Título original: Uma história sem pés nem cabeça
Autores: Miguel Calado Lopes
Ilustrações: Mariana Crisóstomo
Capa, Design e Paginação: Francisco Bordallo
Título original: Uma história sem pés nem cabeça
Autores: Miguel Calado Lopes
Ilustrações: Mariana Crisóstomo
Capa, Design e Paginação: Francisco Bordallo
O leitor tem pela frente um trabalho divertido. Compete-lhe “traduzir” esta história escrita em português idiomático para português “oficial”, digamos assim. Para tal, deve preencher as legendas associadas às ilustrações. O livro ficará assim completo. Este tipo de “tradução” constitui sempre um desafio linguístico, uma espécie de quebra-cabeças. É também um entretenimento didático inter-geracional. Um pai ou uma mãe, um professor de português e um aluno podem assim dar a conhecer à nova geração o significado de frases utilizadas no dia-a-dia, algumas das quais tendem a cair no esquecimento.
Uma expressão idiomática é uma frase cujo significado não resulta, dos significados parciais dos elementos que a compõem. Não se baseia na leitura literal das palavras que a formam. Ou seja, por exemplo, “vai dar uma volta ao bilhar grande” não quer dizer que tem que se fazer o que diz a
frase. Pura e simplesmente temos de ir “chatear outro”. Noutro exemplo, “tirar o cavalinho da chuva” não significa que esteja a chover e que o animal tenha de ir para um abrigo. Significa que não se vai conseguir o que se pretende.
Um idioma (uma expressão idiomática) é uma palavra ou frase que tem um significado figurativo convencionalmente entendido por falantes nativos de qualquer país. As expressões idiomáticas não significam, portanto, o que as palavras dizem. Apenas no seu conjunto têm significado próprio. É uma forma metafórica e figurativa do uso da fala que atesta a riqueza, criatividade, sentido de humor, pudor, o colorido de qualquer língua.
Por outras palavras idiomáticas, esta história sem pés nem cabeça tem ela própria uma história do arco da velha. Comecei a recolher expressões idiomáticas há muitos anos e a escrevê-las em papéis soltos que ia guardando na gaveta da minha secretária do extinto jornal A Capital. Mudei de jornais, perderam-se os papelitos e dele apenas restou uma memória vaga. No entanto, mante
ve-se intermitentemente num recanto das boas intenções a ideia de que o que tem de ser tem muita força. Não teve assim tanta, durante tantos anos. De vez em quando, lá aparecia um lampejo de vontade que se desvanecia rapidamente entre os outros afazeres jornalísticos.
Não me lembro quando e onde comecei a desconstruir o puzzle. Com a posterior ajuda, entre outros, do Dicionário Aberto de Calão e Expressões Idiomáticas, de José João Almeida, da Universidade do Minho (que consultei de fio a pavio), fui retirando peça a peça. Organizei-as segundo temas, significados, subentendidos, duplos sentidos, etc. A história foi então ganhando forma e evoluiu à medida dos idiomas que iam caindo, segundo categorias, nesta ou naquela parcela da secretária de trabalho caseiro, ou nesta ou naquela pasta do computador.
A criação da narrativa decorreu ao sabor da arrumação aleatória das pastas. Tinha por obje tivo contar de forma indireta o que não se queria, ou podia, dizer diretamente. No fundo, esta é a essência da expressão idiomática. Fui escrevendo
pacientemente, um parágrafo hoje, outro amanhã ou no mês seguinte. Ficou “na gaveta” até ser redescoberta. Retomei-a, retoquei-a, finalizei-a e guardei-a à espera de melhores dias.
Foi graças à pandemia que o texto viu a luz do dia, melhor dizendo, a luz do ecrã do leitor. No âmbito de um conjunto de trinta Crónicas do Confinamento publicadas em 2020 na edição “online” do jornal Expresso, a história finalmente tornou-se pública em três dias consecutivos.
tinha o traço que eu pretendia. Melhor ainda, já tinha um pequeno portefólio de “bonecos” para expressões idiomáticas. Juntou-se o útil ao agradável e nasceu este livro.
Por razões gráficas, a história original foi ree ditada e reescrita. E aumentada. Mas o acrescento nunca pode ser final. Contemplam-se aqui perto de 300 expressões idiomáticas, mas há milhentas. E com elas podemos continuar a escrever esta e outras histórias.
