Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação da Baixada Fluminense UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIODE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, CULTURA E COMUNICAÇÃO CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO
Noale de Oliveira Toja
TV Maxambomba: processos de singularização
Duque de Caxias 2010
Noale de Oliveira Toja
TV Maxambomba: processos de singularização
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Educação e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Mauro José Sá Rego Costa
Duque de Caxias 2010
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEHC T 646 Toja, Noale de Oiveira. TV Maxambomba: processos de singularização / Noale de Oliveira Toja. - 2010. 88 f. Orientador: Prof. Dr. Mauro José Sá Rego Costa. Dissertação ( Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação da Baixada Fluminense. 1.Comunicação de Massa – Teses. I. Costa, Mauro José Sá Rego. II.Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação da Baixada Fluminense. III. Título. CDU 659.3
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total e parcial desta dissertação, desde que citada a fonte.
__________________________________ Assinatura
_________________________ Data
Noale de Oliveira Toja
TV Maxambomba: processos de singularização
Dissertação apresentada, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Educação e Cultura.
Aprovado em 27 de setembro de 2010. Banca examinadora: _______________________________________________________ Prof. Dr. Mauro José Sá Rego Costa (Orientador) Faculdade de Educação da Baixada Fluminense - UERJ _______________________________________________________ Profª. Drª. Alita Villas Boas de Sá Rego Faculdade de Educação da Baixada Fluminense - UERJ _______________________________________________________ Profª. Drª. Andréa França Martins Pontifícia Universidade Católica - PUC
Duque de Caxias 2010
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho à minha família pelo seu apoio e carinho.
Ao
generosidade.
meu
professor
orientador
pela
sua
AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar a minha família. Minhas filhas na sua compreensão de criança, e principalmente Carol e Rebeca, que deram toda força que podiam, na sua maneira de estar no mundo. Ao Gil, meu companheiro por tanto tempo dedicado aos cuidados das filhas, ao consolo na horas de desespero, à compreensão pelos momentos de ausência, pela parceria e cooperação no desenvolvimento desse trabalho. Ao meu pai (in memoriam), pela alegria compartilhada desse momento. À minha mãe e ao seu companheiro Luiz Scobah pela sua força e crença. À minha irmã Francine, a todo momento, mesmo à distância, se manteve tão presente me apoiando. Ao Claudius Ceccon, Luiz Carlos (Luizão), Gil, Noni, pelos momentos nostálgicos, pelas viagens nas memórias de nossas peles e almas sacolejadas numa Kombi, projetadas no telão de nossas mentes. Agradeço pela cooperação e crença nesse projeto de fundamental importância na produção de conhecimento. À equipe da TV Pinel, especialmente ao Alexandre Lima que acabou de chegar e muito contribuiu para a escritura desse trabalho. À equipe da Oi Kabum!, especialmente à Noni Ostrower, Dinah Frotté, Fernando Mozart e ao Alberto Tornaghi pela compreensão no momento crucial desse processo. Ao Valter Filé, que me proporcionou essa vivência tão dinâmica, que gravou na minha história de vida um roteiro de aprendizagens, com muitos cortes secos e efeitos. Um material bruto de tanta intensidade, que foram 10 anos parecendo que vivi em 10 minutos. Essa é a TV Maxambomba, intensa. E finalmente agradeço ao meu orientador, professor Mauro José Sá Rego Costa que com sua generosidade, com sua orientação singular, me desterritorializou e contribuiu na minha produção de vida.
Na televisão nada se cria, tudo se copia. Chacrinha
A arte é uma fraude. Você só tem que fazer o que ninguém fez antes. Num June Paik
RESUMO
TOJA, Noale de Oliveira. TV Maxambomba: processos de singularização. 2010. 88 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas) – Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, 2010 TV Maxambomba: Processos de Singularização é o resultado do processo de investigação sobre as potencialidades que residem na linguagem audiovisual, sobretudo no processo de produção de vídeo e comunicação popular, apropriados por pessoas que nas suas diferenças – utilizam a linguagem e a tecnologia do vídeo como ferramenta de produção da expressão da sua cultura, da sua realidade, da sua criação e inventividade. Percorrendo o percurso da TV Maxambomba, essa pesquisa trouxe a dimensão da potencia que envolve a articulação de pessoas e grupos utilizando a tecnologia do audiovisual, a linguagem do vídeo no seu processo de criação como mecanismo de produção de conhecimento e de subjetivação. Ao longo dos seus 15 anos A TV Maxambomba revela-se como um potencial laboratório de invenção midiática, democratizando a linguagem audiovisual, possibilitando que numa era midiática, inicia-se a “era pós-mídia”. Transgredindo as normas e os formatos televisivos, traçando suas “linhas de fuga”, trazendo as peculiaridades das comunidades e territórios ocupados pela TV Maxambomba, “territorializando” e “desterritolizando” sua própria linguagem, revela-se como espaço de produção de processos de singularização. Palavras-chave: Produção de vídeo. Comunicação popular. Televisão. TV Maxambomba. Subjetivação. Singularização.
ABSTRACT
TV Maxambomba: Processos de Singularização, is the result of the investigation into the potential residing in the audiovisual language, mainly in video production and communication people, appropriated by people in their differences – use language and video technology as a tool for expression of itsproduction culture, its reality, its creation and inventiveness. Walking along the path of the TV maxambomba, this research has brought the dimension of power that involvesthe articulation of people and groups using audiovisual technology, the language of video in your creative process as a mechanism of knowledge production and subjectivity. Throughout its 15 years TV Maxambomba shows as a potential laboratory media invention, democratizing audiovisual language, enabling an era media, begins the "post-media era."Transgressing the rules and television formats, tracing their "lines of flight," bringing the peculiarities of the communities and territories occupied by TV Maxambomba, "territorialized" and "desterritolizando" their own language, it revealsitself as a space of production processes of singularization. Keywords:
Video
production.
Popular
communication.
Television.
Maxambomba. Processes of subjectivation. Processes of singularization.
TV
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................... 1
9
SUBJETIVIDADE, SINGULARIDADE, MULTIDÃO, LINHA DE FUGA: O VÍDEO COMO PROCESSO DE SINGULARIZAÇÃO E LINHAS DE FUGA ....................................................................................................... 13
1.1
Da biopolítica aos processos de subjetivação ............................... 18
1.2
Mas o que é o vídeo? ...........................................................................
20
1.3
O vídeo no Brasil ...................................................................................
22
2
TV MAXAMBOMBA NA TIME LINE DA TELEVISÃO E DO VÍDEO ...... 25
2.1
A tela azul ...............................................................................................
2.1.1
A qualidade da programação ................................................................... 28
2.2
O vídeo, um susto, uma surpresa ........................................................
32
3
A TV MAXAMBOMBA: UM MEMORIAL ................................................
37
3.1
Estação maxambomba: a TV Maxambomba - periferia da periferia..
39
3.2
As exibições ...........................................................................................
41
3.3
TV
Maxambomba:
laboratório
de
26
experimentações
comunicacionais.....................................................................................
43
3.3.1
Oficinas com movimentos sociais ............................................................ 45
3.3.2
Transitando pela comunicação e educação: vídeo- carta - botando a mão na mídia ...........................................................................................
48
3.3.2.1 Video-carta ............................................................................................... 51 3.3.2.2 Botando a Mão na Mídia (1997 – 2000) ..................................................
52
3.3.3
Repórter de bairro (1994-1998) ...............................................................
57
3.3.4
Protagonismo juvenil ................................................................................ 62
3.4
TV Maxambomba no devir loucura! .....................................................
66
3.4.1
TV Pinel!!! Qual é o Canal? .....................................................................
68
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................
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REFERENCIAS
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INTRODUÇÃO
Há algumas décadas os avanços tecnológicos tem facilitado a população a se apropriar cada vez mais intensamente das tecnologias da informação e comunicação. Essas não se restringem a internet, são um conjunto de tecnologias microeletrônicas, informática e de telecomunicação, permitindo a aquisição, produção, armazenamento, processamento e transmissão de dados em forma de texto - áudio - imagem. Esse avanço tecnológico facilitou a invenção de aparelhos mais acessíveis tanto em relação ao custo quanto à sua manipulação. A democratização do computador, a disponibilidade de equipamentos de captura de imagem e de som cada vez menores
como os celulares, câmeras digitais de vídeo e foto, facilita a
aproximação das pessoas dessas tecnologias, produzindo a mais diferentes imagens do mundo social e virtual. Num curto espaço de tempo, favoreceu uma revolução nos modos de vida, são novos processos agenciados modulando e produzindo nossa subjetividade. A tecnologia da informação e comunicação produz hoje uma diferença singularizadora no fazer política. Fruto do trabalho imaterial, é o que temos de comum para produzir as linhas de fuga da multidão. Ações políticas singulares produzidas por um telefone celular, como em junho de 1999, durante protestos contra a vitória de Mahmoud Ahmadinejad nas eleições iranianas, uma jovem é morta. O governo iraniano censurou a veiculação pela mídia internacional de qualquer imagem, notícia sobre a manifestação, mas num curto espaço de tempo o celular e a internet fizeram o mundo ter contanto com as primeiras imagens da violência desse protesto1. Em fevereiro de 2008, autoridades cubanas bloquearam o acesso do blog mais lido do país, produzido por Yoani Sánchez. O blog crítico "geração Y" que recebeu 1,2 milhão de visitas em fevereiro. No seu blog Sánchez descreve as dificuldades econômicas e restrições políticas que enfrenta. Ela critica as promessas de mudança de Raúl Castro e mostra o cotidiano da vida em Cuba. 1
As imagens do protesto contra a vitória de Mahmoud Ahmadinejadh, embora tenham sido censuradas, a violência durante o evento, flagrada por celulares, no qual causou a morte da jovem foi publicada na internet e noticiado por vários sites, como: <http://noticias.terra.com.br/mundo/eleicoesnoira/2009/interna/ 0,,OI3837492-EI14022,00-Jovem+morta+em+protesto+vira+simbolo+de+luta+iraniana.html>.
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Em um país controlado pelo Estado, sem mídia independente, Sánchez e outros blogueiros que vivem em Cuba encontraram na internet um meio de expressão sem amarras. No Brasil o movimento Ficha Limpa, que desde 2008, vem promovendo um debate
no cenário político sobre o combate a corrupção eleitoral, vem
conquistando resultados positivos. O projeto de lei 9840 foi sancionado em junho de 2010.
O site do movimento disponibiliza materiais, vídeos para a
disseminação da campanha. Uma iniciativa popular que faz uso das redes de informação e comunicação para mobilizar a população em busca de uma política limpa e transparente. Configurando o que Negri chama de um “poder em rede”. São pessoas singulares, não são partidos nem movimentos sociais, numa estrutura molar, que levantam suas bandeiras. São sujeitos ético-políticos singulares, é um projeto molecular da multidão, que produz um novo modo de relação com o mundo e com a vida. Mesmo
sendo
um
instrumento
importante
de
homogeneização
e
manutenção do sistema capitalista, como Negri analisa, num regime biopolítico os modos de produção de vida fazem emergir a potência da vida – a Biopotência. Os mesmo instrumentos de modelização, usados pelo
Império, escapam de seu
domínio, passando por outros agenciamentos, promovem uma manifestação diferente das lutas de operários num sistema fordista. A luta não é mais de classe, a luta é de um conjunto de singularidades, que nas suas diferenças constituem a multidão. São diferentes culturais, raças,
etnias, gêneros,
orientações sexuais, diferentes formas de trabalho, diferentes maneiras de viver, diferentes visões de mundo e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade. Como não se trata de uma unidade, identidade (povo), nem de uma uniformidade (massa), a multidão precisa encontrar o comum, o que lhe faz comunicar e agir. E o que essas diferentes singularidades tem em comum é a linguagem, a comunicação, os afetos, a cooperação e os desejos. Essas comunalidades
só
acontecem
na
relação
com
o
outro.
A
linguagem,
comunicação, os afetos, a cooperação não acontecem em si, elas acontecem e se produzem na relação de alteridade. Esse movimento da multidão tem sido ensaiado há décadas. No campo do audiovisual, a tecnologia de produção e reprodução de imagem e som, como o vídeo cassete e as câmeras de vídeo, tem favorecido pessoas, grupos a
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enveredarem para a produção de obras audiovisuais. O vídeo pensado como um dispositivo, como obra de arte, como uma linguagem que potencializa as formas de expressão. A televisão como um veículo de massa, também apresenta linhas de fuga,
gera processos de singularização, desterritorializando a linguagem
televisiva, propondo novas formas de uso da linguagem nas sua produções. Nessa direção, surgiram experiências de vídeo e de comunicação popular, dentre elas a experiência sui generis e que rompeu muitos modelos de pensar usos políticos do vídeo, a TV Maxambomba. Meu projeto de pesquisa se dedicou a investigar a TV Maxambomba, refletir sobre suas formas de produção da imagem, como a Maxambomba gerou processos de singularização nas suas diferentes intervenções. Ingressar no Mestrado com essas inquietações serviu para atravessar a vivência profissional na TV Maxambomba, articulada à outras experiências, com um olhar teórico, que se acrescenta
às discussões contemporâneas que
envolvem os processos de subjetivação produzidos ou tramados nas relações entre
as tecnologias comunicacionais e os grupos humanos, uma relação
ecosófica, entendida como uma “articulação ético-política entre os três registros ecológicos: o mental, o social e o ambiental” (GUATTARI, 1997), atravessando diferentes dinâmicas da vida, propiciando uma transversalidade diversos modos de produção da própria vida. Investigar a TV Maxambomba como precursora de um processo democrático de apropriação da linguagem da tecnologia audiovisual que vem até os dias atuais servindo de referencia para produção de novas intervenções sociais é disponibilizar um estudo sobre a multiplicidade social e suas formas de expressão e negociação de desejos e sentidos. Trago para esse diálogo os referenciais teóricos de Antônio Negri e Michael Hardt, que defendem um novo conceito de organização ou “desorganização” social na reformulação da constituição do comum, pautado no paradigma da “multidão”; de Deleuze e Guattari que trazem para a contemporaneidade conceitos que traduzem essa “multidão” sob um olhar singular na relação humana de maneira rizomática e ecosófica; e Arlindo Machado e Philippe Dubois que nos provocam a pensar em novas formas de produção semiótica com a televisão e o vídeo. A metodologia que utilizei se aproxima da pesquisa-participante e da pesquisa-ação. Embora estando há 10 anos de distância do projeto TV
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Maxambomba, o fato de eu ter feito parte da equipe e me debruçado sentido, até o momento em que pessoas preocupadas com as questões sociais e políticas num dado espaço-tempo, percebem o potente instrumento de comunicação e de articulação de pessoas e grupos, se apropriam dessa tecnologia e linguagem para iniciar um projeto de comunicação e educação popular junto às associações de moradores em Nova Iguaçu, o que alguns anos depois se tornará a TV Maxambomba. A partir desse travelling, entro na Estação Maxambomba, e como pegasse o trem da história faço uma viagem pelos processos de subjetivação que a TV Maxambomba produziu ao longo de seus 15 anos de existência. Nas considerações finais, faço reitero as novas possibilidades do uso das tecnologias e linguagem comunicacionais para a libertação e democratização de nossa sociedade, num movimento de multidão buscando sua autogovernança.
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1 SUBJETIVIDADE, SINGULARIDADE, MULTIDÃO, LINHA DE FUGA: O VÍDEO COMO PROCESSO DE SINGULARIZAÇÃO E LINHAS DE FUGA
A primeira pessoa soa como eu sou, a segunda pessoa soa como tu és, a terceira pessoa soa como ele e ela também. Qualquer pessoa soa, toda pessoa boa soa bem Gilberto Gil Embrenho-me na música “simples” de Gil (1999), porque tanto sua poesia, quanto sua melodia, me põem em devir e me apontam pistas para pensar os conceitos que deverão dar alguma sustentabilidade a minha pesquisa. Conceitos aparentemente simples, mas complexos quando aplicados em nosso movimento, convocando o olhar da transversalidade, atravessado por outros vetores, como sugere Guattari (1997). “A primeira pessoa soa como eu sou, a segunda pessoa soa como tu és, e a terceira pessoa soa como ele e ela também” (GIL,1999). Todos nós soamos alguma coisa, coisas boas e ruins, soamos bem e mal. Esse modo de olhar a pessoa, na estrutura gramatical, onde um pronome pessoal antecede um substantivo comum, seguido de uma ação (verbo), revela a individuação do sujeito, ou da pessoa, pois o sujeito é o próprio indivíduo. Foucault pensando a sua filosofia nas dimensões (saber, poder e sujeito), ensaia um outro olhar para o sujeito, descolando-o da noção de indivíduo. Sua análise está focada no sujeito como força que está em relação ao poder e ao saber num constante processo de subjetivação, ele não emprega a palavra sujeito como pessoa ou identidade, mas nos termos de “subjetivação” (DELEUZE, 1992). A subjetivação é o processo de constituição da própria vida. É conceber a vida num processo de formação, estabelecendo-se nas relações de força. A subjetivação é a própria produção da vida. É importante dissociar a subjetividade da noção de sujeito. A subjetividade humana não é um depósito, que internaliza as “coisas” que vem de fora. A subjetividade é uma produção maquínica, uma produção numa relação de alteridade. A noção de sujeito no campo filosófico é algo do domínio da natureza
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humana. Descartes, com o seu racionalismo supervaloriza o sujeito – “Penso, logo existo”, como se a constituição do sujeito passasse apenas pelo pensamento, e não levando em conta os afetos, as sensibilidades, na sua relação com o mundo social e cósmico. Guattari, então nos provoca: O sujeito não é evidente: não basta pensar para ser, como proclamava Descartes, já que inúmeras outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito se obstina em apreender a si mesmo e se põe a girar como um pião enlouquecido, sem enganchar em nada dos Territórios reais da existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes. Ao invés de sujeito talvez fosse melhor falar em componentes de subjetivação […]. Isso conduziria reexaminar a relação entre indivíduo e a subjetividade. (GUATTARI, 1997, p.17).
Guattari, pensa o indivíduo como resultado de uma produção de massa, ele é serializado, registrado, modelado, um sujeito hegemônico. A subjetividade ao contrário, não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. A individuação está no campo corpóreo e
a subjetividade é produzida pela
multiplicidade de agenciamentos de subjetivação, isto é, a subjetividade é fabricada, modelada em massa ou singularizada num agenciamento grupal. Comungando do pensamento de Guattari, Negri na Constituição do comum, reflete sobre essa relação do indivíduo-individualidade-identidade e suas complicações no campo social: Individualidade significa algo que está inserido em uma realidade substancial, algo que tem uma alma, uma consistência, por separação em relação à totalidade, em relação ao conjunto. É algo que tem uma potência centrípeta. O conceito de indivíduo é de fato um conceito que é colocado a partir da transcendência em que relação não é algo entre eu, tu e ele, mas uma relação do indivíduo com uma realidade transcendente, absoluta, o que dá a essa persona a consistência de uma identidade irredutível. […] sabe-se perfeitamente como, sobretudo em um país como o Brasil, funções, mais que conceitos, de poder e de raça se uniram profundamente para criar diferenças sociais […]. (NEGRI, 2005, p.2).
A questão principal que Negri sublinha é que o conceito de identidade amputa uma possibilidade mais democrática de relação entre as pessoas e as “coisas” do mundo. O indivíduo ou as forças individuadas, são moldadas, formatadas dentro de uma convenção, seja ela biológica, sexual, familiar, religiosa, classificação social, étnica - “Toda pessoa boa soa bem” (GIL, 1999). São convenções que nos agregam em guetos, amarrados por uma suposta identidade inflexível, que não comporta as diferenças, leva às segregações, as disparidades de qualidade de
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vida e de justiça social, que polariza nosso planeta em pequenas grandes riquezas em relação a grandes extremos de miséria, cultivado por um império que nos captura, captura nossas vidas numa dimensão biopolítica. Sob a égide da identidade, e de uma suposta comunidade hegemônica, o império captura nosso modo de vida e produz além das necessidades materiais, produz também os desejos, os sonhos, o conhecimento, os afetos – se apropria do trabalho imaterial - intelectual e afetivo. Na pós-modernidade é principalmente o trabalho imaterial que será capturado pelo capitalismo, apropriando-se da produção de nossos afetos e sensibilidade. Na sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1992), o comando social é organizado e disseminado por dispositivos e aparelhos que produzem os modos de relação circunscritos na vigilância e na punição, ordenando comportamentos, costumes e práticas produtivas, reguladas por instituições disciplinares que asseguram a obediência a inclusão e a exclusão, como a escola, a prisão, fábrica, hospitais, enfim pelos equipamentos modeladores. A sociedade disciplinar se encarrega de domesticar e docilizar o corpo na produção do indivíduo. Em contraste a este modelo, a sociedade de controle, na pós-modernidade, desenvolve mecanismos de comando que afetam nossos corpos e mentes, fazendo com que os modos reguladores sejam cada vez mais interiorizados. O que na sociedade disciplinar é a gestão da vida sobre o corpo-indivíduo, na sociedade de controle é a gestão da vida sobre o corpo-coletivo, a população. O poder não é mais exercido apenas pela domesticação dos corpos-indivíduos pelos equipamentos tradicionais de disciplinarização,
mas pelas forças que
afetam as mentes por agenciamentos maquínicos imateriais como a ciência, o conhecimento, o afeto, a linguagem e a comunicação, produzindo, regulando e reproduzindo corpos-coletivos. O poder agora é exercido mediante máquinas que formatam, organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, redes de informação) e os corpos (em sistema de bem-estar, atividades monitoradas e etc.) no objetivo de um estado de alienação independente do sentido da vida, do desejo, de criatividade. (NEGRI, 2001, p.42).
