Caminhos Desconhecidos da Arte Contemporânea _ Cadernos fólio, Escola Guignard/UEMG

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caminhos desconhecidos: olhares diversos sobre a arte contemporânea



Lou de Resende, Fabíola Silva Tasca, Cayo Honorato, Maíza Franco, Celina F. Lage, Alexandre Rodrigues da Costa & Priscila Paes (Organizadores)

caminhos desconhecidos: olhares diversos sobre a arte contemporânea

Editora da Universidade do Estado de MinasGerais - EdUEMG BeloHorizonte Reitor Universidade do Estado de Minas Gerais

2018


Dijon Moraes Júnior Reitor José Eustáquio de Brito Vice-reitor Eduardo Andrade Santa Cecília Chefe de Gabinete Adailton Vieira Pereira Pró-reitor de Planejamento, Gestão e Finanças Terezinha Abreu Gontijo Pró-reitora de Pesquisa e Pós Graduação Elizabeth Dias Munaier Lages Pró-reitora de Ensino Giselle Hissa Safar Pró-reitora de Extensão Roberto Werneck Diretor Geral do Campus Regional de Belo Horizonte Adriano Célio Gomide Diretor da Escola Guignard/UEMG Lorena D’Arc Menezes de Oliveira Vice- diretora da Escola Gignard/UEMG Luiz Naveda Coordenador do PPGArtes/UEMG José Márcio Barros Vice-coordenador do PPGArtes/UEMG


COMITÊ EDITORIAL Dra. Celina Figueiredo Lage (UEMG) - Presidente da Comissão Editorial Dr. Alexandre Rodrigues da Costa (UEMG) Jade Liz de Oliveira França (discente/UEMG)

COMITÊ CIENTIFÍCO Dr. Adriano Gomide (UEMG) Dr. Alexandre Rodrigues da Costa (UEMG) Dra. Celina Figueiredo Lage (UEMG) Dra. Fabíola Tasca (UEMG) Dra. Fátima Pinheiro de Barcelos (UEMG) Dra. Imaculada Kangussu (UFOP) Dra. Karina Dias (UNB) Dra. Lucia Gouvêa Pimentel (UFMG) Dra. Mabe Bethonico (UFMG) Dra. Maria Angélica Melendi (UFMG) Dra. Marília Andrés Ribeiro (UFMG) Dr. Pablo Gobira (UEMG) Dra. Regina Melim (CEART/UDESC) Dra. Rosvita Kolb Bernardes (UEMG) Dr. Rui Roda (Universidade de Aveiro, Portugal) Dra. Sandra Rey (UFRGS) Dr. Sebastiao Miguel (UEMG) Dra. Vera Casa Nova (UFMG) Dra. Teresa Torres de Eça (Núcleo de Educação Artística do Centro de Investigação da Faculdade de Belas Artes do Porto i2ADS, Portugal)

EDITORAÇÃO Priscila Paes



Os Cadernos fólio são uma coleção de livros publicada pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), que pretendem divulgar as pesquisas e trabalhos artísticos desenvolvidos no âmbito da instituição e também trabalhos da comunidade de pesquisadores e artistas nacionais e internacionais, mantendo um padrão de excelência e qualidade, para tanto contando com uma Comissão Científica de abrangência internacional.


ÍNDICE 10 :: APRESENTAÇÃO 11 ::

ARTISTA CONVIDADO Marco Paulo Rolla

20 :: A DANÇA DOS CORPOS NA ERA-ECRÃ Eduardo Jorge

31 ::

BAILES ERÓTICOS, BALÉS MECÂNICOS: AS COREOGRAFIAS DO IMPÉRIO José Wenceslau Caminha Aguiar Junior

43 :: UM CORPO QUE CAI Claudia Renault

55 :: PERFORMANCE / ENCENAÇÃO: ESTÉTICAS DA CONTEMPORANEIDADE Tania Alice

63 :: PARANGOLÉ, POLÍTICA E POÉTICA

DO INSTANTE NO

«ESTADO INVENÇÃO» DE HÉLIO OITICICA Maria da Conceição Hatem de Souza – Tina Hatem


78 ::

A ESTÉTICA COMO SISTEMA EMERGENTE E DINÂMICO Marcus Vinicius Corrêa Carvalho

87 :: BORDAS EM DERIVA Julia Gomes Panadés

99 :: DO ARTISTA-EDUCADOR E O MUNDO: PROCESSO DE MEDIAÇÃO, MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO DE DIÁLOGOS NO ENCONTRO EDUCADOR, OBRA DE ARTE, PÚBLICO. María Eugenia Salcedo Repolês

111 :: ANDU: ENTRE A SALA DE AULA E O ATELIER Amanda Moreira Lopes

121 :: CHEGOU A TURMA DO FUNIL Milton Machado

130 :: Mesa 3 Jorge Menna Barreto

151 ::

CONVERSAÇÕES COM IMAGENS Maria do Ceu Diel de Oliveira


APRESENTAÇÃO


10 :: APRESENTAÇÃO Caminhos desconhecidos: olhares diversos sobre a arte contemporânea Há muito os espaços da arte não são marcados por limites físicos ou conceituais. Em seu livro A imagem sobrevivente, Georges Didi-Huberman nos diz que o discurso histórico não nasce nunca, sempre recomeça. Parafraseando sua fala, poderíamos dizer que a arte não nasce nunca, sempre recomeça, pois a trama de discursos que se volta para a arte faz com que ela se torne uma espécie de terra desconhecida. Entrar em seus domínios é estar em um lugar onde as equivalências se renovam, onde o olhar é outro. Maurice Blanchot nos diz que “a resposta autêntica é sempre vinda da pergunta”. Os textos que compõem este livro partem desse princípio. Todos se voltam para a arte não como uma forma de encontrar respostas, mas de afirmar a questão que se abre em obra. Poderíamos, nesse sentido, aproximar a arte daquilo que Walter Benjamin chama de imagem dialética: “aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação”. Cada texto, aqui, pode ser interpretado como esse lampejo, pois a relação que se estabelece é, citando novamente Benjamin, “a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura”. Ler, interpretar uma obra é deixar-se a mercê desse momento crítico, sabendo que a partir dele a arte se torna soberana. As exigências da arte repousam assim sobre os discursos que a questionam. Questionar não é negar, mas recusar o que se recebe como orgulhosa construção de coisas já ditas. No entanto, não é também a busca voraz pelo novo que se quer, mas a de um olhar que, ao voltar para si mesmo, nos leva a perceber que a arte é a existência irredutível diante da qual a realidade se nega e se reafirma. Os textos reunidos aqui se propõem de certo modo a abraçar essa existência, ao optarem muitas vezes por caminhos desconhecidos, desnorteando, a cada passo, o que se supunha saber, fazendo do nãosaber um forma de contato com a arte.


ARTISTA CONVIDADO MARCO PAULO ROLLA


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ARTISTA CONVIDADO MARCO PAULO ROLLA

Marco Paulo Rolla e o trabalho Promessas1 Apropriações de cartas recebidas pelo artista Dimensões variadas. 2011

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O trabalho Promessas está disponível, em sua inteireza, no seguinte endereço: http://cadernosfolio.uemg.br/portfolio/ category/artista-convidado/, onde pode ser visualizado na companhia do trabalho Enganos, consituído por gravações telefônicas efetuadas pela secretaria eletrônica do artista, 2006.


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ARTISTA CONVIDADO MARCO PAULO ROLLA


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ARTISTA CONVIDADO

MARCO PAULO ROLLA


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ARTISTA CONVIDADO MARCO PAULO ROLLA


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ARTISTA CONVIDADO MARCO PAULO ROLLA


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ARTISTA CONVIDADO MARCO PAULO ROLLA


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ARTISTA CONVIDADO MARCO PAULO ROLLA


A DANÇA DOS CORPOS NA ERA-ECRÃ EDUARDO JORGE


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A DANÇA DOS CORPOS NA ERA-ECRÃ EDUARDO JORGE

A dança dos corpos na era-ecrã.2 Eduardo Jorge

A DANÇA DOS

Escritor e ensaísta com mestrado em Teoria da Literatura (EstudosLiterários) pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Pela mesmaUniversidade é doutorando em Literatura Comparada, em cotutela com oDepartamento de Filosofia da Ecole Normale Supérieure - Paris. Desenvolveu trabalhos nas áreas de

CORPOS NA

dança, literatura e artes visuais no Alpendre (Casa de Arte, Pesquisa e Produção), em Fortaleza.

ERA-ECRÃ

Palavras-chave

Poesia, virtualidade, dança, corpo, imagem

Resumo

EDUARDO JORGE

Este artigo discute a relação da composição do poema como uma abstração do gesto escritural do poeta no contexto da cultura digital até se chegar à dança como um ato potente de escrita.

Keywords Poetry, virtuality, dance, body image

Abstract This article discusses the relationship of the composition of the poem as an abstraction of the poet in the context of the digital culture moving towards dancing as a powerful act of writing.

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Texto inédito para Revista fólio em 2010.


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Para se dançar uma escrita além/aquém do papel e do ecrã.

Pensar a poesia no contexto digital é pensar no mínimo dois movimentos que o poema faz há séculos: movimentar-se como rede e trabalhar com uma certa virtualidade do gesto do corpo. Sim, articular-se como uma rede pela própria possibilidade de conectar pessoas pela sua leitura (ativar o poema) e também pela oralidade de milênios, que mesmo com sua matéria transformada resiste ao tempo. Para isso, Octavio Paz nos traz uma reflexão de um entorno, de uma artesania articulada para a matéria do poema:

Nada impede que o poeta se sirva de um computador para escolher e combinar as palavras que hão de compor os seus poemas. O computador não suprime o poeta, como não o suprimem os dicionários de rima nem os tratados de retórica. O poema do computador é o resultado de um procedimento mecânico não sem analogia com as operações mentais e verbais que um cortesão do século XVII precisava realizar para escrever um soneto, ou as de um japonês do mesmo século para compor, com um grupo de amigos, esses poemas coletivos chamados ‘haikai no renga’ (PAZ, 1991, p. 101).

Um ponto que vamos desembocar prosseguindo pela discussão do meio (media) do poema é o tão cansado suporte. As maneiras de fixar o poema no contexto de uma cultura digital. E nesse contexto, no qual a imagem digital e a informação são dois pontos motivadores da velocidade de consumo, a poesia ainda atua como uma potência de imagem (e aqui não se inclui apenas a poesia visual). A poesia como uma potência de imagem aberta a possibilidades de pensamento. Um pensamento outro. Quando Guattari (1993, p. 33) nos diz que “a poesia, atualmente, talvez tenha mais a nos ensinar do que as ciências econômicas, as ciências humanas e a psicanálise reunidas”, podemos entender a poesia como uma abertura possível para se tencionar a relação entre meios/suportes com o que ambos têm em comum, uma memória. Esse talvez posto pelo autor de Caosmose é muito próprio. É um talvez que elimina um tipo de saber de acúmulos que não interessa à poesia, ao corpo do poema. É um saber cujas regras e formatos próprios das ciências são um peso que dificulta a dança do pensamento que o poema propõe. Ou, para lembrar a pergunta de Jacques Derrida, Che cos’è la poesia? (O que é a poesia?), que longe de responder o filósofo franco-argelino


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propõe um movimento para enganar um “próprio do homem”, que é a resposta via linguagem: “Para responder a uma tal questão – em duas palavras, não é? – Pede-se que você saiba renunciar ao saber. E que saiba disso sem jamais se esquecer: desmobilize a cultura, mas não se esqueça nunca, em sua douta ignorância, daquilo que você sacrifica no caminho, atravessando a estrada” (DERRIDA, 1992, p. 303).

Com isso, o trânsito da poesia nos faz repensar até mesmo o que seria um “suporte”, ignorando se é papel, se é tela, se é corpo, embora não descarte a matéria de cada um deles. Interessante que ela é assim até em relação ao “sentido”, e isso lhe permite um caráter difícil até mesmo para ser detida como um conhecimento. Como Jean-Luc Nancy, no seu ensaio Resistência da poesia, afirma: “Poesia não tem exatamente um sentido, mas antes o sentido do acesso a um sentido a cada momento ausente, e transferido para longe. O sentido de ‘poesia’ é um sentido sempre por fazer” (NANCY, 2005, p. 10).

Em um mundo pós-utópico, para lembrar Haroldo de Campos, esse sentido por se fazer da poesia fornece um movimento interessante ao poema. Um não-topos. Um não-lugar. Dar à poesia um lugar determinado é tentar fornecê-la um sentido. Indeterminar o poema, eis o gesto que se deseja fazer da poesia algo com um sentido sempre por se fazer. E esse lugar pode ser inclusive a língua, o corpo. O poema pode sim, para fazer menção a Jacques Derrida, sobre Antonin Artaud, enlouquecer o subjétil. Para a poesia, deixar o subjétil3apenas como suporte é praticamente entregar o seu sentido. Papel, computador, muro suportam (e sem se queixar), aceitam e recebem tudo, tal qual um receptáculo universal (DERRIDA, 1998, p. 108).

Voltando ao corpo, existe um gesto que indiferencia corpo e letra: a escrita. E nesse sentido por que não pensar a escrita como uma coreografia. Ao associar a escrita à dança, colocamos em comum o gesto do desenhar a letra, ou rememorar a fundição de uma letra no trabalho manual dos tipógrafos (que não está longe do mundo da informática), virtualizado na era ecrã. Como não se lembrar de um trabalho de tal desenvoltura da composição de corpos de letras. 3

Subjétil, que pode significar suporte e ao mesmo tempo superfície, também pode significar matéria (de uma pintura, de uma escultura). Jacques Derrida (1998, p. 45) traça o subjétil: “Ele mesmo entre dois lugares. Há para ele duas situações. Enquanto suporte de uma representação, é o sujeito tornado ‘jacente’, exposto, estendido, inerte, neutro (‘aqui jaz’). No entanto, se ele não cai assim, se não o abandonamos a essa prescrição ou a essa dejeção, pode ainda interessar por si mesmo e não em virtude da representação, por força d‘o que’ ele representa ou da representação que ele suporta. É então tratado de maneira diferente como o que participa do impulso do lançar ou do arremessar, mas também, e por isso mesmo, como o que se tem de atravessar, transfixar, furar para se ver livre da tela [écran], isto é, do suporte inerte da representação. O subjétil – por exemplo, o papel ou a tela – torna- se então uma membrana; é a ‘trajetória’ do que se lança sobre essa membrana; deve dinamizar essa pele ao perfurá-la, ao atravessá-la, ao passar para o outro lado.”


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A fundição de letras de diversos corpos, energia a qual herdamos, na linguagem que ainda usamos: o corpo do tipo. Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra, afirmou uma vez Roland Barthes (1990, p. 93). A letra como um corpo significante contraditório, em uma aparência simples, insinua-se por toda a parte. E a poesia pode ser uma maneira de não domar esse corpo.4

Talvez seja por isso que a escrita como uma coreografia de corpos, para lembrar um poeta que tanto amava a dança, Stéphane Mallarmé, que trouxe uma coreografia de tipos como uma partitura, como Un coup des dés (Um lance de dados jamais abolirá o acaso, para lembrar a transcriação de Haroldo de Campos), trazido à tona em 1897. A escrita para se firmar, prevalece ainda a lição de Mallarmé, precisa de vazios, de brancos, um silêncio em volta para mencionar a precisão do poeta quanto a sua proposta. A escrita esburaca o espaço tal como o corpo do bailarino. Um poema com o sentido para se construir é um poema com vácuos e buracos porque só assim podemos ensaiar um movimento de sentidos do poema que não cessa. Que arda em seu movimento tal como a bailarina Atiké, presente no diálogo de Paul Valéry, A alma e dança. Por isso que o poeta pode se articular na escrita como em um bailarino. O bailarino esburaca o espaço comum abrindo-o até o infinito. Infinito esse pertencente ao movimento dançado – não só continua para além do seu fim, como se abre para aquém do seu começo – pois, como ainda habitamos o movimento, mesmo no repouso, como se não soubéssemos quando vai iniciar o movimento. É nesse momento, ao se indiferenciar o repouso do movimento dançado, que é possível se perguntar sobre uma espécie de origem do poema, tomando uma consciência de corpo: um poema começa na escrita? Quando começa o poema? Longe de querer responder, mas pensar o gesto que grafa, letra a letra, a escrita, torna-se um exercício interessante para se pensar em uma época que se discute um outro lado: a letra e não tanto o seu gesto de escrita. Porque, quando pensamos o gesto da escrita, vamos pensá-la mesmo (a escrita) como uma capacidade para além de sua fixação, seja na língua ou de outra maneira cuja matéria seja tangível. E aqui temos mais uma lição de outro bailarino/coreógrafo, Merce Cunningham, com o qual John Cage, seu maior parceiro, também aprendeu tanto com o gesto da dança. O coreógrafo Merce Cunningham, que conseguiu negar radicalmente as formas miméticas sem rejeitar a forma do movimento. Cunningham utiliza formas esvaziadas de conteúdo expressivo e significante (GIL, 2005, p. 27), além do fato de que seus 4

E aqui ainda continuando a instigante escritura de Barthes (1990, p. 94) em torno da proliferação letra e da imagem, letrasimagens: “prova que a palavra não é o único contexto, o único resultado, a única transcendência da letra. As letras servem para compor palavras? Sem dúvida, mas também para algo mais. O quê? Abecedários. O alfabeto é um sistema autônomo, aqui provido de predicados suficientes para garantir-lhe a individualidade? Alfabetos grotescos, diabólicos, cômicos, novos, encantados etc.”


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traços gerais coreográficos, como a introdução do acaso na coreografia e a decomposição das sequências orgânicas dos movimentos, desmultiplicam as articulações tradicionais (GIL, 2005, p. 29). Cunningham foi tão longe na importância concedida ao acaso que acontecia de os bailarinos não tomarem conhecimento da partitura musical a não ser no dia de estreia de um espetáculo. Uma outra questão interessante para discutirmos a partir desse ponto é o fato de Merce Cunningham pôr diversas linguagens em não-relação com a dança, criando no espaço séries divergentes. A não-relação com as coisas pode ser uma maneira interessante de se pensar o poema em seu sentido por se fazer, em uma época na qual se insiste em afirmar um discurso unívoco da convergência.

Em vias de acessar o poema

Dentro da era informacional, na verdade, pensamos que o poema não está se apropriando dos media, muito pelo contrário, são os media que se apropriam dos poemas, pois a poesia não tem uma precisão informacional do relato de um fato cujo sentido imediato possa durar segundos. Com isso, não se está simplesmente remetendo ao poema o simples crédito de uma duração na eternidade (como tantos poetas sonham), mas que ele não está entregue apenas a um tipo de consumo. É lembrando Felix Guattari, na Caosmose, que chegamos a uma subjetividade criadora do poema que, supomos, é atemporal:

Na poesia, a subjetividade criadora, para se destacar, se autonomizar, se finalizar, apossar-se-á, de preferência: 1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical; 2) de suas significações materiais com suas nuanças e variantes; 3) de seus aspectos de ligação verbal; 4) de seus aspectos entonativos emocionais e volitivos; 5) do sentimento da atividade verbal do engendramento ativo de um som significante que comporta elementos motores de articulação, de gesto, de mímica, sentimento de um movimento no qual são arrastados o organismo inteiro, a atividade e a alma da palavra em sua unidade concreta (GUATTARI, 1993, p. 26).

Seja na virtualidade da partitura mallarmaica ou na concretude de uma tela de computador, o poema possui uma qualidade de movimento inerente a seu próprio corpo e não mais apenas ao do escritor. E é


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esse corpo que fica para ser acessado por um sentido. E por isso, dentro de um acesso a um sentido a se construir, que o poema pode se articular como uma rede e como um espaço de memória. E, quando isso acontece, não é por outro modo senão pelo difícil, e sem querer apenas fazer um jogo de palavras, por mais fácil que pareça ser. Quando esse acesso é dificultado, torna-se mais interessante ainda tentar acessá-lo (também como constituição de jogo). É por isso que mais uma vez é interessante observar as considerações de Jean-Luc Nancy:

A poesia é assim a negatividade na qual o acesso se torna naquilo que é: isso que deve ceder, e com esse fim começar por se esquivar, por se recusar. O acesso é difícil, não é uma qualidade acidental, o que significa que a dificuldade faz o acesso. O difícil é o que não se deixa fazer, e é propriamente o que a poesia faz. Ela faz o difícil. Por ser ela a fazê-lo, parece fácil, e é por isso que, desde há muito, a poesia é vista como “coisa ligeira”. Ora não se trata unicamente de uma aparência. A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente difícil. Na facilidade, a dificuldade cede. Mas isso não significa que ela seja removida (NANCY, 2005, p. 11).

Com um mundo onde a informação está de fácil acesso, a poesia vai por uma contramão, assim como sua capacidade de articular outros sentidos que não só os de aceleração informacionais. Assim, a poesia e suas construções seguem por outro sentido da informação. Ao mesmo tempo em que o acesso aos media – ou, ampliando mais um pouco, suportes e dispositivos – se tornou mais frequente, essas possibilidades de usos destes em relação ao poema em si. Pode até ser contraditório quando o predomínio da técnica não estabelece à poesia sua potência, gerando um descompasso entre ambos, como se as escritas não se encontrassem e uma tentasse anular a outra, pela ostentação, pelo que possui de novo, no dizer tecnológico. Por exemplo, se pensarmos materialidades distintas como uma câmera de vídeo e um pedaço de papel, embora ambas se articulem como escritas. E assim, como se estivéssemos em um limite da técnica com uma subjetividade criadora, ambas ficam repercutindo uma dentro da outra, em movimento contínuo.

É muito precioso notar esse limite da técnica com uma subjetividade criadora, pois de alguma forma uma outra maneira de fazer política aí se estabelece. Uma política dentro da rede que faz repensar, inclusive, a


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memória. Em Poesia: uma decisão, de Silvina Rodrigues Lopes, publicado na revista Aletria (2003/2004), o argumento em torno da imagem e da memória nasce justamente do fato da memória não ser um depósito:

O facto de as imagens nascerem da memória não significa que a memória seja equivalente a um depósito, um arquivo (“o imaginário”). Pelo contrário, nascem porque a memória é a possibilidade de passar do indecifrável à significação infinita, de transportar as afecções para o campo das interpretações. Isso não se pode confundir com a recordação que nos orienta o agir cotidiano, pois esta é já a conversão da energia criadora em fórmulas que visam uma finalidade prática, fórmulas adequadas aos processos de sobrevivência como simplificação da vida (LOPES, 2003/2004, p. 78).

Em meio a um discurso dentro da era eletrônica, no qual o “espaço” da memória é mensurado em gigabites ou até mesmo terabites, virando sinônimo até mesmo de depósito, Silvina Rodrigues Lopes entra no ponto de uma outra memória, uma memória como uma operação:

A memória-interpretação-invenção é uma memória carregada de emoção precisamente porque nela se procuram os indícios do que nunca foi vivido; ela não é um produto, mas uma operação, um engendramento de imagens sempre enigmáticas, que detém na capacidade de ilusão a verdadeira força, a força criadora. É o que acontece na “visão” poética, imagem incomensurável porque imagem-aparição, algo como um relâmpago que pelo excesso de luz fulmina, uma exclamação que não se transforma em discurso, mas é nele que persiste, em excesso, expressão do inexprimível (LOPES, 2003/2004, p. 78).

E, quando falamos de memória e imagem como uma operação, essa relação, além de uma virtualidade em si, acontece no próprio corpo. Por isso, pensar nesse movimento da poesia pela rede e pela memória aciona um corpus, para mencionar mais uma vez Jean-Luc Nancy, o qual é fundamental para o pensamento do poema na sua proposição e articulação de imagens:


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O intervalo entre os corpos é o seu ter-lugar em imagens. As imagens não são aparências, ainda menos fantasmas ou alucinações. São o modo como os corpos se oferecem entre si, são a vinda ao mundo, ao bordo, à glória do limite e do fulgor. Um corpo é uma imagem oferecida a outros corpos, todo um corpus de imagens lançadas de corpo em corpo, cores, sombras locais, fragmentos, grãos, aréolas, lúnulas, unhas, pelos, espumas, lágrimas, dentes, babas, fendas, blocos, línguas, suores, líquidos, veias, penas e alegrias, e eu, e tu (NANCY, 2000, p. 118).

Quando o movimento sucede no intervalo, voltando a escrita da dança e a dança da escrita.

Com a escrita articulada com a dança em torno de uma certa noção de virtualidade, que o filósofo José Gil também chama de ficcional, vamos ao intervalo. Italo Calvino, em suas Seis propostas para o próximo milênio, inicia pela leveza (entre as outras, a rapidez, a exatidão, a visibilidade e a multiplicidade), que nos ajuda aqui a pensar essa questão do peso na dança e prolongá-la pela escrita:

Se quisesse escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, escolheria este: o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepidante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados (CALVINO, 2000, p. 24).

A imagem da leveza trazida por Italo Calvino é de certa forma uma imagem do movimento dançado se incluirmos, além do poeta-filósofo, o bailarino. Seria essa ficcionalização do peso que o poeta e o bailarino são capazes de trazer consigo ou como prefere chamar José Gil: o virtual do corpo do bailarino. José Gil (2005, p. 123) nos diz que “em suma, há uma multidão de bailarinos virtuais num corpo que, ao dançar, esboça os múltiplos gestos atuais”. E, no poeta, quantos poetas virtuais não existem em um só corpo, quando múltiplos movimentos de escrita podem desembocar na materialidade do poema? É aqui que pensamos a relação do peso friccional ao ficcional (...), uma vez que o bailarino já não pesa o seu peso


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verdadeiro, mas alguma coisa como um peso fictício ou virtual, que depende da energia desenvolvida e consumida (GIL, 2005, p. 19). Por procurar situações instáveis, desequilibrando-se a partir do equilíbrio apreendido e assim não vivendo o seu peso objetivo, é que o bailarino – com seus dois pesos, real e virtual – constitui uma condição essencial para a dança:

A arte do bailarino consiste assim em construir um máximo de instabilidade, em desarticular as articulações, em segmentar os movimentos, em separar os membros e os órgãos a fim de poder reconstruir um sistema de um equilíbrio infinitamente delicado (GIL, 2005, p. 23). Assim, a poesia em uma não-relação com a dança e também com o ecrã, para lembrar Merce Cunningham, também constrói um máximo de instabilidade na funcionalidade do mundo. Mesmo que essa funcionalidade seja no acesso a novas tecnologias ou no consumo constituído no espaço informacional. E é entre um sentido sempre em movimento, na possibilidade de armar uma ética do encontro (ou de uma comunidade, quer dizer, um comum que é estranho e partilhado), que o poema constrói uma alegria tanto para quem o faz como para quem o acessa. Se sua instabilidade colabora para a aquisição de novas imagens, ela pode esconder, cobrir (totalmente ou parcialmente) imagens já existentes.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

DERRIDA, Jacques. Enlouquecer o subjétil. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Ateliê/Unesp/ Imprensa Oficial: 1998.

DERRIDA, Jacques. Che cos’è la poesia?Trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar. In: Points de Suspension.


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A DANÇA DOS CORPOS NA ERA-ECRÃ EDUARDO JORGE

Paris: Galilée, 1992.

GUATTARI, Felix. Caosmose. Trad. Ana Lucia de Oliveira e Lucia Claudia Leão. Rio de Janeiro: 34,1993.

GIL, José. Movimento total. O corpo e a dança. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Iluminuras, 2005.

LOPES, Silvina Rodrigues. Poesia: uma decisão. Aletria.. Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte, v. 10/11, p. 72-80, 2003/2004.

NANCY, Jean-Luc. Resistência da poesia. Trad. Bruno Duarte. Lisboa: Vendaval, 2005.

NANCY, Jean-Luc. Corpus. Trad. Tomás Maia. Lisboa: Vega, 2000.

PAZ, Octavio. Convergências. Ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

SASPORTES, José. Pensar a dança. A reflexão estética de Mallarmé a Cocteau.Portugal: Casa da Moeda, 1983.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: 34, 2005.

VALERY, Paul. A alma e a dança. Trad. Marcelo Coelho. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


BALÉS ERÓTICOS BALÉS MECÂNICOS: AS COREOGRAFIAS

DO IMPÉRIO

JOSÉ WESCESLAU CAMINHA AGUIAR JUNIOR


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BALÉS ERÓTICOS, BALÉS MECÂNICOS: AS COREOGRAFIAS DO IMPÉRIO JOSÉ WESCESLAU CAMINHA AGUIAR JUNIOR

Balés Eróticos, Balés Mecânicos: as Coreografias do Império¹ José Wenceslau Caminha Aguiar Junior

Doutor em Linguagens Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor da UEMG, atualmente lecionando na Escola Guignard-UEMG.

Palavras-chave Cinema, musical, guerra.

Resumo O que se propõe aqui é estabelecer algumas inter-relações de ordem estética e política entre duas sequências extraídas de clássicos da cinematografia mundial: a coreografia intitulada Crazy Veil (Véu Louco), do musical norte-americano Cantando na Chuva (1952), dirigido e coreografado por Gene Kelly e Stanley Donen, que presta uma homenagem ao cinema de estúdio e a sequência de apresentação dos créditos no filme Dr. Strangelove (Dr. Fantástico), dirigido por Stanley Kubrick e lançado em 1964, doze anos após Cantando na Chuva.

Keywords Movie, musical, war.

Abstract What is proposed here is to establish some interrelations between aesthetic and politics from two ballet sequences of two classic movies: the choreography entitled Crazy Veil, in the American musical Singing in the Rain (1952), directed and choreographed by Gene Kelly and Stanley Donen, which pays homage to the film studio, and the sequence of the presentation of the film credits in the movie Dr. Strangelove, directed by Stanley Kubrick and released in 1964, twelve years after Singing in the Rain.

¹ Texto aceito para publicação em 2013. Uma versão atualizada foi publicada na e-Com: revista científica de comunicação social do Centro Universitário de Belo Horizonte, n.1, em 2015.