No entanto, faltava nessa publicação o meu objetivo de sempre – ilustrar a história, fazer dela uma espécie de dicionário ilustrado. Com a boca na botija necessitava de um boneco apropriado com um balão ou uma linha, à banda desenhada, onde o leitor deveria escrever em flagrante.
Estando a trabalhar com Francisco Bordallo no grafismo de outro livro, falei-lhe neste projeto e juntos pesquisámos. Eu sabia exatamente que tipo de ilustração pretendia e há muito que andava à procura. E foi assim que surgiu, em boa hora, o nome de Mariana Crisóstomo. Era ela quem
Cada leitor fará a sua “tradução”. Não há, nem é possível, obviamente, uma só versão. Cada leitor terá a sua e todas são válidas, desde que se mantenham fiéis à narrativa idiomática. A versão apresentada no final não será a melhor nem a pior. É a do autor… que ia dando cabo da “caixa dos pirolitos” no trabalho de “tradução”!
Miguel Calado Lopesdeitou-se com as galinhas e conversou com o travesseiro com um olho aberto e outro fechado. Habitualmente despertava com o rabo virado para a Lua, mas naquele dia acordou com os pés de fora. Parecia que tinha bicho carpinteiro. Não era para menos. Na véspera tinham-lhe dito que ia estar…
Deixou-se estar a pensar na morte da bezerra sem saber o que lhe tinha acontecido. Passou pelas brasas mas sempre com a sensação de ter as orelhas a arder.
Decidiu levantar-se mas estava com a telha. Quando se pôs de pé, fê-lo de pé atrás porque sentiu uma pedra no sapato. E não entendia como é que tinha ido lá parar. Disse para si próprio tenho de…
descalçar esta bota. A barriga deu horas. Preparou como sempre fazia o seu mata bicho. Tinha água na boca.
O certo é que estava metido numa grande alhada, ou, melhor dizendo, em que o meteram. Fosse como fosse, o caldo estava entornado, mas não estava disposto a engolir sapos vivos…
Não ia ser canja. Que berbicacho! Na véspera, sem que nada o fizesse prever, tinha levado com um balde de água fria e ficou com água pela barba. Pôs as barbas de molho e decidiu que não podia lavar as mãos sobre um problema para o qual ele pouco ou nada tinha contribuído. Já era mais que tempo de sacudir a água do capote. Não podia continuar a…
fugir com o rabo à seringa e deixar de andar entre os pingos da chuva.
Tinha de tomar uma decisão. Se eles querem lavar a roupa suja, pensou enquanto bebia o café, iria levar a água ao seu moinho, nem que tivesse de remar contra a maré, sem abandonar o barco, nem meter água. Tudo aquilo trazia água no bico e, por isso mesmo, não podia borrifar-se para o assunto nem deixá-lo em…
…águas de bacalhau. Estava com cara de pau e olhos de car neiro mal morto. Parecia uma barata tonta sem saber a quantas anda. Só lhe apetecia amarinhar pelas paredes acima e começar bater com a cabeça na parede. Sabia, isso sim, que não podia enterrar a cabeça na areia. Sentia-se…
…no fio da navalha porque as coisas tanto podiam correr bem ou correr mal depois de ter metido o pé na argola. Pôs a mão na consciência. Pensando bem, a verdade é que se tinha posto a jeito quando pisou o risco ao sair da casca. Nunca imaginou que um conjunto de circunstâncias coincidissem num encontro ocasional onde arranjou lenha para se queimar e foi apanhado com…
… a boca na botija. Duvidava ser capaz de dar conta do recado porque a coisa estava mal parada! Havia alguém a mexer os cordelinhos para lhe fazer a cama e isso ele não podia aceitar. De certeza que foi um bilhardeiro que lhe cortou na casaca. Há sempre gente que gosta de meter o bico onde não é chamada e…
… a foice em seara alheia. Gostava de saber quem foi o coscuvilheiro que assistiu ao encontro e depois foi dar com a língua nos dentes só para ficar bem visto. Sabia que tinha borrado a pintura com aquele passo em falso, mas nunca imaginou que lhe descobrissem a careca. Não tinha nada a esconder. Não se sentia culpado, mas a sua intuição dizia-lhe que iria ter muita sarna para se coçar. De qualquer modo,…
… o tiro ia sair-lhes pela culatra. Iria contar a sua versão dos acontecimentos. Queriam entregá-lo aos bichos, mas não iria fazer figura de urso nem estava disposto a ser o bode expiatório de uma história do arco-da-velha. Não reparou que tinha caído numa armadilha. Em vez de andarem com...
