuda. — Uma amargura cansada assentou no rosto de John. — É suposto ser sobre o bem maior, Will. Seu pai nunca entendeu isso também. — Ele entendeu, — eu cortei. — A definição dele de bem era apenas um pouco mais ampla do que a sua, eu acho. Peguei a cadeira de rodas de Lily e comecei a empurra-la, parando apenas para abrir a porta. — Ela está possuída, — John cuspiu para mim. — Você não sabe disso. — É uma abominação, — continuou ele. — E você não tem que decidir isso. — A luz tinha enviado Alona de volta, e se mantivéssemos a crença de que a luz era representante de alguma força onisciente e toda-poderosa, então a luz tinha sido ciente desse resultado o tempo todo e não fez nada para detê-lo. De fato, ao enviá-la de volta, ela podia ter muito bem criado os eventos que levaram a este momento. Eu não sabia, e não podia julgar. E eu não ia permitir que John e a Ordem julgassem, também. — Você vai nos chamar, implorando por ajuda antes de dar conta, — disse ele com nojo. Talvez, mas pelo menos eu saberia o preço da sua ajuda da próxima vez, e era demasiado elevado. — Não. — Mina deu um passo adiante, com a mão fechando em volta do meu pulso com força. — Se ela ainda está possuída, eu preciso disso, Will. — Seus olhos me imploraram, mostrando seu desespero mais claramente do que palavras jamais poderiam. — Você nunca vai ser boa o suficiente, — eu lhe disse e ela se encolheu. — Ninguém é bom o suficiente para ele porque ele não se sente bem o suficiente com ele mesmo, sempre se comparando a outras pessoas, tal como se comparou a meu pai.
204 John fez um barulho de nojo. — Você não sabe do que está falando. Eu não sabia, não com certeza, mas baseado no que Mina havia dito e na sua reação às minhas palavras agora, senti que era uma suposição bastante boa. — Então você tem que ser quem você é, quem quer que seja, — eu disse a Mina. — Ligue a Lucy e conte-lhe a verdade. Ela recuou, seu olhar deslizando imediatamente para seu pai para ver a sua reação. Não era boa. Seu rosto estava avermelhado, e ele encarou-a, antes de voltar sua atenção para mim. — Se você está insinuando que alguma coisa na minha divisão não está funcionando como deveria… — ele vociferou. — Não na sua divisão, na sua família. E você sabe que não, — eu disse. — Ligue a Lucy, —disse a Mina novamente. Desta vez, ela assentiu, um movimento muito pequeno, quase impercetível, mas ainda estava lá. Empurrei a cadeira de Lily para o corredor. Para minha surpresa, o padre seguiu-nos. Eu o observei cautelosamente enquanto virava a cadeira e a direcionava para os elevadores, mas ele não fez nenhuma tentativa para me deter. — Eu estava tentando salvar a menina, — ele disse calmamente. — Eu sei, padre. — Eu também. As duas. — Eu não sabia que eles iriam machucá-la e… A cadeira de rodas saltou em minhas mãos. Olhei para baixo. Todo o corpo de Lily estava tremendo tanto que a cadeira se sacudia, e seu rosto estava ficando de um tom sinistro de azul. O medo gelou-me no lugar. O que fosse que Alona tinha feito, não era suficiente. Lily estava morrendo, e agora ela levaria Alona com ela. Eu perderia as duas. — Socorro, alguém! Precisamos de ajuda! — O padre correu pelo corredor aos gritos. Segui-o, uma mão no ombro caído de Lily e outra na cadeira, movendome tão rapidamente como ousei. — Está tudo bem. Vai ficar tudo bem. —
205 Continuei a repetir as palavras, orando para não ouvir um suspiro final dela. Eu me acostumei com a ideia de uma vida sem Lily. Mas Alona? O que eu faria sem ela? Não importa o quanto ela me deixasse louco às vezes, eu precisava disso - eu precisava dela na minha vida. Várias pessoas no corredor vieram correndo na nossa direção. O padre havia feito seu trabalho. — O que aconteceu? — O que você viu? — Para o que ela está sendo tratada? Estavam todos me fazendo perguntas em voz calma mas urgente e isso me enervou. — Acabei de encontrá-la assim, — eu disse em resposta a todos eles. A verdade, mas mal contada. Tinha certeza que eles não acreditaram em mim, especialmente quando viram a mordaça em torno de seu pescoço. Eles me empurraram para longe dela e baixaram-na para o chão. Dois deles começaram a CPR17, enquanto um terceiro correu para um telefone mais para baixo no corredor. No que pareceram segundos, todo o corredor ficou cheio de pessoal médico, um desfibrilador... e a Sra. Turner. Ela deu uma olhada em Lily no chão e lançou-se para mim. — O que você fez? O que você fez para o meu bebê? — Cada palavra veio com um soco. Eu tentei evitar a maioria deles, mas alguns acertaram, cada um com a fúria nascida de uma mãe protegendo o seu filho. — Afaste-se! Fique longe dela! — A Sra. Turner gritou para mim, e eu a deixei. Eles carregaram Lily para uma maca e se afastaram. A Sra. Turner seguiu-os em uma corrida. E eu... eu não podia fazer nada além de observar e esperar.