Daí a sociedade de controle interfere internamente no nosso modo de gerir a vida, esse controle internaliza o domínio antes disciplinar estruturado seus
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equipamentos de comando por meio das redes flexíveis e flutuantes, penetrando mais a fundo nas nossas consciências e corpos e, na totalidade das relações sociais. Na sociedade de controle o poder se exerce na forma mais radical, ele atravessa, interfere, penetra, conduz nossos modos de vida, caracterizando o biopoder. Biopoder é a forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a, absorvendo-a e a rearticulando. O poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população quando se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam por sua própria vontade. (NEGRI, 2001, p. 43).
O poder não se restringe mais à repressão e a punição. Ele se exerce na absorção da produção e da reprodução da própria vida na sua totalidade. Porém a mesma dimensão de captura da vida, na biopolítica tem seu reverso. As afetações biopolíticas podem trasformar-se em biopotência. A biopolítica é ampliação da noção de vida, ela deixa de ser definida apenas no campo biológico e se encontra num espectro de afetações (sociais, culturais, econômicas e políticas). Ao mesmo tempo que a vida se produz no capitalismo, ela se desterritorializa e produz novos modos de viver. A vida torna-se uma biopotência, ou seja,
potência da vida constituída no campo social, político,
econômico e cultural . Vida agora inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto da produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. […] E ao descolar-se de sua acepção predominantemente biológica, ganha amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetar e ser afetado. (PÁL PELBART, 2003, p. 83).
Negri no Império, faz sua análise a cerca da biopolítica, não de uma forma negativa de captura das nossas forças vitais pelo capitalismo. Ele aprofunda sua reflexão, mostrando que o exercício do poder na biopolítica, produz um arsenal de mecanismos que interferem de maneira profunda nos modos de subjetivação. Através de agenciamos maquínicos como a informatização, as redes telemáticas, a comunicação, a linguagem, a criação, a arte, a cultura, o conhecimento, o capitalismo tanto captura, modeliza, normatiza modos de vida, como através desses mesmos recursos imateriais, a vida se autoproduz, se singularizando, como modo de resistência.
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Daí, a biopolítica que Foucault caracterizou como o poder sobre a vida, será para Negri potência da vida. Dessa forma o império como um regime biopolítico comunga desse duplo sentido, ao mesmo tempo que assume o poder sobre a vida, também precisará reconhecer a potência da vida. As redes de comunicação e informatização produzem um novo campo de organização.
A
estrutura
da
rede
é
policêntrica,
horizontal,
rizomática,
inviabilizando qualquer possibilidade de centralidade. Essa organização em rede no terreno biopolítico é um campo fértil para a manifestação da multidão, pois nela se produzem novas subjetividades e novas formas de vida. Não se trata mais da organização de indivíduos com uma Unidade – Povo - Uno, reduzindo as diferenças sociais a uma identidade. Ou seja, o povo é constituído por indivíduos que para se constituir como tal precisam negar suas diferenças. O conceito de multidão não deve ser confundido com outros conceitos aglomeração de pessoas, como as massas, onde não há singularidades e que a partir de um comando se individualiza, sendo suscetível a manipulação externa. A multidão é um território que se produz nas diferenças. Ou seja, a multidão é composta de um conjunto de singularidades (NEGRI, 2005). É uma diferença que deverá se manter diferente. Embora seja múltipla, não significa que seja fragmentada ou incoerente. Diferente do Povo, a multidão não precisa de um poder soberano, ela governa a si mesma. A multidão é um conjunto de singularidades cooperantes. Não se baseia na identidade ou na unidade, mas naquilo que tem em comum. Como define Negri (2005, p.2), “A multidão pode ser […] o conjunto de singularidades cooperantes que se apresentam como uma rede, uma network, um conjunto que define as singularidades em suas relações umas com as outras”. A multidão é o reconhecimento do outro. Negri propõe considerarmos que o mundo está feito de singularidades, relações e a partir das relações, aumenta nossa capacidade de ação. São forças cooperantes que produzem novos modos de vida sob o paradigma da autonomia. A multidão se constitui na comunalidade dos processos e dos bens de produção. No contexto biopolítico, o comum é a linguagem, a inteligência, os saberes, a memória, a imaginação e por conseguinte a inventividade comum. O comum que permite comunicar e agir em conjunto é o poder de autogovernar da
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O que nos é comum é aquilo que compartilhamos e produzimos em comum. A linguagem, a comunicação, o conhecimento, os modos de se relacionar, são bens que nos são comuns. A linguagem, a comunicação, as relações, os afetos não existem em si,
não são propriedades privadas. São
dimensões imateriais existentes na relação com o outro, se produzem na relação. Nossa comunicação, colaboração, cooperação, saberes não são apenas o que nos é comum como também o que produz o comum. As novas modalidades de trabalho sob o paradigma imaterial, constituído em redes de conhecimentos e comunicação permitem a criação de novas formas de conhecimento. A comunalidade nos projetos imateriais são as idéias, as imagens, os afetos e as relações, o que compartilhamos nessa relação produz novas idéias, imagens e afetos. É uma relação em espiral de inventividade que está em constante movimento de produção da vida. A multidão se produz nos processos de subjetivação do comum. As singularidades se comunicam socialmente com base no comum e sua comunicação social por sua vez produz o comum. A multidão é a subjetividade que surge dessa dinâmica de singularidade e partilha. (NEGRI, 2005, p. 258)
É nesse tecido social produzido e reproduzido pelo comum que a linguagem, os afetos, a comunicação, a cooperação, bens e produtos produzidos pelo espectro da multidão levam implicitamente a uma sociedade mais democrática.
1.1 Da biopolítica aos processos de subjetivação
A subjetividade não é uma espaço vazio a ser preenchido por um certo modo de falar, vestir e pensar, que seriam interiorizados.
Subjetividades são
produzidas, tanto individual quanto coletivamente, através de agenciamentos de forças que vão desembocar em discursos, narrativas, imagens, sensibilidade e produção do desejos. O que Guattari (1997), nos provoca a pensar é que a apreensão de um fato psíquico é inseparável do Agenciamento de enunciação que lhe faz tomar corpo, como fato e como processo expressivo. Acompanhando esse pensamento o
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inconsciente é também um dispositivo de produção de subjetividade. Guattari sublinha que até mesmo os sonhos são processos de produção externa, de agenciamentos, contrariando o que Freud proclamava, como um lugar de manifestação das pulsões e desejos primitivos e reprimidos e ocultadas sob a segurança do inconsciente. Guattari propõe então, […] não “ultrapassar” ou a apagar para sempre da memória o fato freudiano mas reorientar seus conceitos e suas práticas para fazer deles outro uso, para desenraizá-los de seus vínculos pré-estruturalistas com uma subjetividade totalmente ancorada no passado individual e coletivo. O que estará daqui em diante na ordem do dia é o resgate de campos de virtualidade “futurista” e “construtivista”. O inconsciente permanece agarrado em fixações arcaicas apenas enquanto nenhum engajamento o faz projetar-se para o futuro. (GUATTARI, 1997, p. 20)
Guattari propõe um visão do Inconsciente como construção incorporal que se apropria da subjetividade em seu ponto de emergência. Um inconsciente maquínico com os poros abertos às relações sociais circundantes, às interações econômicas, ao movimento da história, propenso a todos e novos possíveis. Um inconsciente que se produz tanto no interior de indivíduos, como no interior da família, das escolas, das fábricas, um inconsciente não estruturado no passado, mas focado no futuro, para um desejo mais produtivo e constitutivo. A subjetividade é produzida em inúmeras facetas, onde participam desde o "romance familiar", até a tecnologia, passando pelas questões históricoculturais. Um exemplo atual é uma criança que tem na sua rotina cotidiana, além da família e a escola, a televisão como vetor de subjetivação. A televisão modula a subjetividade com seu bombardeio de valores, comportamentos, num jogo de afetos que a mobiliza. Assim, a família, a escolas, a religião, a mídia, o trabalho, formas de modelo econômico e político são vetores atuantes no processo de subjetivação. Para Guattari, os processos de subjetivação ou de semiotização não são centrados em agentes individuais, nem em agentes grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Guattari (1997), propondo uma produção transversalizada insere a subjetividade como parte do que chamou de registros ecológicos. Por entender que os três registros – mental, social e ambiental - se encontram num estado de deterioração, propõe a ecosofia como recomposição da práxis humana nos mais variados domínios e em todas as escalas da produção de desejo a reinvenção da
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democracia. Sua proposta ecosófica se confronta com as saídas estritamente tecnocráticas em relação às quais giram, na maioria das vezes, as preocupações em torno da deterioração ecológica e da melhoria das condições de vida do planeta. A subjetividade então, é um processo inventivo que acontece quando segmentos semióticos se libertam das significações dominantes e passam a criar novas formas singulares de existência. Numa era pós-mídia (GUATTARI, 1997) propõe a inventividade na apropriação das mídias tecnológicas de massa, como libertação dos padrões normatizantes. A resignificação da mídia e da tecnologia da informação e comunicação podem constituir vetores de singularização e o vídeo pode ser considerado um desses vetores. Exemplo disso é a apropriação da linguagem do vídeo nas décadas de 1960 a 1980 por artistas que extrapolam o uso do vídeo como um equipamento tecnológico. Como linha de fuga para um aparato que surgiu para viabilizar processos de produção na televisão, o vídeo torna-se um dispositivo de revelação de singularidades no campo das artes, ocupando outros territórios.
1.2 Mas o que é o vídeo?
Essa é a pergunta feita por Dubois (2004). O vídeo é um universo complexo abrigado num aparato tecnológico. Pela sua dinamicidade, seu caráter tecnológico se torna um apêndice, pois associado a outros nomes (fenômenos ou expressões) ele muda sua função utilitária. Se pensarmos o vídeo na sua complexidade como um dispositivo, uma linguagem, uma estética, esse elemento atribui outros valores
tanto estruturalista quanto subjetivo que se torna num
modo de pensar. Por isso, é complicado reduzir o vídeo a um único conceito ancorado principalmente na tecnologia – uma câmera – um vídeo-cassete – uma máquina, já que ele congrega outros significados. Destaco dessa tentativa de conceitualização de Dubois, sua análise etimológica da palavra video, (sem acento). É um verbo originária do latim (video - videre - “eu vejo”), próprio das artes visuais, constituído de toda a ação de
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olhar, por isso, o autor sugere que o vídeo está presente em todas as artes da imagem (DUBOIS, 2004, p. 71). Sendo assim, o vídeo é um estado, o estado do olhar, do visível, da maneira de ser das imagens. O fato é de como as pessoas, sobretudo, os artistas foram se apropriando dessa linguagem ou tecnologia, criando a categoria videoartista. Como aparato tecnológico, a sua mobilidade possibilitou, a reinvenção,
a criação em
instalações, performances, invadindo as galerias e escolas de arte e museus. Como um dispositivo comunicacional, uma linguagem que revela múltiplas linguagens, reinventando o conceito de arte. O vídeo surge como um processo de singularização de muitos artistas, como linha de fuga para pessoas que se apropriaram desse aparato para estabelecer uma outra estética. Dubois pensa o vídeo nessa perspectiva, como um dispositivo, um evento, uma intervenção, uma complexa cenografia de telas, que afeta o espectador, indo além do que as telas podem mostrar. Nesse sentido o vídeo para Dubois (2004) é um estado e não um produto – o vídeo como estado-imagem, como forma que pensa.
Isso faz uma diferença nessa análise, o vídeo não limitado a uma
maneira de narrar ou registrar, mas tendo sua potência desenvolvida como um modo de pensar. Esta estética videográfica está marcada em inúmeras peças transgressoras, irreverentes, ousadas, como obra de arte. Dentre vários exemplos caracterizados por Dubois, destaco Num June Paik – coreano que usa o vídeo como um dispositivo. Um artista que se singulariza, quando propõe lançar mão da linguagem videográfica para produzir arte, irreverente e inquietante. Para Machado (1995), Paik virou a televisão pelo avesso, transformando-a em vídeo-arte. Ele diz: É bastante significativo que, numa mídia suportada por pesada tecnologia, atravessada por grandes fluxos de capital, penetrada de trustes e multinacionais, um habitante do Terceiro Mundo tenha ensinado ao Primeiro como tirar conseqüências de sua própria invenção, (MACHADO, 1995, p.11). Dubois (2004) analisa o conjunto de sua obra, senão um conjunto de imagens-dispositivos, de instalações-imagens, invocando a multiplicidade, a velocidade, espaço-tempo saturado, móvel e flutuante, além de se impor mais como um estado do que um objeto de contemplação.
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1.3 O vídeo no Brasil
O vídeo seguinte,
no Brasil aparece no final da década de 1960. Na década
a tecnologia
foi apropriada, sobretudo, por artistas plásticos que
buscavam novos suportes para sua produção e logo se incorporaram à categoria de videoartista, criando outras linguagens e manifestações de videografismo em salas e galerias, museus e na própria arte do audiovisual. Machado na sua análise sobre a videoarte no Brasil, ressalta a importância de Hélio Oiticica2 dentre outros nessa expansão das experiências das artes plásticas no terreno do audiovisual. Outros nomes de relevância na década de 80 são Rafael França e Arthur Matuck, formando a geração do videoindependente. A partir da década de 1980, a geração do videoindependente, jovens recém-formados, cria um processo de transição do vídeo, saindo das galerias e museus, para interferir na linguagem televisa, explorando suas possibilidades, como um sistema expressivo (MACHADO, 2007, p.18), transformando a imagem eletrônica num fato da cultura de nosso tempo. Surgiram nesse período grupos, TVDO – Tevê Tudo e Olhar Eletrônico, que subvertem a linguagem televisa, com inventividade, este último absorve a linguagem do videoarte e trabalha suas peças entre 3 e 4 min. com corte acelerados. Mas foi na produção de documentários de cunho social, que o Olhar Eletrônico trouxe sua maior contribuição. E uma terceira geração de videoastas brasileiro (1990), faz a síntese das duas gerações. Estes optam por um trabalho mais autoral e menos militante, desenvolvendo temas de interesse universal. Sua contribuição é a investigação das formas expressivas do vídeo e a exploração de recursos estilísticos afinados com a sensibilidade da humanidade nessa conjuntura social e política, no final do século XX. Na década de 1980 surgem as experiências de comunicação popular e TV comunitária, TV Viva em Recife, TV Olho em Duque de Caxias – RJ, dentre outras experiências isoladas. Nessa mesma época foi criado a Associação Brasileira de Vídeo Popular – ABVP, com abrangência nacional. No final do ano de 1989 vai à praça, a TV Maxambomba. 2
Arlindo Machado em Made in Brasil (2007,p. 16-21) mostra uma panorâmica da introdução do vídeo como um atributo das artes plásticas e a importância desse movimento para a televisão brasileira.
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Concluindo, o contexto social e político em que as tecnologias da comunicação, sobretudo, a televisão e o vídeo se rizomatiza produzindo linhas de fuga
no
espectro
das
mídias
de
massa
e
da
indústria
cultural,
se
desterritorializando, se singularizando, corrobora com o que Negri nos provoca a pensar na produção de valores imaterias, desenvolvidos pela linguagem e pela comunicação e do simbólico que são desenvolvidos pelas indústrias de comunicação. Ele diz: O desenvolvimento de redes que se comunicam tem uma relação orgânica com a emergência da nova ordem mundial – é, em outras palavras, efeito e causa, produto e produtor. A comunicação não apenas expressa mas também organiza o movimento de globalização. Organiza o movimento multiplicando e estruturando interconexões por intermédio das redes. (NEGRI, 2001, p. 51).
Numa possibilidade de uma era pós-midiática, que Guattari sugere como desterritorialização e processos de singularização da mídia hegemônica, os movimentos artísticos que encontraram na televisão e no vídeo possibilidades singulares de subjetivação, deixa o legado para as próximas gerações. A apropriação dessas linguagens na sua forma mais radical e inventiva que faça gerar num processo de biopotência, a potência da vida daqueles que na sua diferença se faz constituir o biossocial. Ele propõe: um ponto programático primordial da ecologia social seria o de fazer transitar essas sociedades capitalísticas da era da mídia em direção a uma era pósmídia, assim entendida como uma reapropriação da mídia por uma multidão de grupos-sujeito, capazes de geri-la numa via de ressingularização. (GUATTARI, 1997, p. 47).
Há vinte anos Guattari preconizava uma era que vem se desenhando ao longo desse período, ele descreve quatro fatores que o leva a crer na transição da era da mídia para a era pós-mídia - Um constante movimento de produção de consciência política, a mudança de paradigma das lutas sociais, a evolução tecnológica com a miniaturização dos equipamentos e seus baixos custos e por fim,
a recomposição dos processos de trabalho que promove a produção de
subjetividade inventiva, tanto no plano individual quanto coletivo. Hoje com o avanço tecnológico das redes de informação e de comunicação e com o referencial teórico das experiências que revelaram a capacidade de apropriação da tecnologia midiática, é possível ver cada vez mais presente a era pós-midiática acontecendo. No campo da comunicação popular, no Brasil percebo na TV Maxambomba uma experiência singular no processo de
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democratização da comunicação, por permitir o vídeo e a televisão acontecerem mais como um estado do que um objeto, tratando as linguagens audiovisuais como um bem comum, como uma forma de pensar e de produção de processos de subjetivação.
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2. TV MAXAMBOMBA NA TIME LINE DA TELEVISÃO E DO VÍDEO
A televisão está ligada a gente tem que vê. Não interessa o quê. A televisão é diversão ou alienação? [...] Olha a panela no fogo. - O quê? Olha a novela do povo! - ah! […] Antônio César Marques (Usina de Prata-Grupo Ocaso)3
Esse capítulo exige uma certa flexibilidade na sua narrativa. É preciso interagir como num processo de edição não linear4, com alguns insertes de flash back e making of numa sobreimpressão de imagens, trazendo uma relativa transparência e espessuras5, onde um quadro se refaz em camadas com diferentes passagens da minha experiência com a televisão e o vídeo, numa fusão onde se confunde o empirismo e a teoria. A mixagem textual, traz referências ao advento da televisão e à trajetória do vídeo. Sua contribuição enquanto linguagem singularizada por artistas, criando a
videoarte, o vídeo
experimental, até sua apropriação por ONGs e movimentos sociais das décadas de 1980-90, chegando ao plano principal, o projeto de comunicação popular - a TV Maxambomba.
3
Fragmento do texto da peça teatral Usina de Prata, de Antônio César Marques, diretor do grupo de teatro amador “Ocaso”. Esse grupo se reunia em São João de Meriti no final da década de 1980 e início de 1990. César na sua peça, fazia a crítica à televisão - sua intervenção no modo de vida das pessoas. Usina de prata falava da usinagem movida pelo capital em que um de suas engrenagens era a Lua Azul (televisão) que hipnotizava, manipulava e domesticava a população da usina. 4 Edição não linear é a edição de vídeo utilizando o aparato tecnológico digital – o computador e o software de edição. Como um editor de texto, se recorta, cola, arrasta fragmentos imagem e áudio. Com o uso do mouse ou com atalhos no teclado manipula-se os planos movimentando-os livremente frente ou para traz, ou ainda sobrepondo-os, criando tracks (pistas) um sobre as outras, na timeline (linha do tempo). Anteriormente a edição era analógica, sistema de edição linear, colando os planos seqüencial. A ilha de edição era montada por 1 ou mais vídeo cassete e 1 máquina Record conectados a uma mesa de corte e efeito. A diferença de uma para outra, além das questões tecnológicas é a própria manipulação dos planos, na edição não linear o editor tem mais mobilidade e pode fazer muitos ensaios durante o processo de edição. 5 Esses conceitos da linguagem do vídeo são apresentados por Dubois (2004, p. 74-92), fazendo a relação entre a linguagem cinematográfica e videográfica. A edição no vídeo, as imagens podem ser coladas uma do lado da outra (janela); sobre a outra, numa fusão de imagens (sobreimpressão).
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2.1 A tela azul
Meu primeiro contato com a televisão na infância, início da década de 1970, foi na casa de D. Maria do poço. Uma senhora franzina que morava no beco, no Gramacho e deixava a minha mãe pegar água. Sua casa não nos abastecia apenas com água, mas também de fantasia, com a televisão. Ela era uma das poucas pessoas que tinha poço e televisão naquele lugar. Todas as tardes ia assistir teve na casa de D. Maria e ás vezes, também de dia. Enquanto minha mãe pegava água, lembro-me que assistia Nacional Kid. Era o programa que recordo com mais clareza. Essa era uma realidade brasileira nas classes menos favorecidas, a televisão era um artigo de luxo, lembro-me que a hora de ver TV, na vizinhança era um momento de encontro, quase um ritual. Nos Estados e Unidos, a televisão antes da 2a. Guerra Mundial era símbolo de status. Entre as décadas de 1950 e 1960, como na Europa, os avanços tecnológicos, aceleraram sua difusão tornando-se um veículo popular. A partir da década de 1970 com a concorrência do mercado japonês, o custo dos aparelhos torna-se mais baixos.
