Direito Penal - Parte Geral by Ney Moura Teles part1

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SUMÁRIO Apresentação, Nota do Autor,

1

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO PENAL. 1.1 Conceito

de direito penal. 1.1.1

Noções básicas. 1.1.2 Definições. 1.1.3 Ciência

penal. 1.1.4 Características do direito penal. 1.1.4.1 Positivo. 1.1.4.2 Público. 1.1.4.3 Constitutivo, original e autônomo. 1.1.4.4Valorativo.

1.1.5

Direito penal objetivo e direito penal subjetivo. 1.1.6 Direito penal comum e direito penal especial. 1.1.7 Direito penal e direito processual penal. 1.2 O bem jurídico e o fim do direito penal. 1.3 Sanção penal. 1.3.1 Teoria da retribuição. 1.3.2

Teoria da prevenção especial. 1.3.3 Teoria da

prevenção geral. 1.3.4 Teoria unificadora dialética. 1.3.5 Conclusão.

2

NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DO DIREITO PENAL. 2.1 História

geral. 2.1.1 As faces de vingança e o talião. 2.1.2 Direito

grego.

2.1.3

Direito romano. 2.1.4 Direito germânico. 2.1.5 Direito canônico. 2.1.6 Direito medieval. 2.1.7 Período humanitário. 2.1.8

Período

Escola clássica. 2.1.8.2 Escola positiva. 2.1.8.3

científico.

2.1.8.1

Escola moderna alemã.

2.1.9 Outras tendências. 2.2 História no Brasil. 2.2.1 Período colonial. 2.2.1.1 Ordenações Afonsinas. 2.2.1.2 Ordenações Manuelinas. 2.2.1.3 Ordenações Filipinas. 2.2.2 Período imperial. 2.2.3 Período republicano. 2.2.4 Tendências atuais.

3

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO PENAL. 3.1

Introdução. 3.2 Princípio da legalidade. 3.2.1Enunciado e breve histórico. 3.2.2 Significado. Princípio da extra-atividade da lei penal mais favorável. 3.3.1 Enunciado. 3.3.2 Significado. 3.4 Princípio da individualização da pena. 3.4.1 Enunciado e conceito. 3.4.2

Cominação. 3.4.3 Aplicação.

3.4.4

Execução. 3.5 Princípio da responsabilidade pessoal ou da personalidade da pena. 3.5.1 Enunciado. 3.5.2 Significado. 3.5.3 Reparação do dano. 3.6 Princípio da limitação das penas. 3.6.1 Enunciado e significado. 3.6.2 Pena de

morte.

3.6.3

Penas

perpétuas.

3.6.4

Trabalhos

forçados.

3.6.5

Banimento. 3.6.6 Penas cruéis. 3.7 Princípios do respeito ao preso. 3.7.1


Enunciado. 3.7.2 Significado. 3.8 Princípios da presunção da inocência. 3.8.1 Enunciado. 3.8.2 Significado.

4

A LEI PENAL. 4.1 Fontes do direito penal. 4.1.1 Fontes

materiais:

a sociedade e o Estado. 4.1.2 Fonte formal imediata: a lei penal. 4.1.3 Fontes formais mediatas: costume e princípios 4.1.3.1

gerais de direito.

Costume jurídico. 4.1.3.2 Princípios gerais de direito. 4.2

A lei penal e a norma penal. 4.2.1 Classificação das normas penais. 4.2.1.1 Normas penais incriminadoras. 4.2.1.2 Normas penais não incriminadoras. 4.2.1.2. Normas penais permissivas justificantes. 4.2.1.2.2 Normas penais permissivas exculpantes. 4.2.1.2.3 Normas penais explicativas. 4.2.2 Características das normas penais incriminadoras. 4.2.3 Preceito e sanção. 4.2.4 Norma penal incriminadora em branco. 4.2.4.1 Norma penal em branco em sentido estrito.

4.2.4.2 Norma penal em branco em sentido

amplo.

5

APLICAÇÃO DA LEI PENAL. 5.1 Aplicação da lei penal no tempo.

5.1.1 Tempo do crime. 5.1.2 Solução dos conflitos. 5.1.3 Abolitio 5.1.4 Novatio legis in mellius. 5.1.5 intermédia. 5.1.7

Novatio legis in pejus. 5.1.6

criminis. Lex

Lex tertia. 5.1.8 Lei excepcional e lei temporária. 5.1.9

Síntese. 5.2 Aplicação da lei penal no espaço. 5.2.1 Lugar do crime. 5.2.2 Princípios

de

direito

penal

internacional.

5.2.2.1

Princípio

da

territorialidade. 5.2.2.2 Princípio da nacionalidade. 5.2.2.3 Princípio da defesa ou princípio real. 5.2.2.4 Princípio da justiça penal universal. 5.2.2.5 Princípio da representação. 5.2.3 Territorialidade. 5.2.3.1 Território jurídico. 5.2.3.2 Extensão do território nacional. 5.2.4 Extraterritorialidade. Extraterritorialidade

incondicionada.

5.2.4.2

5.2.4.1

Extraterritorialidade

condicionada. 5.3 Aplicação da lei penal em relação às pessoas. 5.3.1 Imunidades

diplomáticas.

Imunidades

5.3.2

parlamentares

Imunidades absolutas.

parlamentares. 5.3.2.2

5.3.2.1

Imunidades

parlamentares processuais ou relativas. 5.3.3 Imunidade do advogado. 5.3.4 Presidente da República e governadores de Estado. 5.3.5 Deputados estaduais, distritais e vereadores. 5.3.6 Prefeitos municipais. 5.4 Outras disposições sobre a aplicação da lei penal. 5.4.1

Eficácia

da

sentença

penal estrangeira. 5.4.2 Contagem de prazo. 5.4.3 Frações não computáveis na pena. 5.4.4

Legislação especial, 128.


6

INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL. 6.1 Espécies de interpretação.

6.1.1 Interpretação autêntica ou legislativa. 6.1.2 Interpretação doutrinária. 6.1.3 Interpretação judicial. 6.2 Métodos de interpretação. 6.2.1 Método literal. 6.2.2 Método teleológico ou finalístico. 6.2.2.1 Ratio legis. 6.2.2.2 Elemento sistemático. 6.2.2.3

Elemento

histórico.

6.2.2.4

Outros

elementos. 6.3 Resultado da interpretação. 6.3.1 Interpretação declarativa. 6.3.2 Interpretação restritiva. 6.3.3

Interpretação

extensiva.

6.3.4

Conclusão. 6.4 Analogia. 6.4.1 Analogia in malan partem. 6.4.2 Analogia in bonam partem. 6.5 Interpretação analógica.

7

CONCEITO DE CRIME. 7.1 Conceitos. 7.1.1 Conceitos formais.

7.1.2 Conceitos materiais. 7.1.3 Conceito de Carrara. 7.1.4 Definição legal de crime. 7.1.5 Conceito analítico. 7.1.6 Definições. 7.1.6.1

Sujeitos

do

crime. 7.1.6.1.1 Sujeito ativo. 7.1.6.1.2 Sujeito passivo. 7.1.6.2 Objeto do crime. 7.1.6.3 Denominação do crime. 7.2 Crime e contravenção.

8

FATO TÍPICO. 8.1 Conduta. 8.1.1 Teoria causalista. 8.1.2 Teoria

finalista. 8.1.3 Teoria social da ação. 8.1.4 Teoria jurídico-penal. 8.1.5 Conclusões. 8.2 Ausência de conduta. 8.2.1 Coação física absoluta ou força irresistível. 8.2.2 Movimentos reflexos. 8.2.3 Estados de inconsciência. 8.3 Formas de conduta. 8.3.1 Ação. 8.3.2 Omissão. 8.3.2.1 Omissão pura. 8.3.2.2 Omissão imprópria. 8.4 Dolo. 8.4.1 Teorias do dolo. 8.4.1.1 Teoria da vontade. 8.4.1.2

Teoria da representação. 8.4.1.3

Teoria

do

assentimento ou do consentimento. 8.4.1.4 Dolo no Código Penal brasileiro. 8.4.2 Natureza e elementos do dolo. 8.4.3 Espécies de dolo. 8.4.4 Conceito de dolo. 8.5 Culpa, em sentido estrito. 8.5.1 Conceito e elementos da culpa, em sentido estrito. 8.5.2 Conduta voluntária. 8.5.3 Inobservância do dever de cuidado objetivo. 8.5.3.1 Imprudência. 8.5.3.2 Negligência. 8.5.3.3 Imperícia.

8.5.3.4

indesejado. 8.5.5 8.5.5.2

Culpa

Conclusão.

Previsibilidade

consciente

e

8.5.4

objetiva.

dolo

Resultado

8.5.5.1

eventual.

Culpa

8.5.6

naturalístico inconsciente.

Tipicidade.

8.5.7

Compensação e concorrência de culpas. 8.6 Resultado. 8.6.1 Teoria naturalística. 8.6.2 Teoria

normativa.

8.6.3

Discussão.

8.7

Nexo

de

causalidade. 8.7.1 Noções básicas. 8.7.2 Teoria da equivalência das condições. 8.7.3

Superveniência de causa relativamente independente.


8.7.4

Concausas

relativamente

concomitantes. 8.7.5

independentes

preexistentes

e

Concausas absolutamente independentes. 8.7.6

Teoria da imputação objetiva. 8.8

Preterdolo. 8.8.1 Crimes qualificados

pelo resultado. 8.8.2 Crimes preterdolosos. 8.9

Tipicidade e tipo. 8.9.1

Funções dos tipos. 8.9.2 Elementos dos tipos. 8.9.2.1 Elementos objetivos. 8.9.2.2

Elementos

normativos.

8.9.2.3

Elementos

subjetivos.

8.10

Tipicidade direta e consumação. 8.10.1 Tipicidade direta. 8.10.2 Iter criminis e consumação. 8.11 Tipicidade indireta. 8.11.1 Tentativa de crimes. 8.11.1.1

Conceitos.

8.11.1.2

Elementos.

8.11.1.3

Formas.

8.11.1.4

Punibilidade da tentativa. 8.11.1.5 Desistência voluntária e arrependimento eficaz. 8.11.1.6 Arrependimento posterior. 8.11.1.7 Crime impossível. 8.11.2 Concurso de pessoas. 8.11.2.1 Autoria. 8.11.2.1.1 Autor

intelectual.

8.11.2.1.2 Autor executor. 8.11.2.1.3 Autor mediato. 8.11.2.1.4 Co-autoria. 8.11.2.1.5

Co-autoria em crime culposo. 8.11.2.2 Participação. 8.11.2.3

Participação de menor importância. 8.11.2.4 Cooperação dolosamente diversa. 8.11.2.5

Circunstâncias

incomunicáveis.

8.11.2.6

Caso

de

impunibilidade da participação. 8.12 Conflitos aparentes de normas. 8.12.1 Princípio da especialidade. 8.12.2 Princípio da subsidiariedade. 8.12.3 Princípio da absorção ou da consumação. 8.12.4

Observação importante.

8.13 Classificação doutrinária dos tipos de crimes. 8.13.1 Crimes materiais, formais e de mera conduta. 8.13.2

Crimes

simples,

privilegiados

e

qualificados. 8.13.3 Crimes comuns, especiais, próprios e de mão própria. 8.13.4 Crimes políticos e de responsabilidade. 8.13.5 Crimes de dano, de perigo

e

de

opinião.

8.13.6

Crimes

instantâneos,

permanentes

e

instantâneos de efeitos permanentes. 8.13.7 Crimes complexos. 8.13.8 Crimes hediondos. 8.13.9 Crimes organizados. 8.13.10 Crimes de menor e de médio potencial ofensivo.

9

EXCLUSÃO DA TIPICIDADE. 9.1 Atipicidade. 9.2 Princípio de

adequação social. 9.3

Princípio da insignificância. 9.4 Erro de tipo. 9.4.1

Erro de tipo evitável. 9.4.2

Erro de tipo inevitável. 9.4.3

Erro sobre a

pessoa. 9.4.4 Erro na execução e resultado diverso do pretendido. 9.5 Conclusão.

10

ILICITUDE. 10.1 Conceito. 10.1.1

Ilicitude

formal

e

ilicitude

material. 10.1.2 Ilicitude e injusto. 10.1.3 Caráter objetivo da ilicitude. 10.2


Exclusão da ilicitude. 10.3 Estado de necessidade. 10.3.1 Breve histórico e conceito. 10.3.2 Requisitos. 10.3.2.1 Perigo atual. 10.3.2.2

Qualquer

direito, próprio ou de terceiro. 10.3.2.3 Perigo não causado dolosamente pelo sujeito. 10.3.2.4

Ausência do dever legal de enfrentar o perigo.

10.3.2.5 Inevitabilidade do sacrifício do outro bem. 10.3.2.6 Inexigibilidade do sacrifício do bem em perigo. 10.3.2.7 10.3.2.8 Elemento subjetivo. 10.4

Causa de diminuição da pena. Legítima

defesa.

10.4.1

Dados

históricos e fundamento. 10.4.2 Conceito e requisitos. 10.4.2.1 Agressão injusta. 10.4.2.2 Agressão atual ou iminente. 10.4.2.3 Qualquer direito, próprio ou de terceiro. 10.4.2.4 Uso

dos

meios

necessários.

10.4.2.5

Moderação na utilização dos meios necessários. 10.4.2.6 Consciência e vontade de agir conforme o direito. 10.4.3 Questões diversas sobre a legítima defesa. 10.4.3.1 Embriaguez do defendente. 10.4.3.2 Embriaguez do agressor. 10.4.3.3 Legítima defesa e estado de necessidade. 10.4.3.4 Legítima defesa e erro na execução. 10.4.3.5 Ofendículos. 10.5 Estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito. 10.5.1 Estrito cumprimento do dever legal. 10.5.2 Exercício

regular

de

direito. 10.6 Consentimento do ofendido. 10.6.1 Consentimento como excludente da tipicidade. 10.6.2 Consentimento como excludente da ilicitude. 10.7 Excesso nas excludentes de ilicitude. 10.7.1 Excesso doloso. 10.7.2 Excesso culposo. 10.7.3 Excesso de legítima defesa intensivo e extensivo. 10.7.4 Excesso acidental. 10.7.5 Excesso exculpante. 10.8 Conclusão.

11

CULPABILIDADE. 11.1 Conceito. 11.1.1 Noções básicas e algumas

notas históricas. 11.1.2 Teoria psicológica da culpabilidade. 11.1.3 Teoria normativa ou teoria psicológico-normativa da culpabilidade. 11.1.4 Teoria normativa

pura.

11.2

Imputabilidade.

11.2.1

Conceito.

11.2.2

Inimputabilidade – espécies. 11.2.2.1 Inimputabilidade por doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou desenvolvimento mental retardado. 11.2.2.2 Inimputabilidade por menoridade. 11.2.2.3

Inimputabilidade por

embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior.11.2.3 Embriaguez voluntária, preordenada ou não, e embriaguez culposa. A actio libera in causa. 11.2.4 Capacidade diminuída. 11.2.5 Emoção e paixão. 11.2.6 Conclusão. 11.3 Elementos da culpabilidade. 11.3.1

Potencial

consciência da ilicitude. 11.3.2 Exigibilidade de conduta diversa. 11.4


Causas legais de exclusão da culpabilidade. 11.4.1 Erro de proibição. 11.4.1.1 Erro de proibição inevitável. 11.4.1.2 Erro de proibição evitável. 11.4.2 Descriminantes putativas. 11.4.3 Obediência

hierárquica.

11.5

Causas

Coação moral irresistível. 11.4.4 supralegais

de

exclusão

da

culpabilidade. 11.5.1 Excesso de legítima defesa exculpante. 11.5.2 Inexigibilidade de conduta diversa. 11.6 Conclusão.

12

CULPABILIDADE:

PRESSUPOSTO

CARACTERÍSTICA DO CRIME?. 12.1

DA

PENA

Polêmica. 12.2

OU

Discussão e

conclusão.

13

TEORIA DA PENA. 13.1 Um pouco da história da pena. 13.2

Finalidade e teorias da pena. 13.2.1 Teorias absolutas. 13.2.2 Teorias relativas. 13.2.2.1 Teorias da prevenção geral. 13.2.2.2 Teorias da prevenção especial. 13.2.2.3 Teoria de Von Liszt. 13.2.3 Teorias mistas. 13.2.4 Teoria unificadora dialética de Claus Roxin. 13.2.5 Direito penal simbólico: teoria da prevenção positiva. 13.3 Conceito e características. 13.4 Classificação. 13.5 Sistemas penitenciários. 13.5.1 Sistema de Filadélfia. 13.5.2 Sistema de Auburn. 3.5.3 Sistema irlandês ou progressivo. 13.5.4 Sistema brasileiro. 13.6 Conclusão.

14

PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE. 14.1 Reclusão e detenção.

14.2 Sistema progressivo e regimes prisionais,. 14.2.1 Exame criminológico, classificação e programa individualizador. 14.2.2 Regime fechado. 14.2.3 Regime semi-aberto. 14.2.4 Regime aberto. 14.2.5 Prisão domiciliar. 14.2.6 Estabelecimento prisional feminino. 14.2.7 Regime inicial de cumprimento da pena. 14.2.8 Progressão. 14.2.9 Revogação do art. 2º da Lei nº 8.072/90. 14.2.9.1 Lei dos crimes hediondos. 14.2.9.2 Lei dos crimes de tortura. 14.2.9.3 Finalidade da nova lei. 14.2.9.4 Descobrindo a vontade da lei. 14.2.9.5 O subsistema de restrições da nova lei é incompatível com o da Lei nº 8.072/90. 14.2.9.6 A nova lei regulou inteiramente a matéria restritiva da lei anterior. 14.2.10 Regressão. 14.3 Direito ao trabalho e remição. 14.4 Detração. 14.5 Deveres e direitos do preso. 14.5.1 Respeito à integridade física e moral. 14.5.2 Alimentação e vestuário. 14.5.3 Atribuição de trabalho, previdência social e pecúlio. 14.5.4 Descanso, recreação e atividades

anteriores.

14.5.5

Assistência

e

proteção

contra

o


sensacionalismo.

14.5.6

Entrevista

com

advogado.

14.5.7

Visitas

e

comunicação com o mundo exterior. 14.5.8 Chamamento nominal e igualdade de tratamento. 14.5.9 Audiência com diretor, representação e petição. 14.6 15

Direitos políticos dos condenados.

PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. 15.1 Notas introdutórias. 15.2

Condições de substituição da pena privativa de liberdade. 15.3 Conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos. 15.4 Transação nos crimes de menor potencial ofensivo. 15.5 Espécies de penas restritivas de direitos. 15.5.1 Prestação pecuniária. 15.5.2 Perda de bens e valores. 15.5.3 Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas. 15.5.3.1 Conceito e regras. 15.5.3.2 Conversão em pena privativa de liberdade. 15.5.4 Interdição temporária de diretos. 15.5.4.1 Conceito e regras. 15.5.4.2 Conversão em pena privativa de liberdade. 15.5.5 Limitação de fim de semana. 15.5.5.1 Conceito e regras. 15.5.5.2 Conversão em pena privativa de liberdade.

16

PENA DE MULTA. 16.1 Aspectos históricos e gerais. 16.2 Conceito.

16.3 Comunicação. 16.4 Pagamento da multa. 16.5 Suspensão da execução da multa.

17

APLICAÇÃO DA PENA. 17.1 Noções gerais. 17.2 Cálculo da pena.

17.3 Fixação da pena-base. 17.3.3 Conduta

17.3.1 Culpabilidade. 17.3.2 Antecedentes.

social. 17.3.4 Personalidade. 17.3.5 Motivos. 17.3.6

Circunstância do crime. 17.3.7 Conseqüências. 17.3.8 Comportamento da vítima. 17.3.9 Conclusão da análise das circunstâncias judiciais. 17.4 Circunstâncias agravantes e atenuantes. 17.4.1 Questões gerais. 17.4.2 Agravantes. 17.4.2.1 Reincidência. 17.4.2.2 Motivo fútil ou torpe. 17.4.2.3 Finalidade de facilitar ou assegurar outro crime. 17.4.2.4 Recursos que dificultam ou impossibilitam a defesa do ofendido. 17.4.2.5 Meios insidiosos ou cruéis, ou dos quais resulta perigo comum. 17.4.2.6 Ascendente, descendente, irmão ou cônjuge. 17.4.2.7 Abuso de autoridade, de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. 17.4.2.8 Abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão. 17.4.2.9 Criança, maior de 60 anos, enfermo ou mulher grávida. 17.4.2.10 Ofendido sob

imediata

proteção

da

autoridade.

17.4.2.11

Incêndio,

naufrágio,


inundação, ou qualquer calamidade pública, ou desgraça particular do ofendido. 17.4.2.12 Embriaguez preordenada. 17.4.2.13 No concurso de pessoas. 17.4.3 Atenuantes. 17.4.3.1 Menor de 21 anos e maior de 70 anos. 17.4.3.2 Desconhecimento da lei. 17.4.3.3 Motivo de relevante valor social ou moral. 17.4.3.4 Evitar ou minorar eficientemente as conseqüências do crime.

17.4.3.5

Reparação

do

dano.

17.4.3.6

Coação

resistível

e

cumprimento de ordem. 17.4.3.7 Violenta emoção. 17.4.3.8 Confissão espontânea. 17.4.3.9 Multidão em tumulto. 17.4.3.10 Outra circunstância relevante. 17.4.4 Concurso de agravantes e atenuantes. 17.5 Causas de aumento e diminuição. 17.5.1 Causas de aumento. 17.5.1.1 Da parte geral. 17.5.1.2 Da parte especial. 17.5.2 Causas de diminuição. 17.5.2.1 Da parte geral. 17.5.2.2 Da parte especial. 17.5.3 Concurso de causas de aumento e de diminuição. 17.6 Substituição por pena restritiva de direito ou fixação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade. 17.7 Concurso de crimes. 17.7.1 Concurso material. 17.7.2 Concurso formal. 17.7.3 Crime continuado. 17.7.3.1 Crimes da mesma espécie. 17.7.3.2 Nexo de continuação. 17.7.3.3 Aplicabilidade do crime continuado a bens personalíssimos. 17.8 Erro sobre a pessoa e erro na execução (aberratio ictus e aberratio delicti). 17.8.1 Erro sobre a pessoa. 17.8.2 Aberratio ictus. 17.8.2.1 Aberratio ictus com resultado único. 17.8.2.2 Aberratio ictus com resultado duplo. 17.8.3 Aberratio delicti. 17.9 Limite das penas privativas de liberdade. 17.10 Aplicação da pena de multa.17.11 Conclusão.

18

SUSPENSÃO

CONDICIONAL

DA

PENA

PRIVATIVA

DE

LIBERDADE (SURSIS). 18.1 Noções preliminares e conceito. 18.2 Espécies. 18.3 Requisitos. 18.3.1 Objetivos. 18.3.2 Subjetivos. 18.4 Período de prova e condições. 18.4.1 Condições legais. 18.4.1.1 No sursis simples. 18.4.1.2 No sursis especial. 18.4.1.3 No sursis etário. 18.4.2 Condições judiciais. 18.5 Revogação. 18.5.1 Causas de revogação obrigatória. 18.5.2 Causas de revogação facultativa. 18.6 Prorrogação do período de prova e extinção da pena.

19

LIVRAMENTO

CONDICIONAL.

19.1

Noções

gerais.

19.2

Requisitos. 9.2.1 Requisitos objetivos. 19.2.1.1 Pena privativa de liberdade igual ou superior a dois anos. 19.2.1.2 Cumprimento de mais de 1/3, da metade ou de 2/3 da pena. 19.2.1.3 Reparação do dano. 19.2.2 Requisitos


subjetivos.

19.2.2.1

Bons antecedentes, para obtenção de livramento

condicional com o cumprimento de 1/3 da pena. 19.2.2.2 Comportamento satisfatório durante a execução da pena. 19.2.2.3 Bom desempenho no trabalho. 19.2.2.4 Aptidão para prover o próprio sustento. 19.2.2.5 Presunção de que o condenado por crime doloso, com violência ou grave ameaça, não voltará a delinqüir. 19.3 Período de prova e condições. 19.3.1 Obrigatórias. 19.3.1.1 Obter ocupação lícita, dentro de prazo razoável, sendo apto. 19.3.1.2 Comunicar, periodicamente, ao juiz sua ocupação. 19.3.1.3 Não mudar de território da comarca do juízo da execução, sem prévia autorização deste. 19.3.2 Facultativas. 19.3.2.1 Não mudar de residência sem comunicação ao juiz e à autoridade encarregada da observação cautelar e da proteção. 19.3.2.2 Recolher-se à moradia, em horário fixado na sentença. 19.3.2.3 Não freqüentar determinados lugares. 19.3.2.4 Outras condições. 19.4 Revogação do livramento e seus efeitos, e prorrogação do período de prova. 19.4.1 Revogação obrigatória. 19.4.2 Revogação facultativa. 19.4.3

Efeitos da revogação. 19.4.3.1 Condenação

por crime anterior ao período de prova. 19.4.3.2 Condenação por crime durante o período de prova. 19.4.3.3 Descumprimento de condições. 19.4.4 Prorrogação do período de prova. 19.5 Extinção da pena.

20

EFEITOS DA CONDENAÇÃO E REABILITAÇÃO. 20.1 Efeitos

genéricos automáticos. 20.1.1 Obrigação de reparar o dano. 20.1.2 Absolvição na jurisdição penal e reparação do dano. 20.1.2.1 Porque o fato não ocorreu. 20.1.2.2 Porque não há prova de que o fato ocorreu. 20.1.2.3 Porque o fato é atípico. 20.1.2.4 Porque não há prova de que o réu concorreu para o crime. 20.1.2.5 Porque há dúvidas. 20.1.2.6 Porque

o

réu

agiu

licitamente.

20.1.2.7

Porque

o

réu

não

agiu

culpavelmente. 20.1.3 Confisco de instrumentos e produtos do crime. 20.2 Efeitos específicos não automáticos. 20.2.1 Perda de cargo ou função pública. 20.2.2 Perda do mandato eletivo. 20.2.3 Incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela. 20.2.4 Inabilitação para dirigir veículo. 20.3 Reabilitação. 20.3.1 Conceito. 20.3.2 Requisitos. 20.3.3 Efeitos. 20.3.4 Revogação.

21

MEDIDAS DE SEGURANÇA. 21.1 Conceito. 21.2 Espécies. 21.2.1

Internação. 21.2.2 Tratamento ambulatorial. 21.3 Aplicação – requisitos.


21.3.1 Periculosidade presumida. 21.3.2 Periculosidade real: aplicação ao imputável. 21.3.3 Execução, duração e revogação. 21.3.4 Extinção da punibilidade.

22

AÇÃO PENAL. 22.1 Generalidades. 22.2 Ação penal. 22.2.1 Ação

penal de iniciativa pública. 22.2.1.1 Ministério Público. 22.2.1.2 Ação penal de iniciativa pública incondicionada. 22.2.1.3 Ação penal de iniciativa pública condicionada. 22.2.1.4 Ação penal no crime complexo. 22.2.2 Ação penal de iniciativa privada. 22.2.2.1 Ação penal de iniciativa privada exclusiva. 22.2.2.2 Ação penal de iniciativa privada subsidiária de pública.

23

EXTINÇÃO

DA

PUNIBILIDADE.

23.1

Punibilidade.

Conceito. 23.1.2 Condições objetivas de punibilidade. 23.1.3 absolutórias. 23.1.4

Efeitos

da

extinção

da

23.1.1

Escusas

punibilidade.

23.1.5

Extinção da punibilidade nos crimes acessórios, complexos e conexos. 23.2 Causas de extinção da punibilidade. 23.2.1 Morte do agente. 23.2.2 Anistia, graça e indulto. 23.2.3 Decadência. 23.2.4 Perempção. 23.2.5 Renúncia. 23.2.6 Perdão do ofendido, aceito. 23.2.7 Retratação do agente. 23.2.8 Perdão judicial.

24

SUSPENSÃO

CONDICIONAL

DO

PROCESSO.

24.1

Generalidades. 24.2 Conceito. 24.3 Pressupostos para a concessão. 24.4 Período de prova. 24.5 Condições. 24.5.1 Condições legais (obrigatórias). 24.5.2 Condições judiciais (facultativas). 24.6 Revogação e prorrogação do período

de

prova.

24.6.1

Revogação

obrigatória.

24.6.2

Revogação

facultativa. 24.6.3 Prorrogação do período de prova. 24.7 Extinção da punibilidade.

25

PRESCRIÇÃO.

25.1

Generalidades.

25.1.1

Pretensão punitiva. 25.1.3 Pretensão executória. 25.2

Conceito.

25.1.2

Prescrição

da

pretensão punitiva. 25.2.1 Termo inicial da prescrição. 25.2.2 suspensivas da prescrição. 25.2.2.1

Causas

Legais. 5.2.2.2 Constitucionais. 25.2.3

Causas interruptivas da prescrição. 25.2.3.1 Recebimento da denúncia ou queixa. 25.2.3.2 Pronúncia e decisão confirmatória. 25.2.3.3 Publicação da sentença ou do acórdão condenatórios recorríveis. 25.2.3.4 Início ou continuação

do

cumprimento

da

pena

e

reincidência.

25.2.3.5

Comunicabilidade das causas interruptivas. 25.2.4 Prescrição pela pena


abstrata (antes da decisão condenatória). 25.2.4.1 Critério básico. 25.2.4.2 Redução dos prazos em razão da idade do agente. 25.2.4.3 Cálculo do prazo no concurso de crimes. 25.2.4.4 Cálculo do prazo no caso de tentativas de crime e de outras causas de aumentos e de diminuição. 25.2.4.5 Cálculo do prazo diante das figuras qualificadas. 25.2.4.6 Cálculo do prazo diante de atenuantes e agravantes. 25.2.4.7 Reconhecimento da prescrição. 25.2.5 Prescrição pela pena imposta (depois da decisão condenatória).

25.2.5.1

Prescrição

intercorrente.

25.2.5.2

Prescrição

retroativa. 25.2.6 Prescrição retroativa antecipada. 25.3 Prescrição da pretensão executória. 25.3.1 Termo inicial do prazo. 25.3.1.1 Trânsito em julgado da condenação para acusação. 25.3.1.2 Trânsito em julgado da revogação do sursis e do “livramento”. 25.3.1.3 Fuga do condenado. 25.3.2 Prescrição no caso de fuga do condenado ou de revogação do livramento. 25.3.3 Aumento do prazo em razão da reincidência. 25.3.4 Redução dos prazos em razão da idade do agente. 25.3.5 Causa suspensiva. 25.3.6 Causas interruptivas. 25.3.6.1 Início ou continuação do cumprimento da pena. 25.3.6.2 Reincidência. 25.4 Prescrição no caso de pena de multa e de penas restritivas de direito. 25.4.1 Pena de multa. 25.4.2 Pena restritiva de direito. 25.5 Efeitos da prescrição. 25.6 Prescrição no caso de crimes previstos em leis especiais. 25.6.1 Crimes de imprensa. 25.6.2 Crimes falimentares. 25.7 Imprescritibilidade. Bibliografia.


APRESENTAÇÃO

____________________________ Há quase vinte anos, o Instituto de Ciências Penais do Rio de Janeiro fez realizar um debate sobre os problemas da advocacia criminal, de que ELIZABETH SUSSEKIND e NILO BATISTA publicaram notícia, a título de comunicação na revista Ciência Penal. Impossível a quem conheça essa comunicação – tratando de questões que muitos decerto supunham fossem suas, exclusivamente suas, fruto de suas idiossincrasias – não exultar diante de trabalhos como o que resolveu produzir e publicar o advogado diuturnamente atuante NEY MOURA TELES, que também é, paralela ou concomitantemente, professor de Direito. É que do advogado criminalista, legal e socialmente, tem-se uma idéia mitológica, quase mística: “um trabalho técnico, envolvendo dedicação, persistência, habilidade e preparo, tende a ser substituído aqui pela visão de um trabalho misterioso, envolvendo dons apenas intuídos pelo resto dos mortais. A advocacia criminal é ainda sentida, pelo leigo e pelos estudantes de direito, como um carisma, indecifrável e intransmitível”. É verdade que os métodos de trabalho do criminalista, conservadoramente (embora não o sejam eles próprios), mantêm-se no velho e desconfiado jeito artesanal, trabalhando ele solitariamente no atendimento dos casos, de ouvir a história do cliente, adaptá-la a freqüentar o foro, realizar as audiências, inteirar-se das novidades nos processos, preparar as petições. Resiste a organizar-se empresarialmente, delegando atribuições, dedicando-se às ocupações mais gratificantes ou intransferíveis. NEY MOURA TELES, pelo fascinante trabalho que oferece, permite deduzir que há novidades na advocacia criminal e no ensino do Direito: sua obra mostra que, em vez de ter formado conhecimento teórico, dele se aproveitando no exercício da advocacia, fez – e bem, muito bem – o contrário: estudou tanto, preparou-se com tal afinco para a advocacia que pôde inverter a ordem tradicional do binômio e levou a advocacia – misto de preparo técnico e vivência profissional – para as salas de aula: o Direito Penal que edita serve aos estudos teóricos e adestra, encaminha pedagógica e


cuidadosamente, a utilização prática, chã do conhecimento nos fatos da vida, na intermediação dos direitos entre os protagonistas do drama e os que o devem compreender e resolver. De excelente qualidade as informações acadêmicas, eruditas sem eruditismo, substanciosas, fundadas, lógicas e respeitosamente conscientes da capacidade de discernimento de seus leitores. E responsavelmente atual, moderno, o mundo das idéias sobre os temas básicos do Direito Penal e sobre a legislação, com toda a pretendida revolução trazida pelos diplomas inovadores recém-editados. Que se pode mais dizer de um produto que não depende de ser apresentado? É lê-lo, metodicamente, ou abri-lo ao acaso e não conseguir o leitor desligar-se do texto, fluente, elegante, substancioso. O advogado homenageia o teórico, trazendo-o à compreensão dos que, sem o privilégio do conhecimento, precisam, mesmo assim, estar aprestados para exercitar as fascinantes lides do Direito Penal com fundamento e inteligência. NEY MOURA TELES é credor de nossa admiração, de nosso reconhecimento e de nossa gratidão; como disseram ELIZABETH SUSSEKIND e NILO BATISTA, “a advocacia pressupõe o conhecimento jurídico, mas não se exaure nele; existe entre um e outro mais ou menos a relação que existe entre crítica e estética”. Recebemo-las prontas, acessíveis, conciliadas e imbricadas, graças ao jovem estudioso.

Wanderley de Medeiros


NOTA DO AUTOR

____________________________ Depois de seis anos da edição dos primeiros volumes deste manual, agora condensados num único, consegui dar seqüência à obra, com a abordagem da parte especial do Código Penal, em dois volumes. Por que tanta demora? Em 1997, quando começava a escrever os comentários sobre a parte especial, fui nomeado, pelo Ministro da Justiça, membro da Comissão de Reforma do Código Penal, presidida pelo então Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro e integrada também pelos juristas Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Licínio Leal Barbosa, Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti e Juarez Tavares, tendo como consultores o saudoso Evandro Lins e Silva e o grande Damásio Evangelista de Jesus. Resolvi esperar. Mesmo com a saída de três dos seus membros a Comissão conseguiu, com grande dedicação e afinco, tomando como ponto de partida o esboço Evandro Lins e Silva, fruto de intensa atividade de comissão anteriormente constituída com o mesmo fim, concluir seus trabalhos e apresentar um anteprojeto de Código Penal, que foi levado ao conhecimento de toda a sociedade, especialmente do mundo jurídico. Após receber inúmeras sugestões e propostas, advindas de estudiosos e interessados de todos os cantos do país, nova Comissão foi constituída pelos mesmos que elaboraram a primeira proposta e enriquecida com as presenças do grande advogado e Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. Antonio Nabor Areia Bulhões, dos Profs. Dr. Luiz Alberto Machado e Dr. Sérgio Antonio Médici, e dos Desembargadores Menna Barreto e Dirceu de Mello, então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com a finalidade de revisar o trabalho da primeira, levando em conta as inúmeras sugestões recebidas. O anteprojeto de novo Código Penal foi entregue ao Ministro da Justiça no dia 8 de abril de 1999. Os quase dois anos de atividades nas duas comissões e a esperança de que o país pudesse ter, em tempo razoável, um novo Código Penal levaram-me a adiar a tarefa de dar continuidade à obra. Se um novo Código Penal estava a caminho, melhor esperá-lo.


Como fui ingênuo em pensar que o Congresso Nacional iria discutir e votar a proposta em tempo razoável. Pouco depois da entrega do anteprojeto houve substituição do então Ministro da Justiça, e o trabalho da Comissão foi engavetado. Além disso, minhas atividades na advocacia, cada vez mais intensas e complexas, tornaram ainda mais difícil a conclusão da obra que, felizmente, só agora posso apresentar ao leitor. O advogado militante, diferentemente dos demais operadores do Direito, é um escravo, com prazos a cumprir, os quais começam e terminam, rigorosamente, segundo as normas processuais. Mais uma vez a intenção é apresentar um simples manual, com a utilização da linguagem mais acessível possível, para auxiliar não só o acadêmico de Direito, mas também os bacharéis que se preparam para o ingresso no serviço público, os advogados, juízes, promotores e demais operadores do Direito no seu dia-a-dia profissional. Presentes estarão, sempre que pertinente, a discussão e a reflexão sobre os temas mais interessantes e importantes do Direito Penal. Agradeço, pela inestimável colaboração crítica, à Dra. Thaissa de Moura Guimarães.

O Autor


1 INTRODUÇÃO

AO

ESTUDO

DO

DIREITO PENAL

___________________________ 1.1

CONCEITO DE DIREITO PENAL

1.1.1 Noções básicas A vida em sociedade é complexa e exige de todos a obediência a um conjunto de regras de comportamento. O homem não é absolutamente livre para fazer o que bem quiser, pois vive sob a égide de normas de conduta, que foram criadas por ele mesmo, por meio do Estado, que ele também instituiu. O conjunto das normas estabelecidas em uma sociedade é o direito positivo. As normas jurídicas são comandos a serem obedecidos por todos os homens, pois demarcam o que é, e o que não é, lícito fazer, o permitido e o proibido, o certo e o errado. O estabelecimento de normas de comportamento é exigência da vida em sociedade. Desde o momento em que o homem decidiu agrupar-se, viver em comunidade, tornou-se imprescindível a regulação dessa vida, com a criação de regras de convivência, sem as quais não teria sido possível surgirem e desenvolverem-se tribos, Estados, nações, enfim, o mundo e a realidade de hoje. Quem vive o agitado dia-a-dia contemporâneo nem se preocupa em verificar o quanto essas normas estão presentes em todos os momentos da vida de cada indivíduo. A primeira coisa que o homem faz ao acordar, diariamente, é, quase sempre, acender as luzes de seu quarto e, ao fazê-lo, muitas vezes, ele nem se dá conta de que está consumindo uma mercadoria adquirida mediante o pagamento de um preço. O simples gesto de apertar um interruptor está sujeito ao Direito. Quem adquire um bem deve pagar o preço. Paga-se em dinheiro ou por meio de um documento denominado cheque. A vista ou a prazo. Quem contrata está obrigado e adquire direitos.


2 - Direito Penal – Ney Moura Teles Nenhum momento da vida está distanciado do direito. As relações e os vínculos entre as pessoas também têm seus reflexos no direito: casamento, filhos, separação e divórcio, guarda, visitas, pensão alimentícia, proteção, vigilância, bens, partilha etc. As normas jurídicas objetivam à proteção dos bens considerados importantes, pois que, tendo valor, são, comumente, objeto de ataques; por isso, precisam ser protegidos. A sociedade que preserva a família elabora normas que dizem respeito ao surgimento e à proteção dessa instituição, colocando-a sob o amparo do direito, mediante diversos comandos – ordens a que todos os indivíduos devem obedecer. Nessa mesma linha, há normas que protegem o casamento e a união estável entre homem e mulher. Igualmente, a propriedade privada sobre os meios de produção encontra um número grande de regras jurídicas que a protegem, regulando sua aquisição, transmissão, conservação etc. Todos os valores importantes para a sociedade estão sob a tutela do direito, por meio das várias regras jurídicas. Vida, liberdade, integridade física, trabalho, lazer, meio ambiente, família, propriedade, patrimônio, Estado etc. são valores sociais amparados pelo Direito. Algumas atitudes humanas voltam-se contra esses bens jurídicos, violando a norma jurídica. O comportamento humano que contraria a norma jurídica constitui o ilícito jurídico, o proibido, o que não deve ser. À violação da norma corresponde a sanção, que é a conseqüência jurídica imposta coativamente pelo Estado ao infrator de sua ordem, visando ao restabelecimento do equilíbrio social. Violando o marido um dever do matrimônio, nasce, para a mulher, o direito à separação conjugal, podendo ela procurar o Estado, por meio do Poder Judiciário, que decretará a separação do casal, estabelecendo obrigações daí decorrentes, para os dois, entre si e com relação aos filhos por eles porventura havidos. Se o adquirente não pagar o preço da mercadoria que comprou e recebeu, o vendedor que tiver extraído a nota fiscal poderá emitir uma duplicata e pedir ao juiz que mande executar a dívida. O devedor será chamado para, em 3 dias, pagar o valor do débito, sob pena de lhe serem penhorados – seguros, e até apreendidos, se necessário – tantos bens quantos bastem para satisfazer ao valor devido. Se alguém, por descuido, destrói um livro, um caderno, uma peça de vestuário,


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 3 qualquer outro bem, de outra pessoa, será compelido, pelo Estado – a pedido da pessoa prejudicada –, a pagar o valor da coisa destruída. O Direito está presente na vida dos indivíduos exatamente para proteger seus interesses contra as várias formas de agressões praticadas pelas pessoas. De modo geral, a sanção jurídica consiste numa condenação do infrator ao pagamento de uma indenização, uma prestação pecuniária que, na maioria das vezes, repara o dano sofrido. Noutras, condena-se alguém a fazer ou a não fazer alguma coisa, a dar ou a entregar algo. Os bens jurídicos têm valores diferentes – uns mais, outros menos importantes – do mesmo modo que existem agressões mais e outras menos graves. Alguns comportamentos humanos voltam-se contra determinados bens de modo muito grave, causando-lhes lesões muito grandes. Por exemplo, o gesto daquele que destrói a vida de outro homem. Também a atitude do indivíduo que, com violência, se apodera de um objeto que pertence a outro, ou a ação do homem que obriga a mulher ao ato sexual. Se a conseqüência jurídica para esses comportamentos fosse simplesmente a reparação do dano causado, a vida, no primeiro exemplo, e a liberdade sexual, no último – bens importantíssimos –, não estariam adequadamente protegidos pelo Direito. Pessoas com recursos financeiros suficientes para indenizar o prejuízo sentirse-iam livres para matar e obter relações sexuais dissentidas o tempo todo, na certeza de que, pagando um preço, jamais seriam incomodadas por alguém. Estes fatos mais graves – comportamentos humanos que se voltam gravemente contra os valores sociais mais importantes – são chamados de crimes ou delitos. E para proteger esses bens mais importantes dos ataques mais graves, dos crimes, o Direito estabelece uma conseqüência jurídica, uma sanção também mais severa: a sanção penal ou pena criminal. Sua modalidade mais grave, para os crimes mais graves, em certos países, consiste na própria morte do infrator da norma e, no Brasil, na privação de sua liberdade por um tempo determinado, com a segregação do infrator da norma num estabelecimento

estatal

destinado

ao

cumprimento

das

penas,

denominado

penitenciária.

1.1.2

Definições Ao conjunto das normas jurídicas que tratam dos crimes e das sanções penais


4 - Direito Penal – Ney Moura Teles dá-se o nome de Direito Penal. O Direito Penal era, antigamente, denominado Direito Criminal, expressão talvez mais adequada, por mais ampla e que ainda hoje se encontra incrustada em muitas das instituições atinentes: advogado criminalista, vara criminal, câmara criminal etc. VON LISZT definia o Direito Penal como “o conjunto das prescrições emanadas do Estado, que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência”.1 E MEZGER o entende como “o conjunto das normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado, associando ao delito, como pressuposto, a pena como conseqüência”.2 Outras definições muito próximas: “conjunto de normas jurídicas que o Estado estabelece para combater o crime, através das penas e medidas de segurança” (BASILEU GARCIA)3, “conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica” (MAGALHÃES NORONHA)4, “conjunto das disposições emanadas do Estado que qualificam os crimes e determinam-lhes as respectivas penas” (GALDINO SIQUEIRA)5. Outros doutrinadores entendem o Direito Penal como o “conjunto de normas e disposições jurídicas que regulam o exercício do poder sancionador e preventivo do Estado, estabelecendo o conceito de crime como pressuposto da ação estatal, assim como a responsabilidade do sujeito ativo, e associando à infração da norma uma pena finalista ou uma medida de segurança” (JIMÉNEZ DE ASUA)6, ou “aquela parte do ordenamento jurídico que estabelece e define o fato-crime, dispõe sobre quem deva por ele responder e, por fim, fixa as penas e medidas de segurança a serem aplicadas” (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO).7

1

Tratado de direito penal. Madri: Reus, 1927.

2

Tratado de derecho penal. Madri: Revista de Derecho Privado, 1955. p. 3.

3

Instituições de direito penal. 5. ed. São Paulo: Max Limonad, 1980. p. 9.

4

Direito penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1954. v. 1, p. 11.

5

Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1950. v. 1, p. 17.

6

Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Losada, 1950. v. 1, p. 27.

7

Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 1.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 5 Para outros, é “o complexo de normas positivas que disciplinam a matéria ‘dos crimes e das penas’” (BETTIOL)8, ou “o conjunto de normas jurídicas mediante as quais o Estado proíbe determinadas ações ou omissões, sob ameaça de característica sanção penal” (HELENO CLÁUDIO FRAGOSO).9 Nesse sentido, o Direito Penal é, efetivamente, a parte do ordenamento jurídico que trata do crime e das penas e das medidas de segurança, mas, uma nota da mais alta importância que exsurge do ordenamento jurídico penal fica esquecida em todas as definições transcritas: a liberdade do indivíduo que pode ser coarctada pela incidência das normas penais, mas que, igualmente, é protegida por elas, à medida que só pode ser suprimida nos estritos limites da lei. É o Direito Penal que define o crime, mas também é ele que diz quando um fato aparentemente criminoso é, entretanto, permitido, ou quando, mesmo proibido, não ensejará a aplicação da sanção penal. Melhor, por ser mais completa, a definição de JOSÉ FREDERICO MARQUES, que DAMÁSIO E. DE JESUS abraça: Direito Penal “é o conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade das medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado”.10

1.1.3 Ciência penal A expressão DIREITO PENAL é também sinônima de CIÊNCIA PENAL. Esta, no dizer de FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, é o “conjunto de conhecimentos e princípios, ordenados metodicamente, de modo a tornar possível a elucidação do conteúdo das normas penais e dos institutos em que elas se agrupam, com vistas à sua aplicação aos casos ocorrentes, segundo critérios rigorosos de justiça”.11 Ciência prática, cultural, não visa ao estudo da realidade social; todavia, segundo

8

Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 62.

9

Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 3.

10

Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 5.

11

Op. cit. p. 2.


6 - Direito Penal – Ney Moura Teles ensina HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, ao “jurista moderno é essencial uma postura crítica perante o sistema vigente, para abrir passo às reformas que uma política criminal progressiva recomenda, com base na pesquisa criminológica”.12 Nos dias de hoje, com enorme e preocupante aumento da criminalidade violenta e organizada, assiste-se à tentativa de transformar o Direito Penal no salvador da pátria, como se ele fosse capaz de eliminar o crime e transformar os homens. O legislador brasileiro, ultimamente, tem acenado com a exasperação de penas, criação de novas figuras de crime, com a restrição de direitos e garantias processuais, como se isso resolvesse alguma coisa. Em 1990, entrou em vigor a Lei nº 8.072 – que definiu os crimes hediondos –, elaborada dentro desse espírito e, passados quase vinte anos, nenhum fruto se colheu: simplesmente aumentou a quantidade dos crimes definidos como hediondos. Em 1995, surgiu a Lei nº 9.034, de 3 de maio, no mesmo sentido, como se os crimes resultantes de atividades de organizações criminosas pudessem ser coibidos com mais leis ou mais engenhosas medidas. Cabe ao estudioso levantar-se contra essas investidas autoritárias que apontam apenas para um Direito Penal extremamente rigoroso, que busca mostrar-se como um símbolo, afastando-se dos princípios democráticos. A ciência penal tem caráter dogmático, posto que seu objeto é o direito positivo; todavia, não pode o cientista ignorar a dinâmica e os interesses da sociedade, que, em última análise, é, a um só tempo, fonte e destinatária do Direito Penal. Sociedade brasileira que – após longo período autoritário – fez clara e indiscutível opção por um regime democrático, no qual as liberdades públicas e individuais foram consagradas de modo cristalino e brilhante na Carta Magna de 1988, pilar de toda a ordem jurídica em vigor e da sociedade que a gente brasileira está construindo. Nesse sentido, a construção do direito positivo há de se moldar e nortear – em todos os seus momentos – pela ordem constitucional vigente, de modo a não restar a mínima dúvida ou incongruência, para que, no momento da interpretação da norma penal, não se venha a olvidar dever estar ela em perfeita consonância com a lei maior, a Constituição. O operador do Direito, especialmente o aplicador da norma, não pode jamais –

12

Op. cit. p. 15.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 7 diante de leis que se voltam contra os princípios constitucionais, elaboradas ao sabor de exigências espúrias de manipuladores da opinião pública – olvidar que a lei deve ser interpretada em consonância com a Constituição Federal e não esta ser compreendida em harmonia com aquela. O Direito não está pronto e acabado, e tampouco é imutável. Decisões hoje adotadas pela Suprema Corte, se consideradas injustas, inconstitucionais, ou contrárias aos princípios maiores, da humanidade e do interesse público, haverão de ser combatidas, até que sejam modificadas. É meta possível, que deve ser perseguida sempre, pois o pensamento dos homens muda com o tempo e pela luta dos que não desanimam, e a composição da Corte Suprema também se altera ao longo dos anos. A quem faz o Direito – juízes, advogados e promotores de justiça, especialmente – cabe estudar e pugnar pelo estabelecimento de um Direito Penal verdadeiramente democrático. Sem ele, não haverá espaço para a vida livre e digna.

1.1.4 Características do direito penal 1.1.4.1

Positivo

O Direito Penal é positivo: é aquele que o Estado promulgou. Positivo quer dizer posto, colocado, mostrado à sociedade, publicado, dado a conhecer a todos os indivíduos, em vigor, por meio de um conjunto de documentos emanados do Poder Legislativo, as leis, que são obrigatórias. Dizer que é positivo, contudo, não é o mesmo que afirmar que fora do direito legislado não existiria Direito Penal. A afirmação de sua positividade, como ensina BETTIOL, só tem sentido desde que não se queira fazer dela “um elemento essencial da noção do direito, dada a existência de um direito natural que nenhuma positividade jamais pôde sufocar, e desde que não se negue a utilidade de um enquadramento das normas penais na perspectiva filosóficocultural do período histórico no qual o jurista é chamado a atuar”.13 A positividade do direito não pode impedir a incidência de princípios superiores, como o da humanidade e o da dignidade do homem, e tampouco de causas que excluam a proibição ou que desculpem certos fatos definidos como crime, os quais, muito embora não escritos, devem imperar no momento da aplicação do Direito.

13

Op. cit. p. 105.


8 - Direito Penal – Ney Moura Teles Além disso, não pode fazer impedir a crítica do ordenamento penal, destinada não apenas à obtenção das modificações que se fizerem necessárias, mas, principalmente, à sua aplicação mais justa, que atenda aos interesses da sociedade, que o constrói. Essa positividade submete-se à interpretação, que haverá de se harmonizar com as outras ciências afins, a criminologia, a política criminal, o direito processual penal, inclusive o das execuções penais, e não pode impedir o conhecimento e a crítica das incongruências, injustiças, violências, deficiências e necessidades do Direito Penal, para que se encontrem caminhos que o tornem mais harmônico com os interesses dos indivíduos.

1.1.4.2

Público

O Direito Penal tem natureza pública, uma vez que a proteção dos bens jurídicos colocados sob sua tutela interessa a toda a sociedade. Ainda que sejam, muitas vezes, individuais, dada sua importância, a natureza e a gravidade dos ataques proibidos sob a ameaça da pena criminal, a proteção desses bens é indispensável à manutenção e ao desenvolvimento da vida social. Por essa razão, e para retirar do indivíduo a possibilidade de vingar-se do agressor de seu bem jurídico, o direito de punir o infrator da norma penal é privativo do Estado, que irá, quando necessário, em nome da coletividade, aplicar a sanção penal. A relação jurídica que nasce com a prática do crime é estabelecida entre o infrator da norma penal e o Estado, e, mesmo nos casos em que a lei reserva ao ofendido a faculdade de iniciar a ação penal, o direito de punir continua nas mãos exclusivas do Estado. A Lei nº 9.099/95 – que criou os juizados especiais criminais, permitindo a transação (a composição, o acordo) e a suspensão condicional do processo penal – não retirou do Estado a titularidade do ius puniendi, o direito de punir o infrator da norma penal. Autorizando a composição, com a importante preocupação com a reparação do dano sofrido pela vítima, e evitando a aplicação de penas privativas de liberdade, nem por isso o Estado perdeu o direito de punir o agente do crime. “Nem mesmo quando se sujeita a ação de determinados delitos à iniciativa discricionária das partes, ou quando se criam institutos, como o


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 9 perdão ou a renúncia, nem assim o Estado abre mão de sua competência, posto que foi ele, pela lei penal, que delegou, parcial e revogavelmente, aos particulares, apenas um poder iniciador ou extintor da ação nos casos, nas formas e com as conseqüências que estabelecer.”14 Em verdade, apenas avança a sociedade na construção de um novo Direito Penal, primacialmente voltado para a proteção do bem jurídico e distante de objetivos como punição, vingança ou retribuição. Mas, para que ele não se afaste de seus objetivos democráticos, deve o direito de punir permanecer, sempre, nas mãos exclusivas do Estado.

1.1.4.3

Constitutivo, Original e Autônomo

Discute-se muito sobre ser o Direito Penal meramente sancionador ou, diferentemente, constitutivo, original e autônomo. O Direito Penal seria um complemento dos demais ramos do direito, surgindo como o sancionador, diante das situações em que os outros ramos não forem eficazes, ou seria um ramo que, por si só, constituiria um direito original e autônomo? Para os adeptos da primeira idéia, a norma penal estabelece uma sanção mais severa para a violação de preceitos contidos, primariamente, noutros ramos do ordenamento jurídico. Assim, diversas normas jurídicas protegem a vida humana, cabendo, porém, ao Direito Penal protegê-la de sua destruição por ato humano. A norma penal seria secundária, acessória, em relação a outras normas do direito civil, entre elas, em geral, a do art. 186 do novo Código Civil, que considera ilícito o ato daquele que tiver violado direito e causado dano, inclusive moral, e a do art. 927 da Lei Civil, que obriga à reparação do dano. MIRABETE defende que, em princípio, o ilícito penal não tem autonomia, não se podendo, portanto, falar em caráter constitutivo do Direito Penal, já que “a norma penal é sancionadora, reforçando a tutela jurídica dos bens regidos pela legislação extrapenal”. 15 Apesar disso, o Direito Penal protege outros bens não tutelados por outros ramos do direito e, de conseguinte, “o mais correto é afirmar, como Zaffaroni, que ‘o

14 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Comentários à lei dos juizados especiais cíveis e criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 256.

15

Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 24.


10 - Direito Penal – Ney Moura Teles Direito Penal é predominantemente sancionador e excepcionalmente constitutivo’”. 16 Na verdade, ainda que muitas vezes o preceito civil e o preceito penal cuidem dos mesmos bens jurídicos, não se pode olvidar que o primeiro visa à proteção de um interesse privado, ao passo que o segundo objetiva à tutela do interesse social. “Ainda quando pareça que um interesse privado é amparado pela norma penal, isso ocorre (...) apenas por via indireta, pois é sempre e apenas um interesse estatal a ser garantido.” 17 A sanção penal não é acessória, nem secundária, mas estabelecida não só pela verificação da insuficiência ou ineficácia das outras sanções – civis, administrativas, tributárias, previdenciárias, trabalhistas etc. –, o que não quer dizer venha incidir a posteriori, em segundo plano, num outro momento, ou alternativamente, mas, principalmente, em razão da importância do bem jurídico e da gravidade do ataque a ele dirigido, que se quer evitar. Até porque a definição de crime independe da prévia existência de um ilícito civil, tributário ou administrativo, que nem precisa ser construído, quando se verificar previamente a sua ineficácia. A construção das figuras de crimes atende, precipuamente, ao interesse coletivo de preservar de determinados ataques – os mais graves – os bens jurídicos mais importantes, mediante a imposição de uma sanção mais severa. Assim, não só em razão da natureza da sanção, mas, principalmente, do conteúdo de seus preceitos, o Direito Penal não é meramente sancionador, mas autônomo, original e constitutivo.

1.1.4.4

Valorativo

O Direito Penal tem caráter valorativo, porquanto proíbe os comportamentos humanos que se voltam contra os mais importantes valores ético-sociais, selecionados pela sociedade, dos ataques mais graves. Ao fazê-lo, pretende, é certo, que os homens se conduzam em consonância com as exigências da vida social. Além do fundo ético que o inspira, o Direito Penal revela a indispensável necessidade de aquilatar, pesar e medir todos os valores da coletividade, de modo a, selecionando-os, escolher apenas os mais importantes e buscar colocá-los a salvo dos ataques mais graves, visando impedir sejam objeto dessa modalidade de agressão, venha de onde vier.

16

Idem. p. 25.

17

BETTIOL. Op. cit. p. 112.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 11 De qualquer modo, todos os comportamentos humanos são valorados pelo Direito Penal, sejam os proibidos – aos quais corresponderá a sanção penal, como resposta do Estado –, sejam os demais, que, por serem permitidos, são, igualmente, objeto da valoração. Como diz Bettiol, “apenas não é possível a valoração jurídica quando falte a ação humana”.18

1.1.5 Direito penal objetivo e direito penal subjetivo Direito Penal objetivo é o conjunto das normas jurídicas que definem os crimes, cominam as penas, bem assim as demais normas de natureza penal, que tratam dos institutos e das questões penais. São as normas contidas no Código Penal e nas demais leis penais, ou, no dizer de DAMÁSIO E. DE JESUS, “é o próprio ordenamento jurídicopenal, correspondendo à sua definição”. 19 Direito Penal subjetivo é o ius puniendi, o direito de punir o infrator da norma penal, aquele que vier a ser condenado. É o direito estatal de punir. Seu único titular é o Estado, ainda quando a lei exigir a intervenção do ofendido como condição para a formação do processo destinado a apurar a verdade e conferir ao Estado o título indispensável para a execução da pena.

1.1.6 Direito penal comum e direito penal especial Para DAMÁSIO E. DE JESUS, é comum o Direito Penal que se aplica a todos os cidadãos, e especial aquele que se aplica a uma classe deles, pois o critério diferenciador entre o direito comum e o especial “está no órgão encarregado de aplicar o direito objetivo”.20 Assim, o Código Penal Militar é especial; todavia, o Direito Penal Eleitoral não, pois a quase totalidade da justiça eleitoral é exercida por juízes da justiça comum. Já MIRABETE, lembrando que tal distinção não encontra apoio na legislação, afirma que “pode-se falar em legislação penal comum em relação ao Código Penal, e em legislação penal especial como sendo as normas penais que não se encontram

18

Op. cit. p. 118.

19

Op. cit. p. 7.

20

Op. cit. p. 8.


12 - Direito Penal – Ney Moura Teles no referido Estatuto”.21 O primeiro critério guarda relação com a especialidade do órgão do judiciário aplicador do Direito, que, de seu lado, existe exatamente para decidir questões específicas das relações, também especiais, reguladas por um ramo específico do Direito. Assim, o Direito Penal e a justiça militar, bem como o Direito Penal eleitoral e a Justiça Eleitoral. A Justiça Eleitoral não se realiza pela justiça comum, apenas, circunstancialmente, a maioria dos juízes eleitorais são, simultaneamente, integrantes da justiça comum, por uma questão de economia e praticidade.

Indiscutível sua

especialização, que decorre da autonomia do direito eleitoral, da natureza dos crimes por ele definidos, de seus sujeitos, do bem jurídico tutelado e, ainda, das normas do processo eleitoral. O segundo critério tem como elemento diversificador pura e simplesmente estar o direito objetivo contido no Código Penal, ou fora dele, e nada mais. Dessa forma, pensamos, não há nenhum elemento especializante, até porque não seria desarrazoado dizer, ao contrário, que comum é o direito que não está no Código e especial, porque codificado, o que nele se contém.

1.1.7 Direito penal e direito processual penal Direito Penal, simplesmente, ou Direito Penal material ou substantivo, é o conjunto das normas que definem os crimes, cominam as penas e estabelecem os princípios e normas gerais de Direito Penal. O Código Penal, a Lei das Contravenções Penais e as demais leis tratam dos crimes e das penas, e das relações daí derivadas. Direito Processual Penal é o conjunto das normas de aplicação do Direito Penal. Conquanto seja disciplina autônoma, não se pode aceitar a antiga denominação de Direito Penal adjetivo.

1.2

O BEM JURÍDICO E O FIM DO DIREITO PENAL Para a própria existência, a conservação e o desenvolvimento de toda e qualquer

sociedade, é indispensável a proteção de seus pilares, suas bases, as coisas que valem, que são consideradas interessantes, que são pretendidas, desejadas, almejadas, sonhadas, enfim, que têm importância para os indivíduos.

21Op.

cit. p. 26.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 13 As coisas importantes, materiais ou espirituais, podem ser chamadas de valores ou de bens, porque valem. E, exatamente porque são importantes e têm valor, podem ser atacadas e, por isso, devem ser protegidas. Entre os vários bens que existem na vida, um número grande deles é selecionado e colocado sob a proteção do direito. São eles os chamados bens jurídicos, na definição de ASSIS TOLEDO, “valores ético-sociais, que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob a sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”.22 São bens jurídicos a vida, a liberdade, a propriedade, o casamento, a família, a honra, a saúde, enfim, todos os valores importantes para a sociedade. Entre os bens jurídicos, alguns, os mais importantes, são colocados sob a proteção do Direito Penal, que seleciona algumas formas de ataques ou de perigo de lesões – as mais graves –, proibindo-as sob a ameaça da pena criminal. Definindo o crime e impondo, como conseqüência, a pena, diz-se comumente que a tarefa do Direito Penal é a luta contra o crime, como se fosse esse seu objetivo. Enganam-se os que assim pensam. O crime não pode ser combatido eficazmente pelo Direito Penal, que, aliás, se volta para as conseqüências e não para suas causas. Qualquer fenômeno social indesejável há de ser combatido por meio de ações sociais que ataquem suas causas, e não com aquelas que apenas se voltem contra seus efeitos. É lição de vida elementar, velha, a de que não se cura a doença com medicamentos que alcançam apenas a dor, ou que façam tão-somente ceder a febre, sem que se combata a causa da moléstia. Querer combater a criminalidade com o Direito Penal é querer eliminar a infecção com analgésico. O crime há de ser combatido com educação, saúde, habitação, trabalho para todos, lazer, transportes, enfim, com condições de vida digna para todos os cidadãos. É, portanto, tarefa para toda a sociedade, para o Estado, para os organismos vivos da sociedade civil, e não para o Direito Penal. Além disso, não é o Direito Penal instrumento para a transformação dos homens em seres perfeitos.

22

Op. cit. p. 16.


14 - Direito Penal – Ney Moura Teles “A tarefa imediata do Direito Penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos. Nisso, aliás, está empenhado todo o ordenamento jurídico. E aqui entremostra-se o caráter subsidiário do ordenamento penal: onde a proteção de outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou revelar-se insuficiente, se a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve estender-se o manto da proteção penal, como ultima ratio regum. Não além disso.”23 É óbvio que, ao proteger os bens jurídicos, o Direito Penal, por extensão, empresta uma contribuição importante para o combate à criminalidade, como conseqüência natural de sua atuação. Mas não mais que isso. A observação é importante, para que não se procure buscar a resolução dos problemas da criminalidade com leis penais mais severas, com restrições à liberdade, com a criação de novos crimes, enfim, com o endurecimento do Direito Penal. É dever do estudioso e de seu operador demonstrar, no seio da sociedade, fora de seu ambiente de trabalho, sempre, enfim, a limitação do Direito Penal, seu caráter fragmentário e, principalmente, sua tarefa de proteção jurídica dos bens mais importantes das lesões mais graves, para que sobre ele não se lancem as injustas acusações de ineficiência e inoperância, nem que lhe continuem a chamar para tudo salvar, ou tudo resolver. Conformado a sua missão jurídica, o Direito Penal tem muito a oferecer à sociedade que o constrói, desde que, evidentemente, sejam respeitados seus princípios fundamentais, especialmente os que o informam como de intervenção mínima, democrática e, essencialmente, tutelar. Não pode intervir a todo momento, nem onde não seja indispensável, e só pode atuar para proteger o bem jurídico.

1.3

SANÇÃO PENAL A sanção do Direito Penal é de uma severidade enorme: priva, em regra, o infrator

da norma de sua liberdade, por certo tempo, mantendo-o num lugar diferente do seu, longe de seus entes queridos, suas coisas, sua profissão, sua vida, junto de outros, que nem conhecia, sob a égide de um conjunto de regras antes jamais vistas, numa inominável violência contra o ser humano, pois atinge o bem mais sagrado que ele tem. 23

TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 14.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 15 A liberdade é bem de maior valor que a vida, pois vida sem liberdade não é vida. Qual é o fundamento da pena privativa de liberdade? Com base em que pode o Estado intervir de modo tão violento na vida do indivíduo? São três as principais e tradicionais teorias que procuram responder a essa questão.

1.3.1 Teoria da retribuição Para esta teoria, a pena não tem uma finalidade, pois contém um fim em si mesma: realizar a justiça, mediante a retribuição do malfeito pelo infrator da norma penal, infligindo-lhe outro mal, que é o sofrimento da pena criminal, seja ela de morte, de suplício, de privação de liberdade, perpétua ou por tempo determinado. A pena, segundo Hegel, seria a negação da negação do Direito, que é o crime. Pelo sofrimento do condenado, o direito lesado restaria restabelecido. Tal teoria não apresenta um objetivo a ser alcançado com a pena, o que, de plano, é um absurdo, pois não é lógico, racional, nem humano, possa o Estado infligir um mal a um cidadão, sem nenhum objetivo, sem nenhuma finalidade a ser alcançada. Esse raciocínio é absolutamente inaceitável, especialmente nos tempos de hoje, pois “tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança humana, e que a retribuição tome a seu cargo a ‘culpa de sangue do povo’, expie o delinqüente, etc., tudo isto é concebível apenas por um ato de fé que, segundo a nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é válido para uma fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal”.24 Não fundamenta nem limita o poder do Estado que a partir daí pode construir as definições de crimes que bem entender, e impor as penas que bem quiser, na qualidade e quantidade que desejar, porque se trata, pura e simplesmente, de retribuir o mal causado a um interesse do indivíduo ou da sociedade. Infelizmente, ainda há os que entendem a pena como simples retribuição, não sendo desarrazoado enxergar tal visão no próprio art. 59 do Código Penal, que diz que

24

ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega, 1986. p. 19.


16 - Direito Penal – Ney Moura Teles ela será fixada “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. A pena como exclusiva retribuição não pode ser aceita porque está absolutamente divorciada da missão do Direito Penal, que é a proteção dos bens jurídicos.

1.3.2 Teoria da prevenção especial Para esta teoria, o fim da pena é prevenir novos delitos do infrator da norma penal. Enquanto preso, não cometeria novos crimes. Se o condenado fosse corrigível, seria corrigido. Se apenas intimidável, ficaria intimidado e, se nem corrigível, nem intimidável, restaria, pelo menos, neutralizado, durante o cumprimento da pena. ROXIN faz objeções. Essa teoria, tanto quanto a da retribuição, não permite delimitação do conteúdo do poder punitivo do Estado, seja na criação dos crimes, seja na quantificação das penas. Além disso, para ser coerente, teria que manter o corrigível preso até que se lhe desse a correção – mesmo que precisasse permanecer preso indefinidamente –, o que seria um absurdo. Por outro lado, se a idéia é prevenir novos crimes do infrator da norma penal, não haveria necessidade da pena quando se verificasse a inexistência de perigo de repetição da infração. Criminosos eventuais, por fatos que muito provavelmente não mais se repetiriam, não deveriam ser punidos, pois não haveria nenhum perigo de voltarem a delinqüir. Exemplo: homicidas dos campos de concentração, que vivem, hoje, plenamente integrados na sociedade, sem necessidade de ressocialização. Inúmeros são os casos de indivíduos que cometem crimes – mormente passionais – e que nunca mais voltam a cometer qualquer ato ilícito. Tais pessoas não precisariam ser ressocializadas; no entanto, devem sofrer a pena. A que título e com que fim? A teoria não responde. 25 Se eles, apesar de terem cometido um crime, não representam nenhum perigo, porque não têm personalidade voltada para o crime, porque o crime cometido fora, em verdade, um acidente, por que mantê-los encarcerados, se não é necessária qualquer prevenção especial? Esta teoria só consegue justificar a pena para aqueles que, tendo cometido um crime, voltariam, necessariamente, a cometer outros, mas como descobrir quem é esse

25

ROXIN, Claus. Op. cit. p. 21-22.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 17 que, obrigatoriamente, vai reincidir? Impossível tal descoberta, pelo menos enquanto Deus não vier a operar o direito dos homens.

1.3.3 Teoria da prevenção geral A razão de ser da pena criminal estaria nos efeitos intimidatórios sobre a generalidade das pessoas, que, diante da ameaça abstrata e concreta da pena, ficariam motivadas a não transgredir a norma penal. Tanto quanto as duas teorias anteriores, também esta não delimita o campo do que pode ser definido como crime, deixando ao Estado plena liberdade para criar novas figuras criminosas e estabelecer toda a espécie de penas, em qualidade e quantidade. Daí o grande perigo de, com o objetivo de intimidar e prevenir novos crimes, exacerbar, em demasia, as quantidades das penas e criar novos delitos. É o que vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos, infelizmente. Com relação à criminalidade organizada, sofisticada, então, esta função intimidatória é absolutamente nula. Exemplo brilhante são as extorsões mediante seqüestros no Brasil. Elevadas à categoria de crimes hediondos – apenadas com reprimendas bem mais severas e contempladas com diversas restrições às garantias processuais e constitucionais –, seu número tem aumentado, vertiginosamente, após a vigência da lei que procurou intimidá-las. De nada valeram, portanto, penas mais severas. A mais importante crítica a essa teoria vem, novamente, de ROXIN: “Como pode justificar-se que se castigue um indivíduo não em consideração a ele próprio, mas em consideração a outros? Mesmo quando seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que possa ser justo que se imponha um mal a alguém para que outros omitam cometer um mal. Já KANT o criticou por atentar contra a dignidade humana, tendo afirmado que o indivíduo não pode ‘nunca ser utilizado como meio para as intenções de outrem, nem misturado com os objetos do direito das coisas, contra o que o protege a sua personalidade natural’.”26 Apesar de tudo, não se pode negar que a pena exerce, na prática, essa função, já que muitas são as pessoas que deixam de cometer crimes exatamente pelo medo de

26

Op. cit. p. 24.


18 - Direito Penal – Ney Moura Teles virem um dia, em razão deles, sofrer a pena criminal.

1.3.4 Teoria unificadora dialética Contrapondo-se às teorias monistas e à teoria meramente unificadora das três concepções referidas, CLAUS ROXIN elaborou a Teoria Unificadora Dialética, com base no seguinte raciocínio. O Estado só pode punir as lesões de bens jurídicos se for imprescindível, se não forem eficazes os outros ramos do direito. Se o direito civil, o direito tributário ou o direito administrativo se mostrarem impotentes para proteger certos bens, coibindo certos comportamentos, então o problema deve ser levado para o âmbito do Direito Penal. Só neste caso. Conquanto seja a mais severa das sanções, a pena criminal só pode ser utilizada em último caso, excepcionalmente. Dessa forma, não pode o Estado proibir comportamentos não lesivos, ainda que sejam imorais. Assim, o Direito Penal está limitado pelo grau elevado da importância do bem jurídico e pela alta gravidade da lesão a ele causada. Nesse sentido, a pena criminal – bem limitada – só pode ter como primeira finalidade a prevenção geral. Abstratamente, intimidar a generalidade das pessoas com o fim de prevenir as lesões mais graves aos bens mais importantes. Sendo o objetivo do Direito Penal a proteção de apenas alguns bens, os mais importantes, de apenas algumas formas de lesões, as mais graves, então é claro que a criação dos crimes, com a cominação das penas, tem como fundamento prevenir, de modo geral, a ocorrência desses ataques. Nesse sentido, admite-se a prevenção geral, mas, é claro, apenas para as lesões mais graves aos bens mais importantes. Num segundo momento, quando falha a prevenção geral, a pena é concretizada ao infrator culpado pelo fato cometido, que deverá suportar o mal porque, como membro da coletividade, deve responder por seus atos, na medida da sua responsabilidade. Serve a pena, então, falhada a prevenção geral, não só para proteger os bens jurídicos mais importantes das lesões mais graves, de modo geral, mas também, a partir da violação do preceito, para prevenir a continuidade do indivíduo na atividade agressiva dos bens jurídicos mais importantes, observado, é claro, o limite da responsabilidade individual do criminoso. Ocorre, aqui, a dita prevenção especial. Por último, a pena só pode ser compreendida se tiver, também, o sentido de buscar a ressocialização do delinqüente. Nada pode justificar querer impor a alguém


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 19 alguma coisa, se não houver um interesse ético, superior, de proporcionar ao que agrediu um bem da sociedade, condições para aprender a respeitar os valores éticosociais. Só faz sentido a pena que tiver como finalidade educar o homem que delinqüiu, para mostrar-lhe a importância e as vantagens do respeito aos bens alheios, de modo que, apreendendo novos conceitos, possa voltar a viver em liberdade. Em síntese: “uma teoria unificadora dialética, como a que aqui se defende, pretende evitar os exageros unilaterais e dirigir os diversos fins da pena para vias socialmente construtivas, conseguindo o equilíbrio de todos os princípios, mediante restrições recíprocas”. A “idéia de prevenção geral vê-se reduzida à sua justa medida pelos princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como pela exigência de prevenção especial que atende e desenvolve a personalidade”.27 A teoria que justifica a pena, assim, é, dialeticamente, a composição do que há de aceitável em cada uma das particularmente inaceitáveis teorias. Como dizia HEGEL, a quantidade pode transformar-se em qualidade. Aqui, partes aceitáveis de três todos inaceitáveis, agregadas, podem constituir-se num único razoável ou, pelo menos, qualitativamente melhor. Infelizmente, a pena privativa de liberdade é uma violência ainda necessária, mas apenas para alguns – muito poucos – agentes de fatos considerados crimes, os mais graves, praticados contra os bens mais importantes. Uma minoria de delinqüentes. A maior parte dos que violam as normas penais não pode sofrer penas severas, que, longe de trazerem qualquer benefício a quem as sofre, proporcionam, ao contrário, males irreparáveis, que se transmitem a todos os familiares do condenado.

1.3.5 Conclusão A realidade indica que a pena privativa de liberdade é um instituto falido. Podese concluir, com facilidade, que ela não alcança, a contento, seus fins de prevenção geral, nem especial, muito menos o fim ressocializador ou socializador. O crime é um fenônemo social que muito provavelmente não será extirpado da

27

ROXIN, Claus, Op. cit. p. 44.


20 - Direito Penal – Ney Moura Teles face da Terra. O Direito Penal, enquanto protetor dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves, deve, nesse sentido, encontrar outras modalidades de penas, para responder aos delitos praticados. A privação da liberdade não intimida e, o que é mais grave, não só não recupera o condenado, como também o transforma negativamente. Não podia ser diferente, pois não se ensina a viver em liberdade, respeitando os valores sociais, suprimindo a liberdade do educando. É como desejar ensinar um bebê a caminhar atando-lhe as pernas. Ele jamais vai conseguir. O caminho é o da limitação, cada vez maior, da presença do Direito Penal na vida das pessoas. Somente quando a lesão ao bem jurídico mais importante for muito grave é que o Direito Penal deve ser chamado. E, enquanto não se encontram as alternativas, somente para a criminalidade violenta é que se responderá com penas privativas de liberdade. Aos crimes de menor gravidade devem corresponder penas não privativas de liberdade – de prestação de serviços à comunidade e de restrições de direitos, e outras formas que devem ser criadas, inventadas, emanadas da consciência da sociedade. Importante passo nesse sentido deu o legislador brasileiro com a Lei nº 9.099/95, que criou os juizados especiais criminais, permitindo a transação em Direito Penal – o acordo com a vítima do crime, mediante a reparação do dano e aplicação de penas não privativas de liberdade – e, mais importante, a suspensão condicional do processo, com a imposição de condições para o processado, que, durante certo tempo, se submeterá a um chamado período de prova, em que será observado seu comportamento, e, no fim, sendo merecedor, extinguir-se-á o processo, sem julgamento, sem condenação nem absolvição, esquecendo-se o que aconteceu. Outro passo maior foi o dado pelo legislador de 1998, com a Lei nº 9.714, que criou novas penas restritivas de direito, ampliando o âmbito de sua incidência, alcançando condenados a penas de até quatro anos de privação de liberdade. O caminho a continuar trilhando é esse, e não o da exasperação das penas e do endurecimento do Direito Penal.


2 NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DO DIREITO PENAL

___________________________ 2.1

HISTÓRIA GERAL Dizem que o primeiro foi o Direito Penal. Que o direito nasce com a sociedade

não se pode negar, não sendo desarrazoado concordar com essa afirmação, quando se compreende o direito como as primeiras manifestações de vingança do homem contra o homem, primeira forma de sanção, visando à preservação de interesses dos indivíduos em grupo. O certo, mesmo, é que a sociedade primitiva era bastante rudimentar, mas, desde os primórdios, talvez com o próprio surgimento da vida grupal, deve ter existido a pena, como resposta do homem ao mal causado por um de seus semelhantes. O homem primitivo, assim que passou a viver em grupo, sentiu a necessidade de reprimir aquele que tivesse agredido algum interesse de seus membros e também de punir o estranho que se tivesse colocado contra algum valor individual ou coletivo. O primeiro punia-se com a perda da paz, que consistia em sua proscrição da tribo, e o segundo, o estrangeiro, punia-se com a vingança de sangue. As penas têm, primitivamente, forte conteúdo religioso, pois a paz era originária dos deuses e, tendo sido violada, impunha-se a vingança, o castigo, contra seu agressor. A doutrina examina a história do Direito Penal, delimitando-a em várias fases de desenvolvimento.

2.1.1 As fases de vingança e o talião A primeira fase da evolução do Direito Penal, denominada Vingança Privada, mostra um “Direito Penal” praticado pelo próprio ofendido ou por alguém que dele se apiedasse, a quem ficava reservado o direito de voltar-se contra o ofensor, sem nenhuma limitação.


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles Além de fazer a justiça pelas próprias mãos, as penas não guardavam a devida proporção com o delito que visavam responder. Verdadeira vingança de sangue, tratava-se da lei do mais forte, cujo interesse individual se colocava acima de tudo. Nesta fase, não existia ainda um Estado, mas apenas famílias, clãs e tribos, com nível muito baixo ainda de organização social. À medida que as sociedades primitivas se desenvolvem, instala-se um poder social, baseado nas religiões, que passa a controlar melhor as relações sociais, e vai modificando-se paulatinamente a natureza da sanção penal. Então, já não se trata da vingança do particular, do interesse individual, mas da vingança dos deuses, cuja ira há de ser aplacada com o castigo daquele que desatendeu a sua vontade. “A essa época os sacerdotes são magistrados. As leis são ditadas em nome de Deus, e o legislador invoca seu nome e pede sua inspiração para redigi-las, quando não as recebe diretamente do Ser Supremo.”1 As sanções continuam extremamente severas. Quando o poder político evolui e se pode falar na existência do Estado primitivo, também o Direito Penal evolui e passa a ser aplicado em função do interesse coletivo, distinto do individual. Este é o único traço de evolução que se pode verificar. O talião – olho por olho, dente por dente – surge na história da humanidade como limitação da vingança privada. Apesar de hoje o acharmos um absurdo, foi um avanço, à medida que veio estabelecer certa proporcionalidade entre o delito e a pena, até então inexistente. Como exemplo, transcreva-se a seguinte norma penal do Código de Hamurábi, da Babilônia, o mais antigo texto legislativo conhecido: “Se alguém bate numa mulher livre e a faz abortar, deverá pagar dez siclos pelo feto. Se essa mulher morre, então deverá matar o filho dele.” No Êxodo, dos Hebreus: “Aquele que ferir, mortalmente, um homem, será morto.” Na Lei das XII Tábuas, dos Romanos: “Se alguém fere a outrem, que sofra a pena de Talião, salvo se houver acordo.” Surge também a composição, que consistia no pagamento em valor econômico, pelo dano causado, de que é exemplo a norma das Leis Mosaicas: “Se um homem furtar um boi ou um carneiro, e o matar ou vender, pagará cinco bois pelo boi e quatro 1

CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Estrutura do direito penal. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky, 1976. p. 13.


Notas sobre a História do Direito Penal - 3 carneiros pelo carneiro.” No direito hebreu, há notícia da legítima defesa: “Se o ladrão surpreendido de noite em flagrante delito de arrombamento for ferido de morte, não haverá homicídio. Mas se o sol já se tiver levantado, haverá homicídio.”

2.1.2 Direito grego Entre os gregos, é possível encontrar a distinção entre os crimes públicos, com penas coletivas aplicadas aos sucessores do delinqüente, e os delitos privados, em que a responsabilidade era individual, da maior relevância, pois aponta para o que se conhece hoje no Direito Penal moderno: a responsabilidade individual.2

2.1.3 Direito romano Em Roma, desde a formação, o crime e a pena, predominantemente, têm um caráter público, pois que se entendia o crime como atentado à ordem estabelecida, e a pena era a resposta estatal, existentes, também, as penas privadas primitivas, executadas pelo pater familias, que aplicava o talião e a composição. A palavra crimen referia-se aos crimes de natureza pública e delictum aos de natureza privada. A principal pena pública era a de morte, denominada supplicium, cominada para os crimes de traição à nação, de morte do cidadão livre, o chamado parricidium, de incêndio, de falso testemunho, de suborno do juiz e de sátira injuriosa.3 No período da república, vão diminuindo os crimes privados, desaparecendo a vingança privada4, assumindo o Estado suas funções de jurisdição, tendo, por certo e pouco tempo, imperado ali algo parecido com o princípio da legalidade. Mais adiante, a pena de morte, aplicada pelo fogo, pela forca, substituindo a crucificação, pela espada, volta a ser aplicada aos crimes mais graves, presentes também penas de trabalhos forçados. Deve o estudioso atentar para o fato de que os romanos tinham já uma noção de

2

CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Op. cit. p. 22.

3

SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1950.

4

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 27-29.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles dolo – intenção – e de culpa – negligência –, noções fundamentais do Direito Penal moderno, que serão objeto de estudo adiante, no momento certo, e já consideravam a legítima defesa e o estado de necessidade institutos importantíssimos do Direito Penal atual, também objeto deste estudo. “Se Roma conduziu à vitória o Direito Penal público, e, em particular, a doutrina da culpabilidade, de influência ainda em outros aspectos, no complexo, porém, do direito da época imperial, com a sua incerteza, seu vigor, seu arbítrio, não representa um modelo.”5

2.1.4 Direito germânico Antes da invasão romana, o direito dos germanos era consuetudinário, existindo já os delitos públicos – praticados contra o interesse coletivo, punidos com a perda da paz pública, o que permitia a qualquer pessoa matar o delinqüente – e os crimes privados, inclusive o homicídio, punidos com a vingança e a composição. Após a invasão, o direito germânico vai adquirir feições publicísticas, limitando, a princípio, e depois extinguindo a vingança de sangue. Vale ressaltar a existência das penas de morte, corporais, como a mutilação, e o exílio, mantida em grande parte a composição.

2.1.5 Direito canônico Direito Canônico é o direito estabelecido pela Igreja Católica, cujas normas estão escritas em canons, que equivalem aos artigos de lei, e destinava-se, no princípio, a regular a vida interna da Igreja, impondo regras e disciplinas a seus membros. Com o crescimento da igreja e sua influência sobre os governantes, seu direito passou, aos poucos, a ser aplicado às demais pessoas, às populações em geral. Igualmente, o direito canônico vai exercer enorme influência sobre os ordenamentos jurídico-penais de toda a Europa, como se verá. Algumas de suas características devem ser ressaltadas. Primeiramente, procurou estabelecer um sistema de penas mais suave e moderado, com a abolição da pena de morte. Suas penas eram espirituales e temporales, aquelas consistindo em penitências e na excomunhão, todas com o sentido

5

SIQUEIRA, Galdino. Op. cit. p. 44.


Notas sobre a História do Direito Penal - 5 da retribuição do mal realizado, mas igualmente voltadas para o arrependimento do réu, chamadas, por isso, penas medicinales. Mantinha e desenvolvia princípios romanísticos acerca da responsabilidade subjetiva, contrapondo-se ao objetivismo dos germanos, e “proclamou a igualdade de todos os homens, acentuando o aspecto subjetivo do crime”.6 A penitenciária – estabelecimento para o cumprimento de penas privativas de liberdade – tem sua origem no direito canônico, que instituiu as penas carcerárias, como substituição das penas mais graves.

2.1.6 Direito medieval Na Idade Média, o Direito Penal, conhecido como Direito Comum, é o resultado da junção do direito romano, do direito germânico e do direito canônico com os direitos locais. Por longos anos, em toda a Europa o que vai existir é um Direito Penal extremamente rigoroso, com penas cruéis, infamantes, extensivas aos familiares do condenado, corporais, mutilação, torturas, a de morte executada pelas formas mais bárbaras e violentas – a forca, a fogueira, a roda, a empalação, o esquartejamento – e sem qualquer respeito aos direitos da personalidade do homem. Esse direito era aplicado sem possibilidade de o acusado defender-se por meio de um processo em que a tortura era meio legítimo para a obtenção da verdade. “Fragmentos da legislação de antigo povo conquistador, reunidos por ordem de um príncipe que reinou em Constantinopla, há doze séculos, juntados depois aos costumes dos lombardos e amortalhados em volumoso calhamaço de comentários pouco inteligíveis, são o antigo acervo de opiniões que uma grande parte da Europa prestigiou com o nome de leis; e, ainda hoje, o prejuízo da rotina, tão nefasto quando difundido, faz com que uma opinião de CARPOSOW, uma velha prática preconizada por CLARO, um suplício que FRANCISCO imaginou com bárbara complacência, continuem sendo orientações friamente seguidas por esses homens, que deveriam tremer ao decidirem da vida e da sorte de seus concidadãos.”7

6 FRAGOSO,

7

Heleno Cláudio. Op. cit. p. 33.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus, 1974. Primeiro parágrafo do prefácio da edição de Milão, em 1764, sintetizando o que era o Direito Penal em toda a Europa.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles

2.1.7 Período humanitário Foi no século XVIII que pensadores europeus constituíram, com suas idéias, um dos mais importantes movimentos da história da humanidade: o Iluminismo, que vai revolucionar o planeta. Também no Direito Penal, as idéias iluministas vão-se refletir, a partir da publicação, em Milão, no ano de 1764, da obra Dei delitti e delle pene, escrita por CESARE BECCARIA, na qual combate com vigor o uso da tortura, a pena de morte, a atrocidade das penas, e aponta para que a pena seja aplicada apenas para que o delinqüente não volte a delinqüir, bem assim como exemplo para toda a comunidade. Exige a prevalência do princípio da legalidade, que será estudado no próximo capítulo, com a elaboração de leis penais claras, com a proibição de o juiz interpretá-las, e defende um processo em que seja assegurado o direito de defesa ao acusado. A partir das idéias de BECCARIA, inaugura-se no Direito Penal o que se chama de período humanitário e, não muito se passa, surgem leis aderindo aos preceitos por ele defendidos. Em 1767, na Rússia, Catarina II promove profunda reforma legislativa. Na Toscana, em 1786, são abolidas a tortura e a pena de morte. Na mesma linha, na Áustria e na Prússia as idéias iluministas se concretizam em leis humanitárias. Em 1789, a Revolução Francesa vai culminar com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que consagra os fundamentais direitos humanos, ainda hoje atual.

2.1.8 Período científico As idéias iluministas fortaleceram-se e inspiraram a necessidade de se tratar o direito como ciência. Já no século XIX vai ocorrer o desdobramento daquelas idéias iniciais, dando origem a discussões doutrinárias acerca dos vários aspectos do Direito Penal, com a evolução do pensamento, no sentido do encontro das soluções para os problemas que vão sendo conhecidos. Costuma-se, para efeitos didáticos, tratar a história a partir das chamadas “Escolas Penais”, denominações dadas às várias correntes de pensamento do Direito Penal.

2.1.8.1

Escola clássica


Notas sobre a História do Direito Penal - 7 HELENO FRAGOSO

8

ensina que não existiu realmente uma Escola “Clássica”,

mas que este nome foi dado, pejorativamente, pelos positivistas, quando se referiam a toda a atividade doutrinária dos juristas que os antecederam, cujo pensamento combatiam. Suas idéias, que promanam de BECCARIA, foram desenvolvidas e disseminadas principalmente por CARMIGNANI, que escreveu Elementa juris criminalis, publicado em 1847, ROSSI, autor do Trattato di diritto penale, de 1859, e FRANCESCO CARRARA, autor do inigualável Programa del corso di diritto criminale, publicado em 1859. Seus princípios básicos são: (1) o crime é um ente jurídico, é, pois, a violação do direito; (2) a responsabilidade penal funda-se na liberdade do homem, pois só pode ser punido aquele que agiu livremente; (3) a pena é a retribuição jurídica do mal, restabelecendo-se, assim, a justiça.

2.1.8.2

Escola positiva

No final do século XIX, ganham corpo e dominam as idéias positivistas, opondo-se ao racionalismo, atacando o pensamento clássico de combate ao crime, com base em estudos antropológicos do delinqüente e sociológicos do crime, propugnando por um sistema penal de prevenção especial. Seus precursores são CESARE LOMBROSO, autor de L’uomo delinquente – no qual desenvolve a idéia do criminoso nato – e Antropologia criminal, e RAFFAELE GARÓFALO, e seus expoentes são GRISPIGNI, ALTAVILLA e ENRICO FERRI. Seus princípios básicos: (1) o crime é um fenômeno natural e social; (2) o fundamento da responsabilidade penal, que resulta de ser o homem um ser social, é a periculosidade do delinqüente; (3) a pena é medida defensiva da sociedade e seu objetivo é recuperar o delinqüente ou, pelo menos, neutralizá-lo; (4) o delinqüente é um anormal do ponto de vista psíquico, podendo ser classificado em tipos.

2.1.8.3

Escola moderna alemã

No último quartel do século XIX, surge, na Alemanha, um movimento reformista liderado pelo austríaco VON LISZT, autor do programa de Marburgo e das Tarefas político-criminais, combatendo o pensamento de LOMBROSO, sobre a existência do criminoso nato, e mostrando que as raízes do crime situavam-se nas 8

Op. cit. p. 41.


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles relações sociais. Defendia VON LISZT a necessidade de conhecer as causas do crime, especialmente as de natureza antropológica e sociológica, para a construção de uma pena que conseguisse combater o crime, com uma função eminentemente preventiva especial. “A disputa entre as escolas, muito acesa em fins do século passado e ao início deste, começou a atenuar-se após a Primeira Grande Guerra, e é hoje, na Alemanha, puramente histórica. A corrente de Von Liszt passou a admitir a possibilidade de realizar a reforma pretendida, mesmo dentro do sistema da pena de culpa, fundada na idéia de retribuição, ao passo que a tendência clássica admitia, por seu turno, a necessidade de completar o sistema das penas retributivas através de medidas de segurança, tendo por base apenas a periculosidade do agente e a função preventiva. (...) A escola de Von Liszt transformou-se, assim, numa corrente eclética (a que se chamou também de escola da Política Criminal), que veio a exercer enorme influência na legislação penal, pois acolhia as vigorosas exigências de reformas, inspiradas na necessidade de mais eficiente combate à criminalidade, mantendo o enquadramento essencial do Direito Penal clássico.”9

2.1.9 Outras tendências Na Itália, surgem opiniões que se aproximavam das idéias de VON LISZT, negando o livre-arbítrio, defendidas por ALIMENA e IMPALLOMENI; na França, uma chamada Escola Sociológica Francesa, representada por LACASSAGNE e MANOUVRIER, que, como é óbvio, colocam no centro de suas preocupações as causas sociais do crime. KARL BINDING publica, na Alemanha, no final do século XIX e início do século XX, importantíssimas obras doutrinárias: As normas e sua transgressão, Manual de direito penal, Compêndio de direito penal e um Tratado sobre a parte especial, além de diversas monografias, nas quais proporciona uma contribuição indispensável à moderna teoria do Direito Penal. Sua obra vai influenciar toda a moderna doutrina penalista na Alemanha, na Itália, no Brasil, enfim, em vários países do mundo. Na Itália, ARTURO ROCCO, que foi Ministro da Justiça, liderou a corrente do tecnicismo jurídico, destinada a lutar pela restauração dos critérios jurídicos na ciência

9

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit. p. 48.


Notas sobre a História do Direito Penal - 9 do Direito Penal. O século XX, como não poderia deixar de ser, foi rico na evolução do Direito Penal; todavia, ainda é cedo para contar toda sua história. O que se deve, no momento, ressaltar é a necessidade atualíssima de entender o Direito Penal como um simples e limitado instrumento de proteção de bens jurídicos – não como combatente do crime, purificador dos homens – e de verificar que a pena privativa de liberdade, apesar de concebida como meio para obter a reinserção do condenado, reeducando ou educando, no meio social, está lamentavelmente fracassada, como não poderia, mesmo, deixar de ter acontecido.

2.2

HISTÓRIA NO BRASIL Antes de 1500, as sociedades existentes em nosso território, primitivas,

rudimentares, encontravam-se ainda na fase da vingança privada, com a presença do talião e da perda da paz. É claro que o Direito dos primitivos habitantes desta terra nenhuma influência vai ter na formação do Direito Penal brasileiro, de sorte que, para se falar da história do Direito Penal brasileiro, é preciso, inicialmente, falar do Direito Penal português. Os historiadores recomendam tratá-lo em três fases distintas: o período colonial, o imperial e o republicano.

2.2.1 Período colonial 2.2.1.1

Ordenações Afonsinas

Quando Cabral aportou na Bahia, vigoravam em Portugal as Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446, por D. Afonso V, além, é certo, de normas oriundas do direito romano, canônico e costumeiras. No famigerado Livro V é que se encontravam as normas de Direito Penal. Era um tempo ainda da vingança pública e, como tal, algumas de suas notas características não podiam deixar de ser: a crueldade das penas, a inexistência do direito de defesa e do princípio da legalidade, penas arbitrárias e desigualmente fixadas pelo julgador. Felizmente, pouca ou quase nenhuma aplicação tiveram tais normas em nosso território, pois só tiveram vigência até 1514, nos primeiros anos após a chegada dos portugueses, em que não havia, ainda, nenhuma cidade neste vasto continente, nem um arremedo de Estado neste que hoje é o Brasil.


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles

2.2.1.2

Ordenações Manuelinas

Editadas em 1514, por ordem de Dom Manuel, o Venturoso, para consolidar o direito português, novamente é no Livro V das Ordenações que é encontrado o Direito Penal, que iria valer por quase um século, até 1603. Não há diferenças substanciais entre essas e as anteriores Ordenações. Ainda na fase da vingança pública, nenhuma evolução se verificou. Era um tempo em que os séculos transcorriam sem grandes transformações na esfera do pensamento. O Direito Penal de então era tão cruel que a prisão não era, em regra, pena criminal, mas medida cautelar, processual, destinada a guardar o condenado até a execução da pena, de morte, corporal, de aflição ou de suplício. Ainda que rara, existia a pena de servidão, que submetia ao cativeiro o mouro ou judeu que se fizesse passar por cristão. No primeiro século da existência dessa grande Colônia, esse direito era aplicado pelos donatários das capitanias hereditárias, que, como senhores, juízes, verdadeiros reis, interpretavam, diziam e executavam o Direito Penal, como se fossem deuses.

2.2.1.3

Ordenações Filipinas

Editadas em 1603, as Ordenações de Felipe II, de Espanha, reinando também em Portugal, vigoraram mesmo depois de 1640, ano da restauração da independência de Portugal, vindo punir, em 1792, no Brasil, o mártir da independência, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Em quase nada elas se distinguiam das Ordenações Manuelinas e Afonsinas. Punições severas e cruéis, inexistência do princípio da reserva legal e do direito de defesa, penas arbitradas desproporcionalmente pelos juízes, e desiguais, conforme o status do apenado, e punição de delitos religiosos e absurdos, como a heresia e o benzimento de animais. Penas de fogo em vida, de ferro em brasa, de mãos cortadas, de tormentos, além, é claro, da transmissão da infâmia aos descendentes do criminoso, revelam o grau de crueldade e desumanidade desse direito. Foram mais de três séculos de terror absoluto, abaixo da linha do equador, para a massa dos primeiros habitantes, construtores desta sociedade, ainda hoje, majoritariamente marginalizada. É óbvio que, já naquela época, uma parcela ficava à margem de tudo isso, os


Notas sobre a História do Direito Penal - 11 fidalgos, os cavaleiros, os escudeiros, os desembargadores etc.10 Quando BECCARIA já não era uma novidade, as colônias americanas proclamavam sua independência, os franceses sua Declaração dos Direitos do Homem, os portugueses e habitantes da colônia do Brasil ainda viviam sob o mais cruel regime penal e processual penal. Era o território brasileiro, como diria o poeta, um imenso Portugal.

2.2.2 Período imperial Com alguns anos de atraso, o ideal iluminista consegue algum sucesso no Brasil, a partir da vinda da família real em 1808 e da emancipação política, de 1822, quando o Príncipe D. Pedro resolve tornar-se o Imperador do Brasil. Um mês antes do 7 de setembro, aboliu a tortura e certas penas cruéis e infamantes, determinando a adoção do princípio da responsabilidade pessoal, proibindo a transmissão da pena aos sucessores do condenado11. No entanto, quanto ao mais, ainda vigoravam as Ordenações Filipinas. A primeira Constituição Brasileira, a do Império, de 1824, incorpora importantes princípios: a lei penal não terá efeito retroativo; todos são iguais perante a lei; nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente; e determinou a abolição dos açoites, torturas, marcas de ferro quente e penas cruéis. Por meio de Lei, de 11-8-1827, são criados no Brasil os cursos jurídicos, com uma escola em Olinda e outra em São Paulo, que, depois, veio a tornar-se a conhecida Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, posteriormente e até hoje integrante da Universidade de São Paulo. Em 1830, surge, sob influência da Escola Clássica, o Código Criminal do Império, incorporando os princípios da responsabilidade moral e do livre arbítrio, segundo o qual não há criminoso sem má-fé, sem conhecimento do mal e sem a intenção de praticá-lo. As penas cominadas são: a morte na forca (para os crimes de insurreição de escravos, homicídio agravado e roubo com morte), a de galés – “trabalho forçado,

10

DOTTI, René Ariel. Um pouco de história luso-brasileira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 10, p. 179, 1995.

11

BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: s. n., 1959. t. 1, p. 162.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles levando os condenados calcetas aos pés e corrente de ferro, juntos ou separados”12 –, prisão simples e prisão com trabalhos, banimento, degredo e desterro, multa e suspensão de direitos. É óbvio, para os cidadãos livres. Os escravos, enquanto semoventes, podiam, é claro, ser açoitados. As mudanças que se seguiram ao advento do Código Criminal foram enormes, culminando com a abolição da escravatura e a proclamação da República, que ocorrem em momento em que, após diversas modificações na legislação vigente, já se procurava elaborar um novo Código.

2.2.3 Período republicano A abolição do regime escravista, aliada às várias modificações da legislação penal, impunha a necessidade de um novo Código, e, quando é proclamada a República, o ministro da Justiça do Governo Provisório de Deodoro, Campos Sales, encarrega o Professor João Baptista Pereira – que antes da República já trabalhava na elaboração de uma reforma – da tarefa de organizar um projeto de novo código, que em três meses foi apresentado e rapidamente incorporou-se ao ordenamento jurídico. Antes da vigência do novo Código, em 20-9-1890, o Governo Provisório editou o Decreto nº 774, que aboliu a pena de galés, fixou em 30 anos o tempo da antiga prisão perpétua e estabeleceu a prescrição das penas. As penas previstas eram: prisão celular, reclusão, prisão com trabalho obrigatório, prisão disciplinar, interdição, suspensão e perda de emprego público, com ou sem inabilitação para o exercício de outro, multa e banimento, que veio a ser abolido pela Constituição de 1891. “Art. 45. A pena de prisão celular será cumprida em estabelecimento especial com isolamento celular e trabalho obrigatório.” “Art. 47. A pena de reclusão será cumprida em fortalezas, praças de guerra, ou estabelecimentos militares.” “Art. 48. A pena de prisão com trabalho será cumprida em penitenciárias agrícolas, para esse fim destinadas, ou em presídios militares.” “Art. 49. A pena de prisão disciplinar será cumprida em estabelecimentos industriais especiais, onde serão recolhidos os menores até a idade de 21 anos.”

12

SIQUEIRA, Galdino. Op. cit. p. 71.


Notas sobre a História do Direito Penal - 13 O Código Penal de 1890, de inspiração clássica, num tempo em que o positivismo fazia sucesso, recebeu muitas críticas, e com seu nascimento surgiu a idéia de reformá-lo13. A Constituição de 1891 incorporou princípios fundamentais: “ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada”; “nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente”, tendo expressamente abolido as penas de galés (confirmando o Decreto do Governo Provisório), de banimento e a pena de morte, exceto para os crimes militares em tempo de guerra. “Quer por seus defeitos, quer pelo tempo que vigorou esse estatuto, numerosas foram as leis extravagantes que o completaram, tornando, às vezes, aos homens do direito, embaraçosa a consulta e árdua a pesquisa. Foi o Des. Vicente Piragibe encarregado, então, de reunir em um só corpo o Código e as disposições complementares, daí resultando a Consolidação das Leis Penais, que se tornou oficial pelo Decreto nº 22.213, de 14 de dezembro de 1932, e cuja vigência findou com o advento do atual diploma, com a redação original de 1940.14” A Constituição de 1934 traz novos preceitos: “A lei penal só retroagirá quando beneficiar o réu”, “não será concedida a Estado estrangeiro extradição por crime político ou de opinião, nem em caso algum de brasileiro.” A Carta de 1937 apresenta, num único artigo, importante conquista e um enorme retrocesso: “Não haverá penas corpóreas perpétuas. As penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos anteriores. Além dos casos previstos na legislação militar para o tempo de guerra, a lei poderá prescrever a pena de morte para os seguintes crimes: a) tentar submeter o território da Nação ou parte dele à soberania de Estado estrangeiro; b) tentar, com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, contra a unidade da Nação, procurando desmembrar o território sujeito à sua soberania; c) tentar por meio de movimento armado o desmembramento do território nacional, desde que para reprimi-lo se torne necessário proceder a

13

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1978. v. 1, p. 60.

14

NORONHA, E. Magalhães. Op. cit. p. 59.


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles operação de guerra; d) tentar, com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, a mudança da ordem política ou social estabelecida na Constituição; e) tentar subverter por meios violentos a ordem política e social, com o fim de apoderar-se do Estado para o estabelecimento da ditadura de uma classe social; f) o homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade.” Surge em 1940 o novo Código Penal, por meio do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro, que entrou em vigor no dia 1º-1-1942, o qual, apesar do autoritarismo da Constituição então em vigor, “incorpora fundamentalmente as bases de um direito punitivo democrático e liberal”15. Em 3-10-1941, é expedido o Decreto-lei nº 3.688, estabelecendo a Lei das Contravenções Penais. O novo sistema elege a privação da liberdade como pena principal, a reclusão e detenção, para os crimes, e prisão simples para as contravenções penais, e as medidas de segurança para os incapazes e perigosos. O Código orienta-se para uma política criminal de transação e conciliação, abraçando princípios das duas escolas, clássica e positiva. “Era e é um Código Penal eclético, como se falou e declara a Exposição de Motivos. Acende uma vela a Carrara e outra a Ferri. É aliás o caminho que tomam e devem tomar as legislações contemporâneas.”16 Em 1969, foi promulgado por decreto um novo Código Penal, para ter vigência a partir de 1º-1-1970, adiada várias vezes, vindo o mesmo a ser revogado em 1978, sem jamais ter vigorado. Na década de 80, os problemas eram enormes. O sistema penitenciário mostrava uma superpopulação carcerária jamais vista, com um número elevadíssimo de mandados de prisão sem cumprimento, por impossibilidade de encarcerar novos delinqüentes. Ao mesmo tempo, novas orientações doutrinárias povoam as discussões entre os juristas do país. Em 1984, a parte geral do Código Penal – que trata dos princípios básicos do Direito Penal – é integralmente reformada, por meio da Lei nº 7.209, de 11 de junho, com a introdução de novos e modernos conceitos, e a consolidação do novo sistema de cumprimento de penas – com progressão de regime mais severo, fechado, a mais

15

FRAGOSO, Heleno C. Op. cit. p. 63.

16

NORONHA, E. Magalhães. Op. cit. p. 61.


Notas sobre a História do Direito Penal - 15 brando, aberto – e também a regressão, a possibilidade de novas modalidades de penas, chamadas alternativas, de prestação de serviços à comunidade e restrição de direitos. A Lei nº 7.210, da mesma data, reformulou ampla e positivamente a execução penal. Como o Código de 1940, a Reforma de 1984 foi gerada sob a égide de um regime político autoritário, mas, felizmente, constituiu grande avanço no rumo da democratização do Direito Penal, colocado entre os da atualidade que consagram os mais modernos princípios.

2.2.4 Tendências atuais De 1984 para cá, o país continuou crescendo e com ele as desigualdades sociais, a miséria, a fome, a desnutrição, o analfabetismo, a exploração da maior parte da população, e, como não poderia deixar de ser, a criminalidade. A situação é pior do que a da década de 80, no que diz respeito à superpopulação carcerária e aos mandados de prisão expedidos e não cumpridos, apesar do novo sistema estabelecido pela Reforma. A propósito, é bom lembrar que o sistema progressivo de cumprimento de penas não pôde ser implementado a contento porque a União e os Estados federados não cumpriram suas obrigações, no sentido da construção dos estabelecimentos adequados. Construir presídios não rende voto, apesar de render propinas. Mesmo assim, os governantes não investiram no sistema penitenciário, mas a nova sistemática de execução penal foi e continua sendo um grande avanço. Nos últimos anos, com o aumento da criminalidade, especialmente a violenta, e a organizada, dos grandes centros urbanos, surge uma tendência de endurecimento do tratamento penal e processual penal – com o aumento da quantidade das penas, proibição ou restrição da progressão para regime mais brando, criação de novas figuras de crimes, restrições ao direito de liberdade durante o processo – como se fosse o Direito o instrumento indicado para combater o crime. Exemplo desse pensamento equivocado foi a Lei nº 8.072, de 25-7-1990, que dispôs sobre os crimes hediondos. Aumentou penas, o prazo de prisão temporária, proibiu liberdade provisória, determinou o cumprimento integral das penas aplicadas para os que cometerem tais crimes em regime fechado, o que, felizmente, foi, depois de muito tempo e muita dificuldade, considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles A definição de crimes hediondos atendeu a um comando da Constituição de 1988, que no art. 5º, XLIII, mandou o legislador defini-los e considerá-los – tanto quanto a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e o terrorismo – insuscetíveis de fiança, graça e anistia, benefícios que serão estudados no Capítulo 23 deste manual. Infelizmente, o legislador constituinte, quando mandou, e o ordinário, quando obedeceu e exorbitou a ordem constitucional – pois restringiu direitos que a lei maior não mandou –, não conseguiram resistir às pressões do Movimento da Lei e da Ordem, a chamada ideologia da law and order, nascida e cultivada na sociedade norteamericana, e que vem ganhando, nos últimos tempos, cada vez mais adeptos no país. A Corte Suprema também acolheu, por longo tempo, esse pensamento, abandonando-o só depois. Este movimento, segundo JOÃO MARCELO ARAÚJO JR., rege-se por uma política criminal sustentada nos seguintes princípios: “a) ‘a pena se justifica como um castigo e uma retribuição no velho sentido’ não se confundindo esta expressão com o que hoje se denomina por ‘retribuição jurídica’; b) ‘os chamados delitos graves hão de castigar-se com penas severas e duradouras (morte e privação de liberdade de longa duração); c) as penas privativas de liberdade impostas por crimes violentos hão de cumprir-se em estabelecimentos penitenciários de máxima segurança, submetendo-se o condenado a um excepcional regime de severidade distinto dos demais condenados; d) o âmbito da prisão provisória deve ampliar-se de forma que suponha uma imediata resposta ao delito; e) deve haver uma diminuição dos poderes individuais do juiz e um menor controle judicial na execução que ficará a cargo, quase exclusivamente, das autoridades penitenciárias’.17” A lei hedionda foi votada às pressas, em razão da repercussão de extorsões mediante seqüestros praticados contra alguns dos homens mais ricos do país, e os frutos por ela colhidos estão à mostra de todos: os crimes ditos hediondos, estupros, latrocínios, extorsões mediante seqüestro, entre outros, aumentam dia a dia, ano a ano. Em 1994, o legislador ordinário, atendendo a pressões desenvolvidas por uma única pessoa, mãe de uma atriz de televisão – aliás, da Rede Globo de Televisão – vítima de homicídio, incluiu, entre os crimes hediondos, o homicídio qualificado e – para não parecer que só atendia a ela – também o homicídio “praticado em atividade típica de

17

Apud FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 34-35.


Notas sobre a História do Direito Penal - 17 grupo de extermínio”. Em 3-5-1995, foi sancionada a Lei nº 9.034, que “dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”, chamada de Lei do Crime Organizado, proibindo liberdade provisória, impedindo o direito de apelar em liberdade, e determinando o regime fechado como início de cumprimento da pena, além de outras medidas de natureza processual que atendem ao movimento da law and order. Apesar de existirem, em tramitação, no Congresso Nacional, diversos projetos de lei aumentando penas, criando novas espécies de crimes, no sentido do endurecimento do Direito Penal, algumas importantes inovações legislativas ingressaram no ordenamento jurídico-penal brasileiro. A Lei nº 9.099/95 criou os juizados especiais criminais – para julgar os crimes de menor potencial ofensivo – e permitiu a suspensão condicional do processo penal, para crimes de médio potencial ofensivo. Maior foi o avanço da Lei nº 9.714/98, que criou duas novas penas restritivas de direitos – a prestação pecuniária e a perda de bens e valores – e permitiu sua aplicação para condenados a penas privativas de liberdade de até quatro anos, caminhando no rumo de evitar-se a prisão desnecessária, reservando-a apenas para as hipóteses de crimes graves e de condenados de intensa periculosidade. No final de 1997, o Ministério da Justiça constituiu comissão composta por Luiz Vicente Cernicchiaro, Evandro Lins e Silva, Damásio Evangelista de Jesus, Ney Moura Teles, Ela Viecko Volkmer de Castilho, Licínio Leal Barbosa, René Ariel Dotti, Miguel Reale Jr. e Juarez Tavares, incumbindo-a de elaborar anteprojeto de Código Penal, que deveria ser publicado para conhecimento da sociedade e para receber suas sugestões. Os três últimos abandonaram os trabalhados da comissão, mas os demais elaboraram anteprojeto que foi publicado no Diário Oficial da União, esteve à disposição dos interessados na Internet, no site do Ministério da Justiça, e recebeu milhares de sugestões e críticas de importantes segmentos da sociedade brasileira, valendo destacar as encaminhadas pela OAB-MG, Ministério Público Federal, Procuradoria do Estado de São Paulo, Universidade de Fortaleza, dentre outras entidades. As sugestões foram examinadas por uma comissão revisora dos trabalhos, integrada por Luiz Vicente Cernicchiaro, Damásio Evangelista de Jesus, Ela Viecko Volkmer de Castilho, João de Deus Menna Barreto, Dirceu de Mello, Antonio Areias Nabor Bulhões, Sérgio de Oliveira Médici, Luiz Alberto Machado, Licínio Leal Barbosa e Ney Moura Teles, que elaboraram o projeto de Código Penal, para encaminhamento


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles ao Congresso Nacional, pelo Presidente da República. O projeto modernizava a parte especial do Código, com importantes propostas de um direito penal de intervenção mínima e democrático, protegendo os valores efetivamente importantes da sociedade brasileira.

Não chegou, todavia, a ser

examinado pelo Poder Legislativo. Diversas mudanças pontuais vem sendo feitas no Código Penal e em outras leis penais, o que agride a harmonia do sistema. Melhor é uma reforma global. Evidentemente, ao Congresso Nacional, como legítima fonte produtora do Direito que é, caberá discuti-lo, aperfeiçoá-lo e transformá-lo em lei.


3 PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS

DO DIREITO PENAL

___________________________ 3.1

INTRODUÇÃO A Constituição é a base – o alicerce – do Estado e da sociedade. É nela que estão

insertas as normas básicas de organização estatal e os princípios fundamentais sobre os quais se assentam todas as relações entre os indivíduos. Na Constituição do Estado, estão estabelecidos os primados sobre os quais tudo o mais existe. É na Carta Magna que está dito: república ou monarquia, parlamentarismo ou presidencialismo; propriedade privada sobre os meios de produção ou propriedade coletiva, estatizada: capitalismo ou socialismo. Desde as questões mais complexas aos mecanismos mais simples da vida, do sistema financeiro à relação de emprego, todos encontram, na Carta Constitucional de um Estado, suas origens, suas bases, suas raízes, suas diretrizes e regras. Na Constituição Federal brasileira, estão estabelecidos todos os princípios que regem o Direito Civil, o Direito Administrativo, o Comercial, Trabalhista, Tributário, Processual e, não podia ser diferente, também o Direito Penal. Nela está determinado que a base da sociedade é a família, a qual também se constitui por meio da união estável entre homem e mulher. Ali está escrito que nenhum tributo será estabelecido senão para ser cobrado no exercício seguinte. E está definido que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Está inscrito, felizmente, que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. São os fundamentos, os alicerces, que sustentam a vida da sociedade brasileira, do homem. Todas as demais normas do direito devem harmonizar-se com os princípios constitucionais, sob pena de se tornarem inválidas. Todo o Direito Penal, igualmente, é construído com base em princípios inseridos na Constituição Federal, os quais norteiam sua construção e a sua vida, devendo, de conseqüência, ser respeitados. As normas penais ordinárias que vierem a ser


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles elaboradas em dissonância com os princípios constitucionais simplesmente não terão, em substância, nenhum valor, ainda que sejam votadas, promulgadas, publicadas etc. Tudo aquilo que colidir com o preceito constitucional será banido do ordenamento jurídico, ainda que formalmente nele tiver ingressado. Por isso, para se estudar o Direito Penal, o ponto de partida deve ser o estudo de suas bases, seus alicerces, seus princípios mais importantes, os quais, por essa razão, estão escritos na Constituição Federal. São eles: o princípio da legalidade, o princípio da extra-atividade da lei penal mais favorável, o princípio da individualização da pena, o princípio da responsabilidade pessoal, o princípio da limitação das penas, o princípio do respeito ao preso e o princípio da presunção da inocência.

3.2

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

3.2.1 Enunciado e breve histórico O inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal estabelece: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, preceito repetido no art. 1º do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena, sem prévia cominação legal”, que já se encontrava no art. 153, § 16 da Carta Constitucional de 1967, no § 27 do art. 141 da Constituição de 1946, no art. 122 da Constituição de 1937, no § 26 do art. 113 da Constituição de 1934, no § 15 do art. 72 da Constituição de 1891 e que constava do § 11 do art. 179 da Constituição do Império, de 1824, assim: “ninguém será sentenciado senão por autoridade competente e em virtude de lei anterior e na forma por ela prescrita”. Já o art. 1º do Código Criminal do Império, de 1830, dizia: “não haverá crime, ou delito sem uma lei anterior que o qualifique”, e o art. 33, “nenhum crime será punido com penas que não estejam estabelecidas nas leis, nem com mais, ou menos, daquelas que estiverem decretadas para punir o crime no grau máximo, médio ou mínimo, salvo o caso em que aos juízes se permitir o arbítrio”. O Código Penal de 1890, no art. 1º, consignava: “Ninguém poderá ser punido por fato que não tenha sido anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não estejam previamente estabelecidas. A interpretação extensiva por analogia ou paridade não é admissível para qualificar crimes, ou aplicar-lhes penas.”


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 3 O princípio, apesar de expressar-se, comumente, na fórmula latina nullum crimen, nulla poena sine lege, não tem, como muitos pensam, sua origem no Direito Romano. Aí, apesar da existência de definições de crimes e penas, a punição sem lei anterior era permitida, a não ser num pequeno tempo, o de Silla, e com a ordo judiciorum publicorum, em que a analogia passou a ser proibida1. No mais, todo o Direito Romano aceitou a aplicação de penas sem prévia definição legal de crimes. Durante toda a Idade Média, em que prevaleceu o direito consuetudinário, “permitiu-se o plenum arbitrium dos juízes. Foi a idade de ouro das penas arbitrárias. Ao juiz só era vedado, quando muito, excogitar uma espécie nova de pena. E ao lado do arbítrio do juiz ainda havia o arbítrio do rei, de que foram atestado, em França, as célebres lettres de cachet”2. JOSÉ FREDERICO MARQUES ensina que “as raízes do princípio de reserva legal nas normas punitivas encontram-se no Direito medieval, mormente nas magníficas instituições do Direito ibérico. Nas Cortes de Leão, em 1186, declara AFONSO IX, sob juramento, que não procederia contra a pessoa e propriedade de seus súditos, enquanto não fossem chamados ‘perante a Curia’. E nas Cortes de Valladolide foi proclamado, em 1299, que ninguém pode ser privado da vida ou propriedade enquanto sua causa não for apreciada segundo o ‘fuero’ e o Direito. Em 1351, essas mesmas Cortes pediram a Pedro I que ninguém fosse executado ou preso sem investigação do foro e direito, no que acedeu o rei. E essa promessa foi depois renovada com ênfase por Henrique II, nas Cortes de Toro, em 1371”3. Na Inglaterra, o princípio constou, pela vez primeira, na Magna Charta de 1215, ao tempo de João Sem Terra, com a proibição da analogia para definir crimes e aplicar penas. Aí também se inscreveu o gérmen da idéia de limitar-se o poder do Estado em face da liberdade do indivíduo que, mais tarde, ganharia foros de princípio maior de todas as nações civilizadas. A fórmula latina foi elaborada por Feuerbach, no princípio do século XIX, mas o princípio constou dos Bills of Rights, as constituições das colônias inglesas na América do Norte, e foi incluído entre os direitos fundamentais do homem no Congresso de 1

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 1, t. 1, p. 26.

2

Idem p. 29.

3

Tratado de direito penal. Campinas: Bookseller, 1997. p. 181-182.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles Filadélfia, de 1774, na Constituição Federal Americana de 1787, e consagrou-se no art. 8º da Declaration des droits de l’homme et du citoyen, de 28-8-1789, assim: “nul ne peut être puni qu’en vertu d’une loi établié et promulgée antérieurement au delit et légalement appliquée”.

3.2.2 Significado É o mais importante dos princípios do Direito Penal, a base, a viga mestra, o pilar que sustenta toda a ordem jurídico-penal. Seu significado é claro e límpido. Só pode alguém receber uma resposta penal, uma pena criminal, se o fato que praticou estivesse, anteriormente, proibido por uma lei sob a ameaça da pena. O homem só pode sofrer a pena criminal – ser privado da sua liberdade, em regra – se tiver realizado um comportamento previamente definido como crime, por uma lei em vigor. Por mais imoral que seja uma conduta humana, a ela só corresponderá uma sanção penal se, antes de sua prática, tiver entrado em vigor uma lei considerando-a crime. O incesto – prática de atos sexuais entre pai e filha ou mãe e filho, ou entre irmãos, sem violência, real ou moral –, apesar de, moralmente, repugnar a todos, não é crime e, por isso, não merecerá nenhuma sanção do direito. “Antes de ser um critério jurídico-penal, o nullum crimen, nulla poena sine lege é um princípio político pois representa um anteparo da liberdade individual em face da expansiva autoridade do Estado. Em reação à estatolatria medieval, adotou-o a Revolução Francesa, incluindo-o em fórmula explícita, entre os direitos fundamentais do homem; e somente o retorno ao ilimitado autoritarismo do Estado pode explicar o seu repúdio nos últimos tempos, como aconteceu na Rússia soviética e na Alemanha de Hitler.”4 Significa, pois, o princípio que só a lei pode definir crimes e cominar penas. A edição de normas sobre crimes e penas é matéria reservada à lei, daí o nome de Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal. O Princípio quer dizer: lei, anterior, no sentido estrito e certa. Só a lei ordinária, aprovada no Congresso Nacional, com observância de todas as regras que regem o processo legislativo, vedada esta atividade ao legislador estadual ou distrital e municipal. Igualmente, não se admite a criação de crimes e penas por

4

HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 12.


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 5 meio de Medida Provisória ou de Lei Delegada. Do mesmo modo, em nenhuma hipótese, permite-se a utilização da analogia para incriminar comportamentos ou cominar penas. Por outro lado, a Lei Penal há de ser certa, exata, precisa, proibida a utilização de fórmulas excessivamente genéricas ou de interpretação duvidosa, devendo, pois, o legislador, no momento de definir os comportamentos humanos que deseja considerar crimes, evitar a utilização de expressões vagas ou ambíguas, a fim de que todos os indivíduos possam, com facilidade, compreender a extensão e o alcance das normas de proibição. Modernamente, na doutrina do magistral ALBERTO SILVA FRANCO, o princípio adquire novos significados. Segundo o maior dos penalistas brasileiros da atualidade, o caráter material do princípio da legalidade impede a definição de crimes que “retratem atitudes internas, que se refiram a valores puramente morais, que incriminem simples estados ou condições existenciais, que não comprometam interesses básicos da sociedade, que mencionem atos materiais não lesivos de nenhum bem jurídico, que se apóiem mais de uma vez no mesmo pressuposto fático ou que tratem igualmente situações desiguais ou desigualmente situações iguais, fundando no puro arbítrio as razões da igualdade ou da desigualdade”.5 Isso quer dizer, entre outras coisas, que não pode o legislador definir como crime o simples pensar do homem, nem tampouco atitudes exclusivamente morais. Por isso, seria inconstitucional a lei que considerasse crime o simplesmente ser alguém homossexual. Nesse sentido, o princípio da legalidade dá origem aos princípios do fato, da lesividade, do ne bis in idem, e da igualdade, cuja importância adquire, no dia-a-dia, maior relevância. Só haverá crime se houver um fato; impossível a incriminação de atitudes puramente psíquicas do homem. O Direito Penal não se importa com o simples pensamento do homem, com o pecado, tarefa das religiões. Pouco importa o que ocorre puramente no interior do pensamento humano. O homem pode desejar ardentemente, com toda a sinceridade, a morte de seu desafeto, e isso nada importa para o Direito Penal, desde que esta seja apenas uma atitude interna.

5

Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 24.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles Pode orar o tempo todo, para que ocorra tal ou qual fato lesivo, e se não passar dessa atitude puramente psíquica, tal acontecimento não passa de um indiferente penal. Por essa razão, o legislador está obrigado a só construir definições de crimes que constituam fatos concretos, e não meros acontecimentos psicológicos, sem conseqüência concreta. Do mesmo modo, não pode o legislador incriminar comportamentos humanos que não sejam suficientemente idôneos para causar lesão ou, no mínimo, ameaçar de lesão o bem jurídico. É o mais importante dos primados do Direito, e, segundo muitos, situando-se antes e além do direito positivo, como conseqüência que é da inviolabilidade da dignidade humana, um princípio concreto de direito natural.

3.3

PRINCÍPIO DA EXTRA-ATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL

3.3.1 Enunciado O inciso XL do art. 5º da Constituição Federal dispõe: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.” A primeira parte do preceito: “a lei penal não retroagirá” é pura reafirmação do princípio da legalidade, no ponto em que este impõe a anterioridade da lei penal. Cuidadosamente, o legislador constituinte, não satisfeito com impor a anterioridade da lei penal, veio, no inciso seguinte, reafirmar que a lei penal não pode retroagir, isto é, não pode ser aplicada a fatos acontecidos antes de sua vigência. Não havia necessidade, pois o princípio da reserva legal é claro ao dizer que só haverá crime e pena, se houver, previamente, uma lei anterior. Mas o objetivo não era o de reafirmar o princípio da legalidade, mas o de construir outro pilar sobre o qual se sustenta o Direito Penal, o de que a lei penal mais favorável retroagirá ou ultra-agirá.

3.3.2 Significado É na segunda parte que está o preceito “salvo para beneficiar o réu”, cuja leitura há de ser: a lei penal retroagirá para beneficiar o réu. O Direito é dinâmico como a sociedade. Os interesses sociais estão em constante


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 7 movimento e, à medida que se desenvolve a sociedade, impõem-se mudanças na ordem jurídica. Novas conquistas tecnológicas impõem novos tratamentos a questões que surgem no dia-a-dia. Valores substituem-se, formas de ver os fatos sociais alternam-se, de modo que se torna sempre necessária a criação de novas leis. A regra geral de aplicação da lei é a prevalência da lei do tempo do fato, decorrência do princípio da legalidade (tempus regit actum). Aplica-se ao fato a lei vigente ao tempo de sua prática. Leis sucedem-se, criando novos crimes, modificando o tratamento dado aos crimes já existentes, ora com maior severidade, ora abrandando a resposta penal e, até, simplesmente, extinguindo espécies de crimes. Nessas hipóteses, incide o princípio, que proíbe a retroatividade da lei mais severa: não poderá a lei mais grave ser aplicada aos fatos ocorridos antes de sua vigência. Se, contudo, a lei posterior é, de qualquer modo, mais benéfica, vai retroagir, para ser aplicada aos fatos acontecidos antes de sua vigência. Não podia ser diferente. A pena é a resposta que a sociedade dá aos indivíduos que atacarem, de modo grave, os bens jurídicos mais importantes. Se, em dado momento, a sociedade entende que a pena deve ser menor do que era, é porque considera que a resposta ao crime praticado deve, igualmente, ser de menor intensidade. Se, a partir de uma nova lei, esta pena é mais branda, deve o ser para todos, inclusive para os que praticaram o crime antes da lei. Não teria nenhum sentido punir alguém com uma pena que já não está em vigor. A pena é a medida da reprovação do comportamento humano. Se o fato antes punido mais severamente passa a ser, depois, punido com menor severidade é porque a sociedade entendeu que a punição anterior – mais severa – não era justa. Se a reduziu é porque ela não se justificava. E se não era justa antes, porque aplicá-la, depois de considerá-la injusta? O inverso, punir alguém, com maior rigor que o previsto no tempo em que ele praticou o crime, seria injusto e iria de encontro à dignidade humana. Quando alguém pratica um fato definido na lei como crime, conhece a pena a ele correspondente, em qualidade e em quantidade. Se esta pena, depois da prática do fato, é aumentada, não pode, em nenhuma hipótese, ser aplicada àquele que violou a norma no tempo da lei anterior, sob pena de violar sua dignidade. Ele, ao violar a norma, sabia que o máximo que poderia receber era a pena então vigente. Se, mesmo assim, violou a norma é porque aceitou, na pior das hipóteses, sofrer aquela pena, somente ela, em qualidade e


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles quantidade, e não mais que ela. Aplicar-lhe pena então inexistente – porque maior ou diferente – é violar o princípio da dignidade do homem. É trair o indivíduo e o direito há de ser, sempre, verdadeiro e sincero. A lei penal que for mais favorável ao acusado da prática do crime sempre será aplicada, em qualquer hipótese. Por isso, diz-se que a lei mais benéfica é sempre extraativa: se ela é a lei posterior, é e sempre será retroativa; se ela é a lei do tempo do fato, é e será sempre ultra-ativa. A lei mais favorável é, pois, extra-ativa.