17
Ressuscitação Cardiopulmonar.
206
Três dias depois, e ainda assim, eles não me deixaram vê-la. Eu sabia que os Turners a tinham levado para sua casa na tarde de ontem, graças a uma breve e discreta atualização do padre Hayes, o capelão do hospital. Eu tinha lhe ligado e implorado para obter informações. Ela continua a recuperar era tudo o que ele dizia, o que não me dizia absolutamente nada do que eu precisava saber. Alona ainda estava lá? Se estava, ela estava bem? Ela podia comunicar? Ou ela agora estava presa dentro da menina que tinha tentado salvar? Eu tentei ligar para sua casa duas vezes ontem. A primeira vez, a Sra. Turner tinha simplesmente desligado. A segunda vez, ela ameaçou chamar a polícia. Ela ainda me considerava responsável por aquilo que tinha acontecido com Lily no hospital. Eu não podia culpá-la exatamente. A história que eu tinha dado - que eu tinha estado à procura de uma máquina de venda automática e tinha tropeçado em Lily, inconsciente em sua cadeira - era fraca na melhor das hipóteses. Mas desde que dizer a verdade estava fora de questão, eu estava preso nas mentiras que tinha dito naquele dia. Essas mesmas mentiras, porém, estavam agora me separando de Alona se ela ainda estivesse aqui. O não-saber estava me matando.
207 — Você está andando de um lado para o outro novamente, — minha mãe disse, olhando para mim com exasperação de onde ela estava misturando a massa em uma tigela no balcão da cozinha. — Desculpe, — eu disse, mas não parei. Oito passos para a porta de trás, oito passos para a porta de entrada para a sala, para a frente e para trás. Era meio calmante, de um jeito irritante e repetitivo. — Will, você precisa dar-lhes um pouco de tempo para se adaptar. Lidar com uma criança doente é muito estressante, — disse ela. — Tenho certeza que a Sra. Turner realmente não culpa você por nada. — Ela habilmente raspou a tigela para a forma de brownie sem sequer uma única gota de massa cair no balcão. Ela estava a fazer um monte de brownies esta tarde para deixar amanhã na casa dos Turners, assumindo que eles sequer a deixavam alcançar a porta da frente. Eu não tinha certeza se a raiva da Sra. Turner comigo iria derramar sobre a minha mãe ou não. Esperava que não. Infelizmente, eu tinha que dar a minha mãe a mesma história fraca que tinha dado a todos os outros. Porque explicar sobre a Ordem estava obrigatoriamente ligado a explicar sobre o meu pai, e eu não achava que era a minha função fazê-lo. Saber que ele tinha escondido ainda mais coisas dela do que ela pensava inicialmente iria apenas fazê-la sentir-se pior. E contar-lhe que Alona estava potencialmente habitando o corpo de Lily estava definitivamente fora de questão. Passei minhas mãos pelo meu cabelo. — Mas se eu pudesse falar com ela, então eu teria certeza de que ela está bem. Ela, obviamente, significava Lily para minha mãe e Alona para mim. O que me incomodou mais foi que Alona não fez nenhuma tentativa de entrar em contato comigo. O que isso significava? Não tinha ideia, mas conseguia pensar em infindáveis cenários de notícias ruins. Por exemplo que ela tenha desaparecido depois de tudo, ou talvez Lily voltou ao coma e enterrou Alona debaixo de todas aquelas camadas de inconsciência. Talvez Alona estivesse com raiva de mim por todas as coisas que eu disse a ela mais cedo naquele dia, quando estávamos sozinhos no quarto de Lily no hospital. Ou talvez ela
208 pensasse que eu estava zangado com ela, como tinha estado nos últimos minutos antes de perceber que ela estava tentando salvar Lily, e não apenas a si mesma. Deus, pensar em todas as maneiras possíveis de como isso poderia correr mal fez meu estômago doer. — Apenas relaxe. Deixe as coisas esfriarem um pouco. Concentre-se em seus outros amigos e no trabalho, e, eventualmente, as coisas vão se acalmar. — Ela se abaixou, abriu a porta do forno, e deslizou a bandeja de brownies dentro. Eventualmente? Como se eu pudesse simplesmente, o que, esquecer o fato de que eu não tinha ideia se essa garota com quem eu me importava tanto ainda existia ou não? — Ah, isso me lembra. Sam pensou que um de seus pneus estava um pouco baixo, então eu dei-lhe as suas chaves para o caso de