Revista Eparrei Online - Maio e Junho 2014

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EPARREI Revista Eparrei é uma publicação do Programa de Comunicação da CASA DE CULTURA DA MULHER NEGRA Rua Prof. Primo Ferreira, 22 CEP 11045-150 - Santos/SP Telefax: (13) 3221-2650 / 3223-2493 E-mail: ccmnegra@uol.com.br www.casadeculturadamulhernegra.org.br Editora e Coordenadora Geral Alzira Rufino Jornalista responsável Eliane Almeida MTb 39.832 Redação Djamila Ribeiro, Eliane Almeida, Kelly Albuquerque Revisão Alzira Rufino, Maria Rosa Pereira Digitação Janaína dos Santos, Dayane dos Santos Direção de Arte e Fotos Ori Wani Consultora Jurídica responsável Dra. Carmem Schmit Colaboraram nesta edição: Artigos: Alzira Rufino, Ana Felippe Garcia, Berenice Assumpção Kikuchi, Debbie Lee, Fernanda Felisberto e Heloísa Pires Reportagens: Fernanda Felisberto, Isabel Clavelin Produção Gráfica Groüp Design Fotolitos e Impressão Gráfica Vice Rei Tiragem desta edição 1.500 exemplares Equipe da CCMN Benedita Canuto Cleonice Freitas Dayane Cândido dos Santos Djamila Ribeiro Dra. Tatiana Ferreira Evangelista Santos Dr. Marco Antonio Romano Dra. Silvia Mara dos Santos Silva Flávia Monteiro Janaína Cândida dos Santos Juraci Marques Profa. Maria Aparecida Varella Profa. Maria Rosa Pereira Margarete Martins Orixá Alabi Urivani R. Carvalho

EDITORIAL Dois minutinhos. É o tempo que se tem para fazer o editorial. A revista está saindo. Depois de tantas idas e vindas, conseguimos ordenar no papel o que grita neste momento: leis e ações afirmativas, cotas, capacitar para o poder. A Lei 10.639, que leva para a escola a história e cultura da África e dos Afro-brasileiros, requer um grande investimento em capacitação e em materiais educativos assinados por experts negros/as. Capacitar para que não tenhamos o susto de ver idéias e leis, mais uma vez, no ralo e na lata do lixo. Capacitar, capacitar, capacitar. Trazemos neste número da Revista Eparrei um Rio de Janeiro de mulheres como Wania, Neusinha, as Criolas, Joselina, Jurema, com vontade de lutar por um povo que não tem medo de careta; uma parcela da negritude do povo maranhense; a consciência do poeta Oliveira Silveira e da atriz /ialorixá /fotógrafa/documentarista Chica Xavier; artigos, cultura e poesia negra em movimento. Sabemos que o produto principal de uma matemática de exclusão é a subtração de alguns quesitos: educação, alimentação, cultura, acesso à capacitação profissional. Este número que apelidamos de Ciranda Formatada é um projeto especial. Resulta de um processo de jovens negras que discutiram e dividiram criatividade no Laboratório de Redação e Comunicação Visual da Revista Eparrei, às quais se somaram as jornalistas Eliane Almeida, Kelly Albuquerque, Fernanda Felisberto no RJ e Isabel Clavelin em Porto Alegre. Processo incandescente com a urgência de mostrar nos pontos de comunicação planetária nossa ansiedade de falar do “só quem sente, sabe”. O resgate da nossa auto-estima compartilhamos com os leitores e leitoras da Revista Eparrei, que, a cada número que circula, amplia a nossa galeria de amigos/as de todas as cores. Enquanto editora destas idéias, cumprimento a garra das jovens comunicadoras negras que ajudaram a fazer esta edição. É isso aí. Isso é só o começo. Valeu!

Alzira Rufino

Editora alzirarufino@uol.com.br

Representantes de vendas da Revista Eparrei: Acmun/RS, Nzinga/Coletivo de Mulheres Negras de BH, Memória Lélia Gonzalez/RJ e Tainá Garcia/BA Apoio Misereor, Solidaridad, War on Want/Dfid/Comunidade Européia

Foto da capa e contracapa: Ranieri Brasil EPARREI 3


SUMÁRIO

05 - Cartas a Eparrei e Agenda 06 - Chica Xavier 10 - Ações Afirmativas 13 - Abayomi A Identidade nas Mãos 15 - Áfricas e Brasis no Espelho Artigo de Heloisa Pires

16 - Negritude do Maranhão 19 - Turismo Étnico Artigo de Ana Felippe Garcia

21 - Casa das Minas 24 - Se Ligue 25 - Anemia Falciforme e Diagnóstico Neonatal Artigo de Berenice Kikuchi

27 - Profissões

Eparrei

Vanda Ferreira, Edialeda Salgado Nascimento, Marta de Oliveira, Creuzely Ferreira

32 - Mostra Arte da África 35 - As Criolas

Artigo de Fernanda Felisberto

36 - Cafofo da Surica Ponto de encontro do samba 37 - Um jeito negro de informar 38 - A Política como Missão Jurema Batista 40 - Joselina “O momento é de capacitação!” 43 - O papel dos serviços de saúde na prevenção da violência doméstica Artigo de Debbie Lee (EUA)

44 - Sessão Mulher 45 - Entrevista: Wania Sant´Anna 52 - Eu tenho orgulho de ser mulher negra 53 - A consciência negra do poeta Oliveira Silveira 56 - Coisa de Mulher 58 - Cia. Étnica de Luz 59 - Configurações em Preto e Branco Artigo de Alzira Rufino

61 - Fala Poeta ! 62 - Culinária 4 EPARREI


Cartas a Eparrei “Eparrei é importante, pois ela vem desmistificando cada vez mais a idéia, arraigada ainda no imaginário popular, de que não é possível o negro fazer um veículo de qualidade. A Casa da Cultura da Mulher Negra de Santos faz. Continuem surpreendendo a todas nós e continuaremos a nos sentir orgulhosas de termos, em nossos lares, um veículo sério e de representação de nossas ansiedades. Parabéns! “Profa. Dra. Mary Francisca do Careno-Unesp/ Unaerp. À Editoria da Revista Eparrei: Meus caminhos e da Revista EPARREI se cruzaram no Fórum Social Brasileiro, em Minas Gerais. Não hesitei. Hoje sou uma das mais novas assinantes dessa conceituada revista e já posso testemunhar a qualidade do trabalho e elevado nível das entrevistas, matérias e artigos que publica, disseminando informações de qualidade sobre a comunidade brasileira afro-descendente. Esta revista é muito importante para nossa luta pela igualdade de raça e também de gênero. Parabéns! Ministra Emilia Fernandes Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República; Brasília/DF - 10/11/2003

DANO PSÍQUICO Sou supervisora escolar da rede municipal de São Paulo, na Coordenadoria de Educação de Vila Prudente de Sapopemba. Gostaríamos de obter autorização de vocês para utilizarmos a imagem dos bebês - (ibejis) da contra capa da revista nº 3 do 2º semestre de 2002. Pretendemos enviar as unidades escolares com mensagem de natal, queremos um outro referencial de anjos. No mesmo número também há um artigo intitulado Racismo e Dano Psíquico, o qual gostaríamos de republicar com em nosso boletim mensal, enviado para as escolas, pois, temos feito ainda timidamente a discussão sobre a questão racial. Elizabeth Dias – São Paulo/SP – 24/ 11/2003 Somos professoras de uma Escola Municipal de Porto Alegre (RS) e trabalhamos com literatura (para todas as faixas etárias) e educação de jovens e adultos. Utilizamos as publicações (Eparrei) em nossas atividades e nos interessamos muito pelo Encarte Lendas dos orixás para crianças. Silvia Andrade e Lizete Rocha – Porto Alegre/RS - 02/12/2003

Penso que nós, homens e mulheres negras, que fazemos este país, temos o direito e o dever de dar-lhe direção. Acredito que esta publicação, na conjuntura específica atual, tem contribuído para mostrar que nós (homens e mulheres negras),agora “ tomamos a palavra”; Não permitiremos mais que outros falem por nós, que pensem por nós...Sou estudante de pós-graduação em Letras da PUCMINAS e devo dizer que a revista, bem como os temas tratados pela mesma, tem contribuído para as discussões do grupo de pesquisa do qual faço parte. Patrícia Pereira - Belo Horizonte/ MG - 05/12/2003 As vossas informações têm sido muito interessantes e úteis para o nosso trabalho. E, através deste informativo, conseguimos estar em dia com muitos acontecimentos sobre o Brasil, em geral, e sobre as mulheres brasileiras, em particular. Os vossos progressos na luta contra a discriminação racial têm sido acompanhados por nós e nos orgulhamos de participar, mesmo à distância, de um movimento tão dinâmico e revolucionador como é o vosso. Acia Sales e todo o Gabinete do Fórum Mulher Moçambique – Maputo- 17/02/2004 E-mail: acia@forumulher.org.mz

Queiro reiterar-lhes meu agradecimento por manter já há alguns anos meu endereço eletrônico nos seus arquivos, que me permitiram manter ao tanto de noticias suas. Em especial, desejo destacar as reportagens sobre os Fóruns Mundiais Sociais. Com apreço. Joaquin Tamayo - Unidade de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente -OEA Washington, DC EEUU Caríssimas amigas, saudações! Escrevo agora para lhes contar o seguinte: hoje estivemos em Jacarepaguá inaugurando o Núcleo Abdias do Nascimento da Educafro. Na aula inaugural, Abdias falava do movimento negro, das mulheres negras, e citou a revista Eparrei dizendo, textualmente, “Talvez a revista mais bonita do Brasil seja essa revista das mulheres negras lá de Santos. Uma revista de uma beleza extraordinária.” Elisa Larkin do Nascimento – Rio de Janeiro/RJ – 06/03/2004 Gosto muito de receber o Boletim Eparrei. Sinto-me contemplada com notícias e análises feitas sob medida para nós negras e negros. Lídia Cunha - Vice-Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. 30/12/2003

Agenda Seminário Nacional de Educação e Cultura “Por uma Educação sem Discriminação – A Lei 10.639 pela ótica das/os educadoras/es negras/os. Data: 10 a 13 de junho de 2004 Local: Santos/SP Realização: Casa de Cultura da Mulher Negra Maiores informações: telefax: (13) 3223-2493 e Tel: (13) 3223-0738 Bolsas de pós-graduação no Reino Unido Inscrições abertas de 1º de maio a 31 de julho 2004. O Programa Chevening é administrado pelo British Council. Informações: www.chevening.org.br www.britishcouncil.org.br

I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres Data: 17 a 19 de junho de 2004 Local: Brasília Coordenação: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Tels: (61) 2104-9381 / 2104-9377 VII Congresso Internacional da BRASA (Brasilian Studies Association) Data: 09-12 de junho de 2004 Local: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro www.brasa.org/congress/port/ congress-port.htm 1º Fórum Cultural Mundial 26/junho a 4/julho de 2004 Local: Cidade de São Paulo/SP 03 blocos de atividades: Convenção Global, Feira de Idéias e Oportunidades e Festival. www.forumculturalmundial.org

III Encontro de Pesquisadores Negros Data: 6 a 10 de setembro de 2004 Local: Univ. Maranhão - S. Luís – MA www.copene.ufma.br Conferência Nacional de Saúde e Violência Doméstica Data: 21 a 23 de outubro/2004 Local: Park Plaza Hotel, Boston, MA Organizada pelas redes norteamericanas de profissionais de medicina, psiquiatria, enfermagem. Inscrições e informações em: www.endabuse.org/programs/ IV Fórum Nacional Iniciativas Negras - Trocando Experiências Data: 05 a 15 de outubro de 2004 Inscrições: Até 15/06/04 Organização : Centro de Estudos Afro-Brasileiros - Ucam / RJ Tel. (21) 2516-2916 - Site: www.ceab.ucam.edu.br

“Quando o racismo dá as caras, você não pode esconder a sua” (Slogan do cartaz do Disque-Racismo / RJ)

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Chica

Por Eliane Almeida

Chica Xavier

“Luto para ver, antes de eu morrer, alguém falar de atrizes negras como atrizes e não com esse apartheid de atriz negra e atriz branca, como se fossemos uma minoria ou um animal raro. Já basta fazermos papéis de animais domésticos”. Em toda sua

doçura, um toque de revolta. Chica Xavier, atriz brasileira, esposa de Clementino Kelé (ator), mãe orgulhosa de Christina, Izabela e Clementino Júnior, revela a Eparrei muitas outras facetas, inclusive a de militante das causas de valorização do povo negro.

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Foto: Richard

Chica Xavier N

ascida na Bahia, em 22 de janeiro de 1933, ao som do samba de roda e em dia de festa (a parteira festejava o próprio aniversário enquanto sua mãe entrava em trabalho de parto), em um terreiro de candomblé chamado Roça da Sabina, Francisca Xavier Queirós de Jesus teve ali seu destino marcado pelas mãos dos orixás. “Nasci de bruços e acredito que nasci assim para reverenciar o santo. Já estava agradecendo por ter me deixado vir a esse mundo”, revela. Sua mãe, moça solteira, antes de seu nascimento era auxiliar de escritório e por vergonha da gravidez decidiu esconder-se e ter sua filha longe de todos. Era o ano de 1932. Criou Francisquinha, como era chamada enquanto criança, lavando roupa para fora.

inata, como nos conta sua filha Izabela. Desde criança, Chica se sentia atraída pela vida sob os holofotes. Ela dançava, na escola primária era oradora oficial da turma e nas festas sempre era convidada pelas diretoras para representar, recitar ou falar sobre o motivo da festa. “Desde muito cedo, 12, 13 anos, eu já fazia roupas de papel crepom para vestir meus colegas para a dramatização de uma música ou de uma poesia”, Chica recorda. Aos 14 anos foi trabalhar na Imprensa Oficial do Estado da Bahia como encadernadora e depois se tornou gráfica. Sorte de ser afilhada do educador Anísio Teixeira que era Secretário de Educação da Bahia, com quem a mãe de Chica havia trabalhado ainda solteira.

Por conta das dificuldades financeiras, a menina Francisca precisou trabalhar desde cedo. Sua mãe tinha-lhe explicado a importância de saber um pouco de tudo. E foi o que fez: aprendeu a fazer sapatos, costurar, fotografar. “Aos 12 anos fui trabalhar como aprendiz de fotógrafa com um profissional cuja esposa era dona de um centro espírita. Com ele aprendi a fotografar, revelar, todo o processo até à entrega do produto final. Paralelamente, auxiliava a esposa dele nas suas consultas emitindo notas”, relata Chica. Sua mediunidade foi sendo desenvolvida gradativamente e de maneira natural. Ao freqüentar o centro onde o Caboclo Boiadeiro se manifestou pela primeira vez, no bairro do Curuzu, em Salvador, foi se desenvolvendo sem se dar conta. “Nesse centro baixavam falanges de caboclos. Ao cantar o ponto do caboclo, ele se manifestou”.

Decidida a fazer carreira artística, Chica Xavier, saiu de Salvador, junto com seu namorado Clementino Kelé e chegou ao Rio de Janeiro no dia 6 de janeiro de 1953, poucos dias antes de completar seus 21 anos. O apadrinhamento do educador Anísio Teixeira, nesta ocasião morando no Rio de Janeiro, foi mais uma vez o divisor de águas na vida de Chica Xavier. Ela foi procurá-lo e ele mandou-a fazer uma prova e a colocou no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) onde era diretor. “Me desliguei da Imprensa Oficial do Estado da Bahia e fui trabalhar no INEP, onde me aposentei como jornalista e documentarista”. Os caminhos para a carreira artística de Chica se abriram através de um amigo que fez enquanto trabalhava no INEP, o catarinense Sálvio de Oliveira. Sálvio conhecia o talento e a vontade de Chica de ser atriz e a convidou para assistir às aulas da escola do Teatro Duse. Ele era

Sua veia artística é uma coisa

amigo de um dos professores, Paschoal Carlos Magno. “No final deste mesmo ano já estava assistindo às aulas como ouvinte. No ano seguinte, entrei no curso. Três anos depois me tornei atriz profissional e grande amiga de Paschoal Carlos Magno”. O poeta Vinícius de Moraes também foi um grande incentivador de sua carreira artística. Foi ele que, em 1957, levou Chica Xavier pela primeira vez ao palco. Sua estréia foi em “Orfeu da Conceição”, escrita por Vinícius, apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. “Eu tenho a honra de Vinícius de Morais ter assinado o primeiro registro na minha carteira de trabalho”, comenta. A atriz nos conta que na peça ela fazia a Dama Negra, que simbolizava a morte. Dançava suas próprias coreografias. Havia também o

Ilustração de Bela D´Oxóssi “Iansã com balaio de acarajés” da capa do livro de Chica Xavier EPARREI 7


Foi já na sua segunda peça, “Memória de um Sargento de Milícias”, realizada com um elenco negro, que despertou o entusiástico comentário do crítico Fausto Wolf: “Prestem atenção nessa atriz, ela será uma das grandes damas do teatro nacional!”. Sua estréia na TV foi na novela da Rede Globo, Cabana do Pai Tomás, onde contracenou com Ruth de Souza e Sérgio Cardoso. A atriz lembra com alegria da transformação que fez no seu papel: “Meu personagem, que nem sequer tinha nome, cresceu e se manteve na novela até o final”.

Depois de sua estréia na TV, as portas do sucesso estariam definitivamente abertas para Chica Xavier. Nos mais de 40 papéis vividos em seriados e novelas, o que mais a marcou foi o da Mãe-deSanto Magé Bassã, de Tenda dos Milagres. Chica tinha o sonho de voltar à Bahia com sucesso. Queria fazer um personagem que fosse uma mulher baiana e mostrar aos seus conterrâneos que tinha vencido no Rio de Janeiro e que mantinha sua baianidade. Ela acredita que a pesquisa para construir Magé Bassã havia sido feita durante toda a sua vida. Nascida em terreiro, durante toda sua infância morou numa vila com várias casas onde morava gente do candomblé. Cresceu ouvindo as mulheres cantando em nagô enquanto lavavam roupa. “Hoje, considero Magé Bassã meu cartão de visitas. Foi uma grande alegria fazê-la e o maior prêmio que recebi foi o aplauso do povo baiano. Depois dessa personagem

Chica Xavier

prazer de contracenar com, o agora marido, Clementino Kelé. “A versão negra do ‘Orfeu’, feita pelo poeta, era uma história de amor. Então, foi muito bom. Porque eu sonhava ser atriz, só não imaginava estrear vendo as cortinas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro se abrirem para mim. Foi divino!”.

Foto: Milton Souza 8 EPARREI


Principais trabalhos na TV

Foto: Frédéric Mertens

Chica Xavier

a que mais gostei foi Inácia, de Renascer, mas, a Magé Bassã era a mulher do meu povo”, ressalta com orgulho. Seu mais recente trabalho foi na minissérie “Um só coração”, da TV Globo. Isolina, personagem de Chica Xavier, era cozinheira da família Penteado e grande amiga de Yolanda Penteado (Ana Paula Arósio).

provenha de religiões africanas e queixa-se: “Carregamos o ranço da herança escravocrata que dizia que se o negro não fosse católico, não era gente. Estas igrejas preconceituosas estão usando a ignorância de nossos irmãos para lhes dar testemunhos e até ensinar banhos de descarrego e coisas que não têm nada a ver”.

A vida artística de Chica caminha lado a lado com sua religiosidade. Ela explica à Revista Eparrei que apenas atuou em duas peças de teatro e não deu continuidade à sua carreira no palco justamente porque isso tomaria muito do tempo que ela destina aos seus compromissos religiosos. A atriz possui em Sepetiba, Rio de Janeiro, um “cercado” onde começou cuidando de sua família e que acabou estendendo para amigos próximos. “Não tenho filhos de santo. A ordem que recebi do seu Boiadeiro foi a de praticar a caridade quando e como pudesse, mas não como um trabalho comercial”. Enquanto ialorixá, se incomoda com os rumos que andam tomando as igrejas chamadas eletrônicas evangélicas e a intolerância contra tudo o que

Chica Xavier assume seu sincretismo. Participa de duas Irmandades Católicas Negras: São Benedito dos Pretos, no Rio de Janeiro e Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Bahia. Ela acredita que a “baianidade” nacional não permite uma irmandade católica que seja isolada das raízes africanas e da tradição ancestral. “Você chega na Igreja do Rosário, na Bahia e a missa é linda com o som dos atabaques e a benção de Santo Antônio. Entramos no ritmo do ijexá com balaio de pães para distribuir”. Como se não bastasse ser atriz, ialorixá, jornalista, fotógrafa e documentarista, Chica ainda conseguiu tempo para escrever. Em seu livro “Chica Xavier canta sua prosa” estão todas as cantigas

feitas por essa filha de Iansã, com prefácio do “filho” Miguel Falabella, e ilustrações de sua filha Izabela, a Bela D’Oxóssi. Força, fé e raiz. Isto é o que representa Chica Xavier, que também integra o Conselho Curador da Fundação Cultural Palmares e é membro do Instituto Anísio Teixeira. Com uma energia acolhedora, a atriz não acolhe apenas os seus, acolhe a todos sem perceber que o faz. Resumindo sua trajetória, Chica comenta: “Ainda não me sinto realizada profissionalmente mas me considero realizada pela família que tenho. Minha vida significa trabalho, trabalho com alegria, trabalho cantando, trabalho rezando e minha fé é inabalável”.

Aquarela do Brasil Força de um desejo Chiquinha Gonzaga Dona Flor e seus dois maridos O rei do gado Cara e coroa Pátria Minha Memorial de Maria Moura Renascer As noivas de Copacabana Lua Cheia de Amor Escrava Anastácia Fera Radical Chapadão do Bugre Sinhá Moça Tenda dos Milagres O tempo e o Vento Amor com amor se paga Louco Amor Jogo da Vida Os Imigrantes Coração Alado Marron Glacê Dancin’ Days Nina Saramandaia O Grito Senhora Cuca Legal Os ossos do Barão

Principais filmes

A Partilha, (2001) – filme de Daniel Filho Encontros Imperfeitos (1993) – filme de Jorge Marecos Duarte Inocência (1983) - filme de Walter Lima Jr Lerfá Mú (1979) – filme de Carlos Frederico Rodrigues A Deusa Negra (1978) filme de Ola Balogun Uma Mulata Para Todos (1975) - filme de Roberto Machado Um Virgem na Praça (1973) - filme de Roberto Machado O Assalto ao Trem Pagador, (1962) - filme de Roberto Farias

Livro

Chica Xavier canta sua prosa, cantigas, louvações e rezas para os orixás. Rio de Janeiro, Tobooks, 1999. EPARREI 9


Ações Afirmativas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana

I – RELATÓRIO Educação das relações étnico-raciais A demanda da comunidade afrobrasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10.639/03, que alterou a Lei 9394/96, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas.

abrirem a boca ou tomarem qualquer iniciativa. Têm, eles, insistido no quanto é alienante a experiência de fingir ser o que não é para ser reconhecido. De quão dolorosa pode ser a experiência de deixar-se assimilar por uma visão de mundo, que pretende impor-se como superior e por isso universal e que obriga a negarem a tradição do seu povo.

Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, a sua descendência africana, sua cultura e história. Significa buscar compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em virtude de antepassados seus terem sido explorados como escravos, não sejam desencorajados de prosseguir estudos, de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra.

Se não é fácil ser descendente de seres humanos escravizados e forçados à condição de objetos utilitários ou semoventes, também é difícil descobrir-se descendente dos escravizadores, temer, embora veladamente, revanche dos que, por cinco séculos, têm sido desprezados e massacrados.

Os diferentes grupos, em sua diversidade, que constituem o Movimento Negro brasileiro, têm comprovado o quanto é dura a experiência dos negros de ter julgados negativamente seu comportamento, idéias e intenções antes mesmo de 10 EPARREI

Para reeducar as relações étnicoraciais no Brasil é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente. Como bem salientou Frantz Fanon1, os descendentes dos mercadores de escravos, dos senhores de ontem, não têm, hoje, de assumir culpa pelas desumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações e juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros, construir relações raciais e sociais sadias,

em que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos e cidadãos. Não fossem por estas razões, eles a teriam de assumir, pelo fato de usufruírem do muito que o trabalho escravo possibilitou ao país. Para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnicoraciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. Isto não pode ficar reduzido a palavras e a raciocínios desvinculados da experiência de serem inferiorizados vivida pelos negros, tampouco das baixas classificações que lhes são atribuídas nas escalas de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas.

1 FRANTZ, Fanon. Os Condenados da Terra. 2.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.

Trechos do Parecer N.º:CNE/CP 003/2004 do Conselho Nacional de Educação Relatora: Conselheira Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva


História e cultura afro-brasileira e africana – determinações A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua identidade e a direitos seus.

Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e atividades que proporciona diariamente também as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e européia. Estes princípios e seus desdobramentos mostram exigências de mudança de mentalidade, de maneiras de pensar e agir dos indivíduos em particular, assim como das instituições e de suas tradições culturais. É neste sentido que se fazem as seguintes determinações: O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educação das relações étnico-raciais, tal como explicita o presente parecer, se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, como conteúdo de disciplinas, particularmente Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem prejuízo das demais2, em atividades curriculares ou não, trabalhos em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de esportes e outros ambientes escolares. O ensino de História Afro-Brasileira abrangerá, entre outros conteúdos, iniciativas e organizações negras, incluindo a história de quilombos, a começar pelo de Palmares, e de remanescentes de quilombos, que têm contribuído para o desenvolvimento de comunidades, bairros, localidades, municípios, regiões (Exemplos: associações negras recreativas, culturais, educativas, artísticas, de assistência, de pesquisa, irmandades religiosas, grupos do Movimento Negro). Será dado destaque a acontecimentos, realizações próprias de cada região, localidade.

e pensar manifestado tanto no dia a dia, quanto em celebrações como congadas, moçambiques, ensaios, maracatus, rodas de samba, entre outras. O ensino de Cultura Africana abrangerá: - as contribuições do Egito para a ciência e filosofia ocidentais; - as universidades africanas Tambuctu, Gao, Djene que floresciam no século XVI; - as tecnologias de agricultura, de beneficiamento de cultivos, de mineração e de edificações trazidas pelos escravizados, bem como a produção científica, artística (artes plásticas, literatura, música, dança, teatro) política, na atualidade. O ensino de História e de Cultura Afro-Brasileira far-se-á por diferentes meios, inclusive a realização de projetos de diferentes naturezas, no decorrer do ano letivo, com vistas à divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes em episódios da história do Brasil, na construção econômica, social e cultural da nação, destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística, de luta social (tais como: Zumbi, Luiza Mahim, Aleijadinho, Padre Maurício, Luiz Gama, Cruz e Souza, João Cândido, André Rebouças, Teodoro Sampaio, José Correia Leite, Solano Trindade, Antonieta de Barros, Edison Carneiro, Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Milton Santos, Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Henrique Antunes Cunha, Tereza Santos, Emmanuel Araújo, Cuti, Alzira Rufino, Inaicyra Falcão dos Santos, entre outros).

Em História da África, tratada em perspectiva positiva, não só de denúncia da miséria e discriminações que atingem o continente, nos tópicos pertinentes se fará articuladamente com a história dos afrodescendentes no Brasil e serão abordados temas relativos: - ao papel dos anciãos e dos griots como guardiões da memória histórica; - à história da ancestralidade e religiosidade africana; - aos núbios e aos egípcios, como civilizações que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da humanidade; - às civilizações e organizações políticas pré-coloniais, como os reinos do Mali, do Congo e do Zimbabwe; - ao tráfico e à escravidão do ponto de vista dos escravizados; - ao papel dos europeus, dos asiáticos e também de africanos no tráfico; - à ocupação colonial na perspectiva dos africanos; - às lutas pela independência política dos países africanos; - às ações em prol da união africana em nossos dias, bem como o papel da União Africana, para tanto; - às relações entre as culturas e as histórias dos povos do continente africano e os da diáspora; - à formação compulsória da diáspora, vida e existência cultural e histórica dos africanos e seus descendentes fora da África; - à diversidade da diáspora, hoje, nas Américas, Caribe, Europa, Ásia; - aos acordos políticos, econômicos, educacionais e culturais entre África, Brasil e outros países da diáspora. Neste sentido ver obra que pode ser solicitada ao MEC: MUNANGA, Kabengele, org. Superando o Racismo na Escola. Brasília, Ministário da Educação, 2001.

