ELO 20 Profissionalidade docente
Revista do Centro de Formação Francisco de Holanda Centro de Formação Francisco de Holanda Escola Secundária Francisco de Holanda Alameda Dr. Alfredo Pimenta 4814‐528 Guimarães cfaecffh@gmail.com www.cffh.pt 253 513 073 2
FICHA TÉCNICA
Diretora Coordenação Conselho Científico Conselho Redatorial Capa Arranjo gráfico Imagem Maquetagem Propriedade e edição
Lucinda Palhares Lucinda Palhares Armanda Gomes Almerindo Janela Afonso – Universidade do Minho Carlinda leite – Universidade do Porto Fernando Ribeiro Gonçalves – Universidade do Algarve Francisco Teixeira – Escola Secundária Francisco de Holanda José Augusto Pacheco – Universidade do Minho Manuela Esteves – Universidade de Lisboa Lucinda Palhares Jorge do Nascimento Agostinho Ferreira Manuel Barbosa Pedro Almeida Salgado Almeida Henrique Fernandes Centro de Formação Francisco de Holanda Escola Secundária Francisco de Holanda Alameda Dr. Alfredo Pimenta 4814‐528 Guimarães cfaecffh@gmail.com ‐ www.cffh.pt ‐ 253 513 073
Depósito Legal ISBN 972‐96465 Impressão Gráfica Covense, Ldª ‐ Polvoreira ‐ Guimarães Número Revista ELO 20 – julho de 2013 Tiragem 300 Exemplares Apoios Escolas Associadas do Centro de Formação Francisco de Holanda Revisão por pares da responsabilidade do conselho científico. Respeitando a opção individual dos seus colaboradores, a ELO 20 apresenta, em simultâneo, a ortografia portuguesa com e sem o acordo ortográfico aprovado.
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ÍNDICE NOTA DE ABERTURA ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 9 Lucinda Palhares Diretora do CFFH OS PROFESSORES COMO PROFISSIONAIS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO – CONTRIBUTOS PARA A ADMINISTRAÇÃO DE UMA ESCOLA PARA PESSOAS ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 13 João Formosinho Universidade do Minho LUZ E SOMBRA ‐ ALGUMAS LINHAS SOBRE A (IN)VISIBILIDADE SOCIAL DOS PROFESSORES ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 21 Carlos Alberto Gomes Universidade do Minho COMPETÊNCIA PROFISSIONAL: CONCEITO E ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 23 Álvaro Leitão CIDTFF – Universidade de Aveiro DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL NO SÉCULO XXI: O PODER DA LIDERANÇA CRIATIVA ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 31 Isabel Carvalho Viana Universidade do Minho IDENTIDADE E CRISE NA PROFISSÃO DOCENTE ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 41 Cilene Ribeiro de Sá Leite Chakur Fac. Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista de Araraquara A ESPIRAL POSITIVA E O PAPEL CRUCIAL DOS PROFESSORES ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 53 Joaquim Azevedo Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa ‐ Porto EU – PROFESSOR COM IDENTIDADE E PROFISSIONALIDADE ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 63 Paula Figueiras Carqueja Presidente da Direção Nacional da Associação Nacional de Professores 5
PROFISSIONALISMO DOCENTE EM TEMPO DE CRISE ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 69 Maria Teresa Estrela Instituto de Educação da Universidade de Lisboa AUTO‐REGULAÇÃO DAS PROFISSÕES DA EDUCAÇÃO: PORQUÊ? ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 81 A. Reis Monteiro Universidade de Lisboa EDUCAR NA RESPONSABILIDADE ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 89 Manuel Curado Universidade do Minho A PROFISSIONALIDADE DOCENTE: NOTAS PARA UMA REFUNDAÇÃO REGENERADORA ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 99 José M. Lemos Diogo Adjunto do secretário de estado do ensino e da administração FORMAÇÃO ÉTICO‐DEONTOLÓGICA DE EDUCADORES DE INFÂNCIA ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 111 Joana Marques Instituto de Educação – Universidade de Lisboa PROFESSOR DE OUTRORA E PROFESSOR DE AGORA: RUMO À PROFISSIONALIDADE DOCENTE ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 125 Jesus Maria Sousa Departamento de Ciências de Educação da Universidade da Madeira PROFESSOR ‐ UMA PROFISSÃO ETICAMENTE RESPONSÁVEL ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 135 Lurdes Silva Professora (aposentada) ÉTICA PROFISSIONAL DOCENTE ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 141 Francisco Teixeira AE Francisco de Holanda 6
A CULPA É DO SETÔR! ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 151 Nuno Mata AE D. Afonso Henriques PROFISSÃO, TRABALHO E IDENTIDADES DOCENTES: ENCRUZILHADAS NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 157 Joaquim Paulo Teixeira AE de Fafe MEMÓRIA DE UMA PROFESSORA ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 165 Maria Teresa Portal Guimarães de Oliveira Subdiretora AE das Taipas IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O CONHECIMENTO DO PATRIMÓNIO ARTÍSTICO DO CENTRO HISTÓRICO DE GUIMARÃES ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 175 António José de Oliveira AE das Taipas PROFISSÃO DOCENTE: UMA BREVE REFLEXÃO ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 179 José Pinto Pinheiro Diretor do AE Fernando Távora UM OLHAR PESSOAL… EM JEITO DE RELATÓRIO ‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 185 Jorge do Nascimento Pereira da Silva Professor aposentado (ex‐diretor do CFFH)
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NOTA DE ABERTURA Lucinda Palhares Diretora do Centro de Formação Francisco de Holanda Anualmente, a comissão pedagógica do CFFH escolhe a temática sobre a qual deverá incidir a edição da revista ELO. Esta escolha recai, normalmente, sobre o tema de “agenda” em cada ano, aquele que é priorizado pela tutela e de aplicação mais ou menos imediata nas escolas ou nos centros de formação. Foi o caso da educação sexual, da avaliação do desempenho docente, da cidadania, das bibliotecas escolares, das TIC… Este ano, a temática da ELO foge um pouco a esse padrão e centra‐se numa questão de primordial importância, na nossa opinião, a profissionalidade docente. É nosso entender que, numa fase de alteração do próprio paradigma da educação e da escola, é preciso ajudar os docentes a reencontrar a sua identidade, estatuto, valor social e profissional, contribuindo para a compreensão e desejável superação do atual quadro. Daí considerarmos premente refletir sobre as questões relativas à ética e deontologia profissional dos professores e educadores, bem assim como sobre a natureza da profissão docente, o seu estatuto profissional e social e a sua inserção e visibilidade sociais. E assim nasce o vigésimo ELO centrado na temática da Profissionalidade Docente! Como habitualmente, foi lançado o desafio a distintos e diversos investigadores do meio académico que responderam positivamente, colaborando com artigos que traduzem as suas leituras e os seus “olhares” diferenciados da profissionalidade docente, mas com um denominador comum: a competência, a reflexibilidade e a autonomia do professor como fatores que contribuem decididamente para a melhoria da confiança profissional, das escolas enquanto organizações e, claro, do sucesso escolar. Ora, considerando a escola um espaço privilegiado de interações, de vivência da cidadania, de equidade e de construção de autonomia ‐ através das relações e dinâmicas internas e das interações externas ‐ esperamos que estas “leituras e olhares” induzam um clima escolar ondese teçam afetividades e se restabeleçam afinidades propícias ao bem‐estar, à cumplicidade e ao compromisso, reanimando os profissionais e devolvendo‐lhes a alegria de pertença, de valor e de identidade à profissão‐PROFESSOR 9
Assim, e considerando a atual conjuntura, os professores têm mesmo de investir na sua profissionalidade, interagindo colegialmente com os seus pares, (re)construindo o seu palco de atuação (escola), onde mais do que atores terão de ser autores, convocando a “emergência da maturidade de um grupo profissional” de que nos fala M.ª do Céu Roldão1. Para isso, é necessário envolvermo‐nos nesta missão. É necessária a conveniente interiorização e apropriação. E aqui, o centro de formação pode e deve marcara diferença já que a sua intervenção se centra na oferta formativa, na qual se inscrevem as mudanças de práticas docentes que contribuem para a melhoria dos resultados e do sucesso dos alunos, mas também em ações2 indutoras da melhoria das relações interpessoais dos docentes, do clima das escolas, tendo em vista uma escola mais aprendente e integradora, onde todos se sintam realizados pessoal e profissionalmente e sejam promotores de sucesso, variáveis vitais e impulsionadoras, por um lado da revalorização da profissão, na medida em que devolvem ao professor o protagonismo e o reconhecimento que merecem por parte da sociedade, por outro lado, da valorização da imagem social da escola. O ofício de professor é multifacetado, obrigando‐o aassumir diversas dimensões na escola, nomeadamente, a dimensão profissional e a dimensão pessoal. A primeira remete‐nos para a missão de ensinar; a segunda remete‐nos para um perfil de professor dialogante, afetuoso e assertivo, capaz de negociar e corresponsabilizar. Jennifer Nias (1991)3 expressa esta ideia da seguinte maneira “o professor é a pessoa; e uma parte importante da pessoa é o professor”, pelo que o investimento (leia‐se formação4) na profissão terá de ter dupla finalidade. No entanto, nas escolas quase se vive numa afonia coletiva, pois o elevado número de missões atribuídas aos professores torna o tempo muito reduzido para, colegialmente, analisar, refletir, 1
Seminário da Universidade Católica “Escolas, Professores, Identidades‐ Transições paradigmáticas”, dia 7 de fevereiro 2013.
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Realização de conferências, workshops, seminários, mesas redondas… atividades que promovem o debate e potencializam a ação crítica e reflexiva dos docentes.
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Jennifer Nias (1991) referido por António Nóvoa, em Seminário da Universidade Católica “para que servem os professores?”, em 9 de março 2013.
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As lógicas de formação são múltiplas e, por vezes, complementares: a lógica formal (compreende o sistema formativo institucionalizado cronologicamente graduado e hierarquicamente estruturado); a informal (processo circunstancial que se desenrola no decurso de encontros, leituras e acontecimentos, recebida no decurso do quotidiano) e a não‐formal (toda a atividade formativa organizada, sistemática, executada fora do quadro do sistema formal).
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debater e cooperar. Contudo, é preciso debater a escola e redefinir‐lhe o objeto e isso tem de ser feito também à custa da recentração dos professores, mobilizando‐os ética e pedagogicamente. Como reiteradamente afirma António Nóvoa5, parafraseando Sérgio Niza: “Ética, pedagogia e democracia são exatamente a mesma coisa”. Por isso, é tão importante investir na “pessoa” e dar um estatuto ao seu “saber de experiência feito”, para que o seu exercício profissional seja uma marca identitária. Importa, por isso, valorizar paradigmas de formação que promovam a sustentação de profissionais reflexivos e autónomos, que assumam a responsabilidade do seu próprio desenvolvimento pessoal e profissional e se tornem os protagonistas da construção dos seus valores. É esta a nossa assunção enquanto centro de formação, pois acreditamos e defendemos o princípio que decorre do próprio regime jurídico da formação contínua de professores de “Incentivar os docentes para a autoformação, a investigação, o experimentalismo e a inovação educacional”. Convém, contudo, desde já realçar que, neste número da revista ELO, os artigos dos investigadores não dão soluções, apenasapresentam algumasanálises e reflexões que proficuamente contribuirão para o debate coletivo ou para a reflexão individual e que, por certo, induzirão o desenvolvimento profissional dos docentes e, consequentemente o desenvolvimento organizacional das instituições. Mas, a revista ELO, também é um espaço que dá a voz aos docentes e, na senda dos anos anteriores, pretendemos criar um espaço de reflexão e construção de narrativas autobiográficas e profissionais de professores e educadores, tendo em vista a compreensão das experiências profissionais a partir de relatos de primeira pessoa. Contudo, a motivação da classe parece estar esboroada, provavelmente devido a um excesso de solicitações dentro da escola, à instabilidade emocional e à incerteza profissional. Talvez por isso, o número de narrativas profissionais tenha sido reduzido. Parabéns àqueles que corajosamente o fizeram! Fica, portanto, nesta edição da ELO, este testemunho da nossa preocupação em valorizaros professores e educadores, enformando a sua profissionalidade com as valiosas reflexões aqui expressas, passíveis de induzir um novo alento à práxis e aportar novos referenciais deontológicos que os despertem para o estabelecimento de acordos e laços para percorrer um caminho compartilhado, procurando fórmulas comuns para a construção da sua autonomia. E, porque não há nada que substitua um bom professor, atrevemo‐nos a terminar parafraseando Michel Serres6, “renascido, ele conhece, ele tem piedade. Enfim, ele pode ensinar”.
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António Nóvoa emhttp://www.publico.pt/multimedia/video/discurso‐de‐antonio‐sampaio‐da‐novoa‐no‐congresso‐da‐fenprof‐ 201353175622 6
Em http://www.slideshare.net/BrbaraFloriano/artigo‐constituir‐se‐professor
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OS PROFESSORES COMO PROFISSIONAIS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO – CONTRIBUTOS PARA A ADMINISTRAÇÃO DE UMA ESCOLA PARA PESSOAS João Formosinho Universidade do Minho Este artigo visa abordar a profissão docente como uma profissão de desenvolvimento humano e extrair desta concetualização consequências para a administração das escolas. 1. O CONCEITO DE PROFISSIONAIS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO7 O conceito de profissionais de desenvolvimento humano abrange as profissões que trabalham com pessoas em contacto interpessoal direto, sendo essa interação o próprio processo e parte significativa do conteúdo da intervenção profissional. Estes processos de desenvolvimento humano implicam trabalhar com as pessoas, trabalhar para as pessoas e trabalhar através das pessoas, mais do que uma ação sobre pessoas. Os efeitos destes processos assumem a forma de aprendizagem e desenvolvimento, modificação de comportamento, atitudes ou hábitos, adesão a normas ou modos de vida, conforme as áreas de intervenção. Há assim na nossa sociedade um amplo conjunto de profissões que podem ser consideradas de desenvolvimento humano. O conceito abrange um conjunto de profissionais de saúde e bem‐estar (enfermeiros, terapeutas, psicólogos, nutricionistas), de trabalho social (assistentes sociais/técnicos de serviço social, educadores sociais, agentes familiares), de trabalho comunitário (animadores comunitários, técnicos comunitários, técnicos de saúde comunitária, animadores culturais), de educação (professores, educadores de infância, pedagogos, formadores, técnicos educativos). Desde as décadas de 1980 e 1990 que várias profissões que trabalham com pessoas têm vindo a integrar‐se na universidade. Anteriormente a formação destes profissionais era feita no ensino médio ou em ensino superior não universitário de curta duração.
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Seguimos nesta secção Formosinho, 2011.
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Estas profissões que trabalham com pessoas, que chamamos aqui profissões de desenvolvimento humano, não eram consideradas pela sociologia funcionalista como verdadeiras profissões, mas como semi‐profissões (Etzioni, 1969) ou pseudo profissões, por não serem vistas como necessitando de um saber especializado, de uma formação intelectual de nível superior e por permitirem um controlo hierárquico por superiores e não apenas o controlo profissional pelos pares. Estas eram as características consideradas pela sociologia clássica como definidora das profissões, no conceito anglo‐saxónico de profissão (por oposição a ocupação). A menor valorização académica e profissional (em muitos casos social) das profissões de desenvolvimento humano em relação às profissões liberais clássicas (médicos, juízes, advogados, engenheiros, economistas, etc.) tem a ver com vários fatores que iremos analisar. 2. A MENOR VALORIZAÇÃO ACADÉMICA E PROFISSIONAL DO TRABALHO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO8 a) A importância da componente de cuidados e o apelo a uma vocação social no trabalho para pessoas Esta menor valorização tem a ver, em primeiro lugar, com a componente de cuidados que a maioria destas profissões exige, pensando‐se, por isso, que a preparação para o seu desempenho seria obtida mais por recrutamento de pessoas com dedicação e senso comum do que por preparação intelectual. Essa dedicação foi conceptualizada para muitas profissões como resultando de uma vocação social. Com estas características vocacionais, estas profissões de desenvolvimento humano foram percebidas por muitos sectores sociais como profissões femininas (inerentemente feminina, nalguns casos, predominantemente femininas noutros). É assim que se fala das enfermeiras, das professoras de educação infantil, das professoras de ensino primário, das assistentes sociais, etc. Na menor valorização académica e profissional das profissões de desenvolvimento humano há uma reprodução de estereótipos de género, articulada também com os de estatuto social. b) A filiação ideológica (missionária ou militante) do trabalho para pessoas Este apelo a uma vocação social tem geralmente uma base ideológica que pode ser religiosa (missionária), política (militante) ou humanista. Isto é particularmente explícito nas áreas do trabalho social, do trabalho comunitário, da educação.
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Seguimos nesta secção Formosinho, 2011.
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No caso da educação, temos que a ação educativa substancia‐se numa praxis fundamentada em crenças, valores e em princípios éticos, morais e deontológicos (Formosinho, 2013). Portanto, a sua filiação ideológica e ética é inerente à sua natureza. c) O desempenho incerto e ambíguo do trabalho para pessoas através de pessoas Um outro fator de menor valorização académica do trabalho de desenvolvimento humano tem a ver com a ambiguidade e a incerteza inerentes ao desempenho profissional de quem trabalha com pessoas. Neste desempenho profissional quer os fins quer os meios são incertos, discutíveis e discutidos. Não há técnicas inteiramente sucedidas e, muitas vezes, não há consenso profissional em muitas áreas de ação quer em relação aos meios quer em relação aos próprios fins. Estes dissensos profissionais têm a ver com diferentes opções teóricas, naturais em qualquer área do saber, mas também, mais do que noutras áreas, com diferenças significativas de crenças, ideologias e valores. d) O desempenho holístico do trabalho para pessoas através de pessoas O desempenho profissional de desenvolvimento humano, por ser baseado na interação interpessoal, é muito mais holístico e integrado do que o desempenho de quem trabalha com papéis, com números ou com matéria‐ prima inerte. Como tal, é, numa lógica académica tradicional, mais “impuro” porque não permite separar visivelmente a componente intelectual do desempenho da componente relacional (que envolve emoção e afeto), não consegue separar nitidamente a componente técnica da componente ideológica. e) A apropriação pelo senso comum de áreas de discussão profissional no trabalho com pessoas Como a intervenção de desenvolvimento humano de quem trabalha com pessoas tem uma importante componente de participação das próprias pessoas, é natural que estas discutam no quotidiano essas questões das quais depende muito a sua vida. É também natural que frequentemente contraponham o seu conhecimento do senso comum ao conhecimento profissional que lhes é proposto – toda a gente discute a educação dos seus filhos e, logo, os professores, as escolas, os currículos e a própria educação escolar; toda a gente discute a sua saúde e, logo, o atendimento hospitalar, a saúde pública e o próprio sistema de saúde. Para a lógica académica tradicional, esta dificuldade de impor uma distância entre o saber científico e técnico e o saber do senso comum é muito perturbante, até porque a definição tradicional de conhecimento científico implica a rutura com esse senso comum. Esta mesma dificuldade embaraça quer a legitimação social do saber profissional quer um exercício semelhante ao das profissões clássicas consolidadas, de uma asserção de estatuto social superior baseada no superior estatuto epistemológico do saber científico.
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f) O carácter interativo e interpessoal do desempenho docente torna‐o dependente da reação das pessoas A menor valorização académica e profissional das profissões de desenvolvimento humano tem muito a ver com o carácter interativo e interpessoal do desempenho. Não estamos perante profissões técnicas em que o objeto a transformar – a matéria‐prima – não tem volição, emoção ou cognição. Nas profissões de desenvolvimento humano, o desempenho profissional é interativo, isto é, o trabalho com pessoas é feito através da interação com essas mesmas pessoas, sendo essa interação o meio e parte significativa do próprio conteúdo do desempenho. Assim, a vontade, o afeto e a emoção, e a inteligência destas mesmas pessoas são um fator natural do sucesso (ou insucesso) da intervenção. CONCLUSÃO ‐ a indeclinável participação das pessoas no desempenho de desenvolvimento humano Podemos mesmo considerar que no desempenho de desenvolvimento humano há uma dupla componente – a componente da intervenção da pessoa profissional de desenvolvimento humano e a componente da participação da pessoa em desenvolvimento. O sucesso depende do envolvimento de ambas as partes no processo de desenvolvimento humano e, sobretudo, da interação entre as duas. Há, assim, no desempenho profissional de quem trabalha com pessoas uma inevitável margem de imprevisibilidade9 (de sucesso ou de insucesso) correspondente à participação das pessoas em desenvolvimento. Iremos seguidamente extrair desta concetualização algumas consequências para a administração das escolas. 3. ADMINISTRAR UMA ESCOLA É UMA AÇÃO COM PESSOAS, PARA PESSOAS E ATRAVÉS DE PESSOAS10 a)Administrar uma escola é coordenar pessoas concretas e não gerir um aglomerado de pessoas categorizadas e tipificadas Administrar uma escola é uma ação de pessoas, com pessoas, para pessoas e através de pessoas, mais do que uma ação sobre pessoas. O objetivo estruturante da escola é a formação de pessoas. Administrar uma escola é essencialmente dirigir pessoas que atuam com pessoas em direção a objetivos ao mesmo tempo concretos e difusos. Torna‐se, assim, essencial nessa administração tudo aquilo que diz respeito ao clima organizacional, à motivação, à liderança dessas pessoas.
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Uma previsibilidade absoluta na ação profissional dos agentes de desenvolvimento humano teria de ser baseada em coação ou em manipulação, implicando atropelos inaceitáveis à dignidade humana. A margem inevitável de insucesso é, em grande parte, a margem da liberdade humana. 10 Seguimos nesta seção Formosinho, 2000.
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O quadro de referência dessa administração escolar é definido por pessoas e para pessoas e reporta‐se a valores, a comportamentos, a objetivos de aprendizagem. Uma escola será tanto mais autónoma quanto mais valorizar a participação das pessoas, não só porque os comportamentos organizacionais passarão a ser menos determinados por normas legais e mais por outros quadros de referência, mas porque a participação, tal como a prestação de contas, é uma das contrapartidas de uma maior autonomia. Com efeito, a autonomia envolve a participação de pessoas, mas requer que essas mesmas pessoas prestem contas do trabalho desenvolvido, dos processos desencadeados, dos produtos obtidos, do grau de consecução dos objetivos a que se comprometeram com os projetos de ação apresentados. Uma maior autonomia da escola implica alterações substanciais na gestão dos recursos humanos pelas escolas e pelo sistema educativo. A expressão gestão dos recursos humanos é ambígua, conforme se acentua o adjetivo humanos ou o substantivo recursos. Na primeira acentuação estamos a falar de pessoas que corporizam projetos e ideias e que, nessa medida, não são peões facilmente passíveis de substituição mecânica entre si. Na administração educacional acentua‐se demasiado o substantivo recursos em detrimento do adjetivo humanos. Muitas vezes, na administração do sistema ou das escolas, não se fala de pessoas nem de professores, fala‐se, sim, de lugares docentes, de vagas docentes e de horários docentes. Ora, só as pessoas têm projetos, só as pessoas têm ideias, só as pessoas têm relações. Na verdade, não há relações interpessoais entre vagas docentes, não há projetos dos horários docentes, não há iniciativas dos lugares docentes. Só as pessoas têm relações, projetos e iniciativas. Aquela expressão assume, assim, uma conotação de impessoaIização de recursos humanos, isto é, de colocação de pessoas que, através de processos vários de pré‐categorização, são impessoalizadas. Por outras palavras, de alguma forma procede‐se a tipificações abstratas, esquecendo‐se que um professor é sempre muito mais do que essa mesma tipificação e possui capacidades e competências que vão para além daquelas que a tipificação presume. No processo de recrutamento e colocação de professores, as pessoas–professores são transformadas em lugares docentes, em vagas docentes, em horários docentes. O sistema funciona como se essas vagas docentes e esses horários docentes fossem de preenchimento mecânico regido apenas num quadro de pré‐categorizações, cujas limitações, geralmente, têm a ver com o tipo de habilitação profissional. Ora, esta habilitação é apenas uma certificação que presume uma tipificação dos saberes científicos e profissionais mínimos desejáveis e não consegue abranger todas as competências e capacidades exigidas pela complexidade dos desempenhos necessários na escola atual.
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A elaboração dos horários docentes vai muito para além da questão do tempo e do espaço escolar. Nesta alocação trata‐se de pôr aquele conjunto de alunos, aquelas pessoas‐alunos com as suas relações intergrupais em interação com aqueles pessoas‐professores que têm experiências e potencialidades específicas. b) Administrar uma escola é criar espaços e tempos para as interações das pessoas As relações interpessoais necessitam de ser continuadas no tempo: temos relações personalizadas com o merceeiro e não com o pessoal dos supermercados, com o vendedor de jornais do quiosque habitual e não com o pessoal do stand de venda numa grande superfície; isto é porque estabelecemos com essas pessoas relações prolongadas no tempo. As relações interpessoais implicam também espaço de conhecimento: se eu só vejo determinada pessoa num transporte coletivo e só o cumprimento com um “Bom Dia!” ou uma “Boa Tarde!”, mas não há outro espaço de conhecimento, não se aprofundam as nossas relações interpessoais. Para o desenvolvimento das relações interpessoais são ainda importantes as situações informais, já que as relações formais não são o contexto ideal para o desenvolvimento das relações pessoais. Tudo isto tem consequências importantes para se pensar a administração das escolas. Na verdade, muitas vezes o sistema escolar não cria espaços e tempos de conhecimento, de convívio e de interação. Não dá suficiente importância às condições informais do trabalho e privilegia muitas vezes os aspetos formais, as reuniões formais, os conselhos de turma, os conselhos pedagógicos, etc., que não são propriamente o contexto onde se cultivam relações interpessoais. É, assim, essencial pensar que uma escola autónoma tem de ter espaços para as pessoas se encontrarem, espaços para trabalho e espaços para guardar os materiais, espaços de pertença. Para além dos espaços, a escola tem que ter tempos para os professores se encontrarem, reunirem, interagirem. c) Administrar uma escola é criar espaços e tempos para o trabalho em equipa Administrar uma escola é também criar espaços e tempos para o trabalho colaborativo em equipa. Se o trabalho em equipa é importante é preciso um espaço onde as pessoas se reúnam, convivam e trabalhem. Uma escola mais autónoma é uma escola com equipas docentes. Mas não é possível pensar‐se na possibilidade de concretizar um trabalho em equipa, se não houver equipas docentes estáveis. Se as relações interpessoais implicam um investimento, se elas são relações de longa duração e demoram a construir‐se, a construção de uma equipa docente também demora a fazer‐se, como demoram a construir‐se todas as relações que são mais duradouras e mais profundas. É que, nesse processo de compromisso, tem de haver ajustamentos às ideias pedagógicas do outro, aos seus conhecimentos, mas também ao seu estilo de trabalhar e até às suas limitações e constrangimentos da sua vida pessoal.
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4. CONCLUSÃO – educar é uma ação para as pessoas, com pessoas e através de pessoas Todas estas características do desempenho das profissões de desenvolvimento humano – a envolvência da componente de cuidados e o apelo à vocação social para a sua realização, a ação profissional interativa e a consequente contingência do sucesso da intervenção à reação das pessoas, a apropriação pelo senso comum de áreas de discussão profissional, um desempenho ao mesmo tempo incerto e ambíguo, a “dependência” ideológica, o caráter holístico e integrado de um desempenho cujo sucesso não depende apenas da competência profissional – tudo isto são fatores de desconforto para uma lógica de formação e de administração baseada na total previsibilidade. Mas uma escola é uma organização com pessoas concretas, com comportamentos previsíveis e comportamentos imprevisíveis; uma escola não é um aglomerado de habilitações categorizadas e tipificadas, previsíveis na sua reificação. As capacidades e competências concretas dessas pessoas são, certamente, mais (eventualmente, menos) que as presumidas pelas categorizações legais. Educar é uma ação para as pessoas, com as pessoas e através de pessoas, pois é um processo de desenvolvimento humano. Os projetos, as qualidades humanas e o grau de empenhamento dessas pessoas são determinantes para o sucesso da ação educativa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANÁRIO, R. (Org.) (1997). Formação e situações de trabalho. Porto. Porto Editora. FERREIRA, F. I. (1998). Dinâmicas locais de formação. Um estudo da actividade de um Centro de Formação de Associação de Escolas. Braga.Universidade do Minho. FORMOSINHO, J. (2000) A escola das pessoas para as pessoas: para um manifesto anti‐burocrático. FORMOSINHO, J. FERREIRA, F.I., MACHADO, J. Políticas Educativas e Autonomia das Escolas. Porto. Edições ASA. FORMOSINHO, J. (2002 b) A universidade e a formação de educadores de infância: potencialidades e dilemas. Encontros e desencontros em educação infantil. Cortês Editora. São Paulo. FORMOSINHO, J. & MACHADO, J. (2009) Equipas educativas: para uma nova organização da escola. Porto. Coleção Infância. Porto Editora. FORMOSINHO, J. (2009). (Org). Formação de professores. Aprendizagem profissional e acção docente. Porto. Porto Editora. FORMOSINHO, J., MACHADO, J. OLIVEIRA‐FORMOSINHO, J. (2010). Formação, Desempenho e Avaliação de Professores. Edições Pedago, Mangualde. 19
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LUZ E SOMBRA ‐ ALGUMAS LINHAS SOBRE A (IN)VISIBILIDADE SOCIAL DOS PROFESSORES Carlos Alberto Gomes Universidade do Minho Como grupo profissional, os professores têm, por vezes, uma grande luminosidade política, social e mediática. A visibilidade política acontece especialmente quando cada novo governo anuncia o que quer fazer na e com a educação. São as reformas educativas, as medidas de combate à “indisciplina” e à “violência” nas escolas, o sucesso escolar, os resultados escolares, os rankings, a conquista de um lugar ao sol na europa educativa, a escola a tempo inteiro, o combate ao abandono escolar, a formação cívica, etc, etc, etc, etc. É ver os discursos políticos a celebrar e a exaltar o papel estratégico dos professores alcandorados ao podium de figuras salvíficas das quais depende, em boa medida, o radioso futuro do país! Os próprios professores, mais ou menos enquadrados pelas suas organizações de classe ‐ associações, sindicatos ‐ também contribuem para a sua luminosidade social, política e consequentemente mediática ‐ quando surgem no espaço público com as suas manifestações de protesto, contestando condições de trabalho, salários, horários, dimensão das turmas, excessivos controlos burocráticos, abruptas mudanças curriculares, modelos de avaliação de desempenho, etc, etc. A visibilidade mediática surge, muitas vezes numa lógica espectacular, totalmente assumida e praticada, até à exaustão por mass‐media especializados em ‘más notícias’, no que corre mal, numa apropriação altamente redutora e desequilibrada da escola e do que no seu interior se passa. Mas, verdade se diga, há boas excepções visíveis, por exemplo, em reportagens televisas que vão mostrando que na escola portuguesa acontecem todos os dias coisas muito boas. Estas são algumas das fontes de luz, de luminosidade sobre os professores, como grupo profissional. Apesar de algumas delas ‐ a política e a mediática, sobretudo ‐ serem muito manipuladas ‐ elas são importantes, por várias razões, e mais uma: recordam à sociedade que é preciso dedicar mais atenção à escola, à educação e ao ensino! Na sombra, por razões objectivas inacessíveis ao olhar da opinião pública ficam a relação humana e pedagógica na sala de aula, as pedagogias (estratégias, métodos) usadas pelos professores, o trabalho invisível na 21
preparação de aulas e de outras actividades, as dinâmicas de ensino e educação accionadas em visitas de estudo, as aprendizagens científicas, técnicas e culturais proporcionadas pela participação em clubes de teatro, de astronomia, de música, de dança, de fotografia, de cerâmica, de culinária, por exemplo. Mas o que parece estar não já nas meras sombras, mas talvez, na mais completa escuridão, é o trabalho profundo e absolutamente fundamentalde educação humana, cívica e democrática das jovens gerações. A convivência educativa diária com jovens, rapazes e raparigas de todas as classes e grupos sociais e culturais, de muito diferentes condições sociais e familiares e pessoais, na actual sociedade multi‐cultural, multi‐étnica e multi‐racial é algo que exige muita energia, muita disponibilidade, um profundo sentido de responsabilidade e de solidariedade, muita persistência e um forte compromisso com a profissão e a educação. Não é um trabalho formal, ou enquadrável num qualquer tempo curricular, é, pelo contrário, como muitos educadores e professores sabem, um trabalho só realizável na interacção, no diálogo, na disponibilidade psicológica e afectiva para ouvir e conversar com as crianças e com os jovens, para ouvir e conversar com os seus pais, na disponibilidade para colocar os jovens no coração e de para eles realizar um trabalho para a vida. No dia em que as dimensões menos visíveis e mais profundas do trabalho dos professores forem mais conhecidas e valorizadas ‐ o que implica um esforço de visibilização das funções sociais estratégicas do ensino e da educação ‐ a sociedade tomará maior consciência da importância crucial do contributo dos professores para a construção de uma sociedade mais instruída, mais culta, mais aberta, mais cívica e mais democrática. 22
COMPETÊNCIA PROFISSIONAL: CONCEITO E ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO Álvaro Leitão CIDTFF – Universidade de Aveiro Este trabalho, que pretende refletir a construção da profissionalidade docente, está estruturado em duas secções. A primeira secção desenvolve o conceito de competência profissional à luz do paradigma da complexidade. A segunda aborda a narrativa autobiográfica enquanto estratégia de construção e desenvolvimento da competência profissional do educador/professor. 1 ‐ EM TORNO DO CONCEITO DE COMPETÊNCIA Várias são as definições e os sentidos do conceito de competência. Uma dessas definições, que implica uma rutura com a abordagem behaviorista, é veiculada pelo projeto DeSeCo (2002)11 que entende por competência a capacidade de responder às exigências individuais ou sociais, ou de efetuar uma tarefa com sucesso, comportando dimensões cognitivas e não cognitivas. Este conceito amplo de competência, ancorado numa perspetiva externa e funcional, deve ser, segundo o mesmo projeto, “complétée par une conceptualisation des compétences selon laquelle celles‐ci sont des structures mentales internes, en ce sens que ce sont des aptitudes, des capacités, ou des dispositions inhérentes à l’individu” (DeSeCo, 2002, p. 9). A aquisição e o desenvolvimento de cada uma das competências assentaria «…sur une combinaison d’aptitudes pratiques et cognitives, de connaissances (y compris de savoir tacite), de motivation, d’orientation de valeurs, d’attitudes, d’émotions et d’autres éléments sociaux et comportementaux qui, ensemble, peuvent être mobilisés pour agir de façon efficace (id., ibid.). »
Sendo uma competência definida em termos de solicitação exterior ao indivíduo (processo heterorreferencial), a sua aquisição e desenvolvimento só se concretiza na interação com processos autorreferenciais, ou seja,
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O projeto DeSeCo, que se desenvolve no quadro da OCDE, visa fornecer uma base teórica e conceptual para a definição e a seleção de competências‐chave numa perspetiva de formação permanente e para a avaliação dessas competências.
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falar de competências pressupõe ter em consideração a sua estrutura interna (conhecimentos, capacidades cognitivas, atitudes, emoções, valores e ética, motivação) e um contexto educativo material, institucional e social (formal ou informal) com o qual o sujeito interage. Infere‐se desta conceptualização holística que as competências “se manifestent (ou sont observables) dans les actions qu’une personne entreprend dans une situation ou un contexte particulier (c.‐à‐d. le milieu environnant ainsi que l’environnement socioéconomique et politique)” (DeSeCo, 2002, p. 9), e que integra, num todo coerente, “comme éléments essentiels de la performance compétente, les demandes externes, les caractéristiques individuelles (y compris l’éthique et les valeurs) et le contexte et établit des liens entre eux” (ibid.). Porque se opera através da ação e na interação com contextos educativos diversos, a aquisição e o desenvolvimento de competências não está confinada exclusivamente ao espaço escolar controlado. Outros ambientes educativos (a família, o contexto de trabalho, os média, as organizações culturais, religiosas ou outras) contribuem também ou são responsáveis pelo desenvolvimento de competências. Neste sentido, a aquisição e o desenvolvimento de competências acontece ao longo de toda a vida das pessoas e depende do seu empenho pessoal e da existência de um contexto favorável. No conjunto das competências que os indivíduos adquirem e desenvolvem ao longo das suas vidas, há umas que, em múltiplos domínios da vida, e face à visão comum do mundo que a sociedade adota, são mais importantes do que outras. São as competências‐chave12 que, ao contribuírem para o sucesso individual e coletivo, todos os cidadãos devem adquirir e desenvolver. Estas competências são, segundo o projeto DeSeCo (2002), definidas e selecionadas em função de uma visão comum do mundo que a sociedade adota em cada momento do seu evoluir, “par ce que les personnes, les groupes et les institutions faisant partie de ces sociétés considèrent comme important” (p. 10) e ainda pelos princípios fundamentais dos direitos humanos, dos valores democráticos e de objetivos associados ao desenvolvimento sustentável. E isto porque, para fazer face a um mundo caracterizado pela complexidade e pela interdependência, é fundamental que as pessoas, em qualquer domínio da vida, desenvolvam um pensamento complexo, o qual exige “le developpement d’un niveau de capacité mentale supérieur, un niveau appelé “autocréation” qui suppose une pensée critique et une approche réfléchie et holistique de la part de l’individu” (p. 11).
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O projeto DeSeCo (2002) desenvolve ainda o conceito de competência‐chave : “les compétences permettant aux individus de participer efficacement dans de multiples contextes ou domaines sociaux et qui contribuent à la réussite globale de leur vie et au bon fonctionnement de la société” (p. 10).
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Desenvolver um nível mental superior significa que as pessoas «…prennent du recul par rapport aux nombreuses attentes et exigences de leur environnement, pensent par eux‐mêmes, agissent sur la toile de fond d’un milieu complexe, interdépendant et conflictuel, prennent les commandes de ce qu’ils font en fonction de leurs propres sentiments, pensées et valeurs, agissent plutôt que de subir et sont les auteurs de leur propre vie, plutôt que des interprètes de scénarios écrits par d’autres (pp. 11‐12)…»
Segundo o projeto DeSeCo (2002), tal desenvolvimento assentaria em três categorias de competências: agir de maneira autónoma, servir‐se de ferramentas de maneira interativa e funcionar em grupos socialmente heterogéneos. 1ª categoria – Agir de maneira autónoma. Esta categoria compreende, fundamentalmente, as seguintes competências‐chave: ‐ a capacidade de defender e de afirmar os seus direitos, os seus interesses, as suas responsabilidades, os seus limites e necessidades; ‐ a capacidade de conceber e de realizar planos de vida e projetos pessoais; ‐ a capacidade de agir no conjunto da situação/contexto (p. 13). 2ª categoria – Servir‐se de ferramentas de maneira interativa. Esta categoria compreende, fundamentalmente, as seguintes competências‐chave: ‐ a capacidade de utilizar a linguagem, os símbolos e os textos de maneira interativa; ‐ a capacidade de utilizar o conhecimento e a informação de maneira interativa; ‐ a capacidade de utilizar as (novas) tecnologias de maneira interativa (p. 14). 3ª categoria – Funcionar em grupos socialmente heterogéneos. Esta categoria compreende, fundamentalmente, as seguintes competências‐chave: ‐ a capacidade de estabelecer boas relações com os outros; ‐ a capacidade de cooperar; ‐ a capacidade de gerir e de resolver conflitos (pp. 14‐15). Estas três categorias de competências‐chave dizem respeito a todos os cidadãos e a sua apropriação por todos é determinante em ordem à construção de uma sociedade mais justa e de qualidade. Mas no caso particular dos educadores/professores, para além de outras mais específicas, elas devem merecer uma atenção particular na medida em que, sendo importantes do ponto de vista do seu próprio desenvolvimento como 25
cidadãos, também são responsáveis por que estas competências, numa perspetiva de educação ao longo da vida, sejam apropriadas pelos alunos que ajudam a educar. Face ao objeto de trabalho multidimensional e multi‐intercontextual dos educadores/professores, que se opera em contextos e situações de incerteza e indefinição, e tendo como referencial teórico‐epistemológico a conceptualização atrás explicitada, é pertinente interrogarmo‐nos sobre como conceber as competências profissionais dos educadores/professores. Enquanto referencial teórico mais vasto, o conceito de competência profissional de Le Boterf (1999), uma vez mobilizado para o campo da formação de educadores/professores, ajuda‐nos a percecionar melhor a questão. Para o referido autor a competência profissional é um processo intra e interpessoal de construção que contempla a combinação pertinente de um duplo equipamento de recursos: «…l’équipement incorporé à la personne (connaissances, savoir‐faire, qualités, expériences, capacités cognitives, ressources émotionnelles…) et l’équipement de son environnement (banques de données, réseaux d’expertise, réseaux documentaires…) (pp. 11‐12)…»
Trata‐se de uma definição concordante com a apresentada no projeto DeSeCo (2002). Uma competência profissional resultaria, segundo Le Boterf (1999), da mobilização combinada de diversos recursos no contexto de uma ação realizada numa situação real de trabalho. Ressalta desta conceção, o saber‐agir com pertinência relativamente a uma situação específica, que não se reduz a um mero saber‐fazer, mas que revela a capacidade de tomar decisões (saber o que fazer) em situações complexas, imprevistas e indeterminadas. Para Le Boterf (1999), o profissional competente é aquele que, face aos imprevistos, à complexidade das situações, sabe «…prendre de initiatives et des décisions, négocier et arbitrer, faire des choix, prendre des risques, reagir à des aléas, des pannes ou de avaries, innover au quotidien et prendre des responsabilités. Le savoir agir ne consiste pas seulement à savoir traiter un incident, mais également à savoir l’anticiper (p. 44)…»
É, portanto, um processo de construção pessoal que, ao enfatizar a capacidade de saber gerir a complexidade em situações profissionais13, e escapando à visibilidade e não correspondendo a uma programação sequencial (Le Boterf, 1999; Lerbet, 1998, 2004), articula intrinsecamente competência e autonomia profissional.
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Saber gerir a complexidade significa, para além de saber agir com pertinência, “savoir mobiliser des savoirs et connaissances dans un contexte professionnel; savoir intégrer ou combiner des savoirs multiples et hétérogènes; savoir transposer; savoir apprendre et apprendre à apprendre; savoir s’engager” (Le Boterf, 1999, p. 44). É este “saber gerir a complexidade” que determina a qualidade das competências, a qual “dépendra en partie de la qualité du couplage entre les ressources incorporées mobilisées et les ressources de l’environnement utilisées” (id., ibid., p. 149).
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Esta conceção de competência profissional é de resto uma tendência que se vem acentuando em vários domínios da organização social e, neste sentido, o campo da educação também tem vindo a aproximar‐se desta tendência. É o caso do sociólogo suíço Philippe Perrenoud, um dos autores que, nas últimas décadas, mais tem refletido sobre o conceito de competência no campo da educação e que o define como “um saber em uso” (Perrenoud, 1995, 2000, 2001), ou como uma capacidade que mobiliza e utiliza saberes para “resolver problemas, construir estratégias, tomar decisões, atuar no sentido mais vasto da expressão” (id., 2001, p. 13). Esta mesma ideia perpassa alguns dos trabalhos de investigadores portugueses que sobre esta temática têm sido publicados (Alarcão, 1998; Roldão, 2003). No contexto institucional português, o conceito de competência, na aceção que temos vindo a desenvolver, também foi adotado como central na definição das políticas de formação. O Ministério da Educação português assume que o termo competência «…integra conhecimentos, capacidades e atitudes e que pode ser entendida como saber em ação ou em uso. Deste modo, não se trata de adicionar a um conjunto de conhecimentos um certo número de capacidades e atitudes, mas, sim, de promover o desenvolvimento integrado de capacidades e atitudes que viabilizam a utilização dos conhecimentos em situações diversas, mais familiares ou menos familiares ao aluno (Ministério da Educação, 2001, p. 9)…»
Nesta definição adota‐se uma noção ampla de competência e ressalta‐se a aquisição de um conjunto de conhecimentos e processos fundamentais, que não devem ser reduzidos ao “conhecimento memorizado de termos, factos e procedimentos básicos, desprovido de elementos de compreensão, interpretação e resolução de problemas” (id., ibid.). Sublinha‐se, igualmente, que a competência não está ligada ao treino para, num dado momento, produzir respostas ou executar tarefas previamente determinadas mas, ao contrário, diz respeito ao processo de ativar recursos (conhecimentos, capacidades, estratégias) em diversos tipos de situações, nomeadamente situações problemáticas. Por isso, não se pode falar de competência sem lhe associar o desenvolvimento de algum grau de autonomia em relação ao uso do saber (ibid.). A incidência desta abordagem por competências no desenvolvimento profissional de educadores/professores conduz à aceitação do professor como alguém com capacidade de gerir situações de aprendizagem complexas: o professor deve tornar‐se num profissional capaz de refletir e de resolver problemas emergentes nas suas práticas, de mobilizar e de conceber estratégias pedagógicas adequadas aos contextos em que trabalha (Paquay et al., 1998). A formação profissional de professores centrada nas competências seria também uma forma dos sistemas de formação darem resposta às exigências da economia do saber e aos grandes desafios do século XXI que é fazer do sucesso escolar para todos, uma realidade (Barber, 2001). 27
2 ‐ A ESCRITA DE NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS DE PRÁTICA COMO ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS PROFISSIONAIS Vimos na secção anterior que a construção do saber e da competência profissional docente pode ser perspetivada como um processo não linear de crescimento que se manifesta em diferentes graus de independência e de controlo sobre o próprio processo de aprendizagem profissional a partir de experiências anteriores, percursos formativos e (inter)ações diversificadas. Neste processo de desenvolvimento autonomizante, a passagem a escrito das ações desenvolvidas em contextos reais de prática (o que fez, como e as razões pelas quais as fez e as suas consequências), coloca o professor diante de si mesmo, isto é, o ato mesmo de escrever sobre a prática estimula os professores a pensarem‐se, a questionarem‐se, a reformularem‐se… induzindo, por via deste trabalho reflexivo interior, uma tomada de consciência, fonte de progresso no seu conhecimento e desempenho profissional. Concebida como projeto de autoconhecimento, a escrita narrativa autobiográfica permite ao professor compreender sob diferentes formas o seu próprio processo de construção de saberes e de competências profissionais que estão implicados nas suas experiências, porque, como nos explica Josso (2002), é a partir da interrogação do saber‐fazer e dos referenciais que o sustentam, que os sujeitos, aprendendo consigo próprios a aprender, identificam as suas competências e os pressupostos em que assentam. É neste sentido que a escrita de narrativas autobiográficas enquanto meio de análise e reflexão sobre a prática, de autoconhecimento e de autorreflexão tem vindo a obter o reconhecimento quer enquanto estratégia e contexto de desenvolvimento pessoal e profissional, quer como método de investigação em educação (Ferrarotti, 1988; Nóvoa e Finger, 1988; Denzin, 1989; Oliveira, 1994; Sá‐Chaves, 2000, 2005; Leitão, 2009; Leitão e Alarcão, 2007). Como processo de reflexão pedagógica de formação e de desenvolvimento, a escrita de narrativas autobiográficas permite ao professor, à medida que narra determinada situação de ensino‐aprendizagem por si experienciada, compreender múltiplas relações, problematizar/interrogar a própria prática e os seus sistemas interpretativos, criar novas estratégias…, isto é, ao recriá‐la através da escrita, construir novos sentidos e perspetivas que aprofunda, esclarece e reorienta a própria experiência. Assim conceptualizada, a escrita de narrativas autobiográficas não é uma simples descrição da ação, mas um trabalho pessoal de análise e reflexão crítica da experiência profissional vivida onde o professor desenvolve a capacidade de identificar problemas, de os enquadrar num determinado quadro teórico‐epistemológico e, numa perspetiva praxiológica, de propor pistas de reflexão e ação renovadas.
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Esta estratégia reflexiva, cuja finalidade última é a reconstrução e desenvolvimento de novos saberes, pode ser operacionalizada adotando as quatro fases da prática reflexiva proposta por Smyth (1989): descrição, informação, confrontação e reconstrução. Embora estas quatro fases de reflexão se alimentem mutuamente em torno da experiência pessoal vivida, é a última fase (reflexão crítica e emancipatória) que permite ao professor aceder a patamares crescentes de controlo sobre si mesmo de modo a que se sinta e torne capaz de decidir o que é melhor para a sua prática (teorização), convertendo‐se ele próprio em autor de teorias (privadas) que gradualmente se vão aproximando das teorias públicas/científicas (Griffiths e Tann, 1992). A escrita narrativa vai, assim, ajudar o professor a melhor “clarificar os pressupostos em que assenta a sua ação, a compreender os seus comportamentos e a promover a articulação entre as suas teorias (explícitas e implícitas) e a sua ação” (Holly, 1991, referido em Oliveira, 1994, p. 319). Parece‐nos assim poder concluir que a escrita de narrativas autobiográficas pode constituir um instrumento especialmente adequado ao reconhecimento e à consciencialização desses processos de construção de significados e de sentidos e, simultaneamente, um contexto onde os professores aprendem ativamente a melhor refletir para avaliar e decidir de forma mais competente escolhas profissionais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALARCÃO, I. (1998). Revisitando a competência dos professores na sociedade de hoje. Aprender. Revista da ESE de Portalegre, 21, pp. 46‐50. BARBER, M. (2001). L’enseignement pour demain. Observateur OCDE. Março. DENZIN, N. (1989). Interpretive Biography. Newbury Park: Sage. FERRAROTTI, F. (1988). Sobre a autonomia do método biográfico. In Nóvoa, A.; Finger, M. O Método (Auto)Biográfico e a Formação (pp. 17‐34). Lisboa: MS/DRHS/CFAP. GRIFFITHS, M.; TANN, S. (1992). Using reflective practice to link personal and public theories. Journal of Education for Teaching, vol. 18, pp. 69‐84. JOSSO, M.‐ Ch. (2002). Experiências de Vida e Formação. Lisboa: Educa‐Formação. LE BOTERF, G. (1999). Compétence et Navigation Professionnelle. Paris: Editions d’Organisation (2e édition). LEITÃO, A. (2009). Construção da Profissionalidade na Formação Inicial de Professores do 1.º CEB. O caso de um grupo de professores estagiários da ESEC. Dissertação de Doutoramento apresentada à Universidade de Aveiro. LEITÃO, A.; ALARCÃO, I. (2007). A narrativa autobiográfica: uma abordagem metodológica da complexidade na formação inicial de professores do 1.º CEB. In Estrela, A.; Ferreira, J. (Orgs.), Atas do XV Colóquio
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DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL NO SÉC. XXI ‐ O PODER DA LIDERANÇA CRIATIVA Isabel Carvalho Viana Universidade do Minho, Portugal 14
NOTA INTRODUTÓRIA Hoje, as dinâmicas políticas, económicas, sociais e culturais reclamam o apoio integrado do desenvolvimento profissional, dos espaços de vida, enquanto espaços formativos, exibem‐no como uma prioridade que se impõe exigente e célere aos países, decisores políticos, empresários, investigadores, a todos os cidadãos, coresponsabilizando‐os. Por isso, apoiar de forma integrada o desenvolvimento profissional é apoiar sustentadamente a educação e a evolução das sociedades, de cada cidadão, é apoiar a configuração de novos estilos de vida, com vista a atribuir‐lhes qualidade, pelo potencial de emancipação reflexivo‐comunicacional que é capaz de lhes agregar. Ao longo do tempo confrontamo‐nos com o surgimento de novas desigualdades que advêm dos desafios da contemporaneidade. Trata‐se de desafios essenciais colocados pelo dito séc. XXI. Perrenoud (2002: 86) há mais de uma década que o adverte, quando refere: “A Internet e outras tecnologias só confirmam que a desigualdade na escola continuará a ser um problema de primeira grandeza no século XXI. A modernidade agrava os desafios, a menos que nos resignemos a ter uma sociedade dual, não apenas no campo do emprego e dos rendimentos, mas também no da cultura e do poder.”
