Cadernos da FEI - Edição Especial

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a história contada por diversas vozes F Um

desejo dos Bispos Dom Odilo Pedro Scherer

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ÍNDICE F São

José de Anchieta, Apóstolo do Brasil

F

Os Jesuítas e a Canonização Pe. Adolfo Nicolás, S.J. .........................31

F

Dom Orani João Tempesta

A História contada por diversas vozes

Palavra do Presidente

São José de Anchieta Pe. Theodoro P. S. Peters, S.J. ........................ 06

F

Anchieta na Palavra dos Papas Dom Odilo Pedro Scherer ............................. 17

F

A Celebração com o Papa em Roma Dom Raymundo Damasceno Assis ............... 19

F

Anchieta, a Companhia de Jesus e o Brasil Pe. Alfonso C. Palacio Larrauri, S.J. ............. 36

F

Uma lição de vida Pe. Miecszyslaw Smyda, S.J. ......................... 38

F

Um intercessor para o Brasil Pe. Theodoro P.S. Peters, S.J. ........................ 41

Linha do Tempo .............................................................10 A Canonização F

Missa de Ação de Graças Papa Francisco ............................................... 15

Entrevista

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F

José de Anchieta: inteligência, cultura e santidade Pe. Danilo Mondoni, S.J. ............................... 12

F

José de Anchieta, um ícone da evangelização Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J. ................. 44

F

Nos bastidores da Canonização Pe. César Augusto dos Santos ........................ 47

F

Os santos têm uma missão Pe. Marcelo F. de Aquino, S.J. ...................... 46

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a história contada por diversas vozes

Padre Anchieta, tela de Cândido Portinari, de 1954.

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editorial Caros(as) leitores(as) Com grande satisfação apresentamos esta edição especial dos Cadernos da FEI que homenageia o Jesuíta e Santo, José de Anchieta, que cumpriu 44 anos de sua nobre missão entre nosso povo, buscando agregar índios, brasileiros, portugueses e espanhóis, em prol da unidade e da paz de nosso território. Certamente, gerir diferentes culturas em circunstâncias adversas exigiu deste homem qualidades e virtudes que estavam muito além de suas capacidades humanas. A canonização de José de Anchieta, no último mês de abril, num primeiro momento nos surpreende, considerando a ausência da comprovação científica do segundo milagre exigido pela Igreja Católica; mas,

por outro lado, nos conforta, pelo senso da dívida paga, ao reconhecer as virtudes que nortearam suas ações em vida – humildade, serenidade, caridade, coragem e fé, um milagre em si. É com esse objetivo que a FEI, irmanada na alegria de todos os Companheiros de Anchieta, quer compartilhar com todos seus colaboradores e parceiros extratos da história de José de Anchieta, por meio de diferentes leituras e de diferentes vozes que se emocionaram com o anúncio de sua canonização e, consequentemente, com o reconhecimento de uma vida de graça, de dedicação às coisas de Deus e de respeito ao próximo.

são repleta de riscos e sacrifícios na tão longínqua terra do Brasil, somada à soberba da ousadia que demonstrou na execução de sua missão, sejam inspirações para o modelo de universidade empreendedora que buscamos desenvolver e para o modelo de homens que pretendemos educar. Que nos engrandeçamos com os testemunhos de simplicidade desse jesuíta que costumava assinar suas cartas aos superiores de Roma, simplesmente como – O último da Companhia de Jesus, José. Boa leitura.

Que a humildade de suas ações e de seu desprendimento ao aceitar ainda jovem uma mis-

Prof. Dr. Fábio do Prado Reitor do Centro Universitário da FEI

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palavra do presidente

SÃO JOSÉ DE ANCHIETA

A surpresa e a alegria nos impactaram. Surpresa, pela dis­ pensa de um novo milagre. Ale­ gria, pela atenção dada ao Brasil através do reconhecimento do seu grande Apóstolo. O milagre exigido pelo processo foi comu­ tado porque a vida de Anchieta foi um milagre da graça de Deus sempre presente e correspondi­ da pelo mesmo em todas as suas atitudes, palavras e ações. As palavras passam e tudo o que foi colocado por escrito per­ manece, já se afirmava na anti­ guidade. Anchieta deixou seu 6

legado por escrito em suas obras e cartas. Nelas, ele se revela pela fé, ciência, cultura, sensibilidade para adaptar­se e interagir em situações até então desconheci­ das, que se tornam oportunida­ des para desenvolver sua missão. Deixou a Europa, a Penín­ sula Ibérica, e embarcou para o Brasil com ideal e a cora­ gem para descobrir, conhecer e envolver­se no Novo Mundo. Chegando ao Brasil, ficou bra­ sileiro, aqui gastando sua vida, consagrando sua inventividade, transmitindo sua fé até a mor­ te, e aqui foi sepultado pela sua gente, pelos seus índios. Não retornou à Europa fisicamente,

Pe. Theodoro Paulo S. Peters, S.J. Presidente da FEI

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m abril o Papa Francisco declarou que o Padre José de Anchieta está in­ cluído no Cânon como modelo no seguimento de Jesus e na res­ posta aos apelos da vontade de Deus em sua vida e serviço.

Chegando ao Brasil, fi­ cou brasileiro, aqui gastando sua vida, consagrando sua inventividade, transmitindo sua fŽ atŽ a morte, e aqui foi sepultado pela sua gente, seus ’ ndios.


palavra do presidente mas a percorreu com sua corres­ pondência, apresentando a mis­ são como um empreendimento a serviço de Deus, das pessoas, nas circunstancias em que vi­ viam, para estimular mais jovens idealistas a seguirem o caminho de oferecer o melhor da cultu­ ra, da fé, dos próprios talentos, para a construção do novo país. A oportunidade percebida nas diferenças e distâncias culturais a serem complementadas, atra­ vés da reciprocidade que ofe­ rece e recebe o melhor de cada povo, em vista de uma nação que construísse o Reino de Deus pela justiça, fraternidade e so­ lidariedade. “Vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o povo de Deus, que não tínheis alcançado a misericórdia, mas agora a alcançastes.” (1Pe. 2,10). “Ele fez de ambos os povos um só, tendo derrubado o muro de separação e suprimindo em sua carne a inimizade... a fim de criar em si mesmo um só Ho­ mem Novo estabelecendo a paz” (Ef. 2,14.15). A cultura ocidental dispunha

da fala articulada, escrita, teatro, conteúdo acumulado, registrado, arte da música, farmácia, línguas estrangeiras, clássicas, literatura, metodologia, o desenvolvimento da ciência e sua consignação em obras nas grandes bibliotecas, o trato refinado na sociedade das pessoas, a hierarquia organiza­ dora do bem comum, as leis, a produção de alimentos, os recur­ sos da medicina e todos os meios disponíveis, ainda que limitados. Esta cultura chega ao Brasil através de primeiros degreda­ dos, a seguir com as capitanias, os governos gerais. Chegam e encontram vastidões oceânicas, florestas surpreendentes, cursos fluviais, abundância diversifica­ da de natureza animal: quadrú­ pedes, bípedes, peixes, flora, insetos, fornecedores de alimen­ to para a vida e a subsistência. Tinham o hábito de escravizar para o trabalho, para o domínio. Os habitantes brasílicos des­ nudos, com cultura transmitida oralmente, organização social su­ mária, muito solidários. Lidera­ dos por caciques para expedições Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

de caça e guerra de ataque ou defesa, algumas tribos antropó­ fagas devoravam os capturados. Era hábito aprisionar para matar e devorar os inimigos vencidos de todas as idades. A religiosidade e a saúde eram expressas sob a in­ fluência dos pajés e xamãs. Inter­ pretavam a natureza para viver e sobreviver com sustentabilidade. Viviam em pequenas aldeias, grupos de famílias, nas quais to­ dos tinham muita autonomia, es­ pecialmente as crianças. Vulneráveis às doenças euro­ peias, à conquista, exerciam a lei do mais forte, do menos vul­ nerável às investidas da natureza bravia: mãe que provê, porém é cruel com a caça, com o caçador, com o coletor. Vivendo aclima­ tados ao sol, calor, intempéries, chuvas, torrentes e enchentes. Seus corpos eram expostos ao frio, ca­ lor, animais predadores, veneno­ sos, insetos nocivos. Vivem da natureza, fazem farinha de pau, preparam choupanas, cabanas, são pessoas racionais, plenamen­ te em defasagem no que tange à cultura ocidental e oriental. São 7


palavra do presidente

O confronto desigual pode­ ria ser a oportunidade para a reciprocidade cultural, o amál­ gama que forjaria o seu povo. Igualmente, começava a che­ gada de africanos para o tra­ balho escravo, sem direitos e, igualmente, apenas com cultura oral. “Esta terra é nossa empre­ sa” foi a expressão do primei­ ro superior provincial jesuíta, Pe. Manoel da Nóbrega. Nela, a vida cristã, religiosa, cidadã deve criar suas raízes. Nela, o Verbo de Deus deve se encarnar para conduzir as diversas ex­ pressões culturais na adesão à fé que ilumina a vida terrena pela esperança da imortalidade em comunhão com Deus Criador e toda a sua Criação. 8

Anchieta iniciou seu itinerá­ rio embasado na cultura euro­ peia, partilhando seu saber, sua fé, sua adesão ao Evangelho, para induzir os colonos, os bra­ sílicos e os africanos a acolherem os grandes valores que tornam possível a paz e a fraternidade.

meninos grandes, com vanta­ gens da terra, desvantagens na guerra e no confronto. Vigiam ferozmente seus territórios ante os estranhos e desconhecidos: índios, brancos, africanos. Defa­ sagem na defesa, armas precisas e precárias, botes, pirogas e ca­ noas diante caravelas com apa­ relhos de navegação.

Em suas cartas, atestou di­ ficuldades, progressos, oportu­ nidades. Sempre comunicou a certeza de que Ž poss’ vel encontrar a Deus em todas as pessoas e conduzi­las ao con­ v’ vio com Ele.

Os passos de Jesus deviam palmi­ lhar esta terra virgem, inocente e, ao mesmo tempo, hostil. Articular os avanços da cultura e ciência das três etnias foi um esforço de criati­ vidade para gerar na fé e consoli­ dar o amadurecimento dos neófi­ tos. Trabalhar com todos, acolher a todos. Convidar e incentivar a reter o melhor de si e a repelir o que destrói a convivência, a par­ Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

tilha e a segurança. A braveza do índio a serviço do fortalecimento do caráter, da honra, da coragem para fazer o bem. A docilidade do africano, desenraizado e deitando as raízes em outro mundo, suan­ do para tornar possível a vida. A ganância e astúcia europeias. A resposta foi educar para transformar as gerações através das crianças, nas escolas pela catequese, na encenação teatral das vidas de Jesus, de Maria e dos Apóstolos. Cada grupo fez renúncias, escolhas, seleções de seu passado, modo de viver, vi­ vendo a contradição entre a for­ ça e a liberdade, entre os antigos e novos usos e costumes. Inva­ sores e invadidos, livres e escra­ vizados, eram mediados para a concórdia, reconciliação, cola­ boração profícua e duradoura. Não havia modelo a seguir a não ser guiar­se pela intuição. Olhos nos céus! Pés na terra! Mãos à obra! Anchieta viveu a dialética do ideal, possível, real. Anchie­ ta correspondeu­se com Inácio de Loyola e Laines, fundadores da Companhia de Jesus, com


palavra do presidente Francisco de Borja, Everardo Mercuriano e Cláudio Aqua­ viva, gerais da ordem, e muitas outras pessoas. Em suas cartas, atestou dificuldades, progressos, oportunidades. Sempre comuni­ cou a certeza de que é possível encontrar a Deus em todas as pessoas e conduzi­las ao conví­ vio com Ele. Como São Pedro e São Paulo, sabia viver em qual­ quer condição, porque acredi­ tava que Deus o guiava em seus caminhos para o evangelho a ser partilhado e encarnado em to­ das as latitudes, culturas e povos. Esta atitude perseverante de An­ chieta é reconhecida pela Igreja, que o apresenta como testemu­ nho e exemplo a todas as pessoas de que Deus existe, está no meio de nós para nos salvar e alegrar com a vida eterna. Em comunhão com a Igreja, com o povo brasileiro e a Com­ panhia de Jesus, a FEI apresenta esta edição especialmente de­ dicada a São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil nascente, garantindo que a santidade e a vocação de toda pessoa criada à

Lições de gramática, canto e religião eram realizadas ao ar livre pelos jesuítas.

imagem e semelhança de Deus é dom de sua Sabedoria Inefável. Que todos possam partilhar os bons desejos e estímulos que Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

Anchieta desperta, renovando o próprio sentir, pensar e agir. São José de Anchieta, velai pelo Brasil, intercedei por todos os filhos! ❒ 9


A Canonização

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A Canonização

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a canonização

UM DESEJO DOS BISPOS DO BRASIL Mensagem aos Bispos da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

vos pelos quais, a meu ver, o pedido mereceria nossa aprovação.