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O ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito próprio de ser, viver

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Para tanto, os sistemas de ensino e os estabelecimentos de Educação Básica, nos níveis de Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, Educação Superior, precisarão providenciar: Registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como em remanescentes de quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais. Articulação entre os sistemas de ensino, estabelecimentos de ensino superior, centros de pesquisa, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, escolas, comunidade e movimentos sociais, visando à formação de professores para a diversidade étnico/racial. Inclusão de discussão da questão racial como parte integrante da matriz curricular, tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil, os anos iniciais e finais do Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, como de processos de formação continuada de professores, inclusive de docentes no ensino superior. Inclusão, respeitada a autonomia dos estabelecimentos do Ensino Superior, nos conteúdos de disciplinas e em atividades curriculares dos cursos que ministra, de Educação das Relações Étnico-Raciais, de conhecimentos de matriz africana e/ou que dizem respeito a população negra. Por exemplo: - em Medicina, entre outras questões estudo da anemia falciforme, da problemática da pressão alta; - em Matemática, contribuições de raiz africana, identificadas e descritas pela EtnoMatematica; em Filosofia, estudo da filosofia tradicional africana e de contribuições de filósofos africanos e afro-descendentes da atualidade. Inclusão de bibliografia relativa à história e cultura afro-brasileira e africana às relações étnico-raciais, aos problemas desencadeados pelo racismo e por outras discriminações, à pedagogia anti-racista nos programas de concursos públicos para admissão de professores. Inclusão de personagens negros, assim como de outros grupos étnicoraciais, em cartazes e outras ilustrações sobre qualquer tema abordado na escola, a não ser quando tratar de manifestações culturais próprias de um determinado grupo étnico-racial. Organização de centros de documentação, bibliotecas, midiotecas, museus, exposições em que se divulguem valores, pensamentos, jeitos de ser e viver dos diferentes grupos étnico-raciais brasileiros, particularmente dos afro-descendentes. Divulgação, pelos sistemas de ensino e mantenedoras, com o apoio dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, de uma bibliografia afro-brasileira e de outros materiais como mapas da diáspora, de África, de quilombos brasileiros, fotografias de territórios negros urbanos e rurais, reprodução de obras de arte afro-brasileira e africana a serem distribuídos nas escolas de sua rede, com vistas à formação de professores e alunos para o combate à discriminação e ao racismo. Inclusão, nos instrumentos de avaliação das condições de funcionamento de estabelecimentos de ensino de todos os níveis, nos aspectos relativos ao currículo, atendimento aos alunos, de quesitos que avaliem a implantação e execução do estabelecido neste parecer.

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II – VOTO DA RELATORA Face ao exposto e diante de direitos desrespeitados, tais como: o de não sofrer discriminações por ser descendente de africanos; o de ter reconhecida a decisiva participação de seus antepassados e da sua própria na construção da nação brasileira; o de ter reconhecida sua cultura nas diferentes matrizes de raiz africana; diante da exclusão secular da população negra dos bancos escolares, notadamente em nossos dias, no ensino superior; diante da necessidade de crianças, jovens e adultos estudantes sentiremse contemplados e respeitados, em suas peculiaridades, inclusive as étnico-raciais, nos programas e projetos educacionais; diante da importância de reeducação das relações étnico/raciais no Brasil; diante da ignorância que diferentes grupos étnico-raciais têm uns dos outros, bem como da necessidade de superar esta ignorância para que se construa uma sociedade democrática; diante, também, da violência explícita ou simbólica, gerada por toda sorte de racismos e discriminações, que sofrem os negros descendentes de africanos; diante de humilhações e ultrajes sofridos por estudantes negros, em todos os níveis de ensino, em conseqüência de posturas, atitudes, texto e materiais de ensino com conteúdos racistas;

Proponho, ao Conselho Pleno: a)instituir as Diretrizes explicitadas neste parecer e no projeto de Resolução em anexo, para serem executadas pelos estabelecimentos de ensino de diferentes níveis e modalidades, cabendo aos sistemas de ensino no âmbito de sua jurisdição orientá-los, promover a formação dos professores para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, e para Educação das Relações Ético-Raciais, assim como supervisionar o cumprimento das diretrizes.

Conselheira Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – Relatora

III – PROJETO DE RESOLUÇÃO Com fundamento no Parecer CNE/CP 003/2004, de 10 de março de 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou nessa data Projeto de Resolução instituindo Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana.


Abayomi A identidade nas mãos Num momento em que o movimento negro estava se organizando para a Marcha dos 100 anos da abolição, em que a questão ecológica estava se popularizando e as feiras de artesanato cada vez mais utilizavam materiais industrializados, surge a intervenção da Cooperativa Abayomi e suas bonecas negras

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Cooperativa ABAYOMI nasceu a partir do trabalho de Lena Martins, artesã nascida em São Luiz do Maranhão, educadora popular e militante do movimento de mulheres negras. Na busca de um artesanato que utilizasse um mínimo de ferramentas associado à preocupação com o excesso de lixo, desenvolveu uma técnica de fazer bonecas com sobras de pano sem utilizar na sua feitura cola ou costura. A primeira boneca foi criada em 1988. As bonecas Abayomi (palavra de origem iorubá, que significa presente, meu momento), são exclusivas e já são vendidas em 12 lojas incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A sede da Cooperativa Abayomi é no Rio de Janeiro, no bairro de Santa Teresa, onde a Revista Eparrei conversou com Sonia Santos, a Soninha, coordenadora do grupo. Falando sobre as bonecas negras, a artesã explica: “A intenção é dar visibilidade à população negra. A gente pouco se vê nas nossas representações, em televisão, em revistas, nos nossos objetos de arte, então nós queremos levar uma imagem positiva no sentido de ter esse referencial de fora, que vai com certeza influenciar na formação da nossa população em geral e principalmente no imaginário infantil”. Atualmente a cooperativa tem a participação de dezoito mulheres, educadoras, psicólogas, artistas populares, terapeutas, atrizes e circenses, revezando-se entre a confecção das bonecas, a realização de oficinas, cursos, espetáculos e a exposição itinerante Retalhos do Brasil, que retrata através das bonecas Abayomi a cultura popular brasileira.

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“Abram Alas ! A Brincadeira vai começar”

Imagem extraída da capa do folder Abayomi

Cortejo Um dos espetáculos da Cooperativa é o Cortejo Brincante Abayomi onde são montados os tradicionais cortejos da cultura popular e são feitas brincadeiras com as pessoas, ciranda, declamação de poesias e pequenas histórias. “No canto, no gesto, no passo, guarda um povo, expressa um povo, seu saber e seu contar. Cantos, danças, histórias, licenças pra chegar e partir, bandeiras e foliões apresentando seus saberes, seus jeitos de recontar nossa caminhada, celebrar o novo que um dia será tradição, será saudade, sentido, será novamente presente, novamente celebração. O contar e o ouvir, juntos, no meio da rua. Porque em cada toada cantada está guardada a voz de quem a cantou”. (Site da Cooperativa Abayomi)

Curso Arte de Decoração Popular

Através de várias técnicas de artesanato e utilizando sobras do lixo urbano, este curso propõe a criação de brinquedos e objetos utilitários, explorando a criatividade dos/as participantes para os fazeres da realidade deles e reaproveitando matérias primas disponíveis na comunidade. Por todo esse trabalho que reúne artesanato, identidade racial, reciclagem e atividade comercial, a Cooperativa Abayomi recebeu em 2001, no México, o primeiro lugar no II Concurso Latino-americano de Empreendimentos Econômicos Exitosos Liderados Por Mulheres, promovido pela Red de Educacion Popular entre Mujeres de América Latina y el Caribe. A coordenadora resume essa trajetória: “É uma grande batalha estar levando este trabalho para os lugares e se auto-sustentar. São quatorze anos lutando e aos poucos vamos conquistando mais espaços”.

Para a coordenadora, a intenção é divulgar e estimular as pessoas a criarem seus próprios grupos. “O ideal seria que as pessoas montassem seus grupos de trabalho com artesanato, trabalhando de forma solidária”.

Oficina Bebê Abayomi Cerca de onze mil pessoas puderam trabalhar a auto-estima através da identidade visual. A estratégia das artesãs é utilizar a questão racial como fio condutor. “O bebê vai de encontro à memória afetiva das pessoas. Acreditamos que essa seja a forma de alcançá-las com esta discussão porque a coisa passa pelo coração e pelo afeto fazendo com que elas não tenham resistência para tratar deste tema”, explica Soninha.

“Com cacarecos fazemos objetos, com a memória fazemos nossa história” (Site da Abayomi)

“Ao contrário do que muitos pensam as bonecas não simbolizam apenas as manifestações negras e sim retratam toda expressão humana. “ 14 EPARREI

A Cooperativa Abayomi aceita encomendas: Endereço da Sede: Rua Hermenegildo de Barros, 77 Santa Tereza - Rio de Janeiro / RJ Tel/Fax: (21) 224-6538 - Site: www.abayomi.com.br (*)Texto elaborado no Laboratório de Redação do Núcleo de Educação da CCMN


ÁFRICAS E BRASIS NO ESPELHO Artigo de Heloísa Pires

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idéia de Europa, América ou Brasil tem uma história. A União Européia, por exemplo, no momento atual, procura alardear um conjunto de crenças e valores na arquitetura de uma identidade para a comunidade de europeus. África também é uma noção construída no tempo. A figura do território africano, por exemplo, foi sendo mapeada por diversos ângulos e contextos. Também recebeu diferentes nomes. Na Antigüidade, Líbia, uma pequena extensão ao norte do continente, era a África dos gregos. Estes costumavam chamar as pessoas negras que lá viviam de Aithiops. O império romano manteve uma província com o nome de África, e seus habitantes eram chamados de Afri. Na relação com o mundo árabe, Cafre era o nome dado aos povos não-islamizados do sudoeste da África para distingui-los dos mouros negros, depois chamados de swahili. No atual Sudão houve uma região cultural, a Núbia, que realizava trocas históricas com o Egito. É nela que se destacou o reino negro de Cush, mencionado no Antigo Testamento. Os árabes, hindus e os chineses também fizeram menção ao território negro em seus relatos. No século XV, certos exploradores europeus chamaram-no de Nigritia, Barbaria. A geografia é uma boa metáfora para percebermos os tantos olhares envolvendo a denominação “África”. A real história da escravidão a ela associada, por meio dos olhares da modernidade, também recebe abordagens diferenciadas. Todavia, o tempero que prevalece nas polivalentes mídias é a imagem da África associada à dor, ao sofrimento que quase sempre emoldura e fixa os africanos como perdedores sociais. Essa é uma marca reiterada pelas mais diversas formas de comunicação. Ela pode ser uma versão da realidade, mas não o seu todo. Cabe, portanto, indagarmos sobre a preservação dessa mensagem,

quase única, como memória transmitida de geração a geração. A densa e dinâmica história da África e dos africanos não é linear. Reapresentá-la é também decidir por um salto qualitativo na recuperação ou ampliação desse repertório. Sou uma pesquisadora aplicada nessa matéria, mas me tornei escritora infanto-juvenil exatamente pela estreiteza de repertório quando se trata da presença negra no universo literário disponível aos guris e gurias do nosso Brasil. Com essa responsabilidade, organizei junto com a editora Peirópolis a proposta da coleção “O Pescador de Histórias”. Na abertura da coleção aparecem muitas Áfricas intercaladas no tempo e no espaço. O Pescador é um mediador nessa estrutura. Ele navega pelos rios e, às vezes, pára e pesca uma história. Esse é um jeito de se alimentar com o repertório cultural em torno dos rios. O Espelho Dourado é o primeiro dos títulos. Ele traz o reino medieval de Gana que se estende até o povo achanti, envolvido com o poder do ouro que fertilizava a região. O místico trono de ouro que desceu dos céus – legitimador do poder dos governantes –aparece entrelaçado à figura mítica da divindade akan, chamada de Nyame, cujo corpo de fogo provocou o nascimento do Universo. Tocar em repertórios desse universo africano pode ampliar e instigar a pesquisa sobre as muitas Áfricas a serem descobertas pelo leitor. Um dos elementos do conto, por exemplo, borda a memória das confederações africanas. Assentadas na união dos reinos, em uma estratégia que aumentava a proteção interna dessas sociedades, apresentam uma das formas políticas de enfrentamento dos avanços escravistas. Esse ângulo matiza uma série de outros acentos bastante veiculados no imaginário sobre a África. É muito mais fácil encontrarmos na

literatura apresentada às nossas crianças a tecla que repete a idéia de que “os negros vendiam os próprios negros”. De um lado, ela isenta o protagonista nãoafricano da responsabilidade pela estrutura escravista e, de outro, induz à conclusão de que os próprios africanos negros são (os únicos) culpados pela tragédia da escravidão. A naturalização dessa lógica é muito perversa para uma identidade em formação. Uma crença achanti diz que os mortos habitam um mundo que é a imagem espelhada do mundo dos vivos. Por isso, os ancestrais não estão exatamente mortos, mas, sim, invisíveis. Ao se invocar o nome de um falecido, eles podem, então, ser forças na vida dos vivos. E é nos sonhos que os dois mundos se encontram. Aproveitando essa imagem de espelho, a obra introduz uma seção, Brincáfrica, com brincadeiras com papel espelhado, uma maneira lúdica que contribui para a concepção especular referida no conto. Mapas e um texto para educadores –sejam mães ou professores– acrescentam conteúdos sobre esses mundos. Um grande encontro aconteceu para a proposta sair bem feita. A ilustradora Taisa Borges trabalhou com latão e tecidos achanti para chegar o mais próximo possível do conteúdo proposto. O trabalho de Maristela Colucci, criadora do projeto gráfico, alinhavou a realização com muito brilho. O próximo lançamento, Ventos Kikuius, reaviva uma África negra vitoriosa nos confrontos que ocorreram pelo continente. E os ventos sopram do contemporâneo país do Quênia. Afinal, falar de África não deve ser apenas no passado remoto. Jomo Kenyatta, pertencente à etnia Kikuiu, representa a luta dos líderes negros durante o processo de colonização. Como esquecer o ano de 1950, quando ele comandou um movimento violento contra o governo britânico, expulsandoos da região, o que deflagrou a independência do Quênia efetivada em 1963? O poder dos antigos reinos, ou a força da reunião pan-africanista, é uma face

da história africana. Ao tirarmos a areia que cobre a memória sobre o noroeste africano, dos guerreiros negros de Cush, ou sobre a riqueza filosófica dos I Kung Sun, que sobreviveram no deserto ao sul da África, compomos com elementos mais vibrantes o imaginário nessa origem. O Brasil é especialmente um país que tem grande parte da própria identidade construída na origem africana. Por que perpetuamos uma pobreza (e estou chamando a atenção apenas para o ponto de vista editorial) nessa referência? A coleção espera contribuir para uma inversão cultural necessária que privilegie o positivo a respeito dos temas que envolvem a presença negra no país. Se a realidade muda a representação ou a representação muda a realidade, ou se ambas são faces de uma mesma moeda, é um bom debate sobre o peso do imaginário no cotidiano das pessoas. A Lei nº 10.639 – que propõe a inclusão da temática “História e cultura afro-brasileira” no currículo oficial da rede de ensino brasileira (Diário Oficial da União de 10/ 01/03) – é semente para futuros tratamentos, mas também já é fruto de iniciativas plantadas há muitas décadas. A demanda veio se fortalecendo, com ações que originaram sua integração no debate pedagógico sob particular contexto político. Daqui a 10 anos, certamente, o nível de desconhecimento diminuirá, a reflexão aumentará e a produção de material de apoio específico colocará a questão negra no Brasil no século XXI. Desmanchar o bordado, refazer o bordado é em que minha atividade literária espelha-se.

O Espelho Dourado, coleção “O Pescador de Histórias” Editora Peirópolis, SP, 2003 A autora é doutoranda em Antropologia Social (USP) e tem outros títulos publicados, como o premiado Histórias da Preta, Cia. das Letrinhas, de 1998. Contato com a autora: hpires@usp.br EPARREI 15


Negritude do Maranhão O Estado do Maranhão e o da Bahia foram os que mais receberam escravos da África. Para o Maranhão vieram os angolas, congos, fanti-ashanti, nagôs, gêges, entre outros. Vieram principalmente dos países do Golfo de Guiné, de Senegal até Angola. Eles ficaram mais conhecidos como negros mina, porque eram embarcados, em sua maioria, na Costa da Mina (Costa do Marfim, Costa do Ouro, Costa dos Escravos e as ilhas portugueses de São Tomé e Príncipe). Eparrei em São Luís traz aos leitores uma parcela da nossa negritude no Maranhão.

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população negra representa 77% da população do estado e marcou profundamente a cultura maranhense. Ela deu origem ao bumba-meu-boi, ao tambor de crioula, ao cacuriá, e à reza do Divino Espírito Santo. Ainda hoje se dança a festa de São Gonçalo, samba de roda e a capoeira. Muitas comidas típicas têm na cultura negra sua origem: bobó, sarrabulho, mocotó, feijoada, vatapá, carurú, cuxá, baião de dois, arroz de vinagreira, entre outras. O reggae, ritmo negro da Jamaica, está tão difundido na capital que tem programas exclusivos e as maiores audiências em todas as rádios FMs e AMs e fez São Luís ser conhecida como a Jamaica Brasileira. A religiosidade marca sua presença nos cerca de 4.000 terreiros do Maranhão. Só em São Luís existem 1.200. Eles têm origens diversas, a maioria, no entanto, provém da tradição “Mina”, que tem na Casa das Minas, um dos terreiros mais conhecidos. No Maranhão, mulheres negras entraram para a história por sua bravura e luta pela libertação do povo negro. Catarina Rosa 16 EPARREI

Ferreira, chamada Catarina Mina, vendia farinha nas ruas do centro histórico de São Luís, onde existe um beco com seu nome. Obstinada e competente, Catarina tornouse rica comerciante de farinha e com o dinheiro que ganhava, comprou sua liberdade e ajudou na libertação de muitos negros e negras escravizados. Adelina, que sabia ler e escrever, aos 16 anos, já freqüentava comícios e passeatas. Colaborou fortemente na campanha Abolicionista da Capital. Maria Firmina dos Reis (1825) era professora, escritora e poetisa. Mãe Andresa (1855 - 1954), conhecida mãe de santo, governou a Casa das Minas por cerca de 40 anos. No Maranhão existem hoje mais de 400 comunidades remanescentes de quilombos No povoado de São Cristóvão, na cidade de Viana, 40 famílias vivem numa terra comprada do patrão no pós-abolição. É chamada de terra sem partilha, porque todos são proprietários por igual e resistem na preservação da cultura herdada dos antepassados. A história registra uma grande tradição do Maranhão na luta de quilombos. Os mais conhecidos são os

da Lagoa Amarela (do negro Cosme, que foi um dos líderes da Balaiada), Turiaçu, Maracaçumé, São Benedito do Céu, Cururupu, Limoeiro (em Viana) e Frechal (em Mirinzal). Também foram muitas as lutas armadas. Uma luta conhecida é a “Insurreição de escravos em Viana” (1867): os negros quilombolas de São Benedito do Céu ocuparam diversas fazendas.

O mito da carruagem assombrada de Dona Ana Jansen O outro lado dessa história de resistência está representado por um mito muito popular na ilha de São Luís, o da carruagem assombrada de Ana Jansen, puxada por cavalos com chamas no lugar das cabeças e guiada por um esqueleto. No interior do veículo, estaria o fantasma de Ana Jansen, rica comerciante que ficou famosa pelas atrocidades que cometia contra seus escravos. Segundo o povo, a tal carruagem assombrada ainda anda pelas ruas do centro histórico, condenada a vagar assim pela eternidade em conseqüência das maldades da falecida.

Cultura Maranhense Bumba-meu-Boi

A vivência em comunidade e o agrupamento de pessoas fazem do Bumba-meu-Boi um dos maiores espetáculos da cultura espontânea do Maranhão. Ocorre em várias regiões do Brasil, recebendo nomes como Boi Bumbá, Boizinho, Boi de Serra, Boi Maiadinho, Pintadinho, Boi Laranja, Boi Vermelho, Boi de Mamão, Dança de Boi, entre outros. Presente nas ilhas e morros de São Luis, como também na Baixada Maranhense, vem encantando o mundo .

O auto do Boi

-” Meu senhor mestre vaqueiro ô lelê escuta o meu cantar.. Coro-Eu vim pra brincar o boi ô Lelê eu vim ver o boi dançar ... Está na hora da festa e nosso boi vamos batizar...... Coro-Eu vim pra brincar o boi o lelê eu vim ver o boi dançar ... Lá vem Mãe Catirina a língua do boi querendo jantar... Coro-Eu vim pra brincar o Boi o lelê eu vim ver o boi dançar.... -Coitado do Nêgo Chico que não tem dinheiro pro boi comprar...” Coro-Eu vim pra brincar o boi o


lelê eu vim ver o Boi dançar.... (toada de boi de autoria desconhecida) A brincadeira apresenta um enredo situado no período colonial onde um fazendeiro descobre que seu empregado Chico cortou a língua do seu boi de estimação para satisfazer o desejo de sua mulher Catirina que está grávida. Nego Chico é perseguido e punido. O doutor ou pajé são chamados para ressuscitar o boi que revive para alegria de todos. É um teatro folclórico que no Maranhão se agrega às festas de São João, São Pedro, e outros padroeiros. Para o povo maranhense possui importância maior que o carnaval. Em São Luís, existem mais de 200 grupos registrados divididos em subgrupos que podem ser classificados como Indígena, Branco ou Africano. O ritmo com que cada grupo se apresenta é quem define o sotaque ou estilo de Brincantes do Boi, Assim vamos encontrar o Boi de Matraca, de Orquestra e de Zabumba. O Boi de Matraca utiliza na marcação a matraca, instrumento musical indígena, com personagens vestidos de índios ás vezes chamados de caboclinhos. Estão concentrados nas ilhas e baixada. O Boi de Orquestra forma o grupo mais numeroso, estão espalhados por todo Estado, se utiliza de violinos, pistolões, clarinetes e pandeiros. Apresenta personagens como o fazendeiro (o dono do boi) médico, vaqueiros e muitos outros. O Boi de Zabumba é o ritmo original do Bumba-meu-Boi, o mais antigo. Tão forte é a influência do zabumba, que a expressão bumba deu nome ao Bumba-meu-boi e que, segundo os filólogos, significa, onomatopaicamente, a batida da baqueta no bumbo. Utiliza instrumentos de percussão marcando o ritmo a zabumba, pandeiro grande tocado com as mãos. Atualmente, existem poucos grupos com o estilo de zabumba no Maranhão, a tendência é de que estilo desapareça pela falta de interesse dos jovens em reproduzir o estereótipo do negro escravo visto como ladrão. Por ser uma das características do fenômeno folclórico a endoculturação (traços aprendidos de gente da mesma cultura) é possível que no futuro O Boi de Zabumba ressurja com

nova versão. Remanescentes quilombolas de São Cristóvão realizam a Festa do Boi de forma diferenciada. A comunidade preserva a tradição dos antepassados ao realizar a festa da Morte do Boi. As tarefas são divididas e compartilhadas, desde o batizar, criar e confeccionar o maior Boi da Baixada Maranhense. Anciãs tocam as caixas durante três dias. A saída do boi de São Cristóvão às ruas é comemorado e acompanhado por toda comunidade. Se no passado a brincadeira do boi era considerada coisa de preto e malandro, chegou a ser proibida com limites geográficos pré-estabelecidos, até onde, por onde podia-se brincar, hoje, descoberto pelos turistas estrangeiros, firma -se como um dos mais belos espetáculos do teatro popular.

UMA MULHER NO CLÃ DO RAP NORDESTINO O Rap é um estilo musical de origem negra - é o rhytm and poetry, ritmo e poesia ou canto falado - raízes da tradição africana. Sofisticado na década de 70 nos guetos nova-iorquinos, deu impulso à fundação do movimento Hip Hop, um movimento artístico que engloba três elementos artísticos - o Break (dança), o Grafite (pintura) e o Rap (música). No Brasil, o movimento chegou na década de 80, via break, mas foi com a assimilação do Rap que o Hip Hop proliferou entre os jovens negros e se transformou num movimento social, no qual as letras das músicas se tornaram instrumentos políticos para reivindicar o direito à justiça social e racial. Desde então foram surgindo vários grupos espalhados por todo o Brasil, mas um fato ficou nítido dentro do Rap: a ausência de mulheres e, muitas vezes, as músicas com letras machistas. A Região do ABCD em São Paulo deu o pontapé inicial ao tentar incluir o recorte de gênero no movimento, seguido de Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. Em São Luís, o Movimento Hip Hop era também conhecido como gueto de homens até à chegada de Lilian Lima. Ela faz parte do grupo maranhense Clã Nordestino, composto por quatro homens e onde Lilian é a líder. Além de cantar no Clã, a rapper faz parte do movimento Hip-Hop chamado Favelafro. “No Hip Hop se falava de revolução, de transformação e acabava tendo muitas vezes só uma mulher, as demais eram as namoradas, as esposas, as amigas e acabava não somando”, Lilian reclama. Então se eles falam de transformação e a mulher não faz parte desse processo, só acaba reforçando a nossa exclusão”. A rapper diz ser muito difícil este processo de conscientização, porque os companheiros afirmam que a exclusão não existe. “Quando eles são questionados, agente sente que a coisa atrofia, que os companheiros não estão preparados para esta discussão”. Criada num terreiro de Candomblé e apaixonada pelas Divas do Blues, Lilian conhece muito bem as dificuldades de ser mulher negra no Brasil. Já foi doméstica, faxineira, lavadeira e babá para conseguir sustentar as duas filhas e muitas vezes encontra barreiras para conciliar a carreira artística com a vida de

Suporte bibliográfico Brasil Afrodescente CD vol. 2-Midiatronics- w.w.w.midiatro nics.com.br e Apostilas do Centro de Documentação Carolina de Jesus- CCMN

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mãe. “Como não tenho pais, fica muito difícil deixar as crianças com pessoas responsáveis, mas sempre acabo dando um jeito”. Mesmo com a agenda bem movimentada que inclui viagens para shows, o trabalho no Favela Afro, que engloba cerca de 40 pessoas, Lilian ainda tem um trabalho com comunidades de remanescente de quilombos, com crianças de 0 a 6 anos de Codó e Taperucu, dois municípios de São Luís. Para contribuir com que a lei 10.639 seja implementada em seu Estado, Lilian faz parte de um projeto que está começando a formatar uma proposta educacional, onde através do Rap o contexto da história do negro possa estar sendo levado às comunidades negras rurais e escolas, por pessoas capacitadas. “Não podemos mais falar de uma forma superficial pois a gente continua na margem. A discussão deve ser mais pautada”. Recentemente o Clã Nordestino ganhou o prêmio Hutus e Lilian tem esperança que em breve outras mulheres queiram mudar o panorama na região Norte Nordeste.