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BALÉS ERÓTICOS, BALÉS MECÂNICOS: AS COREOGRAFIAS DO IMPÉRIO JOSÉ WESCESLAU CAMINHA AGUIAR JUNIOR

Eu diria que não existe um ponto de vista absoluto, universal, nem no universo de diferentes sociedades, contemporâneas ou de épocas diferentes, nem no seio de uma mesma sociedade, mas somente pessoas que lutam para impor seu ponto de vista particular como ponto de vista universal; e com este fim, realizam um trabalho de universalização de seu ponto de vista particular. Pierre Bourdieu

FIGURA 1 – Still do filme Cantando na Chuva (1952). Fonte: http://www.icollector.com/Cyd-Charisse-DancerIvory-crepe-and-chiffon-ballerina-dress-from-Singin-in-the-Rain_i10658099 FIGURA 2 – Still do filme Dr. Fantástico (1964). Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=uSf1bJoYX50

Cantando na Chuva

O filme Cantando na Chuva é considerado o maior musical da história do cinema: segundo Clive Hirschhorn, ele “(...) permanece uma obra-prima inconteste e o melhor e mais duradouro musical que surgiu em Hollywood” (HIRSCHORN, 1981, p.326). Esse filme é fruto daquele que é considerado o último


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grande período do musical americano, quando, no início dos anos 1950, trabalhavam na Metro- GoldwinMayer nomes como Gene Kelly, Stanley Donen e Vincent Minelli e que, juntamente com diretores de arte, de fotografia, cenógrafos, iluminadores, figurinistas e todo o staff necessário para a produção de filmes, uniram seus talentos para dar um novo formato ao musical. Lembremo-nos de que naquela década os Estados Unidos já haviam iniciado sua trajetória (alavancada pelo esforço de guerra entre 1942 e 1945) rumo a um poder tecnológico e industrial e a uma sociedade cujos parâmetros de consumo nunca haviam sido antes experimentados por qualquer nação do mundo; ao mesmo tempo, não só o gênero musical, mas o cinema como um todo começava a enfrentar o seu maior inimigo – a televisão – na luta pela hegemonia como medium audiovisual de massa, e seria derrotado já nas duas décadas seguintes. Segundo Paul Virilio:

A alegria convalescente do imediato pós-guerra se apaga progressivamente e a desmobilização das massas está na ordem do dia. A partir de então desaparece a grande comédia musical americana, privada tanto de suas aspirações generosas quanto de suas necessidades militares e políticas pela dissuasão nuclear. Durante os anos cinquenta, pesquisam- se novas surpresas técnicas: cinemascope, cinerama, terceira dimensão, vista através dos óculos Polaroid (VIRILIO, 1993, p. 18-19).

Cantando na Chuva é resultado da união de dois amigos diretores e coreógrafos de primeira linha, Kelly e Donen, e trata com ironia do início do cinema falado, das dificuldades encontradas pelos produtores e diretores para lidar com a nova tecnologia do som, com atores e atrizes se esforçando para adaptar sua movimentação em cena e – o mais crucial – suas vozes, nem sempre adequadas, àquela nova fase do cinema. Em 1936, Walter Benjamin afirmava: “Representar à luz dos refletores e ao mesmo tempo atender às exigências do microfone é uma prova extremamente rigorosa. Ser aprovado nela significa para o ator conservar sua dignidade diante do aparelho” (BENJAMIN, 1986, p.179). Boa parte das cenas que mostram os desacertos da filmagem foram baseadas em eventos que realmente aconteceram nos sets de filmagem no início dos anos 20. O filme tem como enredo central as relações entre o quarteto composto pelo galã do cinema mudo Don Lockwood (Gene Kelly), inseguro quanto à sua capacidade de interpretar; pela jovem corista com uma bela voz, Kathy Selden (Debbie Reynolds); pela estrela de voz insuportável Lina


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Lamont (Jean Hagen) e pelo companheiro de estrada de Lockwood, Cosmo Brown (Donald O’Connor). Com sua metalinguagem – se trata de um filme sobre a produção de outro filme – The Duelling Cavalier – ele é um tributo à sétima arte, exibindo os mecanismos que permitem a magia e a ilusão na indústria cinematográfica e explicitando como tudo é falso e fabricado e ainda assim – ou por isso mesmo – capaz de nos iludir e seduzir. Temos aqui uma narrativa ficcional sobre outra ficção, onde podemos observar uma série de jogos de espelhamento, como na sequência em que o personagem Lockwood explica ao diretor do estúdio J. F. Simpson como será o número musical Broadway Melody ²: essa sequência mostra a trajetória, do anonimato ao sucesso, de um jovem dançarino de sapateado na Broadway que, logo no início da fala de Lockwood, começa a se materializar na tela. Quando a sequência termina, estamos de volta ao escritório, onde Lockwood diz: “Bem, J.F., essa é a ideia do número, o que você achou dele?” e o diretor, um pouco refratário à ideia, responde: “Eu não estou conseguindo visualizá-lo! Tenho que vê-lo no filme!” e Cosmo replica: “No filme vai ficar melhor ainda!”: ora, acabamos de ver o número ser executado, e sabemos da sua qualidade – Cosmo poderia se virar para nós, espectadores, e trocar conosco um olhar de cumplicidade... O mesmo ocorre na sequência em que a farsa da bela voz de Lina Lamont é desmascarada: Kathy Selden, escondida atrás da cortina canta Singing in the Rain, enquanto Lina, diante da plateia, canta em um microfone desligado: à medida que, nos bastidores, Lockwood, J.F. e Cosmo vão abrindo a cortina, vemos Kathy sendo revelada, posicionada diante do microfone exatamente como Lina, e se sentindo uma desconfortável dublê vocal da estrela.3 Já na cena final do filme, o perfil de Lockwood (que aparece em close na sequência citada anteriormente) se dissolve para o surgimento da sua imagem, porém impressa: a câmera se afasta e vemos o outdoor que faz propaganda do casal estreante no novo filme Cantando na Chuva, que, afinal, foi realmente lançado: ele está sendo projetado diante dos nossos olhos. Porém, a produtora não é a Metro e sim a Monumental Pictures e as estrelas não são Gene Kelly e Debbie Reynolds, mas Don Lockwood e Kathy Selden... Embora no filme várias das canções utilizadas tenham sido retiradas de antigos musicais da Metro como, para citar apenas dois exemplos, a música- título do filme, extraída do musical Hollywood Revue of 1929 e Good Morning, de Babes in Arms (1939), no balé aqui analisado,4 que Gene Kelly denominava de “the Crazy Veil sequence” (“a sequência do Véu Louco”) – música e coreografia foram especialmente criadas para o filme. Em Broadway Melody, com seus ricos figurinos e cenários 2 3

cuja a duração é de 14 minutos e que custou cerca de 600.000 dólares para ser produzida. A própria Debbie Reynolds teve que ser dublada por Betty Noyes em “Would You?” e “You Are My Lucky Star”, devido à sua inexperiência aos 19 anos. 4 Que faz parte de uma grande coreografia intitulada Broadway Melody, cujo mote é a expressão Gotta Dance! (Tem-se que Dançar!)


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baseados nos luminosos da Broadway dos anos 20, as cores são intensas e a iluminação, feérica. Na coreografia, Don Lockwood surge como um bailarino palerma, procurando por sua grande chance e cantando o mote central de todo o número: Gotta Dance! No princípio ele é rejeitado, até que um empresário o aceita e o leva para se apresentar em uma espelunca: lá o jovem vai encontrar uma prostituta e amante de um gangster, interpretada por Cyd Charisse: nessa mulher de corpo escultural, Lockwood vai encontrar a (inalcançável) musa de seus sonhos. A personagem de Charisse tripudia com ele; ainda assim eles se envolvem em uma coreografia sensual mas, no final desta, ela opta pelo namorado gangster. O bailarino Lockwood vai ascendendo profissionalmente até que um dia, já famoso, durante um baile de gala em um cassino, ele vê surgir a sua musa: começa ali a sequência do Véu Louco. Nela, Gene Kelly e Cyd Charisse executam um dos mais originais pas-de-deux já concebidos para um musical: a partir do cenário do cassino de luxo, somos transportados por uma fusão a um cenário onírico, púrpura e azul, um lugar utópico que parece se prolongar até o infinito – e que se assemelha a uma longa pista de pouso – onde o casal desenvolve a coreografia em meio a uma atmosfera idílica e romântica, simbolizando uma idealizada relação erótica entre ambos.5 Entre os dois bailarinos há um longo véu branco6, elemento físico que os une durante a coreografia: três fortes e invisíveis correntes de ar, posicionadas estrategicamente fora do enquadramento da câmera, atingem os corpos de Kelly e Charisse e dão vida própria ao tecido, que, em vários momentos, envolve os belos corpos dos dois bailarinos, se projetando tanto horizontal quanto verticalmente, como no momento em que ele se transforma em um grande jorro branco: imagem sutil e, ao mesmo tempo, poderosamente explícita... Para produzir a potência necessária, as correntes de ar tiveram que ser geradas por três motores de avião (HIRSCHORN, 1981, p.326). De volta à realidade, Lockwood vê sua musa rejeitá-lo novamente: ele se sente só e abandonado, em frente ao cassino, quando ouve – gotta dance! – ele vê a chegada de um novo bailarino na cidade (como ele, tempos atrás); a expressão de tristeza de Lockwood se transforma em alegria e temos o belo encerramento de Broadway Melody. Dr. Fantástico

Tratemos agora de outro pas-de-deux, não entre um homem e uma mulher, mas entre dois aviões: a

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Cenário cuja realização só tornou-se possível graças aos gigantescos estúdios que a Metro- Goldwin-Mayer possuía na época.

Cujo comprimento era de 7,5m.


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sequência de apresentação dos créditos de Dr. Fantástico.7 Em 1952, enquanto dentro dos enormes estúdios da Metro se produzia Cantando na Chuva, em outra construção arquitetônica curiosamente semelhante – os hangares de aviação – os engenheiros da Boeing terminavam o projeto do bombardeio B-52,8 que foram entregues à USAF (Força Aérea dos Estados Unidos) três anos mais tarde, em junho de 1955, e que é um dos personagens principais no filme de Kubrick. O filme Dr. Fantástico foi baseado no livro Alerta Vermelho, escrito em 1958 pelo ex-tenente da Real Força Aérea, Peter George, e chegou às mãos de Kubrick em 1961. O filme, que tem como foco o conflito atômico entre as duas superpotências – EUA e URSS – e o decorrente fim da humanidade, fez os historiadores do cinema Daniel e Susan Cohen afirmarem que: “Um pesadelo de pessimismo e desespero sustenta essa comédia trágica de humor picante” (COHEN, Daniel e Susan, 1994, p.90). Produzido na Inglaterra em 1963, ele teve sua estreia marcada para dezembro daquele ano, seu lançamento foi adiado para o ano seguinte, devido ao assassinato de Kennedy, ocorrido em novembro (e que levou Kubrick a batizar uma das duas bombas que aparecem no filme de Hi John, em homenagem ao presidente falecido). A partir da leitura do livro de Bryant, Kubrick começou a trabalhar no roteiro do que, a princípio, seria um filme dramático, e a elaborar as possíveis situações que levariam a uma guerra atômica; nas palavras do próprio Kubrick: “Continuavam chegando à minha mente ideias e eu as descartava porque me pareciam demasiado ridículas. Eu dizia a mim mesmo: ‘Não posso fazer isso. As pessoas vão rir. Mas depois de quase um mês comecei a compreender que todas as coisas que eu havia jogado fora eram as mais verídicas”(KUBRICK apud MANNING WHITE ; AVERSON, 1972, p.238). No filme, o comandante da base Burpelson de bombardeiros estratégicos B-52, Jack D. Ripper (interpretado por Sterling Hayden), envia um código até uma esquadrilha, naquele momento em voo próximo à Rússia: o plano de ataque R de Romeu, lançando os aviões em uma trajetória direta até o território soviético, onde despejarão suas bombas em alvos preestabelecidos.9 O filme tem como cenários principais a Sala de Guerra, abase aérea de Burpelson(com ênfase na salado comandante) e o interior de um B-52: todos três ambientes opressivos, nos quais os personagens, encerrados em suas paranoias e/ou fantasias de poder somente realizáveis através da destruição do inimigo, têm em suas mãos o destino da 7

A tradução literal para o português do filme de Kubrick seria Dr. Pervertido ou Como Aprendi a Parar de Me Preocupar e Amar a Bomba, uma vez que em inglês a expressão strange-love significa amor pervertido. 8 Avião criado para o transporte de bombas termonucleares com capacidade de destruir completamente grandes cidades 9 Ao público que não tinha conhecimento do modus operandi do SAC – o Comando Aéreo Estratégico, Kubrick explicava com imagens e narrativa o que, na época, era a estratégia de dissuasão norte-americana: esquadrilhas de aviões B-52 eram mantidas 24 horas no ar: enquanto uma decolava, outra estava a caminho do território soviético, outra chegando nas fronteiras desse território e retornando, outra no meio do caminho de volta e outra aterrissando, de modo que, caso houvesse um ataque por parte da União Soviética, haveria sempre uma esquadrilha pronta para atingir os alvos no território comunista e que seria seguida pelas esquadrilhas já a caminho.


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humanidade. O único a manter o bom senso é o personagem do presidente americano de voz pausada Merkin Muffley, vivido por Peter Sellers, o grande ator inglês que também atua como capitão de grupo Lionel Mandrake, participante do programa de intercâmbio militar entre a Inglaterra e os EUA e ainda como o cientista atômico e assessor alemão de inclinações nazistas Dr. Strangelove. Dr. Fantástico é um sanduíche, cuja parte externa – o início e o fim do filme – é composta por imagens documentais de arquivo e o recheio, pela ficção em si. Trata-se de um estratagema brilhante de Kubrick: ao utilizar imagens documentais de um abastecimento em voo do bombardeiro nos créditos iniciais do filme e, no final, de explosões atômicas, Kubrick explicitava a possibilidade real de destruição da civilização, ainda que levada a cabo por outros motivos que não aqueles retratados no filme: a distribuidora americana Columbia Pictures se sentiu na obrigação de colocar na abertura do filme, nos Estados Unidos, que os eventos ali retratados eram ficcionais e que a Força Aérea Americana possuía mecanismos seguros para prevenir situações daquela natureza.10 Utilizando as poucas imagens disponíveis, a sequência dos créditos (toda ela realizada através de fusões) se inicia com um travelling, se aproximando do tubo de abastecimento, que possui uma forma fálica e que está localizado na cauda de um avião KC-135 (um Boeing 707 modificado para carregar combustível) que abastece os bombardeiros estratégicos B-52. Em seguida temos uma tomada, vista em plongée do KC-135, da mangueira, o elemento físico de união entre os dois corpos metálicos – como o véu entre os bailarinos em Cantando na Chuva – como uma teta ou um falo se estendendo e sendo introduzida no orifício localizado no teto do B-52, imagem carregada de forte simbologia sexual e que pode ser simbolicamente lida como uma cena de amamentação e/ou uma felação. No filme os nomes dos personagens principais têm conotações eróticas: o comandante da base, Jack D. Ripper (Jack O. Estripador) – notório assassino e psicopata sexual inglês; o adido inglês Lionel Mandrake (Mandrágora) – a raiz de uma planta medicinal que há séculos diz-se encorajar a fertilidade ou a potência; o general Turgidson – de turgid – intumescido; o presidente Merkin Muffley – merkin é a gíria inglesa para a púbis feminina e muff, pêlo púbico (DIRKS - http:www.filmsite.org). O filme, aliás, é perpassado por um clima de misoginia: a única personagem feminina, a secretária do general Turgidson (a atriz escolhida, Tracy Reed, aparece como a garota do mês da revista Playboy que aparece nas mãos do comandante do B-52) faz o tipo mulher-objeto, que no filme aparece exercendo uma jornada dupla de trabalho: ela surge seminua em um quarto, enquanto o general está no banheiro. “It is the stated position of the United States Air Force that their safeguards would prevent the occurrence of such events as are 10 depicted in this film. Furthermore, it should be noted that none of the characters portrayed in this film are meant to represent any real persons living or dead.” Apud DIRKS. (http:www.filmsite.org)


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Próximo ao final do filme, as mulheres voltam a ser tema das discussões: como potenciais matrizes geradoras de novas fornadas de americanos, com o intuito de preencher o desaparecimento populacional gerado pela hecatombe nuclear. Segundo Paul Virilio: “O olhar obsceno que o conquistador militar lança sobre o corpo distante da mulher é o mesmo dirigido ao corpo territorial desertificado pela guerra...” (VIRILIO, 1993, p. 40). O próprio jargão da estratégia militar é permeado por conotações sexuais: os bombardeiros B-52 deveriam, em caso de uma guerra nuclear, penetrar o território soviético e causar destruição e morte em uma escala jamais imaginada. Ainda hoje quando um avião entra sem autorização no espaço aéreo de um país, ele está violando a soberania deste país. Como forma de dar algum estímulo às missões aéreas, desde a Segunda Guerra Mundial é procedimento padrão pintar belas garotas – as famosas pin-ups – nas carlingas dos aviões de combate e que ainda hoje adornam os B-52H dos dois esquadrões ainda na ativa nos Estados Unidos. Voltando à abertura do filme, após outra tomada feita do KC-135 (também em plongée), mas agora vista de um ângulo ligeiramente diferente, passa-se para um plano geral que mostra o bombardeiro sendo abastecido em pleno ar.11 A fortaleza voadora B-52 e o KC-135 flutuam suavemente acima das nuvens, em meio a um céu magnífico: a fotografia, com total profundidade de campo, se estende até onde a vista alcança: um território neutro, sem referências geográficas, não localizável (como aquele da sequência coreográfica de Crazy Veil) e, ao mesmo tempo, real – André Bazin afirma que: “A profundidade de campo coloca o espectador numa relação com a imagem mais próxima do que a que ele mantém com a realidade. Logo, é justo dizer que, independente do próprio conteúdo da imagem, sua estrutura é mais realista” (BAZIN, 1991 p. 77). Como trilha sonora, temos a versão orquestrada de Try a Little Tenderness (Experimente um Pouco de Ternura) que nos embala docemente, como se a melodia flutuasse com os aviões: as imagens e a trilha sonora produzem uma profunda sensação de paz e harmonia, como se observássemos um balé mecânico, um pas-de-deux maquínico a se desenrolar nas camadas superiores da estratosfera: lá, no alto, acima do bem e do mal. Terminado o abastecimento, a mangueira se desconecta, a cópula termina e, com ela, os créditos de abertura. Ela nos traz à lembrança outra sequência aérea – também de abertura – realizada vinte e nove anos antes pela cineasta Leni Riefenstahl para o documentário O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens): uma série de planos de nuvens filmados de dentro do avião que levava Hitler para o congresso

11 O abastecimento em voo é uma atividade que exige extrema habilidade e precisão, pois envolve dois aviões carregados de material altamente inflamável: um, de combustível, e o outro, de armamento - prova do risco implicado nesse tipo de operação é que em 1965 ocorreu um acidente durante o abastecimento de um B-52 sobre a Espanha, matando a maior parte dos pilotos de ambos os aviões.


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do partido nazista em Nuremberg. O avião Dornier surge em meio às nuvens como uma moderna carruagem alada, carregando no seu bojo o líder do Terceiro Reich Alemão, acompanhado por uma trilha sonora que cria um clima solene. As duas sequências têm algo em comum: em ambas os aviões estão em ambientes idílicos, mas são máquinas que carregam em seu interior uma força oculta e inaudita de destruição. A diferença é que Hitler – e a máquina estatal a seu serviço – pôde liberar todo o seu potencial, enquanto os B-52 jamais tiveram uma oportunidade para exercer sua capacidade de devastação termonuclear.12 No desenrolar do filme, fica assustadoramente claro para os militares convocados à Sala de Guerra, localizada nos subterrâneos de Washington, de que a União Soviética havia criado um mecanismo chamado a arma do Juízo Final, confirmada pelo embaixador russo ali presente: caso áreas localizadas dentro do território soviético fossem atingidas por armas nucleares, uma série de bombas compostas por material altamente radioativo seriam automaticamente detonadas nas Ilhas Shokhov, provocando o envenenamento radioativo de todo o planeta e a consequente destruição de toda a humanidade. Após uma série de peripécias e situações tragicômicas, todos os bombardeios são abatidos pelos russos, exceto um: a tripulação do B-52, que acompanhamos durante todo o filme, consegue finalmente atingir uma base de mísseis soviética, disparando assim a arma do Juízo Final. Surge então o grand final: a sequência de explosões atômicas mostradas em cortes secos: são imagens de testes atômicos realizados até 1963 (Kubrick foi criticado por ter se utilizado de imagens exaustivamente mostradas em cine-jornais, mas na época havia pouquíssimo material liberado para exibição pública): imagens da primeira detonação nuclear – o teste Trinity, de 16 de julho de 1945 – uma explosão subterrânea, explosões atmosféricas e testes no oceano Pacífico (operação Crossroads) . O fim do mundo, tendo como fundo musical a reconfortadora canção da Segunda Guerra Mundial We’ll Meet Again Some Sunny Day (Nos Encontraremos Novamente em Nos Encontraremos Novamente) gravada pela cantora Vera Lynn:

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Ainda assim, os B-52s têm um extenso currículo como bombardeiros convencionais: na Guerra do Golfo, eles representavam apenas 4% das aeronaves usadas nos ataques, mas foram responsáveis pelo lançamento de 32% das bombas. Com uma capacidade máxima de decolagem de 210 toneladas, ele é capaz de transportar em torno de 31,5 toneladas em bombas. Durante a Guerra do Golfo (1991) os B-52s lançaram 84.800 bombas. Já na guerra do Afeganistão, entre 7 de outubro e 23 de dezembro de 2001 os B-52s, juntamente com os B-1, lançaram 11.500 das 17.500 bombas, ou 65% do total. Durante a Guerra do Vietnã, onde os B-52 foram largamente utilizados, eram lançadas mais de 265.000 bombas por mês, totalizando cerca de 66.250 toneladas – Fonte: Folha de São Paulo, 6 de abril de 2003, A20.


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Nós nos encontraremos novamente, não sei onde, não sei quando Mas eu sei que nos encontraremos em um dia ensolarado. Continue sorrindo, como você sempre faz Até os céus azuis levarem embora as nuvens escuras Então por favor diga alô para os camaradas que eu conheço Diga a eles que eu não demorarei Eles ficarão felizes em saber que quando você me viu partir, Eu estava cantando esta canção... 13 Clássico cinematográfico, Dr. Fantástico continua uma referência para os cineastas: Roger Christian, diretor de arte de Alien (1979), recorda: “Ridley nos mostrou o Doutor Fantástico e não cansou de dizer: é isto que eu quero, vejam, não é um B-52 flutuando no espaço, mas sua aparição militar...” (SCANLON e GROSS. The Alien’s history. Apud VIRILIO, 1993, p.150). O filme de Kubrick, extremamente crítico em relação à Doutrina de Segurança norte-americana, mostra a gigantesca capacidade de destruição acumulada, já naquela época, nas mãos das Forças Armadas. Segundo Virilio, Kubrick:

(...) foi ao essencial de uma imagem de guerra em que não subsiste nada além do registro dos estados sucessivos do material destruído e uma voz distante, cantando o desejo de um reencontro que, simultaneamente, se torna fisicamente impossível, mas desta vez para sempre e para todo o mundo (VIRILIO, 1993, p.45).

Os filmes produzidos e/ou distribuídos pelos Estados Unidos, com raras exceções (como é o caso de Dr. Fantástico) sejam eles musicais, westerns, policiais ou filmes de guerra, sempre serviram para divulgar (e sugerir) ao chamado mundo livre (ou seja, fora da influência comunista) o american way of life e a ideologia pró-americana. Os Estados Unidos sempre se empenharam para manter a presença avassaladora de seus filmes nos cinemas de todo mundo, com o intuito de seduzir corações e mentes do público; como afirmou certa vez Jack Valenti, chairman da Motion Picture Association of America: ‘‘Onde o nosso cinema estiver dominando, não precisaremos usar armas’’. Nos países onde a pedagogia cinematográfica não é 13

We’ll meet again, don’t know where, don’t know when. But I know we’ll meet again, some sunny day. Keep smiling through, just like you always do. Till the blue skies drive the dark clouds far away. So will you please say hello to the folks that I know. Tell them I won’t be long. They’ll be happy to know, that as you saw me go. I was singing this song...


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suficientemente persuasiva para convencer os povos a adotarem a posição pró-americana, Washington lança mão tanto do apoio a golpes de Estado, como foi o caso do Brasil e do Chile, quanto da invasão militar pura e simples, como foi o caso do Vietnã e, mais recentemente, do Iraque. A filosofia por trás de todo esse aparato cultural e bélico é simples: manter a hegemonia dos Estados Unidos em relação ao mundo e garantir – sejam quais forem os meios – que as engrenagens que mantêm o estilo de vida dentro do território norte-americano se mantenham sempre azeitadas, incluindo aí seu poderio industrial, dentro do qual a indústria cinematográfica é um dos elementos principais, nem que para isso seja necessário a construção de bombas cujo poder de destruição está muito além dos nossos piores pesadelos e a criação de bombardeiros gigantescos, capazes de carregar essas mesmas bombas, que são abastecidos em pleno voo por aviões-tanque em estudadas coreografias aéreas, como em um musical encenado no céu. Tudo isso para a manutenção do status quo norte-americano, para que Gene Kelly continue a dançar o balé Crazy Veil e a cantar gotta dance! enquanto os pilotos dos B-52s, respondem, lá em cima: gotta kill ! Mas, como diz a antiga canção de Ataulfo Alves: “Atire a primeira pedra, ai, ai, ai”...

REFERÊNCIAS BAZIN, André. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. 1986. BOURDIEU, Pierre; HAACKE, Hans. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1995. COHEN, Daniel e Susan. 500 grandes filmes. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico. 1994. DIRKS, Tim. Disponível em: <http: www.filmsite.org>. Acesso em: 06 maio 2013. HIRSCHORN, Clive. The Hollywood musical. London: Octopus Book Limited. 1981. MANNING WHITE, David; AVERSON, Richard. La arma del celuloide. Buenos Aires: Ediciones Marymar. 1972. VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Página Aberta. 1993.


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Um corpo que cai 5 Claudia Renault

Professora Escola Guignard - UEMG. Mestre em Artes Visuais EBA – UFMG. Doutora em Arte Contemporânea no Colégio das Artes, Universidade de Coimbra - Portugal

Palavras-chave Fotografia, corpo, imagem, memória

Resumo Este artigo pretende atingir, naturalmente sem esgotar e com a ajuda de uma vivência particular, um esclarecimento sobre a fotografia naquilo em que ela, atravessando o campo da mera reprodução de uma figura ou uma cena, provoca o pensamento num movimento de reflexão. Assim procedendo, resgata sua dimensão de narrativa originária, qual seja, fotografar é escrever com a luz. Contornar o inapreensível equivale a desencadear memórias e emoções e a dimensão narrativa é outro modo de ver a fotografia. O texto busca, em seu auxílio, outros textos; se vale, portanto, não só de determinado acontecimento envolvendo uma fotografia banal, de jornal, mas também de referências literárias e poéticas que, guardando seu sentido de arte, fazem essa tênue e necessária barreira ante o horror.

Keywords Photography, body, image, memory Abstract This article aims at achieving, without exhausting the theme, of course, and with the help of private experiences, some understanding of what photography elicits from the readers. Photography here goes beyond the mere idea of a reproduction of an object or a scene, once it provokes some thoughts. Therefore, this article presents photography in its original narrative dimension, that is: to take a photograph is to write with light. Seeing photography in its narrative dimension is the same as shaping something intangible by 5

Parte deste texto foi publicado na revista: Imaginário e arte ano XII. Imaginário [Revista do Núcleo interdisciplinar do Imaginário e Memória - NIME e do Laboratório de Estudos do Imaginário - LABI Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IP- USP], número 15 ,julho a dezembro de 2007, p. 197-207, 2007.


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triggering memories and emotions. Hence, this text relies on other texts, other references in order to achieve its goals. It relies not just on the ordinary photograph that reproduces an event from the news, but also on literary references and narratives that keep the meaning of art and make the necessary but thin boundary before terror.

FIGURA 1 - Fotografia Rafael Soares

Oh, feroz intensidade da visão infantil! Em crianças, somos todos fotógrafos, sem precisar de câmeras, transformando imagens em memórias. Salman Rushdie A primeira vista, o título evoca a curiosa tradução brasileira dada ao filme Vertigo (1958) de Hitchcock, estrelado por Kim Novak e James Stewart, no qual o mestre do suspense nos brinda com mais um de seus deliciosos trabalhos com o olhar. Em outro filme — Janela Indiscreta (1954) — o mesmo ator é um fotógrafo profissional, imobilizado por um acidente, em um apartamento cujas paredes estão repletas de fotos de tragédias, instantâneos de acidentes. De perna quebrada, assentado em uma cadeira, junto a seu equipamento fotográfico, ele acompanha, primeiro com os olhos e em seguida com seus pensamentos,


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cenas de vida cotidiana, verdadeiras fotografias. São quebra-cabeças, montagens nas quais as cenas se entrecruzam, superpõem-se como fotos sobre fotos e como uma memória que se esboça a partir de percepções. Tais fotos de coisas que, no início, não passam de simples vestígios, alguns de pura ausência, vão nos fornecendo as pistas de um crime.

Partindo daí, para refletir sobre o tema que aqui nos interessa — a fotografia em conexão com a imagem e a memória —, as imagens fotográficas (lúdicas inicialmente, mas trágicas em seus resultados) não estariam presentes na abertura desse filme para indicar que a partir de simples vestígios pode-se remontar uma morte? Fotografia é imagem, mas também registro de memória. Entretanto, é preciso que nos perguntemos de que imagem se está falando.

Neste caso, quando se pensa em uma imagem, não é incomum virem à cabeça manchetes trágicas dos jornais, fotos rotineiras de acidentes, de tragédias, de acontecimentos do dia anterior que, de repente, atravessam um cotidiano aparentemente banal. Na maioria das vezes são caminhões que, descontrolados, foram de encontro a outros carros, provocando acidentes, causando mortes, atrapalhando o trânsito e a vida cotidiana das pessoas. Fotos sem perfeição técnica; fotos que interessam como registro de um acontecimento, de um fato do dia anterior.

De que imagens estamos falando? Que lugar essa fotografia ocupa? A que se destina? Como e de que forma ela toca o outro? A quem interessa? Para que serve?

Estas e tantas outras perguntas, essas imagens costumam provocar- nos.

Nos dias atuais, mais que no passado, somos bombardeados por imagens. Imagens publicitárias, imagens mentirosas de todas as formas. Imagens que vendem imagens e que estão a serviço do mercado. Seduções para despertar o desejo. Sob este aspecto, Agamben (2001, p. 41), em seu artigo “Collants Dim”, é primoroso. Ele diz que, entre uma fotografia publicitária dos anos 70 que veiculava uma conhecida marca de collants e o corpo que portava esses collants, o fotógrafo se valeu de um truque: alinhou, sob uma coluna sonora, corpos que foram fotografados um a um, dando a falsa impressão de um ballet, para induzir


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nos espectadores uma promessa de felicidade que realizaria um ideal de fazer coincidir corpo e imagem. Essa busca imaginária, demasiado humana, que move os corpos a se deixarem manipular por bisturis e coisas mais a procura de uma imagem bela. O corpo humano presta-se, desta forma, a ser cabide precioso de uma promessa ligada a alguma idealização, diretamente conectada a ele.