Na pauta da Assembleia Geral da CNBB, de 2012, constava a apreciação do pedido da Associação Internacional Anchieta para que o Beato Padre José de Anchieta fosse declarado padroeiro da Catequese no Brasil.

Estamos vivendo o Ano da Fé, cujos frutos dependem muito de uma boa catequese; em outubro de 2012, foi celebrada em Roma a 13ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, com o tema “Nova evangelização para a transmissão da fé cristã”; a catequese está inteiramente implicada no processo de transmissão da fé cristã. E no próximo mês de julho, estaremos acolhendo e realizando no Brasil a Jornada Mundial da Juventude; mais uma vez,

Tal questão, porém, acabou não podendo ser apreciada, por excesso de temas e por falta de tempo. Assim, a apreciação do mesmo pedido ficou para a pauta da Assembleia Geral da CNBB deste ano, 2013. Como arcebispo de São Paulo, respaldando a iniciativa da Associação Internacional Anchieta, desejo apresentar, a seguir, alguns moti12

Dom Odilo Pedro Scherer Cardeal Arcebispo de São Paulo, SP

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stimados Irmãos no Episcopado,

Atento a tudo o que prendia a aten• ‹ o dos ind’ genas, ele apreendeu que a mœ sica e a dan• a polarizavam o interesse deles, bem mais do que discursos e homilias.


a canonização também esse grande evento está estreitamente relacionado com a questão da catequese. Todos esses eventos nos levam a olhar para grandes catequistas, que sirvam de modelo, referência e estímulo para a catequese em nossos dias. O Beato José de Anchieta foi, reconhecidamente, um grande catequista no início da evangelização do Brasil. Chegou aqui ainda jovem, com 18 anos de idade; aqui passou 44 anos de sua existência, falecendo com a idade de 63 anos. Desde que aqui chegou, Anchieta voltou sua especial atenção para os indígenas, para catequizá-los, isto é, aproximá-los do Mistério de Cristo e do amor de Deus. Já na raiz de sua vocação à vida religiosa e sacerdotal estava o veio missionário e catequético, ao se deixar tocar pelas cartas de S. Francisco Xavier e de outros missionários em terras brasileiras ou asiáticas, quando eram lidas no refeitório das casas dos jesuítas de Coimbra. Mas foi na viagem de Salva-

dor para São Vicente, três meses após seu desembarque em terras brasileiras, que o carisma de catequista de Anchieta começou a se destacar. Atento a tudo o que prendia a atenção dos indígenas, ele apreendeu que a música e a dança polarizavam o interesse deles, bem mais do que discursos e homilias. Foi assim que o Apóstolo do Brasil começou a imaginar teatros com danças e cantos, brincadeiras, tudo com fundo evangelizador e catequético. Não foi apenas para divertir os indígenas, portugueses e estrangeiros que Anchieta redigiu inúmeras peças teatrais e uma infinidade de poesias e poemas. Ele queria, através do lúdico, levar a Palavra de Deus, a vivência e a moral cristã aos moradores da Terra de Santa Cruz. A elaboração da Gramática Tupi e de um Vocabulário, meses após sua chegada, foi também motivada pelo mesmo desejo de facilitar o aprendizado da língua indígena para os demais missionários e, assim, propiciar a evangelização e a catequese. Escreveu textos caCadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

tequéticos adequados à cultura dos indígenas: “Doutrina Cristã”; “Catecismo Brasílico”; “Doutrina autógrafa e Confessionário”, este último, em forma de perguntas e respostas, tão ao gosto dos indígenas. Também o livro “Diálogo da Fé” é de fundo catequético. Todos esses livros foram escritos por Anchieta em língua Tupi. Na missão, havia sempre uma escola e uma capela; e dentro do planejamento escolar havia aulas de catequese. Estar com as crianças e com os jovens significava para Anchieta também a evangelização de seus pais. Ele realizou longas caminhadas para batizar, ouvir confissões e também preparar para a morte, não apenas os indígenas, mas também os demais habitantes do Brasil. E não podemos esquecer seu trabalho catequético com os africanos. Quando Anchieta foi provincial dos jesuítas, criou um trabalho especial em língua africana para o atendimento pastoral dos “negros da Guiné”, como eram chamados em sua época e como lemos em suas cartas. 13


a canonização

Anchieta e Nóbrega na cabana de Pindobuçu, retrato de um momento da catequização dos índios. Tela de Benedito Calixto (1853-1927)

É sabido que nosso Catequista viajou várias vezes do sul de São Paulo ao sul de Pernambuco exercendo sua missão evangelizadora e catequética. A pé, ou com a pequena nau “Santa Úrsula”, Anchieta percorreu várias vezes, de sul a norte o litoral do Brasil. Sua ação catequética e missionária está registrada nas dezenas de cartas que se salvaram, nos textos históricos por ele escritos e nos registros con14

temporâneos e biogr��fi ficos cos redi� redigidos perto do seu falecimento. No seu funeral, estando presente também o administrador apostólico Dom Bartolomeu Simões Pereira, Anchieta já recebeu o epíteto de “Apóstolo do Brasil”. Eis, pois, alguns motivos pelos quais nos parece valer a pena a declaração de Anchieta como Patrono da Catequese no Brasil. Seu exemplo e dedicação missioCadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

nária, seu método “inculturado”, sua operosidade apostólica, tudo isso pode servir de exemplo e estímulo também para os catequistas de hoje e para motivar uma profunda renovação e dinamismo da ação catequética no Brasil. Caros Irmãos Bispos, eis, pois, os motivos que sustentam o pedido a ser examinado na próxima Assembleia Geral da CNBB. Com minha fraterna saudação e estima. ❒


a canonização

O PAPA FRANCISCO E ANCHIETA Homilia feita pelo papa Francisco na missa festiva de Ação de Graças pela canonização, no dia 24 de abril, na Igreja de Santo Inácio, em Roma. Estiveram presentes cardeais, bispos e autoridades brasileiras, assim como fiéis e religiosos residentes em Roma. (Fonte: www.cnbb.org.br)

Q

No Evangelho que acabamos de ouvir os discípulos não conseguem acreditar tamanha a alegria. Olhemos a cena: Jesus ressuscitou, os discípulos de Emaús contaram sua experiência, e depois o próprio Senhor aparece no Cenáculo

e lhe diz: “A paz esteja convosco”. Vários sentimentos irrompem no coração dos discípulos: medo, surpresa, dúvida e, finalmente, alegria. Uma alegria tão grande que “que não conseguiam acreditar” – diz o Evangelista. Estavam atônitos, pasmos, e Jesus, quase esboçando um sorriso, lhes pede algo para comer e começa a explicar-lhes, aos poucos, a Escritura, abrindo o entendimento deles para que possam compreendê-la.

ueridos irmãos e irmãs, Nesta quinta-feira da Oitava da Páscoa, em que a luz do Cristo Ressuscitado nos ilumina com tanta clareza, demos graças a Deus também por São José de Anchieta, o apóstolo do Brasil, recentemente canonizado. É uma ocasião de grande alegria espiritual.

... demos gra• as a Deus tambŽ m por S‹ o JosŽ de Anchieta, o ap— stolo do Brasil, recentemente canonizado.

Papa Francisco

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a canonização

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É o momento do estupor, do encontro com Jesus Cristo, em que tanta alegria não parece ser verdade; mais ainda, assumir o regozijo e a alegria naquele momento nos parece arriscado e sentimos a tentação de refugiar-nos no ceticismo, no “não exagerar”. É um relativizar tanto a fé que acaba por distanciar-nos do encontro, da carícia de Deus. É como se “destilássemos” a realidade do encontro no alambique do medo, da segurança excessiva, do querer nós mesmos controlar o encontro.

na porta, agora entra com seus pés, pulando e louvando a Deus, celebrando suas maravilhas. E sua alegria é contagiosa.

Os discípulos tinham medo da alegria... e também nós. A leitura dos Atos dos Apóstolos fala-nos de um paralítico. Ouvimos somente a segunda parte da história, mas todos conhecemos a transformação deste homem, entrevado desde o nascimento, prostrado na porta do Templo a pedir esmola, sem jamais atravessar a soleira, e como seus olhos se fixaram nos apóstolos, esperando que lhe dessem algo. Pedro e João não podiam dar-lhe nada daquilo que ele buscava: nem ouro, nem prata. E ele, que sempre permaneceu

O missionário jesuíta José de Anchieta. Autor desconhecido.

Isso é o que nos diz hoje a Escritura: as pessoas estavam cheias de estupor, e maravilhadas acorriam para ver esta maravilha! E em meio àquela confusão, àquela admiração, Pedro anunciava a mensagem. Porque a alegria do encontro com Jesus Cristo, aquela que nos dá tanto medo de assumir, é contagiosa e grita o anúncio; porque “a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração”; a atração testemunhal que nasce da alegria aceita e depois transformada em Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

anúncio. É uma alegria fundada. É uma alegria apostólica, que se irradia, que se expande. Pergunto-me: “Sou capaz, como Pedro, de sentar-me ao lado do irmão e explicar lentamente o dom da Palavra que recebi? Sou capaz de convocar ao meu redor o entusiasmo daqueles que descobrem em nós o milagre de uma vida nova, nascida do encontro com Cristo?” Também São José de Anchieta soube comunicar aquilo que tinha experimentado com o Senhor, aquilo que tinha visto e ouvido d’Ele; e essa foi e é a sua santidade. Não teve medo da alegria. São José de Anchieta tem um hino belíssimo dedicado à Virgem Maria, a quem, inspirando-se no cântico de Isaías 52, compara com o mensageiro que proclama a paz, que anuncia a alegria da Boa Notícia. Que Ela, que naquele alvorecer do domingo insone pela esperança, não teve medo da alegria, nos acompanhe em nosso peregrinar, convidando todos a se levantarem, para entrar juntos na paz e na alegria que Jesus, o Senhor Ressuscitado, nos promete. ❒


a história contada por diversas vozes

ANCHIETA, NA PALAVRA DOS PAPAS

Nascemos de um trabalho missionário e continuamos a ser uma Igreja missionária. E precisamos sê-lo, mais do que nunca! Os “sinais dos tempos” ao nosso redor estão a pedir a renovação da consciência, da parte de toda a comunidade eclesial, de que somos um povo em estado permanente de missão e precisamos de uma nova atitude missionária.

Os documentos recentes da Igreja, em vários níveis, explicitam esta urgência. E isso está em plena coerência com o mandato que os apóstolos receberam do próprio Cristo no início da vida da Igreja: “ide por todo o mundo, anunciai a Boa Nova a todos os povos”. O papa Francisco destacou ainda mais o significado missionário de São José de Anchieta ao proclamá-lo “santo”, junto com dois outros missionários, que atuaram na América do Norte: São Francisco de Laval, primeiro bispo do Quebec (1623-1708), e Santa Maria da Encarnação, religiosa ursulina (1599-1672);

A

canonização de São José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil, tem enorme significado para a Igreja de São Paulo e do Brasil. Não se trata apenas da proclamação de mais um santo, mas da valorização de toda uma história, da confirmação de um serviço prestado ao Evangelho e da sinalização de um caminho para a Igreja percorrer.

Ò veio ao Brasil para anunciar Jesus Cristo e difundir o Evangelho. Veio com o œ nico objetivo de levar os homens a CristoÓ .