Neste contexto, pensamos importante que as estruturas responsáveis pela formação não se demitam do seu papel, isto é, de dar visibilidade e fornecer os processos e as ferramentas necessárias à sua compreensão e uso.
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Parte do texto apresentado neste tópico faz parte de Viana, I. C. (2009). Avaliação da, na e pela formação – interfaces entre o local e o global na educação de adultos. In atas do X Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação. Bragança, ESE, 30 de Abril e 1‐2 de Maio.
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No entanto, tal como refere o autor, é uma dimensão que remete para pensarmos em novos tipos de (des) igualdades culturais. Surgem novas linguagens que quando traduzidas em linguagem‐máquina, como referem Magalhães e Stoer (2005:12), sugerem articulações com outros sistemas, nomeadamente o de produção, levando a que os indivíduos sejam, cada vez mais, definidos pelos conhecimentos e pelas competências que conseguem adquirir e gerir. Dizem‐nos: “Se nas sociedades capitalistas ocidentais o lugar que se ocupava no mercado de trabalho, assim como o processo de formação que proporcionava aos indivíduos o acesso a dada ocupação, era crucial na sua definição identitária e na das políticas sociais em geral e das educativas em particular, com o advento da sociedade do conhecimento, e o correspondente movimento do conhecimento do estado‐nação para o global/local, os indivíduos são cada vez mais definidos não pelos empregos que têm mas pelos conhecimentos/competências que conseguem acumular e eventualmente gerir. Quer dizer, a produção e divulgação do conhecimento, que até aos anos 1970 estavam centradas e sediadas nas universidades e nas instituições educativas nacionais, deixaram de assumir a cultura nacional como o seu âmbito e objectivo de desenvolvimento. O conhecimento, sobretudo quando traduzido em linguagem‐máquina, articulou‐se de uma forma sem precedentes com o sistema de produção, distribuição e consumo do capitalismo e globalizou‐se.”
Os autores referem ser neste cenário que se entende e enquadra a pressão sobre os conhecimentos (os processos de produção que estruturam o capitalismo transnacional são conhecimento‐intensivos e não trabalho‐intensivos), sobretudo escolares, para que estes se construam sob a forma de competências. Para Perrenoud (2002), desenvolver competências implica criar “espaços‐tempo de formação”, onde o desafio se situa em aprender a servir‐se dos saberes adquiridos para enfrentar situações várias, singulares, o que as situa muito além dos tradicionais exercícios escolares, atribuindo um papel nuclear à avaliação, isto é, um papel emancipador, capaz de capacitar para um desenvolvimento sustentável dos grupos que serve. Há algum tempo que discutimos o papel que a educação, a formação e a avaliação desempenham na dinâmica de desenvolvimento das sociedades contemporâneas. Pois, tal como referiram autores vários, de entre os quais, UNESCO (1996); Correia & Caramelo (2003); Alonso (2005), esta manifestação advém de várias causas relacionadas com o tempo e os espaços de vida, isto é, o tempo juvenil dedicado à formação escolar, o tempo adulto enquadrado na atividade profissional e o tempo da reforma, não correspondem de forma linear. Os sistemas tecnológicos imprimiram grande velocidade ao processamento da informação e à gestão do conhecimento, a evolução do mundo, exige uma continuada atualização dos saberes, como o referiu a UNESCO (1996: 89):
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“Doravante, temos de aprender ao longo de toda a vida e uns saberes penetram e enriquecem os outros. (…), as missões que cabem à educação e as múltiplas formas que pode revestir fazem com que englobe todos os processos que levem as pessoas, desde a infância até ao fim da vida a um conhecimento dinâmico do mundo, dos outros e de si mesmas, combinando de maneira flexível as quatro aprendizagens fundamentais [aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos; aprender a ser]. É este continuum educativo, coextensivo à vida e alargado às dimensões da sociedade, que a Comissão entendeu designar, (…), pela expressão ‘educação ao longo de toda a vida’. Em seu entender, é a chave que abre as portas do século XXI e, para além duma adaptação necessária às exigências do mundo do trabalho, é condição para um domínio mais perfeito dos ritmos e dos tempos da pessoa humana.”
Aprender ao longo da vida é uma realidade que se inscreve numa paisagem de educação holística e, enquanto tal, muito complexa, situada num registo de alterações cada vez mais sentidas como necessárias, que requerem que se valorize a complementaridade dos tempos e espaços da educação/formação contemporânea. Alonso (2005:16‐17), tendo como referência o paradigma de aprendizagem ao longo da vida, sublinha a importância de que se reveste a identificação de competências que são essenciais ou nucleares, situadas como processos cognitivos e sociais facilitadores do aprender a aprender, propícios à construção da autonomia necessária ao acesso do conhecimento, possibilitando a participação das gentes, de forma mais esclarecida, na dinâmica social. A autora sublinha a necessidade de se considerar os saberes básicos: “ (…) com base numa análise de experiências de inovação curricular provenientes de diferentes países, se consideraram os seguintes saberes básicos: aprender a aprender, comunicar adequadamente, cidadania activa, espírito crítico, resolver situações problemáticas e conflitos. Num outro estudo da OCDE identificam‐ ‐se quatro domínios de competência que se requerem desenvolvidos em todos os jovens: resolução de problemas; capacidades de comunicação; conhecimento e compreensão dos mecanismos sociais, de noções de cidadania e de economia; capacidade de autoavaliação e autoresponsabilização pelo próprio desenvolvimento. Por sua vez, Perrenoud (2001) ao reflectir sobre os saberes transversais a todos os campos sociais, enuncia as seguintes competências para a autonomia e a prática reflexiva: (1) saber identificar, avaliar e fazer valer os seus recursos, direitos, limites e necessidades; (2) elaborar e conduzir projectos, individualmente ou em grupo; (3) analisar situações, relações, campos de força; (4) cooperar, agir em sinergia, participar num colectivo, partilhar uma liderança; (5) construir e animar organizações e sistemas de acção colectiva de tipo democrático; (6) gerir e ultrapassar conflitos; (7) conviver com regras, servir‐se delas, elaborá‐las; (8) construir normas negociadas que ultrapassem as diferenças culturais.”
Este contexto configura um desafio complexo aos percursos formativos que, como é do nosso conhecimento, se encontram, ainda, muito enformados por atavismos que valorizam os processos lineares técnico‐ instrumentais na relação com o saber, com o mundo, onde não há espaço para uma educação pluridimensional, trabalhada ao longo de toda a vida, tão necessária a uma formação que se pretende, 33
simultaneamente, universal, plural e singular. Temos vindo a percepcionar perda de encanto da escola, há já mais de uma década, Correia & Caramelo (2003:170‐171), referiam que se perdeu o encanto da procura de uma escolarização que se afirmava como o mecanismo central de uma mobilidade social ascendente, esta foi, evolutivamente, dando lugar a uma procura desencantada, concorrendo para que o trabalho escolar já não encontre o seu sentido nas vantagens sociais que ele promete, mas reclame um trabalho contínuo de construção de sentido: “Habituada a conceber‐se como um mundo regido por regras próprias cuja inteligibilidade depende da pertença a este mundo, não carecendo, por isso, de justificação, a escola vive hoje num contexto onde este trabalho de justificação se tornou imprescindível precisamente quando se fragilizou a distinção das fronteiras entre o ‘interior’ e o ‘exterior’, ou seja, num contexto onde ela foi invadida por uma diversidade de ‘mundos da vida’ pouco propensos a ‘naturalizarem’ a arbitrariedade das regras e das relações instituídas no mundo escolar. Mas, ao mesmo tempo, que se ‘desnaturalizou’ e se tornou opaca relativamente a estes ‘mundos da vida’ e, por isso, periferializou‐se relativamente a eles, a escola, parece, paradoxalmente, ter‐se tornado numa instituição fortemente central. Por um lado, ela ocupa um tempo cada vez mais importante de um número cada vez mais significativo de jovens que são submetidos a um processo de escolarização cada vez mais intensivo e extensivo. Por outro lado, ela é objecto de um conjunto vasto e heterogéneo de solicitações sociais a que não pode dar resposta, já que se assiste a uma multiplicação dos problemas sociais que ela é suposta resolver, sem que estes problemas se tivessem transformado em problemas escolares.”
Vive‐se num contexto sintomático de crise configurada por uma cultura do espectáculo, revitalizadora do Parecer em detrimento do Ser, onde a performance comunicativa, sedutora, inibe a deliberação sustentada num debate problematizador, estreitando a possibilidade de se saber, de acordo com Parekh (2005), como criar um sentimento de pertença coletiva numa sociedade multicultural. É um sentimento necessário à interação do singular com o global. A globalização, como sugere Jessop (2005:10‐11), é um processo com múltiplos momentos estruturais e estratégicos: “Estruturalmente, envolve processos através dos quais é criada uma crescente interdependência global entre acções, organizações e instituições no interior de (mas não necessariamente através de) diferentes sistemas funcionais (economia, legislação, política, educação, ciência, desporto, etc.) e a lifeWorld. Estes processos ocorrem em várias escalas espaciais, operam de forma diferente em cada subsistema funcional, envolvem hierarquias causais complexas e entrelaçadas, não traduzindo um movimento simples, unilinear, directo e frequentemente exibem um excêntrico ‘agregar’ das diferentes escalas da organização social. (…). Apesar de tudo, podemos afirmar que a globalização cresce à medida que a co‐variação de acções, eventos e ordens institucionais vai abarcando mais actividades relevantes e à medida que se revela mais abrangente e ocorre mais rapidamente – em termos de espaço. 34
Estrategicamente, a globalização refere‐se a coisas, a tentativas de promoção da coordenação global de actividades em (e não necessariamente através de) diferentes subsistemas funcionais e/ou na lifeworld.”
Configura um espaço‐vida‐tempo múltiplos e descontínuos, não envolve que os atores implicados estejam fisicamente presentes em todos os pontos do planeta, mas exige a monitorização das atividades relevantes, a comunicação entre si e o ensaio de coordenação das suas atividades com outros, com vista à produção de efeitos globais. A globalização coloca desafios reais à Escola, aos Espaços de Formação, aos quais não pode permanecer indiferente. É importante avançar para a construção de uma Escola à escala global, isto é, para a criação de meios, estruturas e instrumentos capazes de situar os países e os sujeitos nos desafios contemporâneos envoltos no saber, no conhecimento e na informação/comunicação. Parece‐nos imperiosa a criação de um espaço de aprendizagem orientado para colaborar adequadamente com grupos vários, nomeadamente professores, escolas e espaços para que a comunidade possa aceder como oportunidade de aprendizagem ao longo da vida. Um espaço que configure estudos na oferta global de formação inicial e continuada de profissionais diversos, onde o apoio e interação com aqueles profissionais provoque partilha de experiências e o desenvolvimento do trabalho em equipa, do trabalho colaborativo, participado, enquanto condição essencial à inovação educativa, à modernização e à profissionalização e à gestão e desenvolvimento da formação liderada por processos criativos emancipatórios. Hargreaves e Fink, numa publicação de 2007: 201‐202, pela Porto Editora, intitulada Liderança Sustentável (Hargreaves, em 2003, a sua publicação O Ensino na Sociedade do Conhecimento, pela Porto Editora, em Portugal, foi premiado pela American Education Research Association e pela Library Association), partindo do entendimento de que os princípios da diversidade que funcionam no mundo natural também se aplicam às organizações e às sociedades humanas, referem que uma característica‐chave dos sistemas vivos é a propriedade de emergência, que é, simultaneamente, um processo. Exprimem a ideia da emergência com base em Capra, que a refere como "criação de novidade". Dizem que o autor ilustra o seu argumento descrevendo as estruturas e as propriedades do açúcar: "Quando os átomos de carbono, de oxigénio e de hidrogénio se unem de determinada forma para formar o açúcar", nota ele, "o composto daí resultante tem um sabor doce que não existe em nenhum dos átomos, separadamente". Isto para dizer, como os autores também referem, no contexto social, a invenção e a criatividade também podem acontecer assim, através de processos emergentes. Emerge em climas de confrontação de ideias díspares ou da conexão de mentes diferentes e diversas ou através de ambos, encontrando um interesse comum (por exemplo, as Tecnologias de Informação a emanciparem/qualificarem a atividade humana e a desenvolverem o pensamento holístico). 35
A liderança criativa desenvolve e faz manutenção da diversidade, desenvolve a resiliência e as capacidades humanas dentro da organização em que nos inserimos, permitindo que exploremos emoções, nos adaptemos à complexidade aberta e evolutiva do ambiente que representam e que possamos prosperar nele. É certo que a diversidade também se reveste de muitas incertezas, o que evidencia pertinente uma liderança que saiba reconhecer potencialidades e constrangimentos, enquanto organização viva e dinâmica. Contudo, não a podemos gerir como se fosse uma máquina, não podemos demolir a diversidade, reduzir tudo a medida standard. DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PERSPETIVADO PELA LIDERANÇA CRIATIVA Nos últimos tempos são muitas as mudanças propostas às escolas. Iniciam nas políticas educativas, visíveis na letra da Lei e no discurso político, que, de forma mais ou menos explicita, vão alterando a organização escolar das escolas, desencadeando muitas perspetivas sobre a profissão professor. Cada vez é mais difícil conseguir a estabilidade nos contextos escolares. Há, contrariamente àquilo que nos habituamos a ouvir, menos espaço, menos tempo para inovar, para a cumplicidade e uma maior pressão para agir, cumprir de acordo com as diretivas vindas de cima, de quem se entende com poder para, imperativa e continuadamente, dizer “cumpra‐ se”. Não podemos ficar indiferentes ao facto de professores, que têm um percurso considerável no ensino, onde foram construindo uma confiança no trabalho desenvolvido, sejam tão arbitrariamente desconsiderados, sobretudo se conscientes estamos do papel essencial que assumem na sociedade, como refere Woods (1999:121), “(…) e podem contribuir para o bem‐estar da sociedade – se sentem na situação de meras unidades ao serem examinados e observados, escrutinados e avaliados”. Aquilo que mais parece evidenciar‐se é a solicitação de um professor técnico, contrariamente ao discurso de um professor chamado a ser crítico, reflexivo, construtor de currículo. Parece haver um decréscimo no respeito pelo professor enquanto Pessoa e enquanto Profissional Qualificado, onde acresce o controlo sobre o seu papel, através de uma dinâmica evolutiva da burocracia, não dando possibilidade para os professores pensarem, refletida e criticamente, a ação desenvolvida e a desenvolver. Observa‐se uma ação tática que os transforma em instrumentos de execução prática de intenções políticas que anseiam por resultados reveladores de uma produtividade eficaz que empurre para uma posição cómoda nos rankings internacionais e nos orçamentos do governo. Hoje, como evidência do conforto orçamental, circula informação polémica em torno do concurso nacional dos professores. Santana Castilho (2013, http://santanacastilho.blogspot.pt/, acedido 03/04) afirma que não se trata de concurso nacional de professores e sim de uma coreografia sinistra: 36
“Correm rios de tinta sobre o concurso de professores. Não repetirei o que é público, o que os directores mais corajosos já denunciaram e o que os mais informados já escreveram. Não há concurso nacional de professores. Há uma coreografia sinistra, uma espécie de dança macabra de lugares, para preparar um despedimento de mais 12000 docentes.”
Este cenário caótico reclama ser reconfigurado como espaço multidisciplinar, capaz de gerar movimentos que interagem com o pensamento e o sentimento dos professores. Pensamos importante ser revertido em dispositivos capazes de possibilitar reinventar/re‐imaginar dinâmicas que respondam às necessidades, às curiosidades dos professores, aos seus múltiplos interesses, favoráveis às experiências profissionais. Reclama, ainda, gerar um diferencial importante, através de uma intervenção, de organizações de professores e de sindicatos, para explorar a rede ciência, tecnologia e sociedade, de forma interativa e colaborativa, no acesso criativo ao conhecimento profissional. Integrado num conceito de séc. XXI, altamente dinâmico e tecnologizado – o papel importante que assume a computação ubíqua, porque capaz de acompanhar a mobilidade do cidadão, através de processos de localização e com configuração para a perceção/consciência do contexto. Desta forma, propomos compreender as dinâmicas do conhecimento/desenvolvimento profissional na comunidade profissional, as dinâmicas da sua mobilidade/acessibilidade ao ambiente digital, possibilidades de comunicação, de gestão e de participação na profissão através da liderança criativa. O séc. XXI alicerçar‐se‐á no cruzamento de saberes. Neste plano, seria benéfico ao desenvolvimento profissional, se este se estruturasse em 3 eixos essenciais, são eles: 1) qualidade (a valorização dos recursos humanos), 2) inovação, 3) internacionalização. Tudo isto está agregado numa ideia de harmonização, onde se trabalha com emoção, há valorização e respeito de todos, gerando espaço para envolver e motivar para participar com responsabilidade, com compromisso, o que, por sua vez, é gerador de qualidade. São eixos que se apresentam em continuada transição, fazendo constituir a mudança um desafio significativo para os professores. Sachs (2009: 100) refere‐o desafio significativo para os professores pela flexibilidade e aprendizagem continuada que requer: “A mudança constitui um aspeto central e responder a essa mudança representa um desafio significativo para os professores, na medida em que requer flexibilidade da sua parte. Para estes professores, o desenvolvimento profissional contínuo na sua própria aprendizagem, sendo transformador no seu propósito e nos seus resultados. Isto remete não apenas para o contexto da sala de aula mas também para a mudança social, em que a educação constitui uma força motora.”
No seguimento da interpretação da autora, as pressões atuais e a castração da vontade dos professores e do seu potencial para aprender ao longo da vida, com intuito de melhorar, inibem a apropriação de saberes de interesse mais individual e idiossincrático e impõem rotinas prescritivas. Este contexto descarateriza o agir do professor e torna insegura a autorregulação da sua aprendizagem e do seu agir profissional. Neste cenário, 37
onde as políticas de formação enquadradas pela estratégia de Lisboa foram reconfiguradas em politiquês, o desenvolvimento profissional tem dificuldade em se apresentar como prioritário, comprometendo a emancipação profissional. Contudo, é incontornável o quanto essencial a Educação/Formação, a Cultura/Conhecimento, a Diferença e a Qualidade de Vida surgem como relação favorável à Sustentabilidade Inteligente da Aprendizagem Criativa, o quanto podem influenciar a configuração da aprendizagem e a forma de a explorar/desenvolver, capaz de enriquecer o desenvolvimento humano e favorecer a inclusão social e económica. Configuram constructos entendidos como espaço crítico e criativo na construção de saberes com sentido e responsabilidade. Assumidos como forma de distribuir e partilhar inteligência e capaz de aumentar os níveis de bem‐estar dos intervenientes, potenciando o trabalho em equipa, a interação entre pares, o aprender a viver em conjunto e o aprender a regular os processos de aprendizagem/ensino e de construção de saberes com sentido (Stake, 2007). O desenvolvimento profissional revela‐se um processo pedagógico‐criativo aberto e plural porque entendido como capaz de favorecer, em qualidade e diversidade de oportunidades significativas de prática profissional que permitam aprender com alegria, confiança, enquanto eixos estruturantes do desenvolvimento de uma aprendizagem plural e integrada de todos os professores. É um valor que se atinge na interação com o outro e com os ambientes em que participam, onde os professores se assumem e interpretam como sujeitos ativos e líderes da sua própria aprendizagem e desenvolvimento profissional. Esta focagem na própria aprendizagem e desenvolvimento profissional potencia o desenvolvimento da competência global. Entendida como a capacidade e disposição para compreender e agir sobre questões de importância global. Com intenção de permitir, corresponsabilizadamente, desenvolver o conhecimento e a curiosidade para aprender, numa perspetiva de suporte/apoio para investigar o mundo, reorganizar perspetivas, comunicar ideias e ter atitude/tomar decisão, geradas através de dinâmicas de aprendizagem colaborativa perspetivadas pelo conceito de liderança criativa. A liderança criativa assume‐se como ação e não posição autoritária, comummente, orientada para gerenciar pessoas. A liderança criativa desenvolve‐se na capacidade de cada um para se relacionar com o outro, para trabalhar em conjunto. Constitui‐se na construção de uma visão de futuro e na capacidade para inventar formas de fazer as coisas, corresponsabilizadamente, contrariando, desta forma, regimes asfixiantes que impõem a uniformidade, a medida standard, que só consegue fragilizar a finalidade dum desenvolvimento profissional com atualidade pedagógica e científica, isto é, pautado pela qualidade. No entanto, sabemos que o desafio está em potenciar e tornar sustentável esta liderança e em descobrir qual a estratégia que melhor a concretiza. 38
O poder da liderança criativa, enquanto atividade construtiva, perspetiva‐se capaz de impulsionar os princípios consignados quer na Declaração do Milénio das Nações Unidas, quer no Quadro Estratégico para a Cooperação Europeia da Educação e da Formação e quer, ainda, nos Diplomas Legais que regulam a educação/formação formal/não‐formal/informal do país/europa, enquanto valioso instrumento/processo para o seu desenvolvimento cultural, social e económico, como espaço de aproximação aos cidadãos. Este contexto possibilita que o desenvolvimento profissional assuma a cultura, a educação e formação como estratégia imprescindível para o seu equilíbrio consonante e democrático, em relação com a educação e a sociedade da informação/conhecimento. Trata‐se de uma ideia/imagem que traz outras perspetivas para a ação dos professores. Ganha forma e valor no desenvolvimento integrado e relacional da profissão, enquanto território cultural, plural e criativo, movido por profissionais críticos, criativos e empreendedores. REFLEXÃO FINAL Hoje, em qualquer contexto, somos chamados a desenvolver competências no plano da criatividade, inovação, liderança e empreendedorismo, de forma a gerar competitividade ao responder aos desafios atuais produzidos pelas transformações demográficas, sociais, tecnológicas, educativas, culturais e económicas. A liderança criativa explora conhecimentos e experiências adquiridas pelos profissionais e, de forma particular, a capacidade de os aplicar a novas situações, em contextos reais de realização, experimentação e desenvolvimento, como o são o contexto das práticas educativas, enquanto espaços significativos de quotidiano profissional. Assim, numa lógica integradora, do conhecimento e do tecnológico, entende‐se o desenvolvimento profissional como um espaço de conhecimento envolvido na inovação tecnológica e na criatividade daqueles que o realizam, com uma forte evidência na liderança da autorregulação institucional, da aprendizagem e da capacidade organizacional para descobrir formas capazes de responder, sustentável e competitivamente, aos desafios do séc. XXI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO, L. (2005). Reorganização curricular do ensino básico: potencialidades e implicações de uma abordagem por competências. In Actas do 1º Encontro de Educadores de Infância e Professores do 1º Ciclo do Ensino Básico. Porto: Areal Editores, pp.15‐29. BARBIER, J.‐M. (1990). A Avaliação em Formação. Porto: Edições Afrontamento. CANÁRIO, R. (2006). Formação e Adquiridos Experienciais: entre a Pessoa e o Indivíduo. In G. Figari et al. (eds./orgs.). Avaliação de competências e aprendizagens experienciais. Saberes, modelos e métodos (35‐46). Lisboa: EDUCA.
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IDENTIDADE E CRISE NA PROFISSÃO DOCENTE Cilene Ribeiro de Sá Leite Chakur Fac. Ciências e Letras da Univ. Estadual Paulista de Araraquara “PESQUISADOR AFIRMA QUE ESTRUTURA DAS ESCOLAS ADOECE PROFESSORES” Esta foi a manchete de primeira página que li, quando acessei um site de provedor de internet bastante conhecido no Brasil (Portal Ig), neste início de 2013. A reportagem de Borges (2013), referente a essa manchete, resumia alguns poucos dados da Dissertação de Mestrado intitulada “O abolicionismo escolar: reflexões a partir do adoecimento e da deserção dos professores”, desenvolvida por Camargo (2012) na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. À parte a volta da tese da desescolarização trazida pelo autor da Dissertação, afirmações coerentes com manchetes ou títulos dessa natureza não são raras entre professores e outras pesquisas já mostraram sua veracidade (CARLOTTO, 2002; ESTEVE, 1995 e 1999; LOURENCETTI, 2008). Mas as reflexões que se seguem certamente não têm o propósito de alertar professores inocentes acerca dos males causados pelo espaço escolar, nem de acusar a escola pelos malefícios do ensino e de seus agentes. Apenas pretendem valorizar uma ocupação que transcende tempos e espaços, na consecução de um bem comum: formar o “ser educado”. Uma pergunta, porém, se faz necessária: o fato de professores adoecerem simplesmente por trabalharem no espaço escolar já não configura a existência de uma crise na profissão docente? E que profissional é este que se “deixa adoecer” ou prefere desertar a continuar trabalhando no setor educacional? O presente texto reflete, pois, minha preocupação atual com o tratamento que tem sido dado aos professores e à profissão docente. É meu propósito encaminhar questões ainda não totalmente resolvidas, favorecendo o debate sobre a identidade profissional docente e a crise que se abate sobre esta profissão. IMAGENS DE PROFESSOR: PROFESSOR É “SÓ” UM PROFISSIONAL? Quando se pensa na função própria do professor, as definições ou descrições geralmente incluem termos tais como ensinar, educar, transmitir, orientar, facilitar... Não é raro escutarmos de professores afirmações que 41
quase negam ou confundem sua própria identidade profissional. Paganini‐da‐Silva (2006), por exemplo, que estudou a identidade profissional do professor, ao perguntar “O que é ser professor?” a professores do Ensino Fundamental de 5ª a 8ª séries de uma cidade do interior de São Paulo, obteve depoimentos dos tipos seguintes: [...] Eu acho que ser professor hoje em dia é conseguir passar o conteúdo, alguns valores, mas o sistema torna a gente um simples transmissor de conhecimento... Não tá dando para ser professor... (Professor de Geografia) (p. 119) Eu acho que ser professor é ser muitas coisas, é ser um profissional, é ser um parente, é ser um amigo, porque acaba ficando muito tempo com a criança [...] você não é só um profissional, você acaba sendo uma parte do, da... continuação da família da criança. Acho que ser professor é muito mais que ser só um profissional, cumprir uma tarefa. (Professor de Ciências) (p. 120, grifos meus)
Já se pode entrever que se trata da identidade profissional do professor, de sua profissionalidade, tema recorrente nas pesquisas atuais. Segundo Paganini‐da‐Silva (2009, p. 51), a identidade “é produzida por muitos indivíduos que interagem, constroem e negoceiam repetidamente as relações que ligam uns aos outros [...]. É necessário que membros de um grupo reconheçam o que os agrupa e os faz agir em conjunto”. Baseando‐se em estudos sociológicos e psicológicos, esta autora assim define a identidade profissional docente: é um processo contínuo, subjetivo, que obedece às trajetórias individuais e sociais, que tem como possibilidade a construção/desconstrução/ reconstrução, atribuindo sentido ao trabalho e centrado na imagem e autoimagem social que se tem da profissão e também legitimado a partir da relação de pertencimento a uma determinada profissão, no caso, o magistério (PAGANINI‐DA‐SILVA, 2009, p. 53).
Ao discorrer sobre profissionalidade e profissionalização do professor, Nóvoa (1991, p. 116) comenta que, no final do século XVIII, quando o Estado tomou o lugar da Igreja no processo de institucionalização dos sistemas escolares, tratava‐se “muito mais de um deslocamento da autoridade de tutela que de uma verdadeira ruptura”, mas com repercussões significativas entre os que se propunham o ofício de ensinar. A funcionarização advinda com a estatização servirá ao projeto de controle dos docentes, mas revela‐se como um projeto sustentado também pelos professores, em seu propósito de constituir um corpo administrativo autônomo. Posteriormente, o Estado criou um exame ou concurso para obtenção de uma licença para ensinar, constituindo‐se esta em um suporte legal para o exercício da atividade docente. Ao lado disso e do reconhecimento social do ofício de professor, são criadas as escolas normais que, no século XIX, “constituem o lugar central de produção e reprodução do corpo de saberes e do sistema de normas próprios à profissão docente” (NÓVOA, 1991, p. 125). Como última etapa do processo de profissionalização docente, são criadas 42
associações profissionais para defender os interesses dos professores enquanto grupo profissional (NÓVOA, 1991, p. 127). A profissionalidade docente, ou seja, a identidade do professor como um profissional é, portanto, uma construção relativamente recente, pois o ensino era visto como uma vocação e o professor tinha sua imagem ligada a traços de sacerdócio leigo, apostolado, alguém que devia possuir certas qualidades morais para lidar com os jovens (LESSARD e TARDIF, 2008; NÓVOA, 1995; SEVERINO, 2003). Mas, ainda hoje, a descaracterização da profissão é a norma. Severino (2003) denomina “reducionismos” a essas imagens que descaracterizam a função docente. Um desses reducionismos refere‐se à crença na presença de um “dom natural” no exercício da docência, o que leva a uma redução da docência à “maternagem” (p. 84). Há, também, a tendência a identificar a função docente com a “relação pastoral, de fundo místico e religioso” (p. 85), assim como, entre outros, o reducionismo relativo ao psicologismo, “ao considerar que a relação pedagógica se exaure no relacionamento psíquico”, e ao sociologismo, quando a educação se reduz “a seus fatores sociais determinantes” (p. 86). Com tantas reduções da função docente, não tem sido fácil ao professor ser professor... O que significa, então, ser professor? Existe uma definição correta “para todo o sempre”? Que papéis o professor desempenha? Gimeno Sacristán (1995) argumenta que as profissões são essencialmente definidas por suas práticas e por certo monopólio das regras e dos conhecimentos da atividade em questão, mas isto não se aplica totalmente ao caso do professor. Por um lado, a atividade educativa não dispõe de regras precisas, nem formas generalizáveis de relacionamento entre conhecimento e ação pedagógica e, por outro, esta não é uma atividade exclusiva da profissão docente, pois existem práticas educativas anteriores e exteriores à escolarização, como a educação familiar e aquela oferecida por instituições religiosas. Gimeno Sacristán (1995, p. 68) salienta, também, que os professores “não produzem o conhecimento que são chamados a reproduzir, nem determinam as estratégias práticas de acção” e sua atividade deve submeter‐se a dispositivos político‐ administrativos que regulam o sistema de ensino e o posto de trabalho. Quer isto dizer, enfim, que o professor não exerce sua atividade com autonomia, integridade e responsabilidade plenas. Em outras ocasiões (CHAKUR, 1995 e 2000), tentei identificar os vários papéis que cabe ao professor desempenhar, sem pretender, contudo, dar alguma definição formal de sua função. Considero tais papéis, mais propriamente, como aspectos integrantes da profissionalidade docente, traços e desempenhos característicos do “ser professor” que atualmente são exigidos do profissional do ensino. São eles: competência em habilidades técnico‐pedagógicas e psicopedagógicas, responsabilidade social, comprometimento político,
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engajamento na rotina institucional e investimento na própria formação. Vale lembrar que a dimensão ética perpassa todos esses aspectos, aplicando‐se ao seu sentido e valor. Assim compreendida a profissionalidade docente, cabe buscar o estatuto de sua constituição, que abordarei em seguida. O PROCESSO DE PROFISSIONALIZAÇÃO DOCENTE E AS TENDÊNCIAS À DESPROFISSIONALIZAÇÃO Em ensaio bastante esclarecedor sobre o processo histórico da profissionalização docente, Nóvoa (1995) descreve um modelo de análise que inclui quatro etapas, duas dimensões e um eixo estruturante, salientando, porém, que tal processo “é um percurso repleto de lutas e de conflitos, de hesitações e de recuos” (p. 21) e que, portanto, os focos de análise sofrem mudanças históricas e contextuais. As etapas da profissionalização não seguem necessariamente uma ordem sequencial, e podem ser resumidas como segue: exercício a tempo inteiro (ou como ocupação principal) da atividade docente; estabelecimento de um suporte legal para o exercício da atividade docente; criação de instituições específicas para a formação de professores; e constituição de associações profissionais de professores. Quanto às dimensões, Nóvoa (1995) indica a construção de um corpo de conhecimentos e de técnicas que qualificam o exercício profissional e também de um conjunto de normas e de valores que devem regular a rotina de trabalho e as relações internas e externas à profissão e dar sentido à identidade profissional. Permeando todas essas etapas e dimensões, encontra‐se o eixo do estatuto social e econômico dos professores, responsável por sua imagem profissional de (des)prestígio social e econômico. Em um processo “regular” de profissionalização, algumas tendências poderiam ser observadas, todas elas apontando para uma melhoria ou consolidação da profissão. Saliento, por exemplo, as tendências de delimitação da identidade profissional, aumento do grau de autonomia, ampliação e aperfeiçoamento de competências e saberes, fortalecimento das associações profissionais, melhoria e atualização do estatuto do magistério de acordo com as conquistas da categoria e aumento da margem dos rendimentos e do grau de prestígio dos profissionais. Mas, o que se tem observado, até o momento, é uma inversão de perspectiva. Os professores sofrem um claro processo de desprofissionalização (CHAKUR, 2000 e 2001; NÓVOA, 1995; TARDIF, LESSARD e LAHAYE, 1991), presente nos desvios de função, que indicam falhas ou confusão de identidade; na parcialização do trabalho (domínio parcial da prática); na desqualificação, com a diminuição ou cristalização de competências e saberes; na desvalorização social e econômica da atividade; e na heteronomia profissional, caracterizada pela submissão
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a regras e decisões externas e pela adesão acrítica aos manuais didáticos e, mais recentemente, no Brasil, pelas apostilas de sistemas particulares de ensino impostas às escolas. Tardif, Lessard & Lahaye (1991, p. 226) assim comentam esse processo: corpo da Igreja ou corpo do Estado, o corpo docente parece ter permanecido um corpo de executantes (…) Seu campo de intervenção se restringiu e sua competência diminuiu. O saber docente pluralizou‐se e diferenciou‐se com o surgimento de sub‐grupos de especialistas. A idéia tradicional do docente como educador parece ultrapassada. O docente se ocupa da instrução dos alunos; a formação integral da personalidade não é mais de sua responsabilidade.
O que provoca todos esses dissabores? Quais são suas fontes, afinal? O professorado tem, portanto, as “mãos amarradas”? Vários são os estudos que atestam importantes transformações em várias esferas sociais e os desafios e conflitos daí advindos, enfrentados pelo professor na atualidade (CAMARGO, 2012; ESTEVE, 1995 e 1999; LESSARD e TARDIF, 2008; LOURENCETI, 2008; NÓVOA, 1995, entre outros). Isto, a meu ver, acaba por definir uma verdadeira crise não só da profissão como também da identidade docente. Um fator importante a pressionar o professorado diz respeito à democratização da educação, que já não é privilégio de uma elite. Mas a passagem regular pelo sistema de ensino também não tem assegurado ascensão social ou econômica à população que ascende aos bancos escolares, frustrando‐se as antigas promessas. A sociedade, então, acaba por conferir ao professor o papel de bode expiatório, tido como o responsável direto por todos os males que afetam o sistema de ensino. O avanço científico e tecnológico é claramente outro fator que traz novas exigências ao trabalho docente. O professor em serviço sente‐se cada vez mais incapaz de acompanhar as transformações curriculares e de dominar os conteúdos da matéria que leciona, o que gera, frequentemente, atitudes de resistência à mudança e sentimentos de insegurança e desconfiança com relação ao saber adquirido até então. Assim também, o desenvolvimento de fontes alternativas de informação acaba por desinvestir o professor de uma tarefa que vinha realizando (bem ou mal) há séculos: ele não é mais a fonte por excelência de transmissão oral de conhecimentos, cabendo‐lhe, inclusive, integrar em seu trabalho meios modernos de comunicação. A exigência é tal que o professor muitas vezes precisa comportar‐se como um animador televisivo para que os alunos prestem atenção à aula. Como escutei uma vez de uma professora, “a nossa concorrente é a Rede Globo de Televisão”. Saliento, enfim, as transformações que vêm se processando nas relações professor‐aluno. Antes caracterizadas pela autoridade docente, hoje parecem ter sofrido uma inversão, tornando‐se cada vez mais conflituosas. 45
Despojado da antiga autoridade, o professor não dispõe de repertório adequado para lidar com a agressão, a indisciplina, a falta de respeito ou decoro, necessitando buscar novos modelos de convivência. No Brasil, além desses fatores, os professores têm se deparado com grandes transformações decorrentes das reformas do Ensino Fundamental, implantadas em um curto espaço de tempo. Após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em 1996, pipocaram várias medidas. Com o regime de Progressão Continuada e a instituição de Ciclos de Ensino (o I Ciclo reunindo 1ª a 4ª séries e o II Ciclo, de 5ª a 8ª séries), os alunos só podem ser reprovados ao final de cada ciclo e o professor tem o poder de avaliar o aluno, mas não de reprová‐lo caso ele seja mal avaliado. Mais recentemente (2006), o governo federal instituiu o “Ensino Fundamental de 9 Anos”, incorporando crianças a partir de 6 anos de idade. Outras mudanças vieram afetar o trabalho docente em vários níveis: a ampliação da jornada escolar (de 720 horas para 1000 horas), a implantação de classes de aceleração da aprendizagem, as aulas de reforço escolar para alunos com dificuldades de aprendizagem, o desenvolvimento de projetos (para a comemoração de eventos ou datas importantes, por exemplo) os sistemas de avaliação da aprendizagem, realizados periodicamente pelos governos federal e estadual etc. A situação atual da educação escolar no Brasil após essas medidas tem sido objeto de pesquisas e discussões constantes. O estudo de Lourencetti (2008) traz belos exemplos de como os professores brasileiros se sentem após a instituição de certas medidas e como têm lidado com elas em suas práticas. Quanto à progressão continuada: Na teoria o projeto é maravilhoso, você lê e fala: puxa vida!! Mas na prática não vai. [...] Faltou conscientização do professor, do aluno, da família. Eles não estavam preparados. O aluno acha isso uma maravilha. Ele não precisa se esforçar porque ele sabe que ele vai passar. E ele não se esforça. (Professor de Ciências) (p. 87‐88) [...] ficou pior. Por quê? Eu tô falando por experiência própria. O aluno chegou a falar pra mim: não adianta o senhor não dar nota pra mim, porque o governo me passa. [...] E isso deixa a gente um pouco frustrada, porque, queira ou não queira, você acaba perdendo um pouco aquela autoridade. [...] (Professor de Ciências) (p. 87)
Quanto às tecnologias de informação atuais: O mundo oferece muita coisa pra eles e a gente compete com outros meios de informação em nível totalmente desigual. A TV, o computador, tudo o que tá aí de tecnologia é fascinante. (Professor de Ciências) (p. 72)
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Quanto à relação professor‐aluno: O aluno hoje tem mais liberdade para retrucar. O aluno de antigamente tinha medo. Era mais medo que respeito. O de hoje retruca. E você, com alguns não pode se pôr da mesma maneira que você se punha até porque ele é mais violento. E você tem aluno drogado sim dentro da sala e você não tem muito o que fazer. Então é complicado. (Professor de Matemática) (p. 67)
Quanto ao desenvolvimento de projetos: Uma coisa que me agonia é o seguinte: se aumenta na cidade o número de gravidez na adolescência, esse tema precisa ser trabalhado na escola. Se aumenta o número de drogados, se a dengue alastra na cidade, a escola precisa trabalhar. Tudo vai pra escola, entendeu? [...] a gente tem que abordar, tem que discutir tudo isso, mas a sobrecarga de responsabilidade que jogaram pra gente, deixa a gente muito angustiado. (Professor de Geografia) (p. 118) Com os projetos eu preciso parar tudo. Como eu vou colocar a dengue se eu tô trabalhando o imperialismo? (Professor de História) (p. 119)
A separação entre concepção e execução; a perda da autonomia e da autoridade; a insegurança quanto ao domínio dos conteúdos escolares; a relação conflituosa professor‐aluno; a fragmentação do trabalho e o sentimento de que as reformas que pretendem melhorar o ensino acabam por negar não apenas o trabalho desenvolvido, mas também a própria função docente... Tudo isso se configura como uma crise que abala os alicerces da construção da profissionalidade do professor, além da crise no interior da profissão. Paganini‐da‐Silva (2006, p. 199) chega a diferenciar com certa precisão as duas espécies de crise, geralmente confundidas: [...] consideramos que, para que se instale uma crise de identidade profissional, a profissão docente não precisa estar necessariamente em crise, pois a identidade profissional implica a existência de elementos subjetivos, além daqueles próprios da profissão em questão. [...] Obviamente, pode haver uma crise na profissão docente, mas o professor pode não passar por nenhum conflito interno com relação à profissão que exerce e como a exerce. Entretanto, a crise na profissão se apresenta como um pano de fundo profundamente contagiante para uma crise também da identidade, pois, se a profissão não se encontra em crise, os profissionais que a exercem podem atuar com maior tranquilidade. Digamos que a crise do Magistério aumenta as chances de uma crise de identidade.
A autora define a crise de identidade profissional docente como aquela que “diz respeito ao modo como os professores se veem e como são vistos pelos outros; diz respeito ao próprio trabalho, ao valor social que possuem ou não, a seus saberes e à sua competência para ensinar”. É uma crise, portanto, que confunde os papéis próprios à profissão docente, e o professor acaba por realizar tarefas que o desviam de sua função de
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ensinar (PAGANINI‐DA‐SILVA, 2006, p. 176). Outra visão da crise do professorado pode ser encontrada no estudo de Esteve (1995 e 1999). Também designada por malaise enseignant e teacher burnout, a expressão mal estar docente é empregada por Esteve (1995, p. 98) “para descrever os efeitos permanentes, de caráter negativo, que afectam a personalidade do professor como resultado das condições psicológicas e sociais em que exerce a docência, devido à mudança social acelerada”. São comuns efeitos tais como desmotivação pessoal, insatisfação com a profissão, autoimagem negativa (autodepreciação), ausências frequentes do local de trabalho, isenção de responsabilidades e desencanto e ceticismo quanto a qualquer mudança na área educacional, além dos frequentes problemas de saúde advindos da tensão acumulada e do stress constante. O mesmo conceito é empregado por Camargo (2012, p. 75), que denomina “síndrome de burnout” à “fadiga‐ limite dos professores”, assim caracterizada: É uma categoria médica que exemplifica uma das características fundamentais do cotidiano escolar: a sua insuportabilidade. Dessa forma, a epidemia atual de burnout, assim como a proliferação de estudos sobre tal fenômeno, atestam que o insuportável da rotina escolar não é mais apenas uma questão atribuída aos alunos‐problema, como no passado próximo. [...] a insalubridade agora emanaria da própria especificidade do trabalho docente no mundo contemporâneo.
Nota‐se, portanto, que as dificuldades por que passam os professores na atualidade não dizem respeito apenas ao que se passa no exterior, em seu local de trabalho, mas muitas delas são relativas ao sofrimento que se abate sobre o próprio corpo de cada um individualmente. COMO LIDAR COM A CRISE, AFINAL? Sabemos que, em sua prática cotidiana, o professor se defronta com situações que nunca são iguais e os problemas são inesperados em sua maioria, exigindo “microdecisões” inadiáveis e impelindo‐o a improvisos imediatos (Perrenoud, 1993). É improvável, pois, que a formação inicial possa abarcar todos os aspectos de sua vida profissional, prever a variabilidade de situações e problemas reais e suas possíveis soluções ou desenvolver todos os domínios necessários à sua qualificação. Sabemos, também, que o desenvolvimento profissional do professor pode ser acelerado ou retardado, dependendo das condições favoráveis ou desfavoráveis do meio social, profissional ou de trabalho (CHAKUR, 2001). Embora não seja de sua alçada reverter transformações nos âmbitos social e institucional, a formação continuada pode ter o papel de assegurar um ritmo mais veloz ao desenvolvimento do profissional docente e fortalecer sua identidade. E a universidade, a meu ver, tem um papel fundamental, não apenas na formação inicial, mas também após a graduação. 48
Um dos princípios fundamentais que deveriam nortear a formação tanto inicial quanto continuada do professor é o reconhecimento deste como sujeito, ator e agente do seu próprio fazer e produtor de saberes úteis e válidos. Assim também, assegurar a configuração de uma imagem realista da prática, oferecendo situações que salientem o conflito, a diferença e a ambiguidade, poderia favorecer a tomada de consciência e o saber lidar e conviver com o heterogêneo, sempre presente na prática docente. Na formação continuada, em especial, é bastante promissor o trabalho de parceria, reunindo pesquisadores da universidade e professores de escolas do Ensino Fundamental e Médio, na chamada pesquisa‐ação colaborativa (Giovanni, 1994), em que são essenciais a valorização do saber e do saber fazer do professor e a redução da distância entre concepção e execução. Neste modelo, são atendidas necessidades tanto da pesquisa científica sobre ensino, professores e escola, quanto de implantação dos resultados obtidos, contribuindo, assim, para a ampliação do conhecimento e compreensão da realidade escolar. A ênfase está no trabalho coletivo e cooperativo e na socialização de ideias e experiências. Considero, porém, fundamental que as escolas se soltem das amarras dos pacotes governamentais periódicos montados à sua revelia e possam reger sua vida com maior liberdade e independência. E que o professor se filie a uma escola em particular, ao invés de tentar aumentar seu salário dando aulas em várias escolas ou trabalhando em outras atividades, como ocorre com frequência. Concordando com Nóvoa (1992, p. 28), penso que “não basta mudar o profissional; é preciso mudar também os contextos em que ele intervém [...]. O desenvolvimento profissional dos professores tem de estar articulado com as escolas e os seus projectos”. Acredito, enfim, que as transformações do fazer docente em direção a uma genuína profissionalidade, devem alimentar‐se da vontade política dos interessados, das trocas entre os diferentes atores e do exercício cooperativo, fatores que tornam a identidade docente uma construção coletiva. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORGES, P. Pesquisador afirma que estrutura das escolas adoece professores. Disponível em www.ig.com.br (Portal Ig), acesso em 06 fev. 2013. CAMARGO, D. A. F. de. O abolicionismo escolar: reflexões a partir do adoecimento e da deserção dos professores. São Paulo, 2012. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação. CARLOTTO, M. S. A síndrome de burnout e o trabalho docente. Psicologia em estudo. Maringá, PR, v. 7, n. 1, p. 21‐29, jan/jun, 2002.
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A ESPIRAL POSITIVA E O PAPEL CRUCIAL DOS PROFESSORES.15 Joaquim Azevedo Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa ‐ Porto Entre a muitíssima literatura existente sobre este tema, retenho aqui apenas alguns dados recentes e relacionados com a investigação produzida na nossa Faculdade. O nível socioeconómico das famílias, em particular o nível cultural da mãe, é a variável de contexto que mais marca o percurso escolar dos alunos (Marchesi et al., 2003; Murillo e Román, 2011), refletindo‐se em percursos escolares mais ou menos regulares. Os alunos oriundos de universos socioculturais mais desfavorecidos são os que mais reprovam e que mais tempo demoram a concluir os vários níveis de ensino (CNE, 2011; Público, 2012; Romão, 2012) e este percurso escolar irregular vai tornar‐se ele mesmo uma “espiral negativa” ao longo de todo o percurso escolar. Se analisarmos a bateria de provas aplicadas pelo Programa Aves, da Fundação Manuel Leão (Azevedo, 2012), verificamos que o melhor preditor do sucesso dos alunos nas provas académicas (a várias disciplinas) é constituído pelos resultados nas provas relativas às capacidades de raciocínio (incluídas na Bateria de Provas de Raciocínio Diferencial ‐ BPRD, de Leandro Almeida), o que imediatamente nos remete quer para o ambiente estimulador familiar, quer para o clima da escola onde se estuda (Romão, 2012). Esta última variável, chamada “efeito escola” (muito estudado desde Coleman, p. ex. Soares, 2004; Torrecilla, 2005; Reynolds, 2007; Bolivar, 2012), é igualmente crucial, mormente no caso da promoção do sucesso junto de alunos oriundos de meios socioculturais mais desfavorecidos. De facto, como lembra Heyneman (1986) as escolas tanto podem fragilizar os alunos mais desfavorecidos (o que fazem vulgarmente) como, pelo contrário, podem promover o seu maior sucesso.
15
Neste texto sintetizam‐se os elementos expressos na comunicação oral realizada no Seminário sobre a Promoção do Sucesso escolar, promovido pela Universidade Católica, no Porto, a 25 de Janeiro 2011, recorrendo a alguns textos do autor, escritos sobre o mesmo tema, em 2011 e 2012.
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Quando comparadas escolas e os níveis de aprendizagem e de conclusão de estudos dos alunos, verifica‐se que, para alunos mais desfavorecidos, a escola que frequentam – residência/escola ‐ tem um fator de impacto relevante na conclusão de estudos e no rendimento escolar em geral. O mesmo autor sublinha que a qualidade da escola e dos seus professores é o fator mais decisivo para a aprendizagem e não é menor do que a influência da família (Heyneman, 1986, p. 8). Crahay (2000) vai um pouco mais longe e afirma mesmo que não só a escola pode favorecer o sucesso escolar dos alunos como pode igualmente engendrar ou aprofundar o seu insucesso. Para ele, a responsabilidade da escola na produção de fracassos escolares é largamente reconhecida. E salienta o caso da unificação curricular como uma potencial mistificação, na medida em que pode constituir, ao oferecer o mesmo currículo a todos, com “tratamento escolar” idêntico para todos, um modo de legitimar as desiguais capacidades e competências construídas anteriormente no meio familiar e social de origem. Por isso se tornou tão relevante, ao longo dos anos, perceber quais são as políticas pedagógicas e as práticas escolares que se revelam mais “eficazes” para promover melhores aprendizagens junto de alunos com maiores dificuldades. Wang, Heartel e Walberg (1994) realizaram uma meta‐análise de cinquenta anos de investigação em educação, publicada em “What helps students learn?”. Analisaram 179 artigos e capítulos de livros, compilaram 91 sínteses de investigação e inquiriram 61 investigadores em educação, tendo construído uma base de dados com 11.000 resultados estatísticos. Esta meta‐análise levou‐os a identificar 28 fatores que influenciam a aprendizagem e, em seguida, classificaram‐nos por ordem de prioridade. Esta meta‐análise identifica o professor como sendo o fator que tem mais influência na aprendizagem dos alunos (o professor é o elemento‐chave dos três primeiros fatores) e este vem à frente do fator família: 1.
Gestão da turma/ sala de aula
64,8
2.
Processos metacognitivos
63,0
3.
Processos cognitivos
61,3
4.
Meio social e apoio dos pais
58,4
5.
Interações sociais entre os alunos e o professor
6.
Atributos sociais e comportamento
55.2
7.
Motivações e atributos afetivos
54.8
8.
Os outros alunos
53.9
9.