Nos anos 20, quando o capitalismo de mercado começou a investir na figura humana, os observadores colheram aí, talvez pelo impacto da novidade, um aspecto positivo: essa figura e sua imagem não mostravam imediatamente o enorme descompasso entre si. Estavam então frente a um texto corrompido, uma profecia ainda a ser decifrada. Não seria por acaso que, naquele momento do início do século XX, nasceriam as observações de Benjamim sobre a decadência da aura. Durante milênios, o corpo esteve marcado pelo estigma do inexprimível, pois imaginado à semelhança de Deus. Com a imagem publicitária do corpo humano, rompia-se o secular processo de emancipação da figura humana de seus fundamentos teológicos. Isto se impusera em escala industrial já que, no início do século XIX, com a invenção da litografia6 e da fotografia, e considerando que esta rapidamente ultrapassou a primeira, observou-se um fenômeno novo: “pela primeira vez, no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho” (BENJAMIN, 1987, p. 167). Com a facilidade de reprodução, encorajou-se a difusão, a bom preço, das imagens pornográficas. Nem genérico, nem particular, nem imagem da divindade, nem forma animal, o corpo humano se tornava agora, verdadeiramente, qualunque (qualquer) (AGAMBEN, 2005, p. 42). A figura humana vinculada à imagem e semelhança de Deus, tal como concebida no Gênesis, tornava-se um arquétipo invisível e imaterial, paradoxal e de uma semelhança também absolutamente imaterial. A massificação mercadológica, libertando o corpo de seu modelo teológico, apesar de tudo, mantém a salvo a semelhança, possibilitando pensar que, de qualquer maneira, “o corpo é uma semelhança sem arquétipo, isto é, uma Ideia” (AGAMBEN, 2005, p. 42). Mais estreitamente ligado ao corpo do semelhante qualquer, desde que este porte alguma imagem ideal; do que um organismo real fadado ao apagamento. A partir de então, o corpo humano não se assemelha mais a Deus nem aos animais, mas a outros corpos humanos. O êxodo da figura humana na arte de nosso tempo — o declínio do retrato — é um indicador desse novo momento. Aferrar-se ao traço singular que conferisse 6 BRUNNER, Felix – Manuel de la gravure, p.177, Arthur Niggli Ltd, Teufen AR, Switzerland, 1972- Alois Senefelder, originário da Bohêmia descobriu em 1797, o processo capital da litografia. Ainda que inventada na Alemanha, ela encontra seu primeiro campo de aplicação na França. A revolução de 1789 havia desordenado a ordem antiga. A litografia, com suas múltiplas possibilidades de expressão espontânea, iria corresponder na medida, ao novo sentimento de existência das pessoas. Não será por acaso que invenções importantes de impressão coincidem com as reviradas na história das ideias.


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à imagem uma unicidade tinha sido até então um dever do retrato. Colher agora uma unicidade qualquer passa a ser o objetivo fotográfico. A figura humana se desvia, portanto, para o fotográfico.

É, então, a partir desta perspectiva em desvio que podemos considerar que uma foto ainda pode ser verdadeira, desde que nos lembremos que nunca como hoje o corpo humano, sobretudo o feminino, foi tão maciçamente manipulado, imaginado por inteiro sob a técnica publicitária e a produção mercadológica. O tecnicismo vigente, em vez de investir materialmente o corpo, criando pontos de contato entre ele e sua imagem, volta-se para a construção de uma esfera separada na qual só a imagem é o alvo técnico. Assim, o corpo glorioso da publicidade torna-se máscara: máscara na qual o frágil, diminuto corpo humano, continua sua precária existência. O geométrico esplendor das girls, no fundo, esconde a longa fila dos anônimos e desnudos corpos conduzidos à morte nos campos de concentração, nas guerras ou os milhares de corpos desnudos presentes na cotidiana carnificina das autoestradas.

Walter Benjamin (1985, p. 115), falando sobre a pobreza da experiência da época moderna, indicava suas causas na catástrofe da I Guerra Mundial, de cujos campos de batalha as pessoas voltavam emudecidas:

mais pobres de experiências partilháveis, uma geração que tinha ido à escola em bonde puxado a cavalo encontrava-se em pé, sob o céu, numa paisagem em que nada permanecera inalterado, salvo as nuvens e no centro em um campo de força de correntes destrutivas e explosões, o frágil, minúsculo corpo humano (AGAMBEN, 2005, p. 21).

Que verdades esconderiam as fotos das tragédias, dos acidentes, das guerras? Não precisam ficar mais bonitas, não necessitam ser retrabalhadas, retocadas. Aliás, sobre valor de verdade, citando Edward Weston, Rosalind Krauss (1990, p. 198) vai dizer que “ela não pode sobreviver a qualquer retoque”— o que é outro jeito de falar que o valor de verdade situa-se na objetividade de sua objetiva. São o registro do momento, do fato, do acontecido, sem mais retorno, quase sempre expondo um corpo humano caído sob o peso da tragédia. Elas só se particularizam, evocando memória, se trouxerem a presença da morte — esta é a verdade delas. Desde que possa ser gerado um outro significado para quem observa essa foto, que


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como um dardo, fere, atravessa, mexe com sua interpretação. Essas fotos que aparecem todos os dias nos jornais vão, com o passar do tempo, se tornando banais, corriqueiras, cotidianas. Se em algum momento elas perdem a banalidade, perdem porque, por acaso, encontraram o leitor apropriado.

Aqueles para quem tal foto diz respeito, ou para aqueles que sofreram com tal fato ali impresso, elas deixam de ser banais. Mesmo que o fato tenha ocorrido há muito tempo, ele é visto com os olhos do presente, atualizado na memória de quem o presenciou. A foto é depositária da memória. A esse respeito, Susan Sontag (2003) dirá que não há substituto para a experiência.

Artistas plásticos, impactados pelas imagens, fazem o esforço da tradução possível, com toda dificuldade que significa importar algo do campo do olhar para o campo da escrita. As imagens, por serem mais fortes e evidentes que as palavras, exigem destas um esforço extra. A esse respeito, é emblemática a obra da artista Graciela Sacco7, cujas imagens, quando referidas ao corpo humano, atuam como suporte e parâmetro para revisar diversas construções de sentido. Suas imagens removem os mecanismos do já instituído, do que se repete cotidianamente nos meios de difusão, propondo, antes de mais nada, a busca de novos sentidos (GIUNTA, 2000, p. 3).

Para que exista tal foto, o objeto tem de estar na frente da câmera, o que confirma que aquela cena aconteceu. A cena está no passado, mas a fotografia tem o poder de tornar presente uma ausência. A memória é uma imagem que se forma na nossa mente sem o fato presente; está em quem vê, com o paradoxo de se constituir como registro de palavras. A memória só existe quando fato e foto têm muita importância para quem a vê. O que faço aqui já não é mais memória. O assunto é ativado pela memória, mas, no momento em que vira texto, ganha acesso, talvez, ao rol da ficção.

Prova da existência do fato, a fotografia torna visível até aquilo que não se quis ver. Não adianta fugir do fato. A fotografia o registra. A foto não reproduz a sensação, mas traz à tona o momento do fato; não substitui, mas ativa a memória.

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Graciela Sacco – artista plástica e professora da Escola de Belas Artes da Universidade Nacional de Rosário – Argentina.


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As fotos de tragédias e de acidentes têm essa força de verdade porque às vezes é mesmo preciso ver para crer. A fotografia “não fala forçosamente daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi” (BARTHES, 1984, p. 127). Cada cultura lê as fotos de jornais como quer, isto não impede que cada indivíduo as sinta e as receba a partir da sua vivência pessoal.

A imagem possui, como muitos vocábulos, diversos sentidos. São, como diz Octavio Paz, produtos imaginários (PAZ, 1972, p. 98). Nesse sentido, que não é o único, designa também toda forma verbal, frase ou conjunto de frases que o poeta diz e que, unidas, compõem um poema.

Essas expressões verbais foram classificadas pela retórica e se chamam símiles, metáforas, jogos de palavras. Apesar de suas diferenças, têm em comum preservar a pluralidade de significados da palavra sem quebrar a unidade sintática da frase ou do conjunto de frases. Cada imagem contém muitos significados contrários ou díspares, os quais abarca ou reconcilia sem suprimi-los. Quando São João da Cruz fala em “música calada” (CRUZ, 1982, p. 23), ele está reconciliando dois termos aparentemente contraditórios na mesma frase: “música” e “calada”. A imagem, portanto, “é cifra da condição humana”. Ao tomar ao pé da letra as considerações de Octavio Paz sobre a imagem, não nos surpreenderemos se algumas fotografias, por terem tocado num ponto único da verdade, evocarem um poema ora trágico, ora cômico da condição humana. O paradoxo é que a experiência poética é também irredutível à palavra, a palavra não a diz toda. No entanto, é com esse pouco recurso que a expressa. A imagem, em sua tentativa de alcançar o verbal, é um recurso desesperado contra o silêncio que nos invade cada vez que tentamos expressar uma difícil experiência do que nos rodeia e que tem conexão conosco.

Numa manhã, segunda-feira, somos surpreendidos por uma notícia: “fulano morreu”. Dada a surpresa, o inesperado, a notícia não se processa como algo real, no curso dos acontecimentos cotidianos. Paradoxal, uma vez que somos talvez os únicos seres capazes de refletir sobre a morte e esperá-la como certa. Entretanto, somos afetados pela notícia, sempre inesperada; ela não estava presente no nosso imaginário. Parece mesmo ser próprio da dimensão imaginária desconhecer a morte em sua dimensão de surpresa.

Para crer, fixamos o olhar e tentamos assimilar a notícia. Em vão. Só depois, no dia seguinte, no café


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da manhã, como todos os dias, ao olhar distraidamente o jornal, somos capturados pela imagem, pela fotografia. Uma foto 10x12cm p/b, sem nenhum valor artístico, só com a intenção de registro do fato, do acontecimento do dia anterior. Ao lado, um retrato de carteira 3x4 fala de forma impessoal sobre a vítima. Nome, profissão, motivo do acidente. O retrato de carteira fala do sujeito, nem novo nem velho, bastante sério. Na verdade, só interessa para quem o conheceu. Só tem sentido, só tem ressonância em quem, de alguma forma, estava ligado àquele ser. Nesse momento, percebemos o “olho que pensa” (BARTHES, 1984, p. 73), a força da imagem, a força da foto. Ela vem primeiro que a palavra, que o texto. Não é preciso ler para saber de quem se trata. A foto do acidente mostra um carro parado em um poste, em uma larga avenida da cidade. Percebe-se a presença de árvores. A foto é feita com um sentido de eliminar qualquer outra interferência urbana; focaliza o fato: é o que interessa. “A vidência do fotógrafo não consiste em “ver” mas em estar lá” (BARTHES, 1984, p. 76). O corpo está ali, ao lado do carro. Está ali, estático, inerte, como que enrolado e amarrado. No chão. Completamente solitário, ali, na foto, o corpo caído no chão, na rua, fora do carro. “Esse “detalhe” é o punctum (o que me punge)” (BARTHES, 1984, p. 68). Desta vez, algo do real se deixa passar. A imagem começa a se configurar como tal. A foto já não é mais uma qualquer. Algo provocou em mim “um abalo” (BARTHES, 1984, p. 77). Podemos sentir o coração bater mais apressado, os olhos umedecerem e aquela notícia que, num primeiro momento, não fez sentido, começa a se esboçar, a se configurar como tal. É o tempo inaugural da realidade dos fatos. A memória se ativa. A lembrança se ativa. A foto é gravada na memória.

Gravada como marca que fica, porque resta como ausência, como sulco na madeira, em que se perde algo, como na gravura impressa. Impressa nos jornais e jogada fora. Impressa no ser e gravada para sempre. “O que vemos só vale — só vive — em nossos olhos pelo que nos olha” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 29).

Algo como essência da fotografia flutuava nessa foto particular. Decidi então “tirar” toda a fotografia (sua “natureza”) da única foto que com segurança existiu para mim, e tomá-la de certo modo como guia de minha última busca. Todas as fotografias do mundo formavam um labirinto. Eu sabia que no centro desse Labirinto não encontraria nada além dessa única foto, cumprindo a palavra de Nietzsche: ‘Um


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homem labiríntico jamais busca a verdade, mas unicamente sua Ariadne’(BARTHES, 1984, p. 110).

Aproprio-me do texto de Barthes. Uma foto do dia 09 de maio de 2006 no Jornal Estado de Minas foi meu fio condutor, não porque ela me fez descobrir algo secreto, mas simplesmente porque me disse do que é feito esse fio que me puxa para pensar a fotografia. “Eu entendi que seria preciso interrogar a evidência da fotografia, não do ponto de vista do prazer, mas em relação ao que para mim se inaugurou como pensar a morte” (BARTHES, 1984, p. 77). Isso que sendo sempre certo, sempre surpreende, como algo estranho e familiar.

Parafraseando Barthes, “não posso mostrar essa foto” do corpo no chão:

Ela existe apenas para mim. Para vocês, não seria nada além de uma foto indiferente, uma das mil manifestações do “qualquer”; ela não pode em nada constituir o objeto visível de uma ciência; não pode fundar uma objetividade, no sentido objetivo do termo; [...] mas nela, para vocês, não há nenhuma ferida (BARTHES, 1984, p. 110).

É verdadeiramente surpreendente como no relâmpago de uma vivência somos levados a entender, de forma clara, a presença dos dois elementos aos quais Barthes se refere quando os desdobra no que ele chama de studium (BARTHES, 1984, p. 45), isto é, o que o fotógrafo capta como intencional, óbvio, e de punctum (BARTHES, 1984, p. 46), isto é, o que não foi produzido pelo autor, mas que, como um detalhe, abre uma fenda, gera um significado no observador, atravessando, ferindo, mexendo com sua interpretação.

O real é a impossibilidade do que não cessa de não se escrever, o acesso direto ao impossível, vedado desde sempre, nos obriga a criar bordas, margens, litorais — a aproximação possível.

Uma foto é uma foto, é uma foto, é uma foto...


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REFERÊNCIAS

ANDREA, Giunta. Graciela Sacco – Imágenes en turbulência. Migraciones, cuerpos, memória. Museo Municipal de Bellas Artes Juan B. Castagnino. Buenos Aires, 2000.

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. ______. La comunità che viene. Torino: Bollati Boringhieri, 2001.

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

______. Barthes por Barthes: São Paulo: Cultrix, 1977.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In:_____. Obras escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. _______.A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In:_____. Obras escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BÍBLIA SAGRADA, Antigo Testamento. Gênesis. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

CRUZ, São João da. Poesias completas. Trad. José Bento. Lisboa: Assírio e Alvim, 1990.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

PAZ, Octavio. El arco y Ia lira. México: Fondo de cultura econômica, 1972.

RUSHDIE, Salman. O Chão que ela pisa. São Paulo: Companhia das Letras,1999.

SONTAG, Susan. Susan Sontag vê a dor. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 agosto 2003.



PERFORMANCE / ENCENAÇÃO: E S T É T I C A S D A CONTEMPORANIEDADE T A N I A

A L I C E


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PERMORMANCE / ENCENAÇÃO: ESTÉTICAS DA CONTEMPORANEIDADE TANIA ALICE

Performance/Encenação: Estéticas da Contemporaneidade Tania Alice

Doutora em Letras e Artes pela Universidade de Aix-Marseille I (França), Performer, Diretora artística do Coletivo Heróis do Cotidiano e Professora Adjunta de Performance da Graduação e da Pós-Graduação de Performance da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Palavras-chave Contemporaneidade, Performance, Encenação, Adaptação, Pós-Modernidade, Arte contemporânea.

Resumo O artigo propõe uma síntese da pesquisa de Pós-Doutorado, realizada na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) no ano de 2008 e publicada em 2010 no livro “Performance.Ensaio –(des)montando os clássicos” (CNPq/FAPERJ). A pesquisa partiu da análise de 15 performances/encenações de companhias teatrais brasileiras que investigam o texto clássico como material para a criação teatral e performática. Na época, participei dessas performances/encenações, às vezes como atriz/performer, às vezes como encenadora, às vezes como simples observadora. O artigo propõe algumas conclusões não exaustivas que resultaram dessa pesquisa. O recorte efetuado em relação ao assunto da adaptação do clássico em linguagem contemporânea e pós-dramática (Lehmann) será abordado aqui a partir das análises das noções de “contemporâneo”, reciclagem do passado e engajamento político.

Keywords Contemporaneity, Performance, Act, Adaptation, Postmodernity, Contemporary art.

Abstract This article proposes a synthesis of my Post-Doctoral Research, held at Federal University of Rio de Janeiro – (UFRJ), in 2008, which resulted in the book Performance. Ensaio – (des)montando os clássicos (Confraria do vento, FAPERJ). The research was based on the analysis of 15 performances / productions


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for theater companies in Brazil that investigated the classic text as a material for theatrical and performative creation. I attended to those performances / productions sometimes as an actress /a performer or as stage director, and sometimes as a researcher, or as an observer. The article proposes some conclusions that resulted from this non-exhaustive research and the issue of adaptation of the classic in contemporary and post-dramatic language (Lehmann) is discussed here only through the notions of “contemporary”, recycling the past, and political engagement.

A palavra “contemporâneo” faz referência a duas dimensões. Uma delas é a dimensão temporal. O discurso crítico, de uma forma geral, entende como “contemporâneo” todo trabalho artístico realizado nos dez últimos anos antes do momento de produção do discurso crítico que está se referindo a esta determinada obra. Porém, como o sublinha a crítica de arte Catherine Millet, diretora da revista de Arte Contemporânea internacional Art Press, o termo “contemporâneo” refere-se também a uma dimensão conceitual. Para Catherine Millet, a dimensão conceitual aparece com estéticas que surgiram no início da Pós-Modernidade, nos anos de 1960, com os Happenings, o Fluxus, a Arte Conceitual, a Arte Povera, a Land Art e a Body Art. A partir deste momento, o termo “arte contemporânea” começou então a substituir a expressão “arte de vanguarda” para designar uma arte de investigação que rompe com os modelos do passado e com os paradigmas da Modernidade. Nesse sentido, a arte “contemporânea” implica uma constante resignificação dos modelos existentes através da busca de linguagens híbridas, que fundem formas surgidas das artes visuais, das artes cênicas, da literatura experimental com novidades trazidas pelas inovações tecnológicas, colocando em cheque as questões de perenidade da obra, de autoria própria, valorizando a ação e a situação ao invés da forma. De que forma essa “Contemporaneidade” é perceptível dentro das formas do fazer teatral contemporâneo? Essa é a questão que tentarei abordar neste artigo, partindo de experiências e vivências no campo da performance e da encenação, a partir de três conceitos-chaves: a estética contemporânea, a reciclagem do passado e a questão do engajamento político.

O objeto da pesquisa, realizada em 2008, foi constituído por encenações e performances desenvolvidas a partir de clássicos da Literatura Mundial entre 1998 e 2008. Na análise das montagens, revelou-se que o texto clássico é utilizado como um material em cima do qual se dá uma investigação, uma busca


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e pesquisa de linguagens. Assim, Frátria Amada Brasil (2006), do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, grupo paulista de teatro épico hip hop, relê a Odisséia, situando-a nas ruas do “mar sem fim” da capital paulista, fundindo intervenção urbana, teatro e dança; Acordei que Sonhava (2003), do mesmo grupo, parte do texto A vida é sonho,de Calderón de la Barca, para resignificar o texto no contexto das periferias urbanas em uma montagem que funde novamente diversas linguagens artísticas; Ensaio. Hamlet (2004), de Enrique Diaz, atualiza o espírito de investigação moderno de Hamlet na Contemporaneidade, apontando para estruturas de composição rizomáticas do espetáculo; Utopia (2001), de Moacir Chaves relê a obra de Thomas More em função das condições político-sociais ligadas à economia atual; os Irmãos Guimarães ou Francisco Expedito exploram os significados da obra de Beckett na atualidade através de performances ligadas ao universo beckettiano (Projeto “Resta pouco a dizer”, 2008) ou de uma encenação de Esperando Godot (2005) que transporta o texto clássico para o contexto do sertão cearense. Em todos os casos, as performances/encenações não apresentam o clássico de forma ilustrativa, à moda antiga, mas buscam integrá-lo aos significados da atualidade, utilizando-o como um material, um ponto de partida para uma investigação não somente do texto, mas das condições sociais que cercam sua enunciação. Nesse sentido, é possível estabelecer um paralelo com o conceito do teatro pós-dramático de Lehmann, definido, entre outros parâmetros, pela “coabitação quase inevitável de estruturas e elementos estilísticos futuros de componentes tradicionais” (LEHMANN, 2002, p. 31). Como o sublinha Catherine Millet, essa estética se relaciona com uma nova visão da História da Arte, que deixou de ser linear. Uma concepção estética não anula as precedentes, a visão da história não é mais linear. Revisitamos nesse sentido todas as temporalidades, como o sublinha Linda Hutcheon em Poéticas do Pós-Modernismo:

Todas as obras de artes [pós-modernas] usam e abusam, estabelecem e depois desestabilizam a convenção de maneira paródica, apontando autoconscientemente para os próprios paradoxos e o caráter provisório que a elas são inerentes, e, é claro, para a reinterpretação crítica ou irônica em relação à arte do passado (HUTCHEON, 1999, p.43).

As temporalidades passadas e presente se juntam para a composição de uma obra híbrida, realizando-se, muitas vezes, durante sua própria feitura. Na primeira “história” da performance, escrita em 1979, RoseLee


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Golberg - embora trabalhando com a visão de uma progressão linear que questiono aqui - identifica a performance como uma arte que nasceu do encontro das artes plásticas, do teatro, da poesia, música e da dança, buscando uma interação maior entre arte e vida e o rompimento das fronteiras colocadas pelo conceito de representação. Os materiais utilizados nas performances e nas encenações são provenientes do passado e são reciclados para resignificar o cotidiano do performer que as mobiliza. Não se trata de ilustrar cenicamente ou performaticamente um texto já escrito, mas de realizar uma releitura, reinventando significados passados em função das exigências do presente. Obviamente, essa fusão se expressa também na utilização do espaço, já que as montagens rompem com o espaço teatral tradicional do palco italiano e buscam um espaço alternativo para realizarem-se. Nesse espaço “alternativo”, as referências às estruturas cenográficas passadas são utilizadas apenas como citações dentro dos processos contemporâneos.

Uma vez evidenciada essa ligação lúdica, paródica e não linear com o passado nas encenações, podemos questionar a questão do engajamento dentro do contexto geral de descrença da Pós-Modernidade. A descrença é citada por vários críticos de arte como uma característica da Pós-Modernidade. Analisada de uma forma nostálgica por Zygmunt Bauman em seus ensaios e de forma irônica por Gilles Lipovetsky, a descrença do artista na possibilidade de mudar o mundo seria uma característica do mundo da arte contemporânea. No ensaio O Complô da Arte, Baudrillard desenvolve a tese da nulidade da arte contemporânea, considerada como um “compromisso com o estado atual do mundo”, conduzindo a uma “lobotomia definitiva” e generalizada (2006, p.85). Para Baudrillard, o artista e o intelectual “transformam a nulidade e a insignificância em estratégia fatal” (2006, p.89). Baudrillard aponta para a responsabilidade do intelectual, que desenvolve discursos metastásicos, nos quais ele “coloca a nulidade como valor” no mercado da arte, ao mesmo tempo em que ele “força as pessoas a dar crédito e importância a essa arte” (2006, p.91), especulando com a culpabilidade de quem não entende nada de arte contemporânea. Neste ensaio provocativo, Baudrillard coloca a falta de politização da arte contemporânea como um critério intrínseco ao fazer artístico contemporâneo. Porém, as entrevistas dos diretores, atores e performers, bem como a observação dos processos artísticos e minha própria concepção e trabalhos artísticos apontam ao contrário para uma intenção de politização da arte praticada. Talvez as encenações não tenham o poder transformador de uma prática performática mais transgressora, que questiona o próprio fazer artístico, o mercado da arte e o espetáculo como produto, mas podemos com certeza afirmar que a própria opção de


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realizar um trabalho artístico testemunha um posicionamento político. Como destacou o ensaísta Miguel Benasayag na palestra proferida no ECUM (Encontro Mundial das Artes Cênicas) em Belo Horizonte (2006), o artista contemporâneo, pelo fato de utilizar a arte como meio de atuação no mundo, pelo fato de restituir ao corpo uma densidade dentro de um espaço funcionalizado, opera uma resistência ao pensamento “globalitarista”, para retomar a expressão de Milton Santos. Contrapondo-se a uma lógica mercadológica, o artista se torna profundamente político pelo próprio ato de engajar sua energia e força em um ato de criação que não contribui necessariamente para o estabelecimento de uma lógica mercantil. Nas encenações analisadas, esse comprometimento político aparece às vezes de forma indireta, às vezes de forma direta. As performances/encenações dos textos de Beckett pelos Irmãos Guimarães, o texto de Sarah Kane com direção minha e de Gilson Motta ou Ensaio. Hamlet de Enrique Diaz seguem um engajamento quase existencialista, metafísico, de entrega do artista a obra, enquanto que encenações como Frátria Amada Brasil, Acordei que Sonhava ou Utopia apontam para questões sociais e econômicas que testemunham um engajamento político na direção/encenação e que tem por foco questões ligadas à exclusão social, à pobreza, à corrupção ou à violência. As ocupações urbanas do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos evidenciam uma preocupação social dos artistas em gerar visibilidade em cima do invisível, valorizando espaços considerados “periféricos” - outra característica da poética pós-moderna analisada por Hutcheon, quando ela evoca que uma vez que “o centro começa a dar lugar às margens, a universalização totalizante começa a desconstruir a si mesma.” (HUTCHEON, 1999, p.86). Como a “periferia” só existe para quem considera estar no meio, os trabalhos de encenação e performance vão deslocando e questionando o próprio conceito de “periferia” para torná-la visível, efetuando desta forma um gesto politico de extrema importância.

Concluindo, percebemos que a pergunta “O que poderia definir a Estética Teatral Contemporânea?”, que me moveu na época da pesquisa de 2008, é uma pergunta cuja resposta está em perpétua mutação e, como a performance, se define pela sua própria indefinição e abertura continua a novos possíveis e redefinições em perpétua atualização. Podemos observar que a reciclagem do passado, o hibridismo e o engajamento no fazer artístico são fatores constantes nas criações contemporâneas. Porém, o cinismo desinteressado da arte contemporânea apontado por Baudrillard não se verifica necessariamente: as performances e encenações analisadas demonstram um engajamento direto em relação às questões sociais e políticas


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contemporâneas. Desta forma, estes trabalhos específicos não poderiam ser definidos somente como uma projeção narcisista do artista, como Baudrillard – e todo um discurso crítico construído em cima desta ideologia - tendem a afirmar ciclicamente; ao contrário, verificamos que há um engajamento político pelo próprio fato de se produzir arte dentro do contexto de descrença generalizado da Contemporaneidade. Conforme Deleuze, tantas vezes citado quando se trata de performance ou arte contemporânea, diante da “urgência nas ruas” , quando se fala em engajamento na arte contemporânea, “não se trata de algo para se entender, trata-se de algo para se fazer”.

REFERÊNCIAS

ALICE, Tania. Performance.Ensaio – (des)montando os clássicos. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2010.

BAUDRILLARD, Jean. Le Complot de LArt. Paris: Broché, 2006.

BAUMAN, Zygmunt. Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

COHEN, Renato. Work in Process na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1994.

DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Folio Essais, 1967.

DELEUZE. Qu ́est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.

GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LEHMANN, Hans-Thies. Le théâtre pós-dramatique. Paris: L ́Arche, 2002.


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LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio – ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2006.

LYOTARD, Jean-François. La Condition post-moderne. Paris: Editions de Minuit, 1979.


PARANGOLÉ, POLÍTICA E POÉTICA DO INSTANTE NO

“ESTADO INTERVENÇÃO”

DE HÉLIO OITICICA

M AR I A C ONCEIÇÃ O HATE M DE S OUZ A TINA HATE M


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PARANGOLÉ, POLÍTICA E POÉTICA DO INSTANTE NO “ESTADO INTERVENÇÃO” DE HÉLIO OITICICA

MARIA DA CONCEIÇÃO HATEM DE SOUZA - TINA HATEM

Parangolé, política e poética do instante no “estado invenção” de Hélio Oiticica Maria da Conceição Hatem de Souza – Tina Hatem

Doutora do Núcleo de Subjetividade PUC/SP 2010, Mestre Educação Ambiental FURG/RS 2005. Atualmente é professora de Arte do IFRS – Campus Osório, onde desenvolve vários projetos de extensão em arte e cultura e a pesquisa Pensar com desde a ARTE. Coordenadora do NEABI – Núcleo de estudos Afro Brasileiro Indígena e líder grupo de pesquisa Formação de Professores.Desde 2008, desenvolve a pesquisa interventiva: Intervenção Poética - Território em Trânsito.

Palavras-chave Estética, participação, experimental, antiarte, vida, novas vanguardas

Resumo O presente texto é parte de pesquisa desenvolvida no programa de mestrado em Educação Ambiental, da Universidade Federal do Rio Grande - Furg, O sentido da participação no estado de invenção de Hélio Oiticica. Ao longo de meu percurso profissional e acadêmico, duas diretrizes foram sendo configuradas com maior relevância: as artes visuais e a psicologia comunitária, o que favoreceu a abertura de um campo de intervenção que contemplou a conscientização e a apropriação da realidade, tanto numa perspectiva estética como numa perspectiva psicossocial. A pesquisa desenvolvida atualiza paradigmas estéticos e éticos do programa construído por Hélio Oiticica; suas invenções trabalham o mundo sensório como perspectiva para a transformação do espectador em participante, seja em sua inserção para a realização das proposições, ou para a transformação dos sentidos, proporcionando uma nova compreensão do mundo e o aparecimento de subjetividades criadoras. Para tanto, realizou-se uma análise de conteúdo do programa criado por Hélio Oiticica, quando o ato de experimentar é utilizado como posição de investigação do cotidiano e não como diluição da arte no cotidiano.