Dom Odilo Pedro Scherer Cardeal Arcebispo de São Paulo, SP

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a história contada por diversas vozes

Outros papas também destacaram o significado missionário de Anchieta. Na missa do Campo de Marte, em São Paulo (03.07.1980), durante sua primeira visita ao Brasil, João Paulo II referiu-se à “figura fascinante” (de Anchieta), tão ligada à história religiosa e civil do Brasil, que “veio ao Brasil para anunciar Jesus Cristo e difundir o Evangelho. Veio com o único objetivo de levar os homens a Cristo”. E recordou trechos de cartas escritas por Anchieta aos seus Superiores sobre os trabalhos missionários desempenhados. “Salvar as almas para a glória de Deus, este era o objetivo de sua vida”, continua ainda o Papa. “Isso explica a prodigiosa atividade de Anchieta ao procurar novas formas de atividade apostólica, que o levavam a fazer-se tudo para todos; a fazer-se servo de todos, para ganhar o maior número possível de homens para Cristo” (cf 1Cor 9,19-22). 18

Bento XVI, ao falar aos Bispos da Amazônia em visita “ad limina” (04.10.2010), apresentou a figura de Anchieta como “modelo de incansável e generosíssima atividade apostólica (...) promovendo a difusão da Palavra de Deus tanto entre os indígenas

ambos nasceram na França e dedicaram sua vida como missionários no Canadá.

...Ò modelo de incans‡ vel e generos’ ssima atividade apost— lica (...) promovendo a difus‹ o da Palavra de Deus tanto entre os ind’ genas como entre os portuguesesÓ .

como entre os portugueses (...). Isso pode servir de exemplo para ajudar as vossas Igrejas particulares a encontrar os caminhos para promover a formação dos discípulos missionários no espírito da Conferência de Aparecida”. O mesmo Papa, na sua Mensagem (18.10.2012) para a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro, apresentou Anchieta como “modelo para a juventude“, Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

pela contribuição generosa que deu, sendo ainda muito jovem, para o anúncio do Reino de Deus e o desenvolvimento deste mundo. No encerramento da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro (28.07.2013), no envio dos jovens em missão, o papa Francisco convidou-os a imitarem o exemplo de Anchieta: “A Igreja tem necessidade de vocês, do seu entusiasmo, da sua criatividade e alegria. Um grande apóstolo do Brasil, o Beato José de Anchieta, partiu em missão quando tinha apenas 19 anos de idade. Sabem vocês que o melhor evangelizador dos jovens é um outro jovem? Este é o caminho que todos vocês devem percorrer.” Conhecer e valorizar a vida e a ação missionária de São José de Anchieta ajudará, certamente, a recobrar a identidade missionária de nossa Igreja e a buscar caminhos e meios para melhor concretizar esta missão no contexto sempre novo em que a Igreja se encontra. ❒ Publicado em O SÃO PAULO, ed. de 08.04.2014


a história contada por diversas vozes

A CELEBRAÇÃO COM O PAPA EM ROMA

Fiéis do Brasil, peregrinos, autoridades civis e religiosas compareceram à celebração para homenagear São José de Anchieta. Membros da CNBB também marcaram presença, como o arcebispo emérito de

São Paulo, cardeal dom Cláudio Hummes, o arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, dom Murilo Krieger, o bispo de Limeira, dom Vilson de Oliveira. O prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, cardeal dom João Braz de Aviz, estava entre os membros da Cúria Romana. Agradecimento Ao final da cerimônia, o pre­ sidente da CNBB, cardeal Ray­ mundo Damasceno, agradeceu ao papa Francisco por decretar santo o missionário brasileiro, pa­ dre Anchieta. Na mensagem, o

C

ardeais e bispos bra­ sileiros participaram de uma missa de ação de graças pela canonização do padre José de An­ chieta. A cerimônia foi presidida pelo papa Francisco, na quinta­ feira, 24 de abril, na igreja San­ to Inácio de Loyola, em Roma, e concelebrada pelo arcebispo de Aparecida e presidente da CNBB, cardeal Raymundo Damasceno Assis, e pelo arcebispo de São Paulo, cardeal Odilo Pedro Sche­ rer. A assinatura do decreto da santidade do Apóstolo do Brasil ocorreu no dia 3 de abril.

Nosso Ap— stolo se fez santo servindo aos ind’ genas, aos negros e a todos os pequenos do Brasil. Queremos seguir seus passos.

Dom Raymundo Damasceno Assis Cardeal Arcebispo de Aparecida, SP Presidente da CNBB

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a história contada por diversas vozes cardeal recordou a trajetória do santo que dedicou­se à catequese e viveu a pobreza e a simplicidade. Abaixo, a íntegra do discurso: “Santidade, A Igreja no Brasil e o povo brasileiro agradecem a Deus por lhes permitir realizar um sonho que durou mais de 400 anos: ver o Apóstolo do Brasil apresentado à Igreja Universal como testemunha de Jesus Cristo. Estou certo, Santo Padre, de trazer à sua presença centenas de jesuítas que, ao longo de muitos anos, trabalharam para este mo­ mento. Não só dou voz aos filhos de Santo Inácio, mas também a milhares de fiéis leigos envolvidos pela santidade e carisma do Pa­ dre Anchieta. Eles deram o me­ lhor de si para que esta celebra­ ção acontecesse. Assim, em nome de todos eles, vivos ou já na visão beatífica, quero, do fundo do co­ ração, dizer­lhe: muito obriga­ do, Santidade! José de Anchieta chegou jovem ao Brasil, com 19 anos de idade, pouco depois de 20

Cardeais e Bispos durante missa de ação de graças, pela canonização do padre José de Anchieta. A cerimônia foi presidida pelo papa Francisco. (Fonte: www.cnbb.org.br, 25 de abril de 2014)

ter emitido os votos religiosos de pobreza, castidade e obedi­ ência. Com um coração juvenil, amou, desde o primeiro contato, o povo brasileiro. A ele, dedicou sua grande inteligência, cultura e erudição, a capacidade de amar e de sofrer por amor. A ele, consa­ grou suas qualidades humanas, a capacidade de lutar, de ser aguer­ rido e a sua espiritualidade. Como um São Francisco do Novo Mundo, revelando notável capacidade de observação da natureza, escreveu a chamada Carta de São Vicente. Nela, com grande erudição, e de modo muito completo e preciso, fez a primeira descrição detalhada Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

da Mata Atlântica, importante bioma brasileiro. Anchieta, tam­ bém como o santo de Assis, vi­ veu a pobreza e a simplicidade. Em carta, descreveu como vivia com os indígenas, chegando ao ponto de relatar que, como to­ alha de mesa, usavam folha de bananeira, para, em seguida, completar que dela não tinham necessidade, pois qual a razão da toalha se lhes faltava a comida? Como o pobrezinho de Assis, no espírito da perfeita alegria, asse­ verou que estavam tão felizes na­ quela situação – ele e os demais jesuítas –, que, ao pensarem no tipo de vida levada nos colégios da Europa, nenhum tipo de sau­ dade lhes vinha ao coração.


a história contada por diversas vozes Santo Padre, contemplando no Padre Anchieta a simplici­ dade de vida, o serviço prestado aos marginalizados, o seu modo de vida, encontramos o Senhor da Vida. Nosso Apóstolo se fez santo servindo aos indígenas, aos negros e a todos os peque­ nos do Brasil. Queremos seguir seus passos. Ele foi o nosso gran­ de e incansável evangelizador. Seu exemplo motiva­nos a irmos destemidamente ao encontro de Jesus Cristo e dos irmãos. O Padre Anchieta deixou­nos tam­ bém o exemplo do grande amor que dedicava a Nossa Senhora, a quem sempre pedia socorro. Ela foi sua força e apoio nos momentos cruciais de sua vida: no ambiente conturbado de Coim­ bra, quando percebeu que sua vida cristã poderia arruinar­se, ou na Aldeia de Iperoig, na cos­ ta brasileira, onde, sem nenhum apoio visível – a não ser a oração –, por vários meses permaneceu refém dos índios tamoios. Nesse trágico momento, mais uma vez recorreu a Maria e, certo de sua ajuda, começou a escrever o Poe­

“Aqui fizemos uma casinha pequena de palha, e a porta estreita de cana. As camas são redes que os índios costuram; os cobertores, o fogo, para o qual, acabada a lição à tarde, vamos buscar lenha no mato e a trazemos às costas, para passarmos a noite. A roupa é pouca e pobre, sem meias ou sapato, de pano de algodão... A comida vem dos índios, que nos dão alguma esmola de farinha e algumas vezes, mas raramente, alguns peixinhos do rio e mais raramente ainda, alguma caça do mato.” (Trecho de carta de Anchieta a Inácio de Loyola, 1554). Fonte: http://www.pateocollegio.com.br/newsite/conteudo.asp?i=i1&pag_id=39

ma da Bem­Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, expressão de sua extraordinária devoção e amor à Santíssima Virgem. Santo Padre, muito obrigado Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

por nos permitir partilhar com os cristãos do mundo todo o belo testemunho que foi a vida de São José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil”. ❒ 21


a história contada por diversas vozes

SÃO JOSÉ DE ANCHIETA, APÓSTOLO DO BRASIL

São dias de alegria indizível estes em que, de corações agra­ decidos, vivemos a canonização do Beato José de Anchieta (1534­ 1597), sacerdote jesuíta que, tan­ to no campo material quanto no espiritual, muito trabalhou pelo Brasil e, por esta razão, recebeu com carinho e justiça o codino­ me de “Apóstolo do Brasil”. Antes de penetrarmos dire­ tamente na vida desse grande 22

homem de Deus, atentemo­nos para o rico significado catequéti­ co do momento em que estamos celebrando: uma canonização. Daí a questão: qual é, na Igreja, o real significado dos verbos bea­ tificar e canonizar? Beatificar é celebrar, em Ro­ ma ou fora dela, um ato solene no qual o Papa, pessoalmente ou através de um legado seu, decla­ ra que o(a) Servo(a) de Deus pode ser venerado(a) como Bem ­Aventurado(a) ou Beato(a) por meio de uma festa em lugares delimitados como, por exemplo,

Dom Orani João Tempesta Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro

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N

o dia 3 abril, o após­ tolo do Brasil será canonizado! Um ho­ mem de Deus que soube acolher o chamado voca­ cional e viver nos inícios do Brasil protagonizando a fundação de colégios, cidades, entre as quais a do Rio de Janeiro. O Papa Fran­ cisco nos dá esse belo presente!

S‹ o dias de alegria indiz’ vel estes em que, de cora• › es agradecidos, vivemos a canoniza• ‹ o do Beato JosŽ de Anchieta.


a história contada por diversas vozes as cidades em que viveu, atuou, morreu.

quanto caminhamos nesta Terra rumo à Pátria definitiva.

Canonizar é a ação pela qual o Papa declara que o(a) Bem­ Aventurado(a) é Santo(a) ao inscrevê­lo no cânon (catálogo) dos santos, por isso se fala em ca­ nonização, termo utilizado pela primeira vez no século XII, em uma carta de Udalrico, Bispo de Constança, ao Papa Calixto II (1119­1124).

Via de regra, são exigidos dois milagres – geralmente de recupe­ ração completa da saúde –, como sinais comprobatórios da santi­ dade do(a) Servo(a) de Deus em questão: um para a beatificação e outro para a canonização. To­ davia, pode acontecer – como é o caso de Anchieta – o que chama­ mos de “canonização equipolen­ te ou equivalente” e, para que ela ocorra, devem ser preenchidos três requisitos básicos:

Tanto a beatificação quanto a canonização são funções re­ servadas ao Santo Padre – es­ pecialmente, de modo formal, a partir do século XII, com o Papa Alexandre III (1159­1181) –, embora as cerimônias corres­ pondentes possam ser oficiadas por um delegado papal. Requer­ ­se, para se declarar que alguém é beato(a) ou santo(a), a com­ provação das virtudes heroicas do(a) candidato(a) nesta vida, de modo que ele(a) mereça, por graça divina, gozar, atualmente, da visão de Deus face a face no céu. De lá, pode ser invocado oficialmente para interceder por nós e nos servir de modelo en­