A
tecnologia é aprimorada e
surgem os
receptores em cores com telas maiores (DEFLEUR; BALL-ROKUACH, 1993)6. No Brasil essa tecnologia chega na segunda metade da década de 1970. Não eram todos que podiam adquirir um televisor em cor, era comum usar uma espécie de acetato bicolor grudado na frente da tela, para dar um ar colorido a imagem. Mas isso é apenas uma panorâmica ou um travelling, no qual não pretendo deter-me. No Brasil a difusão da televisão acontece entre meados dos anos 50 e início dos anos 60 do século passado, com a distribuição dos canais de televisão (TV Tupi, Excelsior, Record, TV Cultura e TV Globo). Nessa imagem meio destorcida, lembro-me (final dos anos 1960) que o aparelho de televisão (o primeiro que tive contato) não era algo tão exposto como hoje em dia. Era uma espécie de baú, armário, caixa. Enquanto ficava desligada era trancafiada naquele ambiente insólito. Agregando valores simbólicos de ritualização para se ver TV. Sim, ver a TV era tão igual ao assistir sua programação, era um ambiente misterioso. 6
Teorias da comunicação de massa. Os autores fazem um painel da evolução da comunicação, dedicando um dos capítulos à evolução da indústria televisa: (DeFleur e Ball-Rokeach, 1993, pp.127-133).
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Na década de 1990, tecnologias mais avançadas e de baixo custo, implantação do sistema de TV por assinatura,
a popularização da antena
parabólica e o aquecimento da economia, amplia ainda mais o processo de difusão, fazendo o consumo de aparelhos de televisão crescer vertiginosamente. No cenário urbano ou rural desenha-se uma paisagem parecida. Qualquer casa de ribeirinhos nos lugares mais remoto, qualquer barraco em periferia tinha um aparelho de TV e uma parabólica, fincada no alto da casa. Era mais um símbolo de status, como ilustra a cena do samba do grupo “Trio Calafrio”7, formado por Luiz Grande, Barbeirinho do Jacarezinho e Marcos Diniz (1999). olha o break “A Parabólica” O meu barraco, hoje está valorizado só por causa de uma antena que instalei no telhado. Mas a parabólica foi trazida por um temporal Eu achei no mato e botei no barraco na cara-de-pau! Retomando a difusão da televisão no Brasil, dados estatístico do IBGE/2004 num quadro comparativo dos anos de 1999 e 2004, mostra que 90,3% dos domicílios em território nacional possuem televisores contra 87,4% de geladeiras. Esse quadro em 1999 não era muito diferente. Meados da década de 1980, muitas emissoras suspenderam sua transmissão por falência, outras tinham uma recepção muito ruim ou uma programação seletiva e pouco atraente por seu formato didático-pedagógico, distribuindo a audiência basicamente entre três emissoras de televisão, Rede Globo, Rede Manchete e SBT. A programação desses canais, girava em torno de telejornalismo, telenovelas, programas de auditório, programas de humor e infantil. 7
Trio Calafrio formado por Luiz Grande, Barbeirinho do Jacarezinho e Marcos Diniz, não ocupa a mídia de massa, embora tenha vários sambas de sucesso gravados por Zeca Pagodinho. Essa musica foi retirada do vídeo Puxando Conversa. Uma produção que iniciou no Projeto TV Maxambomba com gravações em 1993 (Catoni e Romildo), coordenado por Valter Filé. Em 1998, a produção foi retomada com a periodicidade mensal. Foram produzidos 10 programas. A partir de 1999, a produção passa a ser independente, ainda coordenada por Valter Filé até o ano de 2004. O Puxando Conversa traz a memória do samba contada por compositores que estão na periferia da mídia.
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2.1.1 A qualidade da programação
Tratar de qualidade é algo subjetivo. Qualidade é juízo de valor e de gosto, porém do ponto de vista de alguns teóricos da televisão, boa qualidade na televisão é restrito a produções que possuem conteúdos e formatos educativos ou em defesa de valores morais. Machado (2005) faz uma crítica severa aos estudos sobre televisão que se limitam em diagnosticar audiência e má qualidade da TV, aderindo a esse adjetivo outras atribuições como manipulação, modelização, “porta voz de sistema”. O autor defende uma visão que não discrimine a televisão como algo de não qualidade ou má qualidade, já que esse julgamento, segundo ele, não são atribuídos às outras linguagens (pertencente à elite) como cinema, literatura, música. Ele diz: O objetivo não é criar um gueto de qualidade que possa existir isolado, no meio de um mar de mediocridade. Pelo contrário, o objetivo é fazer com que a idéia de qualidade possa contaminar tanto a produção quanto a recepção de televisão como um todo, ponto onde o adjunto e a discriminação se tornarem desnecessários. Ademais, a expressão televisão de qualidade nem sempre é utilizada no mesmo sentido para todos. […] Para alguns, apenas como rótulo para designar uma televisão meramente pedagógica. […] Para as forças conservadoras, […] bandeira para a defesa de valores moralistas da televisão. (MACHADO, 2005, p.13).
Porém, o conceito de qualidade pode ser tomado como referência para quem produz, pesquisa e assiste televisão, percebendo o emprego que está sendo aplicado a esse termo, para que não sejamos ingênuos, ou reducionistas, preconceituosos na relação de qualidade e a televisão. Reduzir a televisão a algo sem qualidade, implica na homogeneização de um dispositivo, que embora tenha uma extensa programação massificante, ou padronizada, traz também ensaios de singularização e linhas de fuga, com produções bem realizadas do ponto de vista estético e de conteúdo, em diferentes formatos. Olhar a televisão apenas como um espaço circunscrito pela mediocridade, impede valorizar outras tendências e experimentações televisas, inclusive na formação de público mais crítico sobre a TV. A crítica à televisão se restringe aos programas populares e massificantes. Penso que desse forma, contribuiremos pouco para uma formação crítica da recepção. Junto às críticas deveriam ser apresentadas produções que vão na contra-mão da mídia massificante. Não é possível para o telespectador
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vislumbrar outras possibilidades de programação, se a eles isso não é apresentado. Contudo, sabemos que a disputa pela audiência sucumbe à possibilidade dessa mudança de paradigma, porque se trata, sobretudo, de mudança de mentalidade. Ivana Bentes (2002), no seu artigo “Guerrilha do Sofá” apresenta uma reflexão sobre a indústria televisiva na guerra pela audiência. O olhar panóptico, que
Foucault nos apresenta como o exercício da função disciplinar, passa
também a assumir o voyeurismo. Esse incômodo é pauta de discussão desde o início da televisão, mas não é uma questões restrita aos intelectuais; pessoas comuns, digo longe das pesquisas acadêmicas, manifestam suas críticas a manipulação da audiência com programas tão agressivos e sensacionalistas (Povo na TV, Aqui e agora, Programa de domingo, dentre outros). A epígrafe desse capítulo é um fragmento do texto da peça teatral Usina de Prata, de Antônio César Marques (1988), diretor do grupo “Ocaso” - 1980-90. Essa peça é uma crítica a programação dita de baixa qualidade na televisão. O grupo comungava do mesmo sentimento em relação a televisão. Nas apresentações do espetáculo havia empatia do público, principalmente na cena da televisão, causando risos nervosos na platéia. O texto era cantado com marcações fortes modulando os corpos como robôs. Segue o texto da televisão, que por sinal, revela o pouco repertório que o grupo tinha na época acerca da programação da televisão, restringindo o olhar a alguns programas veiculados pela Rede Globo e pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT): A televisão está ligada a gente tem que vê, não interessa o que. A televisão é diversão ou alienação? Olha a Xuxa, puta que pariu, e o Silvio Santos riu “ha,ha,ha,ha”. A televisão está ligada a gente tem que vê, não interessa o que. A televisão é diversão ou alienação? Olha a panela no fogo? Que? Olha a panela no fogo? Olha a novela do povo! Ah! Olha a porta da esperança! Ô,ô,ô,ô. Olha a Xuxa puta que pariu! E o babaca do He Man, vem que tem! A panela está no fogo, mas eu nem quero saber! A panela está no fogo, mas eu 8 nem quero saber! (Antônio César Marques, 1988, in programa da peça teatral Usina de Prata)
8
Esse trecho era encenado com um trabalho corporal robótico, retratando a visão do autor sobre o efeito da televisão no expectador.
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Considero a década de 1980 um momento de transição nos formatos e conteúdos da programação da televisão. Até uma determinado período, quando havia mais diversidade de canais, a produção tinha uma certa ingenuidade, mesmo as telenovelas e alguns programas de humor que abordavam em suas temáticas conteúdos mais críticos.
Produzia-se menos a exposição da
privacidade humana, como nas últimas décadas, com a polarização das emissoras de TV. Nessa mudança de modelo televisivo, como Bentes ressalta, há “uma hipertropia do campo do privado e da intimidade, super-valorização do indivíduo, que coloca a confissão no centro da ágora, no espaço público nacional mais caro e disputado” – a televisão. As emissoras entram na guerra pelo alto índice de audiência, com uma programação focada no que denomina-se como programas interativos, aqueles em que o telespectador escolhe quem vai para o paredão, o filme a ser exibido na madrugada, a moça do fantástico. É a publicização da privacidade, combinada, às casas dos “Brothers”, dos “Artistas”, “Sem limite”9, produzindo uma subjetividade de valores simbólicos e efêmeros, que aprisionam e conduzem à vigília, ao controle e ao julgamento (coletivo) de qualquer coisa e que contamina a todos. Lembro-me
em uma dessas edições do BBB10, de ver pessoas
próximas, discutindo na hora do almoço, quem deveria ir para o paredão e por que, fazendo julgamento de conduta ou postura daqueles personagens, tendo como referência alguns minutos de programa diário; outros ficavam no horário do trabalho acompanhando na internet e debatiam com alguém que estava próximo. Ou seja, um programa que extrapola o espaço domiciliar e ocupa outros territórios com uma forte potência. Bentes salienta, “[…] O capitalismo midiático é produtor e tem que gerir bens altamente perecíveis, a informação, a notícia, bens simbólicos e imateriais, que colocam a televisão no eterno presente das medições de audiência e na guerra continua pela nossa atenção”11. E continua na sua provocação: Instabilidade e oscilações que produzem mudanças significativas nas fórmulas consagradas de fazer TV. Essa mobilidade sobre o "ao vivo", de olho nos índices, faz de cada edição do Big Brother Brasil, do Fantástico, do Faustão, do Ratinho ou da Casa dos Artistas, um exercício de mútua vigilância cada vez mais esquizofrênico e endógeno, em que o campo televisivo e suas exigências comerciais se sobrepõem a qualquer princípio. Ratinho comemora ao vivo a
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Jogo de convivência – reality show, como BBB e casa dos artistas. Big Brother Brasil. Programa de reality show produzido pela Rede Globo desde o ano 2000. 11 Bentes, Ivana. Guerrilha de Sofá ou A Imagem é o Novo Capital. www.bocc.ubi.pt: 2002 10
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subida de pontos no Ibope com gritos, música e aplausos da platéia. Estar na frente da Globo vira show, com direito à comoção popular. Alegria de ser platéia e telespectador no evento campeão de audiência que é uma satisfação em si, numa demonstração incontornável de como a televisão atua, mais do que tudo, como espaço comum, lugar de "estar junto", inserido numa realidade coletiva, partilhada, festiva e "tribal" (Michel Maffesoli) independente de qualquer conteúdo (BENTES, 2002, p.2).
Nesse voyeurismo coletivo, a publicização da privacidade pelos índices de audiência simula situações de realismo extremamente falsas, mas que provoca o espectador a observar, vigiar, julgar. A sociedade contemporânea vive nesse olhar panóptico de vigilância (FOUCAULT, 1992) e controle (DELEUZE, 1992), pelas câmeras de vídeo espalhadas pelas cidades, rodovias do mundo via satélite. Em supermercados e lojas de conveniência, em elevadores, portarias de prédio, agencias bancárias, transporte urbano. Somos vigiados e vigiamos 24 horas por dia sob a égide da segurança e do autocontrole. Vivemos num “Big Brother” coletivo enclausurados numa sociedade de controle e consumo. Embora a pertinência da crítica de Bentes (2002) e as pistas que ela aponta em busca de uma programação de “qualidade”, que contemple a complexidade e diversidade da multidão de telespectadores, no seu artigo “Guerrilha de Sofá”, ainda traz um repertório televisivo reduzido, como as críticas do senso comum na década anterior ao seu artigo, restrito ao programas de “baixa qualidade” da Rede Globo e SBT. As questões que aparecem em relação ao modo de produzir televisão tornaram-se também questões para o modo de ver televisão. Com a preocupação de desenvolver um olhar crítico sobre o modo de produzir e ver TV surgiram movimentos de comunicação popular ligado ao audiovisual como a ABVP Associação Brasileira de Vídeo Popular, formada por produtores independentes, jornalistas, estudantes de comunicação, ONGs, que dentre outras atividades, realizavam oficinas técnicas e conceituais sobre a linguagem do vídeo. As oficinas conceituais abordavam formas de produção e a maneira de manipulação da informação e do discurso, seja na captação ou na edição das imagens e sons.
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2.2 O vídeo, um susto, uma surpresa A mobilidade da televisão só foi possível com o advento do vídeo. O vídeo inventado na década de 1950, o videotape, criou condições para a televisão gravar seus programas com antecedência, com menos ocorrência de erros, podendo veiculá-los diversas vezes. Essa tecnologia torna-se tão impactante que provoca vários artistas a lançar mão dela em suas manifestações artísticas, exposições, instalações como dispositivo performático, ou como linguagem própria, revelando um leque de possibilidades, tanto como produto, quanto processo. Chega-se a invenções ainda mais instigantes, como desmagnetizar o tubo de imagem com um imã fazendo grafismo de luminância, como em alguns dos ensaios de Nam June Paik, retratado por Dubois (2004). Para o autor, o vídeo com essa apropriação é um estado e não um objeto. Trata-se de um devir: um conceber, receber, experimentar o vídeo, e não simplesmente vê-lo. No Brasil, meados dos anos de 1970, muitos artistas ao perceberem a imagem eletrônica como suporte de criação, elegeram o vídeo como linguagem de experimentação, como mostra Machado (1995), falando do ensaio de Letícia Parente com o Marca Registrada, em que a artista borda a frase “made in Brasil” na sola do pé, diante da câmera de vídeo. Na década de 1980, surgem grupos, produtores de vídeo independente, com traços de singularização, propondo saídas para o modelo homogeneizado da televisão. Experimentam outros processos de subjetivação por meio do uso do vídeo. A TVDO, Olhar Eletrônico, Emvideo, Antevê e TV Viva foram algumas experiências que forjaram essa singularização, provocando uma atualização estética e formal do que se produzia até em então. Nessa mesma década houve outras fontes de apropriação. Os movimentos sociais perceberam nessa tecnologia a potência de organização, mobilização e articulação das pessoas. Embora, as organizações ligadas aos movimentos sociais, como associações de moradores, sindicatos e outros segmentos, fizessem restrições ao registro de eventos, experiências singulares de apropriação da linguagem do vídeo como um estado-imagem começam se surgir nesse cenário. Um desses exemplos é o CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular coordenado por Claudius Ceccon, cartunista, colaborador do Pasquim, exilado
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pelo regime militar. No exílio teve contato com Paulo Freire. No inicio dos anos 1970 era secretário executivo de comunicação de uma organização internacional e numa viagem aos Estados Unidos, teve contato pela primeira vez com o vídeo. Ele diz com certo deslumbramento: “vi literalmente o homem tirando a câmera da caixa e dizendo: “olha isso aqui!”. Claudius lembra que fazia filmetes em Super8, e o que significava todo o processo pós-produção, montagem e etc.. E volta dizendo: “De repente o cara está com a câmera na minha cara e eu me vejo na televisão na hora. Isso é surpreendente!”. Quando Claudius volta ao Brasil na década de 1980, traz a experiência do IDAC12 - Instituto de Ação Cultural. Depois da anistia, voltam do exílio Paulo Freire e outros colaboradores e resolvem trabalhar com a instituição aqui no Brasil. Na ocasião, são convidados por Dom Paulo Evaristo Arns para ir à São Paulo ajudá-lo na organização da assembléia arquidiocesana. A intenção de Dom Evaristo era que houvesse a participação das pessoas, onde até então as decisões eram tomadas pelos bispos. E a partir de uma experiência na Guiné Bissau com slides, eles, propuseram uma metodologia parecida, denominada “A Caminha do Povo”, um diaporama que conta a história de um imigrante nordestino que vem para São Paulo, e, em contato com outros familiares, conhece as Comunidades Eclesiais de Base, e se engaja e se vê em várias possibilidades de trabalho. O resultado positivo desse trabalho, que atingiu efetivamente os objetivos da assembléia teve uma boa repercussão. Dom Adriano Hipólito, Bispo de Nova Iguaçu, na eminência de realizar uma assembléia no município, toma conhecimento do resultado da assembléia de São Paulo e convida Claudius e o IDAC para replicarem a experiência. Claudius conta que foi um momento riquíssimo, pois para aplicar esta metodologia, teria que conhecer as comunidades, as histórias de vida das pessoas, embora houvesse semelhança com a formação social de São Paulo, com imigrantes nordestinos vindo para o Rio de Janeiro e ocupando a Baixada Fluminense, havia singularidades no seu modo de viver. Esses traços eram trazidos a partir de fotografias que as pessoas levavam para contar sua história. A atividade teve uma mobilização tão intensa que extrapolou o tempo determinado, as pessoas se sentiram extremamente participativas e a assembléia também resultou no que havia sido esperado, afirma Claudius. 12
IDAC - Instituto de Ação Cultural, uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que fundado por Claudius, Paulo Freire e outros, em Genebra, em 1971.
34
Essa experiência estreitou a relação entre o Claudius e Dom Adriano, que fizeram
várias
parcerias,
fundamentalmente
tratando
das
questões
de
comunicação e educação. O IDAC teve alguns projetos financiados pela Novib13, uma fundação holandesa, não confessional. Por conta disso, Claudius foi convidado pela Novib para fazer parte da equipe de avaliadores de um projeto no Chile - Projeto Ictus – grupo de teatro que fazia programa na TV chilena, e que depois do golpe havia sido demitido. Com o apoio da Novib o grupo adquiriu equipamentos de gravação em vídeo e passaram a produzir seus programas, utilizando a linguagem do teatro como faziam. Esse evento gerou uma reflexão interessante que fez com que Claudius propusesse ao IDAC uma experiência parecida com a do Chile, mas utilizando a metodologia que haviam trabalhado com o diaporama, em Nova Iguaçu. Claudius vislumbrava algo mais potente pela própria capacidade imediata da produção da imagem e som com o vídeo. O IDAC não expressou interesse pela idéia. Era uma proposta ousada, extremamente cara para os padrões da época. Numa conversa com Rubem César, que na ocasião participava do ISER14, Claudius foi convidado a apresentar o Projeto de Vídeo Popular a esta instituição. O projeto aconteceu durante um ano. Houve divergências em relação ao objetivo e metodologia do projeto, não viabilizando sua continuidade. Em 1986 Claudius cria o Centro de Criação de Imagens Popular - CECIP e apresenta o projeto à Novib.
Em 1988, começa a fazer o trabalho de vídeo
popular “Você na TV” com a Federação das Associações de Moradores de Nova Iguaçu – MAB, com o apoio da Diocese. O vídeo era produzido a partir da demanda do MAB - a convocação para uma passeata, o festival de música promovido pela federação, o grupo de teatro de algum integrante do movimento, registros da assembléia, ou seja, atividades vinculadas ao movimento das associações de moradores. As exibições do projeto “Você na TV” aconteciam nas reuniões das associações de moradores em diferentes bairros ou em igreja. Esses lugares reduziam a participação das pessoas. No decorrer desse processo o CECIP foi se aproximando de outras 13 14
Novib, instituição holandesa. Disponível em: <http://www.oxfamnovib.nl/> ISER – Instituto Superior de Estudos Religiosos
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instituições em Nova Iguaçu e conhecendo pessoas da área da cultura e outras que participavam em movimentos populares. Essas pessoas foram agregando ao projeto outras formas de abordagem, mais próxima da realidade da população, e trazendo novas linguagens. A equipe até então formada por Breno Kuperman, Paulão, Claudius Ceccon, Eduardo Coutinho (como colaborador) se amplia. Noni Ostrower foi uma pessoa que colaborava no projeto pedagógico, e na ocasião trabalhava na área de saúde pública como médica sanitarista em Nova Iguaçu e atuava com teatro de bonecos, além de participar da associação de moradores, Valter Filé, fotógrafo, pedagogo, coordenador do grupo de Teatro do Oprimido15, “Periferia da periferia” e morador de Belford Roxo, na época bairro de Nova Iguaçu, Luiz Carlos Lima, também integrante do grupo de teatro “Periferia da periferia”, dentre outras pessoas
que tiveram passagens importantes de
colaboração com o projeto. As pessoas que iam integrando a equipe não tinham conhecimento sobre o processo de produção de vídeo, elas aprenderam fazendo, com técnicos e colaboradores do CECIP. O
CECIP
conheceu
outras
experiências
com
audiovisual
e
com
intervenções inovadoras naquele contexto, como a TV Olho, experiência de um grupo que selecionava e produzia vídeos que eram exibidos num monitor de TV fixado na Praça do Relógio em Duque de Caxias e a TV Viva, experiência de TV comunitária que produzia vídeos bem humorados com intervenções de rua, ficção, reportagem e que eram exibidos no telão em comunidades do Recife. Essas experiências serviram de referência para a equipe do CECIP pensar na ampliação do conceito de vídeo popular e na possibilidade de um TV Comunitária. Em 1989, renova-se o equipamento, adquirindo-se uma unidade móvel de exibição – Kombi – som – projetor - telão. Essa aquisição da unidade móvel faz com que o CECIP saia das associações de moradores, que era um lugar restrito, em que havia um processo de subjetivação também modeladora, discriminando aqueles que não cabiam naquele território com suas propostas, idéias e desejos. A estrutura, fundada em preceitos que condicionavam o sentimento de pertença (NEGRI, 2001), inviabilizava uma intervenção singular com o vídeo. O MAB queria que esse 15
Neste período, entre os anos de 1986 – 1989, Augusto Boal disseminava seu projeto de Teatro do Oprimido, com oficinas ligadas à Secretaria de Educação do Estado para a Animação Cultural com atuação nos CIEPs. Vários grupos surgiram nessa época utilizando a metodologia do CTO em atividades com diferentes grupos.