Número de horas de ensino
53.7
56,7
10. Cultura da escola
53.3
11. Cultura da aula/ turma
52.3
54
12. Clima da aula/ turma
52.3
13. Modo de ensinar na sala de aula
52.1
14. Política educativa do Estado
37.0
Como salientam estes autores, é o professor que mais ajuda (ou não) o aluno a aprender, podendo e devendo‐ se falar, por isso, em “efeito professor”, além do efeito escola em que aquele se enquadra. A RELEVÂNCIA DO PAPEL DOS PROFESSORES Aliás, na sequência deste e de outros trabalhos semelhantes, vários pesquisadores foram perceber melhor este efeito professor, sob o prisma da consideração do “valor acrescentado” do professor. Sandres (1996 e 1998), procurou estudar esta realidade no Estado de Tennessee, nos EUA, comparando os professores com fraco desempenho e os professores com elevado desempenho e os progressos escalonados dos alunos: o efeito professor sobre o rendimento dos alunos é não só significativo como é aditivo e cumulativo. Estes estudos revelam que a origem étnica, o nível socioeconómico, o rácio professor‐aluno e a heterogeneidade da sala de aula constituem os preditores‐chave da possibilidade de melhoria do rendimento escolar dos alunos; a eficácia do professor representa sobretudo o fator determinante dos reais progressos escolares realizados pelos alunos (de tal modo o efeito professor é relevante que Sandres vai mesmo ao ponto de afirmar que é muito duvidoso que um professor muito eficaz seja capaz de contrabalançar o impacto negativo causado por um mau professor no desempenho dos alunos). No Estado do Texas, mediante este tipo de resultados, foi realizado um projeto (El Paso Collaborative) de aperfeiçoamento profissional de professores, em cooperação com a Universidade do Texas. O projeto visava aumentar o sucesso escolar do maior número de alunos possível, desde a primária ao secundário. Durante cinco anos, os professores de três “distritos escolares” participaram em várias formações visando melhorar a qualidade do seu ensino. Em 1997/98, depois de seis anos de experimentação, 89% dos alunos do 3º ao 8º ano e do 10º ano tiveram sucesso nos exames do Estado do Texas, contra apenas 44% em 1992/1993 (Haycock, 1998). É evidente que aqui pode haver lugar a efeitos complementares e concomitantes, de tipo administrativo e de “bola de neve”, mas é enfatizado o efeito do aperfeiçoamento profissional dos professores centrado sobre a aprendizagem, ou seja, sobre a “gestão da sala de aula” e a “gestão do ensino”(p.66). Parece resultar claro destas pesquisas (e de muitas outras) que as práticas dos professores possuem um importante poder de influência sobre o sucesso escolar dos alunos, sobretudo dos alunos provenientes de meios socioeconómicos mais débeis. 55
A APRENDIZAGEM MOBILIZA A PESSOA TODA A aprendizagem é uma atividade multidimensional que não deixa de lado nada que diga respeito à pessoa de cada aluno, pois a cada um mobiliza na sua inteireza pessoal, para conseguir progredir nas aprendizagens propostas pela escola e pelos professores. Aliás, estes modelos de ensino e de aprendizagem só são realmente eficazes se inscritos numa escola que os enquadra e potencia do ponto de vista institucional, ou seja, escolas com o foco na melhoria dos processos pedagógicos porque focada nos resultados dos alunos, que elegem como prioritária esta melhoria por parte de todo o tipo de alunos (e não apenas dos que aprendem bem), que se debruça sobre eles, que organiza a escola e se ocupa real e quotidianamente com os progressos dos alunos, de cada um e de todos. Como já Zins (2004) tinham demonstrado, o sucesso escolar é uma construção social, centrada sobre a escola, em que interferem predominantemente, para além da central competência científica do professor: (i) ambientes seguros e pacíficos, (ii) relações afetuosas entre alunos e professores, que promovem o desejo de aprender e de estar na escola e o esforço contínuo, (iii) estratégias de ensino envolventes dos alunos que os direcionem mais direta e eficazmente para a aprendizagem, (iv) o trabalho em conjunto dos professores e das famílias e o seu estímulo positivo para as aprendizagens contínuas, gerando assim melhores resultados por parte dos alunos, (v) alunos mais implicados nos seus processos de aprendizagem e mais confiantes, pois são alunos que se esforçam mais, (vi) alunos conscientes das tarefas que lhes são atribuídas e que se apoiam na resolução dos seus problemas de estudo, pois terão níveis mais elevados de desempenho. Precisamos de cuidar dos percursos escolares de cada um dos alunos como o cuidado máximo que uma escola tem de desenvolver e aplicar. O magno objetivo social e político é o de construir passo a passo, mas com determinação, uma “escola organizada de tal maneira que cada aluno se encontre o mais frequentemente possível numa situação de aprendizagem fecunda para si mesmo” (Perrenoud, 1998). A “diferenciação pedagógica”, vista a esta luz, só faz sentido enquanto estratégia de otimização das aprendizagens, ou seja, enquanto desenvolvimento da inteligência profissional e da criatividade dos docentes e das equipas de docentes e enquanto capacitação progressiva dos alunos. Isto é, ou temos escolas exigentes, focadas rigorosamente no essencial, verdadeiros locais de trabalho, porque estaleiros de humanidade, ou elas continuarão a ser, por desnorte, incúria, facilitismo ou por mero seguidismo face às normas da administração, sempre em mudança, fábricas de reprodução das desigualdades sociais. De facto, o pior que pode acontecer às escolas, a braços com tanta desigualdade social e cultural e com tão díspares progressões nas aprendizagens, é entrar numa “espiral negativa”, que parte dos meios desfavorecidos de onde os alunos são oriundos e das dificuldades dos seus ambientes familiares e culturais, passa pelas referidas dificuldades de aprendizagem e acaba por remeter os alunos para vias ou cursos que pouco ou nada 56
exigem deles, sob a capa da “adaptação curricular” ou da vocação “prática” destes alunos (p. ex. quantos Cursos de Educação Formação‐CEF, cursos vocacionais e cursos profissionais constituem os “caixotes do lixo” da escola, ditos “muito apropriados” para os alunos com mais dificuldades de aprendizagem?). EM EDUCAÇÃO NÃO PODE HAVER PERCURSOS‐NÃO A minha mensagem principal consiste em sublinhar que um dos maiores erros em educação consiste em criar percursos‐não. Se existem, é porque já estamos a falhar, já estamos a fugir aos verdadeiros problemas, já desistimos de enfrentar as reais dificuldades. O que será preciso que o sistema escolar português faça, e é isso que ainda não sabe fazer bem, será cuidar de cada um, intervindo à menor dificuldade de aprendizagem, no primeiro e segundo ciclos, ou melhor, na educação da infância. Escolarizamos todos, essa promessa a minha geração soube cumprir e isto foi e é muito importante e socialmente válido. Mas não soubemos nem sabemos ainda escolarizar cada um, porque a escola da elite, dos 20% culturalmente mais aptos, é ainda a mesma escola que oferecemos generalizadamente aos 100%. O anacronismo social e político é muito claro. Esse é e será o desafio desta geração, o principal programa sociocomunitário e político dos próximos vinte anos. E digo sociocomunitário (e solidário e policêntrico, pois é assim que o defino em Azevedo, 2011), porque esta nova promessa que devemos colocar no horizonte é uma conquista que ou é de toda a sociedade portuguesa ou não será. A ESCOLA PÚBLICA NÃO É A ESCOLA DOS “PORTUGUESES DE SEGUNDA” Não há portugueses de segunda, nem a escola pública pode estar ao serviço da sua consagração; só há portugueses de primeira e as escolas públicas têm de estar aptas a todos consagrar. Para tal, tem de tratar diferentemente os diferentes, porque todos são capazes e porque para cada um há níveis de excelência a desenvolver. O ensino geral ou científico‐humanístico não é, em absolutamente nada, superior ao ensino profissional ou um bom laboratório de química não fomenta nem melhores nem maiores aprendizagens de que uma boa oficina de mecânica ou uma boa sala de música. A escola pública não é a escola que diz dar muito a todos e que acaba por dar pouco a muitos. Não são nada convincentes os argumentos de que nos impõem turmas assim e assim, de que isto é muito bonito na teoria, mas na prática, de que “se visse o raio de alunos que eu tenho na sala”...porque de bons e imensos alibis está a degradação da escola pública cheia! Conheço muitas escolas públicas que acolhem todos e promovem cada um! São escolas como as outras, no sentido de que estão sujeitas às mesmas normas e aos mesmos ditames da tutela. Não são escolas como as outras, no sentido em que têm outras lideranças, focam a sua missão em prioridades, objetivos e ações na educação de todos e com cada um, fazem um enorme esforço
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em partilhar estes processos entre todos os atores da escola e da comunidade, mobilizam o trabalho em equipas docentes, pedem ajuda externa para suprir as competências que sabem que não têm, lutam anos a fio por essas prioridades e objetivos, humilde e persistentemente, melhorando em cada ano os seus resultados, enquanto escolas abertas a todos e promotoras de cada um. São estas escolas, tão pequeninas e esquecidas como a de Beiriz ‐ Póvoa de Varzim e de Estremoz (entre muitas outras), que dão corpo a programas nacionais, aprovados e incentivados pelo MEC, de promoção do sucesso escolar, que estão agora a ajudar a melhorar os processos educativos em muitas outras escolas; são estes, os processos, não mais vias e mais exames, que podem vir a melhorar os resultados escolares. E estes não melhoraram naquelas duas escolas (e em muitas outras) pelo incremento da asfixia pedagógica. Será que isto, tão prático e concreto, não nos ajuda a ver qual é o caminho? Será que o melhor caminho, neste tempo de crise, é a atrofia pedagógica das escolas? Os tempos de crise são (queremos que sejam) os tempos em que é melhor a escola pública e democrática hibernar, desistir do essencial? Já é tempo, neste campo como em outros, de nos deixarmos de discursos épicos sobre a escola pública e de deitarmos (continuarmos a deitar) os pés ao caminho, humildemente e em equipas fortes, aqui e ali, serenamente e sem pressas, cada vez em mais locais e com mais parceiros. Porque uma escola, com um lugar nobre para cada um não tem nada de épico, não enche os olhos dos eleitores, não labora subordinada a uma performance exibicionista, dá trabalho, dá muito mas mesmo muito trabalho,... mas vale bem toda uma vida! E essa é a vida dos professores, que implica social e politicamente sobretudo os professores. O HUMILDE TRABALHO DA PEDAGOGIA É INQUIETANTE É muito estimulante o encontro com o conceito de “mediocridade” de que fala Houssaye (2002), a propósito da pedagogia! Encontramo‐nos, nos nossos sistemas escolares e escolas, perante resultados medíocres, face aos quais os pedagogos, alimentados por eles, prosseguem a sua paixão e o seu sofrimento de ensinar e aprender. Esta mediocridade, segundo ele, é o combustível que alimenta o nosso caminho – a experiência ‐ e a nossa pesquisa incessante. A relação muito estreita entre ideias pedagógicas e práticas educativas, entre teoria e prática, o terreno próprio da pedagogia, leva‐nos a desconfiar de todas as tentativas hiperespecializadas e performantes de olhar os fenómenos da educação. A pedagogia requer ponderação e humildade na ação. A harmonia que qualquer pedagogo pretende alcançar, que surge num quadro humanista que pensa o desenvolvimento humano de modo global (não como fruto da “inteligência cega” ou da cega especialização), só se pode almejar dentro desta procura aberta e conscientemente humilde. É verdade que o discurso dos pedagogos é de difícil afirmação num contexto tão marcado pelo positivismo científico e pela “liquidez” da pós‐ ‐modernidade (de que fala Bauman). O pedagogo resvala muito entre a história, o concreto das pessoas, e o
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futuro, as possibilidades que elas encerram e revelam. Soëtard (1997 e 2002) diz que “la pédagogie appelle un savoir. Un savoir qui articule une science du fait humain, une pensée du sens et, en définitive, une intelligence des moyens.” Ou seja, em educação, os processos são os resultados e estes mostram, sobretudo se isolados e desencarnados, uma cortina de silêncio acerca dos processos. Os professores e o seu trabalho nas escolas não podem continuar a ser tão esquecidos no quadro das políticas públicas de educação: Nas últimas duas décadas, tem havido um esquecimento sistemático e preocupante: os professores e a sua qualificação quer inicial quer contínua. Desde que se criaram os Centros de Formação de Associação de Escolas, nunca mais se avançou com determinação e orientação clara, apenas se criaram entraves vários ao desenvolvimento das potencialidades abertas por esta plataforma colaborativa de incremento da formação em serviço. Os professores portugueses são hoje profissionais perdidos numa imensidão de mares nunca antes navegados, que são as escolas de hoje, os únicos e últimos templos sociais de acolhimento de todos os cidadãos, sem exceção. Por isso, e por muito mais, alguma literatura lhes chama “quase‐profissionais”. De facto, os professores são profissionais com graves problemas de identidade profissional, sempre a obedecer desajeitadamente a ordens superiores que os mandam fazer agora de um modo e amanhã do modo contrário, profissionais desgarrados uns dos outros e desenraizados dos seus locais de trabalho, práticos que enfrentam, com práxis isoladas e irrefletidas, problemas de todo o tipo, que entram de chofre, sem bater à porta, pelas salas de aula dentro. Muitos professores ainda se pensam como profissionais por serem donos exclusivos deste sagrado naco, a sala de aula, a dita “caixa negra” da escola, mas ela já há muito que também deixou de ser deles, ela é dos alunos, que dela se assenhorearam, cada vez mais diferentes e estranhos, cada vez mais indiferentes e adversos, cada vez mais dependentes e titubeantes. Socialmente despojados de quase tudo, desmantelados como classe, os professores de hoje têm‐se remetido para um ressentimento resignado, um fechamento revoltado e inconsequente na sala de aula, uma triste antecipação das reformas, a fuga inconformada para casa e para os fóruns virtuais de inglória lamentação pública. A passagem política do acolhimento de todos ao ensino eficaz de cada um, ou seja, o alcance por todos e por cada um dos conhecimentos e das competências que estão consignados, em múltiplos modos de excelência, é o que a sociedade mais deseja que a escola faça e faça bem. Mas é exatamente aqui que a escola mais falha. Mas, com profissionais assim, como podem as instituições escolares cumprir a sua missão sociocultural? Nenhuma instituição pode funcionar com este perfil de profissionais, muito menos funcionará uma instituição de ensino que se quer de todos e de cada um, neste mar cultural tão tormentoso, como é a sociedade portuguesa de hoje. Muito pouco se tem feito, no espaço público, para valorizar e dignificar os professores como profissionais 59
autónomos e responsáveis. Sucessivos governos alteram normativos e orientações no sistema de ensino, mas ninguém investe neste vetor crucial, a não ser para destruir e desvalorizar o pouco que subsiste de dignificação de um dos mais duros trabalhos sociais de hoje, como se fez com o processo de avaliação de desempenho. Nunca foi tão necessário como hoje, na história da educação escolar, em Portugal, fortalecer e recriar a profissionalidade dos professores, como os esteios mais sustentáveis de instituições de ensino que funcionem ao serviço de uma sociedade democrática e justa, que valoriza a educação e a cultura das suas gentes. Há todo um demorado trânsito a empreender pelos pedagogos, percorrido pelos seus próprios pés, o caminho consistente e progressivo de uma profissionalidade responsável, autónoma, que só pode ser igualmente colaborativa. Só sendo assim esta profissionalidade será socialmente reconhecida como tal. De nada vale esperar futuras contemporizações dos atores sociais para com pré‐reconhecimentos dos professores como profissionais! Não devemos esperar mais do que o reconhecimento, que é um ato social que resulta de camadas e camadas de informação e conhecimento, forjado por milhares de pequenos “agir” profissionais que revelem essa nova profissionalidade por parte dos professores. A serpente em que o sistema educativo português está enrolado e asfixiado precisa de ser combatida não só com desejos, mas com ações concretas, ainda que socialmente envolventes e prolongadas no tempo, e com claro vislumbre de eficácia, capazes de gerar algum consenso e sobretudo compromissos sociais duradouros. Investir tempo, pesquisa, diálogo e dinheiro neste fulcro da ação da política educacional, só pode gerar bons frutos, a médio prazo. Basta olhar para os sistemas educativos que melhor desempenho social apresentam e lá está ou esteve quer o inequívoco e intencional investimento político na qualificação profissional inicial e em serviço dos professores, na valorização social do seu bom desempenho, quer a eleição pelos próprios professores da melhoria do seu desempenho profissional como o melhor serviço que se prestam a si próprios e a toda a sociedade que servem publicamente. A supervisão, se ao serviço do reforço da capacidade reflexiva e colaborativa, pode representar hoje uma importante estratégia de afirmação da autonomia profissional dos professores, de construção de conhecimento profissional e de melhoria da qualidade do ensino. Nunca como hoje foi tão necessário um plano de desenvolvimento profissional dos professores para os próximos trinta anos, aprovado na Assembleia da República e que seja levado persistente e decididamente até ao fim, pois só ele pode melhorar sustentadamente a qualidade e a equidade da educação escolar que temos e que tantos tão ansiosamente desejamos. E acredito nisso, porque conheço e acredito nos muitos professores que são hoje e ainda os profissionais da esperança.
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EU ‐ PROFESSOR COM IDENTIDADE E PROFISSIONALIDADE Paula Figueiras Carqueja Presidente da Direção Nacional da Associação Nacional de Professores “Vivemos num tempo atónito que ao debruçar‐se sobre si próprio descobre que seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca vir a ser”. (Santos, 1997:5)
Atualmente, todos nós, sociedade e escola, vivemos em permanente mudança, angústia e incerteza. Cabe‐nos (re)pensar os papéis dos diferentes intervenientes numa escola que se pretende cada vez mais um espaço aberto, em permanente "ligação direta" com a vida quotidiana e onde professores e alunos têm participações mais ativas. Os professores mudam as suas “ensinagens”, as suas pedagogias, os alunos as suas aprendizagens – todos tentam mudar! À escola, é‐lhe exigido que prepare os alunos para uma nova sociedade apelidada Sociedade da Informação e do Conhecimento, que cada vez se torna mais complexa e permanentemente em evolução. Para Hargreaves (2003), a Sociedade do Conhecimento é uma Sociedade da Aprendizagem, com todas as dimensões: políticas, sociais, organizacionais e profissionais. A escola já não é um local isolado onde se aprende a ler e a contar, mas um local de aprendizagem global e multicultural. Assim, a escola deve preparar todos os alunos dos diferentes níveis de ensino, tirar as vantagens pedagógicas de tal fenómeno, assim como lidar conscientemente com as diferenças de que estes são portadores. Segundo Guerra (2000: 18), "a escola não está situada no vazio; pelo contrário, encontra‐se imersa na sociedade e dela recebe influência e exigências". Nesta perspetiva de escola o professor deverá partilhar o conhecimento com o aluno e juntos deverão criar uma plataforma de ensino/aprendizagem, gerida de forma intencional e diferenciada pelos professores. Os docentes devem adequar o desenvolvimento das atividades às características e necessidades reais dos alunos. Devem preocupar‐se em fomentar nos alunos a capacidade de aprender a aprender e não apenas em
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que adquiram um conjunto de conhecimentos pré‐elaborados, identificados com a cultura e ciência da nossa sociedade. Mas, afinal, quem é o professor, a figura de quem tanto se fala hoje? O professor é um sujeito que exerce uma das profissões mais antigas e mais importantes, tendo em vista que as demais, na sua maioria, dependem dela. Já Platão16, na sua obra “A República” (séc. IV a.C.), alertava para a importância do papel do professor na formação do cidadão. Segundo a “Revista Nova Escola” (2008: 11), “o filósofo grego previu um sistema de ensino que mobilizava toda a sociedade para formar sábios e encontrar virtudes”. Para além disso, “a educação deve propiciar ao corpo e à alma toda a perfeição e beleza que se podem ter” (ibidem: 12) Por outro lado, no século XX, na década de sessenta, mais propriamente em 1966, é aprovada pela Conferência Intergovernamental Especial sobre a Condição dos Professores, convocada pela UNESCO, em Paris, em cooperação com a OIT, em 5 de outubro, a Recomendação sobre a Condição do Pessoal Docente (UNESCO/OIT, 1966) – que é o mais importante instrumento jurídico internacional sobre os professores – diz nomeadamente, que “o termo ‘pessoal docente’ ou ‘professores’ serve para designar todas as pessoas ou encarregadas da educação dos alunos”. (Cap. I, Ponto 1: 25). Para fazer frente a todos os desafios, o professor encontra, no Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI, coordenado por Jacques Delors (1998), os quatro pilares da educação, a saber: aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Estes conceitos partem do reconhecimento da necessidade de informar, formar e orientar os professores a compreender e a atuar em realidades sociais e técnicas, complexas, agregando novos valores ao estágio atual, no qual a prática e o debate sobre a renovação pedagógica se limitam à indicação do saber aprender e do saber fazer, como paradigmas máximos. O aprender a conviver e o aprender a ser aumentam a intervenção pedagógica e as possibilidades de inserção profissional e social dos cidadãos. Em acréscimo a estas novas funções da aprendizagem (aprender a conviver e aprender a ser), alarga as possibilidades de intervenção do indivíduo e da coletividade, para que sejam criadas formas de colaboração de trabalho que garantam e prolonguem a qualidade de vida, tanto pessoal como profissional.
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“O filósofo, convivendo com o que é divino e ordenado, tornar‐se‐á ordenado e divino até onde é possível a um ser humano” (…) (“A República”: 294) (…) Ter agudeza de espírito para o estudo e não ter dificuldade em aprender. É que as almas tomam‐se muito mais do receio dos estudos aturados do que dos exercícios de ginástica. (…) “Tem de se preocupar com a memória, a força e gosto pelo trabalho em todas as formas.” (pág. 350)
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O professor ou professores são pessoas no e do mundo que incluem a dimensão humana, as relações afetivas em que cada um deve ser considerado na sua totalidade, em que a função do professor vai além da missão de ensinar, ultrapassando o seu espaço de atuação. Ser professor é ser provocador e desafiante em cada momento da sua prática profissional. Na sua permanente função de docente, exerce dois papéis ligados entre si e que se complementam: a didática, em que o professor gere o seu saber, os seus conteúdos e a apropriação pelo aluno; a pedagógica, em que faz a gestão interativa dos acontecimentos na sala de aula e no tratamento e cuidado da informação transmitida em conhecimento através da comunicação. Atualmente, ao professor, tudo lhe é cobrado. Espera‐se da função docente uma multiplicidade de papéis. O professor tem que estar atento a cada aluno e às suas especificidades, atender a um e a todos. O que se passa numa sala de aula é um processo dinâmico, complexo e exigente que se vai construindo ao longo de um tempo, tendo presente uma conduta ética de valores e princípios numa atividade que exige a contínua exposição de convicções, conhecimentos, procedimentos e desenvolvimento da consciência crítica. IDENTIDADE Ninguém duvida de que os professores desempenham um papel relevante na sociedade, mas certo é que têm perdido um papel de referência social de que desfrutavam em tempos idos. Esta situação provoca nos professores uma crise de identidade, isto porque o professor é alguém que constrói uma certa identidade no seu percurso de vida, onde reúne, entre vários aspetos, a sua preparação pessoal e a intervenção profissional, tal como refere Nóvoa (cit. in Bizarro & Braga, 1989: 2005): “Precisamos sobretudo de um professor transcultural, o qual, para além de um excelente domínio de saberes e saberes‐fazer, consiga efetivamente estar atento e compreender os novos contextos ecológicos, o que exige construir novos modos de conceber a profissão”. Se, por um lado, o professor tem uma identidade assente numa cultura que possui um manancial em experiências e valores que estão ao serviço de uma sabedoria profissional, por outro lado essa identidade encontra‐se em crise provocada por vários fatores, nomeadamente: a) A perda de prestígio na sociedade e valorização social dos professores; b) A desvalorização da função “professor” por parte dos alunos, família e sociedade; c) A burocratização da profissão. Mas apesar da falta de estima social, o professor é‐o para toda a vida. Um professor não é apenas alguém que ensina. É muito mais do que isso: é estar presente e acompanhar com responsabilidade muitos momentos que marcam o crescimento de crianças e jovens; é transmitir valores, princípios éticos, formar as mentes e
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personalidades das próximas gerações com responsabilidades globais, com sentido crítico, e no exemplo de uma identidade. PROFISSIONALIDADE A profissionalidade do professor emerge de um sentido de profissionalismo. A profissionalidade assenta num profissionalismo reflexivo catapultado para uma dimensão organizada do saber e do conhecimento, alicerçada numa formação permanente em busca de uma profissionalidade de excelência. O conceito de profissionalidade aponta para uma nova perspetiva na abordagem da profissão docente, transpondo as conceções normais que a dissecam a partir de modelos teóricos produzidos externamente ao exercício profissional, para a compreender, na sua complexidade, como uma construção social. Assim, falar sobre profissionalidade leva‐nos, de imediato, a formação de professores. Formação que implica reflexões sobre diversos princípios que incidem sobre o desenvolvimento pessoal e profissional do professor, como saberes e autonomia, assentes numa linha de qualificação específica que contemple no mesmo nível de importância o conhecimento dos conteúdos e a forma de os transmitir, os métodos a serem implementados na situação de aprendizagem propriamente dita na construção da profissionalidade. A profissionalidade do professor compromete‐o num conjunto de competências, de comportamentos, de habilidades, de atitudes e valores primordiais que constituem a essência, a especificidade de ser professor e que deveria ser reconhecida socialmente, ao mesmo tempo que é uma característica de uma profissão. EM JEITO DE CONCLUSÃO, UM BOM PROFESSOR DEVE: 1 ‐ Gostar de si; 2 ‐ Gostar do ser humano e respeitá‐lo; 3 ‐ Ter escolhido a profissão e dar‐se à profissão; 4 ‐ Saber envolver os alunos no processo ensino/aprendizagem; 5 ‐ Saber estimar a escola, os seus alunos, saber ensinar, ensinar a aprender, saber ouvir (alunos, pais e colegas); 6 ‐ Estar atento aos desafios das mudanças sociais e do avanço do conhecimento para promover a sua formação; 7 ‐ Ser um vigilante da sociedade e saber enfrentar e enquadrar os deveres e dilemas éticos da profissão;
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8 ‐ Ser um analista da sociedade, para ter a capacidade de promover os valores morais, e pautar‐se pela nobreza das suas funções; 9 ‐ Ter a capacidade de atuar na complexidade da profissão, e saber atuar numa situação profissional complexa. E PARA QUE POSSA LEVAR A BOM TERMO A SUA PROFISSÃO, DEVERIA TER DIREITO: 1 ‐ À estabilidade política educativa; 2 ‐ A menos hierarquias; 3 ‐ Ao reconhecimento de competências e de saberes dos professores “seniores”; 4 ‐ A ser consultado pelo Ministério da Educação sobre programas, práticas, tempos letivos, etc.; 5 ‐ A participar na administração escolar; 6 ‐ À autonomia das escolas, com eleições dos órgãos diretivos (pela comunidade escolar); 7 ‐ A exercer pedagogia diferenciada com os alunos (discriminação positiva), dando mais tempo aos alunos com dificuldades, mais conteúdos aos que têm menos dificuldades, favorecendo as aproximações construtivistas, a avaliação formativa para que possa facilitar a assimilação ativa dos saberes e melhor análise do processo ensino/aprendizagem; 8 ‐ À promoção da formação contínua, de acordo com as suas reais necessidades de conhecimento; 9 ‐ A tempo livre (promoção de espaços temporais de reflexão entre docentes e discentes). Por último, acreditando na missão de ser professor, este sabe qual o seu papel e o quanto é insubstituível na educação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTET E E. CHARLIER (Orgs.), Formando professores profissionais: quais estratégias? Quais competências? (2.ª ed.). Porto Alegre: Artmed Editora, 23‐35. BIZARRO, R. & BRAGA, F. (2005). Ser professor em época de mal‐estar docente: que papel para a Universidade? Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas, 22 (2), 17‐27. GUERRA, M.S. (2000). A Escola que aprende. Porto: Edições ASA. MONTEIRO, A. R. (2010). Auto‐regulação da Profissão Docente – Para Cuidar do seu Valor e dos seus Valores. Braga: Associação Nacional de Professores. 67
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PROFISSIONALISMO DOCENTE EM TEMPO DE CRISE Maria Teresa Estrela Instituto de Educação da Universidade de Lisboa 1 ‐ NOTA PRÉVIA Analisar a situação presente da profissão docente no que se refere à sua profissionalidade e profissionalismo e à formação exigida, para captar traços do passado e descortinar prenúncios de um futuro que permitissem prepará‐lo, seria uma tarefa de grande fôlego que só uma equipa multidisciplinar poderia levar a bom termo e, mesmo assim, dentro de muitos limites. Com efeito, causam‐me sempre alguma estranheza as publicações que abordam perspectivas de educação e de formação de professores para o século XXI, horizonte temporal demasiado vasto para um mundo em turbulência política, económica, social, cultural e até ambiental. Como prever o que é largamente imprevisível mesmo a uma curta distância? Corremos seriamente o risco de confundir desejo e realidade, a não ser que partamos do princípio, posto em causa sobretudo pela cultura pós‐ moderna, da validade universal de fins, princípios, processos e valores da educação, da profissão docente e da formação, o que a História da Educação e da Formação de professores não confirma. Ainda que teoricamente os autores a neguem, a crença nessa universalidade está, de certo modo, subjacente a muitos textos científicos e a textos provenientes de organizações internacionais, só assim se justificando o carácter prescritivo de grande parte, das mais variadas proveniências, sobre as missões dos professores, os princípios da sua formação e as qualidades que devem ter os profissionais. Por exemplo, a UNESCO, procurando difundir os seus valores através de textos de natureza vária, tem veiculado a ideia de que compete aos professores do século XXI a luta por uma educação para todos que permita combater a pobreza e favorecer a instauração da paz, a promoção do respeito intercultural e, ao mesmo, tempo promover a igualdade dos géneros; o que, neste último aspecto, não pode deixar de chocar com tradições culturais e princípios religiosos de algumas etnias e regiões, podendo originar dilemas éticos a muitos professores. Para poderem cumprir essas missões, diz Braslavsky (2002:2), num dossier da revista Perspectiva, dessa Organização: “Os mestres e professores do século XXI deveriam ter a faculdade de saber o que é o interesse público e o espírito comunitário, a empatia, a sabedoria, o institucionalismo e o pragmatismo e não exclusivamente o 69
pragmatismo”. A formação dos professores deve ter em consideração que “a aquisição de qualidades novas exige um investimento cultural que é difícil de adquirir, explorar e manter”, o que exige um vasto leque de saberes teóricos e metodológicos para “construir uma identidade profissional e disciplinar (ou polivalente)” e desenvolver uma prática reflexiva. Assente numa cultura psicológica, histórica, filosófica, sociológica, económica essa prática permitirá a “implicação crítica dos professores no sistema”. Desenha‐se assim um ideal profissional ou de profissionalismo a enquadrar e orientar a profissionalidade docente, entendida esta como o conjunto de saberes, competências e atitudes necessárias ao exercício profissional. Não sei até que ponto é exequível uma formação tão ampla, sobretudo quando as preocupações de eficácia e medida parecem estar a empurrar a formação e a profissão para um extremar do tecnicismo controlador, imposto por um Estado que parece pretender descartar‐se de parte das suas funções e tornar‐se avaliador, como alerta Elliott no referido dossier de 2002. Não só denuncia que o detalhe das normas impostas para a avaliação da qualidade dos professores prejudica o seu “prestígio e a autonomia” como adverte que a preocupação de rentabilidade e competitividade pode determinar escolhas que levem a sobrestimar os custos em recursos humanos das práticas reflexivas dos professores e levar as instituições a uma formação puramente técnica. Julgo que esses alertas traduzem a luta essencial que se trava hoje na definição da profissão e profissionalismo docente e na construção das inerentes identidades profissionais. Cremos que a profissão docente é, em grande parte, construída social e historicamente pelos docentes, em interacção com o meio, com as suas possibilidades e constrangimentos. Pelas razões atrás expressas, a reflexão que a seguir apresentamos sobre a profissão docente e que constitui o objecto deste artigo não pretende prever o futuro, nem ter qualquer carácter prescritivo, pois compete aos leitores tirarem as ilações que entenderem. Essa reflexão incide sobretudo numa década e é algo subjectiva, pois não se baseia numa meta‐ análise sistemática e exaustiva do estado da arte. Transmite apenas uma visão construída com o apoio de alguns trabalhos de investigação, próprios e alheios, de contactos formais e informais com professores e centros de formação e de leituras várias que pude ir fazendo de trabalhos de investigação e de relatórios de organismos internacionais publicados nos últimos doze anos, que o espaço concedido a este artigo consente inventariar. Nos elementos recolhidos, possivelmente por limitações minhas, vejo mais a continuidade e o reforço de posições antagónicas sobre a profissão docente e a formação que a deve sustentar, do que perspectivas verdadeiramente inovadoras que permitam antecipar pontos de ruptura com o presente e antever mudanças futuras. 70
2 ‐ O EXERCÍCIO PROFISSIONAL NA ACTUALIDADE É natural que os professores que lutam diariamente por darem o melhor de si, ouçam com alguma desilusão e amargura as retóricas sobre a profissão e o seu “novo profissionalismo”, conceito ainda mal definido (novo em quê e desde quando?), mas apresentado como assente na autonomia, na prática reflexiva dos profissionais, no trabalho cooperativo e nas escolas como comunidades de aprendizagem. É que o contraste entre essas retóricas idealizadas e bem intencionadas e a realidade que se vive em muitas escolas não poderia ser maior. As actuais condições de exercício profissional, resultantes, em grande parte, do progressivo agravamento do economicismo dos sistemas educativos, a que a crise económica vivida em Portugal confere especial acuidade, reflectem‐se na concepção da profissão e do seu profissionalismo e traduzem‐se numa luta de contrários que se nos afigura de desfecho incerto e de que damos a seguir apenas alguns exemplos. Estabilidade / Precaridade Se, durante grande parte da 2ª metade do século passado, se poderia considerar a profissão docente relativamente protegida e estável, hoje a precaridade ameaça qualquer professor, independentemente do seu vínculo legal, da sua idade e experiência, semeando o mal estar, a angústia e a desmotivação. É também o cerne da sua identidade profissional e pessoal que é atingido, pois já não se sabe bem o que se é, quando se deixa de o ser e quando se voltará a ser. A insegurança joga com a motivação, afecta os percursos profissionais, altera as crenças e os interesses próprios dos diferentes estádios da carreira que se confundem e deixam de ser distintos nas suas preocupações (Day, 2010), exacerba a competitividade e cria mau ambiente em muitas escolas. Não é por acaso que uma das fontes de emoções negativas referidas por professores se liga por vezes aos colegas e ao clima relacional da escola. Definição / Indefinição de funções e papéis Há muito tempo que os professores são pressionados a exercer uma grande diversidade de funções e papéis, afastando‐os daquela função que melhor define a sua profissão: o ensino, seja entendido como transmissão de um capital cultural ou como organização da aprendizagem dos alunos. Essa diversidade multiplica responsabilidades e exigências, alargando excessivamente, em nossa opinião, o âmbito da profissionalidade. Tanta diversidade pode significar uma real indefinição que provoca um grande desgaste físico e emocional dos professores e afecta a sua identidade ao perder‐se de vista a função principal. Como testemunha uma das professoras entrevistadas por Amaral (2013), é grande a desmotivação e cansaço com o sistema “que exige um sem número de obrigações, que está sempre a mudar de orientações, a inventar novas regras. E assim desgastamo‐nos dia a dia. Saio da aula esgotada, enervada e sem ter feito aquilo que eu acho que sei fazer: ensinar”.
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Como tem sido frequentemente afirmado, a diversidade de papéis leva à intensificação do trabalho, à desqualificação, à proletarização do trabalho docente e ao sentimento de desprofissionalização, vivido por muitos professores e parece atingir particular acuidade nos professores de ensino especial (Madureira, 2012; Eliseu, 2012). Professor técnico / professor reflexivo Consideramos que o exercício de uma profissão tão complexa como a docente requere um conjunto de saberes e competências de ordem científica, técnica e prática. Se apontamos a oposição, professor técnico/ professor reflexivo, é porque ela fez caminho na literatura sobre a formação, sobretudo a partir dos anos 80, pela crítica e desvalorização da racionalidade técnica e pela sobrevalorização da racionalidade prática e emancipadora. Hoje essa oposição ganhou nova actualidade, embora em sentido contrário, isto é, os condicionamentos económicos e políticos têm conduzido a um sistema de ensino e de formação assentes na definição detalhada de objectivos, metas e competências. Sob um discurso socio‐construtivista legitimador, corre‐se o risco de um retorno a um neobehaviorismo encapotado e de vir a substituir a formação ministrada pelo Ensino Superior por uma formação de tipo artesanal baseada na prática adquirida na escola sob a supervisão de professores, a qual encontra defensores, sobretudo entre autores anglófonos. Pedagogia / burocratização Se a burocracia da organização escolar tem sido alvo de grande número de estudos e reflexões, a burocratização do trabalho docente é um tema progressivamente emergente da investigação ligada a outras temáticas, a partir dos anos oitenta. São exemplos a investigação sobre o encontro com a realidade docente, as fases da carreira, o mal estar docente, a ética profissional. Mas é tempo de a burocracia começar a ser considerada como um objecto de estudo de seu próprio direito. É necessário que as formas dessa burocracia sejam caracterizadas, o que começámos a fazer num estudo puramente exploratório (Estrela, 2011) de onde retiramos algumas citações que se seguem. Embora varie conforme os cargos e as escolas, o excesso de formalismo é, em geral, certamente uma das suas manifestações (“na minha escola há formulários para tudo, para todos os gostos”). Os seus principais efeitos são de diversa ordem. Longe da procurada racionalização e eficácia, com que se procura legitimar, a burocracia origina: ineficácia, afastando os professores da sua actividade pedagógica (“passamos o tempo mais a fazer este tipo de coisas do que a preparar aulas”); desgaste emocional (“tanto papel , tanto preenchimento, que muitos professores chegam a um ponto de irritação e cansaço profundo… estamos quase a explodir”); conflitos éticos (“no dia a dia estamos divididos entre o que estava certo e o que é certo aos olhos da lei”; “preparar as aulas ou preencher a papelada”); desmotivação e desejo de abandono da profissão pela perda de sentido da profissão. 72
Autonomia / normatividade Os discursos da autonomia da escola e da autonomia do professor, enquanto profissional reflexivo, construtor do seu conhecimento profissional e senhor do seu juízo profissional, choca com a realidade da avalanche normativa que se abate diariamente sobre a escola, condicionando a acção dos docentes e manifestando o desejo de tudo regulamentar e controlar, condicionando fortemente a liberdade de acção docente. Situação que não é exclusiva do nosso país, como atestam Day e Gu (2010) que evocam um relatório que refere que, em 2008, os professores britânicos receberam mais de 6000 páginas de documentos de trabalho. Autores há que falam de “fadiga sistémica”. Que nós saibamos, não existe semelhante contabilidade em Portugal, mas os professores portugueses queixam‐se de não ter tempo de consultar todos os despachos e circulares que semanalmente chegam às escolas, provenientes das mais variadas instâncias, e ainda menos tempo para as poderem interiorizar. Esse afã normativo e controlador aumenta a burocracia e pode ainda ser acrescido pelo zelo de directores de agrupamento e de escola que pretendem tudo prever e controlar com grande minúcia, esgotando os professores com tantas instruções, actas, relatórios e “procura de evidência”, parecendo “apostar em complicar o que deveria ser simples”, com prejuízo da sua autoformação e da vida familiar dos docentes. Essa falta sentida de autonomia tem originado reacções diferentes: por um lado, um reforço de uma concepção funcionalista da profissão, de certo modo securizante para o professor que se limita a ser um executor; por outro lado, o reforço da ideia de defesa de uma autonomia acrescida de uma profissão reflexiva e responsável pelas suas decisões profissionais (Paquay, 2012). Uma perspectiva diferente, tem reanimado a problemática da auto‐regulação profissional, com possível concretização numa Ordem, aspiração fortalecida em alguns países, entre os quais Portugal (Monteiro, 2012) Racionalidade / emotividade Apesar do carácter eminentemente relacional do acto pedagógico que levou durante muito tempo a desvalorizar as manifestações dos afectos de alunos e professores, influências várias (entre as quais poderíamos citar a psicanálise, os ataques da cultura pós‐moderna à razão e ao enaltecimento da emoção, as neurociências) que sublinham a complementaridade de razão e emoção, os problemas sociais que se projectam na escola e provocam em alguns docentes “a fadiga da compaixão” (expressão de Frigley, citada por Day, 2009) têm concorrido para que a dimensão emocional do ensino venha adquirindo um relevo cada vez maior. Na sociedade espectáculo, de emoções desordenadas, torna‐se premente a educação emocional dos alunos, para o êxito da qual é requerida a competência emocional dos professores. A aquisição dessa competência é um “novo repto“ da formação de professores (Andres Vitoria, citado por Estrela, 2010) e uma nova dimensão da profissionalidade e do profissionalismo docente (Lector, 2006) que se manifesta num leque 73
de competências tão variadas como a empatia, a capacidade de escuta, a auto‐regulação emocional…, competências revalorizadas e objecto de formação. Contudo, no nosso país, esse repto não tem sido levado muito a sério, em contraste com o que acontece na vizinha Espanha. É certo que, segundo legislação existente, o professor deve ser competente no plano relacional e emocional e que têm sido definidas competências emocionais dos alunos, alvo de avaliação. No entanto, continua a observar‐se uma separação dos domínios afectivos e cognitivos na educação escolar dos alunos e alguns estereótipos sobre a distância emocional que o professor deve manter e que não deve confundir‐se com capacidade de regulação emocional. Em estudos que não podem ser generalizados, dada a sua pequena dimensão, constatámos que uma pequena minoria dos nossos entrevistados mantinha a visão da necessidade de um afastamento emocional do professor e do ensino como um trabalho essencialmente racional. Mostraram dificuldades na discriminação dos seus sentimentos e nem todos estavam atentos aos sentimentos dos seus alunos, evidenciando necessidades de formação neste domínio. Educadores e professores do 1º ciclo mostram‐se mais envolvidos emocionalmente com os seus alunos do que os seus colegas dos níveis seguintes, onde a preocupação de racionalização do acto pedagógico é mais visível (Estrela, Bahia, Freire e Amaral, 2012). Uma pequena minoria (que poderá vir a aumentar como efeito perverso da avaliação tecnicista da qualidade de ensino, pela sobrevalorização do domínio cognitivo e a subestimação do afectivo) define‐se identitariamente como aquele que ensina. A maioria vê‐se como educador ou como professor e educador, matizes que indiciam diferentes identidades profissionais O que nos surpreendeu no discurso destes professores foi a prevalência da ética e da consciência das relações estreitas entre ética e emoções, a ética orientando a expressão das emoções e estas questionando a rigidez de alguns princípios éticos em situações específicas Estrela (2010). Assim, nos entrevistados que se reconhecem como educadores e educadores morais (sobretudo educadores de infância e professores do 1º Ciclo) sobressai nitidamente uma ética do cuidado, orientada para a satisfação das necessidades dos alunos, o que também os torna mais vulneráveis emocionalmente. Nos professores entrevistados dos níveis seguintes de ensino, manifesta‐se a procura de equilíbrio entre a ética do cuidado e a ética do dever e, no ensino secundário, esboça‐se uma ética dialógica que valoriza a essencialidade da comunicação e os consensos sobre os procedimentos a adoptar (Bahia, Freire, Amaral e Estrela, 2011). Prestígio / desvalorização social da profissão Longe vão os tempos em que a profissão docente gozava de grande prestígio social e o professor tinha um carisma assente no seu saber e exemplaridade da pessoa moral. Os últimos anos têm acentuado a mudança que se operou no reconhecimento social da profissão, intensificando‐se o efeito de factores de natureza vária que vêm dos meados do século passado. De forma aleatória, citamos alguns dos que parecem mais se fazer sentir no presente: a crise da escola na realização dos 74
seus objectivos de igualdade de oportunidades; a hostilidade de muitas famílias e alunos; estatutos dos alunos irresponsabilizadores; a banalização do uso da internet enfraquecendo a função de mediação cultural do professor; a crise de autoridade em muitos subsistemas sociais e que se reflectem no enfraquecimento da autoridade da escola e dos professores; afirmações públicas pouco dignificantes dos professores por entidades ligadas à Tutela que parecem não confiar no seu sentido de responsabilidade e de profissionalismo; algumas atitudes e comportamentos pouco profissionais, como o absentismo e quebras éticas de alguns professores que, sendo da responsabilidade de alguns, são objecto de generalização abusiva e, por vezes de exposição mediática, afectando o prestígio de toda a classe; mais recentemente, alguns cartazes menos felizes, por impróprios de pessoas educadas e cultas, que alguns professores exibiram nas legítimas manifestações públicas contra a Tutela, julgo que não favorecem a imagem dos professores (“são estes os educadores dos nossos filhos?”, ouve‐se dizer); e, sobretudo, a falta de qualidade de alguns professores, em grande parte fruto de deficiente formação profissional proporcionada por algumas escolas de formação que proliferaram no país, que não os prepara para uma profissão que, dado o carácter multicultural das escolas e os desequilíbrios sociais existentes, se tornou mais complexa, exigindo, para além da essencial competência científica e didáctica, maiores capacidades de relação interpessoal e inteligência emocional. 3 ‐ O PROFISSIONALISMO DOCENTE NUMA ENCRUZILHADA Esboçámos em traços muito gerais alguns dos actuais contextos que condicionam o exercício profissional e tornam incerto o rumo do seu futuro. Dos trabalhos de investigação próprios e alheios, que revisitámos, tiramos alguns indícios que permitem inferir o seu impacto nas identidades profissionais e no conceito de profissionalismo que as configura, o qual começa a revestir novas formas como resposta individual e grupal às mudanças das condições impostas do exercício profissional. Se as identidades múltiplas constituem um traço do homem pós‐moderno (como tem sido afirmado por muitos autores) e dada a estreita relação entre identidade, papel e auto‐imagem, é natural que os professores vivam de um modo particularmente intenso essa fragmentação que origina identidades polivalentes, capazes de “mobilizar um complexo de identidades ocasionais como resposta a contextos mutáveis” (Stronach e outros, 2002, citados por Day e Gu, 2010:193). Parece‐me que esta afirmação reforça a concepção de Ball, 1972 (citada por Madureira, 2012) de uma identidade docente “situada” e não “substantiva” aplicável a toda a classe docente, orientada por diferentes conceitos de profissionalismo. Tomando como base a teorização de Evetts (2009:23), podemos pôr a hipótese da existência de um contínuo entre duas formas opostas de profissionalismo: “organizacional” e “ocupacional”. Conformando‐se às imposições externas, muitas vezes com reserva interior, muitos professores correm o risco de se refugiarem
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num “profissionalismo organizacional”, descrito por Evetts como assente numa autoridade hierarquizada e burocrática, em procedimentos padronizados e critérios de sucesso operacionalizados pelos detentores do poder que são limitativos da autonomia dos professores. Parece‐me uma forma de total identificação com a função de ensino, de efeitos imediatos e visíveis e de procura de segurança e de reconhecimento do seu trabalho pelas chefias. Evitam, assim, que a eventual falta de reconhecimento social do seu trabalho acentue o desfasamento entre a “identidade para si” e a “identidade para o outro” (Dubar, 1997). Outros docentes, pelo contrário, tentam resistir a esses condicionalismos externos e a serem meros funcionários. Por exemplo, procuram e exploram algumas margens de liberdade ou, correndo alguns riscos, fazendo o que acham certo para o bem dos alunos, em vez de obedecerem cegamente a todos os normativos. Desejam mudar a escola, humanizando‐a e procurando fortalecer a sua resiliência pela pertença a associações profissionais (o Movimento da Escola Moderna, por exemplo, ou associações ligadas às suas disciplinas de ensino) e pela procura de formações assentes na partilha e cooperação entre pares. Aproximam‐se, assim, do ”profissionalismo ocupacional” a que, creio, poderíamos chamar colegial, caracterizado por Evetts como a procura de uma autoridade colegial baseada na cooperação e de uma ética colectiva, de onde decorrem as formas de regulação e controlo operacionalizadas pelos próprios professores. Em síntese, se quisermos falar com precisão do profissionalismo docente, será mais adequado e realista falarmos de profissionalismos, podendo pôr‐se a hipótese de um contínuo entre as duas formas referidas por Evetts e que julgo deverão entender‐se como ideias‐tipo. Os graus intermédios desse contínuo significarão uma procura de equilíbrio ou de síntese, a pender para um ou outro dos extremos. Tendo em comum o sentimento de compromisso, embora este assuma diferentes significados, essas formas de profissionalismo apontam para diferentes princípios de ética profissional, tendo subjacentes uma ética racionalista e universalista do dever ou uma ética contextualizada do cuidado que comportam diferentes matizes. Aliás, o pensamento ético‐deontológico dos educadores e professores está longe de ser uniforme. Num questionário aplicado a 1112 educadores e docentes de ensino não superior sobre o seu pensamento ético e deontológico verificou‐se que, embora haja valores comuns como o respeito, a lealdade, a verdade, justiça, já a hierarquia dos valores é bastante diferente: o valor que recolheu maior número de escolhas como sendo o mais importante foi a responsabilidade que congregou apenas 20,1% de votos. A análise em clusters feita sobre as respostas ao questionário, realizada por J. Marques, J. Moreira e P. Gamboa mostra uma gradação entre as posturas ético‐axiológicas e deontológicas dos inquiridos, desenhando quatro grupos que, simplificando, se distinguem pelo seu maior ou menor envolvimento na formação sociomoral dos seus alunos, pelo carácter racional ou intuicionista da sua ética mostrando, consequentemente, maior afastamento ou envolvimento emocional, pela maior ou menor aceitação de valores convencionais, pela assunção do seu papel
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de transmissores de valores ou pela sua recusa e apelo à reflexão autónoma dos alunos (Estrela e Caetano, 2010). E, porque, dada a complexidade de situações que enfrentam, vivem com frequência dilemas éticos, a maioria adere, embora com alguma ambiguidade, à necessidade de um código ético proveniente da classe, parecendo ignorar ou subestimar os deveres profissionais detalhados na revisão do Estatuto da Carreira de 2007. CONCLUINDO Apresentámos no início deste texto as actuais condições de exercício profissional como uma luta de contrários de desfecho incerto e que está a transformar o profissionalismo dos professores e a sua identidade pela imposição de uma orientação exageradamente racionalista e controladora do ensino, apesar dos discursos em contrário. Não obstante as actuais dificuldades, a desmotivação de alguns professores e a sua vulnerabilidade emocional e aceitação, por outros, de um profissionalismo organizacional, parece‐me poder inferir‐se que a consciência da dimensão cognitiva, ética e relacional da profissão serve de guardiã ao profissionalismo de grande parte dos professores que colaboraram nos estudos que consultámos. Não aceitando serem reduzidos a um papel essencialmente técnico e burocrático, esses professores sofrem com a sua falta de autonomia. Apesar de alguns problemas com os alunos que podem originar emoções negativas, tendem a ver neles a principal fonte de satisfação profissional. Pelo contrário, a Tutela e a relação com os encarregados de educação é frequentemente origem de emoções negativas, de insatisfação profissional e de dilemas morais. A esses professores dedicados aos seus alunos e preocupados com o seu desenvolvimento que julgam fazer a diferença, aplica‐se uma das conclusões que Day e Gu, já citados, tiram dos estudos que apresentam sobre as vidas dos professores que conseguem ser resilientes aos constrangimentos exteriores e fazer a diferença: “novas vidas, velhas verdades”. Essas novas vidas exigem um sentido apurado de profissionalismo como ideal de serviço aos seus alunos e à sociedade, construindo novas identidades e mecanismos de resistência a contextos adversos e lutando pela defesa da sua profissão. Decerto que os actuais contextos políticos e económicos, a precaridade do emprego e a competitividade que se vive nas escolas não favorecem a luta pelas mudanças que muitos professores desejam. Esses desejos vão no sentido oposto às tendências tecnicistas e burocráticas, indo no sentido de fortalecimento da sua autonomia, do reconhecimento pela Tutela da sua idoneidade, de alívio da carga burocrática que lhes é imposta, de tempos e espaços para o fomento de uma verdadeira cooperação entre pares, do acesso a uma formação centrada nos problemas vividos no seu quotidiano. Essas mudanças não dependerão fundamentalmente de si. Reconhecendo que, neste contexto, não é fácil correr riscos e que o conformismo é mais cómodo, os professores certamente têm consciência de que as mudanças dependerão também de si. Só um grande apego e uma reflexão colectiva dos professores sobre a sua profissão poderão mobilizá‐los para lutarem contra a sua 77
funcionalização, fazendo ouvir a sua voz junto dos poderes públicos pelos meios ao seu alcance, como os blogues e a imprensa escrita em que vários professores têm defendido os seus pontos de vista e alertado para os problemas criados pelas decisões governamentais. Parece‐me particularmente pertinente que essa voz, proveniente das mais diversas regiões do país, seja veiculada através de exposições frequentes aos órgãos de tutela que documentem bem, com casos concretos, a irracionalidade e a arbitrariedade de muitas medidas e os seus efeitos perversos e ponham em evidência as contradição entre as retóricas oficiais da autonomia do professor reflexivo e inovador, inserido numa comunidade de aprendizagem aberta ao meio e a negação das condições que possibilitariam sê‐lo. Os professores dispõem hoje da capacidade de criação de redes e fóruns de debate que as TIC facilitam. Creio que só com a conjugação de esforços que poderão envolver outros parceiros educativos e as escolas de formação, por vezes fechadas nas suas retóricas sem olharem para a realidade, os professores poderão conseguir que a sua voz seja ouvida e a sua credibilidade seja reconhecida. Poderão assim ajudar a corrigir o que reputo serem erros crassos do actual sistema que terão efeitos nefastos na educação das jovens gerações e, que, como é hábito, serão assacados aos professores. Se nada for feito, ficarão, cada vez mais, reduzidos a funcionários obedientes, subservientes, temerosos e acríticos, o que nem a ética profissional nem o exercício da cidadania consentem. Defenderem as suas condições de trabalho, mais do que defenderem o prestígio profissional, é defenderem a qualidade da escola e o bem dos seus alunos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, A. M. (2012). A Dimensão Emocional no Desenvolvimento do Professor. Tese de Doutoramento em Educação apresentada à Universidade de Lisboa. Lisboa: Instituto de Educação, Universidade de Lisboa. BRASLAVSKY, C. (2002). Des moyens insuffisants pour répondre à des besoins croissants. Unesco, Des enseignants pour le XXI siècle. Dossier 123, Perspectives, Vol. XXXII, septembre, p.1‐3. DAY, CH. E GU, Q. (2010). The New lives of Teachers. London: Routledge, Taylor and Francis Group. DUBAR, C. (1997). A socialização. Construção das identidades sociais e profissionais. Porto: Porto Editora. ELLIOTT, J. (2002). Les effets paradoxaux de la réforme de l’enseignement dans l’état‐évaluateur: Incidences pour la formation des enseignants pour le XXI siècle. Unesco, Des enseignants pour le XXI siècle. Dossier 123, Perspectives, Vol. XXXII, septembre, p.1‐20. ELISEU. M. P.(2012). Concepções e Práticas de Educadores de Infância enquanto docentes de educação especial. Tese de Doutoramento em Educação. Lisboa: Instituto de Educação, Universidade de Lisboa. 78
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AUTO‐REGULAÇÃO DAS PROFISSÕES DA EDUCAÇÃO: PORQUÊ?17 A. Reis Monteiro Universidade de Lisboa Uma profissão, na acepção sociologicamente mais densa do termo, tem o seu Corpo (saberes), a sua Alma (valores), o seu Lar (autonomia) e a sua Honra (prestígio). A profissão docente tem uma Alma grande, um Corpo em crescimento, mas não tem Lar próprio, na maior parte dos países do mundo, com prejuízo para a sua Alma, o seu Corpo e a sua Honra. Este texto argumenta, sumariamente, que o estatuto de auto‐regulação profissional é o Lar que falta à profissão docente. PROFISSÃO, PROFISSIONALIDADE, PROFISSIONALISMO Toda a ocupação (com algum reconhecimento social), através da qual alguém obtém licitamente os seus principais meios de vida é uma profissão com sua utilidade e dignidade, seja qual for a sua realidade. Há, no entanto, diferenças objectivas e uma diferenciação social das profissões. Distinguem‐se pelo seu grau de profissionalidade, um conceito que importa diferenciar de profissionalismo. Propõe‐se a distinção seguinte: •
Profissionalidade é um termo que pode ser utilizado para significar o perfil global de uma profissão, isto é, tudo o que a distingue de outros grupos ocupacionais. Os factores principais de nível de profissionalidade são os seguintes: o
Valor do serviço, isto é, a importância dos saberes de uma profissão para as pessoas e para a sociedade.