ele precisar colocar o pneu de reserva, — disse ela, fechando o forno e definindo o temporizador. Eu assenti, minha mente ainda focada em Alona e Lily. — Ele diz que você tem três sacos de lixo cheios na mala do carro, — continuou ela. — Por que é que você está conduzindo por aí com lixo no carro? Lixo? Demorou um segundo para a memória cair no lugar. Os sacos que eu tinha retirado da calçada de Alona antes de tudo ter ficado tão complicado. Sacos que poderiam vir a conter um ou mais itens preciosos de sua vida. Eu parei de andar. Se Alona ainda estivesse presente dentro de Lily, e se eu pudesse encontrar alguma coisa significativa nos sacos de lixo, isso seria um presente melhor do que quaisquer brownies, não importa o quão boa a receita da minha mãe era. Podia até convencê-la, se necessário, a tomar uma posição contra a Sra. Turner e a insistir em me ver. Claro, isso assumindo que eu poderia chegar perto o suficiente de Alona/Lily para lhe mostrar o que eu tinha encontrado. Não. Eu balancei a cabeça. Eu me preocuparia com essa parte depois que descobrisse se tinha agarrado alguma coisa que valesse a pena salvar. Caminhei para a porta de trás, meus passos agora cheios de propósito. — Onde você vai? — Minha mãe perguntou.
209 — Limpar uma bagunça, — eu disse.
210
Você tem certeza de que está pronta para isso? — A Sra. Turner perguntou, enquanto estávamos no topo das escadas. Confirmei com a cabeça. Ela pegou minha mão e trancou-a envolta do corrimão e então envolveu minha outra mão dentro da dela. — Só vá devagar, — ela advertiu. — se você estiver muito cansada, podemos parar. Mas eu sabia que eu não pararia. Eu dormira no sofá noite passada na sala de estar deles e isso fora infeliz por múltiplas razões. Primeiro, os Turners podem ter amor, mas eles não têm dinheiro. Ou ao menos não o suficiente para um sofá novo que não ceda para trás, ameaçando me engolir. Segundo, nenhuma privacidade. Eu não me importava de a Sra. Turner se levantar para me verificar durante a noite. Entretanto, acordar para encontrar Tyler a dois centímetros do meu rosto, onde ele estava, aparentemente, tendo certeza se eu ainda estava respirando foi outra experiência completamente diferente. Terceiro, as vozes. O médico mencionara todos os tipos de efeitos secundários possíveis, a maioria deles ainda dos ferimentos originais do acidente de carro, mas alguns
211 do breve período em que o coração de Lily... meu coração parou. Tonturas, dores de cabeça frequentes, desorientação, dores musculares, etc. Ninguém dissera nada sobre ouvir vozes, no entanto. Começara no hospital. Mas honestamente, eu tinha dado muita atenção a isso. No hospital, existe um constante nível baixo de barulho, incluindo vozes do fundo do corredor, próxima porta, e assim por diante. Na casa dos Turners, entretanto, foi inevitável. Eu as ouvira ontem pela primeira vez. Vozes sussurando, algumas vezes quase que inaudível, outras vezes tão claro como se alguém estivesse bem perto da minha orelha. Mas ninguém nunca estava. E num momento ontem, quando eu sentara na cadeira gordurosa e desapareci no canto da sala, uma voz velha de mulher, rachada com a idade, gritara para eu me levantar. Quando eu pulara - ou o mais próximo que eu podia chegar a isso com o meu problema hospitalar e minhas pernas ainda danificadas, o que era mais como uma lenta e feia guinada a frente - a Sra. Turner perguntara-me o que estava errado. Muito cansada e abalada para inventar alguma coisa, eu apenas dissera que eu não achava que deveria sentar lá, que a cadeira parecia pertencer a outro alguém. Ao invés de ficar assustada, no entanto, como eu esperara, a Sra. Turner sorrira para mim. A cadeira tinha, aparentemente, pertencido a Vovó Simmy Vó Simone - e fora uma das poucas peças de móveis que ela já comprara nova, e ela guardava por anos enquanto ainda estava viva, nunca deixando qualquer neto sentar. A Sra. Turner pensou que eu estava apenas relembrando. Eu não tinha certeza do que estava acontecendo comigo. Eu estava esperando que o andar de baixo pudesse dar um pouco mais de paz e tranquilidade, ou no mínimo menos pessoas me encararem quando eu estava ouvindo algo que eles não conseguiam ouvir.