3.4

PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

3.4.1 Enunciado e conceito Dispõe o inciso XLVI do art. 5º da Carta Magna: “A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.” Como se pode observar, o legislador constituinte não definiu o que seja individualização da pena, tarefa que cabe à doutrina. Individualizar significa particularizar, adaptar a pena ao condenado. A cada indivíduo, uma pena. Para particularizar a pena, a lei haverá, evidentemente, de balizar-se em parâmetros que, como não poderia deixar de ser, são o homem que violou a norma e o fato por ele praticado, cada qual, com suas particularidades, suas peculiaridades, suas características próprias, subjetivas

e objetivas,

que os

individualizam. Para adaptar a pena ao homem, seu destinatário, a lei levará em conta suas características e as do fato realizado. A individualização da pena faz-se em três etapas: cominação, aplicação e execução.

3.4.2 Cominação No primeiro momento da individualização, a tarefa incumbe ao legislador, que, ao definir os vários comportamentos humanos que considera crime – cumprindo, assim, o princípio da legalidade –, estabelece, para cada um, uma pena, em qualidade e


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 9 em quantidade. Esta é a chamada fase da cominação das penas. O legislador se orientará pela importância dos bens jurídicos e pela gravidade do ataque contra eles perpetrados, estabelecendo, para cada comportamento considerado criminoso, uma qualidade e uma quantidade de pena, que será de maior severidade, conforme seja mais importante o bem e mais grave o ataque contra ele efetuado. Assim, a morte de um homem por outro, que a desejou, merecerá a mais severa das penas. Já ao simples e leve ferimento do corpo humano, causado intencionalmente por outro, corresponderá uma pena bem mais branda. Se o causador da lesão não a queria, nem a aceitava, mas foi descuidado, a pena será mais leve ainda. Isso porque a vida é um bem jurídico muito mais importante que a integridade corporal do indivíduo, e porque o comportamento de alguém que deseja causar um mal a outro é muito mais grave do que o de quem só agiu com descuido. Já a agressão à liberdade sexual da mulher – bem de maior valor – merecerá uma reprimenda mais severa que a lesão corporal. Após fixar a natureza da pena, o legislador determina, abstratamente, um grau mínimo e um grau máximo, fixos, determinados, precisos, pelo que fica estabelecido um intervalo dentro do qual a pena será aplicada ao caso concreto. Assim acontece com aquele homem que, intencionalmente, matar outra pessoa. Estará sujeito a uma pena privativa de liberdade por, no mínimo seis e, no máximo, 30 anos. Se, todavia, obrigar uma mulher a uma relação sexual, a punição máxima não ultrapassará os 10 anos de perda de sua liberdade. No Código Penal e na legislação penal complementar estão definidos todos os fatos considerados crimes, e cominadas as respectivas penas, em qualidade e quantidade. É este o primeiro momento da individualização. Nele o legislador dá o primeiro passo para adaptar a pena ao que vier a ser condenado. É a primeira particularização. Para os furtos, reclusão de um a quatro anos de detenção e multa. Para os estelionatos, o mesmo grau mínimo e o máximo de cinco anos de reclusão e multa. Já se for um delito próprio de funcionário público, o peculato (apropriar-se o servidor público de dinheiro público em proveito próprio, por exemplo), a pena ficará entre dois e 12 anos de reclusão, além da multa.


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Para cada crime, uma pena, fixada abstratamente, e que paira sob todos os indivíduos como uma ameaça. Todos, portanto, têm conhecimento de que, se cometerem esse ou aquele crime, estarão sujeitos a essa ou àquela pena.

3.4.3 Aplicação Se o homem, apesar da ameaça, não se intimida e pratica o fato definido como crime, poderá receber a pena correspondente. A pena será aplicada – pelo julgador – com observância de normas legais que tratam da individualização. O julgador não é livre para escolher a qualidade nem a quantidade da pena. Se o infrator da norma tiver cometido um crime de estupro – constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça – o juiz deverá, em primeiro lugar, verificar qual a qualidade e quantidade da pena cominada na lei, encontrando-as no art. 213 do Código Penal: “reclusão, de 6 a 10 anos”. Para estabelecer a pena concreta, a ser cumprida, o juiz deverá analisar as características do infrator da norma e do fato por ele praticado. A primeira observação, a propósito, é de que a pena a ser aplicada não poderá ser nem além nem aquém do necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Isto quer dizer que, dentro dos limites fixados – mínimo e máximo –, a pena deve ser fixada de modo justo, exato. Para se alcançar esse difícil fim, manda o art. 59 do Código Penal que o juiz considere várias circunstâncias, do homem, e do fato por ele praticado, que são: a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do infrator da norma penal, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do fato e o comportamento da vítima. É evidente que, tratando-se de um homem de passado ilibado, de personalidade pacífica, de boa índole, de conduta social respeitável, não haverá necessidade de uma quantidade de pena distante do grau mínimo. Se, ao contrário, tratar-se de pessoa que agiu com muita culpa, a pena haverá de se distanciar do grau mínimo, aproximando-se do grau máximo. Se, entre aquelas circunstâncias, umas favorecem, outras prejudicam o acusado, cabe ao juiz verificar quais preponderam e, entre elas, atentar para as que mais importam para o direito. As de natureza pessoal – a primariedade – haverão de ser relevadas, até porque o fim e a razão de ser de toda a vida, da humanidade, é o homem, objetivo de todos nós.


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 11 Após a fixação dessa que se chama pena-base, o julgador verificará se ocorrem circunstâncias agravantes, que se encontram definidas nos arts. 61 e 62 do Código Penal, e circunstâncias atenuantes, dos arts. 65 e 66 e, em conseqüência, agravará ou atenuará a pena-base. Em seguida, observará a existência de causas especiais de aumento ou de diminuição de pena, previstas no Código Penal, seja na parte geral, seja na parte especial, aumentando ou diminuindo a pena, dentro das quantidades permitidas, chegando, então, à pena definitiva. Fixada a pena definitiva, o juiz estabelecerá o regime de seu cumprimento, se privativa de liberdade, como manda o art. 33 do Código Penal, ou a substituirá, conforme determina o art. 60, § 2º, e art. 44 do Código Penal. Assim, terá particularizado a pena ao condenado. Com a individualização da pena, pode uma pessoa que cometeu um estupro ser condenada a seis, sete, nove ou a 10 anos de reclusão, conforme sejam as suas características e as do fato praticado. Desse modo, para um mesmo crime, cometido por duas pessoas, as penas aplicadas não serão, necessariamente, as mesmas. Se Pedro e Célio, irmãos, com mesmas características, pela mesma razão, cometem em conjunto o mesmo crime e são ambos condenados, Pedro, de 20 anos, e Célio de 22, não receberão penas iguais, ainda que todas as circunstâncias judiciais lhes sejam igualmente favoráveis ou desfavoráveis, por uma única razão: Pedro tem, em seu favor, uma circunstância atenuante que não favorece Célio: ter menos de 21 anos ao tempo do fato (art. 65, I, CP). Por isso, se, em face das circunstâncias judiciais, ambos receberem pena-base igual ao mínimo, a atenuante há de fazer a pena ficar aquém do mínimo legal. Esta é posição que se considera a justa, e que melhor será detalhada no Capítulo 17 desta obra, onde esta segunda fase da individualização da pena, da mais alta importância, será examinada de forma mais pormenorizada.

3.4.4 Execução Aplicada a pena, não sendo mais possível qualquer recurso contra a decisão que a fixou, o Estado adquire o título com o qual deverá executar a pena, que será cumprida pelo condenado. Também a execução da pena não pode ser igual para todos os condenados, que, além de terem cometido crimes distintos, são diferentes entre si, cada qual com sua personalidade, sua necessidade de reprovação e prevenção. O inciso XLVIII do art. 5º da Constituição Federal estabelece: “a pena será


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”. Individualizar, nesta fase, é proporcionar a cada condenado as oportunidades necessárias para que ele possa, durante e após o cumprimento da pena, ser reinserido na sociedade de modo a, posteriormente, poder ser aceito por ela e com ela viver em plena harmonia. O art. 5º da Lei de Execução Penal (7.210/84) determina que o condenado será classificado, segundo seus antecedentes e personalidade, para orientação da individualização da pena. E o art. 6º manda que a classificação seja feita por uma Comissão Técnica, a quem compete elaborar um programa individualizador, que deverá ser acompanhado no decorrer do cumprimento da pena. Os condenados serão submetidos a exame criminológico – técnico-pericial – capaz de fornecer aos executores da pena os elementos indispensáveis à individualização da execução da pena. Na prática, todavia, a situação é diferente. Infelizmente, o Estado brasileiro não cumpriu, a contento, suas obrigações estatuídas pelas Leis nos 7.209 e 7.210, edificando estabelecimentos

penitenciários,

dotando

o

sistema

prisional

das

condições

indispensáveis à execução das penas privativas de liberdade. O princípio da individualização da pena é uma garantia constitucional, devendo ser observado a fim de que cada indivíduo receba uma pena correspondente a suas necessidades, em face de seu comportamento, e que seja apenas e não mais do que o suficiente para a reprovação que se lhe faz, pelo que ele fez e para a prevenção do crime. A Lei nº 8.072/90, ao determinar o cumprimento das penas aplicadas aos agentes dos crimes hediondos em regime fechado, integralmente, foi o mais contundente e vivo exemplo de violação do princípio da individualização da pena. O Supremo Tribunal Federal, todavia, julgando o HC n° 82.959, declarou a inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei n° 8.072/90, afastando, assim, a proibição da progressão do regime de cumprimento da pena para os condenados por crimes hediondos, de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes e de terrorismo. Se o juiz ficasse obrigado a fixar determinado regime de cumprimento de pena para certos crimes – mormente o regime fechado –, estaria impossibilitado de individualizar, particularizar, o regime. Se o condenado por tal crime ficasse obrigado a cumprir sua pena integralmente nesse regime, não teria havido, na execução, a individualização. Isso é da mais gritante obviedade, mas só depois de dezesseis anos é que o STF compreendeu isso.


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 13 A individualização só é possível e só é entendível se se puder concretizar nas três fases: cominação, aplicação e execução. Deixando de ser possível individualizar numa delas, não terá havido individualização.

Em todas as etapas, o indivíduo

condenado tem o direito à individualização de sua pena.

3.5

PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PESSOAL OU DA PERSONALIDADE DA PENA

3.5.1 Enunciado Dispõe o inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal: “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.” A primeira parte desse preceito constou da primeira Constituição Brasileira, a de 1824, no § 20 do art. 179, tendo sido repetida nas de 1891 (art. 72, § 19), de 1934 (art. 113, § 28), de 1946 (art. 141, § 30), e de 1967 (art. 153, § 13). Apenas a Carta de 1937 não o inseriu entre as garantias fundamentais. A Constituição de 1988, como não poderia deixar de ser, reafirmou-o, com uma importante inovação. Ao lado da garantia individual aos sucessores do condenado, de que a pena não lhes será estendida, estabeleceu a garantia civil ao titular do bem jurídico lesado pela conduta criminosa, de executar, contra os sucessores do condenado, a obrigação de reparar o dano. Antes, essa garantia não tinha status constitucional, estabelecido apenas na legislação ordinária.

3.5.2 Significado O princípio é claro: só o condenado pode sofrer a pena criminal, seja ela privativa de liberdade, de multa, de prestação social alternativa, restritiva de direitos, seja qualquer outra que vier a ser cominada. Hoje, pode-se pensar que essa afirmação é óbvia e, de tão indiscutível, nem precisava constar de uma norma, mormente constitucional. Todavia, voltando-se os olhos para a história, é possível verificar que o princípio


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles é uma conquista política penosa6. Em verdade, nos tempos primitivos, da vingança privada, a reação ao agressor do bem importante não só era ilimitada, mas também se voltava contra o delinqüente e outros de seu grupo, familiar ou social. E tal comportamento grassou por longos anos, tanto que somente com as idéias iluministas vitoriosas na França, foi insculpido na Declaração dos Direitos do Homem, de 1789. Basta lembrar que, no Brasil, três anos depois, ainda era lavrada e executada sentença penal contra Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, da qual constou: “Na Capitania de Minas alguns Vassallos da dita Senhora, animados do espirito de perfida ambição, formaram um infame plano, para se subtrahirem da sujeição, e obediência devidda á mesma Senhora; pretendendo desmembrar, e separar do Estado aquella Capitania, para formarem uma republica independente, por meio de uma formal rebellião, da qual se erigiram em chefes e cabeças (...). Portanto condemnam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas a quem com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em o lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes, pelo caminho de Minas no sitio da Varginha e das Sebolas aonde o Réu teve as suas infames praticas, e os mais nos sitios nos sitios (sic) de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e Camara Real, e a casa em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique, e não sendo proprio será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve na memoria a infamia deste abominavel Reu.”7 Como se vê, há pouco mais de 200 anos, ainda se fazia estender aos sucessores do condenado as conseqüências penais de seu comportamento, o que é inadmissível, já que fere a dignidade humana. Ninguém pode sofrer qualquer restrição em sua liberdade, nem qualquer 6

CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Estrutura do direito penal. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky, 1976. p. 72.

7 BRASIL.

Biblioteca Nacional. Custos de devassa da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1938. v. 2, p. 145 ss e 194.


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 15 punição, por fato que não praticou, por dano que não causou, por acontecimento para o qual não concorreu.

3.5.3 Reparação do dano A indenização do prejuízo causado pelo condenado é sanção civil, e por isso pode ser estendida aos sucessores e contra eles executada, é óbvio, até o limite do valor do patrimônio transferido. Se o condenado por crime contra o patrimônio vier a morrer logo após a sentença condenatória irrecorrível, o prejuízo sofrido pela vítima poderá ser cobrado dos sucessores do infrator da norma penal, que estarão obrigados a indenizar o credor, observado o limite do patrimônio que tiverem recebido. Se tiver sido transferido valor inferior ao da indenização, o credor só poderá executar o valor da importância transmitida. Se nada tiver sido transferido, nada poderá ser cobrado. Não podia ser diferente, já que, no direito das sucessões, são transmitidos obrigações e direitos, e estes só são partilhados após o cumprimento daquelas. Primeiro, pagam-se as dívidas do autor da herança e, somente após a liquidação de todas as suas obrigações, inclusive as tributárias e decorrentes da própria morte, é que se apura o saldo a partilhar. Como o dever de indenizar se inclui entre as dívidas do morto, só após seu pagamento é que os sucessores receberão a herança. A importância do preceito é considerar também os direitos da vítima do crime, por longos anos esquecida pelo Direito Penal. Em sua tarefa de romper com a vingança privada e, depois, pública, o Direito Penal acabou por olvidar os direitos da vítima, que só às vésperas do terceiro milênio voltou a colocar-se entre os interesses do Direito Penal. A Lei nº 9.099/95, que instituiu no Brasil os juizados especiais criminais, privilegiando a composição e a reparação do dano, constituiu o primeiro grande passo do legislador ordinário, para colocar os direitos da vítima do crime como uma das preocupações do Direito Penal. A pena de prestação pecuniária, instituída pela Lei nº 9.714/98, é outro instituto importante para a proteção do direito da vítima, já que pode constituir-se em antecipação, no âmbito da jurisdição penal, da obtenção da reparação do dano causado. Se para evitar as perseguições, as arbitrariedades, a violência contra o delinqüente, o Direito Penal se posicionou e construiu os direitos do delinqüente, é


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles hora, mais do que nunca, de criar os instrumentos para, igualmente, proteger os direitos do ofendido, daquele que teve seus direitos violados.

3.6

PRINCÍPIO DA LIMITAÇÃO DAS PENAS

3.6.1 Enunciado e significado Diz o art. 5º, XLVII, da Carta Magna: “Não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis.” A Constituição Federal proibiu, expressamente, a adoção dessas cinco espécies de penas, inserindo tal proibição no rol dos direitos e garantias fundamentais do homem, de modo que é impossível sua adoção em nosso direito, conforme manda o art. 60, § 4º, inciso IV: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ... IV – os direitos e garantias individuais.” Essas penas foram banidas do ordenamento jurídico, porque não se coadunam com o estágio atual de desenvolvimento de nossa sociedade, uma vez que ferem a dignidade humana e violentam profundamente o princípio da humanidade e do interesse social. Não passará muito tempo e no mesmo dispositivo constitucional (art. 5º, XLVII) certamente constará uma alínea a mais: “f) privativas de liberdade”, tempo em que se terá alcançado um novo estágio de civilização. Em verdade, como já se disse anteriormente, a própria pena privativa de liberdade é um mal, não resolve coisa alguma, ao contrário, traz enormes prejuízos para a sociedade. O caminho é outro, a criação de novas modalidades de sanções penais, com a abolição da própria pena de prisão.

3.6.2 Pena de morte Vigente no Brasil até o Código Criminal de 1830, a pena de morte, desde o advento da República, com o Código Penal de 1890, não consta do Direito Penal brasileiro, a não ser como exceção, nos casos de guerra externa declarada, como resposta à agressão estrangeira. A pena de morte é demonstração da mais absoluta irracionalidade que ainda


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 17 preside certos ordenamentos jurídicos. Em verdade, é resquício de pensamento autoritário que imaginava ser possível a criação de um mundo povoado por homens superiores, dotados de características diferenciadas, destinados a dominar os demais seres vivos sobre a face da Terra, neles incluídos os homens das outras raças. Aceitá-la, no terceiro milênio, é de uma incongruência inominável. Trata-se de pena que apenas retribui o mal causado com outro mal. Revela, por isso, um pensamento grotesco, de quem não consegue entender a natureza humana e, especialmente, a daquele que delinqüiu. Ignora que o crime tem causas que não são combatidas, e que o homem que o cometeu é, na maioria das vezes e antes de tudo, um desajustado social, um doente que não recebeu qualquer tratamento, e que não teve as mínimas oportunidades a que tinha direito, para não delinqüir, vítima de uma sociedade desigual, injusta e desumana. Se o homicídio é crime, assim definido no Código Penal, porque se volta contra o interesse público, igualmente a pena de morte não passa de um homicídio, oficializado, o que é mais grave, e atinge, igualmente, o interesse público. O princípio humanitário exige que se busque a recuperação do condenado e não sua eliminação. O objetivo da sociedade há de ser eliminar o crime e não o criminoso. É preciso combater a doença, e não se acaba com ela matando o doente. O preceito exclui da proibição a hipótese de guerra declarada, sob a justificativa de que se trata de situação excepcionalíssima, em que há perigo para a própria soberania do país. Nem assim se pode aceitar a hipótese, especialmente nos dias de hoje em que, mesmo em se tratando de guerras, pugnam todos por tratamento humanitário aos homens dos Estados beligerantes.

3.6.3 Penas perpétuas Igualmente abomináveis, as penas de caráter perpétuo também violam os princípios humanitários e do interesse social, ferem a dignidade humana e não apontam para a recuperação do condenado. Se ele não vislumbrar a perspectiva de voltar ao convívio social, não terá motivo para aprender a respeitar os valores sociais. A pena de prisão perpétua é mais odiosa que a própria pena de morte. Se esta é, como se diz, irreparável, e só por isso hedionda, a manutenção de um homem encarcerado pelo resto de seus dias é de uma crueldade inimaginável.


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles É próprio da natureza animal a vida em liberdade. Todos nasceram livres. O irracional privado de liberdade torna-se agressivo ou passivo. Em qualquer das hipóteses sua natureza resta violentada. Com o homem se dá o mesmo, com uma diferença: sua enorme capacidade de adaptação, que dá a aparência de que ele aceita a perda da liberdade, mas que na verdade significa sua redução a uma condição inumana, pior do que a do irracional, posto que, às vezes, nem reage. A proibição constitucional impõe ao legislador ordinário o dever de não cominar penas muito elevadas, pois, se o fizer, poderá, na prática, estabelecer penas de caráter perpétuo. Se vier a ser cominada uma pena de, no máximo, 40 anos de reclusão, o condenado com 20 anos somente sairá do presídio aos 60 anos, ou nem sairá, pois muito provavelmente morrerá antes, especialmente se se levarem em conta as condições de vida em um presídio. Além disso, esse princípio há de ser conjugado com o da humanidade e o do interesse público, pelo que se conclui que, sendo um dos fins da pena a recuperação do delinqüente, não se pode mantê-lo por muito tempo privado de liberdade. De conseqüência, não só são proibidas penas muito longas, mas o princípio exige a cominação de penas não muito elevadas. Desejando recuperá-lo, reinseri-lo no meio social, inclusive para que ele possa ser útil à sociedade, deve-se trabalhar para que o condenado possa viver o máximo possível com dignidade e com respeito aos valores importantes. A pena excessivamente longa, tanto quanto a perpétua, desestimula o condenado, quando não gera nele verdadeira revolta, capaz de transformá-lo não no recuperado que se almeja, mas no marginalizado indesejado. No Brasil, o limite máximo de cominação é de 30 anos, o que já é um tempo muito longo, mormente se se considerar que a vida média do brasileiro pouco passa dos 70 anos. Se o homem começar a cumprir sua pena aos 25 anos, pouco tempo de vida útil lhe restará em liberdade. Em obediência ao preceito, o art. 75 do Código Penal estabelece que o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade é, igualmente, de 30 anos e que o condenado a várias penas, cuja soma superar aquele limite, não cumprirá senão os 30 anos, a não ser por fato posterior ao início da execução da pena (§§ 1º e 2º). Lamentavelmente, nos últimos anos, o legislador brasileiro vem, influenciado por manipuladores de opinião, marchando para exasperar penas de delitos de maior gravidade, com o objetivo de diminuir sua incidência. Foi assim com a Lei dos Crimes


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 19 Hediondos, e o que se colheu foi o aumento dessa criminalidade. É preciso caminhar exatamente no sentido contrário, o da diminuição do grau máximo das penas privativas de liberdade e o de sua limitação aos crimes de maior gravidade. Infelizmente, ainda é necessária a pena privativa de liberdade, que, por isso, há de ser restringida apenas aos casos em que for absolutamente indispensável. Como diz CERNICCHIARO, “repensar as penas excessivamente elevadas é pensar o homem”8.

3.6.4 Trabalhos forçados A proibição da pena de trabalhos forçados harmoniza-se com as conquistas obtidas pela humanidade contra o arbítrio e a prepotência. Os trabalhos forçados nas galés, de triste memória na história do Direito Penal, afrontam os princípios da humanidade e de respeito à dignidade do homem. Mormente quando se busca na pena a idéia de ressocialização, torna-se inadmissível a idéia de trabalhos forçados como pena criminal. Nem se coadunaria com o fim do regime escravagista, de mais de um século. Outra coisa, permitida e que deve ser incentivada, é a atividade laborativa nos presídios, cuja finalidade é a educação e, também, a produção, devendo, como é óbvio, ser remunerado o trabalho do preso. Não se confunde, igualmente, com a prestação de serviços à comunidade, que é uma modalidade de pena alternativa da mais alta importância e que é objeto de estudo no Capítulo 15 deste manual.

3.6.5 Banimento O banimento existiu no Brasil durante o Império, ao lado do degredo e do desterro, e foi ressuscitado pela ditadura militar, como sanção política, mas, felizmente, vigorou por pouco tempo e foi expurgado do ordenamento jurídico. Banimento era a privação, para sempre, dos direitos de cidadania e proibição perpétua de habitar o território da nação. Degredo era a imposição ao condenado de residência em determinado lugar, que não o da moradia da vítima, dele não podendo sair, por um tempo determinado. Desterro era a proibição do condenado de residir ou mesmo ir ao lugar do crime, ao de sua principal residência e ao da moradia da vítima, 8

Op. cit. p. 114.


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles por tempo determinado. O banimento era perpétuo no Império, mas o Código Penal de 1890, já no período Republicano, o admitiu por tempo determinado; todavia, a Constituição de 1891 o aboliu, definitivamente. No regime de ditadura militar instaurada com o golpe de 1964, o banimento foi instituído em 1968, não como pena criminal, mas como instrumento de ação do Poder Executivo, que o aplicou a seus adversários políticos. Naquela época de trevas, tudo se fez.

3.6.6 Penas cruéis Igualmente proibidas as penas cruéis, porque “o Estado não pode, na execução das penas, infligir padecimentos físicos ou morais ao condenado. E mais. Vedado até cominar penas que, em si mesmas, conduzam a essa situação”9. É de todo óbvio. Nenhuma pena pode voltar-se contra a dignidade do ser humano. A inflição de sofrimento físico ou moral, a tortura, física ou psicológica, a privação das condições mínimas de existência, a desmoralização, a marcação a fogo, a amputação de membros, os maus-tratos, todos esses meios conhecidos e, infelizmente, utilizados no país há pouco tempo são terminantemente proibidos. A pena privativa de liberdade, por si só, já constitui enorme sofrimento para o homem, de modo que haverá de ser executada com todas as cautelas necessárias a fim de que o condenado sofra apenas os efeitos da perda da liberdade. Nada além. Dessa forma, há de se verificar que, na quase totalidade dos casos, as penas de prisão no Brasil estão sendo cumpridas de modo cruel. São inúmeras as notícias de prisões superlotadas, onde 20 ou mais homens convivem em ambientes em que não poderiam ficar nem quatro. É tratamento desumano e degradante, verdadeira crueldade, violador da Carta Constitucional. Já de há muito que existem regras para o tratamento aos presos, detalhadas adiante, e não se pode admitir a continuidade do descuido do Estado brasileiro, que não se preocupa com dotar o sistema de estabelecimentos adequados quantitativa e qualitativamente.

9

CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Op. cit. p. 123.


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 21

3.7

PRINCÍPIO DO RESPEITO AO PRESO

3.7.1 Enunciado Diz o art. 5º, XLIX, CF: “É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” e o inciso L: “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”. O preceito se especifica no art. 38 do Código Penal: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.” Também a Lei de Execução Penal (LEP) contém dispositivo semelhante: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios” (art. 40). O princípio abrange não apenas os condenados, mas também todos aqueles que estiverem presos, seja a prisão civil ou penal, processual ou definitiva.

3.7.2 Significado O homem, apesar de condenado ou apenas preso, não deixa de ser humano, e continua com todos os seus direitos, com exceção apenas dos incompatíveis com a perda da liberdade. De conseqüência, deve ser protegido, enquanto ser humano e cidadão. Principalmente, porque é um ser destituído de liberdade, incapaz de, por isso, defender-se em sua plenitude. O homem encarcerado, algemado, não é capaz de enfrentar a maior parte das dificuldades e dos percalços da vida em prisão. O art. 41 da Lei nº 7.210 enumera direitos do preso: alimentação suficiente e vestuário; atribuição de trabalho e sua remuneração; previdência social; constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer espécie de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado; visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal; igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; audiência especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; contato com o mundo exterior por meio de


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. O art. 88 da LEP contém uma norma da mais alta importância: “O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6 m2 (seis metros quadrados).” Lamentavelmente, a mesma lei, no art. 92, permite o alojamento do condenado em compartimento coletivo, que atenda aos requisitos da alínea a do art. 88. A realidade brasileira é outra. Não faz muito tempo o Brasil assistiu, pela televisão, à notícia de que presos de Belo Horizonte, numa cela superlotada, chegaram ao ponto de celebrar um pacto de morte, mediante sorteio, a fim de obter mais espaço para os sobreviventes e, com isso, chamar a atenção das autoridades responsáveis. Não se esqueça ademais das mortes por asfixia e intoxicação por fumaça noutra cela, da cidade de São Paulo. Massacres como os do Carandiru continuam na memória de todos, quando dezenas de homens foram fuzilados sem a menor possibilidade de defesa. Na verdade, o que se pode afirmar é que a quase totalidade dos presos brasileiros está cumprindo penas em total desrespeito à Constituição e à Lei de Execução Penal. Penas cruéis, com desrespeito à integridade física e moral dos condenados, são absolutamente inconstitucionais. Infelizmente, é essa a realidade que o operador do Direito não pode ignorar. O mais lamentável é que a situação se perpetua, integra o cotidiano, chega a parecer normal, passando a não mais indignar. De tanto visitar os presídios, as cadeias dos distritos policiais, o operador do Direito corre o risco de ir-se acostumando com todas essas mazelas, e de se esquecer de combatê-las apropriadamente. Juízes, promotores e advogados, especialmente, não podem, em nenhum momento, descurar de seus deveres éticos, do senso de justiça e de humanidade, e devem, diante de quadros como aqueles, adotar as medidas indispensáveis à preservação da ordem constitucional e da dignidade do homem, fim do Direito.


Princípios Constitucionais do Direito Penal - 23

3.8

PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA

3.8.1 Enunciado Está no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Esse princípio, também chamado do estado de inocência ou da nãoculpabilidade, aparece pela primeira vez numa Constituição Brasileira, e significa uma das maiores conquistas do cidadão brasileiro às vésperas do terceiro milênio, como coroamento de uma série de vitórias do homem contra o arbítrio.

3.8.2 Significado Já se falou que a pena só pode ser aplicada pelo julgador, que é o funcionário do Estado encarregado de dizer o Direito, distribuindo a justiça. Para concluir, se alguém deve sofrer a punição, o juiz adotará uma série de medidas, realizará um conjunto de atos, dirigirá várias atividades destinadas a descobrir a verdade: o homem é ou não culpado pelo que fez? Se for culpado, então sofrerá a pena. A descoberta da verdade dá-se no âmbito do processo, o conjunto daqueles atos que culmina com a prolação de uma decisão do juiz, chamada sentença. Essa sentença pode ser atacada pelo condenado, e será submetida a instâncias superiores do Poder Judiciário, que poderão modificá-la ou não. Existe um conjunto de normas jurídicas que tratam do processo penal, da busca da verdade real, que devem ser obedecidas por todos os operadores do Direito Penal. A certa altura, aquela decisão acerca do crime, sobre ser o homem culpado, torna-se definitiva, já não pode ser alterada dentro do processo. Diz-se, então, que a sentença penal condenatória transitou em julgado. Antes disso, enquanto está sendo processado, mesmo que estiver preso provisoriamente, ele não poderá ser considerado culpado. Talvez porque esteja inscrito em nossa Carta Magna pela vez primeira, o princípio não tem sido bem compreendido, inclusive por instâncias superiores do Judiciário brasileiro. O preceito, no entanto, surgiu na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, no art. 9º, e já estava inscrito na Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em dezembro de 1948, e não deveria ensejar tanta incompreensão de nossos tribunais.


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles “O art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, em virtude de uma redação não muito feliz, permitiu no começo da sua vigência certa tergiversação interpretativa. Agora, no entanto, como bem destacou MAGALHÃES GOMES FILHO (1994, p. 30), com amparo no art. 5º, § 2º da CF, tornou-se indiscutível no nosso ordenamento jurídico a extensão da presunção de inocência ‘desde que o Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 27, de 26 de maio de 1992, aprovou o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e o Governo brasileiro, em 25 de setembro de 1992, depositou a Carta de Adesão a essa Convenção, determinando-se seu integral cumprimento pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, publicado no Diário Oficial de 09-11-92, p. 15.562 e ss’. Referido Pacto de San Jose, que também foi publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais (do IBCCrim, nº 1, jan./mar. 1993, p. 253 e ss.), em seu art. 8º, nº 1, consagrou o citado princípio, dizendo: ‘Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.’10 O preceito projeta-se principalmente no campo do direito processual penal – por, entre outras conseqüências, impor o ônus da prova legal da ocorrência do fato e da culpabilidade do acusado ao acusador e permitir ao réu o direito ao silêncio, sem que possa o julgador interpretá-lo em seu desfavor – mas tem também importante reflexo no Direito Penal: nenhuma norma penal poderá estabelecer a responsabilidade com base em fatos presumidos, porque ninguém pode ser punido por presunções, mas apenas por fatos reais.

10 GOMES, Luiz Flávio. Direito de apelar em liberdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 3637.


4 A LEI PENAL

____________________________ 4.1

FONTES DO DIREITO PENAL

4.1.1 Fontes materiais: a sociedade e o Estado A expressão fonte identifica-se com nascente, daí por que se falar em fontes do Direito Penal é dizer de seu nascimento. O direito, como já se disse, emana das necessidades da vida em sociedade, e pode-se afirmar, sem medo de errar, que ambos surgem simultaneamente. Onde há sociedade, há direito, e vice-versa. O direito é a expressão da vontade da sociedade. Nasce da vontade dos indivíduos que a compõem. A consciência do povo que integra a nação é a fonte maior do direito. A sociedade está organizada no Estado, com seus três poderes, entre eles o encarregado de elaborar as normas de comportamento: o Poder Legislativo, pelo Senado Federal e Câmara dos Deputados. É a sociedade que escolhe um grupo de indivíduos e confere-lhes o dever e o direito de construir as figuras consideradas crimes, estabelecer as penas e outras regras relativas aos infratores das normas. Uma sociedade pode considerar crime a conduta humana que outra sociedade considera comportamento justo. Por exemplo, no Brasil é crime interromper a gravidez, com a morte de seu produto, definido com o nome de aborto, salvo se não houver outro meio para salvar a vida da gestante ou se a gravidez tiver sido fruto de um estupro (relação sexual violenta e dissentida pela mulher) e, neste último caso, se a gestante ou seu representante consentirem no aborto. Em outras sociedades do mundo, esse mesmo fato não é considerado crime, sendo, por isso, plenamente normal e aceito pelos membros daquelas sociedades. Exemplos: China, França, Noruega. Em certas sociedades, atitudes humanas que se voltam contra valores religiosos são consideradas crime, como é o caso do Irã, ao passo que nas sociedades


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles desenvolvidas tais fatos não interessam ao Direito Penal. A fonte de produção, ou substancial, do Direito Penal é remotamente a consciência popular, e diretamente o Estado, por força do que dispõe o art. 22, I, da Constituição Federal, que diz competir, privativamente, à União legislar sobre Direito Penal. A União, por meio do Poder Legislativo, por seus deputados e senadores, é a fonte produtora, material ou substancial do Direito Penal.

4.1.2 Fonte formal imediata: a lei penal O Direito – conjunto das normas de comportamento – para se estabelecer no seio da sociedade, para valer e imperar, para ser obedecido pelos membros da sociedade, os indivíduos, precisa ser conhecido da sociedade, exteriorizar-se, ganhar forma, tornar-se concreto. Esta concretização se dá por meio de instrumentos de comunicação criados, ao longo do tempo, pelos vários povos. Modernamente, o instrumento utilizado para a exteriorização do Direito Penal é a lei, documento que contém a norma jurídica emanada do órgão Estatal encarregado de sua produção, segundo determina a Constituição do Estado. Tratando-se de Direito Penal, por força do já conhecido Princípio da Legalidade, só a lei pode definir o crime e cominar a pena. Conseqüentemente, só a lei é fonte de exteriorização da criação dos crimes e das penas. A doutrina denomina esses meios de exteriorização do Direito de fontes formais, ou de cognição; todavia, segundo HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, “não são fontes, mas formas do direito, como bem assinalou Goldschmidt”1. Correto o entendimento do saudoso advogado e jurista brasileiro, pois fonte só pode ser a substancial, de produção do Direito. A lei, na verdade, é o instrumento utilizado pelo Estado para dar expressão real às normas que elabora. Nesse sentido, não pode ser fonte. Fonte, então, é tão-somente a consciência da sociedade, é o Estado, ao passo que a lei é a única forma ou o único instrumento pelo qual o povo, por meio do Estado, define os fatos considerados criminosos, e estabelece as penas que a sua prática correspondem.

1

Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 77.


A Lei Penal - 3

4.1.3 Fontes formais mediatas: costume e princípios gerais de direito A sociedade constrói o direito também por meio do costume jurídico e dos Princípios Gerais de Direito. Diz, aliás, a Lei de Introdução ao Código Civil que, quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, o costume jurídico e os princípios gerais de direito. De analogia, fala-se mais adiante.

4.1.3.1

Costume jurídico

Dentro de uma sociedade, ao longo dos anos, muitas vezes, vão as pessoas realizando certos comportamentos, reiteradamente, no tempo, sempre de um mesmo modo. Com o passar dos dias, anos, das décadas, todos resolvem obedecer a certa orientação, por entenderem necessária e proveitosa para a sociedade, de tal modo que chegam a considerar que estão obrigados a agir sempre daquela forma. Surgem, assim, na sociedade diversas normas de comportamento, não escritas em lei, que as pessoas obedecem, de modo uniforme e constante, pela certeza que elas têm de que estão obrigadas a assim se comportarem. É o costume uma norma não escrita a que as pessoas obedecem, de modo uniforme e constante, na certeza de que estão obrigadas a obedecê-la. Ressalte-se a importância de que haja a constância e a uniformidade, que são os elementos objetivos do costume jurídico, e a convicção da obrigatoriedade da norma costumeira, que é seu elemento subjetivo. O costume não tem o poder de revogar a norma penal, e tampouco de criar delitos ou cominar penas, por força do princípio da legalidade. Apesar de muito comum no Brasil, a prática do chamado “jogo do bicho” não é comportamento permitido, pois ainda está em vigor uma norma penal que o considera um comportamento proibido. Do mesmo modo, o desuso de uma norma, ao longo do tempo, não a revoga. Tome-se como exemplo a questão do adultério. Nos últimos anos, mormente após a instituição do instituto do divórcio, a sociedade brasileira passa a tratar o adultério de modo bem mais compreensivo que nos anos anteriores e nos que se seguiram à edição do Código Penal. Hoje, o homem moderno vem compreendendo que não é proprietário


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles de sua mulher e esta, à medida que deixa o lar e a cozinha, disputando o mercado de trabalho com o homem, já não tem aquele comportamento do passado. O adultério deixou, há muito, de ser, na prática forense, assunto do Código Penal. Mas só a revogação expressa do art. 240 do Código Penal, pela Lei nº 11.106, de 28.03.2005, baniu o adultério do ordenamento jurídico-penal brasileiro. Um importante avanço que, há muito, vínhamos reclamando. O costume jurídico terá importância para o Direito Penal como elemento auxiliar na interpretação das normas penais, como se verá, oportunamente.

4.1.3.2

Princípios gerais de direito

Nem tudo o que é Direito está escrito na Constituição Federal e nas leis vigentes no país. Em outras e mais límpidas palavras, de CARLOS MAXIMILIANO: “não é constitucional apenas o que está escrito no estatuto básico, e, sim, o que se deduz do sistema por ele estabelecido”2. O Direito é um sistema harmônico de normas, do qual se deduzem alguns preceitos fundamentais que não precisam estar escritos para terem validade. São as bases, os fundamentos, os pilares que decorrem de todo o ordenamento jurídico, que têm valor e aplicação geral. O Direito Penal não está interessado na punição daquele que realizar uma lesão insignificante de um interesse jurídico, porque, como já se disse, sua finalidade é a proteção dos bens mais importantes das lesões mais graves. Se ela é insignificante, não interessa ao Direito Penal. Esta conclusão advém do Princípio da Insignificância, que será estudado mais adiante, juntamente com outros princípios gerais de direito. Desnecessário dizer que os princípios gerais de direito não definem crimes, nem estabelecem penas, mas aplicam-se exatamente para deixar de considerar delitos certos fatos que como tal são definidos.

4.2

A LEI PENAL E A NORMA PENAL Lei é um documento elaborado e emanado do Congresso Nacional, sancionado

pelo Presidente da República, publicado no Diário Oficial da União, que contém normas jurídicas, regras obrigatórias a que todos estão obrigados a obedecer, posto que

2

Comentários à Constituição brasileira de 1946. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1948. v. 3, p. 175.


A Lei Penal - 5 impostas coativamente pelo Estado. A lei é o único instrumento utilizado pelo Estado para dar conhecimento do que é o Direito Penal. É nela, somente nela, que estão contidas as normas que definem crimes e cominam penas. São leis penais o Código Penal, a Lei das Contravenções Penais, o Código Penal Militar, a Lei de Segurança Nacional, a Lei de Entorpecentes, encontrando-se normas penais também nas Leis de Falência, de Imprensa, de Alimentos, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código de Defesa do Consumidor, e em número muito grande de outras leis elaboradas pelo Poder Legislativo. Nas leis estão contidas as normas. Esta afirmação conduz à necessidade de se mostrar a diferença entre lei e norma. A norma é a regra de conduta, imposta coativamente pelo Estado. É o comando. É a ordem. A norma está contida na lei. Esta é o instrumento de manifestação da norma. É o meio pelo qual a norma é comunicada aos indivíduos. A norma penal por excelência é aquela que define o crime e comina a pena.

4.2.1 Classificação das normas penais O Direito Penal é um sistema harmônico de normas jurídicas. Um grupo dessas normas é composto de regras que definem os comportamentos que são considerados crimes e estabelecem as penas correspondentes. Não bastam, porém, essas normas. É necessário, também, que o direito se preocupe com algumas situações excepcionais, em que certos comportamentos definidos como crimes não podem ser assim considerados, em razão de peculiaridades que os tornam justificados. Por exemplo, se “matar alguém” é crime, em certas circunstâncias pode não o ser. Basta que a pessoa que tira a vida da outra estivesse sendo, no exato momento antecedente a sua atitude, agredida pela outra, de modo injusto, e tivesse reagido como única forma de preservar sua própria vida. Não seria justo que o direito não permitisse ao agredido defender-se por seus próprios meios. Com base nessas observações e na necessidade de o Direito Penal construir outras espécies de regras, podem-se classificar as normas penais em dois grandes grupos: o das normas penais que definem crimes e estabelecem penas e o das normas penais que não definem crimes, nem cominam penas, respectivamente chamadas de normas penais incriminadoras e normas penais não incriminadoras.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles

4.2.1.1

Normas penais incriminadoras

São aquelas que definem o crime e cominam a pena. Exemplos: 1. a norma contida no art. 121, caput, do Código Penal: “Matar alguém: Pena – reclusão, de 6 a 20 anos.” 2. a norma contida no art. 213, do Código Penal: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de 6 a 10 anos.”

4.2.1.2

Normas penais não incriminadoras

O Direito Penal não se limita a definir o comportamento criminoso e a estabelecer a pena correspondente. Em algumas situações de fato, o Direito permite ao indivíduo realizar um comportamento por ele mesmo definido como crime, desde que se observem algumas condições. Noutras oportunidades, o Direito, mesmo não permitindo a realização do fato considerado crime, entende que não deve ser aplicada a pena criminal. Exemplo: os menores de 18 anos são considerados, pelo Direito Penal, incapazes de cometer crimes. Para eles, a conseqüência jurídica que o direito reserva é diferente, não a pena, mas uma medida que visa a sua socialização e educação. Aquelas e estas situações são reguladas por normas penais não incriminadoras, que são chamadas pela doutrina de normas penais permissivas. São duas as espécies de normas penais permissivas.

4.2.1.2.1

Normas penais permissivas justificantes

São as que tornam lícitas, permitidas, justificadas, condutas definidas como crime. Fatos definidos como crime por normas penais incriminadoras são considerados lícitos, justos, deixando, de conseqüência, de ser crime. Exemplo dessas normas é a contida no art. 23 do Código Penal: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.” Isto significa que, se alguém matar outrem “em legítima defesa”, não terá havido crime ou, em outras palavras, “matar em legítima defesa não é crime”, porque é


A Lei Penal - 7 permitido pelo Direito Penal. Outros exemplos se encontram no art. 128, I e II, do Código Penal. Estas são, portanto, normas penais permissivas justificantes, pois tornam lícitas condutas definidas como crime.

4.2.1.2.2

Normas penais permissivas exculpantes

A outra espécie é daquelas normas que isentam de pena condutas definidas como crime não justificadas. Em algumas situações, fatos definidos como crime, não tornados lícitos por nenhuma norma penal permissiva justificante, devem ser, contudo, desculpados. Mesmo proibidos, mesmo não justificados, a eles não deve corresponder uma pena criminal. Por exemplo, o fato praticado por pessoa doente mental e totalmente incapaz de compreender seu comportamento. Ou o fato praticado por pessoa capaz que, nas circunstâncias em que agiu, não tinha nenhuma possibilidade de compreender o real significado de seu comportamento. Essas situações serão objeto de estudo, quando for abordada a teoria geral do crime. Exemplo dessas normas é a que está contida no art. 26 do Código Penal: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” Outros exemplos se encontram nos arts. 27, 28, § 1º, e 21, do Código Penal. Essas são as chamadas normas penais permissivas exculpantes. A expressão permissiva, contida na denominação adotada por grande parte da Doutrina, não é

precisa porquanto sugere a idéia de que o fato, na hipótese, é

permitido pelo direito, o que somente ocorre quando se estiver diante de norma justificante. Esta permite, mas a norma exculpante não permite o fato, apenas o desculpa.

4.2.1.2.3

Normas penais explicativas

Além das normas permissivas, há outra espécie de normas penais, aquelas que tornam claras questões penais ou que explicam o conteúdo de outras normas. Quando


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles se analisa a norma do art. 23, vê-se que nela está dito que não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa (inciso II). Mas a norma do art. 23 não esclarece, não explica, o que é a legítima defesa. Esta é uma questão penal que precisa ser explicada pelo direito. Por essa razão, no art. 25 está esclarecido o conceito de legítima defesa, com seus requisitos, assim: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” Tal norma não é incriminadora nem permissiva, mas simplesmente explicativa do conteúdo de outra norma. As demais normas do Código Penal, que não se enquadrarem nas classificações anteriores, serão explicativas, por conterem o aclaramento de questões penais ou a explicação de institutos penais ou, ainda, o conteúdo de outras normas.

4.2.2 Características das normas penais incriminadoras Entre as características da norma penal incriminadora, que é a norma penal em sentido estrito, vale ressaltar as seguintes. A norma penal é exclusiva, porque só ela define o crime e comina a pena. Além disso, é imperativa, porquanto faz incorrer na sanção aquele que não cumprir seu mandamento. Tem, ademais, a característica da generalidade, pois se dirige a todos os indivíduos, valendo erga omnes. A norma penal incriminadora dirige-se inclusive aos homens absolutamente incapazes de responder por seus atos, que, mesmo assim, estão obrigados a obedecê-la. É, ademais, abstrata e impessoal, pois não se dirige a um indivíduo.

4.2.3 Preceito e sanção Para obedecer ao princípio da reserva legal, a norma penal incriminadora é elaborada de modo diferente das demais normas do direito, com uma técnica toda própria. É constituída por duas partes, bem delimitadas na aparência, em sua forma: o preceito e a sanção. O preceito, também chamado preceito primário ou preceptum iuris, está contido na primeira parte da norma, que é a descrição da conduta proibida, do


A Lei Penal - 9 comportamento que o direito deseja que não ocorra. No art. 121 do Código Penal, o preceito está contido em: “matar alguém”. Esse comportamento é proibido. A lei, como se observa, criou o crime de homicídio, e, nela, implicitamente, está a norma, o comando, a ordem, o preceito, ordenando: “não matar”. A segunda parte da norma é a sanção, também chamada preceito secundário ou sanctio juris. É a conseqüência jurídica da violação do preceito primário, do descumprimento do mandamento. A técnica legislativa da norma penal é diferente das demais normas jurídicas, ficando bem delimitada a conduta que é proibida, o fato que é considerado crime. A razão é a construção de uma norma clara, exata e precisa, de modo a não pairarem dúvidas, em atenção ao princípio da legalidade.

4.2.4 Norma penal incriminadora em branco Já foi visto que a norma penal incriminadora deve ser clara, exata e precisa, de modo que todos os indivíduos possam saber exatamente qual é o comportamento proibido, qual a conduta que não deve ser realizada, enfim, qual é o fato que a lei considera crime. Veja-se agora o caso das substâncias entorpecentes que causam dependência física ou psíquica, as famosas drogas. Maconha, cocaína, heroína, LSD, crack são algumas das conhecidas substâncias que a sociedade considera perniciosas, e cuja comercialização, fora das normas regulamentares, constitui crime. A sociedade considera importante proibir a disseminação dessas drogas, e a saída encontrada foi a de construir algumas figuras de crime, visando a proteger a saúde pública, com vista em impedir que as pessoas consumissem com facilidade essas substâncias. Para obedecer ao princípio da legalidade, caberia ao legislador elaborar leis proibindo a venda, a entrega, o transporte, enfim, toda e qualquer conduta relativa a distribuição de todas as substâncias entorpecentes. Ora, elas são centenas e centenas, e a cada dia novas delas são descobertas, na natureza, ou sintetizadas, nos laboratórios. Isto significa que, se o legislador tivesse listado todas as substâncias, e uma nova viesse a ser descoberta, ou sintetizada, seria necessária a elaboração de uma nova lei, acrescentando à lei anterior o nome da nova substância que devesse ser proibida.


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Isto demandaria tempo, pois o processo de elaboração de uma lei é demorado. Enquanto não fosse elaborada, sancionada, publicada e entrasse em vigor a nova lei, a dita substância poderia ser livremente comercializada ou distribuída. Nesse tempo, da descoberta da substância e da entrada em vigor da nova lei, o bem jurídico, a saúde pública, ficaria, com relação a ela, absolutamente desprotegido. Para resolver problemas como esse e outros, existe uma espécie de norma penal incriminadora sui generis, a chamada norma penal em branco, cega ou aberta. Essa norma penal traz a sanção completa, perfeita, pronta e acabada, mas traz seu preceito primário incompleto, com seu conteúdo indeterminado, o qual se completa por outra norma jurídica. Tome-se o exemplo da Lei de Entorpecentes, nº 11.343 /2006. Diz o seu art. 33: “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena – reclusão, de 5 a 15 anos, e pagamento de 500 a 1500 dias-multa.” Observa-se que a sanção está completa; todavia, o preceito está indeterminado ou incompleto, pois não está claro, preciso, exato, o significado de “drogas”. Sabe-se que os cigarros comuns, legalmente vendidos no país, e sobre cuja venda o Estado arrecada grande volume de tributos, são drogas, substâncias que causam dependência psíquica; todavia, como é óbvio, sua comercialização não é proibida. Torna-se necessário saber, então, quais são as substâncias que se enquadram no preceito. Como se afirmou, a norma penal em branco tem preceito que se completa por outra norma jurídica. Na mesma Lei n° 11.343 /2006, no parágrafo único do art. 1° está estabelecido: “Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União..” A norma do parágrafo único do art. 1° esclarece que o preceito do art. 33 será completado por outra lei, ou por uma norma jurídica elaborada pelo órgão público, que é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. A norma em branco do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 será completada por outra lei ou por uma resolução expedida pela ANVISA.


A Lei Penal - 11 Todas as substâncias proibidas pela Lei nº 11.343/2006 são relacionadas em ato administrativo do órgão competente. O problema apontado no início fica superado. Se uma nova substância vier a ser descoberta, sintetizada, importada, não será necessária a elaboração de uma nova lei, bastando uma simples resolução ou portaria do órgão competente, que pode ser expedida imediatamente e, desde que publicada no Diário Oficial da União, a substância nela relacionada será proibida, tornando-se, a partir de então, crime sua comercialização, nos termos do art. 33 da Lei n° 11.343/2006. A norma penal em branco é construída não apenas para resolver situações como estas, mas, em outros casos também, por exemplo, quando o Direito Penal visa a proteger o cumprimento de certas decisões administrativas que possam ser necessárias no futuro. Em casos de calamidade pública ou de grave epidemia, ou outras situações emergenciais, o Poder Executivo necessita adotar certas medidas e vê-las respeitadas pelos cidadãos. Desse modo, pode-se entender necessário colocar o cumprimento de tais ordens sob a proteção do Direito Penal. Para isso, recorre-se à construção de normas penais em branco como as do art. 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de 1(um) mês a 1(um) ano, e multa.” Esta norma tem seu preceito impreciso, que pode ser completado a qualquer momento, com a edição de um ato administrativo, emanado do Poder Executivo, Federal, Estadual ou, mesmo, Municipal. Como se vê, a norma em branco está em pleno vigor, aguardando seu complemento, que a torna viva e perfeita, pronta para surtir efeito no mundo.

4.2.4.1

Norma penal em branco em sentido estrito

Chama-se norma penal em branco em sentido estrito aquela cujo complemento emana de outra instância legislativa, por exemplo um decreto, uma portaria, uma resolução. Exemplos: art. 33 da Lei n° 11.343/2006, completado por Resolução da ANVISA; art. 269 do Código Penal, completada por Portaria do Ministério da Saúde; art. 2º, VI, da Lei nº 1.521, completada por Portaria da Sunab.

4.2.4.2

Norma penal em branco em sentido amplo

Quando o complemento provier de outra lei, chama-se norma penal em branco


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles em sentido amplo, como ocorre com a norma do art. 237 do Código Penal: “Contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta: Pena – detenção, de três meses a um ano.” Os impedimentos de que trata esta norma são listados no art. 1.521 do novo Código Civil. Neste caso, se houver qualquer mudança na lei civil, acrescentando ou suprimindo um impedimento que torna o casamento absolutamente nulo, não será necessária qualquer modificação da norma penal incriminadora.


5 APLICAÇÃO DA LEI PENAL

___________________________ Toda e qualquer lei existe para ser aplicada aos fatos praticados pelos indivíduos, em determinado tempo, num Estado. Há mais de uma centena de Estados no planeta, cada qual com sua sociedade e com seu direito. Os homens relacionam-se internacionalmente e daí advêm problemas e conflitos de aplicação das leis. As sociedades estão em pleno movimento. Leis são criadas, modificadas, substituídas, eliminadas. O tempo passa, as leis ficam ou também passam. É preciso verificar as normas que regem a aplicação das leis penais no tempo, no espaço e em relação a algumas pessoas que, pelas funções que exercem, recebem tratamento especial, como se verá.

5.1

APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO As leis penais, regra geral, são feitas para se aplicarem apenas aos fatos ocorridos

após sua vigência, que é o momento em que elas adquirem força obrigatória. Pela regra da Lei de Introdução ao Código Civil, a lei brasileira começa a vigorar, salvo disposição expressa em contrário, 45 dias após sua publicação no Diário Oficial da União. Na prática, todavia, as leis entram em vigor na data de sua publicação, por força de disposição expressa nesse sentido. Em vigor, a lei passa a ser aplicada a todos os fatos que ocorrem daí em diante. Acontece, todavia, que as leis podem ser modificadas por outras, que lhes sucedem, umas mais severas, outras mais brandas, como já visto.

5.1.1 Tempo do crime O primeiro ponto a ser esclarecido quanto à eficácia da lei no tempo é o que diz


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles respeito ao tempo do crime: quando é que se deve considerar praticado um crime. Grande parte dos fatos considerados crimes é constituída por um comportamento humano que tem como conseqüência determinado evento, como, por exemplo, no homicídio. Quando João dispara uma arma de fogo, matando Pedro, verifica-se o comportamento (disparar a arma) e sua conseqüência (a morte de Pedro). Quando ação e resultado ocorrem no mesmo dia, não há problemas, mas pode acontecer que a ação de João ocorra num dia e a morte de Pedro só se dê dias ou até meses depois. De se perguntar quando ocorreu o homicídio: no dia em que João disparou os tiros ou no momento em que Pedro morreu? A solução deste problema é importante, por exemplo, nessa hipótese: João tem 17 anos, 11 meses e 20 dias no dia em que disparou os tiros, e 18 anos e 10 dias no dia da morte de Pedro. Se se considerar como dia do crime a data da ação, João não será punido, porque, menor de 18 anos, não tem capacidade penal. Se, entretanto, entenderse como dia do crime a data da morte de Pedro, então João será punido. Outra situação. No dia em que alguém comete a ação, está em vigor uma Lei X, e no dia em que ocorre o resultado, vigora a Lei Y, que dá tratamento diferenciado ao crime. Quando este aconteceu? Para explicar o tempo do crime, a doutrina construiu três principais teorias: a da atividade, que considera praticado o crime no momento da ação, a do resultado, que o considera praticado no momento da ocorrência do resultado, e a mista, ou da ubiqüidade, que o considera praticado nos dois momentos. Esta última é inaceitável, pois que, em vez de solucionar os problemas apontados, pode gerar situações de absoluta e insolúvel perplexidade. Entre as duas primeiras, a da atividade é a correta e, por isso, adotada pelo Código Penal Brasileiro, que em seu art. 4º dispõe: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.” O que mais importa no crime é, primordialmente, o comportamento do homem, com todas suas características, seu desvalor, que o diferencia, e não a conseqüência da conduta. Sem comportamento, não existe resultado, ao passo que, se é certo que o Direito Penal busca proteger os bens jurídicos mais importantes das lesões mais graves, não menos exato é que podem existir lesões sem que haja, necessariamente, resultado, conseqüência da conduta definida como crime.


Aplicação da Lei Penal - 3 Há casos em que um comportamento, independentemente de causar esta ou aquela conseqüência, constitui uma lesão ou uma ameaça de lesão a determinado bem jurídico, e que já é considerado crime, como na conduta do médico que deixa de comunicar, à autoridade pública, a ocorrência de uma doença cuja notificação é compulsória (art. 269, CP). Neste caso, não é necessário nenhum contágio. Nenhuma contaminação. Basta que o médico deixe de realizar a comunicação. Este seu comportamento – de inércia – por si só já é considerado crime, já constitui uma lesão à saúde pública, sem, contudo, existir qualquer conseqüência natural. Por isso também, quanto ao tempo do crime, a teoria correta é a da atividade, abraçada pelo Código Penal.

5.1.2 Solução dos conflitos Sucedendo-se leis no tempo, eventuais e aparentes conflitos se resolvem com a aplicação de regras muito simples. A primeira é a de que se aplica, em princípio, a lei do tempo do fato, tempus regit actum. Se Alfredo cometer um crime sob a vigência da Lei A, esta, em princípio, é a lei a ser aplicada. Em seguida, toma-se como regra o princípio da extra-atividade da lei penal mais favorável. Sucedendo lex gravior, lei que dá ao fato tratamento mais rigoroso, ela não retroagirá. Sucedendo lex mitior, aquela que, de qualquer modo, beneficia o infrator da norma, ela retroagirá.

5.1.3 Abolitio criminis Pode ocorrer que uma lei que define certo fato como crime venha a ser revogada por outra lei, em atenção ao desejo da sociedade de não mais punir aquele comportamento humano. Desaparece, assim, do ordenamento penal aquela figura de crime. É claro que essa lei posterior vem beneficiar todo aquele que tiver praticado o tal fato antes considerado criminoso. É possível que haja pessoas sendo processadas, outras até cumprindo penas, quando entra em vigor a lei nova abolindo o crime. Esta lei vai retroagir, vai aplicar-se a todos os fatos ocorridos antes de sua vigência. Extingue-se o processo que estiver em curso. Liberta-se o sentenciado que estiver cumprindo sua pena. O art. 2º do Código Penal complementa aquele princípio constitucional: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.”


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles

5.1.4 Novatio legis in mellius Pode ocorrer que uma lei posterior venha a dar tratamento mais brando a um crime, por exemplo, diminuindo o grau máximo da pena cominada, ou criando uma circunstância atenuante, eliminando uma agravante, enfim, beneficiando, de qualquer modo, o infrator da norma penal. Essa lei, igualmente, vai retroagir, consoante bem esclarece o parágrafo único do mesmo art. 2º do Código Penal: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

5.1.5 Novatio legis in pejus O contrário também ocorre; aliás, nos últimos anos, é o que mais tem ocorrido no Brasil, pois o legislador vem, equivocadamente, utilizando-se do Direito Penal como fosse ele instrumento de combate ao crime, e não têm sido poucas as propostas de endurecimento do Direito Penal. Exemplo é a Lei nº 8.072/90, que definiu os chamados crimes hediondos, que exacerbou penas e agravou a situação dos acusados desses delitos. Essas leis são absolutamente irretroativas. Somente serão aplicadas aos fatos ocorridos após sua vigência. A lei anterior, a lei do fato, deve, pois, ser aplicada, por ser a mais favorável. É essa, portanto, ultraativa.

5.1.6 Lex intermedia Pode acontecer uma situação peculiar. Um fato ocorre sob a égide de uma Lei X, que para ele comina uma pena de, por exemplo, reclusão de quatro a oito anos. Iniciado o processo, antes de sua conclusão, entra em vigor a Lei Y, com pena entre dois e seis anos; portanto, mais favorável ao acusado. Esta Lei Y, contudo, acaba por ser revogada, pouco tempo depois, pela Lei Z, que comina pena de cinco a 12 anos de reclusão. Em vigor esta lei, chega o momento da prolação da sentença condenatória. Qual Lei deverá o juiz aplicar? A do fato, X, que é mais benéfica que a lei que está em vigor? Pode ele aplicar a Lei Y, que é a mais favorável, mas que não é a lei do fato e que nem


Aplicação da Lei Penal - 5 está mais em vigor? Pode ser aplicada uma lei revogada, que não seja a lei do fato? Se, entre o fato e aplicação concreta da lei, se sucederem mais de duas leis, regulando o mesmo fato, e uma delas, que não a do fato, nem a do tempo da aplicação, for a mais benéfica, será, mesmo assim, aplicada ao caso. Será ultra-ativa e retroativa, pois vai ser aplicada, mesmo não estando em vigor, a fato ocorrido antes de sua vigência. É que o acusado do crime adquiriu o direito de ser punido pela lei mais favorável, a intermediária, no exato momento em que ela entrou em vigor, não podendo ser prejudicado em razão da demora na conclusão do processo. A lei do tempo da sentença – mais severa – não pode ser aplicada, pois, se assim fosse, estaria retroagindo, o que, por ser mais dura, não se admite, em nenhuma hipótese. A lei penal mais benéfica é, portanto, extra-ativa.

5.1.7 Lex tertia Outra situação bastante interessante. Imagine-se que vigore no país a Lei A, que define certo fato-crime e comina, para seu cometimento, uma pena de reclusão de quatro a 10 anos, e estabelece o regime fechado para o início de cumprimento da pena, qualquer que seja a quantidade fixada. Se o agente daquele crime vier a ser condenado à pena mínima, ainda assim iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Sob a égide desta lei ocorre o fato por ela considerado crime, iniciando-se o processo, quando entra em vigor a Lei B, que estabelece, para o mesmo fato, a pena de seis a 12 anos, todavia, manda o juiz observar, no que diz respeito à fixação do regime, a norma do Código Penal, que diz: “a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto” (art. 33, § 2º). Se o juiz for condenar o infrator à pena mínima, como deverá proceder? Aplicará quatro anos em regime fechado, de acordo com a lei do fato, ou seis anos em regime semi-aberto, de acordo com a lei da sentença?


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles Poderia ele aplicar quatro anos, em regime aberto, combinando os dispositivos das duas leis, a pena cominada pela Lei A e o regime de cumprimento fixado pela Lei B? Diverge a doutrina sobre ser possível combinar dispositivos legais de mais de uma lei, extraindo de ambas o que, em cada uma, for mais favorável ao agente do fato. Para os que combatem esta possibilidade, se assim fizesse o juiz, estaria criando uma terceira lei, inexistente e, por isso, invadindo a esfera do Poder Legislativo, o que não se pode admitir. Mas, se a Constituição Federal manda a lei penal mais benéfica retroagir sempre, o que se pode afirmar é que apenas o dispositivo benéfico retroage, irretroativo o mais severo. O desejo da lei maior é que retroaja a norma mais benéfica, e não o texto legal integral, a não ser que fosse ele, integralmente, mais favorável. Se num mesmo texto há vários dispositivos, uns benéficos, outros prejudiciais, é claro que só aqueles retroagem. Ao combinar os dispositivos de duas leis, o juiz não cria uma terceira lei, mas apenas obedece ao preceito constitucional, maior, que não manda a lei retroagir por inteiro, mas determina a retroatividade de todo e qualquer dispositivo legal que vier favorecer o réu. A conclusão é de que o juiz não só pode, como também tem o dever de aplicar os dispositivos mais benéficos ao acusado, não importa se estiverem contidos em duas, três ou quantas leis diferentes.

5.1.8 Lei excepcional e lei temporária Algumas leis existem para vigorar por certo tempo, dependendo da ocorrência de certa condição ou de certo termo. Em determinadas situações, pode o legislador criar leis para ter vigência por um prazo determinado (90 dias, um semestre, um mês, um ano, uma semana), ou, enquanto perdurar certa situação (uma guerra, uma epidemia etc.). As leis temporárias, após o término do prazo de sua vigência, e a lei excepcional, com o fim da situação que a determinou, serão, mesmo assim, aplicadas aos fatos ocorridos durante sua vigência, depois de findo aquele prazo ou cessada aquela situação determinante. Não podia ser diferente. Se se pensasse que tais leis só seriam aplicadas enquanto estivessem em vigor, nenhum de seus destinatários, nenhuma das pessoas evitaria a prática dos fatos por elas coibidos, na certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a lei não mais vigoraria, e, nesse tempo, nenhum processo chegaria a seu termo, pelo que não


Aplicação da Lei Penal - 7 haveria motivo para obedecer-lhe. Seriam leis inócuas. A regra do art. 3º do Código Penal é clara: “A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.” Não se está diante de uma exceção ao princípio da extra-atividade da lei penal mais benéfica, já que não se trata de lei posterior mais favorável revogando a anterior, mas de lei anterior excepcional e temporária. Como bem alerta CERNICCHIARO, “o conceito de lei mais favorável é relativo. Há de haver pelo menos duas para confronto. (...) Cessação de vigência não se confunde com revogação. Esta retira a lei do ordenamento jurídico. Aquela, apesar de expirado o prazo legal, permanece no Direito, evidentemente apenas quanto às relações jurídicas constituídas durante a vigência e ainda não desconstituídas por outro fato”1.

5.1.9 Síntese A conclusão a que se deve chegar é que a lei penal mais benéfica, o dispositivo penal mais brando, mais favorável ao acusado da prática de um crime, deve ser aplicado sempre. O fato definido como crime é o ponto de partida. Verifica-se a lei então vigente e as leis posteriores, para descobrir qual delas é a mais benéfica. Se a mais benéfica é a lei do tempo do fato, apesar de revogada, vai ser aplicada, e, nesse caso, estará sendo ultra-ativa. Será aplicada mesmo já não estando em vigor. Se a mais benéfica é a norma da lei posterior à do fato, a do tempo da sentença, ou mesmo posterior a esta, será aplicada, e, portanto, retroativa. Algumas vezes, o julgador pode ver-se diante de enorme dificuldade na definição de qual das leis é a mais benéfica. Neste caso, impõe-se ouvir o acusado, por si ou por seu defensor, que saberão indicar ao juiz qual a mais benéfica. Não há segredo, nem dificuldade: a lei mais benéfica sempre será aplicada. Ela será, pois, retroativa ou ultrativa, numa palavra: extra-ativa.

1 CERRNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JR., Paulo José. Direito penal na constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 67.


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles

5.2

APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO As leis são elaboradas para ser aplicadas no território do Estado que as elaborou. A

lei brasileira, no Brasil, a japonesa, no Japão. O mundo, todavia, não é um conjunto de compartimentos estanques. As pessoas comunicam-se, interagem, independentemente das fronteiras nacionais. Os homens relacionam-se apesar das várias nações. Assim como se rompem barreiras no sentido de uma sociedade futura sem limitações, sem preconceitos, também a outra face da moeda se faz notar: a criminalidade, igualmente, não respeita as fronteiras dos países. Cometem-se crimes à distância. Comportamento realizado no Brasil pode produzir efeitos no Paraguai, na China e na Noruega, ao mesmo tempo, no mesmo dia. Com um gesto realizado em Hong-Kong, um homem pode apropriar-se de dinheiro depositado num banco situado em Berna, de propriedade de pessoas residentes em Berlim, Cingapura, Brasília e Paris. Uma única ação realizada num ponto do planeta, num Estado, vai produzir efeito noutro, importando na lesão de bens cujos titulares são nacionais de quatro outros Estados distintos. À medida que mais se desenvolvem as relações entre os vários povos, mais facilmente podem ocorrer crimes. Conflitos de leis de vários Estados podem estabelecer-se e devem ser resolvidos. São necessárias regras para dirimir eventuais situações de perplexidade. Onde ocorreu o crime? Qual lei aplicar? Como fazer?

5.2.1 Lugar do crime A primeira tarefa é definir onde ocorreu o crime. No lugar onde a conduta foi realizada, ou onde o resultado aconteceu? Imagine-se a seguinte hipótese, bem simples. Eduardo, da cidade de Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, efetua um disparo de arma de fogo em direção ao outro lado da rua, atingindo a pessoa de Pablo, cidadão uruguaio, que se encontra na cidade de Rivera, produzindo-lhe ferimentos que dão causa a sua morte, que ali ocorre, imediatamente. As duas cidades situam-se exatamente na fronteira entre Brasil e Uruguai, separadas por alguns poucos metros de uma simples rua. A conduta ocorreu no Brasil, o resultado, no Uruguai. Onde ocorreu o crime: lá


Aplicação da Lei Penal - 9 ou cá? A hipótese, bastante simples, torna-se cada vez mais comum e sofisticada, com o uso do computador e das comunicações telefônicas e por satélite, pela Internet, especialmente com o tráfico internacional de entorpecentes, e outros crimes que envolvem o sistema financeiro internacional. Três teorias buscam explicar o lugar do crime: a da atividade, que o considera praticado no lugar do comportamento, a do resultado, que leva em conta o lugar onde ocorre a conseqüência do comportamento, e a mista, ou da ubiqüidade, que considera praticado o crime num como noutro lugar, tanto lá, quanto cá. Aqui, diferentemente do raciocínio realizado quando se tratou do tempo do crime, é preciso pensar na seguinte hipótese: no país A, vigora a teoria da atividade e no país B, a teoria do resultado. No país B, Cláudio dispara um tiro de revólver contra Antônio que, ferido, é transportado para o país A, onde vem a falecer. ‘Houve um homicídio, é óbvio, pois Cláudio queria e conseguiu matar Antônio. Onde ocorreu o crime de homicídio? Se no país B, onde aconteceu a conduta, vige a teoria do Resultado, o Direito desse país considera que aí não aconteceu o crime, pois Antônio não morreu aí. Apenas Cláudio realizou a conduta. Se no país A, onde aconteceu o resultado, vale a teoria da atividade, o direito desse país considera que aí não aconteceu o crime, pois Cláudio não realizou nenhum comportamento aí. O que houve foi o resultado, a morte de Antônio. Apesar de Cláudio ter agido com vontade de matar e de Antônio ter morrido em conseqüência do comportamento daquele, o crime não terá acontecido em nenhum lugar, o que equivale a dizer que não houve crime, o que é um absurdo. Por isso, o Código Penal brasileiro adota a teoria da ubiqüidade, que é a correta, no art. 6º, assim: “Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.” No exemplo dado, o crime ocorreu no Brasil e no Uruguai. No outro exemplo, ocorreu nos dois lugares, A e B. Esta teoria evita a possibilidade de o crime ficar sem punição. É certo que ninguém será punido duas vezes, em dois países distintos, por um único fato, uma vez que há um princípio geral de Direito – escrito em alguns


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles ordenamentos, inclusive no Código Penal (art. 8º) – que proíbe a dupla punição pelo mesmo fato, vedando o chamado bis in idem.

5.2.2 Princípios de direito penal internacional Definido o lugar do crime, onde ocorreu a conduta e onde aconteceu o resultado, ainda assim permanece a possibilidade de conflitos. Pense-se na seguinte situação: o Presidente da República do Brasil, em viagem à China, tem sua liberdade pessoal agredida, por terroristas internacionais que o seqüestram, exigindo, do governo brasileiro, a libertação de certo prisioneiro. Trata-se, pois, da agressão de um bem jurídico da mais alta importância para o país – a liberdade pessoal do Chefe do Estado Brasileiro – realizada fora do território nacional. Qual lei será aplicada? Outra hipótese: Sérgio, brasileiro, comete um crime na Alemanha, e consegue fugir para o Brasil, antes de ser preso e processado. O governo alemão, desejoso de punir o brasileiro que violou sua lei penal, pede ao governo brasileiro que lhe entregue Sérgio, para que, em Bonn, seja julgado. O Brasil entregará seu cidadão? Outra situação. Quadrilhas internacionais realizam tráfico de drogas, praticando atos em locais situados em cinco países diferentes. Qual deles será o competente para julgar tais crimes? Para solucionar esses problemas, existem cinco princípios que cuidam do âmbito de eficácia espacial da lei penal de cada Estado.

5.2.2.1

Princípio da territorialidade

O princípio da territorialidade, ou princípio territorial exclusivo, afirma que a lei penal do Estado aplica-se ao crime ocorrido dentro, e tão-somente dentro, do território do referido Estado. A lei penal só tem aplicação no território do Estado que a determinou, pouco importando a nacionalidade do infrator da norma e a do indivíduo ofendido. Por este princípio, a lei penal de um Estado nunca seria aplicada a um fato ocorrido no território de outro Estado. Se tiver havido um crime, em Brasília, praticado por um espanhol, contra um holandês, a lei a ser aplicada é a brasileira, pouco importando que as leis da Espanha ou da Holanda sejam mais favoráveis ou mais severas para o infrator da norma penal. Este princípio exclui, portanto, a aplicação da lei penal de um Estado a um crime ocorrido no estrangeiro.


Aplicação da Lei Penal - 11

5.2.2.2

Princípio da nacionalidade

Diz o princípio da nacionalidade que a lei penal do Estado será aplicada a seus cidadãos, onde quer que eles se encontrem. A razão do princípio é que o cidadão deve obediência à lei de seu país, ainda que fora dele se encontre. Se um brasileiro cometesse um crime na Hungria, aplicar-se-ia a lei brasileira. Do mesmo modo, se um cubano cometesse um crime no Brasil, a lei a ser aplicada seria a de Cuba. O princípio – apesar de ponderáveis razões em seu favor, especialmente as de ordens histórica, sociológica e psicológica – não resolve os problemas verificados. Como aplicar ao crime cometido no Brasil a lei da China? Onde seria ela aplicada, lá ou cá? A soberania dos Estados nacionais restaria gravemente violada. Impossível, ainda, a aplicação do princípio, irrestritamente, levando-se em conta a diversidade dos vários ordenamentos penais. Aquilo que é definido como crime num Estado pode não ser em outro, e vice-versa. Este princípio se desdobra em dois. Chama-se princípio da nacionalidade ativa aquele segundo o qual se aplica a lei do Estado ao delinqüente, onde quer que ele se encontre. Já o princípio da nacionalidade passiva exige que, além de ser nacional o sujeito ativo do crime, seja nacional também o titular do bem jurídico atacado ou ameaçado de lesão.

5.2.2.3

Princípio da defesa ou princípio real

Este preceito leva em conta exclusivamente a nacionalidade do bem jurídico atacado, independentemente do local onde aconteceu o ataque, e da nacionalidade da vítima. Segundo o princípio, a lei penal do Estado seria aplicada ao crime praticado contra o bem jurídico nacional, onde quer que fosse o lugar do crime e independentemente da nacionalidade do delinqüente. Por ele, a lei brasileira seria aplicada ao crime cometido contra bem jurídico nacional, ou cujo titular fosse nacional, qualquer que fosse o lugar do crime. Se o automóvel de João, brasileiro, viesse a ser furtado na Argentina, por um argentino, equatoriano ou canadense, a lei brasileira seria aplicada.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles

5.2.2.4

Princípio da justiça penal universal

Pelo princípio da justiça penal, cada Estado poderia punir qualquer crime, seja qual fosse a nacionalidade de seus sujeitos ou o lugar de sua prática, bastando que o delinqüente ingressasse no território desse Estado. Se Pedro, brasileiro, cometesse um crime no Equador, contra um alemão, e fugisse para a Hungria, seria punido segundo a lei húngara. Se tivesse entrado na Dinamarca, ali seria julgado, conforme a lei dinamarquesa. Se este princípio pudesse ser adotado em todos os Estados, ficaria diminuída, em grande parte, a impunidade, pois a fuga seria inócua. Todavia, no atual estágio da organização dos Estados, é praticamente impossível a adoção integral desse princípio. As dificuldades com a instrução dos processos, com a apuração dos fatos, aliadas à inexistência de um Direito Penal único, em todo o planeta, mantêm o princípio ainda no campo da utopia.

5.2.2.5

Princípio da representação

Este princípio, para melhor compreensão do leitor, será estudado no item 5.2.4.2.

5.2.3 Territorialidade Para a resolução dos conflitos espaciais das leis penais, o Código Penal Brasileiro encontrou a fórmula mais utilizada entre todos os povos modernos. Adota o princípio da territorialidade como regra, e os demais princípios como exceção. Diz-se, por isso, que entre nós vigora a territorialidade temperada. Dispõe o art. 5º do Código Penal: “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.” Esta é a regra: a lei brasileira será aplicada aos crimes que forem cometidos dentro do território nacional. Excepcionalmente, poderá ser aplicada a crimes cometidos fora de nosso território. A propósito, importa, em primeiro lugar, conceituar, juridicamente, território.

5.2.3.1

Território jurídico

Território jurídico é todo o espaço em que o Estado exerce sua soberania. O território nacional é o espaço terrestre, marítimo e aéreo, sujeito à soberania do Estado,


Aplicação da Lei Penal - 13 quer seja compreendido entre os limites que o separam dos Estados vizinhos, ou do mar livre, quer esteja destacado do corpo territorial principal ou não. Esta é a definição que NELSON HUNGRIA2 apresenta, de acordo com MANZINI.

5.2.3.2

Extensão do território nacional

São consideradas extensões do território nacional as embarcações e as aeronaves brasileiras públicas, ou a serviço do governo, onde quer que se encontrem. Os aviões da Força Aérea Brasileira, ou o de propriedade particular que estiver a serviço do governo brasileiro, são considerados extensão do território brasileiro, em qualquer parte do planeta, de modo que, ocorrendo um crime no interior de uma dessas aeronaves, mesmo que ela se encontre em pouso no aeroporto de qualquer nação do mundo, ou em vôo pelo espaço aéreo sujeito à soberania de outro país, o crime terá ocorrido no território brasileiro, aplicando-se a ele, por isso, a lei brasileira. Igualmente, são consideradas extensões do território nacional as aeronaves e embarcações brasileiras mercantes privadas, quando se encontrarem no espaço aéreo correspondente ao alto-mar, local em que nenhuma nação exerce soberania. É a norma do art. 5º, § 1º, do Código Penal. Obviamente, as aeronaves e embarcações estrangeiras públicas, ou a serviço de governos estrangeiros, quando em pouso ou ancoradas em território brasileiro, ou mesmo no mar territorial e no espaço aéreo nacional, são consideradas território estrangeiro. E, como não poderia deixar de ser, havendo crime no interior de embarcações ou aeronaves estrangeiras privadas, quando no território brasileiro, ou no espaço aéreo ou no mar territorial, aplicar-se-á a lei brasileira.

5.2.4 Extraterritorialidade Excepcionalmente, a lei penal brasileira poderá ser aplicada a fatos ocorridos fora do território nacional. Pelas mais diferentes razões, em algumas situações particulares, torna-se indispensável que a lei brasileira seja aplicada a fatos ocorridos no estrangeiro. Em alguns casos, isso ocorrerá independentemente de qualquer condição. Noutros, a lei exige algumas condições para que possa ser aplicada ao fato ocorrido fora do Brasil.

2

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 1, t. 1, p. 155.


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles Vejam-se, primeiramente, os casos de crimes que, ocorridos no estrangeiro, ficarão sujeitos à lei brasileira, independentemente de qualquer condição.

5.2.4.1

Extraterritorialidade incondicionada

Dispõe o art. 7º, I, do Código Penal, que ficarão sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os seguintes crimes: a) praticados contra a vida ou a liberdade do Presidente da República. Se o Chefe do Estado brasileiro, em viagem ao exterior, vier a tornar-se vítima de homicídio (art. 121, CP), tentativa de homicídio (art. 121, c/c 14, II, CP), ameaça (art. 147, CP), seqüestro e cárcere privado (art. 148, CP), constrangimento ilegal (art. 146, CP), a lei penal brasileira será aplicada. Trata-se da adoção do princípio da defesa, pois se leva em conta a nacionalidade do bem jurídico e, é óbvio, a sua importância. A vida e a liberdade do Chefe da Nação são bens da mais alta consideração, não em razão da pessoa do Presidente, mas da função que exerce; b) os crimes contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, das unidades federadas, dos municípios, de empresas públicas, sociedades de economia mista, autarquias ou fundações instituídas pelo Poder Público. Incluem-se entre tais crimes: roubo (art. 157, CP), furto (art. 155, CP), estelionato (art. 171, CP), falsificação de moeda (art. 289, CP), falsidades de títulos públicos (art. 293, CP) e outras falsidades. c)os crimes contra a administração pública, por quem estiver a seu serviço, como, por exemplo, o peculato (art. 312, CP) e a concussão (art. 316, CP); d) os crimes de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil. Os crimes de genocídio estão definidos pela Lei nº 2.889, de 1º-10-1956, assim: “Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.” Na hipótese da ocorrência desses crimes, a lei brasileira será aplicada independentemente de qualquer condição, inclusive se o infrator da norma tiver sido absolvido ou condenado no estrangeiro. Para evitar, nesses casos, o bis in idem, que é a possibilidade de vir alguém a


Aplicação da Lei Penal - 15 sofrer punição duas vezes pelo mesmo fato, o art. 8º do Código Penal determina que a pena que tiver sido cumprida no estrangeiro vai atenuar aquela a ser imposta no Brasil, se for diferente. Se for idêntica, será computada na pena a ser aplicada no Brasil. Exemplo: no Japão, um indivíduo tenta contra a vida do Presidente da República do Brasil. Lá é preso, julgado e condenado. Será igualmente julgado aqui no Brasil, onde acaba por ser, também, condenado. Tendo cumprido pena no Japão, e ingressado no território brasileiro, por ter o governo japonês atendido ao pedido de extradição de nosso governo, sua situação será a seguinte: (a) se a pena cumprida no Japão tiver sido de reclusão de cinco anos, e aqui tiver sido condenado a oito anos de reclusão, aquele tempo será computado nos oito, e ele só cumprirá três anos no Brasil; (b) se lá tiver cumprido pena de detenção, e aqui vier a ser condenado a pena de reclusão, terá esta pena atenuada, diminuída em alguma quantidade de tempo.

5.2.4.2

Extraterritorialidade condicionada

Em outras situações, a aplicação da lei brasileira a crimes ocorridos no estrangeiro dependerá do preenchimento de algumas condições. Os crimes estão relacionados no art. 7º, II, Código Penal, entre eles os que, por tratado ou convenção, o Brasil tiver-se obrigado a reprimir. Incide o princípio da justiça universal. Por razões de interesse político de todos os Estados, eles celebram tratados de cooperação internacional também no campo do Direito Penal, para combater, por exemplo, o tráfico ilícito de entorpecentes. Outra situação difícil. Um cidadão brasileiro comete um crime no estrangeiro e consegue retornar ao Brasil, sem que tenha sido preso. O Estado estrangeiro tem interesse em aplicar sua lei penal, posto que o brasileiro a desrespeitou. Sem que ele ali compareça, não poderá o Estado estrangeiro aplicar a sua lei, isto é, não poderá ser imposta a pena a que terá sido condenado o cidadão brasileiro. Para resolver situações como essa, o direito internacional criou o instituto da extradição, um instrumento jurídico por meio do qual se dá a entrega de uma pessoa, por um Estado, a outro, para que, por este, seja ela julgada ou punida. Pois bem, se o governo estrangeiro solicita a extradição daquele brasileiro, o governo entregará o cidadão nacional? Não, porque segundo manda a Constituição Federal, art. 5º, LI, o Brasil não extradita nacionais. Assim, diz a Carta Magna: “Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.” O brasileiro nato, portanto, não será extraditado em nenhuma hipótese. O naturalizado, sim, em duas situações. Se o pedido for pela prática de crime comum, somente poderá ser extraditado se o tiver praticado antes da obtenção da nacionalidade brasileira. Se o motivo da extradição for tráfico ilícito de entorpecentes, o naturalizado só será extraditado se já estiver condenado no estrangeiro, por sentença transitada em julgado. Se o Brasil não extradita seus nacionais, deverá, então, julgá-los aqui, segundo a lei brasileira, pois, se não o fizesse, estaria consagrando a impunidade para seus cidadãos que delinqüissem fora do Brasil e conseguissem aqui se homiziar. Por isso, a alínea b do inciso II do art. 7º do Código Penal inclui, entre os casos de extraterritorialidade condicionada, os crimes praticados, no estrangeiro, por brasileiro, incidente, aí, o princípio da personalidade ativa. Outra situação: um crime é cometido no interior de uma aeronave ou embarcação brasileira mercante ou de propriedade privada, em território estrangeiro, e, por qualquer razão, não é julgado nesse país. Acontece, por exemplo, quando a aeronave já se encontrava no espaço aéreo de outro Estado, mas a caminho do Brasil, e seu comandante não retorna ao aeroporto estrangeiro, preferindo continuar até seu país. Esse crime ocorreu no estrangeiro e lá não será punido. Nesse caso, a lei brasileira também pode ser aplicada, por força do disposto no art. 7º, II, c, do Código Penal. Este é o princípio da representação. Para que a lei brasileira seja aplicada nessas hipóteses, é necessário o concurso das seguintes condições (art. 7º, § 2º): 1ª entrar o agente no território nacional. É necessário que o infrator da norma entre no Brasil, seja espontaneamente, seja por força de extradição; 2ª ser o fato punível também no país em que foi praticado. É indispensável que o fato praticado seja definido como crime no país estrangeiro e no Brasil. Por exemplo, se Maria, brasileira, realiza aborto consentido na França e retorna ao Brasil, não poderá ser punida aqui, apesar de o aborto aqui ser proibido; 3ª estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; 4º não ter sido o agente absolvido no exterior ou não ter aí cumprido pena. Se ele já tiver sido julgado e absolvido ou cumprido a pena, não poderá a lei brasileira ser


Aplicação da Lei Penal - 17 aplicada; 5º não ter sido o agente perdoado no estrangeiro, ou não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. A lei penal brasileira ainda poderá ser aplicada ao crime praticado fora de nosso território por estrangeiro contra brasileiro se – além das condições previstas no § 2º do art. 7º – não tiver sido pedida ou tiver sido negada sua extradição e houver requisição do Ministro da Justiça (art. 7º, § 3º, CP).

5.3

APLICAÇÃO DA LEI PENAL EM RELAÇÃO ÀS PESSOAS A lei penal existe para ser aplicada a todas as pessoas; vale, portanto, erga omnes,

alcançando a todos, sem distinção, até porque todos são iguais perante a lei. A esta regra torna-se indispensável excepcionar alguns casos. Algumas pessoas, não por suas qualidades pessoais, mas pela importância das funções que exercem,

necessitam ficar fora do alcance das leis penais. Essa condição desses

sujeitos chama-se imunidade, porque ficam imunes à lei penal, que não os alcança. No

direito

brasileiro

estão

contempladas

imunidades

diplomáticas,

parlamentares, e outras, como a do advogado, relativamente a alguns crimes.

5.3.1 Imunidades diplomáticas Como bem ressalvou o caput do art. 5º do Código Penal, a lei brasileira aplicase ao crime cometido no território brasileiro, “sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional...” Ao longo dos anos, multiplicaram-se as nações no planeta, e, ao mesmo tempo, elas foram estabelecendo relações entre si, as mais diversas, comerciais, culturais, científicas etc. Também os conflitos entre os Estados continuam. Depois da Segunda Grande Guerra Mundial, o mundo dividiu-se: o mundo socialista e o capitalista, além, é certo, de um terceiro mundo marginalizado, em que se situa o Brasil. Recentemente, o mundo assistiu ao fim da União Soviética, com modificações no sistema político dos países do leste europeu. A China parece ter realizado nova revolução silenciosa, permanecendo, do ponto de vista político, fiel ao socialismo, mas economicamente aceitando os mecanismos da sociedade capitalista: um mistério ainda.


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles Árabes e judeus ainda não encontraram a solução para seus problemas. Rabin, chefe do Governo israelense, foi morto por um jovem judeu, lamentavelmente estudante de Direito. O mundo ainda não encontrou a paz, que é a aspiração de toda a humanidade. Os Estados relacionam-se e este relacionamento deve ser o mais amistoso possível, a fim de que se possa caminhar no rumo da construção da paz global entre todos. Para melhor estreitarem o relacionamento entre si, os Estados estabelecem, nos territórios estrangeiros, escritórios de representação, onde são mantidos funcionários que os representam, encarregados dos interesses nacionais junto ao Estado amigo. Essas relações, chamadas diplomáticas, são indispensáveis para que os povos possam colaborar mutuamente, intercambiar suas experiências, sempre com o objetivo de alcançar tempos de paz e de prosperidade. Seus funcionários são chamados agentes diplomáticos (embaixadores, secretários etc.). Para procurar preservar o bom nível do relacionamento entre os Estados, evitando constrangimentos e represálias, os vários Estados estabeleceram as imunidades diplomáticas, instituto segundo o qual os agentes diplomáticos são imunes à lei penal do país em que estiverem servindo. MAGALHÃES NORONHA diz que “não se trata evidentemente de privilégio à pessoa física do representante estrangeiro, mas de acatamento à soberania da nação que ele representa”3 lembrando, ainda, que as imunidades diplomáticas devem ser recíprocas. Significa que, se o embaixador de uma nação amiga cometer, no Brasil, um fato definido como crime, a lei penal brasileira a ele não será aplicada. Em verdade, o fato ocorreu, é proibido, mas quem o praticou não será processado, nem julgado no Brasil, mas em seu país, segundo sua lei. A imunidade alcança apenas seu titular – o agente diplomático – daí que, se outra pessoa, sem imunidade, tiver participado do fato considerado crime, a ela será aplicada a lei nacional. Exemplo: o embaixador e um seu amigo brasileiro, dentro da embaixada do país estrangeiro em Brasília, obrigam uma mulher a praticar com ambos atos libidinosos diversos da conjunção carnal, realizando assim o fato definido como crime de atentado violento ao pudor (art. 214, CP). O embaixador será julgado por seu país, segundo sua lei, e o brasileiro aqui no Brasil, nos termos do Código Penal. As sedes das representações diplomáticas não constituem território estrangeiro, 3

Direito penal. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1978. v. 1, p. 90.


Aplicação da Lei Penal - 19 como se dizia no passado. Qualquer sede diplomática situada no Brasil – embaixada, consulado – é território brasileiro. São, todavia, invioláveis, por força de tratados internacionais, mas ao crime cometido em seu interior aplica-se a lei brasileira, que não será aplicada apenas ao agente diplomático. As imunidades foram estabelecidas pela Convenção de Viena, de 18-4-61, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 103, de 1964, ratificada em 23-2-65, e alcançam os agentes diplomáticos – embaixador, secretários de embaixada, pessoal técnico e administrativo das representações, membros de suas famílias, funcionários das organizações internacionais, chefes de Estado estrangeiro em visita ao país e os membros de suas comitivas.

5.3.2 Imunidades parlamentares Uma segunda espécie de imunidade é a de que gozam os parlamentares, deputados federais e senadores da república. Para que o membro do Poder Legislativo possa desempenhar com plena liberdade sua função de representante do povo, foram instituídas imunidades, que são prerrogativas destinadas a assegurar a maior liberdade de atuação possível. Imaginem o deputado que viesse a defender, em público, a revogação da norma penal que proíbe a aquisição de maconha, para uso próprio, crime definido no art. 28 da Lei nº 11.343/2006. Tal parlamentar poderia, para mostrar a justeza de sua proposição, alardear como benéfico para a saúde o uso da referida droga, até porque existem opiniões científicas que demonstram certo poder calmante na referida substância. Pois bem, este deputado, ao fazer a propaganda do uso da maconha, poderia estar realizando um comportamento proibido pela norma do art. 287 do Código Penal: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção de 3(três) a 6(seis) meses, ou multa.” O parlamentar representa o povo, a sociedade. E mais, relembre-se, o Direito Penal é produto da vontade da sociedade. Se uma parcela desta – que elegeu o tal deputado – deseja permitir o uso da substância, ou não deseja considerar crime a aquisição da maconha para uso próprio, essa sua opinião deve ser, livremente, divulgada no seio da sociedade e, para tanto, seu representante precisa estar imune àquela lei que o proíbe de defender o fato criminoso. Noutras situações, o parlamentar, que é, além de elaborador das leis, encarregado


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles da fiscalização da ação do Poder Executivo, tem a necessidade de formular críticas severas a funcionários públicos ou a outros cidadãos da sociedade. Em certas situações, necessita inclusive relatar fatos que atingem a honra do indivíduo, como, por exemplo, quando denuncia a prática de atos de improbidade administrativa. Precisa, às vezes, até mesmo, ofender a dignidade de um Ministro de Estado. Para que o parlamentar possa exercer, com plena liberdade, seu mandato, a Constituição Federal estabelece as imunidades parlamentares, que são absolutas ou relativas.

5.3.2.1

Imunidades parlamentares absolutas

Dispõe o art. 53, caput, da Constituição Federal: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.” Significa que os parlamentares não cometem os chamados delitos de palavra ou de opinião, neles incluídos os crimes contra a honra (calúnia, difamação, injúria), de incitação ao crime, apologia do crime ou do criminoso, nem aqueles delitos de opinião definidos na Lei de Imprensa e na Lei de Segurança Nacional. É evidente que são imunes às leis penais que definem tais crimes, quando praticarem os fatos respectivos durante e em razão do exercício do mandato parlamentar. Se um deputado ofender a reputação de sua mulher, por questões meramente pessoais, particulares, não estará imune à lei, mas como simples cidadão, a ela estará sujeito. Como se vê, a imunidade é para o parlamentar, e apenas para amparar o exercício legítimo do mandato.

5.3.2.2

Imunidades parlamentares processuais ou relativas

O legislador constituinte de 1988 estabeleceu, no mesmo art. 53, as chamadas imunidades relativas ou processuais, que alcançam todos os outros crimes. Segundo as normas então criadas, o parlamentar, desde a expedição do diploma pela Justiça Eleitoral – documento que lhe assegura a posse e o exercício no cargo para o qual foi eleito –, não poderia ser preso, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processado criminalmente, em nenhuma hipótese, sem prévia licença de sua casa. Quando a licença não fosse concedida, ou na ausência de decisão a esse respeito, não corria a prescrição – a perda, pelo Estado, do direito de punir o infrator da norma


Aplicação da Lei Penal - 21 penal, pelo decurso do tempo. Encerrado o mandato, o processo reiniciar-se-ia, como se não tivesse decorrido nenhum tempo. Muito se criticou essas imunidades parlamentares, sob a alegação de que se tratava de verdadeira impunidade. Havia um número ponderável de pessoas acusadas da prática de crimes que conquistaram mandatos parlamentares exatamente para fugirem aos processos, na certeza que tinham de que, uma vez diplomados e empossados, seus pares dificilmente concederiam licença para o prosseguimento do processo. Verdade também que certos indivíduos obtiveram mandatos exatamente com o fim de cometerem crimes e ficarem acobertados pela imunidade processual. Amplas manifestações na mídia levaram o Congresso Nacional a discutir as imunidades relativas, acabando por alterar as normas constitucionais então vigentes, por meio da Emenda Constitucional nº 35, promulgada em 20 de dezembro de 2001. As mudanças foram importantes. Os parlamentares continuam imunes à prisão, salvo no caso de flagrante de crime inafiançável. Nesse ponto, não houve qualquer modificação em relação ao texto constitucional anterior. Considera-se em flagrante delito quem: a) está cometendo o fato definido como crime; b) acabou de cometê-lo; c) é perseguido, logo após, em situação que faça presumir ser ele o infrator da norma; ou d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumi-lo autor do fato. Esta é a definição do art. 302 do Código de Processo Penal. Em qualquer uma dessas condições, a pessoa está em flagrante. A fiança criminal é uma caução, uma garantia do cumprimento das obrigações processuais do acusado da prática de um fato definido como crime. O preso em flagrante, pode obter a sua liberdade, mediante o pagamento da fiança, e assim passa a responder ao processo. O ordenamento jurídico brasileiro considera insuscetíveis de fiança os crimes mais graves, quando determina que são inafiançáveis os crimes punidos com reclusão cuja pena mínima seja superior a dois anos (art. 323, I, CPP).


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles De conseqüência, os crimes cuja pena seja de detenção ou com pena mínima de reclusão de até dois anos podem ser afiançados. O parlamentar não pode ser preso em flagrante, se tiver praticado fato definido como crime afiançável. Caso o fato seja definido como crime inafiançável, a prisão em flagrante do parlamentar pode ser efetuada, mas, nesse caso, o auto de prisão em flagrante deve ser remetido dentro de 24 horas à Câmara ou ao Senado, que, então, pelo voto secreto da maioria de seus membros, decidirá sobre a prisão: manterá ou a relaxará. A mudança fundamental diz respeito ao processo. Na ordem anterior, o processo contra o parlamentar dependia de licença da casa legislativa. Pela nova regra, o parlamentar pode ser processado, independentemente de licença, perante o Supremo Tribunal Federal, que, ao receber a denúncia, deverá comunicar à casa respectiva. Se se tratar de crime cometido antes da diplomação, o processo terá seu curso normal, e não cabe sequer a comunicação pela Corte Suprema. Se, todavia, for instaurada a ação penal por crime ocorrido após a diplomação, a comunicação será feita, mas o processo pode ser sustado, desde que a requerimento de um partido político representado na Casa do parlamentar, aprovado pelo voto da maioria dos membros da Casa. O pedido de sustação do processo poderá ser feito a qualquer tempo, antes, é óbvio, da decisão final do Supremo Tribunal, e deverá ser votado pela casa no prazo de 45 dias de seu recebimento pela Mesa Diretora. Por decisão final, deve-se entender o trânsito em julgado, daí que, mesmo após a sentença final suscetível de recurso, poderá a Casa sustar o andamento do feito. Concedida a sustação do processo, ficará suspenso o curso da prescrição enquanto durar o mandato, reiniciando-se o processo, após, como se não tivesse decorrido tempo algum. Com esse novo tratamento dado à imunidade processual, é de se perguntar se continua em vigor a norma do § 2º do art. 55 da Constituição Federal, que exige seja a perda do mandato do parlamentar que sofrer condenação criminal transitada em julgado “decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”. Ora, essa norma só tinha sentido no regime anterior, quando a casa legislativa


Aplicação da Lei Penal - 23 tinha o poder de decidir sobre a instauração ou continuidade de processo penal contra parlamentar. Era um complemento daquele sistema de imunidades que reservava à casa legislativa o direito de condicionar a instauração e prosseguimento da ação penal. Agora, quando a casa legislativa não pode impedir a ação penal por crime cometido antes da diplomação, poderá ela impedir a perda do mandato decorrente de condenação criminal transitada em julgado? A meu sentir, é uma incoerência. Se o trânsito em julgado de condenação criminal de um parlamentar referir-se a crime posterior à diplomação, terá sido sem sustação do processo pela casa legislativa, o que significa que a casa considerou, implicitamente, necessário o curso do processo. Poderá, ainda assim, o condenado conservar o mandato, por decisão do Parlamento? Penso que há uma incompatibilidade gritante entre o novo sistema de imunidade processual e esse dispositivo constitucional, o qual, por isso, a meu ver, está revogado tacitamente pela Emenda Constitucional nº 35/2001. Além dessas imunidades processuais, os parlamentares não são obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações. O novo tratamento constitucional conferido aos parlamentares, relativamente ao processo penal, é, evidentemente, um avanço em relação à ordem anterior. Doravante, a instauração e o desenvolvimento da ação penal – o processo – não depende de licença, e só poderá ter impedido seu curso, se houver pedido expresso formulado por um partido político representado na Casa do parlamentar acusado, e aprovação pela maioria absoluta, isto é, por mais de cinqüenta por cento dos membros da Casa. E não alcança os crimes cometidos antes da diplomação. Desse modo, a conquista de um mandato parlamentar não mais servirá a pessoas que estejam sendo processadas. Por outro lado, cometido crime após a diplomação, o processo somente será sustado se houver interesse expresso de um partido político – que arcará com o ônus de promover o requerimento, enfrentando a opinião pública – e a aprovação da maioria dos membros da Casa Legislativa.

5.3.3 Imunidade do advogado O art. 133 da Constituição Federal estabelece: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” O art. 142 do Código Penal, de 1940, dispõe: “Não constituem injúria ou difamação punível: I – a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador.” Já a Lei nº 8.906/94, no § 2º do art. 7º, assim estatui: “O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer.” O Supremo Tribunal Federal concedeu, em 5 de outubro de 1994, liminar na Ação de Declaração de Inconstitucionalidade nº 1.127-8, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, suspendendo a eficácia da expressão “ou desacato”, e, julgando o mérito, em 17 de maio de 2006, declarou a inconstitucionalidade da expressão, contida no § 2° do art. 7° da Lei n°8.906/94. A imunidade do advogado, em verdade, não se destina a sua pessoa, mas ao exercício de sua função, que, segundo a própria Carta Magna, é indispensável à administração da Justiça. Com efeito, o advogado, para postular em juízo o direito de seu constituinte, necessita de ampla liberdade de expressão do pensamento, especialmente no relato de fatos e na emissão de opiniões sobre as pessoas contra as quais se deduzirá a pretensão, sobre testemunhas, sobre funcionários da justiça, enfim, sobre situações e sujeitos. Não pode ficar manietado no momento da comunicação das idéias, diante da possibilidade de vir a cometer os delitos de difamação e injúria. Esta imunidade vem estatuída no próprio Código Penal, desde as Constituições anteriores. Por exemplo, ao elaborar o pedido inicial de uma ação de separação judicial, o advogado poderá necessitar, algumas vezes, fazer o relato de fatos ofensivos à reputação do outro cônjuge, como violadores do dever do matrimônio, por exemplo a prática de atos homossexuais. Não há dúvida em relação à justeza da imunidade quanto aos crimes de difamação e injúria. Por que o advogado não goza da imunidade em relação ao crime de calúnia? E por que também não quanto ao crime de desacato, como decidiu, em liminar, o Supremo Tribunal Federal? Caluniar é atribuir, falsamente, a alguém, um fato definido como crime (art. 138,


Aplicação da Lei Penal - 25 CP). Para haver este crime, o caluniador deve saber que o fato que atribui a outro é falso. É óbvio, portanto, que não se poderia conferir ao advogado o direito de falsear a verdade. Se, no processo instaurado perante o poder judiciário, se busca a verdade, não se pode legitimar a conduta do advogado que, para defender o interesse de seu cliente, usa da falsidade. Já desacatar é ofender, humilhar, ultrajar o funcionário público, em razão de suas funções. No exercício de sua função, o advogado necessita de plena liberdade de manifestação de seu pensamento e, em algumas situações, diante do delegado arbitrário, do promotor perseguidor, do juiz autoritário, precisa levantar sua voz com galhardia, criticando atitudes desses funcionários, mostrando-lhes a arbitrariedade, o espírito perseguidor, o autoritarismo, por exemplo: “Vossa Excelência, MM. Juiz, está sendo autoritário, ignorando o direito do acusado. Respeite o réu, Excelência, não o chame de criminoso!” Ou, para o Promotor, durante os debates no Tribunal do Júri: “O Sr. Promotor de Justiça mentiu para os jurados, quando afirmou que o réu estava com a arma na mão. Vossa Excelência, Dr. Promotor, deve estudar melhor os autos e agir com seriedade na condução da acusação.” É evidente que tais expressões trazem forte conteúdo ofensivo ao juiz e ao promotor. O primeiro foi implicitamente chamado de autoritário, ignorante, desrespeitador. O segundo, de mentiroso, de não ser sério, de não estudar o processo. Tais comportamentos do advogado configuram ofensa ao funcionário público, em razão de suas funções e, como tal, o fato definido como crime de desacato. É evidente que, sem a imunidade, a atividade do advogado restaria, nessas hipóteses, cerceada, e não é esse o desejo da Carta Constitucional. A questão, parece, não é saber se a imunidade abrange o desacato ou restringe-se à difamação e injúria, e tampouco se não pode ser dirigida ao juiz. O cerne do problema é saber se a ofensa era necessária, para o desempenho da atividade do advogado, pouco importando tenha ela sido dirigida a funcionário público ou não. No mandado de segurança contra ato judicial, a pretensão é deduzida contra juiz de direito. Como não ofendê-lo, às vezes, se ele é parte no processo? Como não mostrar o absurdo, ou o abuso da decisão impugnada? O mesmo se diga do magistrado na exceção de suspeição, quando ele pode estar agindo com interesse pessoal no deslinde da causa. No processo criminal, o promotor é parte. E no habeas corpus em que o direito de liberdade do paciente se deduz contra o ato praticado pelo juiz?


26 – Direito Penal – Ney Moura Teles Enfim, a ofensa do advogado pode dirigir-se contra qualquer pessoa, inclusive o juiz e o promotor. O que não pode ser admitido é a ofensa desnecessária, gratuita. Para que seja necessária, é indispensável que seja proferida na discussão da causa, em razão dela, em juízo ou fora dele, instaurado ou não o processo judicial ou administrativo. A imunidade do advogado é, portanto, do profissional, mas destina-se a proteger os interesses dos cidadãos na defesa de seus direitos legais e constitucionais.

5.3.4 Presidente da República e governadores de Estado O Presidente da República não goza da imunidade absoluta, não está imune à lei penal, mas só poderá ser processado, após licença da Câmara dos Deputados, mediante o voto de, pelo menos, dois terços de seus membros, em votação aberta, e somente poderá ser preso depois de sentença condenatória. Tratando-se de fato definido como crime comum, o Presidente será julgado pelo Supremo Tribunal Federal e, se definido como crime de responsabilidade, pelo Senado Federal, devendo ser afastado das funções, por 180 dias, quando da instauração do processo no Supremo, pelo recebimento da denúncia ou da queixa, ou no Senado Federal (art. 86, CF). Além disso, o Presidente da República, na vigência do mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (art. 86, § 4º, CF). A quase totalidade das Constituições dos Estados da Federação reproduziu os dispositivos do art. 86, outorgando aos governadores idênticas prerrogativas processuais, especialmente a imunidade à prisão em flagrante, temporária ou preventiva (§ 3º) e a imunidade a qualquer processo penal por delitos estranhos à função governamental (§ 4º). O Supremo Tribunal Federal, todavia, tem decidido que esses dois dispositivos das constituições estaduais são inconstitucionais, porque tais prerrogativas são compatíveis apenas com a condição de Chefe de Estado, exclusivas do Presidente da República, em face do princípio republicano. Os governadores dos Estados, portanto, gozam apenas da prerrogativa de somente serem processados após prévia licença das Assembléias Legislativas, sendo o Superior Tribunal de Justiça o foro competente para seu julgamento, como manda o art. 105, I, a, da Constituição Federal.


Aplicação da Lei Penal - 27

5.3.5 Deputados estaduais, distritais e vereadores Por força do que dispõe o art. 27, § 1º, da Constituição Federal, também os deputados estaduais e distritais gozam das imunidades parlamentares, absoluta e relativa. Não cometem os delitos de palavra e só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável, e mantidos na prisão se a Casa legislativa não a relaxar. Quanto ao processo penal, o tratamento a eles conferido é o mesmo dado ao parlamentar federal (item 5.3.2). Já os vereadores gozam apenas da imunidade absoluta, ou material; são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos “no exercício do mandato e na circunscrição do Município”.

5.3.6 Prefeitos municipais Os prefeitos municipais não gozam de imunidade, nem material, nem processual; todavia, serão julgados pelo Tribunal de Justiça dos Estados, consoante determina o art. 29, VIII, da Constituição Federal. Trata-se de prerrogativa de função que acompanha o prefeito, pelo crime cometido durante o mandato, mesmo depois de este estar encerrado. Não se trata, como possa alguém entender, de um privilégio; muito ao contrário, trata-se de uma medida da mais alta importância no sentido de fazer prevalecer o princípio da igualdade, tratando os desiguais desigualmente. É certo o prestígio político do prefeito municipal no âmbito de seu município, indiscutíveis sua força moral, sua influência sobre os cidadãos, a comunidade e, até mesmo, o Juiz de Direito, que pode sentir-se pressionado no momento em que tiver de julgar o atual ou o ex-prefeito. Tratando-se de julgamento pelo Tribunal do Júri – o júri popular – composto de cidadãos leigos da sociedade, competentes para julgar, por exemplo, o homicídio intencional, é de se antever que dificilmente um prefeito seria condenado, dada a força de seu prestígio junto a seus pares, ou do temor que infunde, igualmente. Por isso, o dispositivo constitucional é da mais alta importância, uma vez que os membros do Tribunal estadual, além de infensos às influências políticas, realizarão julgamento técnico.

5.3.7 Magistrados e Membros do Ministério Público


28 – Direito Penal – Ney Moura Teles A Lei Complementar n° 35, de 14.3.79, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN, estabelece, no art. 33, inciso II, que é prerrogativa do magistrado “não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado”. A Lei Complementar n° 75, de 20.5.1993, o Estatuto do Ministério Público da União, no art. 18, inciso II, alínea d, também assegura aos membros do Ministério Publico da União a prerrogativa de “ser preso ou detido somente por ordem escrita do tribunal competente ou em razão de flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação

àquele tribunal e ao Procurador-Geral da

República, sob pena de responsabilidade”. A Lei n° 8.625, de 12.2.1993, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, estabelece, no art. 40, incisos III e IV, asseguram aos membros do Ministério Público a prerrogativa de somente ser preso por ordem judicial escrita, salvo em flagrante de crime inafiançável, devendo a autoridade, em no máximo 24 horas, comunicar a prisão e apresentá-lo ao Procurador Geral de Justiça. Também tem a prerrogativa de ser processado e julgado pelo Tribunal de Justiça do seu estado. Como se demonstrou neste Capítulo, as imunidades, dos senadores, deputados federais, distritais, vereadores, do presidente da república, governadores, prefeitos municipais, advogados, todas elas, tem sua matriz na Constituição Federal. Em relação à prisão processual, a Constituição Federal limitou-se a impedir a sua execução contra o Presidente da República, enquanto não prolatada a sentença condenatória, e proibiu a prisão por crime afiançável para os Senadores e Deputados, Federais, Estaduais e Distritais. Não contemplou Governadores, Prefeitos, Vereadores e nem advogados com qualquer prerrogativa em relação à prisão. A propósito, o Supremo Tribunal Federal já decidiu por diversas vezes, em Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que

“o Estado-membro, ainda que em norma

constante de sua própria Constituição, não dispõe de competência para outorgar ao Governador a prerrogativa extraordinária da imunidade a prisão em Flagrante, a prisão preventiva e a prisão temporária, pois a disciplinação dessas modalidades de prisão cautelar submete-se, com exclusividade, ao poder normativo da União Federal, por efeito de expressa reserva constitucional de competência definida pela Carta da Republica. - A norma constante da Constituição estadual - que impede a prisão do Governador de Estado antes de sua condenação penal definitiva - não se reveste de validade jurídica e, conseqüentemente, não pode subsistir em face de sua evidente


Aplicação da Lei Penal - 29 incompatibilidade com o texto da Constituição Federal. (...) Os Estados-membros não podem reproduzir em suas próprias Constituições o conteúdo normativo dos preceitos inscritos no art. 86, PAR.3. e 4., da Carta Federal, pois as prerrogativas contempladas nesses preceitos da Lei Fundamental - por serem unicamente compatíveis com a condição institucional de Chefe de Estado - são apenas extensíveis ao Presidente da Republica”. (ADI 1014/BA, relator para o Acórdão, Ministro Celso de Mello, DJ 17.11.1995, pág. 39199). Vê-se, portanto, que somente a Constituição Federal pode conceder a prerrogativa relativa a prisão e flagrante, preventiva e prisão temporária. A Constituição, no art. 95, trata das garantias e prerrogativas dos juízes, e no art. 128, § 5°, I, as garantias dos membros do Ministério Público, e, em nenhum preceito, há qualquer menção à prisão cautelar. Logo, se a Constituição Federal não conferiu a eles, qualquer imunidade à prisão, não pode a Lei Complementar ou a Lei Ordinária fazê-lo, daí porque penso que são inconstitucionais os dispositivos que asseguram aos juízes e membros do Ministério Público imunidade à prisão em flagrante de crime afiançável.

5.4

OUTRAS DISPOSIÇÕES SOBRE A APLICAÇÃO DA LEI PENAL O Código Penal estabelece nos arts. 9º, 10, 11 e 12 outras disposições pertinentes à

aplicação da lei penal, relativas à eficácia da sentença penal estrangeira no Brasil, às contagens de prazo, frações não computáveis na pena e sobre a chamada legislação especial, que devem, nesta oportunidade, ser analisadas.

5.4.1 Eficácia da sentença penal estrangeira Sentença penal, como já se falou, é a decisão final do juiz acerca do fato definido como crime atribuído a alguém. A sentença prolatada em país estrangeiro pode produzir efeitos aqui no Brasil. Em algumas hipóteses, não é necessária nenhuma condição, bastando que seja ela, por documento autêntico e idôneo, apresentada ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, para ter eficácia em nosso país. Isto ocorre, por exemplo, quando certo agente de fato definido como crime praticado no estrangeiro que se encontra no território brasileiro, para evitar a aplicação da lei penal brasileira, apresenta a sentença estrangeira provando ter sido absolvido ou perdoado no estrangeiro (art. 7º, § 2º, d e e,


30 – Direito Penal – Ney Moura Teles CP). Em algumas outras situações, para que a sentença penal estrangeira produza efeitos no Brasil, deverá ser homologada, pelo juiz brasileiro. Tal exigência diz respeito a dois efeitos: (a) obrigar o condenado a reparar o dano, a restituições e a outros efeitos civis; (b) sujeitar o condenado à medida de segurança. Nas duas hipóteses, a sentença estrangeira deve ser, previamente, homologada, convalidada pelo órgão competente da justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal. Para o primeiro caso, a parte interessada deve requerer a homologação, e para o segundo, é indispensável que exista, entre o Brasil e o país onde foi prolatada a sentença, tratado de extradição, ou, se inexistente este, é preciso requisição do Ministro da Justiça.

5.4.2 Contagem de prazo As penas estabelecidas no Código Penal são fixadas e devem ser aplicadas por certo lapso temporal: por exemplo: cinco anos, seis meses etc. O prazo é o espaço do tempo situado entre o início e o final, e a norma do art. 10 do Código Penal estabelece que “o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo”. Se alguém começar a cumprir uma pena às 20 horas de certo dia, este dia será computado por inteiro como o primeiro dia do cumprimento da pena. A segunda parte da norma manda que os dias, meses e anos sejam contados segundo o calendário comum, o gregoriano. O dia é o período de tempo compreendido entre a meia-noite e a meia-noite seguinte. O mês é contado de acordo com o número de dias que cada um tem, 28 ou 29 (fevereiro), 30 (abril, junho, setembro e novembro), e 31 os demais. O ano terá 365 ou 366 dias.

5.4.3 Frações não computáveis na pena Manda o art. 11 do Código Penal que as horas, que são as frações de dia, sejam desprezadas nas penas privativas de liberdade e nas restritivas de direito, e, na de multa, as frações de cruzeiro, hoje real, os centavos. Ninguém será condenado, por exemplo, a uma pena de 30 dias e doze horas.

5.4.4 Legislação especial


Aplicação da Lei Penal - 31 Finalmente, o art. 12 manda sejam aplicadas as normas gerais contidas na parte geral do Código Penal – as normas penais permissivas e explicativas – aos fatos definidos como crime em outras leis, se estas não dispuserem de modo diferente.


6 INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL

___________________________ A lei penal contém uma norma, que é uma ordem estatal dirigida a todos os cidadãos, no sentido de fazer ou não fazer alguma coisa. A norma penal incriminadora, por exemplo, contém um mandamento que impõe determinado comportamento: não matar (art. 121, CP), não constranger mulher a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça (art. 213, CP). O conjunto das normas penais incriminadoras – que definem o crime e cominam a pena – contém o conjunto dos comportamentos humanos que são proibidos sob a ameaça de pena criminal. Quem violar o preceito pode sofrer a sanção penal. As leis, contendo as normas, dirigem-se a todos os indivíduos da sociedade, e trazem ordens que todos devem cumprir. Toda ordem deve ser clara, precisa, exata, mas, além disso, deve ser compreendida por todos os seus destinatários. Por mais que o legislador se esforce na missão de elaborar a norma com precisão e clareza, as palavras, as frases, as construções, a língua utilizada na comunicação, exigem uma análise a fim de bem delimitar seu conteúdo. Esta análise do texto da lei busca encontrar o sentido exato de seu conteúdo. É que a norma penal é o marco que delimita o terreno dos comportamentos permitidos daquele outro campo das condutas proibidas, até porque, na vida em sociedade, só existem comportamentos permitidos e comportamentos proibidos. Por isso, não podem pairar dúvidas sobre o conteúdo, a extensão e o significado de cada norma penal. Toda norma, de conseqüência, necessita ser conhecida em sua inteireza para que se possa bem saber o que se pode e o que não se pode fazer, o que é certo e o que é errado, distinguindo o proibido do permitido. Por mais clara que seja, aparentemente, uma norma, ainda assim precisa ser analisada e examinada. Quando se diz que uma norma é clara e, por isso, não precisa ser interpretada, é porque, quando se a considerou clara, já se a tinha analisado e conhecido, previamente, seu verdadeiro significado. Interpretar a lei é extrair o significado e a extensão da norma, em face da realidade; descobrir sua real dimensão, sua amplitude, o âmbito de sua incidência na


2 - Direito Penal – Ney Moura Teles vida prática. A interpretação é uma operação lógica que visa descobrir a vontade da lei, para aplicá-la aos casos que ocorrem no dia-a-dia. Muitos pensam que, com a interpretação, busca-se descobrir o que pretendia o legislador no momento em que elaborou a lei, o que é absolutamente incorreto. Lembra BETTIOL: “Afirma-se algo de todo inexato quando se diz que é tarefa da hermenêutica ir à procura da vontade do legislador, compulsando trabalhos preparatórios. O legislador, como tal, é um ‘mito’, porque na realidade é composto por um grupo de homens que, sentados em torno de uma mesa, concordam, quiçá com sacrifício de suas idéias pessoais, em elaborar uma ordenação. Mas a ordenação, uma vez elaborada, se objetiva, desvincula-se do pensamento daqueles que a tomaram, vive uma vida autônoma. Repetindo Calamandrei, a lei é como um filho que sai da casa paterna para ir ao encontro da vida, para seguir a sua própria estrada, frustrando, talvez ou superando toda a expectativa do genitor. Assim, a lei é independente da vontade do legislador, mas independente também do complexo de condições histórico-ambientais que a determinaram, pelo que deve saber adaptar-se a um complexo de novas condições sociais que se podem apresentar, com o fluir do tempo.”1 É verdade, viva, a lei tem luz própria, impondo sua vontade até mesmo contra a vontade do legislador.

6.1

ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO A doutrina distingue a interpretação da lei penal quanto ao sujeito que a faz, em

autêntica ou legislativa, doutrinária e judicial.

6.1.1 Interpretação autêntica ou legislativa Esta é a interpretação feita pelo próprio legislador, por meio da própria lei. Ao elaborar determinada lei, verifica o legislador a existência de um conceito, um termo, um instituto, inserido na norma que pode ser interpretado de forma dúbia ou ambígua e, como a norma penal deve ser precisa, ele mesmo apresenta a solução da dúvida ou da

1

BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 152.


Interpretação da Lei Penal - 3 ambigüidade, espancando futuras controvérsias. Trata-se da mais verdadeira interpretação da lei, pois é ela mesma quem diz qual sua vontade, qual a extensão do conteúdo e o significado das expressões que utiliza. Quando o legislador interpreta a lei em seu próprio contexto, há interpretação autêntica contextual. Exemplos dessa espécie de interpretação encontram-se no Código Penal. No art. 150, está definido o crime de violação de domicílio, assim: “entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências”. Qual é a amplitude, a extensão, da expressão casa? O próprio legislador do Código Penal, antevendo dúvidas futuras, tratou de esclarecer, no próprio texto legal, no § 4º do mesmo artigo, o significado do termo: “A expressão ‘casa’ compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.” Vê-se, assim, que por casa se deve entender qualquer lugar, ou compartimento onde alguém more, vale dizer, um barraco, uma barraca, um trailer, bem assim o escritório do profissional liberal, exceto a sala de espera, aberta ao público. Nos arts. 312 a 326 do Código Penal estão definidas várias espécies de crimes que só podem ser praticados por funcionário público. O legislador, prevendo ambigüidades na conceituação de funcionário público, antecipou-se e fez no art. 327 sua interpretação: “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. § 1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.” A Lei nº 6.538, de 22-6-78, que, entre outras coisas, definiu crimes contra o serviço postal e o de telegrama, no art. 47 esclareceu o conteúdo de vários termos, como carta, cartão-postal, encomenda etc., tornando claros os significados dessas expressões, evitando, com isso, a incerteza e a dúvida. Pode ocorrer que, em vigor uma lei e surgindo dúvidas quanto a sua vontade, o legislador entenda necessário elaborar nova lei, esclarecendo o conteúdo da lei anterior, dirimindo assim a dúvida ou ambigüidade. Esta é outra espécie de interpretação legislativa, chamada posterior. Trata-se de lei nova, com o objetivo de interpretar a anterior.


4 - Direito Penal – Ney Moura Teles Conquanto a interpretação autêntica seja a própria lei, é óbvio que é obrigatória.

6.1.2 Interpretação doutrinária Esta é a interpretação realizada pelos juristas, pelos estudiosos, pelos cientistas do Direito. Tão logo em vigor uma lei, torna-se necessário interpretá-la. As dúvidas aparecem, e os cientistas sobre ela se debruçam e, conquanto sejam profundos conhecedores do Direito, investigam, com base nos métodos científicos indicados, e apresentam à comunidade dos operadores do Direito seu entendimento acerca da vontade da lei. A interpretação doutrinária, é certo, não tem força obrigatória, pois não passa da opinião de um homem; todavia, sendo ele um cientista, seu pensamento será levado em conta pelos profissionais do Direito. À medida que determinado jurista se impõe perante a sociedade – pela seriedade de seu trabalho, pela cientificidade de suas obras e, sobretudo, pela coerência de suas idéias, e seu ajustamento ao sistema jurídico – suas opiniões são respeitadas e acabam por se tornar de aceitação geral. Especialmente no Brasil, em que o legislador, muitas vezes, não atenta para a necessidade de maiores discussões, aceitando, facilmente, tudo o que vem do Poder Executivo, e, principalmente, quando busca legislar para atender a manifestações da opinião pública manipulada, o papel dos doutrinadores do Direito é da mais alta importância, pois são eles os primeiros a apontar as incongruências, as contradições, os erros das leis e a necessidade de modificá-las. No Brasil, sempre houve juristas da mais alta respeitabilidade. No passado, Galdino Siqueira, Bento de Faria, Roberto Lyra, Nelson Hungria, Aníbal Bruno e Magalhães Noronha. Depois deles, os saudosos Heleno Fragoso,

Manoel Pedro

Pimentel, Francisco de Assis Toledo e Julio Fabbrini Mirabete; hoje, são expoentes do Direito Penal, entre outros, Damásio Evangelista de Jesus, e Alberto da Silva Franco.

6.1.3 Interpretação judicial É a interpretação realizada pelos juízes e pelos tribunais, quando do julgamento dos casos concretos. Ocorrendo o crime e nascendo, para o Estado, o direito de punir o infrator da norma penal, vai ele, perante o juiz, pedir a condenação do homem acusado de desobedecer o mandamento. Ao juiz caberá descobrir qual a vontade da norma, qual seu alcance, qual sua extensão e profundidade, seu significado, o âmbito de sua eficácia,


Interpretação da Lei Penal - 5 diante daquele caso ocorrido. Para aplicar a lei, o juiz deve conhecer a norma e interpretá-la diante do caso concreto. Deve, pois, descobrir a vontade da lei. Esta interpretação tem força obrigatória apenas para o caso que estiver sendo julgado. Isto significa que o juiz não está obrigado a dar à lei a mesma interpretação dada, anteriormente, por outro juiz, ou pelo tribunal. Não está o juiz vinculado à interpretação dada pela instância superior, nem pelo Supremo Tribunal Federal. Ao interpretar a lei penal, decidindo o caso concreto, o juiz deve estar atento para a lição do grande NELSON HUNGRIA: “Como adverte Calamandrei, no seu Elogio dos juízes, as sentenças judiciais não precisam ser amostras de rebrilhante cultura de vitrina. O que lhes convém é que, dentro das possibilidades humanas, sejam justas, servindo ao fim prático de implantar a paz entre os homens. Longe de mim afirmar que o juiz não deva ilustrar-se, consultando a lição doutrinária e pondo-se em dia com a evolução jurídica; mas se ele se deixa seduzir demasiadamente pelo teorismo, vai dar no carrascal das subtilitares juris e das abstrações inanes, distanciando-se do solo firme dos fatos, para aplicar, não a autêntica justiça, que é sentimento em face da vida, mas um direito cerebrino e inumano; não o direito como ciência da vida social, mas o direito como ciência de lógica pura, divorciado da realidade humana; não a verdadeira justiça, que é função da alma voltada para o mundo, mas um direito postiço, arrebicado, sabendo a palha seca e cheirando a naftalina de biblioteca. O juiz que, para a demonstração de ser a linha reta o caminho mais curto entre dois pontos, cita desde Euclides até os geômetras da quarta dimensão, acaba perdendo a crença em si mesmo e a coragem de pensar por conta própria. Dele jamais se poderá esperar uma solução cautamente pretoriana, um milímetro de avanço na evolução do direito, o mais insignificante esforço de adaptação das leis. O juiz deve ter alguma coisa de pelicano. A vida é variedade infinita e nunca lhe assentam com irrepreensível justeza as ‘roupas feitas’ da lei e os figurinos da doutrina. Se o juiz não dá de si, para dizer o direito em face da diversidade de cada caso, a sua justiça será a do leito de Procusto: ao invés de medir-se com os fatos, estes é que terão de medir-se com ela. (...) Da mesma tribo do juiz técnico-apriorístico é o juiz fetichista da jurisprudência. Esse é o juiz burocrata, o juiz de fichário e catálogo, o juiz colecionador de arestos segundo a ordem alfabética dos assuntos. É o juiz que se põe genuflexo diante dos repertórios jurisprudenciais como se fossem livros


6 - Direito Penal – Ney Moura Teles sagrados de alguma religião cabalística. Para ele, a jurisprudência é o direito imutável e eterno: segrega-se dentro dela como anacoreta na sua gruta, indiferente às aventuras do mundo.”2 Hoje, o perigo reside nas facilidades que o banco de dados instalado no microcomputador oferece e na gravação de modelos de sentença no disco rígido, no arquivo do processador de texto, que devem servir ao homem e não comandá-lo. Outra lição pertinente é a de RANULFO DE MELO FREIRE: “O juiz atual deve perder sua incontaminada inocência, imiscuindo-se nas impurezas do social, e deve tomar consciência de que o apego literal à norma pode, não poucas vezes, torná-lo mero instrumento de interesses menos legítimos; mas o papel do juiz criminal não se resume apenas em infundir, em relação a determinadas normas de incriminação, o sopro do social. É sua incumbência ainda posicionar-se na relação de tensão Indivíduo-Estado para assegurar sempre ‘uma esfera individual frente à onipotência do Estado’. E, no exercício desse mister, não pode validar nenhum agravo aos princípios constitucionais, que velam pela área de liberdade e de segurança jurídica que cada cidadão possui frente ao Estado. (...) É seu dever zelar para que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial dos direitos do cidadão, constitucionalmente protegido. É seu dever, ainda, não tolerar interpretações que acarretem o esvaziamento de sua jurisdição, em favor de jurisdições especiais. É seu dever também garantir a ampla e efetiva defesa, o contraditório e a isonomia de oportunidades, favorecendo, assim, o concreto exercício da função de defesa. É seu dever, por fim, invalidar as provas obtidas com ‘a violação da autonomia ética da pessoa’, ou seja, todos aqueles meios de prova que importem ofensa à dignidade da pessoa humana, à integridade pessoal (física ou moral) do argüido e, em especial, os que importem qualquer perturbação da sua liberdade de vontade e de decisão.”3 A descoberta da vontade da lei, pelo juiz, portanto, há de ser feita sem esquecer que estará sendo aplicada ao homem, que é a razão de ser de tudo.