...macaquinhos no sótão, o melhor que tinham a fazer era tirarem o cavalinho da chuva porque agora é que a porca vai torcer o rabo. Não ia ficar à espera que as coisas lhe caíssem em cima. Não ia meter o rabo entre as pernas nem dar o braço a torcer. Podia ter culpas, já o sabia, mas não esteve sozinho em toda aquela embrulhada. Por isso, não ia dar a mão à palmatória, tanto mais que a sua natureza não lhe permitia...
...enfiar a viola no saco e baixar a bola. Andou de um lado para o outro, sentou-se, e decidiu enfrentar o boi pelos cornos. Antes de chegar a esta conclusão deu, e mais que deu, muitas voltas ao miolo. Sentiu-se aliviado logo a seguir ter resolvido que não ia pôr-se na alheta. Dirigiu-se a toque de caixa pela calada da noite até ao local onde a reunião ia ter lugar. Lá chegado, bateu com o nariz na porta. Descobriu…
… a porta do cavalo depois de ter dado a volta ao edifício, que era perto da casa do diabo mais velho. Tendo todo o cuidado em não dar nas vistas, entrou com pezinhos de lã. Encontrou um esconderijo e pôs-se à coca. A reunião começou tarde, lá para as quinhentas, talvez porque as pessoas tivessem demorado a chegar atrás do sol posto, precisamente…
…onde Judas perdeu as botas. A reunião, convocada não se sabe por quem, foi adiada várias vezes, ficou marcada para a semana dos nove dias e acabou por se realizar no dia de São Nunca à Tarde. Em vez de estar à cunha, a sala estava às moscas. Só apareceu meia dúzia de gatos-pingados a dizer que o melhor era darem-lhe…
… cabo do canastro. À frente do cortejo dos gatos-pingados, surgiu o manda-chuva, mais conhecido por o Silva dos Plásticos. Era um rodas bai xas todo cheio de nove horas a comer alcagoitas, a polir as unhas na lapela e a pedir licença a um pé para mexer o outro. Vinha disposto a puxar dos galões. Quem o visse a ser levado nas palminhas pelos seus amigos aos salamaleques até podia dizer-se que tinha o rei na barriga. Ainda por cima o minorca pançudo vinha a…
rebentar pelas costuras no seu fato domingueiro feito a martelo e às três pancadas. Notava-se logo que tinha feito um esforço para aparecer todo afiambrado e mostrar que vinha com punhos de renda. Claro que estava a armar-se ao pingarelho para evidenciar a gravidade do assunto. No entanto, a sua vozinha de cana rachada reduziu-o à sua dimensão. Apresentou-se assim apenas para inglês ver. Só enganou quem quis. Via-se logo que nunca tinha bebido…
… chá em pequenino. No fundo, era um casca grossa que vinha com paninhos quentes a ver se conseguia levar a água ao seu moinho. Começou todo lampeiro a cantar de galo. Armou de imediato uma peixeirada do tamanho de uma casa, dizendo cobras e lagartos àcerca do pobre do Zé dos Anzóis. A verdade verdadinha é que é um daqueles cromos que, quando abrem a boca, ou…
…entra mosca ou sai asneira. Se dizia mata, os seus amiguinhos diziam esfola. O que queria era partir a loiça toda. Pôs-se com bocas e fartou-se de dar bitaites, enfim, a arrotar postas de pescada para fazer render o peixe.
— Eu topo-o!, exclamou o Silva dos Plásticos.
— Anda a arrastar a asa à menina dos meus olhos, a minha querida filhinha, e está a contar com…
…o ovo no cu da galinha. Não passa de um nabo sem ponta por onde se lhe pegue que não tem eira nem beira nem onde cair morto. Onde é que já se viu! Já a formiga tem catarro! Eu bem sei o que pretende aquele espirra cani vetes. Não passa de um pau de virar tripas, de um trinca espinhas a querer dar o…
…golpe do baú e fazer um negócio da China, ou seja, juntar os trapinhos com a minha herdeira mesmo antes de eu ir desta para melhor. Ele não julgue que me endromina com as suas falinhas mansas. Só por cima do meu cadáver!
Foi por esta altura que o Silva dos Plásticos começou a perder o fio à meada e a encanar a perna à rã. Embora tenha dito que ia…
…pôr as cartas na mesa e os pontos nos ii, só disse patacoadas. Quis puxar a brasa à sua sardinha, mas misturou alhos com bugalhos e meteu os pés pelas mãos. Via-se que o seu trinta-e-um de boca tinha sido colado com cuspo em cima do joelho. Esteve meia hora a partir pedra. As pessoas presentes na reunião já estavam fartas de o ver a ...