212 Nós avançamos nosso caminho pelas escadas até o porão, onde o quarto de Lily era. Tyler e os Turners tinham quartos no andar de cima, mas eles colocaram Lily no porão para dar a ela mais “espaço”. No fundo, encontrei-me em um pequena sala de família com uma televisão grande e quadrada em um suporte, um outro sofá flácido - esse ainda pior do que aquele no andar de cima - e muitos carpetes felpudos. A Sra. Turner levou-me através da sala de família e por um corredor estreito que terminou com duas portas diretamente de frente uma para a outra. — Aqui nós estamos — ela disse, abrindo a porta do lado esquerdo. O quarto era pintado com um branco brilhante e simples. Uma coisa boa, também, porque o carpete era de um rosa ofuscante. Qualquer tipo de padrão ou de cor da pintura na parede provavelmente teria causado combustão espontânea em cabeças. Como se as fotos rasgadas de celebridades das revistas espalhadas por todo o quarto em várias mini-colagens na parede não fosse ruim o suficiente. Um gasto e surrado beliche estava a minha direita. O edredom rosa pálido com carruagens, castelos e fadas foi a gota d’água para me lembrar do quarto de hospital. Uma escrivaninha e cômoda incompatíveis dominavam a parede oposta e então dois grandes closets assumiam a ponta. Três grandes janelas corriam ao longo do comprimento da parede com a escrivaninha e a cômoda. A casa foi construída numa colina, então as janelas eram quase como as do andar superior ao invés das janelas apertadas e minúsculas do porão situadas no alto das paredes, como em minha casa. — Viu? Não mudamos nada. —A Sra. Turner disse orgulhosamente. Acenei com a cabeça. Claro, que não parecia nem um pouco familiar, exceto por vislumbres do que eu vira alguns meses atrás numa fotografia de Will, Lily e Joonie neste quarto ano passado uma vez. — É ótimo — eu disse. Não poderia deixar de notar que não havia telefone no quarto, no entanto. Perguntei-me se sempre fora assim ou se ela tirara-o especificamente por causa da minha chegada.
213 A Sra. Turner recusou-se a me dar o celular de volta depois “do incidente” no hospital. Era assim que estávamos chamando. O incidente. Ela culpou Will pelo que acontecera, mesmo que, no entanto estava óbvio que ela não estava inteiramente certa do que acontecera. Só que ele estivera lá, de alguma maneira envolvido e, portanto, deve ter sido culpa dele, principalmente porque ela não tinha mais ninguém para colocar a culpa. Eu teria me esforçado mais para conversar com ele, mas ele não demonstrou nenhuma vontade em chegar até mim, tanto quanto eu sabia, e imaginei que ele pudesse ainda estar enfurecido. Eu não tivera uma chance para explicar a ele o que eu estava fazendo ao assumir o corpo de Lily. Ele provavelmente pensou que eu fizera isso porque podia. E se fosse esse o caso, ele talvez nunca mais falaria comigo novamente. Meu coração doía com a ideia de que eu estava nisso sozinha agora. Eu sentia a falta dele. — Você está bem, querida? — A Sra. Turner perguntou. — Você parece pálida. — Só cansada, eu acho. — Na verdade, eu era um monte de ossos exaustos. Estar viva era muito mais trabalhoso do que eu lembrava. É claro, já que eu estava em um corpo danificado, um que não era o meu próprio, talvez não fosse tão surpreendente que precisaria de mais esforço que eu lembrava. — Por que você não se deita por algumas horas? O jantar não estará pronto antes das seis, de qualquer maneira — a Sra. Turner disse. Plantar a cara no travesseiro e fechar-se do mundo por um tempo parecia uma ideia maravilhosa. Deixei a Sra. Turner puxar as cobertas e me ajudar na cama. Eu poderia ter feito isso sozinha, provavelmente, mas era meio que legal ter uma assistência. Ela puxou o lençol até meu ombro e colocou-o em volta de mim. — E Blankie está debaixo de seu travesseiro novamente — ela sussurrou antes de beijar minha testa e se afastar.