6.2

MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO Não se descobre a vontade da lei ao acaso, nem amadoristicamente, mas com a

2

HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 61-64.

3

In: FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 18.


Interpretação da Lei Penal - 7 utilização de métodos.

6.2.1 Método literal As normas são comandos que se expressam por palavras da língua oficial. A primeira coisa a fazer é examiná-las, descobrir qual seu significado léxico e gramatical. Assim, no art. 121, Código Penal, “matar alguém”; é preciso examinar ambas as expressões. Por “matar” deve-se entender “tirar a vida” ou “causar a morte”. E por “alguém” deve entender-se “qualquer pessoa”. Com este método, busca-se descobrir o significado denotativo das palavras. Todavia, com o método gramatical, exclusivamente, não se consegue descobrir a vontade da lei. Basta pensar a seguinte hipótese: certo médico, encarregado de realizar uma cirurgia abdominal num seu paciente, aproveita-se e extrai do mesmo um rim, para realizar um transplante para outro paciente. Realizando-se uma interpretação puramente gramatical, pode-se concluir que tal médico praticou o crime de furto, definido no art. 155 do Código Penal (subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel). Com efeito, o médico subtraiu, tirou, para terceira pessoa, uma coisa, o rim, alheia, do paciente que, após extirpado do corpo, tornou-se móvel. Estará, assim, a princípio, sujeito a uma pena de reclusão de um a quatro anos e multa. Estará correta esta interpretação? Claro que não, apesar de literalmente ser aceitável tal conclusão. E não está porque a vontade da norma do art. 155 do Código Penal não é proteger a saúde das pessoas, mas seu patrimônio. E o rim não é patrimônio, mas órgão indispensável à manutenção da vida do homem. Se não está certa esta interpretação, como, então, descobrir, qual norma se aplica ao fato narrado? O método literal não é o único, pois é preciso, além dele, utilizar o intérprete do método teleológico ou finalístico, com o qual se descobre a vontade da lei.

6.2.2 Método teleológico ou finalístico Por meio deste método, o intérprete vai descobrir a vontade da lei, perguntando quais seus objetivos, qual sua finalidade. Como já foi dito, a tarefa do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves. De conseqüência, é claro que as normas penais incriminadoras foram elaboradas para dar proteção aos ditos bens jurídicos. Cada


8 - Direito Penal – Ney Moura Teles norma penal incriminadora visa à proteção de um ou mais bens jurídicos. A norma do art. 155 do Código Penal, que define o crime de furto, visa proteger o patrimônio – bens materiais de valor econômico – das pessoas, dos ataques consistentes na apropriação das coisas que integram o patrimônio, sem violência contra a pessoa e sem nenhuma outra agressão a qualquer outro bem jurídico. Já a norma do art. 157, Código Penal – que define o crime de roubo – visa proteger o mesmo patrimônio das pessoas, mas dos ataques violentos – protegendo, igualmente, a vida, a integridade física ou a tranqüilidade dos indivíduos. Nas duas normas citadas, protege-se o patrimônio, e na segunda, além dele, a pessoa. Para descobrir, portanto, a vontade da lei, é indispensável, em primeiro lugar, considerar o bem jurídico. No exemplo da extração do rim, é de se concluir que não pode ser furto, pois aquele órgão não se inclui entre os bens do patrimônio da pessoa, mas é um órgão integrante de sua integridade física, sem o qual resta atingida sua saúde. Ora, existe alguma norma penal que protege a integridade corporal e a saúde das pessoas? Claro que existe. Já no Código Penal encontrava-se o art. 129: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um ano). § 1º – Se resulta: (...) II – debilidade permanente de membro, sentido ou função; Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos.” E na Lei nº 9.434, de 4-2-1997, que dispôs sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, estão inscritas algumas figuras criminosas que protegem especificamente a integridade física e a saúde das pessoas contra ataques que se destinam exatamente a extrair-lhes órgãos, tecidos e partes do corpo, valendo transcrevê-las: “Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei: Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa. (...) § 2º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta para o ofendido: (...) debilidade permanente de membro, sentido ou função; Pena – reclusão, de três a dez anos, e multa, de 100 a 200 dias-multa.” No caso, o médico estaria sujeito a pena de 3 a 10 anos de reclusão, pela prática do crime de remoção de órgão de pessoa viva, seguido de lesão corporal de natureza grave e não do delito de furto. Esta é a vontade da lei, inclusive de punir com maior severidade o comportamento daquele médico.

6.2.2.1

Ratio legis


Interpretação da Lei Penal - 9

O método teleológico ou finalístico impõe ao intérprete a obrigação de perguntar quais motivos determinaram o estabelecimento do preceito penal, bem assim quais necessidades e qual princípio superior deram origem à norma penal. Ao fazê-lo, estará descobrindo o fim da lei, sua razão de ser, seu elemento teleológico. A interpretação finalística exige não apenas descobrir a ratio legis – razão teleológica, que é a consideração do bem jurídico –, mas impõe ao intérprete a atenção para com outros elementos: o sistemático, o histórico, o direito comparado e outros, extrapenais e extrajurídicos.

6.2.2.2

Elemento sistemático

Na busca da vontade da lei, não pode o intérprete esquecer que o ordenamento jurídico-penal é um sistema de normas jurídicas que não se contradizem, não se repudiam, mas se completam, harmonicamente, no sentido de conferir proteção aos bens jurídicos importantes, em face das lesões mais graves. Igualmente, a ordem jurídico-penal contém um conjunto de princípios jurídicos que formam um todo. O conhecimento da vontade da norma penal incriminadora exige o conhecimento da vontade de todo o ordenamento jurídico. Assim, por exemplo, “matar” é proibido, mas, se quem o faz age em “legítima defesa”, não há o crime. Um exemplo. No caput do art. 342 do Código Penal está definido o crime de “falso testemunho ou falsa perícia”, assim: “Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor, ou intérprete em processo judicial ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral.” Já no § 2º do mesmo artigo, há uma norma que impede a aplicação da pena para este crime: “O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.” Se o intérprete examinar apenas o caput do art. 342, poderá cometer lamentável engano, ignorando que, na hipótese de a testemunha, antes da sentença, desmentir-se, não haverá punição. O intérprete, portanto, deve estar atento ao sistema. Examinar todas as normas que regulam o mesmo fato. Nunca contentar-se com a primeira conclusão, com a leitura superficial das normas. O Código Penal é um sistema dividido em duas partes, a parte geral e a parte especial. Na primeira, estão os princípios gerais do Direito Penal; na segunda, a definição das várias espécies de crime com suas respectivas penas.


10 - Direito Penal – Ney Moura Teles Na parte geral, no título I (arts. 1º a 12), as regras de aplicação da lei penal. Nos títulos II, III e IV (arts. 13 a 31), as normas que tratam do crime, em todas as suas características gerais. No título V (arts. 32 a 95), as normas sobre as penas, e no VI (arts. 96 a 99), as medidas de segurança. O título VII (arts. 100 a 106) traz os princípios diretores da ação penal e, finalmente, o título VIII (arts. 107 a 120) cuida da extinção da punibilidade. Na segunda parte, a Parte Especial, que vai do art. 121 até o 359, estão definidas as várias modalidades de condutas consideradas criminosas, com algumas normas penais permissivas especiais, e outras normas explicativas, relativas aos crimes em espécie. As várias espécies de crime estão agrupadas em função do bem jurídico. Nos arts. 121 a 154, estão reunidos os chamados crimes contra a pessoa, ou seja, os crimes contra o ser humano. Dentre deles, os crimes contra a vida encontram-se nos arts. 121 a 128, que são: as várias espécies de homicídio – simples, privilegiado, qualificado, culposo simples, culposo qualificado –, o induzimento, a instigação ou auxílio ao suicídio, o infanticídio e as várias modalidades de aborto. Como se vê, portanto, existe uma ordem harmônica, de modo que o intérprete, quando vai aplicar a norma incriminadora ao fato, deve considerar a existência de várias normas e uma só delas aplicável, e que ela deve estar coerentemente ajustada ao sistema. É preciso, pois, considerar o sistema, que, sendo harmônico, não admite ambigüidades, dúvidas ou incertezas. A vontade da lei é uma só.

6.2.2.3

Elemento histórico

Conhecer a história da lei, o contexto em que foi determinada, suas razões determinantes, sua gênese e suas transformações, pode, às vezes, ser importante no momento da descoberta de sua vontade. BETTIOL, todavia, nos explica “que o estudo da história do Direito Penal nem sempre é útil para a compreensão do Direito Penal moderno, porque o que interessa é o significado que a norma num determinado momento apresenta, não as modalidades de suas formas precedentes, o como veio à luz. Mas se a indagação sobre transformações formais da norma em períodos sucessivos pode também trazer esclarecimentos, acerca do conteúdo substancial da própria norma, idêntica indagação deve ser realizada a respeito dos valores que ela


Interpretação da Lei Penal - 11 atualmente tutela e tal indagação se enquadra perfeitamente nas exigências de uma interpretação teleológica”.4

6.2.2.4

Outros elementos

Em algumas oportunidades, confrontar o direito nacional com o de outros países, para verificar o tratamento dispensado por outros povos ao mesmo instituto, é de acentuada importância para a descoberta da vontade da lei. Assim, também o estudo do direito comparado tem seu lugar na interpretação finalística. Deve o intérprete atentar para o chamado elemento político-social, de natureza extrapenal, que consiste na verificação do ajustamento harmônico da norma penal com as instituições políticas e sociais da sociedade e, particularmente, com os interesses dos cidadãos. É claro que a norma penal não pode integrar-se em dissonância com os anseios da sociedade, que se expressam por meio de suas instituições legítimas. A propósito, é preciso enorme cuidado com as manipulações dos sentimentos populares, realizadas por alguns órgãos dos meios modernos de comunicação de massas, que, infelizmente, conseguem transmitir a falsa impressão de uma vontade popular inexistente. Deve o intérprete ter em mente que os conceitos jurídicos não são, sempre, suficientes para o estabelecimento da vontade da norma, devendo buscar, em outras ciências, o auxílio indispensável, por exemplo, à conceituação do que seja moléstia, saúde,

doença

mental,

perturbação

psíquica

etc.

Elementos

extra-jurídicos,

sociológicos, psiquiátricos, antropológicos, colaboram com o alcance do objetivo visado.

6.3

RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO Interpretar, já se disse, é descobrir o significado e a extensão da letra da lei. As

palavras, às vezes, dizem mais do que a lei deseja, outras vezes, menos, e, na maior parte delas, correspondem, integralmente, a sua vontade.

6.3.1 Interpretação declarativa Quando a letra da lei corresponder a sua vontade, sem necessidade de se

4

Op. cit. p. 161.


12 - Direito Penal – Ney Moura Teles estender ou de se restringir o alcance de suas palavras, chega-se a um resultado meramente declarativo. É o que se chama interpretação declarativa. Veja-se o exemplo, emprestado de NELSON HUNGRIA5. O art. 141 do Código Penal determina que, quando os crimes de calúnia – atribuir, falsamente, a alguém a prática de um fato definido como crime –, difamação – imputar a alguém fato ofensivo a sua reputação – e injúria – ofender a dignidade ou o decoro de alguém – tiverem sido cometidos “na presença de várias pessoas...”, as penas cominadas nas normas penais incriminadoras serão aumentadas de 1/3 (um terço). A pena para o crime de calúnia é de detenção de seis meses a dois anos e multa. Se a calúnia for feita na presença de várias pessoas, a pena será de, no mínimo, oito meses e, no máximo, dois anos e oito meses, além da multa. Como interpretar o significado da expressão várias? Qual o mínimo de pessoas que devem presenciar tais crimes, para que as penas sejam aumentadas de 1/3? Duas pessoas, três pessoas ou quatro pessoas? Quando se fala em várias pessoas, pode-se estar falando em cinqüenta, mil, duas mil pessoas. O número máximo de pessoas que pode presenciar uma calúnia é o número de pessoas que existe no planeta, menos o caluniador e a vítima. E o número mínimo é uma pessoa. Uma pessoa, todavia, não são várias pessoas. Para que sejam várias pessoas, esse mínimo pode ser duas, três ou quatro. Se o intérprete chegar à conclusão de que o número mínimo é dois, terá interpretado a expressão várias da forma mais ampla possível, ou seja, várias pessoas é, no mínimo, duas pessoas. Entendendo que o número mínimo é quatro, terá interpretado a expressão de forma a restringir sua amplitude, isto é, várias pessoas é, no mínimo, quatro pessoas, indica que se está diante de um número de pessoas menor, menos amplo, do que se o mínimo fossem duas pessoas. Concluindo que o mínimo é três pessoas, não terá nem ampliado, nem restringido o significado da expressão várias. Em conclusão, se o intérprete confere à letra da lei um conteúdo mais amplo, mais extenso, estará chegando a um resultado extensivo, se, ao contrário, diminui a amplitude da palavra, seu alcance, estará atingindo um resultado restritivo; se não estende nem restringe, estará tão-somente declarando o conteúdo denotativo da palavra. No exemplo de HUNGRIA, o resultado correto da interpretação é declarativo. A

5

Comentários ao Código Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 1, t. 1, p. 80.


Interpretação da Lei Penal - 13 vontade da norma do art. 141 do Código Penal é aumentar as penas daqueles crimes quando forem eles cometidos na presença de no mínimo três pessoas. Como chegar a essa conclusão? Com a utilização do método finalístico de interpretação, especialmente com amparo no elemento sistemático, já explicado. O Código Penal é um sistema harmônico de normas que, por isso, não se contradizem, antes se ajustam com perfeição. Observando-se todo o Código Penal, encontram-se outras normas nas quais há menção à quantidade de pessoas. Assim o art. 226, I, que contém um dispositivo que se aplica aos crimes contra os costumes, estupro, sedução etc. Diz aquela norma que, se qualquer daqueles crimes for cometido “com o concurso de duas ou mais pessoas”, a pena será aumentada de quarta parte. O § 1º do art. 150, por sua vez, faz aumentar a pena do crime de violação de domicílio, se ele for cometido “por duas ou mais pessoas”. Então pode-se verificar que o Código Penal quando quer referir-se à quantidade mínima de duas pessoas, expressamente refere-se ao número dois, utilizando-se da fórmula “duas ou mais pessoas”, para se referir ao mínimo de pessoas que exige. A conclusão a que se deve chegar é a de que, se o Código quisesse que a pena para o crime de calúnia fosse aumentada de 1/3 quando cometida na presença de, no mínimo, duas pessoas, não teria usado a expressão várias, mas, coerentemente com o sistema, teria dito: na presença de “duas ou mais pessoas”. Afasta-se, portanto, o resultado extensivo na interpretação. Se o mínimo não é duas pessoas, por que não seriam quatro pessoas? Responda-se negativamente, com base no mesmo elemento sistemático. O mesmo Código, quando quer referir-se a uma quantidade mínima de quatro pessoas, expressamente diz: “mais de três pessoas”, como na norma penal incriminadora do art. 288, que define o crime de quadrilha ou bando. Ali, para deixar claro que o mínimo de pessoas exigido é quatro, o Código não usou a expressão várias, mas, “mais de três”, e mais de três é, no mínimo, quatro pessoas. Dar outra interpretação para a expressão várias seria, portanto, ignorar a harmonia do sistema do Direito Penal. Declarativa é a interpretação que não confere, ao texto da lei, nenhum sentido mais amplo, nem mais restrito, mas tão-somente declara uma correspondência. São as palavras da lei, o texto da lei, correspondentes a sua vontade, sem necessidade de extensão, nem de restrição do alcance das palavras que a compõem.

6.3.2 Interpretação restritiva Quando as palavras do texto legal disserem mais do que é sua vontade, o


14 - Direito Penal – Ney Moura Teles intérprete deve restringir seu alcance, amoldando-o à intenção da lei. Outro exemplo de HUNGRIA bem ilustra essa situação6. Diz o art. 28, I, do Código Penal, que “a emoção ou a paixão” não excluem a responsabilidade penal. Se alguém cometer um fato definido como crime sob o domínio do estado de emoção ou da paixão, não estará, por isso, excluída sua responsabilidade penal. Em outras palavras, a emoção e a paixão não retiram do homem sua capacidade de responder por seus atos. Não será ele eximido da pena criminal pela simples razão de ter agido sob domínio de emoção ou de paixão. A interpretação meramente denotativa do texto dessa norma leva ao entendimento de que “toda e qualquer” emoção, bem assim “toda e qualquer” paixão não excluem a responsabilidade penal. Sim, porque a letra da lei não adjetivou tais substantivos, não conferindo a eles nenhuma qualificação, pelo que não restringiu seu alcance. Se a letra da lei não restringiu, é de se perguntar, fê-lo porque era essa sua vontade? A vontade do Código Penal é dizer que nenhuma emoção ou nenhuma paixão exclui a capacidade penal? Será essa a vontade da lei? É claro que não. O Código, repita-se, outra vez, é um sistema. Suas normas não estão em conflito, mas convivem e amoldam-se com harmonia. Emoção é um estado afetivo que perturba o equilíbrio psíquico do indivíduo, de forma aguda e por curto período de tempo. A ira, o medo, a alegria, a surpresa, a vergonha, o prazer erótico são conhecidos estados de emoção. A paixão já é uma crise psicológica mais profunda e de maior duração, que, de modo crônico e estabilizado, ataca a integridade do espírito humano e reflete-se no corpo, como no amor, no ódio, no ciúme e na ambição. Esses estados que agridem a alma do homem, enquanto não tenham afetado a psique humana de modo mais profundo, efetivamente não têm o condão de afetar a capacidade de o homem entender as coisas, ou de governar-se. Há casos, todavia, em que tais estados, de tão intensos, ou em face da fragilidade da saúde mental de certo indivíduo, nele se instalam e se convertem em verdadeira patologia, transformando-o num doente mental. Tais estados, portanto, podem caracterizar-se como uma anomalia mental e, em função disso, o indivíduo pode não ter a capacidade de discernir ou de se determinar. Para incidir sobre casos como esses existe a norma do art. 26 do Código Penal, a qual informa ser incapaz, do ponto de vista penal, aquele indivíduo portador de doença mental que, em virtude desta, ao cometer um fato definido como crime, não tem 6

Op. cit. p. 80.


Interpretação da Lei Penal - 15 nenhuma capacidade de entender que seu comportamento é proibido, ou, quando entende, não tem nenhuma capacidade de se controlar, de se governar. De conseqüência, não é vontade da norma do art. 28, I, afirmar, como literalmente afirma, que nenhuma emoção, ou nenhuma paixão, exclui a responsabilidade penal, porque a emoção e a paixão patológicas – quando constituírem doença mental – podem excluir a capacidade penal. Em outras palavras, a vontade da norma do art. 28, I, não é dizer literalmente: a emoção ou a paixão não excluem a responsabilidade penal. Sua vontade é dizer: não excluem a imputabilidade penal: I – a emoção ou a paixão não patológicas. Esta é a vontade da lei. Como se observa, fez-se uma interpretação que restringiu o alcance das palavras, sua amplitude, sua extensão. Literalmente amplas, abarcando toda e qualquer situação, são, todavia, restringidas, para corresponderem à vontade da lei. O resultado da interpretação foi, portanto, restritivo. Esta é a chamada interpretação restritiva.

6.3.3 Interpretação extensiva O inverso também ocorre. A letra da lei, em certas situações, diz menos que é sua vontade. O significado denotativo das palavras utilizadas não corresponde, por ser menos amplo, ao que a norma pretende. Tratando-se de normas penais incriminadoras, aquelas que definem o crime e cominam as penas, em face do princípio da legalidade, que exige que a lei penal seja exata, precisa, certa, clara, é preciso muito cuidado com a interpretação que estenda o sentido, o alcance, o conteúdo das palavras, conferindo à norma, de conseqüência, maior alcance. Em se tratando de normas definidoras de crime, o intérprete deve atentar para, conferindo maior alcance às palavras, não violar o princípio da reserva legal. São raros os casos em que se pode fazer, com normas penais incriminadoras, uma interpretação extensiva. Outro exemplo clássico de HUNGRIA7, aliás, não diz respeito, propriamente, a uma norma penal incriminadora, mas ao nome jurídico de um crime: a bigamia. O grande penalista pátrio mostra que, quando a lei faz referência ao crime de bigamia, não deseja ela proibir apenas o segundo casamento, ou dois casamentos, mas o terceiro, quarto, mais de um casamento. Deseja a lei, portanto, definir como crime não apenas a bigamia, mas também a 7

Op. cit. p. 82.


16 - Direito Penal – Ney Moura Teles poligamia. Então, o sentido da expressão bigamia deve ser interpretado extensivamente, como abarcando, igualmente, a trigamia, tetragamia, enfim, a poligamia. O exemplo bem revela que raramente se podem interpretar extensivamente normas penais incriminadoras. Tanto que a própria definição do crime de bigamia não carece de nenhuma interpretação extensiva, pois, na definição, as palavras correspondem, precisamente, ao texto da lei: “contrair alguém, sendo casado, novo casamento”. A vontade da norma é proibir que alguém, sendo casado, contraia novo casamento, seja o segundo, o terceiro ou o quarto. A norma incriminadora, portanto, não exigiu interpretação extensiva. Diz a doutrina que um exemplo de interpretação extensiva está na necessidade de se compreender, na locução “expor a contágio de moléstia venérea” também a expressão “contagiar”, do crime de “perigo de contágio venéreo”, do art. 130 do Código Penal, porque a lei desejaria punir não só a exposição ao perigo de contágio, mas, igualmente, o próprio contágio. Não me parece correto esse entendimento. O crime definido no art. 130 do Código Penal define apenas o comportamento perigoso, pune simplesmente a criação da situação de perigo de contágio venéreo. Se este vier a ocorrer, o crime praticado será outro, o de lesão corporal.

6.3.4 Conclusão A interpretação finalística vai conduzir, necessariamente, a um resultado harmônico e conclusivo, induvidoso, e o intérprete não deve se preocupar se o resultado será restritivo, extensivo ou meramente declarativo. Se o método teleológico tiver sido aplicado com critério, especialmente com atenção à razão de ser da norma, considerando-se o bem jurídico, a agressão perpetrada e elemento sistemático, a interpretação terá sido realizada corretamente. Aplicado o método teleológico e se, mesmo assim, não se chegar a um resultado harmônico, induvidoso, remanescendo ainda dúvidas, o caminho não pode ser outro: interpreta-se conforme seja mais favorável ao perseguido, ao acusado da prática do crime.

6.4

ANALOGIA Por mais que o ordenamento jurídico procure ser abrangente de todas as

situações que busca regular, por mais que a lei queira alcançar todos os comportamentos que atingem de modo grave os bens mais importantes, por mais que o


Interpretação da Lei Penal - 17 direito procure tratar de todas as hipóteses em que não se deve punir, por mais, enfim, que o homem procure alcançar, com o Direito, todas as situações passíveis de proibição penal, ou de permissão excepcional, sempre haverá lacunas, omissões. As leis são feitas em determinado momento histórico e, mal entram em vigor, novas hipóteses ocorrem, algumas jamais imaginadas. O grande NELSON HUNGRIA, por exemplo, dizia, na década de 508, a propósito do delito de aborto, que a ciência não podia fornecer uma prova irrefutável de que um feto fosse portador de anomalia física ou mental, o que, hoje, é plenamente possível, em grande parte dos hospitais do país, por meio de exames realizados no útero, no feto, no líquido amniótico, já nos primeiros meses da gravidez, que apontam, com segurança absoluta, a existência de anomalia grave, física ou mental. O próprio ordenamento jurídico prevê a possibilidade de inexistência de lei para regular certas situações, mandando que: “Quando a lei for omissa, o Juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 4º). Quando tiver o julgador de decidir um caso e não houver lei, deverá julgá-lo, em primeiro lugar, de acordo com a analogia, depois com os costumes e, finalmente, com os princípios gerais de direito. Sobre os costumes e os princípios gerais de direito, já se falou antes, especialmente que eles não podem ser utilizados para definir crimes, nem para cominar penas. E analogia, o que é? Usar analogia é, em palavras bem simples, diante de um caso para o qual não existe lei, aplicar a lei que se aplica a um caso bastante semelhante, bem parecido. Um exemplo: todos sabem o que é uma procuração. Um contrato por meio do qual alguém, mandante, outorga a outra pessoa, mandatário, poderes para agir em seu nome. Materializa-se por intermédio de um documento escrito. Diz a lei civil que “o terceiro com quem o mandatário tratar poderá exigir que a procuração traga a firma reconhecida” (novo Código Civil, art. 654, § 2º). A procuração outorgada a João pode ser, por ele, substabelecida a Pedro, para que este o substitua, exercendo o mandato conferido pelo outorgante. Esta transferência de poderes chama-se substabelecimento. A lei civil é omissa no que diz respeito à possibilidade de o terceiro exigir também o reconhecimento, pelo tabelião, da assinatura do procurador constituído (João) no instrumento de substabelecimento. Pois bem, se um juiz tiver de decidir sobre a exigibilidade do reconhecimento da 8

Op. cit. v. 5, p. 305.


18 - Direito Penal – Ney Moura Teles firma no instrumento de substabelecimento, verificando a inexistência de lei a esse respeito, deverá, como manda o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, considerar que o terceiro tem o direito a exigir o reconhecimento da firma no substabelecimento. Terá, então, decidido usando a analogia.

6.4.1 Analogia in malam partem Tratando-se de Direito Penal, é de se perguntar: pode o juiz, diante de um fato a ele relatado, e na ausência de norma penal incriminadora, aplicar, ao fato, a norma penal que incide sobre um fato parecido? A resposta é, com todas as letras, garrafais: NÃO. O uso da analogia no que diz respeito às normas penais incriminadoras é terminantemente proibido, pelo princípio da legalidade: nullum crimen, nulla poena, sine lege. Só a lei pode definir crimes e cominar penas. Se não há lei considerando o fato um crime, o juiz está impedido de, usando a analogia, aplicar uma pena à pessoa que o praticou. O art. 155 do Código Penal define como crime o comportamento de uma pessoa consistente em “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Este é o delito denominado furto. Se Cláudio, com vontade de ir ao shopping, estando atrasado e não tendo um veículo, abre o veículo de Alfredo, no estacionamento da faculdade, consegue fazê-lo funcionar e, com ele, vai até o lugar desejado, deixando o veículo no estacionamento, terá cometido uma “subtração de coisa alheia móvel para, simplesmente, usá-la”. Apresentado tal fato ao juiz, para julgamento, este, inicialmente, verificará que Cláudio não subtraiu o veículo para si, nem para terceira pessoa. Logo, tal fato não está proibido pela norma do art. 155 do Código Penal. O juiz, verificando que não existe norma proibindo Cláudio de realizar tal subtração, poderá, por analogia, aplicar a norma do art. 155, que se aplica a fatos bem parecidos, bem semelhantes? Claro que não. Só há furto quando a subtração é feita com o ânimo de assenhoreamento da coisa, isto é, para o próprio agente ou para terceira pessoa. Não houve crime de furto. Cláudio, é evidente, cometeu um fato contra o Direito, mas não contra o Direito Penal. Sua atitude é ilícita, mas na esfera do direito civil. Violou um direito de Alfredo e, segundo manda o art. 927 do Código Civil, deverá reparar os danos causados. Crime de furto, todavia, não praticou. O uso da analogia para suprir omissões ou lacunas do sistema de normas penais


Interpretação da Lei Penal - 19 incriminadoras é terminantemente proibido, porque viola o Princípio da Reserva Legal. Definir crimes, cominar penas, é matéria reservada à lei ordinária federal e só ela pode fazer. O Juiz, não.

6.4.2 Analogia in bonam partem O Código Penal (nos arts. 124 a 127) proíbe a realização do aborto – interrupção da gravidez, com a morte do produto da concepção –, cominando-lhe severa sanção penal. O art. 128, II, do Código Penal, todavia, contém uma norma penal permissiva, que diz: “Não se pune o aborto praticado por médico: II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” Trata-se de uma norma penal permissiva justificante, daquelas que consideram justificada, lícita, a conduta definida como crime. Isto significa que, se Maria, estuprada, ficar grávida, poderá consentir em que o médico realize intervenção cirúrgica com o fim de interromper sua gravidez, e matar o produto daquela concepção. É permitido esse aborto. Não ofende o Direito. É justo. Antes da vigência da Lei nº 12.015, de 7.8.2009, o crime de estupro era assim definido no art. 213: “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. A norma era clara, o aborto somente seria justificado, se a gravidez tivesse resultado de um estupro, que era a “conjunção carnal” obtida mediante violência ou grave ameaça. Na época, podia se pensar noutra situação, um pouco diferente da anterior, a de Ana, que foi constrangida, mediante gravíssima ameaça ou, até, violência física, por José, a praticar com ele diversos atos libidinosos. Fora constrangida a sexo oral, sexo anal, enfim, a uma série de contatos físicos, sem, contudo, ter havido conjunção carnal, a penetração do pênis na vagina. Apesar da ausência da conjunção carnal, Ana, dias depois, verificou estar grávida. Como não tivera qualquer contato sexual com outro homem, é óbvio que, por uma dessas situações inusitadas da natureza, engravidou sem penetração, sem conjunção carnal. A ciência médica é uníssona em reconhecer a possibilidade de ocorrer gravidez nessas hipóteses. A gravidez de Ana não resultara de estupro – que era a conjunção carnal violenta -, mas de atentado violento ao pudor, crime então definido no art. 214 do Código Penal,


20 - Direito Penal – Ney Moura Teles assim: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal.” Poderia o médico realizar o aborto em Ana? A norma do art. 128, II, não o amparava, pois ali só era justificado o aborto, quando a gravidez resultasse do crime do art. 213 do Código Penal, de estupro, e não do delito definido no então art. 214, de atentado violento ao pudor. Apresentado um caso desses ao julgador e verificando ele a omissão da lei, a inexistência de norma penal permissiva que tornasse lícita a conduta do médico, poderia usar da analogia, para aplicar a norma do art. 128, II? A norma permitia o aborto numa situação semelhante, análoga, parecida, então havia de permitir na outra, porquanto, omissa a lei, incidiria a norma do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que manda o juiz aplicar a analogia. Não há, como quando se trata de norma penal incriminadora, um princípio ou outra norma proibitiva do uso da analogia em benefício do acusado. O juiz devia, portanto, aplicar o preceito do art. 128, II, mesmo quando a gravidez resultasse de atentado violento ao pudor. Esta é a analogia in bonam partem, aquela que beneficia o acusado, que deve ser aplicada sempre, no Direito Penal. O problema agora não existe mais, pois a Lei 12.015, de 7.8.2009, unificou aqueles dois delitos no art. 213, sob a mesma denominação de estupro, assim tipificado: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Desnecessário, agora, usar a analogia, para considerar lícito o aborto quando a gravidez resulte de outro ato libidinoso. Não há mais omissão da lei. A nova norma é benéfica e retroage para alcançar fatos anteriores à sua vigência. E se a gravidez tiver resultado de um fato como o definido no art. 215 do Código Penal –? Qual o critério para o uso da analogia? Nesse artigo, está definido o crime denominado de “violação sexual mediante fraude”. Até onde se pode usar a analogia? Certas opiniões falam na necessidade da existência de violência no ato causador da gravidez, isto é, admitir-se-ia, excepcionalmente, o aborto, apenas e tão-somente em razão da atitude violenta – real ou moral – do homem sobre a mulher, no momento da conjunção carnal. Nesse caso, a mulher não tinha vontade de engravidar. Logo, não poderia ser compelida a manter a gestação e ter o filho. Nessa situação, a vida do feto não estaria sob a proteção do Direito Penal, que protege, sim, o direito de a gestante não procriar o fruto indesejado da violência. Por questão de coerência, não poderia a lei obrigar uma mulher a ter um filho, de uma gravidez que se sustenta num ato que a mesma lei considera não só proibido, mas também sob ameaça de pena criminal.


Interpretação da Lei Penal - 21 Melhor é pensar que o Direito não pode obrigar a mulher a continuar uma gravidez que tenha resultado de um fato que o próprio direito considera crime. Dessa forma, não se pode exigir que a gravidez seja causada exclusivamente por ação violenta, mas qualquer outra ação proibida pela norma penal. Analogicamente, também deve ser permitido o aborto, quando resultar a gravidez não só do atentado violento ao pudor, mas também do crime dos art. 215 do Código Penal.

6.5

INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA Bem demonstrado que a analogia in malam partem é terminantemente

proibida em Direito Penal, é preciso tratar de um instituto bem diferente do uso da analogia que, freqüentemente, é confundido com ele. Trata-se da interpretação analógica. Ao definir as condutas proibidas – consideradas crime –, a lei tem de atender a duas necessidades básicas: uma, a de não violar o princípio da legalidade, descrevendo, o mais exatamente, precisamente, possível o comportamento que deseja proibir sob a ameaça de pena. A

outra

necessidade

é

a

de

alcançar,

abarcar,

abranger

todos

os

comportamentos que constituam graves agressões aos bens jurídicos mais importantes. Tome-se como exemplo o bem jurídico mais importante: a vida, e a agressão mais grave contra ela perpetrada: a causação da morte, a destruição da vida humana por um homem. A lei definiu tal fato como homicídio. Quando alguém mata outra pessoa, com vontade efetiva de alcançar esse fim, realiza um fato que se identifica, que corresponde à definição do crime de homicídio doloso simples. A pena prevista no art. 121, Código Penal, é de reclusão de seis a 20 anos. À agressão maior – destruir – ao direito maior – a vida – há de corresponder uma resposta igualmente maior: pena de privação de liberdade. Lamentavelmente, o homem é capaz de matar seu semelhante dos mais diferentes modos, cada um com grau de gravidade diferente. Por exemplo: matar alguém com um único tiro no coração é diferente de matar uma pessoa privando-a de alimentar-se, mantendo-a amarrada e faminta, durante o tempo necessário para que suas funções vitais pereçam naturalmente, causando-lhe um sofrimento muito grande, além do necessário para, simplesmente, matá-la. Em ambos os casos, o mesmo bem jurídico é violado; todavia, as agressões são distintas, a segunda, bem mais grave. O Direito Penal responde de modo diferente às duas formas de agressão. À


22 - Direito Penal – Ney Moura Teles primeira corresponderá uma pena de reclusão, variável de seis a 20 anos. Na segunda, em que o delinqüente usou de meio cruel, a pena é mais severa, de 12 a 30 anos de reclusão. Essa é uma das hipóteses do chamado homicídio qualificado. Como se vê, a resposta penal leva em conta não só a importância do bem jurídico, mas também a natureza e a gravidade da lesão. Ao definir os crimes, a lei deve abranger todas as situações que deseja alcançar, descrevendo-as do modo mais claro possível. Assim, diz que é homicídio qualificado, entre outros, aquele cometido: (a) mediante paga ou promessa de recompensa; (b) com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura; (c) à traição, de emboscada ou mediante dissimulação. Mas, como se pode observar, existem outras situações, muito parecidas com as mencionadas, que, igualmente, merecem a mesma resposta penal, devendo ser qualificadas do mesmo modo. Por exemplo, o homicídio cometido por um motivo tão repugnante quanto o realizado mediante pagamento. Ou aquele antes relatado, em que a vítima é impedida de alimentar-se, com sofrimento além do necessário. Ou, então, um homicídio praticado de surpresa. São situações análogas àquelas definidas precisamente na lei. Para obedecer ao princípio da legalidade, a lei deveria descrever cada uma das situações que pretendesse abarcar. Se fizesse assim, só para definir o homicídio qualificado, a lei precisaria de centenas de locuções que expressassem cada um dos casos possíveis e, por mais que se esforçasse, não alcançaria todas, pois a imaginação humana e o avanço tecnológico cada vez criariam novas formas graves de agressões. Seria impossível listar todas as hipóteses possíveis. Para não deixar nenhuma delas fora do alcance da norma, utiliza a lei um recurso parecido com aquele das normas penais em branco. Nestas o preceito é deixado incompleto, devendo ser completado por outra norma. Aqui, o preceito está completo, mas exige uma interpretação analógica. Inteligentemente, a lei utiliza um mecanismo que resolve o problema: seleciona uma ou mais situações concretas, descreve-as minuciosamente e, em seguida, manda, por meio de uma fórmula genérica, que todas as situações análogas àquelas sejam consideradas como as situações concretas. É o que se vê na definição de homicídio qualificado de que trata o § 2º do art. 121 do Código Penal: “I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II – (....); III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que


Interpretação da Lei Penal - 23 dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.” Com esse artifício, a lei consegue alcançar todas as condutas que deseja, sem precisar descrever, casuisticamente, cada uma delas. Será homicídio qualificado não só aquele cometido mediante paga ou promessa de recompensa, como também qualquer outro homicídio cometido por outro motivo torpe. Torpe será todo e qualquer motivo análogo à torpeza do que recebe pagamento ou recompensa para matar. Vê-se, portanto, que a lei manda seja feita uma interpretação analógica. O homicídio cometido mediante surpresa é qualificado, porque a surpresa é uma situação análoga à traição, à emboscada, pois que dificulta ou torna impossível a defesa da vítima. Não se trata de uso da analogia, pois que nesta há omissão da lei. Na interpretação analógica, é a lei que determina ao intérprete, quando for aplicá-la ao caso concreto, complementar seu preceito analogicamente. O “outro motivo torpe” deve ser interpretado analogicamente à “paga ou promessa de recompensa”. O “outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido” deve ser interpretado analogicamente à situação de “traição”, ou “emboscada”, ou “dissimulação”. A interpretação analógica não é determinada apenas em normas penais incriminadoras, mas também em normas explicativas, como é exemplo o preceito do art. 28, II, do Código Penal. Ali está prescrito: “Não excluem a imputabilidade penal: II – a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.” Aqui, a lei manda que o intérprete verifique a substância causadora da embriaguez e a considerará alcançada por seu preceito se seus efeitos forem análogos aos efeitos produzidos pelo álcool. A interpretação analógica, portanto, é uma determinação da própria lei, que manda o intérprete estender seu próprio conteúdo, analogicamente à fórmula casuística que determinou. Não se confunde, portanto, com uso da analogia, em que existe omissão da lei.


7 CONCEITO DE CRIME

____________________________ 7.1

CONCEITOS Até aqui se travou superficial contato com algumas figuras de ilícitos penais, de

crimes. Falou-se de homicídio, de aborto, de furto, de estupro, de sedução, de violação de domicílio etc. Cada um desses crimes tem suas características próprias, cada qual tratando de bens jurídicos diversos, cada um com sua pena abstrata, ora mais severa, ora mais branda. Num se protege a vida, no outro o patrimônio, ora protege-se a liberdade sexual da mulher, ou a paz e a tranqüilidade da casa. No segundo e terceiro volumes deste manual, cada figura de crime será estudada detidamente, com suas nuanças próprias e suas particularidades. Neste momento, o objetivo é descobrir e estudar o que existe de comum em todo e qualquer crime, as características comuns a todo e qualquer delito. Essa é tarefa essencial, porque se constituirá na extração das notas que sejam comuns a todos os crimes. Não se irá conceituar cada crime em particular, mas o crime em geral, de modo que, ao final, será possível obter uma definição que se aplique a todo e qualquer crime. Conceituando o crime, em geral, será dado um passo indispensável para conhecer e compreender cada crime em particular. Ao longo dos anos, os estudiosos do Direito Penal digladiam-se em torno de concepções opostas, com a finalidade de encontrar a adequada conceituação de crime. Cada qual apresenta seu conceito, como se passa a demonstrar.

7.1.1 Conceitos formais Do ponto de vista da aparência externa, da exteriorização do crime, pode-se, com GIUSEPPE MAGGIORE, conceituar o crime como “qualquer ação legalmente punível”


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles (ogni azione legalmente punibile)1 ou, com HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, afirmar ser “toda ação ou omissão proibida pela lei sob a ameaça de pena”2, ou, então, nas palavras de MANOEL PEDRO PIMENTEL, “uma conduta contrária ao Direito, a que a lei atribui uma pena”3. Para FRANCISCO MUÑOZ CONDE, “é toda conduta que o legislador sanciona com uma pena”4. Crime, do ponto de vista formal, é o comportamento humano, proibido pela norma penal, ou, simplesmente, a violação desta norma5. Crime é, simplesmente, aquilo que a lei considera crime. Tais conceitos são insuficientes para o estudioso do Direito Penal que pretende e deve debruçar-se sobre esse fenômeno de modo a conhecê-lo em sua inteireza, em sua profundidade, porque não desnudam os aspectos essenciais do crime, ou, no dizer de MUÑOZ CONDE, porque um conceito exclusivamente formal “nada diz acerca dos elementos que deve ter essa conduta para ser assim punida”6. Não informam a atividade legislativa, não limitam o poder estatal de punir e não explicam nada a ninguém. Não servem ao operador do Direito, não servem ao estudante, não servem a quem quer que seja.

7.1.2 Conceitos materiais Ao lado dos conceitos formais, os doutrinadores do Direito constroem conceitos substanciais, ditos materiais, que procuram desvendar as “profundezas” do crime, no termo de BETTIOL. Para HELENO FRAGOSO, do ponto de vista material, o crime é “a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de pena”7. Como se pode observar, no conceito é incluída, como essência do crime, a relação de antagonismo entre o

1

Diritto penale. 5. ed. Bolonha: Nicola Zanuchelli, 1951. v. 1, p. 189.

2

Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 144.

3

O crime e a pena na atualidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p. 2.

4

Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988. p. 2.

5

SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1950. t. 1, p. 229.

6

Op. cit. p. 2.

7

Op. cit. p. 145.


Conceito de Crime - 3 comportamento humano e os valores do corpo social, a ofensa aos interesses importantes da sociedade. GIUSEPPE BETTIOL apresenta interessante conceito substancial de crime: “É todo fato humano lesivo de um interesse capaz de comprometer as condições de existência, de conservação e de desenvolvimento da sociedade.”8 Nesse conceito do grande penalista italiano, verifica-se a mesma exigência de que o crime seja um comportamento que produza lesão ao bem jurídico, com o requisito de que tal lesão seja capaz de comprometer – afetar de modo grave – a própria existência da sociedade. Com base nesses conceitos, pode-se concluir que, para o legislador definir certo fato humano como crime, deve, previamente, verificar se o mesmo é daqueles que lesionam bens jurídicos, ou pelo menos expõem-nos a grave perigo de lesão, e se tais lesões são de gravidade acentuada, de modo a serem proibidas sob a ameaça da pena criminal. Do contrário, não poderá o legislador considerá-las crime. A importância dos conceitos substanciais é essa: fundamentar e limitar a atividade do legislador no momento da construção das figuras que deseja proibir sob a ameaça da pena criminal. Não pode, pois, o legislador construir definições de crime que não constituam graves lesões ou ameaças de lesões a bens jurídicos de grande importância. Ocorre, todavia, que se tais conceitos, de um lado, servem para limitar a atuação do legislador, são, por outro, insuficientes e incompletos, pois, como bem lembra BETTIOL, nem todas as condutas humanas consideradas criminosas são daquelas que comprometem as condições de existência da sociedade, como no crime de injúria, que consiste na ofensa à dignidade de um indivíduo. No caso, apesar de não constituir grave perigo para as condições de conservação da sociedade, trata-se de conduta que deve ser proibida para a preservação de valores individuais cuja proteção constitui interesse público da mais alta importância.

7.1.3 Conceito de Carrara FRANCESCO CARRARA, um dos maiores penalistas clássicos, em sua monumental obra Programa do curso de direito criminal, definiu o crime como “a infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos

8

Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 241.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso”9. Desse conceito, pode-se concluir que o crime deve ser sempre um comportamento do homem – só do homem, não dos animais, nem das entidades jurídicas – que se concretiza, que se materializa no mundo, não podendo ser consideradas crimes as atitudes puramente internas do homem, como o pensamento, o simples querer, o sonhar, o pensar (ato externo do homem). Esse comportamento humano pode ser fazer alguma coisa, ou a abstenção de um fazer, o não fazer algo, ação ou omissão (positivo ou negativo), e somente será considerado crime se previsto anteriormente na lei (infração da lei do Estado promulgada). Além disso, será comportamento que significa lesão ou perigo de lesão para interesses dos indivíduos (para proteger a segurança dos cidadãos, politicamente danoso) e que possa ser atribuído a pessoa capaz de responder por seus atos (moralmente imputável). Todos os conceitos apresentados – formais e materiais – não respondem ao interesse do estudioso do Direito Penal que, com eles, não pode afirmar, com segurança, diante de um fato qualquer, se ele é ou não considerado crime. Sim, porque existem fatos que constituem ofensas a bens jurídicos importantes e que, nem por isso, são considerados crime, como, por exemplo, o incesto. Outros, como já se disse, não tão graves – como a injúria – o são.

7.1.4 Definição legal de crime O art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal define crime, desta forma: “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.” Trata-se, como se vê, de um conceito puramente formal, que nada explica, a não ser quais penas correspondem ao crime e quais à contravenção penal.

9

Programa do curso de direito criminal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1956. v. 1, p. 48.


Conceito de Crime - 5

7.1.5 Conceito analítico Se nenhum dos conceitos apresentados atende aos interesses do penalista, a solução é procurar uma nova forma de conceituar o crime, partindo do ordenamento jurídico vigente, analisando todas as normas penais, incriminadoras, permissivas justificantes e permissivas exculpantes, bem assim as explicativas, para construir, com base no conjunto do ordenamento jurídico-penal e dos fatos que a vida revela, um conceito analítico de crime, partindo do geral para o particular, decompondo o crime em suas características mais simples. Conceituar, analiticamente, o crime é extrair de todo e qualquer crime aquilo que for comum a todos eles, é descobrir suas características, suas notas essenciais, seus elementos estruturais. Essa é a tarefa que se impõe. A observação de todo e qualquer crime – homicídio, furto, estupro, estelionato, injúria, qualquer crime definido em qualquer lei penal – conduz à conclusão de que, em todos eles, existe um comportamento do ser humano, uma atitude externa, um fazer ou um não fazer: uma ação, em seu sentido amplo, que engloba o fazer algo e o não fazer alguma coisa. Só o homem, segundo a lei brasileira, é capaz de cometer crimes; logo, deve-se fazer uma primeira afirmação. Todo crime é uma ação do homem, é uma ação humana. Nem toda ação humana é, todavia, considerada crime. Ao contrário, a maior parte das ações do homem são comportamentos lícitos e mesmo alguns deles, considerados ilícitos, não são, apenas por isso, considerados crimes. Danificar, sem querer, por falta de atenção, o veículo alheio é uma ação ilícita, mas não é um crime. Trata-se de um ilícito de natureza civil, cuja sanção é a obrigação, para o responsável, de reparar o dano causado negligentemente. É a regra do art. 927 do Código Civil Brasileiro que impera. Só algumas ações humanas são consideradas crime: aquelas que estiverem previamente definidas numa lei como tal, consoante manda o Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal. Então, já se pode limitar aquela primeira afirmação. O crime é uma ação humana assim definida previamente por uma lei penal. A definição de crime contida na lei penal, por exemplo, “matar alguém” (art. 121, Código Penal), ou “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (art. 155, Código Penal), recebe da doutrina o nome de tipo. Tipo legal de crime. Aquela primeira é o chamado tipo de homicídio, a segunda é o tipo de furto.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles Assim, também existem os tipos de roubo, de estelionato, de lesão corporal, de aborto etc. “O conceito de tipo remonta historicamente ao de corpus delicti, sendo empregado na antiga doutrina para significar o conjunto das características de determinado delito. Adquiriu função autônoma na estrutura do fato punível com a obra de Beling (1906), que limitava o conceito de tipo às características objetivas do crime, por contraposição à antijuridicidade e à culpabilidade.”10 Tipo, modernamente, dentro da teoria geral do crime, é a descrição do comportamento proibido pela norma penal, um modelo de comportamento humano que a lei considera crime e que, por isso, proíbe sob a ameaça da pena criminal. Adiante será aprofundado o estudo dos tipos, cuidando de sua estrutura, apresentando seus elementos integrantes. Nesta quadra, o objetivo é apenas uma visão global do conceito analítico de crime. Pois bem, se foi dito que nem todas as ações humanas são consideradas crimes, mas apenas aquelas que estiverem, previamente, definidas em lei como tal, e se esta definição recebe o nome de tipo, pode-se dizer que o crime é uma ação que se identifica integral e totalmente com um tipo de crime. Correto afirmar com tranqüilidade que o crime é uma ação que corresponde fielmente a determinado tipo. Para existir crime, é necessário que a ação humana seja igual à ação descrita num tipo, ou seja, que a ação humana corresponda exatamente a um tipo. Logo, podese resumir dizendo que o crime é uma ação típica, isto é, adequada, ajustada, a um tipo. As ações do homem, mormente aquelas que geram uma conseqüência concreta, são, na verdade, verdadeiros acontecimentos da vida em sociedade, ou, em outras palavras, são fatos sociais. “João, a tiros de revólver, matou Alberto” é um desses acontecimentos, desses fatos da vida, composto de um comportamento humano (disparar tiros de revólver) e de uma conseqüência (morte de alguém), assim como este outro: “Paulo comprou um automóvel, pagando, em moeda corrente, por ele, um preço.” Desses dois fatos, apenas o primeiro é definido como crime pela lei penal. Por isso, afirma-se que o crime é um fato típico, o que significa dizer que é um fato da vida, um acontecimento que se amolda, se ajusta, a um tipo legal de crime.

10

FRAGOSO, Heleno C. Op. cit. p. 153.


Conceito de Crime - 7 Com esse raciocínio, chega-se a uma primeira conclusão: todo crime é um fato típico. Se não houver um tipo legal de crime que corresponda ao fato da vida, este não pode ser crime, porque não é típico. Logo, a primeira característica do crime é ser ele um fato típico. Se todo crime é um fato típico, nem todo fato típico é, contudo, um crime. O Direito Penal, às vezes, por meio das normas permissivas justificantes, considera justa, em algumas circunstâncias, a prática de certos fatos que o mesmo Direito Penal proíbe, e que são definidos como crime. Por exemplo, sabe-se que existe uma norma penal incriminadora proibindo a prática de aborto – que é a interrupção da gravidez, com a morte do ser humano em formação. Tal fato é típico, pois existem descrições na lei penal a esse respeito, nos arts. 124 (provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: pena – detenção, de 1 a 3 anos), 125 (provocar aborto, sem o consentimento da gestante: pena – reclusão, de 3 a 10 anos) e 126 (provocar aborto com o consentimento da gestante: pena – reclusão, de 1 a 4 anos) do Código Penal. Aborto ou abortamento é, assim, um fato definido como crime; realizá-lo é, conseqüentemente, realizar um fato típico. Apesar disso, o Direito Penal considera justificada a realização de um aborto, por um médico, se não houver outro meio para salvar a vida da gestante. Numa situação de perigo para a vida da mãe, o direito permite seja sacrificada a vida do feto. Por isso, o médico está autorizado a provocar o aborto em uma gestante, com ou sem seu consentimento, desde que seja esta a única maneira de salvar-lhe a vida. Tal permissão é concedida pela norma do art. 128, I, do Código Penal: “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante.” Do mesmo modo, se a mulher engravidar de um homem que a constrangeu, com violência ou grave ameaça, à conjunção carnal, entre a vida do feto e a liberdade da gestante estuprada, o Direito Penal protege esta, deixando a critério dela, ou de quem a represente, se ela for incapaz, deixar ou não deixar nascer o fruto da violência sexual. É outra modalidade de aborto permitido, inserta no inc. II do mesmo art. 128 do Código Penal: “Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal.” Então, se um médico provoca um aborto em Maria – porque a vida desta estava em grave perigo, evitável apenas através da antecipada interrupção da gravidez, com morte do feto –, terá cometido um fato típico, porém justificado pelo Direito. Seu


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles comportamento, em conseqüência, não se volta contra a ordem jurídica, não é por ela proibido; ao contrário, é permitido, considerado justo e pode ser realizado. Não é, portanto, um crime, apesar de ser um fato típico. Para ser crime, de conseguinte, o fato típico, ao mesmo tempo, não pode estar autorizado por uma norma penal permissiva justificante. Quando o fato é autorizado, justificado, diz-se que ele, apesar de típico, é lícito, pois não contraria a ordem jurídica. Inversamente, para que haja o crime, o fato típico deve ser, a um só tempo, injustificado ou ilícito. Deve estar contrariando todo o ordenamento jurídico. Essa relação de contrariedade ou de antagonismo entre o fato típico e a ordem jurídica é o que se chama ilicitude, que é a segunda característica do crime. Então, deu-se outro passo: todo crime é um fato típico e ao mesmo tempo ilícito, proibido pelo Direito, injustificado, não permitido, proibido pela ordem jurídica. A pergunta que se faz agora é: todo fato típico e ilícito é crime? O Direito Penal, mesmo não justificando certo fato praticado, entende, em algumas hipóteses, que não pode ser imposta a pena criminal. Por exemplo, os menores de 18 anos, segundo manda a Constituição Federal, não podem ser responsabilizados perante o Direito Penal. Também os doentes mentais que sejam incapazes de entender o significado de seu gesto não podem ser punidos, porquanto não faz sentido, não é humano, punir quem não sabia o que fazia. Aquele que, se soubesse, não faria o que fez. Para que haja o crime, é indispensável não só que o homem que praticou o fato típico e ilícito seja capaz de responder por seus atos, mas, ainda, que seu comportamento seja merecedor de censura, de reprovação do Direito. É que às vezes a pessoa comete um fato típico e ilícito e, mesmo sendo plenamente capaz de entendê-lo, não pode ser reprovada. Por exemplo: um cidadão chega em sua casa e encontra sua mulher e filhos sob a mira de armas pesadas, empunhadas por homens que exigem dele, chefe da família, que volte ao Banco onde é gerente e de lá lhes traga certa quantia em dinheiro. O pai acede aos desejos daqueles, retorna ao banco e de lá retira a importância e a entrega ao chefe do grupo, obtendo, em seguida, a paz e a tranqüilidade de seu lar, com o fim do perigo para a vida de seus entes queridos. O fato praticado pelo gerente do Banco é típico, pois terá se apropriado de


Conceito de Crime - 9 importância da qual tinha a posse (art. 168, CP). É igualmente ilícito, porquanto não incide uma norma penal permissiva justificante, como a da legítima defesa ou a do estado de necessidade, que serão estudadas adiante. Esse fato típico é, ao mesmo tempo, ilícito, injustificado, proibido pelo Direito. O gerente, maior de 18 anos, é plenamente capaz, é um cidadão mentalmente capaz de compreender que seu gesto era proibido, mas, mesmo assim, não merecerá reprovação do Direito Penal, não será censurado, pois agiu sob coação, de natureza moral, a que não podia resistir. Ninguém, nem a sociedade, pode exigir dele que, em vez de apropriar-se do dinheiro e entregá-lo aos que ameaçavam seus familiares, tivesse ido atrás da polícia, colocando em risco a vida de seus entes queridos. Essa exigência o ordenamento jurídico-penal, em nome da vontade da sociedade, sua fonte produtora, não faz àquele homem, preferindo desculpá-lo, perdoá-lo, isentando-o da pena criminal, porque, nas circunstâncias em que ele se encontrava, não se pode censurá-lo pelo que fez. Quando não se pode censurar o comportamento daquele que pratica o fato típico e ilícito, quando não se pode reprová-lo, o Direito o desculpa. Nesse caso, igualmente, não há crime. Essa reprovabilidade do fato praticado pelo agente, a censurabilidade do comportamento humano, é a terceira característica do crime, denominada culpabilidade. O crime, portanto, deve ser, sempre, um fato típico, ilícito e reprovável, censurável, culpável. Em conclusão, crime é um fato típico, ilícito e culpável. Com base em todo o ordenamento jurídico-penal, que contém todas as normas penais incriminadoras, permissivas justificantes e permissivas exculpantes, além das explicativas, fez-se a decomposição de todo e qualquer crime em três notas características, elementos ou faces, não importa que expressão se queira utilizar. Descobriram-se os três componentes do crime. Estudar o crime, então, é estudar essas três características: o fato típico, a ilicitude e a culpabilidade, tarefa sobre a qual se debruçará daqui por diante.

7.1.6 Definições A partir deste ponto, torna-se necessária a fixação de algumas definições que, doravante, serão utilizadas neste livro.


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles

7.1.6.1 7.1.6.1.1

Sujeitos do crime Sujeito ativo

A pessoa que pratica o fato típico, que realiza a conduta descrita na lei penal incriminadora, é chamada de sujeito ativo do crime. No Direito brasileiro, somente o ser humano pode ser sujeito ativo do crime. Ultimamente, muito se tem discutido sobre a possibilidade de se responsabilizar, criminalmente, também a pessoa jurídica. LUIZ FLÁVIO GOMES, com a ousadia que lhe é peculiar, apresenta sua visão a esse respeito: “A complexidade da vida moderna, a internacionalização da economia e o poder cada vez maior das empresas aconselham, sem dúvida, renunciar ao clássico princípio societas delinquere non potest, é dizer, as pessoas jurídicas devem ser sancionadas penalmente sempre que o fato delitivo for executado dentro da esfera das operações ou negócios da sociedade, se tem alguma relação com as atividades, se utilizaram meios ou recursos da empresa e, sobretudo, se o fato proporcionou algum proveito ou benefício econômico ou de outro tipo à empresa ou se ela foi utilizada para encobrir o fato punível.”11 Contrapondo-se a essas idéias corajosas, RENÉ ARIEL DOTTI tem uma posição muito clara: “A pretensão de atribuir a imputabilidade penal às pessoas jurídicas não está em harmonia com a letra e o espírito da Constituição”, mostrando que restariam violados os princípios da igualdade, da humanização das sanções, da personalidade da pena, o direito de regresso e as regras de aplicação da lei penal, ofendendo, ainda, vários princípios relativos à teoria do crime, ressaltando, a propósito, que “a conduta, revelada através da ação ou da omissão, como primeiro elemento estrutural do crime, é produto do homem”12. Já LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, com seu inigualável equilíbrio, chama a atenção para a necessidade de não se romper com princípios importantíssimos do Direito Penal, especialmente o da culpabilidade, lembrando que “...no Direito Penal, a pessoa física e a pessoa jurídica reclamam tratamento diferente”, e que “o Direito Penal, sublinhe-se mais uma vez, contém princípios que só fazem sentido relativamente à pessoa física”, mas que “nada impede, pragmaticamente, e disso há exemplos, repita-se, em outras

11 Sobre a impunidade da macrodelinqüência econômica desde a perspectiva criminológica da teoria da aprendizagem. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 11, p. 171172, 1995. 12 A incapacidade criminal da pessoa jurídica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 11, p. 187-191, 1995.


Conceito de Crime - 11 legislações, estabelecer sanções penais às pessoas jurídicas”13. É preciso, portanto, muito cuidado com as propostas inovadoras, que privilegiam soluções pragmáticas, pois não se deve utilizar o Direito Penal, como se quer ultimamente, como panacéia, como único instrumento de combate ao crime. Assim como é necessário contraporem-se os adeptos de um Direito Penal democrático ao movimento de Lei e de Ordem, que busca o endurecimento e as restrições à liberdade – atingindo, como é certo, preponderantemente, membros das classes subalternas, explorados, negros, pobres, minorias marginalizadas – não se pode, igualmente, quando se tratar de combater a chamada “criminalidade do colarinho branco”, esquecer-se de que também seus sujeitos gozam das mesmas garantias constitucionais e legais, e que os delitos por eles praticados são regidos pelos mesmos princípios de natureza penal e processual penal, não sendo coerente, quando se tratar dos poderosos, o abandono dos princípios fundamentais do Direito. A máxima de que igualdade significa tratar os desiguais desigualmente não importa na construção de outro Direito Penal, feito pelos humilhados, para reprimir os poderosos. A experiência do chamado socialismo real é por todos conhecida, e não correspondeu aos sonhos de Karl Marx e Frederich Engels, nem aos de Vladimir Ilitch Ulianov. As conquistas do moderno Direito Penal da culpabilidade não podem sucumbir aos anseios, legítimos, de combate à criminalidade organizada ou do colarinho branco. Nunca é demais lembrar que o Direito Penal é limitado e tem natureza subsidiária e só deve ser chamado quando o direito tributário, civil, administrativo etc. forem insuficientes para a proteção do bem jurídico. Encontrar fórmulas para sancionar a pessoa jurídica mais eficazmente, mais rapidamente, é tarefa urgente, mas para os outros ramos do Direito. Em síntese, apesar das discussões atuais, sujeito ativo do crime no direito brasileiro é apenas o homem. No Código Penal, o sujeito ativo é chamado de agente, ainda que o fato típico seja relativo a um comportamento omissivo, negativo, um não fazer. Assim que ocorre um fato típico, tem a autoridade policial a obrigação de iniciar um procedimento destinado a investigá-lo, o chamado Inquérito Policial. Aí, o agente é denominado indiciado. Quando se instaura o processo, costuma-se nomeá-lo de

13 Direito penal tribuátrio: observações de aspectos da teoria geral do direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 11, p. 182-183, 1995.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles acusado, denunciado ou réu. Terminado o processo, com a condenação, ao agente dá-se o nome de sentenciado ou condenado. As expressões criminoso e delinqüente são adotadas por outras ciências, não sendo de boa técnica utilizá-las em Direito Penal. Até este ponto, não se tinha mostrado esta preocupação, até porque, por mais popularizadas, foram as expressões que se preferiu utilizar, por serem mais simples e de mais fácil compreensão. Daqui para a frente, contudo, a referência ao sujeito ativo do fato típico será sempre como o agente.

7.1.6.1.2

Sujeito passivo

O sujeito passivo é o titular do bem jurídico visado pela conduta típica. Os doutrinadores fazem distinção entre sujeito passivo material e sujeito passivo formal. Aquele é, efetivamente, o titular do bem atacado, podendo ser o particular ou mesmo o Estado, que pode ser vítima de furto, de estelionato etc. Já sujeito passivo formal seria sempre o Estado, que é o titular da ordem proibitiva da conduta típica.

7.1.6.2

Objeto do crime

Objeto jurídico do crime é o bem jurídico visado pela conduta típica, o interesse contra o qual o comportamento proibido se dirige. No tipo de homicídio, é a vida; no de furto, o patrimônio; no de estupro, a liberdade sexual da mulher. Objeto material do crime é a pessoa ou a coisa sobre a qual a conduta típica vai incidir. No tipo de homicídio e no de estupro, o corpo humano; no furto, a coisa subtraída.

7.1.6.3

Denominação do crime

Além de definir os fatos como crime, a lei penal confere-lhes um nome, pelo qual podem ser identificados. “Matar alguém”, do caput do art. 121, é denominado na lei de “homicídio simples”. O crime definido no art. 155 é denominado “furto”. Os crimes que têm mesmo objeto jurídico são agrupados no Código Penal em capítulos, e os mais específicos, em seções, recebendo, igualmente, denominações genéricas, tais como: Crimes contra a Pessoa, Crimes contra a Vida, Crimes Contra a Honra, Crimes contra o Patrimônio. Em outras leis penais, os crimes nelas definidos são, igualmente, nominados: Crimes contra a Ordem Econômica (Lei nº 8.176, de 8-2-91), Crimes contra a Ordem


Conceito de Crime - 13 Tributária (Lei nº 8.137, de 27-12-90). Assim, quando no dia-a-dia da vida dos operadores do Direito, alguém fala em “prevaricação”, está-se referindo ao tipo legal de crime do art. 319 do Código Penal. Se a expressão empregada é “peculato”, trata-se do tipo inscrito no art. 312 do Código Penal. Se alguém disser que João praticou “atentado violento ao pudor”, estará dizendo exatamente que seu comportamento foi: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (art. 214, Código Penal).

7.2

CRIME E CONTRAVENÇÃO A lei penal brasileira, além de definir como crime certas condutas do homem –

cominando-lhe penas – define, sob o nome de “contravenção penal”, outros comportamentos, cominando-lhes, igualmente, sanções penais. Contravenção penal é também um fato típico, ilícito e culpável, um fato definido e proibido por uma lei sob a ameaça de uma pena, a qual, tanto quanto o crime, deve ser contrária ao Direito e reprovável. Pode-se dizer que é outra categoria de crime, chamada de contravenção penal. Os italianos chamam a contravenção de delito anão, o que indica tratar-se de um crime de menor gravidade. A diferença que ressalta primeiro entre crime e contravenção não está em nenhum deles, mas em sua conseqüência, como se viu da definição legal da Lei de Introdução ao Código Penal: a pena para a contravenção penal consiste em prisão simples e/ou multa, ao passo que para o crime a pena é de reclusão, detenção e/ou multa. A diferença entre a prisão simples e as penas reclusivas e detentivas está não só no estabelecimento penal onde devem ser cumpridas, mas também no rigor com que são executadas. A prisão simples é aquela cumprida em estabelecimento especial, sem rigor penitenciário, ao passo que as penas de reclusão e detenção são, respectivamente, cumpridas em estabelecimentos penais de segurança máxima, média ou mínima. Haveria alguma diferença, substancial, entre o que a lei considera crime e aquilo que ela considera contravenção penal? Tomem-se três hipóteses: um fato definido como crime: “ofender a integridade


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles corporal ou a saúde de outrem” (art. 129, Código Penal), outro: “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente” (art. 131, Código Penal), e, finalmente, um fato considerado contravenção penal: “Deixar em liberdade, confiar à guarda de pessoa inexperiente, ou não guardar com a devida cautela animal perigoso” (art. 31, LCP). No tipo de lesão corporal, há a descrição de um comportamento humano que tem, como conseqüência, a lesão de um bem jurídico, a integridade corporal ou a saúde de outra pessoa. Na segunda hipótese, a saúde de alguém não sofre nenhuma lesão, mas fica exposta a um perigo concreto de ser lesionada. Na terceira situação, não há lesão ao bem jurídico, nem perigo concreto, mas abstrato, de lesão do bem jurídico. O perigo é uma pura representação do espírito ou é uma realidade concreta? Para os adeptos da teoria subjetiva, perigo é apenas uma idéia, uma abstração, não um fato ou um ente concreto. É uma impressão de temor, uma representação mental, uma pura indução subjetiva. Já para os que abraçam a teoria objetiva, o perigo é um trecho da realidade, pois sempre existe probabilidade objetiva de acontecer um evento, e o perigo é um estado que contém as condições incompletamente determinadas de um evento lesivo. O perigo seria o fenômeno objetivamente provável. Há duas espécies de perigo: o subjetivo ou abstrato, que é uma representação mental, e o objetivo, concreto, que é um trecho da realidade, a probabilidade de ocorrência da lesão. Havendo lesão ou perigo objetivo, concreto, de lesão, deve haver um crime. Se, todavia, o comportamento proibido chega apenas a criar uma situação subjetiva, abstrata, de perigo, deve-se estar diante de uma simples contravenção penal. Por isso, foi criado o tipo legal de crime, no art. 131 do Código Penal, uma vez que existe o perigo objetivo, concreto, da ocorrência de uma lesão da saúde alheia. Já na contravenção penal do art. 31 da Lei das Contravenções Penais, há apenas um perigo puramente subjetivo, abstrato, pois a simples presença do animal perigoso em liberdade ou sob o comando de uma criança não constituiria, ainda, um perigo objetivo, concreto, mas tão-somente a incerteza que tal situação gera, um perigo abstrato. Esse perigo subjetivo poderia ser chamado de perigo de ocorrência de perigo objetivo. Conquanto o perigo objetivo seja um trecho da realidade, que antecede a lesão, há um momento antecedente a esse trecho, e em sua presença, deveria o legislador construir a figura de uma contravenção penal e não de um crime, para evitar sua evolução para um perigo concreto ou, mesmo, uma lesão.


Conceito de Crime - 15 Essas construções teóricas, todavia, não se sustentam, pois dependem, exclusivamente, de o legislador definir tal ou qual conduta como crime ou como contravenção. Nada impediu, por exemplo, que a contravenção penal definida no art. 19 da Lei das Contravenções Penais, “porte de arma”, fosse tornada crime pela Lei nº 9.437, de 20-2-1997. A matéria está regulada pela Lei nº 10.826, de 22-12-2003. Dependeu, tãosomente, do legislador que, igualmente, pode considerar contravenção penal a “lesão corporal” de que trata o art. 129, caput, do Código Penal. As conceituações de ordem científica, todavia, destinam-se a orientar o legislador no sentido de não construir um direito positivo incoerente, promíscuo e desorganizado, divorciado de um sistema harmônico, especialmente no que diz respeito a construções dos tipos de comportamentos proibidos, sejam nominados crimes, sejam declarados contravenções. Nunca se deve esquecer de que o Direito Penal só deve ser chamado em último caso, quando os bens mais importantes necessitarem proteção mais rígida; diante de certas lesões, é preciso ver que a construção de tipos de contravenção só pode ser entendida como medida de política criminal destinada a divulgar, no seio da comunidade, o interesse do Direito em proteger os bens que seleciona, por meio da mais branda de suas sanções, que é a correspondente à contravenção penal. Recentemente, há propostas de descriminalizar a maioria das contravenções penais e os crimes de pequena gravidade objetiva, como uma das medidas de política criminal reclamadas, a fim de construir um Direito Penal de intervenção mínima, como se exige para a consecução de seus verdadeiros e legítimos objetivos14. Algumas diferenças práticas importantes entre crime e contravenção devem ser mencionadas. Nesta, não se conhece a tentativa e admite-se o erro de direito; ela não é punível se o fato ocorre no estrangeiro, e o tempo máximo de cumprimento de penas não pode ultrapassar cinco anos. As contravenções, em sua maior parte, são simples comportamentos considerados proibidos, pois não dão causa a qualquer conseqüência concreta. São as chamadas infrações de mero comportamento ou de mera atividade, não exigindo os tipos que as definem a produção de qualquer conseqüência concreta. Algumas contravenções penais: fabricar armas ou munições, sem autorização legal, sem a devida 14

JESUS, Damásio E. de. Diagnóstico de legislação criminal brasileira: crítica e sugestões. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 12, p. 115, 1995.


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles autorização, anunciar meios abortivos, vias de fato, jogo do bicho, jogo de azar, loteria não autorizada, exercício ilegal de profissão ou atividade, vadiagem e mendicância. Elas estão definidas no Decreto-lei nº 3.688, de 3-10-1941.


8 FATO TÍPICO

____________________________ A primeira característica do crime é ser um fato típico, descrito, como tal, numa lei penal. Um acontecimento da vida que corresponde exatamente a um modelo de fato contido numa norma penal incriminadora, a um tipo. Para que o operador do Direito possa chegar à conclusão de que determinado acontecimento da vida é um fato típico, deve debruçar-se sobre ele e, analisando-o, decompô-lo em suas faces mais simples, para verificar, com certeza absoluta, se entre o fato e o tipo existe relação de adequação exata, fiel, perfeita, completa, total e absoluta. Essa relação é a tipicidade. Para que determinado fato da vida seja considerado típico, é preciso que todos os seus componentes, todos os seus elementos estruturais sejam, igualmente, típicos. Os componentes de um fato típico são a conduta humana, a conseqüência dessa conduta se ela a produzir (o resultado), a relação de causa e efeito entre aquela e esta (nexo causal) e, por fim, a tipicidade. O objetivo, neste capítulo, é estudar cada um desses elementos do fato típico, inclusive decompondo, cada um deles, em outros caracteres mais simples ainda, e estes, quando possível, em outros componentes.

8.1

CONDUTA Ao longo dos anos, os estudiosos do Direito Penal construíram várias teorias,

procurando explicar a ação, em sentido amplo, ou conduta, o primeiro elemento do fato típico. O tema é da mais alta importância, pois do conceito de conduta adotado decorrem profundas e diversas conseqüências para o tratamento de importantes questões penais práticas. Não se trata de divergências de natureza meramente acadêmica, sem qualquer


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles reflexo na vida prática, como poderia parecer. Ao contrário, do conceito de conduta adotado decorre a própria orientação do Direito Penal vigente em determinado país, como se verá a seguir.

8.1.1 Teoria causalista A teoria causalista ou naturalista da ação, de BELING e VON LISZT, incorpora ao conceito de conduta as leis da natureza; daí o seu nome. Os adeptos da teoria causalista ou naturalista – até pouco tempo atrás a que imperava no Brasil, e que, ainda hoje, infelizmente, tem adeptos entre juízes e integrantes de certos tribunais – entendem que a conduta é um puro fator de causalidade. Segundo eles, a vontade é a causa da conduta e esta é a causa do resultado. Em outras palavras: a conduta é efeito da vontade e causa do resultado. A vontade causa a conduta, que dá causa ao resultado. Para o causalismo, a conduta é um comportamento humano voluntário que se exterioriza e consiste num movimento ou na abstenção de um movimento corporal. Essa teoria considera imprescindível que a conduta típica seja um comportamento voluntário, impulsionado pela vontade do homem, que se concretiza, torna-se real, material, por meio de uma ação positiva ou negativa. Existe conduta na atitude de Cláudio que se levanta da cama e vai até o banheiro, para escovar os dentes, tropeça e derruba seu filho que, na queda, fratura o braço. O movimento voluntário das pernas de Cláudio dentro de seu quarto – o andar, tropeçando – causou a fratura do braço de seu filho. A vontade de Cláudio impulsionou seu comportamento, que deu causa ao resultado. Igualmente, é conduta o comportamento de Jorge, impulsionado por sua vontade, que consiste em atirar, com a mão, uma pedra em direção ao corpo de Mário, ferindo-o. Os causalistas, ao examinarem a conduta de uma pessoa, não realizam qualquer valoração acerca do fim pretendido pelo agente. Para eles, basta analisar a voluntariedade do comportamento – se o agente queria movimentar-se ou abster-se de um movimento – e se há nexo de causa e efeito entre o comportamento e a conseqüência dele advinda. Não se importam – quando examinam a conduta – com o conteúdo da vontade do agente. Não perguntam se Cláudio, ao derrubar seu filho, desejava ou não feri-lo, nem se Jorge, ao atirar a pedra, queria ou não atingir e ferir o corpo de Mário. Para a teoria causal, essas são questões que não se resolvem no âmbito da


Fato Típico - 3 conduta, do fato típico, momento em que basta verificar-se a voluntariedade do agente e o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado. A finalidade, o conteúdo da vontade, diz o causalismo, não são temas para serem abordados no momento da análise da tipicidade do fato. Devem ser estudados quando se for verificar a culpabilidade, que é a terceira característica do crime.

8.1.2 Teoria finalista Contra o causalismo levantaram-se críticas importantes, falhas cruciais. Imaginem-se três fatos da vida: Fato A: João, voluntariamente, dispara um tiro de revólver contra Márcio, causando-lhe um ferimento na perna direita. Fato B: Pedro, voluntariamente, dispara um tiro de revólver contra Paulo, causando-lhe um ferimento na perna direita. Fato C: Antônio, voluntariamente, dispara um tiro de revólver contra Sérgio, causando-lhe um ferimento na perna direita. Nos três fatos, as três condutas consistem em três ações voluntárias de pressionar a tecla do gatilho da arma de fogo, disparando-a em direção a outra pessoa. As conseqüências das três condutas, os resultados, são absolutamente idênticos nos três fatos: lesão do corpo do sujeito passivo. Em qual tipo legal de crime se ajusta cada um dos três fatos? Seriam três “lesões corporais”, dolosas, como definidas no art. 129 do Código Penal? Ou seriam três “lesões corporais”, culposas, de que trata o § 6º do mesmo art. 129? Ou poderiam os três fatos caracterizar-se como três tentativas de homicídio? O adepto da teoria causalista não pode, neste momento, responder a essas indagações, porque, segundo ele, não importa, no âmbito do fato típico, o conteúdo da vontade do agente. De conseqüência, só poderá responder quando for analisar a culpabilidade. O primeiro funcionário público encarregado de tomar contato com um fato definido como crime é o delegado de polícia, a quem incumbe investigar como aconteceu, onde, quando, quem foi, como foi, por que foi e, após registrar tudo isto, num documento denominado inquérito policial, o encaminhará ao juiz, que o mandará ao promotor de justiça, cuja missão é, se considerar necessário, pedir ao juiz a condenação do infrator da norma penal.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles O inquérito policial é o alicerce sobre o qual se vai construir um conjunto de outros atos procedimentais, reunidos organizadamente naquilo que se chama processo penal, instrumento de busca da verdade, pelo qual, ao final, o julgador decide sobre o que lhe foi colocado: condena ou absolve o acusado da prática do fato definido como crime. Essas noções de processo penal não são objeto deste estudo, por isso só são feitas aqui referências bastante rudimentares, para que o neófito possa entender apenas o necessário para o objetivo aqui proposto. Como fará o delegado de polícia “causalista” encarregado de instaurar o inquérito policial, diante daqueles três fatos? Em qual artigo do Código Penal indiciará João, Pedro e Antônio? É indiscutível que ele precisa verificar o que se continha na vontade de cada um dos agentes, para definir em qual tipo legal de crime sua conduta se ajusta. Sem essa análise, é impossível afirmar se como e quando um fato da vida é típico. Para se dizer que no fato A houve tentativa de homicídio, é necessário que se analise o conteúdo da vontade de João e se conclua que ele desejava matar Márcio, não conseguindo porque, errando, só atingiu a perna, região não letal. No segundo fato, B, para se afirmar que houve uma lesão corporal dolosa, é indispensável que, analisando-se o conteúdo da vontade de Pedro, se conclua pela certeza de que este queria apenas e tão-somente ferir Paulo. E no terceiro fato, C, terá havido lesão corporal culposa, quando se chegar à conclusão de que Antônio, ao disparar voluntariamente sua arma, não desejava nem matar, nem ferir Sérgio, mas, apenas, brincar com seu revólver. O indiciamento dos três agentes em inquérito policial deve ser o mais próximo da realidade. As conseqüências são da mais alta importância, bastando lembrar que os indiciados por lesão corporal simples dolosa (art. 129, caput) ou culposa (art. 129, § 6º) poderão não ser presos em flagrante, mas colocados em liberdade, como manda o art. 69 da Lei nº 9.099/95, que trata do processo por crimes de menor potencial ofensivo: “A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança.” Já os presos em flagrante indiciados por tentativa de homicídio só poderão ser libertados mediante o pagamento de fiança arbitrada pelo juiz, nunca pelo delegado.


Fato Típico - 5 Essa é apenas uma das conseqüências práticas do correto indiciamento, que decorre da exata tipificação de um fato concreto, possível apenas quando se analisa não só a aparência do fato, mas, principalmente, o conteúdo da vontade do agente. A distinção entre uma lesão corporal intencional, uma lesão corporal causada por negligência e uma tentativa de homicídio em que a vítima sai ferida está no conteúdo da vontade dos três agentes, na finalidade da vontade do agente dos três fatos, posto que o resultado é idêntico nas três hipóteses. HANS WELZEL, estudando a conduta nas primeiras décadas do século passado, verificou que o elemento diversificador dos fatos típicos não está em seu resultado, mas na ação. A ação do homem que mata outro com vontade de matar é punida mais rigorosamente que a conduta do homem que mata outro sem vontade de matar, apesar de o resultado ser o mesmo nas duas situações (morte de um homem), porque o Direito deseja censurar mais severamente aquele que teve vontade de causar o mal a outrem. Ao Direito importa distinguir entre o que quis um resultado e o que não o quis, mas, por descuido, o causou. Com base nessas observações, WELZEL estruturou a Teoria Finalista da Ação ou Teoria da Ação Final, que diz ser toda ação uma atividade humana final, ou o exercício da atividade finalista. Todo e qualquer comportamento humano é um acontecimento finalista e não puramente causal, pois o homem, enquanto ser consciente das leis naturais, de causa e efeito, pode prever as conseqüências de seu comportamento e tem condições de dirigir sua atividade no sentido da produção de um ou de outro resultado. E, sempre que age, ele o faz com determinada finalidade. Toda vontade tem um conteúdo, que é o fim. A teoria causal, quando prescinde da análise do conteúdo da vontade, está fraturando o conceito de ação, que é um fenômeno uno. A vontade que impulsiona a conduta tem um conteúdo que não pode ser separado dela. A diferença, portanto, entre as duas teorias é que, para os causalistas, a ação é um puro processo causal, ao passo que o finalismo demonstrou que a conduta é um processo causal dirigido a determinada finalidade. Não importa, neste primeiro momento, qual seja a finalidade, mas que ela exista sempre. Em algumas situações, essa finalidade é dirigida à produção de um dano a algum bem jurídico, noutras o fim pode ser a obtenção de um resultado permitido ou não proibido. Mas, sempre, haverá uma finalidade, sempre a vontade humana terá um conteúdo, não importa com qual natureza.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles Segundo WELZEL, a direção final da ação realiza-se em duas fases: internamente, na esfera do pensamento, quando o homem se propõe realizar alguma coisa e, externamente, quando concretiza, materializa esta sua vontade, por meio da colocação em marcha de um processo causal, dominado pela finalidade, para alcançar o fim proposto. Na proposição da realização da conduta, estão incluídas a escolha do fim, a seleção dos meios e a aceitação dos efeitos secundários da realização da ação. Isso quer dizer que a finalidade da ação engloba não somente o fim escolhido, mas também os meios utilizados e os efeitos desta utilização. Por exemplo, quando alguém decide viajar de Brasília para Salvador, por via terrestre, conduzindo seu veículo, durante um final de semana, integram a direção final da conduta: (a) chegar a Salvador, um objetivo lícito; (b) viajar por rodovia, dirigindo o veículo (meios); (c) a possibilidade de atropelar um animal ou uma pessoa na pista ou colidir com outro veículo, enfim, toda e qualquer conseqüência secundária, decorrente da colocação do processo causal dirigido à finalidade estabelecida inicialmente. A conclusão indiscutível é de que somente analisando o conteúdo da vontade é que se pode afirmar a realização de um tipo legal de crime, já que a finalidade é parte integrante da conduta, dela inseparável. Essa é a essência do finalismo.

8.1.3 Teoria social da ação Alguns importantes estudiosos do Direito Penal, como JESCHEK e WESSELS, entenderam que o finalismo de WELZEL seria insuficiente para conceituar a conduta, porque esquecia uma característica essencial de todo comportamento humano, que é seu lado social. Nem o causalismo, nem o finalismo, segundo eles, conseguem explicar a ação, pelo que acresceram ao conceito de conduta a idéia de relevância social; assim, ação é um comportamento humano socialmente relevante, questionado pelos requisitos do Direito e não pelas leis naturais. Segundo essa teoria, para se verificar a tipicidade de uma conduta é indispensável conhecer não apenas seus aspectos causais e finalísticos, mas também sua nota social. Seria relevante do ponto de vista social a conduta que fosse capaz de afetar o relacionamento do indivíduo com o meio social. “A teoria social da ação (...) vê na relevância social do fazer ou da omissão humanos o critério conceitual comum a todas as formas de comportamento.


Fato Típico - 7 Engloba o agir como fator sensível da realidade social, com todos os seus aspectos pessoais, finais, causais e normativos.”1 Dois grandes penalistas, DAMÁSIO E. DE JESUS e FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO formularam severas críticas que, parece, fulminam essa teoria. Para o primeiro, “ela não deixa de ser causal, merecendo os mesmos reparos que a doutrina faz à teoria mecanicista: não resolve satisfatoriamente o problema da tentativa e do crime omissivo. Por outro lado, se ação é a causação de um resultado socialmente importante, como se define a conduta nos crimes de mero comportamento? Esta teoria, como a causal propriamente dita, dá muita importância ao desvalor do resultado, quando o que importa é o desvalor da conduta. Se a ação é a causação de um resultado socialmente relevante, então não há diferença entre uma conduta de homicídio doloso e um comportamento de homicídio culposo, uma vez que o resultado é idêntico nos dois casos”2. Já o segundo, acerca do conceito de “relevância social”, ensina que “pela vastidão de sua extensão, se presta para tudo, podendo abarcar até os fenômenos da natureza, pois não se há de negar ‘relevância social’ e jurídica à mudança do curso dos rios, por ‘ação’ da erosão, com repercussão sobre os limites das propriedades; à morte, causada pela ‘ação’ do raio, com a conseqüente abertura da sucessão hereditária; e assim por diante. (...) Isso mostra, a nosso ver, que a relevância social não é um atributo específico do delito, mas antes uma característica genérica de todo fato jurídico, tomado este em seu sentido mais amplo. Sendo assim, se, de um lado, não se pode negar ‘relevância social’ ao crime, de outro, é fora de dúvida que essa é uma qualidade que lhe advém da circunstância de pertencer à família dos fatos jurídicos, estes sim portadores originários de um indefectível aspecto social”3. Incluir, no conceito de crime, a idéia de relevância social em nada ajuda a explicá-lo. Além disso, o finalismo esclarece com suficiência o conceito de ação.

1

WESSELS, Johannes. Direito penal: parte geral. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1976. v. 1, p. 20. 2

JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 204.

3

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 105.


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.1.4 Teoria jurídico-penal O mesmo FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, após entender que causalidade e finalismo não esgotam o vasto conteúdo do agir humano – já que na maior parte dos casos o agente atuaria por instinto ou por costume –, propõe abandonar o conceito préjurídico, ontológico, proposto por HANS WELZEL, com o regresso a um conceito eminentemente jurídico, que assim formulou: “Ação é o comportamento humano, dominado ou dominável pela vontade, dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem jurídico, ou, ainda, para a causação de uma previsível lesão a um bem jurídico.”4 Esse conceito em absolutamente nada colide com o conceito finalista de ação. Na verdade, equivale a dizer que ação é o comportamento humano voluntário dirigido a um fim. DAMÁSIO E. DE JESUS formula-o: “Conduta é a ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade.”5 O conceito formulado por ASSIS TOLEDO não se distingue do finalista, mas apenas o detalha. Onde o finalista escreve: “ação ou omissão humana consciente”, detalhou: “dominado ou dominável pela vontade”, o que equivale à voluntariedade. Onde o finalismo diz: “dirigido a determinada finalidade”, o novo conceito foi mais pormenorizado: “dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem jurídico, ou, ainda para a causação de uma previsível lesão a um bem jurídico”. A idéia, confessada por seu formulador, é retornar ao que é jurídico, e explicar, ainda, a conduta culposa. É certo que não há esta necessidade, pois trata-se, em primeiro lugar, de conceituar a conduta, e isto o finalismo fez com propriedade e, sobretudo, simplicidade. Claro que, no segundo momento, a tarefa do estudioso é verificar a qualidade da conduta, em face dos tipos construídos pelo legislador e, conquanto tenha ele criado tipos dolosos e tipos culposos, toda e qualquer conduta, para ser típica, ou será dolosa, ou será culposa. Para conceituar conduta, não é necessário explicar suas duas qualidades que, como se verá adiante, são antagônicas e se repelem; daí a impossibilidade e desnecessidade de se obter um conceito de ação, com a inclusão de suas qualidades típicas, dolosa e culposa. A não ser que tal conceito careça do rigor científico, como, aliás, reconheceu o próprio ASSIS TOLEDO, quando enunciou o seu. 4

Op. cit. p. 109.

5

Direito penal. Op. cit. p. 199.


Fato Típico - 9

8.1.5 Conclusões A teoria finalista é a que melhor atende aos interesses do Direito Penal, até porque é a teoria que consegue explicar a conduta com base no próprio direito positivo. Basta verificar-se que, mesmo antes de sua formulação por HANS WELZEL, a lei já criava duas espécies de crimes: os crimes dolosos – em que o agente deseja alcançar o resultado ou, mesmo sem o querer aceita-o – e os crimes culposos – cujos resultados são alcançados sem vontade, mas por negligência, ou por descuido. Isso significa que só são definidas como crime duas espécies de condutas voluntárias: aquelas em que o agente deseja ou assume o risco de violar a norma e aquelas em que a viola por desatenção, por não estar atento a seus deveres gerais de cuidado com a vida. Logo, toda e qualquer conduta definida como crime é valorada, qualificada, na própria definição legal do crime, no próprio tipo. O conceito finalista da ação esgota integralmente todo e qualquer comportamento humano, que em toda e qualquer hipótese está, sempre, dirigido a um fim, ainda quando se possa pensar que o agente atue por hábito, ou costume. A circunstância de alguém realizar, costumeiramente, habitualmente, a mesma atividade, o mesmo movimento, ou a mesma abstenção de um movimento não tem o poder de retirar a finalidade de seu atuar. Desde que haja vontade, há finalidade. Apenas em movimentos involuntários é que se pode verificar a ausência da finalidade, mas estes, é evidente, não constituem conduta, como se verá adiante. Em síntese, a conduta é o comportamento voluntário do homem dirigido a um fim, proibido ou não. Só constituem condutas os comportamentos corporais voluntários externos dos humanos, consistentes em fazer alguma coisa ou em deixar de fazer alguma coisa. As atitudes puramente internas, exclusivamente psíquicas do homem – como desejar o mal ao próximo, sonhar com a morte do desafeto, rezar para que o mal aconteça com seu inimigo – não constituem condutas. Podem interessar aos deuses, aos religiosos e às religiões, ao Direito Canônico, não ao Direito Penal. A conduta estrutura-se em dois elementos: um ato de vontade dirigido a uma finalidade e a atuação dessa vontade no mundo exterior, vontade essa que, segundo WELZEL, abrange o fim pretendido, os meios usados e as conseqüências secundárias.


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.2

AUSÊNCIA DE CONDUTA Só existe conduta quando houver vontade do agente. A experiência da vida mostra algumas situações em que o homem, sem vontade,

movimenta-se ou abstém-se de movimento, dando causa, com uma dessas atitudes, a alguma lesão a um bem jurídico penalmente protegido. Um exemplo: em certo hospital, à meia-noite, a enfermeira Sandra deve ministrar, ao paciente Juarez, determinado medicamento, sem o qual o doente, inevitavelmente, morrerá. Suponham que, dez minutos antes, Joaquim, desejando a morte de Juarez, após entrar no hospital, consegue subjugar a enfermeira, conduzindoa a um quarto, onde a amarra com cordas e a amordaça com fitas adesivas de primeira qualidade, mantendo-a atada a uma das colunas do prédio, de tal modo que lhe é impossível gritar, grunhir, sair, soltar-se, enfim, realizar qualquer movimento com o corpo ou, simplesmente, com a boca. Aos dez minutos do novo dia, o paciente, sem o medicamento indispensável, morre. A enfermeira omitiu-se? Deixou de cumprir seu dever de ministrar o medicamento ao paciente? Houve, de sua parte, um comportamento humano, negativo, uma abstenção de um movimento final? É evidente que não. Só há conduta quando há vontade. No exemplo, a força imprimida contra a enfermeira impedia-lhe de ter vontade de agir. Era-lhe fisicamente impossível agir. Mesmo que desejasse – e é certo que ela assim quis –, com todas as suas forças, soltar-se das amarras, e dirigir-se ao quarto do paciente, para aplicar-lhe o medicamento, não lhe era possível fazê-lo. É claro que ela deixou de cumprir um dever. Aconteceu uma inação, uma omissão, mas essa abstenção do movimento do corpo não foi voluntária, não foi impulsionada pela vontade humana; logo, não constituiu uma conduta. Ela não teve vontade de omitir-se, não teve vontade de deixar de movimentarse. Sem vontade, não há conduta. Situações como essa são chamadas de “ausência de conduta”. Dá-se a ausência de conduta quando ocorre a lesão de um bem jurídico, em conseqüência da atitude do homem – positiva ou negativa – sem, contudo, ter havido, da parte dele, vontade. É uma situação em que ocorre a lesão de um bem jurídico, com a interferência do homem, sem que tenha havido, contudo, conduta, por inexistir a vontade. São três os casos possíveis.


Fato Típico - 11

8.2.1 Coação física absoluta ou força irresistível Como no exemplo da enfermeira, em algumas situações, incide sobre alguém uma força física externa irresistível, a qual, atuando materialmente sobre ele, não pode ser repelida, de modo a não lhe deixar qualquer opção de movimento corporal. Trata-se de uma força absoluta, a que não se pode resistir. Nesses casos, o homem deixa de movimentar-se, deixa de realizar um comportamento positivo, de fazer alguma coisa, sem vontade alguma de abster-se, mas em virtude da irresistibilidade da força externa que sobre ele atua. Essa força é tão forte, que elimina, totalmente, a possibilidade de o homem ter vontade. Nem vontade de omitir-se. A força deve ser física e absoluta, deve atuar materialmente, concretamente, sobre o corpo do homem e não apenas sobre sua mente, e deve ser de tal intensidade, que seja impossível a ele contrapor-se, de modo a, pelo menos, neutralizá-la ou diminuí-la, tornando-a resistível. Só haverá coação física absoluta sobre aquela enfermeira, se as cordas que a ataram tiverem sido suficientemente fortes, estiverem devidamente ajustadas, pois, se tiver sido amarrada com lacinhos de fita, ou cordas frouxas, a força não seria irresistível. Havendo a chamada vis absoluta, não há vontade, não há conduta e, de conseqüência, não há fato típico, e por isso o fato não é crime.

8.2.2 Movimentos reflexos Em movimentos do corpo ditados pelos reflexos naturais, também não se pode falar na existência de vontade. Imaginem a situação: João, vendo Joana sentada ao lado da parede da sala de aula, e estando por ela apaixonado, resolve abordá-la, dirigindo-se a sua frente, onde pretende declarar seu amor. Ao se aproximar da amada, encosta seu braço à parede que, por um defeito da fiação elétrica interna, emite um choque elétrico que atinge, com grande intensidade, o corpo de João. Este, num movimento reflexo, impensado, indesejado, move bruscamente o braço, atingindo o rosto de Joana, bem no olho direito, causando-lhe equimoses. Esse fato revela um movimento corporal de João que, todavia, não constitui conduta, posto que não houve, da parte dele, qualquer vontade de movimentar o braço.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles O que houve foi um movimento corporal instintivo, impensado, indesejado, mas determinado pela dor sofrida e que gerou um comando cerebral dirigido a João no sentido de que ele movesse seu braço, livrando-o do choque elétrico. Não houve vontade e, por isso, não houve conduta. Sem conduta, não há fato típico, não há crime.

8.2.3 Estados de inconsciência O primeiro caso revelou a inexistência de vontade, pela ação material externa imprimida contra o agente. Ali existe consciência do fato, mas não há vontade. No movimento reflexo, não há nem consciência acerca do fato e, de conseqüência, não pode haver vontade. Nos chamados estados de inconsciência, não existe, simplesmente, a consciência. O agente encontra-se absolutamente privado da possibilidade de saber qualquer coisa. É como se ele estivesse cego, surdo, mudo e em sono profundo. Logo, não pode querer. Durante o sono, no sonambulismo, na embriaguez letárgica, não se pode afirmar que o agente tenha agido, porque, em qualquer dessas hipóteses, não se pode concluir pela existência de mínima vontade. Nos casos em que o agente se tenha colocado, voluntariamente, num estado de inconsciência, para realizar o fato típico, chamados actiones liberae in causa, o direito vai considerar relevante a atitude anterior, realizada com consciência. Esse assunto é tratado no item 11.2.3. Ausente, pois, a consciência, ausente a vontade e, de conseqüência, a conduta, ainda que dessa situação decorra qualquer lesão a qualquer bem jurídico. Não havendo conduta, não há fato típico, e sem este não há o crime.

8.3

FORMAS DE CONDUTA Conduta é o comportamento humano voluntário dirigido a um fim (final), positivo

ou negativo. A expressão conduta é sinônima de ação, em seu sentido amplo, que engloba a conduta positiva e a conduta negativa. A conduta positiva é chamada ação, em sentido estrito, e a conduta negativa é chamada omissão.

8.3.1 Ação Ação, em sentido estrito, também chamada comissão, ou conduta comissiva, é a que se realiza por meio de um movimento do corpo dirigido a uma finalidade. Existe


Fato Típico - 13 uma vontade, um querer, e a manifestação dessa vontade, sua concretização, por meio de um movimento do corpo. São exemplos de ações: disparar um tiro de revólver, empurrar o corpo de uma pessoa, cortar com uma faca um objeto, levar o copo ou o garfo à boca. A grande maioria dos tipos legais de crime descreve condutas – “matar alguém”, “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, “constranger mulher à conjunção carnal...” – que se realizam por ações em sentido estrito, de movimentos corporais, o que não impede possam algumas delas realizar-se por meio de comportamento oposto, da abstenção de movimentos corporais, a omissão, como se verá a seguir.

8.3.2 Omissão A omissão, ou conduta omissiva, é a que se manifesta por abstenção do movimento do corpo, dirigida a uma finalidade. A omissão não é simplesmente deixar de fazer alguma coisa, mas deixar de realizar um comportamento que deveria ser realizado e que o omitente poderia ter concretizado – “a omissão é a não-realização de um comportamento exigido que o sujeito tinha a possibilidade de concretizar”6.

8.3.2.1

Omissão pura

Omissão pura ou omissão própria, que dá lugar aos chamados crimes omissivos próprios, é a abstenção de um comportamento determinado por uma norma penal incriminadora. Para existir a omissão própria, é necessário que exista um tipo legal de crime descrevendo uma conduta omissiva, como, por exemplo, no art. 269 do Código Penal: “Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória.” Como se vê, o tipo descreve uma omissão, uma inação, a abstenção de um movimento, pelo que a norma manda o sujeito realizar um movimento do corpo, uma ação, em sentido estrito: deve o médico denunciar à autoridade pública a doença, deve realizar um comportamento positivo.

6

JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 208.


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles Não realizando o comportamento exigido pela norma incriminadora, quando lhe era possível fazê-lo, o sujeito realiza o fato típico omissivo próprio. São exemplos de tipos de omissão pura os seguintes, do Código Penal: a) definido, no art. 135, como omissão de socorro (Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública); b) no art. 244, o abandono material (Deixar, sem justa causa, de prover à subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou valetudinário, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo); c) no art. 246, o abandono intelectual (Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar). Os comportamentos omissivos são bem revelados nas locuções verbais utilizadas na descrição das condutas: “deixar de”, “não pedir”, “deixar”, “não lhes proporcionando”, “faltando ao pagamento” etc. Como se verifica, nos referidos tipos não se exige que da omissão resulte algum dano a quem quer que seja, bastando, para caracterizar o fato, que o sujeito não realize o comportamento exigido e que ele podia realizar. Omissão é não realizar o devido e possível.

8.3.2.2

Omissão imprópria

A omissão imprópria, também chamada comissão por omissão, e que dá lugar aos delitos omissivos impróprios ou comissivos por omissão, ou, ainda, comissivos omissivos, é a abstenção de um movimento corpóreo final que o sujeito devia e podia realizar para impedir a produção de um resultado lesivo de um bem jurídico. Para a definição desses crimes, não existe uma norma penal incriminadora que mande o sujeito agir, como na omissão pura. Ocorre um fato típico de crime omissivo impróprio quando, existindo norma penal impondo a determinado sujeito a obrigação de agir para impedir a ocorrência de resultados lesivos – conferindo-lhe, portanto, uma obrigação de realizar um comportamento positivo de modo a evitar que um bem jurídico seja atingido –, ele,


Fato Típico - 15 podendo, não o realiza, em razão do que ocorre o resultado que deveria ter sido evitado. Deixando de realizar a ação exigida e, em conseqüência dessa inação, ocorrendo o resultado, o sujeito que devia e podia agir responde pelo evento acontecido, como se o tivesse cometido. Veja-se o exemplo: João, à beira da piscina de sua casa, vê seu filho menor afogando-se e não tenta salvá-lo, podendo fazê-lo. O filho morre afogado. Do ponto de vista mecânico, meramente causal, não se pode dizer que João matou seu filho, uma vez que ele não realizou um comportamento destinado a obter o resultado morte. Não realizou uma ação. Não cometeu algo, não agiu. Ocorre que a lei ordena ao pai que proteja o filho, impedindo a ocorrência de qualquer mal com o menor. Manda-o agir para impedir todos e quaisquer resultados lesivos a seu filho. Ao manter-se inerte, diante do perigo representado pelo afogamento, o pai, podendo movimentar-se para evitar o mal, viola a norma, e por isso responderá pelo resultado, como se o tivesse produzido. É como se ele tivesse cometido o crime de homicídio, por omissão. Daí o nome de comissão por omissão. A omissão imprópria, portanto, não pode ser realizada senão por certas pessoas, aquelas que têm o dever de agir para impedir o resultado. O § 2º do art. 13 do Código Penal estabelece: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.” Essas pessoas estão obrigadas a agir para evitar que o resultado ocorra. Se, podendo agir, não realizam uma ação, stricto sensu, a fim de impedir a ocorrência do resultado, serão consideradas, por força da norma, causadoras dele. É claro que só se pode considerá-las causadoras do resultado do ponto de vista normativo, por força da norma, e não do ponto de vista físico, natural, causal, já que o que mata o filho afogado é a ingestão de água nos pulmões e a asfixia que se segue etc. Quem mata o filho que está pendurado num barranco ou num galho de uma árvore e cai no despenhadeiro não é o pai que, podendo, não o socorre, mas o traumatismo craniano decorrente do choque do corpo com o chão. Fisicamente, é isso, mas, do ponto de vista do Direito, da norma jurídica, quem tinha o dever de agir para impedir o resultado lesivo será considerado seu causador e por ele responderá.


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles Assim, o pai, natural ou por adoção, o curador, o tutor, o carcereiro, o diretor do presídio, são pessoas que têm, por dispositivo legal, a obrigação de cuidar dos filhos, protegê-los e zelar por eles, pelos curatelados, tutelados e presos, respectivamente. Estando qualquer desses diante do risco de uma lesão, aqueles, seus garantes, estão obrigados a agir para impedir que a lesão ocorra. Se a pessoa, mesmo não tendo o dever legal de proteção, guarda ou vigilância, assumir, contratualmente, a responsabilidade de impedir o resultado, também estará obrigada a agir. Não é necessária a existência de um contrato, e tampouco escrito, mas que a pessoa se coloque numa posição de garantidora, de protetora. É o caso do guia de turismo, da babá, do enfermeiro, em relação ao turista, à criança e ao doente. Entre eles há uma relação de confiança, em que os primeiros se obrigam a prestar uma atenção especial. Por isso, na situação em que se pode prever a possibilidade de um resultado indesejado, lesivo, de um bem jurídico, o garante deve agir para impedir o resultado. Se não o faz, podendo, e o resultado ocorre, por ele irá responder, pois que assumiu a responsabilidade de evitá-lo. A última situação é a da pessoa que, com um seu comportamento precedente, cria o risco de que o resultado venha a ocorrer. Por exemplo, João coloca fogo em pastagem de sua propriedade, costume da região Centro-oeste do país, e o fogo, em razão dos ventos do Planalto Central, ultrapassa os limites de sua propriedade, atingindo um galpão situado no terreno de seu vizinho Alfredo, onde estão guardados bens de sua propriedade, máquinas agrícolas, alguns animais, e até crianças brincando. O risco da ocorrência de um resultado lesivo a qualquer dos interesses dos vizinhos de João foi criado por seu comportamento voluntário de atear fogo na vegetação de sua propriedade. É certo que sua vontade não era de causar prejuízo a seus vizinhos; todavia, o fogo ultrapassou os limites de sua propriedade, e foi gerar perigo de lesão para interesses de terceiras pessoas. João tem o dever jurídico de, podendo, agir para impedir a ocorrência de quaisquer lesões a quaisquer bens jurídicos de quem quer que seja, pois foi o responsável pela criação da situação que os colocou sob o risco de sofrer qualquer lesão. Essas pessoas – as que têm o dever legal de proteção, guarda e vigilância, as que de outra forma assumiram a responsabilidade de impedir o resultado, e as que, com comportamento antecedente, criaram a situação de risco de ocorrer o resultado – são denominadas garantes, e estão obrigadas a agir para impedir que o resultado aconteça. Se, podendo, não agem, vale dizer, omitindo-se, respondem pelo resultado como se tivessem dado causa a ele. É essa a norma penal.


Fato Típico - 17 A única possibilidade de se eximirem de responder pelo resultado, de não verem suas condutas tipificadas como comissivas por omissão, ou de omissão imprópria, é demonstrarem absoluta impossibilidade de agirem. Por exemplo: não pode impedir a morte do filho que se afoga na piscina o pai que se encontrava em outra cidade no momento em que a criança se atira na água. Apesar de ter o dever legal de proteção, guarda e vigilância, o pai encontrava-se trabalhando em outro local, e, mesmo tendo o dever de agir para impedir o resultado, não lhe era possível fazê-lo, até por não ter conhecimento da necessidade de agir, e, mesmo que avisado, não lhe era possível evitar o resultado. De conseqüência, só responde pelo delito comissivo por omissão aquele que tem o dever, legal ou jurídico, de agir para impedir o resultado e, podendo fazê-lo, omite-se.

8.4

DOLO O Direito Penal não poderia considerar crime o simples comportamento

humano, a conduta, positiva (ação) ou negativa (omissão), independentemente da formação da vontade do sujeito. Longe se vai, na história, o tempo em que se punia pela simples relação de causa e efeito entre o comportamento do homem e o resultado lesivo. Um Direito Penal democrático só pode considerar crimes comportamentos humanos voluntários que poderiam ter sido evitados. Importa muito saber qual a atitude interna do homem quando se comporta de modo a causar dano a um bem jurídico alheio. Agiu com vontade de matar? Agiu com displicência? O que ocorre na esfera do pensamento humano, no interior da consciência do sujeito, no momento em que ele movimenta seu corpo ou abstém-se do movimento que devia realizar? A resposta a essa indagação é imprescindível para se determinar a existência de um crime. Não é crime qualquer causação de um resultado lesivo de um bem jurídico. Há mortes inevitáveis, como a causada por um raio que cai sobre a cabeça de um homem. Só serão considerados crimes resultados que poderiam ter sido evitados. Estabeleceu-se que os fatos definidos como crime serão dolosos ou culposos. Os primeiros constituem a regra e serão punidos mais rigorosamente, porque constituem comportamentos merecedores de maior resposta penal.


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles Logo, somente haverá conduta típica dolosa ou conduta típica culposa. Por isso, é necessário entender tanto o conceito de dolo quanto o de culpa, em sentido estrito, que qualificam as condutas, respectivamente, de dolosas e de culposas.

8.4.1 Teorias do dolo Várias são as teorias que procuram explicar o que seja esta importantíssima categoria do Direito Penal, o dolo. Basta estudar as três mais importantes, a teoria da vontade, a da representação e a do assentimento ou do consentimento.

8.4.1.1

Teoria da vontade

A teoria clássica, elaborada por Carrara, dizia que dolo é a intenção mais ou menos perfeita de praticar um fato que se conhece contrário à lei. Age com dolo, segundo a teoria da vontade, quem tem, como objetivo, a prática de um fato definido como crime. Em outras palavras, é dolosa a conduta em que o agente tem vontade de alcançar o resultado, de conseguir que ocorra, se materialize a conseqüência de seu comportamento. É doloso o comportamento de quem tem consciência do fato, de seu significado e, ao mesmo tempo, a vontade de realizá-lo. Exemplo: João tem consciência de que, se deixar cair uma pedra pesada, de aproximadamente 20 quilogramas, sobre a cabeça de Maria, sua mulher, que dorme, poderá matá-la. Desejoso de ficar viúvo, já que não consegue viver com sua mulher e está apaixonado por Mariana, desfere, contra sua mulher, o golpe violento com a pesada pedra, acabando por matá-la. Agiu, a toda evidência, com dolo, com consciência de que, realizando aquele comportamento, causaria a morte de Maria, e com vontade de produzir esse resultado. Significa dizer que João tinha consciência e vontade de realizar o fato definido como crime no art. 121 do Código Penal. Tinha consciência dos fatos e vontade de dar causa ao resultado proibido. Quem assim agir, segundo essa teoria, age dolosamente. É quem consegue representar o futuro resultado, quem o prevê e, simultaneamente, deseja alcançá-lo. Dolo é, portanto, previsão do resultado e, a um só tempo, vontade de alcançá-lo. Dolo é consciência (previsão) e vontade.


Fato Típico - 19

8.4.1.2

Teoria da representação

Uma segunda teoria entende o dolo de forma bem distinta. Não é necessário que o agente tenha vontade de alcançar o resultado, bastando que o preveja, que o represente. Se o agente antevê o resultado e não se detém, realizando uma conduta que dá causa ao resultado, mesmo não tendo desejado alcançá-lo, terá agido dolosamente, por tê-lo representado, porque o previu. Quem, dirigindo seu veículo por uma avenida movimentada – avistando à frente alguns transeuntes próximos da pista, que aparentam querer atravessá-la, e prevendo a possibilidade de uma travessia e possível atropelamento, com seu veículo –, continua, apesar da previsão do atropelamento, no percurso, sem se deter, e acaba por atropelar alguém, causando-lhe ferimentos, só por ter previsto a possibilidade do resultado, só por tê-lo representado, só por isso, já teria agido com dolo. Para essa teoria não é necessário que o agente tenha vontade de produzir o resultado, basta que o tenha previsto. Dolo seria a representação do resultado.

8.4.1.3

Teoria do assentimento ou do consentimento

Esta teoria, tanto quanto a teoria da vontade, exige que o agente tenha consciência do fato, tenha previsão do resultado, mas não exige que ele queira alcançar o resultado, bastando que o aceite, que nele consinta, caso ele aconteça. Em outras palavras, para essa teoria é dolosa a conduta de quem, prevendo o resultado, não o deseja, mas dá seu assentimento, se o resultado, eventualmente, acontecer. Exemplo: João numa caçada, avistando um animal e próximo dele um homem, desejando atingir a caça, prevê que, se errar o tiro, poderá atingir o homem a quem não deseja matar. Fazendo a previsão, João, apesar disso, pensa: “não quero atingir o homem, mas se o atingir, tudo bem, não posso fazer nada”. Em seguida, atira e atinge o homem, em vez da caça. Nesse caso, para esta teoria, João agiu com dolo, porque, apesar de não querer o resultado, aceitou-o.

8.4.1.4

Dolo no Código Penal brasileiro

Das três teorias, a da representação não pode, em nenhuma hipótese, ser aceita, pois não pode ser tido como doloso o simples “prever um resultado”, que não é


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles comportamento, mas um puro acontecimento psicológico, não revelando nenhuma atitude, nem mesmo interna do sujeito, mas um simples pensamento, uma simples constatação, aliás, absolutamente indemonstrável. Quem apenas prevê o resultado não pode ser tratado igualmente ao que, além de prever, deseja alcançá-lo. É certo, portanto, que o dolo não pode ser apenas previsão. Não se pode esquecer que aqui se trata da construção de um elemento indispensável para considerar uma conduta como típica, merecedora de uma pena criminal, aliás, a mais severa das sanções jurídicas. Devem ser consideradas delituosas as condutas realizadas com deliberada vontade de realizar a figura típica, alcançando o resultado nela previsto. Aquele que age com a intenção de causar um dano a um bem jurídico deve merecer a maior reprovação. Com razão, pois, a teoria da vontade. Dolo deve ser consciência do fato e a vontade de produzir o resultado. Por outro lado, dolo não pode ser apenas consciência e vontade, previsão e vontade de alcançar o resultado, uma vez que a atitude daquele que, mesmo não desejando o resultado, aceita-o, se ele ocorrer, é tão grave que merece quase tanta censura quanto a do que quer o resultado. Quem, após prever um resultado, não se detém e age, com a atitude interna de aceitação da lesão, de indiferença em relação ao bem jurídico alheio, deve ser equiparado ao que busca realizar a lesão, alcançar o resultado. A atitude interna de não respeitar o bem jurídico alheio daquele que não deseja, mas aceita sua lesão, deve merecer, se não idêntico, pelo menos muito próximo tratamento, e ser equiparada à do que a deseja, pois que, apesar da diferença, significam, praticamente, o mesmo para os bens jurídicos colocados sob a proteção do Direito Penal. Nenhum dos agentes se detém diante da previsão do resultado lesivo. Um porque o deseja, o outro porque o aceita. As duas atitudes internas devem ser consideradas, igualmente, dolosas. Nenhum deles evita a conduta que o pode gerar, porque não está preocupado com a possibilidade da lesão. E as duas condutas provocam a lesão. A diferença entre querer e apenas aceitar não é suficiente para impor tratamento diferente às duas condutas. Por isso, o Código Penal brasileiro adotou as duas teorias, a da vontade e a do assentimento, no art. 18, I: “Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.” É dolosa a conduta quando o agente “quis o resultado”, e é também quando, mesmo sem querê-lo, o agente “assume o risco” de sua produção, o que significa


Fato Típico - 21 “aceita-o, se ele ocorrer”. Não se deve afirmar que age com dolo o agente que arrisca um comportamento, mas o que aceita o risco de sua produção. Aceitar ou assumir o risco não tem o mesmo sentido do popular “arriscar”, que significa, sim, um comportamento perigoso, arriscado, mas que não quer dizer, necessariamente, que o agente aceita o resultado lesivo, se ele vier a acontecer.

8.4.2 Natureza e elementos do dolo Para os clássicos, o dolo, além da consciência do fato e da vontade de alcançar o resultado, conteria outro elemento, de caráter normativo, que seria a “consciência da ilicitude”, pelo que só agiria com dolo o sujeito que, além de ter previsão do resultado e vontade de alcançá-lo, soubesse que sua conduta era proibida, ou ilícita. Para a teoria finalista, o dolo, porém, é natural, não contendo esse elemento normativo que é a consciência da ilicitude. Dolo é só consciência do fato – previsão – e vontade. A consciência da ilicitude é um elemento normativo que se situa no âmbito da terceira característica do crime, a culpabilidade. Quando do exame da culpabilidade, será demonstrada com precisão a coerência da teoria finalista a respeito da natureza do dolo, e a impossibilidade de colocar, entre seus elementos, a consciência da ilicitude. Essa demonstração não pode ser feita neste momento. Assim, são elementos estruturais do dolo: a consciência e a vontade. O elemento intelectual do dolo é a consciência do fato, da conduta, do resultado e do nexo de causa e efeito que deve existir entre a conduta e o resultado. A vontade é o elemento volitivo, que impulsiona a conduta em direção ao resultado. Um atirador, no stand de tiro ao alvo, do clube de tiro, que atinge alguém que passa por detrás do alvo, matando-o, não tem consciência do fato, nem vontade de alcançar o resultado. Não agiu dolosamente. O caçador que, avistando um vulto na selva, pensando tratar-se de uma caça, atira e verifica, depois, ter atingido um homem, igualmente age sem dolo, pois não tem nem consciência de que está atirando numa pessoa, nem vontade de atingi-la. O dolo, segundo HANS WELZEL, abrange não só o fim pretendido, mas também os meios utilizados e as conseqüências secundárias vinculadas ao emprego dos meios.


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.4.3 Espécies de dolo O dolo direto, ou determinado, é aquele em que o sujeito busca alcançar um resultado certo e determinado. Contrariamente, diz-se que o dolo é indireto ou indeterminado, quando a vontade do agente não se dirige a um resultado certo, preciso, determinado. O dolo indireto pode ser alternativo, quando o sujeito quer um ou outro resultado, por exemplo, matar ou ferir seu desafeto. Sua vontade dirige-se a qualquer dos resultados, não a um deles especificamente. Se acontecer o primeiro, estava na vontade do agente. Se acontecer o segundo, do mesmo modo, era resultado almejado. A outra espécie de dolo indireto é o dolo eventual, em que o agente não deseja o resultado previsto, mas o aceita, se ele, eventualmente, acontecer. Ocorre quando o agente, mesmo não querendo o resultado, assume, aceita o risco de sua produção. Sua vontade não se dirige ao resultado, mas, se este acontecer, será aceito pelo agente. Com vontade de alcançar o resultado ou apenas aceitando-o, a conduta é dolosa, o fato é doloso, igualmente. Assim, no que diz respeito à verificação da correspondência entre o fato natural e o tipo legal de crime, nenhuma diferença faz ter sido o dolo direto ou indeterminado. Já disse o doutrinador, o dolo eventual e o dolo direto são as faces de uma única moeda.

8.4.4 Conceito de dolo A noção de dolo apresentada até aqui – a consciência do fato e a vontade de causar o resultado, ou, em duas palavras, consciência e vontade, ou, simplesmente, vontade de causar o resultado – é insuficiente, pois somente se aplica aos tipos legais de crimes que descrevem, além da conduta, a produção de um resultado, como no homicídio simples, do art. 121, caput, do Código Penal, “matar alguém”. DAMÁSIO E. DE JESUS faz severa crítica a esse conceito, mostrando que “o dolo deve abranger todos os elementos da figura típica”7. É preciso ver, também, que muitos tipos legais de crime descrevem pura e simplesmente um comportamento humano, sem exigir a produção de qualquer conseqüência, como, por exemplo, “deixar o médico de denunciar” doença de notificação compulsória. Esse tipo legal de crime só pode ser cometido com dolo. Dolo, nesse exemplo, 7

Direito penal: parte geral. Op. cit. p. 249.


Fato Típico - 23 não pode ser definido como “previsão” e “vontade” de alcançar o resultado, pois o tipo referido não descreve qualquer resultado. Dolo, nesse caso, é a vontade que deve ter o médico de não denunciar a doença. Noutras palavras, para realizar esse fato típico, o médico deve ter consciência de que a doença que não denunciou era de notificação compulsória e que assim se conduziu com vontade de não denunciar. Dolo, no caso, é a vontade de realizar o tipo, a descrição da conduta proibida. Por isso, melhor dizer que “dolo é a consciência e vontade de realizar o tipo objetivo de um delito”8.

8.5

CULPA, EM SENTIDO ESTRITO O Direito Penal deveria preocupar-se apenas com os comportamentos dolosos,

que efetivamente representam uma atitude interna do homem que deve ser proibida e ter como conseqüência a severa sanção penal. Deveria ser assim, não fosse o Direito Penal o protetor dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves, que devem ser punidas, ainda que o fim pretendido por seus causadores seja outro. Modernamente, vêm ocorrendo cada vez mais lesões graves de bens jurídicos importantíssimos, causadas por comportamentos humanos não dolosos. É claro que pessoas morrem ou são feridas por causa de condutas humanas em que não se queria, nem se aceitava a lesão, mas em muitos casos elas poderiam ser evitadas se o agente tivesse tomado um pouco de cuidado. Principalmente a partir do final do século passado, a vida das pessoas tornou-se extremamente perigosa, nas cidades abarrotadas de automóveis, nas indústrias com suas máquinas velozes e potentes, no dia-a-dia do contato com materiais e elementos químicos antes desconhecidos. O número de mortes e danos à integridade corporal ou à saúde das pessoas, causados

por

comportamentos

humanos

não

dolosos

tem

aumentado

consideravelmente. O Direito Penal não poderia ignorar a existência desses ataques, razão por que, ao lado da conduta dolosa, se passou a punir também o fato chamado “culposo”, praticado com “culpa, em sentido estrito”.

8.5.1 Conceito e elementos da culpa, em sentido estrito 8

CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 57.


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles Os doutrinadores ensinam que não existe um conceito perfeito de culpa, em sentido estrito, mas que, com base no enunciado no art. 18, II, do Código Penal (diz-se o crime culposo quando o agente deu causa ao resultado, por imprudência, negligência ou imperícia), se poderia dizer que culposa é a conduta voluntária que produz resultado ilícito, não desejado, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser evitado9. A culpa, em sentido estrito, ou negligência, expressão mais técnica e precisa e que evita confusões desnecessárias, é a falta de cuidado do agente, numa situação em que ele poderia prever a causação de um resultado danoso, que ele não deseja, nem aceita, e às vezes nem prevê, mas que, com seu comportamento, produz e que poderia ter sido evitado. Desse conceito extraem-se os elementos que integram a culpa, em sentido estrito: (a) conduta voluntária; (b) inobservância do dever de cuidado objetivo; (c) resultado lesivo indesejado; (d) previsibilidade objetiva; (e) tipicidade.

8.5.2 Conduta voluntária Só haverá culpa, stricto sensu, e, de conseqüência, fato culposo, se nele estiverem reunidos todos os seus indispensáveis elementos. Ausente um deles, o fato não é culposo e, de conseqüência, não haverá crime culposo. Só interessam ao Direito Penal as condutas voluntárias. Por isso, para que haja culpa, a conduta, positiva ou negativa, deve ser voluntária e dirigida a determinada finalidade. De notar que, no fato culposo, a conduta não se dirige à produção do resultado, não se destina à realização de um tipo legal de crime, pois, se assim fosse, haveria dolo. A conduta é, todavia, final e dirige-se geralmente a um fim perfeitamente lícito, permitido pelo Direito. Se não for voluntária, não haverá conduta, mas ausência de conduta e o fato não será típico. Logo, não será crime.

8.5.3 Inobservância do dever de cuidado objetivo Este é um mundo farto de complexidade nas relações humanas. Os indivíduos 9

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 137.


Fato Típico - 25 vivem seu dia-a-dia intensamente. A moderna sociedade ocidental exige muito dos indivíduos, em todos os setores de sua vida. O mundo vive uma guerra constante, em que todos desejam alcançar o sucesso, vida digna, felicidade, paz, prosperidade, tranqüilidade, prazer, realização pessoal, profissional, afetiva, enfim, todos querem ser felizes, e essa tal felicidade está sempre num ponto onde – tudo leva a, quase sempre, acreditar – o braço não alcança, a vista não divisa, as pernas não conseguem levar o corpo, ou o barco não aporta. Talvez, por isso, as pessoas não se contentam com o que têm e estão, sempre, apesar dos perigos e dos riscos, e, quase sempre, sem considerar conseqüências indesejáveis, procurando o impossível, com comportamentos impensados, perigosos, arriscados. Apesar da competição em que todos estão lançados, os homens devem comportar-se de modo a não causar prejuízo às outras pessoas. O direito posto na sociedade determina a todos o dever de agir de modo a respeitarem os bens e os valores dos outros indivíduos. Se há pressa de chegar em casa, deve-se, todavia, evitar pisar os pés das pessoas que estão à frente, empurrá-las, derrubá-las, sujar-lhes as roupas, enfim, deve-se realizar o objetivo, chegar ao destino, sem, contudo, causar, a quem quer que seja, qualquer dano, qualquer prejuízo, qualquer lesão, ainda que não tão grave. Se todos vivem apressadamente, perigosamente, em busca do sucesso, não podem, contudo, esquecer-se de que não haverá sucesso algum às custas da desgraça alheia. Se é importante e lucrativo para o empresário da construção civil que o engenheiro e o arquiteto consigam construir um edifício ao mesmo tempo belo, moderno, eficiente e com um custo reduzido, de modo a ser vendido por preço competitivo, que supere em muito o valor de seu custo, devem eles levar a cabo esse objetivo com o cuidado de não utilizarem materiais incompatíveis, inservíveis ou imprestáveis, desaconselhados pela boa técnica, e que possam, no futuro, comprometer as condições de segurança da obra, colocando em risco a saúde e a vida de seus moradores. O cirurgião, na ânsia de realizar um número maior de cirurgias num só dia, e, com isso, obter maior remuneração, não pode esquecer nenhum dos procedimentos recomendados pela técnica que aprendeu e conhece, e tampouco descurar na execução de cada um dos atos do procedimento, para que nenhum órgão ou tecido manipulado venha a sofrer lesão capaz de lhe comprometer as condições de funcionamento ou, até mesmo, a existência. Se o obstetra deve realizar a “cesariana”, não pode, por descuido, ou em razão da pressa, ferir o corpo do ser humano em formação, nem permitir que o


26 – Direito Penal – Ney Moura Teles cordão umbilical, que envolvia seu pescoço, o estrangule. Quando se dirige de casa para o local de trabalho, ou deste para o comércio, e daí, retornando ao lar, conduzindo o veículo, possante e potente, fabricado no mesmo ano, último modelo, ainda que haja pressa de chegar ao destino – seja porque está atrasado, seja porque está faminto, seja, ainda, porque precisa cumprir um compromisso social anteriormente assumido –, deve o homem, apesar de tudo, ter o devido cuidado para evitar que um gesto atrevido, ousado, ou descuidado, coloque a força do veículo em movimento contra um corpo humano que atravessa a pista de rolamento, ou outro veículo, menos ou mais forte, num impacto de conseqüências as mais diversas possível, inclusive para si mesmo. Nos dias de hoje – em que a vida incorpora, cada vez mais, novos e modernos instrumentos e mecanismos, destinados a facilitar a vida do homem, mas que, conforme sejam manipulados, podem causar sérios danos –, todos têm, cada vez maior, um dever geral objetivo de adotar toda a cautela, toda a preocupação e precaução, todo o cuidado possível, para não causar, com seus comportamentos, lesões aos bens jurídicos alheios. É um dever que não precisa estar escrito, expressamente, em uma norma jurídica. Não é necessária norma que imponha ao motorista do veículo a desaceleração e a compressão do pedal dos freios, quando, diante da luz verde do semáforo, verificar um transeunte imprudente resolver atravessar a faixa, num momento para ele proibido. O sinal verde, se autoriza a travessia, não autoriza, contudo, o atropelamento. Não é necessário que um químico seja avisado de uma norma que o mande não acender fogo nas imediações de substâncias altamente sujeitas à combustão. Tal proibição decorre do bom-senso, que o conhecimento acerca das coisas naturais lhe impõe. Algumas relações humanas, dada sua intensidade ou perigo, merecem, do direito, tratamento claro e específico, inclusive com o estabelecimento de uma série de normas de conduta, outras de natureza técnica, que visam a, em última análise, evitar a ocorrência de acidentes e, mesmo, de fatos definidos como crime, com vistas a obtenção do maior nível de proteção dos bens jurídicos. Assim ocorre com o tráfego de veículos automotores pelas ruas e estradas dos vários países. É que, em pouco tempo, a quantidade dos veículos que trafegam numa cidade é tão grande que, se todos eles estivessem ao mesmo tempo em circulação, o espaço das vias públicas seria insuficiente para comportá-los. Tornou-se necessário estabelecer sentido de direção, velocidade máxima


Fato Típico - 27 permitida, locais onde podem ser estacionados, enfim, uma série de normas que regulam o funcionamento dessa importante, saudável e, ao mesmo tempo, perigosa, atividade humana. A vida do homem, pois, por ser perigosa, deve ser vivida com a observância, por todas as pessoas, de um dever geral de cuidado, objetivamente verificável. Esse dever é imposto a todas as pessoas, e pode, mas não necessita, estar expressamente determinado, nem constar de alguma norma jurídica. É um dever de cuidado objetivo que, obedecido, destina-se à proteção dos bens jurídicos selecionados pela sociedade. A inobservância desse dever geral constitui comportamento proibido pelo direito, e, se dela decorrer a lesão a um bem jurídico, pode constituir o delito culposo. São formas de manifestação dessa violação: a imprudência, a negligência e a imperícia.