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UNIDOS PELO MOVIMENTO NEGRO Ele, paulista de São Bernardo do Campo, antigo militante do Movimento Negro Unificado que promovia encontros e agitava a juventude da periferia das cidades do Grande ABCD no estado de São Paulo. Ela, maranhense, mestranda em educação, professora de Língua Portuguesa que ministrava palestras sobre a questão racial. Na época, morando na cidade de Santo André(SP), o casal ainda encontrava tempo para tocar a Grife Balogun ModAfro, proporcionando aos ativistas da década de 80/90 um visual afrobrasileiro. No auge do Movimento Hip Hop na região paulista, Ilma e Adomair decidem morar em São Luís. Mudam-se após Ilma se aposentar e em 21 de março de 1997 constituem o MNU no Maranhão. “Queríamos uma melhor qualidade de vida, onde pudéssemos estar educando nosso filho, estar mais próximo da família. Nossa preocupação era de que por conta da nossa militância se viéssemos a morrer o garoto iria parar na Febem”.

O casal desenvolve, então, vários cursos de formação étnico-racial, que incluem questões de gênero e formação sindical. Em São Luís, já estão formados dois grupos de trabalho, o G.T. Balogum e o G.T. da Vila Natal. Criaram um núcleo na cidade de Alcântara e outro em Viana, na comunidade remanescente de quilombo de São Cristóvão, a 300 Km da capital. Com orgulho, Adomair comenta o resultado de um dos grupos: “Temos um núcleo de base ligado a sindicatos de trabalhadoras domésticas e produzimos com eles um boletim trimestral”. Ilma relata que a situação das mulheres ainda é muito grave e a maioria das trabalhadoras sindicalizadas são negras, muitas não são registradas e que, não raro, os patrões as mandam embora sob alegação de furto para assim sonegar os direitos delas. Sua tese de mestrado foi baseada na pesquisa que realizou nas comunidades remanescentes de quilombos, onde constatou que a maioria das mulheres que vai para São Luís complementar os estudos acaba no trabalho doméstico. A violência contra a mulher, a impunidade e o descaso são uma realidade particularmente trágica no Maranhão. “O marido que assassinou a esposa negra, uma professora, e ainda foi reivindicar a pensão alimentícia, continua foragido”, indigna-se Ilma. O Fórum de Mulheres Maranhenses, Conselhos Municipais, Comissão de Mulheres do MNU e demais associações organizaram ato público, enviaram a denúncia para os jornais, mas, segundo Ilma, a mídia não dá visibilidade quando o assunto é violência contra a mulher.

Ilma também comenta que no Estado o índice de desenvolvimento humano assim como o de gênero é muito baixo. A maioria das mulheres são chefes de família e sobrevivem com menos de um salário mínimo ao mês. “A maioria sobrevive com apenas 40% do salário mínimo, é uma situação de extrema pauperização. Com os quilombolas, o casal tem trabalhado muito na compreensão das relações familiares. Adomair conscientiza os homens sobre a violência sexual contra as companheiras e Ilma, por sua vez, trabalha o tema com o grupo de mulheres. Embora trabalhar as relações étnico-raciais, de gênero e violência doméstica seja um trabalho árduo com resultado a médio e longo prazo, já conseguiram o apoio das mães para que os jovens participem das discussões. A resposta dos jovens tem sido mais imediata e a estratégia de trabalhar o Hip Hop vem trazendo bons resultados. A fim de avançar na luta contra o racismo, Adomair propõe que o movimento deve se articular para cobrar dos Estados e Municípios a implementação da lei 10.639 e das cotas nas universidades. “A lei está posta, é só uma questão de implementar e agora o movimento tem que estar forte para poder inclusive cobrar”. “No Maranhão”, diz Ilma, “o percentual de negros é de 77%, portanto 20% das cotas nas escolas públicas já ajudaria a combater a desigualdade”.

Esta reportagem continua na próxima edição.


Turismo Étnico

Artigo de Ana Felippe Garcia

Dando visibilidade à cultura e acabando com o preconceito O Brasil, em suas dimensões continentais, é terra muito fértil para o turismo. Podemos, a cada ano, passar nossas férias em um lugar diferente, apreciando e aprendendo novidades de interesse e de satisfação pessoal, inclusive gastronômica, sem precisar sair para outro país, durante muitos anos.

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as, para a maioria da população brasileira, e em especial para negros e negras, Turismo é uma atividade desconhecida, proibida, até. Ainda sem tradição no ramo, o Brasil está começando a compreender a importância do deslocamento das pessoas, não só para o trabalho e os negócios, mas também para o lazer e a cultura, a preços que nossos salários possam suportar. Mas ainda falta bastante para chegarmos a esse ponto. Muitos deslocamentos que constatamos em épocas de festas – carnaval, semana santa, final de ano – quando praticados pela maioria negra, são trajetos percorridos com sacrifício e esperança para rever os parentes que “estão lá”. Tendo tomado grande impulso no século passado, o turismo ganhou, na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte, status de necessidade vital. Na Europa, a população com menor poder aquisitivo tem a chance de sair em férias, fazendo turismo de bicicleta e trem. Mochila nas costas de cada um dos membros da família; cada um em sua bicicleta (pela via projetada para isso), até o trem. Compra-se a passagem da família, paga-se uma taxa pelas bicicletas e lá vamos nós! Ao final da viagem, cada um pega sua bicicleta e todos pedalam para o albergue e para os passeios ao redor. Tudo a preço acessível, em condições para o assalariado. Mas enquanto essa realidade não chega para nós, não nos cabe

sonhar. “Sonhar não custa nada”, diz a canção, mas também não realiza. Precisamos realizar. Se não podemos ir ao turismo, o turismo pode vir a nós! Esse poderá ser um dos slogans do Turismo Étnico. O turismo étnico é uma proposta recente do desenvolvimento da atividade turística e, algumas vezes, recebe a referência de turismo cultural ou de nostalgia (principalmente na Europa, quando o morador da metrópole, cansado de tanto barulho e correria, vai para fazendas do interior praticar ordenha e plantação). Mas, em se tratando de cultura negra brasileira, o turismo étnico tem múltiplos aspectos culturais e nada tem de nostálgico. O turismo étnico pode significar a valorização das culturas de matrizes africanas, bem como das culturas indígenas, possibilitando a superação de uma mentalidade hegemônica (ainda) colonial que perdura nos dias de hoje. Alguns países, como o Chile, a Tailândia, a Austrália já se caracterizam como países onde o turismo étnico é praticado. Já se utiliza incentivo governamental para isso. Afinal, o maior interessado nesse tipo de turismo deve ser o próprio governo, por todos os desdobramentos que o fluxo turístico significa para o país. Matéria do jornal Gazeta Mercantil (19 nov. 2002), sob o título “Turismo Étnico, um nicho bilionário”, informa que “Por sermos uma nação multirracial, essa segmentação turística -

devido aos incontáveis benefícios que pode gerar ...., tem tudo para aumentar a receita.... No caso afro-brasileiro, por exemplo, onde este tipo de turismo já vem sendo praticado há bastante tempo - mas de forma ainda pouco convencional, como na Bahia e no Rio de Janeiro - ele pode gerar novos empregos, maximizar receitas públicas e privadas, melhorar a capacitação da mãode-obra, potencializar o patrimônio histórico-cultural, redistribuir a renda e desenvolver áreas negras decadentes, como aconteceu com o Pelourinho, em Salvador, e o Bairro do Recife, em Pernambuco.” Vale observar que, desde 2002, a cidade de Campinas criou e incluiu no seu calendário de eventos o Turismo Étnico Afro-brasileiro, propiciando a participação dos afro-brasileiros no mercado empresarial e no turismo nacional. Visando o retorno financeiro para a comunidade através do seu trabalho e criatividade, promovendo intercâmbios entre estados, municípios e países, criando linha de crédito para os pequenos e os microempresários afro-brasileiros. Estas são algumas das prioridades do projeto sancionado pela Prefeitura Municipal de Campinas, em 17 de Janeiro de 2002, idealizado por Francisco Henrique Silvino (193269-0895, rickblacktotal@ hotmail.com), morador da periferia de Campinas e que acredita que a aprovação da lei ajudará, em muito, a abertura de mercado de trabalho para muita gente

da comunidade negra, inclusive os que residem na periferia da cidade. A proposta é a articulação para que o projeto seja implantado em todo o estado de São Paulo. A tônica do mundo de hoje, e da real necessidade das comunidades, é “desenvolvimento”, “mercado” e “condições de trabalho”. Mas o Turismo Étnico Afro-brasileiro não deve ser feito apenas para os afrodescendentes de outros países, como propõem alguns. Negros e negras brasileiros/as trocando com negros/as de outros países é fundamental, mas cabe também abrir nossa cultura para os outros que passam a compreender que a segregação, o uso e o abuso dos valores descontextualizados, além de não contribuírem, acabaram, ao longo dos tempos, privando a humanidade de uma visão de mundo integrada e integral que, hoje, a duras penas, diz querer recuperar. Os problemas atuais da sociedade (mundial), não estão escritos ou determinados pelos princípios e fundamentos de nossas religiões de matrizes africanas. Candomblé e Umbanda, para citar genericamente, muito além de serem práticas religiosas ritualísticas, são fonte de integração, de culto à natureza, de respeito aos fenômenos naturais, a todas as criaturas (e aos seres humanos), além de cura e de equilíbrio psicológico. É chegada a hora de, pela inteligência e o ótimo uso de EPARREI 19


Adorno peitoral Gana, etnia Ashanti - ouro

Turismo Étnico nosso saber ancestral, não só mostrar, mas demonstrar os valores de nossa cultura e de nossa gente. Não vivemos mais o tempo das “comunas” (comunidades), ou das “nações” (regiões dos países africanos onde se cultuava apenas aquele Orixá que dava nome ao grupo, à nação). As etnias se misturaram pelo mundo, muito antes da síndrome da “globalização”. Bem sabemos o que essa “mistura” provocou para nossa dignidade e auto-estima. Aqueles que discriminaram, usurparam e degradaram, exerceram práticas de acordo com o tamanho do deus que cultuavam. Essas práticas precisam acabar! Nós acreditamos em Deuses que dançam, que se comunicam e que fazem isso através de nossos corpos, de nossas mãos, de nossa palavra. É isso que precisamos demonstrar: não somos diferentes, não somos curiosidade! Somos nós mesmos, criaturas etnicamente diferentes que, pela diferença, personificam uma possibilidade da Criação do Criador. Do mesmo modo que abiãns e iniciantes não participam dos rituais esotéricos, de fundamento, do nível do oculto, da mesma forma o visitante não irá participar de cultos internos. O turista étnico pode conhecer as apresentações públicas, as características dos Orixás e das Entidades e, ainda, sobre a energia de cura e prosperidade de plantas e ervas. Pode ainda conhecer as comidas 20 EPARREI

de Santo, raízes alimentícias (de tradição indígena), visitar nosso atelier de costura e compreender sobre o universo de conhecimento e interação, do Ayé ao Òrun1. A humanidade está precisando desse conhecimento para possibilitar ações que devolvam o equilíbrio ao planeta e às suas vidas. Cabe às Casas de Axé lançarem mão do conhecimento de seus filhos e amigos cooperativos, tendo a chance de atender a grupos em língua inglesa, em francês, em espanhol, alemão. O conhecimento - incluindo “lendas” e cantigas - pode ser informado pelo Babalorixá ou Ialorixá, Ekedes, Ogãns, autoridades da Casa. Nossas Casas têm quartos que podem ser organizados para que os visitantes passem dois dias no Axé, observando a criação dos animais e a plantação das ervas que utilizamos para o banho e para alimentação, dentre outras iniciativas que o Babalorixá e a Ialorixá possibilitarão. Muitas Casas situam-se em lugares estratégicos, ao lado de cachoeiras, rios e matas. Caberá a nós a sensibilização dos étnicoturistas, integrados como irmãos, para os aspectos da preservação da natureza, representados pelos Orixás, e que são tão fundamentais e presentes em cada ato de nossa cultura. Mais do que interessante, esse é um projeto que pode frutificar, dando maior visibilidade para nosso fazer, nossa verdade, nossa dedicação. E são muitos os frutos desse projeto. Desde dentro para

desde fora! Desde fora para desde de dentro! Se você não havia pensado nessa possibilidade, pense em torná-la real. Se não estamos prontos agora, a partir do movimento, logo estaremos prontos e organizados, abrindo mais ainda nossos corações e desvelando a verdade dos Orixás, para o reconhecimento de nossa cultura, pelo fim do preconceito, pela elevação da comunidade negra, pelo resgate da dignidade e da cidadania (PARA TODOS). Alafia! Obs.: Se sua Casa de Axé está pronta ou já está aberta para o turismo étnico, conte para nós. Teremos satisfação em divulgar sua iniciativa.

Boneca / Nigéria, etnia Hausa - Fonte: Catálogo da Mostra Arte da África

(*)Ana Felippe Garcia Pós-Graduada em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Sócia Fundadora da Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas - SEAF. Sócia Fundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras - IPCN (RJ) e do Grupo Cultural Olodum (BA). Professora do ensino superior, por 28 anos. Colaboradora em livros, revistas, mesas redondas e seminários. 1da Terra ao Céu


Casa das Minas Uma rainha africana mãe-desanto em São Luís “A Casa das Minas foi fundada em São Luís do Maranhão, no Brasil, pela rainha Na Agontimé, mãe do rei Ghezo do Daomé, condenada à deportação num acerto de contas no seio da família real antes que seu filho ascendesse ao trono em 1819”. Essa declaração faz parte do relatório final do Colóquio da Unesco sobre as Sobrevivências das Tradições Africanas no Caribe e na América Latina, realizado em julho de 1985, em São Luís do Maranhão, Descendente da família real do antigo reino de Daomé, Maurice Glegle, natural do Benin, foi o representante da Unesco que presidiu o evento.

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ãe Deni, atual dirigente da Casa das Minas em São Luís, confirma a linhagem real da fundadora do templo : “Ela era rainha sacerdotisa do reino, não quis trair sua religião e participar do comércio de escravos e por isso foi vendida, para nossa felicidade ela veio parar aqui no Brasil”. Na Agontimé assumiu a identidade de Maria Jesuína e fundou na década de 1840 o terreiro de tambor de mina mais antigo de São Luís, denominado pelos africanos de Casa de Querebentã de Zomadonu. O motivo da rainha manter sua identidade em segredo, é explicado por Mãe Deni: “É que a fundadora da casa corria risco de vida e se adivinhassem que ela estava aqui mandavam matar, mandavam apagar tudo, para que não retornasse ao templo. Não ficaria essa obra que ela deixou”. A sacerdotisa Maria Jesuína transmitiu às demais chefes que

a sucederam os fundamentos da Casa de Minas Jeje e é reconhecida como a responsável pela organização do culto da família real do Daomé em São Luís. A confirmação destes fatos foi feita por pesquisadores da tradição religiosa africana no Brasil que tiveram acesso aos nomes de certos vodus do culto daomeano da Casa das Minas. Alguns dos nomes são conhecidos apenas pelos sacerdotes de Abomé (capital do Daomé/Benin). O fato desses nomes serem encontrados no Brasil, foi para os sacerdotes a prova de que existiam no Brasil descendentes de membros da família real.

Quem escolhe é o Vodum A Casa das Minas possui uma organização matriarcal, sendo chefiada por mulheres. Mãe Andresa foi a chefe mais famosa

da Casa. Faleceu em 1954 com cem anos de idade e até hoje é muito lembrada. Dona Deni Prata Jardim, vodunsi de Toi Lepon, que completará 79 anos em julho, foi iniciada por Mãe Andresa sendo a nona dirigente da Casa. Viúva, mãe de dois filhos, duas netas e várias bisnetas, com paciência nos relata de que forma são aceitas as integrantes do grupo: “Não é a pessoa que escolhe fazer parte do grupo, o Vodum é quem escolhe e traz as pessoas para o templo. Foi assim com minha mãe Rita...” Relembrou o sofrimento da mãe que, abandonada pelo marido, teve que criar os filhos trabalhando na lavoura. Descreveu sua enfermidade que ninguém conseguia descobrir, a saída da cidade de Rosário até São Luís, o emprego da mãe como doméstica, a sofrida peregrinação por vários terreiros na procura da cura e os religiosos que lhe respondiam que

o único lugar onde poderia ter um desenvolvimento seria em terreiro de mina.

O encontro com Mãe Andresa Uma emoção que não esquece foi o primeiro encontro com Mãe Andresa. Ora contando a história como narradora, ora assumindo o papel de personagem, nos envolve na narrativa: “Uma moça que trabalhava com mamãe falou da Casa da Mina e levou a gente até lá. Uma senhora que pertencia ao mesmo vodu que ela quando viu mamãe disse: “Olha eu não disse que até eu morrer ia ver chegar uma? E chegou”. A senhora era Mãe Andresa. “Mãe Andresa veio, mamãe contou as coisas que ela via, que ela ouvia e perguntou se ela conhecia o nome do vodu. Quando a senhora respondeu que não conhecia, mamãe ficou EPARREI 21


voduns à toa e suas estórias também são pouco comentadas. Os cânticos são em língua jeje e os segredos do culto são cuidadosamente preservados. Os voduns se agrupam em famílias e cada família reside numa parte específica da casa. Os voduns da família real ou de Davice constituem o grupo mais numeroso. São reis, príncipes e princesas. Existem duas linhagens na casa, a de Dadarro, o rei mais velho e a de Zomadonu, o dono da casa. Os voduns da família de Davice não são sincretizados com santos católicos ou orixás nagôs.

muito triste. Quando o vodu se manifestava ninguém sabia o que minha mãe estava dizendo e só eu podia informar. Mãe Andresa encaminhou ela na casa da velha Noemia que deu uma garrafa de banho mas no caminho ela quebrou... eu vi tudo”. Mãe Deni relata que neste dia sua mãe chegou muito triste em casa, achando que não fosse ficar boa pois já havia ido até à Casa da Mina e seu problema não havia sido resolvido. Foi quando retornaram à Casa e Mãe Andresa entregou um remédio para que ela se banhasse afirmando que não precisaria mais ir a lugar nenhum. Contendo a emoção, Mãe Deni continua a narrativa: “Depois, parece que num passe de mágica, ela já não tinha mais nada”. Curada, retornou ao trabalho e ao acompanhar os patrões em férias deixou Mãe Deni, na época com dez anos, aos cuidados de Mãe Andresa para que não interrompesse os estudos escolares. A convivência com as religiosas da casa incutiu na menina Deni o respeito e a valorização da religião. “Quando mamãe voltou ela nos convidou para morar aqui. Mãe Andresa disse que aqui era nossa casa... Elas já se foram e eu fiquei aqui”.

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Tradição única no Brasil Mãe Deni está na chefia da Casa há cinco anos e confirma que é a única casa no Brasil com essa tradição, só existindo outro templo na África, em Benin (antigo Daomé). “Olha o que se faz aqui é o que está dentro da nossa linha .... Mãe Andresa fez o que lhe foi autorizado fazer. Até à data que ela assumiu, nós aqui não tínhamos notícia do templo na África e nem eles lá tinham notícia que esta Casa existia. Quando chegava um pesquisador, ela conversava sobre a Casa. Eles foram levando a Casa adiante, aí vieram outros mais”. Numa dessas visitas, conheceu, em 1981, o pesquisador alemão Hubert Fichte que se dedicava ao estudo de plantas medicinais. Ele estava disposto a custear as despesas para que representantes do terreiro pudessem visitar o templo da África. Não chegaram a viajar, conta Mãe Deni: “Gravamos uma fita que ele entregou no templo do Daomé. Ele nos

ENCANTADOS E VODUNSIS Tambor de mina é o nome dado à religião de origem africana no Maranhão. O modelo de organização dos terreiros de tambor de mina é muito influenciado pela Casa das Minas. Os voduns são entidades africanas e na Casa das Minas são também denominados de encantados. Lá, diferentemente das outras casas de tambor de mina, não baixam caboclos, só voduns jejes. Na casa, são conhecidos e cultuados mais de cinqüenta voduns e de cerca de 15 tobossis ou entidades femininas infantis. Não se costuma falar os nomes dos

As vodunsis hunjaís, as que receberam iniciação completa, recebiam entidades infantis ou meninas, chamadas tobossis, usavam roupas especiais como uma manta de miçangas coloridas, uma trouxa de pano na cabeça e vinham poucas vezes no ano, permanecendo durante vários dias. Depois de 1914 não foram realizadas outras iniciações e as últimas hunjaís faleceram na década de 1970, passando a haver na casa apenas vodunsi-he. As vodunsis são católicas, freqüentam missas, procissões e outros rituais do catolicismo. A maioria das festas se inicia com uma missa na igreja e continua com uma ladainha cantada em latim no terreiro. A festa do Divino Espírito Santo em São Luís é uma festa típica dos terreiros de tambor de mina. Ocorre durante vários dias e inclui um grupo de crianças que representa o império do Divino, a realização de missa na igreja, decoração especial da casa, com a confecção de tribunas e tronos, levantamento do mastro da festa, oferecimento de comidas e de mesas de doces ricamente decoradas, toques de caixas do Divino, danças das caixeiras e outras manifestações.

Fonte: Texto extraído do artigo “Voduns da Casa das Minas” de Sérgio Ferretti, in Moura, Carlos E. M. “Meu Sinal Está no Teu Corpo. Escritos sobre a Religião dos Orixás”. São Paulo: EDICOM;EDUSP, 1989: 176-200.


entregou fotos e uma gravação com mensagem de lá para nós da Casa das Minas”. Na parede da sala mostra-nos com orgulho as fotos do templo no Benin e do pesquisador Fichte na audiência com o sacerdote-rei, bisneto da fundadora da Casa. Já recebeu a foto do rei atual que em breve estará na parede da sala de visitas do templo. Dentre as várias responsabilidades da sacerdotisa, uma é aplicada com rigor manter no templo a tradição e a seriedade no trato com a religião. No Carnaval de 2001, procurada pela Escola Beija-Flor do RJ, para desfilar num carro alegórico que fazia parte do enredo “A saga de Agotimé”, não só recusou a oferta como foi contrária à utilização do tema no Carnaval. “Nós não vamos levar para rua o orixá, o vodu, nem nos vestir numa fantasia qualquer e dizer que estamos representando o orixá. Porque ele não vai lá na nossa representação. Estamos representando nosso corpo, a nossa vontade, porque a deles é diferente. Todos ficaram zangados comigo. Fizeram lá por conta deles, vocês sabem que no Brasil é assim”. Indignada, Mãe Deni, relata-nos a deturpação e o descaso com que a imagem da Casa das Minas Jeje foi tratada: “No Rio, teve uma senhora que na Escola de Samba se dizia bisneta da rainha e que nós aqui não sabíamos que a fundadora dessa casa era uma rainha.. Quem não sabia era ela....Colocaram um monte de coisas lá na frente, aquele carro alegórico com uma cabeça de boi ou de bode, não

sei o que era aquilo e diziam que era a Casa das Minas. A Casa de Minas não usa nada disso. Eu não sei de onde ela tirou aquilo, não sei.. mas aquilo dependia de dinheiro e com dinheiro se faz tudo, não é?”

Tombamento da Casa Em 2002, a Casa das Minas foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como bem cultural e foi aberta para visitação. A falta de orientação do governo para os turistas e estudantes que visitam o local é, no entanto, uma constante no cotidiano da Casa. “Os turistas chegam pensando que aqui se toca todos os dias. Vodu aqui não faz questão de dançar sem compromisso nenhum e vou dançar para quem? Toco para eles só para dançar?” A festa do Divino Espírito Santo na Casa das Minas não sai para a rua, mas atrai muita participação popular, tendo no comando uma das netas de Mãe Deni. “É uma festa popular e vem muita gente, muita gente mesmo. O que está vindo bem pouco é na festa da Religião”, queixa-se a sacerdotisa. A Casa vem atravessando dificuldades para se manter. As contribuições, conforme explica Mãe Deni, tornaramse escassas já que as pessoas acreditam que a Casa é mantida com verba governamental. A dirigente concorda que uma verba mensal da Prefeitura, do

Estado ou de outras fundações, facilitaria a manutenção da casa. Sua aposentadoria de um salário mínimo, mal cobre as despesas pessoais. “Aqui tudo que se faz depende da gente. Se pedir um auxílio para Secretaria de Cultura, eles arrumam um telhado, uma porta, dizem que tenho que ter paciência para esperar”. Conta que os técnicos não possuem preparo no trato com o sagrado e que não conseguem compreender que determinados espaços não podem servir de depósito. “Tem muita coisa dentro da casa para se fazer, e quando vem uma verba vai para a mão de terceiros. Aqui tem muita coisa que não é permitido. Eles querem chegar e pôr a mão em tudo, porque são engenheiros. Mas não cabe a eles, não. Não pode”. Denuncia que muito material já foi estragado e que a obra no telhado da Casa não foi concluída. Segundo ela, a verba enviada pela Fundação Palmares não foi suficiente para custear as obras de reparação.Contudo, se mostra resignada e tem esperança que as pessoas se sensibilizem e possam fazer algo pela Casa das Minas. Mãe Deni conclui deixando uma mensagem de fé e paz para

os/as leitores/as da Eparrei e a religiosos/as de matriz africana recomenda: “Que os meus companheiros prestem atenção no que estão fazendo, tendo fé no que estão fazendo. Não é só dizer, vou abrir uma casa, viu? Ou, vou comprar uma roupa bem bonita para o meu santo. O mais bonito é o respeito, a esperança, a caridade. Vamos todos nós, religiosos, dar o exemplo? Vamos dar exemplo!”

Entrevista: Maria Rosa Pereira e Orixá Alabi

Mãe Andresa

CALENDÁRIO DE FESTAS Janeiro 5/7 – Doçu / Festa de Reis Fevereiro / Março Quarta-feira de Cinza- Arrombar bancada Sábado de Aleluia – Reinício das atividades Junho Festa do Divino Espírito Santo 23/25 – Naê / São João / Sinhá Velha Agosto 2o. domingo – Averequetê / São Benedito Setembro 27 – Toca e Tocé – Cosme e Damião Dezembro 3/5 – Sobô / Santa Bárbara 24 – Nochê Naê / Natal Endereço: Rua de São Pantaleão, 857 - São Luis - MA EPARREI 23


Se Ligue Publicações Manual sobre Discriminação Racial

Exemplares podem ser adquiridos com pedidos pelo e-mail do SOS Racismo ou da Djumbay sosracismo_pe@hotmail.com ou nirdjumbay@bol.com.br

Livro de contos - Terra das Palavras

Coletânea organizada por Fernanda Felisberto. Contos de Eduardo H. P. de Oliveira, Esmeralda Ribeiro, Kátia Santos, Lande Onawale, Luiz Silva (Cuti), Márcio Barbosa, Marco Manto Costa, Mayra Santos Febres, Micheline Coulibaly e Nei Lopes. Pallas Editora e Afirma Publicações; Contatos: afirma@afirma.inf.br ; www.afirma.inf.br

Damas Negras

sucesso, lutas, discriminação: Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta. Autora: Sandra Almada; Editora Mauad,1995.

História do Negro no Brasil

Autor: Maurício Pestana Noohva América Editora, 2004

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Autora: Alzira Rufino

Autores: Diversos Fundação Cultural Palmares, 2004 Contato: Fundação Palmares E-mail: palmares@palmares.gov.br

Os Comedores de Palavras

Rosa Margarida e Edimilson de Almeida Pereira Mazza Edições, BH, 2003 http://www.mazzaedicoes.com.br/ Fone: (31) 481 0591 E-mail: edmazza@mazzaedicoes. com.br

Música Anastácias

Autobiografia de Malcoln X Alex Haley- Ed. Record

Revista AFRICAXÉ

Publicação do Instituto Cultural e de Pesquisas Ilu-Aye-Odara/PR Contatos: (41) 363-0848; 3501287 e 264-1421 Prof. Jayro Pereira de Jesus - e-mail: oba.biyi@bol.com.br

Racismos contemporâneos

São Paulo - Terra de toda gente. Conto, canto e encanto com a minha história...

