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Covid-19 Arena Portimão – Uma história não contada é uma história que não aconteceu

Inês Simões

‘Juro por Apolo Médico, por Esculápio por Higía por Panaceia e por todos os Deuses e Deusas que acato este juramento e que o procurarei cumprir com todas as minhas forças físicas e intelectuais’.

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Gosto de história, tanto quanto gosto desta história. E há histórias que valem a pena ser contadas porque só assim serão, um dia, recordadas.

Se remontarmos ao século V a. C., numa escola médica fundada na ilha de Cós, Hipócrates foi a inspiração para mudar, quiçá de vez, o paradigma da medicina. Desejava-se separar a medicina da religião e da magia, as doenças deixariam de ter uma causa sobrenatural e a medicina pretendia-se racional e científica. Também se quis dar um sentido de dignidade à profissão médica. Desta mesma história nasceu, séculos mais tarde, o Juramento de Hipócrates, que ainda hoje estabelece normas éticas de conduta que devem dirigir a vida de um médico, dentro e fora da profissão. Gosto especialmente da versão original mais recente – Lausanne 1771 -, com uma parte do argumento a referir que o médico deve ter como obrigação a integridade de vida e assistência ao doente, e jura cumprir o seu dever pelos tais Apolo Médico, Esculápio, Hígia, Panaceia e todos os Deuses e Deusas. Em 1983 na Declaração de Genebra, nasce a promessa solene de consagrar a sua vida ao serviço da Humanidade.

O que melhor nos define e distingue dos outros é a forma como nos erguemos e reinventamos depois da queda. A coragem com que enfrentamos o nosso mundo, e os outros mundos.

A tal história que conto hoje é sobre o Hospital de Campanha de Portimão, o internamento ‘COVID-19 Arena Portimão’.

O Portimão Arena situa-se no Parque de Feiras e Exposições de Portimão. Abertas as portas em Setembro de 2006, nunca esta estrutura de arquitectura moderna e vanguardista pensou que a versatilidade que se lhe apregoava serviria, também, para ser transformada em Hospital de Campanha em meados de 2020, para fazer frente a uma pandemia.

A 10 de Janeiro de 2021 abriu portas, como (mais) uma enfermaria COVID do CHUA e, finda a sua existência e olhando para trás, é preciso uma empatia, generosidade e solidariedade muito grandes para ter acontecido, da maneira que aconteceu. No fundo, tal como tudo na vida, resumiu-se ao amor.

Atingida 75% da capacidade de internamento para doentes COVID no CHUA, houve necessidade de abrir esta estrutura de retaguarda para não sacrificar (ainda mais) os restantes serviços. Foi política do CHUA, desde o início da pandemia, garantir a segurança dos profissionais e dos doentes, acreditar que era possível continuar a tratar e a cuidar dos demais. Mais ainda: em Janeiro de 2021 percebeu-se que era preciso ajudar outros doentes, outros colegas e outros hospitais que estavam, à data, sobrelotados.

Recebemos, no total, 170 doentes, sendo que a maioria foi da região da ARS Lisboa e Vale do Tejo. Desses, 40 provieram do Hospital Fernando da Fonseca, 22 do Hospital Garcia de Orta, e os restantes de Faro e Portimão, Vila Franca de Xira, Loures, Barreiro, Setúbal, Santiago do Cacém, Portalegre, Elvas e Beja.

Este é o espírito das pessoas que são este centro hospitalar e me fazem ter orgulho em trabalhar aqui todos os dias. Este altruísmo, esta paixão que dedicamos ao que fazemos, esta vontade de ajudar e nós médicos, de honrar o Juramento de Hipócrates. Este dizer presente quando o país nos pede. Este acudir à distância de uma vontade. Destes 170 doentes, devolvemos 117 às suas famílias, transferimos 31 para outros serviços do CHUA por necessidade de outras especialidades (cardiologia, gastroenterologia, UCI) e demos a dignidade merecida, no fim de vida, a 22 pessoas. Ao longo dos 35 dias em que se manteve aberto, houve necessidade de adaptar o serviço às necessidades da região, e não só. Inicialmente como internamento de retaguarda, fomos vendo tornar-se num local para internamento de doentes ‘mais’ agudos, com alguns chegados, inclusivamente, sob ventilação não invasiva, num dia em que acudimos ao Hospital Fernando da Fonseca que viu, assustadoramente, as suas reservas de oxigénio limitadas.

O trabalho desenvolvido no dito Hospital de Campanha foi muito isto: um dedicar de tempo a doentes e famílias, a cuidar muito deles e uns dos outros que trabalhámos lá. Fácil perceber que fizemos a diferença e que nos destacámos no combate à COVID-19 a nível nacional, conseguindo melhorar, dignificar, humanizar e alterar o rumo dos cuidados e da vida destas 170 pessoas.

Esta é, como se vê, mais uma história que merece ser contada. Aliada a medicina racional à científica, Hipócrates não conseguiu, afinal, que ao longo dos tempos esta se desligasse na totalidade da religião. Continuará sempre, também, a ser pautada por muita magia. Com aquela que é, para mim, a mais romântica das profissões, fez-se cumprir esta premissa, e esta promessa, de que em consciência e com toda a dignidade, a saúde dos nossos doentes, e de todos os outros que neste país precisaram de nós, será sempre, e para sempre, a nossa primordial prioridade.

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