8.5.3.1

Imprudência

A imprudência é a prática de um fato perigoso. A cautela impõe a inação, a abstenção de um movimento, o cuidado de não realizar uma ação, mas o sujeito, mesmo assim, age colocando um processo causal em movimento. É, por exemplo, dirigir um veículo automotor em velocidade absolutamente incompatível com determinado local, num estacionamento, às portas de uma escola ou numa praça repleta de transeuntes. A imprudência é, sempre, a realização de um movimento do corpo. É, pois, positiva.

8.5.3.2

Negligência

A negligência é a ausência de precaução, a omissão, a não-realização de um movimento que deveria ter sido colocado em marcha, que a prudência mandava fazer e o agente não faz. É o descuido do pai que, ao chegar em casa, tira sua arma, carregada, e a deixa sobre a mesa da sala, local onde daí a pouco estarão seus filhos menores e adolescentes. A negligência é, sempre, a omissão, a abstenção de um movimento corporal; é, portanto, negativa.

8.5.3.3

Imperícia


28 – Direito Penal – Ney Moura Teles Imperícia é a falta de aptidão ou de destreza para o exercício de determinada arte ou profissão, pressupondo, portanto, que o fato seja praticado no exercício das artes ou profissões. Médicos,

engenheiros,

farmacêuticos,

químicos,

pedreiros,

motoristas,

carpinteiros, enfim, todos os profissionais estão obrigados a desempenhar-se de acordo com as normas técnicas de cada uma de suas profissões, a fim de não causarem lesões aos bens jurídicos das outras pessoas. O cirurgião deve, ao fazer as incisões sobre o corpo humano, atentar para as normas técnicas procedimentais, de modo a não cometer erros no momento em que faz o bisturi incidir sobre os tecidos do corpo humano, e a não fazer incisões mais profundas que o indispensável, lesionando partes que não deveriam ser atingidas, ou afetando órgãos outros que não os necessários à cirurgia proposta.

8.5.3.4

Conclusão

As três modalidades de comportamento vistas constituem as manifestações da ausência de cautela, de cuidado, da observância do dever que todos têm, com relação aos bens alheios. Na verdade, é correto denominar essa inobservância do dever de cuidado objetivo de, simplesmente, negligência. Essa expressão, aliás, deveria substituir a expressão culpa, em sentido estrito, inclusive na lei, para que não mais se falasse em crime culposo, fato culposo, mas em crime negligente ou fato negligente. Por uma razão muito simples: a imperícia só ocorre porque o agente foi negligente, deixando de observar a norma técnica a que estava obrigado. A imperícia decorre da negligência do agente que deixou de observar o cuidado devido. A imprudência, igualmente, é um comportamento positivo que decorre da ausência da cautela, da falta da observância de uma regra: o motorista que dirige em excesso de velocidade está sendo imprudente, porque não observa a regra que manda não ultrapassar a velocidade máxima para aquele local. É imprudente, por ter sido negligente. A negligência é, na verdade, o gênero do qual imperícia e imprudência são espécies.

8.5.4 Resultado naturalístico indesejado


Fato Típico - 29 Para que haja fato culposo, ou negligente, é imprescindível que seja produzido o resultado indesejado. Por mais que o sujeito tenha sido negligente, deixando de observar o dever de cuidado objetivo, só haverá fato culposo se com seu comportamento tiver causado a modificação do mundo externo, atingindo um bem jurídico. Se não houver resultado, não haverá crime culposo, podendo até ter havido outra infração penal, mas dolosa, e não culposa. Por exemplo, se João está a dirigir em alta velocidade pelas ruas da cidade, realizando manobras altamente perigosas com seu veículo, colocando a vida das pessoas em perigo, assustando-as, mas, sem atingir nenhuma delas, sem ferir ou matar quem quer que seja, não haverá fato culposo, mas poderá ter acontecido um desses fatos dolosos: a contravenção penal do art. 34 da LCP: “dirigir veículos na via pública, ou embarcações em águas públicas, pondo em perigo a segurança alheia”, ou o crime definido assim no art. 132 do Código Penal: “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto ou iminente”. Qualquer dessas duas infrações terá sido cometida dolosamente. Não haverá fato culposo, sem resultado. Só haverá delito culposo, quando houver um resultado, e este resultado não pode ser desejado, nem aceito, pelo agente, pois, se assim for, o fato será doloso.

8.5.5 Previsibilidade objetiva Nem todas as lesões não dolosas a bens jurídicos podem ser evitadas. Algumas condutas humanas são causa de danos a bens importantes em situações em que era absolutamente impossível evitá-las, ainda que o homem se conduzisse com a mais perfeita e total observância do dever de cuidado objetivo. É que certos eventos são absolutamente inevitáveis, e, como tal, situam-se fora do âmbito da proteção do Direito Penal. O Direito somente pode proibir e punir os fatos que puderem ser evitados. Só pode considerar proibidas as condutas que derem causa a resultados que puderem ser impedidos. E só podem ser evitados os resultados que puderem ser antevistos pelo homem, o agente. Se este não tiver a possibilidade de antevê-los, não terá como agir ou abster-se para evitar que eles ocorram. Por essa razão, só se pode falar na ocorrência de um fato culposo quando o sujeito tiver a possibilidade de prever o resultado lesivo, quando houver previsibilidade.


30 – Direito Penal – Ney Moura Teles Previsibilidade é a possibilidade de o sujeito, nas condições em que se encontra, antever o resultado lesivo. Previsível é aquele resultado que pode ser previsto. Para que o direito possa fazer incidir punição sobre alguém que não desejava um resultado lesivo, é indispensável que tal lesão pudesse ter sido evitada por ele, se tivesse agido com o devido cuidado. Trata-se de uma previsibilidade objetiva, normal, exigível ao comum dos cidadãos, de todos, porque comum, não de uma previsibilidade anormal, presente entre os paranormais, os videntes e clarividentes, ou aquela que só uma pessoa extremamente prudente pode ter. Dirigindo seu veículo por uma movimentada avenida da cidade, ao meio-dia de uma quarta-feira, não feriado, próximo de uma faixa de travessia de pedestre, estando alguns deles à margem da pista, é plenamente previsível, a qualquer motorista, que um dos pedestres, apressado, atravesse a avenida antes que o sinal o autorize. Não é previsível, contudo, que, dirigindo o mesmo veículo, no mesmo dia e lugar, um daqueles transeuntes resolva cometer suicídio atirando-se sob o veículo, no exato momento em que este, em velocidade moderada, se aproxima do grupo de pedestres. A previsibilidade objetiva é essencial para a existência do fato culposo, porquanto só em sua presença o agente poderia ter evitado o resultado lesivo e, não tendo adotado as precauções necessárias, por ter sido negligente, acaba por dar causa ao resultado e por isso por ele responderá. Sendo o resultado previsível, o sujeito pode ter duas atitudes: prevê ou não prevê o resultado.

8.5.5.1

Culpa inconsciente

Ocorre quando o sujeito não realiza a previsão do resultado. É previsível, mas ele, não obstante isso, não o prevê e impulsiona, voluntariamente, a conduta, dando causa ao resultado. Com efeito, sua conduta é culposa, mas ele não teve consciência de que o resultado ocorreria, porque não realizou a previsão, não representou o resultado que era, plenamente, previsível. Por isso, agiu, e o fez sem a consciência de que poderia causar o resultado. Foi negligente porque não representou o resultado. Por isso, diz-se ser sua culpa inconsciente.

8.5.5.2

Culpa consciente e dolo eventual


Fato Típico - 31 Às vezes o sujeito realiza a previsão do resultado, mas confia sinceramente que poderá evitá-lo ou que ele não ocorrerá, agindo com a convicção plena de que, apesar da possibilidade de que o resultado ocorra, não acontecerá nenhum resultado lesivo. Essa é conduta culposa consciente. De notar que é muito próxima da conduta com dolo eventual. Neste, o agente prevê o resultado, não o deseja, mas o aceita, se ele eventualmente acontecer. Naquela, ele prevê o resultado, não o deseja e não o aceita, em nenhuma hipótese, se ele vier a acontecer. A diferença entre condutas com culpa consciente e com dolo eventual é muito tênue, situando-se exclusivamente no interior da psique humana, na aceitação, ou não, do resultado, uma atitude puramente interna. Exemplo: Everaldo, saindo do estacionamento da Faculdade em seu veículo, tendo Arlindo, seu colega, a seu lado, e vendo, à frente, a colega de ambos, Cláudia, prestes a atravessar a rua, resolve assustá-la, passando com o carro bem próximo dela. Avistando-a, fala para Arlindo: “Vou dar um susto na Cláudia, tirando um fininho.” Arlindo, preocupado, faz a previsão de um resultado lesivo, e diz: “Cuidado, você pode atropelá-la!” Diante de um resultado lesivo previsível, o agente, Everaldo, após realizar a previsão, com o auxílio de Arlindo, pode ter três atitudes: a primeira delas é, observando o dever de cuidado objetivo, evitar a conduta perigosa para o bem jurídico de Cláudia. Se o fizer, ótimo, sem lesão ao bem jurídico, sem fato típico culposo, o fato não interessará para o estudioso do Direito Penal. Se, todavia, não quiser atentar para o que o Direito lhe recomenda e determina, seu comportamento, objetivo e subjetivo, poderá ser um desses dois: 1º mesmo prevendo um resultado lesivo, resolve prosseguir na conduta perigosa, na certeza de que, com sua habilidade, com sua destreza na condução do veículo, irá apenas e tão-somente assustar sua colega, convicto de que não haverá qualquer lesão, que ele, sinceramente, acredita que não acontecerá e, por isso, não a admite, não a aceita, nela não consente; ou então: 2º prevendo o atropelamento, a possibilidade de causar lesão à colega, mesmo não desejando que isso ocorra, pode ele, todavia, continuar na conduta com o pensamento de que, se, eventualmente, vier a atingir Cláudia, ferindo-a ou, mesmo, matando-a, essa hipótese será aceita: “se pegar, pegou”, “se matar, matou”, “se ferir, feriu”, “que se dane ela”, “não tô nem aí”.


32 – Direito Penal – Ney Moura Teles Na primeira hipótese, o agente, mesmo prevendo o resultado, não o quis nem o aceitou, não o admitiu. Terá agido com culpa consciente. Trata-se de fato típico culposo, com culpa consciente. Na segunda, mesmo não desejando o resultado lesivo, aceitou-o; por isso, terá agido com dolo eventual.

8.5.6 Tipicidade A regra do Direito Penal é punir fatos praticados dolosamente, porque, neles, o sujeito queria alcançar o resultado ou, pelo menos, o aceitou. Excepcionalmente, em situações muito próprias, o Direito também proíbe e pune a causação de lesões a certos bens jurídicos, quando praticadas sem dolo, mas, com culpa, em sentido estrito. Por isso, o fato culposo é excepcional, e só será punido quando houver expressa previsão legal. Tome-se o exemplo: Maria, grávida há seis meses, resolve subir em uma jabuticabeira para alcançar frutos que deseja saborear e, tendo chovido e estando a árvore escorregadia, cai de uma altura de quatro metros, provocando, com a queda, traumatismo abdominal que conduz ao abortamento do feto. Examinando-se a conduta de Maria, verifica-se que ela, voluntariamente, subiu em uma árvore, deixando de observar o dever de cuidado objetivo (com imprudência), numa situação em que era objetivamente previsível a ocorrência de resultado lesivo não desejado (involuntário), infelizmente, deu causa à interrupção da gravidez, com a morte do produto da concepção. Seu comportamento realizou, como visto, todos os elementos até aqui demonstrados da culpa, em sentido estrito; todavia, não será punido pelo Código Penal, por faltar o último dos requisitos do fato culposo: a tipicidade, a determinação legal da punição do aborto em sua modalidade culposa. Não existe, pois o legislador não definiu como crime a prática de aborto com culpa, stricto sensu, tendo previsto apenas na forma dolosa. Não basta que o sujeito tenha causado, sem vontade, um resultado lesivo previsível e indesejado, com negligência. Se não estiver prevista na lei sua punição, se não houver o tipo culposo, não haverá crime. Os tipos culposos são construídos excepcionalmente, com base nos tipos dolosos. Por exemplo, no art. 121, caput, está definido o homicídio doloso, assim: “matar alguém”. No § 3º do mesmo artigo está definido o homicídio culposo, assim: “se o homicídio é culposo”.


Fato Típico - 33 De conseqüência, no primeiro tipo deve-se entender: “matar alguém dolosamente”, e no segundo, “matar alguém culposamente” ou, neste tipo, em outras palavras, “matar alguém por negligência, imprudência ou imperícia”, o que significa dizer, “causar a morte previsível de alguém por negligência”. Não existem tipos culposos correspondentes a todos os tipos dolosos. Não há previsão legal de furto ou estelionato quando praticados culposamente. Tais fatos somente são puníveis quando praticados com dolo. Outros, como o roubo e o estupro, só podem ser cometidos com dolo. Já o homicídio e a lesão corporal podem ser cometidos e são punidos em ambas as modalidades, com dolo ou com culpa, em sentido estrito. Para saber se determinado fato é punido também na forma culposa, é preciso procurar na lei, ao lado da figura dolosa, no mesmo artigo, ou em seguida a ele, a previsão de sua punição, para concluir sobre se o legislador assim o definiu ou não. O crime culposo é excepcional, como, aliás, dispõe o parágrafo único do art. 18 do Código Penal: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.”

8.5.7 Compensação e concorrência de culpas Diferentemente do Direito Civil, no Direito Penal as culpas não se compensam. A culpa de um não compensa a culpa do concorrente, aquele que concorre para o resultado. Se João, dirigindo seu veículo com imprudência, vem a atropelar Benedito, que, por sua vez, também agira com imprudência quando atravessou a avenida, pode-se concluir que os dois agiram culposamente. A culpa de Benedito não compensa a culpa de João, não a exclui. O atropelador somente não responderá pelo fato se houver culpa exclusiva do atropelado. Apenas quando o resultado decorrer de culpa exclusiva da vítima é que o resultado não será atribuído ao agente. Por outro lado, se duas pessoas realizam condutas diferentes que concorrem para a produção de certo resultado lesivo, ambos por ele responderão, verificando-se que ambos agiram culposamente. Por exemplo: dois veículos colidem numa esquina, saindo feridas várias pessoas, que estavam nos veículos ou fora deles. Provando-se que os dois motoristas agiram com culpa, os dois serão responsabilizados.


34 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.6

RESULTADO Duas posições doutrinárias procuram esclarecer o que vem a ser o resultado de um

crime. A teoria naturalística o considera como um ente concreto, a modificação do mundo causada pela conduta, ao passo que a teoria normativa entende que resultado é a lesão do bem jurídico protegido pela norma penal.

8.6.1 Teoria naturalística Segundo essa teoria, o resultado é a modificação do mundo externo produzida pela conduta, positiva ou negativa, do agente. É uma entidade natural. No homicídio, o resultado é a morte da vítima. No furto, a mudança da posse da coisa subtraída. É uma conseqüência física, material, do comportamento do agente. Por essa teoria, existem crimes que têm resultado e crimes que não têm resultado, como na violação de domicílio, definida no art. 150 do Código Penal, assim: “entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências”. Como se verifica, este tipo descreve pura e simplesmente uma conduta que não produz qualquer conseqüência natural. Tal crime se consuma com a simples atitude do agente, entrando em casa alheia, ou, depois de ter entrado, nela permanecendo. O comportamento humano, é óbvio, já é uma mudança na vida; no mundo, todavia, não se pode ignorar que uma coisa é a conseqüência da conduta, outra é a própria conduta. A primeira segue-se ao comportamento, e este não se confunde com ela. Uma coisa, como diz MUÑOZ CONDE, é o produzir e outra é o produzido. O produzir é a conduta, o produzido é o resultado10. Por isso, uma parte dos crimes tem resultado, como o homicídio, o furto, o estupro, o roubo, e outros são crimes sem resultado, de mera conduta, ou de mera atividade: a violação de domicílio, a omissão de socorro, a omissão de notificação de doença, e a maior parte das contravenções penais.

8.6.2 Teoria normativa A outra corrente diz que o resultado é a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico protegido pela norma penal, pouco importando se a conduta deu ou não causa a uma

10

Op. cit. p. 21.


Fato Típico - 35 modificação do mundo externo a ela. Sempre, num fato típico, independentemente da modificação do mundo externo, um bem jurídico é lesionado ou exposto a perigo. De conseqüência, todos os crimes têm resultado, pois em todos eles haverá sempre uma lesão ou um perigo de lesão de um bem jurídico. Na violação de domicílio, o resultado seria a lesão do direito à inviolabilidade da casa; na omissão de socorro, seria o perigo da lesão à saúde ou à integridade corporal da pessoa abandonada, extraviada ou ferida etc. Na omissão de notificação de doença, o resultado seria o perigo de contaminação, para a saúde de toda a população ou de parte dela.

8.6.3 Discussão Suponham a seguinte situação: Paulo decidiu matar Mauro e, encontrando-se com este, saca de seu revólver e vai atirar contra o desafeto que, mais rápido, consegue atirar contra o agressor, matando-o com um único tiro disparado. Mauro realizou o fato típico descrito no art. 121 do Código Penal, pois matou alguém. Todavia, pode-se com tranqüilidade concluir que agiu em legítima defesa – cujo estudo será feito no item 10.4 –, pois que repeliu uma agressão injusta, atual, a sua vida, usando moderadamente do meio necessário. Viu-se uma conduta humana que produziu a modificação do mundo externo, a morte de um homem. Houve um resultado naturalístico, mas não aconteceu lesão de bem jurídico. Sim, porque, quando o Direito Penal permite a prática de um fato que, a princípio, é proibido, é porque tal fato é lícito, e tratando-se da morte justificada de um homem, é porque tal vida não se encontrava sob a proteção do Direito. Se o Direito protegesse a vida do agressor, não poderia ter permitido que o agredido a tirasse. Se permitiu que Mauro matasse Paulo, é porque não estava protegendo a vida de Paulo. A conclusão a que se pode chegar, pois, é de que a lesão ao bem jurídico não é conseqüência da conduta, mas a qualidade de ser tal conduta proibida. Se é ilícita, houve lesão ou perigo de lesão. Se é permitida, não houve lesão nem perigo de lesão. O resultado, de conseqüência, só pode ser compreendido no plano natural, enquanto efeito concreto da conduta. A lesividade do bem jurídico há de ser entendida e explicada no plano da ilicitude, da relação de contrariedade entre o fato e o


36 – Direito Penal – Ney Moura Teles ordenamento jurídico. Quando o fato for ilícito, terá havido lesão ou perigo de lesão. Quanto for lícito, não. Alguns doutrinadores defendem a teoria normativa, amparando-se na norma do art. 13 do Código Penal, que diz: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa.” Para esse pensamento, haveria incompatibilidade entre os tipos que não descrevem resultado naturalístico e o dispositivo do art. 13, que afirmaria que, para haver crime, deve haver resultado. O raciocínio é simplista e parte de uma leitura equivocada da norma do art. 13. A simples interpretação literal do preceito conduz a seu entendimento correto. Quer a lei dizer que o resultado, do qual depende a existência de certo crime – não de todo e qualquer crime – só pode ser atribuído a quem lhe deu causa. Quando a definição de um crime contiver uma conduta e um resultado, este somente será imputado a quem lhe tiver dado causa. O dispositivo, portanto, destina-se a regular a relação de causalidade dos fatos definidos como crime em que, além de conduta, se exige a produção de um resultado. Nada além disso. É de todo evidente que, prevendo o Código Penal crimes com resultado e crimes sem resultado, com relação a estes teria que, necessariamente, estabelecer norma tratando da relação de causalidade entre conduta e resultado. A norma do art. 13 do Código Penal, em vez de amparar a teoria normativa, ao contrário, milita em favor da naturalista, pois deixa bem claro que há crimes de resultado e crimes sem resultado. Se vários tipos do mesmo Código descrevem, incriminando apenas condutas, simples atividades, meros comportamentos, sem a exigência da produção de qualquer resultado naturalístico, é certo que a norma da parte geral, do art. 13, somente se refere aos outros tipos, aliás, os mais importantes, por descreverem as condutas mais graves contra os bens mais importantes. Resultado, portanto, não é a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico penalmente protegido, mas a modificação do mundo exterior, o efeito concreto, o evento natural, a conseqüência resultante da conduta humana voluntária final.

8.7

NEXO DE CAUSALIDADE Nos fatos definidos como crime em que, além de conduta, se exige a produção de

um resultado, é imprescindível que entre o comportamento humano e o resultado verificado exista relação de causa e efeito, a fim de que se possa atribuí-lo ao agente da


Fato Típico - 37 conduta. A conduta deve ser a causa do resultado; este, a sua conseqüência. É de toda obviedade, pois, que não se pode atribuir ou imputar a alguém a responsabilidade por algo que não produziu. Quando José desfere um golpe de facão que decepa a cabeça de Alfredo, que morre instantaneamente, dúvidas não restam de que a conduta de José foi a causa da morte de Alfredo. Nem sempre, todavia, entre conduta e resultado existe relação de causa e efeito tão simples e claramente verificável. Basta pensar algumas hipóteses: a) Sílvio atira no peito de Armando, que, minutos após ser socorrido, é atingido por outro disparo na cabeça, efetuado por Alexandre – que nem conhece Sílvio, nem sabia de sua conduta –, falecendo em seguida; b) Mário dispara contra Celso que, ao sair em direção ao hospital, é atingido por uma viga do telhado que desaba, matando-o; c) Sinval atira contra Marcos, que, após socorrido e levado ao hospital, recebe, ali, da enfermeira, uma dose excessiva do medicamento receitado, morrendo por isso; d) Luís atinge, com um tiro de revólver, Carlos, que, levado ao hospital, é tratado e contrai, dias depois, pneumonia, vindo a morrer algum tempo depois. Nessas situações, podem restar dúvidas sobre a quem atribuir o resultado, e até onde responsabilizar o agente da conduta. A relação de causalidade é um dos temas mais interessantes do Direito Penal e por isso merece atenção toda especial.

8.7.1 Noções básicas Causa de uma coisa é aquilo de que esta coisa depende para existir. Ou, então, é aquilo que determina a existência de uma coisa. Condição é o que permite a uma causa produzir seu efeito, seja como instrumento ou meio, seja afastando obstáculos à produção do resultado. Ocasião é uma circunstância acidental que cria condições que favorecem a produção do resultado. Concausa é a confluência ou a concorrência de mais de uma causa na produção de um mesmo resultado. Com base nessas noções elementares, os doutrinadores do Direito elaboraram diversas teorias com o objetivo de explicar o que é a causa de um resultado, devendo ser mencionadas apenas algumas delas.


38 – Direito Penal – Ney Moura Teles A teoria da causalidade adequada entende que a causa de um resultado é a condição mais adequada a sua produção. A teoria da eficiência fala em condição mais eficaz, como sendo a causa do resultado. Outra teoria, a da relevância jurídica, diz que tudo o que concorre para o resultado, ajustado à figura penal, é a causa do resultado. Diante de intermináveis polêmicas, falhas e dificuldades na aplicação de soluções mais próximas dos interesses da justiça, o Código Penal adotou a teoria da equivalência das condições.

8.7.2 Teoria da equivalência das condições Diz a teoria da equivalência das condições, ou da “conditio sine qua non”, no art. 13 do Código Penal: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.” Segundo essa teoria e a norma do Código Penal que a adotou, causa é toda a condição do resultado, e todos os antecedentes causais indispensáveis a sua produção são equivalentes, não havendo qualquer distinção entre causa, concausa, condição ou ocasião. Tomando-se como ponto de partida a conduta do agente e de chegada o resultado, e verificando-se a existência de outras causas situadas entre os dois momentos, tem-se, a princípio, que todas elas – conduta e outras causas – são antecedentes causais equivalentes. Para se descobrir, então, se a conduta de determinado agente é causa do resultado, basta examinar a série causal construível com base nela, excluí-la mentalmente, e verificar o que ocorreria. Se o resultado continuar acontecendo, como aconteceu, a conclusão é de que tal conduta não é causa do resultado. Se, ao contrário, o resultado não ocorrer, como ocorreu, a conclusão é que a conduta é a causa desse resultado. Este é o chamado procedimento hipotético de eliminação. Por exemplo: Geraldo dispara um tiro de revólver contra Miguel, atingindo-lhe o tórax; Miguel é socorrido numa ambulância, onde desmaia; instala-se um processo de hemorragia; perda de sangue; chega ao hospital, é internado e submetido a uma cirurgia para a retirada do projétil que se alojara no pulmão; instala-se um processo infeccioso; Miguel morre, dias depois, constando do laudo de exame cadavérico e do atestado de óbito a causa mortis: pneumonia bilateral, secundária a ferimento por


Fato Típico - 39 projétil de arma de fogo. Se retirarmos, mentalmente, da série causal, a conduta de Geraldo, o disparo do revólver, a morte de Miguel simplesmente não ocorre, porque, se não estivesse ferido, não teria ido ao hospital, nem contraído pneumonia. Conclusão lógica é a de que a conduta de Geraldo é causa da morte de Miguel. A teoria da conditio sine qua non, por sua extrema amplitude, recebe inúmeras críticas, inclusive a de que todos deveriam responder pelo homicídio, até o pai do agente, sem o qual este não existiria, inexistindo, de conseqüência, o crime. É óbvio que, ao operador do direito, interessa conhecer a relação de causalidade com base na conduta do agente, não regredindo no tempo.

8.7.3 Superveniência de causa relativamente independente Como se observou, a teoria da equivalência das condições equipara todos os antecedentes causais, sendo, por isso, bastante amplo o âmbito de sua aplicação. Para restringi-lo, o Código Penal estabelece no § 1º do art. 13 uma exceção: “A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou.” Após a conduta do agente, pode ocorrer outra causa que venha a interpor-se no curso do processo causal instalado e em andamento, alterando seu rumo e levando à produção do resultado por sua própria eficiência. Tome-se o exemplo: a vítima, após sofrer ferimentos abdominais por golpes de faca, é socorrida e colocada dentro de uma ambulância, que, no caminho, vem a ser abalroada por um ônibus, abrindo-se a porta traseira, e, com o choque, arremessada para fora do veículo a maca e com ela o corpo da vítima, que se choca com o asfalto, vindo ele a morrer por traumatismo crânio-encefálico. A conduta do agente, consistente em golpear a vítima na região abdominal com instrumento pérfuro-cortante, inaugurou um processo causal, que teria um curso normal até a chegada do ferido no hospital, onde seria tratado, e poderia morrer ou não. Antes que se concluísse o processo causal instaurado com a conduta do agente, uma nova causa a ele se interpôs, cortando seu fluxo, e levou, por si só, ao resultado morte. Essa nova causa, que se interpôs, que interrompeu e modificou o processo causal


40 – Direito Penal – Ney Moura Teles iniciado com a conduta do agente, é uma causa superveniente relativamente independente que, por si só, produziu o resultado. É relativamente independente, porque guarda com a conduta do agente uma relação de dependência relativa. A vítima somente sofreu o traumatismo craniano por estar dentro da ambulância, e só ali se encontrava por ter sofrido os golpes praticados pelo agente. Foi capaz de produzir o resultado por si só, porque este não resultou da confluência das duas causas. Independentemente do ferimento abdominal, produzido pela conduta, o ferimento do crânio produziria a morte, como produziu, de qualquer modo. Assim, sempre que uma causa superveniente for capaz de, por si só, levar ao resultado, o agente da conduta não responderá por ele, apenas pelos fatos anteriores praticados. Se o agente desejava matar a vítima, mas esta veio a morrer em razão da causa superveniente que por si só produziu o resultado, responderá apenas por tentativa de homicídio. Se desejava apenas feri-la, por lesão corporal dolosa. Se não queria causar o ferimento previsível, mas agira com negligência, responderá por lesão corporal culposa.

8.7.4 Concausas

relativamente

independentes

preexistentes

e

concomitantes Questão intrincada é saber se o resultado será atribuído ao agente quando concausas relativamente independentes preexistentes ou concomitantes interagirem com sua conduta, já que o Código Penal silenciou sobre elas. É o que acontece quando é produzido um ferimento numa vítima portadora de particular condição fisiológica (debilidade física, ferimento anterior, diabetes, hemofilia) que vem a falecer em razão do concurso das duas condições – a preexistente e a conduta. Ou a vítima que, diante da agressão, e por causa dela, emocionada, vem a sofrer uma parada cardíaca, falecendo pela insuficiência total do coração. Nesse caso, concorreram para o resultado a agressão e a causa concomitante. A Jurisprudência dos Tribunais é, em sua ampla maioria, no sentido de que, tendo-se o § 1º do art. 13 referido, exclusivamente, às concausas relativamente independentes supervenientes, é porque as preexistentes e concomitantes não têm o poder de romper o nexo causal. Dessa forma, se a concausa relativamente independente preexistir à conduta do agente, ou for simultânea a ela, responderá ele


Fato Típico - 41 pelo resultado. ALBERTO SILVA FRANCO, todavia, mostra que nesses casos se deve interpretar o § 1º do art. 13 extensivamente: “Seria pertinente a extensão do dispositivo às concausas preexistentes ou concomitantes? Costa e Silva considerou apropriada, apesar do silêncio do texto de lei, a interpretação extensiva, acentuando, com base na doutrina italiana, que as concausas preexistentes ou concomitantes podem excluir a relação de causalidade quando, por si só, sejam suficientes para produzir o evento (Direito Penal, 1943, p. 71). Na mesma linha de entendimento, manifesta-se Paulo José da Costa Jr.: ‘embora o § 1º do art. 13 se refira somente às causas supervenientes, também as causas antecedentes ou intercorrentes, que tenham sido por si só suficientes (em sentido relativo) para produzir o evento, prestam-se à exclusão do vínculo causal penalmente relevante’. E acrescenta que, no caso, nada impede a aplicação analógica do princípio: ‘Trata-se de um dispositivo favor rei que se harmoniza com os princípios gerais do ordenamento penal, não constituindo um princípio excepcional, que importe numa desviação lógica dos pressupostos em torno dos quais gravita toda a codificação jurídico penal’ (Comentários ao código penal, v. 1, p. 113 e 114, 1986). E esta, sem dúvida, parece ser a melhor posição, máxime quando as causas preexistentes ou concomitantes eram desconhecidas do agente.”11 Adotando esse entendimento, também as causas relativamente independentes, preexistentes e concomitantes, se tiverem sido capazes de, por si sós, produzir o resultado, excluirão sua imputação ao agente, que, igualmente, responderá apenas pelos atos praticados. No volume 2, acerca do homicídio, esse tema é tratado com mais detalhes.

8.7.5 Concausas absolutamente independentes Já as concausas absolutamente independentes – preexistentes, concomitantes e supervenientes – têm o poder de excluir a imputação do resultado ao agente da conduta, porquanto constituem a única e exclusiva causa do resultado.

11

Código penal: sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 136.


42 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.7.6 Teoria da Imputação Objetiva O problema da imputação do resultado, um dos mais intrincados do Direito Penal, e as insuficiências da teoria da conditio sine qua non, fizeram com que os juristas procurassem novos rumos, chegando-se à construção da chamada teoria da imputação objetiva, desenvolvida principalmente entre os juristas alemães. A teoria da imputação objetiva, na verdade, não é uma teoria que nega a causalidade natural, mas que lhe acrescenta critérios valorativos, dando-lhe uma nova roupagem e dimensão. Esses critérios normativos podem ser sintetizados na idéia da criação ou aumento de um risco não permitido que se realiza no resultado típico, dentro do âmbito de proteção da norma. Sabendo-se que na vida e sociedade há um grande números de comportamentos que são, inevitalmente, perigosos, tem-se, entretanto, que muitos deles se situam no âmbito de uma permissão da própria sociedade, ao passo que outros são proibidos. DAMÁSIO explica: “É possível que o sujeito, realizando uma conduta acobertada pelo risco permitido, venha a objetivamente dar causa a um resultado naturalístico danoso que integre a descrição de um crime. Exemplo: dirigindo normalmente no trânsito, envolve-se num acidente automobilístico com vitima pessoal. Nesse caso, o comportamento deve ser considerado atípico. Falta a imputação objetiva da conduta, ainda que o evento jurídico seja relevante. (...) Quem dirige um automóvel, de acordo com as normas legais, oferece a si próprio e a terceiros um risco tolerado, permitido. Se, contudo, desobedecendo as regras, faz manobra irregular, realizando o que a doutrina denomina ‘infração de dever objetivo de cuidado’, como uma ultrapassagem perigosa, emprego de velocidade incompatível nas proximidades de uma escola, desrespeito a sinal vermelho de cruzamento, ‘racha’, direção em estado de embriaguez etc., produz um risco proibido (desvalor da ação). Esse perigo desaprovado conduz, em linha de raciocínio, à tipicidade da conduta, seja na hipótese, em tese, de crime doloso ou culposo.”12 Segundo a teoria, a apuração da imputação do resultado se faz em dois momentos. Em primeiro lugar faz-se a aferição do nexo causal, segundo os mesmos critérios físico-mecânicos da causalidade natural. Constatado o vínculo causal, deve o intérprete, o juiz, aferir se está presente o vínculo normativo.

12

Imputação Objetiva, Saraiva, 2000, pág. 39 e 40.


Fato Típico - 43 Perguntará o julgador do caso concreto se o resultado é imputável ao agente da conduta, com as seguintes indagações: a) a conduta criou ou aumentou um risco não permitido? b) esse risco não permitido se materializou no resultado típico? esta materialização do risco permitido no resultado típico aconteceu na esfera do âmbito de proteção da norma? Se a resposta for negativa para qualquer dessas indagações, o resultado não poderá ser imputado ao agente da conduta. O fato será considerado atípico, segundo a teoria, por exclusão da imputação objetiva do resultado quando se tratar de risco permitido, quando o agente tiver atuado para diminuir o risco proibido, quando não tiver realizado risco proibido, ou quando o a concretização do risco proibido não se der dentro do âmbito de proteção da norma. Penso que, a despeito da engenhosidade da teoria da imputação objetiva e do respeito que tenho especialmente pelo professor DAMÁSIO E. DE JESUS, os problemas que ela diz que busca solucionar já são, perfeita e adequadamente, solucionados pela incidência da normas já comentadas e interpretadas no âmbito da relação de causalidade, ao longo da exposição deduzida neste item.

8.8

PRETERDOLO

8.8.1 Crimes qualificados pelo resultado A lei penal, algumas vezes, ao lado de um tipo de crime, regula, como tipo derivado, e mais grave, por isso apenado com pena mais severa, a mesma conduta descrita naquele tipo, dito básico, descrevendo, todavia, um resultado mais grave. Esses são os chamados tipos legais de crimes qualificados pelo resultado. Exemplos desses tipos de crimes encontram-se no art. 129 do Código Penal. No caput do artigo está definido o tipo básico, fundamental, do crime de lesão corporal dolosa, assim: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano.” No § 1º, a lei descreve a mesma conduta, de ofender a integridade corporal ou a saúde de alguém; todavia, com a causação de um resultado mais grave que o do caput: “Se resulta: I – incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias; II – perigo de vida; III – debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV – aceleração de parto: Pena – reclusão, de um a cinco anos.” No § 2º, igualmente são descritos resultados mais graves ainda, produzidos por


44 – Direito Penal – Ney Moura Teles conduta idêntica à do caput. No caput está o tipo básico; nos §§ 1º e 2º, alguns dos vários tipos derivados, que são tipos de crimes qualificados pelo resultado. Se o agente ofende a integridade corporal da vítima e não ocorre nenhum dos resultados mais graves previstos nos §§ 1º e 2º, responderá por lesão corporal de natureza leve, definida no caput, mas, se de conduta idêntica decorre qualquer daqueles resultados, então responderá por eles, denominados respectivamente lesão corporal grave e gravíssima, que são crimes qualificados pelo resultado. Os crimes qualificados pelo resultado podem decorrer de dolo do agente, de negligência ou de mero nexo causal. Exemplo: pode ocorrer que determinado agente queira, com um golpe de machado, decepar o braço de seu desafeto. Age com dolo de que seu inimigo perca o braço, um membro. Quer, por isso, realizar o tipo legal de lesão corporal gravíssima, descrito no art. 129, § 2º, III, do Código Penal. Pode acontecer, entretanto, que o agente, querendo simplesmente ferir outra pessoa, empurra-a nas proximidades da guilhotina de uma fábrica de papéis, caindo a vítima no exato momento em que a faca desce e lhe decepa o braço. Nesse exemplo, o agente não tinha a intenção de que ela viesse a perder o braço, mas sua vontade era de tão-somente ofender sua integridade física. Foi negligente, pois era previsível que, naquele lugar, próximo de uma máquina perigosa, poderia ocorrer um resultado mais grave do que o desejado. Agiu, pois, sem dolo de realizar a forma agravada do crime de lesão corporal, mas com negligência. Finalmente, pode acontecer de o agente nem querer, nem agir com negligência, em relação à produção de um resultado mais grave. Fere um seu desafeto, superficialmente, no braço. A vítima, todavia, não cuida do ferimento que se infecciona, instalando-se a gangrena e a inevitável amputação do membro. Nesse caso, o agente não agiu com dolo, e tampouco com culpa, stricto sensu. O resultado mais grave decorreu de mero nexo causal. Se o resultado mais grave decorre de puro nexo causal, o agente não responderá por ele, pois falta o dolo ou a negligência. Se agiu dolosamente, ocorreu um crime doloso, em sua plenitude. Se o resultado mais grave decorreu de negligência, este é o crime preterdoloso.


Fato Típico - 45

8.8.2 Crimes preterdolosos O crime preterdoloso ou preterintencional é aquele em que o resultado vai além do dolo do agente. Sua conduta é dolosa, mas o dolo não abrange o resultado alcançado. Na verdade, ele age com a intenção de alcançar um resultado menos grave e, por imprudência, negligência ou imperícia, dá causa, sem querer, a um resultado mais gravoso. O agente quer ferir a vítima, mas, por descuido, acaba por decepar-lhe o braço. Queria apenas empurrá-la, causando-lhe simples lesão, talvez até insignificante, mas, por negligência, acaba atirando-a sob a guilhotina, que lhe decepa o membro. A conduta é dolosa, mas o resultado é culposo. O agente quer um mínimo, seu comportamento negligente leva a um resultado além do desejado, causando lesão mais grave. O Código Penal brasileiro, lamentavelmente, nenhuma distinção faz entre o crime qualificado pelo resultado cometido dolosamente e o crime qualificado pelo resultado, cometido preterdolosamente, cominando pena igual nas duas hipóteses. Assim, a pena para o crime de lesão corporal gravíssima em que resulta perda de membro, praticado com dolo, é a mesma quando tal resultado promana de negligência do agente. Tal tratamento é injusto; por isso, os juízes, ao aplicarem a pena, no momento da individualização, acabam por levar em conta o comportamento interno do agente, considerando mais culpado aquele que agiu com dolo quanto ao resultado. A solução remete à necessidade de que se faça dupla valoração do dolo e da culpa, em sentido estrito, no âmbito da conduta e no âmbito da culpabilidade, o que não condiz com a teoria finalista da ação, abraçada pela reforma penal de 1984. Importante notar que, para que o resultado mais grave seja atribuído ao agente, é indispensável que ele tenha agido com dolo ou com culpa, não bastando a presença de nexo de causalidade. É a norma do art. 19 do Código Penal: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.” Se o causou sem dolo, e sem culpa, stricto sensu, por ele não responderá.

8.9

TIPICIDADE E TIPO Para que se possa examinar o último elemento do fato típico, a tipicidade, é


46 – Direito Penal – Ney Moura Teles indispensável que se faça, previamente, um breve estudo sobre os tipos. O tipo é o modelo de comportamento humano, ao qual se segue, em regra, uma conseqüência, que constitui o fato proibido, o que não deve ser. A expressão tipo é tradução da palavra alemã Tatbestand. Deve-se a BELING, jurista alemão que pontificou no início do século, a construção da idéia do tipo como descrição objetiva, como modelo do crime, orientador ou indiciador do crime.

8.9.1 Funções dos tipos O tipo é a descrição concreta da conduta proibida. É o modelo de conduta que a lei considera crime, proibida pela norma penal. Tipo de furto: “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Tipo de estupro: “constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Na lei penal, encontra-se o tipo, a descrição de um fato que deve ser evitado, porque proibido sob a ameaça de pena. O tipo tem duas funções da mais alta importância: a de garantia e a indiciária da ilicitude. Todos os cidadãos, tomando conhecimento da existência dos tipos, sabem, previamente, que só poderão ser perseguidos penalmente e sofrer a pena criminal se realizarem um comportamento exatamente ajustado a um tipo. Sua liberdade, portanto, só poderá ser atingida na hipótese de que venha a realizar um comportamento exatamente correspondente a um tipo. O cidadão fica, assim, protegido contra o arbítrio estatal, que não poderá exercer sua autoridade sobre a liberdade do indivíduo na ausência de uma prévia definição legal do crime, que se dá por meio dos tipos. A segunda função dos tipos é indicar que a conduta por ele definida é proibida, ilícita, contrária ao ordenamento jurídico. Diz-se, pois, que sua função é indiciária da ilicitude. Os tipos são portadores da ilicitude, trazendo-a em seu interior. Dado um fato típico, tem-se que ele é, a princípio, ilícito, pois a relação de contrariedade ao direito está em seu interior. Contrariedade essa que pode ser afastada, mas que vem contida no interior dos tipos. Os tipos legais de crime deveriam ser construídos, preferencialmente, com elementos puramente objetivos, precisos e o mais pormenorizadamente possível. Essa necessidade, todavia, nem sempre pode ser alcançada, pois muitas vezes é necessária a construção de tipos abertos, que devem ser completados pelo aplicador da lei. Basta


Fato Típico - 47 pensar nos tipos culposos, cuja incidência depende da interpretação e da valoração normativa que o juiz fizer acerca da conduta do agente, sobre a verificação do preenchimento de todos os requisitos da conduta culposa, com a presença de todos os seus elementos. Os tipos – enquanto descrições de fatos da vida – utilizam-se das palavras e das frases da língua pátria, que expressam os significados, as idéias, as coisas, os valores, as ações, as manifestações da vida. O fazer, o não fazer – a conduta – onde, quando, como, por quê, de que maneira, com quais características e com quem são alguns dos componentes dos vários tipos legais de crime. São seus elementos estruturais, que precisam ser analisados. Os elementos dos tipos são objetivos, relativos à materialidade do fato, subjetivos, atinentes ao estado psíquico do sujeito ativo, e normativos, referentes à ilicitude, ao injusto ou a alguma norma estabelecida.

8.9.2 Elementos dos tipos 8.9.2.1

Elementos objetivos

Todos os tipos legais de crime descrevem comportamentos humanos e a maior parte deles descreve também os resultados dessas condutas, caso em que exigem entre aqueles e estes uma relação de causalidade. Enquanto modelos de fatos da vida, os tipos são retratos vivos ou cenas animadas de acontecimentos que têm o homem como protagonista, e, conquanto sejam a base que sustenta o princípio da legalidade, seus enunciados compõem-se de signos lingüísticos que devem retratar, com precisão, todos os detalhes do fato incriminado, proibido pela norma penal. Como numa pintura, num retrato, num filme, cada cena, cada lance, cada gesto, cada movimento deve estar muito bem descrito no tipo. Cada um deles é um elemento estrutural do tipo. São os componentes que lhe dão consistência, que o transformam num modelo de fato concreto, de um acontecimento da vida. Se todo crime é uma ação humana, os tipos devem revelar acontecimentos que envolvem o homem em movimento ou em inação. Fazendo ou não fazendo alguma coisa. O elemento principal de todo e qualquer tipo, que constitui seu núcleo, é aquele que revela a ação, em sentido amplo, positiva ou negativa, que, como não poderia deixar de ser, é representada por um verbo: matar, subtrair, constranger, obter, deixar de, permitir. É a ação material do delito.


48 – Direito Penal – Ney Moura Teles Os elementos objetivos dos tipos são os que se referem à materialidade do fato, do acontecimento. São aqueles que se referem à forma em que o fato é executado, ao tempo, à ocasião, ao lugar, aos meios empregados, aos sujeitos, ao objeto. Além dos núcleos, que revelam a ação material, são elementos objetivos dos tipos, entre outros, a título de exemplo, os seguintes: alguém, representando o sujeito passivo (arts. 121, 122, 130, 138, 139, 140, 146, 147, CP etc.); coisa, significando o objeto do crime (155, 157, 157, § 1º, 163, 165, 168, 168, § 1º, 169 etc.). Outros: “com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia” (art. 121, § 2º, III, CP), “por meio de relações sexuais” (art. 130, CP), relativos aos meios utilizados na realização do tipo etc. Os elementos objetivos, de natureza descritiva, são facilmente identificáveis, porquanto não pertencem ao âmbito do psiquismo do homem, o agente do fato, mas são perceptíveis pelos sentidos, independentemente de qualquer valoração de natureza normativa.

8.9.2.2

Elementos normativos

Outros elementos que integram aquelas cenas típicas exigem, do operador do direito, a formulação de um juízo de valoração normativa, no âmbito da própria verificação da tipicidade, já no primeiro momento do crime, o fato típico. Esses componentes, diferentemente dos elementos objetivos, para serem compreendidos, devem ser apreciados com a elaboração de raciocínio valorativo que leve em conta outras normas jurídicas ou ético-sociais. É que, para a proteção de certos bens jurídicos importantes, a lei resolveu construir tipos que contêm tais elementos. Por exemplo, no art. 151 está protegida a inviolabilidade da correspondência, assim: “Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem.” O componente normativo está contido na expressão indevidamente, que significa “sem autorização” de quem de direito ou de uma norma jurídica, pelo que só será fato típico se o sujeito devassar o conteúdo da correspondência injustamente, contrariando outra norma. É que a algumas pessoas é lícito devassar a correspondência fechada dirigida a outra pessoa, por exemplo, a secretária, autorizada por seu patrão, e os pais, que podem fazê-lo em relação a seus filhos menores. Discute-se se o marido e a mulher podem violar a correspondência fechada dirigida ao outro, havendo posições num e noutro sentido, todos concordando que, na


Fato Típico - 49 hipótese de suspeita sobre a fidelidade, o fato seria lícito. Ambos, marido e mulher, companheiro e companheira, casados ou unidos estavelmente num mesmo lar, devem respeitar a intimidade do outro e, é óbvio, só poderão violar a correspondência do outro se devidamente autorizados. Não é só pelo fato de viverem juntos e se amarem que não desejam, cada qual, preservar sua intimidade. Cada indivíduo, mesmo vivendo em comunhão com outro, tem sua personalidade, e seus direitos constitucionais a ela relativos devem ser mantidos, e, conquanto disponíveis, para se considerar a renúncia, esta precisa exsurgir no dia-a-dia do casal, expressa ou tacitamente. A tipicidade do fato, portanto, só não existirá se houver essa autorização, ainda que tácita, do outro, para conhecer o conteúdo das comunicações que lhe são dirigidas por meio de correspondência fechada. Como se viu, elementos como esses exigem uma valoração normativa do intérprete. Sempre que se encontrarem expressões semelhantes, como indevidamente, indevida, sem as formalidades legais, sem justa causa, sem prévia autorização, fraudulentamente, e outras de mesmo ou semelhante sentido, o operador do direito necessitará realizar um juízo de valor, de caráter normativo, para verificar a violação de uma regra jurídica de proibição. Também exigem uma valoração normativa, destinada a conceituar certos termos jurídicos ou, mesmo, extrajurídicos, expressões como cheque, função pública, documento, dignidade, saúde, moléstia, pois necessitam ser interpretadas de acordo com normas jurídicas, legais ou costumeiras, bem assim outras de natureza técnicocientíficas. A existência de elementos normativos nos tipos é uma exigência dos tempos modernos, o que, infelizmente, importa numa menor segurança para os cidadãos, uma vez que deixa para o julgador uma margem de liberdade maior na verificação da tipicidade dos fatos, o que não é o desejável num regime democrático, pois que enfraquece o princípio da legalidade. Em todos os tipos legais de crimes culposos, existe um elemento normativo, que é a culpa, stricto sensu, a inobservância do dever de cuidado objetivo, por imperícia, negligência ou imprudência. Como observado, só será fato típico culposo se o sujeito tiver agido negligentemente. Tal verificação exige um juízo de valor do julgador, acerca da previsibilidade objetiva do resultado e do desrespeito ao dever de cuidado que se impunha ao agente.

8.9.2.3

Elementos subjetivos


50 – Direito Penal – Ney Moura Teles Finalmente, integram muitas vezes o modelo de fato proibido certos componentes que vivem no interior do psiquismo do sujeito, na esfera de seu pensamento, em sua motivação, em sua intenção, em seu intuito, em seu ânimo, em sua consciência, na cabeça do homem. Em todos os tipos legais de crimes dolosos, há, pelo menos, um indispensável elemento subjetivo: o dolo, a consciência e a vontade. Só poderá existir o fato típico se o agente tiver agido com dolo. Sem o dolo, não há o fato típico doloso. Além do dolo, alguns tipos trazem outros componentes subjetivos. No tipo do art. 134 do Código Penal, está descrita a conduta: “expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria”. O fato objetivo descrito consiste na exposição ou no abandono de um recém-nascido. Para que a mulher realize tal tipo, é necessário que ela exponha ou abandone seu filho com um fim especial, o de ocultar sua desonra. Este fim é um elemento subjetivo do tipo, sem o qual ele não se realiza. Subjetivo porque integra o íntimo do sujeito do crime. Se a mulher tiver abandonado o recém-nascido, sem aquela intenção de ocultar sua desonra, não terá realizado este tipo, mas outro, o do art. 133 do Código Penal, que não contém aquele elemento subjetivo. De notar que a presença do elemento subjetivo, neste caso, torna o fato menos reprovável, pois faz corresponder-lhe pena máxima menor. Vê-se, pois, que alguns elementos subjetivos dizem respeito ao intuito do agente, a sua intenção, como no tipo do crime de perigo de contágio de moléstia grave, definido no art. 131, Código Penal: “praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”, e no do crime de extorsão, do art. 158, Código Penal: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa”. Nesses dois exemplos, a presença do elemento subjetivo vai importar numa maior reprovação da conduta do agente, pois revela uma intenção mais reprovável, mais censurável. Também são elementos subjetivos dos tipos aqueles componentes que se referem à consciência do sujeito ativo do fato. Para haver tipicidade no fato definido no art. 180 do Código Penal – tipo de receptação dolosa –, é indispensável que o agente tenha conhecimento de que a coisa adquirida, recebida, transportada, conduzida ou ocultada, seja produto de um fato definido como crime. Do mesmo modo, o tipo do art. 339 do estatuto repressivo


Fato Típico - 51 contém um elemento subjetivo relativo à consciência do agente: “Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.” São, portanto, subjetivos os componentes inerentes ao estado interno do sujeito ativo do crime. Num mesmo tipo legal de crime, podem conviver elementos objetivos, normativos e subjetivos.

8.10 TIPICIDADE DIRETA E CONSUMAÇÃO 8.10.1 Tipicidade direta Tipicidade é a relação de adequação exata, perfeita, total, completa, absoluta, entre o fato natural, concreto, da vida, e o tipo, que é o modelo de conduta proibida. Em grande parte dos casos da vida, a verificação dessa relação de adequação se faz de modo bem simples. Observa-se o fato e, num átimo de segundo, chega-se à conclusão de que ele se ajusta a certo tipo legal de crime. Por exemplo: Pedro, com vontade de matar, e por um motivo desprezível, dispara um tiro contra Joaquim, atingindo-o no peito esquerdo, causando-lhe lesões que o conduzem imediatamente à morte. Sua conduta ajustou-se diretamente a um tipo legal de crime, aquele definido no art. 121, § 2º, II, do Código Penal: “matar alguém, por motivo fútil”. Quando o fato natural se ajusta, se enquadra, imediatamente, diretamente, ao tipo, fala-se em tipicidade direta, imediata.

8.10.2

Iter criminis e consumação

O art. 14, I, do Código Penal diz que o crime é consumado “quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”. Para realizar o fato típico, o agente percorre um caminho, chamado iter criminis, que é o conjunto das várias etapas de sua realização: a cogitação, a preparação, a execução e a consumação. A cogitação, que ocorre na esfera do pensamento, jamais será punida. A preparação, conjunto dos atos meramente preparatórios, como se verá adiante


52 – Direito Penal – Ney Moura Teles no momento do exame da tentativa de crimes, também não será por si só punível, salvo se for constituída de infrações penais autônomas consumadas. A execução do fato típico consiste nos atos que se dirigem à realização do procedimento típico, quando penetram em seu núcleo, no verbo indicador da ação ou da omissão. O fato típico é um trecho da vida, que tem começo e fim, conforme a descrição do tipo. A consumação ocorre quando o fato se ajusta por completo, integralmente, ao tipo. No tipo de homicídio, com a morte da vítima.

No tipo de estupro, com a

introdução, ainda que incompleta, do pênis na vagina. No tipo de corrupção passiva, definida no art. 317, Código Penal, “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”, a consumação ocorre no momento em que o funcionário público solicita a vantagem, ou quando aceita sua promessa, não quando a recebe, até porque nem é necessário que venha a recebê-la. A determinação do momento da consumação do fato é da mais alta importância para o estudo do crime, que deve e será estudada, com detalhes e profundidade, em cada tipo em espécie, pois as dificuldades não são poucas.

8.11 TIPICIDADE INDIRETA Nem sempre é possível verificar a tipicidade de um fato, adequando-o, diretamente, a um tipo legal de crime, porque em dois casos certos fatos da vida, que exigem pronta resposta penal, não se ajustam diretamente a um tipo legal de crime. É o que ocorre nas tentativas de crimes e no concurso de pessoas. Quando alguém tenta realizar um tipo, não conseguindo alcançar sua consumação, ocorre a tentativa de crime. Quando mais de uma pessoa colabora para a realização de um só tipo, consumado ou tentado, verifica-se o chamado concurso de pessoas. Nesses casos, a verificação da tipicidade só é possível de forma indireta.

8.11.1

Tentativa de crimes

8.11.1.1 Conceito Não existem os tipos: “Tentar matar alguém”, “tentar constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, e tampouco “tentar subtrair,


Fato Típico - 53 para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Se não existem tais tipos, a tais fatos não poderiam corresponder penas criminais. Para obedecer ao princípio da legalidade, a lei concebeu uma fórmula geral, que permite a punição da tentativa de realização de crimes, definindo-a e mandando punila. A norma que define a tentativa encontra-se no art. 14, II, do Código Penal: “Diz-se o crime: tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.” E, mais importante, a regra que manda punir a tentativa está inscrita no parágrafo único do mesmo artigo: “Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.” Quem tentar cometer um crime será punido com a pena do crime, se tivesse sido consumado, diminuída de 1/3 a 2/3. Assim, para se verificar a tipicidade de um fato, é necessário conjugar-se a norma do tipo com a norma do art. 14, II, parágrafo único. Pois bem, e o que é tentativa? Tentativa de um crime é a execução inacabada, incompleta, do procedimento típico, por circunstâncias alheias à vontade do agente. Para existir tentativa, é necessário que o procedimento descrito no tipo seja iniciado, mas não se complete, em razão de alguma circunstância que esteja fora do âmbito da vontade do agente.

8.11.1.2

Elementos

É preciso que o procedimento típico seja iniciado. O primeiro desafio é distinguir atos de preparação de atos de execução do procedimento típico, pois aqueles não são puníveis, salvo se constituírem crime autônomo ou contravenção penal. Para configurar a tentativa, é indispensável que exista ato de execução. Há duas correntes doutrinárias que procuram estabelecer critérios para a distinção entre atos executórios e atos preparatórios. Um primeiro critério tem natureza material: haveria ato executório quando a conduta do agente atingisse o bem jurídico objeto do crime. Para haver ato executório num tipo de homicídio, seria indispensável que o comportamento do sujeito ativo


54 – Direito Penal – Ney Moura Teles atacasse o corpo da vítima, acertando um tiro, um golpe de faca, ministrando-lhe a bebida envenenada, ou o medicamento em dose excessiva. Por esse critério, não haveria tentativa de homicídio quando o tiro disparado pelo revólver do agente não atingisse o corpo da vítima, embora passasse a centímetros de seu corpo. Tal solução é equivocada. Às vezes, a vida do sujeito passivo passa por um perigo muito maior, sem que seu corpo tenha sido atingido, do que quando o corpo é atingido, por exemplo, numa das pernas. O primeiro fato será uma tentativa de crime, se o agente queria matar, mesmo que o bem jurídico não tenha sido atacado, atingido, materialmente. Melhor, por isso, o critério formal, segundo o qual existe ato executório quando o comportamento do agente dá início à realização do tipo. Veja-se o tipo de homicídio. Mata-se comumente com disparo de arma de fogo, golpe de facas, venenos etc. Observem-se essas formas de execução. Apontar a arma em direção da vítima pode ser um ato de execução, desde que não tenha havido, depois, por parte do agente, a desistência de disparar o revólver, de prosseguir na execução. Se o agente aponta a arma, mas desiste, não há ato de execução, mas de simples preparação. Atrair a mulher para o quarto do hotel, tirar-lhe as vestimentas, deitá-la na cama, amarrá-la no leito constituem atos executórios do tipo descrito no art. 213 do Código Penal, estupro, e nenhum deles ainda atacou a liberdade sexual da mulher. Correto, pois, é o critério formal. Há início de execução, quando o comportamento do sujeito começa, dolosamente, a realizar o tipo legal de crime. Se é interrompido por fato estranho a sua vontade, circunstância alheia, haverá tentativa de crime. Se, todavia, nenhum fator externo à sua vontade interage, e ele não prossegue na execução do procedimento típico, então não terá havido tentativa de crime. Se o desenrolar do procedimento típico é interrompido pela própria vontade do agente, poderá haver arrependimento eficaz ou desistência voluntária, que serão estudados adiante. Só haverá tentativa se o agente agia com dolo de alcançar o resultado. Sem dolo, não se fala em tentativa. Assim, não existe, porque é impossível, tentativa de crime culposo.

8.11.1.3

Formas


Fato Típico - 55 O procedimento típico pode completar-se e o resultado, mesmo assim, não acontecer. João, com vontade de matar, atira em Pedro, acerta-o, no rosto, mas este é socorrido, tratado e curado, e não morre. Todo o desenrolar do procedimento típico foi concluído; apenas o resultado descrito no tipo não aconteceu. A execução completou-se, mas o resultado teimou em não acontecer. Esta é a chamada tentativa perfeita, ou crime falho. Quando o processo de execução é interrompido, configura-se a tentativa imperfeita. Cláudio vai, querendo matar, atirar em Anísio, quando Geraldo desvia seu braço, indo o tiro acertar a parede mais próxima.

8.11.1.4

Punibilidade da tentativa

Como regra geral, a tentativa não é crime autônomo; daí, não existir crime de tentativa, mas tentativa de crime. Tanto que a pena para a tentativa é dependente da pena para o crime consumado, conforme dispõe o parágrafo único do art. 14 do Código Penal: as tentativas de crimes serão punidas com a pena do crime consumado, diminuída de um a dois terços, salvo disposição expressa em contrário. Esta é a regra. Há exceções, entre elas a do tipo legal do art. 352 do Código Penal, que descreve, como crime autônomo, com pena idêntica ao consumado, a tentativa de fuga: “evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa”. A pena é igual para o crime consumado e para sua tentativa. Isto porque a tentativa de fuga é crime consumado. Igualmente, os tipos descritos nos arts. 17 e 18 da Lei nº 7.170, de 14-12-83, a Lei de Segurança Nacional: “Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, e “tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados”. Nesses casos, tais tentativas constituem crimes autônomos.

8.11.1.5

Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Em certas situações, o agente, após iniciar a execução do procedimento típico, desiste de nela prosseguir e, em razão disso, o resultado não ocorre, ou o crime não se consuma. João, querendo matar a Pedro, dá-lhe um tiro que o atinge no braço, e, em


56 – Direito Penal – Ney Moura Teles seguida, podendo disparar outras vezes, desiste de continuar atirando e vai embora, deixando a vítima apenas ferida. Noutras situações, após concluir todo o procedimento típico, o agente arrependese e adota medidas capazes de impedir que o resultado aconteça. No mesmo caso, após ferir o desafeto, querendo matá-lo, o agente o socorre e o conduz até o hospital, providenciando que o mesmo seja curado, o que acontece. Nesses casos, não há tentativa de crime, porque a não-consumação decorreu da vontade do agente e não de circunstâncias a ele alheias. Trata-se da desistência voluntária ou do arrependimento eficaz, que descaracterizam a tentativa, respondendo o agente apenas pelos atos praticados, se, por si sós, constituírem crime menos grave ou contravenção já consumados. É a norma do art. 15 do Código Penal: “O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza só responde pelos atos já praticados.” Para ALBERTO SILVA FRANCO, “a desistência voluntária e o arrependimento eficaz são, portanto, causas inominadas de exclusão da punibilidade (art. 107 da PG/84), que têm por fundamento razões de política criminal. Se o próprio agente, por sua vontade, susta a execução do delito ou obsta, mesmo depois de terminado o processo de execução do crime, que advenha o resultado ilícito, interessa ao Estado que seja ele recompensado com a impunidade, respondendo apenas pelos atos já realizados, desde que constituam crimes ou contravenções, menos graves, já consumados”13. Já DAMÁSIO E. DE JESUS tem entendimento diverso: “Ora, não há falar-se que aquelas causas extinguem a possibilidade de aplicação da pena, pois a ‘extinção da punibilidade’ pressupõe a causa da punibilidade (no caso, o conatus) com todos os seus elementos. Se a punibilidade é conseqüência da existência da tentativa, quando esta não existe, não se pode falar em extinção daquela. É a lição de José Frederico Marques, in verbis: ‘Se do próprio conteúdo dessa forma que possibilita a adequação típica indireta tira-se a ilação de que a tentativa só existirá se a não-consumação não ocorrer por motivos alheios à vontade do agente, é mais que evidente que não há adequação típica quando a não-consumação decorre de ato voluntário 13

Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 164.


Fato Típico - 57 do autor dos atos executivos do delito.’ Isto significa que o arrependimento e a desistência tornam atípica a conduta do agente.”14 A razão está com JOSÉ FREDERICO MARQUES e DAMÁSIO E. DE JESUS, a despeito do profundo respeito que se deve ter pelo grande ALBERTO SILVA FRANCO. Se o agente tiver iniciado a execução de um homicídio – por exemplo, postando-se à espreita da vítima, com a arma carregada, mirando-a, armando o gatilho, disparando o primeiro tiro que não acerta a vítima, que nem chega a ouvir o disparo, por estar em avenida movimentada da cidade, no exato momento em que vários veículos pesados tocam suas buzinas – e, em seguida, desistir de prosseguir na execução, terá havido tão-somente a contravenção penal do art. 28 – disparo de arma de fogo ou, no máximo, o crime do art. 132 do Código Penal –, perigo para a vida ou saúde de outrem. Dizer que tal fato é típico de tentativa de homicídio, impunível por razões de política criminal, é ignorar os fins da norma penal incriminadora: proteger o bem jurídico das lesões ou ameaças de lesões graves. A punibilidade da tentativa decorre do perigo de lesão grave em que ela consistiu. Ora, se houve desistência voluntária ou arrependimento eficaz, desapareceu o perigo de lesão do bem jurídico por ato voluntário do próprio agente que o causara. Ele mesmo, que causara o perigo, deu efetiva proteção ao bem, desistindo ou eficazmente se arrependendo. Assim se comportando, realizou a vontade do Direito, que é proteger o bem jurídico. Quem alcança o fim do Direito não pode estar realizando algo proibido ou ilícito. Restam, se existentes, os comportamentos típicos menos graves. Por isso, a tipicidade fica excluída ou, melhor dizendo, alterada para um tipo menos grave, se a conduta o tiver realizado. Se, naquele exemplo, o agente, após mirar, com a arma engatilhada, nem chega a dispará-la, desistindo imediatamente, tal ato já é executório, e aí não se pode falar nem em perigo para o bem jurídico, e, estando ele autorizado a portar sua arma, não terá havido nem o crime de porte ilegal de arma. Se se admitisse que permanece a tipicidade da tentativa, que, apenas, será impunível, então será forçoso reconhecer que haverá tipicidade de um fato que nem significa ameaça de lesão do bem jurídico – o que viola o princípio da legalidade. Seria tipificar a simples intenção, mas é óbvio que o Direito Penal não se preocupa com os atos puramente internos do homem. ALBERTO SILVA FRANCO diz: “A sustação voluntária do processo de execução do delito ou a realização 14

Direito penal. Op. cit. p. 296.


58 – Direito Penal – Ney Moura Teles voluntária, depois do exaurimento desse processo, de uma ação em contrário, no sentido de impedir a consumação, não permitiriam tornar atípico o que, até então, tinha inequívoca conotação típica.”15 Os fatos, não há dúvida, tornam-se típicos pela conduta e pelo resultado – nos crimes de resultado. Se este não ocorre, por razões alheias à vontade do agente, a conotação típica altera-se, deixando, por exemplo, de ser homicídio, para ser tentativa de homicídio, de ser furto para ser tentativa de furto etc. Se, quando o resultado não acontece, por razões alheias à vontade do agente, a tipicidade se altera, com muito mais razão ela se alterará quando o resultado não ocorrer porque o agente alterou sua conduta, com a mudança de sua intenção, de sua vontade. Antes, ele queria alcançar o resultado e, depois, ele quer e consegue impedir o resultado; é evidente que a tipicidade se alterou substancialmente. Pode remanescer, portanto, outra tipicidade, não a da tentativa.

8.11.1.6

Arrependimento posterior

O arrependimento posterior é uma causa obrigatória de diminuição de pena, aplicável aos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça contra a pessoa, quando o agente, antes da instauração do processo, pelo recebimento da denúncia ou da queixa, tiver reparado o dano causado ou restituído a coisa sobre a qual recaiu a conduta típica. Tal norma encontra-se no art. 16 do Código Penal. Este é assunto do Capítulo 17 deste manual.

8.11.1.7

Crime impossível

No art. 17 do Código Penal, cuida-se do crime impossível, também chamado de tentativa inidônea ou tentativa inadequada, assim: “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.” O Direito Penal não se ocupa dos atos puramente internos, não punindo a simples intenção do agente. Em algumas situações, o homem, desejando realizar um tipo legal de crime, utiliza-se de meios absolutamente ineficazes, o que impossibilita a consumação do crime. Noutras, com meios eficazes, age sobre objeto absolutamente impróprio. Em

15

Código penal. Op. cit. p. 163.


Fato Típico - 59 ambas as situações, o crime jamais se consumaria. O bem jurídico, em qualquer dos casos, não esteve sequer ameaçado. Se não houve lesão, nem ameaça, nem era possível que houvesse, o Direito Penal não se interessa pela conduta, mesmo que ela estivesse eivada de vontade de causar um mal. Alguém resolve matar outrem, com uma arma descarregada, ou ministrandolhe açúcar, em vez de veneno. Tais meios são absolutamente ineficazes. Mas, e se a pessoa visada, no primeiro caso, assustando-se, vem a morrer de ataque cardíaco? Ou, sendo ela diabética, vem a morrer em função da ingestão do próprio açúcar? Bom, nestas hipóteses, o resultado terá acontecido, pelo que o crime terá se consumado e é óbvio que aqueles meios foram eficazes. Não se estaria diante de tentativa, mas de crime consumado. Já Maria, imaginando-se grávida, realiza em seu corpo vários atos visando interromper a gravidez imaginária e matar o inexistente feto. Está realizando condutas sobre um objeto absolutamente impróprio. O mesmo se dá quando alguém dispara contra um cadáver, imaginando que é o corpo do desafeto que dorme. Não se mata quem já morreu. Impossível a consumação do homicídio. A ineficácia do meio deve ser absoluta. Se apenas relativa, há tentativa; portanto, fato punível. O mesmo se dá com o objeto, que deve ser absoluta e não relativamente impróprio, caso em que haverá a tentativa de crime. Há ineficácia relativa do meio, por exemplo, quando alguém tenta matar outro com uma arma defeituosa, daquelas que “negam fogo”. Assim como falhou, poderia não ter falhado. A ineficácia não é absoluta, total. A possibilidade de consumação do crime existia. Igualmente, a impropriedade do objeto há de ser absoluta. Se, apenas relativa, subsiste a tentativa punível. Tentar subtrair a carteira no bolso esquerdo da vítima, que a trazia no bolso direito, é realizar uma conduta sobre um objeto relativamente impróprio, é, pois, tentativa de furto. O mesmo quando se tenta subtrair o veículo com trava de segurança. A impropriedade é só relativa.

8.11.2

Concurso de pessoas

Não existem tipos: “mandar matar alguém”, “colaborar para que alguém subtraia coisa alheia móvel, para si ou para outrem”, nem “ajudar alguém a constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Apesar disso, são inúmeros os casos concretos em que várias pessoas


60 – Direito Penal – Ney Moura Teles colaboram para a prática de fatos definidos como crime. Seria impossível que o legislador previsse todas as modalidades possíveis de colaboração na prática de fatos típicos. Em vez de construir inúmeros tipos, descrevendo casuisticamente todas as possibilidades de concorrência de pessoas para a realização de um mesmo tipo – missão impossível –, a lei preferiu, a exemplo da tentativa de crime, criar uma fórmula geral que prevê a punição de todo aquele que contribuir, de qualquer forma, para a realização de um tipo legal de crime. Por isso, o art. 29 do Código Penal dispõe: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.” É o segundo caso de adequação típica indireta, em que a tipicidade se verifica pela conjugação da norma do tipo com uma regra geral. Aqui, a contida no art. 29 do Código Penal. Sem ela, não haveria tipicidade nos casos mencionados. A doutrina, autorizada pela lei penal brasileira, distingue duas modalidades de concurso de pessoas: autoria e participação.

8.11.2.1

Autoria

Ao longo do tempo, a doutrina preocupou-se com a conceituação de autoria de crime, construindo várias teorias. Uma primeira teoria, denominada subjetivo-causal, dizia que autor do crime seria todo aquele que tivesse gerado uma condição para a causação do resultado descrito no tipo. Como se vê, é de uma amplitude muito grande, abarcando como autor todo aquele que desse a mínima colaboração, ainda que atípica, para o resultado. Por ela a distinção entre autor e partícipe ficaria comprometida, e, por essa razão, recebeu muitas críticas. Uma segunda doutrina, formal-objetiva, apresentava um conceito mais restrito de autor, que seria aquele que realiza, total ou parcialmente, uma figura típica. Esta teoria vincula o conceito de autor ao tipo legal de crime. Aqueles que realizassem comportamentos fora da descrição do tipo seriam meros partícipes, desde que houvesse a norma extensiva alcançando-os e mandando puni-los. A grande falha dessa teoria é deixar, na condição de partícipe, o indivíduo que organiza e comanda o procedimento típico, o chefe do bando, o que manda matar, o que contrata os executores de certo procedimento. Por essas e outras razões, construiu-se a teoria objetivo-subjetiva, também chamada de Teoria do Domínio do Fato, segundo a qual autor de um crime é quem possui o


Fato Típico - 61 domínio final da ação, podendo decidir sobre a consumação do procedimento típico16. A determinação da autoria está vinculada ao tipo legal de crime, mas depende da presença do elemento subjetivo, que é a vontade comandando o rumo do fato, isto é, do procedimento típico. Quem tiver poder de decidir sobre continuar ou interromper o procedimento típico, quem puder decidir sobre consumar o crime, quem puder arrepender-se, quem puder desistir, quem pode continuar, este é o autor, mesmo que não venha a realizar qualquer parte do procedimento típico, bastando tenha, previamente, determinado a outros que o fizessem, ou planejado a ação, organizado a execução. Ao fazê-lo, começou a realização intelectual do procedimento, e, por essa razão, realiza conduta adequada ao tipo. Com base nesse conceito, podem-se distinguir modalidades distintas de autoria, a saber: o autor intelectual, o autor executor, o autor mediato.

8.11.2.1.1 Autor intelectual Aquele que, sem executar diretamente qualquer parte do procedimento típico, possuir, no entanto, o domínio final da conduta, tendo a possibilidade de decidir sobre a consumação ou não do crime, sobre sua interrupção, sobre a modificação, é autor intelectual, porque planejou e organizou a realização do procedimento típico. É o chefe da quadrilha, o mandante do homicídio, quem contrata o pistoleiro, enfim, aquele que, apesar de não realizar um único movimento corporal para realizar a figura típica, possui o domínio dela, por meio do poder moral que exerce sobre os que a vão executar.

8.11.2.1.2 Autor executor Aquele que realiza, total ou parcialmente, a conduta descrita no tipo legal de crime é o chamado autor executor. É quem executa o comportamento proibido, diretamente, com sua atividade material. É quem dispara o revólver, quem subtrai a coisa, quem imprime a violência contra o ofendido. Basta a realização de uma parte do procedimento típico. Por exemplo: Sérgio ameaça Joaquim, com uma arma, para que Nélson, seu comparsa, subtraia o veículo. O 16

FRANCO, Alberto Silva. Código penal... Op. cit. p. 345.


62 – Direito Penal – Ney Moura Teles primeiro agente realizou o constrangimento, o segundo, a subtração. Cada qual realizou uma parte do procedimento típico do roubo. São ambos autores executores.

8.11.2.1.3 Autor mediato Se o agente, para realizar a conduta típica, abusa de uma terceira pessoa, imprimindo-lhe uma força física, para alcançar o resultado típico ou a consumação do delito, estará servindo-se de outrem como instrumento para o alcance de seus objetivos. Este é o chamado autor mediato.

8.11.2.1.4 Co-autoria O co-autor é outro autor. Não há distinção entre autor e co-autor. Se dois homens planejam e organizam um assalto a ser executado por outros dois, os quatros são coautores, os dois primeiros, co-autores intelectuais e os dois últimos, co-autores executores. Entre todos, não há tratamento típico diverso.

8.11.2.1.5 Co-autoria em crime culposo Plenamente possível é a co-autoria em crime culposo. Duas pessoas, com negligência, imprudência ou imperícia, podem realizar, conjuntamente, a mesma conduta, produzindo um resultado indesejado por elas. Por exemplo, dois homens resolvem atirar, pela janela do 10º andar de um edifício, um objeto qualquer, que, indo ao chão, atinge um transeunte, causando-lhe ferimentos. O comportamento de ambos foi negligente, causando o resultado por eles não almejado. Questão interessante é saber se o pai que entrega o veículo ao filho menor inimputável, ou deixa, negligentemente, as chaves do carro ao alcance dele, que, dirigindo o veículo, vem a causar, culposamente, a morte ou a lesão corporal em terceiros, será co-autor do crime. Algumas decisões de tribunais estaduais vinham considerando o pai co-autor do crime, pela ação ou pela omissão culposas, das quais resultavam a posse, pelo filho, do veículo e, em seguida, sua conduta de dirigir com imprudência, dando causa a um resultado – morte ou lesão corporal –, uma vez que teria, com seu comportamento, concorrido para o evento. É claro que essas decisões não levaram em conta que a teoria da equivalência das condições, adotada pelo Código, não admite, na verificação do nexo causal entre conduta


Fato Típico - 63 e resultado, a regressão ad infinitum às condições antecedentes do evento. No caso, só é possível verificar nexo causal entre a morte ou a lesão corporal da vítima e a conduta do menor que dirige o veículo. Sua conduta é a causa da morte, não o comportamento de seu pai. A negligência deste não pode ter relação direta com o resultado causado pela conduta de seu filho. Pondo fim ao dissídio jurisprudencial, felizmente o Superior Tribunal de Justiça enfrentou e resolveu a questão: “A co-autoria, tanto em crimes dolosos ou culposos, depende da existência de um nexo causal físico ou psicológico ligando os agentes do delito ao resultado. Não é admissível, por tal fato, a co-autoria em delito culposo de automóvel onde figura como autor menor inimputável. A negligência do pai, quando existente, poderá dar causa à direção perigosa atribuída ao menor, jamais à causa do evento.”17

8.11.2.2

Participação

Com base no conceito de autoria, diz-se que participação é a contribuição – sem realização direta de qualquer ato do procedimento típico – para um fato típico que está sob o domínio final de outra pessoa. É a conduta acessória, daquele que não possui domínio final da ação, do que não tem qualquer poder de decidir sobre a consumação, interrupção, ou modificação do procedimento típico. Apenas quer, conscientemente e com vontade, contribuir para a realização de um fato típico dominado por outra pessoa. Para haver participação, deve haver um fato típico alheio, a colaboração do partícipe, que não tem poder de decisão. Aquele que simplesmente auxilia, sem executar, o procedimento típico desenvolvido por outra pessoa está participando do fato. Para haver participação é indispensável que haja vontade, dolo, de colaborar com o fato típico. Não se pode pensar em participação negligente em delito doloso. Por exemplo, Joaquim, no aeroporto de Bogotá, prestes a embarcar com destino ao Brasil, recebe o pedido de Maria, sua conhecida, para que entregue ao pai dela, em São Paulo, um pacote. Tendo decidido colaborar com Maria, traz a encomenda e,

17

Acórdão prolatado no Recurso Especial nº 25.070-9, de Mato Grosso, Relator o Ministro Flaquer Scartezzini, publicado na RSTJ nº 47, p. 282.


64 – Direito Penal – Ney Moura Teles chegando ao Brasil, é abordado pela polícia, que descobre conter o pacote alguns quilos de cocaína. Do ponto de vista meramente causal, Joaquim transportou a droga, e seria, na verdade, autor do crime, ou, pelo menos, partícipe, por ter colaborado para o transporte; todavia, não tendo agido com conhecimento e vontade de transportar a substância proibida, não só não praticou nenhum fato típico, como também não participou do fato típico de ninguém. Conquanto a norma do art. 29 seja ampla, no sentido de que a concorrência se dá de qualquer modo, é importante verificar que a participação no crime pode dar-se das mais diferentes formas. Segundo DAMÁSIO E. DE JESUS, a participação pode ser moral ou material. A determinação ou o induzimento, a instigação, o ajuste e a promessa de ajuda são exemplos de participação moral18. Importante, a propósito, verificar até que ponto o partícipe tem possibilidade de influir na consumação do crime, pois, se houver poder de decisão, em vez de participação, haverá co-autoria. É preciso analisar com bastante cuidado o fato concreto e verificar se a “determinação” foi simples indução ou instigação, ou uma verdadeira ordem ao executor. Havendo entre o que determina e o que executa relação de domínio psicológico, de autoridade, a situação transmuda-se, de participação para autoria intelectual. Importante observar que a simples conivência não significa participação, pois, para que alguém possa responder pelo crime, deve ter, no mínimo, a vontade de com ele colaborar, não podendo ser responsabilizado por simplesmente não ter impedido fisicamente a execução de um fato típico, salvo se houvesse o dever jurídico de agir para impedir o resultado (art. 13, § 2º, CP). A colaboração levada a efeito posteriormente ao fato típico não é participação no crime, mas pode constituir o delito autônomo de favorecimento real ou pessoal, definidos nos arts. 348 e 349 do Código Penal.

8.11.2.3

Participação de menor importância

O § 1º do art. 29 estabelece que, se a participação tiver sido de menor importância, a pena será reduzida, de um sexto a um terço. Significa que a participação de cada um dos concorrentes deverá ser analisada e graduada conforme sua 18

Direito penal: parte geral. Op. cit. p. 371-373.


Fato Típico - 65 importância para a realização da figura típica. Existirão participações de grande e de pequena importância, de maior e de menor eficiência causal. Diferentemente da autoria, a participação exige esta graduação objetiva, e ao partícipe de menor importância será aplicada pena reduzida, obrigatoriamente, em até um terço da pena, podendo, até mesmo, ser fixada abaixo do grau mínimo. Aquele que informa o agente sobre a ausência dos donos da casa, para que ele nela entre e subtraia à vontade, está participando de um fato típico de furto. Esta participação, a princípio, é de menor importância, mas, se, em vez da informação, ele deixar a porta dos fundos destrancada, tal participação passa a ser um pouco mais importante, e, se em vez disso, tiver desligado um sistema de alarme, então, tal participação será de importância relevante para a execução do procedimento típico. Caberá ao juiz, no caso concreto, analisar o grau de eficiência causal, para concluir pela maior ou menor importância da participação.

8.11.2.4

Cooperação dolosamente diversa

Às vezes, um dos concorrentes deseja realizar um tipo legal de crime em concurso com outro que, não obstante isso, realiza um tipo mais grave. Por exemplo: João deseja participar ou ser co-autor de um delito de furto a ser executado por José, que se encarrega de entrar na casa alheia e subtrair objetos de propriedade do dono, Paulo. João, íntimo de Paulo, informara a seu amigo que todos os moradores estariam viajando de férias para outra cidade, onde ficariam 15 dias, e a casa estaria completamente desguarnecida. No dia seguinte à viagem de Paulo, José entra na casa e, enquanto está subtraindo os objetos, Paulo retorna e, entrando em luta corporal, vem a ser morto por José. O retorno de Paulo era inesperado, e deu-se em virtude do falecimento repentino de sua sogra. Como se viu, João queria participar de um furto, ao passo que José realizou um tipo de roubo seguido de morte, latrocínio, muito mais grave. A solução para problemas como este está no § 2º do mesmo art. 29: “Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.” No exemplo dado, João responderá pelo furto, uma vez que, tendo Paulo viajado


66 – Direito Penal – Ney Moura Teles de férias, era-lhe absolutamente imprevisível que a vítima retornasse antes de alguns dias. Imprevisível seu retorno, imprevisíveis o resultado mais grave, a violência e a morte que caracterizam o latrocínio. Se, no mesmo exemplo, Paulo tivesse ido ao cinema, e José informado a João que a casa estaria vazia por algumas horas, tempo suficiente para a subtração, e o dono da casa retornasse, tal resultado era previsível, pois não se tratava de uma viagem longa, por tempo longo. Neste caso, José responderia pelo tipo de furto, com pena aumentada de até metade.

8.11.2.5

Circunstâncias incomunicáveis

Circunstâncias são dados objetivos ou subjetivos acessórios que integram os tipos, com a exclusiva finalidade de fazer aumentar ou diminuir a pena. As circunstâncias objetivas ou reais são as que dizem respeito à materialidade do fato – a seu modo de execução, aos meios utilizados, tempo, lugar, qualidades do sujeito passivo. As circunstâncias subjetivas ou pessoais são as que se referem ao agente do fato, sua motivação, suas relações com o sujeito passivo, com seus concorrentes, suas qualidades pessoais. Excepcionalmente, algumas das mencionadas circunstâncias, em vez de simples acessórios

dos

tipos, integram suas

estruturas

como

elementos

essenciais,

indispensáveis a sua configuração, e que, por isso, são chamadas elementares do tipo. Quando duas ou mais pessoas concorrem para a realização de um mesmo procedimento típico, importa saber se, quando e quais as circunstâncias que se comunicam entre eles. Dispõe o art. 30 do Código Penal que as circunstâncias e as condições pessoais não se comunicam entre os concorrentes, salvo se elas forem elementares do crime. A primeira conclusão é de que – como a norma explica que as circunstâncias subjetivas ou pessoais, em regra, não se comunicam – deve-se entender que as circunstâncias de natureza objetiva ou real se comunicam aos concorrentes. É claro que só haverá comunicação de uma circunstância que venha a agravar a pena ou qualificar o crime, se o concorrente tiver se comportado, relativamente a ela, com dolo ou, pelo menos, culposamente. Se João determina a Alfredo que aplique uma surra em Mário, e o executor causa na vítima lesão corporal com emprego de tortura, essa circunstância objetiva, que agrava a pena, segundo manda o art. 61, II, c, somente será comunicada a João se, em relação a ela, tiver ele agido pelo menos culposamente.


Fato Típico - 67 Se ele sabia que Alfredo iria usar de tortura para lesionar e quis, ou aceitou, é óbvio que a agravante será comunicada, bem assim se lhe fosse previsível que Alfredo utilizaria o referido meio. Do contrário, não se comunica a circunstância real. A segunda observação é de que, em regra, as circunstâncias subjetivas ou pessoais são incomunicáveis. Se Célio comete um homicídio por motivo de relevante valor moral – está matando o estuprador de sua filha – com a colaboração de Jorge, que não tem a mesma motivação, seja por não saber do motivo de seu concorrente, seja por não estar imbuído desse espírito, a este não será comunicada a causa de diminuição de pena prevista no § 1º do art. 121. Finalmente, a terceira conclusão: se as circunstâncias são elementares do tipo, sejam elas objetivas ou subjetivas, reais ou pessoais, vão-se comunicar entre os concorrentes, desde, é óbvio, que entrem na esfera da previsibilidade de cada um. Nos tipos legais dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, definidos nos arts. 312 e seguintes do Código Penal, uma circunstância de natureza subjetiva é elementar, essencial, indispensável à configuração de cada um daqueles tipos, peculato, concussão, corrupção passiva etc.: ser o agente funcionário público. Quem, portanto, concorrer com um funcionário público para a realização de qualquer desses tipos, mesmo não sendo funcionário público, responderá em concurso – co-autoria ou participação – pelo crime que é próprio de funcionário público. É claro que isso apenas se o concorrente tiver, pelo menos, previsibilidade quanto a essa circunstância. É preciso que ele saiba ser seu concorrente um funcionário público, ou que lhe fosse, pelo menos, previsível tal circunstância. Além das circunstâncias pessoais que, em regra, são incomunicáveis, a lei dá idêntico tratamento às condições de caráter pessoal. MIRABETE explica que as “condições referem-se às relações do agente com a vida exterior, com outros seres e com as coisas (menoridade, reincidência etc.), além de indicar um estado (casamento, parentesco etc.)”19. Assim, a condição de reincidente do executor do fato não será comunicada a seu partícipe ou co-autor, porquanto não integra, enquanto elementar, tipos legais de crimes. Caso muito interessante, polêmico e inquietante, que está a exigir solução do 19

Op. cit. p. 228.


68 – Direito Penal – Ney Moura Teles legislador penal, é o do infanticídio, que DAMÁSIO E. DE JESUS muito clara e lucidamente apresenta em sua monumental obra DIREITO PENAL, e que merece ser, sempre, comentado. O tipo do art. 123, infanticídio, é: “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. Integra o tipo, como elementar, indispensável, essencial à realização do infanticídio, uma circunstância de natureza subjetiva da mãe: estar ela sob influência do estado puerperal, que é a situação de perturbação físico-psicológica que pode acometer a mulher durante o parto. Tais perturbações constituem um estado que pode influir no comportamento da mãe, alterando-lhe a psique. Se ela mata o próprio filho nessas condições, a lei comina-lhe uma pena bem menor que a do homicídio simples: detenção, de dois a seis anos. Quem concorrer para o infanticídio, auxiliando a mãe, estando ela sob influência do estado puerperal, a matar o recém-nascido, responderá por infanticídio ou por homicídio? À primeira vista, o concorrente, partícipe ou co-autor, terá realizado outro tipo legal de crime: o de homicídio, pois não está ele “sob a influência do estado puerperal”, que só a mãe pode sofrer. Pensar o contrário seria absurdo, pois o partícipe não está afetado por nenhuma perturbação psíquica e, por isso, não mereceria reprovação menor. Ao contrário, impõe-se-lhe até maior reprimenda, porque, na plenitude de suas faculdades mentais, colabora para a morte de uma pessoa absolutamente incapaz de esboçar qualquer defesa. DAMÁSIO E. DE JESUS sustenta que, infelizmente, não é essa a solução para o caso, em face da norma do art. 30, em comento, que manda sejam comunicadas ao concorrente as circunstâncias pessoais elementares do tipo, e a influência do estado puerperal, que é uma delas, integra o tipo. “Segundo entendemos, o terceiro deveria responder por delito de homicídio. Entretanto, diante da formulação típica desse crime em nossa legislação, não há fugir à regra do art. 30: como a influência do estado puerperal e a relação de parentesco são elementares do tipo, comunicam-se entre os fatos dos participantes. Diante disso, o terceiro responde por delito de infanticídio. Não deveria ser assim. O crime do terceiro deveria ser homicídio. Para nós, a solução do problema está em transformar o delito de infanticídio


Fato Típico - 69 em tipo privilegiado do homicídio.”20 Lamentavelmente, o ordenamento penal apresenta essa incongruência, que impõe um tratamento injusto ao que colabora para o infanticídio. A solução apontada por Damásio deve ser acolhida pelo legislador, eliminando o tipo de infanticídio e tornando-o uma causa obrigatória de diminuição da pena do homicídio, deixando, assim, de integrar a descrição elementar do tipo, passando a ser uma circunstância subjetiva acessória, que, dessa forma, não se comunicaria ao concorrente. No volume 2, ao abordar o infanticídio, voltarei ao tema, com maior profundidade, expondo o meu pensamento a respeito da polêmica.

8.11.2.6 Caso de impunibilidade da participação Algumas formas de participação, como o ajuste, a determinação, a instigação ou o auxílio, não serão puníveis se o crime não chegar a ser, pelo menos, tentado. Não se punirá o partícipe que instigou, auxiliou, ajustou, determinou, se seu concorrente nem chegou a iniciar a execução do procedimento típico. Não poderia ser diferente, pois o Direito Penal somente pune os fatos típicos consumados – realizados na integridade dos tipos – e a tentativa de sua realização, que tem como elemento indispensável o início de execução. O dispositivo ressalva a hipótese de que uma das formas de participação mencionadas integre a estrutura de outro tipo. Assim, por exemplo, os tipos dos arts. 227, 228 e 248 do Código Penal, cujo núcleo é a ação de “induzir”. Nesses casos, não há participação em delito de outrem, mas fato típico autônomo.

8.12 CONFLITO APARENTE DE NORMAS Algumas vezes, a um mesmo fato concreto, natural, da vida, parecem ajustar-se duas normas diferentes, dois tipos legais de crime. É óbvio que tal não pode ocorrer, pois para um fato haverá sempre uma única norma reguladora, e o conflito é apenas aparente. Haverá conflito aparente quando houver um só fato e aparentemente duas normas a ele se ajustando. Para resolver tais conflitos, a doutrina elaborou três princípios.

20

Direito penal: parte especial. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 2, p. 98.


70 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.12.1

Princípio da especialidade

Existem normas penais incriminadoras que guardam, umas com as outras, uma relação de gênero para espécie, de especialidade. Uma norma é genérica, as outras são, em relação a ela, específicas. Uma norma é especial em relação a outra, geral, quando contiver, em sua descrição, todos os elementos objetivos, normativos, subjetivos, da norma geral e mais alguns, objetivos, normativos ou subjetivos, que a tornam especial. Tais são os elementos especializantes. O homicídio doloso simples é um tipo geral, do qual são tipos especiais os tipos de homicídio privilegiado, os vários tipos de homicídio qualificado, e o tipo de infanticídio. No primeiro, os elementos são: “matar alguém dolosamente”, nos demais, além desses mesmos elementos, existem outros que os tornam mais específicos. Se uma mulher matar o próprio filho, durante o parto, sob a influência do estado puerperal, esse fato ajusta-se ao tipo de homicídio simples “matar alguém”; ajusta-se, ainda, ao tipo do infanticídio “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. Aparentemente, o mesmo fato se ajusta a dois tipos distintos. O princípio da especialidade manda que, quando entre as duas normas que aparentemente estão em conflito, abrangendo o mesmo fato, houver uma relação de especialidade, a norma especial afaste a incidência da norma geral. Lex specialis derrogat lex generalis. Veja-se outro exemplo: João subtraiu, para si, o veículo de Mário e, quando com ele se retirava, a vítima chegou e tentou impedi-lo ao que ele, para assegurar a posse do veículo, desferiu-lhe um tiro de revólver, matando-a. Aparentemente, esse fato ajusta-se a dois tipos legais de crime, ao do art. 121, § 2º, V, e ao do art. 157, §§ 1º e 3º, que são os seguintes: a) matar alguém para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime; b) empregar violência contra pessoa, disso resultando morte (§ 3º), logo depois de subtraída a coisa alheia móvel a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa, para si ou para terceiro (§ 1º). O primeiro é um dos tipos de homicídio qualificado, o segundo é o de roubo seguido de morte, chamado latrocínio.


Fato Típico - 71 O fato descrito, segundo determina o princípio da especialidade, ajusta-se ao segundo dos tipos, porque este é especial em relação ao primeiro. Tem, em sua descrição legal, todos os elementos do primeiro (matar alguém, para assegurar a vantagem de crime), com um elemento especializante a mais: ser de furto o crime cuja vantagem se quer assegurar. Será homicídio qualificado toda vez que o sujeito matar outrem para assegurar a vantagem de outro crime, qualquer outro crime. Incidirá o tipo do roubo seguido de morte, toda vez que o sujeito matar alguém para assegurar a vantagem de um crime de furto. O primeiro tipo é genérico, em relação ao segundo, que só se aplica quando se tratar da morte de outrem para assegurar vantagem de uma subtração de coisa alheia móvel. O princípio da especialidade, pois, é o que manda aplicar a norma especial, que tem o poder de afastar a incidência da norma geral.

8.12.2

Princípio da subsidiariedade

Em outros casos, a relação existente entre duas normas penais incriminadoras não seria de gênero para espécie, mas de subsidiariedade. Uma norma seria subsidiária da outra, primária, quando descrevesse grau de violação do bem jurídico de menor gravidade que a descrita na norma primária, principal. A subsidiariedade chega a ser, em alguns casos, explícita, como no tipo do art. 132 do Código Penal: “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena – detenção, de 3 meses a 1 ano, se o fato não constitui crime mais grave.” Essa norma é subsidiária em relação a várias outras, pois descreve violação menos grave dos bens jurídicos: vida e saúde, que podem ser atacados de formas mais graves – tentativa de homicídio e abandono de incapaz (art. 133), por exemplo. Noutras situações, a subsidiariedade seria implícita, com um tipo constituindo uma circunstância de outro, como ocorre com o tipo do art. 147, de ameaça, que é subsidiário do tipo do art. 146, de constrangimento ilegal. Diante do aparente conflito, o intérprete deve analisar o fato em sua totalidade, para verificar qual dos tipos incidirá. Se a conduta tiver violado no maior grau o bem jurídico, é evidente que a norma primária é que vai ajustar-se ao tipo. Se o tiver ofendido mais levemente, incidirá a norma subsidiária.


72 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.12.3

Princípio da absorção ou da consunção

A terceira hipótese é a existência de normas que guardam entre si relação de conteúdo a continente, de parte a todo, de meio a fim, de fração a inteiro, ou seja, um tipo é parte integrante de outro, ou meio para sua realização. Um tipo é fração do outro, que é o inteiro. Um tipo está contido no outro. Se isso acontece, não se irá punir o agente por dois fatos, mas apenas ao fato continente, ao fato-fim, ao fato todo. Assim, o tipo de homicídio doloso simples contém a tentativa de homicídio, como fase normal ou conduta anterior de sua realização, contendo, ainda, a lesão corporal, e o tipo de disparo de arma de fogo, e, além dele, pode conter tipo de porte ilegal de arma de fogo. O tipo de furto em casa habitada contém a violação do domicílio. Por esse princípio, o tipo-fim, continente, todo, absorve o tipo-meio, o conteúdo, o tipo-parte. O furto absorve a violação do domicílio, o homicídio absorve a tentativa, a lesão corporal e o porte ilegal de arma. O agente responderá por apenas um crime. Se Marcos falsifica a cédula de identidade de Geraldo para, exclusivamente, com ela, apresentar-se ao notário público e vender a única propriedade da vítima a terceira pessoa, obtendo, com isso, vantagem ilícita, terá realizado o tipo do art. 297, Código Penal, “falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro”, em seguida o do art. 304, Código Penal, “fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302” e, finalmente, o tipo do art. 171, estelionato, Código Penal: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.” Responderá pelos três crimes? Óbvio que não, pois a falsificação e o uso do documento falso foram meios necessários para a realização do tipo-fim, o do estelionato que, por isso, absorve os demais. Se Marcos, todavia, falsificar um documento público para usá-lo para a realização de mais de uma fraude, para cometer outros crimes, é óbvio que a falsificação não será absorvida pelo primeiro dos crimes-fim. Nesse caso, serão dois ou mais crimes cometidos, e cada crime-fim absorverá o uso. A cada crime novo, apenas o uso será absorvido, permanecendo íntegro e autônomo o crime de falsificação. Marcos


Fato Típico - 73 responderá por uma falsificação, e tantos quantos estelionatos vier a praticar com o mesmo documento falso. O Superior Tribunal de Justiça, a propósito, formulou a Súmula 17, assim: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.”

8.12.4

Observação importante

DAMÁSIO E. DE JESUS, após dizer que o tipo do constrangimento ilegal é subsidiário do tipo de estupro, discorda da opinião de ANTOLISEI de que o princípio da subsidiariedade, por conduzir aos mesmos resultados da regra da especialidade, deve considerar-se supérfluo, afirmando que “na especialidade os fatos descritos pelas normas genérica e especial estão entre si numa relação de gênero e espécie, o que não ocorre com a relação de subsidiariedade”21. Parece, a propósito, primeiramente, que entre o tipo do constrangimento ilegal e o de estupro a relação é de gênero para espécie: a) art. 146: “constranger alguém”, art. 213: “constranger mulher”. O tipo de estupro na primeira ação contém um primeiro elemento especializante: o sujeito passivo deve ser mulher; b) art. 146: “mediante violência ou grave ameaça” – art. 213: “mediante violência ou grave ameaça”; c) art. 146: “a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda”; art. 213: “à conjunção carnal”, e eis aqui o segundo elemento especializante. No constrangimento ilegal, a norma proíbe seja alguém constrangido a qualquer comportamento não proibido ou que a lei não obrigue, e no estupro, proíbe o constrangimento a um desses comportamentos a que a pessoa não está obrigada: a conjunção carnal. Parece evidente, pois, que o estupro é um tipo especial em relação ao constrangimento ilegal, como, aliás, se poderia entender que a tentativa de homicídio é especial em relação ao tipo do art. 132, de perigo para a vida ou saúde de outrem. Este, descrevendo qualquer situação de perigo, um perigo genérico, aquela, a tentativa, uma situação típica por adequação indireta, como já foi visto, em que o perigo é específico,

21

Direito penal: parte geral. Op. cit. p. 98.


74 – Direito Penal – Ney Moura Teles perigo de que a vida pereça, em face da gravidade da lesão e da direção final da vontade. O princípio da subsidiariedade, por isso, é mesmo supérfluo, bastando, para a solução dos conflitos, o princípio da especialidade e o da absorção. Uma última observação a respeito do conflito aparente de normas. Os doutrinadores falam de um quarto princípio, o da alternatividade, que buscaria resolver conflito interno de um mesmo tipo. O tipo do art. 33 da Lei nº 11.343 /06 descreve: “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar Se o agente produz e vende, estaria realizando duas vezes o mesmo tipo legal de crime? Qual dos núcleos se aplicaria? Aqui, é preciso concordar com a lição de DAMÁSIO de que não há conflito, pois que não há duas, mas uma só norma, um só preceito primário. Para haver conflito de normas, são indispensáveis unidade de fato e pluralidade de normas. Aqui, pode haver o contrário, pluralidade de fatos e unidade de preceitos. Há um tipo de ação múltipla, e o agente, mesmo realizando duas ações, estará violando a norma apenas uma vez. Não há, pois, conflito de normas.

8.13 CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA DOS TIPOS DE CRIMES Os maiores doutrinadores, dentre eles JOSÉ FREDERICO MARQUES a DAMÁSIO E. DE

JESUS,

apresentam, com base em seus estudos, várias classificações para os tipos

legais de crimes, conforme sejam seus elementos integrantes, sua estrutura, seu conteúdo, enfim, cada qual com base em determinado critério científico. Cuida-se aqui das classificações que parecem de maior relevância para o estudioso do Direito Penal.

8.13.1

Crimes materiais, formais e de mera conduta

Quando se toma como critério classificador o resultado, enquanto modificação do mundo externo causada pela conduta, segundo a teoria naturalística, verifica-se que


Fato Típico - 75 os tipos serão materiais, formais ou de mera conduta. Material ou crime de resultado é o crime cujo tipo legal de crime contém a descrição de uma conduta e de um resultado, e que somente se consuma com a produção do resultado. Homicídio, lesão corporal, aborto, furto, roubo, estelionato são todos crimes materiais, pois que os tipos descrevem condutas, resultados e exigem, para sua consumação, que o resultado seja produzido. Sem o resultado, remanesce apenas a tentativa. Formal é o crime cujo tipo descreve uma conduta, menciona um resultado, mas não exige que este ocorra para sua consumação. São chamados de crimes de consumação antecipada ou de resultado cortado. O tipo do art. 158, de extorsão, é o mais perfeito exemplo de um crime formal: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa”. Como se vê, o tipo descreve uma conduta, e menciona a produção de um resultado: a obtenção de uma vantagem econômica indevida, mas, para a consumação desse crime, não é necessária a produção do resultado, não é necessário que o agente consiga obter a vantagem, bastando o constrangimento da vítima. Tal crime se consuma no momento em que a vítima faz, tolera que se faça ou deixa de fazer alguma coisa. De mera conduta ou de mera atividade são os crimes cujos tipos descrevem pura e simplesmente um comportamento, uma conduta, sem qualquer menção a qualquer conseqüência, qualquer resultado. Consumam-se tais crimes com o simples comportamento do sujeito, como na violação do domicílio (art. 150), no crime de desobediência (art. 330), no de infração de medida sanitária preventiva (art. 268), e na maior parte das contravenções penais.

8.13.2

Crimes simples, privilegiados e qualificados

Classificam-se os crimes em simples, privilegiados e qualificados, em razão da gravidade da lesão causada ao mesmo bem jurídico. Simples é o tipo básico, fundamental, do qual derivam os outros dois, o qualificado, mais grave, e o privilegiado, menos grave. Há, como tipo básico, o do homicídio doloso simples, do caput do art. 121, cuja descrição é simplesmente “matar alguém”, sem qualquer outra qualificação no sentido


76 – Direito Penal – Ney Moura Teles de considerar o fato nem mais, nem menos grave. Derivados dele há três tipos de homicídio doloso privilegiado, que se encontram descritos no § 1º do art. 121: a) cometido por motivo de relevante valor social; b) cometido por motivo de relevante valor moral; c) cometido sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Os

tipos

privilegiados,

derivados

do

tipo

simples,

contêm

elementos

especializantes que tornam o fato merecedor de menor reprovação, por constituírem fatos menos graves que o fato básico. São circunstâncias que tornam o fato menos grave, ainda que o resultado não se altere. Dizem respeito a circunstâncias de natureza subjetiva que levam a uma menor ou mais branda punição. No caso do homicídio, a pena do tipo básico é diminuída de 1/6 até 1/3. Já os tipos qualificados são, exatamente, o oposto, derivando do tipo básico, especializam-se por conterem circunstâncias, objetivas ou subjetivas, que fazem aumentar o grau de reprovação do fato. Derivam do homicídio doloso simples vários tipos de homicídio qualificado, descritos no § 2º do art. 121, cometidos: a) mediante paga, promessa de recompensa, por outro motivo torpe; por motivo fútil; b) com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; c) para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime. Os tipos qualificados exigem maior reprovação, maior reprimenda penal, em razão das circunstâncias especializantes que os tornam mais graves, seja pela motivação, seja pela forma de execução, seja pela conexão finalística com que age o sujeito. Há, ainda, derivados dos tipos simples, básicos, os qualificados pelo resultado, dos quais já se falou anteriormente.

8.13.3

Crimes comuns, especiais, próprios e de mão própria

Crimes comuns são os definidos no Direito Penal comum, que é o aplicado pela


Fato Típico - 77 justiça comum, e crimes especiais, os descritos na legislação penal especial – os crimes militares, os crimes de responsabilidade, os crimes eleitorais. Diz-se, ainda, comum o crime praticado por qualquer pessoa, e próprio o praticado por pessoa que tenha uma condição ou qualidade pessoal própria, como o funcionário público. De mão própria o crime que só pode ser cometido pelo sujeito, pessoalmente, como no caso do delito tipificado no art. 342 do Código Penal: “Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, policial ou administrativo, ou sem juízo arbitral.” Tal fato típico só pode ser cometido pela testemunha, ou pelo perito, ou pelo contador, ou pelo tradutor, ou pelo intérprete. Estes não podem cometê-lo por meio de interposta pessoa; por isso, são chamados crimes de mão própria, porque por outra mão não se pode fazer o que se faria.

8.13.4

Crimes políticos e de responsabilidade

São chamados crimes políticos os que atingem a segurança, interna ou externa, ou o ordenamento político do país, ou ainda os que tenham motivação de natureza política. Crimes de responsabilidade são os praticados pelo Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, pelo Procurador-Geral da República, pelos Governadores de Estados e do Distrito Federal e seus Secretários, Prefeitos e Vereadores, definidos em leis especiais, e dizem respeito a infrações político-administrativas desses sujeitos.

8.13.5

Crimes de dano, de perigo e de opinião

Crime de dano é o que se consuma com a produção de um resultado, que é a modificação do mundo externo causada pela conduta, como ocorre no homicídio, na lesão corporal, no roubo, no furto, no estelionato. Crime de perigo é o que se consuma com a existência da probabilidade da ocorrência de um resultado naturalístico. É o que ocorre nos delitos tipificados nos arts. 130, de perigo de contágio venéreo, 131, 132 etc. Crime de opinião é o que consiste no abuso da liberdade de expressão do


78 – Direito Penal – Ney Moura Teles pensamento, como a calúnia, a injúria, a difamação, cometidos com o uso da palavra, do gesto, com instrumento de comunicação da expressão do pensamento.

8.13.6

Crimes instantâneos, permanentes e instantâneos de

efeitos permanentes Crime Instantâneo é o que se consuma em determinado instante, num único momento, não havendo continuidade temporal. Quando alguém profere calúnia contra outrem, mediante o uso de uma única frase, atribuindo-lhe a prática de um fato definido como crime, tal crime é instantâneo, assim como o é aquele homicídio em que, disparando o tiro e alvejando a vítima, esta morre imediatamente. O homicídio foi instantâneo. O Crime Permanente é aquele cujo resultado continua no tempo, com a prolongação, no tempo, de seu momento de consumação. É o que acontece no tipo do seqüestro ou cárcere privado, definido no art. 148, “privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”. Seu momento consumativo perpetua-se, é permanente. Crime Instantâneo de Efeitos Permanentes é o que, após consumado, tem suas conseqüências perpetuadas. Na verdade, a consumação ocorreu, mas continua produzindo suas conseqüências, como o homicídio, o furto, o roubo.

8.13.7

Crimes complexos

Diz-se complexo o crime cuja descrição é formada por dois ou mais tipos, seja com a junção de dois tipos que formam um terceiro, seja com um tipo que integra o outro como circunstância qualificadora. O tipo definido no art. 159, Código Penal, “seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate”, é a junção do tipo do art. 158, “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa”, com o tipo do art. 148, “privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”.

8.13.8

Crimes hediondos

A Constituição de 1988 determinou ao legislador ordinário que definisse e


Fato Típico - 79 considerasse inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia os crimes hediondos, equiparando-os à prática da tortura, ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e ao terrorismo. Para cumprir o mandamento constitucional, o Congresso Nacional decretou e o Presidente da República sancionou a Lei nº 8.072, em 25-7-1990, e depois a Lei nº 8.930, em 6-9-1994, as quais consideram hediondos os seguintes crimes e suas tentativas: “homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V); latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º); extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º); estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), e os tipos de genocídio definidos nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º-10-56”. O legislador brasileiro, ao cumprir o mandamento constitucional, talvez pela pressa e diante de fortes pressões – encontrava-se o Congresso Nacional sob pressão da mídia eletrônica, na ânsia de atender aos reclames da camada mais rica da população, que assistia ao seqüestro, para fins de extorsão, de alguns de seus mais importantes representantes –, preferiu selecionar alguns tipos já definidos em lei vigente, e rotulálos de hediondos, em vez de apresentar uma noção explícita do que seria a hediondez que caracterizaria tais crimes. Hediondo, portanto, segundo a lei, não é, necessariamente, o crime sórdido, abjeto, repugnante, asqueroso, mas todo e qualquer crime relacionado na lei, ainda que não seja hediondo no sentido verdadeiro dessa expressão. Por exemplo, se alguém cometer uma lesão corporal de natureza grave, ou gravíssima – extirpando um membro da vítima – ou um aborto, sem consentimento da gestante, sordidamente, provocando sofrimento indizível na vítima, por motivo repugnante, de modo horroroso, com depravação, não cometerá crime hediondo. Se o indivíduo cometer, todavia, um homicídio à traição, sem motivo fútil, nem torpe, mas por um motivo até compreensível, só pela traição, terá cometido um crime hediondo. Andou muito mal o legislador brasileiro, ao elaborar, apressadamente, sem discussão prévia, uma lei cujas conseqüências são tão graves, e que impõe graves restrições aos direitos e garantias individuais dos acusados da prática de crime, bem assim aos por eles condenados.


80 – Direito Penal – Ney Moura Teles

8.13.9

Crime organizado

LUIZ FLÁVIO GOMES, comentando a Lei nº 9.034, de 3-5-1995, que “dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”, entende que a lei definiu a “organização criminosa” como forma delituosa autônoma, criando uma nova tipologia, que dá um conteúdo mínimo para os tipos de crime organizado – o tipo do art. 288, Código Penal – e deixando para o intérprete, o juiz, a tarefa de realizar a complementação conceitual. Para ele, qualquer tipo, de furto, roubo, homicídio, estelionato etc., pode ser considerado organizado, desde que sejam resultantes de atividades de uma “organização criminosa”, dizendo, ainda, que “há, destarte, o crime organizado por natureza (que consiste na associação de quatro ou mais pessoas, de modo estável e permanente, para cometer crimes, de modo organizado, isto é, sofisticado – o plus caracterizador da ‘organização’ deve ser buscado pelo aplicador da lei na realidade criminológica – (...), assim como o crime organizado por extensão (que é o decorrente ou resultante de ação da organização criminosa)”22. Apesar das colocações do jurista paulista, o certo é que a Lei nº 9.034/95 não veio nem quis definir o crime organizado, mas apenas buscar a regulação dos meios de prova e procedimentos de investigação acerca de crimes resultantes de ações de quadrilha ou bando, como claramente está disposto em seu art. 1º: “Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando.” A utilização reiterada, nos arts. 2º e 4º a 10, da citada lei, da expressão organizações criminosas, desacompanhada de qualquer conceituação, não pode ser interpretada como criação de novos tipos de crime, sob pena de violação do princípio da legalidade. Se é claro que o princípio convive com a existência de tipos abertos, estes, contudo, somente são construídos quando houver extrema necessidade de, para a proteção dos bens jurídicos, deixar certa margem de liberdade para o juiz cerrá-los, completando a vontade da lei. Aliás, mesmo os tipos abertos – como os culposos – para serem cerrados, fechados, precisam de uma norma geral clara e definida, como a do art. 18, II, do Código Penal. O tipo aberto exige chave precisa para fechá-lo.

22

GOMES, Luis Flávio; CERVINI, Raúl. Crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 77.


Fato Típico - 81 Só haveria a criação de tipos abertos de crimes organizados – propriamente ditos ou por extensão – se a lei contivesse uma regra geral para que o juiz os fechasse. Além disso, para alcançar as atividades de organizações criminosas, a lei não necessitaria construir tipos abertos e, se fosse essa sua intenção, não teria dito, no art. 1º, que sua finalidade é tratar de meios de prova e de procedimentos investigatórios sobre crimes resultantes de ações de quadrilha ou bando. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, infelizmente, ainda não existe a figura do crime organizado.

8.13.10 Crimes de menor e de médio potencial ofensivo Atendendo ao mandamento do art. 98, I, da Constituição Federal, a Lei nº 9.099, de 26-9-1995, em seu art. 61, definiu os crimes de menor potencial ofensivo aqueles “a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”. A mesma lei, no art. 89, instituiu, no ordenamento jurídico brasileiro, a suspensão condicional do processo, para os crimes cuja pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano. Com a vigência da Lei nº 10.259, de 12-7-2001, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, o conceito de crime de menor potencial ofensivo foi ampliado, para alcançar os crimes punidos com pena máxima igual ou inferior a dois anos (art. 2º, parágrafo único). É lei posterior mais benéfica, lex mitior, que deverá aplicar-se a todos os casos, não apenas aos de competência da Justiça Federal. Com base na lei, podem-se definir os crimes de menor potencial ofensivo como aqueles cuja pena máxima cominada não seja superior a um ano, e crimes de médio potencial ofensivo como aqueles cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano, excluídos os de menor potencial ofensivo.


9 ATIPICIDADE

___________________________ 9.1

ATIPICIDADE Se tipicidade é a relação de adequação perfeita, exata, total, entre o fato da vida e o

tipo legal de crime, atipicidade é exatamente a falta, a ausência dessa relação de adequação completa, fiel, absoluta entre o fato e o tipo. Alguns doutrinadores mencionam uma atipicidade absoluta e outra específica. A atipicidade é absoluta quando o fato, à toda evidência, não for típico, como, por exemplo: o exercer o meretrício ou o praticar o incesto, uma vez que tais fatos não estão tipificados, descritos, em nenhuma lei penal. Não são fatos proibidos por nenhuma norma penal incriminadora. Então, o exercício da prostituição não é fato típico e essa atipicidade é absoluta. Se, porventura, o sujeito corrompe uma pessoa de 19 anos, e pratica com ela um ato de libidinagem, tal fato é atípico porque o tipo do art. 218 do Código Penal é claro: “Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo.” Para que o fato concreto fosse típico, era indispensável que a pessoa corrompida tivesse menos de 18 e mais de 14 anos. Conquanto tenha mais, faltou esse elemento objetivo, a idade do sujeito passivo. Essa tipicidade é a específica. Ora, a atipicidade, absoluta ou específica, é uma só, e consiste na ausência de correspondência, na falta do ajustamento, da adequação entre o fato natural e o modelo de conduta proibida: o tipo legal de crime. Atípico o fato concreto, não há crime, não interessa ao Direito Penal. Em algumas hipóteses, a atipicidade do fato decorre da incidência de princípios gerais de direito.


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles São o Princípio da Adequação Social e o Princípio da Insignificância. O Erro de Tipo é outra situação em que, por faltar consciência do fato e vontade de realizá-lo, a tipicidade altera-se ou não existe.

9.2

PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL Certos fatos naturais, aparentemente, ajustam-se a tipos legais de crime. Ana

furou a orelha de sua filha, para nela colocar um brinco. Maria, cabeleireira, cortou os cabelos de Sandra, sua cliente. Joana, manicura, aparou as unhas de Alfredo, seu freguês. Todos esses fatos, aparentemente, formalmente, ajustam-se ao tipo do art. 129 do Código Penal: “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. Esses outros igualmente se ajustam ao mesmo tipo de lesão corporal: Sérgio, médico, fez uma incisão no abdome de Arnaldo, a fim de extrair um projétil de arma de fogo. Adilson Maguila Rodrigues, no ringue, desferiu violento golpe com seus punhos cerrados, contra o rosto de Evander Holyfield, causando-lhe lesão no supercílio esquerdo. Jorge aplicou um tapa nas nádegas de Jorge Jr., seu filho, punindo-o por um comportamento indevido. Durante a guerra, o soldado da nação A matou o soldado da nação B. Esse fato formalmente se ajusta a algum dos tipos de homicídio. Todas essas situações, do ponto de vista externo, formal, ajustam-se a tipos legais de crime; todavia, à toda evidência, não podem constituir nenhum ilícito penal. Antigamente, os doutrinadores consideravam que, em sua quase totalidade, tais fatos eram típicos, mas seriam lícitos, justificados por uma norma penal permissiva, daquelas que permitem a prática do fato. Assim, o pai corrigindo o filho, o médico fazendo a intervenção cirúrgica, a cabeleireira, a manicure e o boxeador estariam cometendo fatos no exercício regular de direito. O soldado, na guerra, estaria cumprindo estritamente um dever legal. Os fatos seriam típicos, segundo a doutrina tradicional, mas, justificados. Se tais fatos fossem típicos, seria necessário que as autoridades policiais, deles tomando conhecimento, instaurassem inquéritos policiais, destinados à apuração de sua materialidade e da autoria, remetendo-os ao Poder Judiciário. Sim, porque a lei processual penal manda que o delegado de polícia, sempre que tiver notícia da prática de uma infração penal – vale dizer, um fato definido como crime ou contravenção penal, um fato típico –, deve adotar uma série de providências, inclusive instaurar o competente procedimento. E o proíbe de arquivar o inquérito policial.


Atipicidade- 3 Dessa forma, a autoridade policial teria que trabalhar na apuração daqueles fatos, remeter os inquéritos ao juiz, que os mandaria ao promotor que, verificando então terem sido praticados ao amparo de uma norma permissiva, pediria ao juiz o arquivamento do inquérito. Haveria, assim, enorme, desnecessária, abusiva e absurda atividade policial. Não é, felizmente, verdade que tais fatos sejam típicos. Só na aparência eles o são, pois, naquelas situações, incide o Princípio da Adequação Social, construído para HANS WELZEL, cujo enunciado pode ser assim formulado: se o tipo delitivo é um modelo de conduta proibida, não é possível interpretá-lo em certas situações aparentes, como se estivessem também alcançando condutas socialmente aceitas e adequadas1. Não poderia ser diferente; o fato que é adequado e aceito socialmente não pode ser definido como crime, ainda que na aparência ajuste-se ao tipo. Até porque só incide a norma do tipo, quando houver lesão a bem jurídico, e, quando o fato é adequado e aceito, não há qualquer lesão. Por outro lado, não se pode esquecer que o fato deve ser praticado nos limites da aceitação e da adequação social. Se o pai, em vez de aplicar uma simples palmada no filho, agride-o com violência, com golpes, socos e pontapés, estará cometendo fato típico. O mesmo se diga do cirurgião que erra ao fazer a incisão, e do esportista que golpeia o adversário violando regras do esporte – batendo abaixo da linha da cintura, no boxe, ou após o final do round. O princípio não visa, nem poderia, à revogação de norma penal incriminadora, como alguns podem pensar, mas a excluir a tipicidade de fatos formalmente típicos e substancialmente adequados à vida em sociedade, por esta aceitos.

9.3

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA Paralelamente, outro princípio incide no mesmo sentido de excluir a tipicidade

de certos fatos formalmente típicos, todavia com fundamento diverso do que inspirou o princípio da adequação social. Seu idealizador, CLAUS ROXIN, concebeu-o como complemento do princípio de HANS WELZEL, pois percebeu a insuficiência da adequação social para excluir outras espécies de lesões que, apesar de formalmente alcançadas pela norma do tipo, não interessariam, igualmente, ao Direito Penal. 1

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 131.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles Aqui, cuida-se das lesões insignificantes, aquelas que ao Direito Penal, por sua natureza limitada, por seus objetivos tutelares, não interessa proibir, dada sua insignificante lesividade. A subtração de um pedaço de giz, pelo aluno ou pelo professor, que o leva para o filho brincar com ele, apesar de, formalmente, ajustar-se ao tipo de furto, do art. 155, não está alcançada pela proibição da norma contida na lei, porque “o Direito Penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas”2. Quando João diz para Antônio: “és um bobo”, tal comportamento não pode ser considerado uma injúria, como definida no art. 140 do Código Penal, pois que a honra de Antonio não pode ser atingida por uma “ofensa” tão irrelevante. Para que se configure o tipo de lesão corporal, não bastam simples contusões, das que não deixam vestígios exteriorizados, mas que resultam em apenas dores pequenas e momentâneas. Tais lesões são insignificantes. Nos tipos praticados exclusivamente contra o patrimônio, só haverá significância e, portanto, tipicidade, quando produzirem uma repercussão razoável no patrimônio da vítima, daí por que não se pode confundir insignificância com pequeno valor. A norma penal incriminadora – cuja razão de ser é a proteção dos bens jurídicos mais importantes das lesões mais graves – não poderia, por isso mesmo, alcançar lesões insignificantes, que, por sua dimensão, não só não são graves, como também não alcançam o mínimo da significação exigida para reclamar a intervenção da mais severa das sanções jurídicas. Chamar o Direito Penal a intervir em situações como as tais é o mesmo que pretender matar uma barata usando uma metralhadora. Para as lesões insignificantes, o titular do bem atingido pode valer-se dos outros ramos do direito para satisfazer a sua pretensão de reparar o dano causado. Não se deve confundir o princípio da insignificância, também denominado de princípio da bagatela, que exclui a tipicidade do fato formalmente típico, ajustado ao tipo, quando a lesão causada for insignificante, de escassa expressão, com a locução criminalidade de bagatela, ultimamente muito utilizada, que quer referir-se àquelas infrações penais de menor potencial ofensivo – locução constante da Constituição

2

TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 133.


Atipicidade- 5 Federal, no art. 98, I – e que foram recentemente definidas na Lei nº 9.099/95 como todas as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a um ano. O princípio da bagatela exclui a tipicidade do fato, aplicando-se a todo e qualquer tipo legal de crime, ao passo que criminalidade de bagatela quer referir-se aos crimes de menor potencial ofensivo, crimes menos graves, crimes menores. Quando incide o princípio da bagatela, não há crime; na criminalidade de bagatela, o crime existe, todavia, o tratamento processual e penal é diverso, com a possibilidade da suspensão condicional do processo, transação com a vítima, reparação do dano, aplicação de pena não privativa de liberdade, e outros institutos de natureza processual.

9.4

ERRO DE TIPO Procuram filósofos, cientistas sociais e juristas distinguir erro de ignorância.

Erro seria a idéia falsa em lugar da verdadeira e ignorância, a falta de idéia sobre qualquer assunto. ALCIDES MUNHOZ NETTO ensina: “Ao direito, contudo, não interessam a ignorância e o erro em seu estado puro, como meras situações cognoscitivas, mas como estados intelectivos que se refletem na vontade da ação. Bem diverso é o erro do pensador, que permanece no campo da cogitatio, do erro do homem que age e traduz o seu defeito intelectivo na praxis. Pode-se falar nestas hipóteses de uma ignorância e de um erro ativo. Isto posto, erro e ignorância delineiam-se como uma inexata relação da consciência com a realidade objetiva. Em substância, um e outro constituem estados de desconformidade cognoscitiva. Não há, por isso mesmo, inconveniente em unificar, no terreno jurídico, os dois conceitos, dada a identidade das conseqüências que produzem: incidem sobre o processo formativo da vontade, viciando-lhe o elemento intelectivo, ao induzir o sujeito a querer coisa diversa da que teria querido, se houvesse conhecido a realidade.”3 O erro, portanto, é uma falsa apreciação da realidade, próprio do ser humano e, conquanto esteja presente na vida de todos, não podia o Direito Penal ignorar sua existência, pelo que lhe dá um tratamento especial na teoria do crime. Muitas vezes, em sua vida, em seu dia-a-dia, o homem realiza certos

3

A ignorância da antijuridicidade em matéria penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 3.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles comportamentos que violam a norma jurídica exatamente por ter apreciado a realidade de forma inexata, o que lhe vicia a consciência e, de conseqüência, a vontade. Nessas ocasiões, o homem age errando. Certa feita, durante uma caçada, ao final de uma tarde, quando o sol já se punha, Joaquim viu, a uns cem metros de distância, próximo de alguns arbustos, um vulto movendo-se e teve a certeza de que se tratava de um animal, e, de pronto, disparou sua arma de fogo contra o mesmo, acertando-lhe o corpo. Correndo para lá, deparou-se, surpreso, com o corpo morto de um homem. Evidente que Joaquim errou, pois apreciou mal a realidade, captando-a de modo diverso do que ela era. Viu um animal, onde havia um homem. De conseqüência, sua vontade formou-se com vício, pois acabou realizando algo que não faria, se não tivesse errado. Joaquim, sem querer, matou alguém. Seu erro incidiu sobre um dos elementos do tipo legal de homicídio: alguém. Queria matar um animal, mas matou um ser humano. Não era esse seu desejo, sua vontade. Joaquim não agiu dolosamente. Dolo é consciência do fato e a vontade de realizar o tipo legal de crime, ou, pelo menos, aceitar o resultado previsto. Ele nem tinha consciência de que, com sua conduta, causaria a morte de um homem – o resultado – nem, é lógico, tinha vontade de, com seu comportamento, produzir o resultado que causou – a morte de um homem. Sem consciência e sem vontade, não há dolo, isso já foi explicado. Se é assim, qual é o tratamento que o Direito Penal dispensa a situações como essa, em que o sujeito erra sobre elemento do tipo legal de crime? Exatamente este: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei” (art. 20, CP). O erro de tipo é, portanto, o que incide sobre elemento do tipo legal de crime, podendo ser evitável ou inevitável, como se passa a demonstrar.

9.4.1 Erro de tipo evitável O erro de tipo é evitável quando, nas circunstâncias em que o sujeito se encontrava, era-lhe possível evitá-lo, com a adoção das cautelas exigidas do homem comum, normalmente prudente. É só pensar no exemplo do caçador. Estando ele numa área povoada, onde era previsível a presença de pessoas transitando, deveria – ao avistar um vulto, a uns 100 metros de distância, ao fim da tarde, quando a luz do sol já se ia, dificultando sua


Atipicidade- 7 visibilidade – certificar-se de que o que via era, efetivamente, um animal e não uma pessoa. O dever geral de cuidado objetivo impunha-lhe algumas atitudes concretas para alcançar um grau de certeza, aproximando-se mais do vulto, firmando melhor sua visão, procurando um ângulo onde a luminosidade lhe permitisse verificar detalhes do corpo do vulto, enfim, chegar ao máximo grau possível de certeza sobre ser o alvo um animal. Se o caçador não teve nenhum desses ou de outros cuidados, agiu com negligência e – apesar de não ter desejado alcançar aquele resultado, nem tê-lo aceito – poderia têlo evitado, caso tivesse sido cauteloso. Se é óbvio que não agiu dolosamente, igualmente claro é que agiu culposamente. Por isso, o agente, laborando em erro evitável, responderá pelo tipo culposo, se previsto em lei. No caso do caçador, tendo matado a pessoa, sem dolo, mas culposamente, responderá pelo homicídio culposo do art. 121, § 3º do Código Penal, porque seu erro poderia ter sido evitado. Em algumas situações, o agente erra sobre um elemento do tipo, por negligência, o erro podia ter sido evitado, e, apesar disso, não responderá por infração penal. Na sala de aula, a aluna Maria subtrai para si o exemplar do Código Penal de Sílvia, pensando que é o de sua propriedade. São livros iguais, mesma capa, sem identificação que os distinga. A subtração deveu-se a um erro sobre um dos elementos do tipo legal de furto, do art. 155: ser a coisa alheia. Tal erro poderia ter sido evitado, pois, numa sala de aula, onde dezenas de alunos possuem livros idênticos, é provável que, ao fim da aula, na pressa de irem todos para o trabalho ou para casa, um leve o livro do outro. Sendo provável, pode ser evitado tal erro. Trata-se de um erro de tipo evitável; todavia, Maria não será punida, porque não existe a previsão legal de punição do furto praticado culposamente.

