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Golden Years Loiras, música e os anos 70
Carla De Wolf PUC/SP – 2013
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.......................................................... PG 6 INTRODUÇÃO................................................................ PG 8 OS ANOS 70 E A ‘GERAÇÃO PERDIDA’.................... PG 36 A DANCING QUEEN E A LOIRINHA HARD ROCK.. PG 44 BAD GIRLS & CABELOS DESCOLORIDOS.............. PG 54 AS LOIRAS REALMENTE SE DIVERTEM MAIS?.... PG 66 BIBLIOGRAFIA.............................................................. PG 72
APRESENTAÇÃO Nasci loira, porém, assim como boa parte da população mundial, já que apenas 2% se mantêm loiros até a idade adulta, vi meus cabelos escurecerem quando ainda era criança. Quando comecei a refletir sobre a questão das loiras, seus por quês, e como na música tantas artistas resolveram adotar todos de tons de loiro em seus cabelos e como isso impactava em suas carreiras, eu percebi que havia algo aí. Afinal o que faz boa parte das mulheres pensar em se tornar loira ou clarear seus cabelos ao longo da vida? Algo deve existir nessa cor para fazer com que uma em cada três mulheres no mundo tenha seus cabelos aloirados. A própria rainha do pop, Madonna, revolucionou sua carreira ao abandonar as madeixas escuras quando era apenas uma dançarina tentando acontecer na cena nova-iorquina nos anos 1980. “Ser loira é definitivamente um estado mental diferente,” disse ela em uma entrevista. “Eu não sei exatamente o que é, mas o artifício de ser loira possui uma sorte de conotação sexual incrível.” 1 Por mais diversas que fossem as concepções de beleza através dos séculos, foram raras as ocasiões em que o loiro esteve fora de moda, mesmo com todas as mudanças em sua simbologia e os diversos significados entre os povos. E mesmo partindo do pressuposto que a beleza está nos olhos de quem vê, por não ser absoluta nem imutável, o cabelo loiro manteve seu mistério e sedução, atingindo seu auge após a descoberta de que o peróxido de hidrogênio podia descolorir cabelos, no 1 ZEHME, BILL. ‘The Rolling Stone Inteview: Madonna” Rolling Stone Magazine, March/23. 1989
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início do século XX, e da grande concorrência entre marcas de tintura, iniciada nos anos 1970 nos Estados Unidos. A década de 70 foi essencial para diversas mudanças na sociedade e na imagem das mulheres. Como pretendo mostrar nesse trabalho, quatro ícones da música representavam o espírito da época, quatro loiras (naturais ou não) que, com seus diferentes estilos e modelos de beleza criaram seu impacto único na música: Agnetha Fältskog (ABBA), Debbie Harry (Blondie), Cherie Currie (The Runaways) e Nancy Wilson (Heart). Época de crises econômicas, onde o espírito hippie ainda influenciava boa parte da população, e os direitos das mulheres estavam cada vez mais latentes, os anos 1970 também foram responsáveis por importantes transformações na música, onde estilos como Disco, Hard-Rock, Punk, Glam Rock e New Age surgiram, evoluíram e passaram a refletir as transições por que a década passava, nos mais diferentes âmbitos. Foi nesse contexto que essas belas loiras mostraram que, em um mundo musical até então tão dominado por homens, talento para música e visual nunca faltou, bastava apenas uma chance.
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INTRODUÇÃO Muitos acreditam que o cabelo loiro se tornou uma obsessão mundial quando Norma Jeane Baker resolveu platinar suas madeixas nos anos 50, e assim, personificou o ícone eterno da sexualidade sob o pseudônimo de Marilyn Monroe. Mas ela nem de longe foi a única a conquistar fama, sucesso, poder e fãs ao ficar loira: de Madonna a Lady Gaga, Jean Harlow a Grace Kelly, e até a Princesa Diana e a ex-primeira-ministra britânica Margaret Tatcher, todas passaram horas intermináveis em salões de beleza para clarear seu cabelo. O que poucos sabem é que o culto aos cabelos loiros teve seu primeiro registro em 3.000 a.C., quando proto-índios-europeus veneravam o sol e o fogo, e a deusa amarela do amanhecer representava justamente isso para seus adoradores.2 Mas foi na Grécia e no Império Romano, por volta de 360 a.C., que a imagem se fortaleceu com a venerada deusa Afrodite/ Vênus que esbanjava perfeição: alta, pele macia, voluptuosa, além de ser graciosa e muito erótica com longos cabelos loiros. Ela era a representação do amor e da energia erótica, e as prostitutas da época utilizavam recursos peculiares para camuflar seus cabelos escuros e atingir tons mais claros, como tintas com base em açafrão, pós coloridos, lama amarela e unguentos, tudo porque os homens da época desejavam as loiras por serem a representação da riqueza e sexualidade, afinal o ouro, também muito utilizado para polvilhar cabelos dos mais ricos e esbanjar seu dinheiro, simbolizava a liberdade que as deusas tinham de não envelhecer ou mor2 Cavalli-Sforza, Luigi Luca; Menozzi, Paolo; Piazza, Alberto (1994). “Europe”. The History and Geography of Human Genes. Princeton, New Jersey: Princeton University Press. p. 266.
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rer, já que o metal não enferruja nem perde seu brilho. Com seu nome geralmente associado à prostituição, a Imperatriz Romana Valeria Messalina (20-48 d.C) foi uma das primeiras mulheres poderosas a se divertir com o poder de sedução dos cabelos loiros. Ela se tornou notória por passar suas noites em bordeis usando uma peruca loira, feita mais para chamar a atenção do que disfarçá-la propriamente. Isso deve ter ajudado a influenciar o pensamento da época, onde ter os cabelos claros, por mais atraente que fosse, era comumente associado à “mulheres sem intenções sérias”, um indicativo de prostituição.3 Porém, no final do Império Romano (300 d.C.), com uma sociedade cada vez mais liberal, as damas passaram a exibir e cuidar de seus cabelos, fato que inclusive contribuiu muito para que cabelereiros conquistassem posições sociais melhores. O próprio cabelo loiro deixou se ser associado à prostitutas e virou moda, muito graças a ascensão da população germânica e seu status social, já que eles conseguiram atingir altas posições militares e até chegaram a adentrar o círculo da aristocracia romana. As mulheres não puderam deixar de notar a atração que seus maridos tinham pelo exotismo loiro e, para competir com as estrangeiras, passaram a tingir os cabelos e se encher de joias, vestidos e penteados suntuosos.
O início da Idade Média (século V) trouxe diversas mudanças na sociedade em inúmeros âmbitos, mas principalmente na posição da 3 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 27
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“O Nascimento de Vênus” (1482-86), pintura de Sandro Botticelli conhecida como uma das mais famosas representações da Deusa
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“A tentação de Adão e Eva” de Maaolino da Panicale (1425)
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mulher, que passou a ser temida por sua sexualidade, e o emblema desse medo era o cabelo loiro. O culto à imagem sexual e divina da Vênus, como seria representada séculos depois por Sandro Botticelli na obra “Nascimento de Vênus” havia sido substituído por uma loira que representava a origem de todo o mal feminino: Eva, a imagem perfeita para a campanha de demonização das loiras pela Igreja Católica. Não bastava ser desobediente e subversiva, Eva também era linda. Porém, foi essa beleza sedutora que a tornou responsável pela sexualidade humana, e toda a culpa e desencantamento da espécie eram resultado do fato de que ela havia sucumbido à tentação, ocasionando a perda da graça divina entre os humanos. A subversão da imagem da mulher - especialmente das loiras - pela Igreja teve efeitos profundos na sociedade da época, o que fez com que elas passassem a cobrir os cabelos em recato, já que a menor visão de uma mecha já era suficiente para despertar o desejo alheio. Vários clérigos da época reforçavam essa visão do pecado associado ao ato de tingir os cabelos, como o padre franciscano São Bernardino (1380-1444), que atraia multidões em todas as cidades que passava ao pregar que o diabo persuadia as mulheres a usar cabelo loiro. O fervor de seus sermões fazia com que o público reunisse e queimasse pilhas de cabelo loiro falso para expurgar os pecados desse ato impronunciável que era tingir o cabelo. 4 Para fortalecer a imagem de Eva como loira e assim facilitar sua associação com algo terrível e pecaminoso, os
4 SHERROW, Victoria, ed. (2006). Encyclopedia of Hair: A Cultural History. Greenwood Publishing Group. p. 327
artistas da época, como Masolino (13831447), deixaram de retratá-la morena para retratá-la loira, simbolicamente, como na obra “A tentação de Adão e Eva” (1425). A mensagem nas imagens era clara: loiras eram lindas e perigosas, qualidades eternamente desejadas e proibidas. Além de Eva, a Igreja se aproveitou de outra personagem bíblica para fortalecer a imagem da loira pecadora, e quem melhor para ilustrar a mensagem do que Maria Madalena? Bela, feminina, sexual, pecadora e libidinosa, com seus cabelos loiros Maria Madalena definia a imagem da luxúria em uma época onde poucos sabiam ler, mas todos contemplavam as imagens de obras como “Santa Catarina de Alexandria, São Pedro e Maria Madalena”, de Carlo Crivelli. O único problema das tentativas infindáveis de demonização feminina por parte da Igreja Católica foi o de que a instituição subestimou a vontade que as mulheres tinham de imitá-la justamente por todas as proibições e poderes de sedução evidentes que cercavam sua imagem. Essa sedução que os cabelos loiros proporcionavam fornecia às mulheres uma ferramenta de influência entre os homens, as satisfazendo imensamente. Isso levou a Igreja a fortalecer ainda mais suas campanhas contra a vaidade e os cabelos tingidos, ameaçando as pe-
“Santa Catarina de Alexandria, São Pedro e Maria Madalena” (1475), de Carlo Crivelli
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Na página anterior, a Virgem é retratada como loira no quadro “A Anunciação” de Leonardo da Vinci (1472-1475)
cadoras com punições divinas e criando lendas urbanas como a do Incubus, um ser extremamente sexual que estuprava donzelas loiras, afim de tentar impedir as mulheres de tingir seus cabelos. Como se pode imaginar, essas tentativas serviram apenas para instigá-las ainda mais, além de aumentar a histeria da Igreja na condenação da sexualidade loira. A paixão estética pelo cabelo loiro no final da Idade Média já anunciava mudanças na própria arte e na cultura, já que o amor contemporâneo pela luz e pelas cores era uma resposta espontânea para a beleza pura e simples, expressada por diversos artistas europeus na pintura, poesia e literatura do período. No final do século XIV a Igreja transformou em um trunfo o que mais condenava: Santa Brígida (1303-1373), uma religiosa sueca que fazia muito sucesso na Europa, teve uma visão da Virgem Maria com longos cabelos loiros, e isso se espalhou rapidamente por todo o continente e passou a influenciar seus retratos, como pode ser visto na obra “A Anunciação” (1472-1475) de Leonardo Da Vinci.5 Ao deixar de ser retratada como uma morena que não sucumbia ao pecado da moda para se tornar uma Virgem loira e inocente, cercada de anjos igualmente loiros, essa imagem se tornou um poderoso novo simbolismo para a Igreja Católica, já que ela era a pura manifestação da beleza superior, mensageira de Deus e logo superior aos humanos e digna de veneração. A “redescoberta” da Virgem foi responsável por mostrar a perigosa e clara ambivalência do cabelo loiro, já que ele podia representar alguém imaculado, inocente e de beleza incorruptível como a divina Virgem Maria até o ganancioso e manipulativo desejo de seduzir e pecar, manifestado por Maria Madalena e Eva. Assim, depois de séculos de demonização por parte da Igreja, o contexto 5 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 52
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se tornou essencial para julgar pessoas loiras.