1) a prova do culto antigo ao candidato a santo; 2) o atestado histórico incontes­ tável da fé católica e das vir­ tudes do candidato; 3) a fama ininterrupta de mila­ gres intermediados pelo can­ didato. Isto posto, resta­nos rego­ zijarmos, enquanto católicos e brasileiros, pela inscrição do nosso querido José de Anchieta no catálogo dos Santos por de­ terminação do Santo Padre, o Papa Francisco, 34 anos depois Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

de ser declarado Beato pelo Papa João Paulo II, em 22 de junho de 1980, ainda que o processo de beatificação tenha sido iniciado no já distante século XVII. José de Anchieta nasceu em São Cristóvão, Tenerife, uma das ilhas espanholas do Arquipélago das Canárias, em 19 de março de 1534, dia dedicado, no calendá­ rio litúrgico, a São José, patrono da Igreja. Daí o seu nome de Ba­ tismo ser José de Anchieta. Após estudar no famoso Co­ légio de Artes de Coimbra, in­ gressou, aos 17 anos, na Compa­ nhia de Jesus, dos Jesuítas, Or­ dem fundada por Santo Inácio de Loyola em 1539 e aprovada pelo Papa Paulo III, em 1540. Recebeu aí boa formação em filologia e literatura e, sobretu­ do, aprendeu que vivemos neste mundo para “conhecer, amar e servir a Deus e, mediante isso, salvar nossa alma”. Aqui, tudo o que fizermos deve ser “Para a maior glória de Deus”. Contudo, tão logo se fizera jesuíta, foi provado com uma 23


a história contada por diversas vozes grave doença ósteo­articular, com fraqueza e dores em todo o corpo, durante dois anos, ra­ zão pela qual os superiores, após ouvirem os médicos, decidiram enviá­lo ao Brasil na esperança de que o bom clima da terra lhe fizesse bem. Era a ação provi­ dencial de Deus em sua vida e na dos brasileiros, daqueles e dos nossos tempos. Chegou à Bahia de Todos os Santos, Salvador, em 13 de julho de 1553, com apenas 19 anos de idade, como irmão je­ suíta, com um único objetivo: salvar almas para Cristo. De lá, deveria ir, junto com o Pe. Ma­ nuel da Nóbrega, seu superior, para a Capitania de São Vicen­ te, litoral de São Paulo, a fim de catequizar indígenas e colonos. Como a viagem era também por mar, um fato inesperado aconte­ ceu: no Sul da Bahia uma forte tempestade surpreendeu as duas embarcações e o barco em que estava Anchieta acabou ficando encalhado nos recifes. Enquanto o veículo de via­ gem era consertado, conta­se 24

que Anchieta, consciente de que depois da vinda de Cristo “o tempo se fez breve” (1Cor 7,29), foi à procura dos silvícolas da região e começou a lhes falar de Deus. Em uma dessas caminha­ das, levaram­no até uma indiazi­ nha que, doente, se encontrava em seus últimos dias nesta Terra. O padre a instruiu na fé e a ba­ tizou, dando­lhe o nome de Ce­ cília. Era o primeiro sacramento que “o Apóstolo do Brasil” mi­ nistrava em seu tão vasto territó­ rio de missão. Chegando, finalmente, a São Vicente, Anchieta não parava um só instante: fazia contato com os habitantes do lugar para falar­lhes de Deus e, ao mesmo tempo, plantar as bases de uma vida mais digna e justa para to­ dos. Não se limitou, porém, ape­ nas à região praiana, mas, ao contrário, subiu a Serra do Mar, chegou ao Planalto de Pirati­ ninga e, no dia 25 de janeiro de 1554, festa da Conversão de São Paulo Apóstolo, participou da fundação do colégio da vila de São Paulo de Piratininga, onde Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

também lecionou. Ao lado do colégio, construiu­se uma capela na qual foi celebrada a primeira Missa, em 25 de agosto daquele mesmo ano. Estava, assim, nas­ cendo o núcleo da cidade que, com o passar dos anos, se torna­ ria uma das maiores metrópoles do mundo: São Paulo. Foi superior da Capitania de São Vicente e também pro­ vincial dos jesuítas por 10 anos, ou seja, de 1577 a 1587. Logo aprendeu a língua tupi, falada pelos indígenas, e elaborou a primeira gramática tupi­guara­ ni, traduzida para o alemão e o latim. Nosso santo criou, desse modo, uma língua­geral, que foi usada no Brasil até 1750, ano em que foi imposta a língua portu­ guesa. Compôs músicas, versos, danças e teatros em linguagem indígena. É chamado o “pai do teatro brasileiro” e grande nome da cultura nacional. Dentre seus dez livros está o que leva o título de “Poemas à Virgem Maria”, cuja maior parte foi redigida nas areias de Iperoig (hoje Ubatuba, SP), no período em que ficou re­


a história contada por diversas vozes

Parecia arder em Anchieta as palavras de São Paulo, o Após­ tolo das gentes: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9,16). Daí ele valorizar a espontaneidade dos silvícolas que buscavam conhecer e pra­ ticar a fé católica, segundo se depreende das correspondên­ cias que o religioso mantinha com seus superiores na Europa. Em carta ao Padre Diogo Laí­ nes, geral dos jesuítas, datada de 1565, Anchieta, ainda refém dos índios em Iperoig, relata que todas as manhãs, Pindobuçu, o chefe da tribo, ia visitá­lo para perguntar coisas sobre Deus. O religioso lhe mostrava, então, imagens de uma Bíblia ilustra­ da que possuía e isso causava muita admiração no índio que, na manhã seguinte, voltava para aprender mais (cf. Cartas. São Paulo: P.H.A Viotti, 1984, p. 222, vol. 6 das Obras Comple­ tas). Ao se referir aos tupis de São Paulo, o religioso jesuíta diz

que eles “voluntariamente (...) vivem como cristãos, correspon­ dendo plenamente ao esforço de seus catequistas” (Cartas, Jes. III, 316­317). Nota­se, por esses dados, que poderíamos multiplicar, o quan­ to Anchieta, agora nosso santo,

Nosso santo criou, desse modo, uma l’ ngua-geral, que foi usada no Brasil atŽ 1750, ano em que foi imposta a l’ ngua portuguesa. Comp™ s mœ sicas, versos, dan• as e teatros em linguagem ind’ gena. ƒ chamado o Ò pai do teatro brasileiroÓ e grande nome da cultura nacional.

fém dos índios tamoios. Escrevia em português, espanhol, latim e tupi­guarani.

viveu o ardor missionário que motivava os religiosos europeus a rumarem para as Américas, segundo se lê, com muita clare­ za, nesta constatação: “A única conversão que os evangelizado­ res pretendiam (e, em boa parte, conseguiram) era a conversão no

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plano sobrenatural: aceitação in­ terna, sustentada pela graça de Deus, da fé na revelação divina, seguida da mudança de vida no intuito de ajustá­la aos preceitos divinos, como preparação para a vida eterna. Esta foi a suprema missão que Cristo confiou à sua Igreja: ‘Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a todas as criaturas. Quem crer e for ba­ tizado será salvo, quem não crer, será condenado’ (Mc 16,15s)” (João E. M. Terra. Catequese de índios e negros no Brasil colonial. Apa­ recida: Santuário, 2000, p. 38). Esse ideal voltado ao sobre­ natural não fez, no entanto, de Anchieta um alienado das coisas deste mundo. Ele bem parecia antever aquilo que, cerca de 410 anos depois, o Concílio Vaticano II (1962­65) ressaltaria na Gaudium et Spes: “As alegrias e as espe­ ranças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as ale­ grias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade algu­ 25


a história contada por diversas vozes ma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu co­ ração. Porque a sua comunida­ de é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua pere­ grinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para comunicá­la a todos. Por este motivo, a Igreja sente­se real e intimamente li­ gada ao gênero humano e à sua história.” (n. 1). Daí, em 1555, por ocasião das invasões france­ sas ao Rio de Janeiro, ele esteve ao lado de Estácio de Sá, então governador, ajudando a cons­ cientizar o povo de que não de­ viam aceitar os intrusos, pois eles planejavam dividir nossa gente. Segundo o Postulador da causa, Padre César Augusto dos Santos, SJ: “Em 1º de novembro de 1566, Mem de Sá, o visita­ dor, padre Inácio de Azevedo, o provincial, padre Luís da Grã, o segundo bispo do Brasil, Dom Pedro Leitão, José de Anchieta e outros jesuítas partem para o Rio de Janeiro, chegando à cida­ de no dia 19 de janeiro de 1567. 26

Cacique Tibiriçá e José de Anchieta. Pintura de Claudio Pastro, acervo da sede do Anchietanum, São Paulo/SP.

Eles partiram na armada envia­ da pelo rei de Portugal, coman­ dada pelo capitão Cristóvão de Barros. Imediatamente no dia seguinte à sua chegada, Mem de Sá, confiante na intercessão do padroeiro da cidade, São Se­ bastião, cuja festa litúrgica era naquele dia, desfechou um as­ salto ao forte que estava no atu­ al Outeiro da Glória, o forte de Ibiraguaçu­mirim. Conta An­ chieta, em sua Informação do Brasil Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

e suas Capitanias, que, depois de destruir dois fortes (Ibiraguaçu­ mirim, na foz do rio da Carioca e Paranapucuí, na Ilha de Mara­ cajá, atual Ilha do Governador), Mem de Sá mudou a cidade para o Morro de São Januário, depois chamado Morro do Castelo, de onde se tinha uma visão privile­ giada da entrada da barra. No início do século 20, o morro foi demolido e o local ficou conhe­ cido como Castelo ou Esplanada do Castelo. No ataque a Ibira­


a história contada por diversas vozes

Contudo, como já vimos nes­ ta reflexão, o que mais se des­ tacava em Anchieta era o seu zeloso sacerdócio ministerial. Queria ele consumir­se como a chama de uma vela para o bem de todos, ministrando os Sacra­ mentos, lecionando – aos índios pequenos ensinava latim e aos jesuítas europeus dava aulas de tupi – ajudando na edificação de vilas onde o povo pudesse viver dignamente. Morreu com 63 anos, no povoado que ele mes­ mo havia ajudado a edificar em 1569, Reritiba (hoje Anchieta, ES), na Capitania do Espírito Santo. Era o dia 9 de junho de 1597. A partir daí, muitas pessoas

passaram a recorrer ao “Apósto­ lo do Brasil” a fim de que ele in­ tercedesse junto a Deus por elas. Nasceram disso muitos relatos de graças alcançadas pela intercessão de Anchieta entre nós, especial­ mente no campo da restituição da saúde, bem como a narração de fatos lendários e pitorescos como este: “Durante a vida do Pe. An­ chieta (1534­1597), um barquei­ ro garantia a quantos quisessem

guaçu­mirim, Estácio de Sá, ver­ dadeiro baluarte durante os dois anos da cidade, foi mortalmen­ te ferido, vindo a falecer no dia 20 de fevereiro. Anchieta, que o acompanhou muito de perto, as­ sim escreveu sobre esse capitão: “tão amigo de Deus, tão manso e afável, que nunca descansa de noite e de dia, acudindo a uns e a outros, sendo o primeiro nos trabalhos...”

... o que mais se destacava em Anchieta era o seu zeloso sacerd— cio ministerial. Queria ele consumir-se como a chama de uma vela para o bem de todos...

ouvir. A barca em que viajava o Pe. Anchieta afundou. O padre ficou retido no fundo pela barca virada. E o barqueiro, até uma hora depois, viu o Pe. Anchieta tranquilamente lendo seu breviá­ rio lá, embaixo da água. Quando o retiraram, nem o padre, nem o livro haviam se molhado” (Oscar G. Quevedo. Milagres, a ciência con-

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firma a fé. S. Paulo: Loyola, 2000, p. 296). Não importa debater aqui se tal fato ocorreu ou não, o que nos interessa é frisar o quanto o povo tinha Anchieta na conta de santo. Tão santo que Deus como que o “plastificara” contra os acidentes naturais. Contudo, importa frisar que a santidade nem sempre vem acompanhada de grandes portentos. Ela pode ser fruto de uma vida simples, escondida em Cristo, mas que faz, cotidianamente, a vontade do Pai. Mais: a narrativa nos traz uma lição: ainda que debai­ xo das águas do mar da vida que querem nos afogar, não perca­ mos a serenidade, seguremos fir­ mes nas mãos de Deus e sigamos adiante, certos de que Ele não chama ninguém à mediocrida­ de, mas, sim, a ser santo como Ele mesmo é santo (cf. Lv 19,2; Mt 5,48). Para atingir esta tão ousa­ da meta é que, agora, pedimos confiantes: São José de Anchie­ ta, Apóstolo do Brasil, rogai por nós! ❒ 27


entrevista Pe. Danilo Mondoni, S.J.

JOSÉ DE ANCHIETA: INTELIGÊNCIA, CULTURA E SANTIDADE

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Anchieta veio muito jovem para o Brasil. Aqui viveu e morreu como missionário entre índios e colonos. Qual foi a formação que recebeu e o que lhe favoreceu desenvolver uma vasta produção cultural e literária de alto nível?