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dispositivo atendesse as suas necessidades políticas, reproduzindo a estrutura de qualquer sistema político. Claudius percebeu uma possibilidade mais plural. Percebeu que o vídeo na praça seria um dispositivo agregador e múltiplo, seria uma potência singular utilizando o telão com produções que revelassem os modos de vida singulares, pelo seu aspecto democrático, já que na praça não tem religião, não tem partido político, raça... a praça é de todos, então vamos falar com todos. Claudius (2010) revela16. Nesse procedimento e sentimento ensaia-se a construção do comum (NEGRI, 2001). Naquele momento Claudius desterritorializa a produção do vídeo fixado numa produção de manutenção da hegemonia nas associações de moradores e propõe um agenciamento (GUATTARI, 1997) que oportuniza uma polifonia singularizada. A partir daí não cabia mais um projeto de vídeo popular e pensou-se no nome Maxambomba que era o antigo nome de Nova Iguaçu, mantinha-se na estação de trem e, por ter uma sonoridade bonita, um nome forte, como realça Claudius. Essa foi uma construção coletiva, com a participação de toda a equipe, que nesse momento em boa parte era moradora de Nova Iguaçu ou da Baixada Fluminense. Assim em 1989 surge a TV Maxambomba.
16
Claudius em entrevista gravada em vídeo para a pesquisa, relata como foi o processo de constituição da TV Maxambomba.
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3. A TV MAXAMBOMBA: UM MEMORIAL
Minha trajetória profissional nos últimos 17 anos tem sido marcada pela Educação e pela Comunicação Popular atravessada pela cultura. Em 1993 participei de uma oficina de vídeo realizada pela TV Zero e o ISER - Instituto Superior de Estudos Religiosos. Essa oficina era dirigida aos educadores sociais que atuavam em projeto com meninos de rua. Nessa ocasião eu desenvolvia oficinas de arte-educação, envolvendo teatro e literatura com adolescentes assistidos pela Cruzada do Menor, no projeto Casa e Cia, no Morro do Cantagalo, zona sul do Rio de Janeiro. Essa iniciativa despertou meu interesse pelo vídeo. Percebia no audiovisual a potência rizomática de articular, conectar outras linguagens artísticas e comunicacionais - como o teatro, a música, as artes plásticas, fotografia, a literatura, a oralidade (DUBOIS, 2004). Ou seja, a produção videográfica aponta possibilidades para transversalidade (GUATTARI, 1997), em relação à forma e ao conteúdo. Atravessam-se temas, articulam-se linguagens e saberes, estabelece-se um lugar de expressão de singularidades, além do seu apelo sedutor e poderoso de mobilizar (NEGRI, 2005). Em 1993, a TV Maxambomba realizava oficinas com movimentos populares e tive a oportunidade de participar de uma delas. Depois da oficina me integrei à equipe técnica da Maxambomba e passei a atuar diretamente com os projetos
voltados
para
produção
de
vídeo
e
educação.
Trabalhei
no
desenvolvimento de ações como Repórter de Bairro17 e Vídeo Escola – posteriormente denominado Projeto Botando a Mão na Mídia18. Essa vivência levou-me a elaborar o projeto Protagonismo Juvenil, Tecendo Saberes - para o Programa Capacitação Solidária, implantado pelo Governo Federal em 1998, direcionado aos adolescentes e jovens oriundos de famílias de baixa renda. No meio desse processo, a TV Maxambomba enveredava por mais um caminho de desafiador, o da loucura. Em 1996, o CECIP foi convidado pelo 17
Capacitação em produção de vídeo realizada com 06 bairros do município de Nova Iguaçu e 01 de Belford Roxo. 18 O projeto vídeo escola consistia em vídeodebates com temas de interesse dos alunos do ensino médio de escolas públicas de alguns municípios da Baixada Fluminense.
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Instituto Philippe Pinel, nessa época ainda uma instituição vinculada ao Ministério da Saúde, para implantar o projeto TV Pinel. Essa formação construída a partir da TV Maxambomba, me levou no ano de 2000 à participar do Programa de Comunicação Social de Furnas – Central Elétrica S/A. Em função da construção da Usina Hidrelétrica do APM Manso, no Mato Grosso, uma grande área na região de abrangência da usina foi alaga, atingindo sobretudo, a área rural da Chapada dos Guimarães-MT. Fui trabalhar com as famílias assentadas na região da Chapada. Eram quatro assentamentos, com cerca de 150 km de distância um do outro, separados pelo lago da barragem do Manso. Nesse trabalho, ao invés de falarmos dos programas de Furnas, de forma burocrática, capacitamos as pessoas para que produzissem seus programas. Articulamos as comunidades e setores responsáveis pelos assentamentos, para dialogar com as famílias sobre os problemas que envolviam as populações assentadas.
Estabelecemos
o
diálogo
entre
gerações,
recuperamos
e
registramos a memória dos lugares, potencializamos lideranças envolvidas no Movimento dos Atingidos por Barragens, e possibilitamos que as pessoas pudessem se ver de outro ângulo, a partir de outro enquadramento, e, sobretudo, pudessem produzir sua própria imagem, atravessada pela comunicação, educação, arte, cultura, lazer, e com o melhor, pelo prazer. Este foi um projeto que provocou marcas e desdobramentos políticos e sociais na vida de muitas pessoas, principalmente por se tratar de um projeto de comunicação e educação utilizando uma linguagem que, embora popular para elas, era distante de suas realidades. A complexidade na dinâmica que envolve a produção de vídeo acarretou importantes efeitos nos processos de subjetivação dessas pessoas que foram exercitando seu potencial de comunicador, sua capacidade de refletir de maneira mais profunda sobre as questões que envolvem suas vidas. Produzir um olhar crítico sobre um fazer cotidiano antes e após a barragem, revelando-se também a produção de um conhecimento das coisas do campo, da cidade, e com sua humanidade, contradições, vaidades, fragilidades. Esse projeto com Furnas contribuiu para o amadurecimento do meu olhar sobre a potência que tem a produção do vídeo em pequenos grupos organizados. O projeto TV Maxambomba nos provocou estabelecer outros parâmetros nas relações de convivência. Perceber e lidar com diferenças tão radicais e
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estabelecer diálogos a partir das questões de gênero, etnia, classe, loucura, levou a mim e às demais pessoas envolvidas de alguma maneira no processo, a reverem a forma de pensar sobre nós na relação com o outro. A produção de vídeo em projetos de comunicação popular, como a TV Maxambomba, atua como um efeito espelho, em que a pessoa que traz o estigma da ignorância, da pobreza, da anti-produção política e social, ao se ver produzindo e compartilhando esse fazer numa relação de alteridade, torna-se visível, viável e capaz. São singularizações emergindo, no exercício da criação e na inventividade, tornando-se produtoras no tecido social (NEGRI, 2001). Enfim, o contato com o pensamento de Deleuze e Guattari, de Antonio Negri e Michael Hardt, que tive no decorrer do curso de Mestrado, permitiu-me – pela apropriação de conceitos como, processos de subjetivação, produção de subjetividade e singularização (DELEUZE, 2008), (GUATTARI, 1997), assim como, comum e multidão (opondo-se a classe, povo e massa) em Negri e Hardt (2005),
fazer uma leitura disto que já estava presente na nossa prática da
Maxambomba, mas é como se ainda não conseguíssemos dizer. Assim, consegui construir uma perspectiva teórica, que atravessa todo esse trabalho, e que me (nos) permitiu pensar esta prática com todas as suas invenções e descobertas, com um olhar que parecia já estar embutido ali mesmo antes de saber falar.
3.1 Estação Maxambomba: a TV Maxambomba – periferia da periferia
Em 1989, com a aquisição da unidade móvel de exibição, a TV Maxambomba saiu pelos bairros dos municípios de Nova Iguaçu, produzindo uma pauta de programação e, exibindo além dos vídeos do CECIP, sua própria produção. Até esse momento, a equipe era formada por profissionais moradores em sua maioria na zona sul do Rio de Janeiro. Com a mudança na forma de atuação, o quadro de profissionais é reestruturado com educadores sociais e artistas da Baixada Fluminense. Essa mudança influenciou significativamente o projeto TV Maxambomba. Passou-se a focar na vida cultural e no cotidiano da Baixada Fluminense. A intenção era dar visibilidade às expressões culturais e artísticas da
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região. Breno Kuperman era a única pessoa que morava no Rio e a pessoa que tinha mais conhecimento técnico na produção. As pessoas iam aprendendo com ele a fazer roteiro, câmera, som, edição. As gravações aconteciam na Baixada e a edição no CECIP, no Rio. Breno
Kuperman,
quando
chegou
à
Baixada
Fluminense,
ficou
maravilhado. Noni conta que quando ele chegou num determinado bairro de rua de chão, olhou deslumbrado e dizia que ali era um micro-universo do Brasil. Para Breno o importante era mostrar o cotidiano da população e junto com a equipe criam o Perfil de Bairro. Perfil de Bairro era uma revista de 60 minutos que mostrava todo bairro. As curiosidades, receitas, um movimento artístico, um personagem importante, lugares de lazer. Os quadros deveriam ser curtos e programas longos deveriam ser divididos em blocos, pela rotatividade do público na praça. A exibição acontecia no bairro e depois o mesmo programa era exibido no circuito montado pela equipe de exibição, que chegava a 40 bairros, desde o Km32 ao Lote XV. Foram produzidos dois programas com esse formato, Austin “Os carroceiros” que dava um destaque para o meio de transporte local, as carroças, e Queimados “A noite em Queimados”, que mostrava uma diversidade de estilos e programação. Em seguida esse formato foi alterado, diminuindo o número de quadros do bairro e inserindo programas produzidos pelo CECIP ou pela própria equipe, com temática mais geral, como questões ligadas à saúde, direitos do cidadão e à educação. Na exibição, o Perfil de Bairro despertava interesse nos moradores dos bairros onde o programa havia sido feito. Nos demais, a participação não tinha muito impacto. Ainda assim, Noni revela que mesmo as pessoas não se interessando pelo que era apresentado nos programas de outros bairros despertavam curiosidades, por revelar detalhes desconhecidos daquele lugar. O “Perfil de Bairro” mostra particularidades dos bairros, revelando suas características sociais, culturais e comportamentais, trazendo para o telão o que era positivo e diferente de cada lugar, registrando suas singularidades. E nesse encontro de singularidades, a TV Maxambomba produzia outra subjetividade, produzia aquilo que era comum, a possibilidade de invenção e criação, esse comum que,
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está fundamentalmente articulado, no sentido mais pleno da palavra, com o movimento e a comunicação das singularidades. Não existe um comum que possa ser referido simplesmente a elementos orgânicos ou a elementos identitários. O comum é sempre construído por um reconhecimento do outro, por uma relação com o outro que se desenvolve nessa realidade. (NEGRI, 2005, p. 6).
A imagem da periferia produzida pela TV Maxambomba, desterritorializa a imagem produzida pela mídia, que estigmatiza, tratando-a como um lugar tosco, de ignorância e violência – de marginalidade. A diversidade de subjetividades nas produções do “Perfil de Bairro” faz a cartografia das experiências artísticas, culturais e sociais da Baixada Fluminense. 3.2 As exibições
Em 1989, iniciaram-se as exibições nas praças. Como a maioria da equipe da TV Maxambomba, nesse momento já era de Nova Iguaçu, a escolha dos lugares se dava pelo conhecimento de alguma liderança, movimento social, grupos artísticos. O primeiro contato era com essas pessoas. Falava-se da proposta e fazia-se um mapeamento de coisas importantes dos bairros. Essa pesquisa estruturava a produção do programa Perfil de Bairro e preparava para a exibição. Definido o lugar, escolhia-se uma praça de fácil acesso, com infraestrutura de luz, sem interferência de outras atividades. Dessa forma foram escolhidos 40 pontos de exibição. A exibição acontecia nos bairros uma vez a cada dois meses, tempo de produção de um novo programa. Nessa época, Queimados, Japeri, Mesquita, Belford Roxo pertenciam à Nova Iguaçu, e a exibição cobria toda essa região. E algumas vezes, experimentavam outros municípios como Duque de Caxias e São João de Meriti. A dinâmica de exibição começava no início da tarde. A Kombi da Maxambomba chegava ao bairro, procurava as pessoas que eram referências para a localidade. Fazia-se um arauto, às vezes com essas pessoas, convidando os moradores, anunciando a programação daquele dia, com o carro de som, como um pregão, prática do vendedor ambulante da localidade naquela época19. 19
A Baixada Fluminense foi celeiro da prática dos pregões, como compradores de ferro velho, vendedores de
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Ao cair à noite montava-se a estrutura de som e convocava-se a população com a “Rádio Maxambomba” – um ou dois microfones plugados para que as pessoas que fossem chegando pudessem usá-los para enviar recados, fazer convocações, cantar, recitar, entrevistar. E ao término da exibição esses microfones eram abertos à população para um debate sobre programa ou a partir de um tema disparador. Com essa programação os moradores dos 40 pontos de exibição passavam a conhecer as particularidades de cada bairro e como havia diferenças singulares, como regiões urbanas e outras extremamente rurais, como Tinguá, na ocasião ainda sem energia elétrica em alguns pontos do bairro. A exibição de Tinguá era realizada com gerador. Luiz Carlos era o técnico responsável pela exibição. Ele conta que em Tinguá quando se ligava o gerador, as pessoas iam se aproximando da Kombi, formando uma multidão e ao redor da praça formava-se um cinturão de cavaleiros. As exibições atingiam em média 400 a 500 pessoas por sessão. Havia bairros em que a praça ficava tomada por bicicletas. A intenção da exibição era ser um espetáculo. Eram duas horas de programação, com aproximação do público, apresentação artística, bate-papo, vídeo, debate e às vezes encerrava com apresentação de música. A rádio Maxambomba tinha um efeito importante na exibição: mostrar ao vivo os talentos, as opiniões das pessoas, o canal aberto para expressão criava uma dinâmica visceral. A equipe então decidiu por experimentar a câmera aberta. Além dos microfones, ligar a câmera para o público se expressar ao vivo no telão, dando outro significado à essa participação, já que numa metalinguagem as produziam seus pensamentos que eram de maneira imediata compartilhada com todas as pessoas ali presente e que ao mesmo tempo ela se via como produtora e espectadora, consumidora da sua produção. As exibições da TV Maxambomba não se restringiam ao bairro. Muitas instituições convidavam a TV Maxambomba para levar a dinâmica da exibição para eventos, seminários, encontros. Havia várias parcerias com outras experiências de TV comunitária e a participação da Maxambomba envolvia a metodologia da exibição. E o ao vivo resultava num outro programa. 3.3 TV Maxambomba: laboratório de experimentações comunicacionais pamonha, trocadores de garrafas por pintinhos, e por aí vai.
43
A equipe da TV Maxambomba vivia sob inquietação. O tempo de existência do projeto foi de invenção, de um constante processo de singularização e desterritorialização,
pois
a
cada
experiência
apropriada,
capturada,
territorializada, a TV Maxambomba, descortinava outras intervenções, outras formas de atuação, novas experimentações, atuando como linha de fuga do que se era estabelecido . Um projeto direcionado à comunicação popular foi também pioneiro na disseminação da apropriação da linguagem audiovisual por grupos sem acesso às tecnologias comunicacionais20 e passou a ser referência para outras experiências em TV comunitária e comunicação popular no Brasil, fazendo com que reinventasse a todo momento sua própria forma atuar. A partir de 1993, a TV Maxambomba se torna, despretensiosamente, um laboratório de experimentações comunicacionais, ensaiando movimentos de apropriação da linguagem do vídeo por diferentes grupos sociais, ampliando o conceito de TV Comunitária – produção de vídeo participativo – vídeo popular. A TV Maxambomba, como tv comunitária não se restringia a um território definido geograficamente, mas se ampliava, sendo um dispositivo polifônico, uma multiplicidade, que a cada experiência se singularizava por uma nova inventividade. As discussões que giravam em torno desse conceito mostravam o quanto era complexo compreender a noção de TV Comunitária, o próprio conceito de comunidade era algo complexo. A reflexão que a TV Maxambomba fazia sobre sua experiência e de outras iniciativas levava a crer que podia ir mais à fundo na proposição de vídeo participativo e comunitário. Nessa época, outras iniciativas de projetos de TV Comunitária estavam surgindo, esses grupos reuniam-se na ABVP – Associação Brasileira de Vídeo Popular. Já pertencia ao grupo, a TV Viva de Recife, que nesse momento iniciava um processo de transição deixando de produzir programas sobre comunidades locais para tornar-se uma produtora com o enfoque popular, TV Mocorongo que atuava com ribeirinhos no Pará, Núcleo de Educação e Comunicação Comunitária das Faculdades Integradas Hélio Alonso, produtores independentes de São Paulo 20
Inclusive aos serviços de telefonia, que na época era extremamente caro e precário.
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e do Rio de Janeiro, jornalistas,
e chegando, a TV Sala de Espera21 com a
atuação em postos de saúde de Belo Horizonte, a BemTV que começou como produtora e passou a realizar projetos de capacitação e produção de vídeos comunitários, em bairros da cidade de Niterói. Nesse grupo de associados incluía-se a TV Maxambomba. Durante os anos de 1993 a 1998 a TV Maxambomba era um caldeirão em efervescência,
cada
intervenção
propunha
novos
desafios.
A
troca
de
experiências com outros projetos de comunicação popular e a participação na ABVP propiciava a reapropriação de propostas e métodos e a criação de ações conjuntas para novos ensaios. Exemplo disso foi a oficina de capacitação em comunicação comunitária dentro do Projeto CODAL – Comunicação para o Desenvolvimento da América Latina, realizado no Brasil, através da ABVP em pareceria com a TV Sala de Espera, em Belo Horizonte, no período de 26 de maio à 04 de junho de 1995. Essa oficina reuniu a TV Maxambomba, BemTV, TV Mocorongo, NECC – Núcleo de Educação e Comunicação Comunitária (FACHA – Faculdades Integradas Helio Alonso), dentre outros, formando um grupo de 35 (trinta e cinco) pessoas vindas de 12 estados do Brasil. Seu objetivo principal, a democratização das técnicas de produção e transmissão de sons e imagens no sistema VHF, para grupos populares. A TV Beira Linha, TV Comunitária em parceria com a população local, aconteceu no extremo nordeste da capital mineira e alcançou um raio de 6 km. A programação
constava
noticiários
com
notícias
locais,
matérias
de
comportamento, experiências coletivas de sucesso em Belo Horizonte além de quadros musicais, culturais, culinária, humor, matéria infantil e juvenil, e destaque para discussões sobre implantação de um aterro sanitário na região. A TV permaneceu durante 3 dias, 12 horas no ar, com programação de cunho social vinda de várias partes do Brasil22. Essa experiência singular reuniu uma multiplicidade de projetos de comunicação popular, cada um com suas especificidades, ensaiou-se um movimento de multidão (NEGRI, 2001). 21
Em 1999 a experiência da TV Sala de Espera leva à criação da Associação de Imagem Comunitária – AIC, ONG que passou a ser referência no campo da comunicação comunitária em Belo Horizonte. 22 TV de Baixa Potência. Cicília M.Krohling Peruzzo. Portal das TV Livres. Disponível em: <http://tvlivre.org/node/7> acesso em: 3 out. 2005.
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A TV Maxambomba com as oficinas de produção de vídeo, inventa sua metodologia sob o paradigma da pedagogia da autonomia (FREIRE, 1997) tratando a produção do conhecimento a partir dos saberes de cada participante, em que todos são responsáveis por essa produção. Mais que ensinar a produzir vídeo, a Maxambomba trazia no seu processo de ensino-aprendizagem problematização, questionamento, o senso crítico, a ludicidade que facilitavam o envolvimento. Ensinar a produzir significava também pensar sobre a maneira que consumimos TV, daí as oficinas desenvolviam o olhar crítico sobre a forma de ver tevê. Conseqüentemente, o vídeo é pensado mais do que um aparato tecnológico de produção de imagem e som. A apropriação dessa linguagem está para além de ser um canal de transmissão de informação, mas, um dispositivo de produção de subjetividade e de processos de singularização, que escapasse dos processos hegemônicos da mídia de massa.
3.3.1 Oficinas com movimentos sociais
A partir dessa concepção, a TV Maxambomba elabora o projeto de oficinas de vídeo com segmentos sociais, (movimento feminista, movimento negro, movimento de crechistas e professores). Tendo por objetivo disponibilizar a tecnologia e a linguagem do vídeo como instrumento de comunicação e intervenção na produção de sentido no tecido social e de expressão de sua força política. A metodologia, com dinâmicas de grupo, criava estratégias que levavam os integrantes desses movimentos a refletirem sobre suas práticas, experiências e lutas, considerando sua forma de organização e aqueles que estão fora do movimento. O vídeo produzido deveria estabelecer a comunicação com as pessoas comuns que estão a margem de qualquer movimento social. A exibição dos programas nas praças teria que provocar o debate. Por isso, o vídeo não podia falar para os mesmos, reforçando a noção de hegemonia. O vídeo teria que agregar outras vozes, dialogar com outros pensamentos, daqueles que estavam na praça e que, muitas vezes, eram alheios às questões políticas e sociais.