Keywords Aesthetics, participation, experimental, anti-art, life, new avant-garde


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PARANGOLÉ, POLÍTICA E POÉTICA DO INSTANTE NO “ESTADO INTERVENÇÃO” DE HÉLIO OITICICA

MARIA DA CONCEIÇÃO HATEM DE SOUZA - TINA HATEM

Abstract This text is part of research carried out in the Master’s program in Environmental Education at the Federal University or Rio Grande - FURG, “The meaning of participation in the state of creation of Helio Oiticica.” Throughout my professional and academic career, I concentrated my efforts towards two directions: the visual arts and community psychology, which favored the opening of a field of intervention that included awareness and appropriation of reality, regarding both the aesthetic and the psychosocial perspectives. This research updates the aesthetic and ethical paradigms of the program developed by Oiticica. His inventions deal with the sensory world as a perspective to turn the spectator into a participant, either by implementing what has been proposed or by transforming the meanings, providing a new understanding of the world and the emergence of creative subjectivities. To this end, the content of Oiticica’s program concerning the act of experimenting being used as a subject of daily life investigation, rather than disseminating art throughout daily life, was analyzed.

Hélio Oiticica é considerado um dos maiores artistas do experimentalismo nas artes plásticas brasileira. Assim como a intensificação do processo experimental, suas operações no domínio da vanguarda artística apresentam coerência e lucidez crítica, que são demarcadas num processo cartográfico próprio. Assim, Hélio Oiticica não implica somente o espectador em suas proposições, mas ele próprio enquanto artista questiona o seu lugar na arte e no mundo. Não se denomina mais artista, mas sim como um “inventor”, um “propositor” que cria dispositivos, agenciamentos criadores de novas subjetividades nos participantes.

As concepções de arte, artista, espectador, já não servem para o programa criado por Hélio Oiticica, programa com diversas influências modernistas e desdobramentos que criaram suas diferenças, colocando-o na vanguarda das artes. O sistema de arte não serve mais para suas proposições, sistema capturado pela lógica burguesa, do grande capital, em que configuram lugares instituídos para as exposições de arte, um público restrito e seus grandes comerciantes (mecenato, mercenários). Hélio cria a “Antiarte” como desterritorialização deste sistema falido, propiciando, assim, novos territórios para o estado de invenção.

O Parangolé funda a antiarte ambiental, nova expressão para “o início de uma experiência social definitiva”. A invenção da arte como invenção da vida. A “antiarte” como ligação definitiva entre manifestação criativa


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e coletividade, efetivada através das “apropriações ambientais”, funciona como atividade desestetizadora, empenhada no questionamento das categorias habituais de arte e do circuito. O que pulsa nos novos espaços concebidos pelo artista e pelos participantes é a vivência. O experimental como posição de investigação do cotidiano e não como diluição da arte no cotidiano, pois não visa à criação de um “mundo estético”, uma vez que as “proposições ambientais” são abertas ao exercício imaginativo e de liberdade do indivíduo. A possibilidade de “experimentar a criação”, de descobrir pela participação algo que para o participante possua significação. Por isso, a antiarte não pode impor ideias e estruturas acabadas, nem tampouco propor uma estetização do mundo, mas propõe descentralizar a arte pelo deslocamento do que se designa como arte, da intelectualização racional para a proposição criativa vivencial.

Parangolé

Isso eu descobri na rua, essa palavra mágica. Porque eu trabalhava no Museu Nacional da Quinta, com meu pai, fazendo bibliografia. Um dia, eu estava indo de ônibus e na Praça da Bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de madeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem vértices de retângulos no chão. Era um terreno baldio, com um matinho, e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio de barbante de cima a baixo. Bem feitíssimo. E havia um pedaço de aniagem pregado num desses barbantes, que dizia: “aqui é...” e a única coisa que eu entendi, que estava escrito, era a palavra “Parangolé”. Aí eu disse: É essa a palavra (OITICICAapud FAVARETTO, 2000, p.117).

Os Parangolés são abrigos, estandartes, capas, tendas, panejamentos coloridos que se revelam no movimento do corpo do participante. São como estruturas-extensões do corpo, quando o movimento dessas estruturas é o próprio ato expressivo, “a estética do movimento e do envolvimento”.

Para essa proposição experimental, convergem as ordens anteriores do programa, sintetizadas como


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estruturas-extensões do corpo. Assim, os Parangolés não são objetos, pois a estrutura só se produz à medida que os materiais são usados pelo participante, o que Hélio denominava estrutura “transobjetivante”. “Não se trata, assim, do corpo como suporte da obra no corpo. Eu chamo de ‘in(corpo)ração’. É a incorporação do corpo na obra e da obra no corpo. Eu chamo de ‘in-corpo-ração” (OITICICAapud FAVARETTO, 2000, p.107).

FIGURA 1 - Hélio Oiticica, Parangolé P9, Capa 15. Fonte: FAVARETTO, 2000.

A “totalidade ambiental” opera como um “sistema ambiental” que incorpora todos os elementos; estruturacor, movimento, participação, objeto, espaço circundante; cujo fluxo de energia é dado pelo movimento do participante. Assim, a estrutura Parangolé é executada pelo participante e pelos elementos da situação. O “ato expressivo” atualiza algumas das relações possíveis no espaço em que se desenvolvem as ações: é uma “participação ambiental”. “Trata-se da procura de ‘totalidades ambientais’ que seriam criadas e exploradas em todas as ordens, desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano, etc.” (OITICICA


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apud FAVARETTO, 2000, p. 106).

O participante age num campo de estruturas abertas, agenciando estruturas-percepções, que revelam uma outra ordem. Os Parangolés são dispositivos que disparam experiências, com o objetivo de atualizar o estar dos participantes como indivíduos no mundo, transformando-lhes os comportamentos coletivos.

Manifestações Ambientais

As Manifestações Ambientais, englobando as experiências anteriores; Núcleos, Penetráveis, Bólides, Parangolés, repropõem a “realização criativa”, integrando o coletivo pelo redimensionamento cultural dos protagonistas artistas e participantes. Emergida em Parangolés, que funda espaços participacionais, conjugando linguagem, espaços, tempos dispersos, reconceituando a arte e criando a “antiarte ambiental”. As Manifestações Ambientais são lugares de transgressão, de recriação da arte como vida; lugares que potencializam a poética do instante e do gesto. Assim, são estruturas abertas em que a invenção é exercitada como “proposição vivencial”.

O espaço estético é transformado em espaço de experiências abertas, não remetendo a uma arte instituída, mas a vivências de descondicionamentos do que é aceito como arte, da função espectador e do consumidor da obra, da elitização do circuito cultural. Assim, o espaço estético é concebido também como espaço ético e político.

Em 1965, Hélio Oiticica apresenta a primeira Manifestação Ambiental coletiva, na mostra Opinião 65, realizada no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro. Levou para o museu seus amigos passistas da Mangueira, que envolvidos em capas, barracas e estandartes, incorporavam o Parangolé. Waly Salomão, poeta e amigo de Oiticica, refere-se ao evento como “Armou maior barraco no MAM”.

“Amigo da Onça” apareceu para bagunçar o coreto: Hélio Oiticica, sôfrego e ágil, com sua legião de hunos. Ele estava programado mas não daquela forma bárbara que chegou, trazendo não apenas seus PARANGOLÉS, mas conduzindo um cortejo que mais parecia uma congada feérica com suas tendas, estandartes e capas. Que falta


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de boas-maneiras! Os passistas da Escola de Samba Mangueira, Mosquito (mascote do PARANGOLÉ), Miro, Tineca, Rose, o pessoal da ala “Vê Se Entende”, todos gozando para valer o apronto que promoviam, gente inesperada e sem convite, sem terno e sem gravata, sem lenço nem documentos, olhos esbugalhados e prazerosos, entrando pelo MAM adentro. Uma evidente atividade de subversão de valores e comportamentos. Barrados no baile. Impedidos de entrar(SALOMÃO, 2003, p.59).

FIGURA 2 - Manifestação Ambiental. Fonte: JACQUES, 2001.

Subir à Mangueira, tornar-se passista, ser amigo dos moradores do Morro, dentre eles alguns marginais como o “temido Cara de Cavalo”, foi a desterritorialização marcante para a subjetividade de Hélio. Fissura e abertura no seu comportamento burguês. Surge um devir Morro, devir dionisíaco, devir dançante que, confluídos com outros tantos devires de Hélio (devir anarquista, devir irreverência, devir artista), atualizam, definitivamente, o devir crítica social, devir crítica estética, nas suas “proposições vivenciais”.

O Museu é o Mundo


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[...] pretendo estender o sentido de “apropriação” às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação – seria isso um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte etc., e ao próprio conceito de “exposição” – ou nós o modificamos ou continuamos na mesma. Museu é o mundo; é a experiência cotidiana. [...] (OITICICAapud FAVARETTO, 2000, p.129).

Hélio institui a “vivência” do Parangolé como confluência entre o inconformismo estético e o inconformismo social, como transgressão de regras de generalização da experiência criativa. Cria um programa que funda um escárnio ao chamado comércio de arte criado pelas galerias, recusando o museu e afirmando o distanciamento das categorias de arte. Acreditava que o público aproximava-se de experiências que nas artes são segregadas, ao situar suas operações nas ruas, parques, morros ou pavilhões de exposição industrial. A Apropriação Ambiental era muito mais do que transportar uma obra para outro ambiente ou um concerto na rua. A saída do museu e da galeria significa a transposição e translação de uma ambientação que reúne artista, participante e “mundo”.

As novas vanguardas

No início dos anos 60 constata-se um fenômeno que se agrava até o final da década: desbordando as fronteiras institucionalizadas, as diversas tendências exercitam a multiplicidade de estilos, a mescla de técnicas, o caráter heterogêneo e multidisciplinar da arte. Pintura, escultura, música, teatro, cinema e poesia confluem num espaço estético aberto. A ruptura com os suportes, questiona o estatuto existencial da obra de arte, na pintura, relega ao passado a dicotomia abstração/figuração. A referência a Duchamp, aos herdeiros do Dadá e aos construtivismos é obrigatória para o entendimento dessa floração de inventos da década de 60 e inícios de 70 (FAVARETTO, 2000, p.21).

As novas vanguardas, embora impregnadas pelas tendências “plásticas” e culturais do início do século, diferem em aspectos básicos. Encontram um mercado especializado que determina a produção artística,


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transformando as expectativas dos artistas. As ações e proposições passam a ser dicotômicas, pois alguns artistas integram-se às exigências do mercado, utilizando-se, plasticamente, das proposições do início do século, porém fortalecendo o sentido e a função da arte na sociedade de consumo. Outros artistas diferenciam-se com propostas de resistência a essa integração. Entre a integração e a marginalidade ao sistema de arte, como projetos de intervenção ou divertimento, a urgência do consumo das obras ou o incentivo crítico ao mercado impositor, são algumas das tantas ambiguidades da época. Entretanto, como marca que mais diferencia essa vanguarda, está a recepção da obra que é modificada, transformada pela ação do público no horizonte da produção artística.

Em 1967 foi representada a peça de Oswald de Andrade, O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina, dirigida por José Celso. A atualização da genialidade Oswald de Andrade aconteceu em momento propício, pois desde a década de trinta, sua obra encontrava-se capturada nas bibliotecas, relegada ao esquecimento. A retomada da crítica oswaldiana foi a pitada que faltava para sacar o teatro da tradição realista, para proposições mais ousadas de experimentalismo sem, contudo, abandonar a crítica social.

FIGURA 3 - Rei da Vela. Fonte: ANDRADE ,1976.

A retomada de Oswald foi a transformação cultural mais imprescindível da nova vanguarda. Embora suas proposições tivessem uma denotação ideológica, seu apetite antropofágico investia com ímpeto raro


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contra a aristocracia de um Brasil rural, o imperialismo, o fascismo e o socialismo. O Rei da Vela não é um panfleto político, sua comicidade delirante e sua liberdade quase surreal remetem a um outro Brasil muito distante da ideologia de esquerda da época.

Movimento sincrético, influência do primitivismo antropofágico, que devora a vanguarda europeia, com muito dendê trazido do continente Africano, pirão feito com farinha de mandioca, planta nativa e, para sobremesa, lambuzar-se com manga, fruta originária da Índia. Movimento transcultural que nos faz tão ricos e tão diversos. “A PUREZA É UM MITO”, deflagra Hélio na Manifestação Ambiental Tropicália.

Tropicália

As Manifestações Ambientais são a materialização da antiarte proposta no programa de Hélio Oiticica. São experiências de globalização e totalização de conceitos, procedimentos e linguagens como: Tropicália (1967), Apocalipopótese (1968) e Éden (1969).

Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente “brasileira” ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional [...] Veio contribuir fortemente para essa objetivação de uma imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura brasileira (BRETTapud FAVARETTO, 2000, p.137).

Ambiente acontecimento, Tropicália expõe um “antimuseu” crítico do trópico. Um museu vivo onde se articula muitas das experiências vividas por Hélio. Experiências na Mangueira, nos seus labirintos arquitetônicos, na experiência com as novas linguagens de reprodução da imagem. É um labirinto composto de dois Penetráveis, PN2 (1966) Pureza é um Mito e PN3 (1966-1967) Imagético, em que o participante caminha sobre areia, brita, encontra plantas como comigo-ninguém-pode e guiné. Por entre as folhagens, depara-se com poemas, araras, sente o cheiro forte da terra, das raízes e, no fim do labirinto, um aparelho de TV ligado no escuro. Justaposição de elementos, bricolagem que não visa a superação da contradição e, sim, expor a constituição das contradições enunciadas. Brasil periférico entre a modernidade e o colonialismo. Cheiro de terra exalado das paredes de pano do labirinto.


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Ao misturar o tropical primitivo, mágico e popular com o tecnológico das mensagens e imagem apresentadas, Hélio Oiticica proporciona experiências visuais, tácteis, sonoras e, com ludismo, convida para a efetivação da criação através da participação. A deglutição dos sentidos e a devoração pelos sentidos, criados e produzidos no evento acontecimento Tropicália, são propostas por Hélio, como possibilidade de transmutação da subjetividade dos participantes, ora criadores de significados, ora invadidos por eles.

FIGURA 4 - Tropicália. Fonte: JACQUES, 2001.

Ser devorado no banquete proporcionado por Hélio, deglutido, transformado em espaços, sensações, rebojo dos sentidos, que não mais afluem para a sensibilidade cotidiana, que transforma em lugar comum. Tropicália não é uma imersão ao mundo das favelas e sim a imersão num mundo homólogo, em que se é convidado a tirar os sapatos e pisar na areia e brita, enfim, a penetrar num cotidiano desoprimido. A vivência do “suprassensorial” questiona e transmuta o exótico enquanto estereótipo. Assim, Tropicália não é uma representação passiva naturalista de sua imersão no mundo da Mangueira, é um ambiente construído, uma projeção no espaço do mundo percebido por Hélio. Não é um simulacro, e sim a atualização


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de virtualidades de suas próprias vivências e atualização das vivências dos participantes.

[...] Como manifestação ambiental, Tropicália não produz uma ideia totalizadora de Brasil (incompreensível, irracional, exuberante, absurdo, surreal): estilhaça essa representação. As raízes profundas sobem à superfície e são arrancadas no labirinto: o Brasil não se classifica como imagem. No labirinto experimenta-se o ilimitado e a indeterminação, a transmutação como perda da identidade na construção de diferentes identidades. [...] (FAVARETTO, 2000, p.142).

A objetivação do sentido ético-estético, como prática cultural, determinava sua posição crítica à situação das vanguardas. Hélio não queria levar algo pronto da estetização do cotidiano, o que o distinguia de muitos propositores de sua época que propunham intervenções doutrinárias, objetivando educar esteticamente o público, tabula rasa para as proposições vinculadas a juízos de valores atrelados ao elitismo cultural, com viés carregado de ideologia de esquerda. Hélio Oiticica vincula sua manifestação ambiental Tropicália à “Nova Objetividade”, concepção de vanguarda da qual participaram diversos artistas, poetas e atores, que propunham atividades renovadoras em desenvolvimento no Rio de Janeiro e São Paulo. Entretanto, não pretendeu que a “Nova Objetividade” fosse um movimento definido por uma unidade de pensamento, mas um conceito que caracterizasse uma posição da vanguarda brasileira, considerada, por ele, como um fenômeno novo no panorama internacional. Para o público, suas proposições estavam abertas à alteração dos sentidos, à vivência estética e à criação de significados pelos próprios participantes.

[...] Esquema geral da Nova Objetividade [...] hoje o que quer que se faça, qualquer que seja a nossa démarche, se formos um grupo atuante, realmente participante, seremos um grupo contra coisas, argumentos, fatos [...] No Brasil [...] hoje, para se ter uma posição cultural atuante, que conte, tem-se que ser contra, visceralmente contra tudo o que seria em suma o conformismo cultural, político, ético, social [...] DA ADVERSIDADE VIVEMOS! (OITICICAapud FAVARETTO, 2000, p.153).


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A “Nova Objetividade” decorria da diversidade de propostas, de modo a efetivar relações de programas estéticos e exigências ético-políticas. A posição crítica e a atuação cultural bricolavam o político, a sensibilidade, a participação social e o deslocamento da arte. Era exatamente o tom contestador e a atitude contra que garantiam a unidade das propostas demarcadas pelas diferenças de experimentação. Embora sejam semelhantes as experiências entre a Tropicália, de Oiticica, e a Tropicália, do Grupo Baiano, houve diferenças em termos de repercussão. Entretanto, vale ressaltar as semelhanças dessas proposições, como a circulação de ideias. Ambas operam no descentramento cultural com procedimentos críticos que combinam construtividade e dessacralização da arte e da cultura. Num projeto de transculturação, deslocam a discussão entre arte e participação, superando a oposição de “arte participante” e “arte alienada”, arte acadêmica e arte popular. A possibilidade de fruição estética e crítica social é deslocada para os processos e procedimentos. Assim, são produções que afirmam dois sentidos: designam aspectos da cultura, enquanto desconstroem as linguagens que a pressupõe totalizadora.

As relações de lirismo e participação encontraram outro caminho na canção tropicalista, produzindo uma linguagem de criação e inserção social da música popular e justaposição de outros elementos. Uma linguagem da mistura, articulando diversos elementos: poesia de vanguarda, música tradicional brasileira, rock, iê-iê-iê, música experimental, enquadramentos e montagens cinematográficas.

As manifestações “tropicalistas” instalam o receptor como protagonista de ações que constituem o sentido das imagens. As músicas materializam-se como exercício surrealista, elaboração onírica, pois produzem imagens estranhas e alusivas. Já no ambiente criado por Oiticica o que sobressai é a exposição sensorial dos materiais a que o receptor é bombardeado, transformando-o em protagonista de seu consumo, da significação, da criação. Embora ambas tenham linguagens semelhantes, a mistura efetuase diferentemente, apontando para a singularidade de cada uma das poéticas. Entretanto, a diferença das proposições não é sentida como ambivalência, mas, sim, como complementaridade de proposições, fazendo emergir uma outra realidade, derrubando o mito de uma cultura universal brasileira.

Oiticica valoriza a atividade tropicalista e a vincula às suas experiências ambientais. Ressalta a conexão com o Grupo Baiano, ao traçar as semelhanças das duas proposições que denunciam problemas da vanguarda. Eles estruturam uma visão da radicalidade crítica e afirmam a posição revolucionária no processo de


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revisão cultural e renovação das artes no Brasil. Não distinguem a repressão da ditadura e da “intelligentsia bordejante” (a crítica e o público de uma certa esquerda). A renovação de comportamentos, de critérios de juízo, passa pelo modo de produção, aliando conceitualismo, construtividade e vivência. Ambas as produções trabalham com processos artísticos e culturais justapostos, efeito da devoração, banquete antropofágico.

REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald de. O Rei da Vela. Teatro vivo. São Paulo: Abril S. A. Cultural, 1976.

CLARK, Lygia; OITICICA, Hélio. Cartas 1964-74. Organização Luciano Figueiredo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.

FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

GULLAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea – do Cubismo à Arte Neoconcreta. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999.

JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga – A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Editora Casa da Palavra/ RIOARTE, 2001.

MACIEL, Luiz Carlos. Geração em transe. Memórias do tempo do Tropicalismo. 2a Impressão, Rio de Janeiro: Editora Nova fronteira, 1996.

SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticica – Qual é o Parangolé? E outros escritos. Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda, 2003.

SOUZA, Maria da Conceição Hatem. O sentido da participação no “estado de invenção” de Hélio Oiticica: reflexão para uma prática de educação ambiental.Dissertação, FURG, Rio Grande do Sul, 2005.


A ESTÉTICA COMO SISTEMA EMERGENTE E DINÂMICO MARCUS VINICIUS CORRÊA CARVALHO


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A ESTÉTICA COMO SISTEMA EMERGENTE E DINÂMICO

MARCUS VINÍCIUS CORRÊA CARVALHO

A estética como sistema emergente e dinâmico Marcus Vinicius Corrêa Carvalho

Doutor em História Social da Cultura pelo IFCH/UNICAMP, professor de História da Educação da Universidade Federal Fluminense. Atualmente, desenvolve pesquisas sobre as interfaces entre Educação, História, Estética e Ética no PPGE-FE/UFF. Líder, ao lado de Fernando Gonçalves Ferreira Júnior, do Grupo de Pesquisa/CNPq “Estruturas emergentes: linguagem, estética e educação”, da IFMG, no qual coordena a linha de pesquisa “Educação e estética nas representações culturais e históricas”.

Palavras- chave: Teorias Estéticas, Arte, Emergentismo, Dinâmicas de Rede, Ética.

Resumo: Este artigo expressa uma reflexão sobre a polissemia do termo estética, que aproxima estética e arte, a fim de revelar dois aspectos cruciais e imbricados em sua ponderação: o componente ético e o caráter aberto necessário à sua consideração. Propõe-se, nessa medida, que a estética seja interpretada como um sistema emergente e dinâmico, sem deixar de sublinhar as implicações éticas da produção artística que pode ser a ela vinculada.

Keywords Aesthetic theories, Art, Emergentism, Network dynamics, Ethics.

Abstract This article expresses a reflection of the polysemy of the term aesthetics, which approaches art and aesthetics, so as to reveal two crucial and imbricated aspects of this sense: the ethical component and the openness for its consideration. Having this in mind, this article proposes that aesthetics would be interpreted as an emerging and dynamic system, while stressing the ethical implications of artistic production that can be bound to it.

Para Sonia Laboriau


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Desde sua primeira exposição sistemática, desenvolvida por Alexander Von Baumgarten, que a definiu como a “ciência das coisas sensíveis”, em meados do século XVIII, a estética tem sido mais que uma disciplina filosófica, um conceito controverso, guardando uma considerável polissemia.

Em sua primeira definição por Baumgarten, em 1735, como “‘a ciência de como as coisas podem ser conhecidas pelos sentidos’”, a natureza do que seja a estética implicava em ter um componente tanto cognitivo quanto emotivo, caracterizando, então, uma qualidade híbrida do conhecimento sensorial relativa à beleza e a arte. Contudo, a obra de Baumgarten estava bastante longe de arregimentar os espíritos audazes de seu tempo. Immanuel Kant, por exemplo, dando privilégio à beleza natural, nem chegou a cogitar sobre a natureza específica da arte, pensada em seu valor de verdade ou de conhecimento. Um século depois das formulações de Baumgarten, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1996) criticou o termo Aesthetik, por sua ênfase sobre o sensório e o sentimento. Ele o considerava inadequado para definir os temas que apresentava em suas preleções sobre arte, os quais para ele deveriam ser nomeados pelo termo kallias, beleza em grego, derivando de kallus, o belo. Porém, ele conservou o termo com condescendência, e um pouco a contragosto, no título de suas conferências e em seus estudos, alegando que seu uso corrente e corriqueiro já o consagrara nos debates relativos à beleza e à arte na Alemanha.

Desse modo, o eminente filósofo, fundador da Universidade de Berlim, ajudou a legitimar o destaque da estética ao longo dos novecentos. Naquele momento, ela gozava da mesma consideração que a metafísica e, às vezes, era até mesmo elevada ao ápice dos sistemas filosóficos (ISER, 2001, p. 35).

Aceita ou não, de um modo ou de outro, a exposição sistemática da estética feita por Baumgarten deflagrou a trajetória de debates e discussões que marcaram e marcam a complexidade das mudanças do que seja a natureza e o valor da estética desde então. Híbrido e algo paradoxal, o fenômeno estético lançou uma multiplicidade de esforços epistemológicos a fim de caracterizar sua atuação, seu processo, sua natureza e seu valor.

Enfim, desde sua definição no século dezoito, como uma qualidade híbrida do conhecimento sensorial, contendo um componente cognitivo e um emocional, até o século vinte, quando foi associada com


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atitudes, foram realizados vários esforços para determinar o caráter da estética. Nesse sentido, tanto a estética quanto a arte, que parecem inelutavelmente associadas na tradição desses estudos, têm sido alvo de tentativas de definição inequívoca. Por exemplo, como se vê em Clive Bell, crítico de arte inglês defensor da arte abstrata e da teoria formalista e membro do grupo que reunia Roger Fry, John Maynard Keynes e Virginia Woolf em Blomsbury, no início do século passado. Em seu livro Art, de 1914, Bell afirmou: “[o] ponto de partida de todos os sistemas de estética tem de ser a experiência pessoal de uma emoção peculiar. Aos objetos que provocam esta emoção chamamos ‘obras de arte” (BELL, 2007, p. 29).

Algumas das mais famosas teorias estéticas do século vinte tencionaram responder de modo objetivo a pergunta “o que é arte”. Na teoria formalista de Bell e Fry, que se refere, sobretudo, à pintura, mas pensando-a como forma exemplar da arte de um modo geral, a “essência da pintura” são os “elementos plásticos em relação”. De modo que a sua “propriedade definidora” é a “forma significante”, quer dizer, as “combinações de linhas, cores, formas, volumes [...] que suscitam uma reação única”. Em outras palavras, “tudo aquilo que está presente na tela, exceto os elementos figurativos”. Nesse sentido, a pintura, e por homologia, toda arte, é definida como uma “organização plástica”, sendo arte, portanto, tudo o que é uma “instância da forma significante” (WEITZ, In: D´OREY, 2007, p. 64-64).

A essa proposição responderia “o emocionalista” que a propriedade verdadeiramente definidora da arte foi omitida, qual seja, “a expressão da emoção num medium sensorial público”, significando que “[s]em a projeção da emoção numa obra de pedra, em palavras, em sons, etc., não pode haver arte”. O “intuicionista”, por sua vez, rejeita quer a forma quer a emoção como propriedades definidoras da arte, a qual ele identifica como a “primeira fase do conhecimento” em que se dá “expressão lírica” às “imagens e intuições”. Como fase “criativa, cognitiva e espiritual específica”, e existindo “abaixo do nível da conceitualização e da ação”, a arte não teria nem “conteúdo científico nem moral”. Por outro lado, “o organicista” proporia que a arte é “uma classe de todos os orgânicos, formados por elementos distinguíveis, embora inseparáveis, em relação causalmente eficaz, apresentados num certo medium sensorial”. Desde esse ponto de vista, “uma obra de arte é por natureza um complexo único de partes inter-relacionadas”. Em uma “teoria voluntarista”, insistese que é preciso uma definição complexa, e não simples, em que “[a] definição da arte deve, portanto, ser dada em termos de um complexo de características” (WEITZ, In: D´OREY, 2007, p. 64-65).


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Muitas críticas a essas teorias estéticas tradicionais já foram feitas, definindo-as como: circulares, incompletas, não testáveis, pseudofactuais, etc. No entanto, há de se pensar com Morris Weitz que: “a teoria estética é uma tentativa logicamente vã de definir o que não pode ser definido, de indicar as propriedades necessárias e suficientes daquilo que não tem propriedades necessárias e suficientes, de supor que o conceito de arte é fechado, quando o seu uso real revela e exige sua abertura” (WEITZ, In: D`OREY, 2007, p. 67). Poder-se-ia, sim, indicar até propriedades necessárias à definição do seja arte, mas não propriedades suficientes.

A esta altura, é oportuno recorrer a um artigo seminal de Arthur C. Danto escrito em 1961, o qual mudou não apenas a maneira de se ver e pensar arte, mas também a própria concepção e definição do que seja a estética: “O mundo da arte”. Nele, o norte-americano ainda afeito então ao pensamento analítico, responde à pergunta o “que é arte” afirmando, para o arrepio dos puristas, que ao regressar ao caráter físico da pintura, pretendendo purificar sua obra de uma “atmosfera composta por teorias artísticas e pela história da pintura recente e antiga”, o artista concorre, exatamente por esse processo, para que sua obra pertença a esta “atmosfera”, fazendo “parte desta história”. Para exemplificar sua assertiva, Danto recorreu aos dizeres de Ch´ing Yuan, um chinês que escreveu o seguinte:

Antes de ter estudado Zen durante trinta anos, via as montanhas como montanhas e

as

águas como águas. Quando atingi um conhecimento mais profundo, cheguei a um ponto em que não via as montanhas como montanhas nem as águas como águas. Mas, agora que atingi a substância mesma, estou em paz. Muito simplesmente, voltei a ver as montanhas como montanhas e as águas como águas (YUAN apud DANTO, In: D`OREY, 2007, p. 91-92).

Nesse sentido, Danto propõe que “[v]er uma coisa como arte requer algo que o olhar não pode desprezar – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte”. Desse modo, tomando o exemplo de Andy Warhol e de suas caixas de cera Brillo, ele afirma que aquilo que distingue uma caixa de cera Brillo exposta no supermercado de uma obra de arte que consiste numa Caixa de Brillo é uma “certa teoria da arte”, sendo a “teoria que a eleva ao mundo da arte e a impede de se reduzir ao objeto real que é [...]”. Afinal, sem a teoria não a veríamos como arte, “a fim de a vermos como arte, temos de dominar uma série de teorias da arte, além de uma parte considerável da história da pintura recente de


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Nova Iorque”. Nesta medida, Danto argumenta, naquele artigo do início da década de 1960, que “[q]uanto maior for a variedade de predicados artisticamente relevantes, mais complexos se tornam os membros individuais do mundo da arte; e quanto mais informações tivermos sobre toda a população do mundo da arte, mais rica é a nossa experiência com qualquer dos seus membros”. Enfim, ele conclui que “as caixas Brillo têm o mesmo poder que outra coisa qualquer de nos revelar a nós mesmos: como um espelho erguido diante da natureza, elas podem servir para despertar a consciência dos nossos reis”, numa alusão a Hamlet, de Shakespeare (DANTO, In: D`OREY, p. 92-99). Essa aproximação entre a estética e arte revela dois aspectos cruciais e imbricados daquilo que importa destacar: um, o componente ético que acompanha a especulação sobre o estético e, outro, o caráter aberto necessário à sua ponderação. De volta, portanto, à reflexão sobre a polissemia do termo estética, quero ressaltar que, nesse período, desde meados do século XVIII até nossos dias, foram observados diversos “entrincheiramentos dinâmicos”8 (ISER, In: ROSENFIELD, 2001, p. 36) pelos quais a estética foi identificada com o conceito que determinou suas feições e operações em diferentes momentos do processo histórico moderno e contemporâneo. Com o termo “entrincheiramento”, pretendo indicar que a definição da estética deve ser delimitada por um momento determinado no tempo, que o circunscreve em uma situação histórica e cultural específica, ao passo que ser ele “dinâmico” sugere que tal determinação acarreta relações contextuais, a partir das quais surge uma ampla gama de possibilidades de pensar e definir o que seja estético. Desde essa perspectiva, a estética não pode ser confinada em um conceito, mas requer um contexto, ou circunstancialização histórica, em que sua definição pode tornar-se operatória, fazendo algo emergir, cultivando algo, gerando cultura.