9.4.2 Erro de tipo inevitável O erro inevitável é aquele no qual, nas circunstâncias em que se encontrava o agente, qualquer pessoa normal também incorreria, mesmo utilizando todos os procedimentos recomendados pela cautela, mesmo com toda a atenção exigível ao comum dos homens. Na verdade, só há erro inevitável quando ausente a possibilidade de previsão do resultado. O mesmo caçador do exemplo anterior, estando agora, em outro lugar, num


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles clube de caça, numa área fechada por cercas eletrificadas, reservada apenas para sócios do clube, destinada exclusivamente a ele em determinado período, para o exercício de seu esporte preferido. Munido de sua arma, sabe que na área não existe ninguém mais a não ser ele e seus companheiros. Pois bem, estando todos juntos, avistam um vulto a distância, e, após certificar-se o caçador de que todos os caçadores presentes estão fora da linha de tiro, dispara e acerta uma pessoa que, inadvertidamente, ignorando todos os avisos, todas as normas, e conseguindo ludibriar toda a vigilância, conseguira penetrar no clube. Evidente que o caçador errou sobre um elemento do tipo legal de homicídio, e, nas circunstâncias mencionadas, esse é um erro invencível, inevitável, em que qualquer pessoa incorreria, pois que era impossível prever a invasão daquela área do clube pela vítima, não tendo o agente agido com negligência. Esse erro exclui o dolo e, também, a culpa. Não há tipicidade do fato. Não houve homicídio, mas uma fatalidade, um acidente, um caso fortuito. Nesse exemplo, não houve consciência, não houve vontade, não houve previsibilidade; logo, não houve nem dolo, nem culpa. Tal fato é atípico. Em conclusão, o erro de tipo evitável exclui o dolo, o inevitável exclui o dolo e a culpa, stricto sensu.

9.4.3 Erro sobre a pessoa O erro que incide sobre a pessoa contra a qual se dirige a conduta do agente não lhe retira a consciência sobre o fato, tratando-se, pois, de um erro meramente acidental, que, por essa razão, não afeta o dolo. Nessa modalidade de erro, o sujeito queria voltar sua conduta contra João e, por falsa apreciação da realidade, atinge Antônio. O dolo é o mesmo, pois que, no tipo de homicídio, a proibição é de matar alguém, não importa se João, Antônio ou outra pessoa. No tipo de lesão corporal, a proibição é ofender a integridade corporal de outrem, qualquer que seja ele. Por isso, a norma do § 3º do art. 20, primeira parte, do Código Penal: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.” Assim, esse erro, além de não excluir a tipicidade do fato, ainda vai fazer com


Atipicidade- 9 que o agente responda pelo fato como se não tivesse errado. Se queria matar Pedro, seu pai, e acabou matando Mauro, um estranho, o agente vai responder como se tivesse matado, efetivamente, o próprio pai, com a agravante do art. 61, II, e.

9.4.4 Erro na execução e resultado diverso do pretendido O erro na execução, aberratio ictus, e o resultado diverso do pretendido, aberratio criminis, de que tratam os arts. 73 e 74 do Código Penal, serão tratados no Capítulo 17, quando da abordagem do concurso de crimes.

9.5

CONCLUSÃO A tipicidade do fato não pode ser uma simples aparência, mas deve ser

completa, perfeita, fiel, acabada e exata. Conhecida a primeira nota característica do crime, a tipicidade – relação de adequação entre o fato concreto e o tipo legal de crime –, é preciso examinar se o fato se volta contra o ordenamento jurídico; analisar a segunda característica do crime, que é a ilicitude.


10 ILICITUDE

___________________________ 10.1 CONCEITO A segunda característica do crime é denominada, pela maior parte de nossos doutrinadores, de antijuridicidade. É preferível denominá-la, com ASSIS TOLEDO, ilicitude, expressão mais correta, para refletir a relação de antagonismo entre o fato típico e todo o ordenamento jurídico, como queria HANS WELZEL. Utilizar a expressão antijuridicidade é inadmissível nos tempos modernos, pelo menos entre os estudiosos do Direito, uma vez que não se pode imaginar um fato ser, ao mesmo tempo, jurídico e antijurídico1. É de toda obviedade: um crime é, sempre, um fato capaz de alterar ou modificar as relações entre as pessoas, criando direitos e obrigações. É um fato do qual resultam conseqüências de natureza jurídica para certo número de pessoas. É, de conseqüência, um fato da vida que tem relevância e interesse para o Direito. É, assim dizer, um fato jurídico. A expressão antijuridicidade remete à prévia locução: antijurídico. Anti é prefixo que significa o contrário, contra, oposto, logo, antijurídico só poderia querer significar o fato “contrário ou contra o jurídico”, ou “oposto ao jurídico”. O crime é um fato contra o direito e não contra o jurídico; por isso, melhor, por mais apuradas tecnicamente, as expressões ilícito e ilicitude.

10.1.1

Ilicitude formal e ilicitude material

VON LISZT distinguia uma ilicitude formal de outra material, dizendo que seria formalmente ilícita a conduta humana que violasse a norma penal, e substancialmente ilícito o comportamento humano que ferisse o interesse social tutelado pela própria

1

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 160.


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles norma. Do ponto de vista formal, portanto, a ilicitude seria a simples contradição entre o fato realizado pelo agente e a norma penal incriminadora. No entanto, sabe-se, a norma penal está contida no tipo. Em matar alguém está contida a ordem: não matar, de sorte que contrariar a norma penal incriminadora é adequar-se ao tipo. De conseqüência, o conceito formal de ilicitude é o mesmo conceito de tipicidade, pois contrariar a norma incriminadora é adequar-se ao tipo. Em outras palavras, adequar-se à descrição da conduta proibida é contrariar a vontade da norma incriminadora. Ou então: ilicitude formal é a tipicidade. De uma óptica material, a ilicitude é a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico protegido pela norma penal. Por isso, segundo DAMÁSIO E. DE JESUS, “não existe a ilicitude formal. Existe um comportamento típico que pode ou não ser ilícito em face do juízo de valor. Em suma, a antijuridicidade é sempre material, constituindo a lesão de um interesse penalmente protegido”2. Determinado comportamento será ilícito quando for a causa da lesão a um bem jurídico, quando atingi-lo, atacá-lo, ou, pelo menos, colocá-lo em situação de perigo. Essas situações são proibidas pelo Direito, cujo fim é proteger o bem jurídico. Se ocorre lesão ou perigo de lesão, o fato é proibido, é ilícito. A ilicitude será, sempre, uma valoração acerca do caráter lesivo da conduta humana3. Será ilícito apenas o fato lesivo ou expositivo a perigo do bem jurídico. Nesse sentido, a razão está com DAMÁSIO ao afirmar que não existe a ilicitude formal. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, entretanto, entende que a distinção entre ilicitude formal e ilicitude material é perfeitamente dispensável e apresenta uma concepção unitária, afirmando que “ilicitude é a relação de antagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado”4. É dizer: ilicitude é a contradição entre um fato típico e a ordem jurídica, que lesa ou expõe a perigo o bem jurídico penalmente protegido. Esse conceito, que engloba 2

Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 310.

3

BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.

4

Op. cit. p. 163.


Ilicitude - 3 o aspecto formal e o substancial, parece, responde melhor aos interesses do estudioso do Direito, pois diz, com mais clareza, o que é a ilicitude, enquanto característica, ou nota essencial, do crime. Com efeito, quando se diz que a ilicitude é tão-somente a lesão do bem jurídico, faz-se referência à ilicitude como conceito válido para todo e qualquer dos ramos do direito, ao passo que, ao se acrescentar a relação de colidência entre o fato e a norma incriminadora, a referência será exclusivamente à ilicitude penal.

10.1.2

Ilicitude e injusto

As expressões ilicitude, ou antijuridicidade, e injusto são comumente utilizadas pelos operadores do Direito Penal, como se fossem sinônimas. É preciso, entretanto, cuidado com elas. A ilicitude é uma qualidade do fato típico, a de contrariar a ordem jurídica, lesionando um bem protegido, ou colocando-o em perigo de lesão. É um “predicado da ação, o atributo com que se qualifica uma ação para denotar que é contrária ao ordenamento jurídico”5. A expressão injusto é um substantivo utilizado para “denominar a própria ação já qualificada como6” ilícita. Em outras palavras: ilicitude é a qualidade de um fato típico ser proibido pela ordem jurídica, e injusto é o fato típico ilícito. O injusto – fato típico já considerado ilícito – contém a quantidade, que é a tipicidade, e a qualidade, que é a ilicitude. Por essa razão, diz-se que os crimes de lesão corporal e de homicídio são, igualmente, ilícitos. Um é tão ilícito quanto o outro. O homicídio não é mais nem menos proibido que a lesão corporal, nem que o aborto, nem que o estupro. São igualmente proibidos, pois constituem, todos, lesões a bens jurídicos. A qualidade de ser ilícito é a mesma para todos os crimes. Todos são, na mesma intensidade, ilícitos, proibidos, contrários ao Direito, lesivos aos bens jurídicos, ou expositivos a perigo de lesão. Por outro lado, não se pode dizer que o homicídio é tão injusto quanto o furto. Aquele é muito mais injusto que uma simples subtração de coisa alheia móvel, porque

5 CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 86. 6

Idem.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles ali a quantidade da lesão é muito maior do que no furto. No homicídio, o bem é mais importante, a lesão é mais grave do que num delito menor, contra um bem menor, o patrimônio, e com uma conduta menos grave, sem violência à pessoa. Por isso, a pena para o homicídio é maior que a pena cominada para o furto, como o é para o estupro, para a lesão corporal. Quanto maior o injusto, maior a necessidade de reprová-lo, censurá-lo, responderlhe com uma sanção mais severa.

10.1.3

Caráter objetivo da ilicitude

A ilicitude é puramente objetiva, independendo das condições pessoais do agente, de sua capacidade de responder pelo que fez. Como já se disse, e não é demais repetir, a ilicitude é resolvida num juízo de valor acerca da lesividade do bem jurídico. Houve lesão, houve perigo de lesão ao bem protegido? Se a resposta é positiva, há ilicitude. Se negativa, não há ilicitude. Se não há lesão, o fato é permitido, e não interessa ao Direito Penal, cuja missão é tutelar os bens jurídicos mais importantes, protegendo-os das lesões ou ameaças mais graves de lesões. Não importa seja o agente do fato incapaz de entender seu gesto, ou absolutamente incapaz de se autogovernar. Mesmo que seja um menor de 18 anos, seu comportamento, se lesivo de um bem jurídico, é e será ilícito, pois que a ilicitude existe por si só, não estando vinculada às qualidades ou condições pessoais do sujeito ativo do fato. De conseqüência, os incapazes do ponto de vista penal podem cometer fatos típicos e ilícitos. Sua incapacidade penal implicará outra conseqüência, adiante analisada.

10.2 EXCLUSÃO DA ILICITUDE Acontecendo um fato, e sendo ele típico, ao operador do direito é indispensável saber se o mesmo é ou não ilícito. Se for ilícito, continuará em seu estudo, para verificar se houve, efetivamente, um crime. Se, apesar de típico, não tiver causado lesão a um bem jurídico protegido pelo Direito Penal, não tiver sido ilícito, proibido pelo ordenamento jurídico, estará diante de um fato permitido, não diante de um crime.


Ilicitude - 5 Já vimos como descobrir se um fato da vida é, ou não, típico. Agora, o momento é o de verificar como se faz para saber se o fato típico é ou não ilícito. Uma das funções do tipo é ser indiciário da ilicitude, dela portador, o que significa dizer que o tipo traz, em seu interior, a ilicitude, a proibição. É de toda obviedade. No tipo matar alguém, está inserida a proibição de matar. Se alguém mata outrem, tem-se a idéia, a princípio, de que tal comportamento é proibido, é ilícito, pois, ao realizar a figura descrita no tipo, infringiu a norma proibitiva nele contida, implicitamente. A conclusão a que se chega é: toda vez que houver um fato típico, deve-se dizer: este fato é, a princípio, ilícito, proibido. Conquanto o Direito Penal não seja exclusivamente o conjunto de normas penais incriminadoras, mas contém outras normas, as permissivas justificantes – as que tornam lícitas condutas definidas como crime –, é preciso, então, verificar se o fato típico examinado foi ou não cometido numa situação que se ajuste a uma das normas penais permissivas justificantes. Se o fato tiver sido cometido ao amparo de uma dessas normas permissivas, então a ilicitude que vinha com o tipo, com a tipicidade, fica afastada, pela incidência da norma de justificação, que realiza a tarefa de afastar, do tipo, a ilicitude que ele portava. O Direito, atendendo à vontade da sociedade, em certas e especialíssimas circunstâncias, permite ao homem voltar seu comportamento contra bens que, em situações normais, são protegidos. Considera justo o ataque aos mesmos, pois, em circunstâncias de anormalidade, deixam de estar sob a proteção do Direito; por isso, excepcionalmente, podem ser atacados. Essas normas permissivas justificantes são chamadas de causas de exclusão da ilicitude, também conhecidas por causas de justificação, justificativas, excludentes, eximentes, descriminantes, ou excludentes de ilicitude, antigamente denominadas excludentes de criminalidade. Se dado fato típico tiver sido praticado numa situação em que também se amolde a uma das chamadas causas de exclusão da ilicitude, terá havido um fato típico lícito, justificado. Um fato típico lícito, ou justificado, é o que se ajusta a um tipo legal de crime, mas que, por realizar todos os pressupostos de uma norma penal permissiva justificante, e por orientar-se para esse fim, é permitido pelo Direito. É indispensável que o fato típico preencha todos os requisitos estabelecidos na norma penal permissiva justificante, para que seja justificado.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles O Código Penal contém várias normas penais que excluem a ilicitude dos fatos típicos. Na parte geral, há quatro dessas causas, e na parte especial estão inseridas outras eximentes. No âmbito deste volume, que é o da Parte Geral do Código Penal, são abordadas, exclusivamente, as causas de justificação nela inseridas, que se encontram no art. 23, assim: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.” E o que é legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal? Quais seus requisitos indispensáveis? Quando se pode afirmar que alguém age no exercício regular de um direito?

10.3 ESTADO DE NECESSIDADE 10.3.1 Breve histórico e conceito Já em Roma, havia preceitos que impediam a punição daquele que realizasse um comportamento proibido numa situação de extrema necessidade, como o do capitão do navio que, numa circunstância de grande perigo, jogava a carga ao mar. No Direito Canônico e durante a Idade Média, o estado de necessidade era reconhecido, não sendo punida a prática do chamado furto famélico – realizado para saciar a fome – e até mesmo a do canibalismo – matar o outro para alimentar-se de seu corpo. GALDINO SIQUEIRA, autor dessas notas históricas, dá notícia do caso “do capitão Thomaz Dundley e de seu imediato Edwin Stephens, julgados pelo júri de Exeter, na Inglaterra, os quais, em conseqüência do naufrágio do yacht La Mignonnette, lançados em uma pequena barca, decidiram, depois de dezoito dias de atrozes sofrimentos, matar o grumete Parker, seu companheiro, para beber-lhe o sangue e comer-lhe a carne”7. No Brasil, já o Código Criminal de 1830 considerava o agente em estado de necessidade se o fato tivesse sido realizado para evitar um mal maior, estabelecendo, como requisitos, a certeza do mal que se queria evitar, a falta absoluta de outro meio menos prejudicial e a probabilidade da eficácia do meio empregado. Era o estado de necessidade uma causa de justificação, quando o mal resultasse das forças da natureza, 7

SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1950. p. 339.


Ilicitude - 7 e, se resultante de ação humana, o estado de necessidade excluiria a culpabilidade. O Código do Império repetiu a fórmula anterior. Havendo situação de perigo para um bem jurídico, poderia alguém, com o fim de salvá-lo do perigo de lesão, voltar-se contra outro bem jurídico, destruindo-o, danificando-o, sacrificando-o. Essa é a situação de estado de necessidade. No caso dos náufragos, na barcaça, depois de 18 dias, famintos, encontravam-se os três numa situação de perigo para suas próprias vidas. A saída encontrada foi o sacrifício de uma vida, para a salvação de duas. O conceito mais simples e objetivo do estado de necessidade é o formulado por DAMÁSIO E. DE JESUS: “uma situação de perigo atual de interesses protegidos pelo Direito, em que o agente, para salvar um bem próprio ou de terceiro, não tem outro meio senão o de lesar o interesse de outrem”8. Discute-se se um Direito Penal ético deve continuar considerando o estado de necessidade uma causa de justificação, de exclusão de ilicitude. A propósito, são as seguintes as palavras de GIUSEPPE BETTIOL: “Realmente, se há um ponto de atrito entre o Direito Penal e a moral, este é fornecido precisamente pelo estado de necessidade. Afirmar que o estado de necessidade não conhece lei, pelo que se tem direito, para salvar-se a si ou a outrem, de lesar bens de terceiros, é, sob aspecto moral, uma verdadeira heresia, ao menos no que tange ao bem da vida. Um terceiro inocente não pode jamais ser sacrificado para salvar outra pessoa. O indivíduo é pessoa, isto é, valor, fim, nunca meio. A moral, por seu lado, obriga muitas vezes ao sacrifício de si próprio para salvar terceiro. Nem se pode afiançar que se trata apenas de moral heróica, já que não existe uma moral para os heróis e uma para os pusilânimes: existe tão-só a moral, uma lei que de modo cogente obriga todas as consciências indistintamente. É característica intrínseca de uma norma moral que sua observância imponha verdadeiros sacrifícios, posto que uma moral sem obrigações nem sanções pode ser o ideal de indivíduos desmiolados, que pensam apenas no proveito próprio e subordinam ao útil qualquer exigência que Deus tenha agasalhado no coração do homem.”9

8

Direito penal. Op. cit. p. 322.

9

Op. cit. p. 433.


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles As observações do grande penalista italiano são, em verdade, coerentes, não sendo muito ético justificar-se o sacrifício da vida de um inocente, ainda que para salvar a de outro. Todavia, há uma questão que se sobrepõe a esse fundo ético do Direito Penal. Quando os homens se organizaram e construíram o Estado, conferiram-lhe o poderdever de proteger os bens jurídicos dos ataques e das situações de perigo. O indivíduo organizado em sociedade sabe que seus interesses estão protegidos pelo Estado. Essa proteção do Estado, por sua vez, como é sabido, não é infalível, porque o Estado não é onisciente e onipresente. Nem sempre, portanto, pode proteger certos bens, especialmente quando eles entram em rota de colisão ou em choque com outros, instalando-se o perigo para dois ou mais deles, de modo que, ainda que o Estado estivesse presente, não poderia, fisicamente, salvar os dois bens. Basta pensar a situação da gestante cuja gravidez é de alto risco. Então, em dado momento, sua vida entra em choque com a vida do produto da concepção, de tal modo que os médicos chegam à inexorável conclusão de que a única maneira de preservar a vida da gestante é sacrificando a vida do feto, interrompendo a gravidez. Essa é uma situação que bem mostra a impossibilidade de o Estado proteger os dois bens jurídicos. Se se quiser discutir, do ponto de vista ético, deve-se chegar a uma de duas conclusões: salva-se a mãe ou salva-se o feto, porque ninguém pode admitir, em nome de uma ética absurda, que o caso deva ser deixado às mãos da natureza, ou de Deus, com o possível e bem provável sacrifício de ambos, mãe e filho. Nunca se há de olvidar que, apesar do fundo ético que o preside, no qual se inspira, o Direito Penal tem como missão essencial, como finalidade precípua, a proteção dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves. Quando numa situação em que um bem jurídico está na iminência de sofrer uma lesão, pela presença atual de um perigo, e não podendo o Direito proteger tal bem, deve permitir que seja sacrificado outro bem, de valor menor ou relativamente igual, ainda que de um inocente, desde que não haja outra saída. Deve, portanto, o estado de necessidade continuar entre as causas de exclusão da ilicitude, porque o comportamento daquele que realizar todos os seus pressupostos não será lesivo do outro bem, que, naquelas circunstâncias, perderá a proteção do Direito, que estará protegendo apenas o bem que vai ser salvo pelo agente. Em conclusão, se dois bens estiverem em perigo de lesão, um deles pode ser sacrificado se o Direito não puder salvar os dois.


Ilicitude - 9

10.3.2

Requisitos

Para que o agente possa ter seu comportamento justificado pela norma do art. 23, I, do Código Penal, deve realizar todos os pressupostos, objetivos e subjetivos, do estado de necessidade, que estão definidos no art. 24: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato, para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. § 1º. Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.” Com base nessa norma explicativa, são extraídos os requisitos dessa excludente.

10.3.2.1

Perigo atual

Perigo é um trecho da realidade, a situação concreta que antecede a lesão, que reúne as condições indispensáveis à produção do resultado, perceptíveis pelo sujeito. É o soltar-se do cão bravo e sua vinda em direção ao agente ou à terceira pessoa. É o incêndio que irrompe na mata, em direção à casa onde as crianças se encontram brincando. É a verificação, pelo médico, da altíssima probabilidade, a quase certeza da morte da gestante, se não for provocado o abortamento. É o balançar da árvore, em situação que antecede sua queda sobre diversos objetos. São situações em que o sujeito vê a indiscutível probabilidade da ocorrência do resultado. O perigo deve ser concreto, e não apenas abstrato, uma simples representação psíquica, mas uma probabilidade real. Para justificar a prática de um fato típico, é indispensável que haja um perigo atual, que ele esteja acontecendo. O perigo deve existir no momento imediatamente anterior ao instante em que o agente vai realizar a conduta. Não pode ser um perigo passado, tampouco um perigo futuro, ainda que iminente. Perigo passado não é mais perigo. O bem jurídico já terá sido lesionado. Iminente é o que, não sendo atual, está prestes a ocorrer. Para legitimar a ação do sujeito em estado de necessidade, ele só pode realizar a conduta quando o perigo se tornar atual, não lhe sendo autorizado comportar-se enquanto o perigo é, apenas, iminente. A lei foi clara, ao dizer que só justifica a excludente se o perigo for atual, diferentemente do que faz quando trata da legítima defesa – analisada a seguir – em


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles que, expressamente, permite a reação às agressões atuais ou iminentes. Interpretando sistematicamente, deve-se concluir que, se fosse intenção da lei justificar o estado de necessidade quando o perigo fosse iminente, ela expressamente o diria. E é assim que se deve interpretar. Tome-se o exemplo dos perdidos na selva, ou na cordilheira dos Andes, ou na caverna, famintos, sem víveres, enquanto o tempo passa. Em que momento estariam autorizados a sacrificar a vida de um dos semelhantes, para que os demais pudessem alimentar-se do corpo humano? Quando o perigo de morrerem por inanição torna-se atual ou quando esse perigo é, apenas, iminente? Há diferença, tênue, é verdade, mas real, concreta, perceptível, plenamente existente. Como visto anteriormente, o estado de necessidade só pode ser aceito como justificante da conduta típica, à medida que se destinar à proteção do bem jurídico, visto que, do ponto de vista ético, não se pode considerá-lo positivo. O perigo é um trecho da realidade, a situação que antecede a lesão. O ponto, ou o momento, desse trecho mais próximo da lesão é o perigo atual. O perigo iminente é o que vem antes do perigo atual. O perigo futuro é o que vem bem antes do iminente. Enquanto se vive o estágio do perigo futuro e o do perigo iminente, a possibilidade de que a lesão seja evitada, por ação externa, é muito maior do que quando se atinge o momento do perigo atual. À medida que se aproxima da lesão, a possibilidade de evitá-la é, cada vez, menor. Só é possível justificar a lesão de um bem, para salvar outro, quando se estiver no estágio mais próximo da lesão, que é o perigo atual, pois que, quando se estiver no estágio da iminência, ainda existirá probabilidade concreta de não se alcançar a atualidade do perigo. Por exemplo, nos Andes, enquanto a fome não constitui um perigo atual de morte por inanição, ainda resta uma probabilidade real, concreta, de que os salvadores cheguem com alimentos e medidas para salvar os perdidos. A ação típica será justificável quando se estiver às portas da lesão, quando o perigo de sua ocorrência for atual, presente, acontecendo, não dependendo de mais nada para se transformar na lesão. Se o perigo é apenas iminente, que não se tornou atual, concreto, não aconteceu presentemente, não é, por isso mesmo, de molde a autorizar o sacrifício de um bem. Só há estado de necessidade quando o perigo for real, efetivo, atual.


Ilicitude - 11

10.3.2.2

Qualquer direito, próprio ou de terceiro

Pode agir em estado de necessidade aquele que sacrifica um interesse, para salvar um direito próprio ou alheio, de quem quer que seja. Todos os bens jurídicos que estiverem em situação de perigo atual podem ser salvos sob o estado de necessidade: a vida, a liberdade, o patrimônio, a integridade corporal, a saúde, a família. Independentemente da vontade do titular do direito, ele poderá ser salvo por qualquer pessoa, desde que esteja em perigo atual de lesão. Há estado de necessidade próprio – em que o agente atua para salvar um bem próprio – e estado de necessidade de terceiro quando a conduta destina-se a salvaguardar o interesse de outra pessoa.

10.3.2.3

Perigo não causado dolosamente pelo sujeito

O agente só pode invocar o estado de necessidade se a situação de perigo não tiver sido causada, dolosamente, por ele. Isso significa que a pessoa que tiver dado causa à instalação do perigo concreto não pode sacrificar outro bem, para salvar o bem jurídico ameaçado pelo perigo que ele mesmo, dolosamente, causou. Se Cláudio, dolosamente, ateou fogo no cinema, durante a exibição do filme, causando enorme pânico entre os presentes, não pode, para livrar-se da multidão que lhe impede a saída, dizer que está em estado de necessidade quando se põe a agredir, atropelar, causar lesões corporais em terceiras pessoas. É verdade que o faz para salvar sua vida, ou saúde, ou integridade corporal, de um perigo atual; todavia, tendo sido o causador, com dolo, da situação de perigo, não pode invocar a excludente. Se o perigo tiver sido causado por Cláudio culposamente, por negligência, por um descuido ao jogar fora o resto de um cigarro que fumara, sem qualquer intenção de causar aquela situação perigosa, aí, sim, se necessitar agredir ou lesionar alguém, na luta para fugir do fogo, agirá em estado de necessidade, presentes, é evidente, todos os demais requisitos.

10.3.2.4

Ausência do dever legal de enfrentar o perigo

Se o agente tiver, por lei, o dever de enfrentar o perigo, se for uma daquelas pessoas cuja atividade é, por sua própria natureza, perigosa, e que, por isso, a lei a obriga a enfrentar situações de perigo, não poderá, por essa razão, alegar o estado de necessidade.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles Os policiais, civis e militares, têm como atividade normal prender agentes de fatos típicos, ou condenados pela prática de crimes, perseguindo-os, indo a busca de provas, enfim, realizando diversas tarefas perigosas e, em vários momentos de suas vidas, encontram-se em situações que podem caracterizar os pressupostos do estado de necessidade: perigo atual para bens jurídicos não provocados dolosamente por eles. O mesmo acontece com o soldado do corpo de bombeiros, cuja atividade principal é enfrentar incêndios. A enfermeira, o médico, o sanitarista, que devem entrar em contato com pessoas acometidas de doenças contagiosas, epidemias, o funcionário público que deve fiscalizar instituições que cuidam da saúde, enfim, há uma categoria grande de pessoas que estão, por força de lei, obrigadas a enfrentar situações de perigo. Tais pessoas não podem alegar estado de necessidade, diante de momentos de perigo. Seu dever é o de não causar lesão a nenhum bem jurídico, num estado daqueles, pois escolheram uma atividade naturalmente perigosa e estão, ou devem estar, em seu dia-a-dia, preparadas para enfrentar situações como apresentadas. Essas pessoas estão obrigadas a enfrentar o perigo apenas quando em serviço. O policial, durante suas férias, o enfermeiro, quando está em outro hospital, visitando um amigo, são, nessas circunstâncias, simples cidadãos e aí não têm o dever de enfrentar o perigo. Como bem alerta DAMÁSIO E. DE JESUS10, não se pode confundir o dever legal de enfrentar o perigo com o dever legal ou jurídico de impedir o resultado. Uma coisa é o dever de enfrentar o perigo, de que trata o § 1º do art. 24, a outra é o de impedir o resultado, referido no art. 13, § 2º. O dever de agir para impedir o resultado é tema da tipicidade dos crimes omissivos impróprios. O dever de enfrentar o perigo é norma que impede a exclusão da ilicitude por estado de necessidade. Quando a lei diz que determinadas pessoas, diante de situações de perigo para bens alheios, têm o dever de agir para impedir a ocorrência de resultados lesivos, quer, simplesmente, afirmar uma obrigação para elas, pois que, se não agirem, responderão pelo resultado. Têm o dever de realizar um comportamento positivo, para que o resultado não ocorra. Omitindo-se, respondem pelo resultado, seu comportamento é típico. É certo, todavia, que aquelas pessoas – os garantes – só estão obrigadas a agir com

10

Direito penal. Op. cit. p. 327.


Ilicitude - 13 vistas a impedir a ocorrência do resultado se puderem fazê-lo, conforme a lição: a omissão é não fazer algo devido e possível. É evidente que o pai tem o dever de agir para impedir que o filho se afogue se ele, pai, souber nadar. Se não souber nadar, apesar de ter o dever de agir para impedir resultados lesivos para bens de seu filho, não estará obrigado a atirar-se no lago, porque não lhe é possível fazê-lo, sem risco pessoal. Aliás, atirando-se, não só não salvará o filho, como também poderá morrer afogado. Não é isso que o Direito quer. Apesar do dever de agir para impedir o resultado, pode alguém não estar em condições de fazê-lo. Outra coisa é o dever de enfrentar o perigo. Aqui, fala-se da impossibilidade de justificar o comportamento do sujeito que, diante de uma situação de perigo para um bem jurídico, e tendo, por lei, o dever de enfrentá-lo, não o faz, preferindo sacrificar outro bem para salvar o ameaçado. Estes, e somente estes, é que não podem invocar o estado de necessidade.

10.3.2.5

Inevitabilidade do sacrifício do outro bem

Para que haja estado de necessidade, é indispensável que o sacrifício do bem jurídico alheio seja a única maneira de salvar o bem em perigo. Se houver outra solução, qualquer outra possibilidade, inclusive fugir do perigo, chamar alguém, evitálo, de qualquer outra forma, sem o sacrifício do bem jurídico, enfim, se existir outra saída, qualquer que seja, deve ser trilhada, e, se o agente não o fez, preferindo sacrificar um interesse alheio, aí não haverá estado de necessidade. É o caso do indivíduo perdido na floresta há alguns dias, sem ter-se alimentado como de costume, por não haver arroz, feijão, carne, fogão, tempero, frutas etc. Está faminto e, então, resolve entrar na casa alheia e de lá subtrair alimentos, sem que os donos, aí presentes, percebam. É claro este não é um furto em estado de necessidade, apesar da situação de perigo atual – fome – não provocada dolosamente pelo perdido. Porque ele poderia ter-se apresentado aos moradores, solicitado a refeição para lhe matar a fome. Não era o furto a única saída. A lesão ao patrimônio alheio não era inevitável. Bem poderia ele ter evitado a ação típica, pedindo, comprando e prometendo pagar pelo alimento com seu trabalho; poderia, de alguma outra forma, evitar a conduta típica.

10.3.2.6

Inexigibilidade do sacrifício do bem em perigo

O estado de necessidade não é uma autorização para o homem lesar todo e


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles qualquer bem jurídico, com o objetivo de salvar outro bem, próprio ou de terceiro. Se o automóvel do homem está em perigo, em situação tal que a única maneira de evitar uma colisão com um poste é desviar e atingir uma pessoa que transita, não se pode sacrificar a vida humana para salvar o veículo. Os bens em colisão devem guardar, entre si, certa proporcionalidade de valor. O bem a ser sacrificado não pode ser muito mais importante que o bem a ser salvo. Não se admite sacrificar uma vida humana para salvar a vida de um animal de estimação. Nem salvar um bem material, por exemplo, uma jóia, ainda que de astronômico valor monetário, sacrificando a vida de um mendigo. A integridade corporal ou a saúde do Presidente da República não vale mais do que a vida de um recém-nascido abandonado, de quem não se sabe quem é o pai e a mãe, daí por que não está em estado de necessidade aquele que, para preservar o Chefe da Nação de uma lesão corporal, acaba por matar um bebê qualquer, sem pai, nem mãe. Quando se trata de estado de necessidade, nunca se deve perder de vista que a finalidade desse instituto é a proteção do bem jurídico. De conseqüência, só se pode admiti-lo quando o bem sacrificado seja, no máximo, de valor aproximadamente igual ao bem preservado, nunca de valor a ele consideravelmente superior. O Direito Penal jamais poderia justificar a lesão de um interesse muitíssimo importante para salvar outro, de menor valor, sob pena de deixar de ser o protetor dos bens jurídicos. É claro que essa relação de proporcionalidade não pode ser colocada em esquemas rígidos, de peso ou medida, absolutos ou exatos. Não se trata de pesar ou de medir, em quilogramas ou metros. Os bens da vida, especialmente os colocados sob a proteção do Direito, nem sempre podem ser mensurados, aquilatados, com precisão milimétrica, ou com aparelhos de precisão, que não foram e, certamente, jamais serão inventados. Por outro lado, aquele que, diante da situação de perigo para o bem, próprio ou alheio, que deseja protegê-lo, vendo-se na necessidade de agir, não está em condições de medir, pesar, com precisão, e decidir sobre qual dos bens é o mais importante, qual vale mais. O que o Direito exige é razoável proporcionalidade entre os bens em conflito, para justificar o sacrifício de um deles, mesmo que um pouco mais valorado, executado para a salvação do outro, mesmo que um pouco menos valioso.

10.3.2.7

Causa de diminuição da pena


Ilicitude - 15 Dispõe o § 2º do art. 24 que, “embora seja razoável exigir-se o sacrifício do Direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços”. Cuidou a lei de determinar a diminuição da resposta penal ao agente que, numa situação de perigo para um interesse juridicamente protegido, para salvá-lo de lesão, acabou por sacrificar um interesse jurídico de importância bastante superior. Nas circunstâncias, deveria ter permitido fosse sacrificado o bem, próprio ou de terceiro, uma vez que o bem que com aquele colidiu era de maior valor. Apesar disso, a lei manda seja ele reprovado com pena menor, tendo em vista a presença da situação de perigo para o bem salvo.

10.3.2.8

Elemento subjetivo

Não basta que a conduta do sujeito tenha se realizado sob a égide de todos os elementos objetivos, anteriormente descritos. Não é suficiente que tenha havido perigo atual para um bem próprio ou alheio, não causado dolosamente pelo sujeito, que não tinha o dever legal de enfrentar o perigo. Nem que a lesão seja a única saída para salvar o bem, que era mais valioso que o bem sacrificado. É preciso algo mais, que o agente tenha agido com a consciência de que a situação de perigo era concreta e que a única saída era o sacrifício do outro bem, e, mais, com vontade de salvar o bem ameaçado. Só haverá estado de necessidade, que exclui a ilicitude do fato, justificando-o, quando o agente tiver se comportado com consciência da realidade fática e com vontade de atuar conforme o direito, sacrificando um bem com o único fim de salvar outro. Sem essa consciência e sem essa vontade, ainda que todos os requisitos objetivos restem comprovados, não se pode falar tenha havido fato lícito, por estado de necessidade.

10.4 LEGÍTIMA DEFESA 10.4.1 Dados históricos e fundamento “Tão visceralmente ligada à pessoa se manifesta a defesa, isto é, a faculdade de repelir, pela força, o ataque, no momento em que se produz, que CÍCERO, na sua oração – Pro Milone, a reputa um direito natural, derivado da necessidade – non scripta sed nata lex, proposição verdadeira, se considerarmos o substratum fisiológico e psicológico da defesa, como reação do instinto de conservação que brota e se desenvolve independente de qualquer


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles regulamentação.”11 Já no Direito Romano, verifica-se a presença da legítima defesa, autorizada para a proteção da vida, da integridade física e da liberdade sexual, diante, em certos casos, até mesmo do justo receio de ataque. No Direito Germânico, a legítima defesa é a evolução do direito de vingança e da privação da paz. O Direito Canônico considera-a uma necessidade escusável, à qual corresponderia algumas penitências; todavia, se se tratasse de legítima defesa de terceiro, era mais que um direito, um verdadeiro dever. Na Idade Média, o âmbito de seu alcance é alargado para alcançar também a proteção dos bens patrimoniais. São várias as teorias que buscam explicar o fundamento da legítima defesa, a razão de o direito justificar a prática de um fato típico, considerando-a lícita, apesar da violação da norma penal incriminadora. Importa falar de algumas. Uma primeira teoria fundamenta-a com base no instinto de conservação inerente ao ser humano, que, diante de uma agressão, teria o direito de proteger-se do ataque porque negá-lo seria negar a própria necessidade de conservação da espécie. Seria um direito natural, próprio do homem, e o legislador apenas o ratifica. Essas idéias não servem para fundamentar a legítima defesa, seja porque a autorizaria para repelir toda e qualquer agressão – ainda que lícita e apenas para as agressões à vida ou à integridade física, deixando os demais direitos sem proteção. Admitindo-se esse fundamento, aquele que acaba de cometer um fato definido como crime e vai ser preso em flagrante delito poderia repelir a ação do policial que vai prendê-lo. Outra teoria, a da “colisão de direitos”, cunhada por VON BURI, afirma que, quando dois direitos entram em conflito, de modo que um não pode subsistir sem o sacrifício de outro, o Estado permite o sacrifício do menos importante, que é o do agressor, exatamente em razão da agressão. HUNGRIA a combateu: “Ora, não há direitos mais ou menos importantes senão do ponto de vista de seu objeto ou conteúdo. É um puro artifício dizer-se que o fato da agressão diminui a importância do direito do agressor em face do direito do agredidodefensor.”12

11

SIQUEIRA, Galdino. Op. cit. p. 305-306.

12

Comentários ao código penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 1, t. 2, p. 280.


Ilicitude - 17 O grande penalista brasileiro abraça a chamada teoria da ausência de injuricidade da ação defensiva, da doutrina alemã, que afirma ser a defesa privada coincidente com o fim do Direito: a incolumidade dos bens ou interesses por ele protegidos, pois que realiza a vontade primária da lei, colaborando na manutenção da ordem jurídica. Por isso, é legítima, excluindo a ilicitude do fato. Fala-se também na devolução, pelo Estado, ao indivíduo, do direito de ele mesmo, por seus próprios meios e por sua própria força, proteger o bem jurídico da agressão injusta. Ao praticá-la contra um bem jurídico, o agressor perde a proteção do Direito, daí por que a repulsa legítima, ainda que provoque um resultado, não constitui nenhuma lesão ao bem jurídico do agressor. A legítima defesa é um direito do indivíduo por essas duas razões: primeiro porque é a realização da vontade do Direito, a proteção do bem jurídico, e, ao mesmo tempo, porque, na ausência do Estado para cumprir seu dever de tutelar o interesse injustamente agredido, deve devolver ao indivíduo esse poder de proteger o bem atacado. É, portanto, direito de todo homem, diante de uma agressão, poder realizar, por sua conta, o fim do direito. Diferentemente do estado de necessidade, em que o sacrifício do outro bem deve ser inevitável, na legítima defesa o agredido não está obrigado a fugir, a propósito do que merece ser transcrito o seguinte trecho de um julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relatado pelo Des. ADRIANO MARREY: “Não estaria o réu realmente obrigado a fugir, para evitar ato legítimo de defesa, que poupasse o agressor violento o incômodo conseqüente. Lembra Nelson Hungria ser ‘de todo indiferente à legítima defesa a possibilidade de fuga do agredido. A lei não pode exigir que se leia pela cartilha dos covardes e pusilânimes. Nem mesmo há ressalvar o chamado commodus discessus, isto é, o afastamento discreto, fácil, não indecoroso. Ainda quando tal conduta traduza generosidade para com o agressor ou simples prudência do agredido, há abdicação em face da injustiça e contribuição para maior audácia ou prepotência do agressor. Embora não seja um dever jurídico, a legítima defesa é um dever moral ou político que, a nenhum pretexto, deve deixar de ser estimulado pelo direito positivo’ (v. Comentários ao código penal, 5. ed., Forense, vol. 1, /292). Outrossim, acentuou o mesmo mestre penalista, é inexigível a vexatória ou infamante renúncia à defesa de um direito.”13

13

Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, nº 31, p. 328.


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles

10.4.2

Conceito e requisitos

O conceito de legítima defesa há de ser extraído da norma explicativa do art. 25 do Código Penal, que estabelece seus requisitos: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” Legítima defesa é a repulsa a uma agressão injusta, atual ou iminente, a qualquer direito, próprio ou alheio, por meio do uso moderado dos meios necessários. Seus requisitos são: agressão injusta, atual ou iminente, a qualquer direito, e repulsa com a utilização dos meios necessários, usados moderadamente, além, é claro, do elemento subjetivo: consciência e vontade.

10.4.2.1

Agressão injusta

O primeiro requisito da legítima defesa é que ela se dirija contra uma agressão. Agressão é um comportamento humano dirigido à lesão de um bem jurídico. É um ataque humano a um interesse juridicamente protegido. Não é toda e qualquer agressão que autoriza a resposta legítima, mas apenas as injustas. É que podem ocorrer agressões lícitas, autorizadas pelo Direito, como a praticada pelo policial que prende alguém em flagrante-delito ou mediante ordem judicial. Ao fazê-lo, estará agredindo a liberdade do que está sendo preso, a qual, por ser uma agressão justa, lícita, não pode ser repelida licitamente. Quem assim fizer não estará em legítima defesa. Igualmente lícita é a agressão da pessoa que se defende, em legítima defesa, contra o que a agrediu. Este não pode repelir a defesa promovida por quem está em legítima defesa, pois nesse caso estará repelindo uma agressão justa. O agressor inicial não pode repelir a agressão praticada em legítima defesa. O comportamento do pai que aplica algumas palmadas no filho menor, corrigindo-o, é uma agressão que, igualmente, não é injusta, posto que socialmente aceita e adequada, de conseqüência, atípica, sem qualquer ilicitude. A agressão que possibilita a legítima defesa deve ser injusta, ilícita, não devendo ser necessariamente um ilícito penal. Há de ser, isso sim, um comportamento objetivamente proibido pelo Direito. Assim, constitui agressão injusta a praticada por


Ilicitude - 19 um doente mental, absolutamente incapaz de compreender a ilicitude de seu gesto. A agressão não necessita ser praticada com violência real, pois não se exige que ela constitua uma violência física contra o bem jurídico. Agressões verbais, à honra das pessoas, ensejam repulsa legítima, bem assim as praticadas com astúcia contra o patrimônio.

10.4.2.2

Agressão atual ou iminente

A agressão injusta deve ser atual ou iminente. Deve estar acontecendo ou prestes a acontecer. Não se podem repelir licitamente agressões já passadas, nem se antecipar repelindo as que ainda não aconteceram, nem estão prestes a ocorrer, mas se situam ainda no futuro, e, como tal, são apenas expectativas de agressão, meras representações espirituais do que não é concreto, de algo inexistente. Não é legítima a defesa contra agressão passada, porque já não há necessidade de proteger o bem jurídico, que já terá sido lesionado. Se o Direito a admitisse, estaria legitimando a vingança. Não o será também se não passar de uma ameaça, ainda que idônea, de agressão. Se João afirma que vai matar a Pedro, amanhã pela manhã, não está este autorizado a antecipar-se e reagir legitimamente. Só é admitida a reação quando o bem jurídico já está sendo agredido ou quando estiver prestes a sofrer a lesão. Quando houver perigo concreto de lesão, não quando este perigo é apenas uma suposição, distante ainda no tempo, de modo que pode sequer instalar-se. Se há uma ameaça de agressão, o agressor terá realizado um fato típico, o do art. 147 do Código Penal, podendo a vítima acionar o Estado, que, então, deverá intervir, realizando o Direito, dando proteção ao bem jurídico. A agressão que autoriza a defesa lícita deve ser atual ou iminente. Atual porque já se terá iniciado o ataque ao bem jurídico, que já sofre uma violação proibida. Por isso, pode ser repelida, seja para que se interrompa, seja para que não se intensifique mais ainda. Iminente é a lesão que vai acontecer imediatamente. Não pode o Direito exigir do agredido que espere a agressão concretizar-se, podendo impedi-la no momento antecedente de sua instalação concreta. É a situação de perigo concreto de lesão, em que estão reunidas todas as condições indispensáveis à produção do resultado. Determinar ao agente que espere a agressão tornar-se atual pode tornar inócua a autorização para a defesa. Se o agressor leva a mão à cintura para dela tirar o revólver


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles com o qual vai disparar contra alguém, não pode o Direito exigir do defendente esperar que a arma esteja na mão do agressor, engatilhada, apontada, para, só então, poder repelir a agressão.

10.4.2.3

Qualquer direito, próprio ou de terceiro

É legítima a repulsa praticada contra agressão injusta, atual ou iminente, a todo e qualquer direito. Qualquer direito, do próprio agente ou de outra pessoa – sofrendo ou se encontrando na iminência de sofrer qualquer ataque –, pode ser defendido. A vida, a integridade corporal, a liberdade, o patrimônio, a honra, enfim, todos os direitos, todos os bens jurídicos, podendo ser agredidos, devem ser defendidos. Certa feita sustentou-se, no plenário do Tribunal do Júri, a legítima defesa do direito de os filhos terem consigo sua mãe, que fora raptada do lar, por pessoas que, após, mantinham-na em cárcere privado, indo o marido a busca de libertá-la, quando, para conseguir seu objetivo, acabou por atirar contra um dos que a encarceravam. É claro que estava agindo em legítima defesa da liberdade da mulher, mas, ao mesmo tempo, em defesa do direito dos filhos menores que clamavam e sofriam pela ausência da mãe. Polêmica é a questão do homicídio cometido pelo marido que encontra a mulher praticando relações sexuais com outra pessoa e acaba por matá-la ou a ambos, e depois vem invocar a legítima defesa, para ver seu comportamento considerado lícito. Na hipótese, a alegação é a de que estava a defender sua honra pessoal, agredida pelo comportamento da esposa adúltera. Honra é o conjunto dos atributos morais, intelectuais e físicos do indivíduo, e, ainda que se saiba que honra subjetiva é “o sentimento de cada um a respeito de seus atributos”14, não se pode admitir que o comportamento da mulher adúltera constitua uma agressão ao sentimento pessoal do agente acerca de sua moral. Primeiro porque a conduta dela não se volta, não se dirige, contra a honra do marido, nem é essa, na quase totalidade dos casos, a intenção da mulher casada, quando se relaciona sexualmente com outro homem. Segundo porque não basta que ele, marido, sinta-se ultrajado; é necessário que tenha havido comportamento alheio que atinja sua honra subjetiva. Se o sentimento por ele experimentado é o da traição, da violação do dever de fidelidade, então não é a honra que está sendo agredida, mas o direito à fidelidade. Se o sentimento do marido é 14

JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte especial. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 2, p. 177.


Ilicitude - 21 o do desprezo, também não é a honra a atingida. Se é o desrespeito a sua masculinidade, trata-se de um sentimento inaceitável, pois que a atitude da mulher não revela, por si só, essa predisposição. Além do que, sentimentos como esse simplesmente mascaram concepções inadmissíveis de superioridade de um dos sexos. Só poderá existir, em hipóteses que tais, agressão à honra subjetiva do marido, se, após ou durante o estado de flagrância do adultério da mulher, o marido vem a ser agredido em sua honra, verbal ou gestualmente, por um dos dois, caso em que, é evidente, configura-se a agressão a sua honra. Não basta, todavia, que tenha existido agressão, pois é preciso ver se o meio necessário para repeli-la seria o disparo de uma arma de fogo, contra um ou contra ambos, o que será abordado no próximo item. Os tribunais têm enfrentado o problema, com decisões em ambos os sentidos, valendo transcrever trechos de três delas. O Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em acórdão prolatado pelo juiz MELO FREIRE, assim decidiu: “Vindo a surpreender o outro cônjuge em circunstâncias que sejam de desconfiar, a reação física do que se julga traído pode, às vezes, ser explicada. Não é um endosso ao que é de costume verbalizar como machismo; muitas das vezes são as mulheres que, na ira sagrada, deixam fundas marcas no marido e amante, surpreendidos em situações que não deixam muito espaço à dúvida. Pode ser que a vítima não estivesse a viabilizar o adultério; mas não deixa de ser objetivamente ofensivo ao lar, no seu ambiente cultural, ser a mulher encontrada no carro de outro homem. O comportamento do réu não se desaveio do que ocorre normalmente com os homens de seu padrão cultural.”15 Do Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo Relator o Desembargador LUIZ BETANHO, uma decisão que dá guarida à agressão à honra do marido: “É entendimento fortemente arraigado no povo que o adultério da mulher fere a honra do marido. Não há negar que julgados dos tribunais têm admitido a legítima defesa da honra quando o cônjuge ultrajado mata o outro cônjuge ou seu parceiro. De modo que se mostra mais prudente aceitar, em tese, a legítima defesa da honra em tal hipótese e verificar se, no caso

15 FRANCO, Alberto Silva et. al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 273.


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles concreto, os requisitos legais encontram-se presentes.”16 Do mesmo Tribunal paulista, relatada pelo Desembargador DÍNIO GARCIA, decisão no sentido contrário: “A chamada legítima defesa da honra, que se invoca em benefício dos maridos que delinqüem ao surpreender a esposa em flagrante adultério, é figura que destoa gritantemente dos princípios fundamentais do nosso Direito Penal positivo. Nem cabe invocar, em favor desses infratores, a doutrina da não exigibilidade de outra conduta, à qual, na própria Alemanha, hoje se atribui valor meramente histórico (cf. Maurach, Deutsches Strafrecht, Allg. Teil, p. 338). Menos ainda se admitirá o apelo às causas supralegais de justificação dos germânicos, em que é fundamental a ocorrência de sacrifício de um valor menor, em prol de um bem jurídico mais alto (cf. Mezger, Strafrecht Ein Lehrbuch, 3. ed., § 32; Schonke-Schroeder, Strafgesesetzbuch, 8. ed., p. 270 e ss; Welzel, Deutsche Scragrecht, 5. ed., p. 150 e ss). Pois na pretensa legítima defesa da honra o que ocorre é o sacrifício do bem supremo – vida – em face de meros preconceitos vigentes em algumas camadas sociais. Afinal, é patente que, no adultério, perpetrado pela mulher, esta é que se desonra, não o marido.”17 Esta última decisão é a que melhor atende aos interesses do direito. A honra do marido traído não é agredida pela traição. Esse pensamento, aliás, é cultivado apenas nas camadas médias da sociedade, posto que, tanto na mais elevada, quanto na mais subalterna, esses sentimentos simplesmente não existem. Pode, sim, terceira pessoa ofender o traído, chamando-o de corno, e esta pessoa, sim, estará, desde que com real intenção de ofender, agredindo a honra do marido, permitido a ele, por isso, repelir tal agressão, porque injusta, com o uso moderado dos meios necessários. Finalmente, no âmbito ainda dos direitos que podem ser defendidos, importa ressaltar que o defendente pode reagir a qualquer agressão, mesmo àquela dirigida a um bem de outra pessoa, inclusive da pessoa jurídica. Há assim a legítima defesa própria, quando o bem defendido é do sujeito, e a legítima defesa de terceiro, quando o bem agredido tem outra pessoa como titular.

16

Revista dos Tribunais, nº 660, p. 313.

17

Bol. TJSP 6/287 (In: FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 274).


Ilicitude - 23

10.4.2.4

Uso dos meios necessários

Só é legítima a repulsa praticada com a utilização dos meios necessários para fazer cessar, ou impedir que ocorra, a agressão injusta, atual ou iminente, a qualquer direito, próprio ou de terceiro. A necessidade dos meios é das questões mais interessantes do Direito Penal. O meio utilizado deve ser o necessário para impedir a agressão iminente de concretizarse, atualizar-se, ou para fazer cessar a agressão atual. Nem mais do que o necessário, nem menos, pois aí não haveria defesa eficiente. Para se dizer que o agente utilizou o meio necessário, é preciso, em primeiro lugar, verificar quais eram os que se encontravam a sua disposição no momento da agressão. Um meio pode ser mais do que suficiente, todavia, pode acontecer de não haver outro, naquelas circunstâncias, na medida exata da suficiência, à disposição do agente. A lição de MANZINI, colhida em Nelson Hungria, é clara: “Para medir a adequação ou demasia da defesa, não se deve fazer o confronto entre o mal sofrido e o mal causado pela reação, que pode ser sensivelmente superior ao primeiro, sem que por isso fique excluída a justificativa. O confronto deve ser feito entre os meios defensivos que o agredido tinha a sua disposição e os meios empregados. Se estes eram os únicos que in concreto tornavam possível a repulsa da violência de outrem, não haverá excesso, por maior que seja o mal sofrido pelo agressor.” 18 Uma arma de fogo pode ser o meio necessário para obstar uma agressão praticada com os próprios punhos. Um sujeito franzino, raquítico, que tenha uma arma de fogo à sua disposição, agredido a murros por um lutador de artes marciais, deve utilizar o revólver como o meio necessário para se defender, ainda que junto dele exista um porrete, ou uma barra de ferro. Tais instrumentos, nas mãos do frágil cidadão, podem, a toda evidência, ser aquém do necessário para impedir a agressão do exímio lutador. Se o sujeito tem a seu dispor vários instrumentos, ou pode utilizar-se de vários meios contra a agressão, deve, é evidente, escolher aquele que, com eficiência, resulte no menor dano ao agressor. O direito, todavia, não obriga uma apreciação com a exatidão da Matemática,

18

Op. cit. p. 297.


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles pois que não se pode exigir daquele que, agredido injustamente, reage cálculos milimétricos sobre a necessidade dos meios. A lição de NELSON HUNGRIA não pode ser esquecida: “A apreciação deve ser feita objetivamente, mas sempre, de caso em caso, segundo um critério de relatividade ou um cálculo aproximativo. Não se trata de pesagem em balança de farmácia, mas de uma aferição ajustada às condições de fato do caso vertente. Não se pode exigir uma perfeita equação entre o quantum da reação e a intensidade da agressão, desde que o necessário meio empregado tinha de acarretar, por si mesmo, inevitavelmente, o rompimento da dita equação.”19 Por isso, ao apreciar o caso concreto, o julgador deve, após verificar quais eram os meios disponíveis, considerar necessário o que tiver sido utilizado, desde que inexistente outro menos gravoso para o fim de impedir ou fazer cessar a agressão, não se preocupando com a exata proporção entre ataque e defesa. Até porque esta, em face da emoção que alcança o homem agredido injustamente, pode ultrapassar, dentro dos limites da razoabilidade, aquilo que seria o necessário. Para os que entendem que o marido traído tem sua honra agredida pela mulher adúltera, caberia a indagação: o meio necessário para fazer cessar a agressão é a morte da mulher? Matando-a, é claro, a agressão deixa de existir, mas, induvidosamente, a morte da adúltera é muito, mas muito mesmo, além do necessário. A infidelidade conjugal é a violação de um dos deveres do matrimônio, que, no Brasil, é dissolúvel pelo divórcio. Não é um bem que mereça proteção extremada do Direito. Diante da violação de um dos deveres conjugais, nasce, para o outro cônjuge, o direito à separação judicial, e é esse o meio necessário para fazer cessar a situação de adultério, com as conseqüências civis previstas na lei. Por isso, admitindo-se haver, no flagrante de adultério, agressão à honra do marido, o meio para fazer cessá-la não pode, jamais, ser a morte da mulher ou do amante, e tampouco de ambos.

10.4.2.5

Moderação na utilização dos meios necessários

Não basta que o agente escolha o meio necessário, é indispensável que o utilize com moderação, sem exageros, sem excessos. Muitas vezes, o agente, diante de uma agressão atual injusta, utiliza-se do meio

19

Op. cit. p. 298.


Ilicitude - 25 necessário, mas não o faz moderadamente. Por exemplo, após cessada a agressão, continua com seu comportamento anterior, agredindo o ex-agressor, quando já não existe agressão. Dessa forma, não se pode falar esteja ele repelindo agressão, pois não se repele o que já não existe. Nesse caso, a ação não é mais legítima, não podendo ser excluída a ilicitude da conduta. Esse é outro requisito que enseja muitas discussões. Aqui, como na escolha dos meios, não se pode fazer uma análise rigorosamente matemática, com afirmações do tipo: bastava um tiro e o agente deu dois. Ou três golpes e ele chegou a um quarto, desnecessário. A primeira observação é aquela de que o agredido injustamente não está em condições de medir, com precisão, a intensidade ou a extensão da defesa que realizará, nem pode correr o risco de, por excesso de cuidado, não conseguir evitar ou interromper a agressão, sofrendo o ataque injusto. Em seguida, novamente, o julgador haverá de examinar o caso concreto e ter em mente que o objetivo da legítima defesa é impedir que a agressão iminente se concretize ou interromper a agressão atual. Em ambas as hipóteses, o comportamento do agressor deve ser analisado, pois o defendente está autorizado a utilizar-se do meio até o quanto e até quando seja imprescindível para alcançar seu objetivo. Nessa operação, todas as circunstâncias que envolvem o fato são essenciais para a conclusão da análise. Local, tempo, condições pessoais, especialmente compleição física, de ambos os sujeitos, antecedentes do fato, a natureza do bem agredido, tudo deve ser observado para que se consiga verificar certa proporcionalidade entre o ataque e a defesa. Essa proporcionalidade, todavia, não é matemática, mas a reação deve ser relativamente, razoavelmente, proporcional ao ataque. Se o agressor, munido de faca, caminha na direção do defendente, com nítida intenção de feri-lo, pode este, armado de revólver, disparar sua arma uma, duas, quantas vezes forem necessárias para impedir que o outro chegue próximo de si, de modo a poder atingi-lo com a faca. Enquanto a agressão não estiver evitada, o meio necessário pode continuar sendo utilizado. Não importa quantos disparos, quantos golpes sejam desferidos, importa, sim, saber se, enquanto eram perpetrados, permanecia a iminência ou a atualidade da agressão.

10.4.2.6

Consciência e vontade de agir conforme o direito

Em toda e qualquer causa de justificação, seja ela da parte geral, seja da parte


26 – Direito Penal – Ney Moura Teles especial, um dos requisitos indispensáveis é o elemento subjetivo: a consciência e a vontade de agir conforme o Direito. O Direito não justifica o comportamento do sujeito que se aproveita de uma situação objetiva de legítima defesa para alcançar um fim proibido, a morte de alguém. Tome-se o exemplo: Jorge deseja matar Alfredo, que costuma beber em certo bar,

onde,

normalmente,

entra

em

atrito

com

freqüentadores,

chegando,

invariavelmente, às vias de fato. Então, Jorge dirige-se ao referido bar, postando-se a certa distância de Alfredo e aguardando que ele, como faz costumeiramente, se desentenda com outra pessoa. Não muito tempo decorre e começa uma discussão entre Alfredo e Marcos, provocada pelo primeiro, a qual evolui para um desforço físico, iniciado por Alfredo que, em dado momento, inesperadamente, toma de uma cadeira de madeira, levanta-a e vai, com ela, atingir a cabeça de Marcos, instante em que Jorge saca de sua arma e dispara um único tiro, que acerta o braço, atravessando-o e atingindo, em seguida, o peito esquerdo de Alfredo que, em virtude do único ferimento, vem a morrer. Observando o fato, pode-se concluir que Alfredo estava prestes a realizar uma agressão injusta, contra a pessoa de Marcos, podendo inclusive matá-lo com o golpe no crânio, com instrumento contundente. Jorge, vendo-a, usa do meio necessário e o faz moderadamente, disparando um único tiro, aliás, atingindo o braço, o que revelaria sua intenção de defender a integridade corporal ou a vida do terceiro. Estaria, assim, a princípio, configurada a legítima defesa de terceiro, porquanto realizados todos os pressupostos objetivos da excludente. Todavia, Jorge tinha a intenção deliberada de matar Alfredo, não de defender Marcos, tendo-se aproveitado de uma situação objetiva, para vir depois alegar legítima defesa. Não agiu de acordo com o Direito, pois não agiu com o intuito de defender a vida de terceira pessoa, mas com vontade exclusiva de matar. Faltou-lhe a vontade de realizar a causa de justificação. Não há legítima defesa nessa hipótese. É claro que a prova dessa situação é difícil, mas não é impossível. O que interessa é que, para se configurar a excludente de ilicitude, o agente deve agir com consciência e vontade de defender o bem jurídico. Não podia ser diferente. Só é lícita a conduta que realiza o fim do Direito, a proteção do bem jurídico. Só é justa a destruição de uma vida quando seu destruidor se tiver comportado com consciência de que realizava o fim da norma jurídica e com vontade de proteger, repelindo a agressão a outro bem jurídico. Nunca se poderia legitimar um comportamento previamente imbuído da vontade clara e indiscutível de destruir um interesse juridicamente tutelado.


Ilicitude - 27

10.4.3

Questões diversas sobre a legítima defesa

10.4.3.1 Embriaguez do defendente Questão interessante é saber se uma pessoa embriagada pode atuar em legítima defesa. Há posições jurisprudenciais divergentes. Umas entendem plenamente possível ao ébrio agir sob o pálio do Direito, ao passo que outras, por considerarem que lhe faltaria consciência, e também vontade, entendem que não pode realizar qualquer comportamento justificado. A solução não é simples e exige reflexão. Se o defendente está completamente embriagado, de sorte que lhe falta a consciência, então pode não ter havido sequer conduta, por faltar um requisito indispensável, que é a vontade de movimentar-se ou abster-se de um movimento. Logo, o fato será atípico, e não se analisa a ilicitude, pois, se atípico, é um indiferente penal. Se há inconsciência, falta conduta, e, sem conduta, não há fato típico. Se, todavia, há consciência, ainda que mínima, e, também, vontade de agir, ou de se omitir, não se pode falar que não tenha ele, igualmente, desejado repelir a agressão e atuar conforme o Direito. Concluindo-se que o ébrio realizou um fato típico, é porque tinha consciência e vontade de agir, e, da mesma forma, realizaram-se os pressupostos objetivos da excludente, poderá ter, igualmente, realizado o subjetivo, isto é, ter agido com consciência e vontade de defender-se, a não ser que se tenha aproveitado da situação objetiva para agredir o bem jurídico, como no exemplo dado no item anterior.

10.4.3.2

Embriaguez do agressor

A embriaguez do agressor deve ser analisada com cuidado. É que a agressão deve ser idônea, e não pode ser confundida com simples provocação. Geralmente, os muito ébrios não têm condições de realizar agressões, mas limitam-se a provocar as pessoas. A defesa só é justa quando houver uma agressão e, como tal, idônea, concreta, ainda que apenas iminente. Nada impede, contudo, venha uma pessoa embriagada a encetar agressão injusta, a justificar repulsa legítima.

10.4.3.3

Legítima defesa e estado de necessidade

Entre a legítima defesa e o estado de necessidade, algumas diferenças devem ser


28 – Direito Penal – Ney Moura Teles ressaltadas. No estado de necessidade, o pressuposto é a colisão de interesses jurídicos, de modo que um – qualquer deles – pode ser sacrificado. Trata-se de uma situação de perigo atual para o bem jurídico. Na legítima defesa, deve existir agressão, ataque ao bem jurídico, ainda que iminente, de modo que pode ser repelida pelo defendente. Só o bem do agredido será preservado. No estado de necessidade, o perigo pode resultar de um comportamento humano, de um ataque de um animal, ou de um fenômeno da natureza, uma inundação, por exemplo, e o sujeito pode dirigir seu comportamento contra qualquer bem, de qualquer pessoa. Já na legítima defesa, a agressão deve partir, necessariamente, de um ser humano, e a reação do defendente deve ser dirigida exclusivamente contra o agressor, não contra um terceiro. Finalmente, de se lembrar que na legítima defesa a agressão deve ser injusta, ao passo que, no estado de necessidade, a situação de perigo pode ser criada licitamente por uma pessoa; daí que é plenamente possível a existência de duas pessoas, simultaneamente, em estado de necessidade, podendo, cada uma delas, dirigir sua conduta contra a outra, como no exemplo clássico dos dois náufragos na tábua de salvação. Vença o mais forte, mais hábil, ou mais inteligente, o que sobreviver. Qualquer deles que matar o outro, para salvar-se, estará em estado de necessidade e terá agido conforme o Direito. Diferentemente, é impossível a existência de duas pessoas, uma contra a outra, em legítima defesa recíproca, porque só uma das agressões será justa. A agressão contra a agressão justa será injusta, não será legítima.

10.4.3.4

Legítima defesa e erro na execução

Se alguém, diante de uma agressão injusta e atual, a bem próprio ou de terceiro, promover sua repulsa com o uso moderado dos meios necessários, mas, ao fazê-lo, atingir, todavia, outra pessoa que não a do agressor, terá agido em legítima defesa? A resposta deve ser afirmativa. O erro na execução não altera seu comportamento, não elimina a agressão, nem a necessidade dos meios utilizados em sua repulsa, nem a moderação com que foram utilizados. Nos casos de erro na execução, ou de obtenção de resultado diferente do visado pelo agente, têm aplicação as regras dos arts. 73 e 74 do Código Penal, que serão objeto


Ilicitude - 29 de estudo no Capítulo 17 deste manual. Na hipótese, houve apenas e tão-somente um acidente, que não retira a licitude da conduta, pois ela foi realizada com a consciência dos fatos e com o fim de realizar a vontade do Direito, protegendo o bem jurídico agredido injustamente.

10.4.3.5

Ofendículos

Ofendículos são obstáculos ou engenhos utilizados pelas pessoas com vistas na defesa da propriedade e da posse. Assim, os cacos de vidro sobre os muros, as lanças pontiagudas nas cercas, sua eletrificação, a presença de cães de guarda, que se destinam a reagir, em caso de agressão à propriedade, ferindo o agressor. Alguns doutrinadores consideram que, ao fazê-lo, o sujeito está no exercício regular do direito de proteger sua propriedade, ao passo que outros consideram tratarse o fato de verdadeira legítima defesa preordenada. O correto é dizer que, quando da instalação e da preparação dos mecanismos de defesa, o proprietário age no exercício regular do direito de propriedade. Se o mecanismo funciona, repelindo uma agressão injusta do que tenta invadir a propriedade, trata-se, à evidência, de legítima defesa, desde que os demais requisitos sejam observados. O mecanismo deve conter reação não além da necessária para repelir a invasão, por exemplo, a corrente da cerca eletrificada não pode ser de voltagem excessiva, mas apenas dentro do suficiente para imobilizar ou repelir um homem normal. Além disso, deve o defendente cercar-se de cuidados para prevenir inocentes, crianças e até amigos e parentes, que devem ser alertados para os perigos da defesa preordenada. Os excessos e a negligência na construção e no funcionamento dos ofendículos descaracterizam a legitimidade da defesa.

10.5 ESTRITO

CUMPRIMENTO

DO

DEVER

LEGAL

E

EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO As outras duas causas de exclusão da ilicitude previstas na parte geral do Código Penal são o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito (art. 23). São situações distintas, apesar de terem a norma jurídica como fonte de sua


30 – Direito Penal – Ney Moura Teles existência.

10.5.1

Estrito cumprimento do dever legal

Sempre que alguém estiver cumprindo, estritamente, um dever imposto pela lei, só poderá estar realizando um comportamento lícito, uma vez que a lei não impõe a ninguém a realização de uma conduta proibida. Seria um absurdo imaginar que, ao cumprir, estritamente, uma obrigação emanada da lei, a pessoa pudesse estar realizando algo proibido, algo contra a lei. O comportamento realizado nos estritos limites do comando legal não pode, em nenhuma hipótese, ser lesivo de qualquer bem jurídico. Esta excludente, em verdade, é absolutamente desnecessária, mas, como informa MIRABETE, “é prevista expressamente para que se evite qualquer dúvida quanto à sua aplicação, definindo-se na lei os termos exatos de sua caracterização”20. A justificativa alcança os funcionários públicos e os agentes – inclusive o particular em exercício de cargo ou função pública, ainda que temporariamente – do poder público encarregados de executar um mandamento da lei. São exemplos de ações típicas permitidas por essa causa de justificação a prisão em flagrante efetuada pelo policial e a danificação do patrimônio executada pelo oficial de justiça em cumprimento de um mandado demolitório expedido pela autoridade judiciária competente, com a observância das formalidades processuais. Os requisitos para a presença da excludente são os traçados na norma jurídica que impõe ao agente o dever de realizar o comportamento, os quais deverão ser observados integralmente, e mais o elemento subjetivo, qual seja, o conhecimento de fato, de que está agindo em cumprimento de um dever e, evidentemente, a vontade de fazê-lo. Ultrapassados os limites da norma reguladora do mandamento legal, não haverá excludente. Exemplo: o juiz de determinada vara cível, nos autos de uma ação de manutenção de posse, determina a demolição de uma cerca de arame edificada pelo turbador da posse, numa extensão de 600 metros. Munido do respectivo mandado, o oficial de justiça – inimigo pessoal do turbador – dirige-se ao local da turbação e lá promove a demolição de 800 metros de cerca, cortando os fios do arame e destruindo os postes. 20

Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. v. 1, p. 180.


Ilicitude - 31 Na hipótese, o funcionário da justiça exorbitou de seu dever que era de, exclusivamente, demolir 600 metros de cerca, e nada mais que isso. Não tinha o dever de cortar os fios do arame, nem de destruir os postes. Não cumpriu, assim, estritamente seu dever legal; por isso, não agiu licitamente.

10.5.2

Exercício regular de direito

Esta causa de justificação guarda profunda semelhança com a anterior, pois que o fundamento é basicamente o mesmo: aquele que estiver exercendo regularmente um direito não pode, ao mesmo tempo, estar realizando uma conduta proibida pelo Direito, pois, se assim fora, não seria coerente o ordenamento jurídico. A diferença é que no estrito cumprimento do dever legal trata-se de um dever legal, e aqui de um direito, uma faculdade conferida pela ordem jurídica ao indivíduo. É certo que os requisitos para a presença da justificativa serão os estabelecidos nas normas jurídicas que criam o respectivo direito e mais o elemento subjetivo, a consciência e a vontade de agir conforme o Direito. Exemplo clássico de fato típico cometido no exercício regular de Direito: a prisão em flagrante efetuada pelo particular. Como é sabido, a autoridade policial tem o dever de prender quem estiver em flagrante delito, e o particular tem o direito de fazêlo (Código de Processo Penal, art. 301 – Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito). Outro exemplo é a defesa da posse dos bens imóveis, estabelecida no § 1º do art. 1.210 do Código Civil brasileiro: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção ou restituição da posse.” Aquele que possuir um imóvel, independentemente de ser seu proprietário, tem o direito de defendê-lo contra invasões, desde que a reação seja imediata, realizada imediatamente, e com a prática apenas dos atos indispensáveis à obtenção de sua manutenção no imóvel ou de sua restituição. Se o invasor ingressa no imóvel, pode dele ser expulso. Se constrói, as edificações podem ser destruídas. A norma do art. 1.210, § 1º, do Código Civil estabelece requisitos para o exercício desse direito: resposta imediata e necessidade dos atos de desforço ou de defesa. O agente não pode ultrapassar os limites do exercício do direito, sob pena de


32 – Direito Penal – Ney Moura Teles restar descaracterizada a eximente. Alguns doutrinadores ensinam que os casos de violência esportiva e intervenções médicas e cirúrgicas constituem situações em que há, igualmente, exercício regular de direito. As lesões praticadas pelo médico ou pelo boxeador, porquanto atividades lícitas, admitidas e, inclusive, reguladas pelo ordenamento jurídico, desde que não constituam excessos, seriam lícitas porque cometidas no exercício regular de um direito. Outros autores incluem, entre o exercício regular de direito, as atitudes corretivas dos pais para com os filhos, o castigo correcional. Essas situações, bem assim a do soldado que, na guerra, mata o inimigo, e a do carrasco que executa o sentenciado, no país que consagra a pena capital, não constituem sequer fatos típicos, uma vez que são aceitos e adequados socialmente. Não há tipicidade em tais fatos, excluída que resta pela incidência do Princípio da Adequação Social. É claro que, havendo negligência ou imperícia do médico, excesso do esportista, que viola as regras do esporte, dolosa ou culposamente, em vez de corretivo, tortura por parte do pai, nesses casos, o princípio não incide, eis que as condutas não foram adequadas nem são aceitas. A considerar tais condutas típicas, tornar-se-ia necessária a instauração de inquérito policial toda vez que o pai corrigisse o filho, o médico realizasse intervenção cirúrgica, houvesse uma luta de boxe, para, ao depois, na melhor das hipóteses, o órgão do Ministério Público pedir o arquivamento do inquérito policial.

10.6 CONSENTIMENTO DO OFENDIDO Apesar de não integrar uma norma penal permissiva justificante, discute-se acerca de o consentimento do ofendido poder ou não excluir a ilicitude de certos fatos típicos. Para responder à indagação, é preciso ver duas questões básicas. Quanto ao consentimento da vítima, há duas espécies de tipos legais de crime: aqueles que contêm, como elemento, o dissenso do ofendido e aqueles em que essa divergência não é elementar. Segunda: há duas espécies de bens jurídicos: os disponíveis e os indisponíveis. Com base nessas duas constatações, pode-se chegar a uma conclusão acerca do consentimento do ofendido.


Ilicitude - 33

10.6.1

Consentimento como excludente da tipicidade

Nos tipos legais de crime em que o dissenso do ofendido constitui um de seus elementos, o consentimento exclui a tipicidade. O tipo legal de estupro, do art. 213, contém, como elementar, tácita, a falta do consentimento da ofendida, seu dissenso, de modo que só se configura o estupro quando a vítima não consente, opõe-se, rejeita a conjunção carnal. O mesmo se diga no delito da violação de domicílio, do art. 150, em que o dissenso é expresso: “contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito”. Só se realiza o delito de violação do domicílio quando o agente entra ou permanece na casa contra a vontade, tácita ou expressa, do morador. Se o ofendido consente, não se pode falar que o tipo se realizou, que o fato se ajustou ao tipo. Se a mulher consente na conjunção carnal, não há estupro. Se o dono consente no ingresso ou na permanência do sujeito em sua casa, não houve violação do domicílio. Então, nos tipos em que o dissenso for um dos elementos do tipo, diante do consentimento, não há tipicidade. Nesses casos, não se aperfeiçoa a primeira característica do crime. Não havendo tipicidade, o fato não interessa ao Direito Penal. Diz-se, portanto, que nos tipos em que o dissenso, o não-consentimento, é elementar, o consentimento é excludente da tipicidade.

10.6.2

Consentimento como excludente da ilicitude

Nos demais tipos, em que o dissenso não é elementar, como no homicídio, no roubo, na calúnia, na violação do direito do autor, o consentimento do ofendido poderá excluir a ilicitude se presentes duas condições indispensáveis: (a) a disponibilidade do bem jurídico; (b) a capacidade de consentir do ofendido. Se o bem é disponível, se estiver contido na esfera de disponibilidade de seu titular, este poderá renunciar à tutela jurídica. Se não, trata-se de um bem de interesse geral da sociedade e do próprio Estado, do qual não pode seu titular livremente dispor, alienar, dar, renunciar. Assim é, por exemplo, com a vida. Dessa forma, ainda que o doente esteja em estado terminal, atravessando sofrimento indizível e vivendo dores insuportáveis, não pode, todavia, dispor de sua vida, pelo que, aquele que matá-lo, atendendo a sua súplica e por ele autorizado,


34 – Direito Penal – Ney Moura Teles cometerá fato típico de homicídio não justificado. A eutanásia é um fato ilícito. Tratando-se de um homicídio cometido por motivo de relevante valor moral, seu agente terá sua pena diminuída, como manda o § 1º do art. 121. Já a honra é um bem disponível, de modo que o ofendido pode, simplesmente, ignorar a ofensa contra ele dirigida, deixando de promover a ação penal. Não terá havido crime, em face do consentimento tácito do ofendido, que torna a conduta lícita. Só vale o consentimento dado por quem tenha capacidade de consentir, no Direito Penal brasileiro aquele que tiver mais de 14 anos de idade. Importante questão é saber se o médico que realiza cirurgia para mudar o sexo do indivíduo, com o consentimento deste, comete crime de lesão corporal grave. Muitos dizem que o indivíduo não poderia consentir na realização da cirurgia, posto que sua natureza estaria sendo contrariada. A condição sexual do indivíduo não é uma situação imutável, como se pode pensar. Não é interesse da coletividade. Não é um bem indisponível. Os indivíduos, machos ou fêmeas, podem ter, por intervenção cirúrgica, modificadas certas características fenotípicas, sem que isso signifique qualquer prejuízo para quem quer que seja. Vive-se já no século XXI, em que as distâncias não existem, o homem já foi à Lua e voltou, a informática consegue feitos inimagináveis há menos de um século. O avanço tecnológico é desconcertante. As mudanças no pensamento, nos costumes, nas relações entre as pessoas alcançam situações jamais pensadas. A liberdade de agir, de atuar, desde que não cause prejuízos ou lesões aos interesses alheios, há, sempre, de ser preservada. Ser homossexual, querer extirpar o órgão genital e no lugar construir algo parecido com o órgão do sexo oposto não pode, por si só, causar qualquer lesão a qualquer bem jurídico. O que deve importar, para o Direito, é o bem da sociedade e dos indivíduos. Se a renúncia a uma tutela não implica qualquer prejuízo para quem quer que seja, o bem em questão é disponível e, portanto, sua excisão, alteração, modificação, não pode significar qualquer lesão, pelo que se trata de comportamento lícito o do médico que, atendendo à vontade do indivíduo, modifica-lhe os órgãos genitais.

10.7 EXCESSO NAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE As causas de exclusão da ilicitude, como se viu, estão definidas em normas penais permissivas que fixam seus requisitos, estabelecendo limites objetivos, dentro


Ilicitude - 35 dos quais a conduta do agente deve realizar-se. Na legítima defesa, a reação deve ser com o meio necessário, o qual deve ser usado com moderação. No estado de necessidade, o bem sacrificado deve guardar certa e razoável proporção com o bem salvo. O exercício de direito deve ser regular, dentro dos limites estabelecidos pela norma autorizadora, e o dever legal deve ser cumprido estritamente, sem excessos. Por isso, prevendo a possibilidade concreta de o agente ultrapassar os limites das justificativas, o parágrafo único do art. 23 do Código Penal expressamente esclarece: “o agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”. A lei, pois, prevendo as várias hipóteses de ultrapassagem dos limites por ela fixados para considerar lícita a conduta típica, determina que, nessas hipóteses, a causa de justificação descaracteriza-se, devendo o agente ser punido conforme tenha excedido dolosa ou culposamente.

10.7.1

Excesso doloso

O excesso será doloso quando o sujeito, com plena consciência dos limites da eximente, conhecendo até que ponto ou em que medida podia atuar, ultrapassa aqueles limites com vontade. Assim ocorre com o agredido injustamente que, podendo repelir a agressão com um ferimento no agressor, tendo disso total consciência, resolve, deliberadamente, matá-lo. Nesse caso, usa de meio além do necessário, o que descaracteriza a legítima defesa, respondendo por homicídio doloso. O mesmo se diga do indivíduo que, perdido há dias numa região desabitada, encontra uma casa fechada, invade-a e, após subtrair alimento e saciar a fome, continua, consciente e voluntariamente, subtraindo outros alimentos. Terá excedido os limites do estado de necessidade, já que a continuidade da subtração já não se destina a salvar sua vida de perigo, então já inexistente. O policial ou o particular que efetua a prisão em flagrante não pode ir além do indispensável a suprimir a liberdade de movimentos do preso, não podendo espancá-lo, torturá-lo, nem humilhá-lo ou mantê-lo em situação que não se harmonize com sua condição humana. Agindo assim, intencionalmente, estará ultrapassando, dolosamente, os limites da justificativa, que resta, por isso, descaracterizada.


36 – Direito Penal – Ney Moura Teles Excedendo, dolosamente, os limites da justificativa, esta não se aperfeiçoa, mantida a ilicitude do fato.

10.7.2

Excesso culposo

É culposo o excesso que deriva da inobservância do dever de cuidado objetivo e que será punível se o resultado decorrente da conduta estiver definido na lei como fato culposo. O sujeito, diante de uma agressão injusta, por descuido, escolhe um meio além do necessário, ou utiliza o meio necessário imoderadamente, sem ter a intenção de ultrapassar os limites da eximente. É o caso do sujeito que avalia indevidamente a gravidade da agressão sofrida, ou não atenta para o poder da reação que vai empreender, não medindo suas forças, ou o potencial lesivo do meio utilizado. Em vez de disparar uma vez, o que seria suficiente, dispara duas ou três, não com a vontade deliberada de vingar-se, nem por ódio do agressor, mas porque, desatento, descuidado, não verificou a desnecessidade do segundo disparo. Ultrapassando o limite da justificativa por negligência, e disso resultando a lesão de um bem jurídico, o sujeito que se encontrava inicialmente em legítima defesa responderá pelo tipo culposo, se previsto em lei.

10.7.3

Excesso de legítima defesa intensivo e extensivo

É na legítima defesa que o excesso adquire grande importância. Diz-se que o excesso é intensivo quando o agente utiliza um meio com potencial lesivo além do necessário ou utiliza o meio necessário com desproporcionalidade em relação à agressão. Será extensivo o excesso quando a repulsa continua após cessada a agressão, quando a defesa prolonga-se além da atualidade da agressão. No excesso intensivo, diante dos pressupostos da legítima defesa, o sujeito ultrapassa seus limites e, por isso, responderá. Tendo havido excesso intensivo, incidirá a atenuante da pena prevista no art. 65, III, c, última parte, do Código Penal. No excesso extensivo, o sujeito, inicialmente em legítima defesa, reage licitamente, e, quando já não há agressão, quando já não há a presença do pressuposto fático indispensável, agride o outro. Esse comportamento é autonomamente ilícito. É outro fato.


Ilicitude - 37 Se o agente, repelindo a agressão injusta praticada contra si com arma de fogo, dispara um tiro de revólver, caindo o agressor ferido e perdendo, na queda, a arma, já não pode o defendente continuar atirando. Até o primeiro tiro, seu comportamento é lícito, pois usou do meio necessário, moderadamente. Se continuar disparando e matar o outro, terá cometido homicídio doloso. Já não havia agressão, e por isso nem se pode falar em excesso de legítima defesa, pois esta se tinha exaurido no momento do primeiro disparo.

10.7.4

Excesso acidental

Se o excesso não for doloso, nem culposo, será acidental e, como tal, não será punível, mantida a justificativa, em sua plenitude. Nunca é demais lembrar que só são puníveis condutas realizadas dolosa ou culposamente. Um sujeito diante de uma agressão injusta, com arma de fogo, tem, próximo de si, uma arma automática. Incontinenti, toma-a, aponta-a em direção ao agressor e preme uma única vez a tecla do gatilho, sendo, entretanto, lançados contra a vítima 15 projéteis que a atingem, matando-a. Houve, à evidência, excesso, pois o meio necessário foi usado sem moderação. O sujeito, entretanto, não agiu com vontade de exceder-se, e tampouco foi negligente, até porque premiu a tecla do gatilho uma única vez. Não se pode falar em imperícia, pois não se tratava de um policial, ou atirador, mas de um homem comum. Esse excesso não derivou nem de dolo, nem de culpa. Foi um acidente. Era inevitável. Não é punível, e o sujeito agiu em legítima defesa.

10.7.5

Excesso exculpante

O excesso intensivo de legítima defesa derivado de medo, ou perturbação psicológica, será estudado no Capítulo 11, “Culpabilidade”.

10.8 CONCLUSÃO Dado um fato típico, é preciso verificar se é ilícito. Não ocorrendo qualquer causa de justificação, uma excludente de ilicitude, ter-se-á que o fato é típico e ilícito. Sendo típico e ilícito, há ilícito penal. Não, ainda, o crime, posto que, para este se aperfeiçoar, é preciso que seja, além disso, culpável. Assim, falta o exame da terceira característica do crime: a culpabilidade.


11 CULPABILIDADE

____________________________ 11.1 CONCEITO 11.1.1 Noções básicas e algumas notas históricas Culpa, no sentido amplo, é o mesmo que culpabilidade. Não basta que o sujeito tenha violado o preceito, causando, ainda, a lesão ou expondo o bem jurídico a perigo. É preciso que esse fato tenha sido cometido culpavelmente. A história do Direito Penal revela, entretanto, que nem sempre foi assim, pois nos primórdios, e por muito tempo, para que se caracterizasse um crime, e, de conseqüência, se pudesse aplicar a pena, era suficiente que entre o comportamento do homem e o resultado houvesse apenas um nexo de causalidade. Tendo havido um resultado, e verificando-se que era conseqüência de um comportamento humano, então o homem cometera o crime e devia ser punido. Não se conhecia qualquer ligação entre o agente e o fato em si, além, é claro, da causalidade física. Esse era o Direito Penal do resultado, da responsabilidade objetiva, que predominava entre os povos bárbaros, como os germanos, e no Direito Romano primitivo. “Mas bem cedo, com o burilar do espírito humano, o legislador percebeu que era errado colocar, no mesmo plano, o dano ocasionado pelo raio ou pelo animal e o produzido pela ação do homem. Enquanto os dois primeiros devem ser considerados inevitáveis, o último, pelo contrário, é evitável porque o homem pode prever as conseqüências do seu atuar e abster-se assim de agir em face delas.”1 Já no Direito Romano clássico desenvolve-se a idéia de culpabilidade, que vai

1

BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 2, p. 3.


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles ser mantida e enriquecida no Direito Canônico. A evitabilidade dos fatos humanos é a idéia básica central sobre a qual vai ser construída a noção de culpabilidade. Só o homem, porque conhece as leis da natureza e porque é livre para agir, pode prever as conseqüências dos atos que praticar, e, prevendoas, pode desejar que elas se realizem ou querer que não aconteçam, evitando-as. Da mesma idéia de evitabilidade nasce o conceito de previsibilidade, que é a possibilidade de ser antevisto um resultado lesivo, uma conseqüência do comportamento humano. E, com base nessas duas noções básicas, constrói-se outro conceito fundamental, o de voluntariedade, a vontade que o homem tem de alcançar determinado objetivo. Tem início a elaboração do conceito de culpabilidade, que só existiria se o resultado fosse evitável, se houvesse previsibilidade, se o homem pudesse prevê-lo. Prevendo-o, poderia ter evitado, e tendo vontade de que ele acontecesse, era, por isso, culpado. Era o dolo. Não prevendo o que deveria ter previsto, o homem terá agido indevidamente, não evitando o errado porque não agiu como deveria ter agido. Deveria ter previsto o previsível, evitado o evitável. Era, por isso, culpado. Eis a culpa, em sentido estrito. Essas observações acerca do comportamento interno do sujeito constituem a subjetividade que se passou a exigir para a aplicação da pena criminal. Surgiu um novo Direito Penal, o da responsabilidade subjetiva, o Direito Penal da culpabilidade. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO ensina: “Não se pode apontar com exatidão o momento histórico em que tal fenômeno ocorreu, mesmo porque a história do Direito Penal está marcada de retrocessos. Fora de dúvida, porém, é que, a partir de então, se começa a construir a noção de culpabilidade, com a introdução, na idéia de crime, de alguns elementos psíquicos, ou anímicos – a previsibilidade e a voluntariedade – como condição da aplicação da pena criminal – nullum crimen sine culpa.”2

11.1.2

Teoria psicológica da culpabilidade

Para a teoria psicológica, culpabilidade é a ligação psíquica entre o agente e o fato,

2

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 219.


Culpabilidade - 3 sendo suas espécies o dolo e a culpa, em sentido estrito. Essa teoria constrói a noção de culpabilidade com base nas duas idéias-básicas primitivamente construídas: a previsibilidade e a voluntariedade. Se houver previsibilidade e voluntariedade, haverá dolo. Se o agente previu o resultado e desejou alcançá-lo, agiu dolosamente. Sendo o fato previsível e o sujeito, prevendo ou não, não desejou o resultado, agiu com culpa, em sentido estrito. Não se pode olvidar que essa é uma construção que surge no alvorecer do Direito Penal da culpabilidade, e que vai imperar por muitos séculos, contando, até hoje, com adeptos. Culpabilidade é, durante muitos anos, dolo ou culpa, em sentido estrito. Como se viu, no estudo da teoria finalista da ação, essa noção já está superada, mas não se deve esquecer que essa idéia representou um grande avanço para o Direito Penal. A estrutura do crime, adotada a teoria psicológica da culpabilidade, mostra a conduta entendida do ponto de vista meramente causal, naturalístico, como simples causa do resultado; a ilicitude tal qual se a entende modernamente; mas a culpabilidade como o nexo psíquico entre o fato e o agente: dolosa ou culposa. Já então se exigia, como pressuposto da culpabilidade, a capacidade penal, ou seja, a imputabilidade do agente. Contra a teoria psicológica levantam-se duas críticas bastante firmes. O dolo, sabe-se, é, numa palavra, querer. A culpa, em sentido estrito, é o nãoquerer. Age dolosamente quem quer ou aceita o resultado. Age culposamente quem não quer o resultado, mas o causa, por negligência. Os conceitos de dolo e culpa são, portanto, antagônicos, já que o primeiro é positivo e o segundo negativo. A teoria psicológica, no entanto, afirma que dolo e culpa, stricto sensu, são espécies de culpabilidade. De conseqüência, duas noções opostas, antagônicas, seriam espécies de um mesmo denominador comum, o que é, no mínimo, incoerente, para não dizer, absurdo. Além disso, na culpa inconsciente, em que o sujeito, apesar da previsibilidade, não faz a previsão, nenhuma ligação psicológica existe entre o ele e o fato; todavia, a teoria psicológica afirma que a culpabilidade é um nexo psíquico entre o agente e o fato. Essa teoria, por essas razões, não podia ser aceita.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles

11.1.3

Teoria normativa ou teoria psicológico-normativa da culpabilidade

No início do século XX, o jurista alemão FRANK, estudando o caso do náufrago na tábua de salvação, que, para salvar-se, matava o companheiro, observou que ele era desculpado por estar em estado de necessidade, mas agia com dolo. Quando dirigia sua conduta para eliminar o outro, agia com vontade de alcançar o resultado. Todavia, o direito não lhe respondia com uma pena. Então, percebeu que a culpabilidade não podia ter como espécie o dolo, uma vez que, mesmo agindo com dolo, o náufrago não era culpado. Com base nessa constatação, verificou que o sujeito só podia ser considerado culpado e, de conseqüência, merecer a sanção penal quando seu comportamento tivesse sido reprovável, censurável, e isso só era possível quando tivesse possibilidade de conduzir-se de forma diferente. A conclusão foi a de que o elemento caracterizador da culpabilidade era um juízo de valor de reprovação que se fazia a respeito do fato praticado, dolosa ou culposamente, pelo agente. Quando se pudesse exigir do sujeito a realização de um comportamento de acordo com as exigências do Direito, poder-se-ia reprová-lo. Se, verificadas as circunstâncias em que ele se encontrava, fosse possível exigir dele um comportamento lícito, mereceria censura, reprovação. Aí, sim, estaria presente a culpabilidade. FRANK introduziu, no conceito de culpabilidade, uma exigência de caráter normativo: a exigibilidade de conduta diversa. Culpabilidade, portanto, não era apenas um liame psicológico entre o agente e o fato, mas também a reprovabilidade do agente, pelo fato que ele realizou, com dolo ou com culpa, em sentido estrito. Essa reprovabilidade só poderia ser feita, quando se pudesse exigir do agente conduta diferente da realizada. O dolo e a culpa, em sentido estrito, não são espécies de culpabilidade, mas seus elementos. A teoria recebeu a denominação de psicológico-normativa ou normativa, uma vez que, mantendo o dolo e a culpa, em sentido estrito, não como espécies, mas como elementos da culpabilidade, acrescentou um novo, de caráter normativo, que é o juízo de valor de reprovação que se faz sobre a conduta do agente, pelo fato praticado, quando presente a exigibilidade de conduta diversa. Em síntese, para a teoria psicológico-normativa, a culpabilidade é a


Culpabilidade - 5 reprovabilidade da conduta do agente pelo fato, doloso ou culposo, por ele realizado. O pressuposto da culpabilidade é a imputabilidade, e seus elementos são: o dolo ou a culpa, em sentido estrito (elemento psicológico-normativo), e a exigibilidade de conduta diversa (elemento normativo). Presentes o pressuposto – imputabilidade – e os elementos da culpabilidade, o agente teria sobre seu comportamento o juízo de censura, de reprovação; por isso, seria culpado, devendo, de conseqüência, aperfeiçoado o crime, receber a sanção penal.

11.1.4 A

Teoria normativa pura teoria

psicológico-normativa

da

culpabilidade

apresentava

algumas

incongruências. Para ela, o dolo continha um elemento normativo: a consciência atual da ilicitude, como já dizia a teoria da vontade, dos clássicos. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO aponta, a propósito, um problema crucial: “Consideremos dois tipos criminológicos bem conhecidos – o do criminoso habitual e o do criminoso por tendência. Tentemos aplicar-lhes o dolo normativo. É discutível que isso seja possível. Raciocinemos com um exemplo bem brasileiro: um delinqüente profissional do sertão, ou um delinqüente habitual das favelas do Rio, ou de São Paulo. Esse tipo criminológico, em geral menor desamparado, ou nascido de família desajustada, é criado e educado, desde a mais tenra infância, em um ambiente social agressivo, onde a criminalidade é a tônica. Para ele, o furto, o roubo, os crimes contra a pessoa, é o normal, é o certo. Não chegou a formar em seu espírito uma consciência ética, nem teve oportunidade para isso. Os seus padrões de conduta são modelados segundo as regras do crime. Não sabe distinguir o certo do errado, o reto do torto, o lícito do ilícito. Como exigir-se de um desses seres humanos às avessas que tenha a exata ‘consciência atual da ilicitude’, quando jamais soube o que é ilícito? Mas, se a consciência atual da ilicitude é elemento constitutivo do dolo, a conclusão é a de que um tal tipo criminológico, quando comete crime, age sem dolo.”3 Já foi dito – quando do estudo acerca da conduta – que, para agir dolosamente, não é necessário que o sujeito tenha consciência atual de que age contra o direito, de

3

Op. cit. p. 225.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles que realiza um comportamento proibido. A exigir-se esse elemento normativo, então se chegaria à conclusão de que um ou outro daqueles delinqüentes mencionados por ASSIS TOLEDO, quando mata, ou furta, age sem dolo, posto que não tem consciência real da ilicitude. É de todo claro, o favelado, nascido em ambiente marginal, filho de delinqüente contumaz, de mãe alcoólatra, criado em ambiente agressivo, convivendo com a violência, que presencia diariamente, em seu lar e no vizinho, entre seus amigos, apreende, em seu dia-a-dia, valores exatamente opostos aos tutelados pelo direito. O dolo, portanto, deve ser natural, não contendo um elemento normativo. HANS WELZEL, quando formulou a teoria finalista da ação, como não poderia deixar de ser, apresentou nova concepção sobre a culpabilidade, fulminando a teoria psicológico-normativa e construindo uma nova estrutura do crime. Primeiramente, demonstrou que o dolo e a culpa, em sentido estrito, não são elementos da culpabilidade, porque se situam no interior dos tipos legais de crime, e, de conseqüência, integram a própria conduta e o fato típico. Todos os tipos ou são dolosos ou são culposos. Como verificado anteriormente, toda conduta humana é final, dirigida a determinada finalidade. Ao extrair a culpa, em sentido estrito, e o dolo, da culpabilidade, demonstrou, ainda, que o dolo não continha a consciência atual da ilicitude, pois é puramente psicológico. Dolo e culpa, stricto sensu, que se situavam no interior da culpabilidade, foram remetidos para o interior do fato típico, de onde, aliás, nunca saíram. Retirada do dolo, a “consciência atual da ilicitude” permaneceu no interior da culpabilidade, com substancial alteração. Demonstrou WELZEL que não se pode exigir do agente tenha atuado com consciência real, atual, mas apenas com a consciência potencial, a possibilidade de se conhecer a ilicitude. Esquematicamente: da culpabilidade psicológico-normativa foram extraídos o dolo e a culpa, em sentido estrito, remetidos para o fato típico. O dolo foi transportado sem o elemento normativo, “consciência real da ilicitude”, que permaneceu na culpabilidade alterado, assim: “consciência potencial da ilicitude”. De conseqüência, a culpabilidade, tendo como pressuposto a imputabilidade, ficou sendo a reprovabilidade da conduta do agente, com consciência potencial da ilicitude, que poderia ter agido conforme o Direito. Em síntese: seu pressuposto é a imputabilidade; seus elementos são: a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.


Culpabilidade - 7 Culpabilidade, para o finalismo, é um puro juízo de valor, normativo, de reprovação da conduta do agente imputável, com consciência potencial da ilicitude, que poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo. Com essas idéias, HANS WELZEL destruiu a teoria psicológico-normativa, passando, então, a culpabilidade a ser concebida como um puro juízo de valor de caráter normativo; daí o nome da teoria normativa pura ou teoria da culpabilidade, que é o finalismo que esclarece este conceito. Culpável, portanto, é o fato praticado por um sujeito imputável que tinha, pelo menos, a possibilidade de saber que seu comportamento era proibido pelo ordenamento jurídico, e que, nas circunstâncias em que agiu, poderia ter agido de modo diferente, conforme o direito. Se o fato for culpável, ter-se-á aperfeiçoado o crime, e deverá ser, de conseqüência, uma pena. Assim evoluiu o conceito de culpabilidade ao longo dos anos. Até hoje, ainda aparecem discussões novas a respeito do conceito, que, todavia, não cabem no âmbito deste manual. Necessária, agora, para a compreensão, em profundidade, da culpabilidade, a análise, separada e detalhadamente, de seu pressuposto – a imputabilidade – e de seus elementos – a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

11.2 IMPUTABILIDADE 11.2.1

Conceito

O homem é um ser inteligente e livre; por isso, é responsável pelo que faz. Inteligente, sabe o que é o bem e o que é o mal, sabe distinguir o certo do errado, o lícito do ilícito, o que deve e o que não deve fazer. Livre, pode escolher entre o torto e o direito, entre o justo e o injusto. Se sabia distinguir entre o permitido e o proibido, e se podia escolher entre uma e outra conduta, é responsável pelo comportamento proibido que realizou. Só se pode atribuir a um homem a responsabilidade por algo realizado, se ele for um ser inteligente e livre, se tiver condições pessoais que lhe assegurem a capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática do fato punível. Imputabilidade penal é a capacidade de ser culpável. Se um homem não for inteligente, ou, sendo, não for livre, se não souber distinguir entre o bem e o mal, ou sabendo, não tiver liberdade para escolher entre um


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles e outro, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser atribuída. Será ele incapaz de ser culpado. O Código Penal não diz o que é imputabilidade, dizendo, ao contrário, o que é inimputabilidade, nos arts. 26, 27 e 28, § 1º. Assim, para saber se o agente do fato típico e ilícito era imputável, é necessário verificar se não era inimputável, com base nas normas penais permissivas exculpantes mencionadas. Ali estão os requisitos para aferição da inimputabilidade. Ausentes, o agente será imputável, capaz de responder por seus atos, perante a justiça penal.

11.2.2

Inimputabilidade – espécies

São três as espécies de inimputabilidade, conforme seja seu requisito causal: a primeira é a decorrente de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado; a segunda, causada pela menoridade do sujeito, e, finalmente, a proveniente de embriaguez completa, fortuita ou por força maior.

11.2.2.1

Inimputabilidade

por

doença

mental,

desenvolvimento

mental incompleto ou desenvolvimento mental retardado Dispõe o art. 26: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” O Código Penal adotou o sistema biopsicológico de aferição da inimputabilidade, segundo o qual será inimputável o indivíduo que portar uma anomalia psíquica e, ao mesmo tempo, em decorrência dela, apresentar incapacidade de entendimento ou de determinação. O pressuposto biológico, que é o requisito causal dessa inimputabilidade, é ser o agente portador de uma doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou de desenvolvimento mental retardado. São doenças mentais as enfermidades que alteram as funções intelectuais e volitivas do indivíduo, entre outras, “as psicoses (orgânicas, tóxicas e funcionais, como paralisia geral progressiva, demência senil, sífilis cerebral, arteriosclerose cerebral, psicose maníaco-


Culpabilidade - 9 depressiva etc.), esquizofrenia, loucura, histeria, paranóia, etc.”4. Divergem os tribunais acerca de a epilepsia ser ou não doença mental. “Os

epilépticos

são

doentes

de

extrema

periculosidade.

Esta

periculosidade deriva de uma condição biológica: a facilidade de reacionar aos estímulos sensíveis e sensoriais, com perturbações humorais e afetivas e com uma atividade irritável, que predispõe a reação impulsiva. São doentes de mau humor, e muito irritáveis, disposição temperamental esta que conduz à criminalidade violenta. Ao menor motivo, ou mesmo sem motivo aparente, o doente explode em terríveis acessos de cólera violenta. A reação do epiléptico processa-se à margem da consciência, é automática, brutal, verdadeira carga energética concentrada.”5 O mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgado mais recente, tratou diferentemente a matéria: “Ao epiléptico só falta a plena capacidade volitiva quando da ‘aura’. Fora da síndrome, é o portador do mal inteiramente responsável pelo delito cometido.”6 Desenvolvimento mental incompleto é o que ainda não se concluiu e desenvolvimento mental retardado é o que não se concluirá. No primeiro caso, encontram-se os menores e, para alguns, os silvícolas não adaptados. É certo que estes, pelo simples fato de não estarem, ainda, adaptados, não podem ser considerados portadores de desenvolvimento mental incompleto, o que deve ser apurado mediante perícia técnica. No segundo caso, encontram-se os oligofrênicos, os idiotas, imbecis e débeis

mentais.

Os

surdos-mudos

podem

apresentar

deficiência

intelectual

considerável e, conforme as circunstâncias, ser considerados com desenvolvimento mental retardado. Nem todo doente mental, portador de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, é inimputável. É necessário que, em conseqüência do pressuposto biológico, seja ele inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Para que o sujeito seja inimputável, a doença mental ou o desenvolvimento incompleto ou retardado deve causar a absoluta incapacidade de entendimento do indivíduo ou sua completa incapacidade de determinação. 4

JESUS, Damásio E. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 441.

5

Ac. do TJSP, Rel. Silva Leme. Revista dos Tribunais, nº 419, p. 102.

6

Revista dos Tribunais, nº 591, p. 319.


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Tal situação deve ter existido no momento em que foi realizada a ação ou a omissão típica, no momento da conduta, e sua verificação será feita mediante exame pericial, a ser realizado por técnicos – psiquiatras e psicólogos. Examinando-o, indagar-se-á, primeiramente: o agente, ao tempo do fato, era doente mental, tinha desenvolvimento mental incompleto ou retardado? Se a resposta for NÃO, a conclusão é de que o agente é imputável, e a operação estará concluída. Se a resposta for SIM, passa-se à segunda pergunta: ao tempo do fato, o agente era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato? Se a resposta for SIM, a conclusão é de que ele é inimputável e a operação estará encerrada. Se for NÃO, passa-se à terceira e última pergunta: o agente, ao tempo do fato, era inteiramente incapaz de determinar-se de acordo com aquele entendimento do caráter ilícito do fato? Se a resposta for SIM, a conclusão é de que ele é inimputável; se for NÃO, então ele é imputável, terminada a verificação. Se o indivíduo que cometeu o fato típico e ilícito não era imputável, se não tinha capacidade de entendimento, de saber que sua conduta era proibida, ou, mesmo capaz de entender, não tinha capacidade de se autogovernar, não poderá sofrer a sanção penal. Não pode ser punido, não pode ser responsabilizado. Verificada a inimputabilidade do agente do fato típico e ilícito, deverá o juiz aplicar-lhe uma medida de segurança, conforme manda o art. 97 do Código Penal, que pode ser a internação em hospital de custódia, com tratamento psiquiátrico, ou a sujeição a um tratamento ambulatorial. As medidas de segurança serão estudadas no Capítulo 21 deste manual.

11.2.2.2

Inimputabilidade por menoridade

A Constituição Federal, em seu art. 228, dispõe: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.” O art. 27 do Código Penal: “Os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.” A lei brasileira presume que todo menor de 18 anos tem desenvolvimento mental incompleto; por isso, considera-o inimputável, independentemente da verificação de sua capacidade de entendimento ou de determinação. Aqui, a lei adotou um critério puramente biológico. Basta que seja menor e será inimputável. Trata-se de uma presunção absoluta, não se admitindo prova da capacidade de entendimento ou de


Culpabilidade - 11 determinação. A Lei nº 8.069, de 13-7-1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, cuida dos menores que vierem a cometer fatos típicos. Para a lei especial, são crianças as pessoas com até 12 anos de idade incompletos e adolescentes aquelas entre 12 e 18 anos. Para as crianças que cometerem fatos típicos e ilícitos, será aplicada uma das seguintes medidas: encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; abrigo em entidade; ou colocação em família substituta, conforme as necessidades do caso. Se o adolescente cometer fato típico ilícito, sofrerá uma das seguintes medidas, ditas socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional, ou uma das medidas aplicáveis às crianças, com exceção das duas últimas. Ultimamente, com o aumento da criminalidade, e, ao lado dela, o incremento da delinqüência juvenil, não são poucas as vozes que se levantam no sentido de que a menoridade penal seja modificada, para que somente sejam considerados inimputáveis os menores de 16 anos, e, alguns mais radicais, defendem a redução para abaixo dos 14 anos. Mostram estatísticas que revelam grande número de ilícitos praticados por menores a mando, ou sob o controle, de adultos, que se utilizam da menoridade de crianças e adolescentes para assegurar a impunidade. Propostas como essas, longe de resolver qualquer problema da espécie existente no país, constituem verdadeiro engodo, e só podem ser compreendidas dentro da ideologia da corrente da lei e da ordem. As crianças e os adolescentes que cometem fatos típicos e ilícitos, que são usados por delinqüentes adultos, são, em verdade, filhos de uma sociedade injusta, assentada em bases econômicas e sociais perversas. A eles não foram proporcionadas oportunidades de vida digna, com habitação, família, educação, saúde, lazer, formação moral, enfim, não tiveram oportunidades de apreender os valores ético-sociais importantes e, por isso, quando atuam contra o direito, estão, na verdade, simplesmente, respondendo aos “cidadãos de bem” com o gesto que aprenderam: a


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles violência e o desrespeito à lei. Nunca se pode esquecer que não é o Direito Penal o purificador das almas, nem sua missão é a de combater a violência, adulta ou juvenil. Sua tarefa é proteger os bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves. Querer modificar a menoridade penal para encarcerar adolescentes é, infelizmente, querer transformá-los, mais cedo e mais eficazmente, em verdadeiros delinqüentes, perigosos, pois encaminhá-los aos presídios, ao convívio com delinqüentes formados, experimentados, é abdicar de qualquer possibilidade de educálos para uma vida digna. Soa, por fim, como piada a proposta, uma vez que o Estado brasileiro não tem sido capaz de construir estabelecimentos prisionais para atender às necessidades atuais de vagas para os condenados a penas privativas de liberdade. Se a capacidade penal alcançar os adolescentes, como se propõe, então a falência do sistema penitenciário será ainda mais estrondosa.

11.2.2.3

Inimputabilidade por embriaguez completa, proveniente de

caso fortuito ou força maior O § 1º do art. 28 do Código Penal contém o seguinte dispositivo: “É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” Trata-se aqui de outra espécie de inimputabilidade, que difere da primeira, do art. 26, apenas pelo requisito causal. O requisito conseqüencial é o mesmo: a inteira incapacidade de entendimento ou de determinação. Na primeira hipótese, o pressuposto é a doença mental, o desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Aqui, é a embriaguez. Não qualquer embriaguez, mas apenas a completa e, mais, proveniente de caso fortuito ou força maior. Embriaguez é “a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool, cujos efeitos podem progredir de uma ligeira excitação até ao estado de paralisia e coma”7.

7 MANZINI.

447.

Apud JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p.


Culpabilidade - 13 DAMÁSIO E. DE JESUS ensina que a embriaguez apresenta três fases. A primeira é a chamada fase da excitação, em que o sujeito apresenta enorme euforia, torna-se loquaz, brinca, diverte-se, fala com tom de voz elevado, tem diminuída sua capacidade de autocrítica. Todos conhecem essa fase, em festas e ambientes sociais, e certamente apenas os que jamais ingeriram bebida alcoólica não experimentaram essa situação. Geralmente, nessa etapa, o sujeito não passa de um inconveniente, falando o que não devia ou podia ser dito. A segunda é a da depressão, em que o indivíduo já experimenta certa confusão mental, não se localizando, com precisão, no tempo e no espaço, perdendo a capacidade de coordenar seus movimentos corporais e, em decorrência desse déficit, irritando-se com facilidade. Aqui, qualquer contrariedade, por menor que seja a dúvida que se apresenta, faz com que o sujeito reaja com violência ou agressividade. A terceira e última fase é a da letargia, quando o sujeito já ultrapassou todos os limites do autocontrole físico e mental, atingindo o sono, a anestesia, o relaxamento dos esfíncteres, culminando com o coma. A embriaguez é completa quando atinge pelo menos a segunda fase. O primeiro requisito para essa inimputabilidade é que a embriaguez seja completa. Mas não basta; é preciso, ainda, que ela tenha sido decorrente de um caso fortuito ou de força maior. Embriaguez por caso fortuito é a acidental, que ocorre sem que o sujeito desejasse embriagar-se, nem a decorrente de negligência. Nem é voluntária, nem é culposa. Às vezes, o sujeito ingere determinada substância sem conhecer seu efeito embriagante, ou uma sua condição fisiológica que, interagindo com a substância, conduz à embriaguez. Embriaguez proveniente de força maior é a resultante de força física externa imprimida sobre o sujeito, no sentido de obrigá-lo a ingerir a substância embriagante. Se o sujeito, no momento da ação ou da omissão, estiver completamente embriagado, em razão de caso fortuito ou força maior e se, por isso, for absolutamente incapaz de entender a ilicitude do fato ou inteiramente incapaz de determinar-se de acordo com esse entendimento, será ele inimputável. Se a embriaguez for patológica, como já dito quando se abordou a interpretação da lei penal, a inimputabilidade será verificada nos termos do art. 26 e não do § 1º do art. 28.

11.2.3

Embriaguez

voluntária,

preordenada

ou

não,

e


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles

embriaguez culposa. A actio libera in causa O art. 28, II, do Código Penal, estabelece que não exclui a imputabilidade a embriaguez voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. Será o agente considerado imputável, plenamente capaz de ser culpado. São duas as modalidades: a voluntária, em que o sujeito tem consciência e vontade de se embriagar, e a culposa, em que ele, apesar de não querer, continua, negligentemente, ingerindo a substância até se embriagar. A embriaguez voluntária pode ser, ainda, preordenada, quando o sujeito ingere a substância inebriante voluntariamente e com o fim de cometer determinado fato típico, caso em que, no momento da aplicação da pena, será considerada como circunstância agravante. A norma do art. 28, II, do Código Penal, leva à punição de agente por fato cometido numa situação em que ele pode não ter consciência dos fatos praticados – o que implica a responsabilização da pessoa num dos casos de verdadeira ausência de conduta – ou em que lhe falte capacidade de entender a ilicitude ou de se determinar –, o que resulta na punição de alguém na condição igual à do inimputável. Essa seria uma exceção ao princípio segundo o qual a capacidade de ser culpado deve ser aferida no momento da conduta, e é chamada actio libera in causa, definida como “os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando podia e devia prever”.8 Trata-se, na verdade, de responsabilidade penal objetiva, pois, nesses casos, o agente, no momento em que realiza a conduta, muitas vezes não tem consciência do fato, ou, então, da ilicitude. Sem consciência, não se pode afirmar tenha ele cometido algo ou se omitido voluntariamente, pois que a vontade depende da consciência. Muitas vezes, há verdadeira ausência de conduta, por encontrar-se ele em estado de inconsciência. Noutras, apesar da consciência fática, não tem, todavia, consciência da ilicitude, nem mesmo capacidade para atingir tal consciência.

8

QUEIRÓS, Narcélio de. Teoria da actio libera in causa e outras teses. Rio de Janeiro: Forense, 1963. p. 37.


Culpabilidade - 15 O preceito do inciso II do art. 28, todavia, é taxativo: não fica excluída a imputabilidade penal, o que significa dizer que o indivíduo é capaz de ser culpado e será, certamente, condenado. A teoria da actio libera in causa faz transferir, por ficção, o juízo que se faz acerca da imputabilidade, do momento da conduta, para o momento em que o agente ingeriu a substância embriagante. Chega-se ao absurdo de dizer: se o agente, ao se embriagar, previu a possibilidade de cometer crime, e o quis ou não se importou com essa possibilidade, então responderá pelo fato a título de dolo, e se, não o prevendo, ou prevendo e não aceitando o resultado previsível, responderá por culpa, stricto sensu. Dolo e culpa, em sentido estrito, são categorias que exigem, necessariamente, a previsibilidade, que só pode ocorrer quando o indivíduo tem consciência. A solução do Código é infeliz e colide, frontalmente, com o princípio da presunção da inocência, insculpido na Carta Magna, no art. 5º, LVII, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, que limita a atividade do legislador, impedindo-o de estabelecer a responsabilidade com base em presunções de culpabilidade9. Não se pode, portanto, presumir a culpabilidade, que deve restar demonstrada no momento em que o sujeito realizou o comportamento proibido e reprovável. A teoria da actio libera in causa, na verdade, colide com outros princípios constitucionais.

ALBERTO

SILVA FRANCO

observa-o

violando o princípio

da

personalidade da pena, uma vez que, “se a pena não pode passar da pessoa do delinqüente, é fora de dúvida que deva ter, com ele, estreita correlação, deve pertencer-lhe, deve atingi-lo como pessoa, enquanto centro de agir e de decisão. Desta forma, ninguém poderá, em verdade, responder por fato delituoso que não seja expressão de seu atuar, que não seja uma afirmação sua. Isto significa, nessa perspectiva, que todo agente deverá ser punido apenas e exclusivamente por fato próprio, por fato seu, enfim, por fato de sua responsabilidade pessoal”10. A actio libera in causa importa em agressão à harmonia do sistema penal. Com efeito, dispõe o parágrafo único do art. 18 do Código Penal que, em regra, somente serão

punidos

fatos

definidos

como

crime

cometidos

dolosamente,

e,

excepcionalmente, aqueles cometidos culposamente. Admitida a punição de

9

GOMES, Luiz Flávio. Direito de apelar em liberdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 39.

10

Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 333.


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles comportamentos realizados sem dolo e sem culpa, atinge-se, igualmente, por extensão, o princípio da legalidade, ao qual se incorporou o princípio da criação dos tipos dolosos e culposos. Já não se pode aceitar a responsabilidade penal objetiva; daí que cabe ao legislador brasileiro trilhar caminhos próximos aos de seus irmãos portugueses. ALBERTO SILVA FRANCO dá notícia que o art. 282 do Código Penal português assim estabelece: “Quem, pela ingestão voluntária ou por negligência, de bebidas alcoólicas ou

outras substâncias

tóxicas, se colocar em

estado de completa

inimputabilidade e, nesse estado, praticar um acto criminalmente ilícito, será punido com prisão até um ano e multa de 100 dias” e, “se o agente contou ou podia contar que nesse estado cometeria factos criminalmente ilícitos, a pena será a prisão de um a três anos e multa até 150 dias.” 11 Esse é o caminho. Deve-se eliminar a responsabilidade penal objetiva, e buscar a implantação da reprovação do comportamento do sujeito que se embriaga, preordenada, voluntária ou culposamente, e acaba por cometer fato típico ilícito.

11.2.4

Capacidade diminuída

Ao lado dos casos de inimputabilidade, o ordenamento penal prevê certas situações intermediárias, em que o sujeito, apesar de imputável, não tem a plenitude de sua capacidade de entendimento ou de determinação, denominadas de casos de “capacidade diminuída”. A lei prevê duas hipóteses: a menor capacidade decorrente de perturbação da saúde mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, prevista no parágrafo único do art. 26 (“a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”), e a decorrente de embriaguez incompleta, definida no § 2º do art. 28 (“a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”).

11

Op. cit. p. 333.


Culpabilidade - 17 Nas duas hipóteses, o agente é imputável; tem capacidade de entendimento e de determinação. Ocorre que essa capacidade não é plena, completa, integral, mas sofre diminuição em razão de perturbação da saúde mental, de desenvolvimento mental incompleto, retardado, ou de embriaguez incompleta. É pacífico que entre o estado de plena e total saúde mental, de completa normalidade psíquica, e os estados de deficiência psíquica não há uma “linha precisa de demarcação”, na expressão do sempre importante DAMÁSIO E. DE JESUS. Existem estados psíquicos que se situam numa zona intermediária entre a doença e a normalidade, entre a plenitude das faculdades psíquicas e a insanidade. É um terreno impreciso situado entre a zona da inimputabilidade e o território da imputabilidade. Entende o ordenamento que em tais situações o indivíduo é capaz, pois reúne condições psíquicas para compreender a ilicitude de seu comportamento e para se governar, para escolher o caminho a trilhar. É capaz, é imputável; todavia, sua capacidade não é plena, total, como a que tem o homem completamente sadio mentalmente. Diz-se nesses casos que, apesar de imputável, sua capacidade é reduzida, é menor do que a do plenamente imputável. Por essa razão, determina a lei que, numa situação dessas, tendo o sujeito realizado um fato típico e ilícito, será considerado capaz, imputável; todavia, na hipótese de ser considerado culpado, o juiz, ao aplicar a pena, deverá, em atenção a sua menor capacidade de entendimento ou de determinação, reduzi-la, de um a dois terços, impondo, pois, uma reprovação menor do que a que seria imposta ao plenamente capaz. Para uma capacidade menor, menor reprovação. O art. 98 do Código Penal prevê, no caso da capacidade diminuída prevista no parágrafo único do art. 26, a possibilidade de o juiz substituir a pena privativa de liberdade por uma medida de segurança, de internação ou de tratamento ambulatorial, conforme as circunstâncias.

11.2.5

Emoção e paixão

O art. 28, I, do Código Penal explica que a emoção e a paixão não excluem a imputabilidade penal, pelo que todo aquele que vier a cometer um fato típico ilícito em estado de emoção ou de paixão não será considerado inimputável, o que significa será ele considerado imputável, capaz de ser culpado. A emoção, dizem os doutrinadores, é um estado afetivo, que atinge e perturba o


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles equilíbrio psicológico do indivíduo, alterando-lhe a maneira de pensar e, de conseqüência, de agir, não retirando, todavia, a capacidade de entendimento e de determinação. A ira, o medo, a alegria, a surpresa, a vergonha, dizem, são situações emocionais, que são intensas e de duração limitada no tempo. A paixão, ao contrário, é um estado crônico, duradouro e, por isso, estável, revelando crise psíquica profunda, substancial, que atinge de modo grave não só a psique, mas também o próprio estado físico do homem. É o amor, é o ódio. Esses estados não implicam a perda da capacidade de entendimento ou de determinação; apenas alteram o estado psicológico do sujeito, que, apesar de emocional ou mentalmente alterado, continua com capacidade de entender e de se determinar. Tais estados podem funcionar como circunstâncias atenuantes, ou causas de diminuição de pena, conforme estejam associados a outras circunstâncias. É o que acontece com o indivíduo que mata, a pedido, o amigo doente, em estado terminal, praticando a eutanásia. Na verdade, encontra-se numa situação em que a emoção lhe domina o pensamento e interfere em sua liberdade de agir. Por isso, no ordenamento penal encontram-se normas como as do § 1º do art. 121: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz poderá reduzir a pena de um sexto a um terço”, e a do art. 65, III, c, que manda o juiz atenuar a pena quando o agente tiver cometido o fato “sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima.” A emoção e a paixão não excluem a capacidade penal, não tornam o agente inimputável, mas, em determinadas circunstâncias, podem constituir situações que impõem menor reprovação penal, tendo em vista a modificação do estado psíquico do sujeito, o que mostra que o Direito Penal coloca, no centro de suas atenções, o estado interno do agente do fato.

11.2.6

Conclusão

Verificada a inimputabilidade do agente do fato, se maior de 18 anos, ser-lhe-á aplicada medida de segurança, se menor, medida socioeducativa. Concluindo o julgador pela imputabilidade – capacidade de entender a ilicitude do fato e de determinar-se de acordo com o entendimento –, deverá, então, ser analisada a culpabilidade, verificando se seus dois elementos estão presentes: a


Culpabilidade - 19 potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa, caso em que será reprovável a conduta do agente.

11.3 ELEMENTOS DA CULPABILIDADE A culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com potencial consciência da ilicitude, poderia, nas circunstâncias, ter agido conforme o Direito. Será culpado, de conseguinte, o agente do fato típico que, imputável, tiver atuado com possibilidade de conhecer a ilicitude de sua conduta, e que poderia ter-se comportado de outro modo. Estudou-se o pressuposto da culpabilidade – a imputabilidade. Agora: seus dois elementos.

11.3.1

Potencial consciência da ilicitude

Consciência é conhecimento. Conhecer é dominar, é apreender, é ter consigo, é assenhorear-se do conhecimento de algo. Ter consciência de alguma coisa é ter penetrado em suas entranhas, desvendando todas as suas características, todas as suas particularidades, todas as suas nuanças. É conhecer, é saber, é discernir. A ilicitude é a relação de antagonismo entre um fato típico e todo o ordenamento jurídico. É a relação de contrariedade do fato com o Direito. Potencial é o que exprime a possibilidade de algo. Potencial consciência da ilicitude é a possibilidade de se conhecer que o fato é contrário ao Direito, ilícito, proibido, choca-se com a ordem jurídica. Para que se possa reprovar o comportamento de alguém, é necessário e indispensável que ele, quando atuou, tivesse, pelo menos, a possibilidade de saber que sua conduta era proibida, pois, se não lhe fosse possível atingir esse conhecimento, não tinha, então, nenhum motivo, nenhuma razão para deixar de realizar o que realizou. Quem age sem possibilidade de saber que fere o direito atua na certeza de que sua conduta é de acordo com a ordem jurídica e, assim sendo, não pode merecer qualquer censura, que só é possível quando se possa exigir do homem conhecer que seu gesto é proibido. Se ele tinha a possibilidade de conhecer a ilicitude e, mesmo assim, realizou a conduta contrária ao direito, deve, por isso, ser censurado, já que, tendo possibilidade de atingir a consciência da ilicitude, mesmo assim não a alcançou, quando devia, e por


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles isso vai ser reprovado. A consciência potencial da ilicitude é a razão de ser da culpabilidade, do juízo de reprovação que recai sobre o comportamento do sujeito, pois, quando este ignora, desconhece, não sabe e nem pode saber que está contrariando o direito, não pode ser culpado. Não se deve confundir a ausência da consciência da ilicitude com a ignorância da lei, esta inescusável. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO ensina: “Fixemos isto: lei, em sentido jurídico estrito, é a norma escrita editada pelos órgãos competentes do Estado. Ilicitude de um fato é a correlação de contrariedade que se estabelece entre esse fato e a totalidade do ordenamento jurídico vigente. Se tomarmos, de um lado, a totalidade das leis vigentes e, de outro, um fato da vida real, não será preciso muito esforço para perceber que a eventual ilicitude desse fato não está no fato em si, nem nas leis, mas entre ambos, isto é, na mútua contrariedade que se estabeleceu entre o fato concreto, real, e o ordenamento jurídico no seu todo. Assim, pode-se conhecer perfeitamente a lei e não a ilicitude de um fato, o que bem revela a nítida distinção dos conceitos em exame.”12 Desconhecer a ilicitude de um fato é completamente diferente de desconhecer a lei. Todas as pessoas, mesmo as analfabetas, que jamais viram um exemplar do Código Penal, sabem que matar é crime, e a alegação de desconhecimento da lei para se escusar da responsabilidade penal não é aceita pelo Direito. De nada adiantará, portanto, a alegação do sujeito de que realizou o fato porque não sabia que era típico, definido como crime. Mesmo tendo pleno conhecimento da lei, o sujeito pode realizar um comportamento ignorando que ele é proibido, ou acreditando que ele é permitido. Certa feita, um cidadão, perseguindo ladrões que ingressaram na casa de uma pessoa sua amiga, com o fim de recuperar os objetos subtraídos, acabou por alvejá-los, matando um e ferindo outro. Chamado à delegacia de polícia, espantou-se diante da notícia de que seria indiciado e processado, perguntando, indignado: “mas, doutor, matei um ladrão e ainda vou responder processo?” Este homem, rude, simples, ignorante, apesar de saber que matar é crime, agiu na certeza de que seu comportamento era lícito. Dentro de sua experiência de vida, sua cultura, seus valores, 12

Op. cit. p. 263


Culpabilidade - 21 entendia permitido matar aquele que acabara de furtar. Faltou-lhe, portanto, consciência da ilicitude. Não desconhecia a lei, mas ignorava a ilicitude. Para a reprovação da conduta do sujeito, não se exige tenha ele a consciência real da ilicitude, mas potencial. Exige-se que lhe tenha sido possível, nas circunstâncias em que atuou, atingir o conhecimento da ilicitude, mesmo que não a tenha alcançado. É um elemento puramente normativo, uma valoração que o juiz fará sobre o fato do agente, buscando verificar se era possível a ele, com o esforço devido de sua inteligência, com um juízo de seu próprio pensamento, conhecer que sua atitude era proibida. Concluindo-se que o agente podia ter conhecido a proibição que recaía sobre seu comportamento, ou a falta de permissão para realizar a conduta, deverá ele, então, ser reprovado. Se não, não merecerá censura penal, excluída sua culpabilidade. “A consciência da ilicitude é uma valoração paralela do agente na esfera do profano (Mezger), bastando, para que seja atingida, que cada um reflita sobre os valores ético-sociais fundamentais da vida comunitária de seu próprio meio (Welzel)”13, existente quando tiver sido fácil para o agente, nas circunstâncias em que atuou, com algum esforço de inteligência e com os conhecimentos que tinha na vida social, atingila.

11.3.2

Exigibilidade de conduta diversa

Em algumas situações, o sujeito realiza uma conduta típica e ilícita, com pleno conhecimento de sua ilicitude, mas, em circunstâncias tais que não lhe era possível realizar comportamento diferente. A realidade impõe-lhe atuar contra o Direito, e ele, mesmo sabendo proibido, realiza o comportamento. Veja-se a seguinte situação. O gerente de um banco comercial chega, ao fim do expediente de trabalho, em sua casa e encontra sua mulher e seus filhos sob a mira de poderosas armas de fogo, empunhadas por marginais que exigem dele retorne ao estabelecimento bancário e daí lhes traga certa importância em dinheiro. Se não atender à exigência, seus familiares sofrerão graves conseqüências. O gerente, então, retorna ao banco, retira o numerário e o entrega aos bandidos. O fato típico doloso por ele realizado é, a toda evidência, ilícito, uma vez que não se encontra justificado por nenhuma das excludentes de ilicitude – legítima defesa, estado de necessidade etc. O gerente é

13

TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 262.