214 Ela deixou o quarto e fechou a porta parcialmente atrás dela. Com um esforço, eu rolei para o lado e deslizei minha mão para debaixo do travesseiro, localizando o pedaço irregular de cetim que era o Blankie de Lily em meus dedos. Mesmo a ideia de quantos germes aquilo poderia ter não me impediu de tocá-lo. Quantas noites ela se deitou aqui, bem desse jeito, pensando e se perguntando de amanhã? Por quanto tempo eu estaria aqui fazendo isso em seu lugar? Pensando em tudo isso, comecei a cochilar e foi quando as vozes começaram... de novo. — Esta é ela? — A primeira perguntou. O falante soou feminino e novo. Eu mantive meus olhos encolhidos e fechados. Não há ninguém aqui. Ninguém. Ninguém. Ninguém... — Eu acho. — a segunda voz, masculina, desta vez, disse. — Eu não sei qual é o grande problema, — a feminina disse, soando impaciente. — Então, ela está acordada. Eu não entendo porque ele não pode nos ajudar por causa dela. O que era pior é que desta vez as vozes soavam de alguma maneira familiar. Ótimo. Eu estava fazendo amigos com estas invenções da imaginação do meu cérebro com problemas. — Quero dizer, primeiro Alona desaparece sem dar nenhuma palavra — ela continuou. Meus olhos se abriram. Eu ainda não conseguia ver nada, mas as vozes soaram como se estivessem vindo do pé da minha cama. — Então Will coloca na cabeça que esta garota é mais importante do que nos ajudar a passar para a luz. Essa coisa com Claire e Todd não vai durar para sempre. Espero que ele saiba disso. — Liesel? — perguntei incrédula, colocando-me em uma posição sentada. Um silêncio assustador encheu a sala e se manteve por um segundo. — Ela pode nos ver? Espere, você pode nos ver? — A voz dela moveu-se para mais perto e eu insistivamente me movi para trás.
215 — Não, — admiti. — Mas posso ouvi-los. — Você é outra que fala com fantasmas? — Ela perguntou, incrédula. — Assim como Will? Abri minha boca para explicar quem eu era, mas então parei. Se eu contasse a eles que eu era a Alona e que tinha conseguido assumir um corpo, as palavras se espalhariam rapidamente. Haveriam centenas de fantasmas alinhados no hospital para tentar fazer isso no próximo pobre e confiante paciente de câncer? Eu não tinha certeza se isso funcionaria já que eu não entendi totalmente por que tinha funcionado comigo. Mas também não gostava da ideia de eles tentarem. — Sim, eu acho — consegui dizer. — Como você sabe meu nome? — Liesel quis saber. — Por que você não pode nos ver? — Eric perguntou. Respondi a pergunta mais fácil, a de Eric, primeiro, esperando que eles pudessem usar minha resposta para as duas. — Eu não tenho ideia, — admiti. Em teoria, eu não deveria ser capaz de ver ou ouvi-los, mas como um fantasma, eu era capaz de fazer os dois facilmente. Talvez sendo capaz de ouvi-los fosse só um tipo de efeito colateral da fusão de Lily e eu. — Ok, então ouça. Eu tenho uma amiga, Claire — Liesel começou. Eu gemi interiormente, imaginando a citação de outro conto sórdido de Liesel, Eric e Claire. Uma batida leve soou na janela de longe. Olhei para ver Will, as mãos em concha no vidro para olhar dentro. Meu coração deu cambalhotas em meu peito. Ele estava aqui! Ele não podia estar bravo comigo, então, podia? — Rápido, mova-se! — Liesel ordenou Eric. — Se ele nos vê aqui, ele matará todos nós de novo. Eu não ouvi nada mais e, em seguida, o som fraco de um sussurrar veio do corredor além de meu quarto. Claramente, eles fugiram do momento. Eu puxei os cobertores sobre mim, atrapalhando-me um pouco com eles e grata por ter ficado vestida nos melhores jeans e camiseta de Lily, o que não
216 era muito, e olhei para a janela. No momento em que Will me viu, seu rosto relaxou e ele sorriu, um evento tão raro que me paralisou e fez meu pulso acelerar. Não, ele não estava bravo no final de contas, parecia. É claro, aquilo pode acabar sendo o menor de nossos problemas. Como nós iamos fazer isso? Ainda éramos amigos? Mais? E éramos amigos tanto quanto Alona e Will? Ou Lilly e Will? Será que ele nunca seria capaz de me ver por quem eu era, quando eu parecia outra pessoa? Só pensar nisso fazia minha cabeça e meu coração doerem.