Nesse sentido, proponho que a estética – e, por que não, a arte – seja interpretada como um sistema emergente e dinâmico. Em outras palavras, sugiro que a estética guarda séries de componentes que se conectam em ambientes locais, os quais estabelecem redes de ação, fazendo emergir uma cooperação desse conjunto de componentes sem que haja uma unidade central que dirija necessariamente o processo. Dessa forma, ela deveria ser analisada em uma dinâmica de redes, cuja manifestação ocorreria

8

Situada no campo semântico da teoria do caos e do estudo de sistemas emergentes, a expressão generative entrenchments não guarda qualquer similitude, direta ou indireta, com o imanentismo gerativista da gramática chomskiana. Por isso, optei pelo termo entrincheiramento dinâmico, definindo-o como uma configuração cultural emergente, determinada sócio-historicamente, que define as probabilidades de desdobramentos processuais em cascata dela derivadas ou a ela associadas.


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caoticamente, possibilitando a emergência de ordem. Portanto, em um sistema relativamente aleatório, cujo comportamento qualitativo não mudaria se esse aleatório fosse eliminado.

Ao acompanhar Wofgang Iser, posso sugerir que em meio à série de entrincheiramentos da estética nesses duzentos e setenta e cinco anos, pode-se observar certa configuração do que seja o estético. Nas palavras deste representante da Escola de Konstanz, o estético é tomado como “um movimento de jogo operando entre os sentidos do sujeito e aquilo que lhe é dado perceber ou conceber” (ISER, In: ROSENFIELD, 2001, p. 36). Isso vale também para a estética como filosofia e como teoria da arte, em que as obras figuram como sumas de movimentos complexos de jogo, através dos quais se engendra um circuito que faz algo emergir. Dessa forma, a estética é considerada uma “ação de emergência”, cujo produto não deve ser qualificado como estético, pois que é algo outro do que a configuração das operações de entrelaçamento de que resultou.

Os diferentes entrincheiramentos que a estética assumiu em seu desenvolvimento como questão indicam que o estético não possui essência própria, estando sempre relacionado a realidades contextuais que governam sua concepção. Com vistas em rápido sobrevoo histórico, percebe-se que o estético esteve sempre associado a alguma coisa outra que o “si mesmo”, seja um sujeito, o belo, o sublime, a verdade ou a obra de arte. O estético faz com que algo aconteça: um juízo, uma ideia, um engajamento da imaginação, um lampejo da plenitude vindoura ou uma interpretação filosófica ou histórica, e até mesmo uma obra de arte – todos sendo resultado do estético, portanto, não sendo mais estéticos no caráter.

A operação estética não é a cognição do sujeito de um objeto, mas sim a presença deste para a “intuição íntima” do sujeito. Assim, o estético orquestra um entrelaçamento de disposições humanas com objetos, mediante a conversão desses objetos em uma mola mestra para continuamente ativar a interpenetração dos sentidos, fazendo-os produzir novas e imprevisíveis configurações de visualizar e idear.

Essa expansão de possibilidades favorece a ultrapassagem de o que quer que tenha se congelado em uma forma definitiva, propiciando uma oportunidade de ativar continuamente o modo de o sujeito visualizar e conceber o mundo. A operação modeladora da estética implica que qualquer coisa a que


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se dê forma seja decomposta ou desfigurada, fazendo emergir algo que até então não estava em vista. Esse modelar do estético, como um ato transformador, revela aquilo que é considerado como dado em relacionamento de troca, em transmutações graduadas, perfis seriados e estruturas telescópicas, que cascateiam em um imprevisível arranjo de configurações. Esse jogo de revirar o dado revela duas feições do estético, como movimento que acelera e que dissemina. A estética, nessa medida, faz uso do potencial humano para estruturar e trabalhar o meio ao qual estamos expostos, e, hoje, embora ainda seja um traço da obra de arte, o estético estendeu sua atividade a vários domínios da vida. Não é, portanto, o produto final específico da modelagem que está em jogo, mas a própria atividade que continuamente dá formato a algo. Esses formatos não devem ser considerados nem definitivos nem finais, mas antes possibilidades que se derramam em cascata a partir do entrincheiramento contemporâneo do estético. Como uma cascata de possibilidades, ilimitada em alcance, o estético não se apresenta a fim de promulgar um interesse de grupo, mas sim para lançar luz crítica e criativa sobre a pluralidade distintiva dos debates e embates sociais, culturais e políticos.

Não parece ocioso sublinhar as implicações éticas para a produção artística deste ponto de vista que apresento. Afinal, sabe-se que a reflexão teórica tornou-se desde os anos de 1960, “um novo instrumento interdependente à gênese da obra, estabelecendo uma outra complexidade entre a produção artística, a crítica, a teoria e a história da arte” (FERREIRA, In: FERREIRA; COTRIM, 2006, p. 10). A produção artística, desde então, vem marcando uma “mudança radical [...] pelo deslocamento da palavra para o interior da obra”, tornando-a “constitutiva e parte de sua materialidade”. Um movimento que já levou a afirmar-se sobre a arte contemporânea que: “‘[o] ato da definição não estava separado do ato da apreciação’”. Em consonância com essa ideia, as diversas modalidades de escrita de artistas, desde o renascente Leon Baptista Alberti, mas também de contemporâneos, guardam em comum “a necessidade de tornar problemas estéticos ou técnicos precisos para si mesmos [...], para seus pares ou para o público cultivado” (FERREIRA, In: FERREIRA; COTRIM, 2006, p. 10-11).

Nesse sentido, a arte moderna marcou duas inflexões não-dissociadas, no que diz respeito aos escritos de artistas, as quais indicam uma tomada ativa da palavra pelos artistas nas formulações do destino da arte: o manifesto e os textos teóricos. Modelares são as palavras de Franz Marc e de Kandisnky ao declararem, em


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1911, os propósitos do Almanaque do Cavaleiro Azul (Blaue Reiter), publicado um ano depois: “‘[e]stá claro que o próprio artista é o primeiro a dever se pronunciar sobre as questões artísticas’” (apud FERREIRA, In: FERREIRA; COTRIM, 2006, p. 13). Desde a arte moderna, estabeleceu-se de modo explícito algo que sempre deveria ter informado a produção artística e a especulação estética: a relação entre teoria e prática, na qual o pensamento plástico desenvolve em uma dialética incessante entre a prática artística e o pensamento teórico.

Nesta ponderação sobre a estética como um sistema emergente e dinâmico, não posso deixar de sugerir o caráter político e a dimensão ética da arte, fazendo ver que: “mudar a arte é também mudar a vida, o homem e o mundo”. Não posso deixar de sublinhar e dar relevo aos aspectos libertários e emancipatórios que devem assumir a prática artística e o pensamento estético, instando aos artistas em formação que tomem para si a responsabilidade relegada a críticos, curadores, galeristas, historiadores, estetas e filósofos, etc., que, por vezes, se locupletam de suas produções e de seu prestígio a fim de angariar cargos administrativos e burocráticos. Façam ver que como entes desejosos, dionisíacos e delirantes – não raro, depreciados como loucos – vocês guardam a verve e a potência de transformação radical de que se nutre o melhor da coletividade humana.

REFERENCIAS

BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb.Esthétique, précédée des Méditations philosophiques sur quelques sujets se rapportant à l´essence du poème et de la Métaphysique (§§ 501 à 623). Paris: L´Herne, 1988.

DANTO, Arthur C.. O mundo da arte. In: D´OREY, Carmo. (Org). O que é a arte? A perspectiva analítica. Lisboa: Dinalivro, 2007. p. 79-100.

D´OREY, Carmo (Org). O que é a arte? A perspectiva analítica. Lisboa: Dinalivro, 2007.

BELL, Clive. A hipótese estética. In: D´OREY, Carmo (Org). O que é a arte? A perspectiva analítica. Lisboa: Dinalivro, 2007. p. 27-44.


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ROSENFIELD, Denis L.(Org). Ética e estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Curso de estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

FERREIRA, Glória;COTRIM, Cecilia (Orgs.). Escritos de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

WEITZ, Morris. O papel da teoria na estética. In: D´OREY, Carmo (Org). O que é a arte? A perspectiva analítica. Lisboa: Dinalivro, 2007. p. 61-78

ISER, Wolfgang. O ressurgimento da estética. In: ROSENFIELD, Denis L.. (Org). Ética e estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 35- 49.


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Bordas em deriva Julia Gomes Panadés

Doutoranda em Literatura Comparada pela FALE – UFMG e bolsista pela Capes, é mestre em Artes Visuais pela EBA – UFMG e graduada em Artes Plásticas pela Escola Guignard – UEMG. Desenha e escreve diariamente. É professora de desenho e criação. Atua como artista convidada da Companhia Suspensa desde 2009. http//www.juliapanades.net

Palavras-chave Ana Mendieta, desenho, corpo, criação artística.

Resumo Bordas em deriva é um ensaio dedicado à artista cubana Ana Mendieta, especificamente pela série denominada Silhuetas, ações produzidas entre 1973 e 1980. A forma comum a essa série evoca contornos simplificados do corpo feminino, feitos por substâncias naturais que convergem invariavelmente à terra. As Silhuetas são aqui pensadas pela conjunção de meios vivos, matérias, códigos próprios e movimentos particulares. A matéria trabalhada e o entorno misturam suas bordas e limites. São corpos em deriva, compostos por dissolução. Este estudo encontra ferramentas teóricas na filosofia de Gilles Deleuze.

Key Words Ana Mendieta, drawing, body, artistc creation

Abstract “Borders adrift” is an essay dedicated to the Cuban artist Ana Mendieta, specifically to the series named “Silhuetas” (silhouettes), actions produced between 1973 and 1980. The common form of this series evokes simplified contours of the female body, made out of natural substances that invariably converge to earth (ground, soil). The Silhouettes are thought here by the conjunction of living means, materials, particular codes and specific movements. The material used and the surroundings mix their borders and limits. They are bodies at drift, composed by dissolution. This study finds it’s theoretical tools in the philosophy of Gilles Deleuze.


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FIGURA 1 - Ana Mendieta. Imagem de Yagul (Image from Yagul), 1973. Colour photograph, 48.3 x 31.8 cm. Fonte: http:// www.studiointernational.com/index.php/ana-mendieta

Vestido de terra à Ana Mendieta

A mulher nua sobre a tumba aberta não está nua / ela está coberta por ramos de flores brancas sobre a terra pisada dos tempos / cercada por blocos empilhados de pedras brutas / a mulher sem rosto se serve da paisagem, a paisagem veste a mulher de delicadeza / mulher e paisagem são lugares de passagem, são caminhos


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sujos / a mulher sobre a tumba não está morta, apenas repousa a solidão de seu corpo, veste de morte sua humanidade / sobre o corpo estão as flores, o corpo está sobre a terra e as pedras estão em volta / toda matéria é tecida por uma força viva que não pertence a ninguém / o individual descansa, enquanto tudo se prepara (PANADÉS, 2007, p.41).

“Vestido de terra”, epígrafe deste estudo, é um poema dedicado a Yagul9, obra criada por Ana Mendieta no ano de 1973. A escrita encena a aproximação das matérias envolvidas na composição e move-se na tentativa de abordar a tessitura sensível de linhas que o enlace mulher e terra opera. Tal é a relevância metodológica do poema escrito como processo iniciador: para pensar as escolhas da artista que se dão a ver, foi preciso entrar também na deriva das bordas.

Desta aproximação inicial desdobra-se uma análise cujas linhas são necessariamente contaminadas por seu próprio objeto de estudo: as Silhuetas, série de ações da artista cubana Ana Mendieta.

I – Aproximação

A imagem de Yagul, criada por Ana Mendieta no sítio arqueológico homônimo no México indígena, pode ser pensada como aquela que inaugura a série Silhuetas, ações produzidas pela artista entre 1973 e 1980. Yagul, ruína sobre a qual Ana Mendieta se deita, é a mesma superfície que habita os restos dos antigos astecas. Na intercessão desta geografia instaura-se uma proximidade entre a mulher e o povo extinto, por nutrirem ambos uma concepção comum em torno de um mesmo elemento – a terra.

Para os astecas, a terra representa uma divindade paradoxal compreendida como “a mãe que alimenta”, permitindo que a vida se faça sobre ela, mas que, ao mesmo tempo, “precisa dos mortos para alimentar a si mesma, tornando-se, dessa forma, destruidora” (CHEVALIER; GEBRANT. 2003, p.879).

Na imagem de Yagul, o desenho ainda não é feito de terra como acontecerá mais tarde à série Silhuetas. Mas a relação indiscernível entre as forças de vida e morte que a terra carrega já se anuncia no corpo, 9

Esta imagem pode ser vista em http://liminoid. net/intermedia/1977/mendieta3.html


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feito de pele, sangue, veias, fibras, tecidos, carne, ossos, membros, fluxos e desejos. O corpo está colocado como meio e como imagem junto à tumba aberta, tornando visível uma forte sensação de impermanência – Ana Mendieta se expõe à reversibilidade da própria superfície sobre a pele da paisagem, seu corpo não é mais que uma frágil camada de vida deitada sobre a terra dos tempos. A fotografia desta ação conserva para nossos olhos uma promessa de dissolução que antecipa a série Silhuetas e a terra por vir: se o corpo ainda é humano, é porque ele tende a tornar-se paisagem.

Para distinguir a importância do elemento terra na produção de Ana Mendieta, apresento três de suas falas que, embora originalmente descontínuas, estão colocadas em sequência a fim de evidenciarem aspectos fundamentais entrelaçados em suas imagens.

“Minha arte é construída sobre a crença numa energia universal que percorre todas as coisas. Do inseto ao homem, do homem ao espectro, do espectro à planta, da planta à galáxia” (MENDIETA,In KUSPIT, 1996, p. 20. Tradução da autora).

“Converto-me em uma extensão da natureza e a natureza em uma extensão do meu corpo. Este ato obsessivo em afirmar meus laços com a terra é na realidade uma reativação de crenças primitivas [...]” (MENDIETA, In KUSPIT, 1996, p. 35. Tradução da autora).

“Não penso que se pode separar morte e vida. Toda minha obra gira em torno dessas coisas [...]” (MENDIETA, In KUSPIT, 1996, p.29. Tradução da autora).

Todas as ações, desde a imagem de Yagul à série Silhuetas, acontecem em convergência com a terra. Daí o “ato obsessivo” da artista em afirmar esses laços de união, já que a natureza é uma totalidade que inclui o corpo, e o corpo já nasce inserido na natureza – como um círculo que se confirma dentro do outro. Mesmo com dimensões e amplitudes distintas, ambos são compostos por matérias sensíveis, capazes de constante movimento e mutação, evocando a relação indiscernível entre as forças de vida e de morte.

Quando se coloca em questão os modos de produção do corpo e da natureza, a coincidência entre eles é sobreposta por um forte sentido de divergência – já que o ser humano possui, dentre suas qualidades


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naturais, a habilidade de produzir seus artefatos: formas, ferramentas, imagens; enquanto a natureza se autoproduz incessantemente, como o ser de todos os seres. Nesse cruzamento, em que a relação se modifica e se desidentifica, Ana Mendieta instaura uma linha de experimentação: aciona seu corpo (na imagem de Yagul), ou compõe um corpo de terra (nas Silhuetas) e conta com o abraço contínuo da natureza, como prolongamento potencial ou imediato de sua produção.

De um modo ou de outro, essas ações são encontros entre meios distintos que se encadeiam. A ação da artista não imita a natureza, mas coloca seu corpo como componente de uma mistura entre meios vivos. A ação da natureza em relação ao corpo e a ação do corpo em relação à natureza são processos que acontecem como uma provação mútua, ambos provam de seus próprios limites.

O corpo se coloca como ferramenta que se converte em matéria modificada, que, por sua vez, se torna corpo em relação ao meio e meio em composição com outros meios; seguem-se assim movimentos em devir que “não são fenômenos de imitação nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.10). Ana Mendieta cria seus desenhos de corpo por uma espécie de ritual híbrido, em que o que reina é, sobretudo, a matéria deste mundo, reunida por um “corpo-a-corpo de energias. A terra é este corpo-a-corpo, este centro intenso” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 130) em que tudo se encontra.

“Tudo é mistura de corpo, os corpos se penetram, se forçam, se envenenam se imiscuem, se retiram, se reforçam ou se destroem, como o fogo penetra no ferro e o torna vermelho, como o comedor devora sua presa, como o apaixonado se funde em sua amada” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 76).

O desejo de união com a terra está evidente na imagem de Yagul, no gesto vivo do corpo que se deita repousa a promessa de uma morte por vir. Na série Silhuetas, Ana Mendieta evidencia o mesmo desejo em estabelecer “laços com a terra”, mas aqui esse encontro acontece na intensidade material do próprio meio: o que move a imagem não é mais o corpo da artista que se coloca, mas um contorno feminino sem rosto, desenhado sobre os meios vivos.

As Silhuetas evocam a ausência de corpo, desenhada nas relações entre meios distintos que, por cruzamentos


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e contaminações, alcançam-se em uma intercessão de espaço e tempo, onde corpo e terra, juntos, passam a funcionar expressivamente. O corpo é agora um desenho de terra em constante dissolução. Os procedimentos e escolhas estéticas em tais composições dificultam os trabalhos críticos que tendem a abordar a produção de Ana Mendieta por análises muitas vezes encerradas na reflexão especulativa entre vida e obra. É talvez a impessoalidade, qualidade própria a essa série de imagens, que desqualifica interpretações cujo foco detém-se à vida pessoal da artista.

As Silhuetas são, sobretudo, corpos em deriva, híbridos pelo acúmulo impessoal de forças e sedimentos que os meios lhe acrescentam pouco a pouco; funcionam como membranas permeáveis que incluem os trânsitos intensivos de fragmentos que as atravessam, fazendo e desfazendo bordas. Nesse sentido, a terra pode ser também considerada um limite móvel nas ações de Ana Mendieta, pois mistura as fronteiras de distinção entre mulher e natureza.

II – Entremeios

A terra recebe a matéria e a modifica continuamente, oferecendo sua própria matéria em transformação. Esse processo evoca as dimensões cíclicas da deusa Terra, tida pelos antigos astecas como aquela que abriga o tempo em seu ritmo incessante e contínuo, estabelecendo-se no espaço como um lugar de passagem. Todos os elementos se unem à terra pisada dos tempos: ela é um “centro intenso”, entre meios vivos, que constitui, em sua extensão, o chão sobre o qual pisamos (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 130). Desenhamse inúmeros traçados geográficos: aterros, pântanos, margens, ilhas, barrancos, mangues, desertos, veredas, vales, campos, dunas, crateras, continentes, buracos, montes, abismos, desertos. Independente da proporção, da composição de elementos ou consistência, essas paisagens de terra estão em deriva, feitas por pequenas e infinitas partículas que nunca acabam de se unir ou de se separar completamente.

Na criação das Silhuetas, Ana Mendieta toma a terra como meio e matéria de seus desenhos. Seu corpo já não se apresenta mais como imagem, passa a funcionar como uma espécie de molde, gesto, matriz de onde são extraídos, ou duplicados, desenhos de um simples contorno na proporção humana. Nessas composições, a terra não é possuída como “um elemento entre os outros, ela reúne todos os elementos


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num mesmo abraço” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 113). A artista conta com essa multiplicidade de meios vivos misturados na terra, para extrair deles tanto uma dimensão material quanto uma qualidade receptiva. As silhuetas incorporam (e são também incorporadas) pela ação em deriva dos mesmos meios vivos de que elas são feitas. Assim, a paisagem intensifica continuamente a ação de Ana Mendieta, pois, por seu ritmo natural e constante, prolonga a extensão do desenho até que esse se dissolva completamente.

À beira do mar, a areia úmida e branca está escavada em baixo relevo, compondo um corpo cujo ventre largo é alongado por braços erguidos e arqueados em torno da cabeça. Dentro desse corpo, nada há de palpável. Apenas a umidade e o espaço curvo de sua pouca profundidade. O vento aproxima as ondas do mar. Um punhado de pigmento tinge o corpo escavado, como se os grãos, de um vermelho intenso, fossem ofertas do vento dadas ao ventre largo da silhueta. A água permeia o corpo por ondulações que invadem pouco a pouco o contorno, os movimentos desfazem os limites da forma, a cor branca da areia torna-se cinza, o vermelho se esvai. Pouco a pouco, penetram-se águas, pigmentos, sais, areias e ventos. O corpo absorve todo o composto e, recoberto de areia, se entrega ao mar.

As Silhuetas definem-se como série pela repetição do desenho de um corpo feminino e variam quanto ao modo de inscrição. No baixo relevo, o corpo se inscreve à medida que a matéria é retirada – a profundidade do solo é escavada ou uma parede rochosa atravessada. No alto relevo, a silhueta se compõe por acréscimo ou depósito de matéria – a superfície excede seu modo plano, a imagem transborda o solo, o corpo surge como uma erupção que ergue camada por camada. Seja inscrita em baixo ou em alto relevo, uma Silhueta se diferencia em si mesma pela variação dos estados corporais de deriva que a atravessam. Essa diferenciação ocorre pelo arranjo mais ou menos complexo de matérias, elementos e substâncias vindos da terra ou que passam por ela: areia, lama, barro, pedras, água, folhas, madeira, pigmentos, tecido, sangue, pólvora, açúcar, flores, velas, fogo.

As Silhuetas constituem acontecimentos particulares entre meios distintos: “não é apenas o vivo que passa constantemente de um meio ao outro, são os meios que passam um no outro, essencialmente comunicantes” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 117-118.). Quando compostas, entram imediatamente em processo de decomposição, na medida em que os meios as absorvem por todos os lados, e elas, por sua vez, absorvem


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continuamente os meios.

Cada meio é vibratório, isto é, um bloco de espaço tempo constituído pela repetição periódica do componente. Assim, o vivo tem um meio exterior que remete aos materiais, um meio interior que remete aos elementos componentes e substâncias compostas; um meio intermediário, que remete às membranas e limites; um meio anexado que remete às fontes de energia e às percepções-ações (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 117- 118.).

III – Aberturas

A composição de uma Silhueta acontece na consumição corporal da própria Silhueta, deixada no espaço onde foi criada para que ali cumpra o fluxo de sua transformação. Restam-nos os registros fotográficos das Silhuetas e as visibilidades entre os cortes de início, meio e fim. Escapam das imagens paradas o repouso que as antecede, os intervalos entre elas e os rastros que as continuam. Mesmo precisamente documentados, esses acontecimentos, em simultânea composição e dissolução, mantêm suas aberturas, vazios a serem ocupados por pensamentos e sensações.

Diante da imagem, nosso olhar fixo ao corte de um instante é ultrapassado por uma espécie de expansão transformada em atração física. Somos levados pela força de um corpo em dissolução que não podemos conter. O acontecimento da morte se mostra ao pulso constante do nosso corpo, evidentemente efêmero e frágil. A visão do inevitável se faz ainda como algo vivo e belo. Somos tomados pelo desejo de restituir o que está em vias de desaparição, de reordenar as forças do caos. Tendemos à insistente tentativa de identificação do corpo que ali esteve, à recomposição da marca que se decompõe. No entanto, a única pista que se estabelece é a sugestão da forma feminina, onde não há rosto, não há máscara ou identidade. Não há esperança. Essa incompletude é algo vivo e vertiginoso, por isso mesmo, fascinante.

Um corpo que se compõe por dissolução tende a um vazio que não podemos preencher, impedir ou controlar. Passamos então ao nosso próprio vazio, extremamente povoado por identidades fixas. Somos amparados por nossas linhas duras: origens, descendências, categorias corporais e incorporais, gêneros, funções sociais. Por isso, não encontrar a origem e os limites, não poder definir de onde veio e para onde


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BORDAS EM DERIVA JÚLIA GOMES PANADÉS

vai um corpo que vive, é algo tão inquietante.

Não nos tornamos testemunhas da ação, mas da nossa incapacidade diante de algo que se furta à classificação e ao controle. O trânsito destas sensações provoca uma abertura: é a força poética da imagem que nos atravessa. No deslocar dos sentidos, podemos descansar do excesso de formas prontas e ordenadas que nos ocupa o corpo.

Assim como o desenho de corpo tende à paisagem, e a paisagem tende à solidão plena da terra, nós tendemos a um vazio de corpo, que diante da imagem, se desenha em nós.

REFERÊNCIAS

CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Ângela Melin e Lúcia Melin. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34, 2004.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: 34, 2004.

_________; _________. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed 34, 2005.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Clair. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.

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BORDAS EM DERIVA

JÚLIA GOMES PANADÉS

_________. In: VISO, Olga. Ana Mendieta: earth body. Sculpture and Performance, 1972 – 1985. Org. Olga Viso. Alemanha: Publicado por Hirshhorn Museum and Sculpture Garden and Hatje Cantz, Dr. Cantz’sche Drukerei, Ostfildern – Ruit, 2004

PANADES, Julia. Desenho Corpo Porque Vivo. Dissertação de mestrado apresentada à pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes - UFMG, junho de 2007.

PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão e post scriptum. Trad. Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992

ROULET, Laura. In: Ana Mendieta: earth body. Sculpture and Performance, 1972 – 1985. Org. Olga Viso. Germany: Dr. Cantz’sche Drukerei, Ostfildern – Ruit, 2004.



DO ARTISTA-EDUCADOR E O MUNDO: PROCESSO DE MEDIAÇÃO, MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO DE DIÁLOGO NO ENCONTRO EDUCADOR OBRA DE ARTE, PÚBLICO

María Eugenia Salcedo Repolês


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DO ARTISTA-EDUCADOR E O MUNDO: PROCESSO DE MEDIAÇÃO, MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO

DE DIÁLOGO NO ENCONTRO EDUCADOR, OBRA DE ARTE, PÚBLICO. MARÍA EUGENIA SALCEDO REPOLÊS

Do artista-educador e o mundo: processo de mediação, memória e construção de diálogos no encontro educador, obra de arte, público María Eugenia Salcedo Repolês

Artista e educadora desde 1998, quando começou a desenvolver trabalhos com educação, mediação e arte em países como a Índia, Equador e Brasil. Desde então vem atuando no ensino formal como também no ensino não formal, com educação em museus. Destaca-se na sua formação e experiência profissional a estruturação e coordenação do programa Laboratório Inhotim, projeto que recebeu diversos prêmios. Atualmente é Gerente de Coordenação Pedagógica do Instituto Inhotim.

Palavras-chave Mediação, memória, diálogo, público, Arte Contemporânea.

Resumo Este artigo pretende analisar a mediação como momento de reconstrução da obra de arte através da narrativa proposta pelo mediador diante da obra de um artista e da interiorização de experiências por parte do público. Entre as questões levantadas, está a importância da memória no momento de relacionamento com arte a contemporânea e a necessidade de um olhar mais atento para os momentos que compõem o encontro entre público, obra, mediador.

Para tratar deste assunto tomo mão de alguns aspectos relativos aos processos dos agentes que transitam no universo da arte, artistas, mediadores e público. Alguns relatos pessoais exemplificam a importância pontuada no artigo a respeito de memória e interiorização de experiências. Finalmente, abordo a minha experiência como mediadora e arte educadora em Inhotim, Centro de Arte Contemporânea em Brumadinho - MG.

Keywords Mediation, memory, dialog, public, Contemporary Art.


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Abstract This text presents an analysis of the mediation process between the mediator, artwork, and the audience as a reconstruction of the work of art through the narrative proposed by the mediator before the work of an artist and the internalization of experiences by the audience. Memory plays an important role in this mediation with contemporary art, providing an acute look at the process. In order to address this issue, I take up some aspects of the process agents that relate in the field of art, artists, mediators, and the audience. Some of my own experiences exemplify the importance of memory and internalization of experiences pointed out in this text. Finally, I discuss my experience as a mediator and as art educator at the Center for Contemporary Art Inhotim in Brumadinho, Minas Gerais, Brazil.

Como ponto de partida, considero a ideia da obra de arte enquanto comunicação. O artista Vito Acconci, referência teórica e prática de arte performática dos anos 60, pontua no texto “Biografia de trabalhos (1969 – 81)”:

PONTO DE TROCA. Arte é vista literalmente como comunicação: a área de exposição é tratada como o lugar onde o agente [no caso o artista performático], em pessoa, encontra o espectador. O agente pode funcionar como um ponto parado para o qual os espectadores se aproximam... ou como parte do espaço onde os espectadores estão dentro... o agente inicia uma ação, a ação termina novamente no agente (ACCONCI, 1996, p.766).

O conceito de agente serve então para entender as relações estabelecidas no contato com arte contemporânea; contato esse que coloca espectador (público), mediador (público), obra de arte e inclusive espaço no mesmo patamar. Através dos relatos da minha experiência como mediadora, procuro evidenciar a necessidade de tornarmos sujeitos livres de juízos de valores que repetem expressões como: “arte contemporânea é hermética, fria, afastada”... “o público não tem bagagem suficiente para entender as obras”... e claro “ não há necessidade de mediação”. Há sim a necessidade de potencializar, cada vez mais e sejam através da arte, mediação ou cotidiano, as possíveis relações entre agentes.


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Do artista - educador e o mundo

“A verdadeira participação é aberta e nunca poderemos saber o que damos ao espectador-autor” (CLARK, 1998, p.84).

Imagine um pôr do sol

Imagine agora um prédio muito grande, uma antiga fábrica. Dentro, há um espaço que antes era ocupado pelas turbinas desta fábrica. Imagine as pessoas da cidade andando no clima frio de um inverno europeu. Ao entrar na sala, elas se deparam com um grande pôr do sol. Há uma luz amarelo-alaranjada que predomina no espaço. No fundo da sala, um sol grande e luminoso. Aos poucos as pessoas vão retirando as vestimentas quentes de inverno. Ao olhar para cima, elas percebem um grande espelho que reflete tudo; elas tentam se achar no reflexo. Há pequenos jatos de vapor ao longo desta sala. As pessoas sentem que estão verdadeiramente presenciando – e vivendo – um grande pôr do sol.