Padre Danilo Mondoni, professor das Faculdades São Bento, de São Paulo, Jesuíta de Belo Horizonte e do Museu de Arte Sacra, é Mestre em História da Igreja com vários livros publicados. Por ocasião do Bicentenário da Restauração da Companhia de Jesus, aprofundou seus estudos sobre o contexto histórico em que se deu a extinção no Século XVII. As considerações e comentários sobre Anchieta e seu tempo valorizam a importância da contribuição desse missionário jesuíta para a vida cultural e religiosa desde os primeiros tempos de Brasil.

Conhecia bem as Sagradas Escrituras. Ademais, a mem— ria prodigiosa, o sentido de observa• ‹ o e a escuta do outro facilitaram sua comunica• ‹ o com os ’ ndios e colonos.

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O jovem Anchieta já dominava bem três línguas: espanhol, português e latim. Entrou em contato com os jesuítas durante os estudos de filosofia na universidade de Coimbra. Chegou ao Brasil com a formação clássica bem sedimentada. Em Piratininga assistiu às aulas de moral dadas pelo Pe. Luís de Grã. Na Bahia, durante ano e meio estudou teologia, orientado pelo Pe. Quirício Caxa. Conhecia bem as Sagradas Escrituras. Ademais, a memória prodigiosa, o sentido de observação e a escuta do ou-


entrevista Pe. Danilo Mondoni, S.J. tro facilitaram sua comunicação com os índios e colonos. Já houve polêmica entre historiadores a respeito de, na fundação de São Paulo, ser dado maior destaque ao papel de Anchieta, que era um jovem estudante universitário que ao do Padre Manuel da Nobrega, superior e responsável pela missão. Qual seria o fundamento dessa polêmica?

A fundação de São Paulo foi uma obra de conjunto. A missão nos campos de Piratininga, na capitania de São Vicente, era coordenada por Manuel de Nóbrega, Superior Provincial. Nóbrega incumbiu Anchieta de continuar a construção do colégio, e foi a partir deste que Anchieta abriu os caminhos do sertão. Em colaboração com os companheiros jesuítas e com os índios, Anchieta potencializou e dinamizou o colégio, marco histórico da fundação de São Paulo. Com o objetivo missionário de trazer os índios para a religião e costumes europeus, Anchieta e os missionários jesuítas não teriam contribuído para a extinção da cul-

tura indígena, sendo instrumentalizados pelos colonizadores?

No sistema do padroado, romper com o sistema teria significado renunciar à missão evangelizadora. Cristianizar os selvagens pressupunha humanizá-los por meio da adoção de costumes e padrões de conduta próprios da civilização cristã. Os missionários desenvolveram sua atividade apostólica com o beneplácito e sob a proteção da potência dominadora; recorreram ao poder político tanto para agrupar os índios em aldeias próprias sob a orientação dos padres, como para defender esses mesmos indígenas dos abusos dos colonos e da ganância dos caçadores de escravos. É por todos reconhecida a importância e o papel de Anchieta para a formação da cultura brasileira nos primórdios da colonização. Sob o ponto de vista religioso, o que há de notável na sua vida para a Igreja considerá-lo um santo, comparando-o com os demais missionários, não apenas jesuítas?

Apesar de frágil saúde (tuberculose óssea-articular), Anchieta Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

empreendeu constantes viagens, percorrendo o litoral desde Cananeia até o Recife para acompanhar as várias missões jesuítas. Foi um religioso transparente, interessado no bem das pessoas, atento especialmente aos pobres e doentes, sem esconder sua predileção pelos índios. Passava longas horas em oração. Soube respeitar a natureza e valorizar os elementos culturais dos povos originários do Brasil. O Papa Francisco é o primeiro jesuíta escolhido para governar a Igreja. Ao canonizar Anchieta, estaria reabilitando um companheiro injustiçado pela história? Que outros objetivos estariam implícitos nessa canonização?

O Papa pode declarar a santidade de uma pessoa mediante uma proclamação solene ou um decreto. O processo de canonização de Anchieta se iniciou em 1617. Ele foi beatificado em 22 de junho de 1980 pelo papa João Paulo II, em reconhecimento de sua fama de interceder por milagres. Sensível aos apelos dos Bispos do Brasil, o papa Francisco o canonizou por decreto em 3 de abril de 2014. A missão apostó29


entrevista Pe. Danilo Mondoni, S.J. lica é o foco principal da Companhia de Jesus; como jesuíta, certamente o papa Francisco vê em Anchieta, o apóstolo do Brasil, um testemunho inspirador de zelo apostólico e de empenho pastoral em todas as formas de ministério da Palavra. A Igreja, como a sociedade, atravessa uma crise causada por problemas internos de disciplina e doutrina. O conceito de santidade não é o mesmo do início do século passado. Como entender a santidade de Anchieta nos parâmetros de uma sociedade secularizada?

A sociedade atual, fortemente marcada pelo individualismo, passa por profunda crise de valores; a depressão e o suicídio atingem níveis alarmantes; aumenta a desigualdade entre ricos e pobres. Pela forma com que trabalhou na formação e educação dos índios e colonizadores e por sua familiaridade com a fauna e a flora brasileira, a figura de Anchieta é um testemunho de valorização do próximo e de convívio sadio com a natureza. Como o objetivo último de qualquer trabalho pastoral é a 30

salvação ou realização plena da existência segundo a promessa de Deus, São José de Anchieta é referência de união com Deus e amor fraterno, segundo o testemunho do próprio Cristo. Qual a contribuição que a canonização de Anchieta pode trazer para o Brasil e a América Latina, dentro do contexto religioso e social?

Pode contribuir especialmente para a valorização do outro: os humanos, a natureza, o Outro. Em meio ao pluralismo e à fragmentação de valores, importa dar acesso à inteligência das coisas de Deus e à tradição cristã mais vigorosa, questionar as raízes culturais e intelectuais da injustiça e educar para a cultura da responsabilidade e do sentido da solidariedade; enfim, contribuir para que a humanidade encontre o melhor caminho de preservar e promover a vida em todas as suas dimensões – buscar Deus em todas as coisas e participar da luta por um mundo mais justo. O que essa canonização representa para a comunidade jesuíta?

Representa o coroamento de Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

um processo iniciado muito cedo, o reconhecimento da intensidade e densidade da presença e atuação de Deus na vida de Anchieta. O desenvolvimento dos dotes pessoais e o senso profundo de comunhão servem de inspiração para que a Companhia de Jesus se realize como corpo para a missão. Anchieta era jovem e conseguiu grandes feitos. Isso seria uma característica jesuíta?

O pioneirismo é uma marca tradicional jesuíta. A Companhia de Jesus é uma ordem profundamente inovadora e ativa em todos os campos e aspectos da evangelização e requer a mobilidade de todos os membros e a adaptabilidade aos diversos ambientes. Em meio às mudanças e transformações históricas, os jesuítas procuram se manter fiéis à sua identidade, ancorando-se nos Exercícios Espirituais, na Fórmula do Instituto e nas Constituições, que os encorajam à flexibilidade e adaptação. Os princípios que os sustentam estruturam uma identidade reconhecível por amigos e adversários e constituem fonte de energia e encorajamento. ❒


a história contada por diversas vozes

OS JESUÍTAS E A CANONIZAÇÃO Mensagem enviada a todas as comunidades jesuítas logo que foi divulgada a notícia da canonização.

A canonização nesta data, 3 de abril, do Beato José de Anchieta é um acontecimento que a Igreja do Brasil desejou muito e há muito tempo. Anchieta foi proclamado Apóstolo do Brasil, título pelo qual é conhecido até hoje, pelo arcebispo do Rio de Janeiro, na cidade de Reritiba, na mesma Igreja do Colégio onde se celebraram seus funerais em 1597. A Companhia não deve deixar de responder a este convite que lhe é feito de resgatar esta figura polivalente, motivadora e extremamente atual. O que nos quer dizer o Senhor ao nos presentear, em menos de um ano,

com o reconhecimento eclesial do valor evangélico das vidas de dois companheiros nossos, Pedro Fabro e José de Anchieta? Dois homens que levaram adiante missões tão diferentes e, no entanto, tão semelhantes no espírito jesuítico que deve animar nossa missão. Os dois, com a intensidade de suas vidas, convidam-nos a descobrir que “restauração”, mais que ser para nós um mero acontecimento histórico, deve representar o “modo de ser” sempre presente, em um corpo apostólico em contínua recriação.

Q

ueridos irmãos e amigos no Senhor:

Anchieta foi proclamado Ap— stolo do Brasil, t’ tulo pelo qual Ž conhecido atŽ hoje.

Pe. Adolfo Nicolás, S.J. Superior Geral da Companhia de Jesus

Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

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a história contada por diversas vozes José de Anchieta, “de estatura mediana, magro, pelo vigor de seu espírito forte e decidido, moreno, de olhos azuis, fronte larga, nariz grande, barba rala, de semblante alegre e amável”, gastou 44 anos de sua vida percorrendo boa parte da geografia do Brasil e levando a boa nova do Evangelho aos indígenas. Terceiro dos dez filhos que teve a família López de Anchieta y Díaz de Clavijo, José de Anchieta nasceu em Tenerife (Espanha), em 1534. Parente pela linhagem paterna da família dos Loyola, por suas veias corria, como herança dos avós paternos, sangue de judeus convertidos. Logo foi enviado para estudar na Universidade de Coimbra (Portugal), durante o chamado triênio de ouro do recém-fundado Colégio das Artes. Sua vocação à vida religiosa nasceu em um clima de ideias e liberdades morais que não a favoreciam, talvez estimulado pelo exemplo de alguns companheiros jesuítas influentes na universidade. De fato, as cartas de Francisco Xa32

vier comoviam a juventude universitária de toda Europa. Admitido ao Noviciado da Companhia na Província de Portugal, em 1º de maio de 1551, logo contraiu uma grave tuberculose ósseo-articular, que aos 17 anos de idade lhe provocou uma visível curvatura na coluna. Sua angústia de ser considerado inútil para o apostolado se viu muito aliviada ao escutar as consoladoras palavras do Pe. Simão Rodrigues, fundador da Província portuguesa: “Não se preocupe por essa deformação, Deus lhe quer assim”. Havia uma esperança no ar: começavam a chegar do Brasil as cartas do Pe. Manuel da Nóbrega, que ponderavam o quão saudável era para qualquer tipo de enfermidade o clima daquelas terras. E para lá partiu Anchieta, em 8 de março de 1553, tendo feito recentemente os primeiros votos, aos 19 anos de idade, na terceira expedição de jesuítas que embarcava para o Brasil. Deparamo-nos já com o primeiro dos paradoxos desse joCadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

vem jesuíta: o forte contraste entre sua fragilidade física e a intensa vitalidade apostólica que desenvolveu ininterruptamente durante 44 anos, atravessando numerosas regiões do Brasil, até sua morte aos 63 anos. A vida de José de Anchieta é apostólica e radicalmente evangélica. “Não basta sair de Coimbra – dizia a seus irmãos doentes que ficavam ali – com uns fervores que logo se desfazem antes de cruzar a linha (do Equador), ou que logo se esfriam, com desejos de voltar a Portugal. É necessário levar o alforje cheio, para que as provisões durem até o final da jornada”. Os desafios da missão atual exigem cada vez mais ‘a revitalização do corpo apostólico’ da Companhia. A fonte na qual bebia a vitalidade apostólica de Anchieta era sua profunda experiência espiritual. A solidez de sua fama de santo e taumaturgo fundamentava-se no amor, na oração, na humildade e no serviço. Uma das críticas que se fize­ ram a ele diante do Visitador foi de que “fazia muita caridade”.


a história contada por diversas vozes

Dos 44 anos que viveu no Brasil, 40 pelo menos se caracterizaram por uma incessante peregrinação, começando pela região de São Vicente e Piratininga, entre 1554 e 1564, quando da fundação da cidade de São Paulo e seus primeiros anos. Foi uma mobilidade que não lhe impediu de se entregar às aulas de latim e ao

estudo mais aprofundado da língua tupi, uma vez que lhe permitia uma grande atividade missionária e catequética. Nomeado provincial, em 1577, e posteriormente superior, percorre casas e comunidades: pai dos pobres, taumaturgo para os enfermos e os que sofriam, conselheiro para os governantes, mas, sobretudo, amigo e defensor dos índios em suas aldeias. Somente em 1595 a obediência o liberou das responsabilidades de governo. Restavamlhe dois escassos anos de vida. Neles encontrou ainda tempo para participar na defesa da capitania do Espírito Santo contra as incursões dos índios goitacazes. Seu último destino foi a aldeia de Reritiba. Ali começou a escrever uma “História da Companhia de Jesus no Brasil”, preciosa obra perdida da qual só restam fragmentos. Não lhe movia, certamente, para levar essa vida itinerante, nenhum espírito de aventura, senão um espírito de disponibilidade para a missão, de Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

liberdade espiritual e de prontidão para buscar e encontrar a todo momento a vontade do Senhor. Acompanhou-o, até o fim, um ardor verdadeiramente apostólico. “Dado que não mereço ser mártir por outra via – escreve ele mesmo – que pelo menos a morte me encontre desamparado em alguma dessas

Aos olhos de seus críticos, seu excesso de bondade estaria na origem de um governo que tendia a ser brando. O Pe. Gouveia, entretanto, não tinha a mesma opinião. Descreve-o como: “homem fiel, prudente e humilde em Cristo, muito querido por todos, ninguém tinha queixa contra ele, nem me é possível encontrar palavra ou ação em que tenha agido mal”. Sincero amigo de todos, sabia unir a bondade ao rigor e à firmeza, como desejava Santo Inácio em todo bom superior. Apesar de suas enfermidades, bem visíveis, o provincialado de Anchieta pôde ser considerado um dos mais dinâmicos e frutuosos de seu tempo.