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As fontes principais deste texto são os trabalhos do autor sobre a matéria, nomeadamente: ‐ Auto‐regulação da Profissão Docente – Para Cuidar do seu Valor e dos seus Valores (Braga, Associação Nacional de Professores, 2010, 326 p.) ‐ Profissão Docente: Profissionalidade e Auto‐regulação (São Paulo, Cortez Editora, no prelo) ‐ Teaching Profession – Present and Future (ainda não publicado)
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o
Conteúdo identitário, formado pelos saberes, valores e qualidades que distinguem uma profissão e devem distinguir os seus profissionais.
o
Autonomia profissional, ou seja, a independência e responsabilidade com que a profissão pode ser individualmente exercida e colectivamente gerida.
o
Estatuto profissional e social, que resulta dos factores anteriores e se reflecte nos rendimentos, influência e prestígio da profissão.
Profissionalidade superior é a das profissões no sentido sociologicamente mais denso do termo: comunidades organizadas de pessoas com saberes muito especializados ao serviço de valores mais elevados, isto é, saberes aplicados à satisfação de direitos humanos e de necessidades fundamentais das pessoas e das sociedades. Por isso, são profissões com maior relevância, responsabilidade e reconhecimento sociais, nas quais, mais do que noutras, precisamos de poder confiar. Delas se espera que tenham um sentido de serviço superior ao seu legítimo interesse económico. •
Profissionalismo é um termo que pode ser utilizado para significar o exercício de uma profissão de acordo com o seu conteúdo identitário. As suas coordenadas são, pois, o grau de especialização e de exigência deontológica da profissão, tendo como bissetriz as qualidades dos seus profissionais. Assim compreendido, a súmula do profissionalismo está na unidade de ciência, consciência e excelência.
O Estado tem o direito e a obrigação de regular as profissões cujos serviços são vitais para as pessoas e para a sociedade, e outras que justifiquem regulação. REGULAÇÃO E AUTO‐REGULAÇÃO PROFISSIONAL A regulação das atividades económico‐profissionais é um domínio complexo. Entre a aparente não regulação (isto é, ausência de enquadramento legislativo) e a regulação direta pelo Estado, são múltiplas as suas modalidades. A regulação profissional consiste basicamente no controlo do acesso ao exercício de uma profissão, através da certificação e registo dos seus membros. Pode ser operada pela Administração Pública, directamente ou indirectamente, através de uma Agência/Autoridade criada para o efeito, mais ou menos independente, mas pode ser delegada na profissão, tornando‐se auto‐regulação. Auto‐regulação profissional é a regulação de uma profissão por membros seus. Pode ser privada, privada mas com reconhecimento oficial, ou pública. É pública quando realizada por um organismo com um mandato estatutário. O estatuto de auto‐regulação significa um contrato através do qual são conferidos a uma profissão poderes e funções de natureza pública, que ela se compromete a exercer dando prioridade ao interesse dos 82
destinatários dos seus serviços (clientes) e ao interesse público, isto é, cuidando de garantir que os seus serviços são prestados de um modo competente, ético, seguro, com a maior qualidade e pelo melhor preço. Inerente à ideia de auto‐regulação de uma profissão é a existência de um organismo independente cuja composição seja exclusivamente ou maioritariamente profissional. Mas não basta. De que vale uma maioria profissional sem poderes reais de decisão sobre as questões mais importantes para a profissão? As atribuições de um organismo de auto‐regulação profissional podem ser muito amplas ou as mínimas compatíveis com a ideia de auto‐regulação. A sua missão superior e mais árdua é adoptar e supervisionar o respeito de Normas Profissionais. Estas são normas que definem o objecto e serviços da profissão, identificam os saberes, valores e qualidades que a distinguem e devem distinguir os seus profissionais, e declaram as responsabilidades que assumem. São principalmente normas de formação, de prática e de conduta, instrumento central da auto‐regulação, nomeadamente a Deontologia ou Ética da Profissão. A Deontologia de uma profissão é um quadro normativo que proclama formalmente e publicamente os seus valores fundamentais, que são a fonte das responsabilidades profissionais, traduzindo‐os em princípios e deveres para com todos os seus interlocutores (de que decorrem também direitos). É a quinta‐essência de uma cultura profissional. Pela especificidade da sua normatividade, a adopção e supervisão do respeito de uma Deontologia devem ser uma responsabilidade da profissão, embora com a eventual participação de outras partes legitimamente interessadas. Entre Deontologia e auto‐regulação há, pois, uma relação de recíproca implicação. A efectividade das Normas Profissionais depende da sua justiciabilidade, isto é, da possibilidade de sanção das suas infracções. O poder disciplinar é o poder supremo de um organismo de auto‐regulação profissional, designadamente o poder de suspender ou excluir do exercício da profissão (‘pena de morte’ económica). O modo como é exercido é a pedra de toque da legitimidade e credibilidade da auto‐regulação. Se uma profissão se compromete com elevadas Normas Profissionais e o público sabe que pode queixar‐se de profissionais que não as respeitem, isso aumenta a confiança pública na profissão, que é o seu maior bem. As Normas Profissionais têm como finalidade principal a protecção do interesse dos destinatários dos serviços da profissão e da sociedade em geral, mas servem também para proteger os profissionais de interferências inaceitáveis no seu foro de competência e responsabilidade, assim como de acusações sem fundamento. E o exercício do poder disciplinar é tanto uma obrigação como um direito da profissão. ‐ É uma obrigação decorrente do princípio do primado do interesse público subjacente ao contrato de auto‐regulação, que implica a sanção da incompetência grosseira e da conduta imprópria dos membros da profissão.
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‐ É um direito, porque a sanção das infracções das Normas Profissionais é também do interesse da profissão, que deve poder defender‐se dos comportamentos dos seus membros que afectem a sua dignidade, honra e prestígio. Um organismo de auto‐regulação profissional não concorre com outras organizações profissionais, designadamente sindicais. Auto‐regulação e sindicalismo têm finalidade e legitimidade distintas. ‐ Uma associação sindical é uma instituição de Direito Privado cuja base jurídica é a liberdade de associação, tendo como fim principal a defesa dos interesses económico‐laborais dos seus associados. ‐ Um organismo de auto‐regulação profissional é uma instituição de Direito Público cuja base jurídica é um estatuto através do qual o Estado nele delega poderes e funções de natureza pública. A prioridade do interesse público traduz‐se, então, no primado das questões profissionais mais gerais, nomeadamente as que dizem respeito à competência e conduta dos membros da profissão, sobre as questões económico‐laborais. Por conseguinte, em princípio, os organismos de auto‐regulação profissional não podem envolver‐se em matérias do foro sindical, nem os Sindicatos podem assumir poderes públicos de regulação profissional. Todavia, os interesses profissionais e sindicais, bem compreendidos, são complementares. As profissões mais especializadas estão em melhor posição do que qualquer entidade governamental para cuidar do seu profissionalismo, com benefícios públicos, políticos e profissionais. No entanto, as profissões auto‐reguladas são bastante mais numerosas nos países anglófonos. EM PORTUGAL Entre nós, o Artigo 46º da Constituição da República Portuguesa, relativo à “Liberdade de Associação”, não menciona a possibilidade de auto‐regulação profissional, mas ela é abrangida pela figura das “associações públicas” (Corporaciones de Derecho Público, em Espanha, Enti Pubblici Associativi, em Itália), constitucionalizada pela primeira revisão constitucional, em 1982 (Lei Constitucional 1/82, Artigos 165.1.s, 267.1 e 267.4) (Estrutura da Administração). Associações Públicas são pessoas colectivas públicas, isto é, criadas pelo Estado para o exercício de poderes e funções de natureza pública. São diferentes dos Institutos Públicos por terem uma base associativa e serem entidades de Administração Autónoma, isto é, uma forma de participação dos administrados na Administração Pública através da auto‐administração. Em 2008, a Assembleia da República decretou um “Regime das Associações Públicas Profissionais” (Lei 6/2008, de 13 de Fevereiro), estabelecendo critérios para a sua criação, que foi revista pela Lei 2/2013, de 10 de Janeiro. 84
As Associações Públicas Profissionais mais típicas são as Ordens Profissionais. Jurídico‐administrativamente, uma Ordem é uma pessoa colectiva pública, para a prossecução de interesses públicos e privados. Há outra forma de auto‐regulação profissional em Portugal: a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, que é um organismo público sem atribuições de representação e defesa da profissão. A diferença essencial entre a figura típica da Ordem e a figura atípica da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista é a seguinte: a segunda não é exclusivamente corporacional, pois tem uma composição paritária de representantes da profissão e das entidades empregadoras, com um presidente exterior ao sector profissional (jurista). Há 16 Ordens e duas Câmaras profissionais. Em 2006, foi constituído um Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP) para substituir o Conselho Nacional de Profissões Liberais (CNPL), criado em 1989. Outros grupos profissionais aspiram ao estatuto de auto‐regulação (fisioterapeutas, técnicos da saúde, assistentes sociais, arquitectos paisagistas, arqueólogos, etc.). No que respeita à profissão docente, na maior parte do mundo a sua regulação é operada pelo Estado, directamente ou através de uma entidade dedicada. Mas já existe. Onde? Que resistências encontra? Quais os seus benefícios? AUTO‐REGULAÇÃO DA PROFISSÃO DOCENTE Nas últimas três décadas, foram publicados vários relatórios e estudos internacionais e nacionais sobre o estado da profissão e da educação. Entre as suas principais conclusões estão as seguintes: ‐ A qualidade da profissão está no coração da qualidade da educação. ‐ Todavia, a profissão docente tende para o declínio, na maior parte dos países do mundo. ‐ Formar, tratar e confiar nas professoras e professores como profissionais é essencial para elevar a qualidade da profissão e melhorar a qualidade da educação. Uma medida de confiança na profissão, em vários países, foi conferir‐lhe o estatuto de auto‐regulação. ‐ Há 22 organismos de auto‐regulação da profissão docente em 11 países de todos os continentes: Reino‐Unido, Irlanda, Malta, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Tailândia, África do Sul, Nigéria, Jamaica, Ilhas Fiji. O primeiro – o General Teaching Council for Scotland – data de 1965, mas a maioria deles foram criados na primeira década deste século, principalmente na Austrália, em cujos seis Estados e três Territórios a profissão é auto‐regulada (a excepção é o pequeno Território de Norfolk Island).
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‐ São geralmente conhecidos como Teaching Councils, mas têm denominações diversas: (General) Teaching (Teachers) Council, College of Teachers (Teaching) (Educators), Council for Educators, Teacher(s) Registration Board (Council), Institute of Teaching (Teachers). ‐ O seu perfil auto‐regulador é variável. Além da certificação e registo dos membros da profissão, os seus poderes e funções podem incluir os seguintes, nomeadamente: adopção de Normas Profissionais; acreditação dos programas de formação; exercício do poder disciplinar. O perfil mais elevado é o do General Teaching Council for Scotland (1965), do Ontario College of Teachers (1996) e do General Teaching Council Ireland (2000). ‐ As conclusões dos relatórios de avaliação do seu desempenho são globalmente positivas, recomendando, por vezes, o aumento dos seus poderes e funções, como foi o caso do General Teaching Council for Scotland que, a partir de Abril de 2012, se tornou completamente independente. ‐ Outros são esperados ou desejados. Por exemplo, a sua criação está em curso na Comunidade do Caribe (CARICOM), formada por 15 Estados Membros mais 5 Associados, e foi recomendada por comissões oficiais na Índia, Itália e Áustria. Se a auto‐regulação da profissão docente continua a ser excepcional, é porque encontra resistências. São resistências cuja causa principal está provavelmente no facto de ser uma profissão que se desenvolveu como uma categoria de funcionários públicos. São resistências de origem política e sindical: ‐ Os Governos, em geral, não querem perder o controlo de uma função social tão ideologicamente sensível e economicamente fundamental. ‐ Os Sindicatos, em geral, receiam a ‘concorrência’ de um novo organismo profissional representativo de toda a profissão. Da parte das professoras e professores pode haver também uma inércia e acomodação à condição de meros funcionários, preocupados sobretudo com os seus interesses económico‐laborais, e não tanto com a dignidade e prestígio da profissão. É uma atitude propícia a reacções defensivas perante mudanças cujos benefícios têm o seu preço. Atitude que pode ser aproveitada pelos detractores da auto‐regulação profissional. Contudo, se a profissão docente está numa espiral de declínio em tantos países do mundo, é porque a sua regulação directa pelos Governos não tem estado à altura das suas responsabilidades e dificuldades, nem as suas organizações profissionais, nomeadamente os Sindicatos, têm cuidado bem do seu Valor e dos seus Valores. Um flagrante sintoma do descuido da profissão é o facto de que, embora possa ser considerada como a mais ética das profissões, na maior parte dos países não tem uma Deontologia cujas infracções possam ser sancionadas. 86
Os argumentos e benefícios da auto‐regulação da profissão docente podem ser resumidos nas seguintes proposições: 1. A profissão docente é uma grande profissão, mas não tem uma grande profissionalidade. 2. Ninguém fará pelas professoras e professores aquilo que só elas e eles, individualmente e colectivamente, podem e devem fazer por si. 3. É do interesse da educação e da profissão distinguir tanto entre responsabilidades governamentais e responsabilidades profissionais como entre questões estritamente sindicais e questões mais amplamente profissionais. 4. Um organismo de auto‐regulação da profissão docente não concorre com as obrigações do Estado relativas ao direito à educação, nem com as funções dos Sindicatos na defesa dos interesses dos seus associados. 5. Um organismo de auto‐regulação da profissão docente é uma instância superior de participação e decisão sobre algumas questões centrais para a profissão e para a educação 6. A auto‐regulação da profissão docente é uma via de apropriação de poderes que deixam de ser exercidos por entidades tutelares e passam a ser exercidos ‘inter pares’. 7. A auto‐regulação profissional é um privilégio que a profissão docente deve querer e merecer ter. 8. Com a sua auto‐regulação, as professoras e professores ganham uma profissão. 9. Por conseguinte, a profissão e a educação nada têm a perder – e muito podem ganhar – com a auto‐ regulação profissional. 10. Em todo o caso, a auto‐regulação profissional não é um ‘Abre‐te Sésamo’…
O argumento mais irrefutável em favor da possibilidade e benefícios da auto‐regulação no campo da educação é este: já existe, com sucesso e continua em expansão. CONCLUINDO A profissão docente tem, hoje, saberes e valores que lhe conferem uma identidade, uma autoridade e uma responsabilidade que transcendem o quadro de dependência e obediência em que tem sido geralmente exercida, justificando o reconhecimento da sua autonomia como profissão e maior autonomia para os seus profissionais, se forem seleccionados e formados com a exigência que a sua responsabilidade requer, que é a responsabilidade pelo bem mais precioso para cada ser humano, qualquer sociedade e toda a Humanidade: a sua educação. 87
Em Portugal, não há impedimentos jurídico‐constitucionais à criação de um organismo de auto‐regulação no campo da educação. Embora as Ordens sejam a forma mais típica de auto‐regulação profissional, não é a mais adequada às características da profissão docente. Deve ser um organismo de tipo anglo‐saxónico, com um perfil auto‐regulador elevado, composto de profissionais que representem o melhor que tem a profissão e incluindo membros não profissionais que sejam um valor acrescentado. A auto‐regulação profissional é uma insígnia de profissionalidade. A profissão docente não poderá ser uma profissão no sentido sociologicamente mais denso do termo sem um organismo profissional que seja: •
Corpo da sua unidade
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Rosto da sua identidade
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Voz da sua autoridade
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Guardião da sua integridade
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Profeta do seu futuro
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EDUCAR NA RESPONSABILIDADE Manuel Curado Universidade do Minho Educar é uma actividade que tem fascinado a Europa desde o tempo de Homero. O que os Gregos pensavam sobre o assunto revela‐se na viagem do jovem Telémaco, filho de Ulisses, à procura de notícias do pai. Esta lição já tem muitos séculos, mas continua a ser um ponto de referência. Educar é fazer uma viagem à procura de sábios que guiem a pessoa, como o velho e experiente Nestor; é descobrir os mistérios do mundo, indo ao encontro de desafios e oportunidades para conseguir um nome famoso; e é aceitar o auxílio do sobrenatural, deixando‐se guiar por Mentor, que de facto era a deusa Atena disfarçada. Como os poemas épicos que educaram a Grécia derivam de cantos orais da Idade do Bronze, aí pelo século XV a.C., é possível dizer que o problema da educação na Europa já tem mais de três milénios. Isto significa que é pouco provável que se possa acrescentar algo de original a um tema tão importante. É possível, contudo, reparar nas diferenças entre as duas épocas históricas. Hoje já não se diz que o jovem educando deverá procurar sábios, talvez porque se duvida da existência de sábios; descobrir os mistérios do mundo foi substituído pelo desejo de uma vida confortável possibilitada por uma educação de alto nível; a procura pela excelência que faz sobressair o indivíduo foi desvirtuada pela procura do sucesso a todo o custo; e aceitar o auxílio sobrenatural deixou de ser assunto da educação formal, para passar a ser, no melhor dos casos, uma procura privada pelo sentido da existência. Se há alguma coisa de comum a perspectivas apartadas por três milénios, é a responsabilidade, no sentido originário de capacidade de responder. Educar é a actividade humana que procura potenciar a capacidade de responder aos desafios da vida da melhor maneira que for possível numa determinada época. É este, pois, o assunto que merece uma reflexão renovada a todas as gerações de educadores e de educandos. O que é educar com capacidade de responder? É a esta pergunta que se irá tentar responder. Esta é uma época em que não é fácil pensar estas coisas. Por um lado, a riqueza da tradição dificulta a procura de perspectivas novas. Por outro lado, a capacidade de responder parece apontar para uma educação meramente técnica, no ensino básico e secundário, e meramente politécnica, no ensino superior. O nível de desenvolvimento tecnológico da sociedade contemporânea faz com que a melhor resposta aos desafios que
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coloca pareça ser exclusivamente técnica. Deste ponto de vista, a pessoa bem‐educada é aquela que compreende a civilização tecnológica em que vive, e que sabe, por conseguinte, solucionar problemas que derivam dessa tecnologia. As receitas que têm sido dadas pelos programas oficiais portugueses das últimas décadas apontam para uma educação deste tipo. Apenas alguns exemplos recentes. O Inglês começa logo nos primeiros anos de escolaridade porque é, ao que se diz, uma resposta a um mundo que precisa de uma língua universal de comunicação. O ensino das línguas clássicas é prejudicado porque não corresponde, alegadamente, às necessidades do mercado de emprego. Há muitos cursos técnico‐profissionais porque, ao que parece, o mercado precisa deles. Portugal teve desde 1974 tantas reformas do sistema de ensino que apenas uma pequena enciclopédia as poderá inventariar a todas. O mercado obedece aos ritmos frenéticos das modas e das tendências. Uma actividade social estável e com referenciais perenes é uma anomalia inaceitável para uma governação que tem um pensamento totalmente dominado pelo mercado. A corrosão dos referenciais perenes já está muito avançada, mesmo nas áreas do grande mundo da educação que sempre foram imunes à mudança. Os professores são avaliados na sua carreira por critérios que talvez sejam adequados a uma fábrica, mas que são ultrajantes para a dignidade profissional do magistério. Mesmo os professores do ensino superior público português trabalham em instituições que têm manuais de qualidade, como qualquer fábrica, e vêem a sua actuação profissional ser avaliada anonimamente por inquéritos junto dos alunos, como se se tratasse de uma sondagem permanente de popularidade das suas pessoas e das suas disciplinas. Nada pode escapar à lógica do mercado. Se o respeito pela autonomia dos professores se limita a uma retórica postiça, a esfera privada dos intervenientes na educação começa a ser conquistada pelos modelos da vida transparente da televisão e do cinema. Começa‐se, como sempre, pelos currículos e pelos conteúdos lectivos; depois, passa‐se para os professores dos primeiros ciclos de ensino; mais tarde, promove‐se a invasão do ensino superior, violando toda a tradição académica. Veja‐se um exemplo desta lógica. Foi introduzida a educação sexual no ensino básico e secundário porque, desde o final do século XIX, a corporação dos médicos tenta dominar todos os aspectos da vida das pessoas.18 Para eles, a pessoa normal é apenas uma promessa da
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No âmbito do programa do Primeiro Ciclo de Escolaridade, destacam‐se os conteúdos ‘identidade sexual’, no 1º ano, e a ‘função reprodutora/sexual’, no 3º ano (ver 1º Ciclo Ensino Básico, Organização Curricular e Programas, Lisboa, Ministério da Educação, 2004, 4ª ed., pp. 105 e 108). No âmbito do Ensino Secundário, destaca‐se o conteúdo ‘educação para a saúde e sexualidade’, estabelecido pelos diplomas legais Lei nº 60/2009, de 6 de Agosto, e Portaria nº 196‐A/2010, de 9 de Abril (ver Orientações Curriculares, Formação Cívica, 10º ano, Lisboa, Ministério da Educação e Ciência, 23‐11‐2011, p. 12). Estes conteúdos são sinais de uma época. Curiosamente, até mesmo no Programa de Educação Moral e Religiosa Católica, Ensinos Básico e Secundário (Lisboa, Comissão Episcopal da Educação Cristã, 2007) estão presentes os conteúdos temáticos ‘amor, amizade e sexualidade’ e ‘dimensão afectiva e sexual’ (pp. 37 e 85).
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pessoa que virá a estar doente mais tarde ou mais cedo. A educação sexual, e também a educação física, realizam hoje os programas dos higienistas sociais de Oitocentos. A medicalização completa da vida humana está na sua agenda e é provável que apareçam no futuro outras manifestações dessa guerra pelo domínio completo da vida das pessoas. Não é improvável que o ensino secundário português venha a ter disciplinas de Educação Emocional, Educação das Crenças e, até, de Educação Política. Como a esfera privada dos educandos e das suas famílias foi violada pelos agentes educativos do Estado, é provável que se siga esta orientação no que diz respeito à esfera privada dos professores dos vários níveis de ensino. Estes sinais, que poderiam ser facilmente aumentados, transmitem de imediato a mensagem que a educação com responsabilidade já está muitíssimo pensada nas mais altas esferas da governação da República. Todo o ensino oficial português tem tido nas últimas dezenas de anos a preocupação de criar um sistema de ensino que consiga responder ao que os governantes entendem como decisivo – o mercado. Tudo indica que esta situação só pode continuar. Não há sinais de que esteja para breve repensar este percurso. Nada indica que uma outra visão do sistema de ensino esteja para aparecer. Trata‐se de uma tendência muito velha de um país que já teve um século de ouro mas que depois sentiu que o futuro acontecia noutros países. O movimento dos Estrangeirados do século XVIII mostra a obsessão por Portugal ser ‘moderno’. O século XIX aumentou ainda mais essa obsessão. O Portugal de Fontes Pereira de Melo queria ser ‘moderno’ em tudo. O século XX não poderia ser excepção; como era previsível, tanto no início da República, quanto nos últimos anos, o ensino oficial só quer ser moderno. Como se vê, há mais de três séculos que a educação portuguesa tenta agarrar um carro que vai à sua frente. Há três séculos que o modelo de ensino oficial português é o da mão estendida, é o modelo do pedinte: fazer com que os filhos estendam a mão para que nela seja colocado qualquer coisa de que têm supostamente necessidade, de tal modo que consigam agarrar o carro que vai sempre à frente deles. Perante isto, há que dizer que a intenção é boa. Quando se repara no dinheiro que o orçamento de Estado outorga à Educação, vê‐se de imediato que o esforço colectivo é colossal. Mas também é necessário colocar ao lado destas coisas boas muitas outras menos boas. É necessário dizer que a receita não está a funcionar, e que ninguém gosta de ser pedinte do que quer que seja. Uma educação baseada na menoridade de um povo nunca poderá funcionar. Parece nunca ter passado pela cabeça dos governantes que a receita tem de ser outra; não pode ser a de pedintes de uma coisa estrangeira que se está sempre a afastar e que nunca se agarra suficientemente. Se alguém não concordar com esta visão, só em privado pode fazer alguma coisa. As famílias que procurarem outra formação para os seus filhos têm de fazer elas próprias as diligências necessárias para isso. É uma batalha quotidiana contra um sistema que não cria felicidade a ninguém. Se criasse e se funcionasse, nada haveria a dizer. Infelizmente, não é esse o caso, a despeito do esforço colectivo muito oneroso que os Portugueses dedicam ao assunto. 91
Porquê? Se há três séculos que a educação portuguesa procura ser suficientemente moderna e não o consegue, de onde vem a esperança de que o irá conseguir num futuro próximo? Se há três séculos as pessoas que passam pela educação portuguesa estendem a mão para um conhecimento que alegadamente lhes irá dar ‘capacidade de resposta’ às exigências da Modernidade, de onde vem a convicção de que o presente e o futuro poderão fazer melhor do que esses três séculos? A oferta de Jacob de Castro Sarmento de um microscópio à Universidade de Coimbra tornou‐se um símbolo poderoso. Têm sido três séculos disto, não apenas no ensino superior mas também nos outros graus de ensino: oferecer bens materiais para melhorar a educação e reformar o que existe. Já se ofereceu tanto à educação e já se reformou tantas vezes! Os governantes estão sempre, aliás, a fazer isso mesmo, e todos ficariam surpreendidos se não acontecesse mais do mesmo. Infelizmente, este caminho não tem coração e não leva a lado nenhum. Há algo profundamente errado neste modo de olhar para a educação. A responsabilidade deve ter em conta pontos de referência mais importantes do que os mercados, do que os bens materiais que parecem faltar e do que qualquer nova moda para reformar a educação. A vida humana não se resume aos mercados nem ao desejo invejoso de ter a vida confortável que os outros povos parecem ter. Estes aspectos desempenham um papel relevante na vida das pessoas, mas não um papel exclusivo. Veja‐se, pois, como se pode colocar em perspectiva estes assuntos muito complicados. I ‐ FORMAÇÃO COM ALMA Em primeiro lugar, a educação tem a agenda maravilhosa de formar na íntegra a pessoa, e não de lhe dar apenas competências técnicas. Em certo sentido, o sistema educativo português desistiu de formar pessoas. Se o sistema anda sempre à procura do microscópio que falta, ou das instalações que não são adequadas, ou da reforma que está para vir, perdeu‐se o sentido último da educação, que é a formação integral da pessoa. Esta é uma perda muito grande. E a tragédia colectiva é tanto maior quanto muitas famílias delegaram a tarefa de formar as instituições que já não estão vocacionadas para isso. Não pode ser coincidência que as excepções que ainda se encontram estejam em actividades que têm obrigatoriamente de formar os seus profissionais, e não apenas de os educar ou de lhes transmitir informação. O ensino da Medicina é uma destas maravilhosas excepções. Ninguém pode ser um bom médico só por saber o que está nos tratados; é necessário formar as virtudes médicas: a reserva, o segredo, a confiança, a dignidade, a dedicação total aos pacientes, a dureza perante a adversidade. O ensino do Direito foi muito estragado pela facilidade com que se montaram os cursos, mas ainda é possível encontrar a formação ao lado da educação, com as virtudes dos jurisconsultos: a dedicação ao cliente, o respeito perante os magistrados, a actualização constante do conhecimento e a utilização ponderada da Lei. Estas excepções mostram que ninguém pode ficar contente com a mera transmissão de conhecimentos sem um quadro de valores que lhes dê sentido. Sem valores e sem tradições, 92
nada há de duradouro. No ensino secundário português há também excepções muito interessantes que permitem reconhecer imediatamente o aluno que nelas foi formado. A capacidade de trabalho dos alunos de alguns colégios é conhecida por todo o país; o Instituto Militar dos Pupilos do Exército e o Colégio Militar formam pessoas cujo carácter é respeitado; os hábitos de estudo dos alunos de outros colégios são conhecidos. As escolas que desistiram de formar não são, pelo contrário, conhecidas. As escolas que educam mas não formam são fábricas de conhecimento, mas não entram na alma de ninguém, nem dos alunos, nem dos profissionais que lá trabalham, nem das pessoas que contactam com os que lá aprenderam. Uma instituição educativa tem de ter uma alma. Mais do que os conteúdos leccionados, o que ficará para o resto da vida dos alunos é essa alma. Décadas depois de saírem da escola que os formou, é muito provável que já não se lembrem desta matéria ou daquela; mas será impossível apagar os valores de rectidão e os hábitos de trabalho. Dizendo de outro modo: a educação pode desaparecer, mas não a formação. II ‐ A ALMA TEM UMA IDENTIDADE As pessoas têm e merecem ter identidade. O ataque à identidade na nossa época vem de várias frentes. Apesar de Portugal ser um país que fala uma língua novilatina, não há nenhum apoio especial ao ensino das raízes da própria língua e cultura. Se os Portugueses não vieram de sítio nenhum, não têm identidade cultural própria. Isto é surpreendente, sobretudo quando se repara que países não novilatinos, como a Alemanha e a Finlândia, atribuem às línguas clássicas um peso que deixa envergonhados os educadores portugueses. Os professores do ensino superior já se vão habituando, infelizmente, a encontrar alunos a quem Camilo, Eça de Queirós e os outros clássicos da língua nada dizem. Que referências obrigatórias da cultura ainda apareçam, como os autores greco‐latinos ou a Bíblia, é uma esperança que todos os dias se vê que não tem fundamento. Toda a educação deverá ser acompanhada pela cultura que dá identidade, que ajuda a pessoa jovem a desenhar os traços do seu próprio rosto. Este é um desafio infinito, certamente, mas cada professor deverá abraçá‐lo no seu campo de intervenção. Talvez uma aula de Informática possa começar por uma referência à resolução de problemas de modo criativo, seguindo o exemplo de Ulisses, o herói de mil artifícios. Muitos exemplos de conciliação do perene com o efémero poderiam ser dados, mas, como é evidente, só se tenta a conciliação se se conhece o perene; caso contrário, o efémero faz desaparecer toda a formação. É obrigação de todos os educadores fazerem muito melhor a este respeito do que as orientações que lhes chegam de Lisboa. Estas orientações há muito tempo que se esqueceram das raízes do que importa. 93
III ‐ OBJECTOS TRANSFIGURADOS A cultura portuguesa teve sempre uma grande dificuldade em lidar com as profissões humildes. A cultura superior nunca valorizou o pequeno ofício. É difícil encontrar alguém que consiga dizer rapidamente meia dúzia de nomes de grandes mestres artesãos que tenham trabalhado no Mosteiro da Batalha, no Palácio de Mafra, ou na construção do Palácio da Ajuda. Mesmo as pessoas mais cultas não têm vontade nenhuma de saber quem foram os mestres das indústrias da pedra, do vidro, do móvel, do cabedal, do livro e da porcelana, só para dar alguns exemplos. Este é um sinal de como a educação portuguesa está a planar muito alto, demasiado longe da vida que as pessoas vivem efectivamente. Este é um problema de muitos países ocidentais mas que se manifesta de um modo especialmente dramático na cultura educativa portuguesa. Tudo sabe a pouco. O universo da educação não é excepção a este respeito. Os jovens sonham em vir a ser advogados, médicos ou engenheiros, e não parece haver ninguém que aspire a fazer uma porcelana perfeita, ou um móvel elegante, ou um trabalho em metal que possa rivalizar com uma armadura de um príncipe renascentista ou com uma espada samurai. Esta situação promete muita infelicidade porque significa que se vive ao lado do real, no meio de conceitos abstractos. Falta um pouco do modo japonês de olhar para o mundo. Todas as terras têm jardins e jardineiros, mas já não se sabe como transformar essas artes em vias de acesso ao Espírito. Há muitas pessoas que bebem chá, aqui e em muitas partes do mundo, mas a perfeição na arte do chá e a compreensão de que está aí um caminho que pode levar ao Espírito é coisa completamente distante do entendimento contemporâneo. Isto é uma anomalia porque, precisamente, a cultura ocidental está cheia de exemplos de amor profundo pelo domínio de um objecto ou de um instrumento, qualquer que ele seja. Onde está o chá, ou onde está o jardim japonês, é possível colocar o vitral das catedrais da Idade Média, a arte dos metais dos metalúrgicos do Renascimento, e a arte do móvel do século XVIII. O domínio do instrumento e do objecto é uma batalha infinita que está na origem da civilização europeia. O poeta grego Píndaro cantava os atletas que, contra todas as expectativas, venciam as competições. Quando se vence uma competição de um modo improvável, só se pode ver aí uma manifestação do Espírito. Os Gregos, de que todos os Portugueses são herdeiros, tinham a noção de areté para denominar a excelência que é possível alcançar em pequenos aspectos da vida: a areté de um guerreiro, a areté de um músico, a areté de um médico, a areté de um estadista. Um violino ou um piano não são apenas instrumentos musicais; são vias de acesso ao mundo do Espírito. O que mais surpreende ao olhar para a educação que se tem em Portugal é ver nela uma colecção de brinquedos para crianças mimadas. O microscópio de Castro Sarmento foi multiplicado por milhares de instrumentos, mas nada parece ser suficiente para as crianças mimadas. A fatia do orçamento de Estado para a Educação é das mais generosas. Biliões de euros são todos os anos injectados nessa actividade, mas nunca é suficiente. Os educandos podem ter aulas de música, mas não têm nenhum mestre que puxe por elas e que lhes mostre que uma banal flauta é uma via de 94
acesso ao Mistério. Podem ter desporto na escola, mas não há nenhuma exigência para o domínio espiritual dessas actividades. Podem ter trabalhos manuais ou oficinais, mas nunca lhes passa pela cabeça que um trabalho em barro, metal ou madeira os pode tornar inesquecíveis. Há oficinas, há barro, há metal e há madeira; o drama dos estudantes portugueses é, contudo, terem perdido a ligação com o Espírito. Falta um olhar grego e japonês sobre as coisas, um modo de reparar que tudo é terra de conquista, que tudo pode ser transfigurado pelo trabalho humano – a pedra tosca, o metal rude, o vidro banal, o violino velho, o jogo desportivo. Existiu essa grande tradição no Ocidente com os modelos greco‐latinos, com a vida monástica, com as artes mecânicas do Renascimento, com os mestres de ofício do século XVIII, mas foi lançada fora. A sua falta faz‐se sentir penosamente. Este é um grande desafio para qualquer escola de tamanho médio. Curiosamente, é um desafio que está ao alcance das pessoas envolvidas no processo educativo. Não é necessário o microscópio caro de Castro Sarmento nem mais uma reforma. Apenas é preciso respeito pelo trabalho humano e a crença em que esse trabalho pode transfigurar qualquer objecto. Um mestre artesão é um bem no nosso mundo. As pessoas vivem rodeadas de objectos produzidos em série e que não alimentam a sua ânsia de perfeição. Os objectos únicos atingem preços incalculáveis junto dos conhecedores. Não se vê muita gente a falar sobre isso, talvez porque a cultura pública nacional só se satisfaz ao serviço das ordens dos estrangeiros. A receita é a de voltar aos objectos. A religião dominante do povo português transmite exemplos notáveis de razoabilidade. O Salvador quando fez alguns dos Seus milagres não os escreveu no azul do céu nem alterou a posição das montanhas. O pão modesto, o peixe que é sempre igual e o vinho que está em todas as mesas foram os objectos transfigurados pelo Espírito. As oficinas escolares dos estabelecimentos de ensino portugueses precisam também de Espírito. Que o trabalho de metais, o projecto eléctrico, a encadernação de livros antigos, o móvel e tantos outros objectos sejam iluminados pelo trabalho humano. O amor pelas artes que produzem objectos poderia ser um dos mais nobres projectos educativos que uma escola pode abraçar. O mundo iria ver esses objectos com muita atenção. Um automóvel não custa milhões de euros, mas um violino Stradivarius pode custar milhões de euros. IV ‐ DESISTENTES Se durante três séculos os estudantes portugueses andaram como pedintes atrás da esmola da Modernidade, com a obsessão doentia de serem modernos como os outros povos, isso significa que deixaram de fazer a sua própria civilização. O que parece aos pais e educadores portugueses digno de constituir um conteúdo para a educação dos seus filhos é o que vem de fora. Os Portugueses abdicaram de fazer uma cultura própria e um modo de viver que possa ser considerado uma civilização. Estão tão afastados desse ideal que qualquer sugestão nesse sentido só pode ser recebida com incredulidade. E, no entanto, poder‐se‐ia perguntar, por que 95
razão vivem como desistentes, com uma cultura emprestada, com uma civilização que lhes é imposta sem que tenham algo a dizer? No tempo da Geração de 70, Eça de Queirós dizia que a cultura chegava de Paris em caixotes transportados pelo comboio; hoje chegam formas de viver pela televisão e pelo computador que ofendem as pessoas bem‐formadas, sem nada se poder fazer, aparentemente. Os filhos dos Portugueses sabem mais de história norte‐americana do que de história portuguesa e os seus sonhos não têm muito a ver com a terra que luta por eles. Isto é um absurdo completo! Os Portugueses são desistentes e já desistiram de fazer uma civilização própria! Os que desistem de fazer a sua própria civilização têm de aceitar a civilização dos outros, quem quer que sejam. Há uma civilização portuguesa, mas a questão não se coloca aí. Mesmo que não houvesse nenhuma civilização portuguesa, é imperativo dos educadores trabalhar na convicção de que existe uma ao alcance dos seus esforços. Se não há uma, é obrigação de cada um criá‐la! Quando se viaja por essa Europa fora, repara‐se facilmente nos sistemas educativos que presumem uma civilização nacional. Não se sabe se há uma civilização basca; mas sabe‐se que os Bascos vivem com o desejo intenso de a construir. Não se sabe se há uma civilização catalã, mas sabe‐se que os Catalães exigem a ideia de uma civilização catalã. A Rússia pós‐comunista poderia ter‐se tornado mais uma terra sem identidade própria; as máfias e todos os outros vícios do Ocidente entraram lá, mas há uma alma russa que não se perdeu. O Japão recebeu contra a sua vontade as coisas do Ocidente estrangeiro; trabalhou‐as para os seus fins e nunca vendeu a sua alma. A China, apesar de se ter tornado a fábrica do mundo, manteve a sua identidade própria. Os exemplos poderiam facilmente continuar. Hoje Portugal educa os seus filhos como se não tivesse alma própria e uma alma nacional. O país fez um mau negócio, e vai levar muito tempo até conseguir endireitar a sua espinha. É provável que já não consiga. V ‐ UMA CULTURA FÍSICA TOCADA PELO ESPÍRITO As boas artes marciais tinham de desaparecer do nosso panorama educativo porque todas as coisas do Espírito também desapareceram, tendo ficado uma educação mediana que só dá para se ser um bom operário nas fábricas da Alemanha ou na construção civil de França. Um tabuleiro de xadrez, umas sapatilhas desportivas, um pedaço de barro, um bloco de madeira, um pincel, um jardim, uma cozinha, um arranjo floral ou um computador são portas de acesso ao Espírito. A boa educação tem de colocar na alma dos jovens a missão nobre da transfiguração da matéria. Um país que nasceu durante as campanhas esforçadas contra o mundo do Islão teve o auxílio das ordens monásticas militares. A arte da espada deveria ser o desporto nacional português, e não o entretenimento inglês a que se chama futebol. Os pseudo‐educadores portugueses não têm nenhum sentido do Espírito e a esgrima parecer‐lhes‐ia coisa violenta. Uma espada é como um violino ou uma equação matemática: existe para auxiliar as pessoas a iluminar a matéria por dentro. A educação física portuguesa é como toda a outra educação: um hambúrguer MacDonald’s para se ir vivendo uma vidinha emprestada. A espada não está nos currículos escolares; a equitação também não; o varapau do Norte nunca 96
marcou presença; a nobre arte do arqueiro é coisa que nunca se cultivou seriamente; a vela é uma ausência chocante num país com tradições riquíssimas de marinharia. Tudo isto causa espanto. É praticamente impossível existir um estabelecimento de ensino na nossa época, qualquer que seja o seu nível, sem ter um edifício dedicado ao exercício físico. Estas coisas derivam dos erros do século XIX, das teorias pseudo‐científicas que afirmavam que a raça estava degenerada, e das teorias também erradas que se propunham resolver esse problema inexistente com higiene social, com educação física e com medidas de profilaxia eugénica. Estes erros deram origem ao exercício físico escolar. Esta coisa boa, contudo, é como o microscópio que Castro Sarmento ofereceu à Universidade de Coimbra: vem de fora e não tem nenhuma ligação à alma lusitana nem ibérica. Essas actividades colectivas sem alma nunca darão felicidade a ninguém. É devido à natureza das coisas que assim seja. Seria desejável ter uma educação física com desportos que dissessem alguma coisa às pessoas que vivem nesta parte do mundo. O mar diz muito; os rios dizem muito; as florestas dizem muito; as planícies dizem muito. Não existem desportos escolares para nada disto; talvez existam algumas excepções a este diagnóstico, mas não são relevantes. A educação portuguesa começará a ter alma quando desaparecerem as actividades norte‐americanas e inglesas dos ginásios portugueses. Se não se tiver criatividade suficiente para redescobrir as riquíssimas tradições lusitanas e ibéricas, ainda há o património greco‐latino a que sempre se pode recorrer. VI ‐A CULTURA VEM DA TERRA Falou‐se de desporto, mas é possível generalizar esta questão educativa a outros domínios. A educação que hoje se dá aos jovens portugueses não tem terra, não tem raízes, não pertence a sítio nenhum. Estudar em Braga ou Guimarães é a mesma coisa que estudar em Coimbra, Lisboa, Beja ou Funchal. Não há qualquer ligação forte à terra. As cidades fluviais não aproveitam esse facto para as suas actividades; a educação física secundária não quer saber disso para o remo, a canoagem ou a vela. Só lhes importa desportos que não dizem nada à alma do povo português e que não exprimem o seu espírito. As pessoas foram levadas a pensar que os entretenimentos estrangeiros do futebol e do basquetebol são para todos os povos. Misericordiosamente, as pessoas foram poupadas à qualificação que se deve acrescentar: entretenimentos para todos os povos colonizados ou sob protectorado. As lezírias e as grandes planícies do Sul têm óptimas condições para a equitação; como não se vêem de Lisboa, é como se o assunto não existisse. O Centro e o Norte têm bons locais para orientação, para alpinismo e para espeleologia. Como também não se vêem do Terreiro do Paço, é como se não existissem. O ensino oficial está de costas voltadas para todas essas oportunidades de se promover uma educação com alma. A verdadeira educação vem da terra porque a cultura também vem da terra. O exemplo do desporto deve, pois, ser alargado a todas as matérias relevantes. Seria bom ver uma aula de Matemática a leccionar trigonometria com o auxílio dos edifícios históricos. Seria bom que as aulas de História de todo o país incluíssem sempre um módulo sobre a história local do município onde as pessoas vivem, valorizando os muito
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esquecidos autores de monografias locais. O limite é a imaginação. Uma educação sem terra onde tenha raízes só dará o triste espectáculo da emigração. As pessoas vão‐se embora porque, atormentadas pela procura do pão, não têm nenhuma fidelidade à terra que as viu nascer. Não há nenhuma razão para que este destino triste atormente cada geração de Portugueses como se fosse uma lei da natureza. Muitos países mais pequenos e mais pobres em recursos naturais não entendem a emigração dos seus filhos como uma inevitabilidade. Os poderes que estão em Lisboa sempre toleraram esse cancro da história portuguesa; bem vistas as coisas, esse cancro até lhes deu jeito para disfarçar a sua incompetência como governantes. Os Portugueses fora de portas não fazem estragos nem pedem coisas. Esta sangria constante tem de terminar. A educação que se está a dar aos jovens não está a resolver o problema. Os cursos superiores são baratíssimos em Portugal, mas custam muitíssimo aos contribuintes portugueses. Os licenciados já não estão para se contentarem com um nível de vida pouco confortável; como receberam uma educação sem raízes na terra portuguesa, vai daí que embarcam apressadamente para o estrangeiro. Não se esperaria outra coisa de crianças mimadas. VII ‐ CONVERSÃO DOS EDUCADORES Perante este diagnóstico educativo pouco convencional, que nada quer saber das estatísticas do Ministério nem de rankings internacionais, o que fazer? As tradições religiosas atribuem um papel muito importante à conversão. Com a Educação, é necessária também uma conversão. Mais uma reforma educativa não conduzirá a sítio nenhum. As reformas são coisas que funcionários que não conhecem nem a Vida nem o Espírito se entretêm a fazer nos seus gabinetes das 9 às 5 da tarde. Nunca será uma coisa séria. Muitas mais reformas aparecerão no futuro. Nada de bom há a esperar delas. Far‐se‐á muita coisa para nada. É necessária a conversão dos educadores. Essa conversão começa quando se repara que não se está a ser feliz com a educaçãozinha que se recebe e que se anda a transmitir. Se as pessoas se sentissem felizes, então deveriam continuar a fazer o que se tem andado a fazer em Portugal nos últimos três séculos. Como se sentem infelizes, talvez seja altura de agarrar no livro, ou no violino, ou no microscópio, ou na espada, ou na bola, ou na aula, ou na oficina, com outros olhos. A pergunta inicial era a de como educar na responsabilidade. Agora a resposta é evidente. Se por ‘responsabilidade’ se entender a capacidade de responder, cada família e cada instituição educadora tem de decidir a que é que a educação que propõe irá responder. Pode fingir‐se que o assunto é muito complexo e que há muitos parâmetros a considerar. Nada disso. A questão é maravilhosamente simples. Trata‐se de escolher entre viver com a espinha dobrada ou com a espinha vertical. Trata‐se de escolher entre uma educação de pedinte e uma educação de senhor. Trata‐se de viver uma vida emprestada ou de viver uma vida própria. Trata‐se de escolher entre usar os objectos ou tomar‐se cada objecto como uma porta de acesso à luz do Espírito. Colocar a luz nessa escuridão é o único fim da educação. É a isso que se pode chamar educar na responsabilidade. 98
A PROFISSIONALIDADE DOCENTE: NOTAS PARA UMA REFUNDAÇÃO REGENERADORA José M. Lemos Diogo Adjunto do secretário de estado do ensino e da administração escolar A profissionalidade docente sendo influenciada pelos paradigmas em que se apoia (a profissionalização e o pensamento dos profissionais) é, em boa parte, uma construção social que resulta das relações entre os atores e os palcos em que se desenrola a sua atividade profissional, uma vez que é no diálogo permanente que os docentes estabelecem com a prática e com os seus pares que estes constroem e incorporam os significados e as culturas profissionais que dão sentido aos seus atos. A profissionalidade docente é um objeto científico que tem sido alvo de grande número de trabalhos e de estudos, um pouco por todo o mundo, e que adquire uma importância renovada na atualidade. Neste quadro, o presente artigo pretende fazer um exercício reflexivo sobre o tema no quadro das tendências atuais de mudança. SOBRE O CONCEITO A profissionalidade docente é um conceito polissémico que estabelece um diálogo com os conceitos de profissão, de profissionalização e de profissionalismo docente (Roldão, 2005; Goodson, 2008) que, apesar de apresentarem uma semântica distinta, são conceitos com uma genealogia comum relacionada com a atividade profissional dos professores. A profissionalidade constitui uma deriva terminológica do conceito de profissão, mas apresenta um caráter mais amplo e abrangente que este, ao incorporar as especificidades individuais na profissão. O exemplo típico é o da autoridade científica que, confrontado em aula com os seus alunos, se converte num sujeito com dificuldade em transmitir o conhecimento e de fazer com que os alunos aprendam. Este docente incorpora as características da profissão, mas tem uma limitação individual que configura uma profissionalidade problemática, pelo que a noção de profissionalidade está assim associada ao conceito de competência.
