Folha de sala "Tiago Aires Lêdo: O Dildotauro de Lide" (PT)

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tiago aires lÊdo


A CASA DE LÊDO Os dias me viraram do avesso e desviraram, as horas me trançavam para me desarrumar. Quanto mais me busquei nos espelhos secretos, mais me perdi de mim. -- Lya Luft, em O Tempo é um Rio que Corre

Para o terceiro ciclo do programa de residências artísticas No Entulho, da ArtWorks, organizado em parceria com a Pedreira, entre os dias 15 de setembro e 15 de novembro de 2021, o artista transmasculino Tiago Aires Lêdo tomou como ponto inicial em sua pesquisa uma carta escrita e não enviada por si e Tiago Colaço em 2018 ao Partido Comunista Português a solicitar a desfiliação deles por conta da “posição [não-ética] assumida pelo PCP em relação ao projeto de lei elaborado pelo partido PAN [Pessoas-Animais-Natureza] que pretendia a abolição da tauromaquia”. Tal escrito libelo de Lêdo e Colaço marca, assim, o comprometimento decolonial de cada um ao sugerir que as populações afeiçoadas que “ficarem sem esta atividade não estão impedidas de desenvolver qualquer outra que não inclua a agressão desnecessária a um animal” e ainda pontua que “a bancada do Partido Comunista Português teve a oportunidade única de estar do lado dos trabalhadores e dos animais, mas escolheu um dos dois.” Isto posto, no decorrer da carta de Lêdo e Colaço, a masculinidade dos “camaradas e amigos” aflora, por suas decisões contadas a nós, como uma cartografia política e de prática de governo, visto que essas categorias políticas que organizam o interior da nossa vida pública são categorias masculinas. Logo, a razão do Estado está configurada a partir de uma gramática masculina e corporificada como representação das masculinidades, e, por isso, esse imaginário corporal masculino está associado normalmente a formas de poder e ação, sobretudo codificadas pela linguagem bélica, das armas e da violência. Ao acompanhar Lêdo em sua residência artística, soube que o “touro [manso] objectificado e vitimizado [em estado de agressividade]” descrito em sua carta servia como um espelhamento de si diante do mundo e essa visão veio a transmutar durante o processo de pesquisa num dos mitemas constituintes do mito do Labirinto, o Minotauro, para, em seguida, Lêdo verificar as diferentes formas existentes


de se organizar a experiência no mundo do que se convencionou a chamar de homem e, por fim, para explorar um processo de produção ficcional de si, de seu gênero e de seu corpo masculino. Como transfeminista, julgo ser importante enfatizar o entendimento de que a categoria CIScolonial homem se consolidou como um processo histórico, ou melhor, como um processo de fabulação histórica, sendo que isso significa dizer que não há nada de essencial em ser homem, dado que não há nada do ponto de vista da biologia que constitui a prática social da masculinidade como tampouco da muito falada testosterona. Ademais, é importante mencionar que as ciências são atividades culturais, porque a natureza é criação da cultura, cujas pistas de sua criação foram apagadas e, por isso, que parece que a natureza sempre está ali. À vista disso, a testosterona compõe um tipo de corpo em que se convencionou a ser um corpo masculino, mas que pode ser constituinte de outros tipos de corpos em outras sociedades, ou seja, esses corpos podem não ser a mesma coisa que o corpo masculino que entendemos, bem como pode não ocupar o mesmo lugar social no que pensamos como corpo masculino. Por exemplo, na obra “Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas” (1935), fruto de trabalho de campo realizado em Papua-Nova Guiné, a antropóloga Margaret Mead mostra outras formas de organizar e de se inscrever a corporalidade no mundo, que não seja mediada por uma constituição CIScolonial de sexo biológico que responda a um ordenamento de gênero que é binário, e não só binário, como também CISheterossexual, branco, estático, monogâmico e cristão, uma vez que ele vai pensar justamente pênis e vagina como opostos complementares. Por conseguinte, ao adentrar o espaço de uma indústria – local esse também associado ao repertório ocidental de imagens da masculinidade –, o artista Tiago Aires Lêdo,


A CASA DE LÊDO

em sua narrativa minotáurica trágico-performativa experimental, coloca em xeque esse mundo com seu próprio corpo, gerando assim um desejo horizontalizado de falar por si mesmo ao apresentar sua releitura trans do Minotauro. Deste modo, a despeito de ter aprendido com Ariadne-Hilda a trilhar o seu próprio caminho ao desemaranhar os fios que tanto lhe perturbam, como se nota em sua ação, Minotauro-Lêdo decompõe todo o seu processo e o apresenta de forma aberta semelhante a escrita de um diário duracional, onde não só narra o direito de fazer com seu próprio corpo o que deseja, mas também convida as pessoas a entrarem em seu Labirinto para se perderem e se encontrarem nele.

Hilda de Paulo

artista e curadora travesti


O Diildotauro de Lide Tiago Aires Lêdo apresenta o trabalho desenvolvido durante o ciclo #03 das Residências Artísticas No Entulho com uma instalação performática na Pedreira. Com duração de uma hora, durante a qual o público pode entrar a qualquer momento, será seguida de uma conversa entre o artista residente e a curadora e artista Hilda de Paulo. Quinta-feira, 11 de Novembro, 2021 Instalação Performática – 21h00/22h00 Conversa com Hilda de Paulo – 22h15/23h00 Pedreira - Rua Pinto Bessa 290, Porto Um projecto ArtWorks Parceiros de Programação Pedreira Home by Ronan Mckenzie Parceiros No Entulho: CVR (Centro para Valorização de Resíduos) Damel PIEP (Centro deInovação em Engenharia de Polímeros) Recivalongo Veios de Madeira Vitrus W2V Parceiros Institucionais Câmara Municipal Póvoa Varzim Smart Waste Escola das Artes - Universidade Católica Produção ArtWorks Financiamento Ecosteel SA Um agradecimento especial: Tomás Paula Marques (apoio à criação) Joana Rodrigues (som) Mariana Leite Soares (luz e apoio à criação) Teresa Antunes (luz) Maria João Leite (figurino) Hilda de Paulo (apoio à criação) Tales Frey (apoio à produção) Teatro Universitário do Porto (apoio à produção) Residências Artísticas No Entulho (RANE) Promovidas pela ArtWorks, são vocacionadas para artistas emergentes e têm como objectivo a exploração de materiais excedentes da indústria. Convidados a pensar, intervir, criar ou modificar estes materiais, os artistas usufruem das condições existentes nas instalações da organização, aproximando, desta forma, o processo de criação às dinâmicas operacionais e recursos inerentes ao dia-a-dia da organização. Neste contexto são proporcionadas condições de ateliê únicas, conjugando dois tempos de produção – o artístico e o fabril – e a vivência de um lugar que se caracteriza pela sua ruralidade e pelas distintas indústrias. O ciclo #03 das residências foi promovido em parceria com Pedreira e Home by Ronan Mckenzie, convidadas a lançar uma open call e a seleccionar cada ume artista. Pedreira é uma plataforma independente de residências artísticas e serviço educativo experimental. Promoveu uma call direccionada a artistas trans, não-bináries e de género fluido residentes em Portugal. Seleccionou, juntamente com a artista Odete, Tiago Aires Lêdo. A Home by Ronan Mckenzie é um espaço criativo multifuncional sediado em Londres, orientado para a apresentação de exposições e programas artísticos alargados. Promoveu um call orientada para artistas mulheres negras sediadas em Inglaterra da qual selecionou a artista Tyreis Holder.

www.noentulho.pt


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