Qual o quê

Coletânea de artigos de: Alzira Rufino, Jurema Werneck, Sueli Carneiro, Diva Moreira, João Jorge Santos Rodrigues, Maria Aparecida Bento, Normando Batista Santos, Berenice Kikuchi, José Marmo da Silva, Jairo Pereira de Jesus e Regina dos Santos. Parceria da Ashoka com a Takano Cidadania. Contato: ashoka@ashoka.org.br

Está se destacando por ser um grupo de hip hop formado somente por mulheres negras (nome inspirou-se na luta da legendária escrava Anastácia). As Anastácias também foram destaque no Prêmio Hutus de Hip Hop no RJ, com o rap Mulheres Heroínas, conquistando o merecido reconhecimento como Melhor Demo Feminino. Atualmente compõem o grupo: Denise (MC e Backing), Fernanda (MC e Backing), Josy (MC), Malizi (MC), Cláudia(DJ) e Quênia (DJ). Contatos: E-mail: grupoanastacias @bol.com.br


Anemia Falciforme e Diagnóstico Neonatal Artigo de Berenice Assumpção Kikuchi

Anemia Falciforme

Sinais e Sintomas

A anemia Falciforme, com prevalência de 1 em cada 500 nascidos vivos nos afro-descendentes, é uma doença genética incurável, autolimitante e com alto índice de mortalidade.

Anemia crônica: em razão da destruição precoce das hemácias.

A doença é hereditária, causada por um gene recessivo que pode ser encontrado na população brasileira em freqüências que variam de 2,0% a 6,0%. Quando se consideram só os afro-descendentes, a freqüência pode variar de 6,0% a 10,0%, Ministério da Saúde, 96. Essas pessoas têm apenas um gene para a doença. Não apresentam manifestações clínicas e são chamadas de portadoras do traço falciforme. Quando indivíduos com essa condição genética unem-se, têm 25,0% de chances, a cada gestação de gerarem filhos com anemia Falciforme. Acreditam ser uma fatalidade, não o resultado de suas combinações genéticas. Assim, o casal pode ter vários filhos com a mesma doença. As pessoas com Anemia Falciforme produzem glóbulos vermelhos deformados, em forma de foice que obstruem o sistema circulatório e causam microinfartos em diferentes partes do corpo, comprometendo progressivamente vários órgãos. Estes processos de vaso-oclusão são chamados de crises de falcização, acompanhados de crise de dor que podem durar horas ou dias. O baço, também, é atingido, comprometendo o sistema de defesa realizado por este órgão, deixando estes doentes mais suscetíveis a infecções. A fase mais crítica da doença é até os cinco anos de idade.

Crises dolorosas; ossos, músculos e articulações em razão da vaso-oclusão com redução do fluxo de sangue e oxigênio nos tecidos e órgãos. Palidez, cansaço fácil por causa da redução de oxigênio. Icterícia: cor amarelada mais visível no branco dos olhos, pelo excesso de bilirrubina no sistema circulatório, resultante da destruição rápida das hemácias. Nas crianças, pode haver inchaço muito doloroso nas mãos e pés, (síndrome mão e pé), em razão da inflamação dos tecidos moles que envolvem as articulações do punho, tornozelo, dedos e artelhos. Seqüestro esplênico (acúmulo de sangue no baço), palidez intensa, aumento do baço, desmaio, pela retenção de grande volume de sangue no baço (emergência). Retardo do crescimento e maturação sexual pela presença da anemia, infecções e interferência na produção hormonal. Úlceras (feridas), sobretudo, nas pernas, iniciam-se na adolescência e tendem a cronificar, em razão da viscosidade do sangue e má circulação periférica. Infecções: devidas à perda da função do baço. Maior suscetibilidade em crianças até cinco anos de idade. Priapismo (ereção dolorosa e prolongada do pênis) por oclusão dos vasos que irrigam o pênis, pode ocorrer em crianças ou adultos (KIKUCHI, 1994, p.2). EPARREI 25


Diagnóstico neonatal e Anemia Falciforme Diagnóstico neonatal é um conjunto de exames que são realizados nos bebês após 24hs de nascido e menos de trinta dias de vida. A amostra de sangue é coletada em papel filtro a partir de puntura no calcanhar e, por esta razão, ficou conhecido como teste do pezinho. O papel filtro é a forma de transportar sangue seco da unidade de coleta ao laboratório de referência onde será eluído voltando à forma líquida. Este exame foi implantado no Brasil há alguns anos, para dois tipos de doença: fenilcetonuria e hipotiroidismo. A técnica para diagnóstico da anemia falciforme a partir de sangue coletado em papel filtro iniciou no Brasil em 1998, ao ser implantado no Estado de Minas Gerais. Como equipamento e insumos não são produzidos no Brasil, apenas alguns laboratórios vinham investindo na sua capacidade operacional para a realização do exame para anemia falciforme. A partir de junho de 2001, o Ministério da Saúde vem disciplinando a implantação e implementação do diagnóstico neonatal a nível nacional, com a inclusão do exame que detecta Anemia Falciforme e outras hemoglobinopatias. KIKUCHI, 2003. Em algumas cidades, o exame para Anemia Falciforme já foi incluído no teste do pezinho, portanto, é importante que as pessoas sejam orientadas e assinem seu consentimento para a realização dos exames que serão realizados a partir do sangue colhido do bebê. Em caso de resultado positivo de Anemia Falciforme ou Traço Falciforme, a família deverá ser chamada para orientação genética e o mesmo exame deverá ser oferecido aos pais e irmãos, abrindo assim uma janela genética. Caso o casal seja portador de Traço Falciforme este deverá ser encaminhado para o planejamento familiar e ter garantia de receber o método escolhido. Cabe à instituição que realizou o exame diagnóstico encaminhar a criança com Anemia Falciforme para um centro de tratamento hematológico com experiência em atender doente falciforme. Geralmente, estes retornos ocorrem trimestralmente. O acompanhamento de rotina deve ser feito pelo pediatra da unidade básica de saúde. A doença ainda não tem cura. Daí, a importância de acompanhamento médico regular, vacinação de rotina e as especificas para reduzir as infecções por pneumococos e suporte aos familiares para um convívio mais positivo com a doença. Desta forma é possível dar a estas crianças uma melhor qualidade de vida, enquanto os cientistas trabalham em busca da cura.

Educação para saúde Informe-se no serviço de saúde de sua cidade se o exame que detecta Anemia Falciforme já está incluído no teste do pezinho. Todas as pessoas, independente da sua cor de pele, se o desejarem, devem fazer o exame eletroforese de hemoglobina antes de gerarem um filho. Todos os cidadãos que submetem-se a uma coleta de material orgânico, têm direito de saber detalhadamente quais os exames que serão realizados a partir da amostra colhida e registrar por meio de assinatura o seu consentimento. Na população brasileira, de cada cem pessoas, três possuem o traço genético. Dependendo da região do Brasil, este índice pode chegar a 10,0%. Se você tem um filho, parentes ou amigos com a doença falciforme, eles precisam de cuidados médicos pelo resto de suas vidas. Incentive-os a ir ao médico hematologista, mesmo que não tenham muitas complicações clínicas, o controle médico é muito importante. A média de vida dos doentes falciformes no Brasil é muito baixa, em torno de l8 anos, AMARO,1996. Você pode ajudar a melhorar este índice. Amplie esta discussão em seu bairro, converse com os profissionais de saúde. Nos Estados Unidos e Cuba a média é de 42 anos para homens e 47 para mulheres. Um casal que tenha um filho com anemia falciforme poderá ter outros filhos com a doença. Torna-se importante receber orientação genética, participar do planejamento familiar e ter garantia de receber o método escolhido. Crianças com Anemia Falciforme, com febre de 38,5º, precisam de atenção médica de urgência com investigação minuciosa de provável foco infeccioso. Elas podem desenvolver septicemia, infecção generalizada e morrer em menos de 24 horas. A criança com anemia falciforme deve ser encorajada a participar de todas as atividades escolares e familiar; poupá-la ou encará-la como doente não vai ajudar a prepará-la para a vida. Ela precisa de desafios para sentir-se integrada a seu meio, vivendo a infância e adolescência com os mesmos interesses, desafios e problemas que seus colegas, para que seu aprendizado na família e na escola a prepare para a vida.

Bibliografia 1-Amaro ,Luiz Alves Estudo da Mortalidade por Anemia Falciforme JESUS,V ( 4 ) out/dez 1996

Prof. Berenice Assumpção Kikuchi

Enfermeira de saúde publica; Pesquisadora em anemia falciforme; Presidente fundadora da Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo Endereço para correspondência Rua Boacica 422 – Cidade Patriarca – São Paulo – SP CEP –03550-050 - Tel/fax 6957- 6783 E-mail: anemiafalciforme@terra.com.br

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2-Kikuchi, Berenice Assumpção Anemia Falciforme um Problema Nosso Cartilha- Associação Ogban e Hemocentro de São Paulo - ano 1994 3-Kikuchi, Berenice Assumpção Anemia Falciforme manual para agentes de saúde e educação Editora Health – 2º edição - Belo Horizonte –2003 4-Ministério da Saúde A Saúde da População Negra - Relatório Final – Brasília – 1996


Profissões

A arte de ouvir Vanda de Souza Ferreira, a primeira ouvidora negra da Petros do Rio de Janeiro Conciliar direitos e deveres, tomar decisões de maneira que as partes envolvidas possam crescer mutuamente é o desafio que a Ouvidora Vanda de Souza Ferreira enfrenta há cerca de quatro anos na Fundação Petrobrás de Seguridade Social.

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o período colonial o cargo de Ouvidor era ocupado por magistrado que exercia as funções do atual juiz. A profissão acompanhou a evolução dos tempos, se no passado, o profissional era uma espécie de inquisidor, hoje, é respeitado pela tomada de decisões. De comum com o passado é de que continua a ser um cargo de confiança. Na Petros, é ligado ao Gabinete da Presidência da Fundação. O talento de Vanda reside no fato de que patrões e empregados vêem nela uma pessoa de confiança. Situada no andar que abriga executivos do primeiro escalão, sua sala reflete na decoração requinte e harmonia. Um ambiente perfeito para troca de papéis. Eparrei quer ouvir Vanda falar: “Não sinto orgulho por ser a primeira ouvidora negra da Petros, gostaria de ser a vigésima,

quadragésima”. Tranqüila e sorridente nos informa que já se acostumou com a surpresa dos visitantes ao deparar com sua presença. Esperavam ver um homem branco no cargo. Sensibilidade e coerência são algumas das habilidades que desenvolveu ao longo de sua carreira, possuindo um currículo que teve influência na sua indicação pelo governo para ocupar o cargo. Ingressou no magistério em 1967, na escola Tia Ciata, instituição que atendia crianças de rua. Uma de suas preocupações era a de resgatar a auto-estima das crianças narrando a história de seus ancestrais. Na periferia, desenvolveu trabalhos de educação centrado na formação da cidadania das populações negras. Dos diversos cargos que ocupou na área de educação, a responsabilidade na

Secretaria de Educação do Estado deixou marcas. Emocionada relembra a experiência pioneira na educação do sistema presidiário. “Foi uma experiência primorosa, cresci muito enquanto ser humano. Tentava dar o máximo de atenção e respeito aos presos e muitas vezes fui criticada por isso”. Para Profa. Vanda, educar para mudar começa pela nãoviolação dos Direitos Humanos. A consciência de preservar os valores da cultura africana tem acompanhado sua vida. Na década de 80, vamos encontrá-la exercendo o cargo de Diretora de Cultura do Instituto de Pesquisa Yorubá. Nos anos 90 é membro do Conselho Consultivo do PROAFRO – Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e AfroAmericanos do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente,

é Sócia Honorária do Instituto Palmares de Direitos Humanos e membro Honorária do Memorial Goré do Ministério da Cultura do Senegal. Integra os conselhos das ONGs Olodum, Fundo Ângela Borba e Coisa de Mulher. A educadora Vanda de Souza é uma poucas executivas negras que conseguiu ultrapassar os limites impostos pelo racismo cordial. Um dos assessores nos informa que o tempo esgotou, o motorista espera o momento de levá-la para o aeroporto, uma funcionária pede licença para entregar um presente em nome dos colegas e lhe deseja Boas Férias. Foi bom ouvir a Profa. Vanda: “Ainda somos poucas, a sociedade brasileira precisa avançar nas relações de gênero e raça no mercado de trabalho. A gente chega lá....”

(*)Texto elaborado no Laboratório de Redação do Núcleo de Educação da CCMN EPARREI 27


Ser negra

25 horas por dia Primeira Secretária de Estado negra do Brasil, presidente do Centro de Memória Afro-Brasileira, médica e escritora. Essa é a Dra. Edialeda (Adelaide ao contrário), que para combater o estresse pinta presépios negros para presentear os amigos no Natal.

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Textura em vidro / Zimbabue, etnia Shona - Fonte: Catálogo da Mostra Arte da África

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ano era de 1967. Um amigo influente foi a uma universidade renomada pedir ao diretor uma bolsa de estudos para Edialeda Salgado do Nascimento. Ao invés de um incentivo, ao saber que se tratava de uma mulher negra com quatro filhos pequenos, ofereceu uma vaga de cozinheira na casa dele. Ao invés de desanimar, Edialeda encarou o fato como um desafio.”Eu não fui cozinheira dele, eu falo só cinco línguas, falo português, falo e escrevo bem, espanhol, italiano, francês e inglês, um pouco de alemão, quer dizer, não fui para onde achavam que era meu lugar”. Em março de 83, a convite de Leonel Brizola, assume a Secretaria Estadual de Promoção Social. Mesmo ocupando um cargo alto, a discriminação racial não deixou de existir. No dia do anúncio de seu cargo, foi barrada pelo porteiro que dizia não poder deixá-la passar porque por ali só entravam Secretários de Estado. Quando soube que Edialeda era a nova Secretária de Promoção

Social, constrangido, deixou-a entrar. “Para eles uma mulher negra nunca poderia ser Secretária, ainda mais na década de 80”. Edialeda é o tipo de mulher que gosta de contar suas histórias com seu jeito agitado e fala rápida. Da infância, mantém boas recordações, no entanto, como a maioria das crianças negras, sentiu na escola o primeiro impacto do racismo. Quando passava cola ou fazia a lição para seus colegas, era tida como morena, mas se fazia algo que os desagradasse, passava a ser negra. Começou a trabalhar como auxiliar de escritório numa firma de despachos alfandegários. Depois prestou concurso público para a Ferrovia CLT, onde ajudou a formar o sindicato da categoria. Mesmo casada e com quatro filhos não desistiu do sonho de infância de ser médica. Apesar de toda dificuldade, pois morava e trabalhava no Rio e a Faculdade ficava em Valença (município do Estado do RJ), Edialeda não

desistiu. “Quando eu cheguei na faculdade, foi uma loucura, porque eu tinha meu emprego aqui no Rio de Janeiro. Então às quintas eu não ia à aula na faculdade, pegava o ônibus às 5h da manhã em Valença para chegar no Rio às 8h porque precisava manter um vínculo empregatício. Ficava trabalhando, pegava o ônibus, chegava às 12h em Valença e dormia para de manhã ir à faculdade”. Graduou-se em 1973 e especializou-se em Medicina do Trabalho e Obstetrícia. Mantinha o sonho de estudar na Europa, quando viu um anúncio no Jornal do Brasil procurando médicas formadas para estudar na Itália. Uma das exigências era falar italiano fluentemente. Matriculouse num curso, nessa época trabalhava no Hospital Miguel Couto e revezava as aulas com os plantões. No ano seguinte, ganhou a bolsa e, em outubro de 74, foi com os filhos para a Itália. Matriculou os filhos em uma escola, conheceu vários países da Europa e concluiu a


especialização. Voltou para o Brasil. Desfez o casamento e foi morar em Copacabana. Foi quando, no fim da década de 70, a política começou a entrar em sua vida. Um dia, um amigo deu um folheto para Edialeda ler e corrigir os erros de português. “O papel fazia uma reflexão do lugar do negro na política. Dizia assim: “Onde está o negro na política, o negro general, o negro almirante, brigadeiro? Cadê o negro mandando neste país? Cadê o negro no senado? Não tem”. Foi quando percebi o quanto vivia em uma sociedade racista e vi quem é que mandava neste país, e que nós negros sempre fomos soldados obedientes, mas nunca comandamos o exército. Desse dia em diante resolvi que seria negra 25 horas por dia”. Percebendo a falta de espelhos que a comunidade negra possuía, começou a escrever, publicar artigos e a receber incentivo dos amigos para candidatar-se a algum cargo público. Então em 82 candidata-se a deputada estadual. Fez a campanha como referencial, sem muito dinheiro e criou uma chapa junto com Abdias do Nascimento e Maria Lei. Colavam material de propaganda de madrugada nas ruas. O carro de Abdias era o transporte para fazer a campanha nos bairros da cidade. “A gente ia para falar com o povo e eles/as se admiravam quando sabiam que eu era médica. A maioria se viu em mim. Foi um prazer esta campanha porque o povo negro viu a gente na rua e a minha cara de mulher negra falando com eles”. Foi eleita deputada, tendo Abdias como suplente. A importância de espelhos continuou a ser prioridade. Lembra com muita emoção de um fato que ocorreu com um dos seus filhos. Após um congresso que Abdias havia realizado, Edialeda comprou um poster de Simão Bolivar. Na época, seu filho mais novo estudava em uma escola de classe média alta e nunca havia se assumido como negro. “Meu filho olhou admirado para o cartaz e perguntou: mamãe, esse homem é negro? Eu respondi: É, ele é negro. O André Luís passou a ser negro naquela hora, ele tinha um espelho ali para se ver, se viu nos negros ali, nos negros em Bolivar, e hoje meu filho é um negro. Então é de extrema importância nós termos espelhos e quando eu vejo a Globo colocar

Chiquinha Gonzaga como sendo uma branca, isso para mim é a morte, porque mata a nossa história e nossa identidade”. Após o término do mandato, Edialeda começou a participar de vários encontros de mulheres negras em outros países, convidada para falar sobre a situação da mulher negra no Brasil. Ministrou palestras em vários países da África e nos Estados Unidos.

“Para mim é como uma missão. Estava aqui em casa e tocava o telefone: a senhora pode falar para uma televisão da África. Eu respondia que sim, qual o tema, em que língua? Eu tinha que mostrar a cara do Brasil. Porque quando você vê uma mulher branca representando Cleópatra e dizendo que era nossa rainha, é revoltante”. Fez um trabalho na UniRio sobre quem realmente constituiu o Brasil. Cita a rainha N’zinga, Luiza Mahin, Aleijadinho e outras

personalidades. “Temos heróis e heroínas negros/as que não conhecemos nem como negros/as. Quem diz que Carlos Gomes era negro? Quem fala de D. Manuel Garcia? Então a nossa missão, porque vocês são de uma revista negra, é de mostrar a nossa cara de mulheres negras para que os nossos jovens tenham orgulho de si mesmos e os não-negros nos dêem um pouco mais de respeito”. Criou programas de saúde para a população negra e preside o Movimento Negro Nacional do PDT. Fundou o Centro de Memória Afro-Brasileira em 2001 que tem por objetivo resgatar a história dos ancestrais. Este ano publicará seu primeiro livro de poesias, chamado (Quero Vida), com capa da amiga e cineasta Iléa Ferraz. Por não concordar em ver os presépios brancos e achar que o Natal tornou-se comércio, começou a pintar presépios negros e enviar para os amigos, juntamente com uma carta que relembra o verdadeiro significado do dia do nascimento de Jesus. “Comecei a dar presépios para as pessoas se lembrarem que o Natal é dar e receber, não é só comer e beber nem dar presentes vagos. O Natal é dar e receber, não só presentes, mas amor, compreensão, humanidade e tolerância”. Emocionada, no final da entrevista, Dra. Edialeda deixa uma mensagem para as jovens negras: “Nunca tenham o não como resposta. Nunca desanimem! Eu estudei Medicina sem poder pagar a faculdade, fui morar na Europa sem poder morar na Europa e hoje moro aqui no Flamengo e falo cinco idiomas”.

Entrevista a Djamila Ribeiro Texto desenvolvido no Laboratório de Redação do Núcleo de Educação da CCMN EPARREI 29


Diagnóstico à flor da pele

Texto: Eliane Almeida

Graduada em Psicologia e Mestra em Psicologia Clínica, Marta de Oliveira é funcionária da Secretaria de Saúde do Estado do RJ. Seu olhar para a Saúde da População Negra, não poderia deixar de refletir a consciência adquirida em sua trajetória de vida.

A

opção pela carreira de psicóloga foi influenciada pelo fato da mãe ser enfermeira e o irmão médico. A consciência de sua negritude foi adquirida na militância no MNUMovimento Negro Unificado do Rio de Janeiro no final da década de 70. De lá para cá, Martinha como é carinhosamente chamada, vem trabalhando a temática de raça e gênero, com recorte mais específico nas questões da saúde da população negra. Se foi doloroso, no início da carreira se fazer respeitar como profissional, a perseverança lhe rendeu frutos: “No início fazia um trabalho de atendimento acompanhando pessoas em saúde mental nos 30 EPARREI

ambulatórios e hospitais, a seguir fui para um nível central e há sete anos trabalho especificamente na área da saúde da mulher”. Trabalhando no cotidiano dos hospitais, constatou que são inúmeros os problemas relacionados à saúde do povo negro. “Ao se fazer o atendimento psicoterápico aos pacientes portadores de anemia falciforme, diabetes, miomas uterinos e hipertensão arterial não há como aceitar o descaso dos órgãos de saúde e o quanto afetam a saúde psíquica”. Com relação à mortalidade materna, relata que os dados não aparecem por não existir pesquisas específicas sobre o assunto, e, em alguns

estados, já se tem notícia do início de pesquisas com recorte racial: “Quando você não trabalha levando em consideração a cor da pele, essa realidade fica encoberta. Aqui no Rio, depois que se passou a desagregar por cor os dados relativos à mortalidade materna, chegou-se à conclusão que as mulheres negras correm duas vezes mais o risco de morrerem no período de gravidez do que as mulheres brancas e morrem por causas evitáveis que estão ligadas à falta de acesso e de cuidado adequado. Uma negligência sobre uma queixa pode matar”. Convicta em suas posições acredita que é necessário criar mecanismos para barrar as práticas racistas

dentro do sistema de saúde, e os profissionais da área de saúde não podem ser coniventes com essas práticas discriminatórias, que muitas vezes são sutis.


Transformando

Veneno em Remédio

Texto: Eliane Almeida

O

jeito bem carioca e irônico de falar virou marca registrada desta mineira carioca da gema. “Olha só. Nasci em Minas Gerais, fui criada no Jacarezinho e moro em Jacarepaguá, é mole?” Irreverência, força e perseverança, estas são as maiores qualidades de Creuzely Ferreira, contabilista, administradora de empresas e economista. Quando se formou, havia poucas profissionais negras na área de Exatas. Órfã desde muito cedo, foi criada pela avó e três tias que eram empregadas domésticas e raramente via o pai. Aos 9 anos já dava aulas para as crianças da comunidade do Jacarezinho. Hoje, Creuzely, divide seu tempo entre ser Diretora Administrativa da Creche da Associação dos Funcionários Públicos do Estado e o trabalho com as crianças carentes do Jacarezinho. “Desde a minha entrada no Grêmio Recreativo de Arte Negra Quilombo, em Acari, onde fui diretora por dois mandatos, venho trabalhando com nossas crianças, fazendo-as ver o quanto são bonitas, abrindo

os olhos sobre nossas questões, sempre lembrando que jacaré que dorme vira bolsa”. Creuzely diz que enfrentou, e ainda enfrenta, as dificuldades de ser mulher e negra no Brasil. “Porque nosso país discrimina mesmo, se você não tem curso universitário é porque não tem, se você tem, também não é bom porque você não é rico nem branco. Na cabeça deles você vai sempre ter o ranço da miséria”. Saiu do Jacarezinho quando formada contabilista e administradora de empresas indo trabalhar com as Organizações Globo na área contábil. Uma das situações que não esquece remete a esse período. Um colega da Globo sempre indagava o por quê de uma mulher tão culta e elegante estar envolvida com o Movimento Negro. Irônica respondia que era melhor que ele fosse procurar um oftalmologista. “O que se denunciava lá atrás não mudou, não... O bolsão da miséria tem cor e é negro. Não conheci ainda uma presidente ou presidentes negros de partido, porque se a direita ou o centro está no poder, o negro não está

e se a esquerda está no poder o negro também não está... e o camarada ainda vem me questionar como posso estar envolvida, é mole ? É o que sempre digo para garotada, temos que administrar a situação, em água que tem piranha, jacaré tem que nadar de costas”. Dentre seus projetos com as crianças existe um que, em 1998, foi escolhido como um dos 10 melhores projetos pioneiros do Brasil. Trata-se do “Jacarelândia, o país da percussão”, apoiado pela Comunidade Solidária. Pelo fato do trabalho ser adjunto da Escola de Samba Tradição, onde era também Diretora de Comunidade, ficava mais fácil desenvolver o projeto na área musical. “Atendíamos adolescentes de 14 a 21 anos. Em nossas oficinas aprendiam a construir os instrumentos de percussão e a tocá-los”, conta Creuzely com orgulho. Ela diz ainda que o que mais a gratifica neste trabalho é o fato de tirar das ruas crianças que poderiam ser marginais e lhes mostrar outros caminhos. “Com este trabalho criamos um elo.

Procuramos sempre conversar e orientar. Sempre aconselho a meninada que não tem essa de ficar na rua. Brincar é muito bom mas se trabalhar e estudar é duro, quem precisa mudar de vida faz do duro mole”. Creuzely iniciou na militância na década de 70 no IPCN auxiliando na parte de Secretaria. Hoje percebe que o que se falava na época se perpetua nos dias atuais. Foi a primeira mulher a se eleger Presidente do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra RJ-Condedine. Faz parte do Conselho Fiscal da GRES Unidos do Jacarezinho. Ser negro no Brasil é tarefa árdua e Creuzely Ferreira encara o desafio de transformar essa realidade de exclusão. “Eu sempre tive consciência da diferença imposta, sempre soube que eu ganhava menos fazendo a mesma coisa porque eu era negra e era mulher. Você tem que brigar e estar na luta para transformar o veneno em remédio”, finaliza.

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MOSTRA

ARTE DA ÁFRICA Fotos do catálogo da Mostra

“Pode-se dizer, sem medo de exagerar, que o melhor do que se desenvolveu na arte contemporânea nos vinte anos passados deve sua inspiração original à escultura negra primitiva”, (Paul Guillaume e Thomas Munro, em “Primitive Negro Sculpture”, 1928)

Acima: Ilustração da capa do livro Arte da África / catálogo da exposição; Ao lado: Estátua Real Chibinda Ilunga e Cadeira Real / Angola, etnia Chokwe Século XIX 32 EPARREI


Máscara / Libéria, etnia Mano ou Dan Século XX - Madeira e Ferro

Banquinho Real / Camarões, etnia Bamum - Século XIV Madeira, miçanga, búzios e pano

Durante cinco meses, de outubro de 2003 a março deste ano, os brasileiros puderam ver de perto porque a arte africana tem um papel importante na produção ocidental do início do século XX, em especial sobre o cubismo, movimento liderado por Braque e Picasso. A Mostra Arte da África trouxe ao Brasil 268 obras produzidas entre os séculos XV e XX, pertencentes ao acervo do Museu Etnológico de Berlim, que possui uma das maiores coleções de arte africana do planeta, com cerca de 75 mil peças. A exposição foi realizada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, apresentada também no CCBB de São Paulo e Brasília. A mostra destacou três regiões: República de Benin, República do Congo e República de Camarões e o público pôde visitar salas divididas por temas como Tronos, Palácio de Benin, Influências Estrangeiras, Figuras Ancestrais, Figuras de Ritual, Figuras de Poder, Objetos do Cotidiano, Máscaras e Instrumentos Musicais.