1588 foi um ano de extrema importância no reinado de Elizabeth I, da Inglaterra. A rainha teve uma importante vitória política contra a Armada Espanhola, seu país passava por um período dourado de prosperidade e isso foi determinante para mudar a cor de seus cabelos naturalmente ruivos para loiros. A transição teve extrema importância em sua carreira política, afinal ela já era considerada por seus súditos ‘uma salvadora enviada por Deus’, e seu cabelo agora complementava essa divindade irreal, uma auréola, como a da Virgem Maria. Porém os símbolos e significados de sua nova cor de cabelo não paravam por aí: seus cabelos loiros recém-adquiridos faziam parte de um código cultural que dava ênfase à imagem incorruptível e intocável da rainha, que era virgem e se manteve assim até o final de sua vida, casada exclusivamente com seu país. Elizabeth sabia o poder de sua imagem, e utilizou a aliança deste com a arte para aumentar e imortalizar sua glamorosa mística sagrada. Ela estabeleceu um rígido código de como deveria ser representada em pinturas, – sempre loira e jovial - e assim deixou de ser uma senhora de bochechas caídas, cabelos grisalhos e dentes terrivelmente amarelados para ser uma lendária loira de beleza imperecível, cuja juventude eterna deveria simbolizar o estado contínuo de paz e sucesso da Inglaterra, como pode ser visto em seu ‘Retrato da Coroação’ (1600).6
Mas como toda moda, o fetichismo extremo por loiras perdeu força 6 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 105-109 17
“Retrato de Elizabeth I em suas vestes de coroação”, pintor desconhecido (16001610), cópia do original perdido (1559). O quadro retrata a rainha com cabelos loiros reluzentes, contradizendo relatos da época, que afirmavam que ela possuia cabelos ruivos.
no início do século XVII, quando a França começou a tomar o espaço pertencente aos italianos nas artes. Nicolas Poussin, pintor francês naturalizado italiano, foi dos maiores representantes do classicismo, e, juntamente com outros pintores franceses, passou a produzir imagens mais racionais e simples – que refletiam o pensamento francês voltado à razão na época - e menos barrocas, como era a maior parte das obras produzidas durante o Renascimento na Itália. Foi a influência desses pintores franceses que trouxe à tona (e à moda) a beleza dos cabelos escuros, predominantes em suas obras, e que acabou influenciando artistas de toda a Europa, especialmente os holandeses como Rembrandt, Van Dyck e Vermeer. 7 Assim, por mais de um século, o loiro saiu de moda e teve que dar espaço ao ideal de beleza dos cabelos castanhos. A cor ficou tão démodé que artigos da época ensinavam a disfarçar “as desagradáveis madeixas loiras” e substituí-las por um “agradável preto”, sem pecado, perigo ou vergonha. Não bastasse toda a má reputação que a cor carregava, foi a primeira vez que a cor foi associada à estupidez/burrice, graças a uma famosa prostituta chamada Mademoiselle Rosalie Duthé que, em 1775, teve a honra de ser a primeira loira burra de que se tem registro. 8 Mesmo se tornando alvo de toda sorte de termos pejorativos na época, o cabelo loiro encontrou sua redenção no recém-criado mundo literário dos contos de fadas. As heroínas clássicas (com exceção de Branca de Neve, famosa por seus cabelos negros) possuíam cabelos loiros, diversos atributos físicos e, mais importante, representavam inocência, bondade, beleza e riqueza, que nem de longe se aproximavam da realidade da população que transmitia as narrativas oralmente.
7 SHERROW, Victoria, ed. (2006). Encyclopedia of Hair: A Cultural History. Greenwood Publishing Group. p. 150 8 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 129-130 18
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Como é de se imaginar não passaria muito tempo até o cabelo loiro voltar a se tornar um ideal de beleza cobiçadíssimo, mas na Inglaterra Vitoriana do século XIX ele se tornou uma verdadeira obsessão. Pinturas, poemas e qualquer outra arte do período retomaram a paixão greco-romana pelas deusas loiras de cabelos selvagens, junto com sua magia e poderes simbólicos, já que os vitorianos conheciam bem suas loiras ancestrais divinas e demoníacas, amavam as obras de Botticelli, e até mesmo nos casos aonde a fama não era das melhores, como nos casos de Eva e Maria Madalena, a dominação arrebatadora delas era irresistível. Novamente o cabelo passou a definir a personalidade das pessoas, mas na sociedade vitoriana isso não se restringia apenas a pessoas reais, que voltaram a ser analisadas como angelicais ou demônios sexuais, apesar de encantadoras, de acordo com o contexto. Na literatura as descrições sobre o cabelo se tornaram um jeito rápido e muito popular de definir o caráter dos personagens. A obsessão do período por cabelo era tão grande que passou das artes para o cotidiano, já que era comum utilizar joias e medalhões feitos com cabelos de parentes, amantes e amigos. De objeto de afeto, o cabelo se tornou uma mercadoria, que podia ser trocado por sexo, dinheiro e até uma benção de cabelo, já que seu valor além de monetário era emocional.9 A obsessão por cabelos loiros que tomava o continente europeu e as outras potências da época (Estados Unidos e União Soviética) tomaria um rumo inesperado com a propagação do conceito de superioridade racial no século XX. A ideia em si não era novidade, já que em 1799 o médico inglês Charles White publicou o livro “Um Relato da Grada-
“Retrato presumido de Rosalie Duthé”, de Claude-Jean-Baptiste Hoin (17501817), data indefinida
9 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 139-141 21
Jean Harlow (1911-1937), a primeira estrela platinada de Hollywood, tingia seu cabelo com uma mistura diabólica de amônia, alvejante e sabão em pó, que fez com que a atriz ficasse careca e usasse perucas até sua morte prematura aos 26 anos.
ção Regular no Homem”, onde ele dizia que o branco europeu, especialmente o germânico, era mais belo e inteligente. Antropologistas do século XVIII também se utilizavam amplamente da ‘Corrente do Ser’, teoria onde os seres humanos eram classificados baseando-se na beleza física como fator determinante da hierarquia, começando com as raças inferiores (negros, aborígenes e ‘raças amarelas’) até chegar na raça branca, tida como suprema.10 Essas teorias, associadas com o termo ‘ariano’, criado também no século XVIII, se espalharam graças a Arthur de Gobineau, aristocrata francês e teórico racista responsável pelo “Ensaio da Desigualdade das Raças Humanas”, que se baseava em distorções de teorias antropológicas e linguísticas para comprovar a superioridade da raça ariana. Após sua morte, em 1882, suas teorias em relação a negros e asiáticos - de que eles não pertenciam à raça humana que descendia de Adão e caso houvesse mistura racial no planeta estaríamos fadados ao caos - passou a incluir também judeus, passo inicial para o Holocausto de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial.11
No início do século XX nos Estados Unidos, ter cabelo loiro era associado com a classe baixa, já que remetia ao erotismo e promiscuidade. Essa fama não iria melhorar com o lançamento do primeiro calendário nu de loiras em 1913, especialmente na alta classe americana, que tinha grande preconceito com a cor. Não demorou para que esse pensamento mudasse já que, em 1907, o químico francês Eugène 10 WHITE, Charles (1799), An Account of the Regular Gradation in Man, and in different Animals and Vegetables, C. Dilly 11 GOBINEAU, Arthur (Count Joseph Arthur de Gobineau) The Inequality of Human Races, p. 59 22
Schueller descobriria uma nova função para o peróxido de hidrogênio: a de descolorir cabelos. Ele passou a vender seu produto em salões de cabelo parisienses, e o chamou de Oreále (Auréola), graças à cor de cabelo que o produto proporcionava. Anos mais tarde ele fundaria a L’Oréal, uma das maiores empresas de tintura do mundo. O produto logo fez sucesso entre as americanas mais modernas, que não seguiam tanto tradições como as mulheres europeias, e tornaram seus cabelos descoloridos e curtos uma declaração ousada dos novos símbolos de liberdade sexual feminina. 12 Em 1931, o lançamento do filme ‘Loura e Sedutora’ com Jean Harlow iniciou uma revolução capilar, já que todas as mulheres queriam imitá-la, até mesmo as atrizes de Hollywood.13 Além do sucesso estrondoso de uma loira nos cinemas, parte do desejo feminino de tingir os cabelos se deu graças ao novo processo criado por Lawrence Gelb em 1932. O Clairol permitia que as mulheres tingissem seus próprios cabelos em casa, tornando a mudança muito mais acessível. O 12 ‘1909-1956: The First Steps, Constructing a Model’ Disponível em <http://www.loreal.com/group/history/1909-1956.aspx>
13 SHERROW, Victoria, ed. (2006). Encyclopedia of Hair: A Cultural History. Greenwood Publishing Group. p. 200 23
loiro passou a ser considerado algo melhor, por ser glamuroso, atraente e um sinal claro de superioridade racial, pensamento que ainda iria se manter por algumas décadas, especialmente com a ascensão do partido Nacional Socialista na Alemanha apenas dois anos depois. A crença na superioridade racial ariana não se restringiu apenas à Alemanha na primeira metade do século XX, já que a antipatia em relação a outras raças e aos judeus eram comuns também nos Estados Unidos e na União Soviética. Nos três casos foi criado um ideal de beleza nacional: loiro, de preferencia de olhos azuis, com moral incorruptível e dinâmicos, representando assim o futuro glorioso e as melhores qualidades desejadas pelas nações mais poderosas. Essa “limpeza” moral promovida pela simbologia de pureza do loiro foi perpetuada e fortalecida com a indústria cinematográficas destes países, já que durante a II Guerra Mundial todas as atrizes que mais faturaram no cinema eram loiras, e atendiam perfeitamente ao ideal criado para suas respectivas nações. Durante essas campanhas 24
de símbolos para a população, Hollywood teve um papel importante na exportação das deusas arianas do cinema norte-americano para o mundo, que em sua grande maioria aprovou e adotou a preferência racial prevalente pelos arianos. 14 Essa preferência por loiros teve um papel crucial em diversos momentos para a indústria cinematográfica de Hollywood, sendo que um dos primeiros e mais latentes foi o uso da imagem da atriz-mirim Shirley Temple. Com a degradação do país depois da Grande Depressão de 1929, quando Shirley surgiu com seus cabelos cacheados loiros e olhos azuis, interpretando uma pobre órfã ou menina adotada, tinha o objetivo claro de encorajar a população a praticar caridade para com os que precisavam mais, além de “animar a América”, a pedido do próprio presidente Franklin Roosevelt, já que a pequena representava uma promessa de fartura com seu otimismo manufaturado e sua bondade de contos de fadas.15 Em um período em que o nacionalismo e o preconceito ajudaram fortemente a reforçar a crença na superioridade loira, as atrizes norte-americanas faziam o seu melhor para “branquear” sua imagem e comportamento, se livrando de qualquer indício de que pertenciam à uma minoria. O maior exemplo da profundidade de reinvenção das atrizes para fazer sucesso no mercado foi Rita Hayworth, atriz cuja beleza era tão bombástica que teve sua imagem de pin-up pintada na bomba atômica usada em testes no atol do Biquíni. Rita, que nasceu em Nova Iorque como Margarita Carmen Cansino, tinha ascendência hispânico-irlandesa e precisou mudar de nome, cor de cabelo e fazer aulas para perder qualquer traço de sotaque espanhol para virar uma das maiores estrelas de Hollywood nos anos 1940.16