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles imputável e agiu com consciência da ilicitude, pois é indubitável que sabia não poder apropriar-se do dinheiro alheio e dá-lo a terceiros. Seu comportamento é reprovável, merece censura penal? Para que o sujeito imputável seja reprovado, não basta que tenha a possibilidade de conhecer a ilicitude do fato típico e ilícito realizado, é preciso que, nas circunstâncias, tivesse a possibilidade de comportar-se de acordo com o Direito e não como se conduziu. Ainda que tivesse conhecimento real, ou, pelo menos, a possibilidade de entender a ilicitude, é necessário verificar se era possível agir de outro modo. Esta possibilidade, de agir de outro modo, é outro juízo de valor que o juiz faz acerca da conduta do agente, e denomina-se exigibilidade de conduta diversa. Só pode merecer censura penal quem podia ter realizado outro comportamento, aquele do qual pode ser exigida a realização de conduta diferente, conforme o Direito. É outro elemento normativo. Em algumas circunstâncias, como no caso do gerente do banco, não se pode exigir comportamento conforme o Direito. Ninguém pode exigir que, em vez de retirar e entregar o dinheiro, procurasse a polícia a fim de libertar seus familiares. Ninguém pode exigir do pai e marido que aja criando a possibilidade de enormes riscos para seus entes queridos. A exigibilidade de conduta diversa é o segundo elemento da culpabilidade, sem o qual não se poderá reprovar a conduta do agente. Não sendo possível ao agente ter agido de outro modo, a culpabilidade será excluída. Imputável o agente, sua conduta somente será reprovada, censurada, será ele culpado, quando estiverem presentes os dois elementos da culpabilidade: a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Faltando um dos elementos, ou ambos, exclui-se a culpabilidade. O fato será típico, ilícito, mas não será culpável, inexistindo o crime, e o agente será absolvido.

11.4 CAUSAS LEGAIS DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE O ordenamento jurídico-penal brasileiro contém algumas normas penais permissivas exculpantes, que excluem a culpabilidade, outras a diminuem. Tais normas contêm as chamadas causas de exclusão da culpabilidade ou dirimentes, que são: o erro de proibição inevitável, as descriminantes putativas, a coação moral irresistível e a obediência hierárquica.


Culpabilidade - 23

11.4.1

Erro de proibição

O erro é uma falsa ou inexata representação da realidade. O sujeito, laborando em erro, compreende ou apreende mal os fatos e suas circunstâncias, formando em sua consciência uma inexata representação do que é. O erro de proibição é o que recai sobre o caráter ilícito do fato, sobre a ilicitude, sobre a proibição que incide sobre seu comportamento. Errando, imagina ou supõe que seu comportamento é lícito, permitido ou não proibido, quando, em verdade, ele o é. Certo cidadão, encontrando sua mulher em flagrante de adultério, mata-a, supondo ser lícito matar a adúltera encontrada nos braços do amante, quando, na verdade, tal comportamento não é permitido pelo Direito Penal. Realizou um fato típico e ilícito, por ter incorrido em erro de proibição. Imaginou que existisse uma excludente de ilicitude, ou que a legítima defesa alcançasse também o caso no qual se viu envolvido, ou, ainda, que o direito lhe autorizasse tal reação, enfim, que era justo matar. Incorrendo em erro de proibição, falta, ao sujeito, a consciência da ilicitude. Não tem consciência de que seu comportamento é proibido pelo ordenamento jurídico.

11.4.1.1

Erro de proibição inevitável

O erro de proibição inevitável, ou invencível, é aquele no qual qualquer pessoa prudente e de discernimento incorreria. É a situação em que falta ao sujeito a consciência da ilicitude, e em que não havia possibilidade de, mesmo com todo o esforço, com todo o empenho de sua inteligência, alcançar ou atingir aquela consciência. Trata-se de uma situação em que, nas circunstâncias em que se encontrava o agente, não lhe era possível conhecer o caráter proibido de seu comportamento, por mais que tivesse adotado medidas para bem apreciar a realidade. Atuando o homem em circunstâncias que tais, em que é absolutamente impossível conhecer a proibição que incide sobre seu comportamento, é absolutamente impossível fazer, sobre ele, qualquer juízo de censura, qualquer valoração de reprovação pelo que realizou. Ausente a possibilidade de conhecer o injusto de seu gesto – ausente a potencial consciência da ilicitude –, fica excluída a culpabilidade. Nesse caso, não há crime, o sujeito deve ser absolvido.


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles O erro de proibição inevitável é, portanto, escusável, e sua conseqüência é a exclusão da culpabilidade. Está assim escrito na primeira parte do art. 21 do Código Penal: “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena.” Interessantes decisões dos tribunais reconhecem o erro de proibição inevitável nesses dois casos. Na cidade de Rancharia, os filhos de uma mulher de 18 anos de idade encontravam-se sob a guarda de outra pessoa. A mãe, que costumava passear com as crianças, resolveu, certo dia, levá-los consigo, quando foi obstada no entroncamento da rodovia Raposo Tavares. Interrogada na polícia, alegou não saber que seu comportamento era crime, pois era a mãe das crianças. Foi denunciada pela prática do fato definido no art. 249 do Código Penal: “Subtrair menor de 18 (dezoito) anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial.” Julgando recurso de apelação formulada pelo Ministério Público, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em acórdão relatado pelo juiz Walter Theodósio, assim decidiu: “Tratando-se a mãe do menor de pessoa de pouca idade e simplesmente alfabetizada, a quem pareceu não estar cometendo ilícito penal ao levar o filho consigo, é de se reconhecer o erro sobre a ilicitude do fato em termos inevitáveis, justificando a absolvição com fundamento no art. 386, V, do CPP.”14 Em Paraibuna, uma médica de nacionalidade portuguesa, que trabalhava no Posto de Saúde da cidade, resolveu adotar uma criança recém-nascida abandonada na unidade de saúde pela mãe, e foi ao cartório de registro civil onde a registrou como se fosse sua filha. Assim, realizou uma das figuras típicas insertas no art. 242 do Código Penal: “registrar como seu o filho de outrem”. Instaurado Inquérito Policial destinado a instruir futura ação penal, o Tribunal de Justiça de São Paulo, entretanto, julgando pedido de habeas corpus impetrado com o fim de trancar o procedimento policial, assim decidiu: “Se o registro de menor abandonado como filho próprio foi praticado por motivo de reconhecida nobreza e não ocultado pelo agente que tinha a plena convicção de estar atuando licitamente, pode-se aplicar o denominado erro

14

Revista dos Tribunais, nº 630, p. 315.


Culpabilidade - 25 sobre a ilicitude do fato, afastando-se a culpabilidade, nos termos do art. 21, caput, do CP.”15 Nas duas situações, como se vê, os agentes realizaram fatos típicos e ilícitos supondo estarem agindo conforme o Direito, ou não estarem agindo com violação de qualquer preceito legal, errando sobre a proibição que pairava sobre aqueles comportamentos, em circunstâncias em que não lhes era possível alcançar a consciência da ilicitude. Houve, portanto, nos dois casos, erro de proibição inevitável, que excluiu a culpabilidade.

11.4.1.2

Erro de proibição evitável

Erro de proibição evitável é o decorrente da displicência, aquele em que o agente incide, quando podia, se tivesse realizado um pouco de esforço, alcançar a consciência da ilicitude. Agindo sem consciência da ilicitude, mas com possibilidade de atingi-la, presente está a potencial consciência da ilicitude. Esse erro deriva de leviandade, de descuido, de negligência do sujeito. O erro de proibição evitável, ou vencível, é inescusável, não exclui a culpabilidade do sujeito; todavia, tendo ele atuado sem consciência real da ilicitude, sua reprovabilidade deve ser menor, razão por que manda a última parte da norma do art. 21 do Código Penal que sua pena seja diminuída: “O erro sobre a ilicitude do fato, (...); se evitável, poderá diminuí-la (a pena) de um sexto a um terço.” O parágrafo único do mesmo art. 21 define o erro de proibição evitável: “Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.” Agiria sob erro evitável o marido traído que mata a esposa adúltera, quando a encontra com o amante. Imaginando ser lícito defender a honra maculada com o sangue da “traidora”, age sem a consciência da ilicitude, quando lhe é exigível ter essa consciência, com razoável esforço de inteligência. O mesmo se diga daquele que matou um ladrão e quase matou o outro. Reconhecido o erro evitável, fica diminuída a culpabilidade, mediante a diminuição da pena entre 1/6 e 1/3.

15

Revista dos Tribunais, nº 680, p. 339.


26 – Direito Penal – Ney Moura Teles

11.4.2

Descriminantes putativas

Descriminantes putativas, ou excludentes imaginárias, são modalidades de erros que incidem sobre as causas de justificação, sobre as excludentes de ilicitude. A expressão putativa quer dizer imaginária. São assim excludentes de ilicitude irreais, porque não excluem a ilicitude do fato. Existem apenas na cabeça do sujeito, em razão de erro por ele cometido. É o caso do professor que, tendo reprovado por três semestres consecutivos o mesmo aluno, passa a ser por este perseguido, empurrado, xingado, nutrindo o estudante, depois de certo tempo, um ódio mortal pelo professor. Na quarta reprovação, o aluno resolve matar o professor, compra a arma e, em conversa com um colega, manifesta seu intento criminoso. O colega, preocupado, avisa o professor para que evite ir à aula no dia seguinte, pois será vítima do atentado. O professor apenas se prepara para o desfecho, indo para a aula armado. Na noite anterior, todavia, a namorada do estudante, depois de muita conversa, consegue convencê-lo a desistir do intento homicida, aconselhando-o, ao contrário, a fazer as pazes com o mestre. Sugere, e o aluno aceita, que dê de presente uma caneta, como mimo para o reatamento das relações. Na manhã seguinte, o professor entra na sala de aula, avista o aluno que, ao vêlo, levanta-se e vai em sua direção, levando a mão ao bolso interno do paletó, para tirar a caneta e entregá-la; vendo esse gesto, o professor o interpreta como o de levar a mão para tirar a arma; incontinenti, o professor saca da sua e dispara um tiro mortal contra o estudante, que morre instantaneamente. Nesse caso, o professor realizou o tipo de homicídio doloso, ilícito, porque não existia nenhuma agressão. Todavia, reagiu apenas por supor a existência de uma agressão que, se existisse, tornaria sua reação absolutamente legítima. Houve um erro sobre um pressuposto fático da legítima defesa. Além disso, plenamente justificável pelas circunstâncias, pelos antecedentes do momento do fato, o aviso etc. Trata-se, pois, de legítima defesa putativa, imaginária, irreal, que só existia na mente do professor. É uma descriminante putativa. Toda vez, portanto, em que o agente errar sobre um pressuposto de fato de qualquer das excludentes de ilicitude – legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito – e este erro estiver plenamente justificado – inevitável, portanto –, será o caso de uma descriminante


Culpabilidade - 27 putativa. Age em estado de necessidade putativo o indivíduo que, no estádio de futebol, ouvindo um barulho estranho e imaginando que a arquibancada está prestes a ruir, sai apressadamente, e acaba por causar lesões corporais em outra pessoa. Verifica-se, posteriormente, que não houve nenhum perigo de desabamento. O sujeito errou sobre um pressuposto do estado de necessidade, a situação de perigo atual. O policial que, de posse de um mandado de prisão expedido contra João Antônio, encontra-se com o irmão gêmeo univitelino deste, Antônio João, e o prende, por engano, estará agindo no estrito cumprimento do dever legal putativo. Estão assim definidas no § 1º do art. 20: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.” A propósito das descriminantes putativas, duas correntes divergem quanto a sua conceituação. Para a teoria extremada da culpabilidade (WELZEL, MAURACH, ARMIN KAUFMANN, MUNHOZ NETO, HELENO FRAGOSO, HEITOR COSTA JÚNIOR, LUIZ LUISI, LEONARDO LOPES, WALTER COELHO), as descriminantes putativas são sempre modalidades de erro de proibição, pouco importando venha recair sobre um pressuposto de fato da justificativa, ou sobre sua existência ou seus limites – pois, em qualquer caso, o sujeito age com dolo –, com a exclusão ou diminuição da culpabilidade, conforme seja inevitável ou evitável. Para a teoria limitada da culpabilidade (DAMÁSIO E. DE JESUS, MANOEL PEDRO PIMENTEL e FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, entre outros), as descriminantes putativas podem constituir erro de tipo ou erro de proibição. Quando o erro do sujeito incidir sobre um pressuposto de fato da justificativa, por exemplo, sobre a existência da “agressão”, que justificaria a legítima defesa, será erro de tipo, e, como todo erro de tipo, ficará excluído o dolo e a culpa, se inevitável, e apenas o dolo, se evitável, respondendo, nessa hipótese, o sujeito por crime culposo, se previsto. Errando o agente sobre os limites da eximente – a necessidade dos meios, na legítima defesa – ou até mesmo sobre sua própria existência – a eutanásia, por exemplo –, então trata-se de erro de proibição, inevitável ou evitável, com exclusão ou diminuição da culpabilidade.


28 – Direito Penal – Ney Moura Teles Os adeptos da teoria limitada da culpabilidade afirmam que, quando o sujeito erra sobre um pressuposto fático, por exemplo, sobre a existência da agressão, e esse erro podia ter sido evitado, nesse caso, fica excluído apenas o dolo, e permanece a culpa, stricto sensu. Por exemplo, no final da tarde, um cidadão encontra-se em sua casa, quando escuta o barulho do portão da frente de sua casa, significativo de sua abertura e fechamento bruscos; imediatamente, olha em direção à rua e avista um vulto entrando na casa, quando, sem muito pensar, dispara contra o mesmo, ferindo-o, na certeza de tratar-se de um ladrão. Verifica, em seguida, que era sua sogra que vinha visitar sua mulher. Trata-se de um erro sobre um pressuposto fático da legítima defesa. Se a casa estivesse sendo invadida, poderia ele repelir essa agressão. Não estava. O sujeito errou, supôs uma situação de fato que, se existisse, tornaria sua ação legítima. Como se observa no exemplo, o erro derivou de culpa, em sentido estrito, da precipitação do agente, que, negligentemente, sem nenhum cuidado, sem procurar verificar exatamente quem entrava em sua propriedade, atirou contra o vulto. Nesse caso, para os adeptos da teoria limitada da culpabilidade, há um crime estruturalmente culposo, tanto que o § 1º do art. 20 manda puni-lo com a pena do crime culposo. ALCIDES MUNHOZ NETTO, um dos mais ardorosos defensores da teoria extremada da culpabilidade, mostra que só pelo fato de a lei mandar punir o erro vencível com a pena do crime culposo não se pode concluir ter havido culpa, stricto sensu: “Esta forma de punição não significa, com efeito, que em tal hipótese a falta de consciência da antijuridicidade exclua o dolo, deixando, se evitável, subsistente a culpa em sentido estrito. Reflete apenas o critério de tratar um comportamento doloso como se culposo fora, em decorrência da diminuição da censurabilidade pessoal. É óbvio ser menor a reprovação sobre quem age sem conhecimento da perceptível ilicitude, do que a incidente sobre quem atua com representação da antijuridicidade do fato. O texto do citado dispositivo legal não leva a que se considere, substancialmente culposo, o crime cometido por vencível erro de fato sobre descriminante. Ao estatuir que se o erro deriva de culpa, a esse título responde o agente, quando o fato é punível como crime culposo, a lei só estabelece a forma de punição de tais comportamentos, o que não equivale a declará-los revestidos de culpa em sentido estrito.”16


Culpabilidade - 29 Então, para a teoria extremada, mesmo no erro vencível, derivado de culpa, o que falta ao agente é a consciência real da ilicitude, por negligência, razão por que resta diminuída a culpabilidade e não excluído o dolo. O problema é que o legislador da reforma de 1984 situou a norma permissiva exculpante das descriminantes putativas, no interior do art. 20, cujo caput cuida do erro de tipo, que exclui o dolo. Em razão disso, os que defendem a teoria limitada encontraram suporte para demonstrar que as descriminantes putativas seriam erros de tipo. É claro que a colocação topográfica da norma não tem o poder de mudar a realidade. Quem, negligentemente, imaginou a existência de uma agressão e, por isso, disparou uma arma de fogo contra o suposto agressor agiu, à toda evidência, com dolo, com previsão e vontade, com consciência de que com sua conduta causaria o resultado, e com vontade de que ele ocorresse ou, pelo menos aceitando-o se ele, eventualmente, acontecesse. É o caso do cidadão que matou a sogra. Atirou dolosamente, com consciência de que disparava contra uma pessoa, e com vontade de fazê-lo. Faltou-lhe consciência de que não havia agressão. Dizer que o agente, por ter, negligentemente, suposto uma agressão inexistente e disparado contra quem imaginava estar agredindo-o, atuou sem dolo – sem previsão do resultado e sem vontade ou pelo menos sem aceitar o resultado –, mas com culpa stricto sensu é, isto sim, criar um ente mitológico e monstruoso: um crime em que o agente prevê e quer o resultado, ou o aceita, chamado de crime culposo. Se a lei preferiu punir o agente que cometeu um erro evitável com a pena do crime culposo, não significa tenha ela considerado tal crime culposo, mas apenas que optou por uma fórmula diferente – e equivocada, é verdade – de impor-lhe menor reprovação. Assim, correto é o entendimento de MUNHOZ NETTO e tantos outros, de que as descriminantes putativas, seja o erro incidente sobre pressuposto fático da justificativa, seja incidente sobre limites ou existência da causa de justificação, será sempre um erro de proibição, porque falta ao agente, em qualquer dessas hipóteses, a consciência da ilicitude. O erro, se derivado de sua desatenção, de sua negligência, de culpa stricto sensu, era evitável; por isso ele apenas terá a culpabilidade diminuída. Seu comportamento é doloso, mas não tem consciência de ser injusto, pois, em face do erro,

16

A ignorância da antijuridicidade em matéria penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 116.


30 – Direito Penal – Ney Moura Teles crê estar realizando a vontade do Direito, amparado por uma causa de justificação que, na realidade, não ocorre.

11.4.3

Coação moral irresistível

O art. 22 do Código Penal contém norma penal permissiva exculpante que contém duas causas distintas de exclusão da culpabilidade: a coação moral irresistível e a obediência hierárquica. A coação moral irresistível está assim definida: “Se o fato é cometido sob coação irresistível (...) só é punível o autor da coação”. Trata-se, como já se disse, de coação moral, de uma violência moral imprimida contra o sujeito, a chamada vis compulsiva. A coação de natureza física impede o sujeito de ter vontade, de modo que fica excluída a própria conduta (ausência de conduta), pois exclui integral e totalmente a liberdade do sujeito, que, por isso, não tem possibilidade de ter vontade. A coação moral é o emprego de uma grave ameaça contra alguém, a fim de que ele faça ou deixe de fazer alguma coisa. Se este fizer ou deixar de fazer, se a ação ou omissão realizadas sob coação constituir um fato típico e ilícito, não será, entretanto, culpável. A força moral é tamanha que o sujeito não tem possibilidade de atuar como desejava. Trata-se de força tal que não é possível a ele resistir e agir conforme desejava. Na hipótese, fica suprimida a exigibilidade de conduta diversa, um dos elementos da culpabilidade e, de conseqüência, o coagido não pode ser reprovado, não merece censura, devendo ser desculpado. O pressuposto é a existência de alguém que coage o sujeito, de um coator, que será punido, como se fosse o executor do fato típico e ilícito. A coação deve ser, necessariamente, irresistível, daquelas capazes de atuar sobre a vontade do sujeito de modo insuperável, invencível, tal a violência moral e o perigo que significa. Algo tão poderoso ou perigoso que ao sujeito não resta outra alternativa senão atender aos anseios do coator, para evitar a concretização da ameaça. É o que acontece quando o coator ameaça familiares do sujeito, mantendo-os sob a mira de armas poderosas, ou amarrados em armadilhas que, a qualquer gesto, dispararão dispositivo que causa a morte, enfim, situações em que o sujeito tem sua liberdade de escolha colocada sob verdadeiro e total domínio dos desejos do coator. O agente não tem outra alternativa, não se podendo exigir dele um


Culpabilidade - 31 comportamento conforme o Direito; por isso, fica excluída a culpabilidade. A jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, tem entendido que, para a configuração da coação moral irresistível, é necessário que haja o concurso de três pessoas: o coator, o coagido e a vítima, aniquilando o primeiro a vontade do coagido por meio da colocação do terceiro – vítima – em perigo concreto, a fim de obrigar o sujeito a realizar a conduta que não realizaria normalmente. Se a coação for resistível, daquelas que o sujeito podia vencer, em face de sua menor eficiência, ou do grau inferior de perigo, permanece íntegra a culpabilidade, podendo incidir, todavia, uma circunstância atenuante da pena, prevista no art. 65, III, c, primeira parte, do Código Penal.

11.4.4

Obediência hierárquica

No mesmo art. 22, do Código Penal, está prevista outra causa de exclusão da culpabilidade, a obediência hierárquica, que é uma espécie de erro de proibição, assim: “Se o fato é cometido (...) em estrita obediência à ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor (...) da ordem.” Ordem de superior hierárquico é um comando emanado de uma pessoa que exerce determinado cargo ou uma função de natureza pública, para outra pessoa que lhe seja, hierarquicamente, subordinada, contendo a determinação de realizar essa ou aquela conduta, positiva ou negativa. O pressuposto é que exista, entre o que ordena e aquele a quem se dirige a ordem, uma relação hierárquica de subordinação, relacionamento este, é claro, de direito público, o que leva à conclusão de que só é possível a ocorrência dessa dirimente que envolve servidores ou agentes do serviço público. A norma afirma que não será reprovado, culpado, aquele que realizar um fato típico e ilícito em estrita obediência a uma ordem de um seu superior hierárquico, desde que seja uma ordem não manifestamente ilegal. Para a verificação da ocorrência ou não desta causa de exclusão da culpabilidade, o primeiro passo é descobrir-se o que é uma ordem não manifestamente ilegal. Há ordens de superior hierárquico que são legais. Estas, é de todo claro, não interessam aqui, pois nenhuma ordem legal pode ensejar a realização de qualquer fato típico ilícito. Restam, então, as ordens ilegais. Entre estas existem as que são manifestamente ilegais, clara, indiscutível,


32 – Direito Penal – Ney Moura Teles insofismável, total, límpida, inexorável, absurdamente ilegais. Por exemplo: ordenar o Delegado de Polícia, ao agente da carceragem, que mate o preso da cela nº 3, porque ele é portador do vírus da Aids, ou que estupre a presa da cela feminina, porque ela o ofendera. Essas ordens são, claramente, manifestamente ilegais, de modo que, se o carcereiro cumprir qualquer delas, não poderá alegar ter agido ao amparo da exculpante da obediência hierárquica, que só contempla, somente ampara, aqueles que realizarem um tipo ilícito no estrito cumprimento de uma ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico. Ordem não manifestamente ilegal é a de ilegalidade discutível, que não é patente, nem resplandece à primeira vista, deixando dúvidas na avaliação de quem a recebe. Por exemplo, um Promotor de Justiça determina ao secretário recém-empossado no gabinete da promotoria que – antes de iniciar-se a audiência – vá à sala das testemunhas e determine a uma delas que venha a falar-lhe e, caso ela se recuse, tragaa presa em flagrante de crime de desobediência. Esta ordem, à primeira vista, não parece ilegal, apesar de sê-lo. O promotor de justiça, todos sabem, não tem poder para mandar vir a sua presença quem quer que seja, mormente por meio de um chamado verbal, por um simples funcionário burocrático, e fora de qualquer processo ou procedimento legalmente instaurado. Para o servidor público recentemente ingressado no serviço público, sem qualquer conhecimento das regras processuais e, mesmo, de Direito Administrativo, contudo, aquela ordem recebida é legal. Recebendo-a de seu superior, um promotor de justiça – alguém que lhe parece ser um “homem da lei”, aliás, é o fiscal dela –, jamais pensaria ser uma ordem contra a lei, de sorte que, em sua consciência, a ordem recebida é perfeitamente legal. Se ele vai à sala das testemunhas, emite a convocação e a testemunha, recusandose a acompanhá-lo, é trazida coercitivamente, terá havido, à toda evidência, um fato típico de constrangimento ilegal, definido no art. 146 do Código Penal, quando não o de seqüestro, definido no art. 148, Código Penal. Ilícito o fato, não será, todavia, culpável, amparado que estava o agente pela dirimente da obediência hierárquica. Trata-se, como se pode perceber, de verdadeiro erro de proibição, pois faltou ao agente a consciência da ilicitude. Era-lhe, ademais, nas circunstâncias, impossível alcançar a consciência da proibição. Fica, em razão disso, excluída a culpabilidade. Se a ordem não fosse não manifestamente ilegal, permaneceria a culpabilidade,


Culpabilidade - 33 podendo incidir, contudo, a circunstância atenuante prevista no art. 65, III, c, do Código Penal. Para que se possa reconhecer essa dirimente, é indispensável que haja relação de direito público entre o superior e o subordinado. Entre empregador e empregado, patroa e empregada doméstica, a relação é de direito privado, logo, não se pode falar em exclusão de culpabilidade do empregado que realiza fato típico obedecendo à determinação do empregador. A ordem, que deve, como se demonstrou, ser não manifestamente ilegal, precisa, ainda, preencher seus requisitos formais, emanar da autoridade competente, e ser cumprida dentro da mais estrita obediência, não se admitindo qualquer excesso do subordinado. Faltando qualquer desses requisitos, não incide a exculpante, mantida a culpabilidade do sujeito. Quando se aplicar a dirimente, somente o autor da ordem responderá pelo fato e, por ele, será punido.

11.5 CAUSAS SUPRALEGAIS DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE Culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com possibilidade de conhecer a ilicitude, podia, ainda, nas circunstâncias, ter agido de outro modo. Faltando um dos elementos da culpabilidade, está ela excluída, não se podendo reprovar o agente do fato típico e ilícito. Ausente a potencial consciência da ilicitude – haverá erro de proibição inevitável, descriminante putativa escusável, ou obediência hierárquica, expressamente previstas no Código Penal como dirimentes –, não há o crime. Sem exigibilidade de conduta diversa – há coação moral irresistível –, igualmente não há reprovação, não há culpabilidade, o fato típico e ilícito não é crime. Sempre, portanto, que não estiver presente um dos elementos da culpabilidade, esta não existe e, conseqüentemente, não se aperfeiçoa o crime. Até aqui, foram vistos casos em que, para a ausência de um dos elementos da culpabilidade, existia uma causa expressamente prevista numa norma penal permissiva exculpante, que previa a isenção da pena para o agente – fórmula encontrada pelo legislador para distinguir a excludente de ilicitude da de culpabilidade. Para que a culpabilidade seja excluída, não é, entretanto, indispensável a


34 – Direito Penal – Ney Moura Teles existência de norma penal permissiva que expressamente mande isentar o agente da pena criminal. Basta que sobre o fato típico e ilícito realizado não incida o juízo de reprovação – pela ausência de, pelo menos, um dos elementos da culpabilidade. Se isso ocorrer, haverá causa de exclusão da culpabilidade que não se encontra expressamente prevista no Código Penal. São duas as causas: o excesso de legítima defesa exculpante e a inexigibilidade de conduta diversa.

11.5.1

Excesso de legítima defesa exculpante

Muitas vezes, o sujeito ultrapassa intensivamente os limites da legítima defesa – usando meio além do necessário, ou o meio necessário desproporcionalmente, imoderadamente – por medo, susto, perturbação, ou confusão de que se vê acometido em razão da injusta agressão sofrida. Não tem, nas circunstâncias, capacidade de dominar as reações psicológicas desencadeadas, rapidamente, com base na agressão e na expectativa do perigo para o bem jurídico atingido, e acaba por exceder os estreitos limites da legítima defesa. Ao fazê-lo, é claro, realiza comportamento ilícito, em face da ausência da moderação ou do uso de meios além do necessário. Deve, apesar da ilicitude da conduta, ser esse agente reprovado, censurado, considerado culpado e, como tal, sofrer a sanção penal? É certo que não, pois nas circunstâncias não podia comportar-se de modo diverso, ausente um dos elementos da culpabilidade: a exigibilidade de conduta diversa. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO mostra que o Direito Penal alemão contempla, expressamente, o excesso de legítima defesa exculpante: “Diz o Código Penal alemão, no § 33, sob a rubrica ‘excesso de legítima defesa’: ‘Ultrapassando o agente os limites da legítima defesa por perturbação (Verwirrung), medo ou susto, não será ele punido.’” Explica o mestre que “não se pode igualmente censurar o agente pelo excesso, por não lhe ser humanamente exigível que, em frações de segundos, domine poderosas reações psíquicas – sabidamente incontornáveis – para, de súbito, agir, diante do perigo, como um ser irreal, sem sangue nas veias e desprovido de


Culpabilidade - 35 emoções.”17 A exculpação não é possível no excesso extensivo de legítima defesa, pois, nesses casos, houve o exaurimento da defesa, e já não há agressão, sendo o comportamento do sujeito não apenas ilícito, mas também realizado com plena consciência da ilicitude, e longe de qualquer razão psíquica que lhe afete a liberdade de escolha. Concordando com ASSIS TOLEDO, é de ver que a falta de dispositivo expresso que preveja o excesso exculpante como excludente da culpabilidade não constitui empecilho para sua aplicação pelos juízes, cuja missão é distribuir a justiça, dizendo o direito, e não se apegar à letra fria da lei.

11.5.2

Inexigibilidade de conduta diversa

Só há culpabilidade quando, além da consciência potencial do injusto, é possível exigir, do agente, comportamento conforme o Direito, quando podia ter agido de outro modo. Para a expressão da reprovabilidade do fato típico e ilícito, é indispensável a exigibilidade de conduta diversa, sem a qual o sujeito será desculpado. Não será crime. A propósito, ASSIS TOLEDO, em sua obra que muito tem inspirado este modesto manual, apesar de divergências salutares, traz a mais importante de suas lições, que aqui se transcreve: “Não age culpavelmente – nem deve ser portanto penalmente responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou da omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso. A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade.”18 A lição não pode deixar dúvidas: a mais importante das causas que excluem a culpabilidade não é o erro de proibição, nem as descriminantes putativas, nem a coação moral irresistível, e tampouco a obediência hierárquica – todas constantes de normas legais. A mais importante das excludentes da culpabilidade não está escrita no ordenamento jurídico. E não está, em verdade, porque não é uma simples causa de exclusão da culpabilidade. É, como diz ASSIS TOLEDO, um “princípio fundamental que

17

Op. cit. p. 330.

18

Op. cit. p. 328.


36 – Direito Penal – Ney Moura Teles está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito”. 19 Como tal, não precisa estar contido em norma penal permissiva, mas tem plena incidência sobre os casos concretos. Não apenas porque diz respeito à responsabilidade pessoal, à liberdade de agir, que é o fundamento da culpa, mas também porque é muito mais ainda do que um princípio de exclusão, é um verdadeiro princípio geral de direito, excludente não só da culpabilidade, mas, igualmente, da ilicitude e da tipicidade, princípio que preside e fundamenta toda e qualquer causa de exclusão do crime. Todas as condutas humanas não tipificadas na lei penal, todas as condutas atípicas, assim são consideradas pelo Direito, porque não se pode exigir dos homens comportamentos diversos delas. A legítima defesa é a realização de um fato lícito, também porque não se pode exigir daquele que atua a seu amparo um comportamento diferente. É lícito agir em estado de necessidade, porque também não é possível exigir do que age sob sua égide outra conduta. A inexigibilidade de conduta diversa é princípio geral de direito que impede a tipificação dos fatos normais da vida, que obstaculiza a proibição dos fatos não lesivos ou não expositivos a perigo de lesão dos bens jurídicos e, como não poderia deixar de ser, que exclui a reprovabilidade de certas condutas típicas e ilícitas. De conseqüência, sempre que, nas circunstâncias em que tiver alguém realizado um comportamento típico e ilícito – ainda que não incida uma causa legal de exculpação –, mas não se puder dele exigir conduta diversa da que realizou, deve ele ser desculpado, excluída a culpabilidade. Não é necessário, de conseguinte, que haja regra expressa de exclusão de culpabilidade, basta que o juiz verifique, nas circunstâncias, a impossibilidade de exigir, do agente, conduta conforme o Direito. Se tal ocorrer, deve ser desculpado.

11.6 CONCLUSÃO Chega-se aqui ao final do estudo do conceito analítico do crime. Verificou-se o fato típico, com todos os seus elementos, analisou-se a ilicitude, compreendeu-se a culpabilidade.

19

Idem.


Culpabilidade - 37 Nos tempos atuais, entre os estudiosos do Direito Penal, avança-se no rumo da construção de uma nova concepção de culpabilidade, o chamado conceito moderno ou complexo de culpabilidade que levaria em conta também certa atitude interna juridicamente defeituosa do agente. Essa teoria está, ainda, sendo discutida, debatida, elaborada, maturada, e, enquanto não consolidada, não pode neste momento ser trazida para este primeiro contato do estudante com a teoria do crime. É possível, por enquanto e por aqui, dizer que se conseguiu conhecer o crime, com todas as suas características, ou suas notas essenciais, como preferem alguns importantes doutrinadores, ou, ainda, seus elementos estruturais, como dizem outros. A tipicidade é a relação de adequação entre o fato concreto e o tipo, que é modelo de conduta proibida. Dado um fato com essa qualidade, há um fato típico. Tudo indica que tal fato será ilícito, mas é preciso verificar se está presente uma causa que o justifique e que afaste a ilicitude, descaracterizando-o como crime. A ilicitude é a relação de antagonismo entre o fato típico e o ordenamento jurídico, é a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico. Sem ela, não há crime. Se estiver presente, falta ver, ainda, se o fato será culpável. Culpabilidade – terceira característica do crime –, cujo pressuposto é a imputabilidade, é um juízo de reprovação da conduta típica e ilícita, que só pode ser feito quando o agente tiver atuado com possibilidade de saber que agia contra o direito, e que podia, naquelas circunstâncias, ter agido de outro modo. Eis o crime.


12 CULPABILIDADE:

PRESSUPOSTO

DA PENA OU CARACTERÍSTICA DO CRIME?

___________________________ 12.1 POLÊMICA Para alguns doutrinadores, como Giuseppe Bettiol, Aníbal Bruno, Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Heleno Cláudio Fragoso, José Henrique Pierangelli e outros, o crime apresenta três notas características, três requisitos ou três elementos: a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade. Os mais antigos, Nelson Hungria e Basileu Garcia, igualmente, acresciam, à estrutura do crime, um quarto elemento, a punibilidade, que – hoje é entendimento pacífico – não integra o conceito de crime, pois se situa fora dele, como sua conseqüência jurídica que é, e que por isso será estudada no Capítulo 23 deste manual. Entre os brasileiros, entretanto, Damásio E. de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete, Manoel Pedro Pimentel e René Ariel Dotti, entre outros, pensam diferente: a culpabilidade não faz parte do crime, não é seu elemento, mas uma condição para a imposição da pena criminal, um pressuposto de aplicação da pena. O crime, para eles, apresenta apenas duas notas essenciais, dois elementos: a tipicidade e a ilicitude. É um fato típico e ilícito.

12.2 DISCUSSÃO E CONCLUSÃO DAMÁSIO E. DE JESUS afirma: “A culpabilidade não é elemento ou requisito do crime. Funciona como pressuposto da pena. O juízo de reprovabilidade não incide sobre o fato, mas sim sobre o sujeito. Não se trata de fato culpável, mas de sujeito culpável.” 1

1

JESUS, Damásio E, de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. V.


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles Assevera que o Código Penal sustenta essa conclusão, pois, quando trata da exclusão da ilicitude, utiliza expressões como “não há crime” (art. 23), “não se pune o aborto” (art. 128), “não constituem injúria ou difamação punível” (142) e “não constitui crime” (art. 150, § 3º), ao passo que, para tratar da exclusão da culpabilidade, as expressões usadas são “é isento de pena” (arts. 26, caput, e 28, § 1º) e “só é punível o autor da coação ou da ordem” (art. 22). Conclui que, na primeira hipótese, quer a lei dizer não existir o crime, e, na segunda, o agente não é culpável, mas o crime existe. Essa argumentação não é suficiente para dar sustentação à idéia defendida, até porque não é coerente. Ao falar da expressão utilizada na norma do art. 22 – que trata da exclusão da culpabilidade pela coação moral irresistível ou obediência hierárquica – “só é punível o autor da coação ou da ordem”, DAMÁSIO E. DE JESUS explica que, a contrario sensu, está a lei dizendo “não é punível o autor do fato”2. Então, a lei usa a expressão “não é punível” para referir-se à exclusão da culpabilidade. Ora, o mesmo Código Penal, no art. 128, quando trata da exclusão da ilicitude do aborto necessá rio e do aborto ético, usa a expressão “não se pune” o aborto praticado por médico. Qual a diferença, de se perguntar, entre as expressões “não é punível” e “não se pune”? É claro que não há qualquer diferença; logo, não se pode buscar nas expressões utilizadas pela lei solução que ela não autoriza. Aliás, o Código Penal não se preocupou com a conceituação do crime, daí por que usa expressões diversas para tratar de excludentes da ilicitude e igualmente diferentes para falar de excludentes da culpabilidade. Por outro lado, não é correto dizer que a culpabilidade é apenas um pressuposto da imposição da pena, pois tanto a tipicidade e como a ilicitude são, igualmente, pressupostos de aplicação da sanção penal. São pressupostos de aplicação da pena as três notas características do crime. Este sim, o crime, na sua integralidade,

é o

pressuposto da pena. Igualmente incorreta a afirmação de que a culpabilidade recai sobre o agente e não sobre o fato. Em verdade, a reprovação incide sobre o comportamento do sujeito, e não sobre ele, isoladamente, como se fosse possível isolá-lo do fato. Aliás, é aí que reside o perigo de se aceitar a formulação de que a culpabilidade não é integrante do crime. 2

Direito penal. Op. cit. p. 397.


Culpabilidade: Pressuposto da Pena ou Característica da Pena ou Característica do Crime? - 3 O pressuposto da culpabilidade – a imputabilidade – deve ser verificado ao tempo da ação ou da omissão, ao tempo do fato (art. 26, art. 27, art. 28, § 1º). A definição da evitabilidade do erro de proibição parte das “circunstâncias” em que o agente se encontrava, quando agiu (art. 21, parágrafo único), leva em conta o fato. O erro de proibição na descriminante putativa deve ser “plenamente justificado pelas circunstâncias” que cercam o fato praticado pelo agente (art. 20, § 1º). A lei manda excluir a culpabilidade pela realização de um fato “cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem” (art. 22). Ora, com base na própria lei é que se extrai o conceito normativo de culpabilidade, que inclui seus dois elementos: potencial consciência da ilicitude do fato, e exigibilidade de realizar outra conduta, outro fato. A reprovabilidade, portanto, recai necessariamente sobre a ação ou omissão realizada pelo agente, e não sobre sua pessoa, isoladamente. É claro e evidente que a reprovação da conduta é dirigida ao agente, que é quem vai sofrer a pena, como não poderia deixar, mesmo, de ser, mas isso não significa que ela incide sobre a pessoa do sujeito, sem a consideração do fato praticado. Aliás, não só a culpabilidade, mas também a tipicidade e a ilicitude são valorações que são feitas, a posteriori, acerca do fato praticado pelo sujeito. Finalmente, é preciso atenção ao alerta formulado pelo Prof. David Teixeira de Azevedo, da Universidade de São Paulo: “A concepção do crime apenas como conduta típica e antijurídica, colocada a culpabilidade como concernente à teoria da pena, traz sérios riscos ao Direito Penal de cariz democrático, e desmonta lógica e essencialmente a idéia jurídicopenal de delito. Abre-se perigoso flanco à concepção da culpabilidade pela conduta de vida, pelo caráter, numa avaliação tão-só subjetiva do fenômeno criminal. O passo seguinte é conceber o delito tão só como índice de periculosidade criminal, ao feitio extremo da defesa social de Filippo Gramatica, cuidando-se de assistir, para modificar o homem, seus valores, sua personalidade. É uma picada aberta ao abandono do Direito Penal de fato, pelo desvalor da conduta, e acolhimento do Direito Penal do autor, de pesarosas lembranças.”3 O Direito Penal que atende aos interesses de uma sociedade democrática

3

A culpabilidade e o conceito tri-partido de crime. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 2, p. 51, 1993.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles assenta-se sobre o fato praticado pelo agente, e não, ao contrário, sobre o agente do fato. O crime é furtar, estuprar, matar. Pune-se, de conseqüência, o furto, o estupro, o homicídio, não o ladrão, por ser ladrão, nem o estuprador e o homicida, por serem estuprador e homicida. Um Direito Penal que voltar seu norte para a culpabilidade do agente, com sua personalidade e seu caráter, privilegiando-a, em detrimento da culpabilidade do fato praticado, significará um golpe profundo nas conquistas obtidas pela humanidade nos últimos anos, às custas de muito sofrimento. O crime é e deve continuar sendo entendido assim: um fato típico, ilícito e culpável.


13 TEORIA DA PENA

____________________________ Acontecendo um crime – um fato típico, ilícito e culpável –, nasce para o Estado o direito de punir o infrator da norma penal, o agente do crime. O direito de punir – o ius puniendi – não pode ser exercido manu militari, unilateralmente, pelo Estado, por força do princípio constitucional do due process of law, inserto no art. 5º, inciso LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, e também daquele outro, da presunção da inocência, do inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O Estado, tão logo tem notícia da prática de um fato definido como crime – por meio do Delegado de Polícia e de seus agentes –, deve, em regra, iniciar o trabalho investigatório destinado a apurar a materialidade do fato – onde foi, como foi, por que foi – e o responsável ou responsáveis por ele – quem foi, quem colaborou – para permitir ao Promotor de Justiça a dedução da pretensão de punir o autor do fato considerado crime. Em regra, é o Promotor de Justiça – funcionário estatal encarregado de perseguir o agente do fato típico – que inicia o chamado processo penal, conjunto sistemático e organizado de atos destinados à descoberta da verdade, diante do juiz que, chamando o acusado para se defender, preside a produção das provas e a oferta das alegações que ambos – acusador e acusado – desejarem em favor de suas teses. Tudo sob a égide dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Depois de permitir aos dois lados – promotor e acusado – ampla liberdade de provar suas afirmações e obedecendo a todas as normas procedimentais estatuídas no Código de Processo Penal e em leis processuais especiais, o juiz, atento a tudo o que lhe foi apresentado, principalmente aos fatos e às razões de direito, decidirá sobre qual dos pedidos – o do acusador ou o do acusado – deverá atender. O promotor de justiça pede ao juiz que aplique a pena cominada ao crime que


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles considera ter sido cometido. O acusado pede que não lhe seja aplicada pena alguma, ou que se lhe aplique pena menor ou mais branda que a postulada pelo acusador. Se o juiz estiver convencido de que o acusado da prática não cometeu o fato típico, ou para ele não concorreu, nem como partícipe, ou que o realizou licitamente – amparado por uma causa de exclusão da ilicitude – ou, ainda, que não é culpado, seja por não ser imputável, seja por ter agido acobertado por causa de exclusão da culpabilidade, deverá absolvê-lo da acusação formulada, rejeitando a pretensão do acusador. Dirá que não houve o crime e, por isso, não haverá a pena. Se menor ou inimputável, receberá uma medida socioeducativa, do juízo especializado da infância e da juventude, ou uma medida de segurança, respectivamente. Pode ocorrer – e muito acontece, infelizmente – de o juiz convencer-se de que o fato típico atribuído ao acusado foi mesmo por ele praticado, ou contou com seu concurso, e que, além disso, ele não agiu licitamente, e, por outro lado, sendo capaz do ponto de vista penal, merece ser censurado, por ter atuado com, pelo menos, possibilidade de conhecer a ilicitude, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que se comportou, uma conduta diversa da realizada. Nessa situação, o juiz, verificando ter havido o crime, deverá impor ao acusado a sanção penal, observando rigorosamente a lei. Tendo havido o crime, deverá ser a sanção penal, a pena criminal.

13.1 UM POUCO DA HISTÓRIA DA PENA No alvorecer da humanidade com os primitivos seres humanos e as sociedades ainda rudimentares, nascia o crime e com ele a pena. O crime era a agressão a um interesse do indivíduo ou do grupo, e a pena a resposta, o mal infligido ao infrator. A pena surge como necessária reação de defesa dos interesses dos indivíduos, e, mais tarde, também, do grupo, do clã, da tribo, que precisavam ser protegidos de ataques. As

primeiras

penas

eram

manifestações

de

vinganças

individuais,

extremamente severas e absolutamente desproporcionais, arbitrárias e excessivas. O próprio ofendido ou alguém por ele, geralmente um seu parente de sangue, exercia o direito de punir, impingindo ao agressor do interesse a pena que bem entendesse, em qualidade e quantidade.


Teoria da Pena - 3 Tratando-se de crime perpetrado por membro do grupo, essa modalidade de pena, que era uma vingança desproporcionada, constituía um grave prejuízo para o próprio grupo, cuja força dependia, e muito, de um grande número de indivíduos fortes, sadios, aptos para a guerra contra as outras tribos e os outros grupos que se formavam. Por isso, já com as primeiras penas, nasce a necessidade de limitá-las em benefício do grupo social. Aos poucos, as comunidades vão-se organizando em formas primitivas de Estado e, com isso, também a vingança penal vai assumindo uma feição de natureza pública. Quando o agressor não pertencia ao grupo, à tribo, a resposta penal era, nos primórdios, a vingança de sangue – sua morte. Essa pena também vai ser, com o passar dos tempos, substituída por pena menos drástica, geralmente a escravização do ofensor. As primeiras espécies de penas, arbitrárias, desproporcionais, extravagantes, não se consolidam sem que sejam limitadas, e, ao mesmo tempo que, como vingança, adquirem caráter divino e, mais tarde, público, vão sendo substituídas ou minoradas, limitadas, controladas, enfim, até chegar-se, bem mais tarde, à formulação do talião e da composição. “O talião, aplicado apenas aos atentados contra a pessoa da mesma raça, constituiu importante conquista, estabelecendo proporcionalidade entre ação e reação. O instituto da legítima defesa e outras retaliações guardam vestígios do talião. Outro progresso, no período da vingança privada, foi a composição (compositio). O ofensor compra a impunidade ao ofendido, ou seus representantes, com dinheiro, ou gado, armas, utensílios, à maneira das indenizações da vida, e, mesmo, da honra em vigor nos nossos dias (multas, dote à ofendida nos crimes sexuais, reparação do dano em geral).”1 O Código de Hammurabi, que teria sido o mais antigo ordenamento legislativo da Antigüidade, editado mais de dois mil anos a.C., contemplava o talião – conhecido nas leis chinesas, persas e egípcias – e a composição, mas o Código de Manu, aproximadamente mil anos mais recente, não faz qualquer referência a esses dois importantes institutos. Neste se encontram penas corporais, como o corte dos dedos, pés e mãos dos ladrões, da língua dos caluniadores, queima do homem adúltero e

1

LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 2, p. 13.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles entrega da mulher adúltera aos cães, para que a devorassem. O Direito Romano conheceu a vingança, o talião e a composição, e no Libri Terribiles, as penas vão-se diferenciar em face das causas dos delitos. A vingança era privativa do ofendido, do indivíduo vitimado pela conduta do agente, ou de seus sucessores, parentes sangüíneos, que só se afastava se houvesse a composição, vale dizer, se o agente do crime tivesse recursos para, literalmente, “comprar” outra solução. Se entre os germanos prevalecia o interesse pela natureza objetiva do crime – a gravidade da lesão ao interesse atingido pelo comportamento do agente –, entre os romanos o mais importante era verificar o lado subjetivo do delito. As penas, todavia, eram, entre os dois povos, cruéis e desumanas, mas o talião dos romanos não incluía a vingança de sangue dos germanos, até porque, com exceção dos crimes graves, a punição dependia do insucesso da composição entre ofensor e ofendido. Ao tempo de Justiniano, a pena encontra seu fundamento no interesse do Estado, o que, de todo óbvio, demonstra sua natureza plenamente pública. O aparecimento da Igreja Católica e do Direito Canônico faz-se acompanhar das idéias de humanizar e espiritualizar as penas, nelas incorporando o espírito cristão. Noções como a da imortalidade da alma, que seria salva, eternamente, caso o pecador – agente do crime – se redimisse pelas penitências, pela redenção, regeneração, arrependimento, aperfeiçoamento pessoal, incorporam-se à idéia de pena enquanto retribuição e, inegavelmente, constituem importante conquista, à medida que se humanizam os castigos, evitando-se o sofrimento dos condenados. Até porque o Deus do Novo Testamento é piedoso e bom e só permite o sofrimento do pecador para que ele se purifique e possa apresentar-se, um dia, diante do próprio Criador, sendo digno de entrar em sua morada, o paraíso. As idéias cristãs são de grande importância para o Direito Penal, principalmente porque permitiram a construção da intencionalidade como medida da punição. Com o pensamento de Santo Agostinho, elimina-se, também, a exigência de que a pena devesse ser, necessária e absolutamente, proporcional ao crime praticado – o que implicaria a adoção obrigatória da pena de morte para todo e qualquer homicídio. Além disso, constrói-se, a partir daí, a necessidade de que a pena tenha, igualmente, caráter utilitário. Em outras palavras, deveria revestir-se de uma finalidade, que, como não poderia deixar de ser, só poderia ter um fundo ético e moral. Em toda a Idade Média, todavia, a brutalidade e a crueldade das penas ainda constituem a tônica.


Teoria da Pena - 5 Só mesmo quando as idéias iluministas se desenvolvem e ganham forma com as proposições concretizadas por Cesare Beccaria é que a pena criminal passa a ganhar um matiz de humanidade. Com a Revolução Francesa, a Declaração de Direitos estatuiu: “A lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias.” Esta idéia de necessidade da pena, aparentemente simples ou simplista, é da mais alta importância, pois que não mais se admitiria a punição por pura e simples vingança. Desse tempo em diante, as penas vão sendo humanizadas. Alguns Estados Nacionais abolem, outros restringem, a pena de morte. Eliminam-se em grande parte as penas corporais, torturas, suplícios, trabalhos forçados etc., e as infamantes. Caminha-se em direção a um novo ideário penal, o de recuperar, educar ou reformar o condenado. Uma nova espécie de pena – a de prisão por tempo determinado – torna-se a mais grave entre todas. Se hoje a achamos violenta, constituiu, sem dúvida, um avanço em relação tanto à pena capital quanto à de duração perpétua. Na história do Brasil “até 1530, a justiça penal era o arbítrio dos capitães. Martim Afonso trouxe carta branca do governo português para processar e julgar inapelavelmente, aplicando a pena de morte”2. No século XIX, há pouco mais de 150 anos, a gente brasileira convivia com as seguintes penas: morte, com ou sem crueldade, inclusive pelo fogo, até o condenado tornar-se pó para que não fosse possível sepultar-lhe, açoites, degredo, perpétuo ou temporário, para a África ou para a Índia, mutilação das mãos e da língua, e queimaduras de partes do corpo. Só mesmo com a primeira Constituição Brasileira, a do Império, de 1824, são abolidas as penas de tortura, de açoites e de marca de ferro quente – como se marca, para provar a propriedade, os bovinos e eqüinos. Nosso primeiro Código Criminal, de 1830, comina a pena de morte na forca, a de galés – exceto para mulheres e menores de 21 anos e maiores de 60 anos – e outras menos cruéis: de prisão com trabalho, prisão simples, para a grande maioria dos crimes, de banimento, degredo, desterro, multa, suspensão e perda de emprego e, para os escravos, açoites. Assim dispunha o Código Criminal: “Art. 38. A pena de morte será dada na forca.

2

LYRA, Roberto. Op. cit. p. 58.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles Art. 39. Esta pena, depois que se tiver tornado irrevogável a sentença, será executada no dia seguinte ao da intimação, a qual nunca se fará na véspera de domingo, diasanto ou de festa nacional. Art. 40. O réu, com o seu vestido ordinário, e preso, será conduzido pelas ruas mais públicas até a forca, acompanhado do juiz criminal do lugar onde estiver, com o seu escrivão, e da força militar que se requisitar. Ao acompanhamento precederá o porteiro, lendo em voz alta a sentença que se for executar. Art. 41. O juiz criminal, que acompanhar, presidirá à execução até que se ultime; e o escrivão passará a certidão de todo esse ato, à qual se juntará o processo respectivo. Art. 42. Os corpos dos enforcados serão entregues aos seus parentes ou amigos, se os pedirem aos juízes que presidirem à execução; mas não poderão enterrá-los com pompa, sob pena de prisão por um mês a um ano. Art. 43. Na mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem mesmo ela será julgada em caso de a merecer, senão, quarenta dias depois do parto.” “Diz-se comumente que, desde Pedro II, já estava abolida de fato a pena de morte. Ora, a declaração da maioridade é de 1840 e só depois do sacrifício do fazendeiro Mota Coqueiro, de Macaé (HEITOR LIRA fala em 1856 e COSTA E SILVA em 1885), aquele imperador resolvera emendar a mão. Os escravos continuaram a ser caçados, e, em pena de morte de fato, sem forma nem figura de juízo, mas de lenta crueldade, importavam os suplícios contra os negros.”3 Nosso primeiro Código, apesar da pena de morte, constituiu enorme avanço em relação à legislação então vigente, inclusive porque, segundo ROBERTO LYRA, contemplou a individualização e a indeterminação relativa das penas, a atenção aos motivos e à reparação do dano. O grande penalista dá notícia de que a “simplificação do sistema primitivo, com as diferenciações quantitativas e qualitativas na aplicação da pena, só meio século depois foi realizada na Holanda e, posteriormente, na Itália e na Noruega”4. Com o advento da República, já em 1890, antes, pois, da Constituição, a pena de galés era abolida pelo Decreto nº 774, do qual constou: “as penas cruéis, infamantes ou inutilmente aflitivas, não se compadecem com os

3

LYRA, Roberto. Op. cit. p. 63-64.

4

Op. cit. p. 59.


Teoria da Pena - 7 princípios de humanidade em que no tempo presente se inspiram a ciência e a justiça sociais, não contribuindo para a reparação da ofensa, segurança pública ou regeneração do criminoso”. No Código Penal Republicano, de 1890, as penas previstas eram: prisão celular, banimento, reclusão, prisão com trabalho obrigatório, prisão disciplinar, interdição, suspensão e perda de emprego público, com ou sem inabilitação para o exercício de outro, e multa. Foram proibidas as penas infamantes. No mesmo documento legal, estabeleceu-se que as penas privativas de liberdade seriam temporárias e não poderiam exceder 30 anos. A primeira Constituição Republicana, de 1891, confirmou a abolição da pena de galés e a do banimento judicial, e a de 1934 proibiu a pena de morte, de confisco e as de caráter perpétuo. A Carta autoritária de 1937 restabeleceu a possibilidade da adoção, pela lei ordinária, da pena de morte para alguns crimes – na maioria de natureza política, e para o homícidio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade. Em 1938, a Constituição de 37 foi emendada pela Lei Constitucional nº 1 que, em vez de facultar, determinou, ao legislador a adoção da pena de morte e, em vez de prescrevê-la para o homicídio por motivo fútil e, ao mesmo tempo, perverso, determinou sua cominação para o homicídio fútil e também para o homicídio cometido com “extremos de perversidade”. Apesar de elaborado e ingressado no mundo jurídico sob a égide dessa Constituição autoritária, o Código Penal de 1940, felizmente, não incluiu a pena de morte, adotando apenas as de reclusão, detenção e multa. Apesar de inúmeros estudos e estudiosos, de idéias as mais díspares, e todas visando à resolução dos problemas derivados da criminalidade, ainda se vive um tempo de perplexidade. Se é verdade que a pena de morte, as penas corporais, foram, devidamente, banidas do ordenamento jurídico dos povos civilizados, não menos verdadeira é a conclusão de que a pena privativa de liberdade está completamente falida, e não se presta a coisa alguma, a não ser a tornar o condenado um ser ainda mais revoltado e perigoso para o convívio com a sociedade. A história da pena é a história da luta contra sua crueldade e severidade. Com a pena nasceu a necessidade de limitá-la. À vingança privada seguiram-se a divina e a pública que, inegavelmente, a limitaram. Às penas corporais, violentas, cruéis, inclusive às de morte, sucederam as privativas de liberdade, hoje, inevitavelmente, consideradas cruéis e que, por isso mesmo, deverão ser substituídas por outras, menos severas, mais humanas. O tempo atual haverá de ser o


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles das penas restritivas de direito e de prestação de serviços à comunidade, compatíveis com o estágio de desenvolvimento cultural hoje vivido.

13.2 FINALIDADE E TEORIAS DA PENA O grande ROBERTO LYRA ensinou: “o fundamento da pena, que não resulta de um conceito jurídico, foi conduzido para a abstração filosófica” e tendo-se formado diversas teorias, cada qual com suas características e sutilezas, são, todavia, classificáveis apenas “para fins didáticos”5. Mas ninguém pode negar que os estudiosos do Direito Penal sempre se preocuparam com o fundamento – a razão de ser – e a finalidade, o objetivo da pena. Por que punir alguém? Com qual objetivo? Para quê, com qual finalidade? Essas

são

questões

importantíssimas,

com

respostas

até

hoje

não

satisfatoriamente encontradas. Nenhum estudioso sério do Direito Penal poderia deixar passar em brancas nuvens a necessidade de discutir as bases e os fundamentos da pena criminal. Nenhum jurista sério poderia limitar-se a estudar a pena sem perquirir sobre seus fundamentos, suas bases e sua justificação. CLAUS ROXIN indaga: “com base em que pressupostos se justifica que o grupo de homens associados no Estado prive de liberdade algum dos seus membros ou intervenha de outro modo, conformando a sua vida?”6 Essas preocupações, ensina ROBERTO LYRA, já faziam parte do pensamento de Pitágoras, de Platão e de Aristóteles, mas a pena como fato, segundo Belloni, não precisaria ser justificada7. É certo que para o estudioso do Direito é indispensável conhecer o fundamento da pena criminal, mas bem mais verdadeira é a necessidade de que ela seja justificada, isto é, possa ser considerada justa como realização do interesse maior dos interesses da coletividade. Por isso, é preciso verificar a razão de ser da pena e a justeza de sua existência concreta. Será isso possível? A unanimidade dos doutrinadores classifica as teorias sobre a pena em absolutas, 5

Op. cit. p. 22.

6 Sentidos e limites da pena estatal. In: Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega, 1986. p. 15. 7 Op. cit. p. 22.


Teoria da Pena - 9 relativas e mistas, divisão que se acata para estudá-las.

13.2.1

Teorias absolutas

Várias teorias entendem que a pena tem uma natureza absoluta, é justa por si mesma e seu fundamento é a existência do crime. A pena seria, assim, a necessária e indispensável conseqüência jurídica da existência do crime. Uma delas afirma que o crime é a violação de um preceito oriundo de Deus, e a pena, então, seria a retribuição divina. Outra, de KANT, considera o crime a infração da ordem moral, e a pena deve ser a compensação moral. Já HEGEL mostra que, sendo o crime a violação do direito, a pena é sua derivação dialética, produzindo a compensação jurídica. O crime é a negação do direito. A pena é a negação do crime, a negação da negação, a síntese. Outra teoria apresenta a pena como uma necessidade estética que, por meio da retribuição, estabelece a justiça no lugar da injustiça, que foi o crime. E outra teoria absoluta procura demonstrar a pena como o meio – doloroso – para a purificação do homem que praticou o crime. Todas essas teorias, como se vê, partem do pressuposto de que a pena é necessária em si e por si, em vez de apresentar um fundamento para sua existência, que pudesse presidir sua criação. No entanto, é preciso conhecer o fundamento da pena, sua razão de ser, sua justificação, para que se possa afirmar sua necessidade. Esta tarefa não é realizada por nenhuma das teorias absolutas. Na verdade, as teorias absolutas, chamadas retributivas, traduzem-se na necessidade de retribuir o mal causado – o crime – por outro mal, a pena, e sustentamse, por isso, ainda, no velho espírito de vingança, que se situa na origem da pena, o que já não é aceitável nos dias modernos. Inadmissíveis, pois, as teorias retributivas, principalmente porque não apresentam os pressupostos, os requisitos, da pena e, desse modo, não limitam o poder estatal de punir, deixando o legislador livre para incriminar qualquer comportamento, qualquer conduta humana, qualquer fato, e cominar quaisquer espécies de pena em quaisquer quantidades.

13.2.2

Teorias relativas


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles As teorias relativas contrapõem-se às absolutas, pois buscam apresentar a pena com uma finalidade de natureza política e de utilidade para os homens e a sociedade. A punição imposta ao agente do crime destinar-se-ia a prevenir a ocorrência de novos crimes. Há duas espécies de teorias relativas: as teorias da prevenção geral e as teorias da prevenção especial.

13.2.2.1

Teorias da prevenção geral

Essas teorias compreendem a pena como instrumento de intimidação geral dos indivíduos, que, diante da ameaça abstrata e concreta da imposição da pena, ficariam motivados a não transgredir a norma penal. Entre elas, a teoria da intimidação defendia a necessidade de dar a maior publicidade às execuções das penas, para que todos tomassem conhecimento do sofrimento dos condenados. Uma teoria, chamada do constrangimento psicológico, procura demonstrar o poder moral da pena. A teoria da defesa mostra a necessidade da aplicação da pena pelo Estado porque o crime coloca em perigo as condições de sua própria existência, e a punição do agente do crime será o exemplo dado aos homens, para evitar os perigos futuros. Como se vê, o fim da pena para todas as teorias da prevenção geral é a intimidação da generalidade das pessoas, impedindo a ocorrência de novos crimes. Contra essas teorias levantam-se algumas objeções sérias. A primeira delas é o perigo da utilização, pelo Estado, de verdadeiro terror intimidatório que se faz acompanhar da falsa ilusão de que o Direito Penal resolverá o problema da criminalidade, o que é um verdadeiro engodo. No Brasil, ultimamente, o Estado vem ludibriando as populações amedrontadas com a edição de novas leis, mais severas, e com o aumento da quantidade de penas para certos crimes mais graves, como se essa fosse a solução para conter a criminalidade violenta. A Lei nº 8.072/90, dos Crimes Hediondos, foi o grande exemplo de como não atender aos interesses da sociedade. Penas maiores, com regime de cumprimento mais severo, apenas aumentaram as populações dos presídios, com o incremento dos problemas ali reinantes, agravação do já péssimo tratamento aos presos, maior crueldade no cumprimento das penas, rebeliões, enfim, aumento da criminalidade nos presídios. Por outro lado, não diminuiu o índice da criminalidade violenta. Ao contrário, dia a dia pela imprensa, toma a Nação conhecimento de estatísticas reveladoras de aumento de


Teoria da Pena - 11 homicídios qualificados, estupros, extorsões mediante seqüestros e outros dos chamados crimes hediondos. Também essas teorias não apresentam o limite que se impõe ao Estado no momento da elaboração legislativa. Até onde pode o Estado criar o crime e impor a pena, em qual qualidade e em que quantidade? A tendência, como se vê, é inevitavelmente o exagero. Além disso, não se pode esquecer a crítica de CLAUS ROXIN, para quem nada pode justificar a punição de um homem com a finalidade de intimidar os outros, sendo, por isso, injusto punir alguém, para que outro não cometa um crime8.

13.2.2.2

Teorias da prevenção especial

As teorias da prevenção especial apresentam a pena com a finalidade de evitar que o homem que delinqüiu volte a cometer outro crime. Uma delas demonstra que o agente do crime ficará, para sempre ou por tempo determinado, inofensivo e, experimentando a pena, terá conhecido as conseqüências do crime. Outras defendem ainda a necessidade de que o condenado seja “melhorado”, mediante sua educação, sua correção, sua ressocialização, ou recuperação, para poder retornar ao livre convívio com a sociedade. Tanto quanto as demais, essas teorias não apresentam pressupostos que permitam a limitação do poder estatal de punir, tanto na criação dos crimes, quanto na quantificação das penas. O mais grave, todavia, é que, se a pena se destinar a corrigir o agente do crime, há de se convir que ela não poderia ser limitada no tempo, pois só deveria ganhar a liberdade o condenado que estivesse plenamente corrigido e, enquanto não se alcançasse sua correção, deveria permanecer preso, ainda que indefinidamente – o que é inadmissível. Criticam-se, ainda, essas teorias, pois é certo que existem pessoas que cometem um crime e que não voltam mais a cometer outros delitos, e para elas a pena não teria nenhuma razão de ser. Deveriam tais delinqüentes ficar impunes? Óbvio que não, mas, então, com que finalidade seriam punidos, se não precisam ser corrigidos, nem seria o

8

Op. cit. p. 24.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles caso de se prevenirem novos crimes? Essas teorias não respondem a essas importantes e inquietantes indagações, pelo que também não se pode aceitá-las.

13.2.2.3

Teorias de Von Liszt

Para Franz von Liszt, a pena destina-se a alcançar vários fins: a ameaça da pena exerce a função de intimidação geral sobre todos os membros da comunidade, impede que o ofendido exerça a vingança, e melhora e equilibra o agente do crime. Teria, assim, uma finalidade de prevenção geral e uma função ressocializadora. Conquanto seja esta uma teoria que sintetiza as anteriores, com todas as críticas a elas endereçadas, contra ela se reiteram as mesmas objeções.

13.2.3

Teorias mistas

As teorias mistas procuram agregar os vários pontos de vista das teorias absolutas e relativas. Para MERKEL, a pena é justa retribuição que não exclui a idéia de seu fim, que é manter no Estado as condições da vida social, destinando-se, pois, a proteger os interesses dos indivíduos. BINDING concebe a pena como compensação ou satisfação. O direito de punir, que é também um dever, é oriundo da insubordinação do agente do crime, para alcançar o respeito às leis e a conservação do Direito. ROBERTO LYRA ensina que “todas as teorias sobre o fundamento e o fim do direito de punir podem ser concentradas em três idéias: justiça, ou expiação; defesa social, ou intimidação; e contrato social”. Pela idéia de justiça, o agente do crime deveria sofrer a pena, para expiar sua falta, devendo haver proporção entre o crime e a pena. A doutrina da defesa social procura demonstrar que a sociedade, atacada pelo agente do crime, deve defender-se, impedindo, perpétua ou temporariamente, o indivíduo de voltar a agredi-la, ao mesmo tempo em que intimida os outros.

13.2.4

Teoria unificadora dialética de Claus Roxin


Teoria da Pena - 13 Com base na verificação da natureza fragmentária, subsidiária, limitada, do Direito Penal, de sua missão de apenas proteger os bens jurídicos mais importantes e, tão-somente, das lesões mais graves, o Estado só pode construir tipos de crimes que constituam comportamentos dessa natureza, e, ao fazê-lo, estará certamente buscando a prevenção generalizada dessas lesões ou ameaças. Este é o primeiro fim da pena, o de prevenir as lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes. De notar que esse fim está restringindo a construção dos tipos, somente admissíveis quando for absolutamente necessário para a proteção dos bens jurídicos e quando os outros ramos do Direito se mostrarem insuficientes ou incapazes de proporcionar a necessária tutela. Não sendo alcançado o primeiro objetivo da pena, o que ocorre quando o indivíduo comete o crime, a pena destina-se a prevenir a continuidade do sujeito na atividade agressiva dos bens jurídicos importantes, com a observação de sua responsabilidade individual, ou seja, de sua culpabilidade, que vai limitar a aplicação da resposta penal. Aqui se entremostra a prevenção especial. Finalmente, só é possível compreender e justificar a pena, se ela tiver como objetivo a recuperação do agente do crime, seu aperfeiçoamento, a aprendizagem dos valores ético-sociais cultivados pela sociedade, a fim de, alcançando-os, poder voltar ao convívio social em liberdade. Essa finalidade ética é indispensável para justificar a pena, pois sem ela a dignidade humana restaria inexoravelmente violada. ROXIN justifica sua teoria: “Com efeito, a realidade social exige que a comunidade seja protegida de agressões do indivíduo, mas também que o indivíduo o seja de uma excessiva pressão por parte da sociedade. E o próprio delinqüente constitui, por um lado, uma pessoa débil e urgentemente carenciada de um tratamento terapêutico-social e, por outro lado, há que encará-lo de acordo com a concepção de homem livre e responsável, na medida em que um ordenamento jurídico que possua uma noção demasiado pequena do homem, acaba por dar origem à tutela e à falta de liberdade. Esta dupla polaridade entre indivíduo e colectividade, e também entre o fenômeno empírico e a idéia de homem, constitui o ponto de tensão de qualquer problemática social, que em cada caso também se representa na sua totalidade por uma fragmentação como aquela que o direito penal contém. Uma teoria da pena que não pretenda manter-se na abstracção ou em propostas isoladas, mas que tenha como objectivo corresponder à realidade, tem de reconhecer estas antíteses inerentes a toda a existência social para, de acordo com o princípio dialético, poder superá-las


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles numa fase superior; ou seja, tem de criar uma ordem que demonstre que, na realidade, um direito penal só pode fortalecer a consciência jurídica da generalidade no sentido da prevenção geral se ao mesmo tempo preservar a individualidade de quem a ele está sujeito; que o que a sociedade faz pelo delinqüente também é afinal o mais proveitoso para ela; e que só se pode ajudar o criminoso a superar a sua inidoneidade moral se, a par da consideração da sua debilidade e da sua necessidade de tratamento, não se perder de vista a imagem da personalidade responsável para a qual ele aponta.”9

13.2.5

Direito penal simbólico: teoria da prevenção positiva

A teoria da prevenção geral, para a qual a pena tem a missão de prevenir a ocorrência de novos delitos, é chamada, modernamente, de teoria da prevenção negativa, exatamente para se distinguir da chamada teoria da prevenção geral positiva. Esta teoria abandona a função instrumental da pena, construindo no lugar a função simbólica. “Segundo esta teoria, a função da pena não se dirige nem aos infratores atuais nem aos potenciais. Ela se dirige sobretudo aos cidadãos fiéis à lei, aos que supostamente manifestam uma tendência ‘espontânea’ a respeitá-la. Em relação a estes, a previsão ou aplicação das penas não têm a função de prevenir delitos (prevenção negativa), senão a de reforçar a validade das normas (prevenção positiva): isto significa também restabelecer a ‘confiança institucional’ no ordenamento, quebrada pela percepção do desvio. Um dos principais representantes desta teoria define o fim da pena como o ‘exercitar os cidadãos para a validade da norma’, fórmula esta que não se encontra muito longe daquela proposta por Andenaes, que falava da ‘educação’ dos cidadãos de acordo com as leis.”10 Diante dos problemas derivados do aumento incontido da criminalidade grave, aos quais se acrescem os decorrentes da falência dos sistemas penitenciários, a teoria da prevenção positiva marcha para a construção de um direito penal simbólico, em que o legislador não apresentaria as soluções para modificar a realidade, mas apenas

9

Op. cit. p. 45.

10

BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 5, p. 21, jan./mar. 1994.


Teoria da Pena - 15 proposições destinadas a alterar a imagem da realidade e, em outros termos, criar junto às populações a ilusão de que seus interesses, seus bens, estão devidamente protegidos pelo ordenamento jurídico, pelo Estado. O poder político, uma vez mais, engana a opinião pública. Verifica-se, presentemente, não só nos Estados Unidos da América e na Europa, mas também no Brasil, a presença desta tentativa de construir um direito penal simbólico, em que o legislador declara uma intenção, quando na realidade deseja exatamente outra: apenas a de ludibriar a comunidade, inculcando nela a idéia de confiança no Estado. Essas proposições devem ser vigorosamente combatidas. “O cuidado que se deve ter hoje em dia em relação ao sistema de justiça criminal do Estado de direito é ser coerente com seus próprios princípios ‘garantistas’: princípios de limitação da intervenção penal, de igualdade, de respeito ao direito das vítimas, dos imputados e dos condenados. Trata-se, mais que tudo, de aplicar e transformar o direito substancial (fundamental), processual e penitenciário em conformidade com aqueles princípios, por todo o tempo em que deva durar a luta por uma política ‘alternativa’ com relação à atual política penal.”11 No Brasil, em vez das propostas derivadas desse direito penal simbólico, necessitase de um direito penal de intervenção mínima. Descriminalizar certos fatos, despenalizar, limitar as penas privativas de liberdade apenas aos crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, construir outras modalidades de penas – restritivas de direitos, de prestação de serviços, entre outras, que a criatividade deve indicar –, evitar, enfim, o encarceramento de delinqüentes de menor ou ínfima periculosidade, construir

um

direito

penal

essencialmente

tutelar,

fragmentário,

voltado

exclusivamente para a proteção dos bens jurídicos. O caminho a ser trilhado é o percorrido pelo legislador que construiu a Lei nº 9.099/95, que precisa revogar a Lei dos Crimes Hediondos, e que está na obrigação de revogar a chamada Lei do Crime Organizado, e outras mais, elaborando novos diplomas legislativos em substituição, que atendam àqueles princípios.

13.3 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

11

BARATTA, Alessandro. Op. cit. p. 23-24.


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles A todo fato ilícito corresponde uma sanção. O ilícito é a violação do dever imposto pelo direito positivo, sob a ameaça da sanção. Quem causa um dano deve repará-lo, ressarcindo o titular do bem danificado. Quem viola um direito, igualmente. O ilícito penal é uma espécie de ilícito jurídico, cuja sanção é a pena. Quem comete um crime deve sofrer a pena. A pena é a conseqüência jurídica da existência do crime, a sanção característica da violação da norma penal incriminadora. A pena deve ser proporcional ao crime em qualidade e em quantidade. Esta exigência tem origem no talião – olho por olho, dente por dente. Modernamente, devem o legislador, no momento da cominação, e o juiz, quando a aplica, estar atentos para a necessidade de respeitar o princípio da proporcionalidade entre o fato criminoso e a sanção a ele correspondente. É óbvio que ao homicídio não corresponde a pena de morte – proibida entre os povos civilizados – nem às lesões corporais correspondem castigos corporais. A proporcionalidade diz respeito à gravidade da lesão e à importância do bem jurídico atingido, em relação à pena a ser aplicada. Ao se falar de pena privativa de liberdade, a maior pena deverá corresponder ao crime que destrói o bem jurídico mais importante de modo mais grave. Em qualquer ordenamento jurídico, a pena mais severa haverá de ser a cominada ao delito do homicídio mais grave, o qualificado. E à medida que o bem atingido é menos importante, ou a lesão é menos grave, menor em qualidade e quantidade haverá de ser, também, a pena. A proporcionalidade da pena deve ser em relação ao fato criminoso e não ao agente do crime. A periculosidade do agente é, na realidade, indemonstrável e não é o direito penal o redentor do pecado, ou o purificador das almas, como já dizia ASSIS TOLEDO. Sua missão é essencialmente jurídica, tutelar de bens jurídicos. A pena é personalíssima, por força do princípio constitucional da responsabilidade pessoal (art. 5º, XLV, CF), só devendo alcançar o agente do crime, não podendo ultrapassar sua pessoa, nem atingir seus descendentes ou ascendentes. As penas mais graves, especialmente as privativas de liberdade, por mais que se destinem a encarcerar o condenado, não deixam, em verdade, de refletir-se em toda a sua família. Mães, filhos, irmãos e amigos do condenado sofrem, psíquica e fisicamente, as conseqüências da prisão do apenado. Infelizmente, apesar da vontade do preceito constitucional, a pena de prisão sempre alcançará outras pessoas, dada a violência de sua execução, o sofrimento impingido ao agente do crime e a desumanidade e


Teoria da Pena - 17 crueldade com que é executada. As penas devem ser iguais para todos, pobres e ricos, pretos e brancos, altos e baixos, homens e mulheres, fortes e fracos, poderosos e humildes, exploradores e explorados. A realidade não é esta. O crime é um fenônemo cujas causas também se assentam nas desigualdades econômico-sociais. O agente do crime é, em regra, um desajustado social, fruto das estruturas sociais perversas, negro, pobre, analfabeto, nascido na favela, no morro, na periferia das cidades, muitas vezes de pai desconhecido ou de mãe ignorante. A pena deve ser legal. Há de resultar da cominação estabelecida previamente na lei. Do princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, CF) decorre que não haverá pena sem que haja, anteriormente, lei em sentido estrito, ordinária, federal, emanada do Congresso Nacional, cominando-a. Além disso, deve destinar-se a educar, corrigir, socializar, ou recuperar o condenado. Inadmissível a privação da liberdade do homem que não tenha como fim sua educação ou correção. Impossível compreender a pena sem a finalidade terapêutica, correcional, educacional, socializante. O agente do crime, por ter violado a norma penal incriminadora, demonstrou não respeitar o valor erigido pela sociedade à categoria de bem jurídico penalmente protegido – bem jurídico muito importante. Se não soube respeitá-lo, é porque não estava apto a conviver em sociedade, necessitando, por isso, receber as informações e a formação necessárias para conhecer a importância dos valores éticos cultivados pela sociedade, e saber comportar-se em seu dia-a-dia de modo a não atingi-los. Se essa finalidade é indispensável, discutível é a possibilidade real de realizar-se esse desiderato por meio da privação da liberdade. Não será possível jamais educar alguém, nem conscientizar quem quer que seja da necessidade e importância de respeitar os bens jurídicos alheios, por meio da pena de prisão. Em outras palavras, é impossível ensinar alguém a viver em liberdade, privando-o dela. Por isso, defende-se o fim de toda e qualquer espécie de pena privativa de liberdade. A solução é a adoção de outras penas – restritivas de liberdade e de outros direitos, de prestação de serviços à comunidade, perda de bens, para crimes econômicos, organizados etc. – para a construção de um direito penal democrático e de intervenção mínima.


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles

13.4 CLASSIFICAÇÃO A doutrina apresenta várias classificações das penas. Conforme sejam seus fins, as penas seriam de intimidação, destinadas aos ainda não corrompidos ou intimidáveis; de correção para os corrigíveis; e de eliminação ou de segurança, que seriam aplicadas aos incorrigíveis. Quanto a suas conseqüências, as penas seriam eliminatórias, consistentes na eliminação do delinqüente, como a pena de morte e as perpétuas, semi-eliminatórias, que os manteriam temporariamente eliminados, e corretivas, nas quais se buscaria a recuperação do condenado, restringindo-lhe direitos. Com relação ao bem jurídico que atingem, as penas são: capitais, as que eliminam a vida; corporais ou aflitivas, as que ofendem a integridade física do condenado; infamantes, as que atingem a honra; privativas ou restritivas de liberdade pessoal, as que agridem a liberdade de locomoção ou de domicílio; restritivas de direitos, as que importam na perda de função política ou na inabilitação para o exercício de cargo; e pecuniárias, as que atacam o patrimônio do agente do crime. Penas corporais, aflitivas, infamantes, eliminatórias, de eliminação, enfim, penas que agridem a vida, a integridade física ou a honra das pessoas são, à toda evidência, inaceitáveis porque se voltam contra o princípio da humanidade e o da dignidade da pessoa humana. Integram uma etapa retrógrada da história do homem e devem permanecer apenas nos registros, como realidade superada e indesejada. Felizmente, já se percorre o caminho no sentido da abolição da própria pena privativa de liberdade, que a experiência demonstra estar falida.

13.5 SISTEMAS PENITENCIÁRIOS As penas privativas de liberdade, hoje questionadas, significaram, quando implantadas, um avanço em face da pena de morte e das penas corporais, executadas antigamente, talvez mais do que hoje, com crueldade inominável. A pena de prisão, diz Roberto Lyra, “surgiu como reação contra a ignomínia, a crueldade e a estupidez dos castigos, para humanizar e racionalizar o tratamento do criminoso. Ninguém se deu, porém, ao trabalho de investigar se, na realidade, era mais humana”12.

12

LYRA, Roberto. Op. cit. p. 87.


Teoria da Pena - 19 Originalmente, a prisão era utilizada para manter o acusado custodiado enquanto se dava seu julgamento, e o condenado durante a espera da execução da pena aplicada. A influência da Igreja Católica no sentido da humanização das penas, com a proposição de penas destinadas à correção do delinqüente, vai permitir o aparecimento dos primeiros cárceres organizados, que mais tarde serão conhecidos como sistemas penitenciários. A expressão, como se vê, tem sua origem na idéia católica de penitência, para a expiação do pecado. Ao longo dos tempos, a humanidade racional conheceu três sistemas penitenciários clássicos. O Sistema de Filadélfia, o de Auburn e o Irlandês ou Progressivo.

13.5.1

Sistema de Filadélfia

Também conhecido por Sistema de Pensilvânia, esse sistema surge em 1775, na cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos da América, e consistia no isolamento completo do condenado, durante o dia e durante a noite. Por isso, era chamado de solitary system. Para sua execução, criou-se a célula individual, da qual o condenado não saía, com o objetivo de que pela solidão pudesse meditar e alcançar o arrependimento, por meio da leitura unicamente da Bíblia e de outros livros religiosos. Eram proibidas quaisquer visitas e qualquer contato do condenado com quem quer que seja, inclusive outros presos, até mesmo por correspondência, só podendo avistar-se com o religioso. Não muito se passou e a rigidez do sistema foi sendo abrandada, permitindo-se pequenas saídas da célula e o contato com funcionários do presídio e membros de entidades humanistas. Ao mesmo tempo, as células ganham aeração e insolação, e mais tarde permite-se o trabalho do preso. Este sistema, apesar de ter sido adotado em várias partes do mundo, é de todo evidente, não podia tornar-se um modelo, dada sua rigidez e, como não poderia deixar de ser, por não ter apresentado os frutos desejados por seus idealizadores: a redenção do delinqüente.

13.5.2

Sistema de Auburn


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles Em 1816, no Estado de New York, foi construída a Penitenciária de Auburn, na qual se introduziu o chamado congregate system, que consistia em manter o condenado isolado durante a noite, em célula individual e durante o dia trabalhando com os demais presos, proibida a comunicação, sob pena de castigos corporais. Qualquer comunicação externa era proibida. Esse sistema, na verdade, é evolução do sistema de Filadélfia.

13.5.3

Sistema irlandês ou progressivo

Tempos depois, em 1857, Walter Crofton concebe um sistema de cumprimento da pena privativa de liberdade baseado na progressão, conciliando regras dos sistemas anteriores com períodos de abrandamento. No primeiro período, o condenado seria mantido completamente isolado. Depois, seria mantido o isolamento noturno, com trabalho diurno e manutenção do silêncio. Em seguida, o condenado seria transferido para uma penitenciária industrial ou agrícola, onde trabalharia durante o dia, sem obrigação de silêncio e, por último, ganharia o livramento condicional. O sistema constituiu significativo avanço e foi adotado por todos os povos civilizados do mundo, com adaptações e particularizações as mais diversas, todas elas no sentido do abrandamento da execução da pena.

13.5.4

Sistema brasileiro

A Constituição do Império, de 1824, no art. 179, XXI, estabelecia: “As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes.” Como se observa, é da tradição brasileira o avanço na legislação, inclusive constitucional, e o atraso na prática, pois o Poder Executivo sempre se esquece de cumprir o que a lei manda. Roberto Lyra anota: “Mal se libertou do espírito medieval das Ordenações, o Brasil antecipouse na revelação de sua sensibilidade aos então recentes clamores da consciência humana contra a ignomínia dos cárceres.”13 Nosso legislador do império não fez opção entre o sistema de Filadélfia e o de

13

Op. cit. p. 105.


Teoria da Pena - 21 Auburn, tendo sido experimentadas as duas opções. O legislador da República vai abraçar o primeiro sistema, com características do segundo e com a progressão do sistema irlandês, adotando como base a prisão celular, que vai ser aplicada à grande maioria dos crimes, e destinando as penitenciárias agrícolas para o cumprimento das penas de prisão com trabalhos e para a transferência dos condenados a outras penas de prisão que tivessem cumprido metade da pena. Na verdade é um dos sistemas progressivos sui generis, como tantos outros de vários países. Por esse tempo, estabelece-se o livramento condicional, a princípio quando não restasse mais de dois anos de pena para serem cumpridos. “O sistema do primeiro legislador republicano era, portanto, aceitável, prevendo uma configuração autônoma do sistema progressivo, na qual se afastou de seu modelo, o Código italiano de 89. Mas, não dispúnhamos de estabelecimentos, quer para executar a segregação celular no primeiro período (só o Estado de São Paulo veio a dispor de penitenciária aparelhada), quer para efetivar o terceiro período (penitenciárias agrícolas), mesmo em São Paulo.”14 Como se vê, outra vez, o legislador brasileiro apresentou soluções avançadas, condizentes com os melhores interesses da sociedade, mas, desde sempre, o Poder Executivo nunca se preocupou seriamente com a questão penitenciária, tradição até hoje mantida no país. A história de nossos sistemas penitenciários é essa, avançada na legislação, atrasada na prática. Cresce o país, cresce a população, desenvolvem-se as cidades, a economia galga estágios de desenvolvimento, as péssimas condições de vida da maior parte do povo se agravam, aumentam a miséria e a fome, com elas a criminalidade, constroem-se penitenciárias em quantidade e qualidade insuficientes para atender à demanda, não restando ao legislador senão apresentar novas e modernas soluções, especialmente diante do descaso do Poder Executivo em todos os níveis. Atualmente, o Código Penal brasileiro adota um sistema progressivo de cumprimento das penas privativas de liberdade que significa o que pode haver de mais moderno e democrático em todo o mundo. Pelo nosso sistema, as penas de prisão serão cumpridas progressivamente em três regimes, fechado, semi-aberto e aberto, comportando ainda o livramento condicional e prevista a possibilidade de regressão de regime mais brando a regime mais severo.

14

LYRA, Roberto. Op. cit. p. 109.


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles Por ele, o condenado, após cumprido um sexto da pena, merecendo, será transferido do regime mais severo para o mais brando. Suas regras serão estudadas no próximo capítulo. O sistema baseia-se na necessidade de que a privação da liberdade do condenado seja executada com a finalidade de recuperá-lo, que terá, desde o início, a perspectiva de alcançar a liberdade e a certeza de que ela lhe será devolvida, paulatinamente, conforme seu merecimento. Trata-se de uma concepção moderna, democrática e sobretudo mais humana, da pena de prisão e poderia ter ensejado melhores resultados se os governantes do país e dos estados-membros tivessem proporcionado os pressupostos indispensáveis à sua implementação, construindo e mantendo em boas condições os estabelecimentos prisionais necessários.

13.6 CONCLUSÃO A sanção penal é indispensável, pois o crime vai continuar a existir, aliás, muito provavelmente jamais será extirpado da face da Terra. Enquanto agressão grave ao bem jurídico muito importante, deverá ser, sempre, objeto da preocupação e da repressão do direito. Infelizmente, a única saída é a resposta penal, vale dizer, uma sanção mais severa, mais drástica que a simples reparação civil. De todo evidente que não se admite, em hipótese alguma, a famigerada pena de morte. Trata-se de proposição absurda, desumana, inaceitável. O fim da humanidade é eliminar o crime, não o homem. Já CESARE BECCARIA repugnava-a: “A pena de morte, pois, não se apóia em nenhum direito. É guerra que se declara a um cidadão pelo país, que considera necessária ou útil a eliminação desse cidadão. (...) A experiência de todos os séculos demonstra que a pena de morte jamais deteve celerados com a firme determinação de praticar o mal. (...) Uma pena para ser justa, precisa ter apenas o grau de rigor suficiente para afastar os homens da senda do crime.”15 Além de incoerente com o sistema que considera crime o homicídio, a pena de morte, onde é adotada, destina-se na prática aos integrantes das classes subalternas, negros, imigrantes, minorias. Felizmente, a Carta Magna proibiu, expressamente, a adoção da pena de morte,

15

Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus, 1983. p. 118.


Teoria da Pena - 23 bem assim das de caráter perpétuo, de banimento e de natureza cruel (art. 5º, XLVII), impedindo o Congresso Nacional de deliberar sobre emenda constitucional que vise incluir qualquer dessas penas no ordenamento jurídico-penal brasileiro (art. 60, § 4º, IV, CF). O sistema penal brasileiro não poderá, em nenhuma hipótese, adotar a pena de morte, nem qualquer pena privativa de liberdade perpétua, muito menos penas executadas com crueldade. Por isso, a espécie de pena mais grave permitida é a privativa de liberdade. A pena privativa de liberdade – que é a sanção penal por excelência –, atualmente a base de todos os sistemas punitivos conhecidos, está inexoravelmente falida. Como se pôde observar, a história da pena é a história de sua limitação, de sua modificação, sempre no sentido de minorar-lhe a gravidade, os efeitos, a crueldade e os modos de execução. A história da pena de prisão, igualmente, é a história de sua humanização e de seu abrandamento. A história dos sistemas penitenciários, do mesmo modo, é a história de sua humanização e será a história de sua eliminação. Inegável que esse tempo é o do ocaso da pena de prisão. Essa falência não se deve apenas ao descaso com que o poder público encara o problema, que, felizmente, faz com que toda a sociedade tome consciência da realidade e possa avançar na construção de alternativas democráticas. Mas, deve-se, principalmente, à sua própria essência, desumana e violenta, e à impossibilidade de, com ela, alcançar qualquer objetivo ético em relação aos condenados. Até porque na realidade concreta da quase totalidade dos países, as penas de prisão vêm sendo executadas com total desrespeito aos direitos mais comezinhos dos condenados. No Brasil, a situação é gritantemente absurda. Os sentenciados são armazenados nos presídios e nas celas das cadeias públicas como nem se tratam os animais de estimação, nem os selvagens, em compartimentos fétidos, sem mínimas condições de higiene. Vive-se um momento crucial na história do direito penal em todo o mundo. É tempo de mudar, de romper com o passado, de criar um novo sistema punitivo, em que a sanção penal seja a um só tempo severa, justa, democrática e recuperadora do condenado, para conferir proteção ao bem jurídico. Se a humanidade conseguiu chegar à Lua, e agora também ao planeta Marte, viajar pelo espaço sideral, buscando contato com outros planetas, conhecendo-os, explorando o universo, por que não será capaz de encontrar a solução para um problema terreno tão importante que não exige tantos recursos materiais?


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles


14 PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE

___________________________ As penas privativas de liberdade constituem, modernamente, a base de todos os sistemas penitenciários do mundo civilizado. Se, em relação às penas corporais e à pena capital, são, aparentemente, mais humanas, à medida que não são perpétuas, a prática de sua execução, em todos os países do mundo, sem exceção conhecida, revela sua mais profunda desumanidade. A Constituição Federal, no art. 5º, XLVI, determinou que o legislador adotasse, entre outras, penas privativas ou restritivas de liberdade, de perda de bens, de multa, de prestação social alternativa e de suspensão ou interdição de direitos, proibindo, no inciso XLVII, a adoção da pena de morte, exceto em caso de guerra declarada nos termos do art. 84, XIX, das penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e de natureza cruel. Esses dois princípios constitucionais orientam o legislador ordinário na construção do direito penal. Atendendo ao mandamento constitucional, nosso Código Penal, no art. 32 estabeleceu que as penas são “I – privativas de liberdade; II – restritivas de direitos; III – de multa”. Nos arts. 33 a 42, estabelece as normas sobre as duas espécies de penas privativas de liberdade adotadas, a reclusão e a detenção, adiante tratadas.

14.1 RECLUSÃO E DETENÇÃO São duas, pois, as espécies de penas privativas de liberdade: reclusão e detenção. Qual a diferença entre elas, se é que existe? O art. 33 do Código Penal estabelece que a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto, ao passo que a de detenção será cumprida em regime semi-aberto ou aberto, salvo a necessidade de transferência ao regime


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles fechado. Assim, a primeira diferença entre as duas modalidades de penas, que seria o regime de seu cumprimento, não existe, pois tanto a pena de reclusão, quanto a de detenção, podem ser cumpridas em quaisquer dos três regimes, cujas regras serão estudadas adiante. Sim, pois dentro do sistema progressivo brasileiro, mesmo o condenado à pena de reclusão poderá, em dado momento, cumprir parte dela no regime aberto, e o condenado à pena de detenção poderá, se necessário, cumprir parte dela em regime fechado. Estaria a diferença das penas relacionadas com a gravidade dos crimes a que correspondem? A de reclusão seria para crime mais grave e a de detenção para crime menos grave? Tomem-se dois exemplos: para o crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, definido no art. 122 do Código Penal (induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça), a pena cominada é de reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma, ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Já para o crime de infanticídio, tipificado no art. 123 do Código Penal (matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após), a pena é de detenção, de dois a seis anos. Nos dois crimes, havendo morte, a quantidade da pena é idêntica, de dois a seis anos, mas na participação em suicídio a pena é de reclusão, ao passo que no infanticídio a pena é de detenção. Qual dos crimes é o mais grave, se o bem jurídico é o mesmo, a vida? Igual pena, de detenção por dois a seis anos, é cominada ao abandono de recémnascido, seguido de morte (“expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria”). Difícil afirmar qual dos crimes é o mais grave, qual comportamento merece maior censura, maior reprovação. Discutindo-os, encontrar-se-iam as mais diversas razões em todos os sentidos e muito provavelmente não se encontraria uma solução pacífica, extreme de dúvidas. Conquanto ambas sejam privativas da liberdade, aponta-se como diferença entre as penas o rigor com que seriam executadas. A de reclusão seria executada com maior rigor, necessariamente em estabelecimento penal de segurança máxima ou média, ao passo que a de detenção seria cumprida em estabelecimento de segurança mínima, ou em colônia agrícola, industrial ou similar. Esta diferença, todavia, não diz respeito à natureza da pena, mas ao regime de cumprimento de qualquer delas, conforme estabelece o § 1º do art. 33 do Código Penal.


Penas Privativas de Liberdade - 3 Se alguém for condenado a duas penas, uma de reclusão e outra de detenção, a primeira será executada em primeiro lugar, como manda o art. 69 do Código Penal, mas esta, evidentemente, também não é uma diferença entre elas. Se alguém for condenado a uma pena de reclusão, por um crime doloso cometido contra o próprio filho, um seu tutelado ou curatelado, será declarado incapaz para o exercício do pátrio poder, da tutela ou da curatela, mas esse efeito da condenação não é característica que distingue a pena de reclusão da pena de detenção, pois tal conseqüência decorre da natureza do crime – doloso – e do sujeito passivo – o próprio filho, tutelado ou curatelado –, não da pena a ele cominada. Aponta-se, ainda, como diferença entre reclusão e detenção a possibilidade de o juiz, na hipótese de inimputabilidade – exceto a decorrente de menoridade – determinar tratamento ambulatorial se a pena cominada ao fato típico for de detenção. Não é esse um critério diferenciador da qualidade das duas penas, pois a norma do art. 97 do Código Penal cuida de outro instituto – medida de segurança – que é, exatamente, a resposta que o direito dá ao que praticou um fato típico ilícito e que não poderá ser apenado, por ser considerado inimputável. Esse critério diz respeito à opção que o juiz poderá fazer entre as duas espécies de medida de segurança, de internação ou ambulatorial, que estariam correlacionadas com as duas espécies de penas, reclusão e detenção, respectivamente. Com base nessa norma, o máximo que se pode afirmar é que a pena de reclusão é mais severa que a de detenção, como é mais severo o tratamento médico mediante internação, que o pela via ambulatorial. Aliás, melhor dizer, em vez de mais severo, menos desejado, pois que, cientificamente e na prática, não se pode afirmar ser – por si só – mais brando um tratamento ambulatorial que uma internação hospitalar. Costuma-se falar, ainda, como sendo a diferença entre as modalidades de pena, o tratamento estabelecido pelo Código de Processo Penal aos indiciados ou acusados da prática de crimes punidos com reclusão, diferente do atribuído aos que teriam praticado crimes punidos com detenção. Por exemplo, no art. 323, I, que trata da concessão de fiança, a norma a proíbe se o crime for punido “com reclusão em que a pena mínima cominada for superior a dois anos”. Evidentemente, essa norma não constitui critério diferenciador das duas modalidades de pena. Tanto que o inciso III do mesmo artigo também proíbe a concessão de fiança para os agentes de crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade – reclusão ou detenção – se o acusado for reincidente, e o inciso IV, se o réu


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles for vadio. No art. 313, I, o estatuto processual esclarece a possibilidade de ser decretada a prisão preventiva do acusado da prática de crime doloso punido “com reclusão”, e há doutrinadores que vêem aí um critério diferenciador, mas outra vez não se trata de diferença entre a espécie de pena, mas de requisitos estabelecidos pelo legislador do processo penal que levam em conta a gravidade do crime. Em síntese, a única diferença que se pode afirmar entre a penas de reclusão e a de detenção é que a primeira deve ser mais grave, mais severa, executada de modo mais rígido, pelo menos a princípio. Nada mais que isso. Na prática do sistema punitivo brasileiro, todavia, não há diferenças entre as duas penas, uma vez que tanto as penas reclusivas quanto as detentivas são, em sua grande maioria, executadas nos mesmos estabelecimentos e sob as mesmas condições e regras. O objetivo da lei, ao distinguir as espécies de pena, especialmente no momento da cominação, foi o de contemplar os delitos mais graves com reclusão, e os menos graves, com detenção, segundo seus critérios de valor que, se podem ser discutíveis do ponto de vista filosófico, cultural, sociológico, são, todavia, o único meio inquestionável, em face do princípio da legalidade. ALBERTO SILVA FRANCO lembra: “O legislador de 84 manteve a classificação ‘reclusão-detenção’, acolhida na PG/40 e, sob este ângulo, não se posicionou de acordo com as legislações penais mais modernas, que não mais a aceitam, porque as áreas de significado dos conceitos de reclusão e de detenção estão praticamente superpostas e não evidenciam nenhum critério ontológico de distinção”1, mas que as “mínimas diferenças hoje detectadas (...) minimizam a separação entre a pena reclusiva e a pena detentiva, reforçando cada vez mais a idéia da fusão de ambas no conceito maior de penas privativas de liberdade.”2 Por isso, perfeitamente dispensável a preocupação com o encontro de diferenças entre as espécies de penas, bem assim a luta para que os condenados a penas de detenção sejam mais bem tratados que os condenados a penas de reclusão. O objetivo há de ser a limitação de toda e qualquer pena privativa de liberdade – reclusão, detenção e prisão simples – e a criação, consolidação ou implantação de outras penas autorizadas ou não proibidas pela Constituição Federal: restrição de liberdade, restrição de direitos, multa, 1

Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 392.

2

Op. cit. p. 393.


Penas Privativas de Liberdade - 5 perda de bens, prestação social alternativa etc. Enquanto não avança o legislador penal na construção de um novo sistema punitivo que elimine, ou pelo menos restrinja de modo drástico, toda e qualquer pena privativa de liberdade, é preciso conhecer, estudar, compreender o sistema atual, como ele é, com suas regras e particularidades.

14.2 SISTEMA PROGRESSIVO E REGIMES PRISIONAIS As penas privativas de liberdade deverão ser cumpridas com observância do sistema progressivo, que é, segundo ALBERTO SILVA FRANCO, o “ponto de interseção onde se conectam os princípios da legalidade, da individualização e da humanidade da pena”. 3 A lição do grande mestre não pode ser ignorada. Por muito tempo, somente se viu no princípio da legalidade sua face voltada para a teoria do crime, para a necessidade da prévia tipificação, em lei federal ordinária, stricto sensu, da conduta proibida pela norma penal. É verdade que, ao se indagar do estudante o que é o princípio, ouve-se, na maior parte das vezes, a resposta solerte: não há crime sem lei anterior que o defina. Ponto. Raramente, o interlocutor recorda-se de que a necessidade da prévia lei diz respeito também à cominação da pena, em qualidade e em quantidade. Por outro lado, quando a Carta Magna afirma que não há pena sem prévia cominação legal, está-se referindo aos três momentos da pena: cominação, aplicação e execução. Em outras palavras, a legalidade deve imperar na necessidade da prévia cominação, no momento da aplicação e por todo o processo de execução. Na construção dos tipos, o legislador deve evitar o recurso a fórmulas dúbias que levem à perplexidade. Bem assim deverá cominar penas de modo claro, preciso e exato, em qualidade e em quantidade. A pena, por sua vez, só pode ser aplicada com observância do conjunto das normas processuais vigentes – due process of law – e de outros princípios constitucionais, como o da amplitude da defesa e do contraditório e, principalmente, o da exigência da fundamentação da decisão judicial que impuser a pena criminal. Além disso, deverão ser observadas as normas do Código Penal atinentes à individualização – outro princípio constitucional impostergável.

3

Op. cit. p. 389.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles Finalmente, a execução da pena também obedecerá aos princípios e normas fundamentais. Legalidade, individualização, humanidade da pena. Eis a progressão. Em que consiste o sistema progressivo brasileiro? O Código Penal adotou três regimes de cumprimento das penas privativas de liberdade: o regime fechado, o regime semi-aberto e o regime aberto, cujas regras e características serão examinadas nos itens seguintes. Como as próprias denominações indicam, o primeiro é o mais rigoroso e o último o mais brando. Vê-se, assim, uma gradação dos três regimes. A progressão implica a transferência do condenado do regime mais severo para o regime mais brando. Do fechado para o semi-aberto e deste para o aberto no decorrer do tempo e conforme seja o merecimento do condenado. O sistema é de mão-dupla, pois, do mesmo modo que o sentenciado que merecer poderá ser transferido para regime mais benéfico, igualmente poderá ser transferido do regime mais brando para o mais severo: a regressão, que é a outra face da moeda do sistema. Como, quando e em que condições se darão a regressão e a progressão, e o que é regime aberto, semi-aberto, fechado e quais suas regras são os temas abordados a seguir, após breves considerações sobre o exame criminológico, a classificação e o programa de tratamento dos condenados.

14.2.1

Exame

criminológico,

classificação

e

programa

individualizador O sistema progressivo, com vistas na recuperação do condenado, não pode prescindir de alguns institutos da maior importância: o exame criminológico, a classificação e o programa individualizador. O art. 34 do Código Penal estabelece que o condenado deverá ser submetido a um exame criminológico, cujo objetivo é classificá-lo, a fim de que possa ser efetuada a individualização – garantia constitucional – da pena durante a fase da execução. Ninguém pode ignorar que, para se buscar o tratamento do condenado, torna-se necessário, antes, o conhecimento de sua personalidade, com base no que será feita a proposta de seu tratamento, a fim de que ele possa alcançar as condições necessárias a sua reinserção na sociedade. O exame criminológico é, na verdade, um conjunto de análises, de natureza


Penas Privativas de Liberdade - 7 médica, psicológica e social, com as quais o preso poderá ser classificado, com base no qual se escolherão o estabelecimento prisional adequado e os métodos recomendados para seu tratamento. É fundamental conhecer a personalidade do condenado, por meio de exames médico-biológico, psicológico, psiquiátrico, mais o estudo social de seu caso, sua história. Essa investigação científica tem por objetivo descobrir as causas da dificuldade de adaptação do condenado no mundo social e estabelecer um diagnóstico sobre a possibilidade de sua recuperação, com base no que se determina o tratamento recomendado pelas ciências. Este é o espírito da lei penal e da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84) que, em consonância com o art. 34 do Código Penal, prevê a obrigatoriedade do exame criminológico para os condenados que tiverem de cumprir a pena no regime fechado, facultada sua realização para os do semi-aberto. A classificação visa formar grupos de condenados e distribuí-los nos vários estabelecimentos prisionais, nos quais serão submetidos ao programa individualizador de tratamento. Com a formação de grupos, separam-se aqueles considerados de mais difícil recuperação dos mais facilmente emendáveis, juntando-se os de mesma formação profissional, os de mesma terapia curativa, os de origem urbana, os de origem rural. Com os grupos, o tratamento seria aplicado de forma melhor, vislumbrando-se maior facilidade na recuperação dos condenados. Na realidade, principalmente no Brasil, a classificação não atinge seus objetivos. JASON ALBERGARIA informa: “Para SUTHERLAND, o sistema de classificação pode terminar em malogro num ponto qualquer de suas quatro fases: grande parte dos estabelecimentos prisionais não possuem pessoal qualificado para elaboração do diagnóstico inicial; ainda que exista o diagnóstico, não é suficiente para elaborar o programa de tratamento: as entrevistas para o diagnóstico não duram mais de 15 minutos. Em outros estabelecimentos, não se reúne a Comissão de Classificação; e quando se reúne, suas decisões não se referem ao tratamento, mas à segurança e à disciplina. É na terceira fase do tratamento que o fracasso é mais freqüente. Acontece que os relatórios de observação nem chegam a ser lidos. O pessoal de disciplina às vezes considera as recomendações da classificação como contrárias à ordem e à segurança. O próprio pessoal especializado negligencia extremamente a aplicação de suas próprias recomendações e se burocratiza, aderindo ao sistema


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles repressivo. O sucesso da classificação depende da reação da opinião pública; um tratamento coroado de êxito não interessa à opinião pública, mas uma fuga ou um motim chamam a atenção de todos sobre a prisão.”4 No Brasil, o poder público jamais se preocupou com o sistema penitenciário, a não ser quando ocorrem rebeliões, oportunidade em que se aumentam a disciplina e a segurança, além da adoção de algumas medidas de natureza paliativa. A vontade da Lei de Execução Penal, Lei nº 7.210, de 11-7-1984, estampada no seu art. 1º – “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” –, pelo menos no que diz respeito à execução de pena privativa de liberdade, não foi nem será jamais alcançada, ainda porque a perda da liberdade é absolutamente incompatível com a harmônica integração social de qualquer pessoa, mormente a condenada pela prática de um crime.

14.2.2

Regime fechado

O Código Penal considera fechado o regime de execução de pena privativa de liberdade em estabelecimento penal de segurança máxima ou média (art. 33, § 1º, a, CP), onde o condenado fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno (art. 34, § 1º, CP). A Lei de Execução Penal (LEP) estabelece que o condenado à pena de reclusão em regime fechado cumprirá a pena em uma penitenciária, devendo ser alojado em cela individual, com dormitório, lavatório e aparelho sanitário, que deverá ter ambiente salubre pela presença de fatores de aeração, insolação, condicionamento térmico adequado à existência humana e área mínima de seis metros quadrados (arts. 87 e 88, Lei nº 7.210/84). O regime fechado prevê o isolamento do condenado durante o período noturno, em compartimento individual salubre e trabalho em comum durante o dia, conforme suas aptidões e as ocupações anteriores, desde, é claro, que compatíveis com a privação da liberdade. O trabalho interno é obrigatório e está regulado na Lei de Execução Penal, nos arts. 31 a 35, cabendo ressaltar que a jornada de trabalho não será inferior a seis, nem superior a oito horas, assegurado o descanso nos domingos e feriados. O objetivo é a

4

Comentários à lei de execução penal. Rio de Janeiro: Aide, 1987. p. 23.


Penas Privativas de Liberdade - 9 formação profissional do condenado. Como incentivo ao trabalho do condenado, a lei dispensa de licitação a aquisição, por órgãos da administração direta ou indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de bens ou produtos do trabalho realizado nos estabelecimentos prisionais. Os recursos oriundos da comercialização dos produtos reverterão ao estabelecimento penal ou à fundação ou empresa pública que gerenciar a atividade laboral do presídio. O § 3º do art. 34 do Código Penal prevê a possibilidade de o condenado em regime fechado trabalhar fora da penitenciária, em serviços ou obras públicas. Os arts. 36 e 37 da Lei de Execução Penal regulam o trabalho externo, que, é óbvio, será remunerado, e tem como requisito o cumprimento de, no mínimo, um sexto da pena. Evidentemente, o trabalho externo merecerá rígida fiscalização, para evitar fugas e manter a disciplina.

14.2.3

Regime semi-aberto

É semi-aberto o cumprimento de pena privativa de liberdade em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar (art. 33, § 1º, b, CP). O art. 35 do Código Penal determina que o condenado que iniciar o cumprimento da pena no regime semi-aberto será submetido ao exame criminológico, mas o parágrafo único do art. 8º da Lei de Execução Penal afirma que “ao exame de que trata esse artigo poderá ser submetido o condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade em regime semi-aberto”. Há gritante contradição entre uma e outra norma. A norma especial, da lei de execução, deve prevalecer, como, aliás, têm decidido os tribunais, sendo, assim, facultativo o exame. O juiz da execução decidirá, sendo de todo aconselhável fazê-lo quando se tratar de crime doloso cometido com violência contra a pessoa. No regime semi-aberto, o trabalho também é obrigatório e, se desenvolvido no próprio estabelecimento, será em comum e durante o período diurno, observadas as mesmas regras para o trabalho interno do regime fechado. O trabalho externo poderá ser autorizado, ainda que em obras ou serviços particulares, diferentemente do regime fechado, mas, igualmente, mediante remuneração e fiscalização, é certo, mas sem vigilância. O condenado cumprindo pena nesse regime terá direito a freqüentar cursos


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles supletivos profissionalizantes e de instrução de segundo grau ou superior (art. 35, § 2º, CP). Inexplicavelmente, a lei não permite, expressamente, a freqüência ao curso de 1º grau, ou de alfabetização, mas é claro que essa omissão não impedirá, em nenhuma hipótese, a freqüência ao ensino primário. No regime semi-aberto, o condenado poderá obter autorização para sair do estabelecimento temporariamente, sem qualquer vigilância direta, para visitar a família e também para participar de atividades que proporcionem condições para seu retorno ao convívio social.

14.2.4

Regime aberto

O regime aberto é o cumprimento de pena privativa de liberdade em casa de albergado ou estabelecimento adequado (art. 33, § 1º, c, CP), onde também será cumprida a pena de limitação de fim de semana (art. 93, da LEP). A casa de albergado, segundo manda a lei de execução penal, deve localizar-se no centro urbano das cidades, devendo ser separada dos demais estabelecimentos prisionais – penitenciárias, colônias, cadeias públicas – e sua arquitetura deverá contemplar instalações destinadas aos serviços de fiscalização e orientação dos condenados, local para cursos e palestras, e aposentos para os presos, sem qualquer espécie de obstáculo físico contra a fuga: grades etc. Na maior parte das cidades brasileiras, não há estabelecimentos adequados ao regime aberto, o que leva a duas medidas judiciais indesejadas: colocar em regime semi-aberto ou fechado o condenado que faz jus ao regime aberto, ou conceder-lhe a plena liberdade ou a prisão domiciliar, a que não faz jus. Para a solução do problema, há os que defendem a permissão do cumprimento da pena em regime aberto em recinto “especial e separado de outro estabelecimento penal”. A idéia, apesar de sua boa intenção, no que diz respeito a impedir regime mais duro para condenado que merece o regime aberto, colide frontalmente com a filosofia desse regime, que exige arquitetura totalmente aberta, livre de celas, grades, obstáculos, e localização distante dos demais estabelecimentos, indispensáveis para o alcance dos objetivos do tratamento em regime aberto. “Nesse regime deposita-se plena confiança no condenado, pois há prova de que não regredirá no processo de sua ressocialização. Há ausência de precaução sobre segurança e vigilância, em razão da aceitação voluntária da disciplina e do senso de responsabilidade do condenado. No regime aberto, propõe-se a


Penas Privativas de Liberdade - 11 realização intensiva de formação escolar e profissional e a reinserção social progressiva, notadamente a reinserção profissional.”5 A base desse regime é a autodisciplina e o senso de responsabilidade do condenado (art. 36, CP), que terá plena liberdade durante o período diurno dos dias de semana, devendo dedicar-se a trabalho lícito, fora do estabelecimento, sem, contudo, qualquer vigilância, recolhendo-se à casa do albergado todas as noites e nos dias de folga, feriados e fins de semana. O art. 114 da Lei de Execução Penal estabelece como requisitos para o ingresso no regime aberto: a) estar o condenado trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente; b) apresentar, por seus antecedentes ou exame, indícios de que irá ajustar-se, responsavelmente, ao novo regime. A falta de comprovação do exercício de atividade laborativa ou da possibilidade de fazê-lo imediatamente, num país de desempregados e que ainda não teve sua economia completamente estabilizada, não pode ser empecilho para a concessão do regime aberto. Seria desumano, injusto, absurdo, ilógico, irracional, manter o condenado que fizer jus ao regime aberto, em regime mais severo, sem, pelo menos, lhe facultar a oportunidade de procurar uma atividade laboral lícita. Seria um contrasenso, a negação do próprio sistema, que busca a reinserção do condenado no meio social. Igualmente, é lógico que o condenado nesse regime poderá freqüentar cursos noturnos e até mesmo realizar qualquer atividade lícita – trabalho etc. – em parte da noite, recolhendo-se, após, ao estabelecimento. O juiz da execução penal poderá, dentro de seu prudente arbítrio, fixar condições para o cumprimento da pena em regime aberto, como as do art. 115 da Lei de Execução Penal: “I – permanecer no local que for designado, durante o repouso e nos dias de folga; II – sair para o trabalho e retornar, nos horários fixados; III – não se ausentar da cidade onde reside, sem autorização judicial; IV – comparecer a Juízo, para informar e justificar as suas atividades, quando for determinado.” É claro que as outras condições deverão levar em conta as características

5

ALBERGARIA, Jason. Op. cit. p. 235.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles pessoais do condenado e do crime por ele praticado, com vistas a oferecer melhores condições para a sua recuperação.

14.2.5

Prisão domiciliar

A prisão domiciliar surgiu em 1967 com a Lei nº 5.256 e destinava-se a recolher preso provisório nas cidades onde não havia estabelecimento adequado aos que tinham direito à prisão especial, e consistia em seu recolhimento “na própria residência, de onde o mesmo não poderá afastar-se sem prévio consentimento judicial”, permitida a vigilância policial com discrição e sem qualquer constrangimento ao preso ou qualquer de seus familiares. Com a introdução do regime aberto, em 1977, juízes e tribunais brasileiros passaram a permitir o que chamaram de “prisão albergue domiciliar” aos que faziam jus ao novo regime nas localidades onde não existiam estabelecimentos adequados ao regime aberto – as casas de albergado. A Lei de Execução Penal, de 1984, exatamente para coibir os excessos de liberalismo, que se converteram em verdadeiros abusos, ou, em outras palavras, em verdadeira impunidade, regulou a matéria no art. 117: “Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: I – condenado maior de setenta anos; II – condenado acometido de doença grave; III – condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV – condenada gestante.” A experiência da vida – lamentável, pois decorrente do descaso do poder público – acabou por permitir a criação de mais um instituto democrático de cumprimento de pena: a prisão domiciliar. A norma é expressa no sentido de só permitir a prisão domiciliar ao condenado que fizer jus ao regime aberto, o que indica a impossibilidade de o benefício alcançar o condenado a pena superior a quatro anos, mas é de todo evidente que, em circunstâncias especialíssimas, devidamente justificadas e fundamentadamente, pode o juiz permitir ao condenado que se enquadre, em regra, no regime semi-aberto, ou até mesmo no fechado, cumprir sua pena em residência particular, como, por exemplo, nos casos de doença incurável, que se manifeste já em sua fase terminal. A medida, em hipóteses como essa, atende precipuamente aos princípios de humanidade e de respeito ao preso, e constitui atitude coerente do poder estatal, cujo objetivo não é o de castigar o agente do crime, mas de reprová-lo com vistas em sua recuperação. Se, à toda


Penas Privativas de Liberdade - 13 evidência, sua morte precederá qualquer conquista da execução da pena, esta se torna absolutamente inócua e, por isso, desnecessária. Condenados portadores de doença grave, como a AIDS, por exemplo, podem ser beneficiados com a prisão domiciliar. Ela favorece, ainda, as mães, gestantes ou com filhos deficientes que necessitam de maior atenção materna, e idosos maiores de 70 anos. Discute-se se apenas as condenadas com filhos menores ou portadores de deficiência física ou mental poderiam beneficiar-se da prisão domiciliar, ou se também os condenados em igual situação gozariam do benefício. Deve-se admitir a interpretação extensiva, para conceder também ao pai condenado – com filho menor que viva sob sua guarda, ou portador de grave deficiência física ou mental, desde que o juiz verifique a necessidade, para o filho, da presença do pai em sua companhia. Havendo essa necessidade, e negando o juiz ao pai tal direito, poderia estar violando o princípio constitucional da responsabilidade pessoal (personalidade da pena), que proíbe possa a pena ser transmitida aos sucessores do condenado.

14.2.6

Estabelecimento prisional feminino

Em atenção ao preceito constitucional do art. 5º, XLVIII, o art. 37 do Código Penal dispõe que as mulheres condenadas cumprirão suas penas em estabelecimento próprio, vale dizer, distinto e separado dos estabelecimentos destinados ao cumprimento de penas dos condenados do sexo masculino. Trata-se de dispositivo da mais alta importância, que deve ser observado rigorosamente, e que visa proporcionar às mulheres tratamento adequado e exigido por sua condição discriminada ao longo dos anos, protegendo-as de agressões além das decorrentes da própria imposição da pena. Infeliz a redação da rubrica Regime Especial, do mencionado art. 37, no Código Penal, uma vez que as mulheres condenadas não estão sujeitas a regime especial, mas a estabelecimento próprio e distinto, separado, devendo cumprir suas penas privativas de liberdade nos três regimes, em face da igualdade, de direitos e obrigações, entre elas e os homens.

14.2.7

Regime inicial de cumprimento da pena

Determina o art. 59, III, do Código Penal, que, ao condenar o acusado, o juiz deverá estabelecer o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade, e o


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles § 3º do art. 33 do estatuto penal manda que o juiz, ao fazê-lo, observe os critérios previstos no art. 59 – culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente e motivos, circunstâncias e conseqüências do crime, e comportamento da vítima. O § 2º do art. 33 estabelece critérios para a fixação do regime inicial, com base na quantidade da pena e na condição pessoal do condenado: (a) se a pena aplicada for superior a oito anos, o condenado deverá começar a cumpri-la no regime fechado; (b) se a pena aplicada for igual ou inferior a oito anos e superior a quatro anos, o juiz fixará o regime semi-aberto para o condenado não reincidente, e fechado, se ele for reincidente; (c) se a pena for igual ou inferior a quatro anos, o regime será o aberto para o não reincidente e o fechado para o reincidente. A Lei nº 8.072/90 – dos crimes hediondos – determinava, no § 1º do art. 2º, que “a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado”, pelo que, se o crime fosse hediondo, prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, o regime inicial e final deveria ser o fechado. A Lei nº 9.455, de 7-4-1997, que definiu os crimes de tortura, permitiu a progressão, determinando que o regime inicial seria o fechado para esses crimes, pelo que se defendeu aqui a revogação tácita do dispositivo do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, como se demonstra no item 14.2.9, adiante. A Lei nº 11.464, de 28 de março de 2.007, deu nova redação ao art. 2º da Lei nº 8.072/90,

determinando que os condenados por crimes hediondos iniciarão o

cumprimento da pena privativa de liberdade no regime fechado, permitida a progressão após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. Essa alteração legislativa somente se deu após o Supremo Tribunal Federal ter declarado a inconstitucionalidade da proibição de progressão. Se houver condenação por mais de um crime, o regime inicial será determinado com observância do resultado da soma ou da unificação das penas (art. 111, LEP). Com base nessas regras, uma pergunta: pode o juiz condenar alguém a uma pena de cinco anos e quatro meses de reclusão em regime aberto? Ou o juiz está obrigado a observar, estrita e rigorosamente, os critérios do § 2º do art. 33? DYRCEU AGUIAR DIAS CINTRA JÚNIOR dá-nos notícia de que, na cidade de São Paulo, em 24-10-1989, o Juiz Antonio Dimas da Cruz Carneiro, da 2ª Vara Criminal


Penas Privativas de Liberdade - 15 Central, julgando o processo nº 434/89, condenou dois acusados de roubo a penas de cinco anos e quatro meses de reclusão, a serem cumpridas, desde o início, no regime aberto, porque “os réus praticaram a infração para comprar alimentos, circunstância que, ‘se de um lado não justifica a atitude delituosa, de outro lado torna a falta compreensível, diante da grave crise social que ora acomete o país’” e também porque são “primários e mal chegados à idade adulta, não sendo recomendável a manutenção em cárcere” e já terem eles permanecido 85 dias presos, tempo de prisão suficiente para desestimulá-los a prosseguir no crime6. A sentença foi cassada pelo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, o qual mandou que fosse aplicado, desde o início, o regime semi-aberto. Mas, como assinala o noticiante, o juiz agiu corretamente, pois, ao fixar o regime inicial, levou em conta as circunstâncias judiciais e o comando do preceito contido no art. 59 do Código Penal, que manda o juiz fixar a pena – e também o regime – conforme seja necessário e suficiente para prevenir e reprovar o crime. Eis a chave de tudo: necessidade e suficiência. A pena – e o regime – devem ser apenas o necessário, e não mais, nem menos, do que o suficiente para impor ao condenado a reprovação penal, bem assim para alcançar as exigências da prevenção geral. Desse modo, o juiz deve ter liberdade para fixar regime inicial mais brando do que o recomendado pelo § 2º do art. 33, ao condenado que o merecer. É claro que “o afastamento da regra genérica do regime semi-aberto para as penas superiores a quatro anos e não excedentes a oito é situação a ser usada excepcionalmente e com extrema cautela, em casos onde exista uma clara necessidade de fazê-lo, em nome dos princípios maiores orientadores de todo o sistema, para dar racionalidade material ao julgamento,

evitando injustiças

e soluções

contraproducentes”7.

6

Cinco anos e quatro meses de reclusão em regime inicial aberto. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 5, p. 166-167, 1994.

7

CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Cinco anos e quatro meses de reclusão em regime inicial aberto. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 5, p. 169, 1994.


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles

14.2.8 Progressão Como já foi dito, o sistema punitivo brasileiro é progressivo; por meio dele, o condenado passa do regime inicial mais severo para o regime mais brando, até alcançar o livramento condicional ou a liberdade definitiva. Exemplo: o condenado inicia o cumprimento da pena no regime fechado, depois é transferido para o semi-aberto, mais tarde para o aberto, para, mais adiante, obter o livramento condicional e, ao final, a liberdade definitiva. Ainda que condenado a pena elevada, tem, desde o primeiro momento, a perspectiva de ir ganhando, paulatinamente, melhor tratamento, até a liberação total. Com isso, o condenado pode evitar, ou pelo menos diminuir, a revolta pela perda da liberdade e sentir-se estimulado a merecer o regime mais brando, tendo a certeza de que a liberdade lhe será devolvida, ainda que gradualmente. A Lei de Execução Penal estabelece dois pressupostos para o condenado alcançar a progressão, de regime mais severo para regime mais benéfico. O primeiro é de natureza objetiva, o cumprimento de, pelo menos, um sexto da pena. O outro é subjetivo, o mérito do condenado (art. 112, LEP). O requisito objetivo – cumprimento de 1/6 da pena, exceto condenados por crimes hediondos, prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, em que o tempo é de 2/5 da pena se o apenado é primário e 3/5, se reincidente – não exige maiores indagações. Se condenado a 30 anos de reclusão, somente poderá progredir após o cumprimento de cinco anos. Se condenado a 18 anos, poderá progredir após cumprir três anos. Se se tratar de condenado por crime contra a administração pública, a progressão somente será concedida se houver reparação do dano causado ou devolução do produto do crime, com os acréscimos legais (§ 4º do art. 33, acrescentado pela Lei nº 10.763, de 12-11-2003). O requisito subjetivo ensejava maiores discussões. Muitas decisões judiciais exigiam realização de exame criminológico e conclusão favorável. Mas o juiz sempre foi livre para apreciar o laudo e o parecer da administração penitenciária, e podia e pode decidir inclusive contra a opinião de psiquiatras, psicólogos e outros agentes da execução penal. O exame assim é absolutamente dispensável. O juiz verificará se o condenado merece o regime mais brando, levando em conta exclusivamente seu comportamento na prisão, não podendo indagar sobre questões de natureza quase transcendental, como se ele está apto a conviver no novo regime, se já


Penas Privativas de Liberdade - 17 não há possibilidade de que ele volte a delinqüir – todas, como se vê, absolutamente indemonstráveis. Nunca se pode olvidar que o direito penal é fragmentário e sua tarefa é eminentemente tutelar – de proteção dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves – e não a de purificação, redenção, beatificação ou santificação dos humanos. Daí que, para ser transferido do regime mais duro para um mais brando, o condenado não necessita demonstrar ter-se comportado na prisão como um verdadeiro santo, ou um desses “anjos” que existem em organizações religiosas. A Lei nº 10.792, de 1º-12-2003, alterou a redação do art. 112 da LEP, para esclarecer o conteúdo do pressuposto subjetivo: “ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento”. Pôs fim à discussão. Assim, após 1/6 da pena no regime fechado (ou 2/5, se primário, ou 3/5 se reincidente, apenado por crime hediondo, prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo), o condenado que tiver bom comportamento na penitenciária deverá ser transferido para a colônia agrícola ou industrial, em regime de semiliberdade, em que, após cumprir mais 1/6 da pena (2/5 ou 3/%), e merecendo, será transferido para o regime aberto, em casa de albergado. A

hedionda Lei

nº 8.072/90,

de toda evidência,

era flagrantemente

inconstitucional no ponto em que mandava todos os condenados por tais crimes cumprir pena integralmente em regime fechado. Inconstitucional por várias razões. Violadora do sistema do Código Penal, que introduziu o sistema progressivo, como única solução para o grave problema do sistema penitenciário. Não se harmonizando com o sistema progressivo, era um corpo estranho a ele, incompatível e inaceitável. Modernamente, só é admissível a pena privativa de liberdade, como medida absolutamente extrema e necessária, e se vier a ser cumprida de modo suave, menos rígido e progressivamente. Além disso, proibir a progressão significava impedir, na fase da execução, a individualização da pena, colidindo frontalmente com o princípio constitucional. Depois

que

o

Supremo

Tribunal

Federal

declarou

aquele

dispositivo

inconstitucional, o legislador tratou de, imediatamente, criar norma impondo maior prazo para a progressão nos casos de condenações por crimes hediondos, prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo. Apesar de já resolvida a questão, por força da vigência da Lei nº 11.464, de 28 de


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles março de 2.007, mantenho, nesta edição o texto integral do item 14.2.9, da edição anterior deste volume, sem qualquer alteração, que demonstrava, então, a meu ver, a revogação tácita do art. 2º da Lei nº 8.072/90, para que o leitor possa se inteirar de aspectos importantes acerca do tema.

14.2.9 Revogação do texto original do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 A Lei nº 9.455, de 7-4-1997, que definiu os crimes de tortura, no art. 1º, § 7º, assim dispõe: O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Tendo determinado o regime inicial fechado, implicitamente permite a progressão. Defende-se aqui que a nova lei veio revogar, tacitamente, o art. 2º da Lei nº 8.072/90, que, entre outras restrições, proíbe a progressão no cumprimento da pena, como se procura, a seguir, demonstrar. O art. 5º, XLIII, da Constituição Federal, dispõe: a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. Determinou ao legislador ordinário: (a) definisse os crimes de tortura, de terrorismo e os hediondos – os de tráfico já se encontravam definidos – e (b) proibisse, quanto a esses crimes, a concessão de fiança, graça ou anistia. Explicou, desnecessariamente, que por tais crimes respondem todos quantos para eles concorrerem, inclusive por omissão.