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Lily - bem, na verdade Alona, eu acho, - veio até a janela lentamente, mancando enquanto andava e suas mãos para fora em seus lados, como se para pegar a si mesma se começasse a cair. Ela se esforçou para levantar a janela com uma só mão, pendurada na soleira com a outra mão para equilíbrio. Eu queria ajudar, mas a tela estava para baixo, então eu não poderia alcançá-la. Além disso, eu poderia ler uma muito familiar teimosia em seu rosto, embora não fosse uma expressão que eu estava acostumado a ver nesse rosto em particular. Ela finalmente conseguiu empurrar a janela e sustentar sua mão sob ela para não cair. — Oi, — eu disse, sentindo-me desajeitado e tímido, de repente, como se esta não fosse a garota que eu tinha beijado nos arbustos apenas alguns dias atrás. Quero dizer, era, mas também não era. — Oi, — disse ela de volta, em um tom igualmente desconfortável. Seu olhar disparou para todos os lugares, exceto meu rosto. Eu hesitei. — Acho que eu só queria ter certeza de que você está bem depois de tudo que aconteceu com a Ordem e…
218 — Liesel e Eric estão aqui, — disse ela brilhantemente em advertência. — Eles estão pedindo minha ajuda. — O que? — Eu perguntei, confuso. Liesel estourou do corredor com Eric em seus calcanhares. — Você não deveria dizer a ele, — ela protestou. — Viemos para ver quem estava ocupando todo o seu tempo em vez de nós, — Liesel disse-me com um muxoxo. — E então acontece que ela é capaz de falar com fantasmas como você. Olhei para Lily/Alona. — Eu posso ouvi-los, mas não posso vê-los, — ela disse-me em voz baixa. Mas isso não teria sido possível. Lily nunca tinha sido capaz de ver ou ouvir fantasmas antes, nem Alona quando era viva, eu estava bastante certo. Então, novamente, Lily tinha quase morrido enquanto Alona se fundia com ela. Quem sabia o que a combinação de uma experiência de quase-morte e uma vida fantasma dentro de você faria? — Então, agora que há dois de vocês, podem realmente preparar as coisas. — Liesel alisou as mãos para baixo na frente de seu vestido. — Estou pensando que se falarmos com Claire amanhã… Eu suspirei. — Eric, cara, você tem que falar. Ele olhou para mim. — Cale-se, Will. Alona/Lily parecia intrigada. — O que Eric tem a ver com isto? — Liesel perguntou, parecendo confusa. — Em uma palavra? Tudo, — eu disse. O rosto de Eric foi ficando vermelho e ele empurrou o cabelo para trás de seus olhos. — Você disse que eu poderia escolher meu momento, — disse ele para mim. — Cara, você já teve mais de 30 anos, — disse eu. — Isso é um monte de momentos. — Oh, — Alona/Lily disse de repente. — Ele está apaixonado por Liesel.
219 Claramente, esta fusão não afetou as habilidades loucas de observação de Alona. Eu tive que esperar Eric me contar, mas ela percebeu tudo por conta própria. — O que? — Liesel gritou, olhando para Eric como se nunca o tivesse visto antes. Eric olhou ao redor como se estivesse desesperado para escapar, mas eu acenei para ele, encorajando. Ele tossiu, limpou a garganta, e então enfiou as mãos nos bolsos das calças do smoking azul. — Então, sim. — Ele engoliu em seco. — Eu estou apaixonado por você, Liesel. Tenho estado desde que nós morremos. — Ele fez uma pausa, deslocando seu peso nervosamente. — Na verdade, antes disso, mesmo, — acrescentou ele, gaguejando um pouco. — Eu sei que você se sente culpada, como se tivéssemos traído Claire, — disse ele. — Mas a verdade é que eu nunca me senti dessa forma sobre ela. Nunca. — Ele estendeu a mão e pegou a mão dela, virando-a de frente para ele. — Juro, eu nem mesmo sabia que ela gostava de mim até depois... bem, depois. — Ele corou. — Então, o que eu estou tentando dizer é, — ele continuou, — você pode ter outras razões para estar aqui no meio-termo18, mas eu fiquei, e estou ficando, por causa de você. — Ah. — Eu não podia ver a expressão de Liesel, de costas para mim, mas parecia que ela estava chorando. — Eu também te amo, — disse ela, fungando. — Eu me senti tão mal porque eu pensei que você e Claire… — Não, nunca. Sempre foi você. Em seguida, eles estavam se beijando um ao outro, com quantidades muito entusiasmadas de língua, eu não poderia evitar perceber. Fiz uma careta e olhei para longe. — O que eles estão fazendo? — Alona/Lily sussurrou. — Babando um sobre o outro, na sua maior parte. 18
Referido no livro 1, é a condição de fantasma, de estar entre duas dimensões.