14 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 183-184 15 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 208-209 16 BRAUKMAN, Stacy; WARE, Susan. (2005). Notable American Women: A Biographical Dictionary, Volume 5. Belknap Press of
Com apenas 6 anos, a atriz-mirim Shirley Temple (1928-) já recebia um dos maiores salários da indústria cinematográfica em Hollywood
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Margarita Carmen Cansino (1918-1987), se tornaria Rita Hayworth após tingir seus cabelos e trabalhar para diminuir sua raízes latinas, se tornando assim uma estrela Hollywoodiana
A União Soviética também percebeu o potencial do cinema como excelente meio de espalhar uma mensagem para o povo e Stalin usava-o mais do que qualquer outro meio para reforçar a imagem do ‘novo homem/mulher socialista’. Assim, um dos cinemas mais inovadores da Europa no início do século XX foi substituído por estereótipos sociais sem crítica alguma, mas isso não desencorajou os espectadores. Ávidos para fugir de sua realidade, cheia de miséria e doenças, eles precisavam entrar em um mundo de fantasias, com pessoas heroicas e belas, para ter esperança de mudanças e perspectivas melhores.17 Nos Estados Unidos dos anos 1950, onde o sexo era visto com um pudor quase vitoriano, a inocência e ingenuidade da novata Marilyn Monroe a tornariam uma das maiores estrelas de todos os tempos, além de transformá-la, ironicamente, em ícone sexual graças a sua beleza arrebatadora. Monroe também contribuiu para espalhar a fama da “loira burra”, que havia sido resgatada pelos diretores de Hollywood e cuja função era diminuir a confiança e a independência das mulheres, em especial das que resolviam descolorir seus cabelos no pós-guerra. Em um período que as mulheres finalmente abandonaram o trabalho do lar para assumir as vagas dos homens que haviam ido para a guerra, elas perceberam que podiam trabalhar com competência e ganhar dinheiro, mesmo que seus salários fossem inferiores aos dos homens. Ao tomar a noção de seu próprio poder e status, associados à vontade de afirmar seus direitos e sentimentos, as mulheres se tornaram uma espécie de ameaça aos veteranos que começaram a retornar para suas casas. Era o início da queda de um sistema social vigente há séculos, e em jogo estava o mito de que mulheres foram feitas somente para casar e ter filhos, já que em pesquisas feitas na época, entre 60% a 85% das
Harvard University Press. P. 281 17 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 209-210 26
americanas que tinham trabalhos não-tradicionais (vulgo “trabalhos de homem” como eram chamados no período) não queriam abandoná-los.18 Porém o clima da época não parecia próprio para mudanças sociais, e os poderosos diretores e produtores de Hollywood, cuja função era antecipar e refletir os desejos sociais masculinos da época, logo criaram o molde perfeito para a criação do fenômeno Marilyn Monroe, que subvertia subconscientemente a crescente independência feminina ao ser sua contrapartida: doce, vulnerável, dependente, sexy e sem autoconfiança nenhuma já que precisava da aprovação masculina em tudo o que fazia. Para completar sua perfeição inatingível e minuciosamente criada para agradar o sexo oposto, Marilyn era feminina e desejada, com sua sexualidade notória e seus cabelos loiros. Era justamente seu cabelo que gerava seu extraordinário poder sexual e Marylin tinha plena consciência desse fato, tanto que era o aspecto de sua aparência onde
18 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 225-226 27
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mais investia tempo e dinheiro, além de não permitir outras atrizes loiras no set com ela. Como o loiro se tornou a cor da deusa do sexo Hollywoodiana, diversas atrizes dos anos 1950 tentaram copiar o molde feito para Monroe, mas pouquíssimas conseguiram. Um desses exemplos foi Anita Ekberg, que conquistou o sucesso graças a um busto avantajado, cabelos leoninos platinados e um pouquinho de sorte – já que assumiu o lugar de Marilyn na turnê de 1954 pelas bases do exército norte-americano. Anita conseguiu se tornar um marco no cinema com o papel de Sylvia, em ‘A Doce Vida’ de Federico Fellini, e a Fontana di Trevi, na Itália, nunca mais seria a mesma depois de sua atuação. Ser loira nos anos 50 significava mais do que sonhar em fazer parte das fantasias masculinas, era também sonhar em ser aceita em uma sociedade (especialmente em seus níveis mais altos e exclusivos) que ainda tinha muito preconceito com pessoas cuja ascendência não fosse a do europeu. Porém as novas tinturas, cada vez mais eficazes e práticas, permitiam a possibilidade de uma aproximação com essa realidade, já que elas introduziram a ideia de que era possível mudar completamente sua identidade em apenas 20 minutos no banheiro. Agora qualquer mulher poderia adquirir o esplendor e pompa dignos da classe afluente, que, mesmo na metade do século XX, ainda incluía cabelos loiros como certificado de berço. A publicidade foi um fator determinante para mudar a imagem das mulheres que tingiam seus cabelos. Elas ainda eram tidas como modernas demais quando a empresa de tintura Clairol desenvolveu em 1956 um produto inovador que permitia descolorir, lavar e condicionar os cabelos em casa, e tudo em apenas um passo. Para promovê-lo, a publicitária Shirley Polykoff criou slogans como “Does she or doesn’t she? Only her hairdresser knows for sure” (Ela tinge ou não tinge? Apenas seu cabelereiro sabe de verdade) e “Is it true that blondes have more
Norma Jeane Baker (19261962), se tornou um dos maiores símbolos sexuais da história ao tingir seus cabelos de loiro platinado e se reiventar como Marilyn Monroe
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Anita Ekberg (1931-), a estrela sueca que roubou corações pelo mundo todo ao banhar-se na Fontana di Trevi, em cena do filme “A Doce Vida” (1960)
fun?”(É verdade que as loiras se divertem mais?), onde a cor do cabelo era muito mais do que a imagem, tornou-se uma psicologia completa onde imagens e slogans não só mostravam que a mulher devia ter permissão para ser loira, como ninguém mais poderia saber quem você é – fosse judia, uma dona-de-casa contida ou feminista. Uma das mudanças essenciais para tornar a descoloração de cabelos o mais respeitada possível seria uma pequena alteração semântica: substituir o termo ‘tingir’ por ‘colorir’, e isso contribuiu para que milhões de mulheres resolvessem experimentar este processo que já fora escandaloso. De acordo com a revista “Look” de 1957, aproximadamente 55 milhões de americanas estavam tingindo o cabelo, e durante os 20 anos em que Polykoff foi responsável pelas propagandas da Clairol, a porcentagem de mulheres que tingiam o cabelo subiu de 7% para mais de 40%.19 Isso demonstrou que para vender tinturas e deixar o processo de se tornar loira ou mudar a cor do cabelo algo mais comum, foi necessário uma grande política de assimilação, associada ao feminismo crescente e campanhas para aumentar a autoestima feminina, para criar uma mulher mais forte e poderosa, como boa parte da população feminina sonhava ser. Malcolm Gladwell, também frisou a importância da conexão entre a coloração de cabelo e outros aspectos sociais. “As mulheres começaram a trabalhar fora de casa, lutaram por emancipação social, conseguiram a pílula e mudaram a cor de seus cabelos. E ver as campanhas de tintura do período é ver que tudo isso se encaixa”, escreveu ele em seu artigo.20 O lançamento da boneca Barbie em 1959 foi responsável por mais uma criação de modelo a ser desejado por garotas e adolescentes. Com cabelos loiros e volumosos, consumista árdua e de peitos empi-
19 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 235-236 20 GLADWELL, Malcolm. ‘True Colors: Hair dye and the hidden history of postwar America.’ The New Yorker, New York, p. 70, 22/march. 1999. 30
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nados como mísseis, a boneca se tornou o símbolo do sonho americano dos anos 60, mesmo que esse estilo fosse ser fortemente contestado do outro lado do Oceano Pacífico nos anos que viriam. A ascensão da televisão nos anos 60 foi responsável pela criação de um novo protótipo de loira, já que o futuro de Hollywood dependia da audiência e doutrinação das garotas adolescentes americanas. Atrizes como Debbie Reynolds (de ‘Cantando na Chuva’) e Sandra Dee, interpretavam as loirinhas alegres, versões crescidas de Shirley Temple, que eram amáveis e inocentes, além de serem representações do que se esperava ser a típica “girl next door”. Isso novamente funcionou como um golpe na tentativa de emancipação feminina, já que elas refletiam com perfeição o papel de mulher dócil que os homens da sociedade americana pós guerra preferiam, além de contrastarem com a sexualidade de Marilyn, que apesar de ser muito tentadora, não era exatamente algo desejado para mães e esposas. Elas deviam ser inofensivas, puras e com uma sexualidade não-ameaçadora. Esses modelos que funcionaram durante tantas décadas para definir e controlar o sexo feminino começavam a perder força, especialmente graças aos ícones loiros 32
criados pela Inglaterra. Twiggy, tida como uma das primeiras super-modelos do mundo, lançou moda com seu corpo quase infantil, como uma Barbie sem peitos, e seus cabelos loiros curtíssimos, que a tornavam uma combinação de inocência e sexualidade devastadora. Seu corte e cor passaram a ser imitados por garotas londrinas, e até pela atriz norte-americana Mia Farrow, e isso aconteceu não apenas pela estética, mas pela drástica redefinição da sociedade e da cultura, além da crença contagiosa de que tudo era possível. Essas mudanças sociais criaram grandes tensões para as mulheres americanas nascidas durante a Grande Depressão. Por um lado, boa parte da mídia, políticos e educadores continuavam a acreditar e pregar que a vida doméstica era preenchimento suficiente na vida da mulher, e que portanto, elas deveriam se dedicar voluntariamente e em tempo integral à sua família, já que não precisariam de carreiras e o papel de mãe justificava isso. O grande problema dessa teoria é que ela não condizia com a realidade, na qual as mulheres passaram a frequentar a universidade, as famílias ficaram menores após o Baby Boom (que aconteceu no pós-guerra, entre 1943 e 1964) e houve um grande incentivo financeiro e intelectual, com a criação de vagas para professoras e vendedoras, para que as mulheres procurassem empregos. Esses fatores contribuíram imensamente para que as mulheres percebessem que queriam e estavam dispostas a ter mais experiências de vida, mas com a falta de um movimento feminista que mostrasse que a maioria buscava algo além da vida doméstica, associado a massiva quantidade de publicidade e artigos mostrando mães em tempo integral como pessoas felizes, as desencorajava a tomar o risco. Uma pesquisa feita em 1962 já indicava que por mais felizes que fossem com a vida doméstica (96% das donas de casa entrevistadas), 90% dessas mulheres desejava e tinha esperanças que suas filhas não levariam
A primeira Barbie foi lançada nos Estados Unidos em março de 1959 pela Mattel, e vinha duas versões: loira e morena.