14.2.9.1 Lei dos crimes hediondos Quase dois anos depois veio ao mundo a Lei nº 8.072, de 25-7-1990, conhecida como a Lei dos Crimes Hediondos, que, no entanto, não se limitou a definir tais crimes. Essa lei, como tem sido comum no Brasil, tratou de várias questões penais e processuais penais, como se mostra. No art. 1º (ao depois alterado pela Lei nº 8.930, de 6-9-1994), relacionou os tipos legais de crimes que considerou hediondos, inclusive as tentativas deles, e nos arts. 6º e 9º aumentou as penas de vários dos crimes hediondos, criando um caso de diminuição de pena (delação premiada) para o crime hediondo de extorsão mediante seqüestro


Penas Privativas de Liberdade - 19 (art. 7º). Assim, nesses artigos (1º, 6º, 7º e 9º), a Lei nº 8.072/97 cuidou exclusivamente de crimes hediondos. Nos arts. 2º, 5º e 8º, a Lei nº 8.072/90 tratou de todos aqueles crimes referidos no art. 5º, XLIII, da Constituição Federal: tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e os hediondos, em outras palavras, os crimes hediondos e os a ele assemelhados ou equiparados. No art. 2º, estabeleceu restrições para acusados e condenados por crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo (anistia, graça, indulto, fiança, liberdade provisória), impôs regime fechado integral para o cumprimento de penas, exigiu que o direito de apelar em liberdade fosse concedido somente em decisão fundamentada, e dilatou o prazo de prisão temporária para tais crimes, e no art. 5º (o 4º foi vetado) impôs tempo maior de cumprimento de pena (2/3) para a obtenção do livramento condicional, para os condenados por crimes hediondos e assemelhados (tortura, terrorismo e tráfico ilícito de entorpecentes), não reincidentes específicos em crimes dessa natureza. No art. 8º, criou nova modalidade de crime de quadrilha e bando, quando a associação criminosa tiver por finalidade o cometimento de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes ou terrorismo (art. 8º) definindo, como causa de diminuição de pena a delação premiada (parágrafo único, art. 8º). Além disso, no art. 3º mandou a União manter estabelecimentos prisionais de segurança máxima para condenados de alta periculosidade; como se tratava de norma geral, não se referiu a quaisquer daqueles crimes. No art. 10, mandou contar em dobro prazos procedimentais estabelecidos pela Lei nº 6.368/76, para os crimes tipificados nos arts. 12, 13 e 14. Em resumo, a Lei nº 8.072/90 contém dispositivos relativos a cinco matérias bem delimitadas: (a) definição de crimes hediondos, com modificação de preceito sancionatório e criação de causa específica de diminuição de pena; (b) imposição de restrições penais e processuais penais para acusados e condenados por crimes de tortura, tráfico, terrorismo e hediondos; (c) criação da modalidade de crime de associação criminosa para o cometimento de tais crimes e uma causa específica de diminuição de pena; (d) criação do encargo, para a União, da manutenção de presídios federais; (e) duplicação de alguns prazos procedimentais estabelecidos na Lei nº 6.368/76. Vê-se, pois, que a Lei nº 8.072/90 contém normas de cinco matérias distintas. Uma das matérias tratadas, a das restrições impostas aos acusados e condenados por crimes de tortura, tráfico, terrorismo e hediondos, alcançou preceitos de natureza


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles penal (anistia, graça, indulto, regime fechado) e outros de natureza processual (liberdade provisória, direito de apelar em liberdade e prazo de prisão temporária).

14.2.9.2 Lei dos crimes de tortura Quase uma década após a promulgação da Constituição de 88, entrou em vigor a Lei nº 9.455, de 7-4-1997, definindo os crimes de tortura e criando casos de aumento de pena, inclusive por resultado mais grave (art. 1º, §§ 1º a 4º), tratando, ainda, de efeitos da condenação (art. 1º, § 5º), de restrições constitucionais de natureza penal e processual aos condenados por tais crimes, e do regime de cumprimento de pena (art. 1º, §§ 6º e 7º), e criando mais um caso de extraterritorialidade da lei penal brasileira (art. 2º). Mais uma vez, o legislador brasileiro, num único diploma legal, tratou de matérias absolutamente distintas: (a) tipificação de crimes e criação de causas de aumento de pena; (b) imposição de restrições de natureza penal e processual penal para acusados e condenados por crimes de tortura; (c) criação de mais um caso de extraterritorialidade da lei penal. A matéria que interessa no âmbito desta abordagem sobre a nova lei, a das restrições impostas aos acusados e condenados por crime de tortura, abrange normas de natureza penal (graça ou anistia e regime de cumprimento de pena privativa de liberdade) e processual penal (fiança). Relativamente às restrições de natureza penal e processual penal, vale transcrever os dois dispositivos da lei: “Art. 1º, § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.” Vigente a Lei nº 9.455/97, a pergunta se impõe: a vontade da nova lei é, simplesmente, definir os crimes de tortura e dar-lhes tratamento restritivo específico, mais brando que o concedido aos crimes hediondos, de tráfico e terrorismo, ou, diferentemente, conferir, também a estes crimes, assemelhados aos de tortura, tratamento restritivo penal e processual penal equânime e isonômico?


Penas Privativas de Liberdade - 21

14.2.9.3 Finalidade da nova lei Para se descobrir a vontade da nova lei, convém a lembrança das sempre justas e pertinentes lições de GIUSEPPE BETTIOL: “A lei não é considerada em sentido ‘rígido’ mas em sentido ‘flexível’, enquanto exprime uma vontade que se ajusta às novas situações e possibilidades. (...) Não vai pois a interpretação considerada como uma atividade que se manifesta fora do tempo e do espaço, mas como um atuar incrustado – até que a norma não tenha sido ab-rogada – no ambiente histórico em que o juiz vive e age. Já se vê portanto que, à pureza de um juízo lógico ‘anti-histórico’, reage o ambiente social em que a norma deve ter aplicação. Mas é que de uma lógica abstrata não será o caso de falar-se, a propósito de interpretação da norma penal. Se o escopo é buscar o significado de um ‘querer’ encerrado no cerne da norma, não se colhe o próprio querer na linha de um procedimento lógico-formal, porque a ‘vontade’ da norma apresenta uma direção finalista enquanto tutela de um ‘valor’. A lógica do intérprete deve endereçar-se também a este valor, que dá tom e característica ao querer da norma; deve ser portanto uma lógica finalista, uma teleológica.”8 De início, volte-se para o preceito inserto no art. 5º, XLIII, da Constituição Federal, que determinou à lei ordinária desse tratamento diferenciado, restritivo, a uma categoria de crimes muito graves: tortura, terrorismo, tráfico ilícito de entorpecentes e os hediondos. De notar que o primeiro dos gêneros de crimes referidos foi exatamente o da tortura, certamente por ser o mais grave deles. O preceito constitucional considerou assemelhados ou equiparados uma categoria de crimes, determinando tratamento restritivo isonômico e equânime. Em outras palavras, a norma constitucional mandou o legislador elaborar leis ordinárias, dando aos crimes de tortura e a seus assemelhados tratamento diferenciado do dispensado aos demais crimes, consistente na impossibilidade de fiança, graça e anistia. Nada mais. Esta foi a ordem constitucional. A primeira determinação constitucional, de vedar a concessão de fiança, anistia e graça aos acusados e condenados pelo crime de tortura e aos a ele assemelhados, fora obedecida pelo legislador da Lei nº 8.072/90 que, ademais, construiu rol de crimes, que passaram, então, a ser considerados hediondos. Sobre cada um dos tipos selecionados pregou-lhes a etiqueta, o rótulo, de hediondo. Não satisfeito e influenciado pelo movimento da Lei e da Ordem, o legislador foi 8

Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 152-153.


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles além das sandálias, impondo, aos condenados por crimes de tortura, tráfico, terrorismo e os então definidos hediondos, o cumprimento das penas integralmente em regime fechado, proibindo para eles a concessão de liberdade provisória, aumentando o prazo de prisão temporária, determinando que o juiz deliberasse fundamentadamente sobre o direito de apelar em liberdade, majorando as penas de vários dos crimes considerados hediondos e criando causas de aumento e de diminuição de penas. Passados muitos anos de vigência da Lei dos Crimes Hediondos, é indiscutível o fracasso de seus propósitos. Dando tratamento mais severo para os condenados pelos crimes mais graves, especialmente os de extorsão mediante seqüestro, tráfico de entorpecentes, estupros e atentados violentos ao pudor, como se buscando a combater essa forma de criminalidade, e objetivando, é de todo óbvio, sua contenção, a lei, além de não ter contribuído para nenhuma redução de quaisquer dos índices dessa criminalidade, revelou-se verdadeiro fator do surgimento de outros fenômenos indesejáveis: a rebelião, os motins nos presídios e as fugas. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, ao combater o dispositivo que impunha o cumprimento da pena em regime fechado integral, vislumbrava com lucidez: “A determinação contida no § 1º do art. 2º (‘a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado’) é fruto – só pode ser isso – da mais completa ignorância a respeito do sistema progressivo de execução da pena adotado pela reforma penal brasileira de 1984, a respeito do qual salientei, na conferência proferida no encerramento do I Congresso Brasileiro de Política Criminal e Penitenciária de 1981, ‘o seguinte’: ‘Em relação à pena de prisão, instituiu-se um subsistema verdadeiramente progressivo, sem possibilidade da perpetuação da segregação social, para cumprir-se o mandamento constitucional do art. 153, § 11 da Carta Magna. E deu-se a essa discutida pena o caráter de ‘pena programática’, ou seja, de algo que se modifica dentro de certos limites e certas garantias, no curso da execução, por atuação da Administração da Justiça e do próprio condenado, segundo o seu mérito ou demérito. Com isso, abre-se uma concreta esperança, para todo condenado, no sentido de poder conquistar, por seu próprio esforço, a liberdade, bem inalienável de todo ser humano. Essa esperança na liberdade que, para o preso, deve significar uma conquista, é o único ingrediente, de que se pode valer o aparelhamento penitenciário para impregnar a execução da pena de algum utilitarismo, de sorte a não transformálo em mero castigo, dentro de algum retributivismo kantiano, formal e desalmado. (...) É lamentável que um legislador desatento e mal assessorado tenha retirado da Administração da Justiça esse precioso instrumento de


Penas Privativas de Liberdade - 23 manutenção da disciplina no interior dos estabelecimentos penais. Sim, porque, sem o benefício do sistema progressivo, o condenado só terá um caminho para antecipar a liberdade: a rebelião ou a fuga.’”9 Foi, assim, em momento de constatação do fracasso da Lei dos Crimes Hediondos, que o Congresso decretou a nova lei, que foi, finalmente, sancionada e entrou em vigor. Certo que veio ao mundo não só para definir os tipos de tortura, mas ainda para revogar alguns dos dispositivos da Lei nº 8.072/90, acabando com suas imperfeições, seus defeitos, sua rigidez, sua severidade, sua brutalidade, sua estupidez, enfim, suas ignominiosas restrições aos mais comezinhos direitos processuais dos acusados. Veio para corrigir o que estava errado, para erradicar os abusos, para riscar da história do direito penal brasileiro um tempo de terror, de desnecessária e brutal violência legal, para apagar dispositivos que feriram a Constituição não poucas vezes. Como chegar-se à conclusão tão firme?

14.2.9.4

Descobrindo a vontade da lei

Entre as regras que presidem a boa interpretação da lei, importam, aqui, as seguintes: (a) o princípio da isonomia; (b) o da eqüidade; e (c) o elemento sistemático na interpretação finalística. O princípio de isonomia, também chamado princípio de igualdade perante a lei, ou de igualdade formal, inserto no art. 5º, caput, I, na lição de PONTES DE MIRANDA, “dirige-se a todos os poderes do Estado. É imperativo para a legislatura, para a administração e para a Justiça”.10 Dele decorre, portanto, a ordem para o legislador tratar os indivíduos de modo igualitário, como bem distingue PINTO FERREIRA: “Tal princípio deve ser apreciado com uma dupla perspectiva: igualdade na lei e igualdade perante a lei, esta pressupondo a lei elaborada.”11 A lei deve dar tratamento isonômico aos iguais, vale dizer, aqui, aos crimes que a lei fundamental considerou equivalentes, equiparados ou assemelhados, por sua gravidade, como é o caso da tortura, do terrorismo, do tráfico e dos hediondos. Se o preceito constitucional equiparou os quatro gêneros de crimes, impondo-lhes restrições 9

Crimes hediondos. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1992. nº 2.

10 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cahen, 1947. v. 1, p. 165. 11

FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. v. 1, p. 62.


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles que não impôs, em conjunto, a qualquer outro gênero de crimes, cabe ao legislador ordinário dar tratamento igualitário a todos aqueles gêneros de crimes. Não poderia, por exemplo, tratar os crimes de terrorismo de modo mais brando nem mais severo que os crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, nem conferir aos crimes de tortura tratamento mais duro, nem mais benigno, que o dispensado aos crimes hediondos. A eqüidade, como ensina ESPÍNOLA FILHO “não é, de modo algum, fonte do direito, mas é um expediente técnico, de atender na aplicação das fontes do direito, isto é, no ajustamento da norma ao caso apresentado. De fato, a eqüidade, tanto na doutrina, como nos sistemas legislativos modernos, não passa de uma propriedade, ou qualidade, que a lei tem, de se adaptar às circunstâncias do caso concreto, segundo estes critérios: (1º) as coisas e relações iguais devem ser tratadas de modo igual, e as coisas e relações desiguais, ou diferentes, devem ser tratadas de modo desigual, diferente; (...) (3º) entre as soluções logicamente possíveis, deve preferir-se, sempre, a que for mais branda, mais moderada e mais humana, pois, como acentuou REGELSBERGER, corresponde ao nosso sentimento de eqüidade, o modo de tratar uma relação prática, que se torna justo, pela sua própria natureza, com a tendência sempre para o brando, para o moderado, para o humano”12. Tendo a Carta Magna equiparado, expressamente, os crimes de tortura aos de terrorismo, ambos aos de tráfico de entorpecentes, e todos estes aos que a lei definisse hediondos, é de toda obviedade que criou uma classe de crimes assemelhados, equiparados. Gêneros de crimes equiparados, assemelhados, pela norma maior, devem ser tratados de modo igual. Assim, as restrições de natureza processual devem ser as mesmas e as proibições de obtenção de benefícios penais também devem ser as mesmas. Afinal, tais crimes têm uma característica que os equipara ou assemelha: a gravidade. Esse sinal característico, impondo maior reprovação, e que vai materializar-se também na qualidade e na quantidade das sanções cominadas, fez com que o legislador constituinte os reunisse sob a necessidade de merecer, também, algumas restrições, proibindo a fiança e a concessão de graça ou anistia. A lei que primeiramente tratou dessa matéria, a nº 8.072/90, fê-lo, é sabido, exorbitando, restringindo mais do que a Constituição mandou, pelo que a agrediu. A Lei nº 9.455/97, sabiamente, ajustou-se ao mandamento constitucional. Ao fazê-lo, revogou a exorbitância. 12

Código de processo penal brasileiro anotado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. v. 1, p. 184.


Penas Privativas de Liberdade - 25 A nova lei é, assim, em todos os seus dispositivos pertinentes aos crimes de tortura, mais benéfica que a Lei nº 8.072/90. Sua intenção não pode ser a de cuidar apenas da tortura, mas também de seus assemelhados. Essa intenção, não expressa, da lei exsurge cristalinamente de todo o seu espírito, que é o do aperfeiçoamento da legislação penal brasileira, recuperando princípios constitucionais necessários a uma política criminal eficiente, sem olvidar a proteção dos interesses da sociedade, tratando rigorosamente os crimes de maior potencial ofensivo, ao tempo em que observa a necessidade de valorizar a essência humana presente nos delinqüentes. O elemento sistemático da interpretação finalística também indica essa conclusão. Como ensina BETTIOL, “há, no seio das normas uma ordem sistemática freqüentemente decisiva para a interpretação teleológica. As normas, na verdade, não vivem como ‘mônadas’ isoladas, como meras individualidades entre as quais não há nenhuma relação de parentesco, mas se reagrupam entre si com base em critérios teleológicos superiores aos escopos singulares próprios de cada uma das normas”.13 A importância da interpretação sistemática resplandece grandiosa na lição de ESPÍNOLA FILHO: “sempre se apontou, como circunstância capaz de elucidar as disposições obscuras, a sua comparação, o confronto com outros dispositivos, tratando da mesma matéria, ou de matérias diferentes, em forma que, não só a lei no seu conjunto, e também todo o sistema da legislação formem um feixe, cujas partes componentes são solidárias”.14 Se a nova lei não tivesse revogado o art. 2º da Lei nº 8.072/90, haveria, doravante, tratamentos diferenciados para crimes assemelhados. Crime hediondo: inafiançável, insuscetível de indulto, graça ou anistia, com a impossibilidade de liberdade provisória, o cumprimento de pena em regime fechado integral, e prisão temporária por 30 dias. Crime de tortura: inafiançável, insuscetível de graça ou anistia, com a possibilidade de concessão de indulto, de liberdade provisória, o cumprimento progressivo de pena, e prisão temporária por cinco dias. Evidente que, se assim fosse, essas duas leis não formariam aquele feixe com

13

Op. cit. p. 164.

14

Op. cit. p. 198.


26 – Direito Penal – Ney Moura Teles todas as suas partes solidárias. Seria a desarmonia, a incongruência, a incoerência, a desigualdade, o verdadeiro caos. Crimes de potencial ofensivo equivalentemente graves, tratados de forma diferenciada. Transportando ambas as normas para a vida prática, haveria alguns absurdos: •

Condenado, por crime de atentado violento ao pudor, a oito anos de reclusão

cumprirá a pena integralmente em regime fechado. Condenado, por crime de tortura, seguida de morte, a uma pena de oito anos de reclusão cumprirá apenas 1/6 no regime fechado, podendo progredir. Qual dos crimes é o mais grave? •

Condenado por estupro a pena mínima de seis anos deverá cumpri-la integralmente

em regime fechado. Condenado por crime de tortura seguida de lesão corporal gravíssima, por exemplo, a extirpação do órgão sexual masculino, a pena de seis anos, terá direito à progressão. Qual crime é mais grave? •

Nos dois exemplos anteriores, os acusados do atentado violento ao pudor e do

estupro não poderão obter liberdade provisória, ao passo que os agentes das duas espécies de tortura poderão, ainda quando tiverem cometido o crime contra criança, deficiente ou adolescente. De toda obviedade que não podem as duas ordens conviver em harmonia. E o Direito é um conjunto de normas que se harmonizam, que se complementam e que convivem solidamente sem atritos, sem conflitos.

14.2.9.5 Subsistema de restrições da nova lei é incompatível com o da Lei nº 8.072/90 A incompatibilidade entre as duas leis, no conjunto dos dispositivos que tratam das restrições penais e processuais é gritante e o § 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil determina que a lei posterior revoga a anterior quando “seja com ela incompatível”. Tais contradições não podem existir, é de todo óbvio, pois que o direito há de ser, sempre, um sistema harmônico de normas, não um amontoado de incongruências. “O princípio cardeal em torno da revogação tácita é o da incompatibilidade. Não é admissível que o legislador, sufragando uma contradição material de seus próprios comandos, adote uma atitude insustentável (‘simul esse et non esse’) e disponha diferentemente sobre um mesmo assunto. O indivíduo, a cuja volição a norma se dirige, não poderá atender à determinação, se se depara com proibições ou imposições que mutuamente se destroem. Na incompossibilidade


Penas Privativas de Liberdade - 27 da existência simultânea de normas incompatíveis toda a matéria da revogação tácita sujeita-se a um princípio genérico, segundo o qual prevalece a mais recente, quando o legislador tenha manifestado vontade contraditória. Um dos brocardos, repetidos pelos escritores, diz precisamente que ‘lex posterior derogat priori’; e o legislador pátrio adota como princípio informativo do sistema (Lei de Introdução, art. 2º, § 1º). Mas é bem de ver que nem toda lei posterior derroga a anterior, senão quando uma incompatibilidade se erige dos seus dispositivos. Esta incompatibilidade pode ser o resultado da normação geral instituída em face do que antes existia: quando a lei nova passa a regular inteiramente a matéria versada na lei anterior, todas as disposições desta deixam de existir, vindo a lei revogadora substituir inteiramente a antiga. Assim, se toda uma província do direito é submetida a nova regulamentação, desaparece inteiramente a lei caduca, em cujo lugar se colocam as disposições da mais recente.”15 Patente e indiscutível a incompatibilidade entre as duas leis, a impossibilidade da convivência harmônica entre as duas categorias de crimes, cada qual com sua disciplina, é de todo lógico que a lei posterior, em face da incompatibilidade com a anterior, simplesmente veio revogá-la, naqueles dispositivos, consoante manda o art. 2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil.

14.2.9.6

Nova lei regulou inteiramente a matéria restritiva da lei

anterior A norma do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil afirma que a “lei posterior revoga a anterior”, quando regular “inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Entre as cinco matérias tratadas pela Lei nº 8.072/90, uma foi a das restrições de natureza penal e processual penal impostas aos crimes hediondos e assemelhados: a classe de crimes insuscetíveis de fiança, graça e anistia, criada pela norma constitucional. A Lei nº 9.455/97, ao definir os crimes de tortura, impôs-lhes apenas as mesmas restrições determinadas pelo preceito constitucional do inciso XLIII do art. 5º: inafiançabilidade e insuscetibilidade de graça ou anistia (§ 6º, do art. 1º), e fez

15 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. v. 1, p. 123.


28 – Direito Penal – Ney Moura Teles questão de esclarecer que o cumprimento da pena privativa de liberdade será iniciado no regime fechado. Quanto à liberdade provisória, ao direito de apelar em liberdade e ao livramento condicional, silenciou. Verifica-se, com clareza, que a nova lei veio tratar de um dos gêneros de crimes daquela classe de crimes que fora objeto da Lei nº 8.072/90, mencionados no preceito constitucional. De todo evidente que a vontade da nova lei é que os “crimes de tortura” recebam tratamento diferenciado do conferido pela Lei nº 8.072/90, já que não reiterou as restrições nela contidas, como a proibição da liberdade provisória, o que vem atender a um reclame quase que uníssono da mais moderna doutrina e jurisprudência, o que, é de toda obviedade, demonstra a vontade da lei de, corrigindo os defeitos da lei antiga, não mais vedar essa possibilidade. Inegável que a nova lei veio tratar integralmente dos crimes de tortura, que integram o mesmo subsistema penal que fora regulado pela Lei nº 8.072/90, declarando-os inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia (§ 6º). Em outras palavras, cuidou daquela mesma matéria tratada pelo art. 2º da Lei nº 8.072/90. O argumento de que a nova lei não cuidaria inteiramente da mesma matéria contida nos art. 2º da Lei nº 8.072/90, por não trazer dispositivo algum acerca da liberdade provisória, do direito de apelar em liberdade, nem da prisão temporária, e que seria apenas uma lei especial em relação à Lei nº 8.072/90, não merece guarida. Não há, entre a lei anterior e a lei nova, relação de gênero para espécie. Ambas, a Lei nº 8.072/90 e a Lei nº 9.455/97, são especiais em relação ao preceito constitucional do art. 5º, XLIII, que é a norma genérica e, ainda, em relação às normas do Código Penal e do Código de Processo Penal, que constituem, cada qual, as normas genéricas penais e processuais. Não há, ademais, em qualquer dos crimes de tortura tipificados, algum minus, que exigisse tratamento mais benigno que o conferido ao terrorismo, aos crimes hediondos e ao tráfico ilícito de entorpecentes. Nada que justificasse a construção de uma lei especial em relação à lei que impôs restrições àqueles crimes. Ao contrário, se algo houvesse, de diferente, nos crimes de tortura, em relação aos demais, de especializador, seria exatamente para considerá-los de maior gravidade, uma vez que, pela conformação dos tipos criados, são sempre condutas por meio das quais alguém, dolosamente, submete alguém a “sofrimentos agudos, físicos ou mentais”16, com a 16

Da definição de tortura adotada pela Convenção da ONU contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, aprovada pelo Dec. Legislativo nº 4, de 23-5-1989, promulgada pelo


Penas Privativas de Liberdade - 29 finalidade de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa, ou para provocar ação ou omissão criminosa, ou ainda como forma de aplicar castigo pessoal ou em razão de discriminação racial ou religiosa. Esses elementos subjetivos, aliados às formas e aos meios de execução, que acarretam sofrimento intenso da vítima, tornam os crimes de tortura de maior gravidade que os hediondos e o tráfico ilícito de entorpecentes. Assim, se houvesse especialização, ela deveria ser para dar tratamento mais rigoroso, não ao contrário, como acontece. Tendo a nova lei, tão especial quanto a anterior, dado novo tratamento penal a um dos gêneros de crimes daquela mesma classe de crimes de grande potencial ofensivo assemelhados pela Constituição, e nada dito sobre liberdade provisória, direito de apelar em liberdade e prazos de prisão temporária e procedimentais, é porque, relativamente a essas questões, desejou sejam aplicadas as normas gerais do Código de Processo Penal, e as da Lei nº 7.960/89, relativamente à prisão temporária. Silenciando sobre essas questões processuais, é porque não desejou alterar quaisquer dos subsistemas processuais, contidos no Código de Processo Penal e nas outras leis adjetivas. Assim fez porque não desejou conferir tratamento especial quanto à concessão da liberdade provisória, ou do direito de apelar em liberdade, nem quis dilatar prazo de prisão temporária, nem quaisquer dos procedimentais. Na verdade, o que a nova lei fez foi corrigir as imperfeições da lei antiga, que impunha tratamento rigoroso, quando o que se exige é um tratamento penal severo, mas, ao mesmo tempo, humanitário. Além disso, ajustou-se ao princípio da presunção da inocência, que impede tratamento de condenado a quem ainda não o é. Com o novo subsistema penal criado, no qual retorna a incidência das regras gerais do cumprimento progressivo da pena privativa de liberdade, substituindo o anterior, substitui-se também, em sua integridade, o subsistema processual penal da Lei dos Crimes Hediondos, eivado de inconstitucionalidades, como apontam a doutrina mais moderna e a jurisprudência mais democrática. É certo que melhor teria sido se a lei tivesse, expressamente, afirmado sua vontade de substituir os dispositivos mencionados da Lei dos Crimes Hediondos (art. 2º); todavia, a tarefa primordial é interpretar a norma e não censurar ou tecer críticas ao legislador, especialmente quando parte de seu trabalho representa notável avanço para o direito penal, e até porque pode ter sido sua vontade deixar para os Decreto Presidencial nº 40, de 15-2-1991.


30 – Direito Penal – Ney Moura Teles operadores do direito a verificação da revogação tácita operada. Penso, por todas as razões aqui expostas, que o ordenamento jurídico brasileiro ficou livre da parte mais hedionda da famigerada Lei dos Crimes Hediondos. Esse entendimento foi abraçado por diversos Tribunais do país, chegando a ser acolhido pela 6ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 7.930, relatado pelo Ministro Vicente Cernicchiaro. Todavia, assim não entendeu o Supremo Tribunal Federal que, reiteradamente, passou a decidir no sentido contrário. Felizmente, no dia 23 de fevereiro de 2006, a Corte Suprema, por maioria de seis votos a cinco, julgando o HC n° 82.959, declarou a inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei n° 8.072/90, afastando, assim, a proibição da progressão do regime de cumprimento da pena para os condenados por crimes hediondos, de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes e de terrorismo. Um avanço, sem dúvidas, que assegura a efetividade do princípio da individualização da pena. Permite-se a progressão, todavia caberá ao juiz da execução penal verificar as condições objetivas e subjetivas do condenado. A declaração de inconstitucionalidade não vai gerar conseqüências jurídicas em relação às penas já extintas. No seu voto, o Ministro Marco Aurélio, Relator do HC 82.959, ressaltou que a edição da lei de tortura (9.455/97), que permite a progressão, indica a necessidade de igual tratamento para os outros delitos rotulados hediondos e corresponde a uma derrogação implícita da norma do parágrafo 1º do artigo 2º do mencionado texto legal.”

14.2.10 Regressão A outra face do sistema penal progressivo, seu reverso, é a regressão, que significa a passagem do condenado, de um regime mais brando para regime mais severo, ou ainda o simples indeferimento do pedido de progressão. O condenado a regime fechado que, após cumprir 1/6 da pena (2/5 ou 3/5), não preencher o requisito subjetivo – mérito – e, por isso, tiver negado seu pedido de progressão ao regime semi-aberto, estará, na prática, sofrendo a regressão no cumprimento de sua pena. O art. 118 da Lei de Execução Penal estabelece as causas de regressão: “A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado: I – praticar fato definido como crime doloso ou falta grave; II – sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, torne


Penas Privativas de Liberdade - 31 incabível o regime (art. 111). § 1º O condenado será transferido do regime aberto se, além das hipóteses referidas nos incisos anteriores, frustrar os fins da execução ou não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta. § 2º Nas hipóteses do inciso I e do parágrafo anterior, deverá ser ouvido, previamente, o condenado.” Não é necessário que o condenado venha a ser condenado por crime doloso, para justificar a regressão, mas tão-somente que tenha praticado o fato típico, sendo, por isso, indiciado em inquérito policial. O simples indiciamento é causa para a regressão. Evidente que, se o condenado vier a ser absolvido, provando, por exemplo, não ter praticado ou concorrido para o crime, ou ter agido ao amparo de excludente – da ilicitude ou da culpabilidade –, poderá progredir, de volta ao regime em que cumpria a pena. São faltas graves, que igualmente autorizam a regressão: “I – incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; II – fugir; III – possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem; IV – provocar acidente de trabalho; V – descumprir, no regime aberto, as condições impostas; VI – desobedecer a ordem de servidor do sistema prisional, desrespeitar qualquer pessoa com quem deva relacionar-se, deixar de executar trabalho ou tarefa a si cometida” (arts. 50 e 39 da LEP). A superveniência de condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, resultar em quantidade de pena privativa de liberdade incompatível com o regime vigente, poderá importar em regressão. Se o condenado estiver cumprindo pena em regime aberto, restando dois anos, e vier a ser condenado a uma pena de dois anos e três meses de detenção, a soma da nova pena, com o que falta para cumprir, resultará em quatro anos e três meses, quantidade incompatível com o regime aberto, na forma da norma do art. 33, § 2º, c, do Código Penal. Em tal situação, a solução é a regressão ao regime semi-aberto; todavia, o juiz não deve decidir jungido exclusivamente ao formalismo do preceito legal, mas deverá verificar se há necessidade de regressão, com base nos princípios orientadores do art. 59. Em algumas situações, determinar a regressão com base exclusivamente no elemento objetivo pode causar enormes prejuízos à ressocialização do homem. A regressão do regime aberto para o semi-aberto se dará também se o condenado frustrar os fins da execução penal – efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e


32 – Direito Penal – Ney Moura Teles do internado – ou se, podendo, não pagar a pena de multa que lhe tiver sido aplicada. MIRABETE ensina que “pode o condenado ser transferido para regime mais rigoroso se frustrar os fins da execução, assumindo conduta que demonstra a incompatibilidade com o regime aberto. A desobediência a ordens recebidas, a provocação de rescisão de contrato de trabalho ou o seu abandono, a prática de contravenção ou crime culposo, a prática de falta média ou leve etc. podem revelar que o condenado não se está adaptando ao regime, nem se processa a sua reinserção social, recomendando-se sua transferência para o regime mais rigoroso”17. A omissão do pagamento da multa imposta, quando o condenado puder fazê-lo, sem prejuízo para os que vivam sob sua dependência, pode, igualmente, autorizar a regressão ao regime semi-aberto.

14.3 DIREITO AO TRABALHO E REMIÇÃO O trabalho é um direito do condenado – interna ou externamente – como já mencionado e deverá ser remunerado – o valor mensal não será inferior a ¾ do salário mínimo –, garantindo-se-lhe os benefícios da previdência social (art. 38, CP), não estando, todavia, sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (arts. 28 e 29, da LEP). Na verdade, o trabalho é muito mais do que um direito, pois constitui, sem dúvida, o mais eficiente e mais importante método para o tratamento do desajustado social, que é o condenado, com vistas a obter sua reinserção na vida social livre. É, aliás, o trabalho o meio pelo qual, originalmente, o homem se tornou um ser social. Infelizmente, as autoridades administrativas brasileiras não se preocupam com a seriedade que se exige, com os investimentos necessários para permitir aos condenados – especialmente os do regime fechado e do semi-aberto – a possibilidade de trabalhar, seja para produzir, seja para, por meio dele, ser educado, obtendo inclusive a formação profissional que, na maior parte das vezes, não possui, e cuja ausência muito contribuiu para seu ingresso na criminalidade. A remição do tempo de execução da pena é um instituto de direito penitenciário, nascido na Espanha, ao tempo da Guerra Civil, quando era aplicado apenas para os presos políticos. Consiste no resgate, pelo trabalho – de qualquer 17

Execução Penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 315.


Penas Privativas de Liberdade - 33 natureza, vale dizer, interno ou externo, manual, intelectual, agrícola, industrial e até mesmo artesanal, autorizado pela administração do presídio – de parte do tempo da pena, na forma do que dispõe o art. 126 da Lei de Execução Penal, assim: “O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena. § 1º A contagem do tempo para o fim deste artigo será feita à razão de um dia de pena por três de trabalho. § 2º O preso impossibilitado de prosseguir no trabalho, por acidente, continuará a beneficiar-se com a remição. § 3º A remição será declarada pelo juiz da execução, ouvido o Ministério Público.” A cada três dias trabalhados, com jornada não inferior a seis horas, nem superior a oito, a pena será diminuída em um dia. A remição é, assim, uma forma de abreviar o tempo de cumprimento da pena, antecipando a liberdade, e deverá ser considerada também para os efeitos de concessão do livramento condicional e também para o indulto. O direito à remição não se confunde com o direito ao trabalho, que é pressuposto daquele. A remição poderá não ser obtida, se o condenado vier a ser punido – regularmente, com obediência às normas procedimentais, em que se lhe assegure a defesa – por falta grave, hipótese em que, perdido o tempo trabalhado, começará a contar novo período de remição, a partir da data em que cometeu a infração disciplinar. O trabalho não tem por objetivo a remição, mas uma finalidade educativa e, até mesmo, de proporcionar recursos ao condenado, para fazer face a suas obrigações para com a vítima e com seus dependentes. Se o condenado ficar impossibilitado de trabalhar, em razão de acidente de trabalho, continuará beneficiando-se do instituto da remição, o que significa que a cada três dias de trabalho normal, exceto domingos e feriados, será descontado um dia de pena. Questão candente é saber se o condenado que não trabalha porque o Estado não lhe oferece as condições para tanto terá, ou não, direito à remição. O preso tem direito ao trabalho, em razão do que dispõe o art. 31 da Lei de Execução Penal, que o considera obrigatório, na medida de suas aptidões e capacidade. É um dever do Estado, portanto, proporcionar ao condenado condições para trabalhar. O trabalho, todavia, não tem como fim permitir a remição, mas, segundo dispõe o art.


34 – Direito Penal – Ney Moura Teles 28, sua finalidade é educativa e produtiva. Dessa forma, o condenado tem direito ao trabalho para produzir e se educar, não para, com ele, obter a remição da pena, razão por que a falta de trabalho, por desídia do Estado, não implicará a concessão da remição ao condenado.

14.4 DETRAÇÃO Detração é “a operação aritmética por meio da qual é computada, no tempo de duração da condenação definitiva, a parcela temporal correspondente à concreta aplicação de uma medida cautelar ou à efetiva internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico”18. Desde os tempos da Consolidação das Leis Penais, era um direito do condenado computar na pena privativa de liberdade o tempo de prisão preventiva ou provisória, executada no Brasil (art. 60, CLP), e, com o Código de 1940, também a executada no estrangeiro (art. 34, CP/1940). A regra atual, do art. 42 da parte geral nova, é clara: “Computam-se, na pena privativa de liberdade, e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior”, vale dizer em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou estabelecimento similar. Trata-se do desconto, na quantidade da pena, do tempo que o condenado tiver sido privado de sua liberdade, seja por prisão provisória, seja administrativa e por internação. Necessário, em primeiro lugar, esclarecer o conceito de prisão provisória. Por prisão provisória, ou de natureza processual, “deve-se entender não só a prisão temporária, a prisão preventiva, a prisão em flagrante – tipicamente cautelares, no entender de Rogério Lauria Tucci (in Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, Saraiva, 1993, p. 406) – e a prisão decorrente de pronúncia, mas, também, a prisão resultante de sentença penal condenatória recorrível, de natureza processual, para o grande 18

FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 588.


Penas Privativas de Liberdade - 35 processualista. Outra corrente não faz distinção entre as primeiras e a última: ‘A prisão em virtude de decisão condenatória recorrível também possui natureza cautelar, visando a assegurar o resultado do processo, diante do perigo de fuga do condenado, em face de um primeiro pronunciamento jurisdicional desfavorável; tanto assim que se admite fiança como medida de contracautela’ (Ada Pelegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Filho, As nulidades do processo penal, Ed. Malheiros, p. 241)”19. Em outras palavras, prisão provisória é a prisão cautelar, processual, que se contrapõe à prisão-pena, esta decorrente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória e que deriva da expedição e recebimento, pela autoridade incumbida da execução da pena, da guia de recolhimento para cumprimento de pena (arts. 105 a 107, da LEP). A prisão administrativa é uma espécie de prisão destinada a compelir alguém ao cumprimento de certa obrigação, e encontra-se regulada no art. 319 do Código de Processo Penal, assim: “A prisão administrativa terá cabimento: I – contra remissos ou omissos em entrar para os cofres públicos com os dinheiros a seu cargo, a fim de compeli-los a que o façam; II – contra estrangeiro desertor de navio de guerra ou mercante, surto em porto nacional; III – nos demais casos previstos em lei. § 1º A prisão administrativa será requisitada à autoridade policial nos casos dos nºs I e III, pela autoridade que a tiver decretado e, no caso do nº II, pelo cônsul do país a que pertença o navio. § 2º A prisão dos desertores não poderá durar mais de três meses e será comunicada aos cônsules. § 3º Os que forem presos à requisição de autoridade administrativa ficarão à sua disposição.” Esse tempo de prisão também será descontado no tempo da pena. A detração será possível nos seguintes casos: a) quando houver nexo entre a prisão provisória e a pena, isto é, se ambas as prisões tiverem o mesmo motivo, resultarem do mesmo crime. Exemplo: João teve sua prisão preventiva decretada por crime de homicídio, ficando preso durante dois anos, quando transita em julgado a sentença penal que o condenou a seis anos de reclusão. O tempo de prisão provisória cumprida, dois anos, será computado, no tempo da pena, devendo João cumprir apenas mais quatro anos;

19

Nosso artigo: Prisão processual: prazo máximo. Informativo Consulex, ano 10, nº 5, p. 136, 29 jan. 1996.


36 – Direito Penal – Ney Moura Teles b) quando, mesmo sem qualquer nexo, sem nenhuma relação entre os fatos que motivaram as prisões, tiverem sido elas, todavia, decididas no mesmo processo. Exemplo: Paulo foi preso em flagrante-delito de homicídio, não relaxado, e denunciado por homicídio e ocultação de cadáver. Levado a julgamento pelo tribunal do júri, foi absolvido do homicídio, por ter agido em legítima defesa, mas condenado pelo crime de ocultação de cadáver a uma pena de dois anos de reclusão. Tendo ficado preso um ano, em razão do homicídio, e dele tendo sido absolvido, será descontado o tempo de prisão no tempo da pena a que foi condenado pela ocultação, devendo cumprir apenas mais um ano; c) quando o preso provisoriamente se vê absolvido e passa, sem solução de continuidade, da prisão provisória para o cumprimento de pena decidida noutro processo. Exemplo: Joaquim encontra-se preso em razão de prisão-preventiva decretada em processo que tramita na 5ª Vara Criminal. Simultaneamente, está sendo processado, sem prisão decretada, no juízo da 7ª Vara Criminal da mesma cidade. No primeiro processo é absolvido. No segundo, após o trânsito em julgado de sentença condenatória, o juiz, tendo conhecimento de que ele se encontra preso em razão da decisão do juiz da 5ª Vara, determina a expedição da guia de recolhimento, que é executada, permanecendo ele preso, a partir de então, cumprindo a pena a que foi condenado. Desse modo, passa da condição de preso provisório para a de preso condenado, sem nenhuma solução de continuidade, sem nenhuma interrupção na privação de sua liberdade, havendo, pois uma prisão injusta que não se interrompeu e que, num dado momento, tornou-se legal, pela expedição da guia de recolhimento para cumprimento de pena. O tempo de prisão anterior ao cumprimento da guia deve ser computado no tempo da pena que deverá cumprir. Uma última hipótese tem sido aceita pela jurisprudência de nossos tribunais: a da detração do tempo de prisão sofrida em processo em que o réu for absolvido ou tiver a punibilidade extinta, na pena por crime cometido anteriormente à mesma pena. Como nesse julgado: “A pena sofrida por força de crime de cuja punibilidade o réu se vê livre será computada na condenação por crime cometido anteriormente à mesma pena. Tal critério não enseja a chamada ‘conta corrente’ com o criminoso, eis que o fato, cuja pena é detraída, ocorreu antes do cumprimento do tempo computado. Tratase da orientação liberal aceitável, eis que considera tempo de prisão que não deveria ter sido cumprido” (TACRIM-SP – RA – Rel. Walter Theodósio – RT 622/304). O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL já decidiu no mesmo sentido:


Penas Privativas de Liberdade - 37 “A detração do período de prisão a que se seguiu a absolvição do réu pode ser concedida se se trata de pena por outro crime anteriormente cometido. Não, porém, em relação à pena por crime posterior à absolvição” (STF – HC – Rel. Aliomar Baleeiro – RTJ 70/324).

14.5 DEVERES E DIREITOS DO PRESO O preso, condenado ou provisório, deverá ter sua integridade física e moral respeitadas por todos, garantia constitucional inserta no art. 5º, XLIX, da Constituição Federal. O art. 38 do Código Penal reafirma o princípio: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”, e a norma do art. 40 comete, ao legislador especial, a tarefa de enumerar e regular os direitos e deveres dos presos. O art. 39 da Lei de Execução Penal dispõe sobre os deveres do condenado: “I – comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença; II – obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se; III – urbanidade e respeito no trato com os demais condenados; IV – conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina; V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; VI – submissão à sanção disciplinar imposta; VII – indenização à vítima ou aos seus sucessores; VIII – indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho; IX – higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento; X – conservação dos objetos de uso pessoal.” Com exceção dos deveres contidos na última parte do inciso I e no inciso VII, os demais deveres são, também, impostos aos presos ainda não condenados, provisórios. A não-obediência aos deveres mencionados nos incisos II e V constitui falta grave, que pode acarretar até a regressão a regime mais severo. Os arts. 40 e 41 da Lei de Execução Penal descrevem, minuciosamente, os direitos dos presos, condenado ou provisório.

14.5.1

Respeito à integridade física e moral

Todas as autoridades são obrigadas a respeitar a integridade física e a


38 – Direito Penal – Ney Moura Teles integridade moral do preso. Esse mandamento consta da Constituição Federal, é repetido no Código Penal (art. 38) e na Lei de Execução Penal (art. 40) e, apesar de três vezes declarado, é o preceito mais violado nos estabelecimentos penais brasileiros. A Lei nº 9.455, de 7-41977, veio, finalmente, tipificar os crimes de tortura, suprindo uma omissão até então imperdoável e há muito reclamada por todo o mundo jurídico. A partir de então, foram incriminadas as seguintes condutas: “Constitui crime de tortura: I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena – reclusão, de dois a oito anos. § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.” Se resultar lesão corporal grave ou gravíssima, a pena será de reclusão de quatro a dez anos e, se resultar morte, de oito a dezesseis anos, e, se a tortura for cometida por agente público, ou contra criança, gestante, deficiente e adolescente, ou, ainda, mediante seqüestro, a pena será aumentada de um sexto até metade. Não podem os presos ser submetidos a quaisquer maus-tratos ou castigos, nem a tratamento desumano, cruel, vexatório ou humilhante. Desse direito decorre, igualmente, que não podem os presos ser obrigados a habitar ambiente insalubre e sem a necessária higiene e segurança. A propósito, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, adotadas pela Organização das Nações Unidas, em seu primeiro Congresso sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, em 30-8-1955, estabelecem: “10. Os locais em que ficam os reclusos, especialmente os destinados a alojá-los durante a noite, deverão satisfazer às exigências de higiene de acordo com o clima, particularmente no que concerne ao volume de ar, superfície mínima, iluminação, calefação e ventilação. 11. Nos locais em que os reclusos tenham de viver ou trabalhar: a) as janelas serão suficientemente grandes, para que o recluso possa ler e trabalhar com luz natural, e deverão estar dispostas de


Penas Privativas de Liberdade - 39 maneira que possa entrar ar fresco, haja ou não ventilação artificial; b) a luz artificial será suficiente para que o recluso possa ler e trabalhar sem prejudicar-lhe a vista. 12. As instalações sanitárias deverão ser adequadas para que o recluso possa satisfazer suas necessidades naturais no momento oportuno, de forma asseada e decente. 13. As instalações de banho e ducha deverão ser adequadas para que cada recluso possa tomar um banho ou ducha a uma temperatura adaptada ao clima e com a freqüência exigida pela higiene geral, segundo a estação e a região geográfica, porém pelo menos uma vez por semana, em clima temperado. 14. Todos os locais freqüentados regularmente pelos reclusos deverão ser mantidos limpos e em perfeito estado.” Infelizmente, na grande maioria dos estabelecimentos prisionais brasileiros, essas regras mínimas não são respeitadas.

14.5.2

Alimentação e vestuário

Direito básico, indispensável à conservação da vida e ao exercício dos demais direitos, a alimentação deve ser suficiente, controlada, devidamente preparada e corresponder, em quantidade e qualidade, às necessidades do preso. Especial atenção deve merecer o preso que estiver acometido de qualquer enfermidade, cuja alimentação deverá ser compatível com as recomendações médicas. Igualmente, o vestuário deve ser fornecido pela administração do presídio, e compatível com o clima do local, a fim de não prejudicar a saúde e a dignidade do preso.

14.5.3

Atribuição de trabalho, previdência social e pecúlio

O trabalho, ao lado da educação, da saúde e do lazer, é um dos direitos sociais de todos os cidadãos, assegurado pela Constituição Federal, no art. 6º. Estando o homem preso, provisória ou definitivamente, em razão de condenação, não pode, só por isso, ser privado do direito ao trabalho, razão por que a lei determina lhe seja atribuído trabalho, com remuneração. Costuma-se imaginar que o trabalho é só um dever do preso, mas, como se vê, é, antes e acima de tudo, um direito impostergável, principalmente porque é pelo trabalho que o condenado poderá encontrar o caminho para sua recuperação e reinserção social, como já assinalado.


40 – Direito Penal – Ney Moura Teles Decorrente do direito ao trabalho é a integração do preso ao sistema previdenciário oficial, sendo-lhe assegurada a constituição de um pecúlio, através de desconto da remuneração pelo trabalho realizado, o que só poderá ser feito se satisfeitas obrigações preferenciais, como as relativas à reparação do dano à vítima, assistência a sua família, e ressarcimento ao Estado das despesas com sua manutenção pessoal.

14.5.4

Descanso, recreação e atividades anteriores

O preso tem direito ao repouso e à recreação; daí por que o tempo de prisão deverá ser proporcionalmente distribuído entre o trabalho e as atividades esportivas, de lazer, culturais etc. A lei assegura aos presos o direito de continuarem com suas atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que não sejam incompatíveis com a privação da liberdade. Por exemplo, escritores, pintores, atores, têm o direito de, na prisão, exercer suas atividades anteriores, o que constitui importante instrumento para sua recuperação. Impõe-se às autoridades proporcionar, nos presídios, a possibilidade de acesso às bibliotecas, serviços de rádio, imprensa, formação de equipes esportivas, de teatro, enfim, dotar os estabelecimentos desses equipamentos indispensáveis ao exercício dessas atividades. Na realidade, entretanto, os presos acabam por viver na mais total ociosidade, pois não só falta o trabalho, como também atividades recreativas, permanecendo eles, na grande maioria, sem qualquer atividade, o que é extremamente prejudicial ao alcance de quaisquer dos fins da pena – prevenção, recuperação –, além de favorecer a indolência, a preguiça, o contágio moral, o desequilíbrio, a criminalidade nos presídios.

14.5.5

Assistência e proteção contra o sensacionalismo

A lei obriga o Estado a proporcionar ao preso assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, com vistas à prevenção do crime e à orientação para seu retorno ao convívio social, devendo estendê-la ao que já cumpriu a pena. Todo preso, além disso, condenado ou provisório, deve ser protegido contra qualquer forma de sensacionalismo praticado por órgãos de comunicação – jornais, revistas, rádios, emissoras de televisão – que em suas comunicações procuram explorar a notícia, conferindo-lhe roupagem fantasiosa que atenta contra a dignidade humana do preso, podendo causar graves prejuízos para sua recuperação.


Penas Privativas de Liberdade - 41 Não se pode negar igualmente que o sensacionalismo sobre o fato praticado, bem assim sobre o próprio preso, pode exercer influência extremamente negativa sobre sua personalidade, conferindo-lhe fama e alterando-lhe a personalidade de modo prejudicial para si e para a própria sociedade. O mundo tem vários exemplos de condenados que se tornam alvo da manipulação da imprensa, os quais, longe de se emendarem, se tornam ainda mais perigosos.

14.5.6

Entrevista com advogado

É direito do advogado comunicar-se com seus clientes presos, detidos ou recolhidos em qualquer estabelecimento, civil ou militar, ainda quando considerados incomunicáveis, pessoal e reservadamente, mesmo sem ter procuração. Logo, a vista da simples informação do advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, a autoridade que mantém alguém preso deve permitir a entrevista com o preso (art. 7º, III, da Lei nº 8.906, de 4-7-94 – Estatuto da Advocacia). A entrevista entre advogado e preso é assegurada também pela Lei de Execução Penal (art. 41, IX), daí que, se o advogado tem direito ao encontro, também o preso tem o mesmo direito à entrevista pessoal e reservada. Todos os estabelecimentos prisionais devem manter recinto destinado às entrevistas entre presos e advogados, a fim de que possam eles comunicar-se sem qualquer interferência ou assistência de quem quer que seja. Trata-se de importante direito, destinado a assegurar ampla liberdade de comunicação para o preso, condenado ou não, imprescindível para o exercício da plena defesa.

14.5.7

Visitas e comunicação com o mundo exterior

O contato do preso com o mundo externo, seja por meio de comunicação de dentro para fora do presídio, ou de fora para dentro, seja por meio do recebimento de correspondência e visitas de amigos e parentes, é outro direito assegurado pela lei. As visitas da mulher, companheira, dos parentes e dos amigos deverão ser realizadas periodicamente, em dias e horários previamente determinados pela administração do estabelecimento. Importante conquista dos presos é a chamada visita íntima, destinada ao convívio sexual entre o preso e sua companheira ou mulher, e também entre a presidiária e seu marido ou companheiro. Trata-se, evidentemente, de um direito de todos, mas é óbvio que deve ser exercido com limitações, podendo ser suspenso ou


42 – Direito Penal – Ney Moura Teles restringido. A visita é da mais alta importância, porquanto a abstinência sexual prolongada leva, inevitavelmente, a diversos problemas, valendo lembrar o homossexualismo forçado, geralmente acompanhado de violência física, disseminação de doenças venéreas, e outros distúrbios de ordem psicológica, prejudicando a recuperação do condenado. As comunicações com o mundo exterior devem ser asseguradas, mas, igualmente, subordinar-se a regras de controle, destinadas a evitar a entrada de armas, substâncias entorpecentes e a organização de fugas, motins e, mesmo, de associações criminosas.

14.5.8

Chamamento nominal e igualdade de tratamento

O preso será identificado e chamado pelo próprio nome e não por um número, símbolo ou qualquer outra forma de tratamento, especialmente as alcunhas pejorativas ou ligadas a seu passado. O chamamento nominal é direito impostergável e é decorrência da inviolabilidade da dignidade do ser humano. O preso é um ser humano, dotado de personalidade e não pode perder sua dignidade pela perda da liberdade decorrente da condenação ou da autorização legal para a custódia provisória, conservando todos seus direitos não atingidos pela prisão, entre eles o de ser tratado pelo próprio nome. A classificação dos presos não confere a eles tratamento desigual, mas visa simplesmente à individualização da pena na fase de execução. Vedada, é claro, qualquer discriminação, de qualquer espécie ou natureza, como racial, política, social, de opinião, religiosa etc.

14.5.9

Audiência com o diretor, representação e petição

Outro direito dos presos é o de avistar-se com o diretor do estabelecimento prisional, para oferecer reclamações ou quaisquer reivindicações. Da mais alta importância, a medida protege o preso das perseguições que possam ocorrer, inclusive de funcionários do presídio, permitindo-lhe denunciar, diretamente ao dirigente máximo do estabelecimento, abusos e irregularidades. Do mesmo modo, o preso conserva seu direito de representar e de peticionar em defesa de qualquer de seus direitos.


Penas Privativas de Liberdade - 43

14.6 DIREITOS POLÍTICOS DOS CONDENADOS A Constituição Federal, no art. 15, assim estabelece: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (...) III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos.” De conseqüência, todos os condenados pela prática de crime, enquanto durarem os efeitos da condenação, têm seus direitos políticos suspensos, tanto os ativos, quanto os passivos. Assim, o condenado criminalmente, enquanto perdurarem os efeitos da sentença, não pode votar nem ser votado. A Lei Complementar nº 64, de 18-5-1990, no art. 1º, I, e, considera inelegíveis para qualquer cargo, “os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena”. Desse modo, por qualquer condenação criminal, enquanto perdurarem os efeitos da sentença, o condenado está com todos os seus direitos políticos suspensos e, nos casos dos crimes relacionados na alínea e do inciso I do art. 1º da Lei Complementar 64/90, serão inelegíveis – não poderão ser eleitos, apesar de poderem votar, participar da vida partidária – por três anos após o cumprimento da pena, qualquer que seja ela.


15 PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS

___________________________ 15.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS A falência da pena de prisão – sua incapacidade de alcançar quaisquer de seus objetivos –, aliada às conseqüências danosas de sua execução, ainda que com rigorosa obediência aos princípios do sistema progressivo, impôs, desde há tempos, aos operadores do direito, a necessidade de encontrar outras soluções alternativas, mais humanas e, pelo menos em tese, mais eficazes para o alcance do único aceitável fim da pena: a recuperação ou reinserção social do condenado. Como já se disse, a história da pena é a história de sua humanização, de sua limitação. A verificação de que a pena privativa de liberdade, longe de recuperar e reinserir o condenado no meio social, traz profundos males, ensejando a reincidência, levou os cientistas à procura e ao encontro de alternativas à pena de prisão. “No (...) relatório da Secretaria da ONU para o VII Congresso de 1980, noticiavase que muitos países haviam realizado mudanças legislativas importantes e inovadoras, com o propósito de humanizarem a execução penal. Na maioria dos casos, a nova legislação destinava-se às medidas alternativas (...). As exigências dos vários países, quanto ao aumento da adoção das medidas dos substitutivos e à diminuição do emprego da prisão, baseavam-se em critérios de humanidade, justiça e tolerância, bem como na interpretação racional e objetiva de dados da justiça criminal e achados da pesquisa penal e sociológica. Não havia concordância entre a instituição penitenciária e a ressocialização do condenado. Em termos de análise custo-benefício, a prisão é altamente dispendiosa, com prejuízo para os recursos humanos e societários. O custo com a prisão é mais alto do que o da educação universitária.”1

1

ALBERGARIA, Jason. Comentários à lei de execução penal. Rio de Janeiro: Aide, 1987. p. 259.


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles Entre nós, a Constituição de 1988, no inciso XLVI do art. 5º, orientou o legislador para adotar, entre outras, penas de “restrição da liberdade”, “perda de bens”, “prestação social alternativa” e “suspensão ou interdição de direitos”. As penas restritivas de direitos – chamadas alternativas – adotadas pelo Código Penal são: a prestação pecuniária, a perda de bens e valores, a prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, a interdição temporária de direitos e a limitação de fim de semana (art. 43, CP, com a redação da Lei nº 9.714/98). Como se verá, são penas que vão ser executadas sem privação da liberdade, de modo descontínuo e apenas em substituição a penas privativas de liberdade. Nada impede, todavia, que o legislador venha a cominá-las diretamente para certos crimes, como penas principais. De qualquer modo, as penas restritivas de direitos, como é possível concluir pela experiência, só serão eficazes se contarem, em sua execução, com a colaboração dos organismos vivos da sociedade.

15.2 CONDIÇÕES DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE As penas restritivas de direitos, pela regra geral do Código Penal, serão aplicadas em substituição às penas privativas de liberdade. O juiz, após condenar o acusado a uma pena privativa de liberdade, poderá substituí-la por uma pena restritiva de direitos, desde que observe algumas condições. A Lei nº 9.714, de 25-11-1998, alterou o sistema da reforma de 1984, ampliando a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade. Nas condenações por crimes dolosos, as penas restritivas de direitos poderão substituir as penas privativas de liberdade, se estas tiverem sido aplicadas em quantidade não superior a quatro anos e se o crime não tiver sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa. Ou seja, o condenado por crime doloso à pena de detenção ou reclusão de até quatro anos, por crime doloso cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa, terá direito à substituição por uma pena restritiva de direito, se estiverem presentes os demais requisitos adiante explicitados. Condenado à pena privativa de liberdade superior a quatro anos não terá direito à substituição. Com o novo sistema, até mesmo o condenado por crime de tráfico ilícito de entorpecentes – desde que atendidos os demais requisitos legais – poderá merecer a substituição por pena alternativa.


Penas Restritivas de Direito - 3 Se a condenação for por crime culposo, a substituição se dará qualquer que seja a quantidade da pena. Os demais requisitos, tanto para o crime doloso quanto para o crime culposo, são: a) o acusado não pode ser reincidente em crime doloso, salvo se, não sendo específica a reincidência – por crime de mesma espécie –, o juiz verificar que a substituição é, ainda assim, recomendável para os fins a que se destina a sanção penal, isto é, necessária e suficiente para a reprovação ao crime. Nesse caso, o juiz levará em conta, preponderantemente, o interesse social; b) a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, e os motivos e as circunstâncias do crime devem ser razoavelmente favoráveis. Em outras palavras, esses dados, que gravitam em torno do fato e do réu, devem ser de molde a demonstrar a desnecessidade da aplicação de pena privativa de liberdade, impondo sua substituição pela pena restritiva de direitos. Em qualquer caso, o Juiz deverá atentar, ainda, para a seguinte regra: se a condenação à pena privativa de liberdade for igual ou inferior a um ano, a substituição poderá ser por uma pena de multa; se superior a um ano, então deverá ser substituída por uma pena restritiva de direito e uma pena de multa, ou por duas penas restritivas de direitos.

15.3 CONVERSÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM PENA RESTRITIVA DE DIREITOS Outra hipótese de imposição da pena restritiva de direitos é a da conversão da pena privativa de liberdade. Em vez da substituição, é possível a transformação da pena de prisão em restrição de direito, mediante o instituto da conversão, segundo o qual a pena privativa de liberdade em curso poderá ser convertida em restritiva de direitos. O condenado por crime doloso a pena privativa de liberdade igual ou superior a um ano, que não exceda a dois anos, poderá obter a conversão em pena restritiva de direitos, desde que a esteja cumprindo em regime aberto, já tenha cumprido pelo menos um quarto de seu tempo e possua antecedentes e personalidade que recomendem a conversão. Esta é a regra do art. 180 da Lei de Execução Penal: “A pena privativa de liberdade, não superior a dois anos, poderá ser convertida


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles em restritiva de direitos, desde que: I – o condenado a esteja cumprindo em regime aberto; II – tenha sido cumprido pelo menos um quarto da pena; III – os antecedentes e a personalidade do condenado indiquem ser a conversão recomendável.” De notar que, entre as circunstâncias judiciais, a lei refere-se apenas aos antecedentes e à personalidade do condenado, não podendo, por isso, ser recusada a conversão com base em conduta social, personalidade, motivos do crime, circunstâncias outras, desfavoráveis ao agente, que não as expressamente referidas no art. 180 da Lei de Execução Penal.

15.4 TRANSAÇÃO

NOS

CRIMES

DE

MENOR

POTENCIAL

OFENSIVO Inovação da Lei nº 9.099, de 26-9-1995, o instituto da transação alcança os chamados crimes de menor potencial ofensivo – aqueles cuja pena máxima é igual ou inferior a dois anos, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial – e as contravenções penais, e permite a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa. Assim, as penas restritivas de direitos podem ser aplicadas imediatamente, no procedimento do juizado especial criminal, consoante determinam os arts. 72 e seguintes da Lei nº 9.099. A transação no direito penal tem sua origem no direito norte-americano, no instituto da plea bargaining, que significa a realização da justiça mediante negociação entre acusador e acusado, por meio da qual este se considera culpado em troca do benefício de receber pena por crime menos grave, ou por menor número de crimes. No direito italiano, o instituto que mais se aproxima do nosso é o chamado patteggiamento, um acordo por meio do qual acusador e acusado propõem ao juiz a aplicação de sanções substitutivas das originalmente previstas na lei. A transação da Lei nº 9.099, além de aplicar-se apenas aos crimes de menor potencial ofensivo e às contravenções penais, é da iniciativa do Ministério Público, que a proporá ao agente do fato. Se este aceitar, a proposta será levada ao juiz, para homologá-la. Discute-se se essa iniciativa é exclusiva do órgão da acusação, ou se, preenchidos seus requisitos, a transação seria um direito do agente do crime. Correta é a opinião de MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, para quem


Penas Restritivas de Direito - 5 “a formulação de proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade não está ao talante exclusivo do Promotor de Justiça, como se fosse soberano da discricionariedade. Em matéria de atos que importem no reconhecimento de direito à liberdade, num Estado Democrático de Direito Material, há de se entender como eleição ao nível de direito subjetivo o que adquire, por vezes, na lei, caráter meramente facultativo. (...) Preenchidos os requisitos legais objetivos e subjetivos o argüido torna-se titular de um direito subjetivo à obtenção da transação”2. Os pressupostos para a obtenção da transação são: a) não ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; b) não ter sido ele beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena nos termos de outra transação; c) indicarem os antecedentes, conduta social e personalidade do agente, e os motivos e circunstâncias do fato, ser a transação necessária e suficiente, para prevenção e reprovação do crime. Aceita a transação pelo agente do fato, o juiz aplicará pena restritiva de direitos ou multa.

15.5 ESPÉCIES DE PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS Com as alterações introduzidas pela Lei nº 9.714/98, são cinco as penas restritivas de direitos, segundo estabelece o novo art. 43 do Código Penal. Nada impede venham outras espécies ser criadas pelo legislador ordinário. Aliás, é preciso, urgentemente e com criatividade, construir outras modalidades dessas penas. O avanço da Lei nº 9.714/98, nesse particular, foi positivo, mas acanhado.

15.5.1

Prestação pecuniária

Inovação do legislador de 1998, a prestação pecuniária é o pagamento, em dinheiro, de um valor fixado pelo juiz, entre um e 360 salários mínimos, a ser feito à própria vítima ou a seus dependentes, ou, quando o crime não tiver atingido interesse

2

Comentários à lei dos juizados especiais cíveis e criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 345.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles jurídico de particular, à entidade pública ou privada com destinação social. A estas será feito o pagamento quando a vítima tiver falecido sem dependentes. A lei fala em dependentes e não em sucessores, daí que se, por ocasião da sentença, a vítima tiver morrido sem deixar dependentes, a prestação pecuniária será paga à entidade, pública ou privada. Se a vítima ou a entidade beneficiária da prestação concordar, o pagamento em dinheiro poderá ser substituído por prestação de outra natureza, como serviços, bens e outros valores. É evidente que a substituição será objeto de deliberação pelo Juiz da Execução Penal, a fim de que seja preservada a natureza penal da condenação e evitadas transações lesivas do interesse público. O interesse primordial continua sendo a sanção penal, e, secundariamente, a reparação do dano. A prestação pecuniária paga à vítima ou dependentes é uma antecipação, na esfera da jurisdição penal, da indenização reparatória a que tiver direito o ofendido, daí por que seu valor será deduzido do montante de eventual condenação civil, desde que os beneficiários sejam os mesmos.

15.5.2

Perda de bens e valores

A pena de perda de bens e valores consiste na transmissão, para o patrimônio do Fundo Penitenciário Nacional, de bens e valores pertencentes ao condenado, equivalentes ao montante do prejuízo causado ou do proveito obtido em conseqüência do crime. Essa pena não se confunde com a perda do produto do crime ou bem auferido com o crime – efeito da condenação definido no art. 91, II, b. Aqui, trata-se de perda de bem ou valor que pertence ao condenado e que não foi adquirido com o crime ou por meio dele. O valor do proveito do crime é apenas o parâmetro para a fixação da pena, que terá como teto máximo o maior valor – o do prejuízo causado ou do proveito auferido. A sentença substituirá a pena privativa de liberdade pela decretação da perda dos bens ou dos valores que o condenado possuir, tendo como valor máximo o do prejuízo ou o do auferido com a prática do crime. Tratando-se de pena alternativa, o condenado poderá recusá-la, preferindo a privação da liberdade, se lhe convier. Melhor teria sido que a pena de perda de bens tivesse sido instituída para certos tipos de crimes de natureza econômica – os chamados crimes do colarinho branco – e


Penas Restritivas de Direito - 7 não como alternativa à prisão.

15.5.3

Prestação de serviços à comunidade ou a entidades

públicas Há quem veja a origem da pena de prestação de serviços nas penas de trabalhos forçados conhecidas nos primórdios do Direito Penal, mais tarde conhecidas como “galés”, o que não se pode admitir, pois não se confundem os institutos. Melhor concordar com os que ensinam que a pena de prestação de serviços surgiu na Suécia, na legislação marítima, no século XVII, como substituição da pena de prisão, sendo certo que, na Itália, o Código Zannardeli, de 1989, incluía a prestação de serviço ao Estado. É na União Soviética e nos países socialistas do Leste Europeu que ela foi mais adotada, inclusive entre as penas principais, em alguns países.

15.5.3.1

Conceitos e regras

Essa espécie de pena consiste na realização gratuita, pelo condenado, de tarefas junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, ou, ainda, em programas comunitários ou desenvolvidos por organismos da sociedade ou dos poderes públicos federal, estaduais ou municipais. Trata-se, pois, da imposição de trabalho gratuito em benefício de entidades cujo objetivo é a promoção do bem-estar social. O art. 46 do Código Penal refere-se a essas entidades, mas é óbvio que a referência é apenas exemplificativa, podendo ser incluídas outras que se destinem, igualmente, à realização de atividades voltadas para o alcance de melhores condições de vida para parcelas carentes da população ou marginalizadas. O trabalho do condenado será realizado na proporção de uma hora por dia da condenação, fixado de maneira a não prejudicar sua jornada de trabalho. Se a substituição for de uma pena de detenção de um ano, o juiz determinará a prestação de 365 horas de serviços à comunidade. Se for de um ano e seis meses, serão 365 + 180 = 545 horas, que deverão ser distribuídas de modo a não prejudicar a atividade laboral do condenado, podendo ser prestadas nos períodos noturnos dos dias de semana ou nos sábados e domingos. A pena de prestação de serviços pode ser cumprida de modo descontínuo, por exemplo, durante uma hora por dia, de segunda a sexta, e três horas no sábado e/ou


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles domingo, de modo a perfazer o montante fixado na sentença. Não se pode confundir a prestação de serviços à comunidade com o trabalho forçado, nem com o trabalho escravo, terminantemente proibidos. A gratuidade do trabalho constitui a pena, a retribuição jurídica, e tem como fim a recuperação do condenado, que, aliás, não está obrigado a aceitá-la. Basta lembrar que, recusando-se a cumprir a pena alternativa, será ela convertida em pena privativa de liberdade. Importante, ainda, que as tarefas atribuídas ao condenado sejam compatíveis com suas aptidões. Sempre que possível, os serviços atribuídos devem guardar relação com as atividades habituais do condenado, e não prejudicar suas atividades laborais, das quais aufere os meios para o sustento próprio e de seus familiares. Por exemplo, o motorista profissional condenado por homicídio culposo cometido em acidente de trânsito poderá ver sua pena privativa de liberdade substituída pela prestação de serviços de condutor de uma ambulância de um hospital público ou beneficente, durante oito horas do sábado ou do domingo. Cabe ao Juiz da Execução Penal designar a entidade, o estabelecimento ou o programa comunitário ou estatal no qual o condenado prestará serviços. Para tanto, em cada cidade deverão ser credenciadas as diversas entidades e estabelecimentos nos quais serão prestados tais serviços. As entidades, em contrapartida, deverão colaborar com o Poder Judiciário, encaminhando, periodicamente, ao Juiz da Execução Penal, relatório pormenorizado, dando conta das atividades dos condenados, comunicando faltas, irregularidades e outros fatos que sejam do interesse da sociedade. Por essa razão, como afirmado anteriormente, é essencial a participação da comunidade. Mormente nas cidades do interior, é de todo recomendável que os juízes selecionem entidades filantrópicas e assistenciais sérias, a fim de que não se frustrem os objetivos da pena alternativa. Sem que haja controle sobre as atividades do condenado, a pena pode tornar-se uma benesse indevida e, por isso, injusta. Não se pode aceitar, por exemplo, que aquele condenado a trabalhar como motorista de ambulância contrate uma pessoa para trabalhar em seu lugar. Se o diretor do hospital for conivente com o condenado, aceitando a troca e ocultando-a do Juiz da Execução, os fins da pena jamais serão alcançados. Por isso, os juízes

devem

evitar

credenciar

entidades

públicas

dirigidas

por

políticos

inescrupulosos, privilegiando as particulares e as dirigidas por homens e mulheres sérios. O prefeito e o vereador estão, inevitavelmente, sujeitos às pressões do condenado e, principalmente, de seus familiares, e têm menos condições de colaborar, com a seriedade exigida, para a execução penal, nos limites precisos da lei.


Penas Restritivas de Direito - 9 O mais importante na execução da pena de prestação de serviços à comunidade e a entidades públicas é a convivência que se estabelece entre o condenado e aqueles para os quais vai prestar seus serviços, sejam os dirigentes da entidade, estabelecimento ou programa comunitário ou estatal, sejam os cidadãos que se beneficiam de seu trabalho. Os primeiros são, geralmente, pessoas identificadas com as necessidades dos cidadãos mais carentes de assistência, e os segundos são os próprios necessitados. A um só tempo, o condenado vai conhecer o homem que cultiva os valores da solidariedade e do respeito, e o que necessita do amor, do apoio. Participar dessa relação humana é a melhor terapia para que alguém que violou a norma penal possa compreender a importância de valorizar os bens importantes da sociedade.

15.5.3.2

Conversão em pena privativa de liberdade

A pena de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas será convertida em pena privativa de liberdade nas seguintes situações. Se o sentenciado vier a ser condenado, por outro crime, a uma pena privativa de liberdade, deverá o Juiz da Execução Penal decidir sobre a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, mas não estará obrigado a fazê-lo, desde que seja possível o cumprimento da pena anterior. Por exemplo, se vier a ser condenado a uma pena de multa, ou a uma limitação de fim de semana ou a uma interdição de direito, é perfeitamente possível continuar cumprindo a pena de prestação de serviços. E até mesmo quando a pena pelo segundo crime seja também de prestação de serviços, pode ser possível compatibilizar o cumprimento de ambas. Se a condenação sobrevinda for uma pena privativa de liberdade cuja execução tenha sido suspensa, pelo instituto do sursis – suspensão condicional da pena, regulada pelos arts. 77 a 82 do Código Penal – também poderá continuar o cumprimento da pena de prestação de serviços. A pena também será convertida em privação de liberdade se o condenado descumprir, sem justificativa, qualquer restrição imposta pelo juiz. O § 1º do art. 181 da Lei de Execução Penal estabelece ainda: “A pena de prestação de serviços à comunidade será convertida quando o condenado: a. não for encontrado por estar em lugar incerto e não sabido; b. não comparecer, injustificadamente, à entidade ou programa em que devia prestar serviço; c. recusar-se, injustificadamente, a prestar o serviço que lhe foi imposto; d. praticar falta grave.”


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Ocorrendo a conversão, o condenado deverá cumprir a pena privativa de liberdade substituída pela restritiva de direitos, deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de prisão. Por exemplo, condenado a dois anos de reclusão teve sua pena substituída pela prestação de serviços à comunidade equivalente a 365 x 2 = 730 horas. Se tiver cumprido 600 horas de serviços, e for o caso de conversão, por qualquer das causas que a autorizam, deverá cumprir 130 dias de reclusão. Se tiver cumprido 720 horas de trabalho, a conversão se dará para o cumprimento de 30 dias de reclusão, no mínimo.

15.5.4

Interdição temporária de direitos

As penas de interdição temporária de direitos são: “I – a proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo; II – a proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público; III – suspensão de autorização para dirigir veículo; IV – proibição de freqüentar determinados lugares.” (Art. 47, CP, com a redação da Lei nº 9.714/98.)

15.5.4.1

Conceito e regras

Interditar não se confunde com suprimir, pelo que se deve entender que essas penas atingem certos direitos de modo efetivo, porém, por certo tempo, e não de modo a eliminar o direito, mas, tão-somente, a proibir seu exercício por um lapso temporal. Seu titular não o perde, porém não o pode exercer. O direito não é subtraído, tirado, apenas não pode ser exercido. Seus efeitos não podem ser extraídos. São quatro as hipóteses de interdição de direitos, que devem ser explicadas.

15.5.4.1.1 Proibição do exercício de cargo, função, atividade, mandato O condenado não perde o cargo, função ou atividade pública e tampouco o mandato eletivo. A pena consiste na proibição de exercê-los, o cargo, a função, a atividade ou o mandato. Ele não o pode exercer, pelo tempo determinado na sentença. Só pode ser condenado a cumprir essa pena aquele que tiver cometido o crime no exercício do cargo, da função ou atividade, com violação dos deveres que lhe são inerentes (art. 56, CP). Para a substituição da pena privativa de liberdade pela de interdição de direitos, é necessária a vinculação entre o efetivo exercício da atividade


Penas Restritivas de Direito - 11 pública e o crime praticado. Terão o direito a essa substituição aqueles que tiverem, por exemplo, praticado alguns dos crimes do Título XI da Parte Especial do Código Penal, como peculato culposo, prevaricação, condescendência criminosa, advocacia administrativa, violência arbitrária, abandono de função, violação de sigilo funcional. A execução dessas penas exige a participação das autoridades públicas, para quem o Juiz da Execução Penal encaminhará comunicação dando conta da pena aplicada, a fim de que seja baixado o ato administrativo pelo qual o condenado terá interditado seu direito ao exercício do cargo, função, atividade ou mandato.

15.5.4.1.2 Proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício Algumas profissões, atividades ou ofícios dependem de licença ou autorização do poder público, como a dos médicos, engenheiros, advogados, odontólogos, enfermeiros. Aqueles que vierem a ser condenados por crimes praticados com violação dos deveres inerentes à profissão, à atividade ou ao ofício terão suas penas privativas de liberdade substituídas pela interdição temporária do direito de exercê-los, desde que atendam aos demais requisitos legais. É a norma do art. 56 do Código Penal. Exemplo: o crime do art. 154 do Código Penal: “Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa”, praticado, por exemplo, por médico ou por um advogado. A pena poderá ser substituída pela interdição do direito de exercer a medicina ou a advocacia pelo tempo correspondente ao da pena privativa de liberdade. O Juiz da Execução Penal determinará a apreensão dos documentos que autorizam o exercício da profissão, devendo, igualmente, comunicar ao órgão fiscalizador da atividade (OAB, CFM, CREA etc.).

15.5.4.1.3 Suspensão da autorização ou habilitação para digirir veículo A terceira espécie é a suspensão da autorização ou da habilitação para dirigir veículos, que só pode ser aplicada aos crimes culposos de trânsito – homicídio culposo, lesão corporal culposa –, como manda o art. 57 do Código Penal. Não se trata de


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles inabilitação nem de cassação da licença ou da habilitação, mas de sua suspensão. No caso de motorista de veículo automotor, o Juiz da Execução Penal determinará a apreensão do documento que autoriza o exercício do direito, a Carteira Nacional de Habilitação.

15.5.4.1.4

Proibição de freqüentar determinados lugares

Modalidade instituída pela Lei nº 9.714/98, a proibição de freqüentar determinados lugares é importante medida alternativa, no sentido de evitar a presença do condenado em ambientes favoráveis à reincidência, daí por que os lugares proibidos devem guardar relação com o crime praticado. Não se proibirá o condenado por estelionato de freqüentar estádios de futebol, mas, evidentemente, essa proibição deve ser imposta a quem se envolveu, por exemplo, numa rixa.

15.5.4.2 Conversão em pena privativa de liberdade As penas de interdição temporária de direitos serão convertidas em penas privativas de liberdade originalmente aplicadas nas sentenças, nas seguintes hipóteses. A condenação posterior por outro crime implicará a conversão da interdição de direitos na pena de reclusão ou detenção se o condenado não cumprir, sem justa causa, a restrição imposta, vale dizer, se exercer o direito interditado. A conversão se dará, ainda, se o condenado não for encontrado, por estar em lugar incerto e não sabido, ou se desatender intimação por edital. O condenado cumprirá a pena convertida em privação de liberdade pelo tempo que restar.

15.5.5 Limitação de fim de semana Na busca de alternativas às penas de prisão, pensou-se, inicialmente, numa forma diferente de prisão, descontínua, em que o condenado, em vez de permanecer preso continuamente, ficasse recolhido por alguns dias, nos finais de semana e nos feriados. A idéia era manter a força intimidativa da prisão, sem, contudo, os males decorrentes do excesso de prisão. O direito brasileiro aderiu a uma nova modalidade de pena, que não se confunde com a privação da liberdade, mas que a restringe. Poderia ser chamada de pena de


Penas Restritivas de Direito - 13 prisão de fim de semana, mas a lei preferiu utilizar a expressão limitação, como se a palavra alterasse sua essência.

15.5.5.1

Conceito e regras

A limitação de fim de semana consiste na obrigação de o condenado “permanecer, aos sábados e domingos, por cinco horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento adequado”, tempo em que “poderão ser ministrados” cursos e palestras ou desenvolvidas outras atividades educativas. Trata-se da manutenção do condenado, pelo tempo de cinco horas no sábado e de cinco horas no domingo, em estabelecimento prisional, casa de albergado ou similar, tendo, conseqüentemente, seu direito de liberdade restringido, coarctado, suprimido. “A sanção punitiva em exame não produz, em verdade, no condenado seqüelas profundas: não o obriga a abandonar a família, nem a deixar o trabalho, nem a ter um contato carcerário mais prolongado. Mas parece fora de dúvida que as duas características fundamentais de qualquer modalidade de prisão de fim de semana – a brevidade e a intermitência – tornam esta pena de duvidosa eficácia, posto que nenhum trabalho ressocializador realmente sério poderá ser realizado.”3 Infelizmente, a própria lei considera uma simples faculdade a realização dos cursos, palestras e atividades educativas, pelo que, mesmo que houvesse, no país, estabelecimentos adequados ao cumprimento dessa pena, nenhuma atividade tendente à recuperação do condenado seria, necessária e obrigatoriamente, ali executada.

15.5.5.2

Conversão em pena privativa de liberdade

A pena de limitação de fim de semana se converterá em privativa de liberdade se o condenado descumprir, injustificadamente, a restrição imposta, como, por exemplo, não comparecer ao estabelecimento designado para cumprir a pena, bem assim no caso de praticar falta grave, ou não ser encontrado por estar em lugar incerto e não sabido, ou desatender à intimação por edital. A superveniência de condenação por outro crime somente implicará a conversão se não for possível a continuidade do cumprimento da limitação de fim de

3

FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 616.


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles semana.


16 PENA DE MULTA

____________________________ 16.1 ASPECTOS HISTÓRICOS E GERAIS A pena de multa – cuja origem pode ser vista na antiga composição do Direito Penal dos germânicos – já constava das Ordenações Filipinas no famigerado Livro V, como pena principal e acessória e, após revigorada por Lei de 1823, esteve em vigor até o Código Criminal do Império, de 1830, que assim regulava o instituto: “Art. 54. A pena de multa obrigará os réus ao pagamento de uma quantia pecuniária, que será sempre regulada pelo que os condenados puderem haver em cada dia pelos seus bens, empregos, ou indústria, quando a lei especificadamente o não designar de outro modo. Art. 55. As multas serão recolhidas aos cofres das Câmaras Municipais; e os condenados que, podendo, as não pagarem dentro de oito dias, serão recolhidos à prisão, de que não sairão sem que as paguem.” O Código Penal Republicano, de 1890, manteve a pena de multa, compatível com os ganhos do condenado, destinando-a ao Tesouro Federal ou dos Estados, conforme a competência, e prevendo sua conversão em prisão celular, na hipótese de seu nãopagamento injustificado. A conversão não se daria se qualquer pessoa efetuasse o pagamento ou prestasse fiança idônea. O Código Penal de 1940 manteve a multa entre as penas, admitindo a conversão em detenção apenas em casos excepcionais, quando o condenado buscasse ludibriar a justiça. A pena de multa, modernamente, vem constituir-se em mais uma das necessárias penas alternativas às penas privativas de liberdade de curta duração. Com efeito, temse verificado que condenados por crimes menos graves, a penas pequenas, quando levados à prisão, longe de receberem qualquer tratamento ressocializador, experimentam, ao revés, a convivência com condenados mais experimentados na senda do crime, com penas elevadas a serem cumpridas; dá-se então o fenômeno da contaminação carcerária, que transforma o presídio em escola do crime.


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles A solução é evitar a prisão de curta duração, e a multa é uma das formas mais adequadas para o alcance desse objetivo. MIRABETE mostra as vantagens e desvantagens da pena de multa: “Apontam-se como vantagens de tal tipo de sanção: (a) não retira o condenado do convívio com a família; (b) não o afasta do trabalho, com o qual mantém a si próprio e a família, nem de suas ocupações normais lícitas, evitando o desajustamento social; (c) não o corrompe, por evitar sua inserção no meio deletério da prisão; (d) não avilta, pela ausência de caráter infamante dessa espécie de pena; (e) atinge um bem jurídico de menor importância que a liberdade; (f) preserva intacta a personalidade; (g) possui força intimidativa, ao menos nos crimes patrimoniais, ao recair sobre bens econômicos que, na sociedade capitalista, são tidos como de considerável valor; (h) possibilita melhor individualização judicial, por se fundar principalmente na situação econômica do condenado; (i) não sobrecarrega o erário público, podendo até constituir uma fonte de recursos para o Estado. Por outro lado, apontam-se como desvantagens: (a) é uma forma de enriquecimento do Estado às custas do crime; (b) é raramente executada porque a maioria dos condenados é absolutamente insolvente; (c) é inócua como prevenção ao menos com relação aos crimes mais graves; (d) tem sentido aflitivo desigual, pois, para quem muito pode, o pagamento da multa tem pouco significado prático e, para quem pouco tem, atinge fundamente o condenado; (e) alcança os familiares do condenado, privados de parte do ganho daquele que lhes provê o sustento; (f) pode representar inclusive um incitamento à prática de novos delitos para que o condenado obtenha as condições necessárias ao pagamento.”1 É verdade, a pena de multa apresenta essas vantagens e desvantagens, e deve continuar sendo discutida sua cominação, aplicação e execução, para o encontro de medidas que visem a seu aperfeiçoamento.

16.2 CONCEITO A pena de multa é a obrigação de pagar “ao fundo penitenciário” a “quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa” (art. 49, CP). A multa é, assim, a obrigação de pagar quantia certa, ao fundo penitenciário.

1

Execução penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 418.


Pena de Multa - 3 Conquanto o país tenha experimentado, por longos anos, o convívio com o fenômeno inflacionário, o valor das multas aplicadas tornava-se irrisório com o passar de pouco tempo, o que levou à busca de solução que possibilitasse a fixação de multa que significasse, efetivamente, perda para o condenado. Adotou-se o chamado “dia-multa” como critério para o cálculo da multa. Segundo determina o § 1º do art. 49, cada dia-multa terá um valor, que o juiz fixará levando em conta o valor do salário mínimo mensal em vigor no país, no tempo do fato, não podendo ser inferior a 1/30 (um trigésimo), nem superior a 5 (cinco) vezes o valor do salário mínimo. Exemplo: no dia do fato, o valor do salário mínimo era R$ 415,00 (quatrocentos e quinze reais). O valor de cada dia-multa deve ser fixado pelo juiz entre, no mínimo, 1/30 de R$ 415,00, que é R$ 415,00/30 = R$ 13,83, e 5 x R$ 415,00 = R$ 2.075,00. Voltando a inflação e a correção monetária – recomposição, por correção de índice inflacionário, do valor da moeda –, o valor do dia-multa deverá ser corrigido, quando da execução da pena. O art. 33 da Lei nº 11.343/2006 (entorpecentes) comina a pena de reclusão de 5 a 15 anos e o pagamento de 500 a 1.500 dias-multa. Ao fixar a pena, o juiz poderá aplicar uma pena de 700 dias-multa, fixando o valor do dia-multa em 1/30 do salário mínimo. Se este é de R$ 415,00, a pena de multa será de 700 x R$ 13,83 = R$ 9.681,00. A pena mínima para esse crime seria de 500 dias-multa (500 x R$ 13,83 = R$ 6.915,00), e a pena máxima seria de 1.500 dias-multa, calculado esse no valor de cinco vezes o salário mínimo, em R$ 2.075,00 (1.500 x R$ 2.075,00 = R$ 3.112.500,00).

16.3 COMINAÇÃO Nem todas as normas penais incriminadoras, ao cominar penas de multa, fazemno como a do art. 12 da Lei nº 6.368/76, que especifica o valor em dias-multa. Basta ver na norma do art. 155 do Código Penal: “Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.” A sanção fala simplesmente em “multa”, pelo que se poderia entender não quantificada a pena. O art. 58 do Código Penal, todavia, traz regra geral determinando: “A multa, em cada tipo legal de crime, tem os limites fixados no art. 49 e seus parágrafos deste Código.” O art. 49, na segunda parte, estabelece que a pena de multa “será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa”. Isso significa que todas as normas penais incriminadoras cuja sanção, a exemplo


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles do art. 155, mencionar apenas a “multa”, alternativa ou cumulativamente, deverá ser assim entendida: “multa, de 10 (dez) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa”. O art. 155 do Código Penal deve, pois, ser assim lido: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de 10 (dez) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.” A pena de multa pode ser aplicada, independentemente de cominação, como substitutiva da pena privativa de liberdade, cumulativamente com pena restritiva de direitos, no caso de crimes culposos cuja pena privativa de liberdade seja igual ou superior a um ano (art. 44, parágrafo único). A multa pode, ainda, ser aplicada em substituição à pena privativa de liberdade não superior a 6 (seis) meses, observados os critérios dos incisos II e III do art. 44, vale dizer, se o réu não for reincidente e a culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do agente, motivos e circunstâncias do crime, indicarem a suficiência da substituição (art. 60, § 2º, CP).

16.4 PAGAMENTO DA MULTA O pagamento da multa deverá ser feito dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 50, CP). Dentro desse prazo, o condenado pode requerer ao juiz o parcelamento da multa, que poderá ser paga mediante o desconto na folha de pagamento do vencimento ou salário do condenado, mediante, é claro, sua autorização formal. Tal desconto não pode ser feito sobre os recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família (§§ 1º e 2º, art. 50, CP). Se o condenado não efetuar o pagamento, nem requerer e obtiver seu parcelamento, a pena de multa, segundo determina o art. 164 da Lei de Execução Penal, deverá ser executada por meio de pedido, pelo Ministério Público, da citação do condenado para, no prazo de dez dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora. Instalar-se-ia, a partir daí, procedimento de execução por quantia certa, regulada pelo Código de Processo Civil. Dispunha o art. 51 do Código Penal, com a redação da Lei nº 7.209/84 – a da Reforma Penal –, que, se o condenado solvente deixasse de pagar a multa ou frustrasse sua execução, seria ela convertida em pena de detenção, correspondendo cada diamulta a um dia de detenção, observado o máximo de um ano. Essa conversão só podia ser feita após a instauração do processo de execução.


Pena de Multa - 5 Com a vigência da Lei nº 9.268, de 1º-4-1996, o art. 51 do Código Penal passou a ter a seguinte redação: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa a dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.” Dessa forma, já não se pode falar em conversão da pena de multa em privativa de liberdade, tornando-se a pena de multa, pura e simplesmente, uma dívida de valor, da qual o condenado é o devedor, e credor o Estado. Doravante, não paga a multa, deve ser instaurado o executivo fiscal para o recebimento do crédito do Estado. Doravante, já não caberá ao Ministério Público requerer a citação do condenado para pagá-la, conforme dispõe o art. 164 da Lei de Execução Penal – revogado –, mas à procuradoria do Estado, ou à advocacia geral da União, promover a ação de execução fiscal, com o rito próprio dos executivos fiscais, de que trata a Lei nº 6.830, de 22-9-80.

16.5 SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA MULTA Se o condenado à pena de multa vier a ser acometido de doença mental, a execução da pena de multa será suspensa. Se a doença for curada, ou regredir, a execução prosseguirá. Enquanto permanecer acometido da moléstia, a execução da pena permanecerá suspensa. ALBERTO SILVA FRANCO ensina que, se a doença for irreversível, “não caberá, por falta de previsão legal, a substituição da pena pecuniária pela medida de segurança, tal como ocorre em relação à pena privativa de liberdade (art. 183 da LEP). Por outro lado, não teria sentido uma suspensão, por tempo indefinido, do cumprimento da pena pecuniária. Nessa situação, a solução mais correta é a de declarar extinta a pena imposta a partir do momento em que o tempo da suspensão equivaler ao prazo exigido para o reconhecimento da prescrição do título penal executório”.2

2

Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 659.


17 APLICAÇÃO DA PENA

____________________________ 17.1 NOÇÕES GERAIS Instaurado o processo penal, por meio do qual se busca descobrir a verdade, e assegurado o mais amplo direito de defesa, o juiz, se concluir que o acusado praticou um fato típico, ilícito e culpável – um crime –, deverá prolatar a sentença, condenandoo a sofrer a pena criminal, a mais grave das sanções do direito. A aplicação da pena não é tarefa fácil, nem simples, e constitui a mais importante das fases da individualização da pena, garantia constitucional de todo cidadão, segundo a qual a reprimenda penal deve ser particularizada, adaptada ao condenado, conforme suas características pessoais e as do fato praticado. Aplicar a pena é dar, ao condenado, a pena justa, que deverá ser aquela suficiente e necessária para a reprovação e a prevenção do crime. A cada fato definido como crime, numa norma penal incriminadora, corresponde uma sanção, que pode ser a privação de liberdade – detenção ou reclusão – e multa, ou apenas aquela ou somente esta. A pena privativa de liberdade é cominada, para cada tipo legal de crime, num grau mínimo e num grau máximo, como, por exemplo, consta da sanção do tipo de estupro, do art. 213 do Código Penal: “reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”. Já a pena de multa é, em regra, de no mínimo 10 (dez), no máximo 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Como deve proceder o juiz, após reconhecer que o acusado praticou mesmo um crime, para determinar a pena, em qualidade e em quantidade? Tem ele a liberdade total para fixar a pena que considerar justa? Ao deixar margem para fixação, a lei quer conferir ao juiz o arbítrio para impor a pena que bem entender? Se não, quais são os critérios, as regras, os parâmetros, enfim, as normas que regulam essa importante atividade jurisdicional?


2 – Direito Penal – Ney Moura Teles Para que a pena possa ser individualizada, a lei possibilita ao juiz oportunidade para particularizá-la a cada um dos condenados, de tal modo que, ainda que duas pessoas tenham concorrido para um mesmo crime, com igual intensidade de vontade, executando ações materiais idênticas ou semelhantes, a pena que uma receberá não será, necessariamente, igual à da outra, porque outras circunstâncias podem levar à diferenciação da quantidade da sanção. É de todo claro que não pode ficar ao arbítrio do juiz a aplicação da pena. Se ele tem a liberdade para determiná-la, tal liberdade, todavia, há de ser exercida com a estrita observância de um conjunto de regras claras, que presidem essa tarefa do julgador. Em vez de arbítrio, fala-se em poder discricionário do juiz, pelo que não há arbitrariedade. Tanto que o juiz é obrigado a motivar a aplicação da pena, externando as razões que o levaram ao quantum estabelecido. Este dever de motivar decorre do preceito constitucional inserto no art. 93, IX, da Constituição Federal, que diz: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. A motivação da aplicação da pena elimina qualquer possibilidade de arbítrio. “A motivação da sentença é exigência de todas as legislações modernas, onde exerce, como diz Franco Cordero, função de defesa do cidadão contra o arbítrio do juiz. De outra parte, a motivação constitui também garantia para o Estado, pois interessa a este que sua vontade superior seja exatamente cumprida e se administre corretamente a justiça. O juiz mesmo protege-se, mediante a obrigação de motivar a sentença, contra a suspeita de arbitrariedade, de parcialidade, ou de outra qualquer injustiça (Manzini).”1 Se o juiz não fundamentar a decisão, ela será nula. Se não explicar o porquê e o como chegou à pena aplicada, sua decisão contraria a ordem constitucional e processual. O condenado tem o direito de saber não apenas por que foi condenado, mas, principalmente, porque recebeu essa ou aquela pena, exatamente para poder verificar se ela é justa, vale dizer, se ela foi aplicada levando em conta os fins a que se destina: reprovar e prevenir o crime. A pena justa é aquela que será apenas suficiente e necessária para a reprovação e para a prevenção do delito, nem além, nem aquém. Direito também do acusador, de saber o motivo da qualidade e quantidade da pena aplicada.

1

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 320.


Aplicação da Pena - 3 Ambas, acusação e defesa, para, se quiserem, pleitearem a reforma da decisão na instância superior, necessitam saber os motivos que levaram o julgador a optar pela pena aplicada.

17.2 CÁLCULO DA PENA O art. 68 do Código Penal estabelece o caminho que o juiz deve seguir para encontrar a pena justa a ser aplicada ao condenado. Com base nele e no disposto no art. 59 pode-se construir o seguinte roteiro, ao qual o juiz está necessariamente vinculado. O primeiro passo a ser dado é o da fixação da pena-base, devendo o juiz fazê-lo observando minudentemente as circunstâncias judiciais estabelecidas no art. 59 do Código Penal. Depois de encontrar a pena-base, o juiz deverá considerar a existência de circunstâncias atenuantes (descritas nos arts. 65 e 66, CP) e de circunstâncias agravantes (definidas nos arts. 61 e 62, CP), com observância da regra do art. 67 do Código Penal. Depois, deverá verificar a presença ou não das chamadas causas de diminuição e das causas de aumento de pena, previstas tanto na parte geral, quanto na parte especial do Código Penal. Finalmente, se se tratar de pena privativa de liberdade, o juiz deverá verificar a possibilidade de sua substituição por pena restritiva de direitos ou de multa, e, caso não o possa fazer, fixará o regime inicial de cumprimento da privação de liberdade. Em síntese, a pena é determinada, assim, em quatro etapas, bem distintas: (1ª) Pena-base. (2ª) Atenuação e agravação. (3ª) Diminuição e aumento. (4ª) Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, ou Fixação do regime inicial de seu cumprimento. Estabelecido o roteiro, vai-se percorrê-lo, um a um, com todos os detalhes considerados importantes.

17.3 FIXAÇÃO DA PENA-BASE A primeira etapa a ser percorrida e concluída pelo juiz é a da fixação da penabase, durante a qual deverá observar as regras estabelecidas no art. 59 do Código Penal. O princípio diretor da aplicação da pena nas quatro fases – mas que se


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles manifesta de modo vigoroso na primeira etapa – é o seguinte: o juiz estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente, para reprovação e prevenção do crime, as penas aplicáveis, entre as cominadas, e sua quantidade, dentro dos limites previstos. Daí decorrem duas regras: (a) a pena, em qualidade e em quantidade, deve ser fixada com a finalidade de tão-somente reprovar e prevenir o crime; e (b) deve ser estabelecida dentro dos limites da necessidade e da suficiência para o alcance daquela finalidade. Essas duas bases devem orientar o juiz em toda a sua atividade de aplicar a pena, e, nesse primeiro momento, da fixação da pena-base, deve presidir sua opção pela pena a ser aplicada, e por sua quantidade. Delas decorrem algumas observações importantíssimas. O juiz não pode fixar pena sem aqueles objetivos de reprovar e prevenir o crime. Se a necessidade de reprovação for grande, a pena deverá ser, igualmente, mais severa. Se a necessidade da prevenção for pequena, a pena será menos severa. O juiz não pode fixar pena em quantidade além da necessária, nem mais do que o suficiente para a reprovação. Como proceder para atender ao preceito? Nortear-se pelos próprios parâmetros indicados no mesmo art. 59. O juiz fixará a pena com atenção “à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima”. Essas circunstâncias, chamadas judiciais, deverão ser analisadas pelo julgador, que, à vista de sua presença ou ausência, fixará a pena-base. É necessário, pois, falar sobre essas circunstâncias, uma a uma, cada qual com suas particularidades.

17.3.1

Culpabilidade

Culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com potencial consciência da ilicitude, poderia ter agido de outro modo. É um juízo de reprovação, de censura, que o julgador faz, em nome da sociedade, ao imputável agente do fato típico e ilícito. É a valoração feita acerca do fato praticado, possível quando o agente tinha possibilidade de conhecer a proibição que recaía sobre seu comportamento, e quando se lhe podia exigir outra atitude. É de todo claro que algumas condutas típicas e ilícitas são mais reprováveis que outras, ainda que sejam igualmente ilícitas.


Aplicação da Pena - 5 Basta pensar: dois homicídios simples não são, necessariamente, censuráveis no mesmo grau, na mesma amplitude, dependendo das circunstâncias que cercaram a atitude de cada um dos seus agentes. Ou então: dois homicídios qualificados por terem sido praticados, ambos, por motivo fútil, não são reprováveis, obrigatoriamente na mesma intensidade, até porque dois motivos distintamente fúteis podem ser reprováveis em graus diferentes. Um será mais fútil que o outro. Mais insignificante que o outro. Um infunde maior revolta no que o vê. Outro merece maior compreensão. Dois crimes praticados mediante uso de meio cruel não serão, necessariamente, censuráveis na mesma medida, porque um meio pode ser um pouco mais cruel que o outro, ou porque o ânimo de um dos agentes pode repugnar mais que o do outro. A censurabilidade, a reprovabilidade, de cada fato, é graduável, mensurável. Um será menos ou mais reprovável que outro. Um será muito repugnante, outro, apesar de repugnante, um pouco menos. Os comportamentos humanos, todos, são analisáveis e valoráveis, merecendo graus diferentes de censura, de reprovação. Alguns atos são mais culpáveis que outros, que são merecedores de menor censura. Os homens são, uns em relação aos outros, ainda que por comportamentos idênticos ou assemelhados, mais ou menos culpados. O homem rico, instruído, intelectual, bem situado no meio social do ponto de vista econômico-financeiro, será mais culpado que o pobre, analfabeto, marginalizado, se ambos, em situações idênticas, reagirem de modo igual, por exemplo, diante da notícia de que a filha engravidou do namorado. Do primeiro se exigirá comportamento mais compatível com o direito do que do segundo. Se ambos reagirem com violência, matando, por exemplo, o namorado, o instruído, bem formado, será, a princípio, mais culpado que o segundo. Enfim, a culpabilidade, enquanto juízo de reprovação, é graduável, com base em seus dois elementos: a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Aquele que age com consciência real da ilicitude é mais culpado do que aquele que age sem a consciência, podendo alcançá-la. Basta pensar em dois homens distintos: um, advogado, conhecedor do direito, tem consciência real de que se encontrar sua mulher em flagrante de adultério, não lhe será lícito matá-la, nem o amante, e o outro, um rude lavrador, do interior de um Estado pouco desenvolvido do país, que, na mesma situação, considera que matá-la é “lavar sua honra com o sangue da adúltera”, conduta permitida pelo Direito. Evidente que ambos cometem fato típico e ilícito. O primeiro agiu com consciência real, atual, verdadeira. O segundo agiu sem essa consciência, mas podia, à


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles evidência, tê-la alcançado. Ainda que o primeiro não tivesse agido com real consciência, dele se podia exigir, mais que do segundo, alcançar tal consciência. Por isso, o primeiro será mais culpado que o segundo. Do mesmo modo, aquele do qual se exige com grande intensidade comportamento diferente do que o realizado será, igualmente, mais culpado do que o outro, do qual se exige, de modo menos rigoroso, conduta diversa da praticada. Imagine-se duas situações idênticas, com dois cidadãos diferentes. Em ambas, um indivíduo invade uma casa, subjuga uma família, sob a mira de uma arma branca (faca da cozinha, que está sendo apenas portada, sem encostá-la em qualquer pessoa), e aguarda a chegada do chefe da família, marido e pai dos reféns. Quando este chega, é instado a retornar à empresa onde trabalha como tesoureiro e de lá trazer certa quantia em dinheiro, como condição para a cessação da ameaça que paira sobre seus familiares. Não há, nos dois exemplos, por parte do agressor, nenhuma outra atitude mais séria contra os familiares. As duas situações fáticas são quase idênticas, com uma única diferença: numa o pai é ex-policial, com larga experiência em lidar com seqüestradores, exímio atirador, praticante de artes marciais, negociador frio, ao passo que na outra o pai é um ex-seminarista, fisicamente frágil, sem qualquer experiência de vida no trato com acusados da prática de crimes etc. Tratando-se, à evidência, de duas situações de coações de natureza moral, plenamente resistíveis, e se nenhum dos pais a elas tiver resistido, mas atendido aos anseios dos seqüestradores, é de todo claro que o ex-policial é mais culpado que o ex-seminarista, pois que dele pode-se exigir mais do que do segundo. Em síntese, os que tiverem realizado o fato típico e ilícito com maior culpa, merecendo maior reprovação, haverão de receber maior resposta penal. Por outro lado, aqueles sob os quais incidirá censura normal, comum, terão menor, menos dura, mais branda, sanção penal. Na causação dos resultados danosos, lesivos dos bens jurídicos, as causas e seus causadores

são,

distintamente,

mais

ou

menos

eficazes

e

responsáveis,

respectivamente. Quem é o maior culpado pela derrota do Corinthians, no último jogo: o goleiro, que não segurou aquela cobrança de falta, o zagueiro, que não impediu o adversário, ainda que faltosamente, naquela arrancada fatal, o árbitro, que não viu aquele impedimento, ou o atacante, que cobrou mal o pênalti? A responsabilidade dos indivíduos pelos fatos da vida é mensurável, graduável, cada qual merecendo, de quem julga seus comportamentos, maior ou menor grau de censura. Isso é culpabilidade.


Aplicação da Pena - 7 A culpabilidade é, assim, não apenas fundamento da sanção penal, da pena, mas o principal fator de sua limitação. Vale dizer, sem culpabilidade, ainda que o fato seja típico e ilícito, não se aperfeiçoa o crime, e de conseqüência, não pode haver pena. Nesse sentido, a culpabilidade, tanto quanto a tipicidade e a ilicitude, é fundamento da pena. Em outras palavras, sem nenhuma culpa, em sentido amplo, sem culpabilidade, sem possibilidade de conhecimento da ilicitude, ou sem possibilidade de exigência de outro comportamento, não há a mínima culpabilidade. Logo, não há o crime, nem a pena. A culpabilidade, além de fundamentar a aplicação da pena, é seu elemento limitador. Quanto maior a culpabilidade, maior a pena. Inversamente, pequena culpabilidade, pena menor, mais branda. A tipicidade e a ilicitude constituem pressupostos indispensáveis à imposição da sanção penal, mas é a culpabilidade que, além de condicioná-la, limita-a e a gradua. Esta é a primeira das circunstâncias que o juiz analisa, quando vai fixar a penabase. É a mais importante delas, e por isso a que deve ser verificada com o maior cuidado. Não basta que considere ser ele culpável – imputável, com possibilidade de conhecer a ilicitude e do qual se pode exigir conduta diferente –, que isso é requisito para a condenação. Deve o juiz analisar e conhecer o grau da consciência da ilicitude, e o grau da exigibilidade de conduta diversa, para, então, concluir se o agente agiu com maior ou menor culpabilidade, merecendo, então, elevada ou pequena reprovação.

17.3.2

Antecedentes

Diz o art. 59 que o juiz considerará os antecedentes do agente do fato, como circunstância no momento da fixação da pena-base. Os antecedentes são, em síntese, a história do acusado, seu passado, o que lhe aconteceu, o filme de sua vida, antes do fato de que vai tratar a sentença. Quer a lei que o juiz pergunte quem é o acusado? Será que sua intenção é saber se o condenado é um homem que jamais esteve envolvido em qualquer outra história de fato típico, ou um indivíduo acostumado a envolver-se com violações de normas penais? O fim da norma é que sejam formuladas indagações dessa natureza? Um delinqüente contumaz, experiente, ou um cidadão que, pela vez primeira, se vê diante do julgamento do Poder Judiciário? O crime é mais um em sua vida, ou o primeiro evento dessa natureza?


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles O agente, tendo cometido, pela vez primeira, um ilícito culpável, mereceria tratamento diferenciado do que aquele que reiteradas vezes tem sido chamado a responder perante a justiça criminal, e daquele que, inclusive, até cumpriu pena, ou que ainda está a cumpri-la? Os antecedentes que abonam, que enobrecem, seriam de molde a justificar menor reprimenda, ao passo que o mau passado, o rosário de incidentes, acidentes e, até, de crimes, apontaria para a necessidade de buscar maior prevenção? Em face da exigência de que a pena seja suficiente e necessária, para reprovar e prevenir o crime, é de se perguntar: qual a importância de o juiz saber quem está sendo julgado: um homem de passado limpo, ou um velho conhecido da justiça criminal? Existiria alguma relação entre o passado do agente e seu futuro? Seriam verdadeiras as afirmações: quem já delinqüiu tem maior probabilidade de voltar a delinqüir, e quem nunca delinqüiu, provavelmente não cometerá outros crimes? É evidente que tais assertivas não se sustentam em qualquer critério científico. O passado das pessoas não é indicador de seu futuro, nem um rosário de crimes indica, necessariamente, sua continuidade. Por isso, não se pode aceitar que aquele que já cometeu crime, só por isso, deverá merecer maior censura se vier a cometer outro crime. Por outro lado, tendo a Constituição Brasileira adotado o princípio da culpabilidade, e o da presunção da inocência, não se pode aceitar a inclusão, entre as circunstâncias que informam a fixação da pena, dos antecedentes do agente do crime, que são características ou componentes absolutamente estranhos ao fato típico e ilícito. Fixar pena com base no passado do agente é o mesmo que fixá-la com fundamento em sua raça, na religião que professa, na cor de seus olhos ou de sua pele, ou na textura de seus cabelos. É fixá-la com base em elemento completamente dissociado do fato criminoso por ele praticado. Os antecedentes, por isso, num direito penal de cariz democrático – o direito penal do fato –, não podem influir na determinação da qualidade e da quantidade de pena, da reprimenda, da resposta penal. Lamentavelmente, o art. 59 do Código Penal a eles faz expressa referência, mas tal referência colide frontalmente com o princípio da culpabilidade, daí por que os juízes, no momento da fixação da pena, não devem considerá-los enquanto circunstância judicial que prejudique o agente do crime. Parte da doutrina entende que os antecedentes do condenado poderiam, quando muito, servir como condicionante para a concessão de benefícios durante a execução da pena. Por exemplo: ao portador de maus antecedentes não se concederia a


Aplicação da Pena - 9 suspensão condicional da pena, nem o livramento condicional, bem assim, até mesmo, a progressão a regime mais brando, mas jamais servir como circunstância que eleve a pena, ou a torne distante do grau mínimo. “Importa perceber que um ordenamento jurídico-penal fundamentado no princípio da culpabilidade do agente, no fato concreto, é incompatível com a majoração da pena com base em fatos anteriores ao que se analisa no processo de referência. O Direito Penal moderno é um direito penal do fato e o agente deve ser punido pelo que efetivamente fez e não pelo que é. A consideração sobre os antecedentes não pode influir de maneira a agravar a pena do agente, transpondo os limites estipulados por sua culpabilidade no caso concreto que se analisa. Sustentar o contrário significa estabelecer dupla punição para o agente de um mesmo fato.”2 Em razão dessas considerações, a inclusão dos antecedentes no art. 59 só pode ser analisada e entendida no sentido positivo, o de que, sendo eles abonadores, tal circunstância é autorizadora de menor reprimenda. Ou seja, bons antecedentes implicam necessariamente sanção penal próxima do grau mínimo. Para os que não aceitam essas ponderações, e consideram certo levar em conta também os antecedentes desabonadores, dúvidas não podem restar de que, ao fixar a pena-base, deverá o juiz observar: a) inquérito policial arquivado ou em andamento, simples folha de antecedentes, informação sobre inquéritos, denúncia apenas oferecida, processos em andamento, ou sentença condenatória recorrível – porquanto não dizem respeito à condenação transitada em julgado, verdade processual definitiva –, não podem ser considerados maus antecedentes; b) condenação por fato posterior ao da condenação, igualmente, não pode ser levada em conta no momento da fixação da pena, pois que a expressão “antecedentes” deve ser entendida como “fato que antecede ao fato da condenação”.

17.3.3

Conduta social

Dispõe o art. 59 que o juiz analisará também a conduta do condenado em seu meio social: se ele está ou não adaptado em seu ambiente social, vale dizer, se ele é ou não bem aceito por seus concidadãos, seus semelhantes, seus iguais.

2

GALVÃO, Fernando. Aplicação da pena. Belo Horizonte: Del Rey. 1995. p. 146.


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Se se tratar de alguém harmonicamente integrado na vida de sua comunidade, a reprimenda deve ser minimizada, do contrário, elevada? O juiz deve verificar a integração do condenado no meio social em que ele vive, e não no meio social que o juiz considera adequado. Deve verificar se seu comportamento é compatível com o aceito no ambiente de seu estrato social, por exemplo, na favela, com todas as suas características. Se, em seu meio, o condenado cumpre seus deveres, suas obrigações sociais, respeita os valores ali cultivados, convive harmoniosamente com seus pares, tal circunstância lhe será favorável, militará em seu favor, beneficiando-o com pena-base próxima do mínimo. Se, todavia, o condenado não se ajusta às regras de sua comunidade – é por ela considerado um revoltado –, se a ela se opõe, se não a respeita, se é rejeitado, por suas atitudes, por seus concidadãos, então terá um comportamento social desajustado a seu meio, o que importará em considerar a circunstância desfavorável, tendente a autorizar o afastamento da pena do grau mínimo? Essa é outra circunstância que nada tem a ver com o fato criminoso praticado pelo agente e que diz respeito exclusivamente a seu passado anterior ao crime e à sentença. Tanto quanto os antecedentes, essa circunstância colide com o princípio da culpabilidade, e só pode ser examinada do ponto de vista positivo. Se o condenado tiver conduta social harmônica, ajustada a seu meio, será beneficiado por isso, mas, do contrário, a circunstância não deve ser levada em consideração no momento da fixação da pena, pois que representaria o julgamento do homem pelo que ele é, e não do homem pelo que ele fez.

17.3.4

Personalidade

Aqui, outra circunstância que não tem relação direta com o fato praticado, a personalidade, característica interna do homem, é incluída entre as circunstâncias judiciais. Deve o juiz, a teor do art. 59, considerá-la no momento da fixação da penabase? MIRABETE diz que, “quanto à personalidade, registram-se as qualidades morais, a boa ou má índole, o sentido moral do criminoso, bem como sua agressividade e o antagonismo com a ordem social intrínseco a seu comportamento”3.

3

Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. v. 1, p. 277.


Aplicação da Pena - 11 Para DAMÁSIO E. DE JESUS, é o retrato psíquico do delinqüente, incluindo a periculosidade4. Ora, a personalidade não é um conceito jurídico, mas do âmbito de outras ciências – Psicologia, Psiquiatria, Antropologia –, e deve ser entendida como um complexo de características individuais próprias, adquiridas, que determinam ou influenciam o comportamento do sujeito. Considerá-la no momento da fixação da pena é considerar o homem, enquanto ser, e não o fato por ele praticado. Se, como já se observou, o elemento que fundamenta e limita a pena é a culpabilidade, e se essa é a reprovabilidade do comportamento, de todo óbvio que qualquer conduta é determinada também pela personalidade do homem. Por exemplo: um homem agressivo, que reage ao primeiro impulso, e agride um bem jurídico, tendo plena consciência da proibição, e não se tendo contido, podendo plenamente fazê-lo, será culpado em grau elevado, pelo que realizou e não exatamente por ser dotado de personalidade desequilibrada, violenta. Inegável, entretanto, que, quando o juiz examina a culpabilidade, estará examinando implicitamente a personalidade do agente. Não poderá fazê-lo outra vez, isoladamente, o que seria um verdadeiro bis in idem. O exame da personalidade, de outro lado, não pode ser feito a contento pelo juiz, no âmbito restrito do processo penal, sem o concurso de especialistas – psiquiatras, psicólogos etc. O magistrado não é formado e preparado para o exame aprofundado de características psíquicas do homem, e permitir-lhe exame apenas superficial, para um desiderato tão grave – perda da liberdade –, seria de uma leviandade inaceitável num ordenamento jurídico democrático e sério. Facultar ao juiz a consideração sobre a personalidade do condenado importa em conceder ao julgador um poder quase divino, de invadir toda a alma do indivíduo, para julgá-la e aplicar-lhe pena pelo que ela é, não pelo que ele, homem, fez. Por isso, ao fixar a pena-base, deve o juiz limitar-se – quanto às circunstâncias judiciais do agente – a examinar em profundidade o grau da culpabilidade – conceito jurídico – do condenado, não se detendo em exames superficiais, incompletos, para os quais nem está preparado, dos antecedentes, da conduta social e da personalidade. Essas circunstâncias, vale repetir, desde que positivas, devem ser levadas em conta no sentido de conduzir a fixação de uma menor pena-base, mais próxima do grau mínimo. Se negativas, não poderão fazer a pena-base distanciar-se do mínimo. 4

Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 484.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles A doutrina e a jurisprudência não têm tratado essa questão com o cuidado que ela exige. Talvez a insuficiente compreensão da culpabilidade – enquanto juízo de reprovação, puramente normativo – por grande parte dos operadores do direito penal tenha levado a que, na prática, se limitem os juízes, quando da fixação da pena-base, a analisar, isoladamente, cada uma das circunstâncias pessoais – antecedentes, conduta social e personalidade – referindo-se aos fatores conhecidos, e, em razão deles, fixando a pena-base, deixando de, como deve ser, aprofundar o exame da culpabilidade, para encontrar seu grau. Talvez seja mesmo, mais fácil, para o juiz, ao fixar a pena, verificar dois ou três fatos antecedentes, uma notícia de mau comportamento social, ou lembrar-se da atitude agressiva do acusado no interrogatório, para encontrar o quantum da pena. Até porque analisar o grau da reprovação – e, principalmente, fundamentar a opção – exige maior atividade intelectual, principalmente na formulação das idéias e em sua transposição para o papel. Essas dificuldades, todavia, não podem autorizar a inexistência de qualquer discussão a esse respeito, e tampouco impedir a busca de sua superação.

17.3.5

Motivos

Os motivos do crime, sim, devem ser considerados, na fixação da pena, e devem ser compreendidos não como um fator integrado na culpabilidade, e tampouco como o grau de culpa ou intensidade do dolo, de que tratava o antigo art. 42 do Código Penal de 1940. O homem, consciente das leis da natureza, capaz de prever os acontecimentos, e de dirigir sua atividade no rumo de alcançar esse ou aquele resultado, age, sempre, com uma finalidade. O fim da conduta, já se disse, pode ser exatamente alcançar o resultado proibido, que lesa o bem jurídico penalmente protegido. O dolo, já se explicou, é um dos elementos do fato típico, de modo que examiná-lo é verificar a existência da própria tipicidade do fato. A análise do comportamento negligente, igualmente, faz parte da valoração acerca do fato típico. No momento da fixação da pena-base, tais etapas já terão sido superadas, pois o juiz já terá concluído pela existência de um fato típico, ilícito e culpável. Trata-se, aqui, de fixar a pena-base; por isso, o exame dos motivos não se confunde com o exame do dolo ou da culpa, em sentido estrito, e tampouco de outros elementos subjetivos de


Aplicação da Pena - 13 alguns tipos, qualificadores ou privilegiadores (“por motivo fútil”, “por motivo de relevante valor moral ou social”), nem dos motivos que se encontram descritos nos arts. 61 e 65 do Código Penal, que tratam das circunstâncias agravantes e atenuantes, pois que serão considerados na segunda etapa da aplicação da pena. Igualmente, não se cuidará dos motivos que implicam causa de diminuição ou de aumento da pena, objeto da terceira fase. Nesse primeiro momento, os motivos que devem ser analisados dizem respeito aos antecedentes causais psicológicos que norteiam o comportamento do sujeito. Os motivos podem qualificar a própria conduta, no sentido positivo ou negativo, vale dizer, no sentido reprovador ou enobrecedor. Às vezes, o motivo não se ajusta perfeitamente a um elemento subjetivo privilegiador, nem a uma circunstância atenuante, mas, ainda assim, constitui-se em uma circunstância que atua em benefício do condenado. Por exemplo: João matou Fausto, porque este, ex-namorado de sua filha, enviou – sem nenhuma intenção de ofender – um convite de seu casamento com a rival para a ex-namorada, magoando-a, todavia, profundamente. Diante da tristeza da filha, o pai não relutou e matou o exnamorado, antes de seu casamento. A motivação do pai não pode ser considerada fútil, insignificante, diante do sofrimento de sua filha. Não pode, igualmente, ser considerada de relevante valor moral, nem social. Da mesma forma, podemos concluir que estamos diante de um homicídio simples, pois nem fora cometido sob influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima, nem por motivo fútil. O motivo do crime – reagir ao sofrimento da própria filha –, se não qualifica, não privilegia, nem justifica a conduta do pai, haverá de ser considerado em seu favor no momento da fixação da pena-base, ainda porque não poderá ser compreendido como atenuante, na segunda etapa. Em outras oportunidades, o motivo que leva alguém a praticar um crime não se ajusta, exatamente, a uma circunstância qualificadora do tipo, nem a uma agravante da pena, e, ainda assim, merece ser considerado em prejuízo do condenado. Um motivo, às vezes, não atinge a qualidade da torpeza a que se refere o inciso I do § 2º do art. 121 do Código Penal, causando repugnância, mas, mesmo assim, merece ser desvalorizado, em menor grau que o da qualificadora. A vingança, por exemplo, entende a jurisprudência, não é, por si só, circunstância que torna torpe a motivação do agente. Em outras palavras, não é qualquer vingança que deve ser considerada torpe.


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles Vinganças há que, apesar de não torpes, mas exatamente por serem vinganças, merecerão consideração em prejuízo do condenado, no momento da fixação da penabase. Em conclusão, a motivação do agente – os antecedentes psicológicos que impulsionam a vontade e que põem em movimento a conduta –, se merecedora de valoração negativa, militará em desfavor do condenado; caso contrário, o beneficiará, e deverá, em qualquer caso, ser considerada pelo juiz.

17.3.6 Circunstâncias do crime As circunstâncias do crime referidas no art. 59 não são as circunstâncias agravantes dos arts. 61 e 62, nem as atenuantes dos arts. 65 e 66, as quais serão examinadas na segunda fase da aplicação da pena, nem aquelas que importam em causas de aumento ou de diminuição, que serão objeto de consideração na terceira etapa, características de certas infrações penais, como “durante o repouso noturno”, “em lugar ermo”, “com o emprego de arma” etc. As circunstâncias de que trata o art. 59 são elementos acidentais outros que não integram os tipos, nem influem na agravação, atenuação, aumento ou diminuição expressamente previstos no Código Penal, mas que, nem por isso, deixam de importar para a busca da pena justa, necessária e suficiente, para reprovar e prevenir o crime. Se Antônio mata João, que sempre lhe devotara profunda amizade e respeito, essa é uma circunstância desfavorável ao condenado que o juiz deverá levar em conta no momento da aplicação da pena. Se, todavia, João, antes, traíra o antigo e fiel amigo, tal circunstância só poderá favorecer o condenado. ALBERTO SILVA FRANCO chama essas circunstâncias de “inominadas”; ensina que elas devem decorrer de uma avaliação discricionária do juiz e sugere que sejam “o lugar do crime, o tempo de sua duração, o relacionamento existente entre autor e vítima, a atitude assumida pelo delinqüente no decorrer da realização do fato criminoso etc.”5 De todo claro que se, no decorrer da execução do crime, o agente mostra profunda indiferença para com o resultado, essa é uma atitude interna que revela uma circunstância desfavorável. De outro lado, se ele, após desencadear o processo causal no rumo do resultado, se arrependeu e tentou evitá-lo, sem conseguir, tal circunstância,

5

Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 602.


Aplicação da Pena - 15 por si só, há de ser levada em conta para favorecê-lo no momento da fixação da pena. Enfim, é permitido ao juiz conhecer o fato, em sua integridade, e verificar quais as circunstâncias que, ainda que não definidas em lei, são de molde a beneficiar o condenado.

17.3.7

Conseqüências

Efeitos do fato típico, as conseqüências da conduta – nos crimes formais e de mera atividade – e as conseqüências do resultado – nos crimes materiais – devem ser consideradas pelo julgador, quando da fixação da pena-base. O resultado, é óbvio, não é conseqüência do crime, mas da conduta, e, como tal, é parte integrante do crime, e não seu efeito. Dois crimes de homicídio podem ter conseqüências absolutamente distintas, para terceiros e para a própria sociedade. O homicídio que tem como vítima o chefe de uma família de dez integrantes, quase todos menores de idade, que dependem do trabalho daquele, importa em conseqüências muito mais graves e danosas do que o homicídio perpetrado contra um andarilho na rodovia, que não tem ascendentes, nem descendentes. A morte de um cientista que trabalha na descoberta de uma importante vacina contra uma doença incurável, apesar de ser tão ilícita e injusta quanto a morte de qualquer recém-nascido, traz prejuízos indiscutivelmente maiores para a sociedade. As conseqüências de todo e qualquer crime são, por isso, graduáveis, e quando causadoras de grandes prejuízos aos homens ou à sociedade, importarão em reprimenda maior ao condenado.

17.3.8

Comportamento da vítima

Essa circunstância não é a que justifica a conduta do agente, pois, se o for, não terá havido o crime, mas apenas um fato típico lícito. A agressão injusta da vítima, repelida com o meio necessário, moderadamente, importa na exclusão do crime, por ser o fato lícito. Já o comportamento provocador da vítima que enseja a instalação de violenta emoção no íntimo do sujeito, de molde a inspirar seu comportamento, constitui circunstância privilegiadora, no homicídio – causa obrigatória de diminuição, a ser examinada na terceira etapa da aplicação da pena –, e atenuante em outros crimes, que


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles será examinada na segunda fase. Aqui, cuidamos de outras atitudes das vítimas que, sem justificar, nem desculpar o comportamento do agente, e tampouco diminuir ou atenuar a pena, contribuem, de algum modo, para a ocorrência do fato e, se assim for, funcionará em favor do condenado, quando da fixação da pena. Algumas pessoas, por seu modo de vida, agem, cotidianamente, de modo a colocar-se em situação de receber ataques a alguns de seus bens jurídicos. Certos indivíduos costumam freqüentar bares de muito movimento, e ali se colocam nas mais diferentes situações de colidência com outros freqüentadores, discutindo com eles, posicionando-se de modo diametralmente oposto ao do outro, de tal modo que, invariavelmente, instala-se situação de conflito que acaba, inevitavelmente, em desforço físico. É, por exemplo, o caso do torcedor de certo time de futebol que, derrotado no último jogo, não se conforma e parte para a discussão e a “briga”. Há pessoas que têm enorme facilidade para discutir assuntos absolutamente complexos e apaixonantes, e por isso mesmo extremamente perigosos: religião, futebol, política são temas que, mal discutidos, podem transformar-se em situações de desavenças e conflitos. Pessoas que se colocam sempre nessa posição são consideradas alimentadoras, ou, no mínimo, atraidoras de conflitos. Não que devam ser responsabilizadas pelos acontecimentos, mas que, com seu modo de agir, favorecem, possibilitam certos acontecimentos típicos. É certo que o agente não será desculpado, mas o que tiver realizado comportamento injusto – típico ilícito –, em circunstância na qual se pode verificar o comportamento da vítima como elemento incentivador, favorecedor, haverá de merecer maior compreensão do julgador e, de conseqüência, menor reprovação. A vítima do furto que se apresentava coberta de jóias, em atitude de ostentação, numa rua deserta e durante a noite, com seu comportamento está favorecendo a subtração. O mesmo se diga do que deixa seu veículo aberto ou destrancado, em estacionamento de estádio de futebol. A jovem que, em trajes sumários, desfila provocantemente diante de homens desconhecidos, em lugares pouco recomendáveis, está, de certa forma, despertando neles a cobiça e o desejo libidinoso. Se chega a ser agredida em sua liberdade sexual, terá, para o fato, colaborado, ainda que não intencionalmente. O agressor merecerá, em seu favor, a consideração dessa circunstância, no


Aplicação da Pena - 17 momento da fixação da pena-base.

17.3.9

Conclusão da análise das circunstâncias judiciais

A missão do juiz, ao fixar a pena-base, é das mais difíceis, em toda a atividade jurisdicional. Os juízes das varas cíveis, de família, das fazendas públicas, enfim, das varas distantes da área criminal, não se defrontam com dificuldades tão cruciais quanto os que encaram a necessidade de decidir sobre o futuro de pessoas tão diferentes. São negros e pardos, em sua maioria, são pobres quase todos, invariavelmente marginalizados. E o que é mais grave: quase sempre sem informações precisas, sem muitas provas e com muitas dúvidas. Nem sempre os processos contêm os elementos indispensáveis à análise dessas circunstâncias; por isso, a tarefa do juiz se torna ainda mais difícil. Ao analisar as circunstâncias judiciais, o juiz não pode valer-se de qualquer critério de uso da aritmética, para encontrar o grau médio, o submáximo e o submédio. Tal processo aritmético consistia em achar o grau médio somando-se o mínimo e o máximo, o submáximo, somando o máximo com o médio, e o submédio, adicionando ao médio o mínimo, dividindo-se cada resultado por dois. O quociente encontrado era o grau da pena que se desejava. Verificadas as circunstâncias judiciais do art. 59, o juiz deve proceder a um raciocínio claro, preciso, sob a orientação do princípio diretor da individualização da pena: necessidade e suficiência para prevenir e reprovar o crime, tendo como fundamento e limite a culpabilidade do condenado. Se concluir por ter havido comportamento muito culpável, se entender que do agente se podia, em grau elevado, exigir conduta diversa, e se concluir que ele agiu com plena consciência da ilicitude, ou com grande possibilidade de alcançá-la, a pena-base deverá distanciar-se do grau mínimo. À medida que as outras circunstâncias ali referidas – motivos, circunstâncias, conseqüências, comportamento da vítima – igualmente se revelarem desfavoráveis ao condenado, mais se distanciará a pena-base do grau mínimo. Se o juiz verificar que o condenado laborou com pequeno grau de culpabilidade – se a possibilidade de conhecer a ilicitude fosse pequena, ou se menor fosse a exigência de outra conduta –, então a pena será próxima do grau mínimo. Considerará igualmente as outras circunstâncias que, se favorecerem o agente, importarão em penabase igual ao grau mínimo.