Essa vivência é provocada pela obra de Olafur Eliasson, The Weather Projeto que fez parte da Unilever Series da Tate Modern, em Londres em 2002. Não é raro que seja utilizada esta narrativa – o relato da experiência das pessoas que vivenciaram a obra – para mediar outras obras do mesmo artista junto a vários tipos de público. Com crianças, este momento transforma-se quase em uma contação de histórias – fantásticas e cheias de mistérios. Para adultos, torna-se uma oportunidade de maior análise e entendimento da experiência deles (na obra de arte) através da experiência do outro aliado à habilidade de imaginação. Escutar, para o público, é essencial, já para o mediador, narrar e estimular a imaginação é uma grande ferramenta de trabalho. Esquecemo-nos de que as imagens, o que é escrito em jornais e crônicas, o Jornal Nacional , por exemplo, podem fazer muito mais do que “nos vender uma ideia ou produto”, elas mexem com nosso imaginário, com vontades e ainda com a nossa capacidade de criticamente absorver tais impulsos e ainda extrair deles não somente o seu “slogan publicitário”, mas também uma certa beleza e um certo entendimento da organização estética proposta, para assim utilizar na própria experiência de vida. Não há necessidade de tantas imagens e notícias se não para absorver e torná-las importantes em nossa vida. Além de discutir quais tipos de imagens nos atingem, a sua qualidade e mensagem, propor uma


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discussão com relação ao uso da capacidade de criação de imagens e imaginação é tomar para si (sujeito receptor) o poder de entendimento do mundo. Como educadora de museu, penso que isso talvez seja o que aspiramos, quando o mediador descobre que tem em sua mão, de um lado, o público e, do outro, a obra.

“...espero sempre que venha alguém para dar sentido a essa formulação. E quanto mais diversas forem as vivências, mais aberta é a proposição e então é mais importante” (CLARK, 1998, p.85).

Na experiência como mediadora, tenho vivenciado a importância de tornar íntima e própria a experiência estética adquirida com a vivência de uma obra de arte. Penso que, talvez, ciente dessa necessidade, não poderia datar o início da minha postura de mediadora desde quando iniciei o trabalho de mediação em um grande centro de arte contemporânea, mas sim a partir do instante em que comecei a ter contato com o mundo e vontades próprias. Sinto que ser mediadora ultrapassa os limites de ser, enquanto sujeito, executando uma função – para ser sempre e em qualquer situação; isso inclusive com grande intensidade no entendimento do fazer como artista plástica. Ambiental é para mim a reunião indivisível de todas as modalidades em posse do artista ao criar – as já conhecidas: cor, palavra, luz, ação, construção etc., e as que a cada momento surgem na ânsia inventiva do mesmo ou do próprio participador ao tomar contato com a obra (OITICICA, 1986, p.78).

Ao pensar naquilo que está sendo potencializado quando vivenciamos uma obra de arte, devemos considerar todos os sentidos, todas as formas de apreender o objeto e a experiência. Acontece aí uma experiência sinestésica, completa e complexa. Uma construção gradual, repentina, sensorial e racional. O convite de ser observadores/espectadores/ participantes é feito. Isso é evidente quando pensamos na bagagem que a arte carrega, especialmente depois do modernismo. Pois é no modernismo que o dentro e o fora são diluídos, uma vez que os artistas exploram o ato de transitar (Bonjour Mr. Coubert!). O corpo torna-se cotidiano, este é a evidência do cotidiano e consigo carrega questões sociais, culturais, políticas e estéticas, além de um grande potencial para a abstração. Abstrair o corpo o torna evidente na obra, mas o corpo que observa é desconstruído. No primeiro momento, vemos o cubo branco que a galeria tornou-se como um lugar de neutralização até do corpo do público. O qual passa a ser observador – um par de olhos


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no espaço expositivo, como mencionado por Brian O’Doherty no livro No interior do cubo branco. Mesmo com o mito do cubo branco, a barreira que separa o cotidiano – a experiência sensorial diária de apreensão do mundo – do espaço da arte é quebrada e esta aproximação reafirmada ao longo da história recente da arte.

Consideremos que ao ver, estamos vivendo. Ao cheirar, estamos aprendendo. Ao tocar, estamos lembrando. Depois de entendermos as implicações disso, faz-se difícil não pensar no aspecto ambiental (no significado que Hélio Oiticica dá a este conceito) de uma pintura de Turner, por exemplo. Ou ainda no caráter performático de todos os outros pintores que já pintaram. Como não imaginar o ato de pintar de um artista, depois de ter evidenciado os atos de Jackson Pollock? A experiência de pintar de Pollock contribuiu com a interiorização, em escala do inconsciente coletivo, dessa vivência proporcionada pelo ato de pintar. Evidenciamos agora o corpo que pinta, o olho que vê, a mente que elabora, o braço que pesa com cada pincelada, o cheiro da tinta.

Uma pintura é um campo expandido feito de camadas de experiências onde o público transita entre as camadas materiais e imateriais repletas de significado. E caso consiga ressurgir do mergulho para dentro da mesma, ainda há a tela em branco; primeira superfície que descansa embaixo desta experiência toda. Novamente a avalanche da construção contínua da arte ao longo da sua história vem à mente. Penso Malevich, Mondrian, Klein, Stella, Fontana, Anastasi, Rauschenberg. As questões levantadas por esses e tantos outros artistas impregnam as telas esticadas, emolduradas, rasgadas, pregadas na parede ou simplesmente apoiadas na mesma.

Ao enfrentar a tela branca, enfrento-me.

Quem é o sujeito dessa afirmação? Seja artista, mediador ou público, deve-se aceitar o desafio.

12h35. Por agora, 22 pessoas escutando. Um homem idoso se junta [ao grupo que conversa com Beuys]: ‘Podemos falar da Documenta [5 em Kassel, Alemanha] aqui e não somente de política?’ Beuys: ‘Política


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e a criatividade de todos são abordadas aqui.’ Quando o homem fala do fracasso da exposição porque ninguém está diretamente interessado, Beuys afirma: ‘É também o fracasso de parte dos visitantes porque eles não são mais capazes de se entregar’ (BEUYS e SCHWARZE, 1996, p.121). Pensando novamente na mediação, o que definiríamos como um bom visitante? Um bom observador? O que nos faz um bom público?

Aprendemos com a experiência do outro e esta traz à tona questões ao nível do pensamento, raciocínio, linguagem, sentimentos e emoções. Na prática, o entendimento dessas questões possibilita a noção de interdisciplinaridade no ensino, por exemplo. Entender o mundo por várias perspectivas, onde essas visões trabalham em conjunto e em comitente, torna a experiência completa. A educação formal tem adotado essas ideias, através das teorias de Fernando Hernandez para propor o entendimento de projetos gerais que são absorvidos e compartilhados entre as disciplinas tradicionais. Um exemplo interessante desse tipo de trabalho é o Sistema Escolar de Reggio Emilia. No livro Um método para o ensino fundamental (2001),de Celso Antunes, há relatos das experiências em educação no sistema de projetos adotados no nordeste da Itália.

Já culturalmente, é mais fácil entender uma cultura complexidade e nuanças pela comida, vestimenta, língua, música, enfim mais pelo conjunto dessas características do que por uma das partes isoladamente. Basta resgatar na memória algum evento marcante da infância – quando estava-se a aprender a própria cultura.

Lembro-me de festas em casa. O fato que eu como criança não poderia participar de tudo, havia coisas que não me cabiam – ou talvez que eu não caberia ainda nelas. Tal como os vestidos longos e brilhantes da minha mãe, ou ainda as belas joias que eram retiradas do cofre escondido em dias como este. Ainda cedo, lembro-me das flores que adornavam as mesas, os cantos mais inesperados e até os cômodos que só eram utilizados pelos convidados; a família tinha outra rotina. Duas das sensações que evoco para relembrar essas noites de celebrações são: o edredom preto com grandes flores de material acetinado que cobre a cama dos meus pais para dias de celebrações – festas, natal, aniversários. Minha noção de “chique” e “luxo” vem da sensação de suavidade, sedução, arrepio na pele e acolhimento que o edredom causava


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em contato com o meu corpo de criança quando me escapulia da festa para entrar debaixo do mesmo. A riqueza das sensações proporcionadas era concreta demais para ser esquecida. A segunda refere-se à sinestesia de sensações proporcionadas pelo sono – acúmulo de cansaço e emoção – pelo experimentar um pouquinho do vinho do meu pai – nesses dias pode – pela guitarra e voz dos compadres10cantando serenatas e ruiseñores bêbados, como bons chuyas quiteños. E todos cantam juntos.

Penso ainda em outro entendimento cultural. Já na escola, já em outra cultura. Aqui celebrava-se o Halloween (31 de outubro), logo depois El dia de los difuntos (2 de novembro). Tenho ainda a noção que a transição entre os meses de outubro e novembro é obscura, de dias nublados, chuvisco frio e com uma neblina leve que creio ter inventado.

Lembro bem do momento exato quando tive a compreensão que tudo conspirava para o meu entendimento da implicação cultural destas comemorações. Menciono aqui somente quando olhei para o céu, esse carregado de nuvens cinzas, e furiosas, cheias de relâmpagos, como nas gravuras de Halloween penduradas na sala de aula. O vento, frio e com fortes redemoinhos, soprou, gritando, e uma chuva pesada caiu. De uma hora para outra. Ali, tive certeza de estar vivenciando o que levou à criação das duas comemorações mencionadas. Uma tendendo ao medo de tais fenômenos, a outra evidenciando o respeito inerente a fenômenos maiores do que o ser humano e sua capacidade de entendimento. Duas culturas diferentes, uma experiência interiorizada para torná-la conhecimento.

A memória é um elemento essencial para o trabalho de educação. Ela permite que bagagens diferentes (entre alunos, professores, comunidade) sejam trocadas e novos conhecimentos venham à tona. Por exemplo, na mediação entre o público e uma obra de arte contemporânea busca-se incentivar que a pessoa procure alguma característica do objeto, ou alguma lembrança própria para estabelecer um diálogo evidenciando uma possível porta de entrada para a vivência, o encontro entre objeto11 e público. Esse pensamento é uma das bases para a experiência de mediação que permeia a minha experiência com público. A seguir acrescento parte do pensamento que desenvolvi para um artigo escrito em 2007 sobre arte educação, a 10 As palavras em itálico referem-se a expressões típicas da cultura equatoriana. Optei por manter as expressões originais pela dificuldade em achar uma tradução que seja fiel ao conceito cultural que está sendo destacado.

11

No caso das obras de arte que tenho em mente, não necessariamente poderiam ser qualificadas como objetos, mas para maior entendimento do conceito geral, optei por simplificar o termo e considerar o objeto de arte.


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partir de minha experiência com mediação em Inhotim, Brumadinho. Procuro, através dos seguintes pontos, destacar momentos importantes para a vivência de arte na contemporaneidade. Penso no potencial dessas ideias, das estratégias de mediação a partir delas e da aplicação disso no cotidiano. Para o entendimento do cotidiano e para estabelecer novas relações com o mesmo.

Identificar o ponto de partida, estabelecer o início da conversa

Poderíamos definir como o início de uma visita o momento em que o visitante decide, de forma espontânea, participar da atividade. A curiosidade em saber exatamente o que é essa visita é o primeiro estímulo para aquilo que será o processo de mediação. Para a equipe educativa, saber que o visitante vem pela curiosidade ajuda a não impor expectativas, permitindo que o mesmo sinta que acrescentou, com a sua presença, aos pensamentos e reflexões estabelecidos na mediação.

A consciência, por parte do arte-educador, de que a visita tem início por vontade do próprio visitante o coloca na posição de participante e co-autor. Assumir que a visita acontece a partir dessa troca permite reconhecer que o educador não é fonte única de leituras e explicações. Com isso, estabelece-se o diálogo, como forte elemento desse encontro.

Providenciar o tempo para observar, permitir o tempo para absorver

Uma vez que a visita teve início e que a conversa entre visitante e arte- educador foi estabelecida, o silêncio para observação e o controle sobre a ansiedade de começar o trabalho de mediação tornam-se desafios. Conviver e criar uma intimidade com a obra de arte é, afinal, objetivo significativo da mediação em arte contemporânea.

Um dos momentos cruciais da relação com a arte é o tempo que temos e em que nos permitimos parar, olhar e ver a obra em questão. Esse processo completa-se com o momento de absorver: quando então nos modificamos, saindo da posição de observadores para a de sujeitos ativos (pensadores) com respeito à obra. Esses momentos de observar e fruir acontecem em ritmos diferentes. Algumas pessoas


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rapidamente percebem as questões suscitadas pelo trabalho e estabelecem imediatamente as relações propostas pelo mediador, passando facilmente para o segundo momento: estabelecer relações próprias. Essa separação entre os momentos serve como sistemática do esqueleto conceitual proposto e não como forma de classificar o público ou ainda medir a melhor forma de relacionar-se com obras de arte.

Estimular a intimidade com as obras de arte

Um momento relevante no processo de mediação é quando o visitante ou o grupo alcança autonomia. Encerra-se o ciclo da mediação conduzido pelo arte-educador e inicia-se o momento de mediação conduzido pela troca entre educador, obra e visitante. O primeiro passa a fazer perguntas instigadoras, permitindo uma intimidade com o objeto artístico. Passa, assim, para a interpretação da obra de arte, em detrimento da simples absorção de informações. Nesse momento, a obra ocupa um espaço específico que o visitante reconhece e respeita. Conseguir para o outro esta autonomia deve ser um dos principais objetivos do mediador, o que permite ao visitante continuar a utilizar aquilo que foi estabelecido na mediação como forma de relacionar-se com as demais obras do acervo e com outras experiências do cotidiano.

O visitante torna-se capaz de estabelecer vínculos autônomos com as obras de arte e passa a ocupar um outro lugar, mais afetivo e simbólico. Despertada a sensibilidade, a atitude do visitante modifica- se e reconfigura-se, portanto, sua presença diante da obra.

“...o agente inicia uma ação, a ação termina novamente no agente” (ACCONCI, 1996, p.766).

As questões levantadas ao longo deste artigo – superfície de memória e relato – pretendem, como mencionado anteriormente, fortalecer a necessidade de mediadores, artistas ou público atuando no sentido de formar sujeitos abertos e prontos para aceitar o convite feito pelo agente mencionado na citação do artista Vito Acconci. Interessante definir o agente em questão: a situação artista, obra, espaço, mediador e público torna-se um campo aberto para as variações possíveis no encontro entre todos e cada um desses elementos essenciais da arte.


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REFERÊNCIAS

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BEUYS, Joseph e SCHWARZE, Dick in STILES, Kristine; SELZ, Peter. Theories and documents of contemporary art: a sourcebook of artists’ writings. Los Angeles: University of California Press, 1996.

BISHOP, Claire. Participation: documents of contemporary art series. Londres: Whitechapel Ventures Limited, 2006.

LYGIA, Clark; OITICICA, Hélio. Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-74/org. Luciano Figueiredo; 2ed, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.

O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.



ANDU:ENTRE A SALA DE AULA E O AT E L I E R AMANDA MOREIRA LOPES


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ANDU: ENTRE A SALA DE AULA E O ATELIER AMANDA MOREIRA LOPES

Andu: entre a sala de aula e o atelier Amanda Moreira Lopes

Especialista em Ensino e Pesquisa no Campo da Arte e da Cultura pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG. Artista Visual e Arte-Educadora, graduada pela mesma instituição. Professora e Assessora de Arte no Colégio Loyola de Belo Horizonte. Curadora das galerias Passo das Artes e Sala Portinari, situadas no Colégio Loyola.

Palavras-chave Performance, Artes Visuais, Arte Educação,formação.

Resumo Este estudo descreve um processo de criação em Artes Visuais originário da atuação do artista visual como arte educador. Demonstra, a partir de uma experiência pessoal em performance, como o atelier e a sala de aula podem se tornar ambientes fortemente interligados. Evidencia a dificuldade de delimitação da experiência, proveniente desses espaços, simultaneamente. Sugere a reflexão sobre o que acontece entre esses extremos, em um lugar incerto, onde as ideias ainda não definiram a direção da caminhada.

Keywords Performance, Visual Arts, Art Education, formation.

Abstract This study describes a process of creation in visual arts derived from the work of the visual artist as an art educator. Based on a personal experience in performance, this research shows how the spaces of the art studio and the classroom can become strongly interconnected. It also highlights the difficulty to delineate the experience coming from these areas simultaneously and proposes a discussion on what happens between these different spaces, in an uncertain place, where ideas have not yet defined the direction that should be taken.


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ANDU: ENTRE A SALA DE AULA E O ATELIER AMANDA MOREIRA LOPES

A professora de arte (...) precisa ser uma pesquisadora constante, “de plantão”. (...) O ideal é que ela esteja em atividade enquanto artista, mesmo que não tenha inserção destacada no mercado de arte. A pesquisa do fazer artístico se faz no próprio fazer e na reflexão sobre ele; a do ensinar arte se faz no fazer/aprender/ensinar e na sua reflexão. Assim, atuar enquanto artista é condição importante na pesquisa em ensino de arte, assim como atuar enquanto “ensinador(a)” (PIMENTEL, In: FRANCA; NAZÁRIO,2006, p. 311).

As palavras de Lúcia Pimentel inauguram o presente texto para pensarmos o arte educador, conforme o próprio nome diz, como um profissional que faz a comunicação entre a arte e a educação, conciliando as duas áreas. O processo de criação do artista alimenta sua prática em sala de aula. Contudo, o exercício da docência também pode influenciar o trabalho do artista.

Para exemplificar esse raciocínio, faz-se necessário um breve relato de uma vivência pessoal durante o curso de pós-graduação lato sensu “Ensino e Pesquisa no Campo da Arte e da Cultura”, da Escola Guignard/ UEMG, em 2006. No decorrer da Oficina de Performance, inserida no Módulo “Oficinas Expressivas”, o professor pediu que desenvolvêssemos uma apresentação a partir do tema “Memória Cultural”. Oportunidade inédita para mim, que atuo na área da pintura, da escultura e da instalação, fazendo uso constante do desenho, da fotografia e das mídias digitais como ferramentas de construção dos trabalhos, mas nunca utilizando a performance. Apesar da dificuldade imposta pelo desconhecido, uma necessidade interior impulsionava-me a enfrentar esse desafio como sendo o momento adequado para tentar preencher uma lacuna em minha formação de artista. Como a performance nasceria, ainda era um mistério. E foi surpreendente descobrir que o processo de planejamento de uma aula daria origem a ela.

Aconteceu de forma inesperada e espontânea. Sobre a pia da cozinha da minha casa, havia uma lata com aproximadamente 1 kg de feijão Andu, proveniente do norte de Minas Gerais. A plasticidade do feijão conduziu-me a esboçar uma aula de sensibilização para os alunos do Maternal III da Escola Theodor Herzl, situada em Belo Horizonte, Minas Gerais. Talvez a ideia tenha ligação com as atividades de exploração do ambiente escolar que haviam sido desenvolvidas recentemente com as turmas da Educação Infantil. O


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pátio da escola costuma ficar coberto de pequenas frutinhas roxas redondinhas que chamam a atenção das crianças, habituadas a apanhá-las ou esmagá- las com o tênis. Como as frutinhas mancham o chão e a roupa, são diariamente varridas e jogadas no lixo. Nas aulas de artes, porém, elas viraram pigmento natural após terem sido catadas uma a uma pelos alunos, que fizeram trabalhos incríveis, explorando as tonalidades e o caráter matérico, a espessura.

O feijão Andu também é redondo, porém rígido, com propriedades que poderiam dar continuidade ao tema “Tato”, que vinha sendo investigado nas últimas aulas do Maternal III. Nessas atividades, os alunos apalpavam, sem olhar, objetos de diferentes texturas, tamanhos, formatos e temperaturas e comentavam suas sensações, tentando adivinhar o que seriam. A sequência a essa temática enfatizaria o tato com os pés descalços, que ainda não havia sido abordado, e agregaria o tato manual logo após, misturando-os. Então, para estudar esta proposta de aula, assentei no chão, descalça, e despejei o feijão à minha frente, iniciando movimentos com os pés e com as mãos, sentindo os grãos de várias maneiras. Espalhar, ajuntar, organizar, recolher, colocar, retirar, pegar, soltar eram ações que se revezavam, repletas de silêncio e concentração. Essa alternância de movimentos trouxe- me à lembrança o ato de catar feijão que fez parte de minha infância em Sabará, Minas Gerais. Em meio a esses pensamentos, enquanto tocava os grãos com as mãos, surgiu a ideia de fazer uma performance baseada na memória de catar feijão.

FIGURA 1: Detalhe da performance “Andu”

Como uma performance é uma ação que envolve tempo, espaço, conceito e estado de espírito, preferi não


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treiná-la para manter a naturalidade dos gestos no desenrolar da apresentação. Mesmo porque, a cada execução, a ação sairia diferente. Segundo Glusberg:

é impossível uma repetição do tipo cópia-carbono de uma outra performance; em primeiro lugar, porque as condições psicológicas vinculadas com as representações subjetivas do performer, sempre variam, não são imutáveis; em segundo lugar, porque o tempo real que separa uma performance de outras vai incidir sobre sua produção concreta, como que determinando o tempo psicológico da execução, o tempo da colocação em cena(GLUSBERG, 1987. p. 68).

A ideia central era expandir um pequeno monte de feijão em um grande círculo enquanto catava as impurezas, descontextualizando e ressignificando o ato de catar feijão (ver fig. 1 e 2). A minúcia dos movimentos corporais em absoluto silêncio durou cerca de 35 minutos. À medida que as impurezas eram colocadas nas bordas de um círculo imaginário externo aos grãos, estes eram empurrados aos poucos até reencontrarem o material dispensado. Nova separação era feita, afastando as impurezas para um círculo imaginário ainda mais amplo, alternando os sentidos horário e anti-horário, movimentos do arrastar e do caminhar para dentro e para fora do círculo. A lentidão constante e quase alienante causou, na maioria dos espectadores, inquietação interior e forte angústia devido à desaceleração do tempo cronológico rotineiro. Outros manifestaram sentimentos de nostalgia de uma época que não volta mais, tomada pela praticidade da vida atual.

FIGURA 2: Detalhe da performance “Andu”.


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ANDU: ENTRE A SALA DE AULA E O ATELIER AMANDA MOREIRA LOPES

Ao final da performance, que também recebeu o nome de “Andu”, fui surpreendida pela intervenção de algumas pessoas. Nesse instante, afastei-me do círculo desenhado no chão e posicionei-me como espectadora, olhando a atuação delas. Foi algo inesperado, gratificante e provocador. Sair da posição de artista e abandonar a autoria para construir com o outro um significado foi um movimento semelhante ao que efetuo como educadora, trabalhando junto com o aluno, escutando-o e permitindo sua atuação espontânea nas atividades.

No dia seguinte ao da apresentação, veio a aula planejada para o Maternal III. Os nove alunos da turma, de faixa etária entre 3 e 4 anos, ficaram deitados no chão, em círculo, com os pés descalços voltados para o centro. De olhos fechados, sentiram o feijão sendo despejado por mim sobre seus pés e acharam gostosa a sensação. Deslizaram os pés levemente sobre os grãos (ver fig. 3). Ao olharem, pensaram que era lentilha devido ao formato arredondado. De pé, pisaram sobre grãos isolados e concluíram que doía, em oposição ao conjunto. Em seguida, passaram as mãos nas bolinhas e sentiram-nas na palma e por entre os dedos de diversas formas. Os alunos preocuparam-se em ajuntar para si o maior número possível de feijões para experimentar em particular (ver fig. 4 e 5). Afastavam e ajuntavam os grãos com as mãos e os pés. À medida que descobriam movimentos novos, pediam a atenção da turma para mostrarem o que conseguiam fazer.

FIGURA 3: Aula de sensibilização com feijão Andu para alunos do Maternal III.


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ANDU: ENTRE A SALA DE AULA E O ATELIER AMANDA MOREIRA LOPES

Um dos alunos se chama João e adora contar histórias. Perguntei se ele conhecia a história “João e o Pé de Feijão”. Ele respondeu que sim e contou-a para os colegas. Os alunos ficaram entusiasmados porque era a primeira vez que a escutavam.

FIGURA 4: Aula de sensibilização com feijão Andu para alunos do Maternal III.

Ao final da aula, o chão da sala estava cheio de feijões espalhados, exatamente como costuma ficar o pátio da escola com as frutinhas roxas. E os alunos, envolvidos na atividade, não queriam catar e guardar. Então, agachada no meio deles, comecei a pegar os grãos e inventar uma história de uma princesa que catava feijões de ouro para colocar em seu colar e ficar ainda mais rica e bonita. Com o tempo, o colar ficou tão grande e pesado que arrebentou de seu pescoço e os feijões se espalharam novamente no chão. É claro que contei com entusiasmo, entonações variadas de voz e mais detalhes. Escutando e fazendo perguntas, os alunos cataram tudo como a princesa. Alguns até utilizaram seus tênis e meias como recipientes. Arrumar a sala tornou-se diversão.


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É curioso descobrir que um planejamento de aula pode gerar um trabalho artístico – performance. O momento em que isso acontece é identificável, mas é difícil precisar quando o pensamento não faz parte mais da preparação de aula e torna-se construção de um trabalho de arte. Da mesma maneira, após a finalização deste trabalho, não se sabe ao certo o que restou dele a ponto de influenciar a aula. Algumas semelhanças podem ser identificadas, como a atenção dos alunos ao catar os grãos e a minha concentração durante o mesmo ato na performance; a figura do círculo de feijões que também forma o colar da princesa; e ainda a ideia de eterno retorno, que conduz a performance e a história inventada.

As experiências – performance e aula – se completaram. Foi necessário planejar a aula para idealizar a performance, que acabou enriquecendo a mesma aula que a originou.

FIGURA 5: Aula de sensibilização com feijão Andu para alunos do Maternal III.

Percebe-se também, nas duas situações, o surgimento de novos elementos provenientes da reação e da manifestação do participante: sua postura. A abertura à interferência do outro trouxe a possibilidade de


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ANDU: ENTRE A SALA DE AULA E O ATELIER AMANDA MOREIRA LOPES

troca e aprendizado mútuo, contribuindo com minha formação de artista e de arte-educadora.

A prática constante da arte e suas linguagens abastece o olhar do profissional da educação para sustentar e renovar a sua atuação. Mas o inverso ou a dialética também ocorrem.

A vivência descrita deixa a mensagem de que é possível a docência contribuir com o processo de criação do artista. Algo surpreendente pode acontecer entre a sala de aula e o atelier, em um lugar incerto de confluência e separação de ideias prontas para tomar forma. Só depende do olhar de cada um.

Um alerta

Uma importante questão a ressaltar é que o material utilizado em aulas para crianças deve ser pensado conforme a idade a que se destinam, bem como as características específicas do público alvo e o número de participantes. Objetos muito pequenos podem oferecer riscos às crianças, sendo introduzidos na boca, no nariz ou no ouvido. No caso das nove crianças envolvidas na aula dada, tratava-se de um grupo pequeno, de fácil supervisão, e principalmente que estava habituado com a manipulação de bolinhas de maneira segura, sem demonstrar curiosidade de experimentação perigosa. Eram alunos suficientemente preparados para a atividade. Mesmo em situações como essa, a atenção deve ser constante.

REFERÊNCIAS

ARRIAGA, Imanol Aguirre. Contenidos y Enfoques Metodologicos de la Educacion Artistica. In: ACOFARTES – Congresso de Formação Artística e Cultural para a Região da América Latina e Caribe – Metas da Educação Artística Intercultural de Qualidade na América Latina. Colômbia, 2007.

BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez, 2002.

GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 1987.


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JOSSO, Marie-Christine. Experiências de Vida e Formação. São Paulo: Cortez, 2004.

MELIM, Regina. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

PIMENTEL, Lúcia Gouvêa. O Ensino de Arte e sua Pesquisa: Possibilidades e Desafios. In: FRANCA, Patrícia; NAZÁRIO, Luiz (org.). Concepções contemporâneas da arte. Belo Horizonte: UFMG, 2006a. p. 311.

________. Formação de Professor@ de Arte: novos caminhos, muitas possibilidades, imensa responsabilidade. In: Trajetória e Políticas para o Ensino das Artes no Brasil: Anais do XV Confaeb. Brasília: MEC/UNESCO, 2006b. p. 162-173.

WARSCHAUER, Cecília. A Roda e o Registro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.


CHEGOU A TURMA DO FUNIL MILTON MACHADO


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CHEGOU A TURMA DO FUNIL MILTON MACHADO

Chegou a Turma do Funil Milton Machado

Artista, escritor e pesquisador, com diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior, diversos textos publicados em meios impressos e on line, e comunicações em palestras e conferências. Arquiteto pela FAU-UFRJ (1970), Mestre em Planejamento Urbano pelo IPPUR-UFRJ (1985) e PhD em Artes Visuais pelo Goldsmiths College University of London (2000). Professor Associado do Departamento de História e Teoria da Arte e do PPGAV- Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes EBA/UFRJ.

Palavras-chave Idioma, fala e escrita. Acentos e assentos. Arte, latino-americana?

Resumo Este texto, aqui com tradução do autor, foi apresentado pela primeira vez em forma de palestra, como contribuição ao seminário Neighbouring Shores, no ICA-Institute of Contemporary Art, Londres, em janeiro de 1999, com o título, original em inglês, The Funnel-Gang Has Arrived. Recorrendo a uma tática de afunilamentos progressivos e a uma sequência estratégica de soluços incontroláveis, a palestra procurava esclarecer, diante de uma audiência multinacional, na qual todos – inclusive ingleses – eram estrangeiros, que delimitações geográficas e noções de nacionalidade são insuficientes como definições de arte, tendendo, no limite, à recusa da circunscrição “arte latino-americana” como uma de suas categorias.

Keywords Language, speech and writing, accents and settings, Latin American art?

Abstract This text was first presented in the form of a lecture to the seminar Neighbouring Shores, at the ICA – Institute of Contemporary Art, London, in January 1999. Using a tactic of progressive funneling and a sequence of strategic uncontrollable hiccups, the seminar sought to clarify before an international audience that geographical boundaries and notions of nationality are insufficient to define art, tending, in the edge, to the refusal of the circumscription “Latin American art” as one of art’s categories.


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“Minha língua é minha pátria” são palavras do poeta português Fernando Pessoa. O verso vem repetido em uma canção do compositor brasileiro Caetano Veloso. Se há alguma lógica na poesia e na música, e se um homem ou uma mulher fala mais de uma língua, todas as línguas que ele ou ela fala são o mesmo e o próprio país.

Take me to the river...