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As limitações nas caraterísticas individuais são, em regra, pelo menos parcialmente ultrapassadas com o processo de profissionalização19 através do qual o professor irá construir a sua profissionalidade. A profissionalização corresponde, assim, a um investimento num projeto que envolve a busca de recursos e um status característico de um grupo profissional. O desenvolvimento profissional associado à profissionalização é dinâmico e acontece ao longo da vida, e alimenta‐se muito de processos exógenos e extrínsecos ao sujeito, enquanto a profissionalidade, acontece dentro dele e tem uma dimensão intrínseca ao sujeito. Por outro lado, o profissionalismo é em boa parte «aprendido, construído e necessariamente sustentado no ambiente de trabalho na escola» (Goodson: 2008: 132) e reporta‐se à «definição que os professores fazem das práticas do seu grupo de pares e das formas de concretizar a arte e o ofício de ensinar» (Goodson: 2008: 210). A profissionalidade remete, assim, para o tipo de desempenho e de saberes específicos da profissão docente: o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que corporizam a especificidade de ser educador (Nóvoa, 1992). O conceito de profissionalidade diz, assim, respeito «ao conjunto de valores e saberes e os respectivos princípios e modos operativos que integram o conjunto dos elementos participantes na definição dos critérios de competência dos professores, os quais são historicamente construídos, dinâmicos, sujeitos a debates de natureza política e ideológica e envolvidos em determinações que não são totalmente endógenas ao grupo profissional, mas dependem do estado, dos sistemas periciais, das instâncias de formação de professores» (Sarmento, 1994: 80). Como nos esclarece Contreras (1997: 51) a profissionalidade refere‐se «às qualidades da prática profissional dos educadores em função daquilo que requer o ofício educativo», ou seja, «falar de profissionalidade significa não só descrever o desempenho do ofício de ensinar, mas também expressar valores e pretensões desejáveis, de alcançar e desenvolver a profissão e a autonomia destes professores». A profissionalidade docente corresponde assim a um processo dinâmico e permanente de construção de uma identidade profissional docente, e neste sentido refere‐se ao que é próprio da profissão, à forma de a viver e de a desenvolver resultante da dialética entre as condições do quotidiano vivido e as expectativas criadas. Profissionalidade é, deste modo, o «conjunto de atributos, socialmente construídos, que permite distinguir uma profissão de outros tipos de atividade, igualmente relevantes e valiosas. (…) implica igualmente a retomada do sentido, do revigoramento e da alegria da opção de ser professor” (Roldão, 2005: 108).
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A profissionalização é no entanto um processo que não se confina a um momento, mas acontece ao logo da carreira no diálogo com a teoria, com os pares e com o exercício profissional quotidiano, razão pela qual, e de modo similar a Roldão (2008), preferimos o termo desenvolvimento profissional ao de profissionalização.
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A profissionalidade é algo que transcende o exercício profissional e se confunde com a experiência de vida e integra os modelos docentes marcantes no processo de socialização, os percursos de formação inicial e de profissionalização ou formação em serviço, bem como as experiências vividas nas escolas e as interações com os pares, convertendo‐se, assim, «num dos eixos de afirmação de uma profissão e um dos fatores maiores da sua autonomia» (Montero, 2001: 130). PARA UMA REGENERAÇÃO DA PROFISSIONALIDADE DOCENTE Feita a clarificação conceptual, importa referir‐se que a profissionalidade docente se complexifica sempre que se considera a pulverização teórica inerente aos diferentes paradigmas e escolas de pensamento que lhe estão associados. A profissionalidade é neste quadro, um conceito dinâmico em construção e reconstrução permanente, em função do pensamento científico, filosófico e político e da mutabilidade social. Em pleno séc. XXI, as mudanças anunciadas na profissionalidade docente parecem não passar disso mesmo, não obstante as regularidades estudadas e divulgadas por Huberman (2007) in Nóvoa org. (2007: 46‐7) acerca dos ciclos de vida dos docentes, designadamente dos seus sete estádios de evolução20.
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Designadamente: 1. A entrada na carreira ‐ ocorre nos dois ou três primeiros anos de ensino, e constitui uma fase de exploração que pode ser limitada pelas imposições de uma horário reduzido, ou a falta do trabalho colaborativo; 2. A fase da estabilização – um estádio do comprometimento da tomada de responsabilidades de assunção da sua identidade profissional, de desenvolvimento de um sentido de pertença a um corpo profissional e com uma sensação geral de segurança e de descontração; 3. A fase de diversificação ‐ o estádio da consolidação pedagógica, e de maior motivação e empenhamento na busca de novos desafios dentro da profissão; e que pode também originar questionamento, tranquilidade ou distanciamento; 4. A fase do questionamento – situado mais ou menos a meio da vida ativa, este estádio resulta da rotina e corresponde a uma fase de algum desencanto associado quer a fracassos de experiências, a mudanças na organização, a mudanças políticas e económicas, a reformas estruturais, e também a alterações na vida familiar, levando os docentes a questionarem‐se sobre a possibilidade de opção por outras carreiras; 5. A fase da serenidade e distanciamento afectivo ‐ ocorre por volta dos 45 anos de idade, e corresponde a um estádio de serenidade em que o docente se assume tal como é e não como os outros desejariam que ele fosse e corresponde a uma espécie de reconciliação entre o eu ideal e o eu real; nesta fase pode verificar‐se uma descida de ambição e do nível de investimento na profissão relacionado com as diferenças geracionais entre professores e alunos, devido às diferenças etárias e consequentes subculturas; 6. A fase do conservantismo e lamentações – um estádio que acontece por volta dos 50 ou 60 anos de idade, marcado pela queixa e pela reclamação recorrente em relação aos alunos, à política educacional ou aos colegas mais jovens e que muitas vezes se associa ao avanço da idade, à proximidade da reforma, à nostalgia do passado e que podem ser agravados por fatores de ordem pessoal. 7. A fase do desinvestimento ‐ associada ao ciclo de vida humano, trata‐se de uma fase de interiorização no final da carreira profissional; as pessoas começam a dedicar mais tempo a si próprias e aos interesses exteriores à escola; muitas vezes, a seguir à fase de serenidade, podem entrar diretamente num processo de desinvestimento, tanto a nível pessoal como institucional; a desilusão pode levar as pessoas a fugirem e refugiarem‐se no seu jardim; o desinvestimento pode processar‐se de uma forma serena ou de uma forma amarga; não podem ser descuradas, tanto as pressões sociais, como a evolução fisiológica; finalmente o autor aceita esta fase como um descomprometimento em relação à profissão.
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Sem pretensões de exaustividade, apresentam‐se de seguida algumas ideias que parecem essenciais na regeneração da profissionalidade docente e na consequente reconfiguração das suas culturas, valores, crenças, hábitos, usos e costumes: 1. AUTONOMIA DOCENTE E REFLEXIVIDADE PRÁTICA Porventura, um dos mais perversos e perigosos sintomas da crise da profissionalidade docente relaciona‐se com as retóricas em torno da autonomia docente, já que em cerca de duas décadas e meia de vida, e que tantas vezes adquire a forma de uma “automatia” condicionada e encarando o docente como uma peça da engrenagem de matriz taylorista, cada vez mais sujeita a mecanismos de controlo e prestação de contas que constrangem burocraticamente a profissão e a profissionalidade. Vivemos e trabalhamos em contexto e, consequentemente, a autonomia de que dispomos é sempre relativa e não se confunde com independência. Neste sentido, a autonomia profissional não é mais do que a forma de gestão das múltiplas dependências com que diariamente nos confrontamos na sociedade, na escola ou até em casa e relaciona‐se com o poder da decisão sobre a atividade desenvolvida. Mas construir e aprofundar a autonomia profissional, sendo uma das dimensões nucleares da profissionalidade docente, implica a capacidade de evoluir de uma racionalidade técnica instrumental para uma racionalidade prática de reflexividade e de crítica construtiva e esclarecida sobre a profissão e a prática profissional em contexto. De facto, a grande lição que retiramos da literatura sobre a reflexividade é o de que «não aprendemos diretamente da experiência, mas sim da reflexão (sistemática, analítica) que sobre ela fazemos» (Diogo et al, 2011: 96). O professor reflexivo ‐ «reflective practioner» (Shön, 1983; Zeichner, 1993, Alarcão, 1996) ‐ centra‐ se assim no seu contexto imediato, no trabalho do dia‐a‐dia e procura «compreender para regular, optimizar, ordenar, fazer evoluir uma prática particular a partir do seu interior» (Perrenoud, 1999: 14), sendo que o valor da prática reflexiva se determina «pela qualidade das regulações que ela permite operar e pela sua eficácia na identificação e resolução dos problemas profissionais» (Perrenoud, 1999: 14). A reflexão desenvolve a capacidade de autoanálise e autocrítica, bem como o potencial de desenvolvimento e de inovação e, neste sentido, facilita as «transições ecológicas» (Bronfenbrenner, 1979; Alarcão & Roldão, 2010) indispensáveis ao desenvolvimento profissional e à (re)construção da profissionalidade docente. O exercício reflexivo exige assim do sujeito, competências de aprendizagem de um saber escutar‐se, ou da capacidade de projetar‐se num espelho permitindo a observação distanciada de si. Autonomia e reflexividade são assim características e condições de uma profissionalidade docente que não se refugia nas retóricas imobilísticas e desculpabilizadoras que caracterizam os discursos e as práticas de quem adopta um discurso de mudança para que tudo fique na mesma.
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2. INTENCIONALIDADE PLURIREFERENCIALIZADA A profissionalidade docente é, por outro lado, indissociável de uma intencionalidade plurireferencializada a um conjunto de elementos que a enquadram e lhe conferem sentido. A ação pedagógica nunca é neutra e exige, não apenas, o conhecimento das teorias da aprendizagem dos modelos pedagógicos, como dos diferentes aspectos técnicos que os enquadram e os concretizam. Neste quadro, o docente é confrontado com decisões complexas e difíceis já que, não existe uma pedagogia ou uma didática que seja igualmente eficaz para a diversidade dos jovens e dos modelos cognitivos de cada um deles. Em educação não há receituários, não há uma tecnologia educativa que se possa aplicar com bons resultados à diversidade dos jovens que constituem uma turma, uma vez que esta se carateriza por uma diversidade de microcosmos cognitivos, relacionais, emocionais, culturais (…), cuja gestão não se compadece com pedagogias normalizadas do tipo “one size fits all”. Por outras palavras, a profissionalidade docente exige que o docente seja muita mais do que uma peça da engrenagem e atue com consciência e intencionalidade na concretização das opções educativas que melhor servem as finalidades do sistema, mas também a sua concepção do mundo, da educação e do cidadão que esta visa ajudar a concretizar. Tanto a literatura científica e pedagógica, como os princípios em que se apoiam muitas das reformas e mudanças educativas, nos mostram que a educação se carateriza por apresentar finalidades ambíguas e objectivos problemáticos e que a linha dominante de hoje dá lugar, por mero ato legislativo, a uma linha diferente amanhã e, o docente não raras vezes, vive nesta dúvida e incerteza permanente tornando‐se num gestor do efémero. Que perfil de cidadão ajudar a construir? Hoje o especialista, amanhã o generalista; hoje o sábio, amanhã o competente; hoje o cidadão, amanhã o trabalhador; hoje a normalização, amanhã a diversidade; hoje o processo, amanhã o resultado; hoje a facilidade, amanhã o rigor; hoje a comunidade, amanhã o mercado... Nesta gestão do efémero, o docente converte‐se numa espécie de alquimista pedagógico, co‐construtor de profissionalidade que não pode deixar de se reger pelos princípios genéricos em que se apoia a Constituição da República Portuguesa e a Lei de Bases do Sistema Educativo numa conduta que com ética, rigor e exigência eleja a centralidade do aluno como o grande destinatário dos processos pedagógicos, tendo em vista a formação de um cidadão detentor de um perfil adequado à diversidade, complexidade e mutabilidade que caraterizam as sociedades ocidentais. Os quatro grandes pilares que constituem os alicerces da educação para o século XXI (Delors, 1995) não só mantêm inegável atualidade, como sintetizam bem a natureza dos desafios que escolas e professores têm pela frente: i) aprender a conhecer, ii) aprender a fazer, iii) aprender a viver junto, iv) aprender a ser. No plano pedagógico, porém, estes pilares fazem sobretudo sentido quando pautados pela focalização na qualidade dos
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processos de aprendizagem com a melhoria dos resultados escolares em mente, num quadro de rigor e de exigência. 3. COLABORAÇÃO E SENTIDO DE COMUNIDADE É abundante a literatura sobre a importância da colaboração como um elemento estruturante na construção e desenvolvimento da profissionalidade, como forma de quebrar o isolamento que durante décadas caracterizou a cultura e as práticas docentes. A colaboração está assim longe de se poder confundir com um simples exercício de retórica transformado em slogan dos tempos que correm, mas é uma exigência da profissionalidade docente e um traço identitário a construir, revelando‐se uma indispensabilidade prática tendo em vista a busca permanente de melhores ideias e soluções para os problemas da aprendizagem, da educação e da formação dos nossos alunos. Não basta, portanto, advogar a colaboração e insistir nos intramuros por mais vidrados que eles sejam, importa sobretudo convertê‐la em pratica quotidiana já que é na captação da imaginação do outro que se forjam melhores soluções para os problemas. A colaboração é o antípoda do individualismo e diverge de uma retórica que adota o discurso conveniente da voga e que pouco faz para além da perpetuação das práticas conservadoras e individualistas do passado. Neste quadro, a colaboração desafia, imagina, inventa, constrói, inova e é a base de um pensamento e da prática de uma profissionalidade docente consentânea com as exigências dos tempos que correm. A colaboração é também diferente de partilha que com ela tantas vezes se confunde, já que esta é mais do domínio da troca e da transação e pode até nada acrescentar para lá da mera divulgação (veja‐se o exemplo de muitas das modernas tentações facebookianas). A colaboração é de outro nível, o nível da dádiva e da co‐ construção ou, se se preferir, de uma construção em comum resultante da interacção e da mobilização das sinergias, das competências e das ideias dos sujeitos e atores que colaboram. A colaboração significa pois uma busca incessante e intencional em evoluir do eu para o nós, no quadro quotidiano de cada escola, com os alunos e a aprendizagem como o objecto central. Como é do conhecimento geral, o discurso não é novo e todos conhecem as alusões a conceitos sustentados na colaboração como os de comunidade educativa, de comunidade aprendente ou comunidade de aprendizagem, de comunidade de conhecimento, de comunidade profissional, de comunidade profissional de aprendizagem, de comunidades de prática, entre outros. Neste quadro, a comunidade concretiza‐se através da colaboração e exige, por um lado, sentimento de pertença, segundo o qual o indivíduo se assume como parte de um todo e coopera tendo em vista uma finalidade comum com os demais membros (i.e. carácter corporativo, sentimento de comunidade e projeto comum) e, por outro lado, exige permanência como condição essencial para o estabelecimento das relações 104
sociais estáveis. A recuperação do conceito de comunidade transporta‐nos deste modo, para um “paraíso perdido” cujo sentimento de pertença remete os atores para uma espécie de «círculo aconchegante» (Bauman, 2003), mas também como o espaço das relações intersubjetivas caracterizadas pela «predominância do afectivo, do imaginário e do espiritual» (Boudon e Bourricaud, 1990: 83). Neste sentido, os membros de uma comunidade implicam‐se em pertenças múltiplas e estão embutidos em diferentes esferas de relações sociais umas potencialmente produtoras de cultura, outras geradoras de aculturação e acomodação no sentido do reforço da coesão social interna. A comunidade apoia‐se, pois, em finalidades comuns e na adesão a um sistema de valores comuns, bem como na participação como forma de assegurar a gestão dos assuntos comuns. Acontece que aqui não estamos a falar de conceitos mas de práticas e, portanto, o que nos interessa é, não a comunidade em si, mas o agir comunitário que a carateriza, isto é, a forma transpessoal das relações entre os homens, cuja essência é constituída pela existência de uma obra comum que os une entre si e que os projeta no futuro. Efetivamente, é no quadro de ação da comunidade que ocorrem os processos de interação que, através da prática, têm o poder de construir soluções inovadoras, ao mesmo tempo que aprofundam a construção de novas identidades que são condição urgente na regeneração da profissionalidade docente. 4. NOVAS TECNOLOGIAS E REDES DE PARTILHA Independentemente do momento histórico que uma civilização ou sociedade atravessa existem sempre tecnologias que emergem como novas e inovadoras e relativamente às quais, pelo salto qualitativo que possibilitam em muitas situações, a profissionalidade docente não pode deixar de incorporar. A lista é longa e a evolução gigante se se compararem os tempos do giz e do quadro negro de ardósia com a realidade atual. As TIC (tecnologias da informação e da comunicação) são hoje a realidade que porventura mais e melhor caracterizam a sociedade em que vivemos e que mais influencia e marca a vida nas novas gerações desde a mais tenra idade. A mudança dos tempos dificilmente deixará de mudar também as vontades e, a incorporação plena das TIC na profissionalidade docente é uma exigência que não deixará de acontecer num tempo muito próximo, sob pena das nossas escolas se afastarem de forma drástica daquilo que é o movimento incontornável da evolução da sociedade, das culturas, das organizações e dos processos operatórios associados a todas as áreas da nossa vida comum na sociedade, na escola, na família, nos amigos… Neste quadro, a utilização das TIC no ensino e na gestão das escolas (nas suas diferentes áreas e valências) deixaram de ser o futuro, para se converterem na urgência do presente. Naturalmente, que não se advoga aqui a sua utilização cega em consequência da adesão ao “milagre” tecnológico ou a utilização das TIC para reproduzir modelos gastos herdados do passado. Pelo contrário,
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precisa‐se de “PEDAGOGIZAR” a utilização das TIC no contexto da sala de aula, investigar, compreender e disseminar modelos e procedimentos indutores de maior eficácia e qualidade que revolucionem os processos pedagógicos e didáticos. O potencial da utilização pedagógica das TIC, não está na tecnologia, mas sobretudo no que se faz com ela, isto é, na exploração das suas potencialidades formativas. Por outras palavras, importa evoluir da tecnologia para a pedagogia, pensando pedagogicamente a sua utilização e utilizando‐as em conformidade na melhoria da qualidade dos processos de ensino, na exploração criativa da mais‐valia de motivação que têm junto dos alunos, de modo a desenvolver processos de inovação orientados para a melhoria da qualidade da aprendizagem e dos resultados escolares. Quando falamos de inovação falamos de apelo à imaginação, à invenção, à criatividade pedagogicamente sustentada, à busca de novas soluções para os problemas, mas também e sobretudo da “descoberta” das respostas mais adequadas a cada situação e a cada contexto real e que requerem uma busca consciente e intencional de oportunidades para melhorar e melhor servir quem aprende. As plataformas adaptativas e as redes e comunidades de aprendizagem apoiadas na Web, constituem uma ferramenta fundamental não apenas no aprofundamento das interações, através do envolvimento nas atividades e da comunicação, mas também na participação e construção conjunta do conhecimento. Estas redes e comunidades proporcionam assim «um modelo de actividade que se caracteriza pela passagem do individual para o cooperativo, pela implicação mútua dos membros da comunidade na experiência e partilha das representações, na construção e reflexão sobre o novo conhecimento.» (Dias, 2001). A profisisonalidade docente terá assim de se abrir a elas e de as incorporar sob pena de se esclerosar e de se auto‐excluir de um movimento que já não tem retorno. CONCLUSÃO: A sociedade da informação e do conhecimento é uma sociedade que evolui a um ritmo jamais alcançado na história da humanidade e, todos sabemos o papel que a educação e os professores desempenham na construção dos futuros desejados nos planos civilizacional, social, económico (…). Esta vertigem exige que a profissionalidade docente se converta em processo de desenvolvimento contínuo tanto no plano axiológico como no campo das competências necessárias ao exercício da profissão. Se a sociedade evolui e reconfigura os seus valores, princípios e os seus modos de pensar e de agir, exerce‐se uma pressão adicional e mais exigente sobre a educação e os docentes que, não raras vezes, angustia e deprime pela incompreensão dos sentidos da evolução, pelo frequente desencontro com as expectativas criadas, pela contradição dos princípios difundidos e as práticas legisladas e incutidas, com a contradição entre as necessidades sentidas e realidades vividas, pela incapacidade imediata de resposta, ...
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A profissionalidade docente é assim uma construção mediatizada pelos valores, pelas necessidades sociais, pelo currículo e pelo saber técnico e pedagógico que se associa à sua concretização. Num século em que está cumprido um oitavo da sua duração, não podemos continuar a apregoar o que importa vir a fazer não se sabe quando. É pois urgente passar à prática e refundar e regenerar a profissionalidade docente, adequando‐a aos novos tempos e ao que dela se espera: •
Comprometimento político numa ótica de transformação e não de reprodução do status quo;
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Obrigação moral e responsabilidade social comprometida com os valores da sociedade humanista e democrática, de tolerância e de respeito pela liberdade e pelo outro;
•
Irrepreensibilidade ética e integridade nas condutas individuais de modo a enfrentar com sucesso a concorrência desleal de uma sociedade agressiva, violenta e difusora de culturas desviantes e perigosas;
•
Autonomia no exercício da profissão num quadro de respeito pelas condições gerais do sistema em que se desenvolve o trabalho;
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Competência técnico‐pedagógica que combine conhecimento científico e conhecimento pedagógico e didático num técnico multifacetado simultaneamente especialista e generalista;
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Humildade intelectual e capacidade permanente de atualização e desenvolvimento profissional;
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Retorno à sala de aula, ao ensino e à aprendizagem e à centralidade dos resultados obtidos;
•
Generosidade, sentido de dádiva e de entrega aos alunos e ao bem‐comum;
•
Implicação em dinâmicas de avaliação orientadas para a melhoria das práticas profissionais dos docentes, da qualidade do ensino e dos resultados escolares dos alunos.
A profissionalidade docente e o exercício da profissão é hoje também sujeita a condicionantes externas importantes, sobretudo porque não escolhe as condições em que realiza o seu trabalho e apenas, de modo muito ténue, tem a capacidade de interferir na sua melhoria e ou desenvolvimento. Neste quadro, advoga‐se a construção de uma profissionalidade do(c)ente “com c”, uma profissionalidade que sendo feita de autonomia e reflexividade, de intencionalidade plurireferencializada, de colaboração, de mobilização das TIC, entre outros, se afirma mais capaz de enfrentar, com sucesso, a complexidade dos problemas que hoje afetam a profissão, as escolas e os alunos. Se assim não for abrem‐se as portas para uma profissionalidade do(c)ente “sem c”, isto é, de uma profissionalidade doente.
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Em pleno séc. XXI, a profissionalidade docente exige mais competência, mais investimento da qualificação profissional dos professores, mais intencionalidade no trabalho e no projeto que lhe confere sentido, mais responsabilidade e responsabilização no exercício do seu trabalho, mas também mais reconhecimento profissional e social. Sem docentes não há educação de qualidade, e a educação de qualidade é condição e garantia de um futuro melhor! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALARCÃO, I. (1996) Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Porto: Porto Editora. ALARCÃO, I. & ROLDÃO, M. (2010) Supervisão: Um contexto de Desenvolvimento profissional dos professores (2º Edição). Mangualde: Edições Pedagogo. BAUMAN, Z. (2003). Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. BOUDON, R. & BOURRICAUD, F. (1990) Dictionnaire Critique de la Sociologie, Paris: Press Universitaires de France (3º ed.). CONTRERAS, J. (1997) La autonomia del professorado, Madrid: Morata. CONTRERAS, J. (2002) A autonomia de professores. São Paulo: Cortez. DELORS, J. (1995) A Educação um Tesouro a Descobrir ‐ Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Porto: Edições Asa DIAS, P. (2001) Comunidades de Conhecimento e Aprendizagem Colaborativa. Comunicação apresentada no Seminário Redes de Aprendizagem, Redes de Conhecimento, Conselho Nacional de Educação, Lisboa, 22 e 23 de Julho de 2001; In http://www.prof2000.pt/users/mfflores/teorica6_02.htm DIOGO. J. ET AL, (2011) Avaliação do Desempenho Docente: Um Guia para a Ação. Lisboa: Lisboa Editora. GOODSON, I. (2008) Conhecimento e vida profissional: estudos sobre educação e mudança. Porto, Porto Editora, pp. 2009‐222. HUBERMAN, M. (2007). O ciclo de vida profissional dos professores. In A. Nóvoa (org.), Vidas de professores (pp.78‐110). Coleção Ciências da Educação. Porto, Porto Editora. MARQUENSIN, D. (2012) Os espaços de formação e a constituição da profissionalidade docente: o estágio e o ensino da Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Dissertação de Doutoramento apresentada na Pontífica Universidade Católica de São Paulo; In http://www4.pucsp.br/pos/edmat/do/tese/denise_marquesin.pdf em 20 Março de 2013. 108
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FORMAÇÃO ÉTICO‐DEONTOLÓGICA DE EDUCADORES DE INFÂNCIA Joana Marques Instituto de Educação ‐ Universidade de Lisboa INTRODUÇÃO O presente artigo incide na análise de alguns dos resultados de um círculo de estudos que realizámos no âmbito do estudo mais amplo do nosso mestrado, sobre o tema da ética e deontologia da profissão docente com um grupo de 12 educadoras de infância de um agrupamento de escolas de uma zona rural da região de Lisboa e Vale do Tejo. A oportunidade de realizar este círculo de estudos surgiu da nossa integração enquanto bolseiras de investigação científica no Projecto “Pensamento e Formação Ético‐deontológicos de Professores”, coordenado pela Professora Doutora Maria Teresa Estrela e financiado pela FCT. A nossa opção para este artigo foi centrarmo‐nos, sobretudo, nos dados empíricos, por considerarmos ser uma abordagem mais interessante e pertinente, dado que escasseiam estudos desta natureza no âmbito da ética e deontologia da profissão docente. Neste sentido, começamos por abordar brevemente alguns conceitos que consideramos fundamentais para enquadrar o estudo e posteriormente incidirmos na análise do processo formativo e seus resultados. 1. O CARÁCTER ÉTICO DA PROFISSÃO DOCENTE E O PROFESSOR COMO PROMOTOR DO DESENVOLVIMENTO ÉTICO DOS ALUNOS Sendo a função docente uma função essencialmente ética, diariamente povoada por dilemas éticos e morais de toda a ordem, o que significa ser educador no séc. XXI? Antes de mais, parece‐nos pertinente esclarecer que, no âmbito do Projecto e também na nossa investigação, adoptou‐se, na sequência de Ricoeur, o conceito de ética como a reflexão sobre os fundamentos dos princípios
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da acção e a moral como a aplicação desses princípios a situações concretas, definições que coincidiam com a da maioria dos professores. As mudanças das condições de vida, a explosão escolar, os acelerados e inquietantes desenvolvimentos a nível económico, científico e tecnológico, a globalização, entre outros (Marginson, 2007), têm suscitado uma necessidade constante de renovação das finalidades e dos conteúdos do acto educativo, sempre na perspectiva de formar adequadamente o cidadão de amanhã. Efectivamente, a emergência da Era da Informação e do Conhecimento trouxe consigo mudanças notórias que exigem uma sociedade povoada de sujeitos capazes de adquirir e aplicar conhecimentos teóricos e analíticos em rápida evolução (Drucker cit. por Collinson et al, 2009). No que à Educação, instituição de educação e formação por excelência, diz respeito, desenha‐se um conjunto de papéis renovados e fundamentais, numa perspectiva de aprendizagem ao longo da vida. O progressivo abandono de sistemas fechados de pensamento e da afirmação da existência de uma razão única, associados à modernidade, em favor da assunção da existência de múltiplas verdades aliadas à subjectividade e contextualidade de princípios e valores, características da pós‐modernidade, marca o “conjunto de tendências sociais, económicas, políticas e culturais” (Hargreaves, 1998: 47). Deste modo, não é difícil compreender que a ética constitui “paradoxalmente um centro de interesse em várias áreas da actividade social” por se encontrar subjacente aos “problemas que ameaçam a sobrevivência da vida humana no nosso planeta e o equilíbrio e paz sociais” (Estrela, M. T.; Marques, J.; Cordeiro Alves & F.; Areosa Feio, M., 2008: 90). Sendo a docência uma profissão marcadamente ética, não bastará que o professor aposte apenas no desenvolvimento de competências científicas e técnicas mas também no desenvolvimento de competências éticas, com vista à promoção de um verdadeiro desenvolvimento integral dos alunos (Estrela, 2003). É por se constatar o inegável carácter ético da profissão docente que, apesar das constantes mudanças e complexificação da sociedade, a ideia de uma profissão ao serviço do que se entende por bem do aluno em cada momento da história (Marques, Estrela & Caetano, 2009) tem permanecido ao longo dos tempos. Daí encontrarmos em autores como Perrenoud (1995) a referência à competência ética, abrangida pela competência de enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão e consubstanciada em competências mais específicas, tais como: a prevenção da violência na escola e fora dela; a luta contra os preconceitos e as discriminações sexuais, étnicas e sociais; a participação na criação de regras da vida comum referentes à disciplina na escola, às sanções e à apreciação da conduta; a análise da relação pedagógica, da autoridade e da comunicação em sala de aula.
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Acrescenta Colnerud (2006) que quando os professores atentam na sua conduta moral, eles fazem‐no por duas razões: em parte pelas mesmas razões de outros profissionais que trabalham directamente com pessoas, e também por razões pedagógicas como influenciar os alunos de tal modo que eles abracem os valores e as normas relacionadas com o respeito pelo outro. Assim, o professor que mostre respeito pelos alunos espera inspirá‐los para terem comportamentos semelhantes. O carácter marcadamente ético da profissão docente faz prever a importância e necessidade de uma reflexão crítica sobre a acção dos professores em múltiplos domínios, entre os quais a sua acção junto dos alunos, e de desenvolver com estes actividades que promovam a sua consciência e acção morais. Também Lopes (2006), num livro dedicado à análise da obra de Agostinho da Silva menciona, parafraseando uma ideia do autor, que o professor deve basear a sua função em valores que devem estar acima da simples instrução e, sobretudo, que este deve promover a descoberta pelo aluno, mais do que ensiná‐lo. Opinião que vai ao encontro da de Raths et al. (cit. por Estrela, 2003) de que não é função do professor transmitir os seus valores aos alunos, mas antes levá‐los a descobrir os seus próprios. Seiça (2003) defende, igualmente, que o papel do professor na formação do sujeito é proporcionar‐lhe a descoberta “do que em si é humano” (p. 37) e o seu crescimento enquanto sujeito moral e ético. Ora, esta influência é tanto mais importante quanto o educador ou professor se ocupa da educação de crianças ou adolescentes, devendo o problema ser equacionado de modo diferente quando se trata de adultos. Se aos resultados destas pesquisas juntarmos o facto de que a frequência do jardim‐de‐infância, à excepção das vivências com a família, representa uma das primeiras experiências sociais da criança e o início do processo de educação ao longo da vida, facilmente compreendemos a importância do espaço jardim‐de‐infância e do papel do educador enquanto promotor do seu desenvolvimento sociomoral, pois, é, em grande parte, de si, da sua atitude e das experiências que proporciona que depende em parte a estruturação do carácter da criança. Com efeito, compete ao educador de infância acompanhar a criança na sua integração no grupo e ajudá‐la no desenvolvimento de relações saudáveis com as outras crianças e de valores como a auto‐disciplina, a responsabilidade pessoal, a paciência, a tolerância, a simpatia, o trabalho de grupo, o respeito, a empatia, a partilha e o compromisso interior para com estes e outros valores com estes relacionados. O papel do educador como modelo encontra eco na investigação que desenvolvemos no âmbito do projecto Pensamento e Formação Ético‐deontológicos de Professores sempre que os educadores/professores apontam “o exemplo do professor” como um dos domínios em que a dimensão ética da profissão se manifesta. Também noutros estudos (veja‐se a título de exemplo, Fenstermacher, 2001; Campbell, 2000…) que versam sobre o papel do educador de infância na formação moral da criança, tem‐lhe sido atribuído o papel de modelo cuja influência moral pode tomar diversas formas (Colnerud, 2006). Hansen (cit. por Colnerud, 2006) vai mais longe 113
quando afirma que toda a acção do educador tem subjacente um sentido moral e, como tal, pode influenciar os estudantes. Com efeito, no espaço do jardim‐de‐infância, o papel de educador moral revela‐se particularmente importante, na medida em que a criança em desenvolvimento depende da orientação do adulto no processo de estruturação do carácter, através da aprendizagem da autonomia e da descoberta e afirmação de valores (Estrela, 1999). Dados recolhidos no Projecto Pensamento e Formação Ético‐deontológicos de Professores revelam que para muitos educadores o seu papel passa por “demonstrar a diferença entre o bem e o mal”, por meio de estratégias como “o uso do lúdico (jogos, histórias, …), o trabalho em grupo e o diálogo”. Quanto à formação dos alunos para a cidadania, domínio específico da sua formação ética, educadores e professores do 1.º ciclo e do ensino secundário afirmam ter como objectivos “promover a responsabilidade e aprender a ser cidadão”. Como sabemos, a esta formação ética dos alunos não se subtraem dificuldades e ambiguidades que passam pela dúvida sobre se o educador deve ou não transmitir aos alunos os seus valores ou deixá‐los descobrir os seus próprios. Neste sentido, pensamos ser legítima e pertinente uma formação ética de educadores de infância, na medida em que este constitui um dos primeiros espaços de socialização da criança, mas também porque ao educador é exigido que forme eticamente as crianças e se articule com as famílias e toda a comunidade educativa, “frentes de combate” em que nem sempre é fácil actuar, tendo em conta, por exemplo, o frequente desfasamento entre a família e a escola e a pouca articulação que se verifica entre os diferentes níveis de ensino. As diferentes situações que o educador/professor vivencia resultam inevitavelmente em problemas/dilemas perante situações de difícil resolução ou mesmo conflitos de valores que o obrigam a optar por uma alternativa entre duas ou mais. 2. O LUGAR DA FORMAÇÃO ÉTICA NO ENQUADRAMENTO LEGAL DA FORMAÇÃO CONTÍNUA EM PORTUGAL Revemos, agora, brevemente, o que nos diz a legislação portuguesa acerca da presença da componente ética na profissão docente: ‐ Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei 46/86, de 14 de Outubro (revista pela Lei nº 49/2005 de 30 de Agosto) apresenta, no artigo 5.º da Secção I – Educação Pré‐escolar, oito objectivos, de entre os quais destacamos os seguintes:
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a) Estimular as capacidades de cada criança e favorecer a sua formação e o desenvolvimento equilibrado de todas as suas potencialidades; d) Desenvolver a formação moral da criança e o sentido da responsabilidade, associado ao da liberdade Encontramos, pois, a responsabilidade como um dos princípios fundamentais na orientação da conduta profissional do professor que implica um “profissionalismo dinâmico que se desenvolve na interacção com os alunos e a instituição escolar, tornando os professores co‐responsáveis pelo desenvolvimento dos alunos e proporcionando‐lhes as ferramentas necessárias para a realização pessoal e bem‐estar.” (Oliveira, 2008). ‐ Lei‐quadro n.º 5/97 de 10 de Fevereiro, dedicada inteiramente à educação pré‐escolar, define como um dos princípios gerais que esta, sendo a primeira fase da educação básica na educação da criança, deve estabelecer estreita cooperação com a família, complementando a sua acção educativa e, neste sentido, favorecer a formação e o desenvolvimento equilibrado da criança procurando a sua inserção plena na sociedade “como ser autónomo, livre e solidário” (artigo 2.º, capítulo II). ‐ Do Decreto‐lei n.º 241/2001 de 30 de Agosto, Perfis específicos de desempenho profissional do educador de infância e do professor do 1.º ciclo do ensino básico, destacamos que, no âmbito da relação e da acção educativa, o educador de infância: “a) Relaciona‐se com as crianças por forma a favorecer a necessária segurança afectiva e a promover a sua autonomia; c) Fomenta a cooperação entre as crianças, garantindo que todas se sintam valorizadas e integradas no grupo; e) Apoia e fomenta o desenvolvimento afectivo, emocional e social de cada criança e do grupo; h) Promove o desenvolvimento pessoal, social e cívico numa perspectiva de educação para a cidadania.” ‐ Regime Jurídico da Habilitação Profissional para a Docência na Educação Pré‐escolar e nos Ensinos Básico e Secundário (Decreto‐Lei n.º 43/2007, de 22 de Fevereiro) regulamenta a Formação Cultural, Social e Ética como uma das componentes de formação (art.º 14, 1d), referindo mais especificamente, a preparação para as áreas curriculares não disciplinares e a reflexão sobre as dimensões ética e cívica da actividade docente" (artº.14, 5c). Dada a escassez de investigação, sobretudo empírica, sobre a ética e deontologia da profissão docente e pelo que já se referiu relativamente à necessidade de qualquer profissional e os professores, em particular, estarem em constante formação, parece‐nos pertinente e, mais do que isso, necessário quer o desenvolvimento de investigação na área da formação em ética e deontologia no sentido de se identificarem necessidades e
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interesses de formação e poderem, assim, definir‐se planos de formação mais adequados, como o próprio desenvolvimento de processos formativos neste âmbito. 3. PARA UMA FORMAÇÃO ÉTICA DE EDUCADORES DE INFÂNCIA – TRABALHO EMPÍRICO Introdução O círculo de estudos sobre a formação ética de educadoras de infância intitulou‐se “Ética e deontologia profissional”. Teve lugar no agrupamento de escolas de uma zona rural da região de Lisboa e Vale do Tejo, entre os dias 15 de Abril e 24 de Junho, em sessões quinzenais, cada sessão com a duração de 2 horas. O grupo compôs‐se de 12 educadoras de infância, a maioria das quais com idades entre os 48 e 54 anos e entre 23 a 27 anos de serviço. À excepção de uma formanda com o grau de mestre, todas as outras eram licenciadas. Refira‐se que o plano da formação foi apresentado ao Conselho Científico‐Pedagógico da Formação Contínua pelo Centro de Formação a que pertence o agrupamento e a acção foi acreditada. No entanto, uma vez que a informação sobre a acreditação foi concedida já no final da formação, o Centro de Formação considerou não poder creditar as formandas. O plano de formação partiu da análise de conteúdo de quatro entrevistas semi‐directivas (organizadas em quatro blocos: representações sobre a formação ética de professores, o bem do aluno e a justiça no ensino, problemas e dilemas éticos e formação ética de educadores) realizadas a quatro educadoras de infância. Desenvolvido com recurso a estratégias de investigação‐acção, o processo formativo teve como objectivos/efeitos a produzir e conteúdos os seguintes:
Objectivos/Efeitos a produzir
Conteúdos da acção
‐ Ser capaz de distinguir e clarificar os conceitos de ética e deontologia no sentido de definir conceitos comuns dentro do grupo de formação; ‐ Ser capaz de reconhecer as relações entre ética pessoal e profissional; ‐ Ser capaz de reflectir sobre os problemas do quotidiano sob o ponto de vista da ética profissional; ‐ Ser capaz de fundamentar e tomar decisões do ponto de vista ético; ‐ Construção de uma “carta” de princípios comuns, orientadora da acção ética das educadoras do agrupamento. ‐ Conceitos de ética e deontologia ‐ Ética pessoal/ética profissional ‐ A comunidade educativa e o desenvolvimento ético das crianças
Quadro 1– Objectivos, conteúdos, do círculo de estudos “Ética e deontologia profissional”
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Em todas as sessões procedemos à síntese da sessão anterior, no sentido de consolidar conhecimentos, esclarecer dúvidas e iniciar a nova sessão de formação. Todas as formandas receberam em cada sessão esta síntese sob a forma escrita. Semanalmente, as formandas redigiram a avaliação individual de cada sessão, tendo como questões orientadoras: O que foi importante para mim nesta sessão? O que fica para minha reflexão? As avaliações foram recolhidas no final de cada sessão. Análise do processo formativo A análise que apresentamos do círculo de estudos desenvolvido procura cruzar as reflexões das educadoras e da formadora e desenvolvem‐se em torno de quatro eixos – O lugar da teoria na formação; Os dilemas éticos e a formação; A Carta de Princípios; Os muros de valores na relação com os alunos – procurando‐se, igualmente, reflectir sobre as mudanças ocorridas e previstas. O lugar da teoria na formação À semelhança do que escreveram Estrela & Afonso (2009) sobre o contributo da leitura de textos teóricos para apoiar a reflexão sobre conceitos relacionados com ética e responsabilidade profissional, também as educadoras consideraram que esta estratégia de formação é “saudável. O assunto permite que diferentes questões sejam levantadas, permitindo que a partir de uma permanente reflexão as nossas atitudes sejam de respeito”. O contributo da formação para o desenvolvimento de competências de reflexividade ética sobre a acção e os contextos profissionais foi muito evidente nas reflexões das educadoras ao longo do processo formativo ‐ “reflectir na minha prática profissional e como aplico estes conceitos no quotidiano”, “As trocas efectuadas nestas sessões levam‐nos sempre a reflectir sobre a nossa prática”. Para além das avaliações escritas das educadoras, os comentários feitos durante o círculo de estudos indiciam que a leitura e discussão de textos de natureza teórica incentivam a investigação fora dos seus limites espácio‐ temporais de uma forma mais autónoma, numa perspectiva de auto‐formação que aumenta a consciência da presença da componente ética na profissão cuja acção deve ser constantemente questionada, testada e reequacionada. Os dilemas‐tensões e a formação Embora não tenhamos centrado a acção de formação apenas na análise de dilemas‐tensões da profissão docente, considerámos que o tratamento deste tipo de situações se revestiria de particular interesse e pertinência, dado que “o quotidiano profissional dos educadores está marcado por situações absolutamente 117
singulares e especialmente delicadas do ponto de vista humano” (Baptista, 2005: 119). Também para Caetano (1992) o recurso a situações reais, concretas, geradoras de conflito interior incentiva a reflexão e a mudança efectiva das práticas. Os dilemas‐tensões analisados nas sessões foram recolhidos nas entrevistas e emergiram de discussões tidas com o grupo durante o processo formativo. Nas sessões dedicadas à discussão destes casos, verificou‐se um forte envolvimento das educadoras, tendo estas destacado como mais‐valias os processos de investigação/reflexão e colaboração desenvolvidos. Os primeiros permitiram um maior conhecimento de si mesmas e das situações em análise proporcionadas pela “desmontagem de uma situação problemática por diversas etapas ou passos para melhor consciencialização do que está envolvido na tomada de decisões”. O facto de estes serem dilemas reais, vivenciados pelas próprias educadoras, permitiu evidenciar a forte relação que deve existir e a transferência que deve ser feita entre a investigação e a prática educativa. Em relação aos processos colaborativos, com efeito, parece‐nos que quer do nosso ponto de vista, quer do das formandas a acção de formação “Ética e Deontologia Profissional”, o trabalho sobre dilemas‐tensões éticos constituiu uma forma de ajudar a desenvolver: o poder de decisão do grupo de educadoras em formação, através da explicitação dos valores específicos da profissão; uma maior coesão do grupo, dada pelo envolvimento no processo colaborativo de partilha de opiniões e experiências que, por sua vez, permitiram o aprofundamento e generalização da análise dos dilemas‐tensões. As reflexões escritas das formandas mostram‐nos que existiram mudanças decorrentes do trabalho de análise destes dilemas‐tensões ao nível do pensamento que promovem mudanças de comportamentos. A evolução da análise de dilemas concretos para um plano abstracto e geral foi igualmente constatada, demonstrando, assim a relação entre as particularidades daquelas situações e valores que são comuns ao grupo, reveladora de um sentido de docência. Outro dos resultados que nos parece de salientar é o facto de a identificação, discussão e análise de dilemas não se ter limitado às sessões de formação, tendo sido possível desenvolver com as educadoras projectos de investigação‐acção sobre os quais reflectiram nos seus portfolios. Estes resultados fazem‐nos crer que o desenvolvimento deste círculo de estudos e dos projectos de investigação‐acção das educadoras constituíram uma forma de ajudar a desenvolver o poder de decisão do grupo, através da explicitação dos valores específicos da profissão, uma maior coesão do grupo, dada pelo envolvimento no processo colaborativo de partilha de opiniões e experiências que, por sua vez, permitiram o aprofundamento e generalização da análise dos dilemas‐tensões.
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Pensamos, pois, ter conseguido desenvolver com o grupo um trabalho não apenas ao nível da responsabilidade individual mas de uma responsabilidade docente multidimensional, potenciadora “de uma decisão profissional reflexivamente autónoma e responsável” (Baptista, 2005: 124). A Carta de Princípios do grupo de formação A Carta de Princípios constituiu um dos produtos da formação e merece destaque na análise do processo formativo por ter sido uma das actividades que mais envolveu e interessou o grupo de educadoras, tendo‐se notado uma atitude de comprometimento no que respeita aos direitos, deveres, princípios e valores que, colaborativamente, foram destacados. O referido documento emergiu da leitura de dois textos teóricos – sobre profissionalismo docente e ética e sobre a deontologia docente em Portugal – e da análise da Proposta de Carta de Princípios da APEI (Associação dos Profissionais de Educação de Infância), que autorizou a sua utilização na acção de formação desde que as formandas se debruçassem sobre ela, a analisassem e redigissem um conjunto de sugestões/críticas. No que respeita ao processo de elaboração da Carta de Princípios deste grupo de educadoras pensamos poder afirmar a sua influência no aprofundamento de diferentes competências: ‐ de natureza colaborativa, verificada por nós e pelas educadoras, que reconheceram a importância de um trabalho em articulação com os colegas, de um espaço que permita “pôr em comum maneiras de estar e de sentir diversas”; ‐ de natureza reflexiva, altamente reconhecida pelas educadoras por ter possibilitado a troca de ideias sobre a vivência da profissão docente, nomeadamente, sobre a mudança e complexificação de funções e papéis e sobre o carácter ético da profissão. Pensamos que a discussão tão participada e o evidente comprometimento com o “repensar [d]o seu profissionalismo em relação com os seus novos papéis, redefinindo a sua ética e a sua responsabilidade na formação ética dos estudantes” (Estrela, M. T.; Marques, J.; Cordeiro Alves & F. & Areosa Feio, M., 2008: 90), poderá ser indicador da insegurança (Estrela & Afonso, 2009) que se vive na classe docente e do facto de, apesar de a componente ética da profissão docente ser contemplada há muito na legislação portuguesa (veja‐ ‐se, por exemplo, o n.º 4 do art. 2.º da LBSE, o Perfil Geral de Desempenho para Educadores e Professores dos Ensinos Básico e Secundário, os Perfis específicos de desempenho profissional do educador de infância e do professor do 1.º ciclo do ensino básico…), as educadoras terem consciência de que esta não tem sido suficientemente considerada a ponto de educadores e professores serem chamados a uma discussão tão fundamental e disporem de espaços e tempos para tal, o que encerra, na nossa perspectiva, uma grave contradição. Principalmente quando se trata de uma discussão que poderia resultar na elaboração de um 119
código ético‐deontológico, cuja necessidade de existência foi fortemente sublinhada pelas educadoras durante o processo de formação e que constitui um elemento da identidade profissional de um grupo. Os muros de valores na relação com os alunos A actividade de construção do muro de valores na relação com os alunos teve como inspiração uma actividade semelhante descrita por Kortaghen et al. (2001) e designada por “The Wall”. Foi realizada no início e no final do processo formativo, a fim de percebermos se existiam mudanças na opinião das educadoras. Cada educadora recebeu 12 tiras de papel em branco: em oito escreveu oito valores e objectivos que considerava mais importantes na relação com as crianças; as restantes quatro continham cada uma um objectivo educacional retirado da LBSE. Para a hierarquização dos objectivos e valores mais importantes, não era obrigatório serem usadas todas as tiras de papel. A hierarquização era feita de baixo para cima, ficando os objectivos e valores mais importantes na base. A realização desta actividade possibilitou, na opinião das formandas, um melhor conhecimento de si próprias (por exemplo, “o facto dos objectivos/valores terem a ver com a realidade e cada uma fica para minha reflexão”) e o aprofundamento da reflexão sobre conceitos de conduta ética, do papel do educador enquanto educador moral (por exemplo, “a forma de operacionalizar os valores na relação com adultos e crianças”) e de conceitos éticos gerais, pois a hierarquização dependeu de uma profunda reflexão individual (Kortaghen, 2001). Posteriormente, a partilha com as colegas promoveu a reflexão conjunta, o questionamento e a compreensão de diferentes pontos de vista, a partilha de experiências de cada uma associadas com o seu contexto de trabalho específico e a percepção de que “existe uma certa uniformidade na forma como nós, educadoras, pensamos”. A este propósito destacamos a forte relação com a prática traduzida na relação com situações dilemáticas/problemáticas vividas pelas educadoras, como sendo, por exemplo, a descontinuidade que consideram existir entre o seu trabalho enquanto educadoras morais das crianças e o dos professores do 1.º ciclo afirmando que muito dos valores/princípios que tentam incutir nas crianças acabam por perder‐se quando estas vão para o 1.º ciclo. A dimensão colaborativa, a par da dimensão reflexiva, foi a mais referida pelas educadoras quando reflectiram sobre as sessões em que se realizou esta actividade – “a partilha das experiências de cada colega que está directamente relacionada com as vivências do seu local de trabalho”. Em ambas as sessões reservadas para esta actividade constatou‐se que os conhecimentos construídos foram sobretudo na ordem do autoconhecimento em que o tácito se formaliza e organiza, assim como um conhecimento promotor de um aprofundamento da reflexão sobre a acção, os contextos em que esta ocorre e a própria reflexão.