Máscara ritual Gelede / Nigéria, Iorubá Início do Século XX - Madeira

O CCBB do Rio de Janeiro abrigou, além da exposição, apresentações de grupos de teatro, retrospectiva de filmes, rodas de leitura de escritores africanos e um curso de introdução à história da África e à cultura afro-brasileira, dirigido a educadores(as), também integraram o projeto. Um público recorde passou pela Mostra nas três cidades, evidenciando que há no Brasil um crescente interesse pela África, atualmente com 53 países e 790 milhões de habitantes. Foi o maior evento já realizado na América Latina oferecendo a possibilidade de novas leituras sobre o continente negro, ainda tão desconhecido da população brasileira, que nele tem raízes profundas.

Cabeça de um rei Nigéria, Reino do Benin, Latão e contas de corais Século XVIII EPARREI 33


Estátua feminina ritual / Congo, etnia Suku - Século XX Madeira

A arte da África do passado encontra a sua expressão maior na escultura, seja nas estátuas de poder do outro mundo provenientes do Congo, nas máscaras das estepes da República dos Camarões ou nos mundialmente famosos bronzes do Benin no território da atual Nigéria.

Porta de celeiro / Mali, etnia Dogon - Fim do Século XIX

A maioria das esculturas figurativas ou das máscaras com rostos humanos caracterizam-se pela abstração, o geometrismo, tratamento livre da forma. Algumas esculturas são nitidamente representativas e procuram retratar pessoas importantes como reis e rainhas. Sabe-se que algumas esculturas procuravam substituir a pessoa falecida. Essas figuras representativas tinham a utilidade básica em rituais mágicos. Para os africanos, a máscara representava um disfarce místico com o qual poderiam absorver forças mágicas dos espíritos e assim utilizá-las em benefício da comunidade: na cura de doentes, em rituais fúnebres, cerimônias de iniciação, casamentos e nascimentos. Serviam também para identificar os membros de certas sociedades secretas. Os povos yorubas e os binis modelaram peças de grande valor, em marfim, ouro e bronze, de um desenho singular, muitas delas encomendadas pelas cortes européias. A África mantinha, desde a antiguidade, relações comerciais e culturais com a Europa e a Ásia. Na Idade Média, o Reino do Mali mantinha um embaixador na corte de Pequim. Desde o século XV, entalhadores africanos reproduziam seus trabalhos para o mercado europeu. A corte do ducado alemão de Württemberg contratou, no século XVII, timpanistas e trompetistas africanos.

Instrumento da sociedade tradicional de máscaras Kwifon / Camarões, etnia Kom - Século XIX 34 EPARREI


Cestos com tampa / Tanzânia, etnia Haya - Início do Século XX - Fibras de bainha de folha de bananeira e fibras vegetais;

As Criolas Por Fernanda Felisberto*

Organização carioca é referência no empoderamento de mulheres e jovens negras

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melhor palavra para descrever estes 12 anos de existência de Criola é protagonismo e, principalmente, de mulheres negras. Parece até que foi ontem, mas desde sua criação no dia 02 de setembro de 1992, a organização carioca de mulheres negras atendeu diretamente mais de 5 mil mulheres, adolescentes e meninas, transmitindo o compromisso de suas fundadoras de enfrentar o racismo, o sexismo e a homofobia vigentes em nossa sociedade. Tive oportunidade de conversar com Lúcia Xavier, uma das sóciasfundadoras, que com sua fala mansa e determinada, pouco a pouco, foi apresentando de forma articulada uma radiografia

interessante da estrutura e dos programas da organização, além do indisfarçável orgulho de poder manter, ao lado da outra sócia fundadora Jurema Werneck e da equipe atual, uma organização de mulheres negras, por tanto tempo funcionando. A estrutura organizacional de Criola consiste em assembléia geral, um conselho de 6 representantes e uma coordenação geral, composta por 2 diretoras executivas e 5 coordenadoras que se ocupam do desenvolvimento dos projetos junto com a equipe da captação de recursos e da administração institucional. Para Lúcia é fundamental investir e apoiar as novas gerações, portanto, é prática que jovens negras ocupem cargos de liderança dentro da organização. Criola é hoje uma referência nas lutas anti-racismo e antisexista não só no Rio de Janeiro, como no cenário nacional e internacional. Desde sua criação, o espaço de atuação direta de Criola está concentrado no Estado do Rio de Janeiro. As atividades nacionais e internacionais ocorrem em articulações e redes de mulheres

assim como nos fóruns feministas, de mulheres negras e de outras entidades. Ao todo são seis linhas programáticas e multiplicadoras, não só de reflexão sobre a condição das mulheres negras no Brasil e na diáspora, assim como seis formas de reforçar e multiplicar a auto-estima e o empoderamento da mulheres negras, que são elas: Economia, trabalho e renda; Saúde da mulher negra; Defesa e garantia dos direitos humanos das mulheres negras; Ação política e articulação com outras organizações e movimentos sociais; Publicações, difusão de informações e Desenvolvimento Institucional. Cada linha de ação possui seus sub-grupos. Cada programa de Criola tem suas particularidades, mas é fundamental destacar o programa da Saúde da Mulher Negra, uma área específica, que ainda possui sérias lacunas em nosso país no que diz respeito às políticas públicas e (in) formação de profissionais do setor de saúde, assim como as próprias mulheres negras desmistificando conceitos equivocados e fornecendo subsídios para um auto-conhecimento.

A estratégia utilizada pela organização foi a capacitação de agentes de saúde, através da realização de reuniões de treinamento e elaboração de material didático específico para mulheres e adolescentes negras, sobre os temas: gênero e raça, dst/aids, sexualidade, sexo seguro, responsabilidade e ação solidária; também distribui gratuitamente o boletim mensal Toques, com a tiragem de cinco mil exemplares, além do livro Saúde da Mulher Negra: Nossos passos vêm de longe, já em sua segunda edição, feito em parceira, com a Pallas Editora e Global Exchange. Criola também está na Secretaria Executiva da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, grupo que foi criado a partir da diversidade organizativa e dimensão geográfica do país, com o intuito de que, a partir da multiplicidade de limitações das organizações de mulheres negras no Brasil, se pudessem pensar ações mais conjuntas e organizadas. Esta articulação teve um papel político de destaque em todo o processo preparatório III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas/ III CMR (África do Sul, Durban, 28/08 a 8/09 de 2001), assim como em um dos principais grupos de pressão durante a conferência. Indiscutivelmente, há muitos anos, a atuação das mulheres negras faz a diferença neste quadro (inter) nacional dissonante de desigualdades e racismo, por isso a importância de organizações como Criola, para instrumentalizar, com critérios éticos e políticos, o empoderamento de mulheres e jovens negras, já que o avanço no campo dos direitos humanos, ainda é lento.

Para conhecer um pouco mais, visite: www.criola.org.br / www.mulheresnegras.com.br *Fernanda Felisberto é colaboradora da revista Eparrei e Coordenadora do Selo Editorial Afirma. EPARREI 35


Cafôfo da Surica Ponto de Encontro do Samba

Texto elaborado no Laboratório de Redação do Núcleo de Educação da CCMN

Instalado numa vila nos fundos da quadra da GRES Portela, é no Cafôfo da Surica que Dona Ivone Lara, Alcione, Beth Carvalho, Cristina Buarque, Paulinho da Viola, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho e outros bambas se encontram pelo menos uma vez no ano para festejar o aniversário da Tia Surica.

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spaço na quadra tem de sobra, mas todos preferem o Cafôfo da Tia Surica que virou nome de Bloco de Carnaval e tema de música. No Cafôfo sempre cabe mais um. Do meio dia até o outro amanhecer, a Rua Iguaçu em Madureira, Zona Norte, vira extensão do Cafôfo. Todos querem saborear as canções e o delicioso cardápio servidos nos almoços. Na pequena Vila, a Pastora da Velha Guarda e

suas companheiras recebem a comunidade com muita alegria. É de admirar a quantidade de pessoas que comparecem nos finais de semana para curtir um partido alto, relembrar os feitos de seu Natal e aprender com a turma da Velha Guarda da Portela. É nos versos de improviso que, a cada encontro, nasce uma nova composição. Tia Surica, o samba e a Portela são inseparáveis. No registro

fotográfico, que exibe com orgulho, pudemos conhecer um pouco da sua história na Portela. Iranette Ferreira Barcellos é filha de portelenses e por ser rechonchuda e pequenina recebeu do avô o apelido de Surica. Aos quatro anos estreou na avenida desfilando na ala Infantil das baianas. Em 1956 gravou o LP “A Vitoriosa Escola de Samba da Portela”; em 1966 é a indicada do Seu Natal e Nelson Andrade para puxar o samba enredo “Memórias de um Sargento de Milícias” criado por Paulinho da Viola. Tia Surica lembra com saudades do tempo em que não havia concurso para escolha de samba enredo da Escola “As pastoras é que escolhiam o samba enredo

Se não saísse bem na voz das pastoras o samba não pegava mesmo.....” Ela prefere não comentar sobre os tempos de perseguição da polícia aos sambistas, e do contexto em que surgiram as composições de Candeia, Paulo da Portela de seus amigos da velha Guarda Aniceto, Argemiro, Casquinha, Monarco entre outros. O preconceito com relação à mulher no samba é coisa do passado. Para ela o que importa é que a Velha Guarda é o Cartão Postal de qualquer escola. Funcionária pública aposentada, sempre independente, preferiu não casar. Realiza shows por todo Brasil levando o nome da Portela. Da mãe herdou o espírito de solidariedade e a alegria de viver. Além de cantar, desfilar na Ala da velha Guarda da Portela, dirige e brinca no Bloco Cafôfo da Surica. A última novidade é o lançamento do primeiro trabalho solo de Tia Surica. O CD, chamado “Obrigada pela minha presença”, com 17 sambas que falam de seus amores do cotidiano do subúrbio carioca e da sua escola querida. O repertório tem participações especiais de Monarco e da cantora revelação do samba Tereza Cristina, que canta a música “O Cafofo da Surica”. Iranette faz 64 anos no dia 17 de novembro e Beth Carvalho, Alcione e centenas de amigos certamente cantarão: “Vai ter samba até o dia amanhecer e os versos de improviso serão em homenagem a você, falei ?”

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Um jeito negro de

Informar Fundada em 2000, a revista eletrônica Afirma vem tentando escrever a história com nossas próprias mãos. Com o objetivo de preencher a lacuna existente nos meios de comunicação sobre a população negra e servir como uma porta de acesso, em 2000 surge a revista eletrônica Afirma, uma das poucas ONGs no Brasil com comunicação especializada na temática étnica/racial. O meio escolhido foi a internet devido ao baixo custo, a falta de representatividade negra no setor e também pela velocidade e dinamismo que faz o Afirma também ser muito lido fora do Brasil. Foi a única organização que fez uma cobertura direta da Conferência Mundial de Durban em 2001. As reuniões de pauta muitas vezes são feitas on line, não somente a revista mas até a rotina da redação tornou-se virtual. A equipe conta com cinco pessoas, Kátia Drummond, a jornalista, Davi Pereira Faustino, responsável pelo gerenciamento dos computadores, Júnior, web designer, Ataíde Mota, coordenador de comunicação, colunista e um dos fundadores de Afirma, que atualmente faz doutorado nos Estados Unidos e, fechando a equipe, Fernanda Felisberto.

Entrevista a Djamila Ribeiro

de vários nomes da televisão como Zezé Motta e Miriam Leitão. O produto seguinte do selo será um livro chamado “Terra de palavras, uma antologia que reúne contos de oito autores afrobrasileiros, uma africana e outra de Porto Rico. O selo pretende futuramente lançar um livro Fernanda Felisberto paradidático sobre a história da África e um outro chamado “Relatos de um escravo”. Visando facilitar o acesso à informação de um maior número de pessoas, Fernanda diz que muitos professores acabam imprimindo as notícias que saem no Afirma para utilizar em sala de aula. Para Fernanda, fazer comunicação negra ainda é um desafio. “ Eu acho que ainda é um espaço solitário, nós mulheres negras somos autônomas em tudo. Estamos por nossa conta. “

Fernanda, responsável pelo selo editorial da ONG, é formada em Literatura e fez seu mestrado no México sobre estudos africanos. A primeira publicação do selo foi o livro “Mídia e Racismo” co- produzido com a editora Pallas, a partir de um seminário realizado na Universidade Cândido Mendes. O livro reúne textos EPARREI 37


A política como missão Jurema Batista

“Mulher negra quer poder. Para entrar na política tem que ter vocação e talento. A eleição se ganha com poder de convencimento, não com chazinho. Eu dou o maior apoio à mulher negra. Não fujam da raia”. Esse é um chamado, um “acorda menina!” de uma mulher negra lutadora para quem acredita que a política é um lobo mau. Texto: Eliane Almeida

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Jurema Batista ao lado de Danny Glover no FSM

urema Batista, 45 anos, é a primeira deputada estadual negra do PT do Rio de Janeiro. Nascida em uma comunidade pobre, no Morro do Andaraí, foi criada pela mãe com muita dificuldade chegando a estudar à luz de lamparina e a carregar lata d’água na cabeça. A consciência política chegou aos 21 anos quando Jurema passou a lutar por benefícios em sua comunidade. “Até este momento, eu não tinha noção política de nada. Na minha comunidade não havia luz elétrica e foi nessa época que me tornei presidente da Associação de Melhoramentos do Bairro e levei a eletricidade para o morro”, explica a deputada que presidiu a associação por mais dois mandatos. Em tempos de ditadura militar, sua única fonte de informações era ouvir o programa “A voz do Brasil”. O pouco contato que tinha com outros meios de comunicação acontecia quando ia, com sua mãe, à casa das pessoas para quem trabalhava. “Minha mãe era doméstica e às vezes me levava para trabalhar com ela”. A consciência da discriminação e do preconceito foi chegando lentamente. “Eu acreditava em democracia racial, na igualdade entre os brasileiros. Fui ensinada a acreditar que o negro não conseguia as coisas porque não lutava. Eu era uma pessoa determinada e queria vencer na vida. Se o problema fosse determinação, então, não haveria problema, eu não iria morrer pobre”, conta Jurema. Em seu esforço para crescer, Jurema desdobrou-se. Acordava às 4h30 para trabalhar e estudava

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à noite. Durante as aulas muitas vezes chegava a dormir. ”Eu achava que não tinha problema tanto esforço. Se tiver que ralar, vamos ralar”, enfatiza. Ao entrar na faculdade, seu pensamento já não era tão romântico. Sabia de sua importância para a comunidade em que vivia e achava que de alguma forma precisava retribuir todo o apoio. Jurema acreditava que a educação era chave de resolução para todos os problemas. “Eu acreditava que todas as misérias do mundo acabariam se as pessoas tivessem educação. Só depois percebi que havia muito mais a fazer”. No desejo de ajudar a comunidade entrou em um grupo que discutia educação política e lhe foi apresentado o método Paulo Freire. Conheceu o projeto de alfabetização política e começou a aplicá-lo no Andaraí. Mesmo com tanta luta e sendo a única aluna negra da turma na faculdade, Jurema ainda acreditava que no Brasil não havia racismo. ”Eu achava que estavam inventando esta história de racismo no Brasil só para copiar os americanos”, revela. Foi um colega de faculdade que a ajudou a mudar sua visão de mundo. Ele a convidou para assistir a um debate sobre racismo com a participação de Lélia Gonzales e Carlos Medeiros. “Hermógenes me tirou da aula de literatura grega para ir ao debate. E me encantei com a fala de Lélia, depois a do Carlos. Todas as minhas verdades foram desmontadas naquele momento. Depois desse debate, onde havia discussão sobre racismo e Lélia estivesse, lá estava eu”, explica


Jurema Batista durante votação na Assembléia Legislativa

a deputada. De tanto seguir Lélia Gonzáles, acabaram tornado-se amigas de luta e passou a ser integrante do IPCN, Instituto de Pesquisas de Cultura Negra. Ao sentir que as especificidades das mulheres não estavam sendo contempladas, resolvem criar o Coletivo de Mulheres Negras N’zinga. Militante do movimento de mulheres negras, Jurema filia-se ao PT sendo uma das fundadoras do partido no Rio de Janeiro. Conhecendo a realidade da população negra e favelada, resolve candidatar-se a vereadora para representar seu povo na Câmara. Foi eleita por três mandatos. “Fui incentivada a me candidatar pelo pessoal da minha comunidade. Em 1988 concorri à vereança, mas não consegui ganhar dos churrascos e dentaduras distribuídos pelos outros candidatos. Em 92, já entendíamos tudo sobre o jogo eleitoral que é um jogo de poder, gênero, classe. Começamos a fazer alianças dentro do PT, com o movimento negro e o de mulheres e aí ganhamos a eleição”, orgulhase Jurema. Atualmente, a deputada está à frente da Comissão de Combate ao Racismo do Rio de Janeiro, que promove audiências e materiais

de comunicação públicos, além da participação em debates na TV e rádio. A questão das cotas também faz parte de suas pautas. Uma lei de autoria da deputada, que exige a cota de 40% para modelos ou atores/atrizes negros/ as, em propagandas municipais foi aprovada. “A questão da visibilidade é muito forte no meu trabalho, pois acredito que é importante para a auto-afirmação do cidadão e da cidadã negra”. Além desta lei, criou um Conselho onde se realizam avaliações em empresas para saber se nelas existem políticas de inclusão para os afro-descendentes. Na área da educação sua preocupação é com a implementação da lei 10.639 que obriga a inclusão da História da África no currículo escolar. “Não basta somente ter lei, é preciso capacitar os educadores e a grande saída é o material didático. Queremos que a comunidade negra do Brasil participe da produção deste material”, enfatiza. Através de sua autoridade política, Jurema luta para que a população afro-descendente carioca tenha direito à oportunidade. “Para a mulher negra sempre foi negado o espaço de poder. Agora que

ocupo um, ele deve ser bem trabalhado. Deus me colocou aqui e convenceu o coração de cada militante. Essa é uma luta pesada e eu estou aqui como uma missionária de combate ao racismo”.

Entrevista a Djamila Ribeiro no Laboratório de Redação do Núcleo de Educação da CCMN EPARREI 39


Joselina

Jjamila Ribeiro*

“O momento é de capacitação!”

Na questão racial a cidade do Rio de Janeiro tem se mostrado pioneira. Já elegeu uma governadora, três secretárias de Estado, atualmente possui uma deputada estadual e outras mulheres negras em posição de destaque. Joselina, coordenadora do Fórum de Iniciativas Negras do CEAB da Universidade Cândido Mendes, é uma dessas mulheres negras que herdaram a coragem e liderança da ancestralidade.

Enquanto militante, Joselina tem a convicção de que hoje é mais fácil desenvolver seu potencial e atividades na área das relações raciais como mulher negra. “Vir depois de Maria Nascimento que nos meados de 1940 fundava o Congresso Nacional de Mulheres e que também foi uma das fundadoras do Teatro Experimental do Negro, vir depois de mulheres que denunciavam o fato de que nós negros éramos vistos como pessoas para trabalhar e não para estudar, ficou mais fácil. Vir depois da própria Lélia Gonzalez e ter a responsabilidade de dar visibilidade às questões relativas à valorização da população negra no Brasil e ao mesmo tempo denunciar o racismo que é cotidiano, diário e estrutural, é mais fácil porque estamos depois delas”. 40 EPARREI

Da infância, Joselina recorda a exigência dos pais, por ser negra, para que estudasse muito e fosse a melhor aluna. A construção da identidade racial estimulada dentro do lar foi se desenvolvendo gradativamente à medida que ajudava a mãe a bordar e a costurar as roupas dos orixás. Criada dentro de uma Casa de Candomblé, cresceu ouvindo falar da cultura e religiosidade negra. Durante anos manteve uma confecção de bijuterias e artesanatos com design afrobrasileiro. Joselina se considera uma mulher privilegiada por ter recebido bem jovem uma identidade racial com uma estética africana. O que a incomoda, no entanto, é a perseguição que as religiões de matriz africana vêm recebendo ao longo dos tempos. “O sincretismo

em si já é uma maneira de perseguição das religiões afrobrasileiras, quer dizer, as religiões afro-diaspóricas, porque isso também não aconteceu somente no Brasil”. Joselina explica que a intolerância sempre aconteceu, mas hoje é de maneira mais visível porque as igrejas possuem maior acesso à mídia. Considera que a invisibilidade do Candomblé na mídia ao também é um modo de perseguir: “Se houvesse o mesmo percentual de exposição na mídia, para as religiões afro-brasileiras de forma positiva, como há para as religiões evangélicas, não haveria grandes problemas, mesmo que elas atacassem, porque você estaria dando à população a oportunidade de ver de forma equânime”.

Para ela, o descaso das autoridades e o silêncio dos freqüentadores também contribuem para esta intolerância. “Nós sabemos de um número muito grande de pessoas públicas hoje que são membros das religiões afro-brasileiras, e essas pessoas não vêm a público dizer isso de forma feliz e orgulhosa. É um exemplo de que a intolerância contra as religiões afro-brasileiras é muito maior do que parece”.


O corpo como bandeira de luta “A forma como você coloca o seu corpo no espaço, vai definir para quem está te observando e para você mesma, como é que você se relaciona com a identidade, a partir do corpo”. A participação no GMN - Grupo de Mulheres Negras e no Agbara Dudu, tido como o primeiro bloco afro do Rio de Janeiro na década de 80, foi fundamental para a afirmação da identidade racial através da beleza. Trabalhou com oficinas de estética africana onde mulheres negras aprendiam a gostar de trançar o cabelo. A

utilização de roupas com influência afro, além de resgatar a cultura negra, acabou se tornando uma luta a mais na pauta da discussão racial. “A identidade também se dá através da beleza, porque o seu corpo também é uma bandeira de luta. As pessoas me param na rua para perguntar, qual o significado da minha roupa e do cabelo trançado. A partir daí faço toda uma construção e discussão sobre relações raciais no Brasil. Na maioria das vezes, acabo dando palestras no ponto de ônibus”.

Jô e o CEAB Conhecido como o novo velho centro, o CEAB - Centro de Estudos Afro- Brasileiros fazia parte de um dos programas do Centro de Estudos Afro Asiáticos. Agregado à Universidade Cândido Mendes há dois anos e coordenado por Rosana Heringer, possui vida independente da universidade tendo que gerir e administrar os recursos para executar diversos programas. Um deles é o Fórum de Iniciativas Negras - Trocando Experiências, que tem por objetivo aproximar

pessoas de diversas ONGS para repartir o conhecimento construído há décadas pelo movimento social negro. Jô, como é conhecida é pesquisadora do Centro e coordenadora do Fórum e considera uma vitória a conquista do espaço acadêmico. Conta que no final dos anos 70, num momento de muita perseguição, os negros do Rio de Janeiro se articularam e propuseram à reitoria da universidade a criação do Centro de Estudos Afroasiáticos. “A partir daí começaram a denunciar o racismo e a discutir a questão da identidade negra e lutar por direitos”. Segundo a pesquisadora a partir da criação deste centro, novos centros foram surgindo, como

o IPCN- Instituto de Pesquisa Cultura Negra uma das primeiras organizações do Rio de Janeiro com formato de ONG, o CEBA - Centro de Estudos Brasil-África, o Instituto de Pesquisa e Pluralidade Negra, o SIMBA - Sociedade Intercâmbio Brasil-África e, neste contexto, o próprio Centro de Estudos Afro Brasileiros. Formada em Inglês, cursando o 3º ano de doutorado em Ciências Sociais na Universidade Cândido Mendes, Joselina descreve para a equipe Eparrei a essência do Projeto. “O momento é de capacitação. Felizmente hoje temos grandes ONGS do movimento negro que possuem acúmulo de trabalho”. Para Joselina essa aproximação é muito cara mas um de seus compromissos é aproximar o movimento social negro da academia. “A academia produziu e produz muito a respeito de nós e, na maioria das vezes, essas informações não chegam às nossas mãos. Ao mesmo tempo procuramos estabelecer o contato com várias ONGS no sentido de

contribuir para o aperfeiçoamento e formação de ativistas dos mais diversos níveis”. Com duração de duas semanas e já partindo para o 4º ano de execução, o curso tem financiado vinte e cinco bolsistas de diversas partes do Brasil, América Latina e Caribe. A meta da coordenadora é poder oferecer, até 2006, 40 vagas para o Brasil e 20 para os outros países. Dentre as 60 vagas, dez serão destinadas para ativistas que trabalharão como comunicadores do Fórum nos seus locais de atuação. Ao responder sobre a cota para mulheres no curso, Joselina sorri muito, afirmando que, normalmente, elas são maioria no Fórum, mas que há uma preocupação em se incluir os homens. Em função da grande demanda, hoje, o curso funciona também em outros espaços, chamados de Fóruns Regionais. Com a duração de no máximo dois dias este programa já esteve presente em várias cidades como Piracicaba, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Macapá e Goiânia.

Durban Irônica, Jô comenta que o Brasil é bom em assinar documentos de conferências internacionais, como em Viena, Cairo, Bejing, e a Conferência Mundial contra o Racismo, promovida pela ONU, em 2001, em Durban/África do Sul. “A implementação das resoluções esbarra em dificuldades estruturais.” “O Brasil que se vê de fora é o Brasil democrático, o Brasil que reconhece que tem racismo e que está lutando para acabar com ele. O Brasil visto a partir de dentro, é bem diferente”, diz. EPARREI 41


Falta de debate nas universidades Num momento em que o debate sobre políticas de ação afirmativa está se disseminando por diversos espaços da sociedade, a professora vê com indignação a pouca discussão do tema nas universidades. “Possuímos aqui na universidade uma das maiores bibliotecas sobre relações raciais e cultura negra no Brasil, monografias, teses de mestrado e doutorados, no entanto a questão de espaço para estudantes negros nessa universidade, ainda não é uma discussão prioritária”.

Joselina explica que o debate sobre discriminação na educação é muito antigo. Ela diz que o Jornal Exemplo, de 1892, produzido pelos negros libertos de Porto Alegre, já exigia educação para os negros, denunciando as escolas que praticavam a segregação. Ela ainda explica que em meados de 1945, Abdias do Nascimento já colocava no Comitê Afro esta discussão. “E mesmo assim existe uma vasta bibliografia dizendo que não houve segregação racial no Brasil”.

Isto acontece, segundo a doutoranda, porque o/a brasileiro/ a não consegue dar visibilidade aos assuntos colocados na pauta da sociedade pelo Movimento Negro. “Nós do Movimento Negro sempre dissemos que o racismo não é uma questão do negro, é um problema que a sociedade como um todo tem que se voltar e discutir. Não poderá ser algo guetizado dentro do movimento, o tema tem que estar incluído na pauta social do país”.

Cotas e a lei 10.639 De acordo com a professora, as cotas deverão estar centradas no acesso, permanência e sucesso, não bastando somente o ingresso na universidade. “Do ponto de vista das políticas públicas, o Brasil já tem leis suficientes. Se colocassem em prática as leis que já existem, o problema do racismo já estaria resolvido. É necessário que se faça políticas públicas, não apenas na educação, mas que essas ações compensatórias, devam estar atuando também no mercado de trabalho, na saúde e na habitação”, adverte. Indagada sobre a lei 10.639, Joselina acredita que existe ainda um professorado muito pouco treinado para discutir este tema. Ela diz que o Centro ministra um curso de extensão direcionado e que estão estabelecendo parcerias em diversos locais, inclusive com prefeituras. “Nossa proposta é de ajudar na capacitação de docentes para a implementação da nova lei”.