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A elaboração dessas propostas acontecia por um acúmulo de outras experiências e por processos intuitivos. A produção do conhecimento acerca da tecnologia e da linguagem era tratada a partir das questões políticas e sociais de cada núcleo. O tema era problematizado, trazendo para discussão a intenção técnica da linguagem. Dessa forma as pessoas se apropriavam da técnica fazendo o vídeo e articulando com o teor das questões abordadas. Com isso, forma, conteúdo, formato, técnica e linguagem caminhavam integrados. No processo da oficina eram apresentados os formatos na linguagem audiovisual, ficção, clipe musical, jornalística, documentário, animação e a maioria dos grupos escolhiam o documentário para tratar das suas temáticas, mesmo que alguns deles pudessem ser entremeados com outros formatos para ilustrar determinadas situações. Eram apresentadas algumas linhas de documentário. Mas a referência da TV Maxambomba era o documentarista Eduardo Coutinho. No processo de capacitação eram apresentados alguns dos seus documentários e, falava-se do método que Coutinho aplicava, sendo atravessado pela intuição. Depois das apresentações dos formatos, a problematização dos temas, o grupo definia a linguagem que a produção iria assumir. Quase todos os grupos faziam sua escolha pela linguagem do documentário, tendo como referência o Coutinho. A crença na oralidade, o impacto das emoções trazidas e contadas pelos seus protagonistas. Sensibilizar o outro pelo reconhecimento desse outro. A força da oralidade agregada a força da imagem, o retrato daquele que fala, o posicionamento técnico - ângulo, luz, o gestual, a máscara emocional, a fotografia. E junto a esse conjunto disparador de afetações, é pensado e tratado o som, a voz de quem fala, a trilha musical daquela história, daquele evento. E na edição, o formato do documentário denuncia a consciência da manipulação dos discursos e das emoções. O que quero dizer, é que nesse processo com os movimentos sociais, a atividade de formação audiovisual, utilizando o formato do documentário extrapolava a questão técnica e comunicativa, ela passava a ser um elemento que colaborava para a percepção das suas forças,
de suas subjetividades,
singularidades, suas intenções e sua capacidade de manipulação. O que não quer dizer, que os outros formatos não propiciem a mesma condição de apropriação, mas acredito que, nos outros formatos, os elementos técnicos se
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tornam mais evidentes e suscitam outras preocupações, como a resolução do produto. A manipulação está na elaboração do roteiro, na construção de um personagem ficcional, enquanto que no documentário a manipulação é de um personagem real, ainda que esse se ficcione pelo poder da câmera. A produção de vídeos com estrutura de documentário, que revela a singularidade do entrevistado, levou as pessoas a exercitarem sua capacidade de argumentação, tratamento, manipulação do discurso, sua ética e sua estética. Esse processo foi riquíssimo tanto para os movimentos quanto para a Maxambomba. Os grupos ao levar seu vídeo para o telão e interagir com o público, faziam com que saíssem da condição de assujeitamento em relação à mídia e ao próprio movimento. Se vendo como produtores de suas histórias tornavam-se como diria Boal, espect-atores, numa metalinguagem, em que passavam a ter consciência de sua atuação, do seu discurso e da sua imagem como um autoespelho multifacetado, compartilhado. A metodologia proposta construindo o conhecimento a partir do saber de cada um dos envolvidos, trazendo discussões críticas sobre a maneira de ver TV e sobre a própria produção, levava o grupo a repensar sua participação na vida política. A militância mais aberta, dialogando com a diferença, interagindo com outros movimentos, outros segmentos ampliando a discussão de gênero, etnia, raça, a ética e a estética, para proporcionar uma produção mais singular, menos hegemônica e segregadora, onde essas pessoas, nas suas diferenças se constituíssem num corpo político, numa produção biopolítica que envolve os aspectos da vida social, a comunicação, o conhecimento e os afetos (NEGRI, 2005). Essa relação não se constitui isoladamente, fechada em guetos ou em grupelhos, ela se propõe a uma articulação ampliada em redes de cooperação para que as diferenças possam se expressar livremente, respeitando o diverso – a subjetividade produzida por traços de singularização e essa multiplicidade constituída como multidão, como define Negri, [...] a multidão designa um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum. A multidão é um sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na unidade (nem muito menos na diferença), mas naquilo que tem em comum. [...] quando dizemos que não queremos um mundo sem diferenças raciais ou de gênero, e sim um mundo no qual a raça e o gênero não importem, ou seja, um mundo no qual não determinem hierarquias de poder, um mundo no qual as diferenças possam expressar-se livremente, estamos exprimindo um desejo da
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multidão. E, naturalmente, no que diz respeito às singularidades que compõem a multidão, para acabar com o caráter limitador, negativo e destrutivo das diferenças e transformá-las em nossa força. (NEGRI, 2005, p.140).
Naquele contexto sócio-político, a participação nos grupos de movimentos populares era mais orgânica. Permitir as singularizações que se apresentavam no processo das oficinas não era algo muito bem assimilado. Por outro lado, a equipe da TV Maxambomba, talvez não tivesse consciência de que sua metodologia permitia essas linhas de fuga dentro do movimento. O que era certeza na TV Maxambomba é que não é possível a transformação social - que era o quê se buscava - desrespeitando as diferenças. As oficinas da Maxambomba tinham que trazer para o debate as diferenças, não no sentido de superação, nivelamento, mas de possibilidades de existência.
3.3.2 Transitando pela comunicação e educação: vídeo-carta – botando a mão na mídia
Os conceitos tradicionais de comunicação e educação se estruturam em processos estanques localizando um emissor – a mensagem – um destinatário passivo, assim como pensa “a educação bancária” (FREIRE, 1997), em que existe alguém que seja o detentor do saber, marcado pela figura do professor, que irá transferir ou depositar seu “saber” no educando, um ser vazio de conhecimentos e passivo na construção do mesmo. A concepção tradicional de comunicação
e
educação
mensagem/conhecimento,
como
está algo
focada unilateral,
na e
não
transmissão
da
no
de
processo
dialogicidade e nos efeitos que geram essas relações dialógicas. Paulo Freire diz que, ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção ou a sua construção. Isso implica criar um espaço vazio de vaidades e repleto de estímulos que levam os atores, no processo de ensino-aprendizagem, entendendo-o como uma via de mão-dupla, em que, quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender (FREIRE: 1997), despertar suas curiosidades e desenvolver sua capacidade crítica e reflexiva. E Freire vai mais longe,
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[...] não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. [...] exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. (FREIRE, 1997, p. 42).
Pensando no trabalho desenvolvido nas escolas pela TV Maxambomba, o que ele coloca em cheque é justamente a maneira como a escola se dedica ao paradigma bancário. Mostrando uma outra possibilidade de produção de conhecimento, trazendo para cena o educando como protagonista dessa produção em cooperação com o educador, revela como as formas de comunicação instituídas pela escola são excludentes e unilaterais. A Maxambomba em suas diferentes intervenções deflagrou processos de subjetivação nos educandos e educadores. Desenvolvendo-os para criticidade sobre as práticas pedagógicas e dialógicas, utilizando metodologias em que na realização da produção dos vídeos, os saberes e os conhecimentos eram tecidos por todos, revelando-se um processo educativo autônomo, interativo, criativo, crítico e libertador. A intervenção da TV Maxambomba nas escolas criava um ambiente hibrido de ludicidade, técnica e conhecimento. Era um lugar de negociações de desejos e de sentidos desenvolvidos pela dialogicidade, tão ignorada na escola. A prática da escola no manejo dos equipamentos tecnológicos, restringia a tecnologia e as linguagens comunicacionais, o computador-informática e TV/Vídeo ao passa-tempo, à imagem enquanto objeto de ilustração. Outra ocorrência comum,
reduzidos ao seu valor simbólico, televisão, vídeo,
computadores eram trancafiados na sala da coordenação, como quem pudesse enclausurar as potencialidades e os riscos políticos e educativos que estes instrumentos pudessem fomentar. Quando a Maxambomba apresenta projetos de comunicação e educação às escolas, ela propõe um outro modo de apropriação do vídeo, não como um aparelho de entretenimento e passa-tempo, um objeto. O que a Maxambomba propõe é a apropriação de uma linguagem em que alunos e professores sejam co-responsáveis e co-produtores na produção do conhecimento, colocando em choque valores pedagógicos tradicionais. Por mais que se reflita sobre as estruturas políticas educacionais, por mais
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que haja reformas que favoreçam uma pedagogia menos conservadora no processo de ensino-aprendizagem, até os dias atuais, muitas destas posturas, comportamentos, crenças se reforçam. Nessa perspectiva, percebo o quanto é dificultada a interface entre educação e comunicação no que diz respeito à inserção de tecnologias e linguagens comunicacionais no fazer pedagógico, como acentua Barbero: A atitude defensiva da escola e do sistema educativo está levando-os a desconhecer ou disfarçar que o problema de fundo está no desafio que lhe coloca um ecossistema comunicativo no qual o que emerge é outra cultura, outro modo de ver e de ler, de pensar e de aprender. A atitude defensiva se limita a identificar o melhor do modelo pedagógico tradicional com o livro, […] anatemizar o mundo audiovisual como mundo da frivolidade, da alienação e de manipulação, e fazer do livro o âmbito de reflexão e análise e a argumentação, frente a um mundo de imagem, como sinônimo de emotividade e sedução. Oxalá o livro fosse na escola um meio de reflexão e de argumentação e não de leituras canônicas e de repetições estéreis. […] O que revela que nossas escolas não estão sendo um espaço no qual a leitura e a escrita sejam uma atividade criativa e prazerosa, se não predominantemente uma tarefa obrigatória e tediosa. (BARBERO, 2000, p. 96).
Na contramão, a escola demoniza as tecnologias (computador, internet, televisão) atribuindo a eles um poder desmobilizador da leitura, deixando escapar um universo que já está dominado pelos alunos. Barbero amplia essa reflexão trazendo sua crítica à impertinência desse modo de reação e negação da escola à abertura desse leque comunicacional: Acossado por todos os lados, esse modelo de comunicação pedagógica não só continua vivo, como se reforça ao se colocar na defensiva por descoordenar dos processos de comunicação, que hoje dinamizam a sociedade. Por um lado, negando-se a aceitar o des-centramento cultural que atravessa o que foi seu eixo tecnopedagógico: o livro. Uma vez que a aprendizagem do texto (do livrotexto) associa, através da escola, um modo de transmissão de mensagens e um modo de exercício do poder, baseados ambos na escritura. Por outro, ignorando que, enquanto transmissor de conhecimentos, a sociedade conta hoje com dispositivos de armazenamento, classificação, difusão e circulação muito mais versáteis, disponíveis e individualizados do que a escola. E atribuindo a crise da leitura de livros entre os jovens unicamente à sedução maligna exercida pelas tecnologias da imagem. O que poupa à escola de precisar questionar a profunda reorganização que vive o mundo das linguagens e das escritas como a conseqüente transformação dos modos de ler, deixando sem apoio a obstinada identificação da leitura como que se refere somente ao livro e não à pluralidade e heterogeneidade de texto, relatos e escrituras (orais, visuais, musicais, audiovisuais, telemáticos) que hoje circulam. (BARBERO, 2000, p. 58).
Considerando que o poder está pautado no conhecimento que é simbolizado pelo livro, esquecendo que sua produção se dá em diferentes espaços/tempos, as tecnologias comunicacionais são objetos de recusa nesse fazer pedagógico, principalmente por serem socialmente democratizados. Desde
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muito cedo a criança tem contato com TV, vídeo, DVD, videogame, computador, internet. São linguagens frenéticas, estimulantes e desafiadoras, que crianças e adolescentes rapidamente se apropriam e fazem delas outras conexões na produção de seus conhecimentos, como mais uma tecnologia no processo de subjetivação. Essa disponibilidade faz com que o professor se sinta ameaçado na sua estrutura de poder. Mas não só os alunos são atravessados pelo mundo tecnológico, professoras e professores também os são. Talvez, não sejam todos que tenham consciência
desse
atravessamento.
Vivemos
processos
de
subjetivação
capitalística. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo (GUATTARI; HOLNIK, 2007). Somos produzidos pela escola, família, trabalho e pela tecnologia da informática e telemática, ou seja, vivemos num ambiente maquínico. Trazer a tecnologia para a cena educacional como uma ferramenta potencializadora
na
produção
de
subjetividade
é
criar
processos
de
singularização no campo escolar. É fazer com que a educação estabeleça outra dimensão, escape dos limites da sala de aula ou do ambiente escolar. O processo de comunicação é altamente dinâmico, a linguagem é dinâmica, as formas de organização são dinâmicas, a cultura é dinâmica causando um choque no processo educacional. Em congruência com esse pensamento, a Maxambomba interferiu em processos educacionais dentro e fora da escola.
3.3.2.1 Vídeo-carta - 1994
Vídeo-carta era uma dinâmica de debate que acontecia entre duas turmas de duas escolas da Baixada Fluminense. Uma turma falava de suas questões enquanto adolescentes, e fazia perguntas à outra turma sobre o tema que aparecesse. escola.
Esse processo durou quatro meses, entre idas e vindas em cada
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Essa experiência levou ao aprofundamento de outra proposta envolvendo
adolescentes
e
o
debate
gravado,
trazendo
questões
direcionadas ao processo de ensino-aprendizagem, a interação na escola e outros temas que fossem de interesse do jovem. Foi da reflexão sobre o vídeo-carta que surgiu o projeto vídeo-escola (Botando a Mão na Mídia).
3.3.2.2 Botando a mão na mídia (1997 – 2000)
O projeto Botando a Mão na Mídia consistia em debates com temas de interesse dos alunos do ensino médio de duas escolas públicas, C.E. Antônio Gonçalves, em São João de Meriti e C.E. Armando Dias, em Japeri23, municípios da Baixada Fluminense. O projeto foi uma provocação: envolver escolas a participarem de uma ação, que propunha outra maneira de construir o aprendizado e produzir conhecimento,
levando
em
consideração
as
práticas
comunicacionais
e
pedagógicas dentro da escola. A atividade consistia em debates com alunos e professores do ensino médio de escolas públicas da Baixada Fluminense, sobre temas de interesse desses grupos (drogas, sexualidade, relação professor-aluno). Os debates eram gravados, editados e exibidos para os grupos, para avaliarem seus produtos do ponto de vista da informação, da abordagem do tema, além de discutir a auto-imagem, no sentido de avaliar não só a estética, como a ética na maneira de tratar cada questão. Nessa discussão “os participantes podiam influir na edição, cortando ou repondo falas, o que gerou um processo de discussão sobre a comunicação na comunidade escolar e sobre a linguagem da televisão.” (OSTROWER; FROTTÉ, 2003, p. 9)24. Acontecendo nas duas escolas simultaneamente, depois da edição final, os vídeos eram trocados entre elas, debatidos, gravados, editados e devolvidos para 23 24
CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular. Relatório de atividades no período de 97/98. CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular. Botando a mão na mídia: Um curso teórico-prático para educadores interessados em comunicação. Rio de Janeiro, 2003.
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cada uma das escolas, para que fossem discutidas as impressões de cada uma delas. Ao término de cada etapa, os vídeos eram exibidos para toda escola num telão como nas atividades de rua, envolvendo um mini-show com artistas da escola e da localidade e o debate na câmera aberta, sobre o tema abordado. A intenção era investigar como os alunos e professores se apropriavam da linguagem audiovisual, na discussão dos temas, como eles elaboravam seus discursos, qual o impacto em contato com sua auto-imagem e por último se o vídeo produzido por eles possuía conteúdos educativos, eram atraentes, ou não, se comunicavam e o que comunicavam. Buscava-se uma leitura crítica de sua própria produção. O projeto foi impactante tanto para os alunos quanto para os professores. Mas os alunos se colocavam mais disponíveis. Estes ao se verem sentiam estranheza ao ouvirem sua voz, ao ver os erros de linguagem, a forma como uns se sobressaíam em relação aos outros, como aquele que dominava a palavra,
forjava o discurso, manipulando-o para um
suposto interesse de quem está mediando o debate. Os vídeos assumiram uma função avaliadora: Quando se fala de função avaliadora, faz-se referência àquele ato de comunicação no qual o que interessa fundamentalmente é a elaboração de valores, atitudes ou habilidades dos sujeitos captados pela câmera. Esta função está associada a conceitos como a autocópia, o videoespelho ou o microensino. [...] Vejo. Vejo-me. Vejo-me como sou visto, descubro como os outros me vêem. O espelho devolve à pessoa sua imagem invertida. O vídeo não. No espelho, a pessoa pode se olhar nos olhos. No vídeo não. O espelho impõe um único ponto de vista. No vídeo, a pessoa pode contemplar-se a partir de infinitos pontos de vista. Em definitivo, [...] o fato de ver-me e de escutar-me leva a uma tomada de consciência de mim mesmo, de minha imagem, do som da minha voz, da qualidade e da quantidade dos meus gestos, de minhas atitudes, de minha postura, de minha maneira de atuar e ser. (FERRÉS: 1996, p. 52).
Para eles, o espanto foi ver o material editado e se ver como protagonistas e produtores de conhecimento. Ver suas idéias, opiniões, argumentos. No debate sobre relação professor-aluno, ensino-aprendizagem, os alunos traziam questões que
giravam em torno do sentimento de impotência, subestimação da
capacidade de criação e de pensamento, por parte dos professores. Os alunos não conseguiam ver sentido na escola, porque os conteúdos não interagiam com o cotidiano. Durante o projeto ficou notória a relação autoritária de alguns professores, que ignoravam as diferenças, sejam culturais ou sociais dos seus alunos e
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exigiam um modelo de comportamento hegemônico. Porém, quando houve a mudança de posição, ou seja, quando estes assumiram a condição de “aluno”, nas atividades da Maxambomba, sua postura era “relaxada” e com aparência de pouco interesse. Valter Filé (2007, p.71) narra uma dessas experiências na sua dissertação, Negociação dos desejos. A linguagem audiovisual na formação de professores e professoras como uma questão de direito:
25
O fato aconteceu numa das atividades do projeto Botando a Mão na Mídia , que pretendia gravar a discussão, em grupos separados, de professores e alunos, acerca dos problemas da escola. Nos encontros dos professores, um deles, alguns momentos após o início das atividades, sempre cochilava. Seu sono era tão notado que, às vezes, precisava ser chamado pelos colegas. No grupo dos alunos, entre tantos problemas apontados – inclusive bem diferentes dos apontados pelos professores (até parecia que os dois grupos falavam de escolas diferentes) – um aluno faz uma declaração emocionada, inclusive com certa mágoa. Segundo ele, quase sempre dormia na aula de filosofia e seu professor freqüentemente o acordava dando-lhe chutes na perna. A bronca do aluno não era pela força do chute, mas pela forma usada pelo professor que ele achava humilhante. Quando do material editado, voltamos à escola. Fomos até a turma, perguntamos se aquele aluno gostaria de manter seu depoimento, já que não era nossa intenção deflagrar situações constrangedoras e tínhamos o compromisso de que tudo que fosse dito em qualquer dos grupos pudesse ser mais bem avaliado e retirado se o autor assim desejasse, ainda mais que, após os encontros fechados dos grupos, os vídeos editados seriam trocados entre os grupos e depois disponibilizados para toda a escola. Voltando aos professores, fomos exibir o material e qual não foi o espanto do professor dorminhoco ao se ver daquela maneira. De pronto, pediu que tirássemos todas as cenas em que ele aparecesse dormindo, pois não pegaria bem que ele aparecesse assim para os alunos. Na linguagem, se tal episódio tivesse sido anotado, talvez fosse mais fácil. Bastaria dar outra redação e omitiríamos tal fato. Com o audiovisual é mais difícil. Ainda mais que, nas cenas onde nosso personagem dorme, ele está ao fundo, sendo que, em primeiro plano, outras pessoas estão dando depoimentos muito interessantes, e aí estas pessoas se manifestaram contra a retirada de qualquer de suas intervenções. ‘Pobre’ professor, que foi para um debate final com os alunos onde, por sugestão dos próprios, os dois grupos assistiriam os dois vídeos juntos. Teve que encarar seus alunos de filosofia, inclusive aquele a quem sempre acordava em suas aulas, dando, segundo ele, leves pontapés.
Esse fato foi um dos comportamentos deflagrados nas atividades do Botando a Mão na Mídia, inicialmente denominado “vídeo-escola”. Mas o que havia de mais importante nesse projeto era a capacidade de produção crítica do conhecimento. Tanto nos debates
voltados às relações no espaço escolar,
quanto os que tratavam de temas eleitos pelos próprios alunos, como sexualidade, gravidez na adolescência, drogas, a maneira como eram tecidos os saberes de alunos e professores, era dinâmica, viva, potente. Os professores se espantavam ao ouvirem os discursos e verem as posturas de seus alunos. Isso 25
Nome incorporado dois anos depois.
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não aparecia em sala de aula. Outro aspecto importante tratado pelos alunos foi a imagem do jovem produzida pela TV. Lembramos que o projeto acontecia no primeira metade da década de 1990.