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a mesma vida que elas.21 Seria apenas no final da década de 1960 que os grupos feministas, criados na maioria dos centros urbanos norte-americanos, começariam a ganhar força para lutar contra a discriminação de gênero. Apesar de constantemente menosprezadas, a luta das feministas não foi em vão, já que mulheres da classe média passaram a se informar e se identificar com o movimento, que ganhou força com a pílula anticoncepcional e a famosa queima de sutiãs de 1968, em Atlantic City. Foram fatos assim que contribuíram para a criação de novos movimentos musicais e permitiram que mulheres – especialmente as loiras – conseguissem lutar para ter espaço em um mundo dominado por homens: a música.
Em sentido horário: as loirinhas alegres Debbie Reynolds e Sandra Dee, seguidas pela primeira top-model mundial, Twiggy, cujo cabelo curto e loiro lançou tendência e foi copiado por diversas mulheres, inclusive sua amiga, a atriz Mia Farrow
21 PITMAN, Joana. On Blondes. 1.ed. London: Bloomsbury, 2003. p. 241-243 35
CAPÍTULO 1
Os anos 70 e a ‘geração perdida’ Poucas pessoas atualmente sabem a importância e o impacto que os anos 1970-1979 tiveram na vida em sociedade e quanto suas transformações foram necessárias para moldar a política, cultura, religião, relações interraciais e a vida familiar no mundo ocidental especialmente nos Estados Unidos. Com o final dos anos 60, sua contracultura que representava os ideais do movimento hippie – paz, vida em comunhão, experimentações musicais e afins – caíram por terra ao longo dos anos e deram espaço para a dita ‘geração perdida’, formada por jovens que não sabiam exatamente pelo o que lutar mas que não aceitavam a ordem pré-estabelecida das coisas, especialmente após as primeiras tentativas de mudança gerada por feministas e a luta pela igualdade racial que Martin Luther King Jr. tinha iniciado, mas que com seu assassinato em 1968, também perdeu força nos anos seguintes e acabou desencadeando uma violência racial massiva nas cidades americanas. A política também havia se tornado um problema já que a população perdeu a confiança no governo e em suas instituições após o escândalo de Watergate, que teve sérias implicações contra o presidente Richard Nixon, e culminou em seu impeachment, além da derrota norte-americana na Guerra do Vietnã, em 1975. Esse conjunto de fatores foi responsável para que a década fosse retratada como a “Era do Eu”,22 termo cunhado pelo jornalista Tom Wolfe, e que representava uma era de narcisismo, egoísmo e do individualismo ao invés da consciência política. “Os anos 70 foram a década 22 WOLFE, Tom. The Me Decade and The Third Great Awakening. New York Magazine, New York, 23/august. 1976. 36
aonde pessoas colocavam ênfase na pele, na superfície, ao invés de na raiz das coisas”, disse o novelista Norman Mailer em 1979. “Era a década aonde a imagem se tornou preeminente por que nada mais profundo estava acontecendo.”23 O descontentamento geral da população com diversos aspectos da vida cotidiana era visível em pesquisas feitas com universitários entre 1970-1971: um terço dos entrevistados achava que casamento havia se tornado obsoleto e que ter filhos não era importante, além disso, quase 50% dos entrevistados considerava os Estados Unidos uma “sociedade doente” e a porcentagem de quem considerava religião, patriotismo e “viver uma vida com boas morais” valores importantes despencou.24 Logo, os jovens não viam mais motivo para se preocupar com convenções sobre diversos aspectos de suas vidas, e perceberam que podiam criar instituições alternativas e novas morais mais compatíveis com a época em que viviam. O filme “Rede de Intrigas” (1976), dirigido por Sidney Lummet, representava com perfeição o sentimento de muitos na época. Em uma cena emblemática, o âncora de jornal interpretado por Peter Finch descobre que perderá seu emprego graças à baixa audiência. Em sua última transmissão ele ataca a corrupção das instituições americanas e a passividade e apatia da população, pedindo para que americanos desabafem seu descontentamento abrindo suas janelas e gritando: “Eu estou bravo para caramba e não vou mais aguentar isso.”25 Isso 23 MAILER, Norman. Mailer on the ‘70s – Decade of ‘Image, Skin Flicks, and Porn’. US News and World Report, p.57. 10/december. 1979.
24 ANDERSON, Terry. The Movement and the Sixties. 1.ed. Oxford University Press, 1996. p. 244 25 Originalmente a expressão é “I’m mad as hell and I’m not going to take it anymore”, e seu acrônimo IMAHAINGTTIAM ficou famoso em cartazes de protesto em universidades pelos EUA. 37
representava o sentimento geral da população de tal maneira que, durante anos, pessoas gritavam isso espontaneamente em toda sorte de lugares nos Estados Unidos. Esse sentimento de basta desencadeou diversas lutas no país durante a década de 1970. Uma delas foi a volta da defesa da integração racial entre brancos e negros, que ganhou ajuda com a série televisiva “The Jeffersons” (1975), onde uma família de negros enriquece e vai morar em um apartamento de luxo. A série também apresentou um casal interracial que se beijava apaixonadamente na telinha e mostrava um progresso racial razoável ao exibir uma família negra em um bairro quase completamente branco, isso em uma época onde atores negros apareciam com pouca frequência na tv e geralmente representavam todos os clichês possíveis. Isso contribuiu para que os espectadores percebessem a importância e a eminência de uma revolução nos direitos civis, já que se vislumbrava uma sociedade onde as pessoas eram julgadas por seu caráter e não por sua cor de pele. 26 Porém o preconceito contra negros - e também hispânicos, orientais, e qualquer outra etnia – ainda era latente, e se comprovava em qualquer situação onde a convivência interracial era imposta. Um exemplo disso aconteceu em 1974 em Boston, quando um juiz impôs a desagregação nas escolas da cidade, e causou violentos protestos onde crianças negras eram recebidas com cartazes com dizeres como “Não queremos pretos em nossa escola” ou “Macacos saiam de nossa vizinhança”. Esses fatos com certeza contribuíam para que a maioria dos afro-americanos se sentisse mais próxima dos negros na África do que dos brancos nos EUA.27 Foi graças ao preconceito que movimentos como o Black Power se 26 O’CONNOR, John J. “TV: Lear’s Jeffersons.” New York Times, New York, p. 67, 17/january. 1995. 27 FORMISANO, Ronald. “Boston Against Busing”, University of North Carolina Press, 1991 38
fortaleceram nessa década, já que sua ambição era consolidar, manter e expressar sua cultura distinta através da música, penteados, artes, roupas e afins. Ao pensar assim, os negros saiam da esfera de dominação e influência branca e contribuíram para a expansão da luta pela igualdade racial. Porém a luta pela integração social não era a única fortemente presente na década de 1970. Com o início dos movimentos feministas na década anterior, a luta por direitos iguais entre homens e mulheres se fortaleceu, especialmente com a grande entrada das mulheres no mercado de trabalho, onde elas não mais buscavam empregos, e sim carreiras. Pela a primeira vez na história dos EUA a grande maioria das mulheres trabalhava fora de casa, inclusive mulheres casadas e com filhos.28 As mudanças não ficaram apenas no âmbito da vida doméstica e profissional. Até a linguagem foi questionada: as mulheres não queriam ser chamadas de “Sra.” apenas por serem casadas, e sim por ser um indicativo de feminino, assim como “Sr. se refere aos homens, como foi questionado em uma revista feminista de 1972.29 A moda também foi influenciada, já que muitas mulheres agora trabalhavam fora de casa. Elas passaram a se preocupar mais com conforto e praticidade do que com estilo e aparência. “Cada vez mais mulheres usam calças” dizia um artigo de 1971 sobre a saúde da mulher, “elas dão mais mobilidade, são mais quentes no tempo frio e oferecem maior proteção contra olhares de homens na rua.”30 As mulheres também passaram a ocupar, pela primeira vez, cargos
28 United States Bureau of Labor Statistics. “Trends in Labor Force
Participation of Major Population Groups, 1965-92”, The Division. 1993. 66 p. 29 “What’s a Ms.” Ms. Magazine Spring/1972
30 Boston Women’s Health Book Collective. “Our Bodies, Ourselves: A Book by and for Women”. New York. Simon & Schuster. 1971. p. 85 39
políticos substanciais, além de criarem uma comissão voltada para o direito das mulheres, e dirigida por mulheres, a NWPC (National Women’s Political Caucus), que, juntamente com outros grupos feministas, contribuiu para a mudança da Lei do Estupro, facilitando as denúncias e prisões dos estupradores, além de tentar mudar as leis de aborto e lutar para que as mulheres tivessem salários equivalentes aos dos homens, já que a diferença desvalorizava o trabalho feminino e contribuía para o aumento da segregação entre sexos. 31 Porém, nem tudo eram flores na luta por direitos equivalentes, e a batalha pela aprovação da Emenda dos Direitos Iguais (ERA em inglês), em 1972, foi a grande prova disso. Apesar de ter sido aprovada nas duas casas do Congresso, ela falhou em conseguir ratificação de todos os 38 estados, necessária para sua implementação, e não foi adotada. O mais peculiar é que a maior opositora da emenda, e grande responsável por sua derrota, era justamente uma mulher, Phyllis Schlafly, uma advogada republicana conservadora. Ela partiu de pressupostos como o fato de que a igualdade sexual “violava a autoridade bíblica sobre os papéis genuínos da mulher e os ensinamentos cristãos sobre a subserviência da esposa.” A frustração em relação à derrota da emenda e da potencial mudança que ela ocasionaria na sociedade americana fez com que muitas feministas se afastassem dos protestos e afins, mas também foi responsável por uma nova estratégia: a criação de diversos centros femininos que protegiam e davam suporte às mulheres em praticamente todos os aspectos, desde creches a clínicas e grupos de apoio. Com isso foi estabelecida uma nova forma de contracultura, paralela à sociedade patriarcal dominada essencialmente
31 SCHULMAN, Bruce. The Seventies: The Great Shift n American Culture, Society and Politics. 1.ed. Capo Press, 2002. p. 165-168 40