Produção invisível Em relação ao suporte de material produzido pelo Movimento Negro, Joselina afirma que o movimento social negro é o único neste país que nunca teve nenhum tipo de apoio, seja da esquerda intelectual, seja da igreja. “Quando se coloca hoje que toda a sociedade tem racismo ou se consegue lutar por cotas com um número muito grande de negros e não negros, é sem dúvida nenhuma resultado do trabalho do movimento negro, sem nenhuma infra-estrutura para fazê-lo”. A professora lembra que antes da

nova lei, o movimento negro já havia criado os Pré-Vestibulares Comunitários, colocando um número muito grande de jovens negros nas universidades. Joselina ainda afirma que a quantidade de informação produzida pelo movimento não é pequena, existem pesquisas prontas, monografias, dissertações e teses.

Se poder é bom, mulher negra quer poder! Segundo Joselina, há necessidade urgente de um número cada vez maior de mulheres e de negras participando dos partidos e saindo candidatas. “Das cotas de 30% que existem para as mulheres nos partidos, 15% deveriam ser destinadas às mulheres negras. : Com certeza teríamos mais visibilidade e representatividade parlamentar”, comenta.

Entrevista a Djamila Ribeiro. Texto elaborado no Laboratório de Redação do Núcleo de Educação da CCMN 42 30 EPARREI


O papel dos serviços de saúde na prevenção da violência doméstica Artigo de Debbie Lee (EUA)

O

levantamento de dados sobre violência doméstica cria uma oportunidade importante para trazer o tema à luz e possibilitar que mulheres e profissionais da área da saúde desenvolvam um plano para assegurar a segurança e melhores condições de saúde para as mulheres vítimas de violência doméstica. Há quase 10 anos o Fundo de Prevenção à Violência Familiar (The Famlly Violence Prevention Fund) vem pesquisando dados sobre a violência doméstica junto aos profissionais da saúde. A Associação Médica Americana e mais recentemente a Organização Mundial de Saúde também vêm desenvolvendo estudos nesse sentido. Os postos de saúde podem desempenhar um papel central na prevenção da violência doméstica. Na realidade, toda mulher americana utiliza os serviços de saúde em algum momento de sua vida – quer para consultas de rotina, ou em casos de gravidez, parto, doença, ferimento ou quando leva os filhos aos postos de saúde. Além do trauma imediato causado pela violência, mulheres com história de violência doméstica e crianças criadas em lares violentos têm maior probabilidade de apresentar uma grande variedade de distúrbios da saúde física e mental, como asma, diabetes, hipertensão, depressão, álcool e uso de drogas. Embora a violência doméstica

direta ou indiretamente leve milhões de mulheres aos postos de saúde, freqüentemente as mulheres são aí atendidas sem que se faça qualquer pergunta sobre a violência sofrida, não reconhecendo nem levando em consideração, portanto, a causa subjacente aos seus problemas de saúde. Historicamente o sistema de saúde desempenha um papel importante na identificação e prevenção de problemas de saúde mais freqüentes. Registros que enfocam a identificação precoce são um ponto de partida fundamental para uma melhor abordagem das práticas médicas referentes à violência doméstica. Esses registros devem colocar em prática com muita firmeza a rotina de levantamento de dados como o centro do procedimento, orientando profissionais a perguntar sobre violência a todas as suas pacientes, quer os sintomas sejam ou não imediatamente aparentes. O registro é um instrumento essencial para estabelecer esforços de colaboração em clínicas e hospitais, bem como para articular um esforço coordenado entre grupos comunitários (ONGs) de combate à violência doméstica, e o sistema de justiça criminal quando necessário. O processo de desenvolver de um procedimento pode ser um meio para estabelecer esforços de colaboração tão necessários inclusive de envolvimento das

pessoas chaves da administração para definir papéis, alocar tempo, garantir que o material necessário para a educação da paciente esteja disponível, desenvolver e rever intervenções e estratégias de treinamento e assegurar que as pacientes receberão assistência de forma segura e adequada. Trabalhar em conjunto para decidir quem faz o que, quando, onde e como pode gerar soluções criativas aos obstáculos conforme aparecerem. É de extrema importância que os procedimentos sobre violência doméstica se tornem parte dos procedimentos e das políticas oficiais para assegurar que sejam adotados na prática e que sejam encarados como um documento sujeito a adaptações e mudanças conforme forem sendo usados. Criar uma atmosfera que faça com que as mulheres se sintam seguras para conversar sobre violência doméstica aumenta a probabilidade de que revelem os abusos sofridos. Quando as vítimas de violência doméstica ou as que estão em situação de risco são logo identificadas, os profissionais têm condições de intervir para ajudar as pacientes a entenderem quais são suas opções, a viverem com maior segurança dentro do relacionamento ou a deixarem o relacionamento de forma segura. Os muitos exemplos se sucedem em que as mulheres espancadas revelam que um dos momentos mais importantes

de suas interações com seus médicos era ao serem ouvidas sobre a violência. O levantamento de dados dá às mulheres uma oportunidade valiosa de relatar aos profissionais suas experiências e ajuda a salvar suas vidas. A Casa de Cultura da Mulher Negra elaborou um documento útil e abrangente – “Violência contra a mulher – um novo olhar” que apresenta recomendações sobre como fazer o levantamento de dados para detectar violência doméstica, Ele trata da pesquisa de dados, avaliação, documentação, intervenção e os encaminhamentos que devem ocorrer em diversos planos; revê os procedimentos para ação comum e de rotina dos centros de atenção à saúde e enfatizar a importância de prática culturalmente adequada ao abordar a violência doméstica. Esse documento oferece ainda um conjunto de instrumentos clínicos que podem ser adotados em clínicas e hospitais. Eu também louvo os esforços de vocês durante o histórico e inspirador seminário realizado em junho de 2003. Apreciei a oportunidade de participar da conferência e aprender com todas vocês!! Fiquei impressionada de como vocês conseguiram reunir lideranças de todo o país e oferecer uma programação tão aprofundada e informativa. O trabalho de vocês tem sido realmente inspirador para nós aqui nos Estados Unidos.

Debbie Lee – Diretora do Programa “Iniciativa Nacional de Saúde sobre Violência Doméstica” da Instituição The Family Violence Prevention Fund, sediada em San Francisco - EUA. FVPF é considerada referência nacional na produção de materiais para os serviços de saúde e proposição de leis sobre a violência doméstica. Um dos projetos de Debbie Lee é desenvolvido em 14 estados norte-americanos. Atualmente está também na Diretoria da instituição “Médicos para uma Sociedade Livre de Violência”. Website do programa de Saúde da FCPF: http://endabuse.org EPARREI 43


SEÇÃO MULHER NOVA LEGISLAÇÃO CONTRA A VIOLÊNCIA À MULHER Notificação da violência contra a mulher pelos serviços de saúde agora é lei A Lei no. 10.778, de 24 de novembro de 2003, estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados.

Violência doméstica é crime

A Câmara dos Deputados aprovou no dia 27 de novembro o projeto de lei (PL nº 3/03), da deputada Iara Bernardi (PT-SP), que altera o Código Penal para tipificar como crime a violência doméstica. Pena: detenção, de seis meses a um ano. Este projeto de lei segue para apreciação no Senado Federal.

Mais rigor no “crime doméstico”

Projeto de Lei do senador Demostenes Torres (PFL-GO) impõe um rigor maior nas penas dos crimes de lesão corporal (agressão) e homicídio, se praticados contra esposa ou companheira e membros da própria família: Atualmente a pena prevista é de 3 meses a 1 ano de detenção. Passa a ser de 1 a 5 anos de reclusão. Homicídio, tem a pena aumentada para o mínimo de 12 anos e o máximo de 30 anos, também se tiver a conotação de ‘‘crime doméstico’’.

Violência contra a mulher nos currículos

A Câmara dos Deputados aprovou em dezembro passado projeto do deputado Bispo Rodrigues (PL-RJ para inclusão do tema “violência contra a mulher” nos currículos escolares de nível médio. O projeto tramitou em regime conclusivo e será encaminhado ao exame do Senado Federal.

Conheça o texto da lei na íntegra:

O Presidente da República Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o. Constitui objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, a violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. § 1o. Para os efeitos desta Lei, deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. § 2o. Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica e que: I. tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; II. tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maustratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar; e III. seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. § 3o. Para efeito da definição serão observados também as convenções e acordos internacionais assinados pelo Brasil, que disponham sobre prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher. Art. 2o. A autoridade sanitária proporcionará as facilidades ao processo de notificação compulsória, para o fiel cumprimento desta Lei. Art. 3o. A notificação compulsória dos casos de violência de que trata esta Lei tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido. Parágrafo único. A identificação da vítima de violência referida nesta Lei, fora do âmbito dos serviços de saúde, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável. Art. 4o. As pessoas físicas e as entidades, públicas ou privadas, abrangidas ficam sujeitas às obrigações previstas nesta Lei. Art. 5o. A inobservância das obrigações estabelecidas nesta Lei constitui infração da legislação referente à saúde pública, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. Art. 6o. Aplica-se, no que couber, à notificação compulsória prevista nesta Lei, o disposto na Lei no. 6.259, de 30 de outubro de 1975. Art. 7o. O Poder Executivo, por iniciativa do Ministério da Saúde, expedirá a regulamentação desta Lei. Art. 8o. Esta Lei entrará em vigor 120 (cento e vinte) dias após a sua publicação.

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Ex-Secretária de Direitos Humanos e Sistema Penitenciário no governo de Benedita da Silva, no Estado do Rio de Janeiro, Wania iniciou cedo sua produção intelectual. Historiadora por formação, organizou, em 1988, com pouco mais de 20 anos, a publicação do livro “Negros no Brasil: Dados da Realidade” pela editora Vozes. Em 1990, coordenou, pelo IBASE, a campanha “Não deixe sua cor passar em branco Responda com bom senso”. Em 2002 em parceria com a Rede Feminista de Saúde, apresentou o Dossiê Assimetrias Raciais no Brasil-Alerta para a elaboração de políticas. A pesquisa tinha por objetivo mostrar o desenvolvimento com recorte racial/étnico. Briga incansavelmente com o IBGE para que os indicadores da vida das pessoas negras não sejam, como ela diz, objetos apenas de visitação pública. Como Consultora do MEC, elaborou recentemente um estudo sobre políticas de ações afirmativas. Em sua cobertura na Vila Isabel, Wania responde de maneira desafiadora a questões propostas pela Revista Eparrei sobre desigualdade racial, sua experiência de

Wania

governo, cotas e mulheres negras.

Sant´Anna Por Djamila Ribeiro

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Textura em miçanga / Namíbia, etnia Yeye

Wania

Sant´Anna

Como vê a discussão étnica/ racial na sociedade brasileira? Sempre encontram uma maneira de não reconhecer os negros e as organizações do movimento negro como sujeitos políticos que possuem a agenda mais moderna para este país. Fomos os primeiros a falar de direitos humanos de maneira mais integral, de que não é admissível sair entrando nas comunidades metendo o pé na porta. Agora, frente esta nossa correta forma de ver a proteção dos direitos humanos, eles dizem “negro mata negro, porque os policiais são negros”. Essa percepção é de um mau gosto incrível. Nesta mesma direção chegam a dizer que foram os africanos que escravizaram os africanos. Os portugueses detinham o monopólio da comercialização, e nós precisamos ainda escutar essas impropriedades. A escravidão sempre aconteceu, ela faz parte da história da humanidade. Comercialização de gente, de que trata a escravidão moderna, são outros quinhentos.

Como analisa a polêmica sobre a implementação das cotas? Os pré-vestibulares para negros e carentes deram um alento para quem concluiu o ensino médio, é um incentivo à continuidade de seus estudos. Nenhuma organização da sociedade civil se preocupou em dar uma 46 EPARREI

resposta tão objetiva à população jovem deste país. No estudo realizado para o Ministério da Educação consegui identificar alguns argumentos contrários às cotas: aquela velha história, o importante é oferecer uma escola pública de qualidade; não é possível descartar o mérito dos candidatos aprovados sem o benefício das cotas; o ingresso desta parcela da população vai fazer cair o nível da universidade; estamos incentivando uma discriminação às avessas; política de ação afirmativa é uma importação dos Estados Unidos. Neste último caso, eu sempre ressalto o seguinte: a penicilina, a democracia e até o futebol são importados, original para mim é o samba. (risos) É incrível como as pessoas não conseguem entender que as ações afirmativas fazem parte de uma nova discussão global sobre a cidadania. Uma nova forma de tratamento das necessidades específicas de determinados grupos. Esses grupos se organizam politicamente e forçam os governos à tomada de decisões que, uma vez implementadas, asseguram direitos que, de outra forma, não são adequadamente satisfeitos. Não tem nada de inconstitucional, só estamos lutando pelo nosso interesse, é assim que a vida democrática se estabelece. Essas são medidas que estão sendo aplicadas para as mulheres, para os deficientes no mundo inteiro, estão presentes em diversos documentos das Nações Unidas e, por fim, é importante

não esquecer que acabamos de sair de uma Conferência Mundial especialmente dedicada ao assunto: ao racismo, à discriminação racial, à intolerância. O conflito identitário se instalou como realidade política no mundo inteiro, na China, na Índia, é de uma ignorância extrema negar, desta forma, o assunto... As pessoas se organizam para que se tenha equidade na distribuição do poder. Isso é política global, é o século XXI! Chegou-se a dizer que aqui existia a democracia racial. Não conseguimos ter nem democracia quanto mais democracia racial!

O que fazer? É preciso muita paciência. É preciso dizer que isso se dá pelo fato de o Brasil ser uma sociedade racista e que as cotas são uma estratégia para superar o racismo no Brasil. Não é esmola. Nós produzimos parte substancial da riqueza deste país, estão nos devendo! Aliás, isso é café pequeno, porque só são quatro anos, aqueles que se colocam contra as cotas imaginam que nós iremos ficar mais tempo que o necessário nas universidades. Nós queremos entrar, sair e dizer: olha tchau, adorei, foi ótimo te conhecer, aprendi, tô indo à luta, vou ter filho que vai entrar aqui também. Agora, os contrários acham que é pensão da previdência! A posição da academia, que hoje é contra, demonstra o quanto esse pessoal não tem o menor amor por esse país! Preferem ficar com medo

depois, fechar o vidro do carro, disparar no sinal fechado, com medo de um menino preto! Nossa história de educação é totalmente acidentada. Os meus 11 anos de estudo não são os mesmos 11 anos de estudo de um menino branco, tá certo? E eles, os contrários, decidiram que não, você vai prá faxina! Mesmo que estejamos ampliando os nossos anos de escolaridade. Nós precisamos instalar uma fábrica de óleo de peroba em cada esquina do país porque é muita cara de pau. Você sabe quais são os resultados da UERJ no primeiro semestre do desempenho dos pretos? Muito bem, igual ao dos brancos, e em alguns cursos superior!

Por que as cotas são importantes? É realmente necessário dizer que não é, apenas, para ampliar a escolaridade, ficar mais escolarizado, é para disputar o poder. É para ter habilidade, para ocupar espaços de poder e de decisão. Sim, porque não ocorre a ninguém que uma mulher com quatro anos de estudos vá ser diretora de recursos humanos do Credicard, certo? Então, só tem um jeito, tem que ter o diploma, adquirir conhecimento e desenvolver habilidades. Nós sabemos muito bem que se não nos formarmos como médicas, advogadas, cientistas sociais e jornalistas não vão nos contratar mesmo. Com todos esses diplomas, e habilidades, já se fazem de


Wania

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rogado. Nós não queremos a oportunidade, queremos é o di-rei-to à oportunidade. Isto é substantivamente diferente. E desta forma acredito que estejamos, inclusive, contribuindo para o bom debate sobre a reforma universitária.

E o argumento de que não se sabe quem é negro no Brasil? A sociedade brasileira branca, ou aquela que olha pra si e esquece o passado, agora vai querer tirar o avô preto do armário. (risos) Em todas as situações orquestradas por pretos, impera a maior boa vontade de incorporar os brancos. Nunca colocamos nenhum branco para fora do santo – e olha que este é o lugar de nossa tradição. Eles se aproximam, vão lá buscar o axé, pedir proteção, se cuidar... Nunca fechamos a porta. No espaço do samba, podemos dizer o mesmo, eles vão lá se sentem bem, desfilam nas nossas escolas – e, ultimamente, tomam até conta... Também, aí nunca os colocamos para fora. Agora, não querem que entremos na universidade. É muita coragem, comer a feijoada e não nos querer neste banquete, é incrível! Nós podíamos dizer que isto é, na imagem popular, cuspir no prato que comem, não é verdade? Podem cuidar da vida espiritual, serem alegres e felizes e não aceitam a idéia de que possamos progredir, não querem que entremos no Copacabana Palace! É injusto isso, não pode. A minha percepção é a seguinte, quando tudo estiver resolvido sobre as políticas de ação afirmativa para os afro-descendentes, quando os acadêmicos perceberem que existe algo a ser feito, o poder

judiciário estiver de acordo e todos os demais estiverem favoráveis, alguém vai dizer: “Ah, mas quem é negro?” Vão dizer que é impossível implementar o acordado por falta de beneficiário. É como minha filha diz em algumas situações, “fala sério, que eu tô irada!”

Ainda há os que tentam burlar a lei de cotas, não é? É indigna essa situação de uma pessoa branca se dizer negra por causa das cotas. Se eles pensam, ao agirem desta forma, que estão fraudando aos negros, é bom alertar que muito pelo contrário. Na verdade, estão fraudando aos brancos. Não estão demonstrando competência para competir dentro do seu próprio grupo, é a dupla falta de escrúpulos.

Como foi a experiência de ser Secretária de Estado? Na composição de governo da Senhora Benedita da Silva havia trinta e dois secretários, desses dez eram negros. Segundo um de nossos levantamentos, foi possível contar sessenta e três pessoas em cargos de primeiro e segundo escalão, além de assessorias especiais. Na Secretaria de Direitos Humanos formamos uma equipe equilibrada do ponto de

vista de gênero, raça, portadores de necessidades especiais. Não sei se tínhamos gays e lésbicas, realmente não pedi a carteirinha de ninguém. Era tão preta a nossa Secretaria, a diversidade era tanta, que passaram a chamála de “Sepretaria”, adjetivo que me causou muito orgulho e satisfação. O pessoal achava que era ofensa, mas para mim não era. Aliás, o país tem que ser uma “Braspretaria”. Foi uma experiência muito enriquecedora. É fato que não é fácil exercer o poder, é preciso ter muito cuidado no trato com o poder e obviamente nós não fomos ensinados a isso. Então, precisamos de mais consciência sobre o grau de responsabilidade que é o de assumir o poder. Isso é particularmente importante no trato da coisa pública, no exercício da função pública.

Como foi a reação quando assumiu um cargo de primeiro escalão no governo estadual?

Eu, com a consciência que tinha, não parti para essa função desconhecendo a complexidade que é ser uma mulher negra e, ao mesmo tempo, exercer uma função pública, o que poderia acontecer a partir dessas duas situações na realidade. Em um primeiro momento, a reação é a de desqualificar a sua imagem, a sua figura. Agora é claro que, na prática, a gente vai aprendendo outras coisas. Em algumas situações eu fui considerada até mesmo autoritária, isso pelo simples fato de cobrar o trabalho das pessoas, que tinham seus salários pagos com impostos. Eu, sem dúvida, assumi a responsabilidade de ser mulher negra e estar ali naquela função pública, sentia uma pressão subjetiva “se eu fizer algo errado, estou frita!” É isso, eu pesava subjetiva e objetivamente. EPARREI 47


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Sant´Anna

Como viram sua figura, enquanto mulher negra, neste cargo? Eu tive duas experiências interessantes. Uma visita chegou no meu gabinete e eu estava finalizando a conversa com uma outra. Eu recebia muitas pessoas. Em algumas situações, eu apresentava umas às outras – aquela que estava chegando àquela que estava saindo. O fato aconteceu em uma situação como esta. Eu não lembro mais quem exatamente chegou, mas na sala estava uma advogada amiga e branca. Eu abri a porta do gabinete para que a visita pudesse entrar, a cumprimentei e antes que pudesse falar qualquer outra coisa, a visita se dirigiu à minha amiga advogada e disse: “Ôi, Secretária!” Cumprimentou a minha amiga branca que estava lá. Esta ficou roxa e vermelha, ao mesmo tempo. Ela é uma pessoa que entende tudo da questão racial e ficou passada. A outra vez, foi na abertura de uma exposição de quadros na sede de uma agência de cooperação internacional. Eu fui até lá com uma assessora branca. Em dada situação, chegou a representante de uma outra agência de cooperação internacional e alguém teria dito que a Secretária de Direitos Humanos havia chegado e que estaria ao fundo do corredor. A representante foi em nossa direção e não teve dúvida na hora de cumprimentar, cumprimentou a minha assessora. A assessora ficou louca, fez uma cara super feia e retrucou na hora, “Eu não sou a Secretária! A Secretária é ela!” Foi aquele constrangimento. Sinceramente, o trabalho era de uma responsabilidade enorme, eu podia sentir os comentários, mas decidi que se me concentrasse nisto, não ia dar conta do recado. Eu estava ali para dar conta de uma tarefa dura e isto era, realmente, importante.

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Qual o clima político em torno do governo Benedita da Silva nesse período? Era um ambiente muito pesado, uma gestão-tampão com uma eleição disputadíssima no meio. A senhora governadora foi muitíssimo maltratada. Na minha opinião foi maltratada como mulher e como mulher negra. Isso me causava muita indignação. Você imagina, eu era a única secretária preta, a única mulher negra. Então falavam mal dela e eu sentia que estavam batendo na cara da minha mãe. Ser uma mulher negra, como ela, doeu porque acima de mim também tinha uma mulher negra, entendeu? E eu admirava a senhora governadora e passei a ter um grande respeito por ela. Uma figura política como a Benedita não podia ser tratada daquele jeito. E eu tinha a convicção, como ainda tenho, de que parte substantiva das ofensas e tentativas de desqualificação tinha motivação de cunho racial e racista. Graças a Deus eu tive a oportunidade de dizer isto para todos os secretários e outras pessoas em cargo de confiança, incluindo a governadora, em uma reunião após a eleição. Ou seja, todos puderam saber e-xata-men-te o que eu pensava a respeito.

Tendo sido Secretária de Direitos Humanos e Sistema Penitenciário, como analisa a redução da maioridade penal? A redução da maioridade penal vai desabar sobre os nossos filhos, nossos primos, nossos sobrinhos! Uma das responsabilidades da Secretaria de Direitos era, justamente, cuidar dos adolescentes em conflito com a lei. Foi uma experiência dramática, 95% que estavam lá, acautelados, eram pretos.

Poderia comentar o atentado à Secretaria? Aconteceu às 20h40, fuzilaram a portaria da Secretaria no dia 14 de maio. Eu estava no meu gabinete e, de repente, o barulho dos tiros de fuzil, depois o estouro da granada e dos alarmes dos carros começaram a soar. Senti o prédio tremer e a cair coisinhas do teto. Jogaram granada e atiraram em cima de quatro dos meus seguranças. Eles estavam na portaria, atingiram um deles a menos de três metros. Foi um milagre não ter sido morto, o atingiram no ombro, comprometendo os movimentos do braço. Uma pessoa superjovem. Foi uma loucura! Apesar do horário havia muitos funcionários no prédio, muitos de nós trabalhavam até tarde da noite e neste dia havia muitas pessoas no prédio. Foi o primeiro atentado deste tipo no ano. O que espera da Secretaria Especial de Políticas Públicas para a Igualdade Racial? Eu confesso que gostaria de ver a experiência do Rio de Janeiro reproduzida. Ou seja, negros em posição de decisão em todos os ministérios. Mas eu sei, também, que nós não temos ainda bala na agulha para isto... Acho que a SEPPIR deve cuidar não só para que os ministérios tenham programas especialmente voltados para a população afro-descendente como também órgãos, ou unidades de gerenciamento desses programas no interior dos ministérios. Isso para garantir que os programas sejam, de fato, executados. Neste sentido, eu acho que a SEPPIR deve ter uma tarefa reguladora. Dito isso, acho muito legal ter uma Fundação Cultural Palmares no Ministério da Cultura. Nós deveríamos ter algo semelhante em todos os ministérios. Para além disto, é como diz o ditado popular, “é no andar da carruagem que se ajeitam as melancias e também as abóboras. Nós temos ministérios


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Sant´Anna

Um trabalho fantástico. Agora, vamos à pergunta que não quer se calar: onde estão os negros? Eu ainda não esquadrinhei todas as tabelas, mas posso garantir, em um conjunto superior a três mil tabelas, nós encontraremos nada superior a cem com recorte racial!!! E, detalhe, eles estão investigando a cor da população desde 1872!!! É um absurdo que façam isto conosco.

para cuidar de tantos interesses, interesses de tantos e variados grupos – com recursos e gestão robusta. Nós somos 45% da população, parece razoável termos o direito de ser representados em nossos interesses, por que não?

Como analisa o Programa Fome Zero? É constrangedor viver em país que exibe o feito de ser o primeiro exportador de soja, de carne e aves e, ao mesmo tempo, precise ter um programa de combate à fome. Isso é um paradoxo. Aliás, o programa de combate à fome deveria estar na Secretaria de Igualdade Racial, deveria ser gerenciado pela SEPPIR. Afinal, a fome é nossa, nós somos os “sem comida”. No prédio que abriga a Secretaria de Segurança Alimentar deveria ter uma placa que o dedicasse a uma pessoa chamada Carolina Maria de Jesus. Essa mulher negra foi, sem dúvida, a melhor teórica e prática de uma luta interminável contra a fome, pela dignidade, pela vida – sua vida e de seus filhos. “Quarto de Despejo” é um livro que todos deveriam ler hoje. É o retrato do Brasil da atualidade, e é incrível que ela tenha escrito

este livro no final dos anos 50 do século passado e ele permaneça tão atual! Falar sobre o que é possível comprar com o pouco dinheiro que se tem nas mãos... Catar um papel aqui e ali... Trocar um ovo por uma colher de sal, banha... Isso é a realidade das pessoas, está é a nossa realidade, a realidade de nós pretos.

Fale um pouquinho do seu trabalho como pesquisadora. Eu gosto muito de trabalhar com indicadores sociais, não por acaso trabalho com esse conteúdo desde 1986. Brigo incansavelmente para que os indicadores da vida das pessoas negras sejam objetos não, exatamente, da visitação pública. (risos) Mas porque eu acredito que o povo deva saber do que se trata, temos direito às informações sobre a vida dos brasileiros, esses dados precisam ser expostos e refletidos coletivamente. Vejam só, o IBGE publicou as estatísticas do século XX, que eu não comprei de raiva, mas tive a oportunidade de consultar os índices das tabelas pela internet. Nesta publicação é possível, realmente, ter uma idéia de como o Brasil andou e não andou no último século.

Seria preciso dizer que eu também pago ao IBGE por este trabalho. Eu contribuo para o seu orçamento, para a realização do Censo, das PNADs, para o pagamento de seus funcionários. Eu os pagos com os impostos embutidos na compra dos meus cigarros, da minha cerveja, do meu arroz, do meu feijão, da mensalidade escolar da minha filha. Enfim, de cada centavo que retiro da minha carteira. Somos 45% da população! Mesmo na condição de uma maioria empobrecida, o volume de impostos que pagamos é enorme e isso não é uma situação nada trivial. Então, em um estado democrático, eu deveria ter acesso a todos os dados e informações sobre a minha realidade. Esta publicação me ofende. Eu estou ofendida pelo fato deles mencionarem a publicação como sendo “Estatísticas do Século XX” e eu, simplesmente, não esteja lá. Por outro lado, fico muito feliz porque existe um reconhecimento muito grande por parte do movimento negro dos estudos elaborados em torno dos indicadores sociais da população afro-descendente. Estudos como o Índice de Desenvolvimento Humano, Mapa da População Negra no Mercado do Trabalho e, também, aqueles elaborados pelo IPEA. Esse reconhecimento é algo muito positivo, demonstra o quanto estamos atentos aos fatos de nossa realidade. Depois, também demonstra o quanto estávamos certos em nossas demandas, nas exigências que fazíamos, e continuamos a fazer,

para que o IBGE divulgue os indicadores sociais com recorte étnico/racial.