…a voltar à vaca fria numa chinfrineira de muita parra e pouca uva, porque torna e porque deixa, que o Zé dos Anzóis tinha aterrado de paraquedas e anda armado em anjinho como se não fosse nada com ele. Continuou a chover no molhado até que, finalmente, depois de ter limpo o suor da testa e de se ter assoado, disse para ele ir ver se chove e dar uma volta ao bilhar grande, que dali não leva nada. Olhando em volta da sala, gritou alto e bom som: — Não há dúvidas, o melhor que temos de fazer é …
… encostá-lo à parede. Temos de o agarrar pelo gasganete!
— Pois é, pois é, gritaram os gatos-pingados já todos excitados.
— Ele não pode andar por aí feito chico esperto armado em carapau de corrida.
— Temos de lhe chegar a roupa ao pêlo e deixá-lo num molho de brócolos.
Escondido atrás da porta do cavalo por onde tinha entrado, ao ouvir isto, o Zé dos Anzóis mal se…
… aguentou nas canetas e começou a tremer que nem varas verdes. Quase lhe deu um fanico, que mais pareceu um badagaio, e foi por causa disso que pensou em dar corda aos sapatos quando começou a ver a vida a andar para trás. Estava com os nervos em franja e à flor da pele. Imaginou-se logo com os pés para a cova a dar o berro. De certeza que lhe estava reservada uma morte macaca.
quando se viu mais para lá do que para cá. Saiu do seu coio, respirou fundo, arregaçou as mangas e gritou perante a surpresa de toda a gente: — Alto e pára o baile, aguentem os cavalos! Não vale a pena estarem a bater mais no ceguinho. Quem fala assim não é gago, oh senhor Silva dos Plásticos, mas nem tanto ao mar nem tanto à terra. Trata-se de uma tempestade num copo de água, uma caganifância. Tudo aconteceu porque caí no...
...conto do vigário de um gandulo que me veio com o negócio da China e me vendeu gato por lebre. Passei as passas do Algarve, fiquei sem cheta e teso que nem um carapau. Tinha ido laurear a pevide para desopilar porque andava de monco caído e de orelha murcha. Estava de tal maneira mal que até pensei em…
…pendurar as botas e ir morrer longe. Ia indo mesmo quando a Ai Jesus do nosso manda-chuva quase me passou a ferro ao surgir na esgalha com a sua banheira cor de burro quando foge. Vinha com a corda toda, à rédea larga e de vento em popa. Mal me viu, estacionou à má fila, mandou-me uma oftálmica, piscou-me o olho, arreganhou a tacha e, depois, em vez de um passou-bem, deu-me uma grande bacalhauzada e um chocho como manda a sapatilha. Começou logo com uma…
… conversa para boi dormir, a lançar o barro à parede, a dizer que estava em brasa. Logo a seguir, enquanto o diabo esfrega um olho e a pensar que eu já estava no papo, atirou-se de cabeça e perguntou-me, tentando tirar nabos da púcara oh Zé, andas aos papéis, aos bonés ou queres vir bater as capelinhas como dois pombinhos?
Vinha toda aperaltada. Perdoem-me minhas senhoras e meus senhores, já não é nenhuma chavala mas ainda…
…está para as curvas. Assim de repente, encheu-me as medidas, caiu-me no goto. Senti-me nas minhas sete quintas, já a chamar-lhe um figo. Devo confessar que achei que tinha encontrado a minha galinha de ovos de ouro, embora desconfiasse que a coisa ia dar para o torto. Toda a gente sabe que ela não bate bem da bola nem da caixa dos pirolitos. Como quem não quer a coisa, começou a cantar…
… a canção do bandido para me levar à certa. São só dois dedos de conversa, disse, mas depois começou a falar pelos cotovelos a dizer que ia a abrir o coração Era uma história de faca e alguidar, mas, cá para mim, não tinha nem pés nem cabeça. Continuou, quase desculpando-se, sublinhando que não é uma maria-vai-com-as-outras. Quando começou a pintar a manta mais me convenci que...