por homens.32 No meio de tantas mudanças, dois estilos musicais emergiram para ilustrar os sentimentos e mudanças dos anos 1970: a Disco Music e o Punk Rock. Ambos foram responsáveis por razoáveis revoluções, cada um com seu mérito, seja na atitude de jovens, na maneira como se vestiam ou até mesmo no mercado fonográfico, que foi permanentemente influenciado por ambos os estilos. A música Disco, de acordo com a Revista Rolling Stone, “era o gênero mais independente na história do pop, o mais claramente definido e o mais desprezado. Nenhuma outra forma musical pop já atraiu partidários tão fervorosos e inimigos tão fanáticos, dividindo o público em linhas raciais e sexuais, até mesmo como sua função... era transformar a audiência pop em uma grande família feliz.”33 O estilo, que deve seu nome ao retorno das discotecas no começo dos anos 70, era uma resposta das minorias ao Rock’n’Roll, que se tornava cada vez mais um estilo masculino e branco na época. O fenômeno do estilo disco era alimentado por minorias alternativas e suas lutas: a libertação dos gays, o orgulho negro e a afirmação feminista, e mais do que música ou dança, ele reunia pessoas em comunhão, como em Woodstock, só que “a comunidade era mais urbana, democrática e estilosa”, de acordo com o sociólogo Jefferson Morley, que escreveu sobre o tema em um de seus artigos. “O senso de pertencer [ao grupo] apenas aumentou conforme dançar ao estilo Disco se tornou algo mais grupal... A partilha da cerimônia de dança criava uma afirmação fora da igreja, da 32 SCHULMAN, Bruce. The Seventies: The Great Shift n American Culture, Society and Politics. 1.ed. Capo Press, 2002. p. 170-171 33 WARD, Ed; STOKES, Geoffrey; TUCKER, Ken. Rock of Ages: The Rolling Stone History of Rock and Roll. New York, Rolling Stone Press, 1986. P. 524 41
família e outras instituições.”34 O Disco também foi responsável por fundir sintetizadores, música negra, latina e influências da cultura gay em uma época onde fusões dessa sorte não estavam na moda, e logo tornou o estilo motivo de polêmica, sem contar o enorme preconceito por ser considerado altamente comercial e sem autenticidade. A música disco causava apreensão – para não dizer medo, em alguns – por questionar o racismo, a discriminação e a diversidade, já que tantos rapazes brancos suburbanos a achavam muito feminina, gay ou negra. Porém a polêmica ia mais fundo, já que negros e latinos que buscavam preservar a identidade de suas culturas consideravam o estilo vazio e pobre musicalmente. Mas quando o estilo saiu das discotecas e finalmente atingiu as paradas musicais, artistas como Rolling Stones, Rod Stewart e Bee Gees se renderam e o utilizaram em suas canções. E o clã dos que odiavam o Disco tive que se render às pistas de dança.35 Enquanto a música disco criava um sentimento de união das minorias, o punk era “o rock’n’roll das pessoas que não tinham muita habilidade como músicos mas ainda tinham a necessidade de se expressar através da música”36 como diria John Holmstrom, um dos fundadores da Punk Magazine, a revista responsável por nomear o movimento. O Punk, estilo facilmente lembrado e reconhecido por sua estética radical e única, além das canções rápidas de três acordes, não se resumia apenas às roupas e músicas, mas sim a uma contracultura que buscava negar a política, o “status quo, o movimento hippie com seus preceitos 34 MORLEY, Jefferson. The Myth and Meaning of Disco. New Times, p. 15-20, 1-7/March. 1989. 35 GILMORE, Mikal.“Donna Summer: Is There Life After Disco?”. Rolling Stone. 23/March, 1978 36 MCLAREN, Malcolm. Punk Celebrates 30 Years of Subversion. BBC News, 18/August, 2006. 42
de paz e amor, e até mesmo a música disco e o rock’n’roll cheio de solos de guitarras e sentimentalismos, que se personificou em bandas como Led Zeppelin e The Jimi Hendrix Experience. Através da crueza de suas guitarras caóticas, geralmente gravadas em poucos takes no estúdio, mas que soavam como se tivessem sido gravadas em uma garagem, e seu visual agressivo, os punk pregavam o anticorporativismo na música, ao negar grandes shows, megahits, propaganda massiva e as maiores gravadoras e se basear em um mercado underground, onde pequenos shows em casas como o CGBG e o Max’s Kansas City, ambos em Nova York, abarrotados de todo tipo de pessoas peculiares, eram o auge de um movimento que usou a raiva, a quebra de regras e das tradições vigentes para proporcionar uma revolução nos bons costumes.37 Esses novos “roqueiros’’ aceitavam as pessoas por quem eram, não por sua aparência, e negavam a sociedade consumista em que haviam sido criados, com um gesto revolucionário: mostrar o dedo do meio. Toda essa rebeldia traria uma mudança à própria sociedade que, acostumada com uma vida familiar e patriarcal, teria que aprender a lidar com uma nova geração de rebeldes sem causa que acreditava que “o punk rock serve para ser a nossa liberdade. Nós devemos poder fazer o que queremos fazer”, já diria Joe Strummer, vocalista do The Clash, uma das mais proeminentes bandas britânicas da história do punk.38
37 COGAN, Brian. The Encyclopedia of Punk. 1. ed. New York: Sterling, 2008. p. vii 38 Kosmo Vinyl, The Last Testament: The Making of London Calling. Sony Music. 2004. 43
CAPÍTULO 2
A ‘Dancing Queen’ e a loirinha hard rock
Agnetha Faltskög no começo dos anos 1970
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Tudo começou na pequena cidade de Jönköping, na Suécia, onde Agnetha Fältskog, a garota de rosto angelical e cabelos loiríssimos, que só fortaleciam seu ar de divindade, nasceu em abril de 1950. Agnetha, ou Anita, como gostava de ser chamada, começou a carreira musical tocando piano aos 6 anos de idade, e aos 12 já compunha suas próprias canções, fato que lhe rendeu um contrato e o lançamento de seus primeiros singles, que fizeram sucesso em sua terra natal. Em meio ao estrelato na Suécia, Agnetha interpretou em 1971 o papel de Maria Madalena no musical “Jesus Cristo Superstar”, uma das mais notórias loiras da história, famosa por sua fama negativa, e que contrastava com toda a divindade e pureza que a cantora sempre exalou, especialmente por ser uma pessoa tímida e retraída, sendo até chamada de “Greta Garbo da música”, em referência à atriz sueca loira e igualmente reservada. Nenhuma de suas primeiras empreitadas na indústria musical seria comparável com o estrelato que lhe aguardava quando o ABBA, a maior banda de disco que já existiu – e que provavelmente existirá, já que o estilo nunca conseguiu repetir o sucesso dos anos 70 – se formou no início de 1972. Se atualmente o mundo musical já não é muito justo com canções de países cuja primeira língua não é inglês, não é difícil imaginar o mérito que uma banda formada apenas por suecos – o próprio nome da banda é um acrônimo das iniciais de seus integrantes: Agnetha Faltskög, Benny Andersson, Björn Ulvaeus e Anni-Frid Lyngstad – teve ao se tornar não só o maior expoente da música Disco, como a segunda banda que mais vendeu discos na história: aproxi-
madamente 370 milhões de discos, até 2013.39 O sucesso veio depois da vitória do grupo na competição musical européia Eurovision, em 1974, com seu single “Waterloo”, que mesclava Disco e Glam Rock, um estilo que vinha ganhando força no Reino Unido muito graças ao movimento punk. As turnês mundiais, e os diversos hits – de “Dancing Queen” a “Mamma Mia”, passando por outras pérolas como “Fernando”, “S.O.S.” e “The Winner Takes It All” – foram grandes responsáveis para que a música Disco se tornasse um fenômeno mundial, tão grande que acabou influenciando outros estilos, que não tiveram muita opção a não ser se entregar ao contagiante ritmo do estilo amado por tantos e odiado com o mesmo fervor por muitos outros. No meio de tanto sucesso e fortuna, Agnetha preferia não utilizar seu poder como cantora e celebridade para causas maiores do que a música. “Com o sucesso você ganha poder. Mas não estou interessada em uma posição de poder”, disse a cantora em entrevista a uma revista sue39 “ABBA set for reunion as Agnetha admits, ‘I have a dream’, TheGuardian.com. 2/january. 2011 Disponível em < http://www.theguardian. com/music/2011/jan/02/abba-reunion-agnetha> 45
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ca em 1979. Nem mesmo a crescente causa feminista parecia relevante para a sueca, que não entendia seus motivos ou sua serventia. “Liberação feminina é algo bom, mas que não deve ser exagerado. Já não somos iguais o suficiente?.” 40 Mesmo com sua timidez e um razoável medo de palco, a beleza de Agnetha foi mais que suficiente para transformá-la em um símbolo sexual, sem grandes esforços de sua parte. “Até onde eu sei, ela nunca se esforçou para ser sexy” contou Björn Ulvaeus, seu ex-marido e um dos B’s da banda, para um documentário da BBC. “Ela era simplesmente sexy.”41 E o fato dela e sua companheira Anni-Frid serem o rosto da banda definitivamente contribuía para chamar a atenção do público. Mas o combo da voz angelical, olhos azuis e cabelos loiríssimos contribuiu imensamente para toda a atenção que a cantora recebia, afinal eles perpetuavam ideais de beleza e divindade que já existem há milhares de anos e continuam em alta. Além disso, a banda fez sua parte em ajudar a despertar o interesse pelo fato de que mulheres podiam fazer sucesso em bandas, mesmo que boa parte dele ainda envolvesse ter cabelos platinados e ser um belo rostinho que canta. Por mais que seja impossível desvendar o real motivo do sucesso do ABBA – já foram feitos diversos estudos sobre o assunto, inclusive uma pesquisa envolvendo biologia e a apreciação humana por grupos e diversas vozes cantando juntas – teorias não faltam. De acordo com o jornalista Phil Gallo, que pesquisou extensamente sobre o assunto, sua teoria é a de que o ABBA representava um lugar celestial. “Era música branca como o leite, cantada por pessoas brancas como o leite.”, conta em seu artigo para a revista Variety. “Tudo era não ameaçador
Ensaio fotográfico de 1978 com Agnetha que deu origem à capa de seu álbum “My Very Best”(2008)
40 LINDBERGH, Jackie. Up Close and Personal with Agnetha Fältskog. VeckoRevyn. 29/may. 1979. 41 ‘Agnetha: ABBA and after’. BBC UK. Jun/2013. 47