Em 1994, passei um mês em San Sebastián e Bilbao, onde pude aprender um pouco sobre o movimento, projeto, ou desejo de independência do País Basco. Parte do País Basco fica no norte da Espanha, parte no sul da França, e o que essas regiões têm em comum é o idioma basco. Fiquei surpreso ao saber que menos de trinta por cento dos bascos realmente falam o idioma basco. As origens do idioma basco são desconhecidas. O complexo idioma basco tem mais de vinte declinações. No entanto, os bascos não declinam de suas origens nem daquela que acreditam ser a sua destinação.

Eu estava trabalhando em San Sebastián. O trabalho que fiz – um ensaio fotográfico – é sobre os bascos e o idioma basco. Sinalizações de rua, sinalizações de localização, sinalizações de transportes coletivos, todas as sinalizações urbanas em San Sebastián são escritas nos idiomas espanhol e basco. Durante a semana em que os bascos comemoravam o centenário da Ikurriña – o nome basco da bandeira basca de um País Basco que alguns querem independente da Espanha – a organização ETA cortou pela metade, com tesourões, todos os painéis de sinalização, de modo que por algum tempo os painéis não mais indicavam os caminhos para se chegar a San Sebastián. Indicavam apenas os caminhos para se chegar a Donostia, que é o nome basco da cidade basca de San Sebastián.

Em San Sebastián trabalhei com coincidências. Uma primeira coincidência era de caráter cartográfico: o mapa do País Basco e o mapa do Brasil são incrivelmente parecidos. Reproduzi os dois mapas na capa de meu trabalho. Alguém que não seja basco ou brasileiro poderá facilmente confundi-los.


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Intitulei o trabalho LARRIALDIAK, em basco, URGENCIAS, em espanhol, URGÊNCIAS, em português. O trabalho era também sobre o idioma português falado no Brasil. Uma segunda coincidência era a de eu estar em uma cidade chamada San Sebastián e de eu ser de uma cidade chamada São Sebastião. O nome completo de minha cidade é São Sebastião do Rio de Janeiro. A cidade foi chamada Rio de Janeiro em 1502 por seus descobridores portugueses, que confundiram a baía com um rio.

Tirei quarenta e nove fotografias de lugares onde pude encontrar sinalizações escritas em basco, de nomes de ruas a cardápios de frutos do mar, de anúncios de teatro a cartazes políticos. Retirei – com tesourinhas – uma letra de cada uma dessas fotografias com palavras escritas em basco e com elas escrevi as palavras brasileiras “minha língua é minha pátria” e “São Sebastião do Rio de Janeiro”.

Escrevi minha língua, escrevi meu país e escrevi minha cidade, em basco.

Troca de cartas com um troca-letras

Certa vez precisei de uma carta do college inglês onde fiz minha pesquisa de doutorado para meus


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patrocinadores brasileiros. O cara do escritório presenteou-me com uma carta que havia escrito, em espanhol.

Perguntei-lhe: “Por que esta carta está escrita em espanhol?” O cara do escritório: “Como ando estudando espanhol, achei que esta carta viria a calhar, you know, como um treino”. Eu disse: “Well, you know, I don’t know. Não é certo que as pessoas que lerão esta carta possam ler espanhol tão bem quanto você escreve tão bem espanhol”. O cara do escritório: “Como assim?” Eu disse: “A língua brasileira falada no Brasil é o português”. O cara do escritório: “Como assim?” Eu disse: “As razões não são geográficas, são históricas”. O cara do escritório ficou histérico. O cara do escritório provavelmente não assiste regularmente na TV o programa de Jeremy Plaxman, University Challenge”: “Qual é a língua falada no Brasil?” BBZZZZZZ, os estudantes prontamente levam as mãos à campainha: “Spanish”. Essa pergunta sempre funciona como eficaz armadilha.

Arte que me faz gozar12

Para brasileiros e para aqueles e aquelas que falam português, arte é mulher: “A arte”. Para aqueles e aquelas que falam espanhol, arte é homem: “El arte”. Para aqueles e aquelas que falam inglês, arte não tem gênero. Isso não significa que aqueles e aquelas que falam português e aqueles e aquelas que falam espanhol façam arte que é diferente, como homem é diferente de mulher. Fazem arte de um modo que é igual, como homem é igual a mulher. Arte em inglês não tem gênero, mas isso não significa que arte feita por ingleses e inglesas seja neutra, como homem e mulher não são neutros.

To be read with a strong Brazilian accent

12

“Art that makes me come”, no original: quando lido em inglês, mas com forte sotaque brasileiro – e com a devida sensualidade – “me come” pode soar como a expressão brasileira “me come, faz amor comigo”.


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Brazilian artists living in London make art in the same language the English make art, but perhaps with a different accent. It is curious that only when people realize that they are speaking the same language do they also realize that they speak with different accents.

If art is my country, art is your country where the language spoken is art. If art is your country, art is my country where the language spoken is art.

Para ser lido com forte sotaque inglês

Artistas ingleses morando no Brasil fazem arte na mesma língua em que brasileiros fazem arte, mas talvez com um sotaque diferente. É curioso que as pessoas só percebam que estão falando com sotaques diferentes quando percebem que estão falando a mesma língua.

Se arte é o meu país, arte é o seu país onde a língua falada é arte. Se arte é seu país, arte é o meu país onde a língua falada é arte.

Trocando um acento pelo outro

“Accent” em inglês traduz “acento”. A palavra “acento”, quando falada, soa como duas coisas diferentes: “acento”, escrita com “c”, traduz “accent”, o vocábulo inglês para pronúncia, sotaque. A palavra homófona “assento”, escrita com “ss”, traduz o inglês “seat”, que pode referir uma cadeira, uma poltrona, um sofá, um banquinho. Mais genericamente, “assento” pode significar “um lugar qualquer que se ocupa”.

Artistas brasileiros vivendo em Londres fazem arte com um “acento” – “accent” – diferente sentando-se ou assentando-se em um “assento” – “seat” – diferente.


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CHEGOU A TURMA DO FUNIL MILTON MACHADO

Arte é um lugar qualquer que se ocupa. Arte soará diferente em lugares diferentes. Mas isso não é apenas porque os lugares são diferentes. Isso é porque arte tanto fala sobre O Lugar quanto fala sobre A Diferença. Arte não é sobre assentos – “seats” – arte é sobre lugares – “sites”. O acento da Arte não é a fala, o assento da arte é a escrita.

Qual é a língua falada no inferno? BZZZZZZZZ...

Tendo suas dificuldades para entender de que diabos minha escrita se tratava, professores do college, onde fiz minhas pesquisas de doutorado, encontraram a explicação, a justificação e a classificação que mais facilmente explicavam, justificavam e classificavam suas dificuldades para entender de que diabos minha escrita se tratava. Citação de um cara qualquer do escritório: “Provavelmente, o que Milton anda escrevendo é alguma peça de realismo mágico”.

Provavelmente, já que andei escrevendo sobre, e na companhia de filósofos ocidentais com um acento diferente, sentado em assentos diferentes, eu acabei fazendo com que os filósofos soassem ainda mais magicamente, os mágicos ainda mais filosoficamente, e a magia de suas filosofias ainda mais realisticamente. Ou talvez eu mesmo não esteja sendo realista. A verdade é que precisei recorrer a todo tipo de truques de mágica para entender, explicar, justificar e classificar de que diabos aquele college se tratava.

Pingue-pingue 1 x 10-n

onde n tende ao ∞

1 vezes 10 elevado a menos n, onde n tende ao infinito. O que essa expressão algébrica expressa – não importa em que língua, acento, ou assento – é o número de probabilidades de uma bola de pingue-pongue atravessar uma parede de concreto contra a qual é repetidamente arremessada.


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Se você não acredita que essa impossibilidade prática torna possíveis pesquisas e especulações muito interessantes no campo da física teórica, você não poderá saber de que diabos minha pesquisa teórica de doutorado em arte se tratava.

Pongue-pongue, e outras recreações do Arremesso Nacional13

Alguém poderia me explicar por que estudantes estrangeiros pagam mais do que o triplo das taxas acadêmicas pagas por um colega britânico ou europeu, mesmo que todos compartilhemos dos mesmos assentos acadêmicos – seats – e nossa artes compartilhem dos mesmos lugares – sites? Trata-se de um simples truque mágico de acentuação, ou de algum tipo de realismo matemático?14

Action Pointing

Alguém perguntou ao pintor americano Jackson Pollock se haveria uma “Arte Americana”. Jackson respondeu: “Assim que houver uma Matemática Americana, haverá uma Arte Americana”.

Há, de fato, algo chamado Art in America, que de fato é algo americano, assim como o CIA. E há também algo que em inglês se chama ARTFORUM, mas que não é exclusivamente americano. Todo art forum é internacional, mesmo as questões mais íntimas da arte são de foro universal. O Fórum da Arte é uma Instituição Contemporânea de Arte, assim como o ICA (sigla que abrevia Institute of Contemporary Art, em Londres, onde este ensaio foi apresentado pela primeira vez, e onde a arte é constantemente passada em revista). 13

National Thrust, no original, para ficar entre National Trust – Patrimônio Histórico – e um seu arremedo, aqui traduzido como Arremesso Nacional.

14

O autor gostaria de agradecer a Jean Fisher, na época editora da revista Third Text, pelo esclarecimento. Em uma carta para mim, ela escreveu: “Estudantes estrangeiros pagam mais porque o governo britânico e os europeus subvencionam a educação de seus próprios estudantes”. Ah, estou aliviado. Graças às explicações de Jean Fisher minha pergunta é algo mais do que um simples truque mágico de retórica.


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Terminais

Latino-americanos são pessoas cujos idiomas são derivados do latim. Todos os latinos falam idiomas derivados do latim. Os franceses, os italianos, os espanhóis, são latinos, mas não são latino-americanos porque seus países não estão na América. Os franceses, os italianos, os espanhóis, são chamados de latinoeuropeus. São mesmo?

Os Estados Unidos da América estão na América do Norte e, por razões históricas, o idioma falado pelos americanos não deriva do latim, embora seja informado, e formado, pelo latim. Mas o inglês não é o único idioma falado nos Estados Unidos da América. Muitas sinalizações urbanas em Nova York são escritas em inglês e espanhol. Diversas estações de rádio e canais de televisão dos Estados Unidos transmitem seus programas exclusivamente em espanhol. Chegando ao aeroporto de La Guardia, fiquei surpreso ao ouvir falas espanholas e músicas latinas – ou “chicanas” – vindas de todos os aparelhos de TV no aeroporto norte-americano de La Guardia. Essa recepção de boas- vindas de alguma maneira deixou-me ligado (iti riali târnedi mi on!!!).

Indústria e comércio de mogno

“Ecco la Tropical Art” – assim mesmo, sintomaticamente em italiano e inglês – foi o título escolhido pela crítica da revista L’Espresso para o artigo que escreveu sobre uma exposição de cinco artistas brasileiros15 que organizei em 1990, na galeria Sala-1, em Roma. A arte era made in Brazil, o título era made in Italy e as palavras identificando a arte e o título eram made in England. Ou, talvez, made in the USA? Não importa. O que importa é que artistas brasileiros não fazem “tropical art”. Ou talvez a façam, se o inglês com um forte sotaque italiano for realmente o idioma 15

Eram eles Frida Baranek, Ivens Machado, Milton Machado, Daniel Senise e Angelo Venosa.


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CHEGOU A TURMA DO FUNIL MILTON MACHADO

oficialmente falado pelos críticos de arte em Roma.

Indústria e comércio de marfim

Elefantes são made in Africa, alguns made in India. A bosta de elefante que há alguns anos ajudou o artista Chris Offili a ganhar o Turner Prize era made in England. Ou “readymade”, como prefere o artista (a bosta de elefante foi coletada no zoológico de Londres).

Todo zoo e todo circo são internacionais, necessariamente. Tivemos, há algum tempo e por breve período, nossa versão do Turner Prize. O nome do prêmio brasileiro equivalente ao britânico Turner Prize não prestava homenagens a algum nosso grande pintor do passado: o Prêmio Johnnie Walker prestava suas homenagens a Johnnie, o meu, o nosso, o Seu Joãozinho que Anda. Todo zoo e todo circo são internacionais, necessariamente.

Assentos são assentos, seats are seats, lugares são lugares, sites are sites, bosta é bosta, e shit is shit, não importa o lugar, não importa o site, não importa o seat, não importa o assento, não importa o acento. Joãozinho que Caga, e Anda?

Indústria e comércio de cana

O Prêmio Johnnie Walker Joãozinho Turner Prize me faz lembrar a letra de uma canção brasileira, cantada por Elis Regina, que aliás morreu de uma overdose:

“Nós é que bebemos, eles é que ficam tontos”.


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CHEGOU A TURMA DO FUNIL MILTON MACHADO

O título deste artigo – ou desta sequência de soluços e arrotos – “Chegou a Turma do Funil”, repete as primeiras palavras daquela canção. Quando os organizadores do seminário em que apresentei este texto pela primeira vez sugeriram que deveriam caber aos artistas as últimas palavras, eu não sabia se deveria ficar lisonjeado ou injuriado com o paternalismo enviesado.

A Turma do Funil é uma gangue cujos membros são eles que ficam tontos e que pensam que é a eles que deveriam caber as últimas palavras. As últimas palavras: caberiam em um funil? caberiam a um funil? passariam por um funil? passariam de um funil?

Algumas últimas palavras

Nos anos 70, críticos importantes como Frederico Moraes e Aracy Amaral fizeram algumas tentativas de equacionar histórica e teoricamente arte brasileira com arte latino-americana. Outro influente crítico brasileiro, Roberto Pontual, cunhou a etiqueta “Geometria Sensível”, categoria que incluiria a obra do pintor uruguaio Joaquim Torres Garcia e a dos artistas concretos e neoconcretos brasileiros dos anos 50 e 60, tomadas como modelos para os trabalhos de fatura geométrica que vinham sendo produzidos por artistas contemporâneos brasileiros e latino-americanos.

Nada de errado com tais tentativas; mas elas provavelmente dizem respeito mais às sensibilidades e sensitividades – pessoais e privilegiadas – dos próprios Frederico, Aracy e Roberto, do que dizem respeito a uma “Geometria Latino-americana”, ou “Arte Latino-americana”. Geometria, pelo que sei, é grega. E arte, pelo que sei, é arte.

E fogo é fogo. Todos os trabalhos em exibição na mostra “Geometria Sensível” foram destruídos pelo fogo, quando o MAM-Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi destruído pelo fogo, em 1978.


132 ::

CHEGOU A TURMA DO FUNIL MILTON MACHADO

...drop me in the water

Há, com certeza, algo chamado “Arte Latino-americana”: trata-se de arte produzida por artistas latinoamericanos. Mas não há nada de especial nisso aí, a não ser que a Origem, o Lugar, ou a Diferença que se quer enfatizar seja a América Latina, e não a arte. Não haveria nada de especial nisso aí, mesmo que tivéssemos, por exemplo, “arte produzida por homens latino-americanos que são carecas mas exibem vastos bigodes; ou “arte produzida por mulheres latino-americanas que são gorduchas, mas já estão de dieta”; ou ainda “arte produzida por artistas latino-americanos que são dentistas, mas apenas em regime de meio-expediente”, etc., etc. Quando estou no Brasil, nunca penso em mim mesmo como um “artista brasileiro”. Quando eu era jovem no Brasil, nunca pensei em mim mesmo como um YBA16. Quando estou na Argentina, ou no Chile, ou no México, ou na Venezuela, etc., posso eventualmente ser levado a pensar em mim mesmo como um “artista brasileiro”. Quando estou na Europa, ou nos Estados Unidos, etc., posso eventualmente ser levado a pensar em mim mesmo como um “artista latino-americano”. São vocês – sejam vocês o quê ou quem forem, etc., que me tomam por um “artista latino-americano”. Portanto, o problema é seu. Não, não é não. O seu problema é que eu sou um artista full-time, em regime de tempo-integral. O seu funil é que é o meu problema de meio-expediente.

Dois membros da Turma do Funil aferindo a passagem do tempo, mas não a passagem da história 16

Young Brazilian Artist: referência ao rótulo Young British Art – YBA – que se procurou e conseguiu colar à testa dos artistas britânicos dos anos 90 – e que alguns aceitaram de bom-grado – principalmente os que participaram da mostra Sensation (Royal Academy, Londres 1998), cuja repercussão acabou por reificar o rótulo e por lançar muitos desses artistas no super-estrelato.


JORGE MENNA BARRETO


134 :: MESA 3 JORGE MENNA BARRETO

Jorge Menna Barreto

Artista e pesquisador. Graduado em Artes Plásticas pela UFRGS; mestre e doutor em Poéticas Visuais pela USP. É pós-doutorando no Departamento de Artes da UDESC, onde também atua como professor colaborador na disciplina de Multimeios. Sua pesquisa atual relaciona agroecologia e as práticas sitespecific em arte.

Palavras-chave Arte contemporânea , Site-specific, tradução

Resumo Este texto faz parte da dissertação de mestrado Lugares Moles, defendida na ECA-USP em 2007. Seu objeto de pesquisa compreende as especificidades do termo site-specific, problematizando o emprego dessa palavra da língua inglesa usada internacionalmente em arte, geralmente sem tradução, para caracterizar obras para as quais o contexto tem um papel determinante.

A pesquisa partiu de obras de minha própria trajetória como artista para construir o seu enunciado. Tais obras haviam sido criadas para habitar contextos específicos, que não a dissertação, e sua utilização no (con)texto do mestrado requeria algum tipo de elaboração, ou tradução. Uma das estratégias foi a criação do que chamei Método Negativo, que consistia na aplicação de um risco sobre o título da obra, buscando sinalizar que já não estávamos diante da obra, mas de uma transposição de determinados aspectos que a inserem em uma narrativa.

A utilização do Método Negativo foi então estendida aos autores utilizados na pesquisa, sinalizando que seus textos também são fortemente determinados pela sua cultura e contexto de origem. Assim, seus nomes foram riscados e seus textos livre e experimentalmente transformados em fala numa situação de encontro imaginada que se desdobra em três mesas de discussão:17Especificidade, para quê?; Consciência Contextual; A palavra situada. 17

A exceção foi a participação de Tatiana Ferraz (Mesa 1) e Paulo Reis (Mesa 2) que não tiveram seus nomes riscados, pois foram convidadados a escrever um texto especificamente para ser inserido no contexto das mesas.


135 :: MESA 3 JORGE MENNA BARRETO

Keywords Contemporary art, site-specific, translation

Abstract This text is part of my Master’s thesis dissertation with the title “Soft Places”, presented at ECA – USP, in 2007. The research considers the specificities of the term “site-specific” so as to problematize its use worldwide in the field of art (often without translation) to characterize works for which the context plays an important role. My own artistic works were used in the master’s research, even though they were not created for this purpose, but to fulfill specific contexts elsewhere. Therefore, using my own artistic works in this (con)text required some king of elaboration, or translation. One of the strategies used in the research was the creation of what I called Negative Method, which consisted in crossing out the title of the art work, indicating that we were no longer in front of the art work itself, but in front of a transposition of certain aspects of it that fall into a narrative. The us of the Negative Method was then extended to the authors examined in the research, indicating that their texts are also strongly determined by their background culture and context. Thus, their names were also crossed out, and their written texts were freely and experimentally translated into speech, in order to produce imagined situations that unfold into three Panels:18 Specificity, what for?; Contextual Awareness, and The Word in Context.

A palavra situada O que significa a palavra site-specific? A palavra site-specific é em si um site-specific, ou seja, depende de um contexto e de uma língua específicos para constituir o seu significado? É possível traduzi-la para o contexto brasileiro? Como? Por quê?

Participantes Julio Plaza Martin Grossman Sarat Maharaj 18

The exceptions were the texts of Tatiana Ferraz (in Panel 1) and Paulo Reis (in Panel 2), which did not have their titles crossed out, because they were invited to write their texts specifically for the context of the panels.


136 :: MESA 3 JORGE MENNA BARRETO

Sérgio Buarque de Holanda Susana K. Lages Sherry Simon e Paul St-Pierre

Mediação Jorge Menna Barreto

Fig.1 (Página do Google – Site especific)


137 :: MESA 3 JORGE MENNA BARRETO

Mediador - O termo site-specific é uma palavra da língua inglesa que opera como um

adjetivo,

ou seja, qualifica ou descreve um substantivo. Pode-se caracterizá-la como uma palavra composta que é formada por um substantivo, site (que também pode assumir a função de verbo, significando colocar algo em um lugar específico), e um adjetivo, specific. É interessante assinalar que o resultado desta combinação, conforme dito anteriormente, assume a função de

adjetivo, como por exemplo: “This is a site-

specific installation”. Em uma tradução rápida, essa frase diz: Esta instalação é específica deste lugar. Para nomear a condição exercida pelo adjetivo site-specific, usa-se o

substantivocomposto site

specificity.

Como atesta uma rápida pesquisa na internet (Fig.1), é interessante perceber que a palavra site-specific é utilizada na língua inglesa de forma bastante ampla para caracterizar desde modos de cultivo em fazendas até formas de administração e gerenciamento em empresas. Na arte, começou a ser usada na década de 1960, nos Estados Unidos, para qualificar algumas obras que dependiam de um contexto específico para formarem o seu significado. No Brasil, similarmente, a palavra tem sido usada largamente como um jargão do meio artístico para caracterizar obras cujo espaço de instalação assume um papel determinante. Esta mesa procura investigar algumas questões referentes à possibilidade de tradução do termo site-specific, complementando as mesas que vieram antes e finalizando o ciclo.

Susana Kampff Lages – Acompanhei as mesas anteriores e acho interessante a forma como a palavra sitespecific foi

introduzidamaterialmentena língua portuguesa, sem tradução alguma.

Isso diz respeito à própria história do verbo traduzir. Na tradição latina, o verbo traducere significava justamente a introdução material na língua de um vocábulo estrangeiro. Foi só na Renascença Italiana que a palavra traducere adquiriu seu novo significado técnico, passando a significar

transposição

semânticade um termo ou texto de uma língua para a outra. Ironicamente, essa reinterpretação se deu sobre a própria palavra traducere, que foi traduzida do latim para o italiano. Traduzi-la por traduco,


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invés de transfere (que seria a tradução literal), conferiuao termo uma

maior plasticidade

e margem interpretativa. Traduco não era apenas mais dinâmico que transfero, mas em relação ao seu predecessor mais divulgado, continha, além do traço semântico de “passagem” e de “movimento”, o traço de “individualidade” ou de causatividade subjetiva. Compare-se duco / dux [conduzir, guiar] com fero [portar, carregar], sublinhando ao mesmo tempo a originalidade, o empenho pessoal e a “propriedadeliterária” dessa operação

cada vez menos anônima.

19

Mediador – É curiosa a forma como a palavra site-specific entra na língua portuguesa, sem nenhum tipo de elaboração ou tradução, o que você chamou de “introdução material na língua”. A sua tradução literal poderia gerar algo como “sítio específico”. O grande erro nessa transposição é que o sítio passa a ser específico, e não mais a obra, como é utilizado no inglês, pois o termo deixa de operar como um adjetivo. O que me parece interessante desse caso é que o significado da própria palavra site-specific se refira justamente a uma especificidade de contexto para a construção de significado. As práticas site-specific, quando se movem, devem necessariamente sofrer algum tipo de tradução, uma transmutação, para se adequarem ao novo contexto. A ilusão de autonomia da obra, que possibilitaria um trânsito sem danos, é uma das principais críticas exercidas pelo site specificity.

A sua intradução me parece uma traição, ou um não entendimento das questões implicadas pela palavra e pelo conceito. Sarat Maharaj – Parece-me haver aí uma impossibilidade de tradução literal, pelo que você falou, ou de uma tradução que seja “transparente”. Não é possível transpor a palavra site-specific para o português, pois esse tipo de construção composta, que opera como um adjetivo de um único substantivo, é algo característico da língua inglesa, e não é frequente nas línguas latinas. É diferente, por exemplo, das palavras internacionais, como “transporte”, que é muito similar em várias línguas; ou “comunicação”, para citar 19

Baseado nos escritos de LAGES, Susana K..Walter Benjamin: Tradução e Melancolia. EDUSP, 2002, p.53.


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alguns exemplos. A palavra site-specific me parece um caso muito interessante para discutirmos tradução, pois, como você disse, o seu próprio significado diz respeito à especificidade de contexto. Há uma ligação interessante aí entre

especificidade e traduzibilidade. Essa impossibilidade

de uma tradução “fácil” pode ser um desafio muito interessante, pois gera a necessidade, ou o desejo, de operar a partir de uma

força criativa, já que não existem caminhos dados, equivalências, já

que cada língua tem os seus próprios sistemas e maneiras de significar. A construção do significado em uma língua não equivale à construção do significado na outra. Da própria origina daí, desse espaço

“opacidade”que se

entreelas, a tradução pode criaralgo diferente, algo híbrido, e

isso pode ser um desafio interessante. Por outro lado, é válido se perguntar se o híbrido não é justamente o produto da

“falência da tradução”, como algo que fica aquém do ideal de uma

tradução como uma passagem

“transparente” de um idioma para o outro, de mim para você.

A tradução, conforme Derrida, não é como comprar, vender, trocar – muito embora tem sido vista dessa forma, muitas vezes. Não é como transportar deliciosos e suculentos pedaços de linguagem de um lado da barreira linguística para o outro – como pacotes de comida fast-food no balcão de uma lanchonete. O significado não é algo pronto, dado, ready-made, que possa atravessar a fronteira.

O tradutor

é obrigado a apropriar-se do significado na língua de origem e então descobrir uma forma de modelá-lo com os materiais da língua para a qual ele ou ela pretende fazer a transposição. A fidelidade do tradutor fica, portanto, dividida. Ele ou ela


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tem que ser fiel à sintaxe, sensação e estrutura da língua de origem; e também fiel à língua da tradução. Há uma colisão de fidelidades e uma

falta de encaixeentre as construções. Enfrentamos

uma escrita dupla, o que poderia chamar de uma “fidelidade perfídia” ou, para usar as palavras de James Joyce, uma fidelidade double-crossing, um travestismo, uma traição. Somos levados para o “Efeito Babel” de Derrida.

Os comentários de Marcel Duchamp sobre a tradução inglesa de Richard Hamilton, de 1960, das suas anotações feitas à mão da Caixa Verde, anteciparam alguma coisa desse ponto de vista sobre a tradução. Ele elogiou a versão inglesa ao afirmar a sua “veracidade monstruosa” – tocando nas suas fidelidades esquivas, suas mais do que verdadeiras deslealdades. Referiu-se ao projeto como uma “transubstanciação cristalina”, mais do que uma tradução.20

Mediador – Pergunto-me, por que a palavra site-specific não foi traduzida para o português? E mais, é uma palavra bem adaptada ao cenário internacional da arte, utilizada sem tradução por artistas e críticos de várias nacionalidades. Talvez tenha se tornado uma palavra a-contextual, internacional, de um lugar que é o mundo da arte, e não mais dos contextos específicos que o compõem. Por outro lado, vejo que o uso da palavra sem tradução corre o risco de achatar as especificidades das relações obra/contexto de diferentes culturas e línguas. No momento em que usamos apenas uma palavra para definir situações que podem ser muito distintas, sutilezas e diálogos podem se perder em favor de um discurso homogêneo do Mesmo, sem o discurso do Outro. A possibilidade de diálogos e alteridade fica dificultada, como se essas práticas fossem de fato transparentes umas às outras, para citar Maharaj.

Outra questão que me ocorre é a motivação econômica por trás da homogeneização do discurso. Se chamar uma obra de site-specific no Brasil, gero uma espécie de

pertencimentodessa obra

a um território e discurso internacionais, por usar uma linguagem que lhes é comum, o inglês. Busco um pertencimento a um mundo da arte internacionalizado a partir do uso de uma língua em comum. Facilito, 20

Baseado no artigo de MAHARAJ, Sarat. Perfidious Fidelity: The Untranslatability of the Other in inIVA Annotations 6. Ed. inIVA, Londres, Inglaterra, 2001, p. 26. Também disponível no site: www.iniva.org


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assim, as “trocas”. No entanto, ao assumir uma nomenclatura que é estranha à minha história e língua, apago a possibilidade de reconhecer, na minha própria história, essa

pulsão, essa inteligência. As

relações internacionais que a obra pode traçar ficam mais azeitadas, o que não deixa de ser interessante, mas a que custo? Tal me parece ser o caso da palavra site-specific. Ao utilizarmos esse termo para nos referir às práticas que envolvem uma certa “consciência contextual” no Brasil, buscamos essa filiação em um outro território, em uma outra língua, em uma outra história; talvez para facilitar o trânsito em uma arte internacionalizada. Mas, dessa forma, corremos o risco de apagar a nossa própria singularidade.

Martin Grossman – Em vista dessas colocações, gostaria de dar um depoimento pessoal. Outro dia saí do cinema: mais um filme “correto”. Ao deixar a sala escura, nas dependências do cinema ou na rua, deparome com soluções arquitetônicas “corretas”, ditas pós- modernas, high-tech, desconstrutivistas. Vou a uma exposição de arte contemporânea na galeria ou no museu mais próximo e, mais uma vez, estou cercado de soluções “corretas”: espaços e conteúdos que demonstram a habilidade dos responsáveis em seguir o figurino, cientes dos últimos ditames das artes contemporâneas internacionais. Sim, fazemos parte do Primeiro Mundo, sabemos produzir eventos como eles, mas que fórmulas, conceitos ou pensamentos usamos quando fazemos isso? Apesar da globalização da cultura, continuamos a olhar insistentemente para fora, para o que teoricamente deixou de ser centro pelos princípios do multiculturalismo. Existem, sem dúvida, contradições inerentes nessa relação entre globalização e multiculturalismo, principalmente para nós, habitantes da periferia cultural. Mas temos manifestado algum

estranhamentoem

relação a isso? Sob a influência das lentes de aumento que usamos para observar o que acontece lá fora, de vez em quando nos damos conta de nosso próprio lugar. No entanto, esse olhar dilatado apenas agrava nosso

complexo de inferioridade, pois seu espectro crítico sofre com a falta de

definição dos “primeiros planos”. Em busca de conforto, dirigimos, mais uma vez, nossas atenções para as referências externas: um eterno retorno a algo que não nos pertence necessariamente.

Deixando de lado as lentes de aumento, e permitindo que a minha miopia me guie por ora, parece que o cenário cultural nacional não sofreu grandes mudanças nesses últimos anos. A irreverência, a ironia, o


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experimentalismo e o questionamento, próprios de nossos movimentos conceituais e sensorial-plásticos nas décadas de 1960 e 1970, deram lugar a uma acomodação generalizada reforçada pelo surgimento do que no Brasil ficou conhecido como a Geração 80. Ela foi uma resposta local a uma tendência internacional de “retorno à ordem”, impulsionada em grande parte pela necessidade do mercado de arte contemporânea de ter produtos à venda e não simplesmente “ideias ou projetos”.