... a história não lembrava ao careca. Contou que tinha tido uma paixão de caixão à cova de fazer chorar as pedras da calçada. Mais ou menos nesta altura tirou-me as medidas e até me fez corar. Com uma voz meiga e toda sorridente, disse-me que tínhamos nascido um para o outro e que se tinha juntado a fome com a vontade de comer. Fechei-me em copas. Não me queria meter em embrulhadas. Pensei em pôr-me ao fresco e dar à sola porque vi logo pela sua pinta que ela me ia…
…dar galo. Ainda por cima teve a lata de me sussurrar ao ouvido que estava em brasa para irmos brincar aos médicos e, quem sabe, fazer marmelada. Tudo aquilo era demasiada areia para a minha camioneta. Não tinha pernas para andar. Primeiro, ficou de orelha murcha, mas depois passou-se dos carretos quando percebeu que eu lhe estava a dar com os pés. Foi então que...
... o verniz estalou quando a mostarda lhe chegou ao nariz. Como os senhores devem saber, e permitam-me a expressão, ela tem pêlo na venta. Custa a admitir ao nosso manda-chuva que a menina dos seus olhos não é lá muito flor que se cheire. Tem fúrias por dá cá aquela palha. Mesmo assim, chorou que nem uma Madalena mas depressa ficou pior que estragada. Deu logo a volta por cima e gritou-me não julgues que eu ia dar pérolas a porcos. Disse para eu crescer e apa recer e mandou-me…
…pentear macacos, ou então, se preferisse, lamber sabão. Continuou a dizer que tinha sido parva em pensar ter alguma coisa comigo porque, sendo eu o que era, seria sempre um sol de pouca dura. Tirou-me um peso de cima. Eu estava quase a cair que nem um anjinho mas a verdade é que me sentia em palpos de aranha, mais exatamente entre a espada e a parede. Se aceitasse a sua proposta e o nosso boss soubesse, eu ia ficar…
…feito num oito. Se não aceitasse, ia dizer cobras e lagartos ao pai e ele podia mostrar-me a porta da rua. Mas, se eu for para despedido, o Sr. Silva pode ir parar ao xadrez. Venha o diabo e escolha. Ponhamos uma pedra sobre o assunto e atiremo-lo para trás das costas. Foi…
…chão que deu uvas, mais vale passar por ele como por terra vindimada. Não vale a pena andarmos para aqui a chorar sobre leite derramado. O melhor é irmos todos trabalhar para o bronze e sentarmo-nos à sombra da bananeira antes de irmos desta para melhor.
As coisas acalmaram quando os presentes chegaram à conclusão que o melhor era retomarem as suas vidinhas. Entretanto, o Zé dos Anzóis concluiu que não podia…
… ficar a ver navios. Sabia que, mesmo que tudo tivesse acabado mais ou menos bem, teria de atravessar o deserto. Resolveu dar corda aos sapatos e instalar-se em cascos de rolha disposto a partir do zero. Estavam sempre atirar-lhe à cara que era um zero à esquerda. Embora tivesse a escola toda, diziam-lhe que não passava de um doutor da mula ruça. Por sua alta recriação, decidiu voltar a…
… queimar as pestanas e arranjar um canudo para deixar de ser um marinheiro de água doce, que era o que lhe convinha. Ainda tinha atravessada a caldeirada onde o tinham metido. Por isso, atirou a decisão para as calendas gregas porque estava a gostar de andar a fazer cera. Só queria que lhe desamparassem a loja. O que gostava mesmo era de …
…estar de papo para o ar sem mexer uma palha. Não lhe apetecia ir bulir para ganhar a vida. Faltava-lhe o pilim, é certo, mas não ia trabalhar para o boneco nem matar a cabeça por causa disso. Estava nas nuvens a ganhar o dia a fazer horas à espera de uma vida à grande e à francesa.
O Silva dos Plásticos retomou o seu trabalho como se nada tivesse acontecido. Embora parecesse andar com uma gata pelo rabo, sem estar a cair da tripeça e...
do pé para a mão e de um dia para o outro, mudou-se para a sua última morada no jardim das tabuletas. Quer dizer, deu o último suspiro, esticou o pernil e foi desta para melhor. Comentou-se logo que alguém lhe tinha tratado da saúde. Um mirone afirmou aqui há marosca. Atiraram-lhe uma casca de banana, foi o que alguém disse.
O Zé dos Anzóis ficou sem saber o que pensar mas depressa viu que não havia nada a fazer. Agora…
…é tarde e Inês é morta. Tanto se me dá como se me deu. Fosse ou não fosse à quinta dos pés juntos, seria preso por ter e não ter cão. Um dia não são dias. Para não ficar mal visto, pôs-se a caminho, embora pensasse que se ia meter na boca do lobo.