e esquivo, as batidas eram sons únicos na era da disco, os vocais impossíveis de duplicar. Robótico e sem emoções, mas isso era o prenúncio da música dance, que contrastava com as canções confessionais e lotadas de sentimentos tão populares no início dos anos 70.”42 Em um mundo musical ainda tão comandado por homens, os traços angelicais e cabelos loiros de Agnetha contribuíram para uma maior abertura do mercado para outras cantoras disco, como Patti LaBelle, Gloria Gaynor, Grace Jones e Donna Summer, que chegaria a ser considerada a Rainha do Disco. Talvez ela realmente fosse como cantava em sua canção “Thank You For The Music”: “Eu tive tanta sorte, eu sou a garota com o cabelo dourado.”43
Nancy Wilson tocando com o Heart em festival nos anos 70
Enquanto o ABBA começava a dominar o mundo com a música disco, seus macacões cheios de glitter e suas botas plataforma, a realidade ainda era bem outra para as garotas que queriam entrar no exclusivo clube de garotos que era o rock’n’roll na década de 1970. E as irmãs Wilson que o digam. Ann e Nancy Wilson nasceram nos Estados Unidos, e já tinham contato com a música desde cedo, mas foram os Beatles que as fizeram sonhar com uma banda de rock, já que durante sua infância nos anos 60 era difícil sequer imaginar garotas em uma banda de rock. “Mesmo com extraordinárias cantoras como Ronnie Spector ou Aretha Franklin, não existia o Beatles feminino.” Conta Nancy em sua autobiografia. “O pensamento de que mulheres podiam tocar instrumentos, compor suas próprias músicas e cantar, do jeito 42 GALLO, Phil. ‘Mamma Mia!’ Shows Band’s Staying Power’. 21/july. 2008. <http://variety.com/2008/music/news/abba-s-appeal-is-stronginexplicable-1117989264/> 43 No original, em inglês “I have been so Lucky, I am the girl with Golden hair”
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que os Beatles faziam, teria sido ridículo para qualquer um, talvez até para nós naquela época.” 44 Ann, a irmã morena, entrou primeiro para o Heart, banda de hard rock formada por ela e amigos no Canadá, como sua vocalista, e em seguida chamou sua irmã, Nancy, a linda guitarrista de cabelos loiros e apenas 18 anos quando começou a tocar no grupo, em 1972. Porém se elas achavam que uma carreira no rock seria fácil logo viram o quão 44 CROSS, Charles WILSON, Ann; WILSON, Nancy. Kicking & Dreaming: A Story of Heart, Soul and Rock & Roll. 1. ed. It Books, 2012. p. 44 49
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enganadas estavam. “Em 1970, as únicas mulheres que já tinham estado no palco em muitas das tavernas em que tocamos eram as garçonetes trazendo drinks para os músicos tocando.”, disse Ann em entrevistas sobre a época. “Rock tinha sido uma invenção inteiramente masculina e desde os quadris de Elvis até as calças de Robert Plant, a música rock estava carregada de sexualidade masculina.”45 Se uma garota cantando rock no palco ainda era novidade, a dificuldade que o público tinha de acreditar e aceitar uma guitarrista mulher, e ainda por cima com um rosto inocente e cabelos loiros leoninos, era gigantesca. Foram anos de estrada fazendo pequenos shows pelo Canadá e sofrendo com o imenso preconceito, especialmente de homens que não conseguiam acreditar que uma garota com rostinho de anjo e cabelos loiros tocasse guitarra “tão bem como um cara.” “Nós pensávamos, ingenuamente, que se fossemos boas com nossos instrumentos nós seríamos julgadas como musicistas, e não por nosso sexo. Nós não tínhamos idéia de que ser mulher no rock’n’roll seria um problema que iríamos enfrentar a cada esquina”, Nancy comentou sobre o assunto das mulheres no rock diversas vezes, e ainda discutiu sobre a questão de não bastar ser uma mulher no rock, ainda havia a questão de ser uma guitarrista loira de hard rock. “Por sermos duas mulheres tocando rock, nós topamos com barreiras a cada passo. “Sua guitarra está realmente plugada?”, me perguntaram diversas vezes. “Você toca muito bem para uma garota,” era o que os caras sempre me diziam.”46 Apesar da imensa dificuldade em prosseguir com uma banda liderada por mulheres, o grupo conseguiu atingir sucesso com seu álbum de 1976, “Dreamboat Annie”, que chegou a ficar no top 10 da Revista
Jornal ‘National Informer’ de 1976, com a propaganda controversa página inteira falando sobre o Heart, com foto das irmãs Ann e Nancy Wilson
45 CROSS, Charles WILSON, Ann; WILSON, Nancy. Kicking & Dreaming: A Story of Heart, Soul and Rock & Roll. 1. ed. It Books, 2012. p. 73 46 CROSS, Charles WILSON, Ann; WILSON, Nancy. Kicking & Dreaming: A Story of Heart, Soul and Rock & Roll. 1. ed. It Books, 2012. p. 11
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Billboard na época.47 Com o sucesso, a consideração pelo som das garotas aumentou, mas o julgamento por sua aparência e pelo fato de serem irmãs e mulheres ainda rendia comentários machistas. De acordo com artigos da época e as capas de revista onde apareceram, o julgamento continuo era sempre relacionado à cor de cabelo. “Ann e eu tínhamos uma piada que, não importava o que fizéssemos, a imprensa sempre iria imaginar ela como poderosa e crua, e eu como etérea e angelical; mesmo que esses papéis tivessem pouca base na realidade, já que eles tinham mais a ver com a nossa cor de cabelo do que nossas personalidades.”48 Com isso dá para ter uma idéia de como perdurou o pensamento medieval que associava loiro com algo sagrado, inatingível, puro, belo e etéreo, contrastando com o cabelo escuro, que ainda representava uma certa obscuridade e talvez um lado mais malvado, qualidades raramente atribuídas às loiras, exceto quando em contextos específicos, como os que fizeram com a fama de Maria Madalena e Eva. As revistas e sua própria gravadora, a Mushroom Records também contribuíam para a sexualização do “ato das irmãs” visto com razoável malícia através de títulos nada ingênuos como “Foi apenas a nossa primeira vez!”, manchete da propaganda que ocupava uma página inteira no jornal National Informer em 1976, com as garotas de ombros nus, parecendo completamente peladas. E essa não foi a única vez em que a imagem das garotas foi explorada dessa maneira, já que em uma notória entrevista para a revista Rolling Stone americana intitulada “Fantasias Naturais, Atos Naturais”, além de outras capas que também mantinham as piadinhas maliciosas. ““[As irmãs Wilson] são extremamente parecidas com as irmãs boa (loira) e má (cabelo escuro) no filme de Ingmar 47 Disponível em < http://www.allmusic.com/artist/heart-mn0000671953/ awards> 48 CROSS, Charles WILSON, Ann; WILSON, Nancy. Kicking & Dreaming: A Story of Heart, Soul and Rock & Roll. 1. ed. It Books, 2012. p. 13 52
Bergman, ‘A Fonte da Donzela.”49 No artigo escrito por Merrill Shindler, a eterna comparação entre cor de cabelo e personalidade se manteve, e se baseava em um filme, outro indício de que assim como na Inglaterra Vitoriana, o artifício de definir personalidades baseando-se puramente na cor de cabelo ainda é razoavelmente aceito e utilizado, ainda que inconscientemente. Mesmo com um caminho árduo para o sucesso, como já cantava AC/ DC na canção “It’s a Long Way To The Top (If You Wanna Rock’n’Roll), as irmãs conseguiram quebrar barreiras na música onde poucas conseguiram, além de alcançar um razoável sucesso comercial, vendendo mais de 30 milhões de cópias de discos e fazendo parte de diversas listas das melhores bandas de hard rock da história, sendo que Nancy ainda é considerada uma das melhores guitarristas do rock em diversas listas de revistas especializadas. O mercado musical pode não ter sido justo com as garotas, mas elas conseguiram dar o troco com a canção ‘Barracuda’, um dos maiores sucessos do Heart e que fazia uma forte crítica à indústria musical. “A canção ‘Barracuda’ foi escrita no final dos anos setenta como um discurso contundente contra a indústria musical desalmada e corporativa, particularmente para as mulheres.”,50 disse Nancy Wilson. Elas serviram de exemplo para garotas tentarem uma vida na música desde então e foram tidas como vanguardistas do rock. Logo, se algum dia houver uma nova guitarrista loirinha para chamar a atenção da imprensa, fica a lição de não julgar alguém por sua cor de cabelo, já que as loiras ainda aprontariam muito mais com a chegada e explosão do movimento punk. 49 SHINDLER, Merrill. “Natural Fantasies, Natural Acts”, Rolling Stone Magazine, july/1977 50 CROSS, Charles WILSON, Ann; WILSON, Nancy. Kicking & Dreaming: A Story of Heart, Soul and Rock & Roll. 1. ed. It Books, 2012. p. 222 53
CAPÍTULO 3
Bad Girls & Cabelos descoloridos
Cherie Currie posa para o fotógrafo Brad Elterman em San Fernando Valley, 1978
Enquanto algumas garotas batalhavam para lutar contra a aura angelical e pura que o cabelo loiro lhes dava e conseguir seu espaço na indústria musical, duas vocalistas de bandas diferentes pareceram redescobrir o poder da ambiguidade que os cabelos forneciam, e como o contexto era realmente definitivo para julgá-las. Com belos rostos e cabelos descoloridos, Cherie Currie e Deborah (Debbie) Harry, podiam receber muito bem o título de “loiras malvadas”, já que ambas faziam questão de quebrar regras pré-estabelecidas pela sociedade, tanto com seu comportamento quanto com sua aparência. Uma das primeiras bandas só de garotas e fatalmente uma das mais famosas, The Runaways foi formada em 1975 com o encontro da baterista Sandy West, a guitarrista Joan Jett e o produtor musical Kim Fowley. Ele foi o responsável por descobrir a vocalista de cabelos loiro-platinados e um estilo Glam Rock latente, Cherie Currie, em uma boate, quando a garota tinha apenas 15 anos. Em relatos sobre o encontro que culminaria em sua participação na banda, Cherie disse que Fowley a descreveu como uma garota com culhões. “Eu gosto muito do seu visual. O cabelo platinado, as calças justas, a maquiagem. Tudo muito cool. E você ainda tem esse olhar em seus olhos que diz ‘Eu posso socar um caminhoneiro’”.51 Era isso que Fowley buscava, alguém que negasse o estilo loira surfista boazinha e tivesse atitude rock’n’roll suficiente para mostrar que garotas podiam sim quebrar tudo, como os rapazes faziam, e assim criar um enorme impacto com a sua banda de 51 CURRIE, Cherie. O’NEILL, Tony. Neon Angel: A Memoir of a Runaway. 1 ed. New York. HarperCollins, 2011. p. 61