220 Ela enrugou o nariz em desgosto e revirou os olhos para mim, o que me fez rir. Ela ainda era Alona, embora talvez uma versão um pouco diferente. Alona 2.0 ou algo assim. Eu senti a luz antes de a ver, o calor que era de alguma forma... mais do que qualquer coisa. Ela veio de cima, movendo-se como o sol líquido, trazendo consigo aquele sentimento de que algum nó incognoscível no seu interior finalmente tinha relaxado. Ela envolveu Liesel e Eric quando eles estavam se beijando. Eles nem pareceram notar. Alona/Lily virou-se ligeiramente para olhar em sua direção geral com indisfarçável desejo e inveja. — Está aqui, não está? A luz. — ela perguntou em voz baixa. — Sim, — eu disse, assustado. — Você pode vê-la? Ela balançou a cabeça. — Eu posso sentir, mais ou menos. Apenas uma mudança no ambiente. Um calor. — Uma lágrima rolou pelo seu rosto, mas eu não tinha certeza se ela reparou. A luz ficou mais forte, então, os dois se tornando o centro tremendamente brilhante até que fosse tão intenso que eu tive que desviar o olhar. Então a luz começou a desaparecer, levando Liesel e Eric. Pisquei rapidamente e uma imagem brilhante dos dois ficou temporariamente gravada na minha visão. — Você está bem? — Eu perguntei. Ela assentiu com a cabeça e enxugou o rosto com a mão. — Nós vamos encontrar uma maneira de corrigir isso, — eu disse, tentando soar confiante. — Uma maneira de você ir para a luz, se quiser, e de Lily ficar e ainda ficar bem. Ela não parecia tão certa sobre isso, e para ser honesto, nem eu estava. — Nesse meio tempo, porém, tenho algo para você. — Eu me abaixei e peguei a caixa de sapato que trouxe. Com uma pequena quantidade de luta, ela conseguiu levantar a tela.
221 Eu entreguei-lhe a caixa, meus dedos escovando os dela no processo, e uma estranha, quase elétrica sensação passou por mim. Isso me fez querer envolver sua mão com a minha e segurar. Mas eu resisti. Ela olhou para a caixa de sapato e depois para mim. — São sapatos de homem, — ressaltou. — E se esta imagem é precisa, eles são feios, também. Quer dizer, tassles19, realmente? Ah, algumas coisas nunca mudam. — Não que eu não aprecie o pensamento, — acrescentou rapidamente, embora fosse claro que qualquer pensamento que envolvesse trazer-lhe sapatos de homem feios era realmente o oposto de apreciado. Eu suspirei. — Apenas abra, pode ser? — Você vai ter que levar isso de volta para a loja, — disse ela, enquanto tirava a tampa. — Eu ficaria com vergonha de ser vista com eles. Então, ela olhou para baixo e viu o que estava lá dentro. Seus olhos se arregalaram. — Eu não consegui encontrar tudo, — disse rapidamente. Mas, entre outras coisas, eu tinha encontrado algumas fotografias, uma planilha que parecia ser sobre a roupa, alguns bilhetes de concertos, e um pedacinho de tecido, agora manchado de refrigerante, que eu pensei que poderia ser a sua lembrança da faixa de Rainha do Baile. — Pode até haver mais nos sacos que eu consegui pegar, mas não tinha certeza do que era importante e… Ela segurou a caixa contra o peito e jogou o braço livre ao redor do meu pescoço. Ela estava chorando de novo, mais do que antes, e isso sacudia seu corpo. Eu encontrei-me puxado para baixo em direção a ela, meu nariz pressionado contra a pele macia de seu pescoço. Ela cheirava a flores e baunilha, um aroma fresco e doce que não era nem Alona nem Lily, mas alguma combinação das duas, que resultava em algo - e, possivelmente, alguém - novo. Envolvi meus braços ao redor tanto dela quanto conseguia alcançar. O ângulo era estranho com ela mais perto do chão do que eu. 19
São aqueles negócios que ficam pendurados nas cortinas, que alguns sapatos também têm como decoração. http://theauraint.com/images/category/soft-furnishings/Tassels/4.jpg
222 — Obrigado, — disse ela em voz baixa, com uma voz engrossada por causa das lágrimas. Eu toquei seu cabelo marrom brilhante, alisando-o. Não era o de Alona, definitivamente, mas se sentia bem, certo de alguma forma. — De nada. — Eu hesitei. — Não sei como te chamar. Quer dizer, eu sei quem você é, mas não posso ir por aí te chamando pelo seu nome verdadeiro e… Ela assentiu com a cabeça e me soltou, recuando um passo e limpando seu rosto. — Eu pedi para eles me chamarem Ally. Parece próximo o suficiente de L.E., e, aparentemente, Elizabeth é o nome do meio de Lily, de modo que funciona tudo bem. E agora, eles estão felizes o suficiente para me chamar de qualquer coisa que eu quiser. — Ela sorriu tristemente. Toquei seu rosto, meus dedos atraídos irresistivelmente a sua cicatriz, um símbolo do evento que tinha aparentemente posto tudo isso em movimento, muito antes de nós sabermos que era algo mais do que um trágico momento no tempo, independente e sem ligação a qualquer coisa antes ou depois dele. Ela se afastou de mim um pouco, deixando seu cabelo deslizar para a frente para esconder o rosto. Mas algum impulso levou a minha mão à frente para prender seu cabelo atrás da orelha novamente e depois para me inclinar mais e pressionar um beijo em sua bochecha cicatrizada. A pele estava ligeiramente levantada lá, mas de outra forma quente e suave e sabendo ao sal de suas lágrimas. Seus olhos estavam arregalados e marrom, mas a surpresa neles era completamente Alona. Claro que, como ela odiava imperfeições nos outros, nunca iria tolerá-las em si mesma, até mesmo uma versão de empréstimo temporário. — Obrigado por salvá-la, — disse eu. — E se salvar a si mesma. Ela desviou o olhar. — Eu não sei. — Eu sei, — disse firmemente. — Vai ficar tudo bem. Ela olhou para mim, em busca de certeza na minha expressão, eu acho. Mas então seu olhar caiu para a minha boca, e naquele segundo, eu não queria nada mais do que me inclinar para a frente e beijá-la. Mas eu resisti. Não era certo. Ainda não.
