Alfred Hitchcock,ou A forma e sua mediação histórica

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Alfred Hitchcock, ou, A Forma e sua Mediação Histórica Slavoj Žižek Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira [Este texto constitui a tradução da introdução da obra Everything you always wanted to know about Lacan (But were afraid to ask Hitchcock). ŽIŽEK, Slavoj (Org.) Verso, London & New York, 1992.] O que normalmente é deixado despercebido na multidão de tentativas de se interpretar a ruptura entre modernismo e pós-modernismo é a maneira como essa mesma ruptura afeta o próprio status da interpretação. Tanto o modernismo quanto o pós-modernismo concebem a interpretação como inerente a seu objeto: sem isso nós não teríamos acesso à obra de arte – o tradicional paraíso onde, independente de sua versatilidade no artifício da interpretação, todos podem apreciar a obra de arte, está irrecuperavelmente perdido. A ruptura entre modernismo e pós-modernismo está assim situada dentro desta relação inerente entre o texto e seu comentário. Uma obra de arte modernista é, por definição, ‘incompreensível’; ela funciona como um choque, como a irrupção de um trauma que mina a complacência de nosso cotidiano e resiste em ser integrada no universo simbólico da ideologia dominante; em decorrência disso, depois desse primeiro encontro, a interpretação entra em cena e nos permite integrar esse choque – ela nos informa, por exemplo, que este trauma registra e aponta para a chocante depravação de nossas próprias vidas cotidianas ‘normais’... Neste sentido, a interpretação é o momento conclusivo de cada ato de recepção: T.S. Eliot foi bastante astuto quando complementou seu Waste Land com notas de referências literárias tal como se poderia esperar de um comentário acadêmico. O que o pós-modernismo faz, contudo, é o exato oposto: seus objetos par excellence são produtos com um singular apelo de massa (filmes como Blade Runner, O Exterminador do Futuro ou Veludo Azul) – cabe ao intérprete detectar nessas obras as mais esotéricas sutilezas teóricas de Lacan, Derrida ou Foucault. Então, se o prazer da interpretação modernista consiste no efeito de recognição que ‘gentrifica’ a inquietante estranheza de seu objeto (‘Ah, agora eu percebo o sentido dessa aparente confusão!’), o objetivo do tratamento pós-modernista é estranhar essa mesma familiaridade inicial: ‘Você pensa que o que você vê é um simples melodrama que até o seu avô senil não teria dificuldades em acompanhar? Contudo, sem considerar.../a diferença entre sintoma e sinthomem; a estrutura do nó borromeano; o fato de que a mulher é um dos Nomes-do-Pai; etc; etc./ você perde totalmente o sentido de que se trata!’ Se há um autor cujo nome resume esse prazer interpretativo de ‘afastar’ o conteúdo mais banal, é Alfred Hitchcock. Hitchcock, como o fenômeno teórico que nós temos testemunhado nas últimas décadas – o fluxo interminável de livros, artigos, cursos universitários, temas de conferências – é um fenômeno ‘pósmoderno’ par excellence. Isso se apoia na extraordinária transferência que sua obra põe em movimento: para verdadeiros aficionados em Hitchcock, em seus filmes tudo faz sentido, o aparentemente mais simples complô esconde as mais inesperadas iguarias filosóficas (e – é inútil negá-lo – este livro compartilha irrestritamente desta loucura). No entanto, considerando tudo, Hitchcock é um ‘pós-modernista’ avant la lettre? Como se deve situá-lo em relação à tríade realismo-modernismo-pós-modernismo elaborada por Fredric Jameson, com um olhar especial na história do cinema, onde ‘realismo’ representa a Hollywood clássica – isto é, o código narrativo estabelecido nos anos 1930 e 1940, o ‘modernismo’ referindo-se aos grandes auteurs dos anos 1950 e 1960, e ‘pós-modernismo’ referindo-se à confusão em que estamos hoje – ou seja, a obsessão com a Coisa traumática que reduz toda grade narrativa a uma tentativa fracassada particular em ‘gentrificar’ a Coisa?1 Para uma abordagem dialética, Hitchcock é de especial interesse precisamente na medida em que ele se situa nas fronteiras dessa tríade classificatória2 - qualquer tentativa de classificação nos leva, mais cedo ou mais tarde, a um resultado paradoxal no qual Hitchcock é, de certa forma, os três ao mesmo tempo: ‘realista’ (dos velhos críticos e historiadores esquerdistas sob cujo olhar seu nome resume o fechamento narrativo ideológico de Hollywood, até Raymond Bellour, para quem seus filmes são variações da trajetória edipiana e, como tais, ‘são tanto versões excêntricas quanto exemplares’ da narrativa clássica hollywoodiana 3), ‘modernista’ (i.e., um precursor e ao mesmo tempo na linha de grandes auteurs que, às margens ou fora de Hollywood, subverteram seus códigos narrativos – Wells, Renoir, Bergman...), ‘pós-modernista’ (ainda que


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