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garotas rebeldes. As Runaways começaram fazendo pequenos shows em clubes de sua cidade natal, Los Angeles, e logo a repercussão de uma banda de rock formada apenas por garotas menores de idade foi tão grande que elas começaram sua turnê pelos Estados Unidos com shows esgotados. Em seguida elas gravaram seu primeiro álbum homônimo em 1976, cuja capa é justamente Cherie com seus cabelos loiros no melhor estilo Glam Rock de David Bowie. O álbum continha o maior sucesso da banda, “Cherry Bomb”, canção que foi composta por Joan Jett e Kim Fowley para a audição da própria Cherie para a banda, e representava fortemente o espírito de rebeldia feminista das adolescentes, com letras falando sobre ser uma garota selvagem e explosiva, sem nada a perder. A performance icônica da canção, com uma Cherie de 16 anos usando apenas um corset, calcinha e meia calça arrastão foi um grande choque na época, e mesmo que a ambição fosse transmitir uma imagem feminina e feminista forte, muitos rapazes iam aos shows apenas para vê-la de roupa íntima, sem entender a mensagem que ela tentava
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transmitir. 52 As garotas, encabeçadas por Joan Jett e Cherie Currie, foram muito inovadoras tanto na questão estética, com influência do Glam Rock e suas plataformas e roupas vistosas cheias de brilho, quanto nas música com forte cunho feminista – fato um tanto curioso para garotas que não tinham nem idade para beber legalmente. Isso foi o suficiente para lhes garantir o título de Riot Grrrls honorárias, afinal, o movimento punk-feminista só foi criado nos anos 90, mas elas representavam perfeitamente, em suas letras e atitude, a busca por empoderamento 52 Sunday Times Culture. 25 april 2010. 56
Joan Jett & Cherie Currie durante show da The Runaways em 1977
feminino, libertação e sexualidade. A própria Cherie conseguiu essa sensação de poder ao mexer com sua imagem – e é claro, seu cabelo. Ainda na escola ela testava toda sorte de visuais exóticos, que para ela serviam para criar um escudo contra provocações e se sentir bem consigo mesma. “(depois de mudar meu cabelo e roupas) Eu parecia completamente bizarra, como uma princesa alien que havia caído no sul da Califórnia. Não era apenas uma mudança física, era mental também. Quando eu me vestia assim (com roupas inspiradas em David Bowie e Elton John), eu finalmente me sentia como eu mesma. (...) Eu era a coisa-Cherie, algo selvagem, indomado e glamuroso. Eu era a
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minha própria criação, algo monstruoso, misterioso e poderoso.”53 E esse sentimento com certeza só se fortaleceu com as escolhas de figurino chocantes da cantora em seus shows. Apesar de não terem feito tanto sucesso nos Estados Unidos como fizeram em sua turnê mundial – onde tomaram cusparadas e garrafadas na Inglaterra, o que aparentemente significava amor vindo dos punks londrinos, e no Japão, onde foram recebidas com uma histeria digna dos próprios Beatles - e a trajetória da banda ter sido muito encurtada graças a diversas brigas internas e ao difícil temperamento de Kim Fowley, que abusava verbalmente das garotas, a banda serviu como um dos indicadores do que viria quando o movimento punk ganhou força e tomou o mundo, alguns anos depois. Já Cherie acabou deixando seus dias de rockstar para trás, com sua saída da banda, mas sua grande amiga Joan Jett sabe o que ela significou na pequena vanguarda criada pelas garotinhas que quebravam tudo como gente grande. “Para mim, Cherie era uma vocalista maravilhosa, perfeita para a nossa banda, a “loira mulherão” – ela tinha total controle do palco. Um pouco durona, e muito perversa.”54 Cherie podia ser apenas uma adolescente, mas juntamente com as integrantes do Runaways, ela mostrou que não só não existia idade para se ter autoridade rock’n’roll, como uma garota podia ser poderosa e fugir dos clichês da aparência, mesmo com seus cabelos loiros.
E não foram só as Runaways que conseguiram triunfo na atmosfera punk recém-formada. Apesar de não se enquadrar perfeitamente no 53 CURRIE, Cherie. O’NEILL, Tony. Neon Angel: A Memoir of a Runaway. 1 ed. New York. HarperCollins, 2011. p. 6 54 CURRIE, Cherie. O’NEILL, Tony. Neon Angel: A Memoir of a Runaway. 1 ed. New York. HarperCollins, 2011. p. xv 58
conceito que muitos tem do que é ser punk – riffs rápidos e lascerantes, estética violenta e chamativa entre outros – o Blondie foi criado em uma época aonde o próprio movimento punk não estava completamente formado, nem tinha regras muito rígidas, e logo a banda liderada por Debbie Harry faria parte, por conta de sua atitude nos palcos de Nova York. A banda começou em 1975, quando Debbie, uma ex-garçonete e coelhinha da playboy conheceu seu namorado, o guitarrista Chris Stein e eles começaram a reunir os membros para o grupo. O nome Blondie (Loirinha, em tradução livre) veio da cantada barata que Debbie costumava ouvir por onde passasse, já que além da beleza deslumbrante da cantora, o seu icônico cabelo loiro com raízes pretas sempre chamava a atenção. “Era como se ela [Harry] não fosse mais uma pessoa, e sim apenas uma cor de cabelo.” Escreveu a jornalista Evelyn McDonnell na introdução de uma das biografias da cantora.55 O grupo logo passou a fazer shows frequentes no CGBG’s e no Max’s Kansas City, dois dos mais famosos redutos punks nova-iorquinos, e Debbie, assídua frequentadora da Factory, o estúdio recheado de artistas de Andy Warhol, logo se tornou uma de suas queridinhas, fato que ajudou a propagar sua fama como ícone punk. Muitos relatos falam sobre sua beleza e como Deborah Harry se destacava nos redutos punks, afinal ela se tornou o epítome do “cool” para diversas gerações, e os atributos físicos nunca foram exatamente o forte dos frequentadores de shows do estilo punk. Mas, muito mais que beleza, Debbie se destacava por canções que fugiam do clichê da mulher coitada que sofria por amor. “Eu estava completamente cansada e enjoada dessas canções de grupos de garotas do (estilo) Rhythm and Blues, todos os 55 CHE, Cathay. Deborah Harry: Platinum Blonde. 1. ed. Andre Deutsch, 2005. L. 163 59
trios e etc. Todas eram vitimizadas pelo amor. Eu estava cansada disso e não queria retratar eu ou qualquer mulher como vítimas.” disse em entrevista recente a um jornal britânico. 56 A primeira canção composta por Debbie, intitulada “Platinum 56 ‘Sick of Being Victim’: Debbie Harry Speaks Out About Feminism’. Sunday Times. http://entertainment.msn.co.nz/blog.aspx?blogentryid=1 112409&showcomments=true 60
Blonde” (Loira Platinada) já mostrava o impacto que o cabelo loiro teve, não só na sua aparência como na sua vida, pois ela já sonhava em ser como as celebridades platinadas de Hollywood, que eram sempre tão sexy e se divertiam com seus cabelos loiros. “I want to be a platinum blonde Just like all the sexy stars Marilyn and Jean, Jayne, Mae and Marlene Yeah they, they really had fun In a luminous day-glo shade Walk into a bar and I’ll have it made ‘Cause if that’s all it takes; a double processed blonde”57
Debbie Harry em show no CGBG’s em Nova York, no final dos anos 70
Para a jornalista e autora de diversos livros sobre mulheres no rock, Evelyn McDonnell, apesar das óbvias comparações entre Deborah e estrelas como Marilyn Monroe, ela não poderia estar mais longe dessas estrelas. “Harry não estava tentando parecer exatamente com Marilyn – e não era o objetivo dela morrer triste e de overdose. Ela deixava suas raízes escuras, usava roupas fetichistas, rasgadas e andróginas. Ela era brava, confrontava as pessoas, cheia de atitude. Ela era punk. Sim, ela estava sendo irônica, ela estava desconstruindo uma imagem, e fazendo uma pose. Mas era mais que isso: ela não estava apenas reagindo a 57 “Eu quero ser uma loira platinada/Assim como todas as estrelas sexy/ Marilyn e Jean/ Jayne, Mae e Marlene/ Sim, elas realmente se divertiam Com uma cor brilhante como o dia/ Entrar em um bar e conseguir o que quiser/ Por que é tudo que você precisa; um cabelo duplamente descolorido” Deborah Harry – Platinum Blonde 61
Considerada um grande símbolo sexual, Debbie começou a deixar parte de seu cabelo mais escura por não ter dinheiro para tingí-lo, e criou um dos estilos mais marcantes do movimento punk
algo que ela recebeu, ela estava criando ativamente.”58 O cabelo, a atitude nos palcos e a beleza de Debbie Harry somados à sonoridade diferente da banda, que foi pioneira no punk ao mesclar diversos ritmos como o pop, new wave, reggae e rap, garantiu contratos fáceis com gravadoras, já que eles tornavam o punk um pouco mais acessível – por mais que para muitos isso apenas significasse que eles se venderam e se desvirtuaram do movimento. Após dois álbuns de sucesso modesto, mas com boas críticas – Blondie (1976) e Plastic Letters (1978), o grupo finalmente conseguiu sucesso mundial com Parallel Lines (1978), com hits como “One Way or Another”, “Hanging on the Telephone” e “Heart of Glass”, todas canções que mostravam uma garota dona de si mesma e extremamente apaixonada por alguém, e renegavam as tais baladas pop que Debbie Harry tanto odiava, por mais que tivessem uma forte influência disco, porém repaginada perfeitamente ao estilo da banda. “Eu queria criar essa personagem que estava principalmente se divertindo, mesmo que ela estivesse sendo difamada por seus amigos e seu coração fosse pisoteado por membros do sexo oposto.”59 Foi assim que Blondie, que já era o nome que muitos acreditavam que significava apenas a cantora, se tornou sua ‘persona nos palcos. Assim como as irmãs Wilson do Heart, ou a própria Cherie Currie, Debbie Harry não se espelhava em cantoras de sucesso nem em modelos de beleza vigente. Seu grande interesse era se espelhar em homens do rock, e em sua sexualidade arrebatadora e escandalosa, como era o caso de Mick Jagger e David Bowie, e isso era algo razoavelmente inédito para a época ainda. “Não era por querer ser um dos caras que 58 CHE, Cathay. Deborah Harry: Platinum Blonde. 1. ed. Andre Deutsch, 2005. L. 172 59 BOCKRIS, Victor; HARRY, Deborah; STEIN, Chris. Making Tracks: The Rise of Blondie. 1 ed. Da Capo Press, 1998.