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CONCLUSÃO Os resultados obtidos quanto à forte presença da ética na profissão docente confirmam outros obtidos noutras investigações e vão ao encontro do que define a legislação portuguesa quanto ao papel de educador moral do professor, embora as orientações da legislação tenham, até hoje, saído muito pouco do domínio das (boas) intenções para o campo da formação ética de professores. Partilhando, inicialmente, de concepções mais formais de ética, não destituídas, no entanto, de uma componente afectiva, aumenta a percentagem de educadoras que, no final da formação, subscrevem concepções de natureza consequencialista. Porque será que o fazem? Talvez porque, como afirma Gambôa (2004: 73), a “conduta e as consequências não podem ser separadas do “eu”, pois constituem‐no, formam‐no e relevam‐no, e é este o âmago do construtivismo pragmático que enforma a ética”. Terá a reflexão individual e em grupo, o debate, a partilha na formação contribuído para tornar explícitas as suas preocupações éticas tornando as formandas mais conscientes das consequências que têm as suas acções? As dimensões reflexiva e colaborativa da formação merecem maior destaque na apreciação da acção de formação desenvolvida. Contribuíram fortemente para a coesão do grupo mas tornaram mais evidente a necessidade de formar eticamente a classe docente. A pluralidade de contributos durante a formação, dada pelo recurso a textos teóricos, e a reflexão e diálogo permanentes, incentivou as formandas para a procura autónoma de bibliografia no sentido de aumentarem conhecimentos, esclarecerem dúvidas e procurarem o sentido das suas práticas, resultados da formação que nos parecem bastante positivos. Uma das actividades em que foi mais evidente o carácter colaborativo do processo formativo desenvolvido e a crescente autonomia das educadoras relacionava‐se com a análise em conjunto de problemas/dilemas do dia‐ a‐dia profissional das educadoras. Embora os dados não nos tenham permitido saber se os problemas/dilemas trabalhados tiveram resolução, pensamos poder afirmar que a reflexão, discussão em grupo e análise dos dilemas apresentados, constituíram aspectos formativos importantes para o grupo de formação, na medida em que permitiram desmontar situações reais, compreendê‐las melhor e desenvolver competências de análise transversais a outras situações semelhantes, mantendo “permanentemente viva a ligação entre o campo da reflexão ética e o campo da vida moral” (Baptista, 2005: 121). Outro exemplo do comprometimento das educadoras foi a construção da Carta de Princípios que afirmaram desejar ver aplicada no seu agrupamento de escolas ao nível da educação pré‐escolar, por se aproximar de um
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código deontológico, documento que consideraram da extrema importância para a regulamentação da educação pré‐escolar. Também na construção do muro de valores e objectivos na relação com os alunos as educadoras demonstraram claramente a forte presença da componente ética quer na formação, quer no exercício da profissão docente. Independentemente das diferenças encontradas no muro de valores construídos pelas diferentes educadoras no início e no final da formação, indiciadoras de algum subjectivismo ético, pensamos poder afirmar a existência de um comprometimento com a profissão e com a reflexão sobre a acção específica, no fundo, de uma cultura escolar do grupo de formação dada a recorrência do objectivo “contribuir para a estabilidade e segurança afectiva da criança”. Por fim, duas considerações finais se impõem: uma, a propósito da mudança; outra, a propósito da nossa implicação na formação. Uma mudança é sempre teleológica, na medida em que aponta para uma determinada finalidade, um determinado sentido. No estudo que desenvolvemos verifica‐se uma mudança no sentido da atenuação de uma ética formal que dá lugar a uma ética contextualizada. Será este o sentido desejável de uma formação? Aqueles que partilham de concepções mais racionalistas da ética apontaram já os perigos deste tipo de formação, mas duas razões levam a considerar uma mudança legítima: primeiro, porque partimos de uma concepção como construção de uma autonomia pessoal em que o formador tem o papel de incentivar a reflexão crítica e o diálogo entre o grupo; depois, pela interpretação que fazemos da LBSE que aponta para a satisfação das necessidades dos alunos e para um conceito de justiça enquanto equidade. Com efeito, parece‐nos competir à formação ética estimular o processo de tomada de consciência das relações que cada profissional estabelece com a prática profissional, bem como estimular a articulação entre o seu papel de educador moral dos alunos e de educador/professor não apenas na escola, mas também fora dela. Não assumindo nós o papel de formador enquanto endoutrinador, pensamos que estamos no caminho certo. A segunda consideração tem a ver com a nossa implicação na investigação. Ora, é próprio dos estudos qualitativos a implicação do sujeito investigador na investigação. No entanto, foi nossa intenção estabelecer a dialéctica entre proximidade e distanciamento. Proximidade que nos permite conhecer melhor o que pensa o grupo e aquilo que é a sua prática; distanciamento, favorecido pela relação que, tempos a tempos, se fazia com a equipa de investigação do projecto, pela constante procura de feedback das formandas e pela continuada reflexão do investigador sobre si próprio e sobre o processo investigativo e formativo. 122
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Seiça, A. (2003). A Docência como Praxis Ética e Deontológica: Um Estudo Empírico. Lisboa: Departamento da Educação Básica.
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PROFESSOR DE OUTRORA E PROFESSOR DE AGORA: RUMO À PROFISSIONALIDADE DOCENTE Jesus Maria Sousa Departamento de Ciências de Educação da Univ. da Madeira Este artigo visa a consciencialização do sentido profundo que a nossa profissão encerra, indo às suas raízes no passado, para melhor compreensão do presente. Como dizem M. Tardif e C. Lessard (2005), os professores “dão sentido e significado aos seus atos e vivenciam a sua função como uma experiência pessoal, construindo conhecimentos e uma cultura própria da profissão” (p. 38). É esse significado que se pretende aqui desvelar. Inspirada nos ciclos de vida profissional dos professores (Huberman, 1995), procuro descortinar esses ciclos de vida na própria profissão, reconhecendo o lugar estratégico e central que assume a figura do Professor nos nossos dias (J. C. Morgado, 2005). O que se esperou e o que se espera do Professor? O que dele se exigiu e se exige? Missões ao seu alcance ou impossíveis de realizar? Missões gratificantes ou portadoras de uma sensação de desconforto e incomodidade? Quais os desafios que o Professor tem enfrentado rumo à sua profissionalidade? 1 ‐ AGENTE DE REPRODUÇÃO OU TRANSFORMAÇÃO SOCIAL? Se voltarmos os olhos para o passado, na busca desse sentido profundo que a nossa profissão encerra, vemos que, de facto, a figura do Professor foi ganhando, ao longo dos tempos, cambiantes diversos, diria mesmo que, por vezes, antagónicos, sendo por nós raramente compreendidos. Em quadros temporais mais fechados, a sua missão manteve‐se sobretudo centrada no domínio da matéria, geralmente pouco acessível à generalidade da população. Poucos eram os eleitos a quem ele, sábio‐expert, fazia o favor de a conceder, como se de uma dádiva se tratasse, para, por sua vez, esses mesmos eleitos a devolverem o mais fiel e exatamente possível. Os exercícios de reprodução e repetição, com forte apelo à memorização, e que à primeira vista nos parecem inócuos, traziam, no entanto, consigo, uma conceção de um mundo organizado de determinada forma, onde as verdades eram eternas e absolutas. Nas comunidades primitivas, a passagem de testemunho de uma geração a outra, tendo em vista a conservação de um conteúdo simbólico da tribo, decorria num ambiente impregnado de misticismo que lhe 125
conferia o seu quê de sagrado (lembremo‐nos dos ritos de iniciação e de como era difícil de os superar). Faz parte do nosso imaginário coletivo uma primeira aula formal à volta da fogueira, onde o ancião transmitia aos jovens iniciados todos os mitos sobre as origens do seu povo, que esses jovens mais tarde iriam transmitir aos seus vindouros. Era um ciclo de reprodução, tendo em vista a preservação do passado, pois era aí que se albergava o que de mais belo e mais heróico havia sido alguma vez realizado. Este modelo reprodutivo, que conferia ao “professor” essa auréola de misticismo, colocando‐o num patamar distante e superior, iremos nós encontrar ao longo dos tempos, quer junto do mestre medieval das escolas conventuais e catedrais, junto do religioso dos colégios jesuítas ou mesmo do Professor de instrução pública, quando encarado como peça fundamental no modelo de reprodução social e cultural. A verdade conteudal, definitiva e absoluta, porque colocada fora das contingências temporais e locais, seria, pressupostamente, revelada por alguma entidade abstrata e distante. Nesta ambiência de intemporalidade e de universalidade, algumas caraterísticas de personalidade eram cultivadas nesse Professor, tendo em vista a manutenção do “status quo”. Vejamos pequenos “flashes” temporais. Assim, pegando, por exemplo, na “Ratio Studiorum” (1598), enquanto conjunto não só de regras de funcionamento dos Colégios da Companhia de Jesus, como de regras de bem ensinar, aplicadas nas doze províncias de então (Castela, Aragão, Andaluzia, França, Itália, Alta Alemanha, Baixa Alemanha, Brasil, Etiópia, Índia, Japão e, naturalmente, Portugal), verificamos que era exigido ao futuro Professor, uma primeira etapa de mortificação do corpo, através dos chamados exercícios espirituais. Só depois disso estaria ele preparado (purificado) para ingressar na sua longa preparação intelectual e mais tarde pedagógica, sob a orientação do “docendi peritissimus”. Se procedermos a um trabalho de interpretação de algumas das regras, podemos extrair alguns traços de personalidade que são apanágio desse modelo de reprodução. Quando lemos o seguinte… “Obedecei ao Prefeito dos Estudos Inferiores em tudo o que diga respeito aos estudos e à disciplina escolar…” (Regra 11 comum aos professores dos Estudos Inferiores). “Nada mantém mais a disciplina do que a observância de regras. Daí que a principal preocupação do professor deva ser a de que os alunos observem tudo o que está prescrito nas Regras e cumpram as prescrições respeitantes aos estudos.” (Regra 39 comum aos professores dos Estudos Inferiores). “Mostra‐lhe, para isso, os terríveis e justos castigos da prevaricação e a alma tremerá e se assustará. Há perigo de não se deixar sucumbir pelo horror do pecado e o medo da pena?” (F. Rodrigues, 1917: 109). … constatamos que o sentido da obediência a normas superiormente determinadas era um traço marcante na
estrutura da personalidade deste Professor. 126
Por outro lado, a preservação de um saber bem delimitado impedia‐o de enveredar por qualquer tipo de inovação, como atestam as seguintes regras: “Os professores com tendência para a novidade ou para uma inteligência mais livre devem, sem dúvida, ser excluídos do ensino.” (Regra 16 do Provincial). “…Mesmo em questões sem perigo para a fé e a piedade, ninguém deve se atrever a introduzir matéria nova nem assuntos que não sejam caucionados por um autor capaz, sem consultar os superiores…” (Regra 6 comum aos professores das Faculdades Superiores). “A preleção deve apenas explicar os autores antigos, nunca os modernos. É preferível que o professor fale com uma certa ordem e preparação e que exponha o que escreveu em casa, lendo todo o livro ou o discurso que tiver nas mãos.” (Regra 27 comum aos professores dos Estudos Inferiores).
Neste modelo, a novidade devia ser evitada a todo o custo, pois podia fazer perigar a equilíbrio desejado. Também a laicização do ensino, entretanto operada sob a égide do Marquês de Pombal, a partir da ordem de expulsão dos Jesuítas, não veio alterar o seu modo de pensamento. O conhecimento, enquanto verdade absoluta e inquestionável, continuava a existir, só que já não proveniente de Deus, mas de uma Razão esclarecida. O Professor… esse continuava a ser uma peça sob determinado controlo institucional (já não da Igreja, mas do Estado); o Professor continuava, no fundo, a ser um agente de reprodução social. Para isso, o seu passado moral e político era minuciosamente prescrutado à entrada da docência, através de informações cuidadosamente recolhidas no bairro onde habitasse. Também o Estado Novo, mais próximo de nós, buscava o exercício da reprodução social quando reagia contra a vontade de generalização do ensino, anteriormente indiciada nos períodos do liberalismo, do constitucionalismo e da primeira república. Desejando manter a ordem social então estabelecida, afirmava Salazar (citado por A. R. Monteiro, 1975: 144): “Grande parte do nosso povo, pela sua riqueza intuitiva e sobretudo pelas condições da sua existência e da sua atividade, não sente a necessidade de saber ler (…). Deverá, com efeito, ensinar‐se o povo a ler?, ou melhor, deverá impor‐se a escolaridade obrigatória àquela porção das populações rurais que não sente necessidade da cultura?”
Pelo contrário, reforçava E. Tamagnini, do Ministério da Educação Nacional (Ibid.: 146): “Será indispensável moderar as aspirações desrazoáveis que impregnam o espírito dos pobres e dos humildes, será preciso destruir essa grande ilusão de que a cultura dá infalivelmente riqueza e poder.”
E é neste contexto de fechamento cultural, que são encerradas todas as escolas do magistério primário e que são criados postos escolares em lugar de escolas, aí nascendo um novo tipo de Professor: o regente escolar, detendo apenas quatro anos de escolaridade.
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Era preciso estar ao serviço da ideologia dominante, de uma forma ativa, como um "apóstolo”, tal como diz o preâmbulo do decreto‐lei nº 30.951, de 10 de Dez. 1940: “É preciso que o seja quando é chamado a colaborar, através da escola e fora da escola, em alguma obra social e mesmo política que exprima o idealismo fundamental do Estado Novo.”
E o Ministro Carneiro Pacheco chegou mesmo a advertir (citado por A. R. Monteiro, 1975: 146): “o mestre não é um burocrata, mas um modelador de almas e de portugueses. Quem, por aberração, o não quiser ser, haverá de retirar‐se.”
Como vemos, o Professor, nestes instantâneos históricos, transportava consigo o enorme peso da responsabilidade pela estabilidade político‐administrativa de um regime reprodutor de hierarquias e desigualdades sociais. Mas sabemos também de outros tempos em que o Professor foi encarado como agente de transformação e de desenvolvimento da sociedade. Recuemos mais uma vez, recordando os ideais da Revolução Francesa ou a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como marcos históricos na evolução política e social da Humanidade. A ideia fundamental de que “todos os homens nascem livres e iguais nos seus direitos” abre caminho à mobilidade social, e, neste processo, o Professor ganha naturalmente um enorme protagonismo. De facto, se nos situarmos no panorama português, os liberais da Revolução de 1820, ao defenderem a iluminação do espírito (não nos esqueçamos que o século anterior havia sido o século das Luzes), defendem uma instrução pública alargada, a chamada educação popular de base, com um discurso pedagógico a fazer apelo à obrigatoriedade escolar, à gratuitidade e à liberdade de ensino, para que as camadas sociais mais desfavorecidas pudessem ser então escolarizadas. Também com a implantação da República, o ensino e a missão do Professor passaram a ser valorizados, por se desvincular o estatuto social do indivíduo da sua classe de origem. “É pela instrução que os povos se nobilitam, se engrandecem e prosperam”, dizia um jornal madeirense da época (A República Portuguesa). Todas as forças são poucas para o combate ao analfabetismo, iniciado com a célebre Reforma da Instrução Primária e Normal, de 29 de Março de 1911, a exigir sete anos de ensino primário. Com este texto legislativo, pela primeira vez se fala, em Portugal, de desenvolvimento integral do indivíduo, “sob o tríplice aspecto: physico, intellectual e moral. Portugal precisa de fazer cidadãos, essa matéria prima de todas as pátrias; e, por mais alto que se affirme a sua consciência colectiva, Portugal só pode ser forte e altivo no dia em que, por todos os pontos do seu território, pullule uma colmeia humana, laboriosa e
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pacífica, no equilíbrio conjugado da força dos seus músculos, da seiva do seu cérebro e dos preceitos da sua moral.”
Neste contexto, o Professor (mais concretamente de instrução primária, como se chamava então), passou a ser o grande “obreiro da civilização”. Expressões como “desenvolvimento do caráter”, “exercício da vontade”, “autonomia regrada”, “máxima liberdade, máxima responsabilidade”, “justiça entre os homens”, “dignidade dos cidadãos”, “solidariedade”, etc., começam a aparecer no discurso pedagógico de então, levando necessariamente a estrutura da personalidade do Professor a se desabrochar nesse sentido, fazendo o contraponto com os anteriores apelos à “modéstia”, “humildade”, “honra”, “obediência”, “fidelidade” e “caridade”. Em termos curriculares, a responsabilidade, que lhe cai sobre os ombros, de transformação e progresso social, vai levar a que seja dada uma maior incidência ao método, e não já ao conteúdo. O movimento da Escola Nova, contemporânea dessa fase (inícios do séc. XX), nasceu, no fundo, da vontade de encontrar o melhor método de dessacralização dos conteúdos, aquele que propiciasse uma melhor aprendizagem por parte dos alunos. É a fase do romantismo pedagógico, com a explosão dos métodos de que bem nos lembramos, tais como o dos Centros de Interesse de Ovide Décroly, o de projetos de John Dewey, o da liberdade de Alexander Neill, o método individualizado de Maria Montessori e outros mais. Dando mais um outro salto temporal, de forma a captar mais um instantâneo, vemos que após o final da II Guerra Mundial, e num contexto de guerra‐fria entre os dois blocos pela hegemonia mundial, o lançamento do Sputnik pelos Russos, na corrida espacial, teve o condão de alertar os sistemas educativos ocidentais para a falha de um elemento essencial na planificação: isto é, saber exatamente onde se queria chegar, ou seja, conhecer o objetivo. Assim, depois do monopólio exclusivo do conteúdo, primeiro, e do método, depois, um e outro são retomados enquanto elementos didáticos de um modelo todavia norteado pelo objetivo, por considerá‐lo o ponto de partida para qualquer planeamento. Lembremo‐nos da PPO (Pedagogia por Objetivos). É a fase dos modelos curriculares tecnológicos, de natureza linear, conforme R. Tyler, em 1949, por exemplo (com Objetivos‐ >Conteúdos‐>Métodos e mais tarde‐>Avaliação), que, por terminar com a avaliação, jamais poria em causa o próprio sistema. Sim, porque a haver qualquer falha, uma vez que não se questionava nenhuma das etapas anteriores, ou seja, porque se partia do princípio de que tanto os objetivos, como os conteúdos e os métodos eram os mais adequados, a culpa de uma má avaliação seria sempre do aluno, e nunca do Professor, nem do sistema. A aprendizagem falhava porque o aluno não tinha capacidade, não era inteligente, não era trabalhador… Mais uma vez, e de uma forma desculpabilizadora, reassumia o Professor a função de controlo e
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seleção, caraterístico da escola tradicional, só que desta vez pressupostamente direcionada para os objetivos, e não para a matéria. Enfim, é este olhar descomplexado para trás, de auto‐reconhecimento das nossas heranças profissionais, que nos revela, do ponto de vista sócio‐político, um Professor oscilando nitidamente entre uma missão de reprodução do sistema e outra de transformação e progresso social. Mas quer numa, quer noutra missão, esse Professor foi sempre um agente cumpridor das diretrizes emanadas de cima, numa lógica de funcionarização da atividade docente. 2 ‐ O PROFESSOR E OS DESAFIOS DO PRESENTE Eis‐nos aqui, portanto, com toda uma carga do passado em conflito com as exigências do presente. Selecionemos algumas áreas que constituem novos campos de desafio para a atividade do Professor nos nossos dias. Em primeiro lugar, temos o desenvolvimento avassalador do conhecimento. Vimos que no passado, era preciso ser‐se um verdadeiro expert na matéria: por isso é que se era Professor. Neste momento, ninguém consegue dominar totalmente um conteúdo. Se, no início do século, se publicavam cerca de 10.000 livros por ano, hoje temos milhões de documentos científicos e técnicos publicados no mesmo período de tempo. Segundo J. Appleberry (citado por V. S. Infante, 1999: 2), “em 1750, duplicou‐se pela primeira vez o conhecimento da humanidade desde os tempos de Cristo. Em 1900 repetiu‐se o fenómeno. A duplicação a seguir operou‐se em 1950. Hoje o conhecimento humano passa para o dobro de 5 em 5 anos. Calcula‐se que no ano 2020 essa duplicação ocorrerá cada 75 dias.”
Neste contexto de grandes avanços científicos a todo o instante, o enorme desafio que o Professor de hoje enfrenta é o de ter de continuar a ser seguro cientificamente. A sociedade exige isso de si, mesmo que para isso tenha de competir com todas as outras fontes alternativas de informação, de que a televisão e a internet são expoentes máximos, neste momento. O seu papel de transmissão única a um conjunto de indivíduos em simultâneo (a lição coletiva numa turma) já não é só posto em causa pelos “mas‐media”, mas pelos próprios “self‐media”. De acordo com J. Cloutier (1979: 43), “se compararmos os mass‐media aos meios de transporte coletivo que submetem o passageiro a um determinado itinerário e a um horário inelutável, os self‐media são como meios de transporte individual que permitem o EMEREC, sozinho ou em pequeno grupo, ir aonde lhe apetece, no momento que lhe convém.”
Por isso o Professor dos nossos dias terá de conhecer e dominar metodologias e técnicas de ensino tão aliciantes como motivadoras, que não o ponham no centro da informação na sala de aula. Já não pode ser o 130
“sage on the stage”, mas o “guide on the side”, que sabe definir objetivos, que utiliza recursos materiais apropriados, que conhece os pressupostos das relações de comunicação, que diferencia tipos de avaliação, que analisa os resultados também em função da sua própria competência… enfim, o Professor tem de ser igualmente seguro didaticamente. Ora, para além do domínio do conteúdo e do método, a que se acrescentou o objetivo e a avaliação, como já vimos, espera‐se que este Professor conheça igualmente teorias psicológicas de desenvolvimento e aprendizagem para melhor adaptar estes elementos didáticos ao grupo de alunos que lhe é confiado. Pois cada aluno é “um aluno”, diferente de todos os outros em sonhos e ambições ou ausência de ambições… E para haver aprendizagem, tanto o científico como o didático têm de ganhar sentido pelo psicológico do aluno. Daí que, mesmo após aulas bem conseguidas do ponto de vista do Professor, reste muitas vezes uma sensação de incompletude e insatisfação por não se ter tocado o aluno. Porque se espera que este Professor seja também seguro ao nível do conhecimento psicológico do aluno. Ele terá também de enfrentar a demissão da família no apoio e acompanhamento ao educando. O ritmo de vida alucinante das sociedades modernas, com a entrada da mulher no mundo do trabalho, a colocação dos avós em depósitos esquecidos, o número crescente de famílias monoparentais ou pluriparentais (dois pais, duas mães), a ilusão de que um bom brinquedo substitui um gesto de carinho ou uma história, porque não há tempo para tal… enfim, todo este tipo de carência afetiva, de que o aluno é eventualmente portador, faz aumentar significativamente as suas responsabilidades, em áreas anteriormente votadas à esfera íntima da família. Dele se espera atualmente que assuma, gradualmente, o papel de substituto do pai ou da mãe, ou que seja, pelo menos, o amigo e companheiro em quem o aluno possa confiar. Mas este novo tipo de relação com o aluno coloca‐lhe, no entanto, um problema de dissonância afetiva: como compatibilizar o grau de abertura, confiança e amizade então conquistadas, com as funções de seriação e seleção pelas notas, que a sociedade continua a exigir de si? Também em termos axiológicos, vemos que o Professor se debate com um enorme campo de contradições. Se parece haver consenso sobre a universalidade de valores como a paz, a justiça, a amizade e a solidariedade, como lutar contra todo um apelo sub‐reptício à violência, à exploração do corpo, ao consumismo e à competição? Porque já não é aquela figura mítica, assepticamente distante sobre o estrado, ele convive no seu dia‐a‐dia com as contradições internas do sistema. Tal como os alunos, também ele faz parte do mundo real. Não pode, por isso, deixar de reconhecer que a interação entre o sistema científico‐didático e o sistema psicológico se processa num contexto macro, onde jogam múltiplas e antagónicas forças sociais, provenientes dos sistemas axiológico, político, ideológico, cultural, económico, religioso, etc.
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A tudo isto, acresce o mosaico cultural que tomou o lugar das elites homogéneas do passado. O alargamento da escolaridade básica e obrigatória veio apanhar aquelas franjas sociais, económicas e geográficas secularmente votadas ao abandono, abrindo as portas a uma escola de massas. Mas a democratização no acesso à educação fundamental não significa necessariamente democratização no sucesso... E sob a capa de uma intenção meritória de desenvolvimento e transformação da sociedade, acaba ele por ser, afinal, ou o salvador único do sistema, de quem tudo se espera e tudo se exige, ou o legitimador único da exclusão e discriminação social, no fundo, o mesmo papel de mero agente de reprodução social que havia tido no passado; só que agora mais agravado, por se esbaterem as responsabilidades políticas face à abertura do sistema... Aguentará o Professor atual o peso da hiper‐responsabilização que sobre si recai, neste momento? E a que distância de anos‐luz se encontra ele, Professor de agora, daquele seu antecessor da escola tradicional, Professor de outrora, que, num ambiente de estabilidade e serenidade social, se preocupava apenas com a transmissão da matéria!? 3. RUMO À PROFISSIONALIDADE DOCENTE Apenas a tomada de consciência crítica relativamente à complexidade do ato educativo poderá constituir o gérmen da sua força como Profissional. Vimos como, no passado, ele havia sido o agente ao serviço de alguém ou de alguma coisa, isto é, um técnico de ensino a quem pouco ou nada se exigia em termos de análise e reflexão: ou era um agente de reprodução social ou um agente de transformação social, mas sempre agente, numa lógica de funcionarização, de cumprimento de diretrizes emanadas de cima, sem as questionar. Ora, a capacidade de reflexão crítica será o primeiro passo no caminho para a sua profissionalidade, o primeiro passo daquilo que o fará passar de agente a autor. Esse salto qualitativo passa, no entanto, pela aposta que se fizer em duas novas áreas de formação: a da investigação em educação e a área do desenvolvimento pessoal. Com efeito, a dignificação profissional irá depender da capacidade que o Professor tiver de cientifização da sua prática. Em nosso entender, essa cientifização passa necessariamente pela investigação em educação: a investigação não pode ser apenas domínio do Professor do ensino superior. Só com a investigação (uma investigação‐ação), terá ele, Professor, o controlo da sua atuação. Pois, "…só dessa forma se podem tomar iniciativas sendo donos dos seus atos, em vez de arrastados por uma prática que não se domina porque não se conhece nem se a entende." (J. Gimeno Sacristan, 1981: 8).
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Ele terá de ser, assim, o prático reflexivo de que nos fala D. Schön (1987) e K. M. Zeichner (1993), que atua não em cumprimento de ordens emanadas de cima, mas porque conquistou a sua autonomia profissional. Por outro lado, o ato educativo, na complexidade atrás descrita, tem necessariamente de exigir uma pessoa psicologicamente forte e amadurecida, que sabe o que quer, com uma determinada linha de orientação. Tem de ser uma pessoa realizada, com um elevado nível de auto‐estima e um sentido claro de identidade. Expressões inglesas como “being oneself”, “fully functioning self”, “self actualisation”, “self realization”, “adequate personality” ou “high‐level wellness” significam esse patamar máximo que contribui efetivamente para o bem‐estar do Professor e dos que o rodeiam. Essa pessoa equilibrada terá então maior disponibilidade para os outros, porque se aceita e aceita os outros. Teremos então, não já o funcionário‐técnico de ensino, mas o verdadeiro Professor profissional. Professor, figura tutelar e guardiã, ao mesmo tempo que refém do sistema educativo, mas também Professor ator‐autor lúcido e responsável pela transformação do País. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS “Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Iesu”. (MDXCVIII). Neapoli: Typ. Tarquinii Longi. CLOUTIER, J. (1979). Era de Emerec. Lisboa: Instituto de Tecnologia Educativa. GIMENO SACRISTAN, J. (1981). Teoria de la enseñanza y desarrollo del curriculo. Salamanca: Anaya 2. HUBERMAN, M. (1995). O ciclo de vida profissional dos professores. In A. NÓVOA (Org.). Vidas de professores (pp. 31‐61). Porto: Porto Editora. INFANTE, V. S. (1999). O Perfil da Universidade para o próximo milénio. Education Policy Analysis Archives, [Online]. 7, nº 32. MONTEIRO, A. R. (1975). Educação, acto político. Porto: Edições O Professor. MORGADO, J. C. (2005). Currículo e Profissionalidade Docente. Porto: Porto Editora. RODRIGUES, F. (1917). História da Companhia de Jesus na assistência de Portugal (tomo 1, vol. 1). Porto: Porto Editora. SCHÖN, D. (1987). Educating the reflective practitioner. San Francisco: Jossey‐Buss. TARDIF, M. & LESSARD, C. (2005). O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes. TYLER, R. W. (1949). Basic Principles of curriculum and instruction. Chicago: University of Chicago Press. ZEICHNER, K. M. (1993). A formação reflexiva de professores: ideiase práticas. Lisboa: Educa. 133
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PROFESSOR ‐ UMA PROFISSÃO ETICAMENTE RESPONSÁVEL Lurdes Silva Professora (aposentada) Este texto, com o propósito de esclarecer a afirmação que fiz no título, desenvolver‐se‐á em cinco passos: 1º Passo__ sobre os conceitos de ética, moral e deontologia 2º Passo__ sobre a relação entre ética e educação 3º Passo__ sobre a necessidade de o professor agir eticamente 4º Passo__ sobre a necessidade de formação ética dos professores 5º Passo__ sobre um código de ética para os professores. 1. SOBRE OS CONCEITOS DE ÉTICA, MORAL E DEONTOLOGIA Falamos de quê quando falamos de ética? E de moral e deontologia? Havendo quem use ética e moral como sinónimos, fazendo deles um uso indiferenciado, outros há que os distinguem. Vejamos: o termo ética provém do grego e moral do latim. Ética terá “o seu étimo em duas palavras gregas ethos e hethos. A primeira designa costume, uso, modo visível de proceder, enquanto a segunda remete para um sentido mais íntimo, ligado ao que é próprio de cada um‐ morada habitual, toca, carácter e maneira de ser” (Seiça, 2003).Ética referir‐se‐ia não apenas ao modo de proceder mas também ao carácter, ao que no ser humano orienta e julga o proceder. A ética permite assim discernir o bem do mal, permite formular um juízo sobre o agir, considerando esta acção como louvável e aquela como inaceitável. Lida com os conceitos de bem, de justiça, de respeito. Maria Teresa Estrela, nesta linha, concebe “a ética como a reflexão sobre a conduta humana que leva à fundamentação de princípios orientadores”. (Estrela,2010) É desta ética como reflexão que as profissões fazem decorrer a sua ética profissional, isto é, procedem à transposição dos princípios orientadores para as situações profissionais.
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Indo agora ao conceito de moral, este compreenderá as regras de conduta prescritas para um determinado grupo, num determinado contexto social, histórico, geográfico, determinará as obrigações e as proibições a que nos devemos ater (Seiça, 2003). A palavra moral (do latim, mos, moris) ‐ usos, costumes ‐ parece, pois, estar mais adequada a referir‐se à acção, às práticas. Abordemos, por fim, o conceito de deontologia. O termo deontologia é uma palavra de formação relativamente recente, tendo entrado em uso a partir da primeira metade do século XIX. Deontologia (do grego deon, deontos, dever, e logos, tratado) designa determinadas classes de deveres relativas a particulares profissões ou situações sociais. A deontologia está associada à noção, portanto, de dever, àquilo que tem de ser feito, ao que é necessário que se faça. A deontologia de uma profissão enuncia os valores, os princípios que o profissional tem de ter presentes no desempenho da sua tarefa. Desenvolve os deveres, aqui tomados como normas do bem proceder, que o profissional deve respeitar, isto para que aqueles a quem os seus serviços se dirigem usufruam, no caso dos professores, do melhor ensino. 2. SOBRE A RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E EDUCAÇÃO Avancemos com uma nova pergunta: a que propósito falamos de ética e deontologia ao falarmos de educação e de professores? Tem toda a razão de ser esta associação. Vejamos. A educação é uma necessidade quando pensamos na humanidade do ser humano e na formação do carácter. Relatos vindos de há muitos séculos dão‐nos a conhecer a existência de crianças que, em tenra idade, foram abandonadas na natureza e que, quando foram encontradas, anos mais tarde, se comportavam como animais, não dispondo de atributos próprios do ser humano como a verticalidade, a fala, a linguagem, as emoções. Este conhecimento formou a convicção de que sem educação não se seria verdadeiramente humano. É por isso que a educação não é algo dispensável, uma coisa que se acrescenta e é antes uma necessidade iniludível para cada ser humano. Porque é a educação que forma o carácter, que formula e transmite princípios e valores, que, enfim, vai construindo o ethos. Se assim é, então a docência é uma ocupação propriamente ética. É a ocupação que a sociedade se viu na necessidade de criar para dar resposta a essa outra necessidade, a de educar as jovens gerações, a de introduzir as crianças e os jovens na civilização a que pertencem, dando‐lhes a conhecer os usos e costumes recomendáveis mas também os princípios e os valores desejáveis.
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Posto isto, parece fazer todo o sentido que aqueles a quem está entregue, por delegação das famílias, a tarefa de proceder à formação das crianças e dos jovens sejam capazes de os bem formar. E bem formar é formar para o bem. Ao usar‐se a noção de bem, estamos naturalmente a falar de ética: espera‐se que os professores sejam capazes de educar os seus alunos por forma a que se conduzam como sujeitos éticos. “Levar cada pessoa à descoberta do que em si é humano e a constituir‐se, desse modo, como sujeito moral e ético autodeterminado é, propriamente falando, a tarefa educativa” (Seiça, 2003). Poderá então o professor não se conduzir ele mesmo de acordo com princípios éticos? Não deverá desenvolver a sua acção debaixo da observância de uma ética, isto é, orientado por valores? Sendo óbvia, ou parecendo ser, a resposta, todavia não se têm daí tirado todas as consequências. 3. SOBRE A NECESSIDADE DE O PROFESSOR AGIR ETICAMENTE O professor é um adulto que se expõe, oferecendo‐se como exemplo. Convém que seja um bom exemplo. Isto é óbvio. Como é claro que nem os pais nem a sociedade aceitariam entregar os seus filhos a alguém de quem se não esperasse um bom exemplo, a alguém que, pelo exemplo, não pudesse bem formar as crianças e os jovens a seu cargo. É pressuposto que os professores estejam vinculados a valores éticos, sendo que “a profissão de professor tem inerente a si própria intenções e finalidades, tem um ´bem imanente` que constitui um ´padrão de excelência` que introduz elementos qualificativos de valoração ética e profissional, em que estão explícitos ou implícitos preceitos sobre o que é bem fazer e, por isso, se espera que seja feito. Assim, as acções concretas das pessoas inscrevem‐se num horizonte valorativo que tem uma permanência” (Afonso,1999). Logo, convém que o agir profissional do professor tenha por referência esse bem imanente, sob pena de, se assim não for, não se poder considerar como professor. 4. SOBRE A NECESSIDADE DE FORMAÇÃO ÉTICA Dados os passos anteriores, somos chegados a um paradoxo: sendo a docência uma ocupação constitutivamente ética, como se explica a pouca oferta de formação ética nos currículos de formação de professores? E, todavia, fazendo minhas as palavras de Edmunson (1990, citado por Garcia, 1999), “o currículo de formação de professores deveria ajudar os professores em formação a desenvolver um compromisso com a ideia de que a escola, numa democracia, é responsável por promover valores democráticos e por preparar os alunos para que sejam bons cidadãos”, parece manifesta a necessidade de os professores terem uma formação ética.
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Há vários modelos conceptuais de formação de professores e vários modos de fazer a formação moral dos professores. A formação moral dos professores pode fazer‐se tendo por estratégia o exame de situações hipotéticas mas verosímeis, de situações relativas aos conteúdos, de situações reais. Estas práticas não podem ignorar que o clima institucional em que decorre a formação de professores deve merecer enorme atenção, devendo ele mesmo ser educativo do ponto de vista do desenvolvimento moral. Sem esquecer também que aprender ética é o processo pelo qual se aprende a tomar decisões éticas e se aprende, portanto, a construir uma conduta deontologicamente correcta. Outra ideia a reter é que a formação moral dos professores não deve ser reduzida à moral profissional mas dirigida à formação do professor como pessoa moral. O comportamento ético é também resultado de uma acção educativa sistemática e intencional, recorrendo às estratégias formativas e aos meios que se julguem eficazes para que os professores se conduzam como sujeitos éticos, para que à ética da intenção corresponda a ética da acção. 5. SOBRE UM CÓDIGO DE ÉTICA PARA OS PROFESSORES Uma profissão exerce‐se por referência a uma ética donde os profissionais fazem decorrer os seus deveres, de modo a que os direitos daqueles a quem prestam serviço sejam protegidos. Geralmente esses deveres constituem o código de ética da profissão. Os professores portugueses não têm um código de ética. Tal facto pode querer significar que não se concebem a si mesmos como uma profissão, o que quer dizer que ainda não atingiram, como grupo, a maturidade indispensável a se conduzirem com autonomia, que é o poder de produzirem a sua lei e a ela livremente se submeterem. Dito de outro modo, há ocupações que pela sua especial delicadeza ‐ interferem na vida das pessoas ‐ exigem que sobre elas haja atenta vigilância que garanta o seu cabal desempenho. Os códigos de ética tornam público o modo pelo qual a profissão deve ser bem exercida. Tornam‐se o referente em relação ao qual se procede à distinção entre o bom profissional e o que o não é, visto só se admitir bons profissionais. No caso dos professores, estes ainda não convieram na elaboração e outorga de um código deontológico. Há quem argumente que havendo o Estatuto da Carreira Docente isso é bastante. Outros manifestam‐se contra a existência de um código deontológico porque isso, afirmam, é uma manifestação de corporativismo e outros por que atenta contra a liberdade individual. O primeiro argumento não colhe porque o Estatuto e o código são entes diferentes quer pela sua natureza quer pelo seu conteúdo.
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O Estatuto da Carreira, que não deve ignorar a ética profissional docente, é um diploma do governo. O código de ética é um texto elaborado e outorgado pelos professores aos professores. Se o estatuto procede do poder do estado, após negociação, o código procede do poder instituinte dos professores. O estatuto inscreve‐se na esfera laboral, regulando as relações entre os professores e a entidade empregadora, e o código inscreve‐se na área dos valores e dos princípios. Outorgar um código de ética profissional não é uma manifestação de corporativismo. Elaborar um código é formular uma deontologia, é tão só traduzir em deveres os princípios e valores a que os professores, como profissionais, têm de atender. Claro que um código deontológico limita a liberdade individual, já que o ingresso numa profissão é, ipso facto, limitativo das liberdades individuais. O professor deve comportar‐se e agir do modo que é próprio dos professores, do modo como um profissional deve agir e isso significa que outros modos de agir são tidos por não desejáveis. Outra questão ainda é a que se relaciona com o facto de a ética e a moral serem do foro íntimo de cada um e não ser possível acomodar as várias morais em uma só ética. Talvez por tudo isto, em muitos estudos que se fizeram eram quase nulas as manifestações a favor de um código deontológico que assumisse a forma de um texto escrito para todos os professores. De 2006 a 2010 integrei uma equipa coordenada pela Professora Maria Teresa Estrela, da Universidade de Lisboa (FPCE), que desenvolveu o “Projecto Pensamento e Formação Ético‐deontológicos dos professores”. Este Projecto também questionou os professores que participaram no estudo sobre se seria desejável um código de ética para os professores (Estrela,2010). Tanto nas entrevistas como nas respostas que 1112 professores deram ao questionário no âmbito desse Projecto, uma confortável maioria pronunciou‐se no sentido da concordância e completa concordância com a afirmação de ser desejável um código deontológico para os professores. Houve, portanto, relativamente aos estudos anteriores, uma alteração da atitude dos professores face à existência de um código, sendo hoje mais favorável. É‐se favorável porque se pensa que o código “poderá unificar a classe” e “facilitar a consciencialização, a formação da consciência profissional” e “orientar a conduta profissional”, “definir os critérios de profissionalidade”. Haver uma maioria de professores favorável a que haja um código de ética, não fez desaparecer as dúvidas, as incertezas e os receios e o enunciar de dificuldades de vária ordem a “enquadrar todos os professores num mesmo código”. Mas o que é certo é que os professores portugueses ainda se não outorgaram um código de ética. Isto mesmo sabendo‐se (como em outro lugar deixei escrito) que as ideias de verdade, de justiça, de bem se inscrevem no acto 139
pedagógico e nele se hão‐de realizar e que “a preparação das novas gerações de cidadãos é uma das finalidades em torno da qual existe um amplo consenso […] e a cidadania tem uma dimensão tanto política como social e que uma e outra envolvem uma componente ética” (Howard, 2005). Isto é, que ser professor é ter uma profissão eticamente responsável. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Afonso, Maria Rosa (1999), Avaliação e ética ‐ um contributo. UL, FPCE. Dissertação de mestrado em Ciências da Educação. Texto policopiado. Estrela, Maria Teresa e Caetano, Ana Paula (coord.), (2010), Ética Profissional Docente. Do pensamento dos professores à sua formação. Educa. Lisboa Garcia, Carlos Marcelo (1999), Formação de Professores. Para uma mudança educativa. Porto. Porto Editora. Colecção Ciências da Educação. Howard, R. (2005), Preparing moral educators. Era of standard based reform. Teacher Education. Quaterly Fall, 43‐58. Seiça, Aline Bernardes (2003), A docência como praxis ética e deontológica. Um estudo empírico. Ministério da Educação. Departamento da Educação Básica. Lisboa. 140
ÉTICA PROFISSIONAL DOCENTE Francisco Teixeira AE Francisco de Holanda 1. INTRODUÇÃO – ÉTICA E MORAL Quando falamos de “ética” talvez convenha, antes de tudo o mais, fazer algumas precisões etimológicas e conceptuais. Etimologicamente a palavra “Ética” deriva de “êthos” ou “ethos”. A primeira etimologia refere o domicílio de alguém, ou o abrigo dos animais, e os seus hábitos individuais; já uma segunda etimologia tem uma conotação mais comunitária e social, referindo‐se aos usos e costumes de uma comunidade. Enquanto a primeira afirma uma dimensão mais individual, ou subjetiva, da ética, já a segunda assinala uma dimensão mais objetiva e externa dos fundamentos e das normas. Por sua vez, a palavra “moral” deriva da tradução latina de ética. Mas, mais que a etimologia, o esclarecimento conceptual é mais relevante: assim, conforme o conceito é tratado tecnicamente, por exemplo na Filosofia, enquanto a “ética” diz respeito aos princípios ou fundamentos do agir, individuais e sociais, a “moral” diz mais diretamente respeito às normas ou regras de ação. A “ética” trata, tecnicamente, do “porquê” agir, de determinado modo e com que fundamento, enquanto a “moral” trata do “como” agir, em que circunstância. Como muitas outras coisas, a “ética” enquanto reflexão racional sobre o agir e o dever ser nasceu na Grécia clássica, no século V a.C., como mostra a etimologia. Platão e Sócrates, e depois Aristóteles, os educadores por antonomásia, escreveram e pensaram sobretudo sobre ética. A obra maior de Platão, a República, trata de saber como organizar um Estado Justo, desde então o problema central da ética. Por sua vez, Sócrates, o paradigma do professor no Ocidente, tinha o ensino como uma tarefa essencialmente ética, já que considerava a verdade e a virtude mais importantes que a própria vida, que perdeu, aliás, por ter sido dado como provada a acusação de que, afinal, ele, Sócrates, o pai da cultura ocidental, corrompia a juventude com as suas ideias e a sua prática pedagógica.
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Por aqui se vê que a profissão de professor é, certamente, a mais explicitamente ética de todas as profissões. Tanto assim que conduziu Sócrates à morte, pelo suposto exercício pouco ético da sua profissão, que, no caso, consistia em ensinar a descobrir, dentro de cada um, a verdade, a justiça, o bem e a coragem. Não nos iludamos, porém. A ética e, consequentemente, a natureza da profissão docente, na Grécia e na Roma clássicas, fundando embora a nossa cultura e civilização, eram bem diferentes do que são hoje. Desde logo, e essencialmente, não era então concebível a distinção, moderna, entre vida privada e vida pública. O ser humano era um ser iminentemente social e era incompreensível fora do nomos social, do conjunto de regras e tradições sociais e comunitárias. Platão e Sócrates, exigiam, uma coerência absoluta entre a ética subjetiva e a ética objetiva, sendo a alma o espelho da justiça social. Como diz um autor, “a virtude nada mais é que a lei interiorizada, e a lei a virtude objetivada”. O indivíduo, conforme o conhecemos hoje, simplesmente não existia, e viria a ser inventado bem mais tarde (mesmo que arremedos seus tivessem já despontado na antiga poesia lírica grega). Os Gregos foram os inventores, isso sim, do Humano universal, do humano enquanto catálogo de virtudes e perfeições, que viria a dar forma àquilo que hoje chamamos a dignidade e a natureza humana, e sem as quais, espero eu, já não poderíamos sobreviver. O Humano era, para os gregos, uma ideia de perfeição: de Verdade, de Justiça e de Bem e cabia à educação o auxílio à emersão desse Humano que latejava em todos as crianças. A educação era, então, um processo de edificação consciente, de desbastamento, uma maiêutica, do Humano. 2. A NATUREZA ÉTICA DA PROFISSÃO DOCENTE A natureza essencialmente ética da profissão de professor é fácil de entender. Aos professores compete fazer emergir o Humano que lateja no fundo das consciências infantis e juvenis. Ora, não há, claro está, coisa mais importante que esta. Não há tarefa mais importante que a responsabilidade pelo nascimento da Humanidade. O agir dos professores é, então, diretamente responsável pela configuração que o Humano há‐de vir a ter. A não ser, claro está, que o professor diga que, afinal, a sua tarefa e o seu agir essenciais não são o da edificação do Humano mas, simplesmente, o da instrumentação técnica do trabalhador, do produtor, do homo economicus, no que, porém, já falamos de outra coisa que não de um professor mas de um tecnólogo, de um profissional de saberes instrumentais, que não têm valor por si mesmo mas por outra coisa, ou em função de outra coisa que não o humano. Um professor, diga‐se desde já, não é um bom profissional simplesmente em função do domínio científico e tecnológico da sua área específica. Essa é, naturalmente, uma condição necessária para o bom exercício da profissão, mas não uma condição suficiente. Um bom professor é bom professor em função dos fins que visa. Logo, se não forem bons os seus fins a sua competência técnica não faz dele um bom profissional. Escreve com humor e precisão Augusto Alonso, que “nem toda a capacidade de 142
realizar bem uma atividade pode ser considerada uma virtude; tem, para além disso, de se referir ao bem humano no seu conjunto. É isto que permite distinguir um bom profissional de um narcotraficante”. Isto parece uma banalidade mas, se o é, é sinal que se perdeu, como em todas as banalidades, a vinculação essencial da profissão docente ao que de mais essencial e característico existe em si mesma: a de ser responsável por outrem, não só de um outrem que existe mas de um outrem que virá a ser. Por outro lado, esta responsabilidade não é somente individual. O professor não é o único responsável pelo devir do humano no seu aluno. A responsabilidade é, desde logo, também de outros professores e, mais ainda, da sociedade em geral. Isto conduz‐nos para a responsabilidade do professor enquanto membro, por um lado, de uma classe profissional, de um tipo comum de profissionais e, por outro lado, para a responsabilidade que o professor tem perante a própria sociedade, e de um modo duplo: primeiro, no sentido mais simples em que responde a um mandato social, que lhe foi dado, para construir o Humano nas suas crianças e, segundo, no sentido em que sendo um especialista do Humano, o professor tem a responsabilidade e o dever de intervir no âmbito mais amplo da sociedade, esclarecendo‐a sobre as especificidades da sua tarefa, sobre as suas exigências e sobre as interfaces entre a sua tarefa de humanização e a tarefa de humanização de outras profissões e responsabilidades sociais. Mas isto é já adiantar algo para esclarecer mais à frente. Assim sendo, quais são, ou devem ser, as virtudes próprias da profissão de professor? Em que se fundamenta e qual é o agir próprio, qual é a ética, da ação profissional dos professores? 3. AS VIRTUDES PROFISSIONAIS DOS PROFESSORES Sigo de perto aquelas que são, de modo mais ou menos consensual, as quatro principais virtudes profissionais do professor: a profissionalidade, ou responsabilidade moral, a responsabilidade social, a humanidade e a competência. Diga‐se, desde já, que não há ética profissional dos professores, fundamento da sua ação profissional, sem comprometimento profissional. Podemos, sem grande dificuldade, entendermo‐nos sobre as virtudes profissionais e até sobre um código deontológico. No entanto, isso de pouco valerá, do ponto de vista profissional, sem um envolvimento efetivo, e afetivo, com esses princípios. Sem um comprometimento ativo dos profissionais, das pessoas individualmente envolvidas no agir profissional, sem, afinal, uma outra ética a montante da ética profissional, uma ética de autenticidade pessoal, pela qual, desde já, se vincula, como talvez em nenhuma outra profissão, a competência profissional à própria identidade e carácter pessoais. E isto conduz‐nos diretamente para a primeira das virtudes ética de um professor: a profissionalidade ou a responsabilidade moral.
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3.1. A profissionalidade diz respeito, exatamente, e antes de tudo o mais, ao compromisso ético com a sua profissão, bem para lá da competência técnica. A profissionalidade e a responsabilidade moral dos professores condu‐los a um comprometimento com certos fins, com certos valores éticos, o mesmo é dizer, certos horizontes de realização da educação e do humano que não são indexáveis, ou redutíveis, a nenhuns outros. Este comprometimento “corporativo”, como refere, mais uma vez, Augusto Alonso, dá à profissão de professor uma finalidade que não o esgota na simples instrumentação ou instrução cultural ou tecnológica, que tanto pode ser boa como má, usada para o bem como para o mal. O professor, claro está, está comprometido com o Bem, o Verdadeiro e o Belo. Esclarecendo‐os sinteticamente, no nosso mundo ocidental o Bem, ou a Justiça, depende de um consenso de sobreposição relativamente a cada Bem particular, definido naquilo que é o constitucionalismo liberal/democrático, com as ideias de liberdade, de democracia e de fraternidade à cabeça; por sua vez, a Verdade depende de uma ética de autenticidade e o Belo é aquilo que, na nossa história, realiza o ideal de felicidade. Professar alguma coisa significa entregar‐se a essa coisa de modo livre e autêntico, num horizonte de felicidade. Assim, ter uma profissão, ser professor profissionalmente envolvido, significa professar a docência, isto é, desenvolver a sua profissão de modo livremente assumido, de modo verdadeiro, procurando a felicidade própria e alheia. De modo talvez mais simples e prosaico, ser profissional, ou professar a profissão de professor, implica viver para a profissão e não viver da profissão. Sentir que ensinar não corresponde simplesmente a uma tarefa mas a um desígnio pessoal, social e humano, sem o qual eu não seria a pessoa que sou mas outra pessoa. Mas a responsabilidade moral da profissionalidade deriva também, mais diretamente, dessa responsabilidade última que o professor tem perante o aluno, que estabelece com o professor uma relação desigual, já que este é aquele que representa, a seus olhos, não só a adultez mas, mais que isso, a adultez enquanto realização do humano paradigmático, enquanto que, pelo contrário, ele, aluno, se encontra, ainda, num estado de essencial incompletude e fragilidade. A responsabilidade do professor pela fragilidade do aluno e a garantia de que nunca usará o seu poder e a assimetria da sua relação contra o aluno mas sempre a seu favor, faz da profissão de professor uma profissão em que a responsabilidade pelo outro é o estado normal de profissionalidade. Por outro lado, o professor ensina não só pela obrigação burocrática de ensinar mas pelo valor intrínseco do que ensina. Ora, dar conhecimento desse valor ao aluno é tarefa essencial do seu agir pedagógico, ao invés da simples imposição autoritária de um saber. Um saber não desejado, cujo valor não se compreende, pode até ser útil mas será sempre, também, um saber que não realiza o humano no aluno mas, pelo contrário, o aliena
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(ainda que temporariamente). Grande parte da competência profissional do professor passa, aliás, por ser capaz de fazer perceber ao aluno a desejabilidade daqueles saberes, isto é, o seu valor e a sua finalidade. Como seria de esperar, num tempo de terríveis mudanças, este comprometimento do professor com aquilo que ensina e com os seu alunos (e com a sua escola e com os seus colegas) leva consigo elementos emocionais muito fortes, sobretudo quando tem que fazer compromissos entre aquilo que são as suas expectativas e desejos e aquilo que são os seus condicionamentos burocráticos, programáticos e materiais. No entanto, as contradições quotidianas entre os constrangimentos profissionais e a minha inelutável responsabilidade direta perante os meus alunos, olhos nos olhos, rosto no rosto, todos os dias, dentro da minha sala de aula, só acentua e realça a irrecusável responsabilidade ética e moral da minha ação pedagógica. Se eu me sinto constrangido, manietado, é porque sou responsável, é porque sinto que é minha a responsabilidade última do humano que, todos os dias, se vai configurando à minha frente. A profissão de professor é, então, em grande parte, uma paixão, uma emoção transbordante de identificação com o saber e responsabilização pelo aluno, o que, aliás, leva consigo a ideia de poder, com todos os perigos conexos. Esta capacidade de dar forma à Humanidade da criança, este perigoso poder que inebria, é fundamento ético da profissão de professor, já que o Mestre tanto pode salvar como matar, o que também não será tão raro como isso. Por sua vez, esta responsabilidade pessoal do professor é justificação e exigência da sua autonomia profissional. A contingência e a diversidade imprevisível do quotidiano pedagógico exigem que esteja nas mãos do professor a resposta à evanescência da situação. A radical contingência da ação pedagógica impede a categorização técnica das ocorrências e das circunstâncias pedagógicas e didáticas. Só um saber que seja uma sageza (técnica, cultural e humanamente cultivada, claro está) é capaz de responder ao humano que a cada dia e cada a hora cresce e se reconfigura nas nossas salas de aula. A capacidade de resposta a este dia, novo cada dia, não pode, assim, compaginar‐se com receitas mágicas ou categorizações fechadas, que matariam o humano ainda no seu alvor. A autonomia profissional do professor é, assim, condição de possibilidade do seu sucesso profissional e, ao mesmo tempo, um acréscimo de responsabilização ética, já que a liberdade do mal se torna, também, amplamente possível. Como veremos, porém, autonomia profissional não quer dizer, não pode querer dizer, fechamento sobre si mesmo, sequer corporativamente. A autonomia só pode ocorrer como relação e responsabilização. Sem relação e responsabilização não há autonomia mas egoísmo, pessoal ou social, que é o mesmo que dizer irresponsabilidade.