A imagem do jovem na mídia era a “Malhação”, jovens de
classe média preocupados com a forma física, abordando questões fúteis, mas inerentes àquele universo, pelo menos a imagem que queriam produzir no jovem. A análise feita pelos alunos era de que aquele tipo de programa não correspondia à realidade deles, como a forma de pensar e agir. O programa produzia, da perspectiva daqueles jovens da Baixada Fluminense, uma imagem pejorativa da juventude. A cada debate discutíamos o processo de edição, as alterações que fazíamos no discurso, nos diálogos, a manipulação de conteúdo. Esse tratamento levava as discussões mais profundas sobre a manipulação da mídia e a leitura crítica sobre as informações e as opiniões produzidas pelos meios de comunicação de massa. No término do projeto os alunos diziam que as atividades fizeram com que eles mudassem a maneira de ver tevê. Passaram a desconfiar da forma de apresentação da notícia, passaram a ficar atentos as mensagens subliminares, e que o fato de se verem fazendo vídeo lhes davam um certo poder, inclusive de maior auto-percepção. Para muitos jovens e professores foi uma experiência única, desmistificar a tecnologia e a linguagem do vídeo e da TV. Alguns alunos e professores puderam vivenciar o processo de edição e perceber funcionamento da manipulação do argumento, da imagem, do discurso. Perceber o poder do editor, do diretor, ou de outros agenciamentos. Em 1999, o projeto dedica-se à elaboração de oficinas dirigidas a professores representantes de unidades escolares na região da Baixada Fluminense, numa parceria com a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, com o objetivo de aumentar o potencial de multiplicação das informações e da metodologia. Os professores eram capacitados para usar o vídeo em sala de aula, como um instrumento pedagógico, já que durante as atividades nas escolas, os professores argumentavam que as dificuldades que eles tinham em trabalhar com vídeo em sala de aula era a falta de conhecimento sobre sua técnica e linguagem26. 26
CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular. Relatório de atividades no período de 1999/2000.
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Com isso, desenvolveu-se uma metodologia que facilitasse a participação dos professores, tornando-os produtores no processo. As oficinas destinavam-se ao domínio técnico, como o funcionamento do vídeo e da câmera e questões conceituais sobre as formas de produção da televisão. A proposta era oferecer ao professor um repertório de dinâmicas com reflexões que facilitassem a apropriação
da
linguagem
do
vídeo.
Seguros
da
proposta
poderiam
posteriormente aplicar em sala de aula, tornando as aulas mais criativas e consequentemente mais envolventes e participativas. O curso era composto de seis oficinas de quatro horas, mostrando como trabalhar a intersecção entre educação e comunicação, com conteúdos teóricos e práticos sobre a mídia, especialmente televisão e vídeo, mas também rádio, jornal, revista e cinema27. Nas atividades conceituais, havia um tema disparador. Assistir e refletir sobre um programa de televisão, ou uma matéria de jornal, ou falar sobre um gibi. A atividade era gravada, depois os professores assistiam e discutiam sua autoimagem. Posteriormente o desafio era pensar uma atividade que pudesse ser aplicada em sala de aula. Os professores eram motivados a fazerem suas experiências e trazerem para o encontro seguinte, seus resultados, dificuldades e desdobramentos. Os temas eram distribuídos em seis oficinas: Autoimagem; A realidade e sua expressão nos meios de comunicação; Desinformação, informação, conhecimento; Ficção nos comerciais e ficção na arte; Linguagem audiovisual e Aprendendo com a experiência dos outros. Nas atividades práticas, o professor era desafiado a manusear os equipamentos de gravação e de reprodução – câmera e vídeo, aprendendo botando a mão na mídia. O impacto nas escolas foi bastante positivo. No primeiro ano, a escola repete exatamente o que os professores aprenderam na oficina. No segundo ano, o projeto apresenta traços de desterritorialização. Os professores mostram resultados que extrapolam o objetivo inicial do projeto. Um dos resultados impactantes foi trazido por uma professora de Duque de Caxias. Incomodada com a falta de cuidado com o material da escola, utilizando 27
Botando a Mão na Mídia. Um curso teórico-prático para educadores interessados em comunicação. CECIP,2006.
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a dinâmica da auto-imagem, ela gravou os ambientes e mostrou primeiramente na sua turma, depois para as turmas do seu horário e pediu o apoio dos profissionais que exibissem em outros turnos. A cada exibição os alunos ficavam chocados com as imagens da escola. Abria-se um debate para tratar das responsabilidades com os espaços e equipamentos. Os alunos então decidiram fazer um mutirão para limpar a escola, criar murais temáticos e cuidar da sua manutenção. Nem todos os professores se envolveram, mas a professora encontrava estratégias que levassem o aluno e trazer esses professores para a cena. Exemplo disso, a dificuldade de saber como distribuir um determinado número de lixeiras na quadra, ela propunha que o aluno procurasse o professor de matemática para ajudá-lo a solucionar o problema. Outra experiência aconteceu no telecentro de Maricá. Uma professora, no segundo ano do projeto decidiu que não queria mais comprar materiais de papelaria, para trabalhar com seus alunos. Ela juntou todo o recurso dos últimos dois anos destinados a materiais didáticos convencionais (papel, lápis, borracha, etc.) e comprou uma câmera de vídeo. Ela queria trabalhar as questões políticas e sociais do município, gravando os lugares com seus alunos. Posteriormente ela fez contato com um amigo na TVE e prepararam uma oficina de edição e o telecentro passou a produzir junto com os alunos um vídeo sobre Maricá. Esse projeto quebrou barreiras e mitos sobre a televisão e o vídeo. Os professores quando se aperceberam produzindo, passaram a ver o vídeo e a televisão, não mais como um passa-tempo ou como um dispositivo alienante, desagregador e ameaçador. A partir daí vislumbraram no vídeo e na televisão um território de possibilidades criativas, inventivas, de encontro, de afetos, que se desterritorializa e inventa novas formas de produção, de intervenção, tornando essas linguagens aliadas ao processo de ensino-aprendizagem.
3.3.3 Repórter de bairro (1994 – 1998) O Repórter de Bairro foi um projeto de capacitação de grupos moradores em sete bairros da Baixada Fluminense, Parque das Palmeiras, Palhada, Bom Pastor, Jardim Tropical, Heliópolis, Rancho Fundo e Tinguazinho. Os repórteres de bairro trouxe uma nova dinâmica para a produção da
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Maxambomba. Sua equipe praticamente deixa de produzir os programas dos bairros e passa a capacitar pessoas das comunidades para formar equipes de repórteres nas comunidades onde aconteciam esses eventos. Havia várias formas de participação, distintos formatos de equipes, com diferentes interesses. Equipes formadas com base na associação de moradores, mas com participação intensa de jovens, outras formadas por grupos de pessoas sem vínculo específico com nenhum organismo político, umas basicamente formadas por núcleos de amigos. A mistura de adolescentes e adultos. Essas formações tinha uma importância para o trabalho, pois garantiam a diversidade de pauta dos programas. A participação da equipe do bairro era intensa. Realizavam-se pesquisas para apurar a demanda dos moradores, elencavam-se os grupos de expressões artísticas e culturais da localidade e os “personagens” que mereciam destaque. Dividia-se a equipe em pequenos núcleos de produção. Enquanto as pessoas se capacitavam iam produzindo suas revistas videográficas. No processo de aprendizagem o produto ia se constituindo e tomando forma. Nesse momento, embora, estivéssemos vivendo o advento de transição tecnológica, com equipamentos de gravação e edição mais acessíveis, ainda não era algo tão democrático. A própria Maxambomba ainda não dispunha de equipamentos leves que pudessem favorecer as oficinas. Na ocasião suas produções eram realizadas no formato U-matic. Em 1994, a Maxambomba adquiriu uma câmera de vídeo e uma ilha de edição de corte seco portátil no formato SuperVHS e passou disponibilizar esses equipamentos para a produção do projeto Repórter de Bairro. Cada bairro expressava nas suas produções sua singularidade, tanto em conteúdo quanto em linguagem. Havia bairros com programas mais sérios, outros desenvolvendo mais o humor. Houve um período de apropriação dessa linguagem. Inicialmente as equipes produziam seus programas nos formatos da grande mídia. Telejornais simulando o estúdio padronizado da televisão, mas no segundo programa o fundo do telejornal é uma cortina de chitão. Os repórteres já não produziam dentro dos padrões televisivos, se arrumavam como se fossem para uma reunião qualquer, estavam vestidos deles mesmos. Muitas equipes descobriram particularidades em seus bairros que os surpreendiam, como, por exemplo, a situação de extrema miséria no bairro do
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Tinguazinho. Esse tema virou pauta de programa e fizeram uma produção bem cuidada, com caráter documental da realidade daquelas pessoas. Quando o programa foi para o telão causou um impacto incrível. Na câmera aberta ficou claro que as pessoas do bairro desconheciam essa realidade. Neste mesmo bairro, os programas pautavam problemas sociais, mas traziam quadros de humor, como o clipe da sogra com a música do Dicró. Foi feita uma articulação, toda uma produção envolvendo vários moradores, locações. A dinâmica da produção nos bairros tinha esse dispositivo mobilizador, aglutinador. Durante a organização da exibição na praça era outra mobilização que acontecia em torno daquele evento. No Tinguazinho essa efervescência aparecia em todo processo. Numa ocasião, período de eleições municipais, havia no bairro três candidatos à vereador. A equipe então fez um programa sobre eleições, voto consciente, e na exibição convidou os candidatos para o debate de suas propostas de campanha. Foi algo inusitado. A praça lotou, as pessoas interferiram efetivamente na exibição, com depoimentos na câmera aberta e com um enxurrada de perguntas para os candidatos. O debate tinha sua organização com tempo de fala para cada um e compromisso ético. O debate esquentou a tal ponto, que houve um candidato que, por não conseguir sustentar suas propostas, desiste da candidatura. A equipe do Tinguazinho preparava uma pauta democrática. Seus interesses eram dar visibilidade para o bairro. Além da equipe criar a pauta, muitas
pessoas do bairro tomavam a iniciativa de sugerir. Como não havia
grupos religiosos, ou de movimentos sociais organizados, não havia também tendências, mas havia espaço para as pessoas de todos os segmentos participarem. E todos faziam com muito prazer, dedicavam um tempo significativo para as reuniões, as produções, finalização, enfim todo o processo era muito bem vivido. Depois das exibições os moradores queriam ver o vídeo em casa, então a equipe teve a idéia de disponibilizar os vídeos nas locadoras do bairro no valor de R$ 1,00 e a procura era constante. A equipe do Rancho Fundo era outra que tinha uma atuação muito peculiar, formada basicamente por adolescentes entre 12 e 18 anos e com mais uns cinco integrantes da associação de moradores. Os conflitos nessa equipe
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eram constantes. O choque de geração causava um certo desconforto entre os grupos. Os jovens tinham interesse em mostrar mais a sua cara, sua forma de pensar, suas inquietações e os adultos queriam fechar a pauta da produção em programas que fossem direcionados as atividades da associação de moradores ou de seus associados. Wagner Paiva um dos adolescentes integrantes da equipe, falando da sua experiência no projeto Repórter de Bairro, relata o que o motivou a entrar na equipe e como ele se relacionava com ela. Ele diz28: Eu tinha entrado no RB para arrumar algumas gatas […] mas o RB me abriu outras portas, pois tive a oportunidade de conhecer pessoas e lugares diferentes.
Falando sobre a produção: Lembro-me de que o primeiro vídeo que produzi diretamente foi 'Rainha do Lar', satirizando o dia das mães. Meu rosto foi ao telão como imaginei. Mas não 'peguei ninguém'. […] Mas o que mais gostei foi de me sentir um produtor que levava alegria e informação ao meu bairro.
A relação com grupo da associação de moradores: Tudo bem que o que faziam era importante, mas o RB tinha sua autonomia. Talvez por ser um grupo de adultos, aquela hierarquia de que 'adultos sinônimo de maior ou mais importante' e 'adolescente sinônimo de alienado sujeito a ordens' podia fazer parte de seus pensamentos, mas jamais do nosso. O RB era um grupo em que 90% era de adolescentes e, nem por isso os 10% restantes exerciam autoridade em cima de nós. Com isso o grupo poderia estar caminhando lado a lado, estavam se distanciando. Paramos de usar as dependências do GRR e passamos a nos reunir em nossas casas.
Gianne Neves também faz o seu depoimento29: As reuniões: Nossas reuniões eram meio bagunçadas, mas no final das contas dava tudo certo: tinha muita conversa, muita brincadeira. E o bom que nossos encontros não serviam só para discutir os vídeos, mas para promover namoros entre a galera, que não dispensava um bom beijo.
28
Os depoimentos registrados fizeram parte do levantamento sobre o projeto realizado com a associação de moradores do Rancho Fundo, bairro de Nova Iguaçu “Os Impactos sobre o Meio Ambiente Social na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Esses registros deu origem ao livro “Bem pra lá do fim do mundo” organizado por Claudius Ceccon e Jane Paiva. 29 Gianne Neves quando entrou para equipe no início do projeto tinha 12 anos.
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O projeto: Esse trabalho fez com que eu amadurecesse mais rápido, contribuindo para tomada de responsabilidade, a identificação pessoal, conhecer a importância do trabalho em grupo, aumentar minha sensibilidade, ampliar minha capacidade de reflexão e minha desinibição.
A relação da equipe: […] o grupo era composto por maioria de adolescentes, que não achava muito interessante mostrar, na maioria das vezes problemas do bairro, começamos então a fazer vídeos com questões de adolescentes; com a história de Rancho Fundo; com situações de lazer, revelando pessoas interessantes do bairro. A partir dessa preferência houve o distanciamento dos dois grupos.
Houve momentos desse grupo de adultos cobrar da equipe da TV Maxambomba uma atitude incisiva que fosse ao encontro de seus interesses. O papel da Maxambomba não era interferir na pauta, era orientar a produção no que diz respeito a técnica e a linguagem. O que ela fazia era mediar esses conflitos, no sentido de problematizar a função daquele veículo, enquanto um canal democrático. Um espaço aberto à todos os interesses. Mas o grupo da associação de moradores tinha dificuldade de assimilar essa proposta e não percebia que havia um espaço de negociação. Os adolescentes resistiram a pressão e mantiveram a equipe até o final da Maxambomba. Quando as fontes de financiamento do projeto TV Maxambomba se esgotaram em 1998, a equipe do Rancho Fundo formada por sete jovens que estavam desde o início do processo, inventaram o grupo Fuzuê e se mantiveram no CECIP fazendo produções para adolescentes e se envolveram nos projetos de Protagonismo Juvenil. Dos sete, três permaneceram no CECIP até 2004 e uma delas, Gianne Neves, se mantém até hoje coordenando projetos nessa área. A equipe do Rancho Fundo, por ser formada por adolescentes se tornou referência para muitos projetos que vierem posteriormente. Foi matéria de jornal, revista, seminários, dissertações de mestrado e doutorado. O projeto no Rancho Fundo foi de importante repercussão, que favoreceu outras linhas de projeto dentro do próprio CECIP, como o Capacitação Solidária (1999), o Instituto Ayrton Senna (2000-2001), Instituto Credicard (2002), Nextel (2008-2010), apoiando projetos de capacitação em produção de vídeo com adolescentes e jovens. E mais recentemente a Escola de Arte e Tecnologia, Oi Kabum!.
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O projeto de Repórter de Bairro em outros bairros foi relevante, trouxe desafios cada vez mais profundos no campo da comunicação participativa, revelando alguns participantes que ingressaram profissionalmente em outros projetos de comunicação popular. Foi um projeto que chegou ao penúltimo estágio da Maxambomba, que começa com uma equipe do Rio experimentando vídeo com associação de moradores, e depois contrata pessoas da Baixada sem nenhuma formação na área do audiovisual e que aprende fazendo, construindo a Maxambomba, depois disponibiliza a tecnologia para os bairros inventarem sua linguagem. Diria que o último estágio era a veiculação dessa produção na TV, ou nos dias atuais na internet com canal WEB. A Maxambomba depois da experiência da TV Beira Linha em BH, tentou fazer transmissão de baixa potência em Tinguazinho. Não aconteceu. Se o you tube existisse há 15 anos atrás talvez esse tivesse sido o caminho. Mas esse projeto revela a multidão e a Maxambomba, a produção do comum, produzindo e exibindo diferenças e singularidades.
3.3.4 Protagonismo juvenil
O Projeto de Capacitação de Jovens em Produção de Vídeo teve o apoio do
Programa
Capacitação
Solidária,
implantado
pelo
Governo
Federal,
direcionado para adolescentes e jovens. O objetivo da Capacitação Solidária era estimular a educação profissional e contribuir para a qualificação de jovens moradores de periferia para atender o mercado de trabalho30. O projeto deveria acontecer em seis meses. Não interessava para a TV Maxambomba capacitar jovens durante seis meses para o mercado de trabalho, além de ser uma tarefa impossível, para o modelo do projeto, a Maxambomba não tinha interesse em produzir mão-de-obra. Redefinimos o projeto e o nosso objetivo era que os jovens pudessem se apropriar da linguagem do vídeo como um canal de investigação, de pesquisa, de inventividade. 30
CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular. Relatório de atividades no período de 1999/2000.
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Nesse projeto, articulamos a capacitação na produção do audiovisual com algumas disciplinas desenvolvidas pela escola regular, tais como História, Matemática, Língua Portuguesa, Literatura e Artes Plásticas, como exigência do programa. Incluímos visitas à centros culturais, cinema e estágios na TVE, Canal Futura, TV Pinel e TV FACHA – Faculdades Integradas Hélio Alonso. Outro aspecto importante desse projeto foi a participação dos jovens da equipe de Repórter de Bairro do
Rancho Fundo como monitores da oficina.
Participar como monitores deu outra dimensão para o trabalho desses jovens. Eles começaram a escrever seus projetos, estruturar oficinas, começaram a construir um caminho próprio. Uma experiência que reafirmou tantas outras potências que residem nessa conexão de conhecimento e interação entre linguagens e intersubjetividade. A produção de vídeo estabelece processos de subjetivação, que engendram negociações de desejos e saberes. As relações que se produzem nesse universo, permitem um olhar sobre o vídeo como um potencial instrumento político e educativo, pelo seu poder comunicativo: […] A questão central do trabalho do Protagonismo Juvenil não é apenas o uso da linguagem audiovisual, de um aparato tecnológico para a discussão de temas relevantes, mas a própria discussão dessa mesma linguagem e de sua apropriação na reflexão da vida e do mundo das pessoas envolvidas. O objetivo do trabalho […] transcende a capacitação técnica para a profissionalização, pois visa, sobretudo a produção de vídeo como instrumento para trabalhar a auto-imagem, a auto-estima, e a capacidade crítica na construção da cidadania desses jovens moradores de periferia. (MIRANDA, 2000, p. 14).
Entendendo a comunicação como algo além do seu conceito tradicional, pauto-me no conceito de comunicação como um lugar de encontro, trocas e tessituras de saberes. Com esse projeto, mais uma vez se deflagra a fragilidade que havia no fazer escolar, nas relações estabelecidas no processo de ensino-aprendizagem. Verificamos ao trabalhar com adolescentes e jovens, que eles tinham mais envolvimento com as capacitações da Maxambomba, do que com a escola. Porém, no decorrer do projeto eles passaram a ter um melhor aproveitamento escolar, ou ver um novo sentido na escola, pois o projeto tentava buscar uma articulação com esse fazer, trabalhando a transdisciplinaridade no processo de produção de vídeo.
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Miranda (2000)31 chama-nos a atenção para essa questão em sua pesquisa de doutorado tendo como objeto o projeto Protagonismo Juvenil: [...] a escola aparece como um tema recorrente, via de regra, trazido pelos alunos nas conversas e entrevistas. Talvez pelo curso ocorrer dentro de prédios escolares, a comparação com a instituição seja tão evidente. Os alunos questionam, por exemplo, a diferença entre a construção do conhecimento no curso da TV Maxambomba e na escola. (MIRANDA, 2000, p. 14).
E traz o relato de um dos alunos: O curso trabalhou em geral, então fez com que a gente percebesse tudo, porque o curso não é igual à escola, porque na escola a professora faz uma pergunta e ela deu a resposta. Aqui no curso não, eles não dão a resposta. A gente que vai dar a nossa resposta. Então faz com que a gente pense profundamente para 32 descobrir a resposta.
Lobo faz um cruzamento com a fala da diretora da escola: Talvez esta fala (do aluno) sirva como resposta à diretora. [...] Esta, impressionada com a participação dos alunos, perguntou à coordenação do projeto o que eles faziam com os adolescentes para que eles retornassem ao colégio à tarde para uma atividade extraclasse (onde não há pontuação, nota ou conceito), após já passarem a manhã na escola. (MIRANDA, 2000, p. 15).
Nessa
discussão,
os
participantes
dos
projetos
questionavam
o
distanciamento entre a escola e suas realidades. A forma como são trabalhados os conteúdos, de maneira tradicional, que valoriza a memorização, a segmentação e a submissão em detrimento da leitura crítica e interpretativa da realidade, que pode levar a resignificação de forma criativa, participativa, revelando suas potências. Esse projeto possibilitou o transito de jovens pobres do bairro de Rancho Fundo por outros territórios. O medo de conhecer o centro do Rio de Janeiro, pegar ônibus, metrô, visitar centros culturais, circular por espaços até então distantes de sua realidade tanto geograficamente como subjetivamente. É importante lembrar que com todo o avanço tecnológico, quando a TV 31
Luciana Lobo Miranda na ocasião, no desenvolvimento de sua pesquisa de doutorado estava investigando os processos de subjetivação na produção da imagem. Seu objeto de pesquisa era o Grupo Fuzuê, criado a partir do projeto Repórter de Bairro da TV Maxambomba. Em 1999, estávamos desenvolvendo o Projeto Protagonismo Juvenil, que além de capacitar adolescentes e jovens da comunidade de Rancho Fundo na produção de vídeo, tinha o objetivo de capacitar o Grupo Fuzuê na coordenação de projetos de capacitação.
32
Luciana Lobo Miranda, não revela a identidade dos alunos em sua pesquisa.