223 — Ally, querida, você está acordada? Eu pensei que estivesse descansando, — a voz da Sra. Turner chegou até mim. — As coisas não vão correr bem se ela te pegar aqui, — ela sussurrou, olhando para trás por cima do ombro, para a porta. — É melhor você ir. — Desde quando você se preocupa com o que um pai pensa? — Eu perguntei. Ela levantou um ombro em um encolher de ombros. — Desde que eles começaram a se importar comigo, eu acho. Interessante. Outra mudança inesperada nela. — Eu vou voltar amanhã, — avisei. — E todos os dias depois desse, até que eles me deixem ver você. Ela sorriu, um brilho perverso em seus olhos, sombras de seu antigo eu. — Legal. Eu gosto de um pouco de desespero em um cara. Constrói o caráter. Coisa boa. Porque eu tinha a sensação de que quando tudo isso finalmente terminasse, eu provavelmente teria caráter - desespero - de sobra. Mas eu não ia me preocupar com isso agora. Eu a ajudei a baixar a tela e a janela, os nossos dedos se tocando mais uma vez com o mesmo calor de antes, e depois saí antes que a Sra. Turner pudesse me pegar. Eu precisava fazer uma boa impressão amanhã, no dia seguinte, e por quanto tempo depois disso fosse necessário para manter Alona... Ally na minha vida. Simplesmente não era o mesmo sem ela.
Fim
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Continua em...
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Sinopse O Espírito Eu estive presa no corpo de Lily "Ally" Turner por um mês agora. Fale sobre a crise de moda em uma escala épica. O que mais me preocupa, porém, é que às vezes eu pego Will olhando para mim como se ele achasse que eu sou Lily... ou que ele gostaria que eu fosse. Sem a boa aparência do meu antigo eu, eu não sei quem sou, ou se quem sou que é bom o suficiente. Eu preciso sair dessa bagunça. Agora. Will e eu temos procurado uma solução, uma que iria me separar de Lily sem matá-la. Mas isso não está indo bem. Então, quando parece que as coisas não poderiam ficar piores, nos deparamos com Misty, a minha ex-melhor amiga e extraordinária ladra de namorado, que afirma que ela está sendo assombrada... Por mim. Sério? Estou determinada a chegar ao fundo de quem está fingindo ser o espírito de Alona Dare (enquanto eu estou fingindo ser outra pessoa) e depois cair fora desse corpo. Ou morrer tentando...
O Gótico Eu vou admitir isso. É realmente estranho olhar para Alona, mas ver Lily. Eu sei a diferença, porém, ao contrário do que Alona pode estar dizendo. Alona é mais do que um rosto bonito para mim, não que ela iria acreditar nisso. Nossa única pista para alguma ajuda nesta confusa situação poderia ser uma página arrancada da Páginas Amarelas - da seção de "videntes" - que encontrei nas coisas do meu pai. Um dos "falsos" parece um pouco mais real e estranho do que os outros. Antes que eu possa investigar mais, porém, Alona está fora e correndo atrás de um fantasma que provavelmente não é nada mais do que um produto da imaginação culpada de Misty. Agora a família de Lily está pirando porque ela não voltou para casa, minha mãe está me mandando ficar de fora, e algo está definitivamente errado com a pessoa anteriormente conhecida como Lily "Ally" Turner...
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Créditos: Tradução RedB. Ana Julia Giovanna Ren
Revisão Inicial Juliana
Revisão Final RedB.
Formatação RedB. Sophie
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