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3.2. A responsabilidade social Mas as responsabilidades éticas da profissão docente não são somente para com o aluno. Na medida em que a ética, enquanto dever ser, estabelece fins educativos e não só técnicas, que se devem perseguir, já se está no campo mesmo da política e da sociedade, já que é nestas instâncias que toda a decisão e ação éticas ganham sentido. Assim, os professores têm, desde logo, responsabilidades éticas perante um mandato social que lhes é atribuído: a de pastores do humano, permitindo‐lhe crescer. Em suma, os professores têm que dar conta do seu rebanho, mesmo que numa tensão iniludível e eterna entre a autonomia profissional e o resultado dessa autonomia. As capacidades profissionais dos professores estão ao serviço das crianças e da comunidade, embora, subsidiariamente, a comunidade também tenha responsabilidades perante os professores. Mas não há que inverter os termos da equação. O “pastor” tem que dar conta do “rebanho” e não o rebanho, ou os seus pais, ou o Estado, do “pastor”. Mas a sua responsabilidade social, ou comunitária, não é simplesmente passiva. Pelo contrário. Os professores têm o dever, a partir da sua autonomia e profissionalidade, na medida em que assumem um engajamento profissional autêntico, de contribuir com o seu saber para a formulação do saber social sobre a educação, o ensino, a docência, e, mais amplamente ainda, para aqueles domínios científicos, culturais, sociais e políticos que estão conexos com o seu múnus profissional. Têm, em suma, a obrigação de pôr à disposição da sociedade o seu saber acumulado sobre a própria sociedade, desde logo sobre os valores nucleares que se jogam na sua atividade profissional enquanto edificadora do Humano. A ética e a moral não são factos privatísticos. Pelo contrário, resultam de interações e compromissos sociais, mais ou menos formalizados, mais ou menos consistentes e temporalmente consolidados. Assim, a dimensão ética e moral da profissão docente ganha, por definição, uma dimensão social e política. Mas isto também quer dizer que a tentação solipsista, ou da autonomia profissional como fechamento, é claramente um absurdo, já que do mesmo modo que a profissionalidade docente, enquanto profissionalidade eminentemente ética, ganha imediatamente uma dimensão política, não podem os professores senão instalar‐se no jogo próprio da política que é o jogo dos valores contraditórios e plurais, em que são jogadores privilegiados, desde logo, as famílias e os próprios alunos, pelo menos a partir de certa idade. É por isto que alguns autores defendem que os bons profissionais da educação não podem evitar a política e, pelo contrário, devem mergulhar nela como o jogo mais amplo da decisão valorativa. Por último, a responsabilidade social dos professores obriga‐os a ter consciência e a cumprir os deveres profissionais que são específicos da sua profissão, o que implica um esforço de reflexão, referenciação e acção ética permanentes. Cabem aqui os deveres deontológicos da profissão docente ou, mais estritamente, os 146
deveres morais da profissão docente, para com a própria profissão, para com os alunos, para com a sua escola, os seus colegas e a sua comunidade. 3.3. A humanidade A “humanidade” é uma virtude ética conhecida. Todos nós conhecemos pessoas mais e menos humanas, profissionais mais e menos humanos. São menos humanos, sabemo‐lo bem, aqueles profissionais para quem toda a sua ação se reduz à execução estrita das suas funções. A funcionalização profissional, e por maioria de razões, na profissão docente, corresponde à incapacidade de transcender os limites estritos das exigências técnicas e burocráticas, perdendo o sentido de perspetiva de toda ação profissional, no sentido em que só tem sentido aquela ação capaz de se ligar à totalidade do ser humano e não apenas a alguma das suas parcelas, por mais importante que esta seja. Assim, é inumano cuidar apenas do corpo (da disciplina normativa) e esquecer o espírito (a liberdade criativa), como também o é cuidar apenas do espírito sem a disciplina do corpo. O unilateralismo funcional ou tecnicista é sempre realizado à custa da humanidade integral e também, e especialmente, no domínio da educação, onde qualquer amputação da imaginação à custa da disciplina é sempre castradora. Conta‐se uma história verdadeira segundo a qual, aquando do golpe de Estado de 1981, em Espanha, em que o Parlamento e os parlamentares foram sequestrados, se negociou, a certa altura, a saída, pela noite fria, de uma deputada grávida. Quando a deputada, agachada e receosa, se dirigiu ao guarda‐roupa para ir buscar o seu casaco (tinham, pouco tempo antes, silvado balas perdidas) e, encontrando‐o, saiu rapidamente, saiu também atrás dela, aos gritos, o empregado do guarda‐roupa, exigindo‐lhe a ficha do casaco, sem o que ela não poderia sair. Espanha poderia voltar a uma ditadura, mas a ficha do guarda‐roupa é que se não podia perder. Este é um caso de extrema funcionalização e, claro, de completa desumanização, em que se perde de vista um foco mais amplo do humano em favor da função estrita que se desenvolve. 3.4. A competência técnica À luz dos três pontos anteriores, conclui‐se facilmente que se a profissão docente não pode prescindir de conhecimentos especializados, técnicos/didáticos e científicos, a autêntica competência profissional dos docentes vai bem para além disso. Como lhe chama José Contreras Domingo, “temos de falar antes e acima de tudo de competências profissionais complexas, que combinam aptidões, princípios e consciência do sentido e das consequências das práticas pedagógicas. Dificilmente se pode
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assumir uma obrigação moral ou um compromisso com o significado e com as repercussões sociais do ensino se não se dispõe desta competência”21.
Sem um conhecimento profissional sobre o sentido da ação moral e ética dos professores, sobre a natureza do humano que nele se joga, o professor reduz‐se a um tecnólogo da educação, facilmente instrumentalizado e usado, se for caso disso, para a alienação em vez de para a edificação moral das crianças. Assim sendo, a capacidade e o hábito da reflexão profissional são essenciais para a competência da profissionalidade docente, o que não pode ocorrer senão dando sentido aos inputs e às pressões sociais, quer no interior de relações de classe, ou de profissionalidade, quer no exterior mais amplo das relações sociais. As competências complexas de que fala Contreras Domingo articulam‐se, então, na capacidade de estabelecer amplas relações e explicações sociais e morais e amplitudes de vistas culturais, o que também não pode deixar de não levar consigo a necessidade de competências de articulação pessoal, de estabilidade emocional, de comprometimento e sociabilidade. Assim, a competência técnica está bem longe de ser um saber instrumental e tecnológico de carater didático (mais uma vez, necessário mas claramente insuficiente), mas “competências profissionais complexas”, saberes relacionais (emocionais), culturais e políticos, suscetíveis de darem sentido, finalidade, à ação didática, sem o que esta seria mero ativismo pedagogista. Assim, a competência técnica tem sobretudo a ver com a capacidade de articulação dos saberes científicos com as responsabilidades éticas e sociais. 4. Ética organizacional A questão que agora, por fim, se põe, é a de saber se as escolas enquanto organizações complexas, têm, também, responsabilidades éticas e deontológicas. Antes de mais, clarifique‐se que a dimensão pessoal, subjetiva, sendo embora essencial na assunção das responsabilidades éticas de uma escola, não pode transformar‐se numa espécie de pérola subjetivista que moveria toda a realidade. Há mais mundo para além do sujeito, embora não haja mundos sem sujeitos, que é o caso quando estes se deixam sujeitar integralmente às mais variadas dimensões organizacionais. Acontece o mesmo nas escolas. As escolas são organizações complexas, que se relacionam com o mundo não escolar e que potenciam ou inibem a capacidade de os professores assumirem a totalidade das suas dimensões ético‐profissionais.
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Domingo, José Contreras (1999), La Autonomía del Profesorado, Ed. Morata, Madrid., p. 54.
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Escolas mais complexas, com mais subsistemas organizacionais, complexamente articulados e estimulados por uma comunicação formal rica e intensa, constituem contextos potencialmente mais ricos do ponto de vista ético e profissional. Não confundir, claro, complexidade organizacional com desarticulação. Mas também não confundir articulação organizacional com sistemas rigidamente e burocraticamente hierarquizados, reduzindo toda a ação pedagógica a finalidades meramente funcionais. Idealmente, uma escola complexa é, simultaneamente, articulada e livre, o que se pode referir pelo conceito de “sistema fragilmente articulado”, i.e., aquele tipo de sistemas em que a articulação organizacional ocorre através de inputs de contexto e não rigidamente normativos. A capacidade de articular, simultaneamente, ação com sentido pedagógico e autonomia profissional dos professores, depende deste difícil equilíbrio entre orientação e debate, complexidade e riqueza linguística e pedagógica, diferença interna entre opções ético‐políticas e identidade organizacional. Uma escola, por exemplo, em que os únicos inputs diretivos são os burocrático‐funcionais; onde as relações pedagógicas são as meramente instrumentais e didáticas; onde a comunicação se limita a um mínimo de instrumentação diretiva e aonde a direção ético‐pedagógica estratégica escapa à justificação e deliberação democráticas, é uma escola ao serviço da alienação, de alunos e professores e, claro, de uma mais ampla alienação social. Temos, assim, que no sentido em que a ética define um horizonte de valores orientadores, uma organização ética seria aquela que desenvolve práticas formais e experienciais democráticas, ou hábitos democráticos, no sentido em que é a democracia que ancora a legitimidade da ação organizacional. Sem democracia, no sentido de uma relação e ancoragem dos poderes na soberania da vontade dos agentes (no caso, dos professores, alunos, outros funcionários não docentes e, de modo complexo, dos pais), é difícil imaginar como pode uma organização escolar, e uma ação profissional, ser eticamente fundada. Aqui reside um dos maiores paradoxos da escola puramente funcional e burocrática, meramente instrumental, que alguns prescrevem como a escola a servir, e ao serviço, dos mercados neoliberais. Pretendendo manter uma aparência de eticidade legitimadora, esta escola mantém, ainda, alguns arremedos formais de democracia indireta e muita retórica democrática. No entanto, não só o ethos democrático (carregado de dissenso, conflitualidade, debate, temporalidade longa e tensão emocional) é aí entendido como altamente perturbador e antieconómico como, ainda mais, é frequentemente entendido como o inimigo ético‐político a vencer, valorizando‐se, organizacionalmente, a sujeição cívica, a não‐participação, o silêncio e o conformismo. Sabendo que uma escola instrumental é, por definição, uma escola eticamente esvaziada, perdida de qualquer horizonte de verdade, bondade ou bem, isto é, de Justiça, o neoliberalismo também sabe, no entanto, que estas palavras levam ainda consigo uma certa tonalidade religiosa que convém respeitar. Por isso, um véu mistificador caiu, hoje, sobre as nossas escolas. Um véu de falsa eticidade, já que o que se visa não é a Justiça mas a eficácia, não é o Bem, mas o poder. 149
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A CULPA É DO SETÔR! Nuno Mata AE D. Afonso Henriques Longe o tempo em que poucos eram os que sabiam ler e escrever, pois que poucos eram os que ensinavam e menos ainda os que achavam que era bom serem ensinados… O ofício do insignio devia ser tarefa despreocupada! E os conteúdos, competências, objetivos e metas de aprendizagem passavam de boca em boca, de trova em trova e de auto em auto. O calendário avança e Dinis virtuosamente retrata nas suas Pupilas a veneração pelo velho e doente mestre‐ escola, bem chegado ao prior e mais ainda ao doutor. E este trio honrosamente chamado foi pelo Armandito Latoeiro como trempe: a letra, a alma e o corpo, uma respeitável troika, ainda que à época tão sisuda e altaneira como a que nos visita de há três anos a esta parte… Mas nem tudo eram rosas, ou melhor, cada rosa tinha seu espinho. Corria o ano da graça de 1901 e um dinaussáurico jornal regional ‐ A Comarca de Arganil ‐ registava estas palavras de comentário acerca de uma escola primária da então província: “(…) uma pequena casa quadrada de 6,5 m por lado, situada entre duas ribeiras, cujas paredes são construídas de pedras sobrepostas, sem argamassa, com grandes intervalos (que bem se parecem com esconderijo de corujas e morcegos), dando passagem sem impedimento de espécie alguma ao vento e à chuva, regelando professor e alunos nesses grandes dias de inverno, mas ventiladores magníficos para não se morrer asfixiado, na época canicular, e três janelas microscópicas com um telhado roto que nem uma cesta (…)”. 1901… bem podia quase ser em 2013 onde a Parque Escolar não conseguiu fazer uma festa… Vem, de repente, um senhor natural das margens do Dão e saído da vetusta Lusa Atenas, decide que o povo deveria ser devidamente educado, tal qual se adestra a besta. E teve mérito o distinto político, pois que as escolas surgiram que nem tortulhos por todo o rural Portugal, à esquerda para as meninas, à direita para os rapazes e no meio território de ninguém, mas sempre cheio de gente prontíssima a prevaricar e, portanto, a escapar‐se à ética dominante do pudor e da decência, glorificado em aprumadas camisas verdes e em aconchegados calções castanhos, filhos e filhas de Carneiro Pacheco, Ministro da Educação, que orgulhosamente figuravam nos diplomas académicos. 151
Esta portuguesíssima mocidade escutava da regente escolar a lição, aprendia as contas e as letras que mal escrevia e lia. Pouco mais era necessário, já que o rebanho das ovelhas ou um qualquer ofício aguardavam que chegasse a idade de trabalhar para que a Escola fosse passado e a dureza da fábrica fosse a adolescente companheira, excelente curativo para a hiperatividade ou desvios semelhantes. E a regente lá recebia, ano após ano, a parca recompensa salarial, convencida que estava de que era docente como as meninas saídas do Magistério. Mérito houve neste período. A História de Portugal era única e valorosa. A espada de D. Afonso Henriques matava todos quantos a ele se opusessem, as padeiras eram astutas e patrióticas e haveria sempre uma epifania que vencia inimigos e aniquilava traidores. Escapou a estas bonanças a criança que o quis ser em terras de Aljubarrota, decerto mal tutorada e que ainda hoje se espera que apareça para nos livrar do jugo estrangeiro. E também aguardo que um qualquer iluminado me diga, um dia: a culpa foi do Setôr! Regressemos ao que interessa. Foi pelos fins destes tempos que entrei na escola. O velho edifício ainda existe, hoje (bem) remodelado numa biblioteca que fez desaparecer a cave da lenha e o cruxifixo, ainda que mantenha bem vivas as memórias de tantos quantos por ali aprenderam, sentados nas carteiras de madeira com tampo elevatório e com os buracos para a colocação dos tinteiros que já não se usavam no meu tempo. Nesta altura já os géneros se misturavam. A D. Ofélia sucedia à D. Ilda, que naquilo que é hoje a Educação Pré‐ Escolar nos dava as primeiras bases e os primeiros sermões, recorrendo a todo um conjunto de práticas que hoje são consideradas proibitivas, como usar agulhas para furar papeis… Mas creio que devem ter sido obrigadas a pedir autorização para casar, pois que nenhuma senhora professora o poderia fazer sem que o seu parceiro estivesse à sua social e económica altura. Ambas eram figuras respeitadíssimas na estrutura social da terra. Lá estavam nas mesas de honra sempre que alguma coisa era inaugurada ou alguém era distinguido. A Senhora Professora era a educadora por excelência. Educava no mais lato significado que a palavra possa assumir. E, ainda que com exageros, nenhum dedo lhe era apontado, antes se confirmava em casa o que se tinha começado na escola… isto quando dizíamos em casa o que se passava na escola!! Com mais ou menos reguadas, a D. Ofélia lá ia descobrindo a maneira de ser de cada um de nós. O Professor Aurélio também. E quando havia a possibilidade de prosseguir os estudos para além da primária sem que o exame tivesse sido bem sucedido, lá entrava o poder do pedagogo: “Olhe lá, já que o seu filho não continua para o liceu, deixe que o colega fique com a distinção no exame. Vai dar tudo ao mesmo e não se cortam as
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pernas a ninguém…”. E assim ficou o meu pai apenas com o exame feito, sem a tal distinção desnecessária… E assim era no tempo em que ao Padre, Médico e Professor se fazia vénia e se tirava o chapéu. Não foi certamente para me tirarem o chapéu que me decidi a ser Professor. Todavia também não foi para que me tirassem o tapete e muito menos que me tirassem do sério. Pelo ano de 1974 dá‐se uma revolução muito difícil de explicar aos estrangeiros: mete cravos, músicas na rádio, meia dúzia de tiros e um animadíssimo Verão que na época ainda era quente, mesmo sem se falar em alterações climáticas. Tinha eu 4 anos e, portanto, não usufrui de um dia sem aulas… Mas, depois destes momentos históricos, a democratização do ensino (e não confundir com a atual demo‐cratização) faz com que toda a simbologia anterior se esvaia. Tal como a trempe que foi ficando cada vez mais coxa. Tanto que hoje não se passa cartucho ao Padre, não se liga nenhuma ao Professor e pouco se ouve o Médico… O puro dever dá lugar ao inquestionável direito. Diz‐me o meu dia‐a‐dia que ao conteúdo funcional de um Professor – bem diverso daquilo para o qual eu me qualifiquei, ser Professor – não corresponde o papel social que na prática é verificável: a cada nova função junta‐se uma nova reprimenda, a cada nova atribuição anexa‐se uma complicação, a cada novo cargo, lá aparece um rol de críticas e insultos. Vejamos. Nos meus tempos de catraio, a D. Ofélia era simplesmente Professora. Está bem, lá tratava de meia dúzia de papeis… Era admirada, idolatrada, sobretudo respeitada por pequenos e graúdos! Eu, quando comecei nos idos anos noventa, já era Professor, jurista, ecónomo, assistente social, tutor, polícia, psicólogo, confessor, amigo, legislador e mais uma panóplia de coisas de nomes pomposos e de pertinência duvidosa. E, entretanto, também me transformaram em administrativo, fiscal das finanças, agente da segurança social, membro de equipas vastas e imprescindivelmente imprescindíveis, avaliador, … E, contrariamente à D. Ofélia, sou tramado na primeira oportunidade! Ou porque me enganei, ou porque não escutei, ou porque escutei e fiz de conta que não escutei, ou porque falei, ou porque estive calado, ou por isto, ou por aquilo. Basta pensar nisto: se o aluno tiver boas notas é porque estudou muito, aplicou‐se ainda mais e é um trabalhador meritório. Se o aluno tiver más notas, a culpa é do Professor! Pior, a culpa é do setôr…! Esta coisa de ser setôr apavora e enoja. Em primeiro lugar porque não existe em lado nenhum a definição para o termo. Será de origem grega, germânica ou latina? É a junção de Senhor e Doutor ou de Senhor e Professor? Em segundo lugar porque é uma encapotada forma de desprestigiar a função sem ser ostensivamente deseducado… A mim soa‐me sempre a qualquer coisa do tipo “Oh Senhor Pá…”. Em terceiro lugar esvazia a nossa verdadeira profissão, a tal para a qual fomos formados, a tal que queríamos ser quando fossemos
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grandes: PROFESSORES. Isso mesmo, tão simplesmente Professores! Finalmente, eu nem setôr chego a ser, porque havendo mais setôras do que setôres, estão sempre a fazer‐me uma cirurgia reconstrutiva do género… Admitamos, parvamente, que a Escola também é apaixonante desde o toque de saída de uma aula até ao toque de entrada para outra aula. Pois… desculpem… nem mesmo imaginando o melhor dos cenários… E por que é que não é? Porque já todos percebemos que quase nada do que se faz é reconhecido lá fora, é aproveitado por aqueles a quem se dirige. Pior, todo o trabalho, preocupações, ansiedades e aborrecimentos, todo o tempo que não gastamos com os nossos filhos, com os nossos cônjuges, com o que nos faz (também) feliz é considerado como férias ou período de descanso já que não estamos com alunos. Haverá, contudo, algum profissional que leve tantas vezes atrás de si o seu trabalho? Pois… Se porventura estamos doentes, andamos a estoirar dinheiro nos bons médicos e nos bons hospitais usando essa despudorada ADSE. Se falece um familiar é uma pouca vergonha de faltas! “E agora quem é que trata do meu menino, só e tristemente abandonado?? Ah pois é, tem uma aula de substituição. Ufa, que descanso, não aprende nada mas pelo menos não anda a asneirar… Ele nem é disso, mas as más companhias…”. Para agravar a apocalíptica desconsideração social, os não‐professores categorizaram os Professores quanto à área disciplinar que, entre reuniões e papelada sem fim à vista, conseguem lecionar. Há, portanto, Professores importantes e suscetíveis de queixas, reparos e preocupações e há os outros que ocupam os espaços entre as aulas dos primeiros. E não há nada pior para os que têm como função receber os representantes dos alunos (pois que os que vêm à escola na maioria, de encarregados têm pouco e de educação menos ainda) de constatar que se houver problema a Inglês cai o Carmo e a Trindade, mas que se for de Educação Visual é só uma chatice… A queda em desgraça do estatuto de Professor tem, em meu entender, acompanhado a queda da importância da escola enquanto local de disciplina, rigor e trabalho. E este é um problema socialmente transversal. De repente perdeu‐se a autoridade do pai, da mãe, da pessoa mais velha e até a polícia de choque leva com pedras e insultos. Consequentemente, o Professor foi neste rol do “não me toques…”. E sem autoridade não há disciplina. Sobretudo nos mais jovens. Acompanha‐se a perda de autoridade com um ambiente social em que não há mérito nem castigo. O meu pai demorou anos até conseguir ter um cargo de destaque na empresa onde trabalhava. Hoje há miúdos de 21 anos que vão para assessores especialistas dos Ministérios da República… Não vale a pena sermos rigorosos e trabalhadores se, sem o ser, conseguimos atingir funções de destaque. E contra tudo isso luta o Professor, tentando explicar a um miúdo de 12 anos que vale a pena estudar e comportar‐se devidamente quando ele olha para o seu colega de carteira que faz exatamente o oposto e mesmo assim passa de ano… É que ser rigoroso, disciplinado e trabalhador dá uma trabalheira desgraçada!!
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A escola deixou de ser repetitiva e memorizadora para passar a ser um conjunto de anos em que o jovem é obrigado a matricular‐se, ficando habilitado para qualquer coisa no final, mesmo que algo corra mal. E não é incomum que apenas caiba ao Professor o papel de mero atribuidor de níveis – preferencialmente dos que permitem as transições. E se é assim, pouco importa se é branco ou preto, alto ou baixo, sorridente ou sisudo… O Professor, esse hoje hibrido do sistema de ensino, raramente se identifica com o meio onde exerce a sua função. Ou porque está a lecionar a 300 km de distância (diz o meu irmão e bem que “para um Professor, 200 km é já ali…”), ou porque está naquela escola apenas por 3 ou 4 meses, ou porque não está para aí virado. E isso também faz a diferença na aceitação social, uma vez que quanto maior for a proximidade ao objeto de trabalho, mais facilitada será a comunicação e a compreensão. Porém, dificilmente se atinge tal desiderato quando a maioria dos Professores se encontram fora dos seus locais de origem e realizam diária ou semanalmente movimentos pendulares esvaziadores de relações sociais mais estreitas… Esta criação de laços é potenciadora de melhores integrações. Quantas vezes para explicar um conteúdo tenho recorrido (com algum êxito) ao meu conhecimento da cidade e região onde trabalho, com tal opção a permitir uma melhor compreensão e identificação dos alunos, lutando contra as dificuldades de abstração que frequentemente evidenciam e com a desconexão sentida entre a teórica escola e a prática vida. E em quantas ocasiões é usado esse conhecimento para argumentar com pais acerca de problemas que urge solucionar… E o que se verifica é que muitos dos meus interlocutores me olham de outra forma pois que me consideram um dos seus. Escola e Professor parecem ser entidades opostas. Quando há uma greve não se ouve dizer “olha que pena, hoje os alunos não vão aprender com os seus professores…”. Ao invés, o que se escuta é “onde é que os vou deixar hoje??”. E, para cúmulo e já que de greves se trata, se não houver assistentes operacionais, a escola fecha. Se não houver professores, a escola abre as suas portas para todos quantos ali queiram permanecer. Escola e Professor são as duas faces da mesma moeda. Uma acompanha a outra em tudo o que de bom acontece e em tudo o que não deveria acontecer. A Casa da Lição passou a ser ocupada por gente que tem de lá estar. Não interessa se com proveito ou não. Deixou de ser relevante a satisfação pessoal e profissional. Somos um número, ou melhor, um mega número! Numa escola de claríssimos direitos e de insondados deveres, invariavelmente a culpa é do setôr! Porque quem nele manda e dele faz marioneta está lá longe. Tão longe que etéreo se tornou. Mas há esperança: acalento a fé de que um dia os setôres sejam gourmet e, aí, ainda que dos mesmos se trate, voltem a ser desejados e apreciados.
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PROFISSÃO, TRABALHO E IDENTIDADES DOCENTES: ENCRUZILHADAS NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO Joaquim Paulo Teixeira AE de Fafe Ao longo da história, a estrutura e a organização escolar têm vindo a sofrer mudanças significativas influenciadas pela conjuntura política, social ou cultural de cada época, submetendo, consequentemente, o professor a diversas transformações, quer na sua prática pedagógica, quer na essência da sua profissionalidade. Desta forma, embora não sejam recentes, as discussões acerca da idiossincrasia do trabalho docente colocam‐nos perante a reincidente questão da sua natureza, em especial, se considerarmos essas transformações ocorridas nas últimas décadas no mundo do trabalho e na sociedade em geral, bem como o modo pelo qual se constitui a identidade do trabalhador‐professor. Para o efeito, assumimos a premissa segundo a qual uma das grandes dificuldades do desempenho da profissão de professor está na perda gradual de autonomia. A literatura percorrida confirmou‐nos o que empiricamente suspeitávamos: Foucault (1996), por exemplo, citado por Teodoro (2006), refere que “estão a emergir novos modos de fabricação de professores”, sendo que “As fabricações são versões de uma organização (ou pessoa) que não existe” uma vez que “não transmitem simplesmente explicações directas e verdadeiras” (Ball, 2002: 15). A perspetiva sociológica propõe‐se desocultar esta possibilidade “en su doble encuadramiento” (Serón, 2003: 328), a saber no plano social e no plano educativo, recorrendo a abordagens distintas, embora complementares e em permanente tensão. Deste modo, concedendo ao docente o grau de “categoria social”, como “grupo de estatuto” que se encontra inserido numa determinada estrutura social, ele é também possuidor de um conjunto de características potenciadoras dessa realidade. Como “agente educativo”, o professor vê legalmente reconhecidos a sua preparação e o seu protagonismo, quer ao nível do trabalho “solitário” de lecionação propriamente dita, quer também ao nível da gestão escolar e das decisões nas grandes linhas orientadoras da política educativa. Dito de outra forma, o professor enquadra‐se na linha de raciocínio de Peter Blau e de Richard Scott (1969), para quem a resolução de problemas nas organizações em geral, logo também nas organizações educativas, se prende com questões técnicas e/ou políticas.
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Assim, “El estudio como categoria social lo realiza la sociologia desde tres perspectivas: la funcionalista, como profesión o semi‐profesión; la marxista, como clase; y la weberiana, como grupo de estatus” (Serón, 2003: 328). Este autor defende que, se por um lado, a dimensão funcionalista reconhece a existência de um crescendo interno em função do grau de autonomia profissional (…), por outro, devido às sucessivas reformas educativas, a abordagem marxista potencia a tese dos que vêem o desempenho docente a pender para a proletarização. Os trabalhos que seguem a perspetiva desta tese partem do ponto de vista de que o professor é um trabalhador assalariado, que está a passar por um processo de desqualificação, de perda de prestígio e de controlo sobre o seu próprio processo de trabalho (Lawn & Ozga, citados por Serón, 2003). Embora façamos parte dos que consideram que, os professores, como intelectuais que são, se constituem como agentes, mais ou menos conscientes, do aparato ideológico mais importante do capitalismo, que é o próprio sistema educativo, constatamos, de igual forma, que a intervenção racionalizadora dessas agendas (ou ambições) capitalistas no mercado de trabalho se estendeu definitivamente ao campo educacional. A este respeito, é nosso entendimento que, ao proceder à alteração do Estatuto da Carreira Docente, de forma a dotar as escolas de “um corpo docente reconhecido, com mais experiência, mais autoridade, mais formação, com maior responsabilidade (…) ”, o poder central deu o mote ao enquadramento preliminar que veio a permitir a taylorização e a consequente estratificação da classe docente no nosso país. Na nossa perspetiva, este facto, aliado à introdução da figura do gestor unipessoal, a quem se “assacam” responsabilidades, veio‐se a revelar o maior contributo em direção à proletarização da classe. Em grande medida, desde a implementação do DL nº 75/2008, de 22 de Abril, o poder central vem, de igual modo, contribuindo para esta mediação racionalizadora, tecnocrática e gerencialista, expondo as verdadeiras intenções do poder central, a saber, a almejada sobrevalorização de uma lógica implícita, ligada às transformações práticas da avaliação e da mercadorização, em detrimento da lógica discursiva explicita, de consumo mais “eleitoralista”. A autonomia privilegia, de facto, a adaptabilidade do sistema educativo às exigências do mercado. No mesmo sentido, estão as convicções de Garcia Pereira (2008), para quem, em vez de reforçar a participação das famílias e das comunidades na direcção das escolas e ao preconizar a liderança unipessoal, a legislação mais recentemente produzida pelo Ministério da Educação “ (…) procede afinal a uma verdadeira subversão do regime da LBSE” onde “o valor da autonomia é radicalmente substituído pelo da sujeição à cadeia hierárquica (…) ”, nos diversos patamares do sistema educativo, abandonando a tradicional e inerente horizontalidade da carreira docente. Esta perceção sai conceptualmente reforçada com o reconhecimento de Friedson (1994), citado por Serón (2003), para quem o estatuto da profissão de professor confere um grau de autonomia técnica parcial e incompleta, embora identificando uma hierarquização desse grau de autonomia, distribuído pelos diferentes níveis de ensino ministrados, em função da relação que o professor estabelece com o conhecimento.
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Segundo esta visão, e num contexto de proletarização da profissão, o docente foi destituído da sua autonomia, perdendo o controlo sobre os fins do seu trabalho e sobre os modos da sua execução. Para perceber como os professores estão a perder poderes, Ana Sofia António (2004: 43,44) recorre às imagens sugeridas a partir do jogo do “bridge”, por Houssaye e Nóvoa, de “lugar do morto”. Nesse jogo, nenhuma jogada pode ser feita sem ter em conta o terceiro elemento, que, porém, não pode interferir no desenlace. Parte‐se assim do pressuposto de que “o lugar do morto” é concedido ao professor, excluindo‐o de um conjunto de poderes ao mesmo tempo que se lhe atribui cada vez mais funções e responsabilidades. Esta perceção permitir‐nos‐ia enquadrar a profissão docente na categoria das “semi‐profissões”, na aceção de Etzioni, ou nas profissões “heterónomas” como as denomina Weber. Referindo que os professores se movem num “lugar intermédio e contraditório”, Enguita (1990: 160, citado por Serón, 2003: 313) menciona a ambivalência do trabalho docente onde coexistem traços de grupos profissionais e outros específicos da classe obreira. Existe, assim, uma grande divergência entre os autores que partem da perspetiva da tese da proletarização para interpretar o trabalho docente em relação ao enquadramento do professor numa classe social. Para Apple, os professores têm uma localização contraditória de classe, pois estão situados simultaneamente em duas classes, onde “partilham dos interesses tanto da burguesia, quanto da classe operária” (1995: 32). Neste domínio, a nossa compreensão do contexto nacional atual vai na esteira de Hargreaves para quem a sobrecarga de trabalho, a redução da qualidade de vida, com a burocratização crescente de tarefas a desempenhar não passam de uma estratégia para a desqualificação intelectual dos professores, exercendo uma carga de violência simbólica enorme nos profissionais. Cremos também que, no xadrez educativo do momento, o desempenho, quer de associações quer de sindicatos de professores, tem vindo a contribuir, de igual forma, para este sentimento de desprofissionalização docente. Estamos longe, é certo, das conceções originárias que levaram à criação dos primeiros sindicatos profissionais a seguir ao 25 de Abril de 1974 e que levaram Stephen Stoer a defender que o sindicalismo permitiu “construir o profissionalismo enquanto uma estratégia dos professores, mais do que uma «ideologia da classe dirigente» ” (2008: 68). De facto, e apesar de reconhecer que, pelo menos à primeira vista, os acontecimentos nacionais mais recentes na luta pelos valores da classe docente, parecem demonstrar o oposto, na generalidade, o desempenho destas organizações tem‐se pautado mais por uma certa aproximação a ideários e agendas de partidos políticos do que pela defesa do estatuto de uma classe. Reconhecemos o caráter empírico e pouco fundamentado desta constatação, mas, constitui o nosso entendimento enquanto docentes. Sentimos que é novamente necessário “identificar uma identidade profissional de «dentro para fora», a partir da relação com um saber científico próprio e da solidariedade em torno de interesses comuns” (Lima, 2000: 127).
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A sensação de frustração que a LBSE de 1986 deixou, assim como os sinais de crise e de mal‐estar relativamente ao sistema educativo, desprotegeram ainda mais uma classe, já de si extremamente exposta. Na última década, a escola abriu as portas à comunidade, regulando, de forma diferente, quer o domínio (da estrutura assim como do conhecimento técnico), quer o estatuto, quer o controlo dos meios na e da escola. “A massificação da educação coincide com uma mudança de forma da escola” (Teodoro, 2006: 56), e, à mudança de forma da escola corresponde, implicitamente, uma mudança de forma dos atores que a compõem, acrescentamos nós. Embora o campo escolar não seja “um campo destinado ao exercício de um poder e de um saber exclusivo dos professores” (Afonso, 2000: 48), os professores desconfiam, entre outros aspetos, do potencial controlo das populações e da comunidade local sobre o seu trabalho educativo. À la longue, vêm do reconhecimento de uma identidade profissional como funcionários públicos dependentes do estado central, associados a uma escola “edificada a partir do centro e com poucos ou nenhuns laços com o local” (Ibidem: 71). Parece‐nos que esta pseudo‐autonomia atribuída à escola e a centralidade omnipresente das comunidades locais ‐ a quem se presta contas ‐ conferem um grau de afastamento da profissionalidade docente relativamente a este modelo de funcionário, que, no caso de Portugal, constituía a sua “identidade social” (no sentido Bernsteiniano), perspetivando assim grandes e significativas mudanças ao nível da formação como ao nível do recrutamento dos professores. Não defendemos uma conceção ideológica de profissionalidade fechada, onde se desincentiva a participação das comunidades. Bem pelo contrário. Porém, parece‐nos, de todo e para todos, conveniente, reconhecer o campo de saber especializado onde o professor se movimenta, e a sua capacidade singular para nele tomar decisões. Tecendo algumas considerações à volta da afirmação de um Nova Ordem Educacional configurada à volta de uma economia do conhecimento, e da profissão de professor na Europa, Fátima Antunes refere a exclusão dos parceiros nacionais na tomada das grandes decisões políticas ao nível da educação. Para esta autora, “A análise do processo de gestação do documento Princípios Comuns Europeus para as Competências e Qualificações dos Professores indica que a questão dos professores ganha corpo ao ritmo da afirmação de uma política comum europeia para a educação” (2008: 105). Apurando a efetiva multiplicidade de modalidades de acesso à docência, e convocando Almerindo Afonso (1996), neste artigo, aponta‐se para o surgimento do professor‐ técnico, eficaz e eficiente quanto baste na transmissão das opções centralizadas e dos “currículos sob controlo centralizado”, e para a possibilidade de uma completa descaraterização do trabalho docente. Para Perrenoud (2001: 137), “Podemos até mesmo considerar evoluções regressivas, processos de “desprofissionalizaçao”, de “proletarização”. O Brasil é apresentado como um exemplo onde “o barateamento e o aligeiramento da formação de professores foram procurados sob a égide de uma política de profissionalização, que alguns consideram um eufemismo, como «estratégia política e técnica» de reforma para um novo modelo de escola e de professor” (Antunes, 2008: 122). O Processo de Bolonha, por exemplo, associou‐se a esta agenda 160
globalmente estruturada. António Teodoro vê nesta ação uma estratégia política concertada onde “Combater os «privilégios» e o «laxismo» ” (2006: 82), se tornaram locuções da ação governamental. Estes instrumentos constituem modos eficazes de “mudar o que significa ser professor” (Ball, 2002), que, aliados aos fatores de “transnacionalização da educação” (Stoer, Cortesão & Correia, 2001), estão a condicionar o aparecimento de um renovado estrato social que Bernstein classifica como uma “nova classe média”. De facto, partilhamos as convicções daqueles que afirmam que estamos a assistir ao dealbar de uma identidade docente reconstruída, com novas lógicas e novas racionalidades, à “fabricação” de um novo modo de ser professor (Foucault, 1996, citado por Teodoro, 2006). Se entendermos que os professores se encontram inseridos neste novo estrato e que se encontram condicionados por novas “tecnologias políticas de reforma” ‐ a saber performatividade, mercado e Nova Gestão Pública ‐ na acepção de Ball, então o reconhecimento social já não lhes provém da capacidade de combater a exclusão social ou de democratizar o acesso à cultura e aos meios de aprendizagem, mas encontra‐se antes baseado nos resultados escolares dos seus alunos, justificando, de alguma forma, o resultado dos estudos que apontam os professores como estando mais individualistas e menos solidários, mais plásticos e menos autênticos. É verdade que os professores estão presentes em todos os discursos sobre educação, sistematicamente apresentados como detentores de um papel fundamental na construção de uma sociedade do futuro e que é “a opinião pública e a classe política, que no fim de contas decidem o espaço dos professores na hierarquia dos ofícios” (Perrenoud, 2001: 138). Contudo, na esteira de António Nóvoa (2008: 31), para quem muitas vezes os professores “são o terceiro excluído”, parece‐nos que é como retórica que esse intento deve ser lido, uma vez que a sua tradução na prática escolar ou nas políticas educativas é bastante limitada. Na busca de sentido nesta caracterização do trabalho docente, cremos que se torna essencial considerar as práticas sociais dos sujeitos envolvidos a partir, quer da sua formação escolar, quer do contexto social em que essa formação acontece, a vivência quotidiana na escola, as relações que são estabelecidas com o produto de trabalho ‐ que é o saber ‐, as relações com os outros agentes educacionais envolvidos na escola, a relação que se estabelece com as diversas instituições representativas de classe, as condições estruturais da profissão (vencimento, condições de trabalho, etc.), entre outros fatores. Neste sentido, se o processo de proletarização docente é uma realidade inerente ao modo de produção capitalista e às suas transformações, também nos parece que o poderia ser a opção pelo caminho inverso, ou seja, o reforço da profissionalização docente. A identidade docente constitui‐se na capacidade mediadora de um grupo profissional enquanto classe social, onde nem a formação, nem a experiência individual, nem as políticas públicas têm, isoladamente, papel determinante na definição de um caráter identitário, mas onde as relações dialéticas que se estabelecem entre todos estes elementos determinam e consubstanciam o seu grau de profissionalidade e o modo como esta é percecionada, embora sempre acondicionada pela conjuntura económica, social e histórica do momento. 161
CONCLUSÃO Na perspectiva de um olhar inicial e delimitado, a elaboração deste ensaio permitiu‐nos atestar a relevância e a oportunidade mas também a necessidade de investigar permanentemente a profissão professor. Genericamente, comprovamos novas formas de representação e de ressignificação social e refletimos acerca da relação dialética entre profissionalização e formas concretas de organização do trabalho. É nosso entendimento que não é possível discutir‐se profissionalização sem discutir a lógica adjacente à organização do trabalho, sob pena de se assacarem responsabilidades de forma indevida. Os professores realizam um trabalho que, mesmo não podendo ser considerado capitalista, na sua essência, vem sendo submetido a uma lógica capitalista de racionalização e organização fordista e taylorista. A implementação de políticas de espírito empresarialista, em curso na Europa e no nosso país, com critérios performativos nas lógicas de qualidade, de eficácia e de eficiência, põe em crise o próprio conceito de profissionalidade. É nosso entendimento que o controlo pelas normas a montante e a regulação na lógica da prestação de contas às comunidades, dando mais atenção aos resultados do que aos processos pedagógicos educacionais, traz consequências sociológicas e profissionais, não desejadas, pouco entendidas, e, por muitos, nada debatidas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, A. J. (1996). “A avaliação dos professores: um novo desafio ao profissionalismo”. Rumos, nº 9, p. 6; AFONSO, A. J. (2000). “Profissionalismo docente e participação dos pais na escola pública: um breve apontamento” (Comentário à Conferência de Jurjo Santomé). In Actas do seminário sobre O Papel dos Diversos Actores Educativos na Construção de uma Escola Democrática. Guimarães: Centro de Formação Francisco de Holanda, pp. 47‐50; ANTÓNIO, A. S. (2004). O outro lado do espelho: Sentimentos, vivências, imaginários ‐ Professores no lugar do morto. Porto. Edições ASA; ANTUNES, F. (2008). A Nova Ordem Educacional ‐ Espaço Europeu de Educação e Aprendizagem ao Longo da Vida. Coimbra: Edições Almedina; BALL, S. (2002). “Reformar escolas / reformar professores e os terrores da performatividade. In Revista Portuguesa de Educação, nº 15 (2), pp. 3‐23; BLAU, P. e SCOTT, R. (1969). La Burocracia en la Sociedad Moderna. Buenos Aires: Paídos; ENGUITA, F. M. (1990). La escuela a examen. Madrid: Eudema;
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MEMÓRIA DE UMA PROFESSORA Maria Teresa Portal Guimarães de Oliveira Subdiretora do AE das Taipas Ser professor significa estar atualizado sobre as novas correntes pedagógicas, metodologias e estratégias de ensino e apostar na formação, seja ela uma autoformação através da leitura de obras de cariz científico‐ pedagógico e frequência de seminários, palestras e ações de formação de curta duração, seja através de ações de formação creditadas fornecidas por entidades formadoras como os centros de formação de professores, as associações, os sindicatos e as universidades. Ao longo dos mais de trinta e cinco anos de carreira, li muitos documentos e frequentei muitas das modalidades de formação enunciadas e fui gerindo a minha carreira e a minha apetência por uma atualização permanente. Amiga do lápis (marcador) e do papel, sempre gostei de tirar notas e depois escrevinhar as minhas impressões e reflexões que, há já um bom par de anos, se transformaram também em pequenos artigos de opinião, por vezes pequenas crónicas, tendo começado a colaborar com dois jornais regionais ‐ o Povo de Guimarães e o Reflexo (impresso e digital) ‐ e a presente revista ELO. Esses escritos, publicados ou não, eram e são um exercício contínuo e reflexivo que muito me tem ajudado na desconstrução e interpretação de diferentes documentos e legislação e na sua aplicação na prática do dia a dia do docente, enquanto professora, enquanto responsável pela coordenação de um órgão de gestão intermédia, enquanto elemento do órgão de gestão da escola / agrupamento. Dessa forma, partilhei e partilho as minhas experiências, vivências e inconfidências, para que os pares (e não só) delas possam tirar algum proveito… “Uma professora disse que se nós, professores, contássemos, partilhássemos as coisas boas que acontecem connosco teríamos uma fonte enorme de energia e de otimismo, mas estamos mais habituados a compartilhar os problemas, as dificuldades. Se os professores contassem por escrito ou oralmente as coisas boas que acontecem na educação, tínhamos uma fonte inesgotável de entusiasmo, de otimismo, de energia, de força. Parece‐me muito preocupante que haja tanta obsessão pelos problemas, pelas dificuldades, pelo fracasso, e menos por tudo o que se faz, tudo o que se dia, que é muito, para melhorar a nossa vida. E quantas emoções…” (Guerra, Miguel Santos; A vida de professor é apaixonante; pp.14‐15) 165
PROBLEMATIZANDO A “ESCOLA” Algumas experiências pedagógicas Apesar das mudanças, visíveis ou não, o conceito de escola mantém‐se inalterado. Não há escola se não houver alunos para aprenderem, professores para ensinarem e fazerem aprender, pais/encarregados de educação para ajudarem (e desajudarem) e conteúdos para serem transmitidos (e assimilados!), o chamado currículo no seu todo formal, informal e oculto, este último muito importante. E, sendo a escola um local tão polémico, ponto de encontro de “culturas” tão divergentes dos vários intervenientes no processo educativo, não admira que, na gestão escolar, se tenha de gerir e lidar com a/s indisciplina/s geradas no seu seio. Mais do que teorizar sobre o que seria a escola ideal numa base utópica, temos de nos confrontar com a escola real do quotidiano que não se compadece com uma procura de soluções rápidas num qualquer manual à mão de semear. As vivências boas e más foram‐se e vão‐se arrumando nos escaninhos da memória e, para alguns, a motivação mantém‐se desde a primeira hora, por amor à camisola, por teimosia, por vocação, se bem que esta palavra cause controvérsia. Estes são os professores carismáticos, que conseguem transformar as situações mais problemáticas em situações mais motivadoras para a aprendizagem pelo insólito e desusado e alterar a carga energética das experiências negativas em positivas. Normalmente, estes professores são os que estipulam regras na sala de aula sem serem inflexíveis. Têm o chamado jogo de cintura e sabem ouvir os alunos, sem nunca os abandonarem. Depois, há os outros a quem tudo acontece, pois desde logo abdicam da sua autoridade sendo subjugados. E a grande maioria situa‐se numa zona cinzenta e vão enfrentando ou procuram enfrentar a difícil tarefa de ensinar com alguma competência e eficácia. “Disse um pedagogo italiano que para ensinar Latim ao João, mais do que saber Latim, é preciso conhecer o João. Acho que em todas as etapas a relação afetiva que se estabelece entre o professor e os alunos é uma constante. Os alunos aprendem daqueles professores que amam e, por sua vez, quando o professor ama a sua missão e ama as pessoas, torna possível o processo educativo e o processo de aprendizagem, porque o verbo aprender, tal como o verbo amar, não se podem conjugar no imperativo. Não se pode obrigar uma pessoa a apaixonar‐se por outra, tal como não se pode obrigar alguém a aprender. Despertar o desejo de aprender; despertar o desejo de ser uma pessoa melhor, só se consegue com amor.” (Guerra, Miguel Santos; A vida de professor é apaixonante; p.10)
A primeira questão que se coloca é, pois: O que é um professor e qual a sua função? “Missão, sacerdócio… Penso que são expressões que têm a ver com o reconhecimento de que a função de professor não é a de um mero funcionário que está a cumprir um horário. Tem de ter uma compreensão muito grande da importância decisiva daquilo que está a fazer. E isso dá uma espécie de quase sacralidade à sua tarefa”.
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“Mas ensinar não é informar; ensinar é constituir uma rede de conhecimentos, é sistematizar; dar pistas de orientação… É cruzar. Não é introduzir informação em pacotes, em bytes. Portanto, quanto mais informatizada é a sociedade, quanto mais ela é capaz de autonomamente introduzir informação nos sistemas sociais, mais importante é o papel do professor. Porque o professor ‐ e agora não estou a falar do educador ‐ é aquele que oferece uma cartografia, um mapa, no interior do qual as várias informações podem encontrar o seu lugar… O trabalho do professor é a articulação, a relacionação…” (Pombo, Olga; A Escola é o lugar onde a memória se faz futuro; pp. 10‐12),
Apesar do que aqui cito e com o qual concordo plenamente, a professora Paula Pombo caminha depois, ao longo dessa entrevista, num sentido com que não concordo ao querer espartilhar o ensino dentro das paredes de uma sala de aula. Em 1 de junho de 2009, publiquei no Povo de Guimarães este artigo: “O que é um bom professor? Esta foi a pergunta que me coloquei, mas depois achei que ia perder tempo a enumerar uma série de caraterísticas sobre o perfil do professor que outros, muito mais capazes, já enumeraram nos normativos e de tal forma que todos quantos as leem se consideram maus professores ou indignos de se intitularem como tal. Optei, assim, por ser mais direta e por lançar aos ventos o meu grito... não sei se de dor, de revolta, de angústia, de raiva,… E pensei que, para se ser professor, nos dias que correm, é necessário ser cego, surdo, mudo, obstinado, teimoso, ator, sonhador. CEGO para não ver, fingir não ver o que está mesmo à frente do nariz‐ o desinteresse dos alunos, a falta de concentração, a falta de empenho nos trabalhos, a falta de motivação pela escola; por outro lado, a desconsideração e falta de respeito demonstrados por pais e entidades oficiais. SURDO para fingir não ouvir o «diz‐se diz‐se» das bocas do mundo (alunos, pais, mesmo colegas) que nunca constroem, antes procuram amesquinhar e maltratar (conscientemente, quantas vezes com requintes de malvadez) os que querem trabalhar e se empenham no que fazem. (…) MUDO para calar a voz que quer soltar o seu grito de dor, de revolta, numa ânsia de levar tudo à sua frente, de pôr os pontos nos is, de pôr em sentido quem fala aos ventos por falar, de exigir que ouçam a sua voz de pessoa qualificada para o ensino (…) OBSTINADO para continuar firme no seu posto apesar de todos os vendavais, de todos os temporais e capitanear a nave impedindo o seu naufrágio, impondo regras à sua tripulação e não a deixando desistir. Continuar a trabalhar nas condições atuais tem exigido aos professores muitos sacrifícios e muita vontade, mas isso não tem preocupado minimamente quem está no poder.
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TEIMOSO para ser como a mosca e continuar a bater contra a vidraça ‐uma e outra vez‐ sempre esperando que esta desapareça e surja um buraquinho por onde possa passar, ou seja, é necessário que não se canse de remar contra a maré. Apesar da pouca importância que lhe dão, que seria da educação em Portugal se os professores se abstivessem da sua função de ensinar? ATOR para ser capaz de fingir que está tudo bem quando tudo vai mal, para ser capaz de deixar a vida pessoal ao portão da escola mesmo quando ela se impõe aos gritos, para ser capaz de se transformar numa multiplicidade de personagens de que os alunos possam necessitar (pai, mãe, psicólogo, assistente social,…), para transformar o que é aborrecido numa diversão, para chorar e rir com os alunos, para… para… SONHADOR para nunca perder a esperança na juventude e no mundo, para pensar com criatividade na sua profissão e nunca estagnar, para começar cada novo dia com um sorriso nos lábios e um pensamento positivo, para continuar a achar que o melhor do mundo são as crianças”.