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Maxambomba começou a atuar na Baixada, o computador, a informática e suas redes de interação era inexistente. Até o inicio século XXI, período que a TV Maxambomba realiza sua última atuação em 2001, as pessoas moradoras da Baixada Fluminense não tinham acesso aos serviços e equipamentos sociais, como rede de saúde e educação funcionando com dignidade, transporte em boas condições
de uso, com freqüência de horários, lazer, cultura e serviços de
telecomunicação.
Viviam
num
isolamento,
reinventando
maneiras
de
convivência. Sair dessa “zona de conforto”, sair para o Rio causava uma certa mobilização. Os jovens que fizeram esse curso do programa Capacitação Solidária foram estagiar no Canal Futura, na TVE, na TV Facha e na TV Pinel. Foi uma experiência impar tanto para os jovens aprendizes como para os jovens monitores. Sair da sua condição de pobre, ignorante, sem cultura para produzir uma proposta diferente de participação e de intervenção social. Vale ressaltar que essa experiência coincide com o desejo do Canal Futura desenhar uma proposta de trabalho com jovens como os de repórteres comunitários e mais uma vez a TV Maxambomba colabora com o desenho dessa dinâmica singularizada na mídia televisa. Porém não consegue se manter por muito tempo, pois o “Geração Futura” programa originário dessa articulação, ainda resistia em ver os jovens como produtores e sua estética era questionada, justamente por fugir dos padrões televisivos. A TV Maxambomba desenvolvendo, a cada experiência, sua metodologia participativa e democrática, possibilitou o encontro das diferenças. Cada um exercendo suas singularidades, produzindo discursos atravessados por suas questões sociais, econômicas e culturais, seus desejos e seus saberes e nãosaberes, incorporando em seu processo de subjetivação negociar, confrontar suas experiências, não para chegar em consensos, mas nas tensões deflagradas, criar espaços de fala e escuta democráticos. Com isso o exercício da democracia não passa pela decisão por meio de votos, e sim, por meio de espaços de argumentação, de expressão, de diálogo. A democracia é o espaço de convivência com as diferenças e seus conflitos. O grupo produziu três vídeos: um sobre Tinguá, mostrando a beleza e a responsabilidade ambiental com o lugar; outro sobre sexualidade e gravidez na adolescência e o terceiro sobre violência infantil. Para a realização dessas
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produções, os jovens fizeram várias articulações com instituições ambientalistas, entidades de assistência à infância e adolescência, psicólogos, educadores, familiares. A cada desafio, o grupo se envolvia mais. Uma máxima desse projeto, era justamente entender que os obstáculos era para serem encarados como desafios e não como bloqueios, algo paralisador. Num projeto de 30 jovens, houve apenas duas desistências. Certamente o projeto Protagonismo Juvenil não formou ninguém como técnico de vídeo, não formou mão-de-obra, muito menos colocou ninguém no mercado tradicional de trabalho. Por outro lado, o projeto criou condições de 28 jovens de 14 a 21 anos, construírem outros territórios existenciais. Esses jovens tinham medo de andar no centro da cidade do Rio, tinham vergonha de falar que eram da Baixada Fluminense, tinham receio de entrar numa emissora de televisão, no Pinel, na universidade, mas tinham um desejo de superar esses obstáculos, traçando linhas de fuga, saindo da produção hegemônica de jovem pobre, ignorante, mal educado, perigoso, para se singularizar na sua criação, sua arte, seu argumento, no seu modo de ser.
3.4 TV Maxambomba no devir loucura! Não jogue fora sua loucura, ela é real
Joe Romano
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Em 1995, a direção do Instituto Philippe Pinel fez o convite ao CECIP para pensar o projeto TV Pinel. Conhecendo a atuação da TV Maxambomba com experiências em oficinas de capacitação para pequenos grupos e seu formato de intervenção popular, acreditava que poderia contribuir para implantação de uma TV participativa dentro de um hospital psiquiátrico. Esse convite surge no bojo das discussões sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil, que já caminhava há quase duas décadas. A experiência da TV Pinel está fortemente vinculada à reforma psiquiátrica, que propõe outras formas de tratamento e relacionamento com a loucura. Um olhar mais humanizado e possível. O paciente psiquiátrico como alguém que 33
Joe Romano foi um dos grande colaboradores da TV Pinel. Se apresentava como “poeta, músico e louco”.
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produz, criativo e inventivo. Para isso sua prática além de des-hospitalizar foi também criar estratégias de viabilização dessas pessoas na sociedade. Na ocasião em que a TV Pinel foi criada, surgiram vários outros projetos singulares com propostas artísticas com a finalidade de propor outras possibilidades para a “loucura”. No final 1995 o Instituto Phillipe Pinel assina o convênio com o CECIP, e como integrante da TV Maxambomba junto com Noni Ostrower e Valter Filé34, fui destinada a fazer parte da equipe da TV Pinel. Estivemos apreensivos com essa nova experiência, que ao mesmo tempo era desafiadora. O sentimento de medo com euforia traduzia um pouco da nossa manifestação naquele lugar esquisito e esquizo. Não apenas nós que viemos da TV Maxambomba, mas todos da equipe, com exceção dos residentes de psicologia, não tinha formação ou alguma passagem pela psiquiatria. O nosso olhar sobre a loucura era aquele produzido há séculos pela sociedade ocidental – pessoas inválidas, impotentes, violentas, que na sociedade disciplinar deveriam ficar enclausuradas em hospícios, para garantir a contenção de seus corpos e mentes. Essa imagem da loucura estereotipada era agenciada há muito por equipamentos de subjetivação como a mídia, os hospícios, a escola, a família. A loucura era território
produzido e consumido por quem tinha interesse nesse
sistema opressor. Quando entrei no Pinel a primeira vez, esperava encontrar aquelas pessoas horrendas, babando, com seus corpos atrofiados, prontas para atacarem. Claro que nada disso aconteceu. Aos poucos fui me familiarizando, percebendo que aquela imagem estava muito longe da realidade e fui me sentindo em casa. A TV Pinel se tornou para mim uma espaço de experimentações audiovisuais. Delirava junto na loucura dos outros, estava ali devindo a minha loucura. Me permitindo ser. A vivência na TV Pinel foi fundamental para eu me perceber como mulher, profissional e pesquisadora da linguagem. Romper com os mitos midiáticos sobre a loucura, colaborar para um nova estética e ética na produção audiovisual que levasse em conta primeiramente o desejo daqueles que eram, até pouco tempo, pessoas incapazes e improdutivas. A TV Pinel se tornou um agente de potência, de devires. Um 34
Noni atuava com capacitações e roteirista. Filé era o coordenador da Maxambomba. A funções dos dois era de assessores, e minha era de técnica para trabalhar com a produção e capacitação.
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projeto singular que num dado momento desterritorializa a loucura e a mídia televisiva. A TV Pinel tinha capacidade de mobilizar, não por estar carregando os modos de subjetivação da luta antimanicomial, que ainda era, e é estruturada de uma maneira conservadora, falando apenas para os iguais. A TV Pinel falava com qualquer um. E por ser polifônica ecoava,
se tornava um Agente coletivo de
enunciação. Essa experiência vem contribuindo cotidianamente para as discussões sobre as práticas – discursos – tensões e conflitos deflagrados nas relações humanas no processo de produção da TV. Pois, embora, se trate de um projeto em saúde mental não tem objetivos clínicos, mas pela sua transversalidade, articulando arte-cultura-comunicação, traz contribuições terapêuticas no seu fazer.
3.4.1 TV Pinel!!! Qual é o Canal? A TV Pinel!! Qual é o Canal?35 A TV Pinel não é de canal algum e conectada Na freqüência da loucura, nos canais comunitários, Canal Saúde, canais universitário e you tube. Essa TV que caracterizou-se como uma TV Comunitária, teve a assessoria da TV Maxambomba e atualmente é realizada pela ONG Imagem na Ação. Esse projeto se intitula TV Comunitária por pertencer e atuar numa instituição psiquiátrica, com suas regras, normas e espaços definidos, onde transitam pessoas de diferentes funções e com o objetivo de tratar aqueles que passam por sofrimentos mentais, compreendendo-se assim, como uma comunidade, sob o olhar da sociologia, um lugar que reúne um conjunto de pessoas que compartilham do mesmo legado cultural e histórico. Se tratarmos hoje esse conceito de TV Comunitária no projeto TV Pinel, sob o paradigma de Negri, Hard, Guattari e Deleuze, definiremos comunitária, por se tratar de um projeto polifônico, que agrega diferentes formas ou modos de vida. Não é um território demarcado geograficamente pelo seus muros e códigos simbólicos, mas uma diversidade
com suas diferenças, suas potências singulares, onde o
comum é a linguagem da TV Pinel como um canal de expressão e de produção de subjetividade. 35
Vinheta produzida pelos usuários do hospital dia (CAIS) no Instituto Municipal Philippe Pinel.
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A TV Pinel é uma TV Comunitária por ser um espaço de encontro, de expressão, comunicação, criação, de inventividade daqueles que usam os serviços de saúde mental, sejam usuários – loucos ou não,
homens, mulheres, adultos,
crianças, técnicos, não técnicos, familiares, simpatizantes, antipatizantes, enfim, todos aqueles que compartilham das questões do sofrimento, do tratamento, e, sobretudo do diálogo com aqueles que estão “fora” do universo da doença mental. Não quero com isso, pensar a loucura como um elemento unificador, mas sim, pensar na loucura e na sua potência, como um Agenciamento de enunciação (GUATTARI, 1987), que movimenta esse encontro de diferentes idéias e ideais, de diferentes territórios e subjetividades, num processo de singularização, tanto das várias “loucuras”, quanto das linguagens midiáticas – vídeo e TV. Assim, considerando a TV Pinel como um grupelho36 que agencia esse movimento, com sua metodologia e intervenção social e cultural, desenham posicionamentos políticos, no que diz respeito à reforma psiquiátrica. Para Guattari o conceito de grupelho está imbuído de uma potência significativa no processo de subjetivação e de seu agenciamento: Somos todos grupelhos: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. (GUATTARI, 1987, p.18).Grifo do autor.
A noção de grupelho pode ainda ser associada ao conceito que Guattari forjou na década de 60, de “grupo sujeito”, em contraponto a “grupo sujeitado” [...] à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação”. A TV Pinel então estaria na sua produção, no seu processo de subjetivação, propondo um devir loucura, um devir arte, que escapa aos territórios fisicamente definidos e hegemônicos. Com isso, a proposição de comunitária extrapola a noção do espaço geográfico, para ampliar os espaços de subjetivação, ocupando outros territórios - os territórios das singularidades e da coletividade? Como diz Pál Pelbart (2003), a comunidade tem por condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a distância. TV Pinel extrapola os muros, se desterritorializa institucionalmente e cria outros espaços de subjetivação, são festivais, oficinas com diferentes grupos, you tube, universidades, cine clubes e nas telinhas domésticas. 36
Grupelho foi um conceito criado por Guattari na década de 1960, por conta de sua experiência na clínica de La Borde. Revolução Molecular, 1987.
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Por se tratar de um projeto de comunicação atravessado pela arte e pela cultura, acredito que a TV Pinel, vai operar em direção daquilo que Guattari chama de ecosofia mental: A ecosofia mental, [...] será levada a reinventar a relação do sujeito com o corpo, com o fantasma, com o tempo que passa, com os “mistérios” da vida e da morte. Ela será levada a procurar antídotos para a uniformização midiática e telemática, o conformismo das modas, as manipulações da opinião pela publicidade, pelas sondagens etc. Sua maneira de operar aproximar-se-á mais daquela do artista do que a dos profissionais “psi”, sempre assombrados por um ideal caduco de cientificidade. (GUATTARI, 1997, p.16).
Ou seja, a TV Pinel na contra-mão dos padrões midiáticos propõe produções com linguagens próprias e singulares que traduzem ou que revelam experiências de vidas de pessoas que têm em comum ou que participam seus sofrimentos e alegrias mentais, sem a preocupação de que essas expressões sejam materiais de analise de sua psique, psicologizando ou interpretando suas idéias e seus discursos, e sim, inventa com essas expressões, lugares de diálogos e de criações, por ter a arte como dispositivo fundamental dessas expressões. Em catorze anos de existência, a TV Pinel produziu 25 vídeos-revista, 30 vídeos entre documentários e outras produções. Parece pouco para tanto tempo. Mas a TV Pinel tem particularidades que fazem com que essa dinâmica de produção aconteça de maneira lenta. A primeira delas, e a que considero a mais importante, do ponto de vista metodológico. Em se tratando dos vídeos-revista, é uma produção que exige tempo. Embora sejam programas de 45 minutos em média, simples tanto tecnicamente quanto na linguagem, eles levam cerca de dois meses e meio para sua produção, já que são produzidos pelos pacientes (com toda sua complexidade humana) em todo seu processo de execução. Inicia-se na reunião de pauta, onde todos sugerem seus programas. A partir daí, as idéias são distribuídas para a equipe técnica, que viabiliza junto com o seu idealizador sua produção. O idealizador passa então a ser roteirista, escolhe seu elenco, dirige e em muitos casos ainda atua como ator. Porém, o tempo dessas pessoas, usuários ou pacientes, como se queira classificar, é muito diferente do tempo de televisão. Temos que contar com os equilíbrios e desequilíbrios, com os temperos e destemperos de cada um, com suas oscilações. Por isso, a produção de um programa pode levar de dois a três meses.
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Mas, é esse processo que é desafiador na TV. Conviver com essas nuances, revela em cada um (grupelho – usuários e técnicos da TV), as potências e as impotências; as capacidades e incapacidades em lidar com essas diferenças e diversidades. Embora a TV Pinel imprima um discurso harmonioso sobre essa prática de convívio, o processo de produção da TV deflagra relações de conflitos permeados por esse caldo de afetos em ebulição. Contudo, ainda assim, a prática revela a busca da tolerância nessa efervescência, procurando estabelecer uma relação de negociação de sentidos e desejos. O processo de produção dos programas da TVP desmistifica a maneira de fazer TV. Aquilo que é chamado de continuidade de cena, não é o mais importante na produção dos quadros, justamente por ter que levar em consideração o momento do humor de cada um. Se uma cena começa com um determinado ator. O roteiro, a cena ou o texto podem ser alterados durante a gravação mediante as condições do grupo que esteja na ação. O importante que a idéia vá para o programa (making of). É nessa inventividade que a TV Pinel encaminha outras formas de produzir o vídeo e TV, ressignificando essas linguagens, deixando de ser porta-voz, aquele que manda, transporta, transfere modelos e imagens (GUATTARI, 1987, p. 16) para ser a própria voz de grupos-sujeitos. Possibilitar a palavra significa criar espaços de produção de vozes e não de reprodução, como vozes tuteladas. A TV Pinel se propõe através desta enunciação de vozes a reapropriação da mídia e da linguagem televisiva, como um lugar de múltiplos discursos e singularidades. A tecnologia deixa de ser instrumento de dominação para ser instrumento de criação e de intervenção, constituindo “novos” processos de subjetivação. Para dar conta dessa complexidade na produção, a TV Pinel lança mão do making of como um mediador entre a idéia - o processo - o produto. Valter Filé fala da importância do making of como organizador dessas idéias: Nas gravações da TV Pinel, temos uma enorme dificuldade em estabelecer os limites daquilo que é uma “ficção”, proposta e realizada pelos usuários do hospital, e as realidades – deles, usuários e da gravação. Portanto o making of é fundamental, pois tenta dar conta dos atravessamentos destas “dimensões” que o tempo todo “desrespeita” os limites tradicionais da linguagem, mas recria-os a partir de suas possibilidades e interesses. Um exemplo: estávamos gravando “A Endoidada”, novela baseada na “Indomada”, da Rede Globo. Numa cena, precisava-se de um guarda. Foi-se até a guarita do hospital e conseguimos com que um guarda entrasse na cena. Gravamos a cena. Porém, na hora de fazermos outra tomada, de outro ângulo, percebe-se que o guarda, que deveria
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repetir a mesma cena, era notadamente outro, mas gravamos. Estava quebrada aí uma regra de ouro da linguagem audiovisual: a continuidade. Que fazer? Na novela editada, aparece o primeiro guarda explicando porque foi impedido de refazer a cena, pedindo ao colega para substituí-lo. Todos os envolvidos com a produção acharam que tinha ficado ótimo. E aí citamos o saudoso compositor Gonzaguinha: “É a vida, é bonita e é bonita...” (VALTER FILÉ, 2000, p. 86)
A partir dessa experiência, decidimos trabalhar com o making of como um segundo produto. Tudo era registrado desde o momento da reunião de pauta. Aquele programa era perseguido até o final com um roteiro pensado. Na edição ele entrava em caso de necessidade para contextualizar alguma cena, ou se tornava um outro programa. A TV Pinel participou de três festivais de making of , sendo premiado em todos. As produções da TV Pinel poderiam ser classificadas como videoarte, vídeo experimental, vídeo-instalação (com as videocabines), pela força de suas experimentações, mas seus produtos trazem marcas da mídia televisiva hegemônica, com o diferencial que o vídeo não é só um produto ou dispositivo a ser veiculado, consumido, ele é um estado (DUBOIS, 2004), um modo de pensar a própria língua, a loucura, o mundo. Em Off, a continuidade na TV Pinel, não é apenas questão de cena. Mudando de cenário, a continuidade pode ser um problema quando se trata de renovação do contrato do projeto. Essa é mais uma de suas particularidades, em 14 anos de existência, pode-se dizer que a TV Pinel atuou cerca de sete ou oito anos, por falta de convênio. Essa descontinuidade faz com que muitas sutilezas do projeto se percam. A cada convênio, que se encerra, são quase nove meses para reiniciar o projeto. O que isso significa? Quando o projeto está no ápice do seu desenvolvimento, ele estaciona, e quando retorna, por conta da sua desarticulação é preciso começar do zero. Por que trago essa outra particularidade? Por se tratar de pessoas envolvidas numa luta para a manutenção e sustentabilidade de ações potentes, sejam essas pessoas, profissionais ou pacientes que transitam em territórios criativos, não como pessoas dominadas, dependentes e tutelados, mas, numa dinâmica, que promova sua inventividade. É de fundamental importância que essa dinâmica seja contínua, para que se situe no seu universo de convivência, desenvolvendo sua ecologia mental, atuando com sua voz verdadeira numa busca revolucionária. E Guattari (1987) nos ajuda a pensar sobre o que ele chama de verdade revolucionária: aquela que, quando as coisas não te enchem o
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saco, quando você fica a fim de participar, quando você não tem medo, quando você recupera sua força, quando você se sente disposto a ir fundo, acontece o que acontecer [...], sobretudo, quando acredita no que se faz e porque o faz. Essas ações despertam desejos e quando desarticuladas, principalmente por ausência de estratégias que contribuam para a manutenção de sua existência, e ainda para o fortalecimento de uma luta ainda maior, como a própria Reforma Psiquiátrica37; essa desarticulação inviabiliza a abertura de algumas portas de saída dessas micro-estruturas de poder. Diante desse cenário, surgem questões que colocam em xeque os discursos e práticas de forças políticas, sejam elas - as instituições, o poder público, ou os próprios projetos. Será que processos como esses – que inviabilizam a continuidade de projetos que desenvolvem ações de cultura e arte na saúde mental, (como a TV Pinel, dentre outros) não estão revelando as contradições existentes entre o discurso de valorização da criação artística e do uso de tecnologias comunicacionais, quando o que na prática se valoriza são dados estatísticos (de quantos pacientes são atendidos clinicamente? E até que ponto, iniciativas inovadoras e criativas podem por em risco pequenas estruturas de micro-poderes, se tornando questionadoras, inquietantes, intrigantes? E será que na condição de militantes – atuantes em iniciativas inovadoras e criativas, principalmente aquelas que passam a ocupar lugares de visibilidade, mantemo-nos firmes em nossas posições ou passamos a ser reprodutores dessa estrutura de poder que tanto condenamos nos nossos atos de militância? Corremos o risco de ser capturados o tempo todo por processos de subjetivação de modelo hegemônico, sejam iniciativas conservadoras, sejam revolucionárias. É preciso a todo tempo buscar linhas de fuga, para reinventar um novo modo de viver nesse sistema. Mal comparando essas lutas (antimanicomial, pela reforma psiquiátrica) às lutas de classes, são lutas que por mais que tentem se abrir, são manifestações rançosas, fechadas em guetos, segregadas, falando para si, em que os técnicos ainda detém o poder e usam o paciente como seu porta-voz. Guattari (1987), faz 37
A Reforma Psiquiátrica faz parte de um movimento no Brasil de cerca de 20 anos em busca de um Tratamento mais humanizado para aqueles que passam por sofrimento psiquiátrico. Isso se refere não só a desospitalização – a substituição de leitos por centro de atendimentos, como prevê a convivência em família, a reabilitação psicossocial por meio da arte, da cultura, do trabalho e do lazer. Porém, esse movimento teve seu inicio na Europa a partir do final da década de 50, inspirando militantes brasileiros nessa causa.
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uma reflexão, quase como um manifesto, sobre as maneiras de militar, principalmente quando essa militância traz marcas da luta de classes que polariza, generaliza e contamina as relações de micro-estruturas de poder, sob a roupagem de uma campanha revolucionária: De que serviria, por exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização anti-autoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos superlativos, se eles se comportam com os militantes dos outros grupos, no interior de seu próprio grupo, com seus próximos ou consigo mesmos, como perfeitos canalhas, como perfeitos carolas? De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? Os fins políticos são pessoas desencarnadas. Eles acham que se pode e se deve poupar as preocupações neste domínio para mobilizar toda a sua energia em objetivos políticos gerais. Estão muito enganados! Pois na ausência de desejo a energia se autoconsome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia. (GUATTARI, 1987, p. 15).