O problema do Brasil é racial? Tem que ter muita habilidade, e muita criatividade para viver no Brasil, porque em sã consciência enlouquece! Não existe apenas um problema social no Brasil, nós temos, sim, um problema racial também. Temos que encarar o fato de o país não ter criado nenhuma proposta sólida e de inclusão para 45% da sua população – para nós, os afrodescendentes. Em círculos de amigos, eu tenho dito que não tenho nenhuma responsabilidade pelo fato do Brasil ter dado errado, eu não tenho nada a ver com isso. Como escravos, nós chegamos aqui trabalhando. Findo o trabalho escravo, a elite política deste país decidiu que nós não iríamos mais trabalhar e que os novos e antigos postos de trabalho iriam ser ocupados por outras pessoas, pessoas com características sociais e culturais distintas daquelas que por quase quatro séculos produziram riqueza, produziram a sobrevivência desta elite política. Então, conseguiram, em apenas um século colocar este país na ruína. A saída? A saída é fazer 45% da população ter o direito ao trabalho e, em uma ordem democrática, ter dignidade. Dando, de fato, peso à cidadania desse expressivo percentual populacional, tudo muda. Quando reivindicamos cidadania, levando em consideração o nosso passado de escravidão, exclusão politicamente elaborada, as organizações do movimento negro estão dando a eles a chance de mudar com clareza de propósito. Se continuarmos com este modelinho superficial e totalmente inconseqüente, nós todos podemos nos preparar para a era das construções de prédio de aço blindado e, ainda assim, corremos o risco de não dar resultado. A coisa é simples, a gente EPARREI 49


precisa de emprego. Olhando daqui à noite, as favelas do Rio são bonitas, parecem árvores de natal, mas lá o bicho tá comendo... Então, temos todos esses projetos de combate à fome, discurso sobre a necessidade de não dar apenas o peixe, mas ensinar a pescar... Considerando a magnitude do problema, mal cuidado, mal tratado, mal analisado, para também usar uma imagem, é importante dizer que queremos o barco, a rede e o melhor pedaço da praia. É isso o que eu quero, é isso o que nós precisamos! Desse jeito dá certo. Discursivamente, esse ambiente, essa forma de tratamento das questões sociais, envolvendo a população negra, e também indígena, é um escândalo. Somos tirados de um continente riquíssimo, com cultura milenar, produzem a devastação que testemunhamos hoje e a proposta é esta: nos ensinar a pescar. Objetivamente e discursivamente, isto não pode ser levado a sério, é uma brincadeira...

Como analisa a implementação da lei 10.639? Nós temos, sem dúvida, muito trabalho pela frente. Esta é uma legislação importante para a mudança de mentalidade. A história do negro e da África precisar ser ensinada nas universidades, nas escolas de ensino médio, fundamental... Elaboração e distribuição de material didático é essencial. Se perguntarem para alguns professores quantos países existem na África, com múltipla escolha, eles vão errar! O que eu conheço de África hoje eu não credito à Pontifícia Universidade Católica onde estudei História.

E os estereótipos que são associados à raça negra? A impressão que se tem é que as pirâmides foram construídas por pedidos a Deus, obra de marcianos na Terra. Ignoram que elas são resultado de profundo conhecimento matemático. A

história da humanidade conta com uma Alexandria, e sua biblioteca espetacular. Esse conhecimento esteve instalado em solo africano, e não adianta dizer que os egípcios não eram africanos. Sábios de vários reinos africanos iam até Alexandria estudar, se formar e pensar. São tantas as histórias, boas histórias, bons exemplos de organização social e produção de conhecimento no continente africano. No entanto, as pessoas continuam a acreditar que Cleópatra tinha as características físicas da atriz Elizabeth Taylor. Isto é o máximo. Enfim, o estudo sobre a história da África pode vir a, de fato, mudar a concepção que se tem sobre os negros na diáspora e isto do ponto de vista conceitual e político é algo extremamente importante. São tantas as imprecisões, distorções... Não existe nada mais escandaloso do que o senso comum sobre a benevolência senhorial dando aos escravos as suas cartas de alforria. Esta percepção diminui todo os esforços, por exemplo, de nossas irmandades religiosas. Construímos nossas irmandades para comprar nossas alforrias, para nos enterrarmos com decência, para construímos nossas igrejas, organizamos nossas festas... A Caixa Econômica Federal é, literalmente, nossa. Ela foi criada, entre outros propósitos, para guardar a nossa poupança, a poupança para a compra de nossa alforria. No Museu da Caixa Econômica de Porto Alegre temos a exposição daquelas caixinhas de lata, elas eram distribuídas entre os escravos de ganho, para que esses guardassem os seus ganhos. Até isso nós conseguimos fazer, instituímos o princípio de poupança no Brasil, isso é ação nossa. Na cidade do Rio de Janeiro, no século XIX, circulava mais dinheiro do que em Londres no mesmo período. É o que eu digo, enquanto nós estávamos na labuta a coisa funcionava, a vagabundagem não foi instituída por nós. No entanto, a percepção que se tem é exatamente outra e oposta – nós somos os vagabundos, é uma total inversão dos valores.

É possível articular alianças com o movimento feminista? Eu acredito que seja preciso dizer bem claro, e em bom som, que os nossos interesses, como mulheres negras, são distintos dos interesses das mulheres brancas! E isso ficou muito claro agora no debate sobre política de ações afirmativas na universidade. O movimento de mulheres não tem assumido para si a responsabilidade de lutar pelo direito às ações afirmativas para afro-descendentes. Acham que não têm nada a ver com isso. Porque acham que é para os negros... Não compreendem, por exemplo, que para mulheres negras é essencial... Não existe, na minha opinião, do ponto de vista político, um claro e objetivo envolvimento e engajamento. Quando elaboramos o índice de desenvolvimento humano, aplicado às mulheres brancas e negras, trabalho realizado no âmbito da FASE – Marcelo Paixão, eu e uma equipe ampla de colaboradores – foi possível demonstrar que as mulheres brancas têm maior expectativa de vida, renda e escolaridade. As mulheres negras têm uma expectativa de vida substancialmente menor. Então, qual o significado disto para o movimento de mulheres e feminista no Brasil? Teremos mesmo uma agenda em comum? Esse dado fala das condições onde nascemos, vivemos e morremos. Então, que história é essa de dizer que eu tenho a mesma agenda, se as mulheres brancas, por exemplo, têm uma expectativa de vida tão substantivamente maior do que eu? Esta é uma reflexão básica! Não raro, encontramos feministas dizendo que as mulheres são a maioria de universitárias no país, mas que mulheres são

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essas? As mulheres que estão na universidade são, em sua ampla maioria, mulheres brancas. Então, a luta pela inserção de afrodescendentes nas universidades é uma luta que toca as mulheres negras essencialmente. Chegou, objetivamente, a hora das mulheres negras ingressarem Agora vai chegar nossa vez! E é isso que me deixa indignada pelo fato do movimento de mulheres e feminista não lutar a favor de cotas para afro-descendentes. Eu gostaria que o movimento feminista discutisse uma coisa chamada RACISMO. Gostaria que esse movimento discutisse isto de fato e não de brincadeirinha. Não estamos tratando de algo do tipo “gênero barra raça” (gênero/ raça). Não estamos tratando da realização de um seminário contemplando, inclusive, a dimensão racial, entendeu? No Brasil, racismo é uma problemática estrutural da desigualdade. O movimento de mulheres e feminista precisa compreender algo básico: nunca uma mulher – branca ou negra – será respeitada em uma sociedade racista! Vai ser estuprada, vai apanhar na cara, vai ser humilhada e desvalorizada... Isso porque na base da sociedade está dito que um ser humano pode explorar, vilipendiar, humilhar, degradar, desumanizar o outro. Então, o buraco li-te-ral-men-te é muito mais embaixo, o buraco é, realmente, preto (Risos).

O que precisa ser feito? Sei que as negociações são importantes e lutar contra o racismo é um aprendizado, as pessoas aprendem etc. e tal. Tudo bem, eu posso passar minha vida ensinando. Agora, é justo querer saber qual é o resultado deste aprendizado, o quê que o outro está aprendendo. Porque se o outro se comporta assim, como quem ainda não aprendeu, eu posso concluir que eu estou ensinado de maneira errada! E


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é isso que eu estou achando que está acontecendo. Estamos ensinando de maneira errada porque o povo não sai de sua grande mesmice. Seminário não dá conta do resultado(risos), entendeu? Aliás, é importante dizer que o combate ao racismo não se esgota no âmbito de um debate apenas, é preciso ter atitudes. Mudanças de paradigmas, reciclagem do conhecimento, re-interpretação da informação acerca deste grupo social – os afro-descendentes – requer atitudes e não apenas palavras de boa intenção. Eu não tô querendo uma cesta básica, uma bolsa-escola. Toda campanha de fome tem lá uma mulher preta com um monte de filhos, eu não quero esta imagem! Quais são as conseqüências para a imagem da mulher brasileira de o tempo todo você ficar vendo essa mulher preta desse jeito?

A seu ver, que temas requerem mais atenção do movimento de mulheres negras? As mulheres negras já foram mais radicais em suas abordagens. Não precisamos ter dúvidas sobre o quanto é necessário discutir a fundo problemas relativos às mulheres negras no Brasil. No final dos anos 80, nós não abríamos mão da discussão sobre a imagem estereotipada, sobre a mulata, exploração da sexualidade e da ausência de afetividade. Discutíamos, a fundo, a percepção corrente sobre a reprodução da população negra, o constante extermínio. Esse assunto, particularmente, continua em pauta, mas, na minha opinião, as

discussões não têm mais o vigor das denúncias. Antigamente a esterilização era um tema central para organizar as mulheres negras em torno de suas questões especificas. A solução não é nascer menos pobre, o problema deste país é distribuição de renda. E, na minha opinião, nós já tivemos mais clareza em torno deste debate. O terceiro ponto é o assunto do emprego doméstico. O que sobrou para a mulher negra? Confinamento no emprego doméstico com um salário ridículo e proteção social ainda de baixíssimo reconhecimento, baixíssimo grau de efetividade.

Qual a importância do I Encontro Nacional de Mulheres Negras realizado em 1988? Bem, isso foi de fato uma experiência primorosa. Foi uma ousadia nossa, eu acredito, das mulheres do Estado do Rio de Janeiro, das mulheres em nível nacional, que assumiram essa responsabilidade. Teve coisas maravilhosas e também teve algumas tristezas. Existia naquele momento, muita incompreensão, por parte de um grupo até bastante significativo de mulheres negras quanto à oportunidade e a necessidade de criarmos, apoiarmos e incentivarmos a organização autônoma das mulheres negras. Não havia dúvida quanto à legitimidade das organizações de mulheres e, também, o fato do movimento feminista ser um pensamento, um estilo de vida, uma organização política importante, mas havia alguma coisa que não dava conta da expressão política que

as mulheres negras tinham e defendiam. Os processos de conscientização política das mulheres negras, sua presença cada vez mais expressiva nos Encontros Nacionais Feministas forçaram a concretização de uma organização autônoma. Na minha opinião, é muito significativo que tenhamos decidido realizar o I Encontro Nacional de Mulheres Negras durante a realização do Encontro Nacional Feminista de Garanhuns, em 1987. Expressa bastante bem o calor do debate à época.

Como foi a experiência de ser uma das organizadoras do Encontro Nacional? Nós tivemos apenas um ano e três meses para nos dedicar à organização do I Encontro. As dúvidas sobre se seríamos capazes de organizar um encontro nacional passaram a ser um desafio extra. Aliás, é bom que se diga que este foi o primeiro encontro nacional negro, porque o movimento negro tinha, sim, encontros regionais, mas ainda não havia realizado um encontro nacional. Nós contamos com cerca de 440 mulheres de 19 estados. Antes do Encontro Nacional, as mulheres negras se dedicaram à organização de encontros estaduais, criaram as suas articulações, deslocaram-se como puderam. Na minha opinião, havia um sincero e objetivo desejo de se fazer sujeito político. Eu acredito que, a partir daí, o povo se tocou que era possível, sim, apostar na organização autônoma. Então, este Encontro tem uma importância muito grande, ter trabalhado na organização do

Primeiro Encontro Nacional foi uma experiência política importante e histórica.

O que pensa sobre as lideranças negras que a antecederam? Tenho saudades de Lélia Gonzalez, de Beatriz Nascimento, porque foram mulheres que nos ensinaram a ser radicais, a fazer escolhas radicais e ter um linguajar radical. O “Pretoguês”, de Lélia é uma sacada simplesmente genial. Elas não tinham medo de escancarar a boca, ousar e ir além do permitido. Hoje nós estamos em uma onda de etiqueta muito limitada e que não está levando a lugar nenhum. Temos que ter respeito por tantas de nós famosas e anônimas que morreram. Nós temos lideranças mortas! Nós temos heroínas, não é qualquer um que tem heroína não, então eu tenho que ter todo respeito por quem antes de mim tentou fazer muito.

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A Consciência Negra do poeta

Oliveira Silveira Por Isabel Clavelin

Fotos: Luana Castro

Amante da literatura, escritor, poeta, professor, militante e pesquisador do 20 de Novembro. Oliveira Silveira transita com maestria nessas atividades e radicaliza em defesa dos direitos da população negra.

S

eu nome é, inevitavelmente, citado em reuniões ou referências ao movimento negro. Tanto iniciantes quanto militantes de longa data percebem em Oliveira Silveira uma fonte de conhecimento e sabedoria. Alto, magro, tímido, cabelos grisalhos, gestos lentos, olhar sereno, fala mansa e cautelosa em todas as colocações. Nascido em Rosário do Sul, precisamente na Terra do Caverá, o poeta Oliveira Ferreira da Silveira descobriu na fase infanto-juvenil o gosto pela literatura. Segundo o escritor, a veia artística foi herdada pela mãe e tios dedicados à música. O talento foi revelado em forma de poesia regional, que foi disseminada pelo jovem poeta, nos anos 50, no jornal e emissora de rádio da cidade natal. “As histórias que ouvi ao redor do fogareiro mexiam

com a minha imaginação. As quadrinhas populares e os bailes da campanha instigavam meus versos. Essa foi a base literária que influenciou meus poemas”, explica.

Poesia e Militância Aos 18 anos, juntamente com um grupo de amigos, deixava os pais, cinco irmãos e as lembranças da comunidade negra do Rincão dos Ferreira, em Rosário do Sul, para tentar a vida em Porto Alegre. Na capital gaúcha, ingressou no Colégio Júlio de Castilhos para cursar o ginásio. “Ali tive a oportunidade de intercâmbio com muitos poetas”, recorda. O envolvimento com o grêmio estudantil desencadeou a militância e aproximação com edição de jornais. Mas, foi tentando “encontrar a sua turma”

que Oliveira Silveira iniciou reflexões sobre a questão negra durante a vida acadêmica. O jovem poeta nutria-se com leituras como Jean-Paul Sartre, Amé Césaire, Léopold Sédar Senghor e Léon Damas. “A militância mesmo veio depois de graduado no final da década de 60”, explica Oliveira, que tem formação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Gênese do dia 20 de novembro A partir de encontros na Rua da Praia, Centro de Porto Alegre, Oliveira Silveira e amigos/as constituíram o Grupo Palmares para contestação do 13 de Maio. Entre os/as integrantes, o poeta reverencia a presença das mulheres negras Anita Leocádia

Prestes Abad, Helena Vitória dos Santos Machado e Marisa Souza da Silva pelo papel importante de orientação, visão estratégica e seriedade, características que consolidaram a base do grupo. As discussões coletivas apontaram para a necessidade de adoção de datas referenciais para o povo negro. “O 20 de Novembro nasceu de forma coletiva. A partir das colocações do grupo, as coisas evoluíram e eu executei a minha parte que era ler e estudar a data. Conseguimos encontrar a verdade histórica e revelá-la para que as pessoas tivessem outra orientação”, explica. O ponto de partida do estudo foi a publicação Grandes Histórias, série de fascículos da editora Abril, que indicava o 20 de Novembro como dia do assassinato de Zumbi dos Palmares. Com a confirmação do dado histórico,

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o Grupo Palmares, em 1971, passou a celebrar anualmente a data em Porto Alegre, a qual foi lançada nacionalmente como Dia da Consciência Negra, em 1978, pelo Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial. Oliveira Silveira reflete sobre a repercussão do 20 de Novembro, 33 anos após o seu surgimento: “A movimentação intensa em novembro e, às vezes, em dezembro é animadora. A gente sente que a luta de nossos ancestrais ganha força como na década de 30 com a Frente Negra. Esperamos um avanço maior e mais conquistas para a comunidade negra”, vislumbra.

Analizando o Movimento Negro

Numa análise conjuntural do movimento negro, o poeta considera como grande desafio a organização. “No momento em que tivermos mais organização, como é perceptível em determinados setores, haverá razões para otimismo. Temos um grande volume de serviços prestados na área da literatura, artes e educação. No Congresso de Pesquisadores Negros, realizado em São Carlos, percebi muita gente pesquisando e trabalhando na área universitária”, observa. Oliveira lembra que em 1974 o Grupo Palmares já reivindicava a reformulação dos livros didáticos, bandeira sempre defendida pelo movimento negro. “Acredito que a adoção do 20 de Novembro nos

impulsionou à revisão histórica e os livros didáticos passaram a ser modificados. Isso resultou na lei 10.639, conquistada com o esforço do movimento negro”, acrescenta. Quanto às tentativas de tornar o 20 de Novembro feriado, o pesquisador da data considera: “Não é fundamental que seja considerado feriado, mas tem mérito. Na verdade, existem muitas datas no calendário oficial que não são contestadas. O importante é que a nossa organização cresça a ponto de termos força e unidade”, avalia. O poeta verifica nas políticas de ação afirmativa e reparações a concretização de demandas históricas como a legitimização de terras para remanescentes de quilombos, as cotas nas universidades e no mercado de trabalho, antes restritas à esfera simbólica. “O 20 de Novembro é um momento de mobilização, salvo oportunismos e aproveitamento político. Temos que tirar o maior proveito possível nos momentos em que somos o centro das atenções”, alerta. Dos anos de militância negra, Oliveira Silveira considera previsível a distância do movimento negro com os anseios populares, em vista dos séculos de dominação e dificuldades de avanço rápido após a libertação. “Temos que ter continuidade na luta para conseguirmos superar as divisões internas e nos aproximarmos da massa negra”, analisa. Em março deste ano, Silveira foi empossado no Conselho Nacional

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de Promoção da Igualdade Racial da SEPPIR. Numa avaliação do movimento contemporâneo, o poeta verifica que nos anos 70 houve uma virada histórica também favorecida pelo 20 de Novembro, seguida da fase de denúncias, formação de grupos e protestos, em meados da década de 80, até o momento atual que se refere à busca de concretizações, essa deflagrada após a Constituição de 1988. Conforme Oliveira Silveira, houve divisões no movimento, as quais classifica em correntes confessional cristã, partidária e movimento negro propriamente dito. Ponderando essas facetas, o escritor reconhece a importância de todas, sobretudo do engajamento políticopartidiário pelo fato do movimento negro ser uma ação política. ”Nós negros não somos todos iguais até mesmo porque houve uma divisão fomentada pelos dominadores, como fruto do racismo”, pondera.

Cultura de Resistência Engajado na preservação de entidades negras centenárias como a Associação Satélite Prontidão e a Sociedade Floresta Aurora (faz parte da equipe que edita o boletim eletrônico Negraldeia), Oliveira Silveira destaca a importância de apoio a esses redutos culturais. “Nós do movimento negro estamos sempre sendo destituídos dos espaços e no momento em que sociedades como essas existem, faz-se necessário uma política emergencial de conservação. Há um grande potencial nessas


sociedades que pode ser positivo para o movimento negro”, comenta. No universo artístico-cultural, Oliveira Silveira analisa a qualidade de obras e personalidades como Cuti, Paulo Colina, Geni Guimarães, José Carlos Rivera, Jônatas Conceição, Esmeralda Ribeiro, Oswaldo de Camargo, Edson Cardoso, entre outros. Cita como exitosa a experiência do Quilombhoje, de São Paulo, pela edição dos Cadernos Negros. Em relação à sua literatura, mostra-se um tanto displicente “por não dar a atenção devida à divulgação”. A obra desse escritor rosariense passa pela poesia

regional e universalista até chegar à fase militante. Os versos e textos são trabalhados com rigor e conhecimento técnico. Os livros, acolhidos e aproveitados pelo movimento negro, têm edições limitadas e financiadas pelo próprio autor. “Desde o início, acreditei que as coisas tinham que ocorrer devagar. Com o tempo, me contentei em editar meus próprios livros e nutri a esperança de um caminho próprio do nosso segmento negro em relação às edições”, confessa. Em março deste ano, Silveira foi empossado no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial da SEPPIR.

Bibliografia de Oliveira Silveira Poesia

Germinou, Porto Alegre, Ed. do Autor, 1962. Poemas Regionais, Porto Alegre, Ed. do Autor, 1968. Banzo, saudade negra, Porto Alegre, Ed. do Autor, 1970. Décima do Negro Peão, Porto Alegre, Ed. do Autor, 1974. Praça da Palavra, Porto Alegre, Ed. do Autor, 1976. Pêlo Escuro, Porto Alegre, Ed. do Autor, 1977. Roteiro dos Tantãs, Porto Alegre, Ed. do Autor, 1981. Poema sobre Palmares, Porto Alegre, Ed. do Autor, 1987. Anotações à Margem, Porto Alegre, SMC/Coord. do Livro e Literatura/ UEPA, (série Petit Poa), 1994. Orixás (em parceria com Pedro Homero), Porto Alegre, SMC/Coord. do Livro e Literatura/UEPA, 1995.

Participação em antologias e coletâneas (entre outras) Cadernos Negros 3 – poesia, São Paulo, Ed. do Autor, 1980. Axé – antologia contemporânea da poesia negra brasileira (organização de Paulo Colina), São Paulo, Global Editora, 1982. Cadernos Literários 19 – Poetas Negros no Brasil, Porto Alegre, Instituto Cultural Português – Edições Caravelas, 1983. A Razão da Chama – Antologia de Poetas Negros Brasileiros (coordenação e seleção de Oswaldo de Camargo), São Paulo, GRD, 1986. O Negro Escrito – Apontamentos sobre a Presença do Negro na Literatura Brasileira: Antologia Temática – São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura/Assessoria de Cultura Afro-Brasileira, 1987. Cadernos Negros 11 – Poemas, São Paulo, Ed. dos Autores, 1986. Schwarze Poesia/Poesia Negra (organização de Moema Parente Augel; tradução de Johannes Augel0 St. Gallen/Köln, Edition Diá, 1988. Poesia Negra Brasileira: Antologia (organização de Zilá Bernd), Porto Alegre, AGE/IEL/IGEL, 1992.

Ficção – conto

Zumbi in der Favela (Zumbi no Morro), in Schwarze Prosa/Prosa Negra (organização de Moema Parente Augel; tradução de Johannes Augel), St. Gallen/Berlin/ São Paulo, 1993.

Outros

Rosário Centenário – História, Atualidades, Perspectivas (coordenação de Oliveira Silveira), Rosário do Sul, Prefeitura Municipal, 1976. Mini-história do Negro Brasileiro (redação de Oliveira Silveira), Porto Alegre, Grupo Palmares, 1976. História do Negro Brasileiro – Uma Síntese (co-autoria: Anita Leocádia Prestes Abad et alli), Porto Alegre, SMEC, 1986. A Produção Literária Negra (19751985) – Ensaio, in Criação Crioula nu Elefante Branco (organização da Comissão Nacional do 1º Encontro de Poetas Ficcionistas Negros Brasileiros), São Paulo, Governo do Estado, 1987. Nós, Os Negros (ensaio), in Nós, Os Gaúchos (coordenação de Sergius Gonzaga e Luis Augusto Fischer), Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1992. (2ª ed. 1993). Nós, Os Afro-Gaúchos (participação com poemas: coord. de Euzébio Assumpção e Mário Maestri), Porto Alegre, Ed. da Universidade/ UFRGS, 1996. EPARREI 55


Coisa de Mulher No Palácio das Ongs (RJ), a organização de mulheres negras Coisa de Mulher, tem a opção sexual como questão de luta, em todas as formas e plataformas rasgadas na história do feminino. Eparrei conversa com a feminista Neusa das Dores Pereira (Neusinha), diretora Executiva do grupo desde 1994

A

*Kelly Albuquerque

determinação de atingir uma parcela de mulheres negras que sofrem outras discriminações além da cor, foi a motivação que Neusinha encontrou para fundar a Ong Coisa de Mulher. “Porque a gente entende que trabalhar a negritude, ela por si só, já está um pouco esgotada, já tem muitas Ongs fazendo isso. São mulheres negras presidiárias, ex-presidiárias, em situação de risco, lésbicas, pobres, analfabetas, que moram nas favelas, profissionais do sexo, ou lésbicas profissionais do sexo. Então você vê que a gente vai lá nos diferentes mundinhos de mulheres negras....”

evento. Para a ativista, o principal resultado do I Encontro realizado em 1988, foi a formação de uma Comissão Nacional de Mulheres Negras, composta por duas mulheres de cada Estado.

Atuação e mudanças a partir de Valença

Em 1991, no Encontro Nacional de Entidades Negras, a temática é discutida com o conjunto do movimento e a partir daí surgiram CPIs em diversos Estados e Municípios para averiguar a situação da laqueadura nas mulheres.

Militante histórica, Neusa é conselheira do Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro, “fellow” da Ashoka, instituição internacional que apóia empreendores/as sociais, e também preside o Fundo Ângela Borba, que oferece pequenas doações para grupos de mulheres desenvolverem seus projetos. Ela integrou a Comissão Organizadora do I Encontro de Mulheres Negras em Valença e, a pedido de Eparrei, fala sobre o 56 EPARREI

No Fórum do Rio de Janeiro foram eleitas Neusinha e a Maria Lucia Carvalho (Malu). A Comissão passou a atuar dentro de temas como educação multirracial, extermínio e esterilização e deu visibilidade a duas campanhas “Não Matem nossas crianças” e contra a esterilização em massa, temas que ela já discutia quando integrava a Comissão de Mulheres do CEAP

Relembra o companheirismo das amigas e se emociona ao falar de Sandra, que hoje vive na Alemanha, e da falta de Malu e Elizabeth Calvet, já falecidas. Esta última foi uma das fundadoras da ONG Coisa de Mulher.

Movimento além dos movimentos A dirigente coloca-se como integrante do chamado extramovimento. Considera que o movimento negro e o de mulheres negras são extremamente homofóbicos por não discutirem a questão da homossexualidade, e por este último ter abandonado a discussão da sexualidade. Neusinha ressalta que na pirâmide social a mulher negra é o extrato mais baixo da sociedade e as mulheres com as quais trabalha estão bem abaixo desse patamar. A pedido do Ministério da Saúde, em 2002, a entidade desenvolveu uma pesquisa sobre lésbicas e prostituição. O grupo constatou que mulheres negras lésbicas que estão na prostituição recebem o salário mais baixo do que qualquer outra mulher que exerce a mesma função. Ela reporta-se a esse trabalho: “Ser prostituta já é ser estigmatizada, ser prostituta negra já é ser estigmatizada e ser prostituta lésbica é complicador ainda maior. Então a gente tem procurado trabalhar bem com elas, mais para conhecer o grupo e conhecer as necessidades reais desse grupo, entendeu?