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles Dificilmente haverá colidência entre a culpabilidade e as demais circunstâncias. Na maior parte das vezes, quando for elevada a culpabilidade, uma ou mais das circunstâncias estarão contra o agente. E quando a culpabilidade for pequena, a maior parte das circunstâncias igualmente será benéfica ao agente. Não deve o juiz elaborar duas colunas, de débito e crédito, com as circunstâncias do art. 59, somando-as e encontrando a média. Deve o juiz pensar: se há muita culpabilidade, a pena-base se afastará do grau mínimo, e à medida que outras circunstâncias prejudiquem o condenado, tal afastamento será maior, ou seja, a pena-base vai ser maior. Por exemplo: condenado que age com plena consciência da ilicitude e do qual se podia exigir, com grau elevado, um comportamento conforme o direito agiu com muita culpabilidade. Tudo indica a fixação de pena-base um pouco acima do grau mínimo. Se os motivos do crime forem igualmente reprováveis, será elevado o grau um pouco mais. Se as conseqüências forem ponderáveis, as circunstâncias inominadas não favorecerem, e a vítima não tiver se comportado de modo censurável, então a pena-base se distanciará ainda mais do grau mínimo. Dessa forma não há menor possibilidade de fixação de pena-base próxima do grau máximo. Somente com muita culpabilidade e com todas as circunstâncias do art. 59 militando contra o condenado é que deverá o juiz fixar pena-base bastante próxima do grau médio. Por uma razão muito simples: esta é apenas a primeira fase da aplicação da pena; somente podem ser admitidas penas próximas ou iguais ao grau máximo, após a conclusão das três fases, com a consideração das circunstâncias legais e das causas de aumento e diminuição da pena. Não seria harmônico o sistema legal da individualização da pena se, desde a primeira das três fases, já fosse possível a fixação de uma pena equivalente ao grau máximo. Se tal fosse possível, qual seria a razão de a lei mandar considerar uma segunda e ainda uma terceira etapas, em que outras circunstâncias devessem ser analisadas? Imaginar tal possibilidade seria concluir pela insuficiência da quantidade máxima de pena cominada. Se o limite máximo da cominação não há de ser ultrapassado, e se há um tempo máximo de duração do cumprimento das penas privativas de liberdade, não se pode aceitar a possibilidade de que o grau máximo seja alcançado apenas pela consideração das circunstâncias do art. 59. Se assim fosse possível, não haveria necessidade de realizar as duas etapas seguintes. Qualquer pena-base que se aproxime do grau máximo terá sido encontrada com


Aplicação da Pena - 19 total desrespeito às regras do art. 59. Indispensável que o juiz fundamente cada um dos passos dados no rumo da fixação da pena-base. Não basta que diga: “O réu era imputável, tinha consciência da ilicitude e dele se podia exigir conduta diversa. Os motivos do crime foram reprováveis, as conseqüências sérias, a vítima não se comportou de modo a facilitar sua ação; por isso, fixo a pena-base em ‘x’ anos, além do mínimo, mas aquém do máximo.” Tais assertivas não constituem fundamentação. O encontro da pena-base deve ser minuciosamente descrito, com a justificação do quantum encontrado, com base em elementos de prova que tenham sido carreados para os autos do processo. A fundamentação é indispensável para que o condenado saiba a razão por que recebeu aquela pena, em qualidade e quantidade, e possa, se considerá-la injusta, atacá-la por meio de recurso de apelação para a instância superior. Sem fundamentação, a sentença será nula.

17.4 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES 17.4.1 Questões gerais Fixada a pena-base, o juiz deverá passar para a segunda etapa da aplicação da pena, verificando a existência das circunstâncias agravantes e das circunstâncias atenuantes para, em razão delas, proceder a um processo de agravação ou de atenuação, elevando ou decrescendo a quantidade da pena-base. Se houver circunstâncias agravantes, a pena-base será acrescida; se houver atenuantes, reduzida. A lei não estabelece um quantum de agravação ou de atenuação, devendo ele ser estabelecido pelo juiz que, com prudente arbítrio, fundamentando sua decisão, determinará a quantidade da diminuição ou do aumento que fará incidir sobre a penabase. Questão da mais alta importância é saber: se o juiz tiver fixado a pena-base no grau mínimo, diante de uma circunstância atenuante, poderia fazer incidir uma diminuição, trazendo a pena para um patamar abaixo do grau mínimo? A doutrina e a jurisprudência dominantes são no sentido negativo de que as circunstâncias atenuantes não têm o poder de trazer a pena aquém do grau mínimo. Anote-se a opinião de ALBERTO SILVA FRANCO: “O entendimento de que o legislador de 84 permitiu ao juiz superar tais


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles limites encerra um sério perigo ao direito de liberdade do cidadão, pois, se, de um lado, autoriza que a pena, em virtude de atenuantes, possa ser estabelecida abaixo do mínimo, não exclui, de outro, a possibilidade de que, em razão de agravantes, seja determinada acima do máximo. Nessa situação, o princípio da legalidade da pena sofreria golpe mortal, e a liberdade do cidadão ficaria à mercê dos humores, dos preconceitos, das ideologias e dos ‘segundos códigos’ do magistrado. Além disso, atribui-se às agravantes e às atenuantes, que são circunstâncias acidentais, relevância punitiva maior do que a dos elementos da própria estrutura típica, porque, em relação a estes, o juiz está preso às balizas quantitativas determinadas em cada figura típica. Ademais, estabelece-se linha divisória inaceitável entre as circunstâncias legais, sem limites punitivos, e as causas de aumento e de diminuição, com limites determinados, emprestando-se àquelas uma importância maior do que a estas, o que não parece ser correto, nem ter sido a intenção do legislador. Por fim, a margem de deliberação demasiadamente ampla, deixada ao juiz, perturbaria o processo de individualização da pena que se pretendeu tornar, através do art. 68 do CP, o mais transparente possível e o mais livre de intercorrências subjetivas.”6 Igual é o entendimento de FERNANDO GALVÃO: “Inicialmente, cabe observar a inexistência de critérios legais que orientam o juiz quanto à dimensão da redução de pena decorrente da aplicação de uma atenuante. Enfrentando essa dificuldade, a doutrina e a jurisprudência predominantes posicionam-se no sentido de que uma circunstância atenuante somente poderá modificar a pena-base nos limites estabelecidos pela pena cominada ao tipo de injusto. Certamente, o posicionamento contrário leva à absurda possibilidade de, em face da consideração de determinada atenuante, o juiz diminuir a pena a zero.”7 No mesmo sentido são as lições de DAMÁSIO E. DE JESUS8, JULIO FABBRINI MIRABETE9 e HELENO FRAGOSO10.

6

Op. cit. p. 826.

7 Op. 8 Op. 9 Op.

cit. p. 195. cit. p. 501. cit. p. 290. cit. p. 339.

10 Op.


Aplicação da Pena - 21 O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 231: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.” Penso diferente: a presença de circunstâncias atenuantes pode fazer com que a pena seja reduzida a quantidade abaixo do grau mínimo, o que deve ocorrer pelo menos em todas as situações em que a pena-base, fixada com atenção às circunstâncias do art. 59 do Código Penal, tiver sido fixada no grau mínimo, e estiver presente pelo menos uma circunstância atenuante, sem o concurso de qualquer agravante. Vale dizer, na segunda etapa, o juiz, tendo fixado a pena-base no grau mínimo, verificando a existência de pelo menos uma circunstância atenuante, deverá incidir, sobre o quantum fixado na primeira etapa, uma diminuição, fazendo com que a pena-base seja reduzida aquém do grau mínimo. Por que tal não poderia ser feito? Por que a lei não permitiria tal operação? Ora, a lei não a proíbe. Não há nenhuma norma afirmando tal impossibilidade, e, se não há vedação expressa, não se pode aceitá-la. FERNANDO GALVÃO afirmou que não há critérios legais que orientem o juiz quanto à determinação do quantum atenuador. Não é verdade. O critério é o geral inserto no art. 59, que deve presidir todas as etapas da aplicação da pena: a necessidade e a suficiência, da quantidade, para a reprovação e prevenção do crime. O juiz atenuará, conforme seja o necessário e suficiente, dentro de seu prudente arbítrio. Só não há um critério expressa e especificamente determinado, como nas causas de diminuição, mas nem por isso se pode afirmar a inexistência de critério. Imaginemos a seguinte situação: num crime de estupro, o juiz fixou a pena-base em nove anos de reclusão, incorretamente, pois muito próxima do grau máximo. Presente uma circunstância atenuante, por exemplo, a da idade do agente (19 anos), o juiz pode aplicá-la, reduzindo a pena de quanto tempo: seis meses, um, dois, ou três anos? Qual a orientação legal para o juiz? Não há, é claro, um quantum máximo ou mínimo de redutor, mas, nem por isso, se pode afirmar inexistir qualquer critério. Este é o da necessidade e suficiência para a prevenção e reprovação do crime. Para os que entendem impossível uma atenuante fazer a pena ficar aquém do mínimo, o critério orientador do quantum da atenuação é o grau mínimo legal contido na norma penal incriminadora, daí que, se o juiz reduzisse aquela pena-base ao mínimo, de seis anos, não teria violado qualquer norma legal. Todavia, é claro que a simples idade do agente não pode fazer uma pena-base ser diminuída em um terço. A falta de critério fixo de determinação do redutor não significa ausência de


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles qualquer critério, que será sempre a necessidade e suficiência da pena, para a reprovação e prevenção do crime. Não pode prosperar o argumento de que, se possível a queda da pena-base abaixo do grau mínimo, poderia ocorrer o absurdo de uma pena igual a zero, porque a lei manda a pena ser atenuada, e não ser reduzida a zero. Atenuar significa abrandar, diminuir, e, é de todo muito óbvio, abrandar uma reprimenda jamais vai significar a eliminação da repreensão. As observações do sempre respeitado ALBERTO SILVA FRANCO, do mesmo modo, não podem ser aceitas. A primeira, de que, se aceitarmos a redução da pena abaixo do mínimo, pela presença de atenuante, deveremos, necessariamente, aceitar seu aumento além do máximo, diante de agravante, não faz sentido. Primeiramente, de ver que, como pensamos, nenhuma pena-base pode ser fixada acima do grau médio, sob pena de violação do art. 59. Assim, com pena-base próxima do grau médio, muito provavelmente jamais haveria tantas agravantes capazes de fazer a pena chegar próxima do grau máximo. Se, todavia, tal ocorresse, não haveria qualquer violação ao princípio da legalidade, até porque as normas dos arts. 61 e 62 são igualmente legais. Quanto ao perigo de ficar o condenado à mercê dos humores e preconceitos do magistrado, este não ocorre apenas na segunda etapa, mas em todo o processo, passível, é óbvio, de correção pela instância superior. Não importa qual tenha sido a vontade do legislador, importa a da lei, e a norma do art. 65 é precisa: “São circunstâncias que sempre atenuam a pena.” O advérbio sempre é induvidoso. Presente uma atenuante, ela sempre atenuará a pena. Sempre, em qualquer situação, em qualquer hipótese, mesmo que a pena-base tenha sido fixada em quantidade igual ao grau mínimo, a presença de uma circunstância descrita no art. 65 importará no abrandamento do grau da pena, em seu decréscimo, mesmo que seja necessário fazê-la transitar para uma quantidade abaixo da quantidade mínima. Essa é a vontade da norma do art. 65, e não há nenhuma norma que desautorize essa interpretação. Imaginemos a seguinte situação: dois partícipes de um mesmo crime, um de 19 anos, outro de 22 anos de idade, irmãos, condenados, recebem do juiz a mesma penabase, igual ao mínimo legal, porquanto teriam agido com reduzidíssima culpabilidade, e todas as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal militavam em seu favor. Se o juiz não puder reduzir a pena do primeiro, pela idade, apenas para não reduzi-la abaixo do mínimo, estará cometendo profunda injustiça com ele, e desobedecendo ao comando do art. 65, I, que manda o juiz sempre atenuar a pena do que tiver menos de


Aplicação da Pena - 23 21 anos na data do fato. Não terá havido individualização da pena, para o primeiro. MIGUEL LOEBMANN ensina: “O advérbio ‘sempre’ não deixa nenhuma margem de dúvida quanto ao seu significado” e “a não-redução abaixo do mínimo legal, em presença de atenuantes nos coloca à frente de um verdadeiro absurdo jurídico: a redução da pena na presença de atenuantes só se aplica aos réus que, pelas circunstâncias judiciais, tenham a sua pena-base fixada acima do mínimo legal, isto é, em face de sua culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos etc., apresentem maior reprovabilidade.”11 A observação é da mais alta importância. Um condenado merecedor de maior pena-base, por ter agido com maior culpabilidade, vai ser beneficiado com a redução da pena, pela presença de uma atenuante, ao passo que outro condenado que, por ter agido com menor culpabilidade, e, por isso, recebeu pena-base igual ao mínimo, não merecerá qualquer benefício, qualquer vantagem por ter agido sob o pálio de uma circunstância atenuante, por exemplo, por ter “procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências”. Essa atitude concreta desse condenado em nada o beneficiará, exatamente porque ele recebeu pena-base igual ao mínimo. Esse é, sim, um verdadeiro absurdo jurídico. Por essas razões, correto é o entendimento segundo o qual as circunstâncias atenuantes autorizam a redução da pena-base aquém do grau mínimo, desde, é evidente, que estejam presentes e, fundamentadamente, o juiz demonstre que, assim decidindo, o faz para encontrar a pena necessária e suficiente para reprovar e prevenir o crime. Examine-se agora cada uma das circunstâncias agravantes e, depois, as atenuantes.

17.4.2

Agravantes

As circunstâncias agravantes estão definidas nos arts. 61 e 62 do Código Penal. O art. 61 esclarece que tais circunstâncias sempre agravarão a pena, quando não constituírem ou qualificarem o crime. É dizer, só serão consideradas, nesta segunda

11

As circunstâncias atenuantes podem sim fazer descer a pena abaixo do mínimo legal, RT, nº 676, p. 391, 1992.


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles fase, circunstâncias que não integram os tipos legais de crime, como um de seus elementos, nem as que constituem uma de suas formas qualificadas ou agravadas. Igualmente, não se trata, nesta segunda etapa, de qualquer das circunstâncias já examinadas na primeira, da fixação da pena-base, quando se examinam as chamadas circunstâncias judiciais, nem daquelas constantes das causas de aumento que serão objeto de análise na terceira etapa da aplicação da pena. A seguir, as circunstâncias legais agravantes.

17.4.2.1

Reincidência

Esta é outra circunstância – tal qual os antecedentes, conduta social e personalidade – cuja inclusão como informadora da quantificação da pena merece profundas críticas, porquanto absolutamente estranha ao fato criminoso. Nem é certo referir-se a ela como “circunstância do crime”, porque se trata de uma particularidade que diz respeito exclusivamente ao agente e nenhuma relação tem com o fato. A razão de sua consideração pela lei, diz a doutrina tradicional, estaria em que o indivíduo, tendo sido condenado por um crime e posteriormente cometido outro, mereceria maior censura por não ter correspondido às exigências do direito. Raciocínio absolutamente inaceitável, como, igualmente incoerente aquele oposto, segundo o qual a reincidência deveria ser levada em favor do condenado que, por não ter-se redimido, revelaria, com isso, possuir menor capacidade de correção e, por isso, menor culpabilidade. Nem uma coisa, nem outra. A reincidência, por si só, não implica necessariamente inadaptação ao meio social, e tampouco falta de capacidade de adaptação que signifique menor capacidade de culpa, em sentido amplo. Além disso, diante do princípio da culpabilidade, e tratando-se o nosso de um direito penal do fato, não se pode aceitar que a reincidência conduza à necessidade de maior agravação da pena. Conquanto seja uma circunstância exclusivamente ligada ao indivíduo, a seu passado, e, assim, absolutamente independente do fato criminoso, não deve sequer ser considerada no momento da fixação da pena. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO não chega a esse extremo que defendemos, pugnando, todavia, por uma interpretação diferente da esposada pela doutrina dominante. Para o grande penalista, “só há uma forma de conciliar, no particular, à Constituição: conjugar os crimes.


Aplicação da Pena - 25 A reincidência somente poderá agravar a pena se entre os delitos houver conexão que recomende recrudescer a sanctio juris. (...) A reincidência, assim, não é imperativo de aumento, baseada em dados meramente objetivos. Afetaria até o princípio da individualização da pena. (...) A reincidência, assim, há de ser analisada pelo juiz; decidirá ser ou não, no caso em julgamento, causa de majoração da pena”.12 ALBERTO SILVA FRANCO considera duvidosa a constitucionalidade da agravante da reincidência, dizendo que “não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato criminoso que deu origem à primeira condenação não pode, depois, servir de fundamento a uma agravação obrigatória da pena, em relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita, num Estado Democrático de Direito, um Direito Penal atado ao tipo de autor (ser reincidente), o que constitui uma verdadeira e manifesta contradição lógica”.13 O Código, infelizmente, inclui a reincidência entre as circunstâncias que, por si sós, importam em majoração da pena-base, posição adotada e aceita pela doutrina e jurisprudência predominantes. O conceito de reincidência encontra-se no art. 63 do Código Penal: “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.” Só é reincidente o agente que, antes da prática do crime, já estivesse condenado definitivamente – com sentença transitada em julgado – por outro crime. A norma fala em condenação definitiva anterior por fato definido como crime, pelo que não se pode falar em reincidência se a condenação anterior tiver sido por contravenção penal. Não há critério legal para a fixação do quantum do aumento da pena-base em razão da reincidência, como, de resto, não o há para qualquer agravante ou atenuante, ficando ao prudente arbítrio do juiz. É nesse ponto que a agravação da pena, pela reincidência, gera as mais profundas injustiças. Imagine-se a seguinte situação: João foi condenado definitivamente, pelo crime do art. 348 do Código Penal – favorecimento pessoal – a uma pena de l (um) mês de detenção. Tempos depois,

12

Reincidência. Correio Braziliense, 13 maio 1996. Caderno Direito & Justiça.

13

Op. cit. p. 781.


26 – Direito Penal – Ney Moura Teles comete um homicídio simples, e, após fixar a pena-base em seis anos de reclusão, o juiz, verificando a reincidência, deve, segundo manda o art. 61, I, combinado com o art. 63, agravá-la. De quanto o fará? De seis meses ou de apenas um mês? Na primeira hipótese, a agravante significará tempo de pena maior do que a pena pelo crime anterior, e na segunda, tempo igual ao da condenação anterior, o que, em qualquer dos casos, constitui verdadeiro absurdo. Conforme determina o art. 64, I, do Código Penal, não se considerará o indivíduo reincidente se entre a data do cumprimento ou extinção da pena pelo crime anterior e a data do crime posterior tiver decorrido tempo superior a cinco anos. Nesse lapso temporal, será computado o tempo do período de prova de suspensão condicional da pena ou do livramento condicional, desde que não tenha havido revogação. Para efeito de reincidência, não se considerarão os crimes militares próprios e os crimes políticos (art. 64, II, CP). A reincidência, como posta no direito penal positivo, tem outros reflexos na situação do condenado: a) influi na determinação do regime de cumprimento da pena (art. 33, § 2º, b e c); b) impede a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos ou pela de multa (arts. 44, II, e 60, § 2º); c) proíbe a concessão da suspensão condicional da pena (sursis), se em crime doloso (art. 77, I); d) aumenta o prazo de cumprimento de pena como requisito para obtenção do livramento condicional (art. 83, II e V); e) é causa de revogação da reabilitação (art. 95); f) interrompe a prescrição (art. 117, VI); g) impede a incidência de causas de diminuição da pena (arts. 155, § 2º, 170 e 171, § 1º); h) aumenta o prazo prescricional da pretensão executória (art. 110).

17.4.2.2

Motivo fútil ou torpe

Fútil é o motivo ínfimo, mesquinho, vazio, leviano, insignificante, frívolo, extremamente desproporcionado, de somenos importância, revelador da intensa insensibilidade do agente para com o bem jurídico atacado. Tendo realizado o crime


Aplicação da Pena - 27 movido por uma motivação banal, além de ter agido com muita culpabilidade, merecerá, em razão dessa atitude interna para com o bem alheio, uma reprimenda agravada. É verdade, a futilidade do motivo importa na necessidade de maior reprovação do condenado, pois reflete um comportamento ditado por um elemento psíquico censurável em grau elevado. Duas questões particularmente interessantes, quanto à futilidade: (a) ciúme é um motivo fútil? (b) a embriaguez é compatível com a futilidade? Inclinaram-se, desde muito, a doutrina e a jurisprudência predominantes de nossos tribunais por entenderem que o sentimento de ciúmes não é fútil, porquanto um dos que perturbam de modo mais intenso o espírito do homem, levando-o a desatinos e a atitudes incontroláveis. É certo que é injusto, mas, pensamos, nem por isso frívolo ou insignificante. Há até quem veja no ciúme um motivo de relevante valor moral, posto que exteriorização do sentimento de amor, ou de bem-querer. Modernamente, entretanto, surgem decisões no sentido de que os ciúmes não decorrem do amor, mas de um atrasado sentimento de propriedade ou de posse sobre o outro – mulher ou homem, companheiro ou companheira, amante, cônjuge. Cremos que em nenhuma hipótese se pode considerar privilegiado, ou atenuado, o crime cometido exclusivamente por ciúmes, que é, verdadeiramente, um sentimento que não há de ser cultivado, pois, efetivamente, reflete aquela idéia atrasada e retrógrada de dominação, de propriedade ou de posse sobre pessoa. Mas, nem por isso, se pode afirmá-lo fútil, frívolo, mesquinho. Se não é um motivo nobre, que deve ser levado em favor do agente, nem por isso há de ser considerado insignificante, pois que, apesar de criticável, não perde sua qualidade, sua determinação psíquica que, mesmo inaceitável nos tempos modernos, é fruto de longos e longos anos de concepção utilitarista do relacionamento entre homem e mulher. Dividem-se os estudiosos do direito e a jurisprudência entre os que entendem compatível o estado de embriaguez do agente e a futilidade do motivo, e os que demonstram sua absoluta incompatibilidade. Não se pode, optar, a priori, por uma ou por outra posição. Tanto será possível agente embriagado cometer crime por motivo fútil, quanto, em razão da embriaguez, não poder, em face da perturbação mental, formular juízo de proporção entre o motivo e a conduta. É preciso, em cada caso, verificar o grau da embriaguez e as outras razões que levaram o agente ao cometimento do fato, para se concluir se era possível a convivência entre o estado de embriaguez e a motivação, fútil ou não.


28 – Direito Penal – Ney Moura Teles Não se podem igualmente considerar fúteis as agressões decorrentes de conflitos em razão de valores monetários, dinheiro, bens, propriedade, e tampouco aqueles relativos a sentimentos de paixão, especialmente decorrentes de separações judiciais. Já torpe é o motivo repugnante, imoral, abjeto, desprezível, vil, e que ofende a nobreza do espírito do homem e a moralidade das pessoas. O Código Penal, ao definir o primeiro dos homicídios qualificados, equipara o motivo torpe à paga ou promessa de recompensa. Com efeito, cometer um homicídio determinado por um pagamento, ou pela oferta de qualquer promessa, é de uma torpeza inominável, ensejando profunda e incontida revolta no espírito da maioria dos homens. Esse homicida revela profundo desprezo pela vida humana, privilegiando valores monetários ou econômicos. Muita discussão existe sobre a possibilidade de um crime ser cometido a um só tempo por motivo torpe e, ao mesmo tempo, fútil. De modo geral, a maior parte dos motivos fúteis, insignificantes, não se apresenta simultaneamente com um caráter de torpeza, mas nada impede a compatibilidade, bastando lembrar a hipótese de alguém cometer um homicídio, mediante paga, e portanto torpe, encomendado por um motivo fútil. Vingança não é sinônimo de torpeza, até porque pode haver crime cometido por vingança, e, ao mesmo tempo, por um motivo razoável, e, até mesmo, de relevante valor moral ou social. Basta lembrar a hipótese do homicídio cometido contra o estuprador, encomendado pelo pai da vítima de violência sexual. Tanto o motivo fútil, quanto o motivo torpe são circunstâncias qualificadoras do homicídio, daí que, se reconhecidas ao nível do tipo, não serão consideradas na aplicação da pena, pois o contrário seria bis in idem intolerável.

17.4.2.3

Finalidade de facilitar ou assegurar outro crime

Também é agravante da pena a finalidade de facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade, ou a vantagem de outro crime. Para Aníbal Bruno, essa é uma modalidade de torpeza, pois estaríamos diante de um agente que, após cometer um crime, ou prestes a cometê-lo, não reluta em cometer outro, para melhor possibilitar a vantagem, a impunidade, a ocultação e, até mesmo, a conclusão do outro crime. Não é necessário que o outro crime seja executado pelo agente do crime-meio, bastando a conexão teleológica de um crime, vale dizer, o elemento subjetivo finalístico


Aplicação da Pena - 29 consistente na obtenção de facilidade para a execução do outro crime. Por exemplo, João furta um veículo, a fim de com ele executar um assalto a mão-armada, um roubo num banco. O primeiro crime, furto, é cometido com o fim de facilitar a execução de um roubo. Supondo que o roubo seja apenas tentado, ou, executado, dele o agente do crime-meio não venha a obter qualquer vantagem, ou, ainda, venha a ser realizado por outro agente, mesmo assim a pena do crime de furto, provando-se a conexão teleológica, deverá ser agravada na forma do art. 61, II, b, do Código Penal. Se o crime-fim se consuma, ou se é apenas tentado, somente será agravada a pena do crime-meio. No homicídio, esta circunstância é qualificadora e não agravante.

17.4.2.4

Recursos que dificultam ou impossibilitam a defesa do

ofendido Todos os crimes cometidos à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou com a utilização de qualquer outro recurso que torne mais difícil ou, até mesmo, impossibilite qualquer defesa do ofendido, merecerão maior reprimenda penal. Em qualquer dessas hipóteses, o comportamento do agente é merecedor de resposta penal mais severa em face do uso de meio que diminua ou elimine a capacidade de vigilância e, de conseqüência, de reação da vítima, colocando-a em situação inferiorizada, o que facilita enormemente a execução material do crime. É o que ocorre na traição e na emboscada, quando o agente, súbita ou sorrateiramente, coloca-se em posição de extrema vantagem. O mesmo ocorre quando o fato é cometido de “surpresa”, quando a vítima jamais esperava fosse o agente atingi-la. Inegável que tal conduta é fator de agravação da pena-base. Tanto quanto as agravantes anteriores, esta é qualificadora do homicídio, e só será considerada como tal uma única vez.

17.4.2.5

Meios insidiosos ou cruéis, ou dos quais resulta perigo

comum Do mesmo modo, a utilização de meios insidiosos ou cruéis, como veneno, fogo, explosivo ou tortura, ou dos quais possa resultar perigo comum, importa na agravação da pena.


30 – Direito Penal – Ney Moura Teles Meio cruel é o que impõe ao ofendido sofrimento maior do que o necessário para a execução do crime, é o sofrimento desnecessário. Insídia é a perfídia, o uso de estratagema, para ludibriar a vítima que não se apercebe do mal que vai lhe ocorrer, ou já está acontecendo, e, por isso, não esboça qualquer reação defensiva. O veneno pode ser, a um só tempo, insidioso, no primeiro momento à medida que dele e dos efeitos de sua ingestão não se apercebe a vítima, nada realizando no sentido de evitar-lhe as conseqüências, e cruel, no momento posterior, em que se instala profundo sofrimento físico e moral no ofendido que, ao descobrir-lhe a ingestão e antevendo as conseqüências, nada mais pode realizar, a não ser abreviar o sofrimento, pelo suicídio. A crueldade não está na reiteração, nem na quantidade de golpes, ferimentos, mas no excesso de sofrimento imposto à vitima. Também essa circunstância, no homicídio, é qualificadora do crime, e não agravante da pena.

17.4.2.6

Ascendente, descendente, irmão ou cônjuge

A qualidade do sujeito passivo é motivo de maior resposta penal. Trata-se de circunstância objetiva, reveladora de atitude extremamente insensível do agente, para com a preservação do respeito entre as relações com as pessoas mais íntimas, inclusive as que com ele guardam laços sangüíneos. Praticar o crime contra o próprio pai, ou contra a mãe, ou o filho, o irmão, ou o cônjuge é voltar-se contra as pessoas mais importantes na vida do agente, as mais benquistas, queridas, amigas, exatamente aquelas que, em tese, só deveriam receber gestos de amor, de paz, de solidariedade. Essa agravante não diz respeito ao fato em si, mas à qualidade do sujeito passivo, que, como tal, integra a relação jurídica que é o crime. Se é justa a agravação, em face da maior censurabilidade do comportamento praticado contra pessoas íntimas, estimadas, não se pode aplicá-la se o crime é cometido contra o cônjuge do qual o outro já se encontrava separado, ainda que tãosomente de fato, porquanto entre eles já não existiam relações cuja agressão autoriza a majoração da reprimenda. Por essa mesma razão, não se irá exigir, para a incidência da agravante, a existência de casamento civil, bastando que haja união livre entre os sujeitos do crime, concubinato, companheirismo, vida em comum, qualquer que seja o nome dado. Se a Carta Magna, no § 3º do art. 226, reconhece, para efeito de proteção estatal, como


Aplicação da Pena - 31 entidade familiar, a união estável entre homem e mulher, não há por que se recusar a incidência dessa agravante, pela simples razão da inexistência de casamento civil.

17.4.2.7

Abuso de autoridade, de relações domésticas, de coabitação

ou de hospitalidade ou com violência contra a mulher Em algumas relações de natureza privada, existe um poder de autoridade, como nos casos de tutela e curatela, bem como em organizações religiosas e civis, em que há hierarquia semelhante à que ocorre no âmbito do direito público. O abuso de autoridade referido na alínea f do inciso II do art. 61 é o exercício arbitrário, indevido, ilegítimo, desse poder de autoridade, por meio da força moral que decorre da posição do agente nessas relações privadas. Nas de natureza pública, tem incidência a alínea g do mesmo inciso II, objeto de nosso comentário da seção seguinte. Aqui, alcança-se o tutor, o curador, o dirigente religioso, o cardeal, o bispo, o pastor, o diretor do clube, em relação ao tutelado, ao curatelado, ao subordinado hierárquico na igreja e ao associado. Tais pessoas, pelo poder que desfrutam perante outras, se contra essas cometem esse ou aquele delito, devem merecer maior reprimenda, exatamente porque abusam do poder que detêm, aproveitando-se dele para cometer o crime. A maior resposta penal decorre da maior exigibilidade de conduta diversa que se faz a quem detém poder diante da vítima. O poder legítimo há de ser exercido de modo a não ser transformado em opressão, agressão, dominação, exploração. Entre os homens, exigem-se solidariedade, colaboração, amistosidade, e não agressão. A agravante aplica-se também nos casos em que o agente se prevalece de relações domésticas, da coabitação, bem como de hospitalidade. Relações domésticas são aquelas existentes no meio familiar, entre pais e filhos, irmãos, empregados domésticos e amigos que convivam no ambiente da família. A intimidade entre as pessoas conduz a maior confiança mútua, que produz comunhão de interesses no meio familiar, de modo que a prática de crime entre elas merece reprovação maior, também porque de cada um mais se exigirá comportamento conforme o direito. O mesmo ocorre na coabitação, que “significa a convivência em um mesmo espaço físico e pressupõe uma relação mais restrita e próxima do que as relações domésticas. Na verdade, nem todas as pessoas que freqüentam uma mesma casa residem ali. A coabitação é, assim, um estado de fato em que duas ou mais pessoas se acham reunidas para a vida em


32 – Direito Penal – Ney Moura Teles comum, no mesmo lugar, por qualquer tempo”14. Hospitalidade difere da coabitação pela temporariedade. É o que ocorre quando alguém recebe uma pessoa para um almoço, um jantar, um final de semana, um churrasco, um pernoite, férias etc. Existe a confiança, exigindo-se de ambos – convidado e anfitrião – comportamentos amistosos, nunca violações de normas penais. Por isso, impõe-se a agravação da pena para aquele que se prevalecer dessas relações para cometer um crime. A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, alterou a redação da alínea f do inciso II do art. 61 do Código Penal, para acrescentar a expressão “ou com violência contra a mulher, na forma da lei específica.” O acréscimo nada acrescentou ao preceito, uma vez que a referência à mulher já se encontrava alcançada pelo texto original.

17.4.2.8

Abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo,

ofício, ministério ou profissão O que se disse anteriormente ao abuso de poder nas relações privadas reitera-se aqui relativamente aos que exercem cargo público, ofício, ministério ou profissão. A primeira hipótese é daquele que comete o crime com abuso de poder inerente ao exercício de cargo público. Não se cuida dos crimes de funcionários públicos, já que essa é uma circunstância elementar aos crimes próprios, dos arts. 312 a 326 do Código Penal. Nesses casos, a agravante não incide, pois que, sendo a condição de funcionário público um elemento daqueles tipos, seria um inadmissível bis in idem. A agravação impõe-se quando o funcionário público prevalecer-se de sua condição, para a prática de qualquer outro crime, furto, homicídio, lesão corporal, estelionato etc. Por exemplo, o policial que, com abuso do poder que detém, mata, rouba, enfim, comete qualquer crime. O mesmo se dará com o que violar dever inerente a ofício, ministério ou profissão. Por ofício, deve-se entender uma arte, um trabalho manual, o artesanato, o pequeno manufatureiro. Por ministério, entende-se apenas o ministério religioso de qualquer culto, o padre, o pastor. E por profissão, qualquer atividade de natureza intelectual, por exemplo, o médico, o advogado, o engenheiro, o contador etc.

14

GALVÃO, Fernando. Op. cit. p. 176.


Aplicação da Pena - 33 Exemplos de situações em que essa agravante vai incidir: (1) o ourives que, encarregado de fabricar o anel, com os brilhantes fornecidos pelo freguês, troca-os por pedras falsas, apropriando-se daqueles; (2) o padre ou o pastor que, tornando-se confidente da mulher, mantém conjunção carnal com ela mediante fraude; (3) o médico que pratica atos libidinosos com a cliente, sem sua permissão. A razão da agravação decorre da extremada confiança que a vítima deposita no agente, em razão do cargo, do ofício, do ministério e da profissão por ele exercido. Nesse caso, maior deve ser a resposta, em face do abuso cometido, pois que desses agentes se exige, com maior intensidade, comportamento conforme o direito.

17.4.2.9

Criança, maior de 60 anos, enfermo ou mulher grávida

Crianças, maiores de 60 anos, enfermos e mulheres grávidas, por serem mais frágeis, com menor capacidade de resistência e de defesa, merecem maior proteção do Direito Penal; daí que a agressão a seus bens jurídicos mais importantes merecerá, só por sua condição físico-biológica, maior reprimenda penal. Criança, segundo determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, é a pessoa até 12 anos de idade incompletos. A Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, publicada no DOU de 3-10-2003, com vigência 90 dias após a publicação, deu nova redação à alínea h do inciso II do art. 61 do Código Penal, substituindo a expressão “idoso”, por “maior de 60 (sessenta) anos”, dispensando-se, a partir daí, qualquer consideração acerca do vigor físico da vítima. Assim, ainda que ela seja fisicamente robusta, mas tendo 61 anos de idade, incidirá a agravante. Enfermo é a pessoa acometida de moléstia que lhe altere a saúde física ou mental, tornando-a deficiente, temporária ou permanentemente. Não será qualquer doença, moléstia, enfermidade, que autorizará a agravação da pena, mas apenas aquela que conduzir o agente a uma situação de clara superioridade de forças. Não se agravará a pena do que matar alguém portador de câncer, ainda que em estágio avançado, se a doença não tiver ainda afetado as condições e a aparência física da vítima, nem era do conhecimento do agente. Necessário que este se aproveite da condição de enfermidade da vítima, para mais facilmente realizar o crime. A Lei nº 9.318, de 5-12-1996, alterou a alínea h do art. 61 do Código Penal, para incluir a expressão mulher grávida, suprindo, assim, uma omissão do sistema anterior. Importante a inovação, já que a grávida também oferece menor capacidade de


34 – Direito Penal – Ney Moura Teles resistência a seu agressor. Maior deve ser a reprovação de quem comete crime contra vítima com capacidade de resistência ou defesa indiscutivelmente inferior.

17.4.2.10

Ofendido sob imediata proteção da autoridade

Todos nós, cidadãos, estamos sob a proteção das autoridades, a quem o Estado incumbe o dever de proteger todos os bens jurídicos. Aqui se trata de uma agravação da pena se a vítima estiver sob proteção imediata, vale dizer, direta, próxima da autoridade pública. O crime praticado contra o preso, o submetido à medida de segurança ou socioeducativa, a criança ou o adolescente conduzido por um policial, a testemunha protegida, enfim, toda e qualquer pessoa que estiver diretamente sob a proteção de qualquer agente estatal, será reprovado de modo mais severo, exatamente pela maior reprovabilidade do comportamento daquele que, extremamente audacioso, não se detém nem diante da presença do Estado que protege a vítima, e prossegue em seu desiderato, violando a norma penal.

17.4.2.11

Incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade

pública, ou desgraça particular do ofendido Em algumas situações concretas da vida, as pessoas atravessam enormes dificuldades, exigindo-se, de todos os seus semelhantes, os cidadãos, atitudes solidárias, de modo a receber apoio, moral, material, enfim, colaboração para a superação daquelas situações indesejáveis. É o que acontece nos momentos de calamidade pública, nos momentos em que irrompem os incêndios, as inundações, os naufrágios, enfim, situações em que as pessoas se encontram diante das chamadas “desgraças”. Tais momentos, essas situações, por suas características próprias, impõem solidariedade entre os homens, de modo que aquele que comete crimes contra pessoas que passam por tais dificuldades revela insensibilidade altamente reprovável, para alguns até mesmo um desvio de personalidade conhecido por sadismo, ou perversão, razão da necessidade da agravação da pena.

17.4.2.12

Embriaguez preordenada


Aplicação da Pena - 35 No Capítulo 11 deste manual, abordou-se a actio libera in causa, oportunidade em que se mostrou que a culpabilidade daquele que comete crime em estado de embriaguez completa constitui verdadeira e indesejável responsabilidade objetiva. Nessas hipóteses, o agente realiza o fato típico sem nenhuma consciência do fato ou da ilicitude, não podendo alcançar tal consciência. Aqui, manda a lei agravar a pena, se ele se embriaga com a intenção deliberada de, no estado de ebriez, realizar o procedimento típico. Se essa norma busca conferir maior proteção aos bens jurídicos, nem por isso deixa de constituir grave violação ao princípio da culpabilidade, já que significa punir quem não sabe, nem podia saber, o que realiza. A solução é a tipificação da ação material de se embriagar, que deverá ser punida mais rigorosamente se o agente o fizer com o fim de cometer determinado crime. Por enquanto, a embriaguez deliberada com o fim de animar-se ou desinibir-se, encontrando coragem ou eliminando timidez ou temor para cometer o crime, constitui circunstância agravante, indispensável prova robusta de que o agente se embriagou com esse objetivo.

17.4.2.13

No concurso de pessoas

Dispõe o art. 62 do Código Penal que, no caso de concurso de pessoas, seja nas hipóteses de co-autoria, seja nas de participação, a pena será agravada para o agente que tiver: a) promovido ou organizado a cooperação no crime, ou dirigido os demais concorrentes; b) coagido ou induzido algum deles a executar o procedimento típico; c) instigado ou determinado alguém sujeito a sua autoridade, ou algum inimputável ou impunível, a cometer o fato típico. A primeira das hipóteses diz respeito à autoria intelectual do crime, à qual vai corresponder agravação da pena. O chefe, o organizador, o líder, aquele que organiza, planeja, enfim, dirige a atividade criminosa de outras pessoas, terá sua pena agravada. A segunda é a da coação resistível, física ou moral. É de todo claro que não se trata da coação irresistível, pois na coação física absoluta o coagido nem realiza conduta, e na coação moral irresistível, o coagido terá


36 – Direito Penal – Ney Moura Teles certamente se conduzido sem qualquer culpabilidade, devendo, por conseguinte, ser absolvido e indenizado. Nesses dois casos, o coator responderá pelo crime realizado com a interveniência do coagido, e, além disso, pelo crime de constrangimento ilegal, de modo que, se se fizer incidir a agravante, estaríamos diante de inaceitável bis in idem. Essa agravante refere-se àquela coação a que o sujeito podia resistir, desde que tivesse exercido pelo menos influência positiva na consecução do crime pelo coagido. Nesses casos, o autor da coação responderá com pena agravada. Também terá pena agravada aquele que tiver induzido outrem a executar materialmente o crime. Por indução entende-se a implantação, na mente de alguém, da idéia de cometer o delito, o que pressupõe sua inexistência anterior. Vale dizer, o indutor faz surgir, na cabeça do outro, a idéia de delinqüir, quando nem lhe passava esse pensamento. Outra hipótese de agravação é a da instigação ou determinação dirigida à pessoa subordinada, ainda que a relação hierárquica seja de natureza privada, à pessoa inimputável ou ao impunível. É outra modalidade de autoria intelectual, com a diferença de que existe a relação de autoridade, pública ou privada, entre quem instiga ou determina e o que comete o fato, ou este é inimputável ou impunível. Instigar é incentivar, reforçar na mente alheia o propósito de comportar-se de determinada maneira. Determinar é impor essa mesma conduta. Finalmente, repete-se a agravação para o que tiver participado do crime, mediante paga ou promessa de recompensa, torpeza à qual já nos referimos. As agravantes somente incidem no caso de prática de crimes dolosos. Parte da doutrina e da jurisprudência admite a possibilidade da agravação, nos crimes culposos, apenas pela presença da reincidência, com o que, como é de todo óbvio, não se pode de nenhum modo concordar.

17.4.3

Atenuantes

As circunstâncias atenuantes estão enumeradas nos arts. 65 e 66 do Código Penal. Incidente uma delas, impõe-se a diminuição da pena aplicada, em quantidade que o juiz determinar, conforme entenda necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Não há, como já se disse, determinação legal sobre o quantum da atenuação, e, como entendemos, pode ser a pena fixada abaixo do grau mínimo. Analisamos, a seguir, as circunstâncias legais atenuantes.


Aplicação da Pena - 37

17.4.3.1

Menor de 21 anos e maior de 70 anos

O agente que tiver praticado crime quando tinha idade entre 18 e 21 anos, exatamente por se encontrar naquela fase transitória entre a menoridade penal, a inimputabilidade, e a maturidade, a plena capacidade, necessita de menor reprovação, em face de sua menor capacidade de discernimento. Essa é a razão pela qual a lei manda que a pena seja atenuada, se o agente, no momento da conduta, tinha menos de 21 anos de idade. Algumas vozes levantam-se, aqui e ali, tanto contra a menoridade penal até os 18 anos, quanto contra essa atenuante do art. 65, I, do Código Penal, brandindo com a norma constitucional do art. 14, § 1º, II, c, que faculta ao menor de 18 anos e maior de 16 o alistamento eleitoral e o voto. Afirmam que, ao permitir o voto ao jovem de 16 anos, a Carta Magna manifesta o entendimento de que, nessa idade, dispõe ele de capacidade de discernimento. Se a mesma Constituição que permite ao adolescente maior de 16 anos o exercício do direito de voto considera-o inimputável penalmente (art. 228), só podemos compreender a concessão daquela faculdade como incentivo ao exercício da cidadania, e não como definição de capacidade de compreensão da ilicitude. Nem se venha, ademais, argumentar com o crescimento da delinqüência juvenil, apontando para a necessidade de diminuir o limite da menoridade penal e eliminar essa atenuante, pois que o Direito Penal não é, nem será jamais, instrumento eficaz de combate da criminalidade ou da marginalidade, nem o purificador das almas, educador dos homens, aperfeiçoador das personalidades, mas tão-somente o protetor de bens jurídicos. A tarefa de combate ao crime, de educação dos jovens, de eliminação da exploração é de toda a sociedade, por seus organismos vivos e democráticos, e não será um direito penal mais severo, com a menoridade penal reduzida, ou com a extinção dessa atenuante, que se irá resolver mais esse grave problema social brasileiro. A idade do condenado, entre 18 e 21 anos, é atenuante que não se afasta pela emancipação ou pelo casamento. A pena será, ainda, atenuada se o condenado tiver, na data da sentença, mais de 70 anos, tenha ou não condições físicas ou psíquicas debilitadas, pois o critério é objetivo. A razão, para a doutrina dominante, é de natureza humanitária, pois evitaria a privação da liberdade de alguém no fim da vida, o que seria extremamente doloroso.


38 – Direito Penal – Ney Moura Teles A atenuante é inspirada pelo princípio diretor da aplicação da pena: necessidade e suficiência, para reprovar e prevenir o crime. Ora, quanto mais idoso o condenado, mais próximo estará do final de sua vida. A necessidade de pena para alguém com mais de 70 anos é cada vez menor, em termos de prevenção, podendo-se mesmo chegar à conclusão de que é quase nenhuma, quanto mais velho o agente. Imagine-se um condenado a pena de 12 anos de reclusão – mínima para o homicídio qualificado – que tenha, no momento da sentença, 75 anos de idade. Dificilmente, cumprirá a pena; por isso, melhor será mesmo a aplicação de uma pena abaixo do mínimo, que, executada, poderá efetivamente cumprir sua função de reprovação e prevenção. A idade do condenado, além de atenuante da pena, vai influir na contagem dos prazos de prescrição, reduzindo-os de metade, como veremos adiante.

17.4.3.2

Desconhecimento da lei

Ignorância legis neminem excusat é o princípio por todos conhecido, segundo o qual ninguém pode eximir-se da responsabilidade penal sob a alegação de que não conhecia a lei. Vale dizer, ninguém será absolvido, desculpado, pelo fato de não ter conhecimento da prévia existência de uma lei; por isso, o art. 21 do Código Penal afirma que o desconhecimento da lei é inescusável. Esse princípio assenta-se sobre uma presunção absoluta do conhecimento da lei. Todos os cidadãos estariam obrigados a conhecer todas as leis, a partir do momento de sua publicação no órgão oficial, de modo que, vindo a infringir uma delas, por não ter conhecido seu mandamento, essa circunstância não lhe beneficiaria, de nada valendo tal alegação. Essa presunção absoluta, todavia, torna-se uma presunção de culpabilidade, que modernamente não se pode aceitar. A culpabilidade não pode ser presumida, mas deve restar evidenciada no momento da realização da conduta, pela possibilidade de conhecimento do injusto e pela exigibilidade de conduta diversa. Nos dias de hoje, principalmente, convivemos com verdadeiro e imenso cipoal de leis e normas, que diariamente se avolumam, cada qual mais complexa que a outra, de tal modo que é absolutamente impossível o conhecimento pleno de toda a legislação vigente no país. Raras são as pessoas, verdadeiros experts, que podem assegurar ter pleno conhecimento de todas as leis em vigor no país e, se pensarmos nos problemas acerca da interpretação das leis, chegaremos à conclusão de que já não se pode


Aplicação da Pena - 39 compreender o princípio como uma presunção absoluta, sob pena de se cometer profunda injustiça para com os indivíduos. Em determinadas circunstâncias, não se pode exigir de alguém o conhecimento total de certa norma jurídica, e, se esse conhecimento participa do processo de formação da consciência da ilicitude, a presunção do conhecimento da lei só poderá ser relativa. Assim, na situação concreta, o desconhecimento da lei pode, excepcional e inevitavelmente, conduzir à ignorância da ilicitude, ou à impossibilidade de conhecê-la, o que importará em exclusão ou diminuição da culpabilidade, conforme seja o erro invencível ou vencível. Noutras hipóteses, em que não se verificar a ausência ou diminuição da consciência da ilicitude, o desconhecimento da lei, se efetivamente demonstrado e se presente relação causal dele com o fato praticado, poderá atenuar a pena imposta ao condenado. Em conclusão, o desconhecimento da lei é, a princípio, e por si só, inescusável. Sendo elemento tributário da formação de um atuar em erro de proibição, inevitável ou evitável, haverá exclusão ou diminuição da culpabilidade. Ausente o erro de proibição, o desconhecimento da lei será apenas atenuante da pena a ser imposta ao agente.

17.4.3.3

Motivo de relevante valor social ou moral

Se o agente se tiver comportado sob inspiração de motivação relevante do ponto de vista social ou moral, a pena será igualmente atenuada. Valor socialmente relevante é o que, interessando a toda sociedade, se volta para o benefício de uma coletividade, da comunidade. De relembrar que tal motivo não justifica o fato típico, e tampouco desculpa o agente que o praticar, pelo que não se confunde com motivo justo ou desculpável. Mesmo havendo o crime, a circunstância de ter sido cometido sob a inspiração de um motivo socialmente relevante importará na atenuação da pena, em face exatamente de sua orientação em prol da sociedade. Assim, merecerá atenuação da pena aquele que cometer o crime de esbulho possessório – invade, com violência à pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório – a fim de no imóvel promover o assentamento de trabalhadores desempregados e a produção de alimentos destinados ao sustento desse grupo de marginalizados sociais. Valor moralmente relevante é o que, interessando a um ou mais indivíduos, ajusta-se razoavelmente a conceitos morais cultivados pela sociedade. Não é valor que


40 – Direito Penal – Ney Moura Teles justifica nem desculpa o crime, mas que, por sua consonância ou harmonia com a moralidade normal das pessoas, autoriza menor reprovação. Merece ter sua pena atenuada por esse motivo aquele que dolosamente causou lesões corporais no caluniador de seu velho e honrado pai. Essas atenuantes devem ser apreciadas segundo critérios objetivos, de acordo com a consciência da sociedade, com seus valores éticos, e não de acordo com particular compreensão do agente. Tratando-se de homicídio, de ver que essas atenuantes guardam proximidade com a causa de diminuição prevista no § 1º do art. 121, o chamado homicídio privilegiado. Ali, se o agente tiver cometido o crime “impelido por motivo de relevante valor social ou moral”, a pena será reduzida de um sexto a um terço. Há diferença entre a causa de diminuição – objeto da terceira etapa da aplicação da pena – e a atenuante do art. 65, III, a. Na primeira, é necessário que o agente tenha sido impelido, é dizer, impulsionado, premido, dominado, por um motivo de relevante valor moral ou social, ao passo que na atenuante basta que tenha praticado o fato inspirado por tal motivo. A diferença está em que, na circunstância privilegiadora, o valor, moral ou social, exerce preponderante papel na determinação da vontade do sujeito, ao passo que na atenuante o grau de eficiência é menor. Por essa razão, pode ocorrer um homicídio cometido sem que o agente tenha sido impelido por um motivo relevante, mas que mereça ter sua pena atenuada, por ter sido praticado sob a inspiração do mesmo motivo relevante. Ou seja, o valor moral ou socialmente relevante terá exercido influência na formação da vontade do sujeito, não a ponto de impeli-lo, impulsioná-lo, empurrá-lo na direção da realização do tipo, mas apenas de instigá-lo ou induzi-lo, sugerindo-lhe a prática do fato. Seria, assim, diferença idêntica a que existiria entre resistir e não resistir a um impulso. Se a força do impulso for irresistível, incidirá a causa de diminuição; se resistível, presente apenas a atenuante. É óbvio que, no homicídio, se reconhecida a causa de diminuição, não se aplicará a atenuante, pois que uma mesma causa não pode servir duas vezes para minorar a reprimenda, tanto quanto não o pode para majorá-la.

17.4.3.4

Evitar ou minorar eficientemente as conseqüências do crime


Aplicação da Pena - 41 Consumado o crime ou só apenas tentada sua prática, tem lugar, imediatamente, a instalação de suas conseqüências, seus efeitos naturais e normais. Se o agente, logo em seguida ao crime, voluntariamente, comportar-se de modo a, pelo menos, obter a diminuição da gravidade das conseqüências, ou, se possível, evitar os efeitos de sua ação, e, evidentemente, se conseguir esse intento, merecerá menor reprimenda, mediante a atenuação da pena-base, porque nesse caso terá revelado um arrependimento concreto capaz de demonstrar seu maior senso de justiça e de humanidade, que impõem a necessidade de menor reprovação social. Essa é uma espécie de arrependimento – não o eficaz, do art. 15, Código Penal, em que o agente impede que o resultado ocorra, e que altera a tipicidade do fato, e algumas vezes até a exclui; nem o posterior, do art. 16, Código Penal, que é causa de diminuição da pena, e diz respeito apenas aos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, bem assim à reparação do dano antes do recebimento da queixa ou denúncia. Esse é o arrependimento que pode acontecer em todo e qualquer delito e também nas tentativas de crimes.

17.4.3.5

Reparação do dano

Essa atenuante do art. 65, III, b, parte final, não se confunde com a causa de diminuição do art. 16 do Código Penal, que trata do arrependimento posterior, por uma única razão: nesse, a reparação do dano deve ser promovida antes do recebimento da denúncia ou da queixa, ao passo que nessa atenuante a reparação do dano pode ser feita até o momento imediatamente anterior ao do julgamento do processo. Indispensável que a atitude do agente seja espontânea e que o dano seja integralmente reparado. A expressão antes do julgamento não quer dizer que só incidirá a atenuante se a reparação tiver sido feita antes da decisão do juiz de primeiro grau, pois que, se realizado posteriormente à sentença, o tribunal, ao conhecer do recurso, deverá promover a atenuação da pena.

17.4.3.6

Coação resistível e cumprimento de ordem

Já foi explicado, no Capítulo 11 deste manual, que, se o crime tiver sido cometido sob coação moral irresistível, ou em cumprimento de ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, estará ausente um dos elementos da culpabilidade. No primeiro caso, a exigibilidade de conduta diversa, e no segundo, a potencial consciência


42 – Direito Penal – Ney Moura Teles da ilicitude. O agente será absolvido, por não ser culpado. Se a coação moral for, todavia, resistível, ou se a ordem do superior hierárquico não for daquelas não manifestamente ilegais, o agente será culpado; todavia, o grau de censura poderá ser menor, incidindo, por isso, a atenuação da pena-base. Só poderá incidir a atenuante, se a coação, embora resistível, for suficientemente eficaz para exercer sobre o agente uma força que lhe diminua a capacidade de resistência. Examinando-se-lhe a conduta, verificará o juiz a possibilidade de exigir comportamento outro, mas deverá estar certo de que tal exigibilidade não é plena e total. Se o agente comete o crime em obediência a ordem ilegal do superior hierárquico, responderá pelo crime, porquanto se pode exigir-lhe a desobediência, mas, conquanto esteja sob a pressão psicológica do superior, pode-se compreender o comportamento do agente que merecerá menor reprimenda.

17.4.3.7

Violenta emoção

Em algumas situações, o agente realiza o crime influenciado por uma emoção violenta, resultante de um comportamento injusto da vítima. Não se pode confundir essa situação com aquela outra, definida no § 1º do art. 121, em que o homicídio é cometido sob o domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima, que é uma causa de diminuição da pena, objeto da terceira etapa da aplicação da pena, no caso específico do homicídio. Esta atenuante, que se aplica a todo e qualquer crime, difere da causa de diminuição, porque aqui, diferentemente, o agente realiza o fato influenciado pela violenta emoção, ao passo que lá sua vontade é dominada pela emoção. Ali, a vítima realiza uma provocação injusta, e aqui basta qualquer ato injusto. Além disso, naquela situação, a conduta do agente deve ser realizada logo após a provocação, e nessa atenuante não está presente o requisito da imediaticidade. Se, no homicídio, tiver incidido a causa de diminuição do § 1º do art. 121, configurando-se o privilégio, não poderá incidir a atenuante, pois que se consideraria duas vezes a mesma ou assemelhada circunstância, o que não se admite.

17.4.3.8

Confissão espontânea

No direito anterior, na Parte Geral do Código de 1940, só incidiria essa atenuante se o


Aplicação da Pena - 43 agente confessasse o crime cuja autoria fosse ignorada ou estivesse sendo atribuída a outra pessoa. Com a nova redação, dada pela Lei nº 7.209/84, é preciso que o agente confesse ser autor do fato, para incidir, obrigatoriamente, a atenuante, não importando tenha sido ele preso em flagrante, nem que haja provas robustas de autoria, muito menos que a confissão seja feita apenas perante o juiz. “Mas a confissão, só por si, não é suficiente. É necessário que seja espontânea, isto é, que a vontade do confitente seja determinada sem a intervenção de fatores externos. A confissão forçada ou induzida não serve para efeito de caracterização da minorante”15 porque a intenção da lei é estimular o agente a reconhecer seu comportamento, oferecendo-lhe a atenuante, como prêmio.

17.4.3.9

Multidão em tumulto

Se o crime tiver sido cometido sob a influência de multidão em tumulto não provocado pelo agente, é de ver que as condições determinantes do comportamento são diferentes das que, normalmente, atuam sobre a psique do homem, impondo-se, de conseqüência, tratamento diferente para o que, em tais circunstâncias, vier a delinqüir. É que a formação da vontade da pessoa, sob a influência do tumulto provocado por multidão em conflito, se dá sob a interferência de uma série de outros fatores externos que podem alterar, sensível ou pelo menos razoavelmente, a capacidade de entendimento ou de determinação do indivíduo, razão por que, em certas situações, não se pode exigir dele, como normalmente e na mesma intensidade, comportamento conforme o direito. Se é certo que o tumulto não justifica, nem desculpa, às vezes pode significar menor reprimenda penal, incidindo pois a atenuante.

17.4.3.10

Outra circunstância relevante

O art. 66 do Código Penal manda atenuar a pena “em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”.

15

FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 176.


44 – Direito Penal – Ney Moura Teles Essa inovação do legislador da reforma penal de 1984 constitui um dos mais importantes avanços no campo do Direito Penal da aplicação da pena, pois que torna o juiz mais do que um simples decodificador das normas positivas, transformando-o no verdadeiro operador do direito, com a responsabilidade de distribuir a justiça penal, reprovando e prevenindo o crime, dentro dos limites da suficiência e da necessidade. Imaginem a seguinte situação: determinado sujeito, condenado por certo crime, é portador do HIV, está em estado de saúde terminal e deverá, a princípio, receber uma pena-base de quatro anos de reclusão. Inexistente qualquer causa de diminuição da pena, esta seria, a princípio, a pena definitiva, mas o juiz pode considerar a situação do condenado, que é posterior ao crime, uma circunstância atenuante relevante, que poderá, tranqüilamente, fazer a pena ser atenuada em dois anos, podendo, após tal atenuação, o juiz suspender a execução da pena, na forma do art. 77, livrando o aidético do encarceramento e os outros presos do convívio com ele na prisão. Essa, aliás, é mais uma das razões para se admitir a possibilidade de que as atenuantes possam fazer a pena ser fixada aquém do mínimo legal. Para reconhecer uma circunstância atenuante inominada, o juiz poderá ainda levar em conta o grau de exigibilidade de conduta diversa e terá, sempre, como diretriz o princípio de aplicação da pena que lhe impõe verificar a necessidade e a suficiência para os fins de reprovação e prevenção do crime.

17.4.4

Concurso de agravantes e atenuantes

No momento da aplicação da pena, o juiz, depois de ter fixado a pena-base e verificado a existência das circunstâncias agravantes e atenuantes, depara-se, muitas vezes, com a presença de mais de uma dessas circunstâncias. Havendo duas circunstâncias agravantes, a pena será agravada duas vezes, uma para cada fator reconhecido, o mesmo se dando em relação às atenuantes, quando a pena será tantas vezes diminuída quantas forem as circunstâncias presentes. Noutras oportunidades, incidem uma agravante e uma atenuante, tornando mais complexa a tarefa do julgador. A solução desses problemas deve ser encontrada com atenção ao disposto no art. 67 do Código Penal: “No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da


Aplicação da Pena - 45 reincidência.” As circunstâncias são subjetivas e objetivas, devendo prevalecer, no caso de concurso, as primeiras, não se podendo esquecer que, segundo já defendido, circunstâncias que decorrem da personalidade e dos antecedentes do agente só podem ser compreendidas no sentido de favorecê-lo, nunca de conduzir à agravação da reprimenda. Por essa razão, a reincidência não pode preponderar sobre nenhuma circunstância atenuante. As atenuantes da motivação preponderam sobre todas as agravantes, e a menoridade, é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, por se tratar de circunstância relativa à personalidade do agente, preponderará sobre qualquer agravante, inclusive sobre a reincidência. Na fase de aplicação da pena, o juiz não pode utilizar raciocínio aritmético, por exemplo, assim: “há duas atenuantes, e duas agravantes, que se anulam, pelo que mantenho a pena-base”. Em qualquer das hipóteses de concurso de agravantes e atenuantes, haverá prevalência das circunstâncias subjetivas. Apenas na hipótese de não se caracterizar nenhuma dessas circunstâncias é que se manterá a pena-base. Em qualquer hipótese, a decisão do julgador deverá ser convincentemente motivada, sob pena de nulidade.

17.5 CAUSAS DE AUMENTO E DE DIMINUIÇÃO Vencida a segunda etapa da aplicação da pena, que é a consideração das circunstâncias legais atenuantes e agravantes, deve o juiz percorrer a terceira fase, consistente na análise das causas de aumento e das causas de diminuição de pena. Após atenuar ou agravar a pena-base, deve o julgador verificar se existem causas de aumento e de diminuição, procedendo, em seguida, à operação correspondente, nos limites fixados pela norma.

17.5.1

Causas de aumento

As chamadas causas de aumento são circunstâncias legais às quais corresponde a majoração da pena, em quantidade determinada, fixa ou variável, estabelecida na norma, encontrando-se tanto na parte geral, quanto na parte especial do Código Penal. Exemplo: “Art. 121, § 4º No homicídio culposo, a pena é aumentada de um terço, se o


46 – Direito Penal – Ney Moura Teles crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de um terço, se o crime é praticado contra menor de 14 (catorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.” Neste caso, a pena é aumentada de uma quantidade fixa. Outro exemplo: “Art. 157, § 2º A pena aumenta-se de um terço até metade: I – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma; II – se há o concurso de duas ou mais pessoas; III – se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância. IV - se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior; V - se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade.” Neste exemplo, o aumento é determinado em quantidade variável, observados os graus, mínimo e máximo. Como se vê, a lei define a circunstância, com todos os seus elementos, impondo o aumento da pena, ora numa quantidade fixa, ora variável, que incidirá sobre a quantidade da pena encontrada pelo juiz após a segunda fase da aplicação.

17.5.1.1

Da parte geral

Na parte geral do Código Penal, encontram-se definidas várias causas de aumento. No art. 29, § 2º, cuida-se do aumento da pena nos casos de cooperação dolosamente diversa, para o concorrente que, desejando crime menos grave do que o praticado pelo outro, poderia ter previsto o resultado mais grave. Sendo condenado, ser-lhe-á aplicada a pena do crime menos grave, que era o que desejava fosse realizado, aumentada de até metade. No Capítulo 8 deste manual, essa hipótese é tratada detalhadamente. Outra causa de aumento da parte geral encontra-se no § 1º do art. 60, e diz respeito à pena de multa: “A multa pode ser aumentada até o triplo, se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo.” Trata-se, como se vê, de uma causa de aumento determinada em quantidade


Aplicação da Pena - 47 fixa, o triplo, que poderá ser aplicada até mesmo sobre o grau máximo da cominação. Esse aumento se dará quando o juiz verificar que a pena cominada é insuficiente para alcançar os fins constantes da diretriz maior da aplicação da pena: suficiência e necessidade para reprovar e prevenir o crime. Ainda na parte geral, os arts. 70, 71, 73 e 74 mandam o juiz impor aumentos nas penas, mas, por se tratar de institutos da mais alta importância, concurso formal, crime continuado, aberratio ictus e aberratio delicti, serão estudados mais detalhadamente em páginas seguintes.

17.5.1.2

Da parte especial

Na parte especial do Código Penal, ao lado de cada tipo legal de crime, podem existir, e existem muitas, causas de aumento de pena. Após definir a conduta proibida, a lei manda aumentar a pena na presença das circunstâncias que descrever. O estudo detalhado de cada uma delas, com todos os seus elementos, será feito quando do estudo dos crimes em espécie, nos volumes II e III deste manual. Nesta oportunidade, é importante, a título ilustrativo, mencionar algumas causas de aumento da parte especial. No crime de violação do domicílio, tipificado no art. 150 do Código Penal, a pena será aumentada de um terço, se o fato tiver sido praticado por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades legais, ou, ainda, com abuso de poder (art. 150, § 2º, CP). No delito de furto, a pena será aumentada de um terço, se o fato tiver sido praticado durante o repouso noturno (art. 155, § 1º). No estelionato, o aumento de pena, também de um terço, incidirá na hipótese de o crime ter sido cometido em prejuízo de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência. Como se vê, a quantificação do aumento deverá ser feita, prudentemente, pelo julgador, que se orientará: (a) pelas circunstâncias judiciais do art. 59, observando-se as restrições feitas às de natureza pessoal; (b) pelas circunstâncias específicas de cada causa de aumento; e (c) pelo princípio diretor da aplicação da pena: a suficiência e a necessidade para reprovar e prevenir o crime.

17.5.2

Causas de diminuição


48 – Direito Penal – Ney Moura Teles As causas de diminuição são, também, circunstâncias definidas na lei, às quais, todavia, correspondem a diminuição da pena, em quantidade fixa ou variável, entre graus máximo e mínimo. Exemplo clássico é o do § 1º do art. 121 do Código Penal: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.” Como se vê, neste exemplo, a diminuição é determinada no intervalo entre um sexto e um terço da pena encontrada pelo julgador até a segunda etapa da aplicação da pena. As causas de diminuição, igualmente, estão definidas tanto na parte geral, quanto na parte especial do Código Penal.

17.5.2.1

Da parte geral

No parágrafo único do art. 14 do Código Penal, está escrita a regra geral da punibilidade das tentativas de crime, determinando que, se o procedimento típico não se tiver completado por circunstâncias alheias à vontade do agente, a pena será diminuída de um a dois terços. Outra causa de diminuição obrigatória é a hipótese do arrependimento posterior, definido no art. 16 do Código Penal: “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.” Os requisitos para esta diminuição são: (a) não ser o crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa; (b) a reparação do dano ou a restituição da coisa devem ser promovidas voluntariamente pelo agente e ter ocorrido antes do recebimento da inicial de acusação. Não será contemplado com essa causa de diminuição o agente do furto, cuja res furtiva tiver sido recuperada pela polícia ou pela própria vítima. Ocorrendo erro de proibição evitável – erro sobre a ilicitude do fato que poderia, com a devida cautela, ter sido evitado –, a pena será igualmente diminuída de um sexto a um terço, como manda o art. 21 do Código Penal. Trata-se de situação em que o agente age sem consciência da ilicitude, quando lhe era plenamente possível alcançar


Aplicação da Pena - 49 essa consciência. No § 2º do art. 24 do Código Penal, encontra-se outra causa obrigatória de diminuição da pena que se aplica nas hipóteses em que o agente, inicialmente, encontrava-se em estado de necessidade. “Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.” Cuida-se da hipótese em que, numa situação de perigo para um bem jurídico, o agente sacrifica outro bem de maior valor ou importância. Não incidirá, como é claro, a excludente da ilicitude definida no art. 24, porque não satisfeito o pressuposto da proporcionalidade que deve existir entre os bens em colisão, mas o grau de exigibilidade de conduta diversa é reduzido, em virtude do perigo para o bem afinal salvo, em detrimento do outro. É o que ocorre em certas situações em que o sujeito furta para se alimentar, em situação que não autoriza a exclusão da ilicitude pelo furto famélico, eis que poderia, nas circunstâncias, ter realizado outro comportamento, por exemplo, pedindo o alimento à vítima. Responderá pelo delito, porém, com a diminuição da pena. Outras duas causas de diminuição da parte geral que se assemelham são as contidas no parágrafo único do art. 26 e no § 2º do art. 28 do Código Penal, e que tratam da capacidade diminuída, respectivamente, por perturbação da saúde mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, e por embriaguez incompleta, proveniente de caso fortuito ou força maior. São aqueles estados intermediários entre a plena capacidade de discernimento e de determinação, e a ausência dessa capacidade, em que o agente, mesmo capaz, não o é em sua plenitude, razão por que se impõe menor reprimenda, com a obrigatória diminuição da pena. Finalmente, ao tratar do concurso de pessoas, dispõe o § 1º do art. 29 do Código Penal que “se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço”. Trata-se da menor eficiência causal da participação em crime alheio, que enseja menor reprovação em face da pequena significação do comportamento do partícipe. Relativamente às expressões pode e poderá, referindo-se à diminuição, o entendimento unânime é o de que a faculdade diz respeito à quantificação da redução, sendo, assim, dever do juiz operar a minoração da pena se estiverem presentes seus pressupostos, pois que se trata de direito subjetivo do condenado.

17.5.2.2

Da parte especial


50 – Direito Penal – Ney Moura Teles O estudo das causas de diminuição previstas na parte especial será feito, detalhadamente, quando da análise de cada crime em espécie nos

volumes II e III

deste manual. Nesta quadra, devem-se apenas mencionar, de modo sucinto e genérico, algumas causas de diminuição da parte especial. Além do homicídio (art. 121, § 1º) e da lesão corporal privilegiada (art. 129, § 4º) – cometidos por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima –, importa falar do furto, do estelionato e da receptação dolosa privilegiados. Como se vê, são todos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência, real ou moral contra a pessoa, sobre os quais vai incidir uma causa de diminuição, desde que, entre outras condições, o agente for primário, vale dizer, não reincidente. No caso de furto, se, além de primário o agente, for de pequeno valor a res furtiva, a pena pode ser diminuída de um a dois terços. O juiz poderá, em vez de diminuir a pena privativa de liberdade, aplicar somente a pena de multa (art. 155, § 2º). No estelionato e na receptação dolosa, o agente primário merecerá a redução da pena, de um a dois terços, se pequeno o prejuízo da vítima, facultado ao juiz, igualmente ao furto, aplicar apenas a multa (art. 171, § 1º). Em qualquer das hipóteses de causas de diminuição da pena, seja da parte geral, como da parte especial, quando o juiz determinar redução mínima, deverá, necessariamente, motivar circunstanciadamente a sua decisão, a fim de que o condenado possa saber por que não foi contemplado com a redução máxima. A exigência é inarredável, sob pena de nulidade da decisão. Os critérios para a determinação do quantum redutor são os mesmos do art. 59, as circunstâncias judiciais ali descritas, com as observações feitas acerca das de natureza pessoal – personalidade, antecedentes e conduta social – e, principalmente, a observância da diretriz superior da aplicação da pena: conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

17.5.3

Concurso de causas de aumento e de diminuição

Pode ocorrer a incidência, num mesmo fato, de mais de uma causa de diminuição, de mais de uma causa de aumento, bem assim de duas de aumento e uma de diminuição, ou de duas de diminuição e uma de aumento; é possível ainda que umas sejam da parte geral, outras da especial.


Aplicação da Pena - 51 Por exemplo, João, de 19 anos, tendo capacidade diminuída (art. 26, parágrafo único), realiza tentativa (art. 14, II, parágrafo único) de homicídio privilegiado (art. 121, § 1º), contra Marco, de 13 anos de idade (art. 121, § 4º). Na hipótese, haveria três causas de diminuição, duas da parte geral (tentativa e capacidade diminuída) e uma da parte especial (privilégio) e uma causa de aumento, da parte especial (contra menor de 14 anos). Como proceder o juiz diante de situações como essas? A primeira indagação, no que diz respeito ao concurso homogêneo das causas, aquele que se dá entre apenas as de aumento ou entre apenas as de diminuição, é: (a) a incidência da segunda causa se dará sobre o resultado da operação realizada na apreciação da primeira causa; ou (b) sobre a pena encontrada na segunda etapa da aplicação da pena, isto é, sobre a pena-base atenuada ou agravada? No exemplo apresentado, suponhamos que a pena-base tenha sido fixada em seis anos e seis meses, e, diante da idade do agente, atenuada em seis meses, concluída a segunda etapa com uma pena de seis anos de reclusão. A primeira causa de diminuição a ser aplicada é a relativa à tentativa, que, será, por exemplo, de 2/3, ou seja, de quatro anos, ficando a pena em dois anos de reclusão. Em seguida, como deve proceder o juiz, para aplicar o redutor do parágrafo único do art. 26 (capacidade diminuída), que ele pretende determinar em 2/3? Tomará como base a pena de seis anos, determinada na segunda etapa, ou a pena de dois anos, já modificada nessa terceira etapa? Se partisse da pena-base atenuada, de seis anos, a nova redução seria de quatro anos, e como já tinha sido reduzida a dois, ficaria igual a zero, o que seria um absurdo; por isso, o correto é fazer incidir a nova redução sobre o resultado da operação imediatamente anterior, ou seja, sobre dois anos, reduzindo-se, de conseqüência, de 16 meses, ficando a pena em oito meses de reclusão. Aplicadas todas as causas de diminuição, concluída está a operação relativa ao concurso homogêneo. A partir daí, o juiz deve tratar do concurso heterogêneo, agora com as causas de aumento. No exemplo, incidirá a causa de aumento do § 4º do art. 121, devendo a pena ser aumentada em um terço, mas a pergunta é: um terço de quanto, da pena-base atenuada ou da pena já reduzida? Se se seguir o mesmo critério anterior, a pena seria aumentada em pouco mais de dois meses, o que parece injusto, e se se tomar como base de cálculo a pena-base atenuada, de seis anos, encontrada na segunda etapa, a pena seria aumentada em dois anos e fixada definitivamente em dois anos e oito meses, mais compatível com o fato


52 – Direito Penal – Ney Moura Teles praticado. ALBERTO SILVA FRANCO, abordando o problema, mostrou: “O legislador de 84 não solucionou a divergência jurisprudencial no caso de concurso homogêneo de causas de aumento ou de diminuição. Sobre a matéria, formaram-se, de início, duas posições. De um lado, a corrente que defendia a tese da incidência cumulativa das causas de aumento ou de diminuição. Assim, a segunda causa de aumento ou de diminuição deve recair sobre a pena já acrescida ou reduzida pela primeira causa de aumento ou de diminuição. De outro lado, a corrente que pugnava pela incidência isolada das causas de aumento ou de diminuição. Assim, a segunda causa de aumento ou de diminuição deve incidir sobre a pena-base, e não sobre a pena já acrescida de causa de aumento ou de diminuição anterior. Evitava-se, deste modo, que as causas de aumento sucessivas, operando sobre a pena já aumentada, crescessem progressivamente, e que as causas de diminuição sucessiva, atuando sobre a pena já reduzida, diminuíssem progressivamente. Tal posição mereceu, no entanto, séria crítica na doutrina, acentuando-se que a incidência isolada, principalmente em relação às causas de diminuição sucessiva, seria inaceitável. ‘Isto porque, havendo duas diminuições, por exemplo, de dois terços e de metade, a pena resultante seria inferior a zero, o que, evidentemente, é absurdo (Julio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, 1989, p. 309). Para atalhar a objeção, Celso Delmanto (Código penal anotado,1984, p. 58) sugeriu o critério de incidência diferenciada, pelo qual as causas de aumento incidiriam independentemente,

enquanto

as

causas

de

diminuição

recairiam

cumulativamente. Esta parece ser, realmente, a melhor solução, máxime em face do tresdobramento do processo individualizador da pena. Caso contrário, na segunda incidência de causa de aumento estaria embutido, de novo, nessa operação, o quantum da pena relativo às agravantes e às atenuantes legais, num intolerável bis in idem.”16 Em conclusão: a) as causas de diminuição incidem, cada qual, sobre a pena encontrada na operação imediatamente anterior, cumulativamente, de conseqüência. A segunda causa de diminuição incidirá sobre a pena obtida após a incidência da primeira causa de diminuição, e assim sucessivamente;

16

Op. cit. p. 829-830.


Aplicação da Pena - 53 b) em regra, as causas de aumento incidem, cada qual, sobre a pena-base atenuada ou agravada, isto é, sobre a pena encontrada na segunda etapa da aplicação; c) a exceção refere-se ao concurso formal e ao crime continuado (item 5.7), em que o aumento incidirá sobre a pena-base atenuada ou agravada já acrescida de qualquer outro aumento ou reduzida em razão de qualquer causa de diminuição. Se o concurso for de causas, de aumento ou de diminuição, todas previstas na parte especial, o juiz poderá aplicar apenas uma delas, a que aumentar ou diminuir mais (art. 68, parágrafo único). Também nessa oportunidade, a decisão do juiz deverá ser fundamentada, com a explicação de suas razões, sob pena de nulidade.

17.6 SUBSTITUIÇÃO POR PENA RESTRITIVA DE DIREITO OU FIXAÇÃO DO REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE Concluída a terceira etapa, determinada a qualidade e a quantidade da pena privativa de liberdade, o juiz terá a oportunidade de: (a) substituí-la por pena restritiva de direito; ou, se incabível a substituição, (b) fixar o regime inicial de cumprimento da pena. A substituição, abordada no Capítulo 15, será possível quando for aplicada pena privativa de liberdade de até quatro anos, se o crime for doloso e praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa, e qualquer que seja no caso de crime culposo. Em ambas as hipóteses, as circunstâncias mencionadas no art. 44, III, do Código Penal devem ser razoavelmente favoráveis, indicando a substituição, que poderá ser concedida até mesmo ao reincidente, desde que a reincidência não seja específica. A fixação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade, abordada com detalhes no Capítulo 14, se fará com observância das normas do art. 33. Em qualquer dessas situações, o juiz deverá motivar sua decisão, atento, sempre, ao princípio diretor da aplicação da pena, que determina que ela será, sempre, apenas o suficiente e o necessário para a reprovação e prevenção do crime.

17.7 CONCURSO DE CRIMES


54 – Direito Penal – Ney Moura Teles Um dos temas mais importantes do direito penal é o do concurso de crimes, que, rigorosamente, deveria ser examinado no âmbito da teoria geral do crime, mas, em razão de sua colocação topográfica no Código Penal brasileiro, é estudado juntamente com a aplicação da pena. Os arts. 69, 70 e 71 cuidam, respectivamente, do concurso material, do concurso formal e do crime continuado, determinando as regras de aplicação da pena em cada uma dessas hipóteses. Conquanto essas normas conceituam o concurso, material e formal, de crimes, bem assim o crime continuado, é evidente que são normas gerais integrantes da teoria geral do crime. Para DAMÁSIO E. DE JESUS, “a questão deveria ser tratada pelo Código na teoria geral do crime, pois são mais relevantes os problemas relacionados com o delito em geral que com a pena em geral. É mais importante estabelecer a forma dos fatos puníveis que estabelecer a quantidade da pena aplicável em caso de concurso, pois a pena pode variar em face de circunstâncias, enquanto que a forma dos fatos puníveis é básica, tanto na determinação da figura típica, quanto no tocante às condições que modificam a imputação e a responsabilidade”17. Como, porém, a lei incluiu a matéria no âmbito da teoria da pena e não há, na prática, nenhum prejuízo para seu estudo, por questões didáticas também se faz o exame do concurso de crimes nesta parte do estudo.

17.7.1

Concurso material

Diz o art. 69 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.” Há concurso material ou real de crimes quando o agente, por meio de mais de uma conduta, isto é, quando realizando mais de um comportamento, praticar mais de um crime, idênticos ou não. Exemplo: Pedro mata Cláudio, depois comete lesões corporais em Alfredo, e, por último, realiza o crime de calúnia contra Maria. Foram três as condutas, três os fatos; por isso, três os crimes. Um homicídio, uma lesão corporal e 17

Op. cit. p. 520.


Aplicação da Pena - 55 uma calúnia. O concurso real deriva da existência de condutas distintas, isoladas, separadas, autônomas. São fatos diferentes; por isso, crimes diferentes, ainda que realizados em momentos próximos. São as seguintes as regras para aplicação das penas. Se se tratar de penas privativas de liberdade, serão aplicadas cumulativamente, o que significa dizer que as penas de cada crime serão simplesmente somadas umas às outras. No exemplo apresentado, o juiz aplicará uma pena para o homicídio, outra para a lesão corporal e, por último, uma pena para a calúnia. Deve o juiz, todavia, individualizar a pena para cada um dos crimes, com observância rigorosa das normas pertinentes – art. 59, atenuantes, agravantes, causas de diminuição e de aumento – e, só após cada uma das individualizações, proceder à cumulação das penas definitivas. Se for possível a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, deverá o juiz observar o seguinte: se a pena privativa de liberdade aplicada para um dos crimes não tiver sido suspensa, na conformidade do que dispõe o art. 77 do Código Penal (sursis), não poderá ser substituída por restritiva de direitos a pena para o outro crime concorrente. Em outras palavras, somente é possível a substituição de uma das penas privativas de liberdade aplicadas, se a pena aplicada para o crime concorrente tiver sido suspensa, pela concessão do sursis. É a regra do § 1º do art. 69 do Código Penal. Se for possível a substituição das várias penas privativas de liberdade cabíveis por penas restritivas de direito, poderá o condenado, se compatíveis, cumpri-las simultaneamente. Se não, o cumprimento será sucessivo. Uma pena de prestação de serviço à comunidade pode ser compatível com uma pena restritiva de direito, como, por exemplo, a suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor. Já duas penas de limitação de fim de semana só podem ser cumpridas sucessivamente.

17.7.2

Concurso formal

No art. 70 do Código Penal, encontra-se a definição do concurso formal de crimes, assim: “Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou


56 – Direito Penal – Ney Moura Teles omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.” O concurso formal, também chamado concurso ideal, vai acontecer quando o agente, com apenas uma conduta, uma ação em sentido estrito, ou uma omissão, consegue realizar dois ou mais crimes. Em outras palavras, aqui há apenas um comportamento, um fazer ou um não fazer, uma só atitude, mas serão dois ou mais os fatos tipificados no Código Penal, como, por exemplo, dois ou três homicídios provocados por um único agir, um só atuar do sujeito ativo do crime. Como na seguinte situação: João provoca a explosão de uma bomba dentro de uma sala de aula, causando a morte de 25 estudantes. Há um único comportamento humano, uma só conduta, que dá causa, todavia, a 25 resultados morte de alguém. São 25 homicídios causados por uma única ação, stricto sensu. O mesmo acontece num atropelamento de pessoas por um veículo que invade o ponto do ônibus. Uma só conduta que causa várias lesões corporais culposas em diversas pessoas. Haverá concurso formal quando se estiver diante de uma só conduta, um só comportamento, e de vários crimes. Os requisitos para a existência do concurso formal são: unidade de conduta e pluralidade de crimes. O concurso formal pode ser: homogêneo e heterogêneo, perfeito e imperfeito. Diz-se homogêneo o concurso formal quando os crimes praticados são definidos na mesma norma legal, contra vários sujeitos passivos, como no exemplo da explosão e morte de várias pessoas. Vários homicídios dolosos contra pessoas diferentes. Ou três homicídios culposos cometidos mediante uma só ação. Se os crimes praticados estiverem definidos em tipos distintos, há concurso formal heterogêneo. Exemplo: a mesma explosão dá causa à morte de uma pessoa e produz lesões corporais em outra. Serão dois crimes definidos em normas diferentes, cometidos por uma única conduta. A definição da primeira parte do art. 70 corresponde ao chamado concurso formal perfeito: quando, mediante uma só conduta, o agente pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Nesse caso, será aplicada apenas uma das penas, a mais grave, se o concurso for heterogêneo, ou uma delas, se homogêneo, aumentada, todavia, em ambos os casos, de um sexto até metade. Exemplos: (a) Eduardo atropela e mata, culposamente, Valdir e Flávio. Trata-se de um concurso formal perfeito homogêneo de dois homicídios culposos. Aplicar-se-á a pena de um deles, aumentada


Aplicação da Pena - 57 de um sexto até metade. O juiz deverá individualizar cada uma das penas, e supondo que tenha chegado, após considerar atenuantes, agravantes e causas de diminuição e aumento, se houver, à pena de um ano de detenção, deverá em seguida, também motivadamente, aumentá-la, por exemplo, no grau mínimo, de 1/6, do que resultará uma pena de um ano e dois meses de detenção; (b) Jaime atropela um casal, matando o homem e produzindo lesões corporais na mulher, culposamente. Aplicar-se-á a pena do homicídio culposo, aumentada de 1/6 até 1/2. A pena pode ser, inclusive, igual à do exemplo anterior, apesar de haver apenas um homicídio.

“No concurso formal é necessário realizar juízos da culpabilidade, distintos em relação a cada uma das infrações penais, e, em muitos casos concretos, é exatamente a variação da culpabilidade que possibilitará identificar a infração mais grave.”18 A pena aplicada pela regra do art. 70 – do concurso formal – não pode exceder a pena que seria cabível pela regra do art. 69 – do concurso material. No exemplo anterior do homicídio e lesão corporal culposos, se o juiz tivesse aplicado a pena máxima, de três anos de detenção, pelo homicídio culposo, e resolvesse aumentá-la de metade, a pena definitiva seria de quatro anos e seis meses. Ora, se se aplicasse a regra do art. 69, cumulando as penas do homicídio culposo e da lesão corporal culposa, ainda que aplicasse, para cada um, o grau máximo, a pena somada, cumulada, seria de quatro anos. Nesse caso, mesmo havendo concurso formal de crimes, aplica-se a regra do concurso material, somando-se as penas dos dois crimes. É o que pode ocorrer também quando há concurso formal perfeito entre um homicídio qualificado e uma lesão corporal simples. Se se aplicar pena mínima para o homicídio, 12 anos de reclusão, e aumentá-la do mínimo, 1/6, ter-se-á uma pena de 14 anos de reclusão, ao passo que, se forem acumuladas as penas para os dois crimes, a pena seria de apenas 13 anos de reclusão. A doutrina denomina essa situação de concurso material benéfico, o que é incorreto, pois não há, verdadeiramente, concurso material, mas formal, apenas não se aplicando a regra de aplicação da pena desse, mas a daquele. É que a regra de aplicação da pena no concurso formal perfeito visa beneficiar o acusado, em face de que, apesar de ter cometido mais de um crime, realizou, na realidade, apenas uma conduta, com um único fim, merecendo, em razão disso, reprimenda bem menos severa do que se

18

GALVÃO, Fernando. Op. cit. p. 231.


58 – Direito Penal – Ney Moura Teles tivesse realizado dois comportamentos distintos, aperfeiçoadores de dois crimes diversos. A parte final do art. 70 define o concurso formal imperfeito: quando, mediante uma só conduta dolosa, o agente pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, resultantes de desígnios autônomos. Nesse caso, as penas serão aplicadas cumulativamente, como se faz no concurso material. As diferenças entre o concurso formal perfeito e o concurso formal imperfeito são duas: (a) só há concurso imperfeito se a conduta tiver sido dolosa, ao passo que o concurso perfeito pode resultar de conduta dolosa ou de comportamento culposo; (b) só há concurso formal imperfeito quando os crimes praticados, mediante única conduta dolosa, resultarem de desígnios autônomos. A primeira diferença dispensa comentários. A segunda impõe a compreensão do significado da expressão desígnios autônomos. Desígnio é desejo, é pretensão, vontade, fim, objetivo. Dois crimes derivados de uma só conduta que resultam de desígnios autônomos são crimes que estiveram, previamente, ideados ou idealizados pelo agente, vale dizer, crimes desejados, pretendidos, objetivados pelo agente que, para alcançá-los, realizou uma só e única conduta. Há autonomia de desígnios se o agente, ao acionar o mecanismo de disparo da bomba instalada no escritório, tinha a vontade de, com a explosão, matar os dois sócios da empresa que estavam presentes naquela sala. Era intenção do agente alcançar a morte de ambos. Terá havido uma única conduta que deu causa a duas mortes, dois homicídios, os quais, todavia, resultaram de desígnios autônomos, de desejos autônomos. Diferente é a conduta do que instala e faz disparar o artefato no mesmo lugar, sem saber se, além da vítima que desejava matar, estaria também ali outra pessoa. Neste último caso, serão dois crimes resultantes de um só desígnio, um concurso formal perfeito. Haverá desígnios autônomos quando o agente realizar uma só conduta dirigida, todavia, a dois fins distintos. Com sua ação, quer alcançar a morte de João e a morte de Pedro. Ou pretende, com seu comportamento, matar um e ferir o outro. Mantida a unidade de ação ou de omissão, nela, desde sua fase interna, psíquica, ressaltam contudo dois fins precisamente diferenciados. Por essa razão, mesmo sendo una a conduta, as penas serão aplicadas cumulativamente,

como

se

os

dois

resultados

tivessem

derivado

de

dois


Aplicação da Pena - 59 comportamentos diferentes, como ocorre no concurso material. Quer a lei, assim, reprovar de modo mais severo aquele que, mesmo com uma única conduta, realizou-a, todavia, com a vontade de alcançar os dois resultados. Equipara-se à situação daquele que, para alcançar dois resultados diferentes, realizou dois comportamentos diversos, a daquele que, para alcançar os mesmos dois resultados, realizou apenas uma conduta. Na verdade, são ambos, igualmente, reprováveis, pois o que mais importa no crime é o desvalor da ação, e não o do resultado, que não é, como já dizia WELZEL, o elemento diversificador dos crimes.

17.7.3

Crime continuado

A definição do crime continuado é extraída do art. 71 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.” O chamado crime continuado é outra criação jurídica que, tanto quanto o concurso formal, resulta numa punição menos severa do agente que comete mais de um crime. No concurso formal perfeito, praticando o agente mais de um crime é, em regra, punido com a pena de um deles, a mais grave, se distintas, aumentada, todavia, de 1/6 até metade, em vez de, como no concurso material, receber as penas de ambos, simplesmente somadas. No crime continuado, em vez de cumular as penas dos vários crimes, manda a lei seja aplicada a pena de um dos crimes, a mais grave, se diversas, aumentada, todavia, de 1/6 a 2/3. Vê-se que a punição é mais severa que a do concurso formal perfeito. Para existir crime continuado, será necessário que: (a) o agente realize mais de uma conduta; (b) seja praticado mais de um crime; (c) os crimes sejam da mesma espécie; (d) exista um nexo de continuidade entre os crimes, que se materialize por meio de certa homogeneidade ou uniformidade de suas circunstâncias de natureza objetiva. Explicando de outra forma: por meio de mais de um comportamento, mais de uma ação ou omissão, o agente realiza mais de um crime. Esses crimes devem ser da mesma espécie, existindo entre eles um nexo de continuação. Importa responder,


60 – Direito Penal – Ney Moura Teles então, a essas duas questões: o que são crimes de mesma espécie? O que é nexo de continuação?

17.7.3.1

Crimes da mesma espécie

Para DAMÁSIO E. DE JESUS são crimes da mesma espécie os “previstos no mesmo tipo penal, i. e., aqueles que possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou consumadas”19. Por essa forma de pensar, somente haveria crime continuado entre um homicídio simples e um privilegiado, ou uma tentativa de homicídio, ou um homicídio qualificado. Igualmente haveria entre um furto simples e um furto qualificado. E não seria possível falar em crime continuado na hipótese de um estupro e um atentado violento ao pudor. Nem entre um crime de estelionato e um de apropriação indébita. E tampouco entre uma calúnia e uma difamação. Deve-se pensar diferente: são crimes da mesma espécie aqueles cujos tipos tiverem o mesmo objeto jurídico. A idéia de espécie pressupõe a existência de gênero. Não se pode falar em gênero de furto, do qual seriam espécies o furto simples e o qualificado, mas em gênero de crimes contra o patrimônio, do qual são espécies o furto, simples e qualificado, o roubo, próprio e impróprio, a extorsão, o estelionato, a receptação, dolosa e culposa etc. Poderá haver continuidade entre quaisquer crimes contra o patrimônio, ou entre mais de um dos crimes contra a pessoa, ou entre os vários crimes contra a administração pública, enfim, poderá haver continuação entre todos os crimes que tiverem como objeto o mesmo bem jurídico, desde que os demais pressupostos sejam realizados. Logo, será possível continuidade entre estupro e atentado violento ao pudor, ou entre roubo e estelionato. ALBERTO SILVA FRANCO explica: “O gênero contém potencialmente as diferenças. As espécies expressam-no na realidade. Assim, por exemplo, furto, roubo, apropriação indébita, estelionato, extorsão, dano etc. são todos espécies diversificadas que se congregam na proteção do ‘gênero’ patrimônio. E, como espécies, destacam o gênero que está presente em cada uma delas. As diferenças entre as espécies guardam, no 19

Op. cit. p. 526.


Aplicação da Pena - 61 entanto, gradações, umas maiores, outras menores. É, de conseqüência, sob o ângulo dessas gradações que umas espécies se aproximam e outras se distanciam.”20 Em conclusão, são da mesma espécie os crimes que tiverem como objeto o mesmo bem jurídico e que guardem, entre si, semelhança em seus elementos objetivos e subjetivos.

17.7.3.2

Nexo de continuação

Para haver crime continuado, é preciso que, além de se tratar de crimes de mesma espécie, exista entre eles nexo de continuação. Essa continuidade deverá ser verificada com base na análise das seguintes circunstâncias: tempo, lugar, maneira de execução e outras condições assemelhadas, que deverão guardar, entre si, certa homogeneidade. Por condições de tempo semelhantes é de se entender que os crimes em continuidade devem situar-se proximamente no tempo. Os crimes que serão considerados continuação do primeiro devem ter ocorrido dentro de algum tempo depois. Como mensurar essa quantidade de tempo, com base em quais critérios? Esse é problema de

solução não tão simples. Não se pode realizar análise meramente

aritmética, mas entre os crimes deve mediar tempo que indique a persistência de certo liame psíquico que sugira uma seqüência entre os dois fatos. Não se deve estabelecer critério rígido, fixando prazo máximo entre um e outro crime – por exemplo, um mês, dois meses ou três meses –, mas analisar essa circunstância em conjunto com as demais, de lugar e, principalmente, de forma de execução, para se verificar a caracterização da continuidade. Por exemplo, haverá nexo entre três homicídios praticados pelo mesmo agente, contra três padres, nas três últimas sextas-feiras santas, apesar de entre cada um mediar aproximadamente um ano, e entre o primeiro e o último ter decorrido cerca de dois anos. Igualmente, deverá o crime que se quer continuação do primeiro ter acontecido em lugar próximo dele. Também aqui não se podem definir critérios rígidos como: no mesmo bairro, na mesma cidade, ou apenas em cidades limítrofes. Outra vez se deve analisar essa circunstância em conjunto com as demais, para se encontrar o nexo

20

Op. cit. p. 866.


62 – Direito Penal – Ney Moura Teles seqüencial indispensável ao reconhecimento da continuação. Poderá haver continuação entre dois crimes praticados no mesmo bairro, na mesma cidade, em cidades vizinhas, mas não haverá, necessariamente, continuação tão-somente pelo fato de terem sido praticados na mesma região, ou na mesma rua. A maneira de execução deve ser aproximada ou, em outras palavras, assemelhada. Entre os dois crimes, deve ser possível verificar a semelhança do modus operandi, seja no que diz respeito aos instrumentos utilizados, seja na atividade solitária ou conjunta do condenado, seja no que tange ao horário em que atua, ou no modo de atacar as vítimas. Por exemplo, ainda que praticados em condições semelhantes de tempo e espaço, não haverá continuação se o primeiro foi um furto noturno em residência, com arrombamento, praticado exclusivamente pelo agente, ao passo que o segundo foi um furto durante o dia, em concurso com dois outros autores, em estabelecimento comercial, e com destreza. A maneira de execução foi diferente no segundo, pelo que não será reconhecida a continuação. A lei é clara: só haverá continuidade delitiva se as circunstâncias objetivas dos crimes que se desejar continuados forem harmônicas entre si. É necessária certa homogeneidade das circunstâncias de todos os crimes. Parte da doutrina exige que, além das semelhanças entre as circunstâncias objetivas, haja, também, certa semelhança no que tange às razões de natureza subjetiva do agente. Apesar de ter o Código Penal adotado a teoria objetiva, que não exige um único dolo, uma única resolução criminosa, ou unidade de desígnio para todos os crimes, defendem respeitáveis doutrinadores, como DAMÁSIO E. DE JESUS, que, para o reconhecimento da continuidade, o agente deve ter agido num único contexto, ou em situações que se repitam ao longo de uma única relação prolongada no tempo. Para essa corrente, só haverá continuidade delitiva se os crimes resultarem de um único desígnio do agente21. A jurisprudência uniforme do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se exigir, para o reconhecimento do crime continuado, a unidade de desígnios (REsp 742402; HC 46903; HC 60695; REsp 820633 etc.), mas o Supremo Tribunal Federal, em

acórdão relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, tratou assim a matéria: “Crime continuado: conceito puramente objetivo da lei brasileira. Relevância de dados subjetivos restrita à fixação da pena unificada. O direito brasileiro, no

21

Op. cit. p. 527.


Aplicação da Pena - 63 art. 71 da nova Parte Geral, de 1984, do Código Penal, persistiu na concepção puramente objetiva do crime continuado: a alusão, na definição legal do instituto, a outras circunstâncias semelhantes àquelas que enumerou – ‘tempo, lugar, e modo de execução’ – só compreende as que, como as últimas, sejam de caráter objetivo, não abrangendo dados subjetivos dos fatos. Viola o art. 71 o acórdão que, embora reconhecendo a concorrência dos elementos da caracterização objetiva do crime continuado, que nele se adotou, nega, porém, a unificação das penas, à base de circunstâncias subjetivas, quais os antecedentes do acusado ou a ausência da unidade de desígnio.”22 Correta, ao meu ver, é a posição do acórdão da Suprema Corte brasileira, pois, efetivamente, a norma do art. 71 não pode ser interpretada extensivamente, porque não é essa a vontade da lei que, para exigir elementos subjetivos, deveria, expressamente, mencioná-los. Já se aprendeu que uma interpretação teleológica extensiva deve necessariamente resultar harmônica e coerente com o sistema, e que, se dúvidas restarem, jamais se interpretará em desfavor daquele que estiver sendo perseguido: o acusado.

17.7.3.3

Aplicabilidade do crime continuado a bens personalíssimos

Duas são as correntes doutrinárias acerca da aplicabilidade do instituto do crime continuado quando se tratar de crimes que se voltam contra bens personalíssimos. Para a primeira, não seria possível a continuidade quando os crimes, voltando-se contra bens jurídicos personalíssimos, são praticados contra vítimas diferentes. Antes da reforma de 1984, esse pensamento era majoritário e contava com a maioria da jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal. Os argumentos eram ponderáveis: tratando-se de ataques a bens personalíssimos, não se poderia considerar o ataque à segunda pessoa continuação da agressão à primeira; ao dirigir a conduta contra pessoa distinta, alterada estava a resolução criminosa, pelo que impossível considerar a continuação. Para a outra corrente, era possível a continuidade entre crimes que atingissem bens pessoais, mesmo que de vítimas diferentes, porque nenhuma restrição legal havia a esse respeito, nem se exigia unidade de desígnio para o reconhecimento do crime continuado.

22

Apud FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 858.


64 – Direito Penal – Ney Moura Teles Com a reforma do Código Penal, de 1984, a discussão ficou encerrada, uma vez que o novo texto legal admite a continuidade delitiva quaisquer que sejam os crimes, inclusive contra vítimas diferentes. A norma do parágrafo único do art. 71 veio solucionar a antiga polêmica. Está assim redigida: “Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.” Se a norma do parágrafo único do art. 71 permite a continuidade para crimes dolosos contra vítimas diferentes e cometidos com violência ou grave ameaça, deve-se entender que a norma do caput do art. 71 aplica-se a todos os crimes, dolosos ou culposos, praticados contra a mesma vítima, ainda que com violência ou grave ameaça à pessoa, bastando que sejam da mesma espécie e entre eles haja nexo de continuação. A partir de então, tem-se o seguinte: aplica-se a continuidade delitiva a quaisquer crimes, desde que – da mesma espécie – haja nexo de continuação entre eles, verificável pelas circunstâncias objetivas, de tempo, lugar, modo de execução etc. Não importa sejam os bens atingidos personalíssimos, aplicando-se ainda que cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, e mesmo quando contra vítimas diferentes. As penas serão aplicadas, da seguinte forma: a) se o crime é cometido contra a mesma vítima, com ou sem violência ou grave ameaça, aplicar-se-á apenas uma pena, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços; b) se os crimes são dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça, aplicar-se-á apenas uma das penas, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto até o triplo, com atenção a culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos e circunstâncias do crime. A propósito da aplicabilidade da continuidade delitiva quando se tratar de crimes de homicídio, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo eminente Ministro Assis Toledo, assim enfrentou a matéria: “EMENTA: Crime continuado. Duplo homicídio contra vítimas diferentes. Possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva, diante da norma


Aplicação da Pena - 65 expressa do parágrafo único do art. 71 do Código Penal, acrescentado pela reforma penal de 1984 (Lei nº 7.209/84). Matéria de competência do Juiz, não dos jurados, razão pela qual não deve ser objeto de quesitação. Pena. A aplicação do critério do parágrafo único do art. 71 não pode elevar a pena além do máximo do concurso material e, por razão lógica, não deve igualmente rebaixá-la aquém do que seria cabível pelo concurso formal, na hipótese de desígnios autônomos, dada a identidade de situações. Recurso especial de defesa conhecido e provido para, reconhecida a continuidade delitiva, reduzir-se a pena aplicada” (RSTJ 78/358). Em qualquer das hipóteses, a pena não pode ser superior à que seria cabível caso fosse aplicada a regra do concurso material, nem superior a 30 anos.

17.8 ERRO

SOBRE

A

PESSOA

E

ERRO

NA

EXECUÇÃO

(ABERRATIO ICTUS E ABERRATIO DELICTI) Muitas vezes, o agente comete um crime laborando em erro sobre a pessoa que desejava atingir. Em algumas situações, por falha na execução do procedimento típico, ofende pessoa diferente da que pretendia. Outras vezes, obtém, por acidente ou erro na execução, um resultado diferente do que desejava. São três modalidades de erro que, diferentemente do que acontece no erro de tipo – que exclui o dolo, permitindo a punição por crime culposo, se tipificado – e no erro de proibição – que exclui a culpabilidade, se inevitável, ou a diminui, se evitável –, não isentam o agente de pena, porquanto não se trata de erros essenciais, mas puramente acidentais. Nos três casos, o agente culpado será punido, com observância de regras específicas, como se vê adiante.

17.8.1

Erro sobre a pessoa

Essa modalidade de erro deveria ter sido analisada no Capítulo 9, deste manual, logo após o estudo do erro de tipo. Preferiu-se, todavia, abordá-lo nesse momento, ao lado do aberratio ictus, em razão da referência expressa que o art. 73 faz ao § 3º do art. 20, muito embora as modalidades de erro não se confundam. Dispõe o § 3º do art. 20: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena.


66 – Direito Penal – Ney Moura Teles Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.” Como se sabe, um tipo é “matar alguém”, outro, “ofender a integridade corporal de outrem”, vale dizer, a pessoa humana pode ser sujeito passivo de vários crimes. Se alguém quer matar Paulo e mata João, não poderá ser desculpado, porque o crime é matar alguém, e não “matar Paulo” e, nesse caso, terá o agente realizado o tipo de homicídio doloso, mesmo quando sua vontade era dirigida para a morte de outra pessoa e não para a morte da pessoa efetivamente atingida. Ocorre o chamado erro sobre a pessoa quando o agente, desejando matar certa pessoa, erra sobre sua identidade, sua identificação. Tal erro decorre de falsa representação da realidade, e não de falha na execução. Exemplo: Cláudio, querendo matar Sálvio, mata Sílvio, por estar escuro e não ter observado que Sílvio era muito parecido com a vítima que desejava matar, aliás, seu irmão-gêmeo. Não se trata de erro na execução. Conquanto o dolo, segundo Welzel, abrange o fim pretendido, os meios escolhidos, e os efeitos secundários, não podia o Direito deixar de levar em conta a hipótese desse erro. Manda o § 3º do art. 20 que o agente responda penalmente como se tivesse praticado o crime contra a pessoa que desejava atingir, e não contra a que, efetivamente, atingiu. Assim, se alguém, querendo matar o próprio pai, mata, todavia, o tio, irmão-gêmeo do pai, responderá como se tivesse matado o pai, o que importará na incidência da circunstância agravante do art. 61, II, e, do Código Penal. Todavia, se desejando matar um estranho, vem, pelo erro, atingir e matar o pai, a agravante não incidirá.

17.8.2

Aberratio ictus

O erro na execução está assim definido no art. 73 do Código Penal: “Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.” Esta modalidade de erro não decorre de falsa representação do agente, mas de acidente ou ineficiente utilização dos meios de execução do procedimento típico. Por exemplo: Ciro está com a arma apontada em direção a Juarez, a quem pretende matar,


Aplicação da Pena - 67 e no momento em que dispara a arma, Sebastião atravessa a linha de tiro e recebe o projétil, morrendo em conseqüência do ferimento. O erro na execução do homicídio pretendido contra Juarez decorreu de um acidente, que foi a colocação de Sebastião no espaço por onde a bala passava. Haverá erro na execução também quando, utilizando uma arma defeituosa, dispara o agente contra a vítima pretendida, desviando-se o projétil do alvo e atingindo a pessoa que se encontrava próxima. O mesmo ocorre quando o agente erra o alvo, por sua imperícia no manejo de arma de fogo. São duas as espécies de aberratio ictus: aquele com resultado único e o que produz mais de um resultado.

17.8.2.1

Aberratio ictus com resultado único

Com resultado único é o que acontece na seguinte situação: Fábio, desejando matar a Celso, dispara contra o mesmo, atingindo e matando Arlindo, que se encontrava nas proximidades de seu desafeto, que nada sofreu. Rigorosamente falando, teria havido uma tentativa de homicídio, contra Celso – não consumado por circunstâncias alheias à vontade do agente –, e um homicídio culposo contra Arlindo, pois que Fábio não tinha vontade de matá-lo, mas, negligentemente, causou-se a previsível e evitável morte. A solução que o direito dá, todavia, não é essa, mas a de considerar a existência de um único homicídio doloso. Ou seja, o agente responderá como se tivesse praticado um só homicídio doloso contra Celso, e não o homicídio realmente ocorrido contra Arlindo, que, aliás, não foi doloso, mas culposo. Essa solução decorre da vontade da lei de que o agente responda “como se tivesse praticado o crime” contra quem pretendia praticar. Considera a lei o dolo do agente – vontade de matar – e o resultado “morte” alcançado, embora esta tenha sido de pessoa diversa, construindo assim uma ficção jurídica. Esta solução, inegavelmente, é prejudicial ao agente, pois, se se aplicasse a regra do concurso material para os fatos realmente ocorridos, receberia ele pena por uma tentativa de homicídio (com diminuição máxima no homicídio simples: dois anos) somada com outra por homicídio culposo (mínima: um ano), inferior à pena de um só homicídio consumado (mínima: seis anos). Outro exemplo: se, desejando matar a Silas, Arnaldo dispara e acerta Nelson, produzindo-lhe lesões corporais, haveria na realidade uma tentativa de homicídio contra Silas e um crime de lesões corporais culposas, mas a solução que a lei manda adotar é outra: responderá Arnaldo puramente por uma tentativa de homicídio, que,


68 – Direito Penal – Ney Moura Teles nesse caso, absorverá as lesões culposas. Como o resultado morte desejado não ocorreu, não seria justo que se considerasse consumado o crime, em face de que não ocorreu a morte da vítima efetiva. Vale repetir, deve-se considerar como praticado o crime contra a pessoa pretendida, não contra a atingida.

17.8.2.2

Aberratio ictus com resultado duplo

Aberratio ictus com resultado duplo ocorre quando, além da pessoa visada, é atingida outra pessoa. Juvenal, querendo matar a Paulo, atira e, além de atingi-lo, atinge também Mauro. Manda a parte final do art. 73 que, nesse caso, se deve aplicar a regra do art. 70, que define o concurso formal de crimes. Podem ocorrer as seguintes situações e soluções: a) Paulo é morto e Mauro também. b) Paulo é morto e Mauro sofre lesões corporais. c) Paulo sofre lesões corporais e Mauro é morto. d) Paulo sofre lesões corporais e Mauro também. No primeiro caso (a), em que ocorrem a morte desejada de Paulo e a morte indesejada de Mauro, forma-se um concurso formal, entre um homicídio doloso e um culposo, devendo Juvenal responder por um homicídio doloso, com pena aumentada de um sexto até metade. No segundo caso (b), em que acontecem a morte pretendida de Paulo e lesões corporais involuntárias em Mauro, terá havido concurso formal entre um homicídio consumado e um crime de lesões corporais culposas, com o aumento da pena do homicídio doloso, de um sexto até metade. No terceiro caso (c), a solução será considerar o homicídio como se tivesse sido consumado contra a vítima pretendida, Paulo, embora este só se tenha ferido, em atenção ao preceituado na primeira parte do art. 73, devendo Juvenal receber a pena por homicídio consumado, aumentada, todavia, de um sexto até metade, em obediência à determinação da parte final do art. 73, que manda aplicar a regra do concurso formal. No último caso (d), com uma tentativa de homicídio contra Paulo e uma lesão corporal culposa contra Mauro, novo concurso formal, devendo Juvenal receber a pena pela tentativa de homicídio, aumentada de um sexto até metade. Apesar de não haver regra expressa, vale a observação do parágrafo único do art. 70, segundo a qual a pena não pode exceder a pena pertinente, caso fosse aplicada a


Aplicação da Pena - 69 regra do concurso material. Em todos esses casos, é de ver que, no segundo resultado, a morte ou a lesão da pessoa que o agente não desejava atingir decorre de sua negligência, configurando, assim, crime culposo. Por isso, a solução correta é compreender os dois crimes como formando um concurso formal, pois que, mediante uma só ação, lato sensu, realizamse, todavia, dois crimes. É claro que, em qualquer dessas hipóteses, se o agente tiver previsto o outro resultado – matar ou ferir Mauro – e, em face desse previsível resultado, tiver se portado com atitude interna de aceitá-lo, estarão presentes desígnios autônomos, impondo-se, de conseqüência, a aplicação da pena cumulativamente, pela regra do concurso material, segundo determina o art. 70, última parte. A aceitação do resultado não desejado constitui outro desígnio.

17.8.3

Aberratio delicti

Essa modalidade de erro na execução do procedimento típico, também chamada aberratio criminis, encontra-se regulada pelo art. 74 do Código Penal, assim: “Fora dos casos do artigo anterior, quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.” No erro anterior, aberratio ictus, o processo de execução se desvia de uma pessoa para outra de tal modo que, apesar de possibilitar a ocorrência de um crime, em lugar de outro, ambos tinham como objeto a pessoa humana, ainda que num caso sua integridade física, e noutro a própria vida. Em vez de homicídio contra Tiago, cometiase lesão corporal contra Mateus, ou vice-versa. Enfim, no aberratio ictus é persona in personam. No aberratio delicti, o desvio na execução alcança o bem jurídico e, em vez de uma lesão corporal, realiza o agente um crime de dano. Em vez de atingir uma pessoa, atinge uma coisa material ou, ao contrário, em vez de atacar o objeto, o agente fere ou mata uma pessoa. Pode ocorrer que: a) Ibrahim, desejando quebrar os vidros de uma casa, atira uma pedra em direção a ela, vindo a atingir a pessoa de Miguel, que estava próximo. Quis cometer o crime de dano, e realizou uma lesão corporal culposa. Responderá por lesão corporal culposa. Se


70 – Direito Penal – Ney Moura Teles tivesse matado a Miguel, responderia por homicídio culposo. b) Ibrahim, desejando matar a Miguel, erra e atinge a vidraça da casa. Não há crime de dano em sua modalidade culposa; por isso, não responderá por nenhum crime em relação à coisa atingida. Apenas estará, civilmente, obrigado a reparar o dano. Conquanto queria matar a Miguel, responderá por tentativa de homicídio. Se sua intenção fosse apenas a de ferir a Miguel, responderia apenas por tentativa de lesão corporal. Se o tivesse atingido, por lesão corporal consumada. c) Ibrahim, querendo danificar a vidraça da casa do vizinho, atira uma pedra contra ela, vindo a acertá-la e, também, o rosto de Maria, produzindo-lhe lesões corporais. Nesse caso, há um concurso formal de crimes, entre um crime de dano, doloso, e um crime de lesão corporal culposa. Aplicar-se-á a pena do crime mais grave, aumentada de um sexto até metade. A regra só poderia ser, mesmo, a adotada pelo Código, posto que, efetivamente, o agente não deseja o outro resultado e, é óbvio, age negligentemente com relação ao bem que não deseja atingir. Se, todavia, ficar evidenciado que o resultado diverso do pretendido decorreu pura e simplesmente de nexo causal, sem qualquer negligência, imprudência ou imperícia do agente, ou, ainda, numa situação absolutamente imprevisível – um caso fortuito –, não terá havido culpa, em sentido estrito, não respondendo o agente pelo resultado diverso do pretendido. Se o agente tiver agido, com relação ao outro resultado com dolo eventual – prevendo e aceitando o outro resultado –, dever-se-á aplicar a regra do concurso material de crimes, porquanto os crimes terão decorrido de desígnios autônomos (art. 70, caput, parte final).

17.9 LIMITE DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE Por força do princípio constitucional inserto no art. 5º, XLVII, são proibidas as penas de caráter perpétuo, inclusive e principalmente as privativas de liberdade. No ordenamento jurídico-penal brasileiro, verificando-se o conjunto das normas penais incriminadoras, não serão encontradas penas privativas de liberdade que tenham grau máximo superior a 30 anos, o que, todavia, não impede venha alguém a ser condenado a pena superior a esse limite. Basta lembrar o crime do art. 159, extorsão mediante seqüestro, em razão do qual sobrevenha a morte (§ 3º), cuja pena cominada é reclusão, de 24 a 30 anos. Essa cominação é fruto das pressões movidas sobre o legislador brasileiro pelos adeptos do movimento da Lei e da Ordem, que


Aplicação da Pena - 71 pregam a exacerbação das reprimendas, como forma de iludir a opinião pública sobre a presença do Estado na luta contra o crime. Muito provavelmente, alguém condenado por esse crime, presentes algumas circunstâncias agravantes, ausente qualquer atenuante, mais uma causa de aumento, acabará por receber pena superior a 30 anos. Ocorrendo o concurso material de crimes, não será impossível, como não é mesmo, alguém ser condenado a pena cujo tempo seja superior a 100 anos de privação de liberdade. Havendo vários processos, então, a hipótese é muito provável, e, lamentavelmente, não é rara no Brasil, como não o é noutras partes do planeta. Ora, um homem condenado a cumprir mais de 30 anos, muito provavelmente, deveria passar o restante de sua vida encarcerado, o que tornaria absolutamente inócuo o princípio constitucional. Seria, então, o preceito constitucional letra morta, ou mera proclamação retórica? Para dar efetividade ao preceito é que o art. 75 do Código Penal estabelece: “O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos. § 1º Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo. § 2º Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.” Ainda que o agente seja condenado a penas superiores a 30 anos, num ou em mais processos, por mais de um crime, não cumprirá nem um dia a mais que os 30 anos, pois todas as suas penas serão unificadas em 30 anos. Há, porém, uma situação concreta em que alguém pode cumprir mais de 30 anos, que vem contemplada no § 2º do art. 75. Cuida-se ali da hipótese de que o condenado, após o início do cumprimento da pena, venha a cometer outro crime, sendo, por isso, condenado. Quando da nova condenação, repita-se por fato posterior ao início da execução penal – e não por fato posterior ao da primeira condenação –, será feita nova unificação, desprezando-se o tempo de pena já cumprido. A unificação será feita com o restante da pena que estava sendo cumprida, somando-se a ele a nova pena. Por exemplo: Jorge está, há oito anos, cumprindo uma pena, já unificada, de 30 anos de reclusão, quando comete outro fato típico, dentro da


72 – Direito Penal – Ney Moura Teles penitenciária ou fora, após ter empreendido fuga do presídio. Sobrevindo, um ano depois do fato, a condenação definitiva a 16 anos de reclusão, quando o condenado já cumprira nove anos, será feita nova unificação, desprezando-se esse tempo de pena cumprido. Restarão, assim, 21 anos da primeira pena, que serão somados com os 16 anos da nova pena, perfazendo-se 37 anos, os quais serão novamente unificados em exatos 30 anos. Nesse exemplo, Jorge terá cumprido nove anos e irá cumprir mais 30 anos de reclusão. Possível, assim, alguém cumprir tempo superior a 30 anos. Não fosse a norma do § 2º, não haveria, efetivamente, pena para os condenados a penas superiores a 30 anos que cometessem crimes nos presídios. Questão polêmica é saber se o limite de 30 anos determinado pelo art. 75 refere-se exclusivamente ao cumprimento da pena, ou se também serve para o cálculo dos vários benefícios incidentais à execução das penas privativas de liberdade, como, por exemplo, a progressão ao regime semi-aberto e o livramento condicional. A posição de DAMÁSIO E. DE JESUS e HELENO FRAGOSO é no sentido de que a unificação se refere exclusivamente ao cumprimento da pena, pois, se a admitíssemos como parâmetro para a concessão de benefícios, estariam colocados no mesmo patamar, em condições de igualdade, o condenado a 30 e o condenado a 300 anos, o que seria um absurdo23. Para MIRABETE, a unificação serve aos dois propósitos: fixar o cumprimento da pena durante, no máximo, 30 anos, e ser a base para a verificação das condições objetivas de concessão dos benefícios previstas na lei, como o livramento condicional, a progressão a regime mais brando, a remição etc24. Qual posição é correta? ALBERTO SILVA FRANCO bem responde: “Se o intento do legislador fosse exclusivamente o de fixar o limite máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade, o § 1º do art. 75 da PG/84 não teria razão de ser. Tais penas, sem necessidade de nenhum tipo de formalidade, já estariam, por força do caput do art. 75 da PG/84, englobadas no montante de 30 anos. Além disso, constituiria um verdadeiro contra-senso unificar penas privativas de liberdade para um só fim e, ao mesmo tempo, manter uma dualidade de penas (pena unificada e soma de penas não unificadas) para os demais fins. ‘Unificar’, como observa Julio 23

Op. cit.

24

Execução penal. Op. cit. p. 297.


Aplicação da Pena - 73 Fabbrini Mirabete, ‘quer dizer transformar várias penas em uma só’. Ademais a unidade de parâmetro cronológico não constitui apenas uma postura dogmática: encontra, em verdade, consagração legal. Se a pena progressiva de liberdade é executada numa forma progressiva, com a transferência sucessiva do preso de um regime penitenciário mais rigoroso para outro mais brando, e se tal transferência só pode ser efetuada após o cumprimento ao menos de um sexto da pena no regime anterior, é óbvio que, no caso de ocorrerem diversas condenações, as penas devem ser unificadas para tal fim (art. 111 da LEP).”25 É verdade, não faria nenhum sentido que o condenado a 180 anos de reclusão, mesmo tendo o direito ao cumprimento de apenas 30 anos, não pudesse obter a progressão ao regime mais brando após cumprir 1/6 de 30 anos, ou seja, após cinco anos. Seria um contra-senso devesse ele cumprir 1/6 de 180, vale dizer, 30 anos para então progredir ao regime semi-aberto. Ora, o cumprimento dos 30 anos que lhe asseguraria a progressão é o mesmo tempo suficiente para a obtenção da plena liberdade. Não se pode, ademais, esquecer que o cumprimento de 1/6 da pena é apenas o requisito objetivo para a concessão da progressão, bem como o cumprimento de 1/3, metade ou 2/3 da pena é tão-somente requisito objetivo para o livramento condicional. Para a concessão desses dois benefícios, é imprescindível o preenchimento de outra condição, de natureza subjetiva, o bom comportamento carcerário do condenado para a progressão, e os bons antecedentes, a reparação do dano, comportamento satisfatório e até mesmo outras condições de natureza pessoal que indiquem uma “presunção” de que não voltará a delinqüir – nos casos do livramento condicional. Dessa forma, não haverá nenhuma incoerência, e, principalmente, nenhum prejuízo para a sociedade, se for considerada, como base de cálculo para a concessão de benefícios ao condenado, a pena unificada, porque o tempo de cumprimento da pena não é o único requisito para a obtenção do benefício. Por último, de ver que o cumprimento de qualquer pena privativa de liberdade só faz sentido se existir, na mente do condenado, a perspectiva de alcançar a liberdade. Aquele que tiver a certeza de que somente ganhará a liberdade após 30 anos de reclusão, vivendo nos promíscuos e inumanos ambientes prisionais, não terá nenhuma razão para respeitar, no presídio ou fora dele, qualquer dos valores protegidos pelo

25

Op. cit. p. 929.


74 – Direito Penal – Ney Moura Teles direito. Se, com o sistema progressivo de cumprimento de penas privativas de liberdade, com a possibilidade concreta e real de alçar regimes mais brandos, as penitenciárias são verdadeiras escolas de aperfeiçoamento do crime, muito mais o seriam se uma parcela considerável dos condenados não tivesse a perspectiva de obtenção de liberdade. Por isso, melhor, por plenamente coerente com o sistema progressivo brasileiro e, principalmente, por atender aos interesses democráticos da sociedade, a pena de 30 anos, unificada, destina-se não só ao efetivo cumprimento, mas também ao cálculo dos diversos benefícios permitidos aos condenados.

17.10 APLICAÇÃO DA PENA DE MULTA Também a pena de multa será individualizada, particularizada, adaptada, com observância dos critérios estabelecidos no art. 59 do Código Penal. Enquanto pena considerada alternativa, pode ganhar importância efetiva, se aplicada com atenção ao princípio diretor da aplicação de toda e qualquer pena criminal: conforme seja necessário e suficiente para reprovar e prevenir o crime. A pena de multa é cominada tanto para crimes de menor gravidade como pena simples ou alternativa, quanto para crimes mais graves, quando é cominada cumulativamente. Na primeira hipótese, tem-se o uso da pena como substituição da privação da liberdade. Na segunda, há uma medida que visa tornar mais severa a resposta penal em que, além da privação da liberdade, o condenado sofrerá, com a pena pecuniária, uma nova aflição, o que vai acontecer, em geral, nos crimes contra o patrimônio. A aplicação da pena de multa deve ser feita inicialmente com obediência às mesmas regras destinadas à aplicação da pena privativa de liberdade. Segundo manda o art. 68, primeiro o juiz fixa a pena-base, com atenção ao disposto no art. 59, depois leva em conta as circunstâncias atenuantes e agravantes e, finalmente, as causas de diminuição e de aumento. Deve o juiz, primeiramente, fixar o quantum da pena de multa, observado o mínimo de 10 e o máximo de 360 dias-multas – excetuados os casos em que a cominação é específica, como no caso do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 –, atendendo às circunstâncias do art. 59 do Código Penal. De notar que essa cominação, mínima e máxima, vale para todos os crimes em que é cominada, de modo genérico, a pena de multa, pelo que deve levar em conta que


Aplicação da Pena - 75 o mínimo, de 10 dias-multas, é a menor quantidade para o crime menos grave, ao passo que 360 dias-multas é a maior quantidade dessa espécie de pena. Alguns juristas alertam para que não se façam comparações entre o crime de roubo e o de calúnia, em que a multa é cominada, exigindo cuidado, porquanto os graus mínimos das penas de multa cominadas para esses dois não poderiam ser iguais. Explicam que não é válido raciocinar como se faz com as penas privativas de liberdade, pois que essas são cominadas para cada crime – em cada um com uma pena quantitativamente diferenciada, segundo a importância do bem e a gravidade da lesão – e não genericamente, como na pena de multa. Essas ponderações não fazem sentido, porque a pena de multa – enquanto substitutiva ou alternativa da privativa de liberdade – não pode ser comparada com a pena de reclusão ou de detenção. Mesmo quando cominada isoladamente, pois que, nesse caso, será a pena única e não se pode compará-la com penas privativas de liberdade. Para aplicar a pena de multa, mesmo devendo o juiz obedecer às mesmas normas de aplicação da pena privativa de liberdade, não poderá fazê-lo sem algumas modificações. Incidirá aí a norma do art. 60 do Código Penal: “Na fixação da pena de multa o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica do réu. § 1º A multa pode ser aumentada até o triplo, se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo.” O sistema das três etapas, do art. 68 do Código Penal, aplicado às penas privativas de liberdade, deve ser observado, com essas duas modificações e com as particularidades do sistema da multa penal, pelo que devem ser observados os seguintes passos. Na primeira fase: 1º) O juiz, atendendo às circunstâncias do art. 59, fixa a pena-base com estrita obediência aos limites de, no mínimo, 10 e no máximo 360 dias-multas, conforme seja necessário e suficiente para reprovar e prevenir o crime. 2º) O juiz considerará as atenuantes e agravantes presentes, diminuindo, aumentando ou mantendo a pena-base, podendo vir aquém do mínimo. 3º) O juiz verificará a existência de causas de diminuição e de aumento, como fixadas na parte geral e na parte especial do Código Penal, e aplicará as diminuições e aumentos dentro dos limites determinados em cada causa. Vencida esta fase, em que o juiz terá fixado a quantidade da pena, em dias-


76 – Direito Penal – Ney Moura Teles multas, passará à segunda fase, fixando o valor do dia-multa. Por exemplo, tendo chegado na primeira fase ao resultado de 80 dias-multas, deverá em seguida, na segunda fase, fixar o valor de cada dia-multa, com observância do § 1º do art. 49 do Código Penal, em no mínimo 1/30 e no máximo cinco vezes o valor do salário mínimo mensal. Para fixar o valor do dia-multa, deverá estar atento à regra do art. 60 do Código Penal: “atender, principalmente, à situação econômica do réu”. Fixado esse valor, tendo em conta a capacidade de pagamento do réu, sob a orientação da “suficiência e necessidade para a reprovação e prevenção”, poderá ainda, excepcional e justificadamente, aumentá-la até o triplo, se “considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo”. Essa é uma causa de aumento específica, que incidirá apenas quando, mesmo que aplicada, embora não necessariamente, no grau máximo, que é de 360 dias-multas, e no valor máximo de cada dia-multa, o juiz concluir que, para os fins de prevenção e reprovação, será a pena ineficaz. Num país que viveu, principalmente nos anos 80 do século XX, tempos de indomável e arrasadora inflação, e onde impera a cultura da prisão como única pena criminal, é comum ouvir-se: “lugar de bandido é na cadeia”. A pena de multa não pôde, infelizmente, mostrar sua importância e sua eficácia, como instrumento efetivo de proteção do bem jurídico e, até mesmo, de prevenção e repressão do crime. Almejando todos uma economia com inflação suportável, é possível verificar alguma efetividade na pena de multa e, principalmente, sua aplicação mais consentânea com os interesses de um direito penal de intervenção mínima, o que só será possível se, além da correta aplicação, houver sua efetiva execução.

17.11 CONCLUSÃO Num tempo em que a totalidade dos estudiosos e operadores do direito penal, a mídia eletrônica, as entidades vivas da nação, nelas incluídos os poderes representativos da República, discutem o problema da criminalidade e a intrincada questão

do

sistema

penitenciário,

com

misérias,

sofrimentos

indizíveis

e,

conseqüentemente, rebeliões e mais violências nos presídios, não se pode esquecer que com o direito tal qual posto, vigente hoje no Brasil, é possível avançar na busca de muitas soluções. Basta que os operadores do direito se apartem de alguns preconceitos e procurem interpretar o ordenamento jurídico com a utilização do método finalístico, a


Aplicação da Pena - 77 fim de romper com concepções absolutamente atrasadas e autoritárias, divorciadas de qualquer raciocínio científico, e que apenas rezam por uma cartilha que não é a dos interesses de toda a nação brasileira, ávida por melhores dias e condições dignas para todos os seus cidadãos. Se mudar a lei é importante para o encontro de novas fórmulas de melhor proteção dos interesses de todos, interpretá-la conforme esses mesmos interesses é tarefa imediata que não pode ser desprezada, nem relegada aos mais corajosos. Algumas questões postas neste capítulo, da aplicação da pena, como a da possibilidade de as atenuantes levarem a pena aquém do mínimo legal, e como a da impossibilidade de a reincidência, os maus antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente influírem para que a pena se afaste do mínimo, precisam ser enfrentadas e discutidas abertamente, sem nenhuma formulação dogmática e autoritária, para que, verificando-se sua coerência dentro do sistema punitivo do Código Penal, possam todos viver, juntos, nesse novo milênio, no encontro do novo Direito Penal, o justo.


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