E são justamente ações como a TV Pinel e outras iniciativas artísticas e culturais, desenvolvidas por esse país, que vem revelar que a energia do desejo é a força vital que mobiliza outras forças com objetivos voltados à uma convivência justa e digna, não homogeneizar, mas singularizar, manifestando e respeitando as diferenças. A TV Pinel, pela sua experiência acumulada, deveria ser considerado um programa de comunicação comunitária, que tem como objetivo e missão produzir outras imagens da loucura e ser um instrumento de inventividade e de expressão dos
pacientes,
familiares
que
possuem
seus
direitos
de
cidadania
negligenciados. Para as pessoas que se encontram em sofrimento psíquico, a saída imediata aplicada pelas instituições é entorpecê-las com fortes medicamentos, muitas vezes desconsiderando outras intervenções que possam favorecer a redução desse sofrimento por meio de estratégias mais prazerosas como a arte e a cultura. E são estas pessoas que transitam em diferentes territórios em busca de sua dignidade. Porém, creio que não seja possível pensar nas pessoas que passam por sofrimento, apenas como vítimas de um sistema anacrônico e excludente. Essas pessoas ao transitarem por esses territórios aprendem a usar a sua doença ou o seu sofrimento para sair da condição de assujeitamento, criando suas próprias estratégias, de certa forma legítimas, para garantir algumas “regalias”. Quando situações como essas, se revelam, os pacientes, pessoas vistas como incapazes
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e oprimidas, passam a oprimir àqueles não pacientes usando como armas aquilo que podemos chamar de “loucura”. O dia-a-dia na TV Pinel, no campo do trabalho, apresenta situações que colocam em dúvida o que se entende por doença mental. O que parece é que alguns pacientes não toleram, ou são totalmente impacientes com as dificuldades e limitações dos outros, principalmente aqueles com mais dificuldades, ou mais comprometidos. É como se fossem crianças nessas pequenas intrigas que ficam expondo a fragilidade de um e outro, revelando quase nenhuma solidariedade uns com os outros. Algumas dessas atitudes me trazem dúvidas sobre a maneira como o trabalho da TV viabiliza essa solidariedade ou reforça essas intolerâncias. Será que o paciente ao ver o sofrimento do outro, procura negar o seu próprio sofrimento, e talvez por isso, rejeite o outro? Um dos pacientes, atuantes na TV fala a seguinte frase: “a loucura tem facetas que a própria loucura desconhece”. E baseado nessa frase criou um programa que se chama “Essa loucura é minha”, que aborda a questão, de reconhecer a partir da loucura do outro a sua própria loucura. O processo de subjetivação que acontece na TV Pinel a partir das relações intersubjetivas entre – técnicos e usuários – técnicos e técnicos – usuários e usuários na produção dos programas, que como prática, instauram um clima, talvez mais solidário e tolerante, misturado com a sua função social, de desmistificar a imagem da loucura, ou de apresentar outras imagens da loucura, traz as marcas da contradição humana. Aquilo que na teoria é proposto como um ideário e o que na prática são fluxos e refluxos de conflitos, satisfações e insatisfações, justamente por essa dinâmica inquietante que permeia o cotidiano da TV Pinel. A TV Pinel ao longo de sua história e por suas particularidades políticas em relação a sua continuidade, nos últimos anos, onde essa problemática esteve mais latente, fez com que a cada convênio o projeto reinventasse uma proposta de atuação, sobretudo, para equacionar recursos. Buscando uma maneira de oxigenar os ares, as relações, o fazer comunicação, a TV Pinel a partir de 2007, iniciou um projeto em parceria com os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS no município do Rio de Janeiro. O objetivo dessa parceria foi ampliar a atuação da TV à esses centros, utilizando
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sua metodologia como forma de articulação entre os serviços e a comunidade, local no qual estão inseridos. A metodologia da TV Pinel busca a participação democrática, procurando possibilitar que todos tenham voz e vez, opinem, exercitem sua argumentação, reflitam sobre suas experiências. Principalmente os usuários que estão envolvidos diretamente no trabalho rotineiro da TV são convocados a esse exercício. Procuramos realizar juntamente com eles as idéias mais mirabolantes, porém o importante é que eles participem, e a função da equipe técnica é problematizar. Dessa forma, propomos aos CAPS a partir da construção coletiva desse projeto ampliar essa metodologia para que conseguissem estreitar as relações entre eles e a comunidade. Os CAPS foram criados para descentralizar o atendimento com o propósito de des-hospitalizar. Faz parte da política pública da Reforma Psiquiátrica a nível nacional, embora nem todas as regiões do país tenham conseguido implementar tal serviço. Na cidade do Rio de Janeiro são nove CAPS de atendimento às pessoas com sofrimentos mentais, distribuídos pelas regiões administrativas. Por estarem em bairros residenciais, estes serviços são alvo de preconceitos pelos moradores que por sua vez, também são marcados pela tradição histórica e estigmatizadora da psiquiatria, que fez com que se produzisse uma cultura de repudio àqueles que sofrem mentalmente. No convênio de 2007-2008, a TV Pinel decidiu que trabalharia com quatro dos nove centros, e para essa seleção, eles próprios deveriam demonstrar interesse e mostrar sua capacidade em atender os critérios de participação. Com isso, não foi a equipe da TV quem escolheu os centros, e sim, foram eles que aderiram à proposta inicial, já que o projeto foi elaborado em conjunto com os quatro CAPS. Utilizamos essa estratégia de seleção, para que a TV Pinel não ficasse sendo apenas mais uma atividade terapêutica (coisa que ela não é) que ocupa um espaço vazio dentro dos serviços, sem nenhum acompanhamento, como já foi experienciado por sua equipe. Dessa maneira, o esforço é mútuo, o empenho e o investimento precisam ser de todos os lados. Definiu-se que se trabalharia com dois CAPS nos primeiros nove meses e
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os outros dois nos nove meses até o término do convênio. Ao entrar nos CAPS a equipe da TV Pinel encontrou outras realidades. Um dos centros funcionava num anexo do Centro de Psiquiatria Pedro II - CPPII, atualmente Instituto Municipal Nise da Silveira no Engenho de Dentro. Nesse lugar, as pessoas trazem as marcas de uma psiquiatria desumana; são poucos aqueles que conseguem vislumbrar outras saídas. As pessoas que conseguem apresentar um diferencial nas intervenções, na participação, são aqueles que tem um histórico recente na psiquiatria. O outro centro funciona na Ilha do Governador, um bairro que embora tenha sido o local que sediou o primeiro hospício do império, onde Lima Barreto esteve internado, não tem uma cultura ou uma história manicomial. Talvez por isso, os usuários de lá
apresentam menos comprometimento. Mas, a equipe
percebeu que havia aspectos comuns a esses dois lugares. Exemplo disso, qualquer trabalho em grupo proposto era confundido com espaço terapêutico, e logo começava uma “choradeira” e um elenco de sofrimentos e desgraças pela vida, um sofrimento ia puxando o outro. Com isso, foi imposto uma regra: era proibido falar de sofrimento nos encontros com a TV Pinel, procurando definir com muita clareza os objetivos dos encontros e do projeto. Falar dos sofrimentos e, sobretudo, escutar esses sofrimentos, parece-me que faz parte do comportamento dos técnicos dos serviços de saúde mental, por mais que sejam pessoas engajadas na luta pela Reforma Psiquiátrica e acreditem na
importância
de
um
tratamento
humanizado,
singularizado,
acabam
reproduzindo uma relação de tutela, por esta ficar calcada e presa ao sofrimento. Mas percebeu-se, que para aquelas pessoas falar de sofrimento era falar de si, era a maneira que encontravam para se apresentar. E nos primeiros encontros de sensibilização o que ficou combinado é que se falaria apenas das coisas boas de vida. E foi surpreendente como as pessoas ficavam felizes em recuperar suas histórias boas, mesmo aquelas que insistiam em dizer que não tinha nada de bom, ainda em momentos difíceis conseguiam recuperar algo de bom. As pessoas remexeram no passado, nos álbuns de fotografias, nas cartas, nas lembranças de aniversário. E a partir daí começaram a revelar outras potências, cada um no seu tempo, cada um com suas singularidades, suas histórias e o mais importante cada sujeito, podendo compartilhar dessa história coletiva e individual.
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Essa pequena introdução da metodologia da TVP nos CAPSs trouxe outra pulsação, a ideia daquilo que Guattari (1987, p.31) chama de agenciamento coletivo, quando questiona o conceito de inconsciente freudiano. Ele diz, [...] O que estará daqui em diante na ordem do dia é o resgate de campos de virtualidade “futurista” e “construtivista”. O inconsciente permanece agarrado em fixações arcaicas apenas enquanto nenhum engajamento existencial faz projetar-se para o futuro. (Guattari, 1997, p. 20).
Então como podemos trabalhar esse engajamento existencial, projetar-se para o futuro, quando ficamos presos em sofrimentos do passado? A intervenção da TV Pinel nos CAPSs mostrou-nos que recuperar e experienciar as alegrias pode facilitar esse agenciamento para processos de projeção de ações, de inserções. Respeitando o tempo e as singularidades de cada um. Chegou-se a conclusão de que não adiantava procurar estreitar qualquer relação com a comunidade geográfica desses centros, sem que essas pessoas se dessem conta de seu próprio território, sem que as pessoas se dessem conta de que a vida não é só sofrimento e o quanto suas histórias eram cheias de vida. Outro aspecto curioso que a equipe percebeu e que foi remetido diretamente para as práticas no Pinel: o quanto os técnicos dos serviços de saúde mental infantilizam o paciente psiquiátrico. Aquilo que antes da Reforma Psiquiátrica eram práticas terapêuticas desumanas, aniquiladoras, perversas e excludentes, com a reforma foi produzindo uma cultura do “mimo – da mimação”. O que me fez lembrar uma provocação feita em um dos quadros da TV Pinel – Show do Gilsão, idealizado por um usuário, parodiando o show do milhão. Neste quadro “Filipi Pneu” vai tentar o um milhão para continuar suas pesquisas, mas ele foi desafiado a responder a seguinte questão: “Como deve ser tratado o usuário dos serviços da saúde mental? (a) Como um incapaz; (b) Como um coitado. (c) Como uma criança mimada; ou (d) Como uma pessoa que merece respeito?” “Filipi” não entende a pergunta, por não conhecer a expressão usuário, e Gilsão reformula a pergunta reforçando a idéia de paciente psiquiátrico. Como ainda assim Filipe não consegue responder pede ajuda aos universitários “Froidi, Iungue e Lacã”, que por sua vez, ficam teorizando sobre a questão e não conseguem ajudar “Filipi”. Essa bem humorada esquete faz uma crítica a maneira psicologizante de alguns profissionais nas práticas do tratamento, em que preocupados em ter uma excessiva atenção, passam a tratar o outro como um
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coitado, ou ainda como uma criança mimada. Mesmo a equipe técnica da TV Pinel, que procura estabelecer uma certa distância em relação as questões do diagnóstico e do tratamento, procurando ver e se relacionar com o outro como uma pessoa que merece ser respeitada nas suas diferenças, entendendo que as relações se constroem no fazer cotidiano, ainda assim, muitas vezes assume essa postura paternalista do mimo, principalmente quando alguém consegue ter uma idéia genial, uma atuação fantástica numa determinada cena, ou uma ótima performance numa entrevista, como se essas potencias fossem inviáveis a essas pessoas, vendo-se o paciente, implicitamente, como um incapaz. Por que não se consegue ver essas saídas como potências habitadas em cada uma dessas pessoas? Ou ainda são mimadas, porque são tão geniais que podem até oprimir quando usam de seu sofrimento para tripudiar de situações estabelecidas como relações de convivência? Essas são armadilhas que estão postas o tempo todo como uma provação, que coloca em xeque as teorias e as práticas – os discursos e os fazeres. E talvez só os projetos culturais e artísticos tenham condições de contribuir para a reflexão sobre essas armadilhas, porque estes estão para além do tratamento terapêutico, apontam para a promoção e produção de vidas, de auto-estima, de potências. Mas entre tantas experiências, sensações, sentimentos, os resultados desse projeto foram positivos. Na Ilha, a intenção era intensificar a biblioteca que estava sendo criada no CAPS. Para isso, o grupo criou uma estratégia de coleta de livros, visitando bibliotecas, doadores de livros, escolas, associação de moradores, igrejas. Nesse intercâmbio, não se apresentavam como uns coitados, incapazes que sofrem, mas como pessoas que fazem tratamento sim, nesses espaços, mas que também querem e atuam como produtores de cultura, de valores. Algumas pessoas estreitaram relações com os próprios familiares, quando solicitavam um apoio numa pesquisa, outros recorreram aos vizinhos. E com isso, além do grupo sair às ruas se apresentando, abriu as portas do CAPS para os moradores da localidade entrar e participar do Café Cultural, um evento que contou com a presença de um escritor e historiador que pesquisou sobre a história da Ilha do Governador, de três documentaristas que produziram um documentário também sobre a Ilha. É importante dizer que no trabalho de sensibilização foi feito um exercício
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de apropriação da história da Ilha, do bairro, a partir das próprias histórias de vida das pessoas e isso foi fundamental para fortalecer o sentimento de pertencimento àquele lugar. No Engenho de Dentro, por conta da singularidade do grupo, com muitos pacientes crônicos, o projeto foi mais lento, mas produziu um jornal de bairro, com coluna cultural, de esporte, dicas de beleza, receitas, dentre outras. Esse movimento da produção de um jornal fez com que o grupo também conhecesse mais o bairro e se fizesse conhecer, pois as matérias foram relacionadas à dinâmica da localidade. Na coluna cultural foram entrevistar o historiador e compositor Ney Lopes para contar sobre suas experiências suburbanas, na coluna de esportes, pesquisaram as ações esportivas no bairro, nas dicas de beleza, procuraram um salão local. Nessa dinâmica a atuação dos profissionais foi bastante importante, para fortalecer a iniciativa dos usuários. Na ocasião ouvíamos uma provocação de Paulo Amarante38: “Então vamos despinelizar a TV Pinel para capsular?”. Amarante comunga dos conceitos de Guattari e Deleuze, acreditando que a TV Pinel não pertence ao Pinel, não deve ficar sob a vigilância e o domínio de uma instituição, ou de um serviço, ele deve ser algo desterritorializada. E a idéia de capsular é em si uma imagem estarrecedora, colocar em cápsulas como remédios. Acredito que a defesa de Amarante tem sua pertinência. A TV Pinel, Cancioneiros do IPUB, Harmonia Enlouquece, Orgône, Os Nômades e todos os outros, precisam estar aí no mundo, em espaços abertos para transitarem por outros territórios e num devir loucura. Mas isso, só será possível, quando efetivamente os espaços de tratamento deixarem de ser manicomiais, para serem espaços transitórios e que fortaleçam as pessoas, como diz Pál Pelbart (2003, p.23), a vida é sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. A parceria entre TV Pinel e CAPS, que articulou diferentes linguagens comunicacionais – arte – cultura – tecnologia, mostrou sua capacidade de espantar os “fantasmas”, ou melhor, trazer os “fantasmas” para a cena dando-lhe consciência artística e tornando-os presentes na inter-relação, ou no processo 38
Paulo Amarante é Pesquisador em saúde mental e políticas públicas do Laboratório de Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ.
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intra-inter-subjetivo, propondo intervenções para um futuro-agora, trazendo a vida para cena e não para a morte fixada num passado, se apropriando de suas singularidades e do seu coletivo enquanto subjetividades produtoras de suas ações. Dessa maneira, possibilitar o devir arte, o devir delírio, o devir loucura, o devir criação, fez dessa relação entre TV Pinel e CAPS algo despinelizado e descapsulado, mostrando-se efetivamente um instrumento de construção de novos agenciamentos coletivos de desejo, sendo um lugar de possibilidades e exercícios de transformação pessoal e social. Nos anos de 2010 e 2011, nesse último convênio, a TV Pinel reformata sua dinâmica oferecendo oficinas de vídeo, não para aqueles que são ligados a saúde mental, mas a qualquer interessado. A intenção é que possamos ampliar essa noção de saúde mental para o universo de todos e não apenas daqueles que passam pelo sofrimento e seus próximos. Essa oficina com um público diversificado também pretende propor uma nova dinâmica na relação com a doença psiquiátrica, do ponto de vista que estamos ali não para tratar de uma doença, no sentido de ter que trazê-la todo o tempo para as temáticas dos programas, mas que podemos fazer coisas diferentes, criativas, na relação mais heterogênea possível.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A TV Maxambomba revela-se como um agenciador da multidão. Por não ter feito parte de nenhum movimento ou segmento social, não ter se aprisionado em nenhuma identidade, a TV Maxambomba pôde ser uma força política por meio do seu instrumento comunicacional – a produção audiovisual, confundindo-se assim com os seus próprios movimentos. A Maxambomba desterritorializa a mídia de massa na sua desmistificação disponibilizando o vídeo como ferramenta de singularização. A produção e a expressão do comum, em rede. Ela traz a produção de singularidades, favorecendo as diferenças na constituição do comum, (NEGRI, 2005). O que a TV Maxambomba desenvolveu quebrando mitos tecnológicos e de linguagem foi a criação de acessos para a apropriação desse dispositivo, por pessoas que se produziram à margem de processos de uma produção intelectual segregadora. Entrando na era pós-mídia (GUATTARI, 1997). Fazendo uma comparação grosseira entre a TV Maxambomba com o projeto político dos hackers (NEGRI, 2005), arriscaria dizer que a relação com o trabalho não se baseia no dever e sim, na paixão intelectual, seguindo na direção da cooperação social e da coletividade, reforçada pela questão da comunicação numa rede subjetiva e democratizando o acesso a produção intelectual e criativa. Mesmo ainda distante da popularização das redes de informática, a TV Maxambomba inaugurava um processo inovador e audacioso, de pioneirismo para o seu tempo, como o hackers na criação de softwares livres: Essa atividade cria uma nova forma de razão que não é mais a raison abstrata que perde essa função revolucionária fantástica -, mas que é razão que conecta imediatamente o saber, a prática, a imaginação, o social e a cooperação. Não se trata simplesmente, neste caso, de aprender a usar máquinas, apenas se trata, sobretudo, de fazer passar através dessas máquinas aquela construção social que é horizontal e sempre criativa. (NEGRI, 2005, p.4)
A TV Maxambomba que inicia sua trajetória no movimento popular, extrapolou esse espaço e ensaiou o conceito de Multidão desenvolvido por Negri, oportunizando processos de subjetivação, trazendo as diferenças para as praças e para o telão, produzindo outras possibilidades de subjetividade, fora do espaço circunscrito de qualquer identidade.
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De fato, se alguém derruba os muros que cercam o local (e desse modo separa os conceitos raça, religião, etnicidade, nação e povo) será possível ligá-lo diretamente ao universal. O universal concreto é que permite à multidão ir de lugar em lugar e fazer de seu canto um espaço próprio. Este é o lugar reservado ao nomadismo e à miscigenação.(NEGRI, 2001, p. 384)
A Maxambomba fazia dos seus micro-espaços de poder, ensaios ou exercícios para uma atuação mais cidadã-participativa nos macro-espaços de poder. Ao longo de dez anos, a metodologia da TV Maxambomba foi referência para diferentes trabalhos de comunicação e educação popular, mesmo havendo outras experiências parecidas, nenhuma delas representou ou trouxe as particularidades e especificidades da TV Maxambomba criando metodologias de trabalho que levavam à participação efetiva no processo de produção. Dez anos depois a metodologia participativa e transversal da TV Maxambomba colabora na
orientação metodológica, agora na experiência da
Escola de Arte e Tecnologia Oi Kabum! que em setembro de 2009 com a pretensão de capacitar 100 jovens de periferia em situação de risco social, nas áreas tecnológicas como vídeo, fotografia, web design, design gráfico, computação gráfica. A TV Maxambomba na constituição do comum, teve como inspiração a comunicação, os afetos, a cooperação, a criação, os saberes, a inventidade, a vitalidade para sua produção de valores imateriais. É impossível falar da TV Maxambomba sem se emocionar, sem ser afetado. A Maxambomba afetava e era afetada o tempo todo, numa dinâmica estarrecedora. A TV Maxambomba na sua singularidade, agregou forças singulares no seu processo de produção. Na sua produção rizomática articulou saberes, criatividade,
potências, polêmicas, conflitos, relações que forjaram processos
de singularização de jovens, idosos, mulheres, homens, gays, negros, brancos, pobres, professores, alunos, e equipe técnica. A TV Maxambomba revelou-se como um dinâmico agenciador de enunciação, em que na apropriação de sua linguagem, produziu novas linguagens, novos modos de inventividade, novos modos de vitalidade. Se reconhecer na produção, no telão, na relação com o outro, fez da Maxambomba esse veículo de singularidades que escreveu, ou produziu seu texto, sua linguagem, sua imagem, seus afetos, sua cooperação, seu modo de subjetivação, trilhando um caminho desenhado pela multidão.
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A era pós-mídia profetizada por Guattari (1997), está aí desabrochando com toda força, nos movimentos singulares que se expressam todos os dias, ampliando as conexões numa rede de criatividade e potência. São redes de comunicação e informação cada vez mais acessíveis, são os equipamentos de produção
cada
vez
mais
nas
mãos
e
mentes
produzindo
formas
de
relacionamento, processo que se iniciou lá atrás, nos primeiros ensaios de vídeoarte, passando pela televisão e as invenções de comunicação popular. A organização social na pós-modernidade é a organização da multidão, formada pela rede de informação, comunicação e de afetos.
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