Se, por um lado, essa situação demonstra a

nossa capacidade quase

instantânea de atualização em relação às tendências da cultura global, por outro, realça a precariedade de nosso contexto, uma vez que a volta à pintura, por exemplo – promovida pela Geração 80 – requer, como suporte, uma tradição. A TRANSVANGUARDIA, por exemplo, apoiava-se na sua história – há, nesse caso, um diálogo frutífero com o seu passado. No entanto, essa mesma tradição perdeu sua força no nosso contexto, principalmente pelo fato de não termos as referênciasin loco (em museus) como os europeus ou os americanos. A debilidade desse nosso revival torna-se ainda mais evidente quando é sabido que a maioria de nossos jovens artistas pintores desconheciam a pequena história da pintura brasileira, ignorando até joias mais recentes como Malfatti, Guinard ou Volpi, por exemplo.21

Sergio Buarque de Holanda – Essa discussão me parece estar ligada às próprias origens da cultura brasileira. A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências.

Trazendo de países distantes

nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente 21

Baseado no artigo de GROSSMAN, Martin: Arte Contemporânea Brasileira: à procura de um contexto. In BASBAUM, Ricardo (org.). Arte Contemporânea Brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Ed. Rios Ambiciosos, Rio de Janeiro, 2001, p. 350.


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muitas vezes desfavorável e hostil, somos, ainda hoje,uns desterrados em nossa própria terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e outra paisagem.

Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e ideias de que somos herdeiros. Isso que digo se refere ao período da nossa colonização. No entanto, parece ser um cacoete de nossa sociedade esse

caráter absorventedo que nos é alheio e o seu transplante

a-crítico,sem tradução,

para as nossas especificidades; ou melhor, ignorando

as nossas especificidades. Vejo aí uma profunda falta de reconhecimento do nosso contexto, como se pudéssemos ser uma tábula rasa onde são implantadas, “naturalmente”, formas de pensar e agir, sem rejeição. O resultado disso é essa profunda sensação de

desterroque vivemos, de indiferença ao

que nos é público e comum, pois essa terra ainda não nos pertence.22

Mediador – Entendo que o modernismo brasileiro foi uma reação saudável contra isso, no momento em que elege a

antropofagiacomo uma possível reação a essa absorção a-crítica e submissa ao

outro. Entendo também que o trabalho com a especificidade de contexto, conforme descritos nos casos de Robert Smithson, Cildo Meireles e Ana Tavares, artistas citados aqui, também tenham o poder de reverter esse paradigma, pois suas práticas operam a partir de um

reconhecimento do

contextoque é anterior à instalação da própria obra. O lugar, assim, não está submisso a uma ação “colonizadora”, mas constrói, junto com o artista, uma obra que passa a ser específica daquele lugar, 22

Baseado no livro de HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995, p. 31.


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daquela situação, e reverte o desterro, gera

pertencimento.Quando falo em pertencimento,

não o entendo como um estado apaziguador e idealizado, mas como uma relação intensa com o contexto que também envolve o problema e o conflito, como no caso desses três artistas que citei.

Susana K. Lages – O movimento antropofágico é uma bela via para pensarmos a tradução. Ao relacionálos, não podemos deixar de lembrar os

poetas concretos. O elemento definidor do projeto

poético concretista está seguramente numa aplicação radical do conceito modernista de antropofagia como estratégia particular de leitura da tradição. Esse conceito reflete sobretudo uma atitude diante da tradição poética tanto brasileira quanto universal, que não se deixa mais definir nos termos tradicionais de “influência”, no sentido de

assimilação passivade elementos externos.

Trata-se de um processo de

violenta apropriação, que se constitui a partir de uma

releitura consciente seletiva do substrato literário passado e contemporâneo. Portanto, a poética concretista pode ser chamada de uma

“poética da destruição”, na dupla alusão que

esse termo pode conter: por um lado, remetendo ao conceito de crítica romântica, que previa uma crítica poética, em que o adjetivo “poético” definia o caráter e não o objeto da crítica; por outro, refere-se a uma corrente, com a qual, mais do que a poética concretista, a reflexão sobre essa poética, realizada sobretudo por Haroldo de Campos, tem afinidade profunda: a

“desconstrução”, corrente estético-

filosófica contemporânea, inaugurada pelo pensamento revisionista de Jacques Derrida.

Na “nota prévia” ao livro Operação do Texto, a tradução é considerada por Haroldo de Campos “um dispositivo que a desencadeia ou uma prática que a desdobra.

Tradução como

transcriação e transculturação, já que não é só o texto, mas a série cultural (o extra-texto de Lotman) se transtextualiza no

imbricar-se subitâneo detempos

e espaçosliterários diversos”.


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Pode-se dizer que o projeto e a prática não só da tradução concretista, mas do comentário sobre a própria tradução, realizam aquilo que o crítico literário americano Harold Bloom denomina como uma leitura forte. Para Bloom, os grandes poetas são aqueles que, em seu contato, sempre conflitivo, com os antecessores na tradição, conseguem realizar uma apropriação tão radical a ponto de sua obra modificar a interpretação que posteriormente será feita dos precursores. Ou seja, o poeta forte realiza uma espécie de

inversão

da ordemtemporal, uma inversão da causalidade, pela qual o texto atual determina a posteriori a leitura de seus antecessores na cadeia da tradição. Enfim, é uma inversão da lógica de que o tradutor se encontraria sempre em uma situação de posteridade em relação ao original. Para realizar sua tarefa de reconstrução textual, ele deve superar de alguma forma essa posição de secundariedade e afirmar-se como autor de um novo texto, o texto traduzido.

Uma tentativa de superação dessa ordem apresenta-se no trabalho de Augusto e Haroldo de Campos, de Décio Pignatari e, mais recentemente, de Nelson Ascher, como tradutores.

Suas

transcriações

triduções,transluciferações,

multiplicam-se

em

trans-fingimentos,

transficcionalizações, trans-poetizações, intraduções, transfusões,

transmutações,projetando

ao infinito as possibilidades

interpretativas e nomeadoras de todo possível ato de tradução e situando-as no horizonte que a todas unifica, sempre parcial historicamente, na diversidade dos nomes e das línguas; no contexto de uma traição, como ato de violência inerente e necessário à preservação de uma tradição viva. Do ponto de vista da cultura brasileira

, em que a tradução de obras

estrangeiras é, em todos os campos, o meio por


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excelência de apropriação do conhecimento,

a imagem da

apropriação textual como ato de canibalismo representa o contrário do que ele pode representar dentro das culturas ditas hegemônicas: a liberação de um cânone assimilado acriticamente ao longo da história.23

Mediador – Entendo que a pesquisa de Sherry e Paul inclui um contexto mais amplo sobre a tradução, que envolve o cenário internacional. Gostaria de passar a palavra para vocês.

Sherry Simon e Paul St-Pierre – Achamos interessante entender a tradução como um locus para investigar o contato intercultural, a partir de intrusões, fusões e disjunções. É um site privilegiado para investigarmos as

relações de poder e alteridade. E é interessante como esses processos

se manifestam na língua. Línguas híbridas, como o crioulo, mostram padrões de interpenetração e sobreposições que refletem bem os processos de contato. A crescente discussão sobre tradução e a internacionalização de uma rede que a discute é muito animadora. Mas isso leva a uma necessidade óbvia de esclarecimentos cuidadosos de , para que haja um claro entendimento das situações históricas que dão origem à atual dinâmica cultural de globalização. Isso também implica que as teorias devem ser vistas de forma , tanto ideológica como culturalmente. Isso não quer dizer que o pesquisador deva ser o porta-voz das suas circunstâncias geográficas ou históricas, mas que devemos reconhecer que discursos inteiros são moldados pelos contextos de onde emergem, e que o nosso uso dos mesmos é influenciado pela sua história.

contextosespecíficos situada

Acho interessante também averiguarmos as razões pelas quais se traduz, ou não, um texto, ou uma expressão – uma questão que surgiu anteriormente nesta mesa sobre o termo site-specific. Não é de se surpreender que a maior parte do trabalho sobre poder e ideologia na tradução tenha vindo de contextos pós-coloniais, como a Índia, Canadá, Irlanda ou Brasil, e tem apoiado correntes teóricas como o feminismo e o pós-estruturalismoTradutores, como mediadores culturais e econômicos, seguidamente fazem parte O de grupos marginalizados. Historicamente, eles ocupam posições socialmente frágeis, nas bordas do poder. Essa posição, muitas vezes, favorece uma consciência a respeito das relações de poder e alteridade, que se tornam aí mais explícitas.24 23 24

Baseado nos escritos de LAGES, Susana K..Walter Benjamin: Tradução e Melancolia. EDUSP, 2002, p. 88.

Baseado nos escrito de SIMON, Sherry e ST- PIERRE, Paul. Changing the Terms: Tanslation in Postcolonial Era. Ed. Orient Longman, Nova Déli, India, 2000 p. 9-32.


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Mediador – Gostaria de chamar Julio Plaza para uma contribuição. Julio, a sua pesquisa envolveu uma vasta pesquisa sobre tradução, o que você chamou “tradução intersemiótica”. Você também teve uma proximidade grande com os poetas concretos, parece-me que principalmente Haroldo de Campos. Você poderia falar um pouco a esse respeito?

Julio Plaza – Sim, e acho importante, realmente, lembrarmos da reflexão sobre o projeto dos poetas concretos, pelos quais cultivo uma grande admiração. Parte importantíssima deste projeto é a atenção, no ato tradutório

, à forma, à visualidade, à exterioridade do texto;

e não somente ao seu conteúdo. Devemos considerar portanto a

materialidade

mesma da

tradução. Esse é um aspecto da tradução que muito me interessa, também na minha reflexão sobre tradução intersemiótica. A tradução também deve ser considerada como poética sincrônica, como possibilidade, como forma plástica, permeável e viva. É um projeto vertical que mergulha na

espessura

da

história. São duas as formas de transmissão da história: a forma sincrônica e a diacrônica. Esta mais próxima do historicismo, aquela mais adequada e conatural ao projeto poético-artístico e, por isso mesmo, à tradução poética. Se o critério historicista diacrônico está para o

tempo, o critério estético ou sincrônico está para o

espaço. E isso me leva à noção monadológica da história, tal como concebida em Walter Benjamin, a veia para se pensar estética e criativamente a história literária como “produto de uma construção” ou “apropriação re-configuradora”. E é assim que o processo tradutor se instaura para Walter Benjamin. Para ele, articular o passado não significa conhecê-lo como verdadeiramente foi. Significa apoderar-se de uma recordação tal como ela relampeja em um momento de perigo. Isto é, a

captura da história como reinvenção

da história face a um projeto do presente.


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Se Benjamin, na sua visão, enxerga a

história como possibilidade,

como

aquilo que não chegou a ser, mas que poderia ter sido, é justamente na brecha de uma possibilidade (vão entre o que poderia ter sido, mas não foi, mantendo a promessa doque ainda pode ser) que se insere o

projeto tradutorcomo

projeto constelativo entre diferentes presentes e, como tal,

desviante e descentralizador, na medida em que, ao se instaurar, necessariamente produz reconfigurações monadológicas da história.

Nesse sentido, a operação tradutora

nada tem a ver com a fidelidade,

pois cria sua própria verdade, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos. Percebe-se, assim, a história como algo aberto, que se completa na leitura, no leitor, como no “coeficiente artístico” de Duchamp ou no “inacabamento de princípio” e “abertura dialógica” de Bakhtin. A tradução torna-seassim

a forma mais

atenta de ler a história. A minha pergunta vai para o mediador. Parece-me que a sua estratégiade tradução do termo site-specific passa pelo agenciamento dessasmesas onde você criou uma

vizinhança imaginadaentre autores e ideias que lhe auxiliam na construção do seu enunciado. Os conteúdos tratados nas mesas me parecem claros, pelo que pude acompanhar. A sucessão dos assuntos aqui abordados, tanto os históricos quanto os teóricos, parecem-me coerentes com o seu assunto e o seu propósito.

Minha colocação, no entanto, não se refere somente ao conteúdo do que foi discutido até agora.

Gostaria de entender de que maneira a forma escolhida para a espacialização do discurso, a construção das mesas, está relacionada ao conteúdo e de como, e se,


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ela caracteriza uma operação poética, como parece ser a sua intenção.

25

25

Baseado nos escrito de PLAZA, Julio. Sobre Tradução Intersemiótica. Tese de Doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica, SP, 1984.



CONVERSAÇÕES COM IMAGENS MARIA DO CÉU DIEL DE OLIVEIRA


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CONVERSAÇÕES COM IMAGENS MARIA DO CÉU DIEL DE OLIVEIRA

Conversações com imagens Maria do Céu Diel de Oliveira

Professora Associada da EBA/UFMG, artista plástica comespecialização em gravura em metal. É lider do LINHA: Grupo de Pesquisasobre o Desenho e a Palavra e pesquisa as relações entre as artes e asconversações com as imagens. Atua no Programa de Pós Graduação da EBA/UFMG pesquisando os mitos de origem da visualidade, os programas visuais, a memória e o esquecimento. Também pesquisa a angústia da influência e escreve sobre memória e esquecimento.

Palavras-chave Mundo das imagens, fotografia, memória, imaginação, relação entre as imagens.

Resumo Para escrever este artigo, elaboro uma conversação com imagens, pensando em como a fotografia e a pintura contém em suas aparições outras estruturas dialéticas que nos atraem e repelem; e também como as imagens cotidianas mostram brechas de outras imagens políticas – morais/amorais e virtuosas/viciosas, enfim, artísticas.

Keywords World of images, photography, memory, imagination, relationship between the images.

Abstract This article presents a dialog with images, showing how photography and painting contain other dialectical structures that attract and repel us. It also points out how the everyday images show breaches of other images, revealing political, moral / amoral, and virtuous / vicious gaps, i.e. art.


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CONVERSAÇÕES COM IMAGENS

MARIA DO CÉU DIEL DE OLIVEIRA

FIGURA 1 - Fotografia de Maria do Céu, viagem à Italia,2008.

Vejamos essa casa com três numeros diferentes. O mais antigo parece ser o número dezenove – penso isso pois é uma plaquetinha de cerâmica gasta e amarelada. Depois tem os outros dois, o trinta e cinco e o oitenta e cinco, contemporâneos. O mais frágil e irreal destes dois é o oitenta e cinco, escrito com giz branco bem na porta. Para entregar uma carta, o carteiro deve saber a história de tantos números, como e porquê foram modificados e o motivo. Para cada número desta casa foi feita uma outra numeração para a rua. E se a família que morou ali sempre foi a mesma e os filhos dos filhos cresceram ali, para cada mudança de número estava incluído o anterior. E a casa está numa rua de uma cidade pequena, então as pessoas sabem que esses números foram mudados por esta razão ou aquela e cada número pertence ao lugar onde foi criado. Mas mesmo assim, três numeros diferentes são iguais no presente e seus significados estão na organização de diferentes grupos políticos que existiram naquela cidade. Um número não apaga outro e contém o outro e assim as cartas destinadas ao 19, ao 35 ou ao 85 deverão chegar na mesma porta.


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A não ser que o carteiro saiba que o 19 não existe mais, nem o 35 e o que vale mesmo é o 85 escrito por ele, com o giz que trazia no bolso. As cartas perdidas também poderão chegar aqui, mas as pessoas que moram nesta casa devem saber que moram em três numeros e assim admitirem que , no fim, tudo dará no mesmo. A imagem da casa é o que importa para nós, afinal. Se fosse possível escolher entre os números da casa e que cada um pudesse nos fazer entrar em um lugar dedicado para aquele número, então escolheria primeiramente o número 19. Talvez me deparasse com este lugar aqui:

FIGURA 2 - Fotografia cedida pelo Archivio Storico della Comune di Vasto, Chieti, Italia. Rua destruída pelo terremoto de 1956.

Uma rua de uma cidade italiana no início do século XX. As pessoas estão nos afazeres diários e secam suas roupas do lado de fora das casas, estendidas em cordões comuns aos vizinhos. Quem fotografou achou ali a beleza da vida típica, uma imagem digna dos pintores “machiaolli”. Quem foi fotografado talvez não tenha sabido nada disso, desta potência pintoresca da fotografia e da forma como estava composta pelos corpos e pela perspectiva. Neste lugar, a vida parece mais simples e assim ficamos atraídos pelo passado. Mas essa rua não existe mais, foi tragada por um terremoto. E talvez só tenha existido neste momento, quando as


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MARIA DO CÉU DIEL DE OLIVEIRA

três mulheres e a criança de colo estavam ali naquele pedaço de sol e as roupas naquela posição. Então fotografia não é documento de memória, mas um momento de pessoas que ali estavam,incluindo quem fotografou, posicionando seu corpo firmemente entre as linhas convergentes.Nela buscamos também imagens reconhecíveis ou fantásticas, que nos afastem ou aproximem de coisas conhecidas ou imaginadas. O movimento da imagem vista corresponderá ao movimento da vontade da imagem. Vendo esta fotografia vejo a pintura de Giovanni Fattori26,nomesmomovimento silencioso das linhas que apresentam e escondem um drama humano.

FIGURA 3 - Giovanni Fattori: In vendetta (o il muro bianco) 1872 Valdagno. Fonte: www.geometricfluide.com

Se deixarmos as linhas apenas e desaparecermos com a atmosfera “pintoresca” da fotografia, poderemos colocar junto aqui as fotografias de guerra (ou mesmo aquela fotografia pode ser uma foto da guerra, as mulheres esperando seus maridos voltarem das frentes de batalha). Como essa também pode ser uma vingança contra o soldado mais próximo de nosso olhar e assim também uma imagem de guerra. Na dialética das imagens e seus sentidos, a fotografia apontou para outras coisas que estavam contidas nela

26

Giovanni Fattori-1825-1908. Pintor pertencente ao movimento denominado i machiaoili. Grande pintor de cenas militares e paisagens, destacando-se muito na gravura em metal.


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e o que parecia placidez e paz de uma cidadezinha pode ser também o território das danações humanas.

FIGURA 4 - James Natchwey- Ruins of Djacovida-1999. Fonte: www.jamesnatchwey.com

As linhas que “seguravam” o olhar na fotografia da cidade e suas mulheres despecam agora dessa fotografia de Kossovo27. Uma figura cambaleante vaga pela rua estranhamente limpa, entre escombros empurrados para os lados. O olhar é atravessado por linhas que empurram para baixo e para fora e destacam a figura do homem, numa base de um triângulo visual. Se retirarmos esse homem deste lugar e o colocarmos na rua das mulheres, poderemos dizer que ele caminha rumo à sua casa porque foi chamado, é hora de comer. Mas basta que saibamos que estas imagens contêm em si todas as outras. Este homem vaga entre uma imagem e outra, entre dois passados estrangeiros. As mulheres da outra fotografia podem estar indo encontrá-lo, mas vagam elas também entre um mar e outro, de papel.

27

James Nachtwey – 1948 – fotógrafo americano presente em diversos conflitos pelo mundo.


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MARIA DO CÉU DIEL DE OLIVEIRA

FIGURA 5 - Fotografia de Maria do Céu, viagem à Italia, 2008.

Se continuarmos nesta porta do passado e olharmos ao nosso lado, veremos na vitrine de um antiquário um grupo de bonequinhos enfiados numa vasilha de louça. Não eram antigos naquele momento do passado, mas, como estamos vivos no presente, podemos colecioná- los como objetos antigos. Colocados assim, são como náufragos acenando para barcos imaginários no oceano, miragens ou sonhos da sede e da fome. Presos em seus pensamentos, devaneando entre vida e morte, misturam-se em suas proporções e idades, em seus trajes e tipificações e aguardam quem os resgate para o presente da imaginação. Como uma porta também, vejo nessa fotografia a pintura A Balsa da Medusa, de Gericault28 ou de imagens de naufrágios que o cinema educou na memória. Na pintura estão os tipos figurados na balsa, pois ela foi feita a partir das narrativas: o médico, o louco, o cadáver, os que ainda têm energia para acenar, os que olham para o outro lado, os resignados com o destino, etc. As proporções são dadas pelo apinhamento dos sobreviventes e pela distância do horizonte, onde aponta a fragata que os resgatará. Na fotografia dos bonecos, salvos 28

A balsa da Medusa, de Theodore Gericault – 1791-1824, pintura inciada em 1818, à partir dos relatos dos sobreviventes da fragata Medusa, que naufragou, deixando a deriva 250 sobreviventes. Ao serem resgatados eram apenas 15.


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pelo inventário do colecionador, estão empilhados, forçando o feltro das roupas e o papier mache das cabeças e mãos uns contra os outros. Então por que lembrei-me dum naufrágio? Talvez porque tudo o que está contido numa pintura irradia para sempre sua forma em outras imagens e seguimos estas pistas visuais. Poderemos retirar e colocar significados, pois a forma compositiva já enuncia as diversas possibilidades de sentidos. Este esquema visual , uma vez contemplado em uma pintura, irradiará nas próximas imagens sua vertigem de sentidos.

FIGURA 6 – Balsa da Medusa. Fonte: www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2012/karinPhilipov/PDF

Desses bonecos-náufragos no tempo podemos sorrir, pois não se percebe a tragédia. São tipos também – bufões, reis, damas, mouros – e, como tipos, vão e voltam de seus lugares de origem. Então não estão confinados, podem retirar-se da vasilha pelas brechas de tempo de onde foram arrancados.

O humor suave destes bonecos abre a porta número 35 ( talvez seja a mais recente da política para aquela rua, mas não a mais fresca) onde poderemos ver um pedaço de passado e presente numa espécie de imagem risonha entre mundos e tempos.


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FIGURA 7 - Foto Maria do Céu, viagem à Italia 2006.

Numa rua de Nápoli o dono do café ao lado montou um oratório com uma fotografia do golfo de Napoli, emblemas heráldicos, uma oração impressa, uma fotografia e cabelos de um jogador de futebol, Maradona. O jogador campeão e ídolo de muitos italianos está figurado como um santo a quem solicitamos auxílio em tempos de tristeza ou melancolia. Um bilhete impresso pergunta: como podemos fotografar e não compraremos um café? A rua suja e cheia de desenhos em graffiti pelas paredes faz com que os olhos busquem uma imagem diferente e acima da imundície. E junto com ela vem a jocosidade e a irreverência colada com a cultura religiosa da qual podemos entrar e sair e ver como quisermos. O pequeno altar feito à maneira dos outros tantos encontrados nas ruas da Itália faz surgir o riso e a simples felicidade de um caminhar estrangeiro.

Então posso ver ali também um oratório sincrético, como aqueles das cidades históricas em Minas Gerais.


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Misto de catolicismo e devoção africana, aglomera significados e forças. O apinhamento de sentidos faz com que se aproxime do oratório napolitano pela engenhosidade e artificalidade simplória. Mesmo o tom sacrifical de todo este imaginário sucumbe ao riso. As figurinhas desproporcionais se completam e “consertam-se” no olho de quem vê.

FIGURA 8 - Oratório afrobrasileiro , acervo do Museu do Oratório em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.Fonte: museudooratorio.com.br/port/colecao_item.asp?id=8

Antes de sair por esta porta, aberta pelo número, vejo essa imagem: A senhora que dirigia-se para a igreja perguntou: por que fotografar esta casa velha e feia e não a minha que está pintada tão bonita aqui ao lado? Ela estava falando seriamente:como podemos ver beleza nas coisas arruinadas. Em verdade o que podemos ver quando olhamos são diversas coisas : os tons pálidos do cinza-rosado da parede úmida, o


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verde na inclinação perfeita para o rosa, a porta pesada e bem encaixada, a grade da cantina que forma com os outros retângulos da parede uma requintada composição gráfica. Ela também entra na composição, com suas roupas sérias e braços rosados. Podemos ver, na gradação de rosa e cinza as pinturas de Robert Motherwell29, quando colava e manchava palavras e imagens e assim da velha senhora com a boca aberta sairá sempre a pergunta que, se escrita, pode transformar- se em tipografia.

FIGURA 9 - Fotografia de Maria do Céu, viagem à Italia, 2008.

29

Pollock.

Robert americano, Motherwell, 1915-91. Pintor abstracionista, representante deste movimento juntamente com Mark Rothko e Jackson


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FIGURA 10 - Robert Motherwell- Marine Collage -1958- Virginia Museum of Fine Arts. Fonte: www.mutualarte. com/artwork/marinecollage

As pinturas e colagens de Motherwell empurram-me para o último número da casa, aquele escrito com giz. Ele que parece o mais recente e então hospeda o universo deste pintor. Mas sou logo abandonada pela pintura, pois sua técnica – a colagem – remete-me ao mundo do descarte e do lixo – sou jogada instantanemante numa avenida movimentada de uma grande cidade.


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FIGURA 11 - Shibuya Center Town. Fonte: http://housingjapan.com/tokyo-guide/residential-areas/shibuya-yoyogi-shoto/

Então vejo esse amontoado de pessoas e cartazes e sei que estou numa rua do Japão. Os edifícios ostentam as propagandas das grandes empresas de tecnologia. Elas prometem a superação do limite humano de compreensão e entendimento das imagens, minimizando infinitamente os ruídos das imagens e dos sons. O descarte de uma tecnologia por outra confere a esses rostos uma particular angústia. Envolvidos na névoa do não-saber30, olham para frente e convergem ao centro da lente do fotógrafo, apinhados e apressados. Então vejo nesta imagem a litografia de Hisaharu Motoda31, uma neo-ruína fantástica.

30 31

Nuvem do não- saber: texto místico anônimo do século XIV.

Hisaharu Motoda – 197 –, gravador japonês, premiado por suas gravuras em metal e em litografia de cidades apocalípticas.


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FIGURA 12 - Hisaharu Motoda- Neo Ruins- Litografia-2007 Fonte: www.pinktentacle.com/2007/05/neoruins-litographs-of-post-apocalytic-tokio/

O artista pulveriza a multidão e cobre a cidade com as cinzas de suas roupas, pele e cabelos. As políticas ecológicas e sustentáveis não têm sentido diante destas imagens.

FIGURA 13 - Hisaharu Motoda- Neo Ruins- Litografia-2007 Fonte:www.pinktentacle.com/2007/05/neoruins-litographs-of-post-apocalytic-tokio/


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O mesmo

silêncio da multidão –porque a foto não deixa perceber o nível de ruídos e de ondas

eletromagnéticas atravessando os corpos- está aqui também. A imagem é áspera e obedece à condução da perspectiva de quem estaria na janela de outro edifício ao lado do viaduto. Mas como não há mais ninguém, quem olhou o que estamos vendo? Ninguém pode ver com os olhos corporais e então essa imagem é inadimissível e insuportável. Somos empurrados para nosso mundo “real”, que se apresenta assim:

FIGURA 14 - James Natchwey- Ruins of Kabul from Civil War-1996Fonte:www.jamesnatchwey.com

Uma mulher caminha nas ruinas de uma cidade afegã. É um caminho ordenado pelos saltos de massas de edifícios bombardeados. As linhas de orientação estão irregulares e não temos o alívio da perspectiva aérea. Tudo se apresenta para aquele fantasma, que carrega em sua esteira estas camadas da cidade. Sua aparição condena a imagem anterior ao desaparecimento. Sua aparição faz com que tentemos escapar para as imagens de nossas cidades familiares. Mas ela não se mexe, pois pode ser que seja uma escultura tumular, uma rocha torcida pelo vento ou pelo calor das bombas. Dela irradiam estas outras imagens:


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FIGURA 15 - Fotografia de Maria do Céu. Obras de duplicação da avenida Antônio Carlos, em Belo Horizonte, Minas Gerais.

A porta escrita com o número de giz fecha-se atrás de mim. Estou diante da grande avenida próxima do caminho que faço todos os dias para o trabalho. As obras de ampliação da avenida estão assim: todo o dia cortam-se casas aos pedaços. Vemos os azulejos que cobriam uma cozinha, as cerâmicas que decoravam um quintal, o lugar do jardim, etc. Logo acima, o bairro escondido revela sua massa feia e descompensada:


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FIGURA 16 - Fotografia de Maria do Céu.

Como camadas arqueológicas, o desventramento da estrutura do edifício revela a fragilidade das famílias. Em cada pequena janela, agora abertas para a avenida, debruçam-se crianças e cortinas. O edifício parece querer despregar-se e ruir a qualquer momento.


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FIGURA 17 – Fotografia de Maria do Céu. O terreno desconhecido que vai surgindo é coberto com plástico preto. No que está mais visível, planta-se grama. No que já foi decidido pelos engenheiros, mete-se concreto e pinta-se de um tom limpo e petrificado. Os moradores de rua ocupam o que foi o terreno de casas e estendem cordões e lonas: ali será a sala, aqui a cozinha, o banheiro, determinam eles.


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FIGURA 18 - Fotografia de Maria do Céu.

As pessoas que caminham ali todos os dias: poderão escapar em seus pensamentos? Se elas olham para a linha de poeira e luz que brota do asfalto revirado e nessa poeira se desenhassem linhas e forças de massas de outras imagens , elas poderiam escolher como sair. Estas massas seriam as portas de imagens próximas, contidas nas brechas destas que ali estão, desenhadas também pelos corpos de quem vê e imagina.


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FIGURA 19 - Fotografia de Maria do Céu.


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FOTOGRAFIA 20 - Fotografia de Maria do Céu.

Para se escapar de uma imagem usando outra é preciso saber o que contém aquela imagem e o seu programa. A soma destas vontades visuais faz com que se escape para um outro programa parecido e nem sempre para “fora” da imagem. Cada vez mais dentro, num desejo de escapar da imagem real, vamos para a imagem forte que não se liberta com a imaginação. Presos no cárcere da imaginação, finalmente a realidade conduziu para um lugar sem saída, sem possibilidade de exisitir e sem imagem de escape. Desdenhando da camada primeira e banal das imagens, aprofundamos até não mais querer ver, até a cegueira do conceito.

Desta última imagem , nosso caminho agora é o confinamento. Não que seja última, mas é a que concluirá este texto. Dela – ou de suas mil possibilidades – ainda poderemos ver a arquitetura, a mística ou a imponderabilidade da linha e da luz. Desta imagem também nascem imagens , por certo. Mas que encerram na sua impossibilidade de viver em outro mundo a sua razão de existir, um lugar da arte. Somente confinados a um cárcere impossível, mas visível. Dos mil olhos que giravam pelas imagens, restam apenas dois que cerram as pálpebras, devagar.


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FOTOGRAFIA 21 - Giovanni Battista Piranesi- 1720-1778. Arquiteto e gravador italiano, autor dos Carceri del Inventione, gravuras em metal de masmorras e prisões de imensas proporções. Fonte: http://www.english.turkcebilgi.com/ Giovanni+Battista+Piranesi


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