Chegou com a língua de fora, a deitar os bofes pela boca e com o credo na boca. Estava decidido a fechar-se em copas, apenas disposto a uma troca de galhardetes que a circunstância impunha. Podem vir todos de carrinho! Não levam nada. Estava um...
briol de rachar, e uma chuva de molha-tolos. Havia muita cara de enterro à exceção de uma dondoca com ar de Barbie e fama de padeira de Aljubarrota. Foi com um sorriso amarelo, mas não muito, que ela se apresentou. — Obrigada por ter vindo, sr. Zé dos Anzóis, apesar do que o meu defunto lhe fez, que Deus o tenha no inferno. Assisti a tudo e fiquei logo pelo beicinho quando o vi com pele de galinha. Joana Silva, viúva do finado Silva, o Silva dos Plásticos. Que horror! Não sei da missa a metade, mas ele andava sempre a…
…pôr-me os palitos. Respondi-lhe taco-a-taco. Rei morto, rei posto. Espero que já tenha lambido as suas feridas. Venha daí!
À primeira vista parecia uma mulher de faca na liga. Vinha de nariz empinado, toda cheia de não me toques. Parecia que tinha sangue azul e vinha pronta, ao que parecia, a ajustar contas.
— Venha daí, não vamos carpir mágoas, vamos mas é…
— Mas então a senhora…
— Trate-me por Joaninha, sr. Zé dos Anzóis.
— Joaninha, trate-me por Zézinho…
— Sim, sou a mãe dessa garina que endrominou o menino, armou um 31 e o deixou pelas ruas da amargura. Teve cá uma lata! Depois do Zézinho lhe ter dado aquela banhada, passou-se para o outro lado, saíu do armário, não sei se está a topar? Sabe, sou uma mulher que tem os pés bem assentes na terra e não tenho...
… papas na língua. Dirigiu-se para a sua banheira, uma caran guejola, sentou a bilha ao volante e abriu a porta e disse:
— Sou um culo de mal asiento, como dizem os nuestros hermanos. Gosto de andar de cú tremido. Venha daí, Zézinho. As paredes têm ouvidos. Vamos pôr as coisas em pratos limpos, mas não se preocupe, não se trata de nenhum bicho de sete cabeças.
Só lhe faltava o chapéu para ser condutora domingueira mas depressa começou a abrir. Tinha a mania que era especial de corrida e já estava com um…
… grão na asa sem nunca trocar o passo. Depois de dourar a pílula e dizer que não ia ser nenhum mar de rosas, entrou a matar.
— Não é tarde nem é cedo, não podemos perder tempo. O menino não ata nem desata. Não seja um atraso de vida. Ou sim ou sopas.
O Zézinho perdeu o pio, ficou branco como a cal, como se tivesse sido apanhado com as calças na mão e sabia que...
... não lhe chegava aos calcanhares e por isso não queria meter-se em altas cavalarias. A Joaninha estava a sair da flor da idade, um pouco flor de estufa, é certo, mas ainda de encher as medidas. Aqui há gato!, pensou, mas foi a pensar que morreu um burro. Há muito tempo que andava com uma mão à frente e outra atrás. Estava ali uma luz no fundo do túnel. Deitou contas à vida e viu-a a andar para trás. Pelo sim pelo não, o melhor era juntar o útil ao agradável. Não há bela sem senão. Começou por…
… medir as palavras mas não disse coisa com coisa. Antes de se arrepender por poder dar um pontapé na sorte disse sem pestanejar:
— Joaninha, vamos dar o nó!
— Oh Zézinho, bem me parecia que ia ser um amor e uma cabana.
— Dê cá uma beijoca.
— O melhor que temos a fazer é dedicarmo-nos à pesca.
O leitor tem pela frente um traba lho divertido. Compete-lhe “tradu zir” esta história escrita em por tuguês idiomático para português “oficial”, digamos assim. Para tal, deve preencher as legendas asso ciadas às ilustrações. O livro ficará assim completo. Este tipo de “tra dução” constitui sempre um desafio linguístico, uma espécie de quebra-cabeças. Cada leitor fará a sua “tradução”. Não há, nem é possível, ob viamente, uma só versão. Cada leitor terá a sua e todas são vá lidas, desde que se mantenham fiéis à narrativa idiomática. A versão apresentada no final não será a melhor nem a pior. É a do autor… que ia dando cabo da “caixa dos piro litos” no trabalho de “tradução”!
Miguel Calado Lopes