Jornal O Globo, 28 de junho de 2021

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FOTOS DE DIVULGAÇÃO

EDUARDO VANINI eduardo.vanini@oglobo.com.br _

em um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para trás.” Três anos depois de enfrentar censuras e ataques ao se apresentar com a peça “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, a atriz e diretora transexual Renata Carvalho cita Guimarães Rosa para explicar como “transpofagisou” parte do que viveu. Isso não significa que ela subestime as marcas deixadas pela violência. Além de ser impedida de se apresentar em diferentes cidades, Renata enfrentou ataques a bomba e precisou usar colete à prova de balas. —Ao ser censurada, você deixa de trabalhar e perde poder econômico. Mas isso afeta também a saúde mental. Vieram a depressão, a ansiedade e a síndrome do pânico — desabafa a atriz, que olha “daqui para frente”: —Já tivemos a vereadora travesti negra mais votada. A mudança é lenta e gradual, mas ampla. Episódios como o de Renata acendem o alerta sobre como produções ligadas ao tema LGBTQIAP+ sofrem cerceamentos cada vez mais incisivos. Em 2019, o governo federal suspendeu um processo de concorrência para TVs públicas, após o presidente Jair Bolsonaro criticar séries de temática LGBTQIAP+ pré-selecionadas na chamada. Antes disso, em 2017, o então prefeito Marcelo Crivella impediu que a exposição “Queermuseu, Cartografias

“T

Reação. Tales Frey passou a convidar outros artistas LGBTQIAP+ para as mostras com sua curadoria

ARTISTAS CALADOS, CULTURA E HISTÓRIA

SUFOCADOS

Violência, notícias falsas e falta de financiamento atingem arte relacionada ao universo LGBTQIAP+ da Diferença na Arte Brasileira” fosse exibida no Museu de Arte do Rio (MAR). A mostra já havia sido interrompida em seu primeiro endereço, o Santander Cultural, em Porto Alegre, após ser alvo de ataques e notícias falsas nas redes sociais. Foi finalmente exibida, em 2018, depois que a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, abriu um financiamento coletivo celebrado, à época, como um dos maiores já realizados no Brasil. Foi levantado R$ 1 milhão a partir de 1.677 colaboradores. — Não podíamos fazer a exposição, mas entendíamos que era pertinente — recorda-se Ulisses Carrilho, curador do Parque Lage, que considera o caso emblemático por ter sofrido censuras tanto do poder público quanto do setor privado. — Frente às mensagens do prefeito, abusando de seu poder, achamos que a cam-

panha de financiamento seria uma maneira de remexer a sociedade civil. O Baile da Igreja Lesbiteriana, criado pela cantora Bia Ferreira como uma celebração à diversidade, foi alvo do interesse do setor privado. Mas os recursos, e com eles voos maiores, só viriam se ela trocasse o nome do evento para Baile da Bia Ferreira. A artista não topou, afinal o projeto abarca as identidades do público envolvido: lésbicas (les); bichas e bissexuais (bi); travestis e transexuais (t). O episódio fez Bia pensar so-

“Já tive crise de ansiedade por não saber se terei o que comer”

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Bia Ferreira, cantora

DIVULGAÇÃO/ANA PIGOSSO

bre o cerceamento do debate às mulheres negras e lésbicas e refletir sobre sua própria sobrevivência: — Essa censura chega financeiramente. Já tive crise de ansiedade por não saber se terei o que comer — diz. O advogado e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Renan Quinalha, que lançará, em setembro, o livro “Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT” (Ed. Companhia das Letras), diz que a reação conservadora pode colocar por terra os esforços dos artistas. —O mais grave é a capacidade que a censura tem de provocar o medo na sociedade e impedir, dessa forma, a liberdade de criação artística. Órgãos de Estado, inclusive o Poder Judiciário, que deveria zelar pela Constituição, acabam se arvorando nesse papel de censor, com decisões mal fundamentadas —observa. O artista Tales Frey, que vive entre Brasil e Portugal,

Proibição. já enfrentou diferentes tiA atriz Renata pos de censura e chegou a Carvalho e a desistir de exibições. Num cantora Bia desses episódios, ele se reFerreira já cusou a alterar uma obra, tiveram seus mas entende que pode adotrabalhos tar uma postura “afrontosa” cerceados pelo por ser um homem gay cisgênero e branco. Assim, conservadorismo compreendeu como também é seu papel garantir que ninguém fique pelo caminho. Sempre que atua como artista-curador faz questão de convidar pessoas que não sejam apenas o seu espelho social. — Em 2015, no Porto, acho que nenhuma artista transexual havia exposto na cidade. Também chamei apenas brasileiros porque encarei isso como reparação histórica, já que essas pessoas são excluídas nesta cidade — afirma ele, que sem ignorar ou romantizar a censura, concorda com Renata Carvalho: —Consigo perceber um progresso. As transformações já aconteceram e são irrevogáveis. Autor do clássico “Devassos no paraíso”, o escritor João Silvério Trevisan, que teve obras impedidas de circular durante a ditadura militar, é categórico: — Censura é tudo a mesma coisa. Pode até ser um pouco mais descarada,como na ditadura, mas fechar a Cinemateca brasileira é igualmente grave no sentido de que o governo sufoca não só a cultura presente do país, mas a sua História — afirma Trevisan, para quem quando obras têm sua apresentação ou financiamento impedidos em função da ligação com o universo LGBTQIAP+, toda a sociedade democrática é atingida. —Caso ainda não tenhamos aprendido isso, é uma boa hora de entendermos como tudo se entrelaça.


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