... pai dos pobres, taumaturgo para os enfermos e os que sofriam, conselheiro para os governantes, mas, sobretudo, amigo e defensor dos ’ ndios em suas aldeias.

montanhas e ali dê a vida por meus irmãos. A disposição de meu corpo é fraca, mas me basta a força da graça que, por parte do Senhor, não me há de faltar”. Não deveria ser a itinerância – com tudo o que implica de liberdade espiritual, de disponibilidade e capacidade de discernir e de tomar decisões – uma das características indispensáveis de nosso corpo apostólico? O contínuo pe-

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a história contada por diversas vozes regrinar de Anchieta, quase uma forma de vida, poderia inspirar hoje em dia e estimular nossa busca de mobilidade apostólica, para responder aos desafios que nos propõem as novas fronteiras. Uma característica de grande relevância na figura humana, espiritual e apostólica de José de Anchieta se manifesta em sua capacidade para organizar estruturalmente a missão, integrando as distintas presenças apostólicas e as diferentes dimensões em um só projeto diversificado e complexo, mas único. E, no centro, dando sentido a tudo, o amor pelos índios: “sinto os índios, escreve ele mesmo, do seu último refúgio na aldeia de Reritiba, mais próximos que os portugueses, porque é por eles que vim ao Brasil”. Com o Pe. Nóbrega, participou na primeira fundação do Rio de Janeiro. A segunda e definitiva fundação não se levaria adiante senão dois anos depois, com ajuda de uma esquadra vinda de Portugal, capitaneada 34

pelo próprio governador Mem de Sá. Na ocasião, Anchieta escreveu sua primeira obra em latim: De gestis Mendi de Saa. Pertence a essa época também o auto sacramental intitulado “Pregação universal”, inspirado na cerimônia indígena de acolhida aos personagens ilustres, com o qual introduzia na língua tupi a técnica do verso e das estrofes, típica do teatro português. Sempre soube colocar a serviço da missão seus extraordinários dons de perfeito humanista: seu domínio da gramática, seu gosto pelos clássicos latinos e sua habilidade na arte da oratória. Com enorme fecundidade, compôs em tupi os “Diálogos da fé” (catecismo maior para a instrução dos índios na doutrina cristã), adaptou opúsculos para a preparação ao batismo e para a confissão e concluiu a gramática da língua mais usada na costa do Brasil, o tupi. Sempre agente de reconciliação, empenhou-se profundamente no diálogo com os índios tamoios, até o ponto de ser Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

tomado como refém e de viver entre eles sequestrado por cinco meses. Feitas as pazes com os tamoios e posto em liberdade, ainda teve forças para retornar a São Vicente e escrever o poema à Virgem De Beata Virgine Dei Matre Maria. Não lhe intimidou a carência de papel. Dístico por dístico foi escrevendo sobre a areia e memorizando aqueles mais de 5.800 belíssimos versos. O folclore popular, adaptado como música religiosa, servialhe para a representação de “autos” em português e tupi. Era incessante sua atividade para enriquecer o ministério pastoral e catequético entre os índios com representações teatrais festivas. Considerava imprescindível aproximar-se da psicologia indígena. São muitas as razões que temos para estar agradecidos ao Papa Francisco por propor ao mundo, com o novo destaque da santidade, o exemplo de José de Anchieta. Para a Companhia de Jesus é uma ocasião de restaurar com intensidade


a história contada por diversas vozes

Quadro Poema à Virgem Maria, de Benedito Calixto, retrata o padre José de Anchieta escrevendo o poema na areia.

a busca daqueles horizontes que ele perseguiu e que são sempre novos: a sensibilidade diante da diversidade étnica e a pluralidade religiosa, cultural e social; o desenvolvimento incan-

sável de uma nova liberdade criativa e de uma responsável capacidade de improvisação; a busca constante de expressões inculturadas para a experiência cristã e evangelizadora. Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

Que este novo intercessor nos ajude a buscar cada vez com maior empenho a vontade de Deus e a cumpri-la sem descanso. Fraternalmente no Senhor. ❒ 35


a história contada por diversas vozes

ANCHIETA, A COMPANHIA DE JESUS E O BRASIL Mensagem enviada à Comunidade Universitária da FEI logo que foi anunciado que o Beato José de Anchieta seria canonizado.

A canonização de Anchieta é, antes de tudo, um acontecimento eclesial. Por meio dele a fé cristã reconhece o valor evangélico da vida e da missão deste grande jesuíta e sua atualidade inspiradora. Não só para a Igreja ou para a Companhia de Jesus, mas também para todos 36

aqueles e aquelas que anseiam e estão comprometidos na construção de um Brasil melhor. Para nós jesuítas, essa canonização tem lugar no momento preciso em que a Companhia de Jesus organiza sua missão no Brasil como uma unidade, tanto de estrutura quanto de horizonte, a ‘Província do Brasil’. Após quase 5 séculos, estamos, hoje, portanto, muito próximos da realidade de Anchieta e seus companheiros, para os quais a

Pe. Alfonso Carlos Palacio Larrauri, S.J. Provincial do Brasil

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N

inguém poderia negar a importância de José de Anchieta como referência constitutiva da história do Brasil. Por meio de Anchieta e seus primeiros companheiros, há um vínculo que nos une, como Companhia de Jesus, à gênese da identidade social e cultural do nosso país.

Um dos tra• os caracter’ sticos da figura de Anchieta foi sempre a busca constante da ‘união dos diversos’.


a história contada por diversas vozes missão era o Brasil, como uma totalidade em construção. Um dos traços característicos da figura de Anchieta foi sempre a busca constante da ‘união dos diversos’. Traço que aparece de forma paradigmática na missão de São Paulo. O núcleo do que viria a ser a grande cidade foi sendo construído num diálogo nem sempre pacífico entre os diversos atores: um “Colégio diferente”, com ensino do latim e as outras línguas, constituído por alunos portugueses, mamelucos e índios, com Igreja restaurada, afluxo crescente de colonos portugueses e catequese itinerante dos índios. Essa “união de diversos” continua a ser o grande desafio e a enorme potencialidade para a construção social e para a construção eclesial do Brasil. Em sintonia com essa inspiração, também nós experimentamos e estamos convencidos que a missão de anunciar a “boa nova” do evangelho hoje no Brasil, passa pelo encontro com o outro, pela acolhida do diferente, pelo respeito da alteridade. No trabalho

atento a esta diversidade (regional, de culturas, de raças e etnias; social, religiosa, etc.) que constitui a fonte da sua riqueza humana e da criatividade cultural e social que lhe é reconhecida.

Monumento ao Padre José de Anchieta, na cidade de San Cristóbal de La Laguna,Tenerife, Espanha.

de construção da nova “Província do Brasil” descobrimos e aprendemos a conviver e dialogar com as diversidades regionais e culturais; a não fechar os olhos para novas fronteiras – humanas, culturais, e sociais – que desafiam nossa capacidade de abrir-nos para o desconhecido; a experimentar a riqueza dessa diversidade para a missão. Passados mais de quatro séculos, essa diversidade representa ainda a grande riqueza e continua a ser o grande desafio do nosso país. O Brasil não pode ser compreendido sem um olhar Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

Para a Companhia de Jesus é um compromisso inadiável comprometer-se com a construção de um “projeto Brasil” que integre de fato essa diversidade de modo que ela encontre finalmente seu lugar e seja reconhecida na construção comum do futuro. Que Anchieta nos ajude a transformar as nossas fragilidades pessoais e sociais em força de comunhão que brota do conjunto; Que ele nos ensine a arte de acolher, respeitar e integrar as diferenças numa unidade maior; Que ele abra nossos olhos para a realidade polivalente das nossas raízes culturais e nos torne capazes de entrar pelo caminho da convivência que contribui para a integração, porque sabe recriar consensos e dessa forma reinventar um futuro mais rico e mais justo, porque mais original e originário. ❒ 37


a história contada por diversas vozes

UMA LIÇÃO DE VIDA Homilia proferida na celebração comemorativa na Catedral de São Paulo, no dia 7 de abril. Foi presidida pelo Cardeal D. Odilo Scherer com a presença de muitos jesuítas, autoridades e fiéis.

Excelentíssimo Senhor Ge­ raldo Alckmin, Governador do Estado de S. Paulo, Excelentíssimo Senhor Fer­ nando Haddad, Prefeito de São Paulo, Demais autoridades aqui pre­ sentes, caríssimos irmãos e irmãs, É uma grande honra lhes di­ rigir a palavra em momento tão significativo para todos nós, na ocasião da canonização do Pa­ dre José de Anchieta. No dia 09 de junho de 1597, em Reritiba, hoje Anchieta, no interior do Espírito Santo, ele 38

entregava sua vida a Deus aos 63 anos de idade e 44 anos de total dedicação à missão evange­ lizadora da Companhia de Jesus no Brasil. Foi peregrino, cate­ quista, escritor, poeta, autor de peças, educador, músico, tradu­ tor, etnógrafo, padre, pregador, provincial e diretor de colégio. Quando o jovem José de An­ chieta aportou na Bahia aos 19 anos de idade, em 1553, ainda noviço, era considerado de saú­ de frágil, por causa de espinhela caída. Fragilidade que nunca o deteve para a grande obra mis­ sionária que ele viria a realizar

Pe. Miecszyslaw Smyda, S.J. Provincial da Província do Brasil Centro-Leste

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E

minentíssimo Se­ nhor Cardeal Dom Odilo Scherer, Ar­ cebispo desta Ar­ quidiocese de São Paulo,

Foi peregrino, catequista, escritor, poeta, autor de pe• as, educador, mœ sico, tradutor, etn— grafo, padre, pregador, provincial e diretor de colŽ gio.


a história contada por diversas vozes junto com o Padre Manoel da Nóbrega e demais coirmãos. Desde o início, empenharam­ -se com afinco na obra de catequi­ sar os indígenas na doutrina cristã e na moralização dos costumes dos colonos portugueses. Vieram para ensinar, mas tiveram muito que aprender. A começar pela lín­ gua mais falada, o tupi­guarani.

essas dimensões estava ele, José de Anchieta, com seus dons para a poesia, o teatro, a música, a co­ reografia, a conquistar a presença e participação dos indígenas nas atividades missionárias que iam criando e desenvolvendo.

Os jesuítas daquele tempo foram pioneiros na tentativa de adaptar o trabalho de evange­ lização à nova realidade, que superasse as dificuldades encon­ tradas pela distância da língua e dos costumes e pelo nomadismo indígena. Foi aí, quando a mis­ são exigiu maior criatividade e adaptação dos jesuítas, que o gênio de José de Anchieta se ma­ nifestou de muitos modos.

Mergulharam cada vez mais fundo para conhecer – às vezes decifrar – o sentido da vida dos indígenas, a quem queriam se dedicar de corpo e alma, para que fossem salvos e se tornassem cidadãos da ordem da cristan­ dade. Combateram veemente­ mente o canibalismo ritual e guerreiro dos tupis e tapuias. Da mesma forma que, com espírito de amor, zelo e total dedicação lutaram para preservar os indí­ genas da escravização buscada pelos colonos portugueses.

Muitos estudiosos reconhe­ cem que o êxito da catequese dos jesuítas se deu pelo emprego da música e do canto, da liturgia, das procissões e festas, das danças reli­ giosas, dos autos e comédias, além da devoção a relíquias do Sagra­ do Lenho da Cruz e das cabeças das Onze Mil Virgens. Em todas

Em 1554, José de Anchieta esteve presente na celebração da missa da fundação do colégio de São Paulo de Piratininga, onde passaram a ser alfabetizados os meninos, e os jovens jesuítas re­ cebiam aulas de latim. Jamais poderiam imaginar que daque­ la cabana, em que celebraram Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

a missa de fundação do colégio, surgiria a megalópole de hoje. Anchieta esteve à frente dessa nova casa nos seus primeiros dez anos, os mais difíceis. Abriu caminho não somente pelo aprendizado e domínio do idioma indígena, mas por se tor­ nar autor da primeira gramática da língua tupi, de um dicionário e de um livro de doutrina. No evangelho, Jesus nos ensi­ na que a vida verdadeira é a vida gasta para que outros tenham vida; e que são bem­aventurados os realizadores da paz. Anchieta e Nóbrega não tive­ ram medo de colocar suas vidas em risco, para intermediar a paz com os tamoios, em Iperoig, atual Ubatuba. No tempo em que per­ maneceu ali refém, Anchieta se dedicou a compor o célebre Poe­ ma da Virgem Mãe de Deus, Ma­ ria, a quem consagra o sentido de sua castidade, por amor a Deus, na Companhia de Jesus. Encontramos aí um valioso testemunho para o nosso mundo, cheio de conflitos e de desrespei­ 39


a história contada por diversas vozes to à vida; lição de que a vida sem amor é vida sem sentido e sem realização plena, e que só pode se dar em Deus e em Cristo. Com Anchieta reaprendemos a impor­ tância do encontro com o diferen­ te; a oportunidade de estabelecer com ele a comunicação e o diálo­ go; a adquirir um novo olhar para ver e conhecer o mundo. Surgem daí novas possibilidades de cresci­ mento e de humanização. Nas inúmeras cartas que es­ creveu a Portugal, o Apóstolo do Brasil revelou-se exímio etnógrafo e hábil observador da na­ tureza. Foi um homem incansá­ vel na busca do conhecimento, a partir da realidade encontrada. Educador criativo dos pequenos índios, não se deixava abater pelas fadigas que a nova reali­ dade lhe trazia, impulsionado que era pelo amor a Cristo, que o chamou a cuidar de povos tão diferentes. Nem poupava esfor­ ços para suprir a falta dos livros, para copiar à mão e à luz de vela, os textos para os seus pe­ quenos alunos indígenas. A convivência com os pobres, 40

o diálogo evangelizador e a ca­ tequese foram grandes marcas deste nosso Apóstolo do Brasil. Aprendeu a servir aos diferentes e mais necessitados, não pela im­ posição, mas pela atração e con­ vencimento. Como vela que se consome para irradiar luz, calor e vida, assim se esvaiu a vida des­ te nosso santo em nossas terras. Quis a Providência Divina que, neste ano de 2014, em que a Companhia de Jesus comemora os 200 anos de sua restauração, após expulsão dos jesuítas a mando do Marquês de Pombal, e da sua su­ pressão por bula papal, chegasse a termo um longo processo histórico de reconhecimento da santidade do Padre José de Anchieta. O papa Francisco decidiu de­ clarar para toda a Igreja aquilo que o nosso povo, há muito tem­ po, já sabia. Pois o processo de canonização de Anchieta teve início logo depois de sua morte, tanto que em 1652 já era declara­ do “servo de Deus” pela Igreja e, em 1736, proclamado como ve­ nerável. Sua beatificação, entre­ tanto, só veio a ocorrer em 1980, Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

pelo papa João Paulo II. E ago­ ra, no dia 3 de abril passado, o Papa Francisco proclamou santo a José de Anchieta, reconhecen­ do a santidade de um missionário peregrino, de muitas e longas jor­ nadas a pé e de barco, que teve de abrir caminhos pela floresta, arriscar sua vida em muitas situa­ ções, pôr todos os seus dons e sua vida a serviço da missão. Morreu amado pelos índios, que se tor­ naram próximos seus e o venera­ vam como taumaturgo. Vivemos hoje a honra de ce­ lebrar, com toda a Igreja, unidos ao papa e a nosso povo, a ação de graças a Deus por mais este exemplo de vida gasta por causa de Cristo e por sua Igreja. Podemos aprender com ele que vale a pena buscar e encon­ trar a vontade de Deus, e empre­ gar todos os meios para realizá­la; pôr nossos dons a serviço dos ou­ tros e assim colaborar na constru­ ção de um mundo melhor, onde todos os povos e raças possam ser irmãos em Cristo Jesus e viver como uma grande comunidade unida, assim como a Igreja. ❒


a história contada por diversas vozes

UM INTERCESSOR PARA O BRASIL Mensagem enviada à Comunidade Universitária da FEI logo que foi anunciado que o Beato José de Anchieta seria canonizado.

Abrindo caminhos para que todos tivessem acesso à fé, aos sacramentos, construindo taperas, cabanas, fortificações e capelas para abrigar e defender todas as pessoas, estudando a fauna e a flora para promover a saúde, prevenindo doenças, com antídotos naturais com a farmacopeia nativa dos seus habitantes. Pilotou pirogas, barcos e naus ao longo da costa para que a cruz do Senhor fosse erguida como referência da fé e da fraternidade. Observador das

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Papa Francisco nos surpreendeu com a decisão de declarar a santidade do padre José de Anchieta, assinando o decreto de sua canonização no dia 03 de abril. A surpresa de uma decisão almejada pelos brasileiros desde os primórdios da evangelização no Brasil causa impacto em todos nós. A vida de Anchieta faz parte do Brasil. Anchieta percorreu rincões de nosso País, oferecendo o que tinha: sua disposição, seu serviço, sua compreensão da complexidade da vida do colono, do índio. Foi agente de comunicação, deslocando-se do sudeste ao nordeste, promovendo a cooperação das pessoas para o seu serviço missionário.

Anchieta percorreu rinc› es de nosso Pa’ s, oferecendo o que tinha: sua disposi• ‹ o, seu servi• o, sua compreens‹ o da complexidade da vida do colono, do ’ ndio.

Pe. Theodoro Paulo S. Peters, S.J. Presidente da FEI

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a história contada por diversas vozes

Fundação de São Paulo, primeira missa de Antônio Parreiras (1913). Acervo da Pinacoteca Municipal de São Paulo (Brasil).

pessoas, da natureza em que interagiam, procurou colocar seu talento e conhecimento a serviço da construção da nacionalidade cultural brasileira. Os alimentos foram adequados ao modo de viver, utilizando os recursos do País. Ensinou e aprendeu a viver com os produtos da terra. Sem trigo, criou o pão de farinha de mandioca e, assim, ia descobrindo e transmitindo em seus escritos as soluções possí42

veis de serem replicadas em outros lugares e povoados. Anchieta foi ao encontro das pessoas nas situações, nas suas culturas, usos e costumes. Ganhou a confiança de todos mediando conflitos e revanches das partes adversas. Europeu, ofereceu sua língua, o saber cultivado, o modo de proceder. Partilhou os seus saberes com os índios e bugres. Para a catequese, desenvolveu a pedagogia da alegria. Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

Pela participação nos teatros, levava os indígenas a se identificarem com os personagens, admirando a valentia corajosa de Cristo na Paixão, fascinando-se com a Virgem Maria, pela sua fé ao enfrentar o demônio tentador para promover o mal e a desavença. Pela atuação os corações despertavam para uma revelação inesperada. O teatro, a mímica, foram os recursos para transmitir conceitos e afir-


a história contada por diversas vozes

Inculturando-se, assumiu a língua nativa, seus alimentos, suas medicinas. Seu modo de proceder ficou consignado em suas obras, cartas, gramática da língua indígena. Chegou jovem ao Brasil, em 1553, aos 19 anos foi enviado, porque enfermo, e esta terra, recém descoberta, lhe ofereceu uma energia nova, uma capacidade de superação fantástica. Com meios restritos completou seus estudos, recebeu a ordenação sacerdotal. Anchieta soube tomar decisões para realizar seu projeto de vida. Decidiu dedicar-se ao próximo, respondendo ao apelo de Jesus que o chamava para oferecer o Evangelho a todas as pessoas da face da terra. Seus feitos passaram de geração a geração até os nossos dias.

Em 1597, morreu em Reritiba, atual Anchieta, no Espírito Santo. Passados quatro séculos, ele ainda fala com a sua vida entregue pelo bem desta terra de promessas, de sua gente, de seu evangelho. Anchieta é modelo

mar valores e virtudes. Assim ele descobria as sementes do Verbo plantadas pelo Criador: dotes naturais, costumes ancestrais eram reforçados e se tornavam a porta de entrada do Evangelho e os antivalores eram desencorajados, como a antropofagia, a destruição dos semelhantes.

Anchieta foi ao encontro das pessoas nas situa• › es, nas suas culturas, usos e costumes. Ganhou a confiança de todos mediando conflitos e revanches das partes adversas.

para a juventude porque jovem tomou a decisão orientadora de sua vida. Anchieta é inspiração para o homem empreendedor porque inovou a vida missionária nos primórdios do Brasil. Anchieta é o patrono do Brasil porque veio para ficar. Anchieta plantou civilização dando a vida. Assumiu todos os riscos e perigos, acreditando que estava ao lado de Deus para cooperar na missão geradora de vida e salvação eterna.

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A Arquidiocese de São Paulo e o Provincial dos Jesuí­ tas convidam a todos nós para comemorar a graça de Deus reconhecida pelo Papa Francisco na vida do Santo José de Anchieta, anunciando os seguintes eventos: • Dia 03 de abril, quinta feira, às 14h, todas as Igrejas tocarão os sinos de seus campanários ou soltarão fogos pelo júbilo da canonização do Padre José de Anchieta. Às 19h30, oração das Vésperas, introduzida pela leitura da Biografia de São José de Anchieta e concluída com o Te Deum em ação de graças, na Igreja do Pateo do Collegio. • Dia 06 de abril, domingo, às 10h, no Pateo do Collegio, concentração para saída da procissão em direção à Catedral de São Paulo, onde será celebrada a Eucaristia com a presença das autoridades e do povo de São Paulo. Participemos desta alegria e promessa de Deus para todo o Brasil. São José de Anchieta, rogai por nós junto de Deus! ❒ 43


a história contada por diversas vozes

JOSÉ DE ANCHIETA: UM ÍCONE DA EVANGELIZAÇÃO

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chegando até mesmo aos primórdios da biogeografia brasileira. Sem nenhuma intenção de proselitismo, não podemos deixar de reconhecer a grande contribuição deste homem, considerado um ícone da evangelização nos primórdios das raízes de nossa brasilidade. Estar ligado à fundação das duas maiores cidades do país, São Paulo e Rio de Janeiro, não é algo trivial, pois isto supõe capacidade de dialogar, de aceitar diferenças, de ser inovador, de romper barreiras religiosas e culturais, de integrar Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J. Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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A vis‹ o mission‡ ria vai alŽ m de seu tempo, deixando um legado religioso e cultural para a hist— ria do Brasil, ainda hoje reconhecido por muitos intelectuais e historiadores de nosso pa’ s.

A

canonização do Padre São José de Anchieta, missionário jesuíta, feita recentemente pelo Papa Francisco, é um reconhecimento histórico de um homem que deu a sua vida pelos valores e princípios do Evangelho, tão importantes no início do processo de miscigenação cultural de nossa nação. A sua visão missionária vai além de seu tempo, deixando um legado religioso e cultural para a história do Brasil, ainda hoje reconhecido por muitos intelectuais e historiadores de nosso país. É difícil, em poucas palavras, expressar a riqueza desse legado, sobretudo quando este se estende desde o campo da literatura, da poesia, da antropologia e dramaturgia,


a história contada por diversas vozes culturas distintas e, extraordinariamente, de entregar sua vida por uma causa mais nobre, sem pretensões de poder, benefício próprio ou ambições econômicas. A maneira como Anchieta viveu e morreu aqui em nosso país, é um testemunho inquestionável de alguém que procurou trabalhar e gastar a sua vida com gratuidade Evangelho nas Selvas (Padre Anchieta), por Benedito Calixto e simplicidade, sempre defen(1893). Pinacoteca do Estado de São Paulo. dendo aqueles que sofriam os Hans Staden, André de Thevet, efeitos nefastos do processo Jean de Lery, Pedro de Guimacolonizador, como os povos indírães Gândavo, entre outros, a genas na sua época. carta escrita por José de Anchieta Além deste árduo trabalho em 1560, documento pouco code inculturação da fé, a sua connhecido pelos brasileiros, têm um tribuição literária foi fundamenpapel relevante para os primórtal, lançando as bases da arte da dios da chamada biogeografia poesia lírica e épica no Brasil, brasileira. Neste relato pré-bioalém dos sermões, cartas e uma geográfico, aparece a riqueza gramática tupi-guarani, a língua e o uso da biodiversidade pelos mais falada naquela época na povos nativos, revelando também costa do país. aspectos etológicos de alguns animais. O que chama a atenção, é Junto com outros que procua preocupação de Anchieta em raram narrar em cartas os aspecmostrar a visão integradora do tos etnológicos, etológicos e hishomem com a fauna e com a flotóricos no início do processo de ra, agregando informações sobre colonização, como Pero Vaz de os fenômenos climáticos. A sua Caminha, Pedro Lopes de Souza, Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

maneira holística em olhar a realidade antropológica, etnológica, teológica e ambiental integradamente, é sem dúvida uma referência para o nosso mundo atual, carente de uma visão mais sistêmica da realidade socioambiental. Ao canonizar o Padre Anchieta, o Papa Francisco foi além dos milagres baseados apenas nas curas e nas graças alcançadas, mostrando que é preciso ver também o legado e a contribuição cultural que uma pessoa deixa na história de um país, sendo sempre estímulo às futuras gerações. Que o exemplo do Santo José de Anchieta, nos estimule a buscar sempre a abertura e o diálogo com as diferentes culturas e religiões que fazem parte de nossa brasilidade, exercendo a solidariedade entre os povos, e mostrando o quanto temos que conhecer e aprender com esta rica biodiversidade de nosso país, mesmo sabendo que a mesma se encontra cada vez mais vulnerável pela exploração e destruição de nossos ecossistemas. ❒ 45


a história contada por diversas vozes

OS SANTOS TÊM UMA MISSÃO

A alegria por essas canonizações não pode nos fazer esquecer que é Deus o santo! A vida dos homens e mulheres que chamamos santos e santas torna dizível a santidade indizível de Deus. Essa não é exclusiva à fé cristã. Nossa Igreja faz a memória de seus santos e santas, assim como 46

nossos irmãos e irmãs israelitas, islamitas, budistas, hinduístas, espíritas, nossos irmãos e irmãs das religiões afrobrasileiras celebram em seus santos e santas a santidade indizível de Deus. E, por que não fazer a memória de formas laicas de santidade naqueles homens e mulheres que entregaram sua vida por alguma causa pública da esfera cidadã? Na vida de São José de Anchieta Deus santo se faz dizível nas trilhas da experiência dos Exercícios Espirituais. Deus ao qual falamos em Jesus como a um amigo, que nos abraça na sua misericórdia e nos convida a trabalhar com seu Filho. São José de Anchieta, rogai por nós! ❒

Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, S.J. Reitor da Universidade do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS

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A

pós longa espera de quatro séculos, agora, com intervalo de poucos meses, a Igreja Católica canonizou os beatos Pedro Fabro e José de Anchieta. Forma encontrada pelo Papa Francisco de mostrar afeição pela Companhia de Jesus, da qual os dois novos santos eram sacerdotes. Pedro Fabro, um dos cofundadores da Companhia, e José de Anchieta, considerado fundador de São Paulo: dois santos para inspirar quem quiser seguir Jesus Nazareno, profeta messiânico, que confessamos o Cristo da fé da Igreja.

A vida de homens e mulheres que chamamos santos e santas torna diz’ vel a santidade indiz’ vel de Deus.


entrevista Pe. César Augusto dos Santos

NOS BASTIDORES DA CANONIZAÇÃO Padre César Augusto dos Santos é Diretor do Programa Brasileiro da Rádio Vaticano e, há mais de dez anos, postulador da Causa de Canonização do Beato José de Anchieta.

... a Causa de Anchieta possui mais de quatro sŽ culos, jamais caiu, nem mesmo quando os jesu’ tas foram expulsos do Brasil e a Companhia de Jesus supressa em toda a Igreja.

Residindo em Roma, teve seu trabalho facilitado pela proximidade e contatos com a Cúria Romana. Seu testemunho tem a objetividade do desdobramento dos fatos e a emoção de quem cumpriu a missão recebida.

Padre César, qual foi sua reação quando ficou sabendo da decisão do Papa em canonizar o B. José de Anchieta, para você, que durante todo esse tempo esteve à frente do processo? Foi surpresa ou era esperado?

Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

Minha reação, é claro, foi de grande alegria. Deu-me a boa nova o Cardeal Raymundo Damasceno Assis, quando fui buscálo na Casa Santa Marta. Disse-me ele: “Padre Cesar, hoje, no café da manhã, o Santo Padre falou que concordava com o pedido da Conferência para canonizar Anchieta. Deveremos aguardar o contato do Cardeal Amato com o Postulador Geral”. Algum tempo depois, Pe. Anton Witwer, Postulador Geral das Causas dos Santos da Companhia de Jesus, me chamava para dizer que o Cardeal Angelo Amato, Prefeito da Congregação das Causas dos Santos, havia lhe telefonado para que retomasse o Processo do Beato Pe. José de Anchie47


entrevista Pe. César Augusto dos Santos ta e o fizesse sem dar atenção aos milagres e sim à amplitude do culto. Ele pedia minha colaboração e a “Positio” deveria estar pronta no final de janeiro. Não pensei nos dois ou três meses que teria pela frente, mas na possível dificuldade em verificar essa devoção espalhada em todo o Brasil. Já há dois anos, Pe. Witwer me dissera da alternativa da amplidão de culto, contudo, eu achava muito mais difícil do que encontrar um milagre, haja vista o tamanho do Brasil! Falei com a direção da Rádio Vaticano sobre o acontecido e pedi compreensão para a divisão de minha atenção. Entrei em contato com a senhora Myriam Daoud, que havia colaborado muitíssimo no gerenciamento da Canan – Associação Pró Canonização de Anchieta – e também contratei uma pessoa para me ajudar. Myriam pesquisava os arquivos da Canan e eu administrava tudo daqui de Roma. Meus seis jornalistas do Programa Brasileiro da Rádio Vaticano foram fantásticos ao compreenderem minha parcial ausência devido ao meu trabalho de Vice-Postulador. 48

Ser um papa jesuíta não seria um fa­ vorecimento manifestado pela que­ bra das formalidades canônicas?

Não, porque não houve quebra de formalidade canônica. A canonização por equipolência já foi usada nos séculos passados e, inclusive, por Bento XVI. Essa proposta já havia sido “cantada” anos atrás, pelo próprio Cardeal Amato. A Canonização equipolente se usa em causas seculares, cuja devoção ao candidato sempre permaneceu em alta e encontra-se disseminada por toda a região que solicita a declaração da santidade. Ora, a Causa de Anchieta possui mais de quatro séculos, jamais caiu, nem mesmo quando os jesuítas foram expulsos do Brasil e a Companhia de Jesus supressa em toda a Igreja. Além disso, em cada Estado da Federação encontramos ao menos 50 devotos multiplicadores. Qual o ponto forte que teria levado o Papa a definir­se pela canonização?

Não diria que foi o Papa, mas o pedido de Dom Raymundo e a sugestão do Cardeal Amato de fazê-la equipolente. Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

Há pessoas que criticam Anchieta como mais preocupado em introduzir a cultura dos colonizadores do que preservar a indígena. Até que ponto isso é verdade? Ter­se­ ia comportado mais como político do que missionário?

Essas pessoas deveriam estudar antes de falar o que não sabem. Foi exatamente o contrário, não só com Anchieta, mas com os primeiros jesuítas. Padre Nóbrega e o primeiro bispo, Dom Pero Fernandes, tiveram vários desencontros por causa disso: os jesuítas eram acusados de se envolverem com a cultura indígena e evangelizar de modo apropriado aos indígenas e isso não era bem visto, ao ponto de Nóbrega deixar Salvador e ir para São Vicente. Anchieta estuda a língua Tupi e transforma seus sons em escrita. Isso perenizou a língua indígena; por outro lado, ele catequizava com teatro, atividade lúdica bem ao gosto indígena com danças, cantos e cores e fazia tudo de acordo com o cerimonial indígena. Também Anchieta foi estudar com os pajés a medicina indígena: ervas,


entrevista Pe. César Augusto dos Santos raízes, como fazer tipoia e o uso medicinal da argila. Enquanto os colonizadores trouxeram e impuseram o Cristianismo como religião de Estado, Anchieta trouxe o Evangelho, Jesus Cristo, jamais obrigando. Existe uma passagem em que Anchieta ameaça os colonizadores escravocatas de não os confessar mais se continuarem a escravização indígena e não se arrependerem publicamente. Por que a Igreja levou tanto tempo para reconhecer a santidade de Anchieta? Mudou­se o conceito de santidade ou fatores bloquearam o processo canônico?

São as vicissitudes da vida. Assim que morreu, já na missa de corpo presente, o bispo que presidiu a celebração o chamou de Apóstolo do Brasil; o processo foi aberto imediatamente. Todavia, o Papa Urbano VIII emitiu um decreto fixando a abertura de qualquer processo de canonização somente após 50 anos da morte do “candidato”. Depois de esperar esse tempo e ser reaberto, o processo ficou sem di-

nheiro. Mais tarde, foi retomado até a Companhia de Jesus ser supressa de toda a Igreja. Cada vez que se reabria o processo, tudo era revisto. Finalmente, em 1980, o Papa João Paulo II o beatificou. Na verdade não foram 417 anos de processo, mas cerca de 200 anos. As situações mais complicadas foram vencidas pela Causa. No século XVIII Anchieta foi reconhecido como portador de virtudes heróicas. Essa é, na minha opinião, a parte mais difícil do processo, na qual tudo que ele falou, escreveu ou realizou é analisado e passa por um peneira fina; depois de sobreviver tanto tempo sem uma base jesuíta para sustentá-lo, quando da expulsão dos jesuítas: foram 110 anos sem alguém gerenciar a Causa e ela sobreviveu ilesa. O que na sua opinião a canonização de Anchieta vai contribuir para a evangelização pretendida pelo Papa Francisco?

Canonizar, no século XXI, um homem que viveu no século XVI, só faz sentido se o vaCadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014

lor de seu testemunho for atual para o homem de hoje. No caso de José de Anchieta, um missionário, sua ação deve ter sido tão magnífica que, apesar do Concílio Vaticano II e de documentos eclesiais mais recentes, continua atual. São José de Anchieta evangelizou e não impôs a religião dos colonizadores, atuando em todos os âmbitos da sociedade. Levou ainda a fé cristã para todas as dimensões do País que nascia e se formava. Foi audaz - o Papa Francisco pede audácia aos jovens de hoje - e, sobretudo, não se intimidou com a situação inóspita, para um jovem europeu com saúde frágil, de um Brasil recém-descoberto. Seu testemunho da boa nova foi tal que as famílias indígenas e portuguesas se mudavam para o entorno do Colégio São Paulo de Piratininga para poder estar próximas daquele jovem tão cativante. Seu alegre anúncio de Jesus Cristo atraiu tantos que os levou à conversão à fé cristã e deu início a uma das maiores cidades do planeta. ❒ 49


CADERNOS DA FEI – EDIÇÃO ESPECIAL Publicação da Fundação Educacional Inaciana Pe. Sabóia de Medeiros, mantenedora do Centro Universitário da FEI e dos institutos a ele associados: IPEI e IECAT.

Presidente Pe. Theodoro Paulo S. Peters, S.J. Coordenação Editorial Pe. Paulo de Arruda D’Elboux, S.J.

Editado no Centro Universitário da FEI, Instituição filiada à

Associação Brasileira das Universidades Comunitárias

EXPEDIENTE Revisão Prof. Raúl Cesar Gouveia Fernandes

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Arte final e diagramação Setor de Comunicação e Marketing da FEI Silvana V. Mendes Arruda

Endereço para correspondência Setor de Comunicação e Marketing Av. Humberto de Alencar Castelo Branco, 3972 CEP 09850-901 Bairro Assunção – S.B.Campo – SP E-mail: redacao@fei.edu.br

Fotos Cadú Coppini, Jésus Perlop

www.fei.edu.br Cadernos da FEI – Edição Especial | Julho 2014



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