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ela queria parecer um deles. Ao mesmo tempo ela queria transcender a tragédia das grandes loiras platinadas, como Jean Harlow e Marilyn Monroe. A ideia inicial era ser desejada, feminina e vulnerável, porém sagaz e esperta ao mesmo tempo, ao invés de uma pobre garota que minou sua força por um galã e um amor não-correspondido.”60 Esse foi o verdadeiro diferencial de Harry em relação às outras cantoras: ela reverteu o status das divas platinadas em uma mulher forte e consciente de sua própria sexualidade e seu poder de sedução. Ela era uma mescla de pin-up roqueira sensual, que reunia toda sorte de elementos retrô cuidadosamente calculados para conquistar não só os homens, mas todos ao seu redor com sua beleza que, propositalmente, quebrava todas as regras e ainda assim era um novo tipo de beldade deslumbrante. Joan Jett, a guitarrista do Runaways, inclusive se tornou uma grande admiradora da aura de vocalista punk descolada que Debbie irradiava com seus cabelos loiros, de onde a ideia de pureza não poderia passar mais longe. “Eu simplesmente amava ver outra mulher no rock’n’roll, no palco com uma atitude forte. Ela tinha uma atitude inovadora, com a qual eu podia me relacionar. Tinha a raiva, tinha a doçura, alegria, todas as mesmas coisas que estão em diversas canções de rock’n’roll, mas eu também via que ela tinha uma frustração em não ser levada tão à sério.”61 Por mais inovador e vanguardista que fosse o papel de Debbie Harry, tanto na música como no movimento punk e no feminismo, no final das contas a questão de ser mulher e não ser levada muito à sério parece que seria uma constante na carreira de qualquer mulher que se aventurou no rock nos anos 70, porém isso não significou que elas não ajudaram a tornar o caminho mais fácil para as mulheres 60 CHE, Cathay. Deborah Harry: Platinum Blonde. 1. ed. Andre Deutsch, 2005. L. 1718
61 CHE, Cathay. (2005) L. 2852 64
que se arriscaram no estilo depois delas. E quanto ao cabelo loiro? “São dadas tão poucas formas de poder para as mulheres na nossa sociedade, que eu diria, com uma frase de Janis Joplin, “Pegue enquanto você consegue”. Os homens que reduzem loiras a objetos acéfalos estão somente tentando trazê-las ao seu próprio nível, completamente cegos por sua loirice”,62 concluiu Evelyn McDonnell. Talvez mais do que a preocupação com sua sexualidade e inteligência, a fascinação e o deslumbramento que o loiro causam poderiam ser a origem de tanta difamação contra uma simples cor de cabelo.
62 CHE, Cathay. (2005) L. 163 65
CAPÍTULO 4
As loiras realmente se divertem mais? Definir conceitos como beleza, obsessão e paixão é algo tão complicado quanto escrever fatos definitivos sobre o sentimento que a humanidade teve e ainda tem sobre loiras, mesmo com milhares de anos de registros em esculturas, pinturas, poemas e outras formas de arte. Em seu livro de mais de quatrocentas páginas, intitulado “História da Beleza”, o renomado escritor e filósofo Umberto Eco, se esforçou para explicar, afinal, o que é belo. Para Eco, “É possível – acima de todos os conceitos de beleza – que talvez existam algumas regras que valham para todas as pessoas, em todos os séculos.”63 E nesse aspecto, provavelmente o loiro se encaixa como cor de cabelo especialmente admirada na história da humanidade. Porém, assim como os conceitos de beleza que se mantém em permanente modificação, especialmente em diferentes épocas e países, e por mais que a admiração por essa cor de cabelo siga quase que inalterada, ela nunca foi absoluta. Isso se comprova com todas as formas criadas pela Igreja Católica de difamar as loiras na Idade Média, ou até mesmo quando a monarquia francesa no século XVIII fez com que a cor de cabelo caísse em desuso e fosse sinônimo de prostituição ou de cafonice. O próprio século XX também testemunhou a queda – e depois a absoluta ascensão com o nazismo ariano de Hitler – da cor de cabelo que mais causou discórdia na humanidade. Isso mostra que não importa o quanto algo faça sucesso ou esteja na moda, assim como os peculiares cortes de cabelo dos anos 80, as roupas disco dos anos 70 e o estilo hippie dos anos 60, tudo pode 63 ECO, Umberto. History of Beauty. 1. ed. Rizzoli, New York. 2004. p. 14
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se tornar razoavelmente obsoleto e sair do gosto popular. Agora afinal, por que as loiras conseguiram manter seu destaque e fascinação apenas por uma cor de cabelo? É difícil ser fugaz na resposta desta questão, porém, ao longo deste trabalho foi possível notar que alguns aspectos em relação ao cabelo dourado – ou platinado – se repetem com uma frequência que poderia ser um bom indicador para ajudar a desvendar o verdadeiro mistério da atração loira. De acordo com a “Encyclopedia of Hair”, algumas questões são mais óbvias na observação desse fascínio por loiros, pois, “Durante boa parte da história humana, o cabelo loiro foi considerado atrativo e sedutor, possivelmente porque essa cor é associada ao ouro e à luz, duas coisas que as pessoas consideram valiosas e desejáveis.”64 Porém essa é apenas a ponta do iceberg. Outro fato citado é possivelmente o maior motivo pelo qual tantas mulheres, e mesmo homens, tinjam o cabelo, especialmente quando os fios brancos começam a aparecer, mas muitas vezes bem antes que isso comece a acontecer. “Sociólogos dizem que cabelo loiro pode indicar juventude, já que crianças tem uma tendência muito maior a ter cabelos loiros do que adultos. (...) Traços associados à juventude geralmente atraem os homens, já que a juventude conota saúde e fertilidade, e o desejo de procriar faz parte da natureza humana.”65 Tais elementos foram comprovados em pesquisas66 67 que apontam que, para tristeza e até inveja de muitas 64 SHERROW, Victoria. Encyclopedia of Hair: A Cultural History. 1. ed. Greenwood Publishing Group, 2006. p. 149 65 SHERROW, Victoria. (2006) p. 149 66 PERIN, Thiago. ‘Homens Realmente Preferem as Loiras’. 5/03/2012. Disponível em < http://super.abril.com.br/blogs/cienciamaluca/homensrealmente-preferem-as-loiras/>
67 HEID, Markham. ‘The Hair Color That Makes You Horny’. 30/09/2012. Disponível em < http://news.menshealth.com/hair-color-horny/2012/09/> 67
Mae West (1893-1980), com seu modelito ousado em cena do filme ‘Amores de uma Diva”(1936)
mulheres que nunca tentaram ir para o lado loiro da força, os homens realmente preferem as loiras. Na construção da sociedade moderna, auxiliada pela biologia e pelas deusas platinadas de Hollywood, o fato é que as loiras realmente chamam mais atenção,, apesar das morenas terem uma fama melhor, já que são tidas como inteligentes, competentes e confiáveis, contrastando com a carência e suposta burrice de suas colegas oxigenadas. Os motivos da atração não se limitam apenas a questões biológicas. A própria humanidade construiu diversas das imagens que acabaram resultando nos clichês que temos em relação às loiras. Não existem pesquisas científicas que comprovem que pessoas naturalmente loiras são menos inteligentes, porém os estereótipos se espalharam por séculos, desde a primeira loira burra em 1775 até Marilyn Monroe, que alimentou o estereótipo em quase todos os seus papéis - mas especialmente no filme ‘Os Homens Preferem as Loiras’ (1953), onde interpretou uma jovem loira ingênua e ‘burrinha’, cuja melhor amiga tinha cabelos castanhos e era claramente a mais inteligente da dupla. Os estereótipos em relação ao cabelo loiro são tão fortes que designaram até classificações por “Tipos de Loiras” e suas personalidades, como o antropólogo Grant McCracken definiu em seu livro “Big Hair: A Journey into the Transformation of Self”. Segundo Grant, seriam seis os tipos de loira existentes: a “loira-mulherão” (Marilyn Monroe, Mae West), a “loirinha da praia” (Doris Day, Goldie Hawn), a “loira ousada” (Candice Bergen), a “loira perigosa” (Sharon Stone), a “loira da sociedade” (C.Z. Guest) e a “loira gelada” (Marlene Dietrich, Grace Kelly).68 Porém a definição da personalidade de alguém graças a sua cor de cabelo já existia desde a Idade Média, quando a Igreja Católica reverteu 68 SHERROW, Victoria. Encyclopedia of Hair: A Cultural History. 1. ed. Greenwood Publishing Group, 2006. p. 150
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a aparência da Virgem Maria – antes comumente retratada com seus cabelos castanhos – em uma loira pura e angelical, que contrastava com as vis Maria Madalena e Eva. A cor de cabelo ainda é tida como forte fator para julgar personagens de ficção, e até mesmo pessoas na vida real, porém baseadas em um determinado contexto, como é feito há séculos. Quantas vilãs de filmes, novelas e livros não têm seu cabelo loiro intocável? E ao mesmo tempo, as mocinhas sofridas também podem ter, como traço marcante de suas características, um loiro angelical, que condiz completamente com sua índole de sofredora que triunfará no final. As próprias musicistas selecionadas neste trabalho sofreram toda sorte de preconceito - - pré-conceito, no caso – por terem seus cabelos loiros, afinal em algum período da humanidade, ser loira não era mais sinônimo apenas de atração fatal, e sim das próprias características de alguém. Par contre, as garotas retratadas, por serem moças espertas e vanguardistas em sua época, souberam jogar muito bem com a dualidade de sua cor de cabelo. O loiro se tornou elemento surpresa, já que no caso delas não significava apenas bom ou ruim, belo ou feio, preto ou branco, e sim diversas nuances de cinza que construíam personalidades de garotas que se dispuseram a quebrar conceitos e clichês para trazer uma nova ordem, na qual não se pode mais julgar alguém por sua cor de cabelo, mas por suas atitudes e por serem quem são. Afinal, como diria a célebre cantora platinada Dolly Parton: “Eu não fico ofendida com todas as piadas de loira burra por que eu sei que não sou burra... assim como eu também sei que não sou loira.”
Elizabeth Ruth “Betty” Grable (1916-1973), ficou conhecida por ter as mais belas pernas de Hollywood, além de ser a pin-up número 1 durante a Segunda Guerra Mundial.
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