Ser Professor é não recear quebrar barreiras, não temer ir contra a maré, não ser mais um carneiro do rebanho… “Lembro. E pergunto: qual foi o meu melhor professor? Difícil, a resposta. Porque haverá vários. Porque o critério de avaliação é complexo. Mas, imerso na memória, arrisco o factor distintivo: o meu melhor professor foi o que conjugou a exigência, o desassossego, a abertura a novos (e estimulantes) pensamentos. Foi o que nos fez desaprender (o lugar e o senso‐comum, o estereótipo), o que nos fez espantar, o que intelectualmente nos incomodou, o que acendeu o desejo de saber mais.” (Alves, Matias; 2007)
Todos sabemos que os alunos andam na escola obrigados para aprenderem tudo aquilo que não podem fazer por imitação e que exige aprendizagem. Das três categorias (obrigados satisfeitos, obrigados revoltados e obrigados resignados), a segunda é a dos alunos problemáticos que, mais facilmente, engrossam as fileiras do insucesso e do abandono escolares. Neste grupo, estão muitos dos envolvidos em casos de bullying (um flagelo nas escolas atuais!), tanto agressores como vítimas. E copio aqui o relato de uma “Experiência Pedagógica” que saiu no jornal Reflexo, em julho de 2004 (a que cortei algumas partes menos interessantes para este contexto): “Um ano, uma experiência pedagógica. Esperava‐nos um carrossel maluco cheio de expectativas, de esperanças, de dissabores, de altos e baixos, sem monotonia nem descanso. (…) Apenas um tentar quotidiano que ia dando resultado ou não, e exigia carradas de paciência nem sempre à disposição. (…) Andámos pelos limites! Único consolo: éramos apenas dez os professores martirizados e poderíamos ser muitos mais, se os alunos não tivessem sido colocados todos na mesma turma. Traço que os unia ‐ problemas comportamentais que se refletiam na aprendizagem, mas, na maior parte dos casos, espertos que nem ratos. 168
Como motivar aquela malta buliçosa, barulhenta, travessa, indisciplinada que transformava o professor no bode expiatório dos problemas que enfrentava em casa? Miúdos que viviam sozinhos e faziam o que lhes apetecia sem serem questionados, miúdos de pais alcoolizados, miúdos com dinheiro sem se saber de onde vinha, miúdos que eram ignorados ou preteridos… Todas as atitudes tiveram de ser pensadas, repensadas, pesadas e pena foi que os dez professores não conseguissem dirigir a classe com a mesma batuta, ou pelo menos seguindo a mesma partitura. Foi tão difícil! Como uniformizar atitudes de homens e mulheres, com filhos pequenos, adolescentes ou mais crescidinhos, com vidas tão díspares, com os seus desânimos e pesares, alegrias e tristezas? Quais os direitos dos professores? Há um que todos conheciam e conhecem ‐ ser professor dá direito a carregar com os problemas dos outros. (…) E os desabafos, as trocas de impressões diárias entre uns e outros pouco ajudavam a suportar a desilusão, o sentimento de incapacidade, de incompetência, de raiva que nos invadiam quando as estratégias que reformulávamos constantemente não pareciam resultar. E os métodos variavam, mas todas as tentativas para chegar até eles faziam ricochete numa parede à prova de bala, numa parede de indiferença, de atitudes provocatórias. E vinha a reflexão em casa, no caminho, na escola. Que vou fazer? Como vou fazer? Ter estudado tanto na vida para depois não saber como agir perante estes garotos, potros selvagens que fugiam até de uma carícia! Havia ocasiões em que chegava a vir à tona um pequeno arrependimento por ter escolhido esta profissão ‐ ser professor/a. Tanto desgaste para quê? Conselhos e mais conselhos… sermão e missa cantada e para quê? Teimavam, teimavam e tudo voltava ao mesmo tal como os sempre em pé. Porém, havia outras ocasiões em que uma pequena centelha parecia brilhar no fundo do túnel que surgia, esporadicamente, quando menos se esperava, e quantas vezes sem ter sido preparada nenhuma estratégia especial… Então, nessa altura, a alma ganhava um novo alento e as forças multiplicavam, centuplicavam. De entre os miúdos sobressaía um. Arisco, esquivo, rebelde. Contrariava sempre pela negativa. Como fazê‐lo superar um tão grande complexo de inferioridade, uma tal sensação de insegurança, uma tão baixa autoestima? «Eu não sei, eu não sou capaz». Tanta revolta num catraio tão pequeno! Cansados, quantas vezes arrepelávamos os cabelos, inconscientemente. Onde estava a paciência? Onde estava a capacidade de dar a volta? (…) Nesse dia, decidi fechar‐me na minha concha e deixar correr. Estava cansada, cheia de problemas pessoais que me absorviam praticamente a tempo inteiro e o Jorge estava cada vez pior no dizer dos outros professores. (…) A minha abstenção quase «forçada» durou umas três semanas. Não liguei absolutamente nada ao miúdo e, da mesma forma, a todas as comunicações que me faziam só dizia: «Passa a escrito! Depois eu vejo!» Neste tempo, o Jorge partiu um vidro, destruiu três cestos de papéis aos pontapés e agrediu severamente um colega. Juntei a papelada toda e o inevitável aconteceu ‐ um conselho disciplinar. 169
Ainda aturdidos com a minha reação desusada, os colegas olhavam‐me de soslaio, enquanto eu ia relatando as ocorrências num tom neutro. Não tomei qualquer atitude defensiva em relação ao Jorge; pelo contrário, abstive‐me e analisei tudo friamente e sem tomar partido. Substancialmente diferente da diretora de turma que eu fora!! Perante esta minha tomada de posição, o conselho de turma começou a procurar atenuantes para todas as ações desregradas do rapaz. (…) Afinal, o Jorge até era um bom rapazinho que só precisava de mão firme e de que todos os professores tomassem uma atitude concertada e coerente. Deixei‐os falar e fiquei espetadora. Não estava para conversas, por um lado, e, por outro, o meu silêncio estava a dar resultados nunca esperados. A minha cabeça parecia uma bola de pingue‐pongue, pesada e simultaneamente cheia de ar quente, extremamente quente. Parecia pesar toneladas. (…)A discussão acalorava‐se, porque não se entendiam quanto à sanção a aplicar. O coitado do Jorge já era tão maltratado pela vida! Filho de pai alcoólico e de mãe prostituta educava‐se sozinho na escola da rua de um bairro de lata da grande cidade. Os seus companheiros de brincadeira tratavam por tu a droga, aliás, traficavam‐na mesmo e eram ases do gamanço, do pequeno e do grande roubo, de assaltos à mão armada ou sem arma, para já não falar de outros crimes puníveis pela lei. Consciente de que não aguentaria muito mais tempo, retomei a reunião, anunciando num tom absolutamente vago quais eram as sanções passíveis de serem aplicadas. Pessoalmente, eu era a favor da suspensão das aulas com serviço à comunidade, porque o Jorge não deveria ser deixado à solta no ambiente social em que vivia. Assim aconteceu, porque eu assim quis, porque, se deixasse, teria saído dos assados em que se metera apenas com uma repreensão. (…) Este foi um caso difícil, mas foi possível regressar aos carris, com um esforço coletivo e efetivo trabalho de grupo por parte dos docentes. Não é fácil ser professor e, … porque nós, professores, não somos ouvidos, apenas somos massa anónima para cumprir o que os outros concluem ser bom para a Educação nos seus gabinetes aquecidos ou arrefecidos, conforme a estação do ano.” (Com oito anos e está atualíssima!).
A postura na sala de aula, nos dias de hoje, é uma situação problemática para alguns. E segue‐se uma discussão estéril sobre quem será o culpado, quando todos sabemos que a culpa morreu solteira. Acaba por estar inerente à postura do professor (ao tal perfil que muitos não têm) e está, sem dúvida nenhuma, à falta de uma boa palmada pedagógica em casa ou de um bom sermão ou de uma boa motivação. A escola é um prolongamento do que é feito ou não em casa, se bem que o aluno viva entre os seus muros a maior parte do dia. A ausência de regras é uma constante; por isso, é necessário que, na escola, estas existam e sejam cumpridas. “Muitas vezes levo a ideia aos professores de que o que fazem não é o ensaio geral, é a vida. E pergunto se, no dia‐a‐dia, quando são professores, se vão fazendo mais felizes ou mais desgraçados? À medida que vão tendo mais anos, como se vão tornando? Mais quê? Mais humildes, mais sábios, mais felizes, mais otimistas, mais comprometidos? Ou essa vivência vai‐os fazendo mais tristes, mais pessimistas, mais cansados, mais distantes, mais sensíveis? Digo que isto não é ensaio geral, que é a vida, porque não vai 170
haver oportunidade de fazer de novo. Ser inteligente é desenvolver a capacidade de ser feliz e de ser boa pessoa. Não é mais inteligente aquele que mais dinheiro acumula e se sente mais infeliz. Por que é inteligente, se é mais desgraçado, se está infeliz? A inteligência não é o armazenamento de conhecimento, mas a capacidade de saber viver honradamente e feliz. Por isso, os professores têm nesta questão algo fundamental para as suas vidas e para a vida dos alunos, porque não é igual trabalhar com um professor feliz ou com um professor amargurado. Os alunos sabem‐no muito bem”. (Guerra, Miguel Santos; A vida de professor é apaixonante; p.12)
A propósito, segue um pequeno texto “Regras de etiqueta, um conceito do passado?”, publicado no Povo de Guimarães, em março de 2009: “Sou completamente avessa a normativos, a leis, aos próprios manuais escolares… enfim, a tudo quanto me espartilhe e me faça andar por carris estreitos sem grande azo a liberdades e me façam perder a respiração, a paciência, a vontade de seguir em frente. Contudo… CONTUDO, em maiúsculas e em negrito, há regras que fazem parte do meu eu, tal como me conheço, desde sempre. Chamem‐lhes regras da boa educação, onde se englobava a cortesia e a etiqueta à boa maneira portuguesa, antiquada e fora de moda para muitos. (…) Penso que «sei estar», o que é algo que muitas pessoas (algumas já não tão jovens quanto isso!) ignoram, nomeadamente, a gente nova. A etiqueta é erradamente associada a uma elite que leva uma vida social ativa. Pelo contrário, a etiqueta é a base da educação, é um conjunto de regras básicas que nos dizem qual o comportamento e atitudes a tomar em determinadas circunstâncias e ocasiões da vida. (…) Assim, podemos dizer que a educação e a dita etiqueta são duas aliadas imprescindíveis para se «saber estar» em qualquer local ou situação. Ora, numa altura em que se fala tanto que a avaliação dos alunos deve ser tripartida, focando diferentes vertentes essenciais ‐ o saber, o saber estar, o saber fazer ‐ parece incongruente que os discentes estejam tão afastados do tal parâmetro «saber estar». Onde e como se pode promover nos alunos o Saber Estar? Em aulas de Formação Cívica, certamente, nas aulas de Língua Portuguesa, de História, de Ciências Naturais e da Natureza, sem dúvida, … ou seja, em qualquer área curricular disciplinar ou não disciplinar. Isso quer dizer que o «saber estar» percorre todo o currículo como área transversal. Chamem‐lhe Educação para a Cidadania, mas não basta, pois também é Educação Sexual, Educação para a Saúde, Educação para o Ambiente... É que, a educação em casa, no recreio, nas ruas da vila, na catequese, no clube que frequenta, na piscina, nas aulas de Língua Inglesa na International House ou no Britânico, nas aulas de ballet, nas aulas de caraté, nas aulas de hóquei em patins, nas aulas de voleibol, nas aulas de música,… enfim, o chamado currículo oculto tem também uma enorme influência na personalidade e no caráter de cada um. «O homem é um ser eminentemente social» já dizia Aristóteles. (…) Ora, para viver em sociedade, o homem tem de respeitar e cumprir regras, dentro de uns certos limites. As tais regras do saber estar. (…)”
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Em profissionalização em exercício, aprendi a fazer o que, na altura, chamávamos de roda da avaliação, em que cada fatia correspondia a um dos parâmetros que seriam avaliados ao longo do ano: assiduidade e pontualidade, participação nas aulas, TPC, testes sumativos, testes de compreensão oral, trabalhos de expressão escrita, trabalhos de grupo, leituras recreativas, leituras obrigatórias, fichas de gramática… e, ultimamente, os portefólios. Nas primeiras aulas do ano letivo, sempre fiz esse registo nos cadernos diários para desmistificar o “peso” absurdo que pais e alunos dão aos testes. Um erro em que não incorro, apesar de, cada vez mais, a escola estar a fazer um regresso ao passado, em que as aprendizagens cognitivas, ou seja, os conhecimentos estão a ter um peso substancial. O sair para fora da sala de aula, as visitas de estudo, o saber in loco, o trabalho de projeto estão a ser menosprezados por quem emana os normativos e a escola está a ficar fechada nas suas quatro paredes (de novo!), uma incongruência, já que se coloca o enfoque no trabalho colaborativo. Para mim, os testes continuam a ser apenas mais uma fonte de recolha de dados que me ajudam a classificar (uma atividade de que não gosto) e, acima de tudo, ao serem uma fonte de aferição de conhecimentos, permitem‐me reformular as minhas estratégias e adotar as que melhor se adaptem a cada um dos meus alunos e procurar remediar as falhas. Eis porque muita da minha avaliação tem uma orientação formativa para ajudar a superar dificuldades que advenham de vários tipos de fatores: cognitivos, sociais, económicos, regionais… valorizando o trabalho de grupo (pequeno grupo) e o de pares e, acima de tudo, procurando cativar os jovens, motivá‐los para que queiram aprender o que me proponho ensinar‐lhes. Não concordo com o currículo “pronto‐a‐vestir” e daí detestar que me obriguem a seguir uma planificação elaborada em grupo ou a fazer um teste modelo único. Uma das minhas preocupações tem sido diferenciar para poder levar o grupo‐turma ao sucesso. E manter o otimismo e não desistir. “Digo que esta missão, esta tarefa de educar é essencialmente otimista, porque parte do pressuposto que o ser humano pode aprender, que o ser humano pode melhorar. Este princípio é otimista. Se o rejeito, rompo a educabilidade, pois esta rompe‐se quando eu penso que o outro não pode aprender e que eu não o posso ajudar a consegui‐lo. Por isso, sem otimismo, podemos ser bons domadores, mas não bons educadores”. (Guerra, Miguel Santos; A vida de professor é apaixonante; p.11).
O registo seguinte “O Professor e as planificações” (com supressões) saiu publicado, em novembro de 2008, no Povo de Guimarães: “Os anos passam e à angústia da incerteza, da falta de prática, dos verdes anos segue‐se a certeza fornecida pelo conhecimento pragmático fornecido pela maturidade e pela diversidade de estratégias, de recursos experimentados. Ao longo do caminho percorrido, a experiência ensina a traçar o guião, um fio condutor, para que a via do ensino ‐ aprendizagem seja segura… (…). Contudo, e isso era uma das regras ensinadas no estágio, nunca se deve deixar um aluno sem resposta ou deixar de seguir uma nova pista (...).
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Talvez por isso, em tantos anos de docência, a utilização do mesmo teste duas vezes nunca me agradou. Não consigo seguir uma planificação, tal como traçada originalmente, (…). Passo a vida a reformular, a replanificar, a reescrever o escrito sempre com o fito de melhorar, de adaptar às novas circunstâncias que foram surgindo ao longo do ano e que, por imprevistas, não puderam ser alvo de planificação. É isso que me agrada na minha profissão ‐ a imprevisibilidade que sempre leva a novas aventuras e não compactua com a monotonia, com o cuidadosamente planeado. Sou uma aventureira do ensino que navega por mares nunca dantes navegados por recusar sistematicamente o «déjà vu», o «cuidadosamente planificado». Tenho um fio condutor das aulas e depois deixo que os meus navegantes sejam atrevidos e audazes. É por isso que as tarefas propostas são «obrigatoriamente» executadas por toda a marujada (…) É claro que corro riscos, principalmente o de ter um plano de aula que não foi minimamente cumprido, porque me decidi seguir por outras pistas (…) Não faz mal. Depois, regista‐se no diário de bordo a ocorrência e os resultados conseguidos. Se, em estágio, fiz isso milhentas vezes, não vai ser agora, trinta anos depois, que vou mudar. Como diz o ditado «burro velho não toma andadura; e se a toma pouco lhe dura». “A acção de ensinar é pois em si mesma uma acção estratégica, finalizada, orientada e regulada face ao desiderato da consecução da aprendizagem pretendida no outro. Não se trata assim, para o professor, de se perguntar: “Como é que vou organizara apresentação deste conteúdo de modo a ser claro e perceptível”? ‐ mas sim “Como é que vou conceber e realizar uma linha de actuação (que pode incluir a apresentação do conteúdo, estrategicamente organizada e articulada com outros dispositivos), com que tarefas, com que recursos, com que passos, para conseguir que estes alunos em concreto aprendam o conteúdo que pretendo ensinar?” (Roldão, M:C. 2009).
Com Pessoa a segredar‐me ao ouvido “Valeu a pena”, reitero o que disse na experiência citada pela voz de outro poeta “Pelo sonho é que vamos”. Não esmoreci nem deixei de acreditar e de sonhar e com Miguel Santos Guerra digo “Ensinar não é só uma forma de se ganhar a vida, é sobretudo uma forma de se ganhar a vida dos outros”. Pelo contrário, considero que faço parte dos privilegiados que estão em contacto direto com a juventude, com o fogo da criatividade, da inovação, da rebeldia, do querer mais e mais… pese embora os tais cinco anos que vou viver a menos pelo desgaste e pela profissão de risco… Que futuro?
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ROLDÃO, M:C. (2009). Estratégias de Ensino ‐ o saber e o agir do professor. Porto: Fundação Manuel Leão GUERRA, MIGUEL SANTOS. (primavera 2011). A vida de professor é apaixonante. A Página da Educação 192: pp. 08‐17; POMBO, OLGA. (inverno 2011). A escola é o lugar onde a memória se faz futuro. A Página da Educação195: pp.08‐19; ALVES, MATIAS (2007, 7 janeiro). O meu melhor professor. 16‐04‐2012. http://terrear.blogspot.pt/2007/01/ o‐meu‐melhor‐professor‐jos‐matias alves.html#!/2007/01/o‐meu‐melhor‐professor‐jos‐matias‐alves.html 174
A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O CONHECIMENTO DO PATRIMÓNIO ARTÍSTICO DO CENTRO HISTÓRICO DE GUIMARÃES António José de Oliveira∗ AE das Taipas Num tempo marcado por mutações aceleradas e de crescente globalização, com tendência para a massificação e uniformização cultural, e atendendo ao facto de os docentes ligados aos estabelecimentos de ensino do meio envolvente ao burgo vimaranense desconhecerem aspectos particulares do riquíssimo património artístico vimaranense, pois no ensino superior raramente é abordada, em detrimento de outras perspectivas mais universalistas, parece‐nos útil e necessária a observação mais atenta do centro histórico da cidade onde estamos inseridos, porquanto o seu conhecimento proporcionará uma maior articulação entre a escola e o meio envolvente. A identidade cultural de um povo compreende‐se pelas marcas da sua intervenção ao longo do tempo no espaço construído; nele se imprimem os testemunhos das diversas civilizações que dão um cunho próprio à identidade urbana. O “sítio” e a “situação” do velho casario aglomerado em torno do espaço intramuros de Guimarães conserva um riquíssimo património, mercê dos acontecimentos históricos ligados ao poderio real e eclesiástico, da posição privilegiada do cruzamento de estradas, que desde cedo permitiu o aparecimento de uma próspera comunidade de mercadores e, enfim, não menos importante, o aspecto sociológico de ter uma “elite” com poder político, administrativo e económico no noroeste de Portugal. Todos estes factores contribuíram para que, desde muito cedo, mesmo antes da afirmação da Nacionalidade, se desenvolvesse a urbe vimaranense, cuja importância se estendia muito para além do âmbito local, tornando‐se mesmo um dos mais importantes aglomerados do Entre Douro e Minho.
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Mestre em História e Cultura Medievais. Doutorado em História de Arte Portuguesa (Faculdade de Letras/Porto). Investigador do Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade. Docente na Escola EB 2, 3 Caldas das Taipas.
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Como não poderia deixar de ser, o próspero crescimento do aglomerado atraiu, à então vila, um número crescente de habitantes dos mais diversos ofícios e estratos sociais que obviamente imprimiram uma fisionomia característica à estrutura urbana, mas cuja tipologia própria se reflecte na existência de um dédalo de ruas medievais confinadas numa malha urbana estreita, que nos oferecem muitas vezes a surpresa de desembocar em praças monumentais ou em espaços valorizados com edifícios construídos em época posterior, já no século XVII e XVIII, em que as Foto 1 – Vista área do centro Histórico de Guimarães edificações de estilo Barroco e Rococó se destacam no (Câmara Municipal de Guimarães, 2001) meio do apinhado casario medieval. A actividade arquitetónica, nessa época, em Guimarães, desenvolveu‐se em três grandes áreas: imóveis construídos de raiz; conclusão de programas construtivos anteriores; e acrescentamento de estruturas barrocas nos edifícios medievais. O núcleo urbano do centro histórico de Guimarães, que desde cedo foi importante, não é de estranhar que tenha atraído uma diversidade de artesãos e mestres de diversos ofícios que, para além de contribuírem por iniciativa própria ou por outrém para a transformação e enriquecimento do património construído, deram uma feição peculiar à morfologia urbana do burgo, não apenas em relação à tipologia das construções, mas também a ruas inteiras, onde surgem ligados aos diversos mesteres. Neste contexto urbano, iremos encontrar disseminadas pelo casco histórico inúmeros expressivos exemplares de arquitectura civil e religiosa, quer da fase gótica, barroca, rococó e neoclássica. Mas outros testemunhos encontramos, nas suas diversas expressões: a arte da talha; a imaginária; a pintura; a azulejaria; a ourivesaria; a organaria; o mobiliário e a paramentaria. Nesta cidade, podemos, ainda hoje, constatar o labor artístico de mestres oriundos de diferentes locais do noroeste peninsular, que encontravam um desenvolvimento construtivo bastante significativo nesta urbe, que lhes possibilitava manter em laboração toda a sua vasta oficina que compreendia aprendizes, obreiros e oficiais. Por conseguinte, parece‐nos de toda a pertinência o aprofundamento da “memória histórica” do património cultural do burgo vimaranense que, ao ser objecto de estudo da comunidade educativa local, permitiria uma maior aproximação entre as escolas e o meio envolvente, bem como a interligação com outras entidades de âmbito cultural ou científico, o que permitiria, por conseguinte, o conhecimento e a utilização prática dos recursos do meio, como: Biblioteca Municipal Raúl Brandão, Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, 176
Muralha ‐ Associação de Guimarães para a Defesa do Património, Museu de Alberto Sampaio, Paço dos Duques de Bragança, Sociedade Martins Sarmento, Plataforma das Artes, entre outros intervenientes no espaço urbano. Deste modo, reveste‐se de interesse a acreditação de acções de formação, incluídas nos planos de formação dos Centros de Formação, que permitiriam uma maior sensibilização dos docentes para as características peculiares do meio local, que frequentariam as diversas sessões temáticas, na sua componente teórica (audição da exposição teórica, leitura e análise documental) e prática (debates sobre património, visualização de materiais multimédia e visitas aos percursos do património medieval e barroco), onde poderão ser realçadas as potencialidades culturais do meio, capacitando cada docente a reflectir sobre a oportunidade e urgência de incrementar as práticas pedagógicas da sua área disciplinar com os conhecimentos inerentes à sua formação académica. Realçamos, em especial, a possibilidade de elaboração de projectos, a realizar em conjunto com os alunos, sempre que possível, cujas actividades, centradas no processo de ensino‐aprendizagem, contemplem propostas de visitas de estudo ou outras actividades que integrem aspectos patrimoniais, permitindo a maximização dos recursos culturais do meio. Com estas acções possibilitar‐se‐ia, ainda, que o processo de ensino‐aprendizagem seja um factor de cidadania ativa dos docentes e discentes tornando‐os mais conscientes, hoje e no futuro, da importância da preservação do espaço urbano em que habitam, que tem sido alvo de uma profunda conservação, reabilitação e intervenção que possibilitou a sua candidatura e posterior classificação a Património da Humanidade. Nas várias acções de formação por nós dinamizadas durante os últimos 13 anos, em vários centros de formação do distrito de Braga22, nas quais a componente prática da acção de formação estava presente aquando da realização de visitas guiadas ao Museu de Alberto Sampaio, ao Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, à praça da Oliveira, à igreja do Carmo e à Igreja e à Ordem Terceira de São Francisco pretendeu‐se estimular o desenvolvimento de projectos de pesquisa em
Foto 2 – Praça de Santa Maria da Oliveira
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Referimo‐nos ao Centro de Formação Francisco de Holanda (seminário “A (Re)Construção da História), ao Centro de Formação Martins Sarmento (“Caminhos e Memórias da arte vimaranense” e “Identidade e Memórias do Património Arquitetónico de Guimarães”) e à Casa do Professor de Braga (“A Escola e o meio: identidade e memória dos centros históricos” e “Guimarães: permanência, identidade e memória de um centro histórico”).
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torno da história local; realçar a importância do património construído como memória viva de uma cidade; bem como, o centro histórico como património mundial: factor de dinamização sócio‐cultural e económico da cidade e espaço envolvente. Simultaneamente, estas acções que envolveram mais de uma centena de docentes de diversos grupos disciplinares possibilitaram, por exemplo: • Fomentar o interesse da comunidade educativa pelo património edificado da cidade; • Sensibilizar a comunidade educativa para a preservação de um património singular; • Desenvolver a percepção e a identidade das características do centro histórico de Guimarães; • Intensificar a articulação entre a escola e o meio envolvente; • Promover reflexões que conduzam à apropriação do espaço vivido, de forma criativa e contínua; • Reflectir sobre o aproveitamento do estudo do meio local na prática pedagógica; • Conceber a reabilitação do centro histórico com a mudança de atitudes e valores perante esse espaço; • Relacionar a reabilitação do centro histórico e a consequente classificação a Património Mundial da Humanidade com a dinamização de novas actividades de âmbito cultural e turístico; • Perspectivar a evolução histórica do burgo vimaranense; • Aferir da importância da arquitetura civil e religiosa como factor de crescimento e revitalização da cidade entre o período medieval e os inícios de Oitocentos; • Conhecer a evolução da toponímia da cidade em face das actividades socio‐económicas que se desenvolveram ao longo dos tempos; • Produzir materiais de vária índole, recorrendo às novas tecnologias de informação e comunicação. Esta intervenção dos docentes e da comunidade educativa em geral, que no processo ensino‐aprendizagem são os agentes intervenientes modificadores no sentido da evolução positiva da preservação do espaço urbano, é do maior interesse educativo para que todos os alunos estejam conscientes, hoje e no futuro, da importância da preservação do espaço urbano e do património artístico vimaranense. 178
PROFISSÃO DOCENTE: UMA BREVE REFLEXÃO José Pinto Pinheiro Diretor do AE Fernando Távora As constantes mudanças das políticas e das condições de vida de muitos cidadãos, a pressão exercida sobre a escola, os desafios da globalização, da inovação tecnológica e da sociedade da informação, obrigam os professores a assumirem novos e mais diversificados papéis para públicos cada vez mais heterogéneos e multiculturais. Às escolas e aos professores, pede‐se e exige‐se que deem resposta a tudo: aos anseios dos jovens, à construção da cidadania e da democracia, ao combate à exclusão social, à capacidade de inovação e valorização dos novos conhecimentos e a um conjunto de educações para isto e para aquilo… incluindo a educação financeira, numa época de transição de paradigmas e de relativismo cultural e moral, como se a escola pudesse e tivesse capacidade para resolver todos os problemas que afligem a sociedade portuguesa contemporânea. Não significa que os professores não sejam capazes e que tudo isto não deva ser desenvolvido pela escola, porém, torna‐se mais difícil sem as necessárias condições e recursos técnicos e humanos para a diversidade de respostas e ofertas educativas que a escola deve ter, num tempo em que verificamos o maior desinvestimento na escola pública das últimas décadas. Exige‐se também que as escolas sejam espaços de aprendizagem da cidadania e sejam organizações eficientes e eficazes, que as escolas sejam instituições sociais responsáveis, mostrando, por último, à comunidade o seu trabalho e justificando a aplicação dos recursos públicos comparando resultados e sucesso escolar. Mudar não é fácil, todos o sabemos e muitos investigadores o têm mostrado com estudos científicos e exemplos de outros países. Em Portugal, estamos, uma vez mais, em tempos de mudança na educação mas qualquer mudança terá de ser com as pessoas que trabalham na educação e na escola e caber‐lhes‐á ter uma palavra a dizer sobre as reformas a implementar. Dificilmente se assistirá a uma mudança de paradigma na educação e na escola, se para tal, não se implicarem os professores. Ao pensar‐se na reforma da educação e da escola, deve‐se pensar na própria formação e desenvolvimento pessoal e profissional dos professores, para que estes sejam verdadeiramente protagonistas da mudança das práticas pedagógicas.
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Cada vez mais se estuda o modo como a vida profissional e o trabalho se interligam com a missão e os projetos pessoais nas mudanças. São os professores, como bem refere Ivor Goodson (1997), que designa “personalidade da mudança”, os atores principais na mudança das práticas educativas e para uma nova forma de estar na escola e na sala de aula. O professor é também um agente de desenvolvimento humano, que transmite normas e valores sociais, culturais e pessoais. Cada professor deve construir o seu próprio percurso profissional que se enquadre na sua história pessoal e social, na sua personalidade e na sua vida. “A construção da profissionalidade em educação deve começar pelos seus alicerces: formação profissional que tenha em conta a ressonância educacional da personalidade de quem exerce a profissão” (Monteiro, 2008). O professor ao longo da sua atividade profissional, constrói a sua ética pessoal e a sua própria profissionalidade docente, em ambiente de trabalho cooperativo com os seus pares e no tempo que o docente diariamente dedica aos alunos e à escola, num clima de colaboração e colegialidade como fatores determinantes do desenvolvimento profissional, como refere Morgado (2005). Segundo Nóvoa (1987), dois critérios estão sempre presentes numa profissão: o saber ‐ “a posse de um corpo de saberes e de saberes‐fazer próprio, específico e autónomo em relação aos outros domínios do conhecimento é uma das dimensões essenciais do processo de profissionalização de uma atividade” ‐ e a ética ou deontologia ‐ “o exercício de uma profissão faz apelo a normas e comportamentos éticos, que orientam a prática profissional e as relações tanto entre os próprios práticos como entre estes e os outros atores sociais”. Os docentes, professores e educadores, são profissionais com responsabilidades efetivas na educação. Esta atividade realiza‐se no quadro da Lei de Bases do Sistema Educativo que define a natureza, objetivos e os planos curriculares dos vários níveis e ciclos de ensino. Promover as aprendizagens curriculares, cientificamente adequadas no quadro de uma pedagogia de qualidade; envolver‐se no cumprimento do projeto educativo das escolas/agrupamentos e no seu plano de atividades implicando a comunidade social, desenvolvendo, deste modo, uma relação estreita de confiança e de compromisso, tornando mais eficaz o sucesso educativo; investir na sua formação do ponto de vista científico e tecnológico; desenvolver boas práticas pedagógicas, refletindo, investigando e colaborando com outros profissionais, são as principais áreas da atividade docente. Luísa Alonso (2007) refere a conceção da profissionalidade docente em aprendizagens ao longo da vida, em que os docentes participam no seu próprio crescimento profissional, numa perspetiva de evolução e de continuidade ao longo da carreira. A docência, em qualquer dos níveis em que é exercida, está na base de um saber profissional comum, construído ao longo das suas experiências pedagógico‐didáticos, produzindo um capital de saberes diversos e permitindo‐lhes, de forma organizada e integrada, desenvolver o seu exercício docente com competência e responsabilidade. A atividade profissional do docente deve assentar, igualmente, 180
em valores éticos, na valorização da profissão, na defesa do conhecimento e do saber, na interculturalidade e inclusão, nos valores democráticos de igualdade e justiça social. Segundo José Manuel Santos (2008), a docência é considerada como uma atividade essencialmente ética, quer pelas finalidades da ação educativa, quer pela exigência de rigor profissional e moral no seu desempenho. A dimensão ética da docência reside na contribuição prestada para a formação da personalidade do aluno, cabendo ao professor ser uma ajuda, através da transmissão cultural, para a construção da personalidade do aluno, facilitando a sua afirmação própria. É o professor, pela sua prática pedagógica e pela sua atitude profissional, que suscita o quadro ético do aluno ao possibilitar‐lhe os meios necessários à sua própria construção. Deste modo, percebemos que a educação nunca pode ser isenta, sendo, por isso, realizada em função de determinados princípios éticos e de um determinado quadro de valores que condiciona o exercício da profissão e expressa a sua conceção. O Decreto‐Lei nº 240/2001, de 30 de agosto de 2001, é o diploma que aprova o perfil geral de desempenho profissional do educador de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário e enuncia referenciais comuns à atividade dos docentes de todos os níveis de ensino, evidenciando exigências para a organização dos projetos da respetiva formação e para o reconhecimento de habilitações profissionais docentes. No âmbito da dimensão profissional, social e ética, segundo o referido diploma, o professor: • promove aprendizagens curriculares, fundamentando a sua prática profissional num saber específico resultante da produção e uso de diversos saberes integrados em função das ações concretas da mesma prática, social e eticamente situada; • assume‐se como um profissional de educação, com a função específica de ensinar, pelo que recorre ao saber próprio da profissão, apoiado na investigação e na reflexão partilhada da prática educativa e enquadrado em orientações de política educativa para cuja definição contribui ativamente; • exerce a sua atividade profissional na escola, entendida como uma instituição educativa, à qual está socialmente cometida a responsabilidade específica de garantir a todos, numa perspetiva de escola inclusiva, um conjunto de aprendizagens de natureza diversa, designado por currículo, que, num dado momento e no quadro de uma construção social negociada e assumida como temporária, é reconhecido como necessidade e direito de todos para o seu desenvolvimento integral; • fomenta o desenvolvimento da autonomia dos alunos e a sua plena inclusão na sociedade, tendo em conta o caráter complexo e diferenciado das aprendizagens escolares; • promove a qualidade dos contextos de inserção do processo educativo, de modo a garantir o bem‐estar dos alunos e o desenvolvimento de todas as componentes da sua identidade individual e cultural; 181
• identifica ponderadamente e respeita as diferenças culturais e pessoais dos alunos e demais membros da comunidade educativa, valorizando os diferentes saberes e culturas e combatendo processos de exclusão e discriminação; • manifesta capacidade relacional e de comunicação, bem como equilíbrio emocional, nas várias circunstâncias da sua atividade profissional; • assume a dimensão cívica e formativa das suas funções, com as inerentes exigências éticas e deontológicas que lhe estão associadas. O professor do século XXI tem, de facto, de responder e corresponder a uma complexidade e multiplicidade de ações e tarefas que ultrapassam em muito a sua formação inicial e toda a formação contínua. Frequentemente sem o apoio das famílias e das instituições, as escolas e os professores estão muitas vezes isolados, sendo o foco de todas as atenções e pressões, sem a possibilidade de dar respostas eficazes. Vindos de alguns setores da sociedade, sente‐se, assim, sinais de desconfiança em relação à qualidade dos professores, quanto à sua formação inicial e ao trabalho pedagógico desenvolvido pelos docentes nas escolas. Os professores ouvem frequentemente críticas, nem sempre vindas de setores ligados à educação, mas sim provenientes de várias áreas profissionais com forte presença na comunicação social, em conferências, palestras, seminários, etc. As universidades e as escolas de formação de professores, porque formaram as gerações de docentes que hoje desenvolvem e aplicam, nas escolas, o que aprenderam nas universidades, têm, por isso, grandes responsabilidades, devendo assumir‐se como instituições formadoras, tendo um papel mais ativo, permanente e mais próximo dos professores e das escolas. As instituições de ensino superior, como entidades exclusivas na formação de professores, deveriam, em minha opinião, refletir no papel que lhes reserva o futuro na formação contínua dos docentes, pensar e refletir se não seria desejável criar redes de escolas ligadas a universidades e definir um território educativo (não confundir com TEIPs nem com mega‐agrupamentos…) com compromissos de âmbito nacional e institucional com as escolas e agrupamentos, com responsabilidades na formação contínua dos professores, no acompanhamento (amigo crítico, consultor externo, científico e pedagógico, etc.) e na avaliação das escolas, cabendo‐lhes, neste aspeto, a exclusiva competência. A tutela, porque dirige a educação e as escolas com uma profusão de normativos, provocando mudanças permanentes na vida das escolas e dando origem a grande instabilidade, nocivas à ação docente e à organização das escolas, prejudicando o sucesso escolar e a formação dos alunos, comprometendo seriamente e de forma indelével a verdadeira missão da escola e o serviço público de educação, deve, a meu ver, parar e 182
ouvir os docentes e as suas associações representativas porque são estes que conhecem a realidade das escolas. A bandeira da autonomia, constantemente invocada e prometida, desde sempre, pelos sucessivos ministros da educação, continua a meia haste, sendo uma miragem na vida das escolas e dos professores. A autonomia das escolas não é nem pode ser sinónimo de independência, mas sim a possibilidade de as escolas se responsabilizarem perante a comunidade social e o Ministério da Educação, devendo este munir‐se de um sistema regulador que garanta a qualidade do sistema público de educação. O Ministério da Educação não pode, de facto, afastar‐se das suas responsabilidades, antes, deve afirmar uma escola democrática e universal, investindo no ensino e na educação públicas. É preciso, também, que a escola e os docentes adquiram uma cultura de avaliação, empreendendo medidas de autoavaliação interna. Para que a avaliação interna das escolas e dos professores seja credível é necessário que se apoie em referências objetivas, em indicadores e, sobretudo, que seja validada por entidades exteriores, nomeadamente as universidades, como autoridades pedagógicas e científicas legitimadas pela autoridade do Ministério da Educação, tal como referi anteriormente. A avaliação externa das escolas é, em minha opinião, uma necessidade que todos devemos encarar com seriedade, desde que seja para aperfeiçoar o seu funcionamento e melhorar a prestação de serviço educativo, designadamente os seus resultados escolares. A escola, hoje, mais do que nunca, tem que prestar contas à comunidade e ao Ministério da Educação, não podendo fechar‐se sobre si própria, sob pena de perder a credibilidade pedagógica e o reconhecimento público dos parceiros sociais e da comunidade social em geral. Todas as escolas têm o dever de apresentar resultados, quer académicos, quer sociais, mas a avaliação não pode reduzir‐se à simples apreciação dos resultados, uma vez que as escolas não são todas iguais nem têm, à partida, as mesmas condições. Uma escola implantada num meio social desfavorecido e que consegue melhorar os resultados escolares, mesmo que estes estejam abaixo da média nacional, tem igualmente mérito. Não se pode, por isso, considerar apenas os resultados quantitativos, uma vez que se ignora, deste modo, as condições de funcionamento da escola, o seu clima educativo, a sua cultura e identidade, a sua vida própria, etc. A iniciativa, a criatividade e a inovação da escola devem fazer parte dos objetivos da avaliação externa, como critérios para um desempenho de qualidade. Uma avaliação exclusiva dos resultados escolares conduz inevitavelmente a uma leitura maniqueísta das escolas em boas e más e nas projeções dos rankings dos estabelecimentos de ensino, criando uma espécie de quadro de honra entre as melhores e as piores escolas e dando origem a um clima pouco abonatório para as 183
comunidades escolares mais problemáticas com deficits socioeconómicos e estigmas sociais de difícil cicatrização. A avaliação e a mudança são, pois, necessárias para a vida das escolas e da profissão docente, mas exige‐se, para tal, um compromisso conjunto entre o Ministério da Educação, as Universidades, as associações profissionais e sindicais e todos os agentes da educação. É lapidar a frase referida por Fullan (2002) “a mudança educativa depende do que o professor faz e pensa: é tão simples e tão complexo como isso”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO, Luísa. (2007). Desenvolvimento profissional dos professores e mudança educativa: uma perspetiva de formação ao longo da vida. In Cadernos CIE (org) A. Flores e I. Viana. Braga: Universidade do Minho. FULLAN, Michael (2002). Los nuevos significados del cambio en la educación. Ediciones Octaedro. Barcelona GOODSON, I. (1997) A Construção social do Currículo. Lisboa: Universidade de Lisboa. MORGADO, José Carlos (2005). Currículo e Profissionalidade Docente, Porto: Porto Editora. MONTEIRO, A. Reis. (2008). Qualidade, Profissionalidade e Deontologia na Educação. Porto: Porto Editora. NÓVOA, António. (1987). Le Temps des Professeures. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Cientifica. NÓVOA, António (Org). (1991). Profissão Professor. Porto: Porto Editora SANTOS, José Manuel. (2008). Valores e deontologia docente. Um estudo empírico. Revista Iberoamericana de Educación nº47/2 EDITA: Organización de Estados Iberoamericanos 184
UM OLHAR PESSOAL… EM JEITO DE RELATÓRIO Jorge do Nascimento Pereira da Silva Professor aposentado (ex‐diretor do CFFH) Tendo estado à frente do Centro de Formação Francisco de Holanda, desde 1 de setembro de 1995 até 31 de agosto de 2012, fui desafiado pela diretora atual, Lucinda Palhares, para passar a escrito a minha vivência profissional referente a este período de tempo e à função exercida. Assumi, desde o início da minha carreira profissional, a problemática da formação de educadores e professores como uma das minhas prioridades e preocupações educativas. Sempre entendi e entendo que os professores são autores indispensáveis no processo educativo e que deles depende, em grande medida, o êxito ou “inêxito” do sucesso escolar e educativo dos nossos alunos. É que, se sem alunos não há escolas, sem educadores e professores elas também não funcionam. É evidente que outros profissionais da educação assumiram e assumem, também, um papel cada vez mais relevante na construção de uma escola plural que eduque na cidadania e na diversidade e que valorize práticas que levem ao sucesso escolar e educativo dos alunos, razão suprema da existência da escola. A evolução científica e tecnológica tem implicado transformações na sociedade pós‐moderna que colocam novos e permanentes desafios à profissionalidade docente. Foi neste pressuposto que defendi e continuo a defender uma conceção de formação contínua que “abarque as suas múltiplas dimensões, isto é, que integre o desenvolvimento pessoal e profissional dos educadores e professores e demais atores educativos, que tenha em conta a formação centrada nos contextos organizacionais, que adote um modelo construtivista optando pelo paradigma investigativo, assente numa reflexão‐ação que leve à emancipação profissional, fazendo dos professores autores da sua própria formação, numa estratégia grupal e geradora de inovações que levem à alteração das práticas profissionais, que é pressuposto a formação contínua mudar, tendo como objetivo primeiro o sucesso educativo dos alunos” (Silva, 2000:49)1.
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Silva, Jorge do Nascimento (2000). Implicações da Formação Contínua nas Práticas dos Professores. Dissertação de Mestrado, Braga: Universidade do Minho.
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Foi ancorado nesta conceção que procurei dar o meu contributo à causa da formação contínua, entendida como life long learning. Foi assim que, num dia quente de junho de 1995, aceitei o desafio do então presidente do conselho executivo da escola secundária Francisco de Holanda, José Fernando Alves Pinto, para me candidatar ao cargo de diretor do Centro de Formação Francisco de Holanda, que se encontrava a concurso devido à saída, por vontade própria, do seu primeiro diretor, João da Silva Pereira. Vi nascer o Centro de Formação Francisco de Holanda, com o meu amigo João da Silva Pereira ao leme, e aceitei o desafio até porque me foi prometido (e, depois, dado) o apoio necessário para o arranque no exercício das funções de uma Instituição com um tempo de vida curto mas com uma dinâmica que se impunha continuar. Foi assim que, ao longo de dezassete anos, colaborei no desenvolvimento organizacional desta Instituição (CFFH), liderando um coletivo composto por pessoas extraordinárias (e foram muitas!) que elegeram a educação e a formação como preocupações das suas vidas profissionais e, algumas vezes, até pessoais. Sempre senti que a afirmação da Instituição tinha de assentar no trabalho colaborativo, na corresponsabilização, na disponibilidade, na partilha, no rigor e no envolvimento continuado quer das escolas associadas quer dos seus profissionais, quer da comunidade local. Por isso, construímos um Projeto Formativo que era o resultado de reflexões de percursos cruzados, amadurecidos e partilhados. Constituí uma equipa de trabalho para dar resposta à necessidade de articulação entre a dimensão científico‐pedagógica, a dimensão administrativo‐ financeira e as demais valências do Centro de Formação, nomeadamente, a cultural. Reconheço e realço a centralidade da Comissão Pedagógica do Centro de Formação no processo de desenvolvimento organizacional da Instituição, da qual emanaram as orientações e decisões para a ação formativa e educativa a desenvolver no e pelo Centro, tendo também presente as grandes linhas da política educativa/formativa definidas pela Tutela. Os estudos de avaliação externa, solicitados à Universidade do Minho, bem como a nossa própria autoavaliação, proporcionaram momentos de debate, reflexão e de formação de todos os intervenientes no processo com repercussões no (re)pensar do funcionamento do Centro, do seu crescimento e da construção de uma marca identitária que perdurou ao longo dos tempos. A conjugação de vários contributos surgidos a partir das escolas/agrupamentos/profissionais da educação a nível do Território Educativo do Centro de Formação, de investigadores de diversas Instituições do ensino superior foram fundamentais para a afirmação e desenvolvimento do Centro de Formação Francisco de Holanda. Defendemos a sua inserção na comunidade educativa (alunos, professores, pessoal não docente, pais, autarquia, demais instituições da cidade…) à qual quisemos pertencer através da assunção de uma política de formação que fosse cada vez mais da comunidade educativa no seu todo e cada vez menos dos professores isoladamente. Escolhemos e incrementámos as modalidades de formação apropriadas ao tipo de necessidades de formação diagnosticadas.
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Privilegiámos as modalidades de formação mais ativas pois as modalidades centradas nas práticas e nos contextos profissionais e organizacionais garantiam e garantem a experimentação e aplicação dessas aquisições pessoais nas escolas/salas de aulas com os alunos, induzindo mudanças de práticas com reflexo nas aprendizagens dos alunos. Assumimo‐nos como uma estrutura fulcral na articulação entre as diferentes escolas associadas, isto é, o Centro, desenvolvendo uma lógica associativa, foi um ponto de encontro das escolas, um espaço plural, um espaço de partilha. O trabalho colaborativo, enquanto estrutura formativa e também das escolas e daqueles que nelas trabalham foi o caminho seguido. Incentivámos a lógica do profissional intelectual, reflexivo, inovador, transformador e criador de currículo. O CFFH esteve na primeira linha defendendo e implementando uma formação qualificada que contribuísse para a cultura profissional docente e dos demais atores educativos. O envolvimento das escolas e dos professores no processo de gestação, implementação e avaliação dos planos de ação foi um princípio sempre adotado. A filosofia e a política de formação contínua partilhada pelos membros da Comissão Pedagógica, enquanto representantes de coletivos, foi muito mais da comunidade educativa no seu todo e muito menos dos professores individualmente considerados; havia um conhecimento profundo das potencialidades, resistências e incongruências do modelo de formação vigente; os assessores (pedagógico, financeiro e de informática) e o secretariado do Centro formaram equipas empenhadas, coesas, responsáveis e solidárias; os diversos consultores de formação foram peças fundamentais em toda esta engrenagem; a bolsa de formadores foi abrangente, diversificada e qualificada. O exercício deste cargo nem sempre foi fácil porque, para além das competências que deve possuir quem o exerce, exige‐se‐lhe disponibilidade, que, muitas vezes, não é fácil encontrar. Conseguiu‐se o apoio aos educadores, professores e demais agentes educativos; a colaboração entre a Escola‐sede e o Centro foi profícua; houve uma cooperação saudável entre as escolas associadas; o estabelecimento de parcerias estendeu‐se à Universidade do Minho e a outras Universidades e Institutos Politécnicos, aos CFAE da região, a outras instituições, nomeadamente, às Câmaras Municipais de Guimarães e, depois, de Fafe, à cooperativa Tempo livre, ao ACSES, ao DES, DEB, DREN, IDICT, IEFP, UART, aos Sindicatos de Professores; O acompanhamento da execução dos Planos de Formação do Centro, nomeadamente do respetivo orçamento, foi feito em reuniões do Conselho de Acompanhamento Administrativo‐Financeiro e da Comissão Pedagógica. A momentos de stress e de algum desânimo surgiram, frequentemente, momentos de vitalidade e de renovação de ideias.
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O Projeto de Formação do CFFH(usámos esta terminologia por convicção) foi sempre encarado como um quadro de referência de opções prioritárias em termos de formação, uma espécie de contrato de autonomia baseado numa espécie de “Projeto Educativo/Formativo” assumido como um processo participado tendo como referente a qualidade da formação, sempre balizado pelo Conselho Cientíco‐Pedagógico da Formação Contínua. Quisemos todos que a amplitude do sonho e da ambição estivesse presente. A sua operacionalização era feita através de Planos de Ação Anuais . Em síntese, o nosso projeto de formação passou sempre por uma construção/participação coletiva, por um processo de negociação de estratégias de envolvimento das escolas, dos professores e demais atores educativos, quer para a sua gestação quer para a sua concretização sem nunca esquecer a avaliação do processo e dos resultados. Os diferentes estádios de desenvolvimento das escolas e dos profissionais da educação nunca foram um obstáculo intransponível para o emergir de uma dialética entre a dinâmica do Centro e das escolas, alicerçada na cooperação e no trabalho em equipa. Procurou‐se uma articulação entre as necessidades de formação das escolas, as necessidades dos professores e demais atores educativos e as necessidades do sistema, numa perspetiva de ação estratégica com vista à melhoria da oferta formativa. A integração da formação na escola e na vida dos educadores e professores, ao longo da semana, não tem a ver nem com o Conselho Científico‐ Pedagógico da Formação Contínua, nem com o PRODEP/QREN, nem com a Administração, mas com a vontade dos órgãos das escolas e dos profissionais que nelas trabalham. Defendemos uma ação formativa alinhada com o ritmo normal e com a cultura de cada Escola/Agrupamento. Deve resultar de uma vontade própria, de uma reflexão que identifique áreas problemáticas na escola, bem assim como as metodologias de as abordar e a opção por modalidades que levassem à promoção de práticas de investigação educacional, à dinamização de práticas de inovação, à promoção do desenvolvimento pessoal e deontológico, à promoção da qualidade do ensino e da gestão curricular, à organização de projetos de mudança e de sustentação da qualidade ao nível das escolas e dos respetivos Territórios Educativos... A identidade dos CFAE, em geral, e do CFFH em particular foi‐se consolidando quando se transformaram em verdadeiro(s) Centro(s) de Recurso(s) das comunidades locais que davam respostas formativas tendo em conta as necessidades das escolas/agrupamentos como organizações, dos professores e demais atores educativos como pessoas e como profissionais e do próprio sistema educativo, tendo como objetivo/alvo sempre a pessoa do aluno. Contribuiu ainda para o desenvolvimento da identidade do CFFH a promoção de parcerias que davam corpo a projetos de caráter essencialmente regional e local mas alguns houve de âmbito nacional.
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O sucesso da Instituição não esteve tanto numa ou noutra pessoa individualmente mas na capacidade de diálogo e de trabalho em equipa, no estabelecimento de parcerias, no fazer as coisas com profissionalismo, com alegria e com prazer. Foi também por isso que demos continuidade à revista ELO. Foi também por isso que aderimos a projetos inovadores. Foi também por isso que estivemos na origem do Centro Novas Oportunidades. Foi também por isso que desenvolvemos diversos Seminários, colóquios, jornadas, exposições, concursos literários… Foi também por isso que demos corpo à área cultural através d’Osmusiké. Muita música, teatro, poesia… animação! E já lá vão 20 anos! Duas décadas a prestar um serviço à comunidade educativa que, por vezes, se situou muito para além daquilo para que o Centro foi criado. Mas houve a preocupação de ter sempre presente a sua missão principal: contribuir para a promoção da formação contínua; fomentar o intercâmbio e a divulgação de experiências pedagógicas; promover a identificação das necessidades de formação e adequar a oferta à procura de formação das organizações educativas e daqueles que nelas trabalham. E o CFFH aí está fazendo o seu caminho, construindo caminhos, cumprindo a sua missão e os seus objetivos com o mesmo empenho, com a mesma alegria, com o mesmo prazer, com o mesmo profissionalismo mas com outros autores. As pessoas passam…os projetos e as instituições continuam… Que seja assim por muitos mais anos!
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