Temos uma psicóloga que está começando a acompanhar um pequeno grupo que se dispôs a estar junto neste trabalho, em que ela vai até às necessidades reais delas e é um grupo que a gente está buscando com muito carinho”.

Mulheres de presídios O programa dirigido para mulheres dos presídios de Bangu 5, 6 e 7 abrange também os familiares e as profissionais que trabalham nesses presídios, diretoras, médicas, e policiais femininas. Além do curso de manutenção hidráulica, eletricidade, são realizados consertos de aparelhos domésticos assim como encontros anuais com as agentes penitenciárias. Apoio, capacitação e prevenção através de palestras, seminários e debates têm contribuído na prevenção. Na porta dos presídios agentes de saúde distribuem preservativos, orientam e encaminham os familiares dentro da necessidade dessa população.

Jovens em risco “Nós temos um trabalho com jovens em situações de risco,


meninas cujas famílias estão envolvidas com narcotráfico, meninas cujas famílias estão envolvidas também com o uso de drogas, dentro de uma comunidade muito pobre em Bangu. Atualmente trabalhamos com trinta jovens, elas cantam, dançam, fazem teatro, estudam Inglês, informática, além de reforço escolar. Iniciado há quatro anos já estamos na segunda turma”, reporta. Sua fisionomia se alegra quando comenta como foi importante organizar o 10 Encontro Estadual de Jovens Negras, encontro esse que já rendeu frutos. Cerca de 130 meninas compõem hoje o Fórum Estadual de Jovens Negras. O grupo se reúne bimestralmente para elaborar e debater propostas.

Camisinhas femininas Trabalhando o eixo AIDS – Feminilização e Pobreza, a Ong Coisa de Mulher faz um trabalho diferenciado de conscientização, com técnicas especializadas que orientam a mulher a negociar o uso do preservativo com seu companheiro, não só visando o HIV, mas todas as DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), muitas vezes tão graves quanto a AIDS. É o caso do Papiloma Vírus Humano, uma DST responsável por mais de 97% dos casos de câncer de colo do útero, hepatite entre outras. Como sexualidade é um assunto muito pessoal, não existe fórmula e cada situação é particularmente orientada. A diretora da Ong Coisa de Mulher observa com preocupação o número crescente de mulheres com Aids: “tem muitas mulheres casadas contaminadas pelo HIV, dentro daquela crença que o

casamento é a proteção para o vírus HIV e que não utiliza preservativo, não faz sequer exame. A maioria dessas mulheres tem dificuldade em tratar e negociar o uso do preservativo na sua relação familiar. E isso tava claro, a gente já apontava isso no final dos anos 80, de que a AIDS ia pegar as mulheres negras e acabei de vir agora de um congresso em Punta Del Leste, infelizmente não é só uma prerrogativa nossa, é no mundo, as mulheres mais pobres e entre as mais pobres as mulheres negras são as que estão sendo infectadas pelo vírus HIV. Justamente por essa dificuldade histórica de conscientização dos companheiros homens a cerca da sexualidade e de outras implicações”. O uso da camisinha feminina tem conseguido bons resultados. Neusa esclarece que, mesmo sabendo que a prevenção é responsabilidade de ambos, as mulheres a vêem como uma forma de independência, já que não precisam convencer ninguém a usá-la. Mas alerta: “Agora, tenho medo de que se coloque mais uma vez sobre a mulher a responsabilidade de tudo, é só ela também que vai ter que usar o preservativo”.

Profissão: encanadora, eletricista... Voltados também para mulheres de comunidades carentes do Rio, os cursos de instalação elétrica, manutenção hidráulica e chaveiro foram pioneiros em 97, já que este trabalho até então era executado

só por homens e muitas vezes as mulheres não tinham condições de pagar pelos serviços de um profissional. “Nosso objetivo vai além da capacitação é fazer com que a mulher saia da dependência”, explica. “Queremos mostrar que se trata de um trabalho fácil, leve, que não necessita de escolaridade nenhuma, inclusive trabalhamos com muitas mulheres analfabetas e na verdade nesse curso também está sendo muito interessante porque permite que a mulher moradora de favela tenha uma profissão”. O curso tem sido um sucesso, segundo Neusinha. “Existem casos de mulheres que montaram dentro de suas próprias casas, pequenas lojas de consertos onde então consertam ferro elétrico, secador de cabelos, arrumam as tomadas. De forma prática aprendem a calcular área, perímetro, potência. Também temos o curso de hidráulica, o de chaveiro. No presídio não tem o de chaveiro por motivos óbvios (risos). Damos ainda os cursos de Cidadania, Alfabetização, Português e Matemática o que tem possibilitado o retorno dessas mulheres aos estudos. Descobrem que também são capazes e isso é muito legal. Perpétua Aparecida, que hoje ocupa o cargo de secretária da instituição, é uma das mulheres que, a partir desse curso, sentiu necessidade de terminar o segundo grau e está cursando hoje a universidade”.

Texto elaborado no Laboratório de Redação do CCMNegra EPARREI 57


Cia. Étnica de Luz A trajetória de Carmem Luz, 45 anos, é mais uma importante peça que compõe o mosaico da história de vida, de mulheres, negras, militantes e brasileiras. Oriunda de uma família de negros, pobres, de Oswaldo Cruz, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, que foram conquistando melhores espaços através da educação formal e da disciplina, o apelido de Luz, recebeu ainda pequena, dado por seu pai e, mais tarde, ao ingressar na Faculdade de Letras da UFRJ, ganhou uma composição do poeta e músico Mario Makaiba, ficando batizada definitivamente. Formada em Teatro e Literatura (Graduação e Pós-Graduação pela UFRJ), a dança aconteceu praticamente de forma autodidata. Somente depois de adulta freqüentou aulas da coreógrafa Angel Viana, com quem aprendeu a valorizar toda a sua expressividade.

Fernanda Felisberto*

Coreógrafa carioca, Carmem Luz, diretora da Cia Étnica de dança, é uma artista de várias linguagens associadas à militância e educação.

A Companhia Étnica de Dança e Teatro A Cia. Étnica de Dança e Teatro nasceu há dez anos, fruto da herança deixada pelo Teatro Experimental do Negro(TEN), idealizado por Abdias do Nascimento. Para Carmem e sua então sócia, Zenaide Djadillê, uma companhia de dança e teatro com um corpo de profissionais e uma ideologia baseada nas questões raciais, deveria ser pensada para que novos sonhos pudessem ser estruturados e novas(os) atrizes e atores começassem a surgir além de convencer os céticos. A tarefa de profissionalizar e dar técnicas às mulheres, principalmente negras em um país onde a dança, especificamente o samba é concebido como condição inerente a ser negra(o). Carmem coloca mais um tijolo no edifício de nossa libertação e colocar interrogações sobre as visões estereotipadas sobre o “ser negro”. Em suas aulas e ensaios, sempre traz o conceito com ciência: É preciso que façamos nossas coisas com prazer, com amor e com muitas ciências. Só assim daremos a volta no mundo, como nossos antepassados fizeram. O trabalho é praticamente

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arqueológico, pois incansavelmente traz à tona vários talentos invisíveis que há na comunidade do Andaraí. O projeto pedagógico da Cia. Étnica de Dança e Teatro chama-se Projeto Encantar - Capacitação em Artes Cênicas. O objetivo é promover o desenvolvimento pessoal e social através da arte e, principalmente, a profissionalização em artes cênicas e a geração de renda. Do projeto participam crianças, adultos e jovens moradores de favelas do Complexo do Andaraí e de outras zonas de pobreza. Sobre a temática da companhia, Carmem assume que desde adolescente, quando começou a dar concretude aos seus sonhos de arte, faz parte da tribo dos engajados. Lendas, sonhos, estórias de amor e poesia, humor, fazem parte da trajetória temática da Cia. Étnica. A trilogia Cobertores foi o espetáculo de mais longo alcance e reconhecimento. Desde a sua estréia já ocorreram 157 apresentações, para cem mil pessoas aproximadamente. Para seus jovens intérpretes - e para Carmem - foi uma oportunidade imperdível para a quebra de muitos paradigmas. É importante para a companhia quando o público relaciona o que se propõe cenicamente com a realidade social que vive, pois nesse projeto de companhia e pedagogia as relações sociais são a fonte que mais se deve pesquisar, segundo Luz “não é da temática que devemos nos livrar, mas sim do teatro e da dança que não nos afeta a sensibilidade”. Uma outra atividade de peso e responsabilidade de Carmem é a

atual direção do Centro Cultural José Bonifácio(CCBJ). Um local com uma arquitetura de tirar o fôlego de qualquer pessoa, um Centro Municipal de difusão da cultura negra, no coração do Rio de Janeiro. Um lugar onde a Arte e a Educação se encontram e se questionam, tudo sob o guardachuva da cultura. Apesar da localização, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, o CCJB, conseguiu entrar no circuito carioca de cultura, proporcionando um encontro dos cariocas e dos turistas que por lá passam com sua cidade, fora do espaço da “orla bonita”. Como uma artista de seu tempo, Carmem conclui “...ganho meu dinheiro, pago as minhas contas, dou força pro meu filho, pra minha mãe e invisto em meus próprios projetos. Sou filha das águas e do ferro. Rezo e pratico exercícios físicos todos os dias. Moro em Botafogo, gosto demais da Mangueira. Minha tarefa é imaginar e erguer minhas imagens. Sou romântica e niilista. Durmo sofrendo e acordo acreditando...”. Depois de anos de lutas, comemorou a vitória da inclusão no currículo escolar, de História

da África e Cultura Afro-brasileira, mas reconhece que se não tiver uma capacitação de professores envolvidos com o processo da escola, a lei não fará parte das práticas cotidianas. E sobre o tratamento dado atualmente à população negra brasileira e, em especial, às mulheres, não acredita que dar visibilidade a sucessos individuais ou globais ou expor por estereótipos o “caso” dos negros seja um índice real de melhoria do Brasil em suas relações perversas. O racismo e o sexismo continuam mandando no Brasil, mas percebe que negros e negras de todas as cores, mais sensibilizados(as) consigo próprios(as) e com seus pares, não estão se deixando abater. “Isso é um ponto pra nós que queremos viver de cabeça erguida e sobre nossos pés. Acho que em muitos casos começamos a andar de mãos dadas e isso é muito bom! Morreremos menos e condenaremos os assassinos”.

*Fernanda Felisberto é coordenadora do Selo Editorial Afirma.


CONFIGURAÇÕES EM PRETO E BRANCO Artigo de Alzira Rufino

O

Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão e foi o penúltimo a interromper o tráfico de seres humanos. Foi também o que mais recebeu escravos da África entre todos nas Américas do Norte, do Sul e Central. Das quase dez milhões de pessoas forçadas a vir para as Américas, 3,6 milhões foram trazidas para o nosso país. Hoje quando falamos da população negra não estamos falando de uma minoria racial, mas de 45,3% da população brasileira (1), cerca de 70 milhões de pessoas. Estamos falando da maior população negra do mundo depois da Nigéria. Como falar de direitos humanos no Brasil sem apontar o holocausto de uma raça, por séculos seqüestrada, torturada, humilhada, dizimada, não em campos de concentração, mas, ontem e hoje, sob cotidianos olhares? Fomos os primeiros sexagenários colocados na rua, as primeiras crianças de rua e, na virada do milênio, ainda temos nossa cor associada à marginalidade, ao banditismo. São do IPEA(2) as estatísticas da desigualdade racial:

Total de pobres no Brasil

Brancos/as

Negros/as

37%

63%

Brancos/as

Negros/as

30%

70%

53 milhões Total com renda abaixo de R$ 120,00 no Brasil 22 milhões Desigualdadfe que começa na infância e permanece ao longo de toda a vida Faixa Etária

Brancos/as pobres

Até 6 anos Entre 7 e 14 anos 15 e 24 anos

38% 33% 24%

Negros/as ficam menos de cinco anos na escola A média da freqüência escolar da população negra hoje é de 4,4 anos. O negro na África do Sul passa 11 anos na escola, o que revela o nosso grande apartheid educacional. As pesquisas mostram que, durante 50 anos, a diferença de escolaridade entre negros e brancos não diminuiu. (3) E não faltam incentivos para que as meninas e meninos negros cedo iniciem sua luta pela

Negros/as pobres 65% 61% 47%

sobrevivência. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil denunciou que existem cerca de 502.000 crianças, a maioria negras, trabalhando como empregadas domésticas, algumas delas tinham 5 anos de idade quando começaram a trabalhar. Cerca de metade (44%) têm idades que variam entre 12 e 15 anos e recebem menos que 100 reais por mês. As meninas sofrem violências que vão desde a exploração trabalhista até abuso sexual e racismo. (4)

Identidade racial A população brasileira não sabe qual a sua cor. A pressão sofrida pela população negra, devido ao processo de desvalorização da raça negra, levou muitos(as) afro-descendentes à alienação e negação da sua identidade racial. Para mudar a auto-estima racial, as organizações negras têm se contraposto à associação pejorativa da cor negra à marginalidade, a tudo que é ruim, inferior e contrapondo-se à própria mídia que exalta os traços europeus como o padrão de beleza para toda a população brasileira. Os frutos desse trabalho já começam a ser contabilizados em porcentagens mais positivas no Censo de 2000.(5) Um número maior de brasileiros(as) se autoidentificam como negros(as).

A Cor e o Sexo da Pobreza Pelas estatísticas oficiais, cerca de 36 milhões e 300 mil mulheres (pouco menos que metade das brasileiras) são afro-descendentes (6) . A olho nu somos muitas mais

e sabemos bem o que significa ter a pele negra no último país do mundo a abolir a escravidão. Sabemos muito bem que as desigualdades e violências para as mulheres negras vão muito além do gênero. A esperança de vida para as mulheres brancas é de 71 anos enquanto que 40,7% das mulheres afrodescendentes (7) morrem antes dos 50 anos. O Índice de Desenvolvimento de Gênero (IDG), que mede as desigualdades entre homens e mulheres nos países, revela o fogo cruzado da discriminação de gênero e raça. No Brasil, segundo a classificação do IDG (8), -os homens brancos estão em 41o. lugar; -as mulheres brancas estão em 69o. lugar; -os homens afro-descendentes em 104o. lugar; -as mulheres afro-descendentes ocupam o 114o. lugar, com o menor índice de qualidade de vida. Existiam em 1990(9) cerca de 30.000 altas executivas, as mulheres eram 62% dos profissionais de Medicina, 42% dos diplomados em Direito, l9% em Engenharia, 40% na Imprensa, ocupando 2.30l cargos de juízas no Judiciário. Dados mais recentes mostram que as mulheres representam 45,2% do contingente de servidores da Administração Pública Federal. A participação feminina supera a masculina nos Governos dos Estados (58,3%) e nos Ministérios de Previdência e Assistência Social

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(58,1%) e na Advocacia Geral da União.(10) Mais de um século após a abolição da escravatura, décadas de avanços no status das mulheres em todo o mundo e, no Brasil, a mulher negra continua associada às funções que ela desempenhava na sociedade colonial e imediatamente após a abolição.

O poder muda de mãos e tem que mudar de cor Uma das maiores violências contra a mulher negra é sua exclusão da representação política(11): Das 318 prefeitas e 2 governadoras, das 6.992 vereadoras com mandatos em 2003, quantas são negras? Das 124 mulheres nas cúpulas dos maiores partidos políticos brasileiros, em 2000, quantas eram mulheres negras? A falta de estatísticas espelha o desinteresse nacional no assunto. Quando os 30% das cotas de candidaturas femininas serão, finalmente, repartidos? É urgente aumentar o número de mulheres negras, no legislativo e executivo, dando voz, hoje, a essa vasta população feminina que é negra.

Violência doméstica e a mulher negra Vivendo num país extremamente racista, que é também um dos campeões da impunidade dos agressores de mulheres, as mulheres negras brasileiras estão sob fogo cruzado de diversos tipos de violência doméstica, sexual e racial, violência e discriminação agravadas pela grave exclusão econômica. Falta, no entanto, no movimento de mulheres negras do Brasil uma discussão em profundidade sobre a violência doméstica e suas conseqüências na vida da mulher negra. Há quinhentos anos que estamos deixando a violência dos companheiros pra depois das lutas

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por terra, por trabalho, por espaço político, por cotas na universidade, por espaço na mídia. Às vezes com hematomas e dores, física e psicologicamente machucadas pelos nossos companheiros. Há quinhentos anos que estamos deixando para depois.

Mulher Negra, com licença que eu vou à luta Nas duas últimas décadas, nós, mulheres negras, não discutimos a violência apenas, agimos, atravessando o muro das lamentações. No Brasil, um número crescente de organizações de mulheres negras tomou a iniciativa de dar voz e visibilidade à demanda por políticas e por poder para o gênero feminino negro. Como parte das atividades que vão celebrar o Beijing+10 (2005) e o Durban+5 (em 2006), temos que pressionar os governos para avanços reais na qualidade de vida e na saúde das mulheres que estão sujeitas a mais discriminação e violência. Pressionar também para que o Comitê para a Eliminação da Discriminação à Mulher, da ONU, solicite aos Estados-Membros da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação à Mulher que incluam informes sobre a situação das mulheres afro-descendentes e indígenas. Atualmente, o Brasil vive um período de crescente intolerância e perseguição contra as religiões de matriz africana, onde as mulheres dominam a hierarquia religiosa. Importa reconhecer o valor das culturas e dos conhecimentos das mulheres afro-descendentes e indígenas, que têm tradição religiosa onde a natureza e seus elementos são considerados sagrados e são a própria divindade.

Quem tem medo das ações afirmativas? As cotas para mulheres não despertaram tanta polêmica quanto as cotas para afrodescendentes. A questão é que o preconceito racial é mais excludente do que o preconceito de gênero. Algumas ações urgentes devem ser implantadas para amenizar a violência do racismo: · Uma campanha nos meios de comunicação contra o racismo e programas específicos de educação anti-racismo; · Estudo em profundidade sobre os danos psíquicos causados pela discriminação racial à população afro-descendente para implementação de medidas que previnam e diminuam o impacto da violência racial sobre a saúde mental e física da população local negra e afro-descendente; Capacitação profissional de jovens negros e negras; Cotas percentuais nas estruturas políticas e econômicas; · Políticas de incentivo tributário às empresas que tenham políticas e planos de ação afirmativas; Nós, organizações negras, na nossa trajetória por mudanças, não queremos mais ficar só na denúncia. Queremos estar em todos os lugares para mudar, não apenas a nossa condição histórica, mas a de todo o povo brasileiro. Mostrar aos dirigentes do Brasil que nenhum político, ou partido político, poderá legislar sem consultar os quase 50% (oficiais) de população negra deste país.

FONTES: (1) Dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 1999; (2) Henriques, Ricardo, “Desigualdade Racial no Brasil: Evolução das Condições de Vida na Década de 90”, TD. 807. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, julho de 2001; (3) Ibidem; (4) Estudo apresentado em Brasília, pelo diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Armando Pereira, em abril/2002; (5) Dados do IBGE, sobre o Censo 2000, divulgados em maio de 2002; (6) Fonte: IBGE/ Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – 1999 (7) Estudo da Fundação Seade sobre óbitos no município de São Paulo, em 1995; (8) Sant’Anna, Wania Desigualdades étnico/raciais e de gênero no Brasil, Proposta no. 88/89, Março a Agosto de 2001, pág 23; (9) Revista Veja, Especial Mulher, agosto/setembro, 1994; (10) Relatório Nacional Brasileiro ao CEDAW / ONU, 2003; (11) Idem

Resumo de artigo publicado no livro “Racismos Contemporâneos”, 2003.

Alzira Rufino Presidente da CCMN, escritora, editora da Revista Eparrei, profissional de saúde, fellow da Ashoka. Coordena um serviço jurídico e psicológico para vítimas de discriminação racial e violência doméstica.


MINEIRIDADE

Conceição Evaristo

in Cadernos Negros-Melhores Poemas, 1998, Org. Quilombhoje

Vou fingir que sou doido, só os doidos serão felizes. Vou fingir que sou doido, só os doidos não têm falta de oxigênio para respirarem. Quando eu me cansar de ser doido e tenha de ceder o lugar aos outros, retiro-me para a galeria e vou receber, subindo ao estadium, a mesma respiração que sai de mim neste momento, como uma prece impossível.

Oswaldo Alcântara / Cabo Verde

in Sonha Mamana África, Cremilda Medina, Edições Epopéia, 1987

QUEBRANTO Às vezes sou o policial que me suspeito me peço documentos e mesmo de posse deles me prendo e me dou porrada

FALA

Quando chego de Minas trago sempre na boca um gosto de terra. Chego aqui com o coração fechado um trem esquisito no peito. Meus olhos chegam divagando saudades, meus pensamentos cheios de uais e esta cidade aqui me machuca me deixa maciça, cimento e sem jeito. Chegando de Minas trago sempre nos bolsos queijos, quiabos babentos da calma mineira. É duro, é triste ficar aqui com tanta mineiridade no peito.

às vezes sou o zelador não me deixando entrar em mim mesmo a não ser pela porta de serviço às vezes sou o meu próprio delito o corpo de jurados a punição que vem com o veredito às vezes sou o amor que viro o rosto o quebranto o encosto a solidão primitiva que me envolvo com o vazio às vezes as migalhas do que sonhei e não comi outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristeza um dia fui abolição que me lancei de supetão no espano depois um imperador deposto a república dos conchavos no coração e em seguida uma constituição que me promulgo a cada instante também a violência de um impulso que me ponho do avesso com acessos de cal e gesso chego a ser às vezes faço questão de não me ver e entupido com a visão deles me sinto a miséria concebida como um eterno começo fecho-me o cerco sendo o gesto que me nego a pinga que me bebo e me embebedo o dedo que me aponto e denuncio o ponto em que me entrego. Às vezes!...

Cuti (Luiz Silva)

in Cadernos Negros-Os melhores poemas, 1998, Org. Quilombhoje

O garoto corria corria não podia saber da diferença entre as flores. O garoto corria não podia saber que na sua terra há morangos doces e perfumados, o garoto corria corria fugia. Ninguém lhe pegou ao colo Ninguém lhe parou a morte. Os anjos choram. Uma cidade caiu e os homens perderam-se nos trilhos das casas agora desabadas. As mulheres de joelhos em cima do nada já não sabem rezar. Os anjos choram e o bálsamo de todas as feridas não chega até nós. E agora só me restam os poetas gregos. O silêncio diz – esquece. E o espinho da rosa enterrado no peito é meu. Os deuses não assistiram a isto.

Maria Alexandra Dárkalos

/Angola in “Poesia Africana de Língua Portuguesa” (antologia), 2003 Ed.Nova Aguilar

EPARREI 61


Culinária quente. Sirva em seguida. O arroz–de-cuxá acompanha bem os pratos do mar, como torta de caranguejo ou de camarào, peixes e camarões fritos. No Maranhão o peixe predileto é o popularmente chamado peixepedra.

PÉ-DE-MOLEQUE DO MARANHÃO Ingredientes

ARROZ DE CUXÁ

O prato número um da culinária do Maranhão. Porção para 10 pessoas

Ingredientes

- 600 g de vinagreira (ou azedinha) - 3 kg de camarões miúdos descascados, limpos e lavados - Suco de dois limões - 1 1⁄2 kg de quiabos pequenos e tenros, lavados, enxugados, sem as pontas e os cabinhos - 750 g de gergelim - 300 g de farinha de mandioca crua - 2 cebolas grandes - 4 dentes de alho grandes - 6 tomates grandes e maduros, sem pele - 2/3 de xícara (chá) de óleo - 4 colheres (sopa) de gordura - 2 pimentas-roxas - 1 kg de arroz, lavado e seco - 1 molho médio de cebolinha verde - 1 molho médio de coentro - Sal

Preparo

Esquente o óleo e refogue o arroz até que esteja soltinho e brilhante. Tempere com 1 colher (sopa) rasa de sal, cubra com água que ultrapasse em 3 dedos o volume do arroz e cozinhe até que esteja macio e seco. Reserve. Cozinhe a vinagreira em 3 litros de água com 1 colher (sobremesa) rasa de sal. Retire, 62 EPARREI

esprema um pouco para suprimir o excesso de líquido e bata bem com a faca até transformá-la numa pasta. Reserve, assim como a água na qual cozinhou a vinagreira. Tempere o camarão com o suco de 2 limões. Em um pilão, soque bem o camarão seco com a farinha de mandioca. Torre o gergelim no forno e soque bastante. Misture com a farinha de camarão seco e torne a socar. Esquente a gordura e doure o alho socado com 1 colher (de sobremesa) rasa de sal, junto com as cebolas raladas e escorridas. Junte os camarões frescos e refogue até que todo o líquido tenha sido absorvido. Amasse os tomates com um garfo, obtendo um purê. Misture os camarões com o purê de tomates frescos, a salsa, a cebolinha e o coentro cortados miudinho, e também as pimentas-roxas bem amassadas. Ferva. Molhe com 1 1⁄2 litros de água e acrescente os quiabos cortados miudinho. Cozinhe em fogo médio até que estejam quase se desmanchando. Prove o sal. Misture este refogado de camarões com quiabos, com a farinha de peixe com gergelim, a vinagreira batidinha e metade da água em que cozinhou. Engrosse em fogo brando, mexendo com colher de pau até dar consistência de um mingau meio ralo, que recebe o nome de cuxá. Espalhe o arroz numa travessa grande e cubra com o cuxá bem

- 1/4 de farinha d’água (250 g de farinha de mandioca granulada) - 300g de coco fresco, ralado - 1 xícara bem cheia de açúcar - 1/2 xícara de leite de coco, ou o suficiente para dar liga - 2 colheres (sopa) de manteiga - Óleo, para fritar - 1 pitada de sal - Açúcar e canela em pó para passar os biscoitinhos

Preparo

Ponha a farinha de molho, cobrindo-a com água, numa vasilha. Retire com uma escumadeira a espécie de “palha”, que sobe boiando. Escorra e repita a operação por mais uma vez. Depois de escorrida, deixe que a farinha absorva toda a água que ainda há nela. Acrescente o coco, misturando bem. Junte agora a manteiga, o açúcar e o sal. Amassando, vá acrescentando o leite de coco até dar liga. Modele pedacinhos de massa, na forma de pequenos croquetes. Esquente bem o óleo - o suficiente para cobri-los em papel absorvente e passe-o ainda quentes no açúcar e na canela.

RABADA COM AGRIÃO

Porção para 6 pessoas Receita de Valmira Branco

Ingredientes

- 1 rabo de boi inteiro (cerca de 1,20kg) limpo, escaldado e cortado em pedaços - 4 colheres de (sopa) de azeite doce - 2 cebolas picadas - 1 maço de agrião - 4 dentes de alho amassados com - 1⁄2 pimenta dedo-de-moça e 1 colher (de sobremesa) de sal - 2 folhas de louro - 4 tomates sem pele e sem sementes picados - 1 e 1⁄2 colher de açúcar - 1 pimentão verde picado - 1 xícara (de chá) de vinho branco seco - 2 tabletes de caldo de carne dissolvidos em 2 litros de água

Preparo

Dê um pré-cozimento na carne. Deixe de um dia para o outro na geladeira com a mesma água. Retire a gordura excedente. Numa panela com azeite doce quente, coloque os pedaços do rabo, salpique açúcar e deixe dourar bem. Junte a cebola, o alho amassado, as folhas de louro, os tomates, o pimentão e o vinho. Coloque o caldo de carne aos poucos. Deixe cozinhar aproximadamente 1 hora na pressão. Depois de bem macia, coloque um maço de agrião, que já deve estar bem lavado e abafe para que murche. Acompanha arroz branco.



CASA DE CULTURA DA MULHER NEGRA

ARTE E